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As temáticas relacionadas com os direitos de

personalidade adquirem uma cada vez maior


relevância na nossa sociedade.

"A Tutela geral e especial da personalidade


humana" foi uma acção de formação
organizada para reflectir sobre esta
temática, na perspectiva processual e
substantiva.

Por outro lado, uma recolha jurisprudêncial


do STJ elaborada pela Assessoria Cível e a
junção de outros textos já publicados,
complementam esta publicação da "Coleção
Formação Contínua", que cumpre assim o
objectivo do Centro de Estudos Judiciários de
deixar à disposição de juízes/as,
magistrados/as do Ministério Público,
auditores/as de Justiça, advogados/as,
académicos e restantes profissionais do
Direito, as comunicações apresentadas nas
suas formações, permitindo que toda a
comunidade jurídica delas usufrua.

(ETL)
Ficha Técnica
Nome:
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017

Jurisdição Civil:
Gabriela Cunha Rodrigues (Juíza Desembargadora, Docente do CEJ e Coordenadora da
Jurisdição)
Laurinda Gemas (Juíza Desembargadora e Docente do CEJ)
Estrela Chaby (Juíza de Direito e Docente do CEJ)
Margarida Paz (Procuradora da República e Docente do CEJ)
Ana Rita Pecorelli (Procuradora da República e Docente do CEJ)
Patrícia Helena Costa (Juíza de Direito e Docente do CEJ∗)

Coleção:

Formação Contínua

− Plano de Formação 2016/2017:

Responsabilidade civil médica – 16 de dezembro 2016 (programa)

Tutela geral e especial da personalidade humana – 07 de abril 2017 (programa)

Conceção e organização:
Gabriela Cunha Rodrigues
Laurinda Gemas
Margarida Paz

Colaboração:

Gabinete dos Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça – Assessoria Cível

Intervenientes:
Ana Paula Boularot (Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça)
Maria Raquel Guimarães (Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Porto)
Cecília Agante (Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação do Porto)

João Paulo Remédio Marques (Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)


Maria dos Prazeres Beleza (Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça)

Revisão final:

Edgar Taborda Lopes – Juiz Desembargador, Coordenador do Departamento da Formação do


CEJ
Ana Caçapo – Departamento da Formação do CEJ
Filipe Alves – Departamento da Formação do CEJ


Desde 15 de setembro de 2017.
Notas:

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programa Adobe Acrobat Reader.

Foi respeitada a opção dos autores na utilização ou não do novo Acordo Ortográfico.

Os conteúdos e textos constantes desta obra, bem como as opiniões pessoais aqui expressas, são
da exclusiva responsabilidade dos seus Autores não vinculando nem necessariamente
correspondendo à posição do Centro de Estudos Judiciários relativamente às temáticas
abordadas.

A reprodução total ou parcial dos seus conteúdos e textos está autorizada sempre que seja
devidamente citada a respetiva origem.

Forma de citação de um livro eletrónico (NP405‐4):

AUTOR(ES) – Título [Em linha]. a ed. Edição. Local de edição: Editor, ano de
edição.
[Consult. Data de consulta]. Disponível na internet:<URL:>. ISBN.

Exemplo:
Direito Bancário [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015.
[Consult. 12 mar. 2015].
Disponível na
internet:<URL:http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf.
ISBN 978-972-9122-98-9.

Registo das revisões efetuadas ao e-book

Identificação da versão Data de atualização


1.ª edição – 24/01/2018
A tutela geral e especial da personalidade humana
- 2017-

Índice

1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de 9


nascimento indevido
Ana Paula Boularot

2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões 81


relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida privada e à reserva
da pessoa íntima ou direito ao carácter
Maria Raquel Guimarães

3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade 99


Cecília Agante

Anexo I 63

Jurisprudência
A liberdade de expressão e informação e os direitos de 65
personalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

O direito ao descanso e ao sossego na jurisprudência das Secções 163


Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

197
Anexo II

Alguns aspectos processuais da tutela da personalidade humana no 201


novo Código de Processo Civil de 2013
João Paulo Remédio Marques

O processo especial de tutela da personalidade, no código de 225


Processo Civil de 2013
Maria dos Prazeres Beleza
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

AS ACÇÕES DE RESPONSABILIDADE NOS CASOS DE VIDA INDEVIDA


E DE NASCIMENTO INDEVIDO 1

Ana Paula Boularot ∗


1. Introdução
2. Cowe vs Forum Group Associates
3. A admissibilidade das acções de wrongful birth
4. A solução holandesa: o caso Kelly Molenaar
5. Bibliografia
6. Jurisprudência
Vídeo

1. Introdução

Como sabem tem sido muito discutida em diversas ordens jurídicas, ao longo dos últimos
cinquenta anos, a problemática de saber se é possível obter uma indemnização nos casos
«chamados» de vida indevida (wrongful life) ou de nascimento indevido (wrongful birth).

A diferença essencial naqueles dois tipos de acções, cujo pressuposto é a existência de um erro
médico por via da violação da leges artis, reside no facto das primeiras (de nascimento
indevido) deverem ser propostas pelo próprio filho, representado pelos pais e em nome
daquele, quando seja incapaz e as segundas são aquelas que são instauradas pelos pais, em
seu próprio nome.

Existe ainda, a par destas duas categorias de acções, uma terceira, a de concepção indevida
e/ou gravidez indevida (Wrongful Conception /wrongful pregnancy), que não nos irá ocupar
agora, mas que obedece aos mesmos pressupostos das outras duas, isto é, ocorre uma
gravidez indesejada em resultado de um erro médico – imagine-se uma vasectomia não
conseguida em que o pai não foi devidamente informado; ou a concepção de um ser com uma
deficiência genética sem que os pais tenham sido informados dos seus riscos genéticos
susceptíveis de originar aquela mal formação.

Voltemos, ao que nos trouxe aqui: as duas primeiras categorias de acções judiciais.

A expressão vida indevida – wrongful life (em sentido lato) – por contraposição a morte
indevida – wrongful death – aparece-nos primeiramente na jurisprudência norte-americana do
Estado do Illinois, em 1963, no caso Zepeda versus Zepeda.

O Autor, representado por sua mãe, filho recém-nascido do réu, demanda este pretendendo
ser indemnizado por ter sido gerado através de engano produzido pelo seu progenitor, com
promessas de casamento falsas a sua mãe, uma vez que já era casado. Ao fazê-lo nascer como
filho fora do matrimónio, estigmatizou-o, privando-o de uma família legítima, normal e de
poder herdar.

* Juíza Conselheira do STJ.


1
CEJ, 16, de Dezembro de 2016

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

O Tribunal indeferiu a pretensão do Autor, uma vez que as implicações legais e sociais de uma
acção deste jaez seriam nefastas, pois ao abrir-se a porta a eventuais direitos dos filhos
ilegítimos, ter-se-ia de admitir outro tipo de acções baseadas quiçá, na cor de pele, na raça,
doenças genéticas, etc, o que conduziria a um absurdo.

2. Cowe vs Forum Group Associates

Em Cowe vs Forum Group Associates (Estado de Indiana, 1991), Melanie, uma mulher adulta,
com graves deficiências mentais, ficou grávida na sequência de violação perpetrada por um
outro paciente da casa de repouso onde ambos estavam internados, e veio a dar à luz Jacob,
uma criança saudável, o qual instaurou uma acção – wrongful life – contra a clínica,
fundamentando a sua pretensão na circunstância de estar privado do suporte dos pais – ambos
com deficiências mentais profundas – pedindo uma compensação para fazer face às suas
necessidades de vida, até aos 21 anos.

Aqui o Tribunal concedeu a indemnização pedida, tendo considerado negligente a actuação da


clínica, sobre a qual impendia o dever de vigiar os seus utentes.

Os Autores destas duas acções não alegavam qualquer dano de viver, pois não baseavam a sua
pretensão no direito à sua não existência, mas antes, no caso Zepeda, a uma existência
ilegítima e no caso Cowe, a uma existência privada do suporte dos pais.

Mas o conceito de wrongful life começou a delinear-se precisamente por aqui, abarcando −
com o tempo − outro tipo de situações, maxime aquelas em que os Autores das mesmas são os
filhos, representados pelos pais, sustentando que, se não fosse a negligência médica, os
progenitores teriam eventualmente recorrido à interrupção da gravidez, sendo o dano alegado,
o de ter de viver com uma deficiência, a qual nunca se teria produzido caso o nascimento não
tivesse ocorrido: é o dano de viver que está em causa.

A primeira decisão jurisprudencial conhecida no nosso país, em que se pôs este problema, é
datada de 19 de Junho de 2001 (Ac STJ, Relator Pinto Monteiro): Abel, menor, representado
por seus pais, instaura acção contra X e Y (respectivamente médico radiologista e clínica
radiológica), pedindo uma indemnização pelos danos que sofreu por ter nascido, uma vez que
os réus, que assistiram à sua mãe durante a gravidez, fazendo-lhe as ecografias pertinentes,
não actuaram com a diligência necessária, não a informando das malformações do feto (graves
e irreversíveis mal formações nas pernas e na mão direita), retirando-lhe assim a possibilidade
de optar pela interrupção da gravidez.

A problemática foi decidida formalmente, pela ilegitimidade do Autor, com a seguinte


fundamentação, no que nos interessa:

«(…)O autor pede que os réus sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização pelos
danos que lhe advêm do facto de ter nascido com malformações nas duas pernas e
ainda na mão direita e fundamenta o pedido na conduta negligente dos réus que não

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

detectaram, durante a gravidez da mãe, as referidas anomalias físicas. Por esse


motivo, diz, os pais não puderam optar entre a interrupção da gravidez ou o
prosseguimento da mesma.
Isto é, o autor invoca danos por si sofridos, mas assenta o seu eventual direito à
indemnização na supressão de uma faculdade que seria concedida à mãe (ou aos
pais).
Dentro da lógica da argumentação do autor, o pedido de indemnização deveria ser
formulado pelos pais e não por ele, já que o direito ou a faculdade que poderá ter sido
violado não se encontra na órbita da sua esfera jurídica, mas sim de seus pais.
Se os réus tivessem informado os pais do autor das deficiências físicas existentes, uma
de duas soluções se podiam configurar: ou a gravidez era mantida e o autor tinha
nascido exactamente com as malformações de que é portador, ou a gravidez era
interrompida e o autor não tinha nascido.
O que se questiona, repete-se, é o direito à não existência, no que respeita ao autor.
Os pais teriam, eventualmente, o direito à interrupção da gravidez, mas não é esse
direito ou faculdade que aqui se discute, já que o autor é o próprio filho. Este, nos
termos em que a problemática é colocada, pode dizer: não queria existir, logo tenho
direito a uma indemnização por isso acontecer.
Tal direito, que não encontra consagração na nossa lei, mesmo que exista, não poderá
ser exercido pelos pais em nome do filho.
Só este, quando maior, poderá, eventualmente, concluir se devia ou não existir e só
então poderá ser avaliado se tal é merecedor de tutela jurídica e de possível
indemnização.(…)».

Não sei se repararam, mas estamos face a uma acção cuja causa de pedir integra o fundamento
para uma acção baseada em wrongful birth (a intentar pelos pais, portanto) mas, no caso, foi
intentada pelo filho, representado por aqueles, o qual quer ver reconhecido o seu direito à não
existência.

O caso paradigmático na jurisprudência europeia em sede de acções de wrongful life, é o


chamado Arrêt Perruche, da Cour de Cassation francesa de 17 de Novembro de 2000.

Nicolas Perruche nasceu a 14 de Janeiro de 1983, mas vem a apresentar um ano mais tarde
malformações do síndrome de Gregg (também conhecido pelo síndrome da rubéola congénita,
embriopatia rubeólica e agente etiológico), por força de rubéola contraída pela mãe durante a
gravidez, tendo o Tribunal decidido que a criança tinha direito a uma indemnização porque as
faltas cometidas pelo médico e pelo laboratório tinham impedido a possibilidade da mãe
interromper a gravidez e assim evitar o seu próprio nascimento.

Pela primeira vez na história judiciária um Tribunal Superior concedeu uma indemnização a
uma criança pelo facto de ela ter nascido e a polémica instalou-se, não só na sociedade
francesa à qual o assunto dizia − na altura − directamente respeito, mas também a nível
europeu.

O legislador francês veio, na sequência do aludido Aresto, a aprovar a Lei 2002-303, de 4 de

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1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

Março de 2002 (denominada Lei Anti-Perruche), sobre os direitos dos doentes e qualidade dos
serviços de saúde, onde se estabeleceu no seu artigo 1º, nº 1, além do mais, e para o que nos
interessa, o seguinte:

«Ninguém pode invocar um prejuízo pelo único facto de ter nascido», acrescentando-se que
uma pessoa que nasceu com uma deficiência devido a um erro médico, poderá obter uma
reparação quando aquele causou directamente a deficiência ou a agravou, ou não permitiu que
fossem tomadas as medidas susceptíveis de atenuar e que, além disso, a indemnização que os
pais poderão pedir por um erro «faute» que levou a que uma deficiência não fosse detectada
durante a gravidez, não pode incluir os encargos especiais decorrentes ao longo da vida dessa
deficiência, advindo antes a compensação desse prejuízo da «solidariedade nacional», o que
significa que o Estado assume o encargo.

Quer dizer, aquela Lei estabelece como regra base a de que ninguém poderá tirar partido de
um prejuízo pelo facto de ter nascido, acrescentando que, caso a pessoa tenha nascido com
uma deficiência devido a um erro do médico, pode obter a reparação do seu dano, quando
aquele provocou directamente o defeito ou o agravou e/ou não permitiu a tomada de medidas
para a atenuação do problema: passou-se a fazer a distinção entre o chamado dano pré-natal
(o qual merece a tutela jurisdicional), do ressarcimento do dano da vida indevida (situação esta
agora definitivamente afastada em termos legais).

De uma maneira geral a doutrina e jurisprudência europeia e norte americana, nos casos em
que a par da wrongful birth action se cumula uma wrongful life action, esta é rejeitada in limine
por se considerar inadmissível o ressarcimento do dano pessoal de se ter nascido (para além
igualmente das questões suscitadas a nível da quantificação do valor da vida – quanto vale a
vida? pode uma vida valer mais do que outra? uma vida com deficiência é menos valiosa que
uma vida sem deficiência? quais os critérios de valoração? Etc. – caso tal indemnização fosse
possível), sendo que, esta questão nos coloca perplexidades várias, passando pelas filosóficas,
morais, religiosas, politicas, para além, obviamente, das jurídicas.

3. A admissibilidade das acções de wrongful birth

No nosso país, o Ac da Relação do Porto de 1 de Março de 2012 (Relator Filipe Caroço), sobre o
qual recaiu o Ac STJ de 17 de Janeiro de 2013 (por mim relatado), pronunciou-se sobre a
seguinte questão:

S, por si e em representação do seu filho menor João, instaurou acção contra um CENTRO DE
RADIOLOGIA X, LDA, e respectivos médicos radiologistas, alegando essencialmente que o J
nasceu a 26 de Novembro de 2003 com síndroma polimalformativo às 38 semanas de
gestação, designadamente sem mãos nem braços, deformação dos pés, da língua, do nariz, das
orelhas, da mandíbula e do céu da boca, sendo que durante a gravidez, a Autora realizou as
ecografias obstétricas medicamente previstas para gravidez na Ré e sempre foi dito e mostrado
à Autora que o bebé era perfeitamente normal. Por sucessiva negligência grosseira, foi
coarctado à Autora o direito de auto-determinar a sua vontade relativamente ao destino da sua

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

gravidez, pelo que ambos os Autores terão de encarar para a vida as malformações congénitas
descritas. O Autor sempre dependerá de terceiros para a sua sobrevivência, e necessitará dos
cuidados permanentes da Autora para a execução das mais simples tarefas do quotidiano.

Ambos os Arestos afastaram o pedido do Autor, uma vez que este consubstanciava uma acção
por wrongful life, traduzida num direito à não existência, inadmissível no nosso direito.

O problema com o qual o Tribunal se deparava, neste particular, era o de saber se a atribuição
de uma indemnização nestas circunstâncias específicas, o nascimento deficiente do Autor,
constituía um dano juridicamente reparável atento o nosso ordenamento jurídico, o que não
pareceu ser enquadrável em termos normativos, antes se afigurando a sua impossibilidade e
que levaria a questionar outras situações paralelas tais como a eutanásia e o suicídio, as quais
passariam a ter leituras diversas, chegando-se − então − à conclusão que afinal poderá existir
um “direito à não vida” (embora no que tange ao suicídio sempre se possa argumentar que o
mesmo não é punido, embora este argumento seja falacioso posto que, sendo o autor do
pretenso «facto crime» o «objecto» do mesmo, como é sabido, a morte do arguido é um facto
extintivo da responsabilidade penal, constituindo tipos legais de crime, pp por aquele mesmo
compêndio normativo, quer o homicídio a pedido da vítima, quer o incitamento ou a ajuda ao
suicídio.

Todavia, no que diz respeito à wrongful birth action, ambos os Acórdãos concederam a
indemnização à mãe, pois partiu-se do facto apurado que se aquela tivesse sido devida e
atempadamente informada da mal formação do feto, teria optado por interromper a gravidez,
nos termos do artigo 142º, nº1 do C. Penal.

No Acórdão do STJ de 12 de Março de 2015 (Relator Helder Roque), pôs-se o seguinte


problema:

A e B, por si e na qualidade de legais representantes de seu filho menor, Cristiano, propuseram


uma acção contra a clínica "HH, Lda", e Dr.Y, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhes uma
indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, causados pela sua conduta,
alegando, para tanto, em síntese, que, na sequência de uma gravidez da autora, da qual
resultou o nascimento do menor Cristiano, os autores contrataram, por três vezes, os serviços
da ré, para a realização de exames de ecografia obstétrica, tendo os réus assinado o relatório
das ecografias realizada às 8ª, 21ª e 30º semanas de gestação. Apesar de os referidos relatórios
atestarem não haver qualquer deformação do feto, o menor Cristiano veio a nascer em 2005,
com gravíssimas malformações dos membros superiores e inferiores, que determinam uma
incapacidade permanente global de 93%, sendo certo que essas deformações são detectáveis
às 12 semanas, o que não aconteceu, por descuido e negligência grosseira, imputável aos réus,
o que impediu que os autores pudessem efectuar uma interrupção médica da gravidez ou
sujeitar o feto a tratamento, diminuindo, significativamente, as malformações existentes.

A conduta dos réus causou aos autores gravíssimos danos morais, tanto mais que se viram
confrontados com as malformações do menor, apenas, no momento do nascimento.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

A primeira instância julgou a acção parcialmente procedente, condenando as rés a pagarem,


solidariamente, a quantia de €35.000,00, a cada um dos autores (A e B, os pais) e a quantia que
se viesse a liquidar, no competente incidente de liquidação, quanto às despesas que aqueles
mesmos Autores vão ter de suportar, com a substituição das próteses do filho, até este atingir
os 18 anos de idade, absolvendo-os do mais peticionado com fundamento na wrongful life
action.

O Tribunal da Relação revogou a sentença, uma vez que entendeu não se ter provado que
tivesse sido a falta de conhecimento atempada das malformações a causa do impedimento dos
pais de procederem à interrupção da gravidez, ou de terem solicitado o eventual tratamento
do feto.

O STJ, desvalorizando a resposta negativa dada ao quesito do seguinte teor “A não detecção
atempada das deformidades descritas em D) impediu que os autores pudessem efectuar uma
interrupção médica da gravidez?”, porque entendeu que a falta de prova desse facto negativo
significa, apenas, que ele pode ter tido ou não lugar, mas não constitui prova de que ele não
teve lugar.

E, nessa base, concluiu pela repristinação da sentença de primeira instância, reconhecendo aos
pais o direito a serem indemnizados, mas negando o direito à indemnização formulado pelo
filho.

Esta decisão foi ainda objecto de recurso para o Tribunal Constitucional, suscitando-se a
inconstitucionalidade nos seguintes termos, e em resumo, para o que nos interessa aqui:

̶ A interpretação dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil, no sentido de que o nexo de
causalidade entre a ausência de comunicação do resultado de um exame, o que configura um
erro de diagnóstico, e a deficiência verificada na criança, que poderia ter culminado com a
faculdade de os pais interromperem a gravidez e obstar ao nascimento, constitui o pressuposto
determinante da responsabilidade civil médica nos presentes autos, isto é, tem por base a vida
como dano, violando claramente o princípio constitucional consagrado no artigo 24.º, n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa.

Por Ac do TC de 2 de Fevereiro de 2016 (Relator Teles Pereira), foi decidido o seguinte, no que
tange à problemática indemnizatória:

«Não julgar inconstitucionais os artigos 483,º, 798.º e 799.º do Código Civil, interpretados no
sentido de abrangerem, nos termos gerais da responsabilidade civil contratual – no quadro de
uma ação designada por nascimento indevido (por referência ao conceito usualmente
identificado pela expressão wrongful birth) –, uma pretensão indemnizatória dos pais de uma
criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos
mesmos em função de um erro médico, a serem ressarcidos (os pais) pelo dano resultante da
privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas,
quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar
essas opções».

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

4. A solução holandesa: o caso Kelly Molenaar (Supremo Tribunal da Holanda – Hoge Raad -
de 18 de Março de 2005).

Os pais de Kelly informaram os médicos do Centro Médico da Universidade de Leiden, que um


parente do pai sofria de uma deficiência provocada por uma anomalia cromossómica, tendo-
lhes sido tranquilizados os receios bem como lhes foi negada a feitura de um teste pré-natal
cuja realização foi requerida pela mãe, uma vez que tal teste era apenas indicado nos casos em
que a grávida tivesse sofrido três abortos espontâneos e a mãe de Kelly havia sofrido apenas
dois. Kelly acabou por nascer com múltiplas deficiências físicas e mentais, não anda, não fala,
não vê bem, sofre de autismo, asma e dor crónica.

A decisão do Supremo Tribunal, admitiu a tese de que a actuação dos médicos, ao recusarem a
feitura do teste, provocou danos, os quais não só atingiram a Kelly, como também os seus pais,
sendo que a eventual intervenção do geneticista clínico, teria levado os pais à realização de um
aborto embriopático ou fetopático e portanto, Kelly não teria nascido, tendo dado provimento
ao pedido dos pais formulado contra o Hospital onde os médicos prestavam serviço,
condenando-o em montante equivalente ao valor dos custos inerentes aos respectivos
cuidados de saúde e de educação até que aquela perfizesse 21 anos.

O Tribunal holandês foi, no entanto, mais além, ao decidir que Kelly tinha direito a uma
indemnização pelo dano moral decorrente do seu próprio nascimento, determinado que a
existência desta era susceptível de indemnização.

Entendeu-se, aí, que Kelly Molenaar era parte da relação contratual estabelecida entre seus
pais e os médicos, pelo que sobre estes impendiam deveres para com aquela, na sua qualidade
de nascitura, deveres esses que foram violados ao negarem à mãe a efectivação de um exame
pré-natal por esta requerido e através do qual a alteração genética do feto seria perfeitamente
identificável, sustentando os médicos visados tal recusa no facto de tal exame ser apenas
indicado para mulheres que tivessem sofrido anteriormente três abortos e no caso da mãe da
Kelly a mesma havia sofrido apenas dois.

Trata-se aqui da defesa da «terceira via» da responsabilidade civil, através do enquadramento


neste instituto do contrato com eficácia de protecção para terceiro, um tertium genus, o que
possibilitaria, portanto, abarcar as situações de violação de deveres específicos de protecção e
cuidado emergentes daquele acordo e para com terceiros.

Todavia, a nossa grande dificuldade, nesta possível construção jurídica, consiste na


impossibilidade de se considerar como «terceiro» o feto, porque salvo o devido respeito que é
muito pelos defensores desta teoria, não se pode aceitar, de todo em todo que a criança,
inexistente enquanto ser humano – em gestação apenas – face ao preceituado no normativo
inserto no artigo 66º, nº1 do CCivil, que prescreve que a personalidade se adquire «(…) no
momento do nascimento completo e com vida.», acrescentando o seu nº2 que «Os direitos que
a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.», possa ser tida como parte
interessada num contrato havido entre aqueles que a conceberam, sendo a mesma na altura
um nascituro e por isso carecida de personalidade jurídica, sem prejuízo da Lei lhe atribuir

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

alguns direitos, os quais são apenas e tão só os que decorrem dos seguintes normativos: 952º,
no que tange às doações a nascituros; 2033º, nº1, quanto à sua capacidade sucessória; 1878º,
no que tange às responsabilidades parentais; 1854º e 1855º quanto à perfilhação de nascituro;
e 2240º a propósito da administração de herança ou legado a favor de nascituro, cfr sobre a
condição jurídica de nascituros e concepturos.

Nenhum outro direito se afigura concretizável com o nascimento do nascituro, maxime, o


decorrente de um pretenso contrato com eficácia de protecção de terceiro (terceiro este
apenas nascituro, falho da qualidade jurídica de terceiro para efeitos obrigacionais, por
ausência de personalidade jurídica), a quem a Lei não concede qualquer protecção por via da
celebração daqueloutro contrato de prestação de serviços médicos, a não ser a protecção
directa do mesmo, ou seja, a decorrente de uma actuação do médico dirigida especificamente
ao feto e por isso causadora das suas eventuais malformações, o que não se mostra ter
ocorrido nos casos em tela.

A defesa de uma aplicação analógica das regras de protecção de terceiros, em sede


estritamente obrigacional, à situação que nos ocupa, de acção por wrongful life, baseadas na
tese expendida no processo Kelly Molenaar é no mínimo paradoxal, pelo menos em casos
flagrantes em que as partes não conceberam tal hipótese como abrangida no plano negocial
previamente estabelecido, nem o «terceiro» - o nascituro, podia interagir com os contraentes,
porque terceiro ainda não era para os sobreditos efeitos.

Qualquer que seja a solução a dar a esta problemática, há sempre ponderar as várias questões
que se suscitam e que passam pela análise do nascimento da criança seriamente deficiente
como dano, isto é, a vida como dano; e, ao pretendermos o ressarcimento desse dano vida,
não estaremos a admitir um direito à não existência e ao admiti-lo, não estaremos nós a
justificar um paradoxo?

Meditem…
Muito grata pela Vossa atenção.

18
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

5. Bibliografia

− Almeida Costa, Direito das Obrigações; Direito das Obrigações, 6ª edição.

− Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Reflexões em torno da Responsabilidade Civil dos


Médicos, in Direito e Justiça, Vol XIV, Tomo III, Universidade Católica, 2005; Responsabilidade
Civil por erro médico: Esclarecimento/Consentimento do Doente, in Data Venia, Revista Jurídica
Digital, Ano 1, nº1, Julho-Dezembro 2012, disponível na internet; Responsabilidade Médica Em
Direito Penal, Estudo dos Pressupostos Sistemáticos, 2007.

− Álvaro Dias, Breves considerações em torno da responsabilidade civil médica, RPDC, 1993,
Ano II, nº3.

− António Pinto Monteiro, Direito à não existência, direito a não nascer, in Comemorações dos
35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Vol II, A parte geral do código e a
teoria geral do direito civil; em anotação ao Acórdão do S.T.J. de 19 de Junho de 2001, in RLJ,
ano 134, nº3933.

− Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II volume, 5ª edição.

− Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in Direito da


Saúde e Bioética, 1996.

− Carlos Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual.

− Carneiro da Frada, A própria vida como dano? Dimensões civis e constitucionais de uma
questão limite, in Revista da Ordem dos Advogados, 2008, I; Contratos e deveres de protecção,
in BFDUC, suplemento Vol XXXVIII, 1993.

− Dias Pereira, O Consentimento Informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil,


2004.

− Fernando Dias Simões, Vida Indevida, As acções por wrongful life e a dignidade da vida
humana, in Revista de Estudos Politécnicos, Polytechnical Studies Revew, 2010, Vol. VIII, nº13.

− Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, A Responsabilidade Médica em Portugal, in BMJ, nº332; e,


Responsabilidade Médica na Europa Ocidental – Considerações de lege ferenda, in Scientia
Iuridica, Tomo XXXIII, 1984.

− Guilherme de Oliveira, O fim da arte silenciosa – O dever de informação dos médicos, in RLJ,
ano 128º, 1995/1996.

− Henriques Gaspar, A Responsabilidade Civil do Médico, in CJ Ano III, Tomo I, 1978.

19
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

− João Álvaro Dias, Culpa Médica: algumas ideias força, in Revista Portuguesa Do Dano
Corporal, Novembro 1995, Ano IV, nº5, pags 23 e 55; Dano Corporal.

− João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume I, 1978.

− José de Faria Costa, Em redor da noção de acto médico, in RLJ, Ano 138º, nº3954.

− José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, "Código de Processo Civil", Anotado, vol 3º,
tomo I, 2ª edição.

− Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações,1963, 2ª edição.

− Maria Paula Ribeiro de Faria, O erro em Medicina e o Direito Penal, in Lex Medicinae, Revista
Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 7, nº14, 2010.

− Mark Cohen, Park v. Chessin: The continuing judicial development of the theory of «wrongful
life», in American Journal of Law & Medicine, 1978, vol 4, nº2.

− Marta de Sousa Nunes Vicente, Algumas Reflexões sobre as acções de “wrongful life”, in Lex
Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 6, nº11, 2009.

− Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 1984, vol II; Direito das Obrigações, I volume,
1980; Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III.

− Menezes Leitão, A Responsabilidade do gestor perante o dono do negócio no Direito Civil


português, 2005, 340; Direito das Obrigações, Vol I, 4ª edição.

− Moitinho de Almeida, A Responsabilidade Civil do Médico e o seu Seguro, in Scientia Iuridica,


Tomo XXI, 1972.

− Paulo Mota Pinto, Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de «vida indevida”


(“wrongful birth” e“wrongful life”), in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde,
Ano 4, nº7, 2007.

− Pedro Romano Martinez, Responsabilidade Civil por acto ou omissão do médico, in Estudos
De Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida.

− Pinto de Oliveira, in Responsabilidade Civil em instituições privadas de saúde: problemas de


ilicitude e de culpa, responsabilidade civil dos médicos, 2005.

− Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade.

− Ribeiro de Faria, Da Prova na Responsabilidade Civil Médica - Reflexões em torno do direito


alemão, RFDUP, Ano I, 2004.

20
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

− Ricardo Lucas Ribeiro, Obrigações De meios E Obrigações De Resultado, 1ª edição, 2010.

− Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico − reflexões sobre a noção da perda
de chance e a tutela do doente lesado, in FDUC, Centro De Direito Biomédico.

− Sinde Monteiro, Responsabilidade Civil, in Revista de Direito e Economia, Ano IV, nº1 Jan-Jun,
1978.

6. Jurisprudência

Jurisprudência relevante, in www.dgsi.pt:

− Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001 (Relator Pinto Monteiro)

− Acórdão da Relação do Porto de 1 de Março de 2012 (Relator Filipe Caroço)

− Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2013 (Relatora Ana Paula


Boularot)

− Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Março de 2015 (Relator Helder Roque)

− Acórdão do Tribunal Constitucional de 2 de Fevereiro de 2016 (Relator Teles Pereira)

Jurisprudência Internacional:

− Decisão de 17 de Novembro de 2000, Arrêt Perruche, da Cour de Cassation francesa,


em www.courdecassation.fr e www.legifrance.gouv.fr.

− Decisão no caso «Baby Kelly Molenaar», pelo Hoge Raad holandês,


em www.ncbi.nlm.nih.gov.

− Decisão do Tribunal do Estado do Illinois, no caso Zepeda versus Zepeda; Decisão do caso
Cowe vs Forum Group Associates (Estado de Indiana 1991), in “wrongful birth» “wrongful life” y
“wrongful pregnancy, analisis de la jurisprudencia nortamericana. reseña de jurisprudência
francesa, por graciela medina y carolina winograd, disponível na internet no site biblioteca
jurídica virtual.

21
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
1. As acções de responsabilidade nos casos de vida indevida e de nascimento indevido

Vídeo da apresentação

https://educast.fccn.pt/vod/clips/18kcoze1dn/flash.html

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

A TUTELA DA PESSOA E DA SUA PERSONALIDADE:


ALGUMAS QUESTÕES RELATIVAS AOS DIREITOS À IMAGEM,
À RESERVA DA VIDA PRIVADA E À RESERVA DA PESSOA ÍNTIMA OU DIREITO AO CARÁCTER ∗

Maria Raquel Guimarães ∗∗

1. A tutela da pessoa e da sua personalidade no Direito Civil português


2. Os novos desafios colocados pela evolução tecnológica e científica
3. Direito à imagem
4. O direito à reserva da vida privada
5. O direito à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter
6. Reflexões finais
Apresentação powerpoint

1. A tutela da pessoa e da sua personalidade no Direito Civil português 1

A raiz antropocêntrica do direito civil justifica o lugar nuclear reservado à tutela da


personalidade humana neste ramo do direito 2. A personalidade humana exige do direito o
reconhecimento da essencialidade da personalidade jurídica, a inseparabilidade da
personalidade jurídica da personalidade humana, com a consequente inadiabilidade do
reconhecimento da personalidade jurídica e a ilimitabilidade da sua tutela 3, não se
compadecendo com um numerus clausus ou mesmo com uma enumeração mais ou menos
pormenorizada de direitos de personalidade, necessariamente refém das concepções
dominantes de uma determinada época e, portanto, datada. A personalidade humana deverá
ser protegida pelo direito civil em todas as suas manifestações previsíveis e imprevisíveis 4,
adaptando-se a tutela conferida pelo direito civil à evolução desta personalidade bem como à
evolução dos ataques de que poderá ser alvo. Os desafios que se lançam hoje ao direito civil
na tutela da pessoa humana e da sua personalidade são especialmente exigentes, devendo o
jurista estar munido dos instrumentos legais, mas também dos conhecimentos técnicos,
necessários para os enfrentar.

A tutela da personalidade tem por base, no direito português, uma cláusula geral, estabelecida
no artigo 70.º do Código Civil. Acolhe-se, nesta norma, um direito geral de personalidade, que


Este texto serviu de base à intervenção realizada na Acção de Formação Contínua organizada pelo CEJ, no
Porto, no dia 7 de Abril de 2017. Na sua origem está o texto “A tutela da pessoa e da sua personalidade como
fundamento e objecto da disciplina civilística. Questões actuais”, in XX — Estudos comemorativos dos 20 anos
da FDUP, II, Coimbra, Livraria Almedina, 2017, pp. 291-312, adaptado aos propósitos orais da intervenção e
desenvolvido com vista a cumprir o objecto da acção de formação promovida pelo CEJ.
∗∗
Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
1
Seguimos, neste ponto, o que escrevemos em “A tutela da pessoa e da sua personalidade como fundamento
e objecto da disciplina civilística. Questões actuais”, cit., n.ºs 1 e 2.
2
Assim, PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in Boletim da Faculdade
de Direito, volume LXIX, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1993, p. 480.
3
ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, Francisco Liberal Fernandes/Maria Raquel
Guimarães/Maria Regina Redinha (coordenadores), Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 191, 194.
4
ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 203, e, na sua esteira, PAULO MOTA PINTO, “O direito
à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 491-496.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

protege a personalidade no seu todo, nas suas diversas manifestações, abrangendo “todos os
atributos inerentes ao organismo psico-somático (personalidade física) e à componente ético-
espiritual (personalidade moral) que individualizam cada ser humano” 5. Pretende-se tutelar e
potenciar o livre desenvolvimento da personalidade humana, a pessoa em constante
evolução 6.

A natureza ilimitável da personalidade não impede que se distingam diferentes projecções


desta mesma personalidade e que, perante as concretas lesões, se identifiquem os bens da
personalidade afectados. Justifica-se, deste modo, a autonomização de direitos especiais de
personalidade, merecedores de uma tutela autónoma, reconhecidos pela prática dos tribunais,
pela doutrina 7 e, em alguns casos, expressamente pela lei.

De acordo com a classificação levada a cabo por Orlando de Carvalho 8, os direitos especiais de
personalidade autonomizados do direito geral são:

− O direito à vida,

− O direito à integridade física (integridade físico-psíquica),

− O direito à liberdade, positiva e negativa (compreendendo liberdades físicas e morais),

− O direito à inviolabilidade pessoal (onde se distingue uma projecção física: direito à imagem,
e direito à palavra; uma projecção vital: direito ao carácter, direito à história pessoal, direito à

5
ANTUNES VARELA, “Alterações legislativas do direito ao nome”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência,
ano 116, n.º 3710, 1 de Setembro de 1983, p. 144. Em sentido contrário à admissibilidade de um direito geral
de personalidade, defendendo a existência de direitos especiais de personalidade “em regime de numerus
apertus”, v. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, volume I, Introdução, As pessoas, Os bens, 2ª
ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pp. 86-89.
6
ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 202-203.
7
A concepção dos direitos de personalidade enquanto tal — enquanto direitos subjectivos que integram a
esfera jurídica do seu titular e, portanto, jus in se ipsum, direitos sobre a própria pessoa — não recolhe,
porém, a unanimidade da doutrina portuguesa. LUÍS CABRAL DE MONCADA, Lições de Direito Civil, Parte Geral, 4ª
ed. revista, Coimbra, Livraria Almedina, 1995, pp. 72-75, afirmava que os “chamados direitos de
personalidade” não são verdadeiros direitos na sua construção, sob pena de ter que admitir que a própria
pessoa é o seu objecto, na impossibilidade lógica, ainda de acordo com CABRAL DE MONCADA, de configurar
direitos sem objecto. Por outro lado, entendia o mesmo Autor que, na medida em que os direitos subjectivos
se consubstanciam num poder, seria “moralmente absurdo” que este poder recaísse sobre o mesmo objecto
desse poder. Diferente é o entendimento de ANTUNES VARELA, que integra os direitos de personalidade como
direitos subjectivos embora considerando que estes direitos de personalidade não têm por objecto a pessoa
do seu titular, não podendo, também, ser entendidos, neste caso, como um poder jurídico (ANTUNES VARELA,
“Alterações legislativas do direito ao nome”, cit., p. 142). Já para ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito
Civil, cit., pp. 202-203, o direito geral de personalidade é “um jus in se ipsum radical, em que a pessoa é o bem
protegido, correspondendo à sua necessidade intrínseca de autodeterminação (...)”. Para mais
desenvolvimentos sobre este debate, v. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Os direitos de personalidade na civilística
portuguesa”, in Revista da Ordem dos Advogados, ed. comemorativa, ano 61, III, Dezembro 2001, Lisboa, pp.
1239-1241.
8
ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 265-266, notas 66-70. V., também, sobre esta
classificação, PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 499-500,
nota 59.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

intimidade da vida privada e direito à verdade profunda; e uma projecção moral: direito à
honra),

− O direito à identidade pessoal (direito aos meios de identificação pessoal e direito à verdade
pessoal),

− O direito à criação pessoal (abrangendo o direito moral de autor).

Os direitos especiais de personalidade terão como fundamento, como direito fundacional, o


direito geral e não o excluem − antes justificam a sua existência nesse direito progenitor 9.
Compreende-se, por outro lado, a relativa fungibilidade das classificações que se podem fazer
destes direitos especiais, necessariamente provisórias e em constante devir, tanto quanto a
isso obriga a evolução da personalidade e a constante diversificação dos ataques de que é
alvo.

2. Os novos desafios colocados pela evolução tecnológica e científica10

As enormes capacidades do homem justificam toda a evolução tecnológica e científica das


últimas décadas. As novas tecnologias da informação e da comunicação permitiram unir o
mundo e pensar os problemas à escala global. As distâncias entre os continentes esbateram-se
e qualquer notícia, qualquer imagem sensacionalista corre o mundo em poucos minutos. Ao
mesmo tempo, os novos meios de comunicação vêm potenciar inúmeros ataques à
personalidade humana, em diferentes frentes e, agora, com o impacto de estarmos perante
violações com repercussões planetárias 11. Um artigo difamatório já não é publicado no jornal
local ou regional mas num blog ou numa página de uma rede social lida nas quatro partidas do
mundo. No mundo ocidental, em que uma boa parte da população transporta consigo, na
palma da mão e num mesmo dispositivo, não só uma câmara de fotografar e de filmar mas
também um computador pessoal, um telefone e um transmissor de dados e imagens
conectado, em tempo real, com todos os demais aparelhos similares, é fácil de perceber os
novos desafios que o direito enfrenta ao nível da tutela da vida privada, da imagem, da honra,
da integridade moral.

Por outro lado, estes novos meios de informação e de comunicação vêm dar uma maior
visibilidade e impacto a problemas já antigos mas que ganham agora novas frentes e geram

9
ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 206-207, e PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva
sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 490-491.
10
Seguimos, neste ponto, o que escrevemos em “A tutela da pessoa e da sua personalidade como
fundamento e objecto da disciplina civilística. Questões actuais”, cit., n.º 3.
11
Sobre a forte relação existente entre a evolução tecnológica e a necessidade de tutela dos direitos de
personalidade, em especial do direito à reserva da vida privada, desde os finais do séc. XIX, com o surgimento
do telégrafo e do telefone, com o desenvolvimento da imprensa e, posteriormente, com o computador, v. o
estudo premonitório, anterior ao boom da internet, de MANUEL JANUÁRIO GOMES, “O problema da salvaguarda
da privacidade antes e depois do computador”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 319, Outubro, 1982,
pp. 21-56, em especial, pp. 24-26, 34-35. Em sentido coincidente, v. RITA AMARAL CABRAL, “O direito à
intimidade da vida privada (Breve reflexão acerca do artigo 80.º do Código Civil)”, in Estudos em memória do
Professor Doutor Paulo Cunha, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1989, pp. 388-389.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

um debate mais alargado e global. Pense-se nos vídeos de suicídios ou de casos de eutanásia
publicados on-line. Acresce que algumas violações dos direitos de personalidade tornam-se
ainda mais preocupantes com a criação de mercados mundiais, como acontece com o mercado
virtual de órgãos, e torna-se mais simples contornar proibições impostas internamente, como
acontece ainda em muitos dos países da União Europeia relativamente à gestação de
substituição, sabendo que facilmente se acede na internet a anúncios de procura e de oferta
de “barrigas de aluguer”. A agressividade da publicidade a cirurgias estéticas, nomeadamente
através de correio electrónico, também coloca problemas sérios, potenciando intervenções
desnecessárias e fúteis em que o consentimento do visado se encontra na fronteira da licitude,
pendendo para a violação das regras da ordem pública.

Não obstante a diversidade e a quantidade de ameaças de que são hoje objecto os bens da
personalidade, pela sua frequência, importância e relativa subtileza, iremos aqui abordar
algumas das questões que se colocam no que respeita ao direito à inviolabilidade pessoal,
sobretudo no que toca aos aspectos da imagem, da reserva da vida privada, honra, e do
carácter, especialmente vulneráveis perante a banalização das comunicações electrónicas e a
utilização de novas tecnologias.

3. Direito à imagem

Vivemos hoje num mundo de imagens. As imagens são como nunca antes utilizadas enquanto
forma de comunicação, substituindo a linguagem escrita e mesmo oral. A proliferação de
aparelhos de comunicação com câmaras fotográficas incorporadas gerou um sem-número de
fotógrafos amadores e elevou a um estatuto sem precedentes a categoria do auto-retrato. É
incalculável o número de imagens acumuladas em dispositivos electrónicos, sendo muitas
delas publicadas on-line, nomeadamente através das redes sociais.

O direito à imagem é expressamente protegido pelo legislador civil no artigo 79.º do Código
Civil enquanto um direito a controlar a captação e a divulgação do seu “retrato”, abrangendo-
se aqui qualquer aspecto físico que permita identificar a pessoa retratada. A simples captação
da imagem não autorizada constitui já uma violação do direito, correspondendo à ideia mítica
de que a “alma” é de algum modo aprisionada pela câmara, sem embargo de a forma de
agressão mais grave do direito ser constituída pela divulgação não consentida da imagem,
potenciada, desde logo, pela sua captação ilícita.

O problema da captação de imagens não autorizada pelo titular do direito estende-se hoje
muito para além do debate em volta das câmaras de segurança, públicas ou privadas,
colocadas nas ruas ou em locais de grandes concentrações de pessoas. Captações não
autorizadas de imagens — ou realizadas ao abrigo de uma ficção de consentimento baseada
em cláusulas contratuais gerais de contratos de utilização de programas de computadores
deficientemente comunicadas — estão na ordem do dia com a proliferação das televisões
“inteligentes”, de drones de mapeamento ou com o desenvolvimento de aplicações para
telemóveis e computadores que realizam e transmitem gravações vídeo e áudio sem que o
utilizador se aperceba ou, ainda, que simplesmente acedem e se apropriam dos arquivos de

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

imagens desses dispositivos 12. A instalação de programas ou aplicações aparentemente


gratuitas de origem desconhecida envolve muitas vezes “contrapartidas” pouco claras, para
além da óbvia − mas nem por isso seriamente ponderada pelos utilizadores − alienação de
dados pessoais. Nestes casos de programas que controlam o funcionamento da câmara (e do
microfone) sem que o utilizador se aperceba, o direito à imagem é violado frequentemente em
conjunto com o direito à palavra, que protege os elementos orais que permitem a
identificação da pessoa, bem como com o direito à reserva da vida privada e eventualmente à
honra, na perspectiva do decoro, para além do direito ao carácter, sempre que a “vigilância”
facultada pela captação das imagens permita, ou até tenha como propósito, avaliar o perfil
psicológico do visado, para fins de marketing personalizado ou outros objectivos mais
subterrâneos mas que ainda assim não podem ser menosprezados.

A forma de agressão mais grave do direito à imagem é, porém, constituída pela divulgação não
autorizada da imagem, resultante de captações lícitas ou ilícitas, divulgação essa que pode
atingir uma dimensão extraordinária − e prolongada no tempo − quando realizada através da
internet. Veja-se o caso recentemente apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça de difusão
na internet de um vídeo “íntimo” que punha em causa os direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à honra da autora, sem que, no entanto, se tenha provado tratar-se de um caso de
revenge porn13. Tendo o vídeo sido gravado de comum acordo por um casal entretanto
desavindo e posteriormente divulgado num site de pornografia, desconhecendo-se quem o
publicou on-line, o Supremo pronunciou-se no sentido da afirmação de um dever de guarda
relativamente às imagens e vídeos armazenados num computador, imposto ao seu dono,
tornando-o responsável por negligência pelos danos causados pela sua publicação não
autorizada, condenando-o ao pagamento da quantia de 10.000 euros a título de danos não
patrimoniais.

Nestes casos torna-se difícil de assegurar tecnicamente um direito ao esquecimento ou ao


“apagamento” das imagens, ainda que este direito possa ser reconhecido pela lei ou por uma
sentença judicial e possa ser imposto a um determinado provedor de serviços da sociedade de
informação, tendo em consideração a rápida e inevitável reprodução das imagens em
diferentes sítios da internet, acelerada pelo chamado efeito Streisand 14, gerado pela

12
V., entre outros, o artigo publicado pelo The Guardian já em 2016 [DANNY YADRON, “Why is everyone
covering up their laptop cameras?”, in <https://www.theguardian.com/world/2016/jun/06/surveillance-
camera-laptop-smartphone-cover-tape> (2.12.2017)] dando conta das declarações do Director do FBI James
Comey admitindo que tinha um autocolante a tapar a câmara do seu computador ou o artigo do The
Telegraph onde se publica uma fotografia de Mark Zuckerberg à frente do seu computador portátil, onde se
pode observar que a câmara e o microfone estão tapados com fita adesiva [JAMES TITCOMB, “Why has Mark
Zuckerberg taped over the webcam and microphone on his MacBook?”, in
<http://www.telegraph.co.uk/technology/2016/06/22/why-has-mark-zuckerberg-taped-over-the-webcam-
and-microphone-on/> (2.12.2017)].
13
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2016 (Oliveira Vasconcelos), in <http://www.dgsi.pt>
(21.12.2017).
14
O fenómeno da rápida difusão de uma imagem ou de uma informação na internet numa situação em que o
visado se queixa da violação dos seus direitos e pretende que esta seja removida ficou conhecido como efeito
Streisand depois de, em 2003, a cantora e actriz Barbra Streisand ter proposto uma acção judicial com vista à
remoção da "Image 3850" (uma imagem aérea da sua casa) num site de imagens aéreas da Costa Californiana
com fundamento em violação da sua privacidade. A imagem tinha sido descarregada do website seis vezes até
então, duas delas pelos advogados da cantora. No mês seguinte, em consequência do caso, mais de 420.000

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

curiosidade mórbida provocada por tudo o que se pretende ocultar, manter secreto ou,
simplesmente, resguardado.

O direito à imagem é, ainda assim, um direito disponível pelo seu titular, podendo mesmo ser
objecto de um contrato oneroso, para o qual o titular prestará o seu consentimento
vinculante, como é vulgar nos casos dos modelos fotográficos ou actores de cinema e
televisão 15.

No domínio dos contratos de cedência de exploração de imagem de desportistas 16,


nomeadamente de jogadores de futebol, pronunciou-se em 2005 a Relação de Évora no
sentido de que “a transmissão genérica do direito à exploração da imagem, por configurar
uma cedência do próprio direito é nula e de nenhum efeito por ofensa da ordem pública
nacional (art. 81º n.º 1 e 280º do CC)” 17. Porém, o Supremo Tribunal de Justiça, em sede de
recurso, veio precisar que “o contrato de cedência da exploração comercial da imagem de um
desportista profissional, celebrado para vigorar por período determinado, tendo em vista
apenas a imagem do respectivo titular enquanto desportista, e tendo o desportista titular do
direito à imagem sido previamente remunerado pela cedência, é válido, por não ser contrário a
princípios de ordem pública” 18. Especificou ainda o Supremo Tribunal que “um contrato de
cedência do próprio direito à imagem seria efectivamente nulo por contrário à ordem pública,
nos termos dos art.ºs 81º, n.º 1, e 280º, n.º 2, do Cód. Civil, mas o mesmo não se passa em
relação à cedência daquela exploração comercial, que a lei expressamente permite. O que não
pode ser cedido é, pois, o direito à própria imagem (...), não o direito à sua exploração
comercial”; exploração comercial essa levada a cabo “por meio dos retratos, filmes, desenhos
ou outras formas de exibição que, apenas nessa qualidade e durante esse período, sejam
produzidos com base na sua imagem, e não no que possa respeitar a todo e qualquer aspecto
da sua vida íntima e privada” 19, abrangendo, deste modo, também, a criação de personagens
mais ou menos ficcionadas de jogos de computador e não já só cromos de cadernetas com os
respectivos retratos. Assim, acrescentaríamos nós, na medida em que a exploração comercial
da imagem comprometa de modo significativo ou mesmo aniile a privacidade e a intimidade
do titular do direito, deve-se considerar que o consentimento prestado ultrapassa os limites da

pessoas visitaram o site para verem a fotografia. Hoje a fotografia ilustra a página da Wikipédia sobre o Efeito
Streisand [in <https://en.wikipedia.org/wiki/Streisand_effect> (21.12.2017).
15
Remetemos neste ponto para a qualificação tripartida do consentimento do ofendido levada a cabo por
ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 205, e que distingue consentimento vinculante,
consentimento autorizante e consentimento tolerante.
16
Seguimos, quanto a esta questão, o que escrevemos em “A conformação da liberdade contratual pela
cláusula geral da ordem pública”, in Derecho y autonomía privada: una visión comparada e interdisciplinar,
Mª Ángeles Parra Lucán/Silvia Gaspar Lera (directoras), Granada, Comares, 2017, p. 426 ss.
17
V. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.02.2005 (Bernardo Domingos), in <http://www.dgsi.pt>
(21.10.2016), Sumário, II, seguindo a posição assumida pelo STJ em acórdão de 8.11.2001 (Quirino Soares), in
<http://www.dgsi.pt> (21.10.2016) [publicado em CJ /STJ, tomo III, pp. 113 ss.], no sentido da nulidade de
qualquer negócio que tenha por objecto a cedência genérica por alguém, designadamente jogador de futebol,
do seu direito à imagem.
18
Acórdão do STJ de 25.10.2005 (Silva Salazar), in <http://www.dgsi.pt> (21.10.2016), Sumário. Na mesma
linha, v. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.12.2007 (Jorge Leal), in <http://www.dgsi.pt>
(21.10.2016).
19
Acórdão do STJ de 25.10.2005, cit.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

ordem pública fixados pelos artigos 81.º, n.º 1, e 280.º, n.º 2, do CCpt, sendo ilícito, votando os
respectivos negócios à nulidade.

4. O direito à reserva da vida privada

O direito à reserva da vida privada integra uma “projecção vital” do direito à inviolabilidade
pessoal, nos termos da classificação anteriormente enunciada 20. É, essencialmente, um direito
sobre informações relativas à pessoa, informações que dizem respeito à sua esfera privada,
pessoal e à sua esfera de segredo 21. É reconhecido a cada pessoa um direito a controlar a
divulgação das informações que lhe dizem respeito 22, no sentido de um direito à riservatezza,
para utilizar a fórmula de de Cupis 23.

Enquanto direito sobre informação, ou direito a definir a extensão da privacidade,


compreende-se o importante papel que o titular do direito assume na delimitação das
fronteiras dos seus círculos de reserva. A divulgação de informação pessoal e até íntima pela
própria pessoa, nomeadamente através das redes sociais, não pode significar uma renúncia
definitiva à sua riservatezza, tanto mais que as limitações aos direitos de personalidade
consentidas pelo titular são sempre revogáveis e não podem pôr em causa a ordem pública 24.

O Regulamento Europeu de Protecção de Dados 25 veio consagrar no seu artigo 17.º um direito
ao esquecimento, ou melhor, um direito ao apagamento dos dados ou “direito a ser
esquecido”, relativamente a informações colocadas on-line, direito que, como já afirmamos,
enfrenta sérias dificuldades técnicas na sua salvaguarda, na medida em que uma vez difundida
uma informação on-line ela pode ser reproduzida sucessivamente, retirando eficácia prática a
uma ordem imposta para a “apagar” no servidor onde foi primeiramente alojada 26.

20
V., no mesmo sentido, MARIA REGINA REDINHA e MARIA RAQUEL GUIMARÃES, em “O uso do correio electrónico no
local de trabalho — Algumas reflexões”, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de
Faria, Coimbra, Faculdade de Economia da Universidade do Porto/Coimbra Editora, 2003, p. 653.
21
Para um afloramento da teoria das “três esferas” — esfera pessoal, privada e de segredo — na doutrina
portuguesa, v. ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pp. 265-266, nota 69, PAULO MOTA PINTO,
“O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., p. 517, nota 104, e p. 524 ss., em especial, nota
122, RITA AMARAL CABRAL, “O direito à intimidade da vida privada...”, cit., pp. 398-399, e GUILHERME MACHADO
DRAY, Direitos de personalidade, Alterações ao Código Civil e ao Código do Trabalho, Coimbra, Livraria
Almedina, 2006, pp. 56-57.
22
Neste sentido, v. PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada”, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, volume, II, Estudos variados, Direito comunitário,
Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pp. 528-529.
23
Cfr. ADRIANO DE CUPIS, I diritti della personalità, seconda edizione riveduta e aggiornata, Trattato di Diritto
Civile e Commerciale (ANTONIO CICU/FRANCESCO MESSINEO/LUIGI MENGONI), volume IV, Milano, Dott. A. Giuffrè
Editore, 1982, p. 283, in fine.
24
V. artigo 81.º do Código Civil português.
25
Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, relativo à
protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação
desses dados e que revoga a Directiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados), in JO L 119,
de 4.05.2016, p. 1 ss.
26
O TJUE pronunciou-se favoravelmente no sentido do reconhecimento de um direito ao esquecimento em
determinadas circunstâncias, perante os motores de busca na internet, já em 13 de Maio de 2014, no caso
Google Spain SL, Google Inc. v Agencia Española de Protección de Datos, Mario Costeja González [Processo C-
131/12, in <http://curia.europa.eu/juris/documents.jsf?num=C-131/12>; v., também, a nota de imprensa

31
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

Compreende-se, assim, a redacção do n.º 2 do artigo 17.º do mesmo Regulamento, no sentido


de que sempre que “o responsável pelo tratamento tiver tornado públicos os dados pessoais e
for obrigado a apagá-los nos termos do n.º 1, toma as medidas que forem razoáveis, incluindo
de caráter técnico, tendo em consideração a tecnologia disponível e os custos da sua aplicação,
para informar os responsáveis pelo tratamento efetivo dos dados pessoais de que o titular dos
dados lhes solicitou o apagamento das ligações para esses dados pessoais, bem como das
cópias ou reproduções dos mesmos”.

Apesar desta preocupação manifestada pelo legislador europeu no que toca à protecção dos
dados pessoais, pressente-se na actualidade uma diluição ou desvanecimento das fronteiras
entre as esferas pública e privada ou mesmo uma publicização ou desvalorização da esfera
privada, embora vários estudos empíricos realizados não demonstrem uma alteração
geracional perante a privacidade 27. Ainda assim, a utilização em massa das redes sociais
certamente importará consequências no que respeita ao modo como entendemos os círculos
de reserva privada e de reserva pessoal, consequências essas ainda não completamente
conhecidas.

O direito à reserva da vida privada comporta também um direito à solidão, designado


frequentemente pela expressão anglo-saxónica “right to be let alone”, no sentido de um
direito a um último reduto de isolamento, de paz, onde não se admitem intromissões
externas 28. As ofensas a este direito à solidão são, hoje em dia, subtis na forma como são
cometidas mas fortemente perturbadoras, invadindo a quietude do lar apesar de todas as
barreiras físicas que a pessoa possa interpor entre si o mundo. Referimo-nos a realidades
como a publicidade não solicitada, recebida através do correio electrónico (spam), do correio
tradicional ou do telefone − abrangendo, neste último caso, mensagens escritas e mensagens
de voz −, que podem ser muito intrusivas, não só pelo seu conteúdo − na medida em que

respectiva, in <http://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2014-05/cp140070en.pdf>, bem


como o Factsheet on the “Right to be Forgotten” Ruling (C-131/12), in <http://ec.europa.eu/justice/data-
protection/files/factsheets/factsheet_data_protection_en.pdf> (21.12.2017)]. Em Portugal, sobre o tema, v.,
desde a primeira hora, MARIA REGINA REDINHA, “Redes sociais: incidência laboral (Primeira aproximação)”, in
<http://repertoriojuslaboral.blogspot.pt> (16.01.2015), p. 4 (também publicado no Prontuário de Direito do
Trabalho, n.º 87, Coimbra, CEJ/Coimbra Editora, Setembro/Dezembro 2010, pp. 33-44).
27
Veja-se, entre muitos outros, os estudos de LUPITA S-O'BRIEN, PAMELA READ, JAQUELINE WOOLCOTT, CHIRAG SHAH,
“Understanding privacy behaviors of millennials within social networking sites”, in Proceedings of the
Association for Information Science and Technology, volume 48, Issue 1, 2011, pp. 1–10; MARK FODORA e
ALEXANDER BREM “Do privacy concerns matter for Millennials? Results from an empirical analysis of Location-
Based Services adoption in Germany”, in Computers in Human Behavior, volume 53, December 2015, pp. 344-
353; MONIKA RUT̈ HER, “Facebook: Privacy and Security Perceptions of Millennials and non-Millennials”, e
STANISLAV VAN DEN BRABER, “Security and Privacy Perceptions of Millennials (18-24) and Non-Millennials (36-50)
on Facebook”, in 7th IBA Bachelor Thesis Conference, July 1st, 2016, Enschede, The Netherlands, University of
Twente, The Faculty of Behavioural, Management and Social sciences, respectivamente em
<http://essay.utwente.nl/70226/1/Rüther_BA_BMS.pdf> e
<http://essay.utwente.nl/70051/1/vandenBraber_BA_faculty.pdf> (21.12.2017).
28
MANUEL JANUÁRIO GOMES (“O problema da salvaguarda da privacidade antes e depois do computador”, cit., p.
31) refere-se-lhe como um direito “à vida tranquila”, abrangendo a “possibilidade de isolamento, a
consagração da liberdade interior, o desejo de estabelecer relações pessoais sem interferência externa”, e
ainda como um “direito ao anonimato contra a ingerência ilegítima e arbitrária”. Em sentido coincidente, v.
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. por ANTÓNIO PINTO MONTEIRO/PAULO MOTA
PINTO, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 212 e RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O direito geral de
personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 317.

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2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

forçam o destinatário a contactar com produtos e realidades que não foram por si convocados,
pondo em causa igualmente a sua liberdade negativa − mas porque também oprimem o
destinatário, pelo seu volume e frequência, pelo seu carácter massificado 29. O direito a ser
deixado só é posto em causa quando a publicidade entra no domicílio de cada um, de uma
forma estridente, berrante, agressiva, transformando o lar num Times Square virtual.

Este enquadramento da publicidade não solicitada no contexto das violações dos direitos de
personalidade e, em particular, do direito à reserva da vida privada 30, não impediu que o
legislador adoptasse regulamentação especial sobre a matéria, ainda que impulsionado por
medidas legislativas europeias, de modo a salvaguardar as especificidades da tutela exigida.
Em concreto, a lei prevê hoje a necessidade do consentimento prévio e expresso do
destinatário, sendo ele um consumidor, para o envio de mensagens publicitárias,
nomeadamente através de correio electrónico ou de SMS (serviço de mensagens curtas) 31.
Admite-se já esse envio quando os destinatários são pessoas colectivas ou quando as
comunicações não solicitadas são enviadas por um fornecedor de um bem ou serviço a um seu
cliente de quem obteve os seus dados de contacto, contanto que a estes clientes seja
concedida a possibilidade de se recusarem a facultar os seus contactos no momento em que
estes lhes são solicitados e possam revogar a autorização primeiramente dada sempre que
recebam uma mensagem publicitária 32.

Ainda no âmbito do direito à reserva da vida privada, pode-se questionar, por outro lado, se os
limites da ordem pública impostos ao consentimento do titular do direito não são
ultrapassados quando este acede (ou melhor, concorre!) à participação em programas
televisivos designados por “reality shows”, permitindo a captação da sua imagem e palavras
durante as 24 horas do dia, bem como a sua divulgação televisiva ou on-line, confinando os
seus movimentos a um espaço fechado e as suas relações interpessoais à convivência forçada
com os demais concorrentes. Para além dos problemas que se poderiam aqui levantar no que
respeita aos direitos à liberdade, à imagem e à palavra e até ao direito à integridade psíquica
relativamente a este tipo de “experiências”, parece inegável que o conceito de privacy fica
neste caso particularmente restringido, se não mesmo “aniquilado”. Nesta medida, não é
descabido sustentar que, mais do que uma limitação voluntária de um direito de
personalidade disponível − o direito à reserva da vida privada − estamos nestas situações
perante uma verdadeira alienação do direito, uma renuncia ilícita do seu titular à tutela de um

29
Em geral, sobre a publicidade domiciliária não solicitada, embora excluindo a publicidade enviada através
do correio electrónico, v. PAULO MOTA PINTO, “Publicidade domiciliária não desejada (‘junk mail’, ‘junk calls’ e
‘junk faxes’)”, in Boletim da Faculdade de Direito, volume LXXIV, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1998, pp.
273-325.
30
Este enquadramento é feito, entre nós, por PAULO MOTA PINTO, ainda que não se referindo ao problema
particular do spam mas sim à publicidade domiciliária entregue em papel, pelo correio, via fax ou telefone, e
não restringindo a sua análise à violação dos direitos de personalidade: “Publicidade domiciliária não
desejada...”, cit., pp. 279, 283, 300.
31
Sobre a necessidade deste consentimento, v. o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro
(Lei dos contratos celebrados à distância), bem como o regime consagrado no artigo 13.ºA da Lei n.º 41/2004,
de 18 de Agosto, aditado pela Lei n.º 46/2012, de 29 de Agosto, que revogou o artigo 22.º Decreto-Lei n.º
7/2004, de 7 de Janeiro (Lei do comércio electrónico).
32
V. os n.ºs 2 e 3 do artigo 13.ºA da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto.

33
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

último reduto de intimidade de que a ordem pública não permite dispor 33. Se “a vida privada é
a vida que não é pública” 34, quando toda a vida é pública, a própria vida interior − a alma −
acaba por ser revelada, puído o véu de uma eventual reserva mental ao fim de uma
prolongada exposição.

5. O direito à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter 35

O direito ao carácter surge, de acordo ainda com a classificação adoptada por Orlando de
Carvalho, como uma projecção do direito à inviolabilidade pessoal, incidindo sobre uma
vertente “vital” deste direito, ao lado do direito à reserva da vida privada, do direito à história
pessoal e do direito à verdade profunda. Reconhece-se aqui um direito à pessoa íntima, à
reserva do seu carácter e, portanto, a não ser submetido a avaliações de carácter não
consentidas, quer seja através de testes psicotécnicos, exames grafológicos ou perícias
psiquiátricas, fora do contexto estrito das leis do processo.

Novas formas de avaliação da personalidade são perpetradas, porém, de um modo sibilino,


sem que o avaliado se aperceba de que está a ser alvo de uma perquirição de carácter e, muito
menos, sem que tenha prestado o seu consentimento para o efeito − pelo menos de uma
forma consciente, ainda que possa ter aderido a uma cláusula contratual geral com esse
objecto. A conduta que adoptamos on-line permite reunir informação significativa sobre os
interesses que cultivamos, os nossos hábitos de consumo e de lazer, através das “pesquisas”
que realizamos nos “motores de busca”, dos vídeos que visualizamos, dos blogues que
frequentamos e, até, através do conteúdo das mensagens de correio electrónico que enviamos
e recebemos. Acresce que a possibilidade que alguns prestadores de serviços na internet têm
de combinar todas essas informações aumenta exponencialmente a susceptibilidade de traçar
perfis fidedignos da pessoa, com um valor, desde logo económico, muito importante,
permitindo criar publicidade personalizada, incisiva e, portanto, muito mais agressiva.

A utilização das redes sociais abre a possibilidade, por outro lado, de, um único prestador de
serviços e com a informação fornecida espontaneamente pelo próprio utilizador, delinear o
perfil deste de um modo bastante preciso 36.

33
Em sentido distinto, pronunciando-se sobre o caso particular do concurso Big Brother, embora numa fase
ainda inicial da sua transmissão televisiva, mas considerando, em geral, inadmissível a invocação do limite da
ordem pública, da protecção do homem contra si próprio e de um conceito objectivo de dignidade humana,
com vista à imposição de uma “concepção substancial do viver de forma ‘virtuosa’, justa ou correcta”, sob
pena de se cair numa “tirania da dignidade”, incompatível com a “pluralidade de mundividências e de ‘formas
de vida’ presentes na sociedade”, v. PAULO MOTA PINTO, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a
intimidade da vida privada”, cit., pp. 547-550, em especial, nota 48, e, na mesma linha, DAVID DE OLIVEIRA
FESTAS, Do conteúdo patrimonial do direito à imagem, Contributo para um estudo do seu aproveitamento
consentido e inter vivos, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 321, nota 1125, pronunciando-se essencialmente
sobre o direito à imagem, embora sem desenvolvimentos.
34
MANUEL JANUÁRIO GOMES, “O problema da salvaguarda da privacidade antes e depois do computador”, cit., p.
30.
35
Seguimos, neste ponto, o que escrevemos em “A tutela da pessoa e da sua personalidade como
fundamento e objecto da disciplina civilística. Questões actuais”, cit., n.º 4.3.
36
Na sua edição de 13 de Janeiro de 2015, a revista Time publicava um artigo intitulado “Here’s proof that
Facebook knows you better than your friends” [V. ALICE PARK, “Here’s proof that Facebook knows you better

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2. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos direitos à imagem, à reserva da vida
privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter

A doutrina juslaborista tem já vindo a pronunciar-se sobre as implicações que esta utilização
das redes sociais pode ter no campo das relações de emprego, nomeadamente no momento
da selecção e contratação do trabalhador mas também no desempenho deste no decurso da
relação 37. Desde logo, abre-se a possibilidade de discriminação durante o processo de
recrutamento de trabalhadores, pela divulgação de informação pelo próprio candidato a um
emprego na sua página pessoal; por outro lado, existe a faculdade de cada um manipular o seu
perfil, criando “perfis subterrâneos” ou “alternativos” − numa tradução livre da expressão
anglo-saxónica undercover profiles −, tornando-os apetecíveis para um determinado cargo ou
função 38. Por sua vez, os casos de despedimento baseados nas condutas on-line dos
trabalhadores não constituem sequer novidade na jurisprudência dos tribunais de trabalho.

6. Reflexões finais

Depois desta revisitação da matéria dos direitos de personalidade à luz da utilização de novas
tecnologias, fica a pairar a questão da suficiência e adequação das regras já existentes para dar
resposta aos problemas em aberto.

O homem é hoje confrontado com os desafios gerados pela evolução tecnológica que o seu
génio alcançou. Em suma, com os resultados do exercício do direito ao livre desenvolvimento
da sua personalidade, à liberdade e à criatividade científica. Perante a improdutividade da
adopção de uma visão fatalista − “I’ve created a monster” −, torna-se necessário conhecer as
dificuldades desencadeadas pela utilização das novas tecnologias e perceber o seu
funcionamento, como começámos por afirmar, e as suas potencialidades, para melhor pensar
os instrumentos jurídicos fornecidos pelo nosso direito civil em face destas realidades. As
agressões à imagem, à palavra, à reserva da vida privada, ao carácter, à honra, são problemas
de sempre que o direito civil enfrenta através da cláusula geral contida no artigo 70.º do
Código Civil, coadjuvada com as regras dos artigos 79.º e 80.º, que particularizam
determinados aspectos do regime. Falta apurar o grau de elasticidade destes regimes e em
que medida a complexidade crescente de determinadas agressões não dita a necessidade de
autonomização regras especiais para a protecção dos bens da personalidade aqui em causa.

than your friends”, in Time, January 13th, 2015 (versão on-line), in <http://time.com/3663775/facebook-likes-
personality/> (13.01.2015)]. De acordo com um estudo levado a cabo nas Universidades de Cambridge e de
Stanford, citado neste artigo, a avaliação de determinados aspectos da personalidade que decorre da análise
feita por um computador aos “Likes” de cada utilizador da rede social Facebook é mais correcta do que a
avaliação de carácter feita por amigos e até por familiares. Basta a análise de 10 “Likes” para obter uma
informação mais precisa do que aquela recolhida por um colega de trabalho, 70 para ultrapassar a percepção
de um amigo e 150 para obter dados mais fidedignos do que os fornecidos por um familiar da pessoa
analisada36. Ainda citando a mesma fonte, em média, cada utilizador do Facebook tem 227 “Likes” no seu
perfil, comprovando a tese sintetizada no título do artigo publicado pela revista Time. Argumentam os
autores da investigação que a objectividade da análise levada a cabo pelo computador possibilita que sejam
suplantadas as impressões recolhidas pelos humanos, mais sujeitas a interferências emocionais e avaliações
subjectivas.
37
V., na doutrina portuguesa, MARIA REGINA REDINHA, “Redes sociais: incidência laboral (Primeira
aproximação)”, cit., pp. 4-11.
38
Idem, ibidem.

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Apresentação powerpoint

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3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

TUTELA DOS DIREITOS À SAÚDE


Cecília Agante ∗

1. Ac. do STJ de 01/03/2016, processo 1219/11.4TVLSB.L1.S1


2. Ac. do STJ de 29/11/2016, processo 7613/09.3TBCSC.L1.S1
3. Ac. R. de Coimbra de 03/30/2015, processo 498/13.7TBTND.C1
4. Ac. R. Coimbra de 15/11/2016, processo 136/16.6T8PNI.C1
5. Bibliografia

Assinalo que a minha intervenção será apenas centrada na experiência de quem diz o direito,
buscando na jurisprudência inspiração para partilhar convosco alguma reflexão, que será
sempre fragmentária, sobre a tutela do direito à integridade física e psíquica, numa perspetiva
cível e cautelar e puramente prática.

Os direitos de personalidade, como direitos subjetivos, incidem sobre a própria pessoa humana
ou sobre alguns modos de ser fundamentais, físicos ou morais da personalidade, inerentes à
pessoa humana. Personalidade que se traduz no ser pessoa e que pode ser encarada de modo
objetivo ou subjetivo, modos que coexistem harmoniosamente no diálogo entre o bem comum
o bem próprio, entre a comunidade e a pessoa 1. Centrar-me-ei na tutela subjetiva da
personalidade, situada na autonomia privada e ancorada como um direito pessoal de defender
a dignidade própria, de exigir o seu respeito e de lançar mão dos adequados meios jurídicos de
proteção.

O ordenamento civilista, salvaguardando a operatividade do instituto da responsabilidade civil,


confere ao lesado nos seus direitos de personalidade a faculdade de solicitar providências
cíveis preventivas ou atenuativas.

Refiro-me ao artigo 70º do Código Civil, que concede aos cidadãos ameaçados ou ofendidos na
sua personalidade física ou moral, independentemente da responsabilidade civil a que haja
lugar, a faculdade de requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim
de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

O preceito insere uma cláusula geral de tutela da personalidade física ou moral, com extensão
bastante para enquadrar todas as formas de ofensa à personalidade. As normas subsequentes
delimitam os direitos especiais de personalidade, a significar uma tipicização aberta em
concatenação com aquele direito geral de personalidade, que é, assim, um direito-fonte ou um
direito-quadro (artigos 71º a 80º do Código Civil).

A amplitude da configuração do direito geral de personalidade vai permitindo a integração de


novas formas de ofensa à personalidade, abrangendo, na sua essência, todos os bens inerentes
à materialidade e espiritualidade de cada homem.

* Juíza Desembargadora no Tribunal da Relação do Porto.


1
Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, 2006, pág. 49.

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3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

Não estando definida a personalidade física ou moral do indivíduo, o seu conteúdo não pode
deixar de ser integrado pelos conceitos naturalísticos, pelos valores que modelam a sociedade
ou até por saberes de outras áreas científicas. Com efeito, «(…) o problema da determinação
do bem ou do âmbito da personalidade humana juridicamente relevante, para efeitos da sua
tutela geral civil, embora inserido num sistema axiológico-normativo religado a estruturas
concretas de poderes, faculdades ou deveres humanos juridicizados, está directamente, embora
não redutivamente, conexionado com a Natureza Humana, que toma como seu objecto e
destino, e com a respectiva epistemologia, de que parte.» 2

É esta indefinição apriorística do objeto da tutela geral da personalidade que fomenta a


criatividade da jurisprudência, que vai integrando a cláusula geral ínsita àquele artigo 70º do
Código Civil a partir dos dados científico-culturais imanentes à comunidade e acompanhando a
evolução do indivíduo e do género humano em ajuste aos sucessivos estádios dos
conhecimentos antropológicos.

O que aporta dificuldades, mas também motivação.

A propósito, identificarei alguma jurisprudência, mas da jurisprudência destacada dispenso a


referência à sanção pecuniária compulsória e à indemnização, comuns a todos os arestos, e
respigo apenas os dados relevantes para a específica tutela dos direitos de personalidade,
considerando que todos eles dão por assente que as ofensas têm a sua causa na atuação dos
demandados e são geradoras de perturbações no descanso e na estabilidade psíquica e
emocional dos demandantes.

1. Ac. do STJ de 01/03/2016, processo 1219/11.4TVLSB.L1.S1

Pedido: condenação das RR. a absterem-se de aceder e utilizar a cobertura superior do prédio
que ocupam e a remover os materiais ali instalados.

Causa de pedir: A é dona do palacete integrado numa zona habitacional e histórica da cidade
de Lisboa, onde os restantes AA têm instalada a sua residência. Contíguo ao prédio, existe um
outro de que uma das RR. é dona, onde a outra demandada, sua arrendatária, fez instalar um
estabelecimento de alojamento local, cujos hóspedes frequentam e utilizam, como terraço, a
cobertura do prédio, ali instalando uma esplanada com música e ingestão de comidas e
bebidas.

• A primeira instância condenou as RR a absterem-se de utilizar como esplanada o terraço, daí


removendo os chapéus de sol e todos os elementos que componham a esplanada.

• O Tribunal da Relação, na procedência do recurso de apelação interposto pela arrendatária,


julgou a ação improcedente.

2
Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 109.

52
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

• O STJ repristinou a sentença de primeira instância, interditando o uso do terraço como


esplanada, mas admitindo o seu uso normal.

Verificamos:

• A primeira instância resolveu o conflito, decretando a interdição do uso do terraço,


valorando:

̶- O destino do prédio, afeto à habitação;

-̶ O terraço não licenciado como recinto de festas e eventos esporádicos e como esplanada para
consumo de comida e bebidas;

-̶ O uso anormal do prédio, por se traduzir numa disfuncionalidade, atento o destino sócio-
económico que lhe foi dado (a habitação);

̶- A proximidade do terraço com o prédio dos autores (a parte mais próxima a 1,33 m da janela
de um quarto);

̶- A especial sensibilidade de uma das residentes no prédio - pianista de profissão –, cujo local
de ensaios era a sua casa e que passou a ser perturbada com aquele uso do terraço.

Conclui a sentença de primeira instância que a existência de uma colisão de direitos é


meramente aparente, porquanto as RR não têm direito a gozar e fruir do terraço naquela
modalidade, por o seu uso não estar administrativamente licenciado para esse fim.

Apesar disso, acabou por perspetivar o conflito entre os direitos personalidade dos AA (saúde,
tranquilidade e repouso) e o direito de propriedade e de exercício de atividade económica das
RR, ajuizando que, a haver colisão de direitos, sempre o direito de personalidade dos AA à
comodidade do seu domicílio prevaleceria sobre o direito das RR, por aquele ser um direito
eticamente superior.

• O Tribunal da Relação julgou a ação improcedente e repôs o direito ao uso da esplanada.

• O STJ repristinou a decisão de primeira instância, considerou existir uma colisão de direitos e
deu supremacia aos direitos de personalidade dos AA.

Como vemos, na valoração dos interesses em conflito na mesma concreta unidade físico-
ambiental, o dissenso da Relação relativamente aos dois outros níveis decisórios patenteia o
grau de dificuldade em dirimir a interdependência social e ambiental do ser humano.

A par disso, nenhuma das decisões ponderou a concordância prática dos interesses das partes,
eventualmente reduzindo o uso do terraço como esplanada ao período diurno, gerador de
menor dano.
***

53
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

Numa outra situação já as decisões jurisprudenciais perspetivam soluções de harmonização


dos interesses em conflito.

2. Ac. do STJ de 29/11/2016, processo 7613/09.3TBCSC.L1.S1

Pedido: condenação da R. a encerrar imediatamente as suas instalações ou, em alternativa, a


executar nelas obras de insonorização e proteção que eliminem total e efetivamente a
produção de ruído na sua fração; e evitar a produção de cheiros, insetos e poluição.

Causa de pedir: o prédio dos AA situa-se numa área residencial da cidade. Na mesma rua
existem umas instalações da ré que servem de ponto de apoio destinado à limpeza urbana e
recolha de resíduos da cidade. Entre o prédio dos AA e as instalações da ré existe apenas uma
rua. A ré utiliza as suas instalações, durante o período diurno e durante o período noturno, de
segunda-feira a domingo.

• A primeira instância julgou a ação parcialmente procedente, com condenação da R. a


encerrar imediatamente as suas instalações entre as 20:00 horas e as 7:00 horas.

• O Tribunal da Relação declarou a improcedência da apelação no entendimento de que a


solução adotada conciliava os dois interesses em conflito.

• O STJ revogou parcialmente o acórdão da Relação, limitando o exercício das atividades da R.


no período compreendido entre as 5:00 e as 7:00h, nas suas instalações e nas imediações,
organizando-as de modo a que sejam evitadas as fontes de ruído, como são as manobras e a
utilização de meios mecânicos e o início da prestação dos cantoneiros e demais trabalhadores
afetos à limpeza urbana;

̶- Dotando com adequadas barreiras de proteção sonora a parte do perímetro das suas
instalações orientado para as habitações dos AA.

Solução gizada na ponderação de que, no período noturno, a fase de maior atividade no


estaleiro ocorre entre as 5:00 e as 7:00 horas.

Aferimos:

-̶ Do lado dos AA, destacam-se os direitos da pessoa à integridade moral e física, à saúde e a
um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, também ele objeto de
tutela constitucional. É pacífico que, na tutela da integridade física e psíquica de uma pessoa se
deve inscrever o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono.

̶- Do lado da R, no exercício de uma tarefa fundamental do Estado de desenvolver atividades


que têm em vista a higiene, a salubridade e o bem-estar públicos, em instalações que são
fundamentais para o cabal exercício do serviço prestado aos cidadãos.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

Esta situação de facto aporta a convocação do Regulamento Geral sobre o Ruído, que
regulamenta a prevenção do ruído e do controlo da poluição sonora, nos termos da Lei de
Bases do Ambiente, para salvaguarda da saúde humana e do bem-estar das populações. 3

Embora este Regulamento estabeleça limites para a poluição sonora, entende-se que ele
apenas tem efeitos dentro da atividade administrativa e no seu âmbito, não podendo interferir
com a salvaguarda dos direitos de personalidade, cuja proteção se não esgota no limite do
ruído estabelecido no diploma. A significar que a consagração de um valor máximo de nível
sonoro do ruído vincula a administração a não autorizar a instalação de equipamentos nem
conceder licenciamento de atividades que não respeitem aquele limite máximo, e o
desrespeito desse limite faz incorrer o infrator em ilícito de mera ordenação social.

Por isso, não obstante estar demonstrado que a atividade da R. não colocava em crise os
valores limite de ruído e de incomodidade previstos pelo Regulamento para o exercício de
atividades ruidosas permanentes, como era o caso, as três decisões deram guarida à proteção
dos direitos de personalidade dos lesados e alcançaram soluções de compatibilização dos
interesses em causa, com juízos de ponderação de bens e de concordância prática dos
interesses em conflito. À luz do princípio da proporcionalidade, evitou-se o sacrifício total da ré
em relação aos autores e destes em relação àquela e realizou-se uma redução proporcional do
âmbito de alcance dos respetivos direitos.

Estava em causa uma situação de colisão de direitos, que ocorre sempre que dois ou mais
direitos subjetivos assegurem aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si. Donde se
tenha configurado o seu exercício na recíproca concordância prática.

Ademais, sem descurar o escalonamento dos valores jurídicos ínsitos à comunidade, os danos
da personalidade só ganham significado para além de um determinado liminar. Por outro lado,
estas decisões não prescindem da valoração da complementaridade e, em simultâneo, da
contraditoriedade que a convivência em espaços físicos comuns sempre implica, o que obriga a
um equilibrado espírito de sacrifício entre todos.

Condicionalismos que funcionam «como meros elementos limitadores e conformadores, que


não redutores, dos princípios da dignidade de cada pessoa humana, com a consequente não
subordinalidade essencial dos indivíduos, e da autonomia de cada pessoa humana com os seus
inerentes direitos fundamentais básicos» 4, sem olvidar que cada homem é um elemento
essencial da compreensão e conformação de si mesmo e, participativamente, do todo social.

Donde não possa o enquadramento jurídico da temática prescindir das particularidades do


meio geográfico ou social em que decorre o quadro fáctico relativo à tutela da personalidade
humana.

Vejamos um caso da nossa jurisprudência que contingencia um circunstancialismo dessa


índole.
3
Aprovado pelo decreto-lei 9/2007, de 17 de janeiro.
4
Capelo de Sousa, ibidem.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

3. Ac. R. de Coimbra de 03/30/2015, processo 498/13.7TBTND.C1

Pedido: condenação dos RR a retirar do seu prédio os animais, estrumes e excrementos e fazer
a limpeza de forma a cessar a emissão de cheiros e de insetos lesivos da sua saúde.

Causa de pedir: a casa de habitação dos AA. fica a 2,20 metros do prédio dos réus, que nele
mantêm quatro vacas, em piso térreo. Os animais ficam sobre o mato que se transforma em
estrume, o qual é guardado no meio do aglomerado urbano e exala cheiros nauseabundos, que
contribuem para o aparecimento de moscas e mosquitos.

• A primeira instância absolveu os réus do pedido.

• O Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação, assim confirmando a decisão da


primeira instância.

Portanto, em conflito o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado dos AA,


densificado pela Lei de Bases do Ambiente, essencialmente orientada para a proteção de
interesses coletivos, e a tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas de
vizinhança, bem como o desenvolvimento de uma relevante atividade pecuária para o
rendimento das famílias locais.

Esta decisão também convoca as normas administrativas relativas ao alojamento de animais. A


esse respeito prescreve o artigo 115.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) 5
que «As instalações para alojamento de animais somente poderão ser consentidas nas áreas
habitadas ou suas imediações quando construídas e exploradas em condições de não
originarem, direta ou indiretamente, qualquer prejuízo para a salubridade e conforto das
habitações.»

A situação factual descrita encerra a proximidade das habitações e dos currais dos animais, os
estrumes na rua, os cheiros e as moscas, o que viola, inquestionavelmente, aquela norma
administrativa.

O acórdão da Relação ponderou a seguinte factualidade dada por provada:

̶ A narrativa desenrola-se numa pequena povoação, com cerca de 30 habitantes, situada na


Serra do Caramulo, onde a criação de gado bovino se faz nos baixos das casas de habitação ou
perto delas, existindo atualmente, no interior da povoação, 16 bovinos, caprinos e outros
animais;

̶ A criação de dois ou três animais da espécie bovina tem representado para as famílias, e
representa ainda, um complemento importante para o seu rendimento;

̶ Os habitantes são agricultores já com alguma idade e a situação existe há muitos anos;

5
Aprovado pelo decreto-lei n.º 38 382, de 7 de agosto de 1951.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

̶ Os cheiros não se dirigem diretamente à casa dos autores;

e não provada:

̶ O dano para a saúde pública ou para a saúde dos AA.

Neste contexto factual, sopesou que o ambiente não se degradou; é aquele que sempre existiu
na povoação. Por isso, reputou como tolerável o incómodo provocado pelas moscas e os
cheiros, num ambiente perpetuado no tempo, e como excessivo e intolerável o pedido de
cessação da economia dos RR.

E, apelando a uma certa abdicação da parte de todos os residentes, incluindo dos autores,
ajuizou que «a preservação de algumas comunidades rurais e de práticas mais antigas faz-se à
custa da solidariedade dos seus membros.»

As decisões que destaquei, todas proferidas em ações declarativas sob a forma comum,
tiveram por base a tutela geral da personalidade ínsita ao artigo 70º do Código Civil, mas a
Constituição da República Portuguesa vai mais longe e, no âmbito da definição do acesso ao
direito e à tutela jurisdicional efetiva, garante aos cidadãos procedimentos judiciais céleres
para defesa dos direitos de personalidade ou do direito geral de personalidade, como alguns
teóricos preferem designar.

Com efeito, o artigo 20º/5 da Lei Fundamental, no âmbito do acesso ao direito e tutela
jurisdicional efetiva, estatui que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei
assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de
modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

Como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira a norma impõe «ao legislador a criação (ou
adaptação) de procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade. (…)
constitui uma imposição legiferante, obrigando o legislador a criar novos processos ou a
adaptar os processos existentes de forma a institucionalizar uma via judiciária preferente e
sumária, ou, nos termos constitucionais, célere e prioritária, indispensável à protecção em
tempo útil dos direitos, liberdades e garantias (…)». 6

Este preceito constitucional, no que toca à tutela geral da personalidade, exige, relativamente à
tutela judicial geral, a celeridade, a prioridade e a tutela efetiva em tempo útil.

Logo, a lei adjetiva, para além da ação de processo comum, que também faculta ao lesado o
exercício da responsabilidade civil, confere-lhe o processo especial de tutela da personalidade
para requerer o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a
consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano
ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida (artigo 878º do CPC).

6
Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, pág.
419.

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A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

Trata-se do processo de tutela da personalidade (artigos 878º a 880º do CPC), que o CPC de
1961 catalogava como processo de jurisdição voluntária (artigos 1474º e 1475º) e que o atual
regime processual civil categoriza como processo especial.

Divergem as opiniões acerca dos benefícios ou desvantagens da mudança de paradigma.

A natureza de processo de jurisdição voluntária, porque submetido a critérios de oportunidade


e não de estrita legalidade, facultava a dirimição do conflito de interesses segundo a equidade,
pautando a solução em função de juízos de conveniência, na adoção das resoluções que
melhor se adequassem ao caso concreto. Por outro lado, o realce dado ao princípio do
inquisitório, transportava especiais vantagens no domínio da instrução probatória.

Embora o anterior processo de tutela da personalidade se denominasse como processo de


tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial, entendia-se que era o
meio processual adequado à tutela de todos os direitos de personalidade. Na verdade, sendo o
artigo 70.º do Cód. Civil uma norma dispositiva, o seu conteúdo era prevalecente sobre o de
uma norma adjetiva.

Aos benefícios havia quem objetasse que a natureza do processo de jurisdição voluntária se
não coadunava com o conflito de interesses e com a lógica adversarial que estes assuntos
sempre envolvem, e o legislador optou por conferir ao processo uma natureza contenciosa,
mas com especificidades que visam uma mais eficaz tutela da personalidade humana,
admitindo o pedido de decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a
consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano
ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida (artigo 878º do CPC).

Embora o processo não tenha a natureza urgente (só conferida ao recurso), confina uma
tramitação revestida de simplicidade e celeridade.

O processo impõe o despacho liminar, quer porque a norma o expressa (n.º 1), quer porque se
verificam as circunstâncias previstas no artigo 226º/4 do CPC, ao referir que há sempre
despacho judicial prévio à citação quando incumbe ao juiz decidir da prévia audiência do
requerido [n.º 5, b)]. Intervenção liminar que se revela particularmente útil em processos de
especial celeridade.

Admitamos, por exemplo, que está em causa uma lesão já consumada e que se esgota num
único ato, irrepetível, cujos efeitos se esgotaram com a consumação, em que não é preciso
atenuar ou cessar o efeito da lesão, seria improfícuo o prosseguimento dos autos. Donde a
eficácia o despacho de indeferimento liminar, particularmente em casos de manifesta
improcedência.
Vejamos um acórdão da Relação de Coimbra que aprecia um caso de indeferimento liminar
num processo especial de tutela da personalidade.

58
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

4. Ac. R. Coimbra de 15/11/2016, processo 136/16.6T8PNI.C1

Pedido: condenação da R. a eliminar o terraço que abriu na face posterior do telhado da casa
de habitação e abster-se de instalar um estabelecimento de alojamento local, um hostel para
surfistas.

Causa de pedir: O uso da casa da R. por turistas e do terraço ameaça o sossego e tranquilidade
dos AA. e viola a sua privacidade.

• A decisão de primeira instância proferiu despacho de indeferimento liminar, por os pedidos


serem manifestamente improcedentes (artigo 590º/1 do CPC).

• O Tribunal da Relação declarou a improcedência da apelação, assim confirmando a bondade


da decisão de primeira instância.

Trata-se de uma situação em que os AA apelam ao direito à reserva da intimidade da vida


privada, ao direito ao repouso, ao sossego e ao sono (embora interpenetrados com o regime
das relações de vizinhança).

São, sem dúvida, direitos de personalidade suscetíveis de tutela jurídica, mas o


enquadramento do caso determinou a decisão de primeira instância a considerar que, na
convivência social em núcleos populacionais densos, se impõem algumas restrições de
interesses individuais, para que todos possam viver em conjunto em espaços necessariamente
limitados; a intensa e imperiosa convivência entre as pessoas levou-a a encarar que, nas
relações de vizinhança há que tolerar ̶ obviamente até certo ponto ̶ algum ruído e alguma
incomodidade que todos causam uns aos outros.

O acórdão do Tribunal da Relação aderiu aos argumentos da decisão apelada, emitindo o juízo
de que a vida em sociedade implica necessariamente limitações à plena liberdade de cada um
e, por isso, a tutela jurídica dos bens de personalidade só é admissível quando, face à
consciência jurídica dominante, esses bens mereçam tutela autónoma e a ofensa, pela sua
gravidade ou anormalidade, se deva considerar excluída dos riscos próprios da vida em
comunidade.

Aditou, todavia, que os requerentes não invocaram factos que permitam concluir pela
existência de efetivas ou potenciais lesões (ilícitas, iminentes e irreversíveis) dos seus direitos
de personalidade ou que apontem para uma qualquer violação das limitações ou restrições ao
direito de propriedade consequentes das relações de vizinhança e, nesse estado de coisas,
afirmou que só no domínio do procedimento ordinário/comum é que a requerente poderia
fazer valer os seus (eventuais) direitos enquanto proprietária.

Prosseguindo a análise da tramitação processual gizada para este processo, realço:

̶ Dá primazia à resolução consensual do conflito, ao estabelecer que, na própria


audiência e sempre que possível, o tribunal procurará conciliar as partes (n.º 2);

59
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

̶ Frustrando-se a tentativa de conciliação ou faltando alguma das partes tem lugar a


produção de prova e de seguida, por sentença sucintamente fundamentada, o tribunal
decide a controvérsia (n.º 3);

̶ Se o tribunal vier a decidir pela procedência do pedido do requerente, determinará o


comportamento concreto a observar pelo requerido. Ou seja, não está o juiz
subordinado ao princípio do pedido, estando legitimado a decretar a providência
ajustada à ofensa, bem como fixar a sanção pecuniária compulsória por cada dia de
atraso no cumprimento ou por cada infração (n.º 4). Neste concreto aspeto, o
legislador reteve o princípio da jurisdição voluntária de que a resolução deve ser a mais
conveniente e oportuna (artigo 986º do CPC).

Se o tribunal não puder logo formar uma convicção segura sobre os contornos ou as
singularidades da lesão ameaçada ou consumada quanto à sua existência, extensão e
intensidade, profere uma decisão provisória, irrecorrível, sujeita a posterior confirmação ou
alteração no próprio processo [n.º 5, al. a)].

Provisoriedade que também pode resultar da especial urgência do decretamento justificativa


da dispensa de prévia audiência do autor da ofensa [n.º 5, al. b)]. Este decretamento da
providência sem prévia audição da parte contrária tem características tipicamente cautelares.

Contudo, se o ato ou omissão a que o lesado visa obstar ocorrer num momento temporal
próximo da instauração da ação, que torne inexequível a prolação de uma decisão provisória,
apesar da situação de urgência, o juiz deve designar a audiência e citar o requerido. A prolação
da decisão provisória constituiria um ato inútil, proibido pelo ordenamento jusprocessual civil
(artigo 130º).

Compreensivelmente, a norma prevê a oficiosa execução das decisões, sempre que a medida
executiva integre a realização da medida decretada, bem como a imediata liquidação da sanção
pecuniária compulsória (artigo 880º do CPC).

Uma outra especialidade está prevista quanto ao recurso de revisão, que parece ser admissível
a todo o tempo, por estar em causa uma decisão relativa a direitos de personalidade. O artigo
697º/2 do CPC, ao estabelecer que o recurso de revisão não pode ser interposto se tiverem
decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão, salvo se respeitar a
direitos de personalidade, parece não estipular um prazo limite para o recurso de revisão
quando a decisão se debruça sobre direitos de personalidade. Ressalva que não se reduz ao
processo especial de tutela de personalidade, pois é estabelecida em função do objeto da
decisão, que pode ser impugnada a todo o tempo pela via do recurso extraordinário de revisão.

Por fim, uma sincrética abordagem da tutela cautelar que continua a ter o seu maior campo de
aplicação nas ações declarativas sob a forma de processo comum, em concreto nas pretensões
indemnizatórias, que continuam a ser eleitas como domínio privilegiado de decisão, porque o
processo especial de tutela da personalidade não permite a cumulação do pedido
indemnizatório.

60
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

É interdita a cumulação de pedidos a que correspondam diversas formas de processo (artigos


555º/1 e 37º/1 do CPC).

A exceção delineada para os casos em que o juiz pode autorizar a cumulação e adaptar o
processado, ainda que aos pedidos cumulados correspondam diferentes formas de processo,
exige que não haja uma tramitação manifestamente incompatível (artigo 37º/2 do CPC). Ora, a
singularidade e a celeridade da tramitação prevista para o processo especial de tutela da
personalidade é inconciliável com os trâmites do processo comum, o que torna, na prática,
inviável tal cumulação.

Não há qualquer obstáculo a que possa instaurar-se procedimento cautelar por apenso ao
processo especial de tutela da personalidade, mas a instrumentalidade, a celeridade e a
simplicidade da sua tramitação e mesmo a eventual provisoriedade da decisão não convidam a
que a ele se recorra com frequência.

Mesmo na ação declarativa sob a forma de processo comum o procedimento cautelar comum
será, por regra, o mais ajustado, mas ao requerente cabe alegar e provar a probabilidade séria
da existência do direito que se visa acautelar (o fumus bonus iuris); o justo e fundado receio de
eminente lesão grave e dificilmente reparável desse direito (o periculum in mora); a não
existência de providência cautelar especificada capaz de acautelar o direito em causa; e que o
prejuízo que resultará da providência não excede consideravelmente o dano que com ela se
pretende evitar ̶ requisito de proporcionalidade (artigos 362º a 376º do CPC).

Situações factuais haverá que, face à sua singularidade, poderão legitimar o recurso a algum
dos procedimentos cautelares especificados. Por exemplo, se houver pedido indemnizatório,
poderá justificar-se o arresto (artigo 391º do CPC) ou o arrolamento (artigo 403º do CPC).

Podem até configurar-se outras circunstâncias que fundem a suspensão deliberações sociais, se
a deliberação a suspender ofender direitos de personalidade (como, por exemplo, regras sobre
produção de alimentos ou fármacos que possam prejudicar a saúde dos consumidores).

Atualmente, com o regime da inversão do contencioso (artigo 369º do CPC), o recurso ao


procedimento cautelar poderá ter plena justificação se permitir regular definitivamente o
direito, assim obstando ao ónus de instauração da ação principal se a matéria adquirida no
procedimento permitir ao juiz formar a convicção segura da existência do direito acautelado e
se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do
litígio.

Em suma, não obstante as dificuldades que o dizer do direito aporta e sempre aportará para
cada um de nós, regozijemo-nos com o indeclinável e gratificante papel de criadores judiciários
do direito.

61
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017
3. Tutela dos direitos à saúde, repouso e tranquilidade

5. Bibliografia7

– António Menezes Cordeiro, Os Direitos de Personalidade na Civilística Portuguesa, in


Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, Almedina, Coimbra, 2002,
pág. 21 e segs.

– João Paulo Remédio Marques, Alguns aspectos processuais da tutela da personalidade


humana no novo Código de Processo Civil de 2013, in O Novo Processo Civil, Contributos da
doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, Caderno I, 2.ª ed., Centro de
Estudos Judiciários, Lisboa, Dezembro de 2013, pág. 499 e segs., disponível para consulta
em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Reforma_do_processo_civil.pdf

– Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, O processo especial de tutela da personalidade, no


Código de Processo Civil de 2013, in JURISMAT, Portimão, n.º 5, 2014, pág. 63-80, disponível
para consulta em http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/6399/jurismat5_63-
80.pdf?sequence=1

– Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Coimbra, Novembro, 2006

– Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra,


1995

– Rita Cruz, Algumas notas à Proposta de alteração do processo especial de tutela urgente da
personalidade, A Reforma do Processo Civil 2012, Contributos, in Revista do Ministério Público,
Cadernos, 11, 2012, ed. do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Lisboa, 2012, pág.
63 e segs.

– Tiago Soares da Fonseca, Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade, in Revista da
Ordem dos Advogados, ano 66 (2006), vol. I, Janeiro, disponível para consulta
em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=47773&ida=47781

7
Algumas sugestões, em complemento às indicações dadas aquando da discussão dos casos práticos.

62
A liberdade de expressão e informação
e os direitos de personalidade
na jurisprudência
do Supremo Tribunal de Justiça

(Sumários de acórdãos
das Secções Cíveis e Criminais,
de 2002 a Janeiro de 2015)

Gabinete dos Juízes Assessores


Supremo Tribunal de Justiça
NOTA INTRODUTÓRIA

A liberdade de informação e de expressão está inscrita no quadro dos direitos, liberdades e


garantias pessoais com assento constitucional, assim como em várias declarações
internacionais de direitos, e tem por fim último garantir a plenitude da democracia.

Não se trata, porém, de um direito absoluto, pois a lei ordinária restringe-a nos casos
expressamente previstos na Constituição, limitando-a ao necessário para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Entre os limites à liberdade de expressão encontram-se os direitos da personalidade, mais


precisamente, o direito à honra, à privacidade e à imagem, os quais, alicerçados no princípio
elementar da dignidade da pessoa humana, são, em regra, absolutos.

Este caderno temático concentra todos os sumários dos acórdãos proferidos pelas Secções
Cíveis e Criminais tirados entre 2002 e Abril de 2013 a propósito da colisão entre a liberdade
de informação e de expressão e os direitos de personalidade e pretende revelar o caminho que
a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem trilhado.

Não obstante todo o cuidado colocado na elaboração dos sumários que se seguem, a utilização
destes não dispensa a consulta do texto integral da decisão a que os mesmos dizem respeito.

Janeiro de 2015
Gabinete dos Juízes Assessores - Assessorias Cível e Criminal

Gabinete dos Juízes Assessores


Supremo Tribunal de Justiça
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

5
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

Responsabilidade civil - Liberdade de imprensa - Direito de personalidade - Colisão


de direitos
I - Devem ser conciliados, na medida do possível, os direitos de informação e livre
expressão, por um lado, e à integridade moral e ao bom nome e reputação, por outro.
II - Quando tal se revele inviável, a colisão desses direitos deve, em princípio, resolver-se
pela prevalência daquele direito de personalidade.
III - Só assim não será quando, em concreto, concorram circunstâncias susceptíveis de, à
luz de bem entendido interesse público, justificar a adequação da solução oposta, sendo
sempre ilícito o excesso e exigindo-se o respeito por um princípio, não apenas de verdade,
necessidade e adequação, mas também de proporcionalidade ou razoabilidade.
IV - Na determinação das formas de efectivação da responsabilidade civil emergente de
factos cometidos por meio da imprensa são aplicáveis os princípios gerais.
V - O cumprimento do dever de vinculação do jornalista à verdade, à objectividade, à
fidelidade aos factos e à neutralidade é ainda mais imperioso quando se trate de imprensa
especializada, em que é de presumir mais apurado conhecimento do meio e das regras.
VI - A divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom
nome e a reputação de uma pessoa.
14-02-2002 - Revista n.º 4384/01 - 7.ª Secção - Oliveira Barros (Relator), Miranda
Gusmão e Sousa Inês

Presunções judiciais - Poderes do Supremo Tribunal de Justiça - Abuso de liberdade


de imprensa - Fontes - Danos não patrimoniais - Condenação em quantia certa -
Liquidação em execução de sentença
I - Os juízos de valor formulados pela Relação, perante os factos provados, com base em
regras de experiência ou presunções judiciais, como ilações logicamente deduzidas desses
factos, reconduzem-se, em princípio, a matéria de facto, excluída da competência do
tribunal de revista.
II - O STJ pode sindicar as presunções judiciais tiradas pela Relação no que respeita a
saber se elas alteram ou não os factos provados e se são ou não consequência lógica dos
factos apurados - por outras palavras, é da competência do STJ apreciar se a Relação se
conteve nos parâmetros legais ao estabelecer ilações da matéria de facto.
III - Aos jornalistas impõe-se, como regra deontológica básica, a confrontação de versões e
opiniões, cumprindo-lhes testar e controlar a veracidade da notícia, recorrendo a fontes
idóneas, diversificadas e controladas.
IV - O conceito de idoneidade e de credibilidade da fonte de informação traduz-se num
conceito ou juízo de valor sobre a fonte, na medida em que encerra uma valoração jurídica,
aferindo-se em função de critérios estabelecidos seja em normas legais, por exemplo de
natureza penal, seja em princípios éticos contidos no Código Deontológico dos Jornalistas.
V - No exercício da sua função pública (direito-dever de informação), exige-se que a
imprensa não publique imputações que atinjam a honra das pessoas, sabendo-as inexactas
ou quando não tenha podido informar-se suficientemente.
VI - O tribunal pode proceder à liquidação dos danos não patrimoniais, fixando a
indemnização, ainda que o autor tenha pedido a condenação do réu no que viesse a
liquidar-se em execução de sentença, desde que os factos provados não revelem que
alguma consequência do facto ilícito esteja em evolução.
19-02-2002 - Revista n.º 3379/01 - 1.ª Secção - Ferreira Ramos (Relator), Lemos
Triunfante e Reis Figueira

Liberdade de imprensa - Direito de personalidade - Colisão de direitos


6
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

I - Os direitos de informação e de livre expressão sofrem as restrições necessárias à


coexistência, em sociedade democrática, de outros direitos como os da honra e reputação
das pessoas.
II - Há que procurar, antes do mais, a “concordância prática” desses direitos, de
informação e livre expressão, por um lado, e à integridade moral e ao bom nome e
reputação, por outro, mediante o sacrifício indispensável de ambos.
III - Em último termo, o reconhecimento da dignidade humana como valor supremo da
ordenação constitucional democrática impõe que a colisão desses direitos deva, em
princípio, resolver-se pela prevalência daquele direito de personalidade (n.º 2 do art.º 335
do CC), só assim não sucedendo quando, em concreto, concorram circunstâncias
susceptíveis de, à luz de relevante interesse público, justificar a adequação da solução
oposta.
IV - Existindo verdadeiro interesse público em que a comunidade seja informada sobre
certas matérias, o dever de informação prevalece sobre a discrição imposta pelos interesses
pessoais.
V - Sempre, no entanto, será de exigir o respeito por um princípio, não apenas de verdade,
necessidade e adequação, mas também de proporcionalidade (ou razoabilidade).
07-03-2002 - Revista n.º 184/02 - 7.ª Secção - Oliveira Barros (Relator), Miranda Gusmão
e Sousa Inês

Ofensa do crédito ou do bom nome - Liberdade de imprensa - Responsabilidade civil


- Responsabilidade criminal
I - O preceito do art.º 37, n.º 3, da CRP refere-se somente aos ilícitos criminais e contra-
ordenacionais, tendo por objectivo a inviabilização de um direito penal de excepção.
II - A norma do n.º 5 do art.º 26 do DL n.º 85-C/75, de 26-02 (redacção de 1995) não é
convocável em sede de responsabilidade civil, sendo, como é, uma norma concebida
apenas em sede de responsabilidade criminal por delitos de imprensa.
III - A obrigação de indemnizar gerada por uma conduta criminosa não desaparece por
verificação das causas de extinção da respectiva responsabilidade criminal -
designadamente as enumeradas nos art.ºs 118 e 127 do CP -, nem por virtude da sua
eventual descriminalização.
IV - Com a redacção introduzida pela Lei n.º 15/95, de 25-05, ao art.º 26 do referido
diploma, que aí ficou tendo o n.º 5, e a actual Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, de 13-01), art.º
31, n.º 4, passou a vigorar um sistema segundo o qual o jornalista e o director do periódico
não são responsáveis criminalmente se as declarações do entrevistado constituírem crime.
V - Esse n.º 5 não é norma interpretativa.
VI - A solução dos conflitos entre a liberdade de expressão e informação e o direito à
honra passa pela sua harmonização ou pela prevalência a dar a um ou a outro, com recurso
aos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação às circunstâncias do
caso concreto.
VII - O director do jornal e o jornalista que transcreve as afirmações feitas por um
entrevistado, acusando um árbitro de futebol de ser corrupto - afirmação levada ao título
que ocupa meia página - sem se certificarem se o seu teor correspondia ou não à verdade,
actuam sem observarem as cautelas exigidas para um legítimo e correcto exercício do seu
direito de informar e, contendo as frases do entrevistado imputações que atentam contra a
honra, bom nome e reputação do árbitro, caíram dentro do que lhes era vedado pelo seu
Código Deontológico, pelo Estatuto dos Jornalistas e pelo art.º 484 do CC.
14-05-2002 - Revista n.º 650/02 - 1.ª Secção - Ribeiro Coelho (Relator), Garcia Marques e
Ferreira Ramos
7
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

Ofensa do crédito ou do bom nome - Liberdade de imprensa - Responsabilidade civil


- Responsabilidade criminal
I - A ofensa prevista no art.º 484 do CC é um caso especial de facto antijurídico definido
no artigo precedente que, por isso, se deve ter por subordinada ao princípio geral
consignado nesse art.º 483, não só quanto aos requisitos fundamentais da ilicitude, mas
também relativamente à culpabilidade.
II - Não importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro.
III - A norma do art.º 26 da Lei de Imprensa (DL n.º 85-C/75, de 26-02) rege apenas para a
responsabilidade criminal, definindo quem são os responsáveis para efeitos deste tipo de
responsabilidade, não se aplicando à responsabilidade civil.
IV - As competências impostas por lei ao director, em especial a que se reporta à
determinação do conteúdo do periódico, impõem-lhe um dever de conhecimento
antecipado das matérias a publicar, em ordem a poder impedir a divulgação daquelas
susceptíveis de gerar responsabilidade, civil ou criminal.
V - Aos mesmos deveres está sujeito o chefe de redacção, enquanto substituto legal do
director, em caso de impedimento deste.
14-05-2002 - Revista n.º 267/02 - 1.ª Secção - Ferreira Ramos (Relator), Pinto Monteiro e
Lemos Triunfante

Responsabilidade civil - Abuso de liberdade de imprensa - Direito ao bom nome


I - À obrigação de indemnizar estatuída no art.º 484 do CC é exigível a pressuposição do
art.º 483 do mesmo diploma legal.
II - A conceptualização do abuso de liberdade de imprensa delimita-se através do contraste
dos princípios de consagração constitucional da liberdade da mesma e do direito ao bom
nome e reputação estatuídos respectivamente nos art.ºs 38 e 26 do texto fundamental.
III - No confronto desses direitos, o da honra e o da informação, um deles terá de
prevalecer, não obstante serem de hierarquia semelhante no enquadramento da colisão de
direitos prevista no art.º 335 do CC.
IV - Não é o sentimento de quem se diz ofendido que deve servir de padrão aferidor da
ofensa, já que para haver lugar à indemnização é mister a necessidade de um
comportamento ilícito violador da imagem e da reputação de outrem, o que não ocorre se o
autor da notícia ofensiva se cingiu ao dever de informar.
01-10-2002 - Revista n.º 2383 /02 - 1.ª Secção - Lemos Triunfante (Relator), Barros
Caldeira e Reis Figueira

Responsabilidade civil - Liberdade de imprensa - Direito de personalidade - Colisão


de direitos
I - O reconhecimento da dignidade humana como valor supremo da ordenação
constitucional democrática impõe que a colisão entre os direitos de informação e de livre
expressão, por um lado, e à integridade moral e ao bom nome e reputação, por outro, deva
resolver-se, em princípio, pela prevalência daquele direito de personalidade (n.º 2 do art.º
335 do CC).
II - Podem, no entanto, concorrer em concreto, circunstâncias susceptíveis de, à luz de bem
entendido interesse público, justificar a adequação da solução oposta.
III - A divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom
nome e a reputação de uma pessoa.
IV - Existe o direito de noticiar factos verdadeiros - ou, pelo menos, na séria convicção de
que o são, por apurados através de fontes de informação idóneas, diversificadas e
8
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

controladas - e que tenham relevo social, desde que a tal se proceda por forma adequada,
moderada, isto é, sem ultrapassar o necessário à divulgação do facto.
10-10-2002 - Revista n.º 2751/02 - 7.ª Secção - Oliveira Barros (Relator), Diogo Fernandes
e Miranda Gusmão

Direito ao bom nome - Liberdade de imprensa


I - A regra geral é a de admitir a divulgação de factos verdadeiros, desde que tal se efectue
para assegurar um interesse público legítimo.
II - Não é ilícita a imputação feita na imprensa, à pessoa de um advogado e ex-proprietário
de um jornal, da prática de um crime de burla agravada, em termos muito próximos do teor
da acusação crime, tendo existido despacho de pronúncia nesse sentido e estando o arguido
preso preventivamente.
19-11-2002 - Revista n.º 2028/02 - 1.ª Secção - Pinto Monteiro (Relator), Lemos
Triunfante e Reis Figueira

Liberdade de imprensa - Direito de personalidade - Colisão de direitos


I - O simples facto de se atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o
sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é
atentar contra o seu bom nome, reputação e integridade moral.
II - O direito à informação comporta três limites essenciais: o valor socialmente relevante
da notícia; a moderação da forma de a veicular; e a verdade, medida esta pela
objectividade, pela seriedade das fontes, pela isenção e pela imparcialidade do autor,
evitando manipulações que a deontologia profissional, antes das leis do Estado, condena.
III - A solução do conflito entre os direitos constitucionais de liberdade de informação e à
honra e ao bom nome, sendo, pelo menos em teoria, de igual hierarquia constitucional,
deve procurar-se pela harmonização ou concordância pública dos interesses em jogo, por
forma a atribuir a cada um deles a máxima eficácia possível, em obediência ao princípio
jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de direitos
fundamentais.
IV - O direito de liberdade de expressão e informação, pelas restrições e limites a que está
sujeito, não pode, ao menos em princípio, atentar contra o bom nome e reputação de
outrem, sem prejuízo de em certos casos, ponderados os valores jurídicos em confronto, o
princípio da proporcionalidade conjugado com os ditames da necessidade e da adequação e
todo o circunstancialismo concorrente, tal direito poder prevalecer sobre o direito ao bom
nome e reputação.
V - Assim sucede nos casos em que estiver em causa um interesse público que se
sobreponha e a divulgação seja feita de forma a não exceder o necessário à divulgação,
sendo exigível que a informação se cinja à estrita verdade dos factos.
05-12-2002 - Revista n.º 3553/02 - 7.ª Secção - Araújo de Barros (Relator), Oliveira Barros
e Diogo Fernandes

Direitos fundamentais - Vida privada - Direito à reserva sobre a intimidade - Direitos


de personalidade - Limites
I - É ao direito ordinário que cabe a regulamentação do exercício dos direitos
fundamentais, estabelecendo os necessários desenvolvimentos e concretizações, ficando,
para tanto, em princípio, aberto ao legislador um amplo espaço livre de conformação.
II - A tutela do direito à intimidade da vida privada desdobra-se em duas vertentes: a
protecção contra a intromissão na esfera privada e a proibição de revelações a ela relativas.

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

III - A saúde faz parte da individualidade privada do ser humano, e, assim, do assegurado
resguardo da vida particular contra a eventualidade de divulgação pública.
IV - O direito de resguardo não é, no entanto, absoluto em todos os casos e relativamente a
todos os domínios.
V - Havendo que atender à contraposição do interesse do indivíduo em obstar à tomada de
conhecimento ou à divulgação de informação a seu respeito e dos interesses de outros em
conhecer ou revelar a informação conhecida, interesses que ganharão maior peso se forem
também interesses públicos, a extensão do dever de resguardo, e, assim, do correlativo
direito, deverá ser apreciada "segundo as circunstâncias do caso e das pessoas".
VI - Desde que não contrariados por esse modo os princípios da ordem pública interna, é
lícita a limitação voluntária do exercício dos direitos de personalidade, designadamente,
podendo, em princípio, o exercício do direito ao resguardo, nas suas várias manifestações,
ser objecto de limitações voluntárias.
25-09-2003 - Revista n.º 2361/03 - 7.ª Secção - Oliveira Barros (Relator) *, Ferreira de
Sousa e Armindo Luís

Direito ao bom nome - Ofensas à honra - Pressupostos


I - O que se discute na acção é a responsabilidade civil do réu por, através de escrito
publicado, ter ofendido direitos de personalidade do autor.
II - A responsabilidade do réu há-de, então, depender do concurso dos pressupostos
mencionados no art.º 483 do CC, ou seja, da ilicitude do acto, da sua voluntariedade, do
nexo de imputação do facto ao agente lesante, da produção de um dano e do nexo de
causalidade entre o facto e o dano.
III - O acto ilícito é, aqui, a afirmação dos factos capazes de prejudicar o prestígio e o bom
nome do autor; de salientar que a lei se basta com a potencialidade lesiva da afirmação ou
com a ameaça de lesão, dispensando a efectiva verificação do resultado.
IV - O direito de crítica, enquanto manifestação do direito de opinião, tendo subjacente o
confronto de ideias, traduz-se na apreciação e avaliação de actuações ou comportamentos
de outrem, com a correspondente emissão de juízos racionais apreciativos ou
depreciativos.
V- O seu limite lógico deve ser, consequentemente, o resultante do próprio conceito de
crítica, correspondendo este ao confronto de ideias, a apreciação racional de
comportamentos e manifestação de opiniões; por afastadas e exorbitantes do conteúdo do
direito se hão-de ter “considerações imotivadas ou de pura malquerença pessoal”.
14-10-2003 - Revista n.º 2249/03 - 1.ª Secção - Alves Velho (Relator), Moreira Camilo e
Lopes Pinto

Liberdade de imprensa - Abuso de liberdade de imprensa - Direito de personalidade -


Colisão de direitos - Direito ao bom nome - Direito à honra - Ofensas à honra e
dignidade do outro cônjuge - Dolo directo - Dolo necessário - Dolo eventual - Danos
não patrimoniais - Montante da indemnização
I - A publicação, em jornal que se vende em todo o território nacional, de acusações ou
insinuações feitas a uma mulher casada, no mínimo tratando-a como leviana e imputando-
lhe a prática de adultério, atinge directamente o marido daquela, violando o seu direito ao
bom nome, à honra e consideração social, e à reserva da intimidade da vida privada
conjugal.
II - Não importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro, contanto que
seja susceptível, ponderadas as circunstâncias do caso, de abalar a honra e o prestígio de

10
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio
social em que vive ou exerce a sua actividade.
III - Na delimitação do direito à informação intervêm princípios éticos, pelos quais o
jornalista responde em primeiro lugar, constituindo dever de quem informa esforçar-se por
contribuir para a formação da consciência cívica e para o desenvolvimento da cultural
sobretudo pela elevação do grau de convivialidade como factor de cidadania, e não
fomentar reacções primárias, sementes de violência, ou sentimentos injustificados de
indignação e de revolta, tratando assuntos com desrespeito pela consciência moral das
gentes, contribuindo negativamente para a desejável e salutar relação de convivialidade
entre elas.
IV - Na conflitualidade entre os direitos de liberdade de imprensa e os direitos de
personalidade, sendo embora os dois direitos de igual hierarquia constitucional, é
indiscutível que o direito de liberdade de expressão e informação, pelas restrições e limites
a que está sujeito, não pode atentar contra o bom nome e reputação de outrem, salvo se
estiver em causa um interesse público que se sobreponha àqueles e a divulgação seja feita
de forma a não exceder o necessário a tal divulgação.
V - Actua culposamente, com dolo directo, o jornalista que voluntariamente narra certo
facto ou faz alguma afirmação ou insinuação, sabendo que dessa forma atinge a honra ou o
bom nome de outrem, sendo esse preciso efeito que ele pretende atingir. Age com dolo
necessário (ou eventual) a empresa jornalística que, sem poder deixar de conhecer a
natureza melindrosa e difamatória dos escritos, tinha também o dever de ter impedido a sua
divulgação.
VI - Tratando-se de notícia publicada em jornal que se vende em todo o território nacional;
considerando que o lesado, a partir da data da publicação dos artigos, passou a ser alvo de
observações jocosas dos seus colegas de trabalho e de alguns clientes que o conheciam
devido à vida pública que levava, tendo até, em consequência, pedido uma licença sem
vencimento como única forma de se furtar aos incómodos e ultrajes de que passou a ser
alvo; atendendo a que o casal constituído por ele e a mulher, visada nas notícias
publicadas, acabou por se separar devido às discussões e aos embaraços que tais artigos
provocaram em ambos, justifica-se, por criteriosa e adequada às circunstâncias do caso, a
atribuição da quantia de 5.000.000$00 (ou seja, 24.939,99 Euros) para compensar os danos
não patrimoniais sofridos pelo autor.
26-02-2004 - Revista n.º 3898/03 - 7.ª Secção - Araújo de Barros (Relator), Oliveira Barros
e Salvador da Costa

Direito ao bom nome - Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Danos


não patrimoniais - Indemnização
I - O direito de informação e de livre expressão não pode deixar de respeitar o direito à
honra e ao bom nome tutelados pelo art.º 70 do CC.
II - O art.º 70 do CC tem em vista a defesa dos cidadãos contra qualquer ofensa ou ameaça
ilícitas da sua personalidade física ou moral.
III - A Lei n.º 62/79 não só estabelece os direitos dos jornalistas, como lhes impõe deveres,
nomeadamente o respeito pelo rigor e objectividade da informação.
IV - A publicação na 1.ª página do jornal "O Público" de uma fotografia do Autor
legendada com a informação "Engil ilibada em Loulé", "facturas falsas dão prisão" e "na
foto o advogado de defesa, Proença de Carvalho, com alguns dos réus", apesar de
desmentida no jornal do dia seguinte, constitui, objectivamente, uma ofensa à honra e
consideração social do Autor, justificando o direito a uma indemnização.

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

02-03-2004 - Revista n.º 43/04 - 6.ª Secção - Ponce de Leão (Relator), Afonso Correia e
Ribeiro de Almeida

Responsabilidade extracontratual - Pressupostos - Direito ao bom nome - Dever de


informar - Liberdade de expressão - Liberdade sindical - Dever de indemnizar
I - A liberdade de expressão e o direito de liberdade sindical não são absolutos, devendo
respeitar o direito ao crédito profissional, à honra e ao bom nome dos visados.
II - A informação deve ser rigorosa e verdadeira, devendo a notícia ser dada com
contenção, para não afectar, além do necessário, a reputação alheia.
III - Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade,
contanto que seja susceptível, perante as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na
capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações ou de abalar o prestígio
de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida.
IV - O dever de indemnizar não depende de intenção ofensiva, bastando a mera culpa.
V - A invocação do cumprimento de um dever como causa justificativa do incumprimento
de outro só releva se o respectivo sujeito não contribuiu culposamente para a
impossibilidade de satisfação de ambos.
VI - Para haver culpa e obrigação de indemnizar, no caso de afirmação ou divulgação de
factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou o bom nome de alguém, basta, em princípio,
que o agente queira afirmar ou difundir o facto, desde que conheça ou devesse conhecer a
ilicitude ou o carácter danoso do mesmo facto.
27-05-2004 - Revista n.º 1704/04 - 6.ª Secção - Azevedo Ramos (Relator) *, Silva Salazar
e Ponce de Leão

Liberdade de informação - Liberdade de expressão - Liberdade de imprensa - Direito


à honra - Direito ao bom nome - Danos não patrimoniais - Indemnização
I - O direito à honra como direito subjectivo absoluto vincula todos os particulares e
entidades públicas (vale erga omnes).
II - Tendo o réu exorbitado manifestamente da terminologia estritamente necessária ao
comentário que pretendia tecer à falta de coerência que detectara entre aquilo que o autor
dissera na entrevista e a prática das publicações de que este era director, quebrou o
equilíbrio que deve existir entre o direito ao bom nome e à reputação, parte integrante da
dignidade humana, e os direitos da liberdade de informação e de expressão. Abusou, pois,
do direito de informar e opinar por intermédio da imprensa.
III - A compensação com a quantia de 15.000 euros arbitrada pela Relação, mostra-se
adequada a compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo autor, tendo em conta o
grau de culpa do réu, a reputação social e profissional do autor, a intensa gravidade e
grande difusão das ofensas perpetradas contra a sua honra e bom nome, a necessidade de
alguma penalização civil pelo comportamento do réu, que não se coibiu de fechar o escrito
em referência epitetando o visado de "repelente criatura", dizendo que ia com algum
esforço comprar um exemplar da revista, a fim de, na eventualidade, que esperava não vir a
acontecer, de com ele se cruzar um dia, estar municiado com um bocado de "trampa" para
lhe atirar à cara, com o que, uma vez mais, em muito ultrapassou os justos limites da
opinião crítica admissível, descambando para o campo do insulto pessoal de larga
divulgação.
27-05-2004 - Revista n.º 1530/04 - 1.ª Secção - Faria Antunes (Relator), Moreira Alves e
Alves Velho

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

Liberdade de expressão - Bom nome - Reputação - Jornalista - Liberdade de


informação - Boa-fé
I - A liberdade de expressão é um dos pilares fundamentais de toda a sociedade
democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e da realização individual.
II - Daí que as excepções a que se encontra sujeita devam ser objecto de interpretação
estrita e qualquer restrição estabelecida de modo convincente.
III - A liberdade de expressão não tem como limite absoluto o bom nome e a reputação de
terceiros quando se trata de questões de interesse geral.
IV - Na divulgação de informações deve o jornalista proceder de boa-fé, de modo a
fornecer informações exactas e dignas de crédito, observando os princípios de deontologia
que regem a sua actividade.
V - Perante os factos assim apurados, a liberdade de informação abrange o recurso a certa
dose de exagero, mesmo de provocação, de polémica e de agressividade (a Convenção dos
direitos do Homem protege, no seu art.º 10 não apenas a substância das ideias mas também
o seu modo de expressão).
VI - Tratando-se de juízos de valor exclui-se a prova da sua exactidão, importando
somente que não se encontrem totalmente desprovidos de base factual.
VII - Esses juízos de valor encontram-se ainda sujeitos à apreciação da sua
proporcionalidade.
VIII - A crítica tem limites mais amplos quando se trate de personalidades públicas, agindo
nessa qualidade.
13-01-2005 - Revista n.º 3924/04 - 2.ª Secção - Moitinho de Almeida (Relator) *, Noronha
do Nascimento e Ferreira de Almeida

Liberdade de imprensa - Direito ao bom nome - Obrigação de indemnizar


I - Publicar numa revista da especialidade, destinada fundamentalmente a um público
conhecedor, uma notícia onde se dá conta de que a ora autora “pode ter os dias contados”,
defendendo-se, para sustentar a afirmação, que a empresa se encontra “com graves
problemas financeiros e algumas das suas maquinarias já terão sido retiradas da empresa
pelos seus fornecedores devido à falta dos respectivos pagamentos” abala, obviamente, a
credibilidade e o prestígio da empresa, com as consequências daí resultantes.
II - O comentário da revista à resposta que a empresa visada enviou ao abrigo do direito de
resposta, é igualmente desprestigiante, continuando a insistir-se na tese da “falência” da
gráfica-autora. Um jornalismo de rigor, como se deseja e impõe, implicaria uma
investigação credível sobre a real situação económica da empresa, designadamente, no que
respeita à problemática da devolução da máquina.
III - Tal comportamento não pode ser enquadrado na mera culpa, surgindo, claramente,
como doloso, pelo menos, na modalidade de dolo eventual. O jornalista medianamente
preocupado com o efeito que as notícias iriam provocar, facilmente concluiria que o
primeiro artigo e a insistência que se continuou a fazer sob a capa de esclarecimento,
afectariam o bom nome, crédito, reputação e credibilidade dos autores.
IV - Nem sequer se pode colocar a dúvida sobre a veracidade da notícia e questionar então
se existia ou não exclusão da responsabilidade com base na exceptio veritatis, por a sua
difusão corresponder a interesses legítimos. Tratando-se de factos falsos a sua difusão ou
afirmação constitui sempre um ilícito, pelo menos civil.
18-01-2005 - Revista n.º 3631/04 - 1.ª Secção - Pinto Monteiro (Relator), Lemos
Triunfante e Reis Figueira

Direito à honra - Direito ao bom nome - Liberdade de expressão - Indemnização


13
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

I - Mesmo sendo figura pública - conhecida actriz e apresentadora de televisão - a pessoa


tem o direito de não ser vilipendiada, amesquinhada, apoucada, no seu valor aos olhos da
sociedade, de não ser atingido, mormente perante o grande público, designadamente
enquanto protagonista da profissão que abraçou.
II - Como direito subjectivo absoluto, que vincula todos os particulares e entidades
públicas (vale erga omnes), o direito da A. à preservação da honra, bom nome e reputação.
III - Provando-se que a R., proprietária de um conhecido jornal de circulação nacional, fez
publicar dois artigos sobre a A., num dos quais se refere que esta esteve ameaçada de ficar
sem emprego na novela de que era protagonista, o que era falso, artigos que davam da A.
uma imagem de pessoa conflituosa, como a R. bem sabia, actuou de forma ilícita e
culposa, ofendendo a honra da A., seu bom nome e reputação.
IV - Provando-se que ao ter conhecimento destes artigos a A. ficou perplexa, abalada e
deprimida, mas que um outro jornal semanário já tinha anteriormente procedido à
divulgação da falsa notícia do despedimento da A., pelo que o sofrimento desta não foi
unicamente causado pelas notícias do jornal da R., que a divulgação dos artigos em causa
junto do grande público é susceptível de afectar o crédito e a reputação da recorrida mas
sem se provar que houve um efectivo prejuízo para a carreira artística dela, e visto o grau
de culpa da recorrente, afigura-se justa para compensação dos danos não patrimoniais
daquela, face ao disposto nos art.ºs 496, n.ºs 1 e 3, e 494 do CC, a quantia de 7.500 Euros,
que já cumpre equitativamente as finalidades compensatória e sancionatória.
15-02-2005 - Revista n.º 3875/04 - 1.ª Secção - Faria Antunes (Relator), Moreira Alves e
Alves Velho

Liberdade de imprensa - Direito à imagem - Direito ao bom nome - Colisão de


direitos
I - Se nenhumas dúvidas existem quanto à dignidade constitucional do princípio
fundamental da liberdade de expressão e do direito de informação ("liberdade de
informar", "de se informar" e "de ser informado"), também se perfila como não menos
relevante o princípio da salvaguarda do bom nome e reputação individuais, e o direito à
imagem e reputação - cfr. art.º 26, n.° 1, da CRP.
II - A liberdade de expressão não pode (e não deve) atentar contra o direito ao bom nome e
reputação, salvo quando estiver em causa um interesse público que se sobreponha àqueles
e a divulgação dos factos seja feita de forma a não exceder o estritamente necessário a tal
salvaguarda.
III - Mormente quando estiverem em causa críticas dirigidas ao funcionamento de um
serviço público ou uma actuação de um dado agente político, domínio em que impera uma
particular sensibilidade social que de certa forma alarga os contornos do direito de crítica.
IV - É o que se passa em caso de inércia do visado, enquanto dirigente de um serviço
público (Centro de Saúde) - que perdurou por cerca de um ano - no desencadeamento e na
conclusão do processo burocrático que se lhe encontrava confiado e relativo à criação de
determinadas unidades orgânicas integradas na respectiva área de actuação.
03-03-2005 - Revista n.º 4789/04 - 2.ª Secção - Ferreira de Almeida (Relator) *, Abílio de
Vasconcelos e Duarte Soares

Abuso de liberdade de imprensa - Direito ao bom nome - Direito à honra - Dever de


informar
I - Provando-se que as fotografias publicadas no jornal com a notícia permitem identificar
a Escola onde ocorreram os factos noticiados e o recorrido como seu Autor, tratando-o
como pedófilo e imputando-lhe a tentativa de violar uma menina de 8 anos, filha de uma
14
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

colega de trabalho, não tendo a Ré, jornalista que assina o artigo, efectuado uma
investigação séria, nem testado minimamente a informação da mãe da criança, mostram-se
infringidos pela Ré os deveres consagrados no Código Deontológico do Jornalista
aprovado em 04-05-1993, e o art.º 4, n.º 2, do DL n.º 85-C/75, de 26-02 (Lei da Imprensa
vigente ao tempo).
II - Foi praticada uma violação grave, irreparável e gratuita do direito do Autor ao bom
nome e reputação, não justificada por qualquer pretenso interesse público dos factos
noticiados ou pela notoriedade do visado, não sendo de reduzir o montante indemnizatório
fixado pela Relação em 24.940 Euros, que se mostra equitativamente adequado.
III - Por sua vez, tendo o Réu Director do jornal autorizado a publicação da notícia, não
pode deixar de ser solidariamente responsável com a Ré jornalista e com a empresa
jornalística pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo Autor (art.º 497, n.º 1, do CC).
24-05-2005 - Revista n.º 1410/05 - 6.ª Secção - Salreta Pereira (Relator), Fernandes
Magalhães e Azevedo Ramos

Abuso de liberdade de imprensa - Fotografia - Direito à imagem - Direito à reserva


sobre a intimidade - Direito à informação
I - O direito à imagem e direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto
direitos fundamentais de personalidade, são inatos, inalienáveis, irrenunciáveis e absolutos,
no sentido de que se impõem, por definição, ao respeito de todas as pessoas.
II - O que se passa no interior da residência de cada pessoa e na área, privada, que a
circunda, integra o núcleo duro da reserva da intimidade da vida privada legalmente
protegida.
III - A publicação numa revista pertencente à ré de uma reportagem fotográfica legendada
divulgando, sem consentimento do autor, uma visita por ele feita na companhia da mulher
à residência familiar então em fase de construção na cidade de Madrid, integra a violação
simultânea dos seus direitos à imagem e à reserva da intimidade da vida privada.
IV - A ilicitude desta conduta não é afastada, nem pelo facto de o autor ser uma pessoa de
grande notoriedade, adquirida graças à sua condição de futebolista profissional
mundialmente reconhecido (figura pública), nem pela circunstância de as fotografias
mostrarem apenas a entrada da casa e de esta se encontrar em fase de construção.
V - O direito da liberdade de imprensa tem como limite intransponível, entre outros, a
salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e à imagem dos cidadãos.
VI - De igual modo, também a invocação do direito de informar consagrado no art.º 37, n.º
1, da Constituição não legitima a conduta do lesante se não houver qualquer conexão entre
as imagens ou factos divulgados pertencentes ao foro privado do lesado e a actividade
profissional por ele desempenhada que originou a sua notoriedade pública.
14-06-2005 - Revista n.º 945/05 - 6.ª Secção - Nuno Cameira (Relator) *, Sousa Leite e
Salreta Pereira

Direito ao bom nome - Liberdade de imprensa - Liberdade de expressão - Abuso de


liberdade imprensa - Indemnização
I - O direito de liberdade de imprensa tem limites legais e constitucionais, sendo um desses
limites os direitos de personalidade, não obstante se possa admitir, em casos especiais, que
o interesse público subjacente à liberdade de imprensa, justifique a lesão do direito ao bom
nome e reputação.
II - Tratando-se de uma opinião ou de um trabalho de crítica artística, justifica-se a máxima
liberdade de expressão. Todavia, qualquer artigo de opinião ou de crítica social ou artística,
assenta necessariamente em determinados factos, que o autor pode interpretar livremente.
15
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

III - Se nada há a censurar quando o jornalista ou o crítico opina desfavoravelmente a


respeito de certa obra de arte, por exemplo de teatro, ainda que a sua opinião esteja em
flagrante desacordo com a maioria da crítica publicada sobre o assunto, não pode, todavia,
o crítico descurar o cuidado que lhe é imposto pelo seu estatuto, pela lei geral, pela lei de
imprensa, pela Constituição da República ou pelo seu próprio Código Deontológico.
IV - Assim, embora o jornalista ou autor do artigo seja livre de publicamente expressar o
seu desagrado pela actuação profissional e artística de determinada actriz e directora de um
grupo de teatro, já não é livre de relatar ou insinuar factos não verdadeiros, susceptíveis de
abalar a dignidade profissional e a reputação pública da Autora, e neles assentar, pelo
menos em parte, as suas opiniões.
V - Provando-se que com a publicação do artigo em causa a Autora se sentiu exposta e
com o sentimento que o público a poderia considerar como uma má actriz, desorganizada,
péssima directora de um grupo de teatro e solicitadora de favores públicos por parte do
Estado, estamos perante um sofrimento moral, uma angústia compreensível e relevante que
deve ser indemnizada nos termos do disposto no art.º 496, n.º 1, do CC.
18-10-2005 - Revista n.º 2070/05 - 1.ª Secção - Moreira Alves (Relator), Alves Velho e
Moreira Camilo

Direito ao bom nome - Direito à honra - Danos não patrimoniais


I - Entre os danos não patrimoniais - que pela sua gravidade merecem a tutela do direito -
encontram-se os resultantes de ofensa do direito à honra e ao bom nome, ambos direitos de
personalidade (arts. 496.º, n.º 1, 484.º e 70.º do CC.
II - A protecção de tais direitos de personalidade não termina com a morte do respectivo
titular (art. 71.º do CC.
III - A notícia publicada num jornal de distribuição nacional que refere que um concreto
sujeito era toxicodependente e que foi o consumo de droga que contribuiu para a
ocorrência de um acidente de viação no qual o mesmo veio a falecer, provoca danos
irreparáveis no bom nome e na honra devida a pessoa falecida e, como tal, gera a obrigação
de indemnizar.
25-05-2006 - Revista n.º 715/06 - 7.ª Secção - Mota Miranda (Relator), Oliveira Barros e
Salvador da Costa

Responsabilidade civil - Direito à honra - Direito ao bom nome - Liberdade de


expressão - Titulares de cargos políticos
I - O direito à honra inclui o direito ao bom nome e reputação, o simples decoro e o crédito
pessoal.
II - Estes bens são tutelados juscivilisticamente, impondo aos outros um dever geral de
respeito e de abstenção de ofensas ou mesmo de ameaças de ofensas à honra alheia.
III - A protecção juscivilística não se restringe, como no direito penal, ao sancionamento
de condutas dolosas, mas também alcança a defesa de condutas meramente negligentes.
IV- Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de
qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
V - A tutela da reputação dos políticos pode ser menos intensa do que a dos cidadãos em
geral, por estarem mais expostos à crítica do que um vulgar cidadão, mas não pode
significar que o direito de crítica seja ilimitado e justifique a própria ofensa.
12-09-2006 - Revista n.º 2238/06 - 6.ª Secção - Azevedo Ramos (Relator) *, Silva Salazar
e Afonso Correia

16
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

Ofensas à honra - Liberdade de expressão - Liberdade de imprensa - Conflito de


direitos - Jornal - Juiz
I - O direito à liberdade de expressão e informação, o direito à liberdade de imprensa e
meios de comunicação social e o direito ao bom nome e à honra, todos constitucionalmente
garantidos, quando em confronto, devem sofrer limitações, por forma a atribuir a cada um
deles a máxima eficácia possível.
II - Sendo todos direitos de igual garantia constitucional, é indiscutível que o direito de
liberdade de expressão e informação, pelas restrições e limites a que está sujeito, não pode,
ao menos em princípio, atentar contra o bom nome e reputação de outrem, admitindo-se
que, porém, em certos casos, ponderados os valores jurídicos em confronto, o princípio da
proporcionalidade conjugado com os ditames da necessidade e da adequação e todo o
circunstancialismo concorrente, tal direito possa prevalecer sobre o direito ao bom nome e
reputação.
16-11-2006 - Revista n.º 734/06 - 2.ª Secção - Rodrigues dos Santos (Relator), Abílio
Vasconcelos e Duarte Soares

Pessoa colectiva - Liberdade de imprensa - Liberdade de informação - Liberdade de


expressão - Conflito de direitos - Ofensa do crédito ou do bom nome - Danos não
patrimoniais
I - A capacidade de gozo das pessoas colectivas abrange os direitos de personalidade
relativos à liberdade, ao bom-nome, ao crédito e à consideração social.
II - A eficácia dos meios de publicação informativa deve ter por contraponto os máximos
rigor e cautela na averiguação da realidade dos factos que divulgam, sobretudo quando
essa divulgação, pela natureza do seu conteúdo, seja susceptível de afectar aqueles direitos.
III - O conflito entre o direito de liberdade de imprensa e de informação e o direito de
personalidade - de igual hierarquia constitucional - é resolvido, em regra, por via da
prevalência do último em relação ao primeiro.
IV - Ofende o crédito da pessoa colectiva a divulgação jornalística de facto susceptível de
diminuir a confiança nela quanto ao cumprimento de obrigações, e o seu bom-nome se for
susceptível de abalar o seu prestígio ou merecimento no respectivo meio social de
integração.
V - Ofende ilícita e culposamente o crédito e o bom-nome do clube de futebol, que disputa
a liderança da primeira liga, sujeitando os seus autores a indemnização por danos não
patrimoniais, a publicação, em jornal diário citadino conceituado e de grande tiragem, da
notícia de que resulta não ser o visado cumpridor das suas obrigações fiscais e a conduta
dos dirigentes ser passível de integrar o crime de abuso de confiança fiscal.
08-03-2007 - Revista n.º 566/07 - 7.ª Secção - Salvador da Costa (Relator) *, Ferreira de
Sousa e Armindo Luís

Liberdade de imprensa - Responsabilidade civil - Jornal - Proprietário - Presunção


juris tantum
I - O art. 29.º, n.º 1, da Lei n.º 2/99, de 13-01 (responsabilidade civil das empresas
jornalísticas) deve ser interpretado como referindo-se à responsabilidade de quem for na
altura o seu proprietário ou titular - seja pessoa singular ou colectiva -, responsabilidade
essa que, quanto a ele, terá como limite o valor patrimonial da empresa e sempre referida a
quem, no momento da sua concretização, for titular da empresa.
II - Tem de considerar-se que a ficha técnica de cada publicação periódica contém
elementos que vinculam os seus responsáveis, pois o seu correcto preenchimento não é

17
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

mais do que o cumprimento da norma imperativa do n.º 2 do art. 1.º da Lei n.º 2/99, que
prevê expressamente a indicação do nome ou denominação social do seu proprietário.
III - A obrigatoriedade de tal menção só pode explicar-se pela imperativa necessidade de
indicação de quem são os responsáveis pela publicação.
IV - A indicação na ficha técnica de um concreto jornal de que o réu, pessoa singular, é seu
proprietário constitui presunção juris tantum de que é seu dono e, como tal, responsável
pelos danos eventualmente causados por uma notícia.
17-05-2007 - Revista n.º 4748/06 - 2.ª Secção - Duarte Soares (Relator), Bettencourt de
Faria e Pereira da Silva

Direito à honra - Ofensa do crédito ou do bom nome - Liberdade de imprensa -


Liberdade de informação - Responsabilidade extracontratual - Danos não
patrimoniais - Cálculo da indemnização
I - Ainda que constituindo o direito à liberdade de expressão um pilar essencial do Estado
de Direito democrático, o certo é que esse direito não pode ser exercido com ofensa de
outros direitos, designadamente o direito ao bom nome e reputação, direito de igual
dignidade e idêntica valência normativa.
II - A gravidade do dano deve ser aferida por um padrão objectivo, ainda que sopesando as
circunstâncias concretas do caso e, por outro lado, há-de ser de molde a justificar a
concessão de uma satisfação de natureza pecuniária ao lesado. Essa gravidade há-de
depender, no caso de notícia publicada através de imprensa, do teor das notícias dadas à
estampa, da publicidade que as rodeou e da personalidade e situação social dos visados.
III - Em situações como a presente, na reparação do dano não patrimonial haverá que
ponderar a natureza e gravidade do escrito noticiado, o reflexo público da notícia em
função da sua divulgação, a sua consequência para o visado, bem como a sua situação
social e a situação económica quer do lesante quer do lesado.
27-09-2007 - Revista n.º 2528/07 - 7.ª Secção - Alberto Sobrinho (Relator) *, Maria dos
Prazeres Beleza e Salvador da Costa

Liberdade de imprensa - Direito à informação - Direito ao bom nome - Obrigação de


indemnizar
I - Destinada a notícia - que não se mostrou não fosse verdadeira - a informar a sociedade,
o público em geral, a referência à pretensão do estatuto de “arrependido” nada acrescenta
ou retira ao que esse mesmo público destinatário e o leitor normal ajuíza valorativamente
quanto ao bom nome, honra e prestígio de alguém que não discute, antes aceita
expressamente, a existência do pressuposto nuclear do estatuto: ter praticado factos
previstos na lei penal como crimes.
II - Pode o facto ter relevância nos meios e “cultura” prisionais, ou mais propriamente,
entre a população prisional, onde tem a referida carga pejorativa e de inferiorizante
reputação, a qual, porém, não se mostra coincidir, nem coincide, com o entendimento da
sociedade e dos cidadãos que a integram, à qual o escrito jornalístico, no âmbito do direito
à informação e dever de informar, é predominantemente dirigido.
III - Se o estatuto ou a figura do “arrependido”, só por si, repugnasse à sociedade, em
termos de esta valorar negativa e desprestigiantemente o bom nome das pessoas que o
assumem, certamente que os Estados democráticos não manteriam condições legitimadoras
para o seu reconhecimento legal, impondo-lhes bani-lo dos sistemas processuais penais.
IV - Julga-se, pois, que a publicação da notícia referente ao autor dizendo que este estaria a
querer ser “arrependido”, não integra o facto ilícito violação do direito ao bom nome e

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

reputação, nem há lugar à sua imputação culposa, pressupostos da responsabilidade civil e


da obrigação de indemnizar.
09-10-2007 - Revista n.º 274/05 - 1.ª Secção - Alves Velho (Relator), Moreira Camilo e
Urbano Dias

Direito ao bom nome - Direito à honra - Cumulação de pedidos - Incompatibilidade


de pedidos - Caso julgado formal - Sentença - Publicação
I - O direito de crítica que assiste a qualquer cidadão não é ilimitado, não podendo servir,
inclusive quando sejam visados titulares de cargos públicos, para justificar ofensas ao
direito à honra do criticado.
II - Havendo meios legais para reagir contra a demora na emissão de documentos ou contra
a demora na aprovação ou contra a desaprovação de projectos de licenciamento de obras,
excede os limites do necessário para a crítica e para a sua defesa no processo produzir
publicamente e na contestação afirmações ofensivas do direito à honra contra o Director do
Departamento de Gestão Urbanística e Ambiente de Câmara Municipal.
III - À luz do art. 31.º, n.º 2, ex vi art. 470.º do CPC, não ocorre manifesta
incompatibilidade entre o pedido de indemnização pelas ofensas - a que corresponde a
forma de processo comum - e o pedido de adopção da medida atenuante - a que
corresponde forma de processo de jurisdição voluntária prevista nos arts. 1474.º e 1475.º
do CPC.
IV - Tendo essa cumulação sido admitida quer na 1.ª instância, quer na Relação, a
invocação de inadmissibilidade de cumulação de pedidos agora feita trata-se de matéria de
natureza processual, pelo que nessa parte o recurso não é admissível face ao disposto nos
arts. 722.º, n.º 1, e 754.º, n.º 2, do CPC.
V - Atendendo ao critério fixado pelo art. 70.º, n.º 2, do CC, de harmonia aliás com o
fixado no art. 1410.º do CPC, a providência de atenuação dos efeitos da ofensa cometida
deve ser a que se mostre adequada às circunstâncias do caso, ou seja, a que face a tais
circunstâncias se mostre mais conveniente e oportuna.
VI - Não se mostra adequada a publicação integral à custa do ora recorrente se a extensão
da descrição dos factos dados por assentes, em relação a muitos dos quais não se vê por
que motivo haveria de lhes ser dada inútil publicidade, não justifica a sua enumeração
específica, sendo suficiente a identificação do processo, com os fundamentos invocados
pelas partes de harmonia com o relatório da sentença, a fundamentação jurídica adoptada,
da qual consta a própria enumeração do essencial dos factos imputados pelo réu ao autor e
a circunstância de não ter ficado provada a correspondência entre os factos divulgados pelo
réu como tendo sido praticados pelo autor e a realidade, e a decisão.
18-10-2007 - Revista n.º 2651/07 - 6.ª Secção - Silva Salazar (Relator), Nuno Cameira e
Sousa Leite

Liberdade de imprensa - Direito à informação - Direito à imagem - Direito à honra -


Direito ao bom nome - Direitos de personalidade - Danos não patrimoniais -
Obrigação de indemnizar
I - Apesar do direito de informar consagrado, além do mais, no art. 37.°, n.ºs 1 e 2, da
CRP, não pode deixar de se ter em conta que a liberdade de informação tem limites, como
é o caso da necessidade de respeito pelos direitos à integridade moral, ao bom nome e
reputação, à imagem, à dignidade pessoal e à não utilização abusiva ou contrária à
dignidade humana de informações relativas às pessoas, também consagrados na
Constituição (arts. 25.° e 26.°) e regulados na lei ordinária (arts. 70.°, 79.° e 484.° do CC),
limites esses cuja inobservância dá origem a direito de indemnização pelos danos sofridos,
19
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

como logo resulta do disposto nos n.ºs 3 e 4 daquele art. 37.º, e que nem o interesse de
tornar qualquer publicação apelativa de forma a aumentar a sua circulação e venda justifica
sejam ultrapassados.
II - Daí que as informações a serem divulgadas devam, além do mais, corresponder à
verdade dos factos, - sem esquecer que mesmo a divulgação de um facto verdadeiro pode,
em certo contexto, atentar contra o bom nome e a reputação de uma pessoa, e que essa
divulgação deva ser realizada de forma a não integrar mensagens subliminares ocultas ou
de algum modo viciadas nem a provocar equívocos, sugerindo interpretações incorrectas
susceptíveis de originarem ofensas à personalidade, à dignidade ou ao bom nome de
alguém.
III - Ora, é precisamente esta a hipótese que se verifica, pelo que, conjugados os artigos
com as fotografias da autora publicadas sem autorização desta na revista, por um lado de
forma absolutamente desnecessária, - visto que, se a intenção fosse a de simplesmente
informar, seria mais que suficiente a fotografia da verdadeira actriz interveniente no filme
pornográfico com a indicação de que não se tratava da autora -, e por outro lado sem uma
legenda a esclarecer de onde provinham, tem de se entender que, no contexto em que a
publicação teve lugar e que resulta dos factos provados, sem que a notoriedade da autora
ou o seu enquadramento público justificassem que fosse dispensado o consentimento da
mesma para tal publicação, ao que acresce que esta, no mesmo contexto, originaria
notoriamente prejuízo para a reputação ou pelo menos para o decoro da autora, não se pode
senão concluir pela existência de ilicitude.
IV - Da mesma forma tem de se entender que as recorrentes actuaram com culpa, pois não
deixaram de concretizar a publicação sabendo perfeitamente que esta nada tinha a ver com
a exploração comercial no âmbito do contrato, válido, celebrado entre a autora e a
produtora e não com as rés, - do qual nem sequer resultava possibilidade de utilização de
imagens da autora em associação com filmes de conteúdo pornográfico -, e apesar de
admitirem que dela resultaria sentir-se a autora enxovalhada e humilhada, para o que, aliás,
o simples bom senso apontaria, o que torna nitidamente censurável tal comportamento e
lhes impunha conduta distinta.
V - O montante de € 20.000,00 arbitrado como indemnização a pagar pelas recorrentes à
recorrida, afigura-se adequado aos danos sofridos por esta, tendo nomeadamente em conta
o agravamento da intensidade da angústia e ansiedade sofridas pela autora, fáceis de
imaginar perante o risco acrescido da rescisão de contratos e da destruição de uma carreira
promissora, mostrando-se bem calculado de harmonia com o critério de equidade fixado
pelo art. 496.º, n.º 3, do CC.
27-11-2007 - Revista n.º 3341/07 - 6.ª Secção - Silva Salazar (Relator), Nuno Cameira e
Sousa Leite

Liberdade de imprensa - Liberdade de informação - Direito a ser informado - Direito


ao bom nome
I - É inquestionavelmente importante saber quem dirige as instituições de ensino e em que
condições, qual a qualificação humana e científica do seu corpo docente, qual o suporte
económico e financeiro que lhes assegura a solidez necessária.
II - E nesse sentido faz todo o sentido informar e perguntar-se e exprimir-se sobre se pode
ou como pode alguém, ao mesmo tempo, cumprir o seu trabalho como funcionário da
empresa x e ser ao mesmo tempo gerente e docente da escola y, se as duas actividades são
ou não são inteiramente compatíveis, se o são apenas face a circunstâncias ocasionais ou
de conjuntura empresarial, em que medida é que a alteração dessas circunstâncias pode
perturbar o funcionamento da instituição de ensino, saber do que se diz ou se não diz dela,
20
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

da verdade ou falsidade disso mesmo, dos reflexos de tudo isso na estabilidade do corpo
docente e do corpo discente.
III - Se os artigos publicados no jornal “x” se mantiverem dentro deste registo, deste
balanço, eles correspondem ao exercício do direito de informar e de ser informado e esse
direito não deve ser limitado ainda que cause alguns dissabores ou desconforto a quem vê
discutido na praça pública aquilo que preferiria resguardar nos estritos limites do privado.
27-11-2007 - Revista n.º 4293/06 - 7.ª Secção - Pires da Rosa (Relator), Custódio Montes e
Mota Miranda

Abuso de liberdade de imprensa - Liberdade de informação - Liberdade de expressão


- Jornalista - Direito ao bom nome - Direito à honra - Convenção Europeia dos
Direitos do Homem - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - Abuso do direito -
Responsabilidade extracontratual - Danos não patrimoniais
I - No domínio do pensamento, da expressão e da informação, a regra é a liberdade.
II - Esta ideia-base de liberdade encerra, porém, restrições.
III - Na concretização da fronteira entre aquela e estas, deve ser tido em conta o art. 10.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, concomitantemente, deve ser acolhida a
interpretação que dele faz o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
IV - Da jurisprudência que vem sendo firmada por este, resulta uma imposição no modo de
pensar. Não se justifica que se pense, logo à partida, sobre se determinada peça jornalística
ofende alguém. Deverá, antes, partir-se da liberdade de que gozam o ou os respectivos
autores. Só depois, se deve indagar se se justifica - atentos os critérios referenciais do
mesmo tribunal, com inclusão duma margem de apreciação própria por parte dos órgãos
internos de cada um dos Estados signatários da Convenção - a ingerência restritiva no
campo dessa mesma liberdade e a consequente ida para as sanções legais.
V - O que não significa que os casos de ingerência restritiva não assumam intensa
relevância, na perspectiva dos valores essenciais ao ser humano.
VI - Sendo de considerar, na margem de liberdade que assiste aos órgãos de cada um dos
Estados signatários da Convenção e, dentro dela, aos órgãos portugueses, as normas
interessantes do Direito Penal, o art. 484.º do CC e, bem assim, além do mais que ao caso
couber, o constante do Estatuto dos Jornalistas.
VII - Neste quadro, é de considerar ainda situada no campo da liberdade, a referência, em
semanário, relativa a instituição que prossegue fins humanitários de luta contra uma
doença, de que há irregularidades de gestão de cerca de 240 mil contos recebidos de dois
ministérios, que relativamente aos donativos de particulares e empresas a situação é ainda
mais complicada, que os donativos em espécie também são fonte geradora de polémica e
que ainda hoje ninguém sabe do paradeiro de quadros doados à instituição, tudo numa
altura em que se verificavam investigações das autoridades que colocaram diversas
questões de procedimento e funcionamento da mesma instituição.
VIII - Mas já se situam no campo das restrições à mesma liberdade, no capítulo da ofensa à
honra na modalidade do bom nome, as notícias inseridas em duas edições desse semanário,
com muita relevância e fotografia da directora de tal instituição, em que se imputou a esta
vida luxuosa - com referência pormenorizada a propriedades, viagens e desaparecimento
de obras de arte - à custa do património da instituição e à sombra da luta contra a doença
por esta prosseguida, nada se tendo provado a respeito de tal vida, ou de desvio de fundos
ou, ainda, de apropriação de obras de arte.
IX - Na determinação do quantum indemnizatório respectivo, há que atender aos critérios
do art. 494.º, por remissão do art. 496.º, n.º 3, ambos do CC, com ressalva do relativo à
situação económica da lesada que é afastado pelo art. 13.º da CRP.
21
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

X - Sendo ainda de considerar os valores que vêm sendo atribuídos noutros casos, por este
tribunal, havendo, outrossim, vantagem em reparar nos montantes que vêm sendo fixados
pelos tribunais dos países com os quais temos mais estreitas afinidades.
XI - É, assim, adequado o montante compensatório de € 12.500 relativo ao referido em
VIII.
XII - Se dos factos não resultar que o director da publicação teve conhecimento e não se
opôs à publicação das notícias referidas em VIII, não deve ele ser condenado.
XIII - As suas funções poderiam levar a menor exigência de prova sobre o seu
conhecimento prévio das notícias ou até levar a presunções judiciais que a tal conduzissem
- estas, se não afastadas pela resposta negativa a pontos da base instrutória em que se
perguntasse tal matéria e se tivesse respondido não provado - mas tudo isso é alheio aos
poderes deste Supremo Tribunal em recurso de revista.
XIV - O abuso do direito, na modalidade da neutralização do direito, supressio ou
Verwirkung tem os mesmos pressupostos do reportado ao venire contra factum proprium,
substituindo-se o facto próprio pelo decurso do tempo.
XV - Não tem, então, lugar no caso de apenas se ter provado que a autora, até vir a juízo,
quase esgotou o prazo de prescrição relativo ao seu direito.
XVI - Ainda que o autor principal das notícias não seja o autor dos títulos, subtítulos,
textos e aposição das fotografias das primeiras páginas e títulos e subtítulos das páginas
interiores, não deve deixar de ser responsabilizado pela totalidade da indemnização.
07-02-2008 - Revista n.º 4403/07 - 2.ª Secção - João Bernardo (Relator) *, Oliveira Rocha
e Oliveira Vasconcelos

Direito ao bom nome - Abuso de liberdade de imprensa - Danos não patrimoniais


I - O conceito jurídico fundamental de dignidade da pessoa humana, em que cabem os
direitos constitucionais ao bom-nome e à reserva da vida privada, integra uma decisão de
valor válida para toda a ordem jurídica.
II - No apuramento da gravidade do dano e na sua, consequente, concretização para efeitos
indemnizatórios tem o julgador que interpretar e decidir à luz dos preceitos da lei civil
(arts. 70.º, 484.º e 496.º do CC).
III - Apesar de serem ilícitos todos os actos lesivos de direitos fundamentais, os danos
decorrentes dessa violação podem, pela sua irrelevância, não merecer a tutela do direito.
IV - No caso dos autos, embora estejam preenchidos os pressupostos da responsabilidade
civil extracontratual por violação do direito de personalidade ao bom-nome, reputação e
imagem da Autora, em consequência da publicação na capa de revista de que o Réu é
proprietário de título segundo o qual a Autora e um seu amigo “assumem relação”, tal não
implica que os danos - no caso arrelias e incómodos - daí resultantes assumam gravidade
bastante para justificar a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais.
13-03-2008 - Revista n.º 159/08 - 1.ª Secção - Mário Mendes (Relator), Moreira Alves e
Sebastião Povoas (vencido)

Abuso de liberdade de imprensa - Direito à honra - Direito ao bom nome - Direito de


resposta - Responsabilidade extracontratual - Prescrição
I - A notícia da prática (por pessoa, o ora Autor, embora não identificado pelo seu nome)
de um crime de tráfico de estupefacientes, dada pela imprensa, não pode deixar de ser
considerada de inegável interesse público e integrada na função da imprensa.
II - Estando provado que os factos noticiados foram transmitidos ao jornal da Ré pelo
Núcleo de Investigação Criminal da GNR, fonte que merece credibilidade, cumpriu a Ré,

22
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

antes da publicação da notícia, o dever de informação cuidada que lhe é imposto pelo n.º 4
do art. 180.º do Código Penal.
III - Não pode, por isso, qualificar-se a conduta da Ré como constituindo um crime de
difamação cometido através de meio de comunicação social, p. e p. pelos arts. 180.º, n.º 1,
e 183.º, n.º 2, do Código Penal. Mesmo a entender-se que a publicação da notícia integrava
tal tipo de crime, sempre estaria presente uma causa de justificação, que excluiria a
ilicitude.
IV - A posterior omissão do eventual direito de resposta não faz parte do tipo criminal em
análise, nem integra conduta omissiva qualificável como crime. Perante a recusa da Ré em
reconhecer ao Autor direito de resposta, podia este ter recorrido ao tribunal judicial do seu
domicílio ou à Alta Autoridade para a Comunicação Social (no prazo de 10 dias, sob pena
de preclusão), pedindo a publicação da resposta ou rectificação pretendida nos termos
regulados no art. 27.º da Lei de Imprensa, o que não fez.
V - Assim, mesmo que se pudesse considerar que os invocados danos patrimoniais e não
patrimoniais também resultaram da referida omissão da Ré, já prescreveu o direito à
indemnização que o Autor arroga, atento o decurso do prazo de 3 anos (cfr. art. 498.º do
CC), não se podendo aplicar aqui o prazo de prescrição de 5 anos (art. 118.º, n.º 1, al. c),
do Código Penal).
13-03-2008 - Revista n.º 49/08 - 1.ª Secção - Moreira Alves (Relator), Alves Velho e
Moreira Camilo

Liberdade de imprensa - Liberdade de informação - Jornalista - Decisão judicial -


Direito de crítica - Juízo de valor - Direito ao bom nome - Responsabilidade civil -
Ilicitude
I - A honra de uma pessoa é essencialmente o substrato moral e ético da sua existência, e a
consideração social, bom-nome ou reputação são o resultado do julgamento dos outros
acerca dela.
II - A lei traça limites à liberdade de imprensa de forma a salvaguardar o rigor e a
objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade
da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a
ordem democrática.
III - Na interpretação do conteúdo dos relatos jornalísticos, face ao direito à integridade
moral de quem exerce a função jurisdicional, deve considerar-se o contexto circunstancial
que os motivaram, o seu interesse jornalístico e do público, a sujeição das decisões
judiciais à crítica e a distinção entre elas e as pessoas que as proferem.
IV - O relato objectivo da forma insólita do protesto de um cidadão, em greve de fome
junto do tribunal, incluindo a motivação e um outro juízo moderado de valor por ele
afirmados, não extravasa do direito e do dever de informar de quem o escreveu e publicou.
V - Não se verifica o pressuposto da responsabilidade civil ilicitude da acção nos relatos
jornalísticos que, objectiva e contextualizadamente interpretados, não se revelem idóneos a
gerar a ofensa à integridade moral da pessoa que decidiu, embora esta tenha sentido
compreensivamente essa ofensa e quem os escreveu tenha configurado esse sentimento.
27-05-2008 - Revista n.º 1478/08 - 7.ª Secção - Salvador da Costa (Relator) *, Ferreira de
Sousa e Armindo Luís

Direitos de personalidade - Direito à imagem - Princípios de ordem pública


portuguesa - Direitos indisponíveis - Direito à informação - Responsabilidade
extracontratual - Obrigação de indemnizar - Danos não patrimoniais - Condenação
em quantia a liquidar
23
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

I - Provado que os AA. (jogadores de futebol) permitiram, através do Sindicato dos


Jogadores Profissionais de Futebol, que a A. usasse as respectivas imagens numa colecção
de cromos, que editou, destinados a serem colados numa caderneta, também por si criada e
fornecida, e que nesta colecção de cromos, os AA. surgem equipados com as camisolas da
selecção portuguesa ou dos respectivos clubes, esta limitação voluntária do seu direito à
imagem é estabelecida para aquele concreto fim e por um período determinado, não se
vislumbra a violação dos princípios da ordem pública (art. 81.º, n.º 1, do CC), que
fundamentariam a nulidade do contrato de cedência de imagem celebrado entre os ora AA..
II - No caso concreto, não está em questão o direito à informação, constitucionalmente
consagrado, em eventual contraponto com o direito à imagem dos AA. (arts. 37.º e 26.º da
CRP), mas tão só a comercialização directa, pura e simples das fotografias dos AA., sem a
sua autorização.
III - A recorrente, ao publicar e vender os cromos dos AA., não exercitou o seu direito de
informar o público, mas procurou enriquecer à custa dos AA., vendendo as respectivas
fotografias, sem a respectiva autorização, violando ilicitamente o direito destes à imagem
(arts. 70.º e 79.º do CC). Há, sem dúvida, responsabilidade civil extracontratual da
recorrente, pois a publicação dos cromos dos AA. foi ilícita e culposa (art. 483.º do CC).
IV - A violação do direito à imagem dos AA., constitucionalmente consagrado, é, só por si,
suficientemente grave para justificar a indemnização a título de danos morais,
independentemente dos concretos danos causados àqueles.
V - O art. 661.º, n.º 2, do CPC, permite ao tribunal que dê ao lesado uma segunda
oportunidade para provar o montante dos danos, mas não para fazer a prova da sua
ocorrência. Tendo o único quesito que se reportava aos danos patrimoniais sofridos pela A.
merecido a resposta "não provado", impõe-se, nesta parte, absolver a R. do pedido de
indemnização por danos patrimoniais formulado pela A..
01-07-2008 - Revista n.º 1723/08 - 6.ª Secção - Salreta Pereira (Relator), João Camilo e
Fonseca Ramos

Direito ao bom nome - Direito à honra - Abuso de liberdade de imprensa - Segredo de


justiça - Danos não patrimoniais - Cálculo da indemnização
I - Constitui acto ilícito a divulgação de actos desonrosos e criminosos imputados a
determinada pessoa, cujo nome e profissão foi divulgado - sendo assim facilmente
identificada por quem a conhece - , quando a notícia refira como fonte o que consta da
acusação do Ministério Público em processo penal, e a notícia até esteja de acordo com a
acusação mencionada.
II - Só o levantamento do segredo de justiça acompanhado da prolação do despacho de
pronúncia permite a divulgação da identificação das pessoas a que respeita a imputação de
factos, devendo apesar disso o órgão de comunicação social deixar bem expresso que se
trata apenas de pronúncia criminal e não se trata ainda de uma condenação.
III - A repetida divulgação de notícias nas condições indicadas em I., mesmo não tendo o
impacto das primeiras e constituam mera ressonância delas, adquirem um efeito ainda mais
gravoso, demolidor e perverso, uma vez que fazem consolidar na opinião pública as
imputações transmitidas nas informações anteriores.
IV - Vindo a verificar-se que a pessoa indicada na notícia não chegou sequer a ser
pronunciada, a indemnização a atribuir ao lesado a título de danos não patrimoniais, deve
ser determinada em função da equidade, para cuja determinação, entre as mais diversas
causas de índole comum, deve atender-se ao poder económico do grupo onde se insira o
meio de comunicação social, tiragens médias e difusão designadamente no meio social a
que respeite o visado, e potenciais lucros obtidos com notícias desse tipo.
24
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

V - Considera-se ajustada a indemnização civil (pois só dessa aqui se trata) de 25.000,00€


por ofensa à honra e ao bom nome, nas condições acima mencionadas, de um Advogado e
gestor conhecido, quando praticada por um jornal de grande divulgação, e se constata que,
por falta de indícios suficientes, não chega sequer a haver pronúncia.
10-07-2008 - Revista n.º 1824/08 - 1.ª Secção - Mário Cruz (Relator) *, Garcia Calejo e
Mário Mendes

Direitos de personalidade - Direito ao bom nome - Liberdade de informação - Abuso


de liberdade de imprensa - Responsabilidade extracontratual - Exclusão da
responsabilidade
I - O art. 70.º do CC tutela a personalidade, como direito absoluto, de exclusão, na
perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom-
nome, e à honra, que são os aspectos que individualizam o ser humano, moral e
fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis.
II - O art. 484.º do referido diploma legal ao proteger o bom-nome de qualquer pessoa,
singular ou colectiva, tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana - a honra.
III - A afirmação e difusão de factos que sejam idóneos a prejudicar o bom-nome de
qualquer pessoa acarretam responsabilidade civil (extracontratual), gerando obrigação de
indemnizar se verificados os requisitos do art. 483.º, n.º 1, do CC.
IV - O art. 484.º do CC prevê caso particular de antijuridicidade que deve ser articulado
com aquele princípio geral - contido no art. 483.º - não dispensando a cumulativa
verificação dos requisitos da obrigação de indemnizar.
V - Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e
objectividade, que se cumprem com a recolha de informação, com base em averiguações
credíveis que possam ser confrontadas, para testar a genuinidade das fontes, de modo a que
o dever de informar com isenção e objectividade, não seja comprometido por afirmações
levianas ou sensacionalistas, fazendo manchetes que têm, quantas vezes, como único fito o
incremento das vendas e a avidez da curiosidade pública, sem que a isso corresponda
qualquer interesse socialmente relevante.
VI - Se forem violados deveres deontológicos pelos jornalistas, por não actuarem com a
diligência exigível com vista à recolha de informações; se negligentemente, as recolheram
de fonte inidónea e se essas informações e as fontes não foram testadas de modo a
assegurar a sua fidedignidade e objectividade, estamos perante actuação culposa.
VII - Assiste ao Jornal o direito, a função social, de difundir notícias de interesse público,
importando que o faça com verdade e com fundamento, pois, o direito à honra em sentido
lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são tradicionais domínios de direitos
fundamentais em conflito, tendo ambos tutela constitucional pelo que facilmente se entra
no campo da colisão de direitos - art. 335.º do CC - sendo que, em relação a factos
desonrosos, dificilmente se pode configurar a exceptio veritatis a cargo do lesante.
VIII - A prova da actuação diligente na recolha e tratamento da informação - a actuação
segundo as leges artis - incumbe ao jornalista.
IX - No caso em apreço, provou-se que o Jornal procedeu a uma prudente investigação dos
factos, junto da área de residência do Autor, baseada em fontes diversificadas, junto de
vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais que confirmaram a veracidade
dos factos relatados na notícia.
X - Se não se provou que a publicação da notícia causou ao visado dano moral -
sofrimento, psicose, depressão (como foi alegado) - e não havendo negligência do
jornalista na recolha das fontes, nem tendo resultados danos, não existe obrigação de

25
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

indemnizar, por a dignidade do Autor não ter sido afectada, pese embora o desvalor dos
factos noticiados.
30-09-2008 - Revista n.º 2452/08 - 6.ª Secção - Fonseca Ramos (Relator) *, Cardoso de
Albuquerque e Azevedo Ramos

Direito à honra - Direito ao bom nome - Liberdade de expressão - Abuso de liberdade


de imprensa - Obrigação de indemnizar - Concausalidade
I - Perante a publicação pelo Réu de um artigo de opinião em que atribuía a um certo
programa televisivo, em que o Autor - jornalista - intervinha, o objectivo de fazer
“publicidade encoberta” a determinadas marcas de automóveis, e considerando o Autor
que as afirmações aí feitas visavam difamá-lo, imputando-lhe conduta ilegal e
deontologicamente ofensiva do seu bom nome e dignidade, não se pode considerar que
contenha ofensas pessoais ao bom nome do Réu a carta-resposta escrita pelo Autor, em
que, dirigindo-se ao Director do Jornal no qual tinha sido publicado o referido artigo,
afirmou o seguinte: “(...) Apesar de todos os defeitos do sistema judiciário, o regresso à
barbárie continua a ser uma hipótese remota, porque pessoas como tu, eu e a quase
totalidade dos portugueses continuamos a acreditar que o berbequim e o murro não são a
melhor forma de resolver divergências ou conflitos, ou mesmo de responder ao mais
ignóbil dos ataques. (Confesso que é muito mais fácil dominar o ímpeto que me assalta
num primeiro instante de indignação quando o agressor é alguém diminuído pela doença,
idade ou simples incapacidade acidental)”.
II - Não encontra justificação, em termos de necessidade, actualidade e proporcionalidade,
a ulterior resposta do Réu, em textos escritos, publicados mais de uma semana depois, nos
quais dirigiu ao Autor insultos pessoais como “figurinha sem carácter nem princípios,
embusteiro que não tem pudor de enganar quem quer que seja quando o dinheiro lhe
escorrega para os bolsos, capacho, canalha, faz parte dos oportunistas”.
III - No quadro descrito não se pode considerar que ocorre um concurso simultâneo ou
sucessivo de facto praticado pelo lesado que funcione como concausa da produção do
evento danoso, para efeitos de exclusão ou redução da indemnização devida ao Autor (cf.
art. 570.º, n.º 1, do CC). Antes se está perante uma sucessão de actos autónomos e
independentes, actos que, podendo embora integrar uma causalidade naturalística
subjectiva na valoração do Réu, não preenchem o conceito de concurso de facto culposo ou
censurável exigido.
04-11-2008 - Revista n.º 2981/08 - 1.ª Secção - Alves Velho (Relator), Moreira Camilo e
Urbano Dias

Responsabilidade extracontratual - Procedimento criminal - Prazo de prescrição -


Abuso de liberdade de imprensa - Direito ao bom nome - Direito à honra - Morte -
Danos não patrimoniais
I - Para demandar civilmente os responsáveis com base no ilícito penal - no caso, ofensa da
memória de pessoa falecida - impunha-se o recurso à lide criminal, só sendo possível fazê-
lo em separado, e noutro foro, nos casos excepcionais elencados no art. 71.º do CPP.
II - Por isso, enquanto se mantiver pendente essa lide - ainda que em sede de inquérito -
não pode correr a contagem do prazo prescricional do n.º 1 do art. 498.º do CC.
III - As normas conjugadas dos arts. 70.º e 71.º do CC não conferem aos filhos qualquer
direito a serem indemnizados, por ofensas aos direitos de personalidade de pessoas
falecidas.
IV - É, pois, inviável o pedido indemnizatório formulado pelos Autores, tendo como causa
de pedir a ofensa do bom nome de sua mãe, que não se confunde com a violação de um
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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

direito de personalidade próprio (ofensa da sua integridade moral e do seu bom nome, pela
imputação de factos desonrosos à sua mãe).
04-11-2008 - Revista n.º 2342/08 - 1.ª Secção - Paulo Sá (Relator), Mário Cruz e Garcia
Calejo

Responsabilidade extracontratual - Decisão judicial - Liberdade de expressão - Juiz -


Direito à honra - Direito ao bom nome - Danos não patrimoniais - Indemnização
I - A jurisprudência vem definindo alguns guias orientadores que servem de guia à
equidade na compensação dos danos não patrimoniais, cumprindo destacar, entre eles, a
ideia da proporcionalidade, a necessidade de uniformização de critérios e o
reconhecimento do carácter sancionatório da compensação deste tipo de danos.
II - A ideia da proporcionalidade parte do pressuposto que aos danos mais graves
correspondem montantes mais elevados e esses danos mais graves respeitam à maior
dignidade do bem jurídico em causa, havendo que diferenciar entre as lesões corporais que
privem o lesado de funções biológicas importantes de modo irreversível e são fonte de
imenso sofrimento moral até ao fim da vida, e os atentados aos valores do bom nome e
reputação profissional, mas não podendo olvidar-se que a forma como tais atentados
ocorrem, com larga divulgação pública e sobretudo através dos “mass media” justificará,
por vezes, algum descompasso entre os valores atribuídos.
III - O Réu, com o seu insólito protesto contra a decisão judicial proferida pelo magistrado
Autor, permanecendo durante pelo menos 2 meses na praça fronteira ao Tribunal (e não só
aí) onde este último desempenhava funções, anunciando estar em “greve de fome” e
prestando declarações a jornalistas de diferentes órgãos de comunicação social que
ultrapassaram os limites da liberdade de expressão e de crítica das decisões judiciais,
fazendo passar do magistrado em causa uma imagem pública de pessoa conflituosa,
polémica, prepotente e alvo de surda e generalizada contestação, lesou o direito ao bom
nome e reputação do Autor, na perspectiva da função que exerce e do elevado sentido de
exigência ética e de responsabilidade a ela associadas, pelo que incorreu em
responsabilidade civil, sendo adequado fixar a indemnização dos danos em causa no
montante de 20.000€.
09-12-2008 - Revista n.º 2613/08 - 6.ª Secção - Cardoso de Albuquerque (Relator),
Azevedo Ramos e Salazar Casanova

Abuso de liberdade de imprensa - Jornal - Jornalista - Direito ao bom nome - Direito


à honra - Direito a reserva sobre a intimidade - Advogado
I - Não sendo desprestigiante, nem ofensivo da honra, ser advogado no processo “Casa
Pia”, ninguém ficando menorizado, e não sendo também facto desprestigiante ser membro
de qualquer loja maçónica, ainda que a notícia se refira a tal qualidade relativamente ao
autor, e não se imputando a este qualquer concreto facto neste âmbito, e não se imputando
ao autor a escolha de um defensor a arguido de pedofilia organizada, não se vê motivo
substancial que justifique a conclusão da prática, pela ré, de comportamento ofensivo da
honra do autor.
II - Não se conclui, pois, que, pela notícia em causa, tenha havido qualquer violação dos
direitos relativos à integridade moral do autor, ao seu bom nome, à sua reputação, à sua
imagem e à reserva da intimidade da sua vida privada, por inexistência de conteúdo,
objectivamente apreciado, ofensivo de tais direitos, no texto em causa nos autos, publicado
pelo jornal X.
08-01-2009 - Revista n.º 2748/08 - 7.ª Secção - Lázaro Faria (Relator) *, Salvador da Costa
e Ferreira de Sousa
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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

Direitos de personalidade - Liberdade de informação - Abuso de liberdade de


imprensa - Jornalista - Direito ao bom nome - Direito à honra - Direito de resposta -
Responsabilidade extracontratual
I - O direito ao bom nome, à honra e à consideração, como integrante do direito de
personalidade, encontra-se legal e constitucionalmente protegido, sendo a sua violação
susceptível de responsabilidade civil com a consequente condenação do autor a indemnizar
o lesado pelos danos causados (arts. 25.º e 26.º da CRP e 483.º a 484.º do CC).
II - A honra é o conjunto de qualidades necessárias a uma pessoa para ser respeitada no
meio social, sendo a consideração o equivalente social da honra: esta é a essência da
personalidade humana, ao passo que a consideração é o seu aspecto exterior e superficial,
pois provém do juízo em que somos tidos pelos nossos semelhantes.
III - O direito de informação (art. 37.º da CRP) não é absoluto: deve ser exercitado no
respeito da lei e, designadamente, no respeito da integridade moral dos cidadãos (art. 26.º
da CRP).
IV - Porém, actos ou factos há que, mesmo que aptos a ofender a honra e consideração dos
cidadãos, podem/devem ser noticiados pelo jornalista, no exercício do direito/dever de
informar o público em geral, divulgando-os pela imprensa, como função pública.
V - Trata-se de actos ilícitos, ou meramente criticáveis, erros ou vícios, praticados no
âmbito de funções públicas por seus membros.
VI - Impõe-se, contudo, que tais actos sejam verídicos e publicitados em termos precisos e
adequados, de forma a conterem-se nos limites do necessário à sua divulgação: é o
interesse público que legitima a divulgação daqueles factos, o interesse dos cidadãos em
preservar a moralidade de uma função pública.
VII - O direito de resposta consiste essencialmente no poder que assiste a todo aquele que
seja pessoalmente afectado por notícia, comentário ou referência saída num órgão de
comunicação social, de fazer publicar ou transmitir nesse mesmo órgão, gratuitamente, um
texto seu contendo um desmentido, rectificação ou defesa.
VIII - O direito de resposta, como direito constitucionalmente consagrado (art. 37.º, n.º 4,
da CRP), tem como funções a defesa dos direitos de personalidade e a promoção do
contraditório e do pluralismo da comunicação social.
IX - A violação do cumprimento da lei, no que concerne à resposta pelo órgão de
comunicação social ao direito de resposta, não faz incorrer o seu autor em indemnização -
essa violação por réplica não traz qualquer dano para quem tem o direito de responder,
salvo se, em si, constituir uma ofensa aos direitos de personalidade do cidadão que exerceu
o seu direito de resposta.
12-02-2009 - Revista n.º 3569/08 - 7.ª Secção - Mota Miranda (Relator), Alberto Sobrinho
e Maria dos Prazeres Beleza

Responsabilidade civil - Danos não patrimoniais - Direitos de personalidade - Direito


ao bom nome - Liberdade de imprensa - Liberdade de expressão - Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem
I - Havendo ofensa (ou ameaça de ofensa) à personalidade humana, admite a lei, além do
mais, haver lugar a responsabilidade civil do agente infractor, caso se verifiquem os
pressupostos de tal responsabilidade, designadamente a culpa e a verificação do dano,
apresentando-se o dano como condição essencial da responsabilidade, não havendo, pois,
responsabilidade civil sem dano.
II - O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela do direito de
personalidade.
28
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

III - Sendo a honra um bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou
direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que
constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a
Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português.
IV - O nosso Código Civil consagrou a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais,
limitando-os, porém, àqueles que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Gravidade essa que se deve medir por um padrão objectivo e não à luz de factores
subjectivos, embora estes, resultantes de circunstâncias concretas em que a ofensa se
verificou, temperem necessariamente aquele.
V - A inserção absolutamente injustificada (nada podendo justificar o seu carácter não
verdadeiro, conhecido da ré) de uma manchete, seguida de notícia desenvolvida numa
página do jornal, a descrever o autor, homem público, a desempenhar funções de relevo no
Governo do Estado, como estando a ser criminalmente investigado pela prática de um
crime de burla ou de corrupção, é, em si mesma, potencialmente lesiva do seu direito à
honra e ao bom nome, sendo, assim, susceptível de, em abstracto, gerar obrigação de
indemnizar.
VI - A liberdade de imprensa, implicando a correspondente liberdade de expressão e
criação dos jornalistas, situa-se, de pleno, no campo dos direitos fundamentais (art. 38.º da
CRP), decorrendo os limites a tal liberdade da lei - fundamental e ordinária - de forma,
além do mais, a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos
ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos.
VII - É dever fundamental do jornalista respeitar escrupulosamente o rigor e a
objectividade da informação, devendo comprovar os factos, ouvir as partes interessadas,
constituindo, face ao respectivo código deontológico, falta grave a imputação de factos a
alguém sem provas.
VIII - O TEDH tem vindo a firmar jurisprudência no sentido de, sob reserva do n.º 2 do art.
10.º da CEDH, a liberdade de expressão ser válida não só para as informações
consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que contradizem,
chocam ou ofendem. Estando, porém, o exercício de tal liberdade sujeito a restrições e
sanções. Reconhecendo o próprio TEDH a existência de uma margem de actuação a cada
Estado, nela se atendendo às estatuições internas sobre a honra e o bom nome e, desde
logo, ao art. 484.º do CC.
IX - É exigível que a imprensa, no exercício da sua função pública, não publique
imputações que atinjam a honra das pessoas e que se saibam inexactas, cuja inexactidão
não tenha podido comprovar ou sobre a qual se não tenha podido informar
convenientemente.
12-03-2009 - Revista n.º 2972/08 - 2.ª Secção - Serra Baptista (Relator) *, Santos
Bernardino e Bettencourt de Faria

Direitos de personalidade - Liberdade de informação - Abuso de liberdade de


imprensa - Jornalista - Direito ao bom nome - Direito à honra - Responsabilidade
extracontratual - Prazo de prescrição
I - O direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual prescreve no prazo
de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe
compete (art. 498.º, n.º 1, do CC).
II - Tal prazo interrompe-se com a citação do réu (art. 323.º do CC).
III - Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo
mais longo, é este o prazo de prescrição aplicável (art. 498.º, n.º 3, do CC).

29
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

IV - Para haver ilícito penal é necessário que exista uma conduta tipificada imputável e
reprovável ao agente.
V - Não revelando os factos provados o preenchimento dos elementos subjectivos do crime
imputado aos réus - ofensa à honra, cometido através de imprensa, previsto e punido nos
arts. 180.º, 183.º, n.º 2, e 184.º do CP e 9.º e 30.º da Lei n.º 2/99, de 13-01 -, não pode o
autor beneficiar do prazo de prescrição de cinco anos a que cabe tal ilícito penal (art. 118.º,
n.º 1, al. c), do CP).
VI - O direito de informação (art. 37.º da CRP) não é absoluto: deve ser exercitado no
respeito da lei e, designadamente, no respeito da integridade moral dos cidadãos (art. 26.º
da CRP).
VII - Porém, actos ou factos há que, mesmo que aptos a ofender a honra e consideração
dos cidadãos, podem/devem ser noticiados pelo jornalista, no exercício do direito/dever de
informar o público em geral, divulgando-os pela imprensa, como função pública.
VIII - Trata-se de actos ilícitos, ou meramente criticáveis, erros ou vícios, praticados no
âmbito de funções públicas por seus membros.
IX - Impõe-se, contudo, que tais actos sejam verídicos e publicitados em termos precisos e
adequados, de forma a conterem-se nos limites do necessário à sua divulgação: é o
interesse público que legitima a divulgação daqueles factos, o interesse dos cidadãos em
preservar a moralidade de uma função pública.
X - Não merece censura a conduta da ré jornalista que elabora um escrito narrativo - sem
exageros ou expressões sensacionalistas e sem quaisquer juízos de valor - do que foi
requerido pelas partes num processo que não se encontra em segredo de justiça e no qual
foi suscitado o incidente de recusa do juiz-desembargador relator, pessoa que é conhecida
devido a algumas decisões judiciais.
31-03-2009 - Revista n.º 656/09 - 2.ª Secção - Mota Miranda (Relator), Alberto Sobrinho e
Maria dos Prazeres Beleza

Liberdade de imprensa - Direitos de personalidade - Direito ao bom nome -


Reputação
I - Se a informação passa pelo assegurar da livre possibilidade de expressão e confronto
das diversas correntes de opinião, não se pode olvidar que essa possibilidade não pode
beliscar os direitos de personalidade de cada cidadão. Como ressalta dos arts. 25.º e 26.º da
Constituição, toda a pessoa goza do direito à integridade moral e física, e ao bom nome e
reputação. Para no n.º 1 do art. 70.º do CC, ao versar sobre a tutela geral da personalidade,
se dispor que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa
à sua personalidade física ou moral. Este normativo pressupõe a existência de direitos
fundamentais, consagrados constitucionalmente, e de entre eles o direito ao bom nome e
reputação. Ainda que constituindo o direito à liberdade de expressão um pilar essencial do
Estado de Direito democrático, o certo é que esse direito não pode ser exercido com ofensa
de outros direitos, designadamente o direito ao bom nome e reputação, direito de igual
dignidade e idêntica valência normativa.
II - Assumindo estes dois direitos consagração e protecção constitucional, é difícil
estabelecer uma ordem hierárquica entre eles, pelo menos em abstracto. Essa ordem deve
antes fazer-se sopesando as circunstâncias concretas de cada caso, e com base em
princípios de adequação e proporcionalidade em ordem à salvaguarda de cada um dos
direitos.
III - Decorrendo dos factos noticiados uma clara ideia de um comportamento incoerente do
autor, porque contraditório com aquilo que apregoa, de um oportunista, que não hesitou em
aceitar uma reforma ancorada apenas em alguns meses de trabalho, de mais um
30
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

privilegiado, ao receber uma pensão de elevado valor, no fundo, de ser um político em tudo
idêntico aos outros que se aproveitam de toda a ordem de benesses mesmo que moralmente
inaceitáveis, a sua publicação viola o bom nome e reputação do autor, conduta que reveste
um comportamento anti-jurídico.
18-06-2009 - Revista n.º 159/09.1YFLSB - 7.ª Secção - Alberto Sobrinho (Relator) *,
Maria dos Prazeres Beleza e Lázaro Faria

Jornalista - Pessoa singular - Liberdade de imprensa - Liberdade de informação -


Direito ao bom nome - Direitos fundamentais - Colisão de direitos - Prova da verdade
dos factos - Ofensa do crédito ou do bom nome - Boa fé
I - A lei ordinária, na salvaguarda do princípio constitucional do direito de todos os
cidadãos ao bom nome e reputação e à imagem, consagrado no art. 26.º da CRP, protege-os
contra toda a ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, nos
termos amplos definidos no art. 70.º do CC. Essa protecção, pela via meramente civil, é
exercida, normalmente, através da pertinente acção de indemnização no âmbito da
responsabilidade civil extracontratual e de harmonia com os pressupostos previstos no art.
483.º, n.º 1, do CC, dispondo o art. 484.º que responde pelos danos causados, quem afirmar
ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ao bom nome de qualquer pessoa,
singular ou colectiva.
II - A definição dos limites do direito à liberdade de imprensa, quando conflituem com
outros direitos fundamentais e com igual dignidade, como o direito de qualquer pessoa à
integridade moral e ao bom nome e reputação, obedece a determinados princípios
consagrados na jurisprudência do STJ, do TC, bem como da jurisprudência do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem. Entre estes princípios são de salientar o cumprimento, na
divulgação das informações que possam atingir o crédito e bom nome de qualquer cidadão,
das regras deontológicas que regem a profissão de jornalista, designadamente procedendo
de boa fé na sua recolha e na aferição da credibilidade respectiva antes da sua publicação.
III - Uma dessas regras deontológicas é a que vincula o jornalista a comprovar os factos
que relate, ouvindo as partes com interesses atendíveis. Ou seja, as empresas que
desenvolvem a actividade jornalística e os jornalistas que nela operam devem ser rigorosos
e objectivos na averiguação da veracidade dos factos ou acontecimentos relatados,
sobretudo quando sejam susceptíveis de afectar direitos de personalidade.
IV - Embora a liberdade de imprensa deva respeitar no seu exercício o direito fundamental
do bom nome e da reputação, o jornalista não está impedido de noticiar factos verdadeiros
ou que tenha como verdadeiros, em séria convicção, desde que justificados pelo interesse
público na sua divulgação, podendo este direito prevalecer sobre aqueles desde que
adequadamente exercido.
V - O conceito de “verdade jornalística” não tem que se traduzir numa verdade absoluta,
pois, o que importa em definitivo é que a imprensa não publique imputações que atinjam a
honra das pessoas e que saiba inexactas, cuja exactidão não tenha podido comprovar ou
sobre a qual não tenha podido informar-se convenientemente. Mas esta comprovação não
pode revestir-se das exigências da própria comprovação judiciária, antes e apenas utilizar
as regras derivadas das leges artis dos jornalistas, das suas concepções profissionais sérias,
significando isto que ele terá de utilizar fontes de informação fidedignas, de forma a testar
e controlar a veracidade dos factos.
VI - A densificação do conceito de boa fé na divulgação, pela imprensa, de notícias de
factos não verdadeiros é de crucial relevo para ajuizar se os réus (jornalistas) dela poderão
beneficiar, em termos de excluir a ilicitude duma conduta passível de violação do bom

31
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

nome e crédito do autor, enquanto imputando a este factos que não se provou ter cometido
e em si lesivos da sua reputação, revestindo alguma complexidade.
VII - De acordo com alguma doutrina, transportável para a responsabilidade civil, essa boa
fé é composta dos seguintes elementos fundamentais: 1) os factos inverídicos têm de ser
verosímeis, ou seja, têm de ser portadores de uma aparência de veracidade susceptível de
provocar a adesão do homem normal e não só do informador; 2) o informador terá de
demonstrar que procedeu a uma averiguação séria, segundo as regras e os cuidados que as
concretas circunstâncias do caso razoavelmente exigiam, provando se necessário que a
fonte era idónea ou que chegou a confrontar as informações com várias fontes; 3) o
informador terá de demonstrar que agiu com moderação nos seus propósitos, ou seja, que
se conteve dentro dos limites da necessidade de informar e dos fins ético-sociais do direito
de informar, evitando o sensacionalismo ou os pormenores mais ofensivos ou com pouco
valor informativo; 4) o informador deverá demonstrar a ausência de animosidade pessoal
em relação ao ofendido a fim de que a informação inverídica não possa considerar-se
ataque pessoal.
17-09-2009 - Revista n.º 832/06.6TLSBTS.S1 - 6.ª Secção - Cardoso de Albuquerque
(Relator), Salazar Casanova e Azevedo Ramos

Abuso de liberdade de imprensa - Jornal - Jornalista - Direito à informação - Direito


ao bom nome - Direito à imagem - Direito a reserva sobre a intimidade - Órgãos de
comunicação social - Legitimidade - Colisão de direitos - Direito à indemnização -
Danos não patrimoniais
I - Em acção cível para ressarcimento dos danos provocados por factos cometidos através
da imprensa, os responsáveis, de acordo com o n.º 2 do art. 29.º da Lei n.º 2/99, de 13-01,
são, para além do autor do escrito ou imagem, a empresa jornalística e não o director do
periódico ou o seu substituto legal, mesmo que se prove que tiveram conhecimento prévio
da publicação do escrito ou imagem em causa.
II - A expressão «empresas de comunicação social» utiliza-se para referir, sinteticamente,
as pessoas singulares ou colectivas (qualquer que seja a sua forma ou tipo) que exercem,
em nome e por conta própria e de um modo organizado, uma actividade de recolha,
tratamento e divulgação de informações destinadas ao público, através da imprensa, do
cinema, da televisão e de outros meios análogos.
III - Por aplicação do disposto no citado art. 335.º do CC, há que entender que a liberdade
de expressão não possa (e não deva) atentar contra os direitos à reserva da intimidade da
vida privada e à imagem, salvo quando estiver em causa um interesse público que se
sobreponha àqueles e a divulgação seja feita de forma a não exceder o necessário a tal
divulgação.
IV - O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com
honestidade.
V - O dano constitui a razão de ser do instituto da responsabilidade civil, seja ela
contratual, seja extracontratual.
VI - Ora, também se perfila como igualmente relevante o princípio da salvaguarda do bom
nome e reputação individuais, à imagem e reserva da vida privada e familiar - art. 26.º, n.º
1, da mesma Lei Fundamental.
17-12-2009 - Revista n.º 4822/06.0TVLSB.S1 - 2.ª Secção - Oliveira Rocha (Relator) *,
Oliveira Vasconcelos e Serra Baptista

Liberdade de imprensa - Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Direito


ao bom nome - Colisão de direitos - Direitos fundamentais
32
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

I - Os direitos (e as liberdades) de expressão e informação, e de imprensa,


constitucionalmente consagrados, não são direitos inteiramente absolutos, vivendo por si e
para si como se fossem únicos.
II - Há outros direitos constitucionalmente assegurados e é no confronto entre todos que
tem que definir-se, em concreto, a medida do absoluto de cada qual e a relativização
necessária ao respeito pela dimensão essencial de todos e de cada um.
III - A liberdade de imprensa não é uma criação pela criação, mas uma exigência em
ordem à defesa do interesse público e à consolidação da sociedade democrática.
IV - No confronto entre os direitos à liberdade de expressão e informação, exercidos
através da imprensa, e outros direitos constitucionalmente consagrados, maxime o direito à
integridade pessoal e o direito ao bom nome e reputação, não pode deixar de reflectir-se na
verdadeira dimensão do exercício desses direitos - se há um qualquer interesse público a
prosseguir, haverá eventualmente que privilegiar o direito à informação e a liberdade de
expressão em detrimento de outros direitos individuais; se o interesse de quem informa se
situa no puro domínio do privado, sem qualquer dimensão pública, o direito à integridade
pessoal e ao bom nome e reputação não pode ser sacrificado para salvaguarda de uma
egoística liberdade de expressão e de informação.
14-01-2010 - Revista n.º 1869/06.0TVPRT.S1 - 7.ª Secção - Pires da Rosa (Relator) *,
Custódio Montes e Alberto Sobrinho

Jornalista - Liberdade de imprensa - Direitos de personalidade - Direito à honra -


Direito ao bom-nome - Direito de crítica
I - Um dos limites à liberdade de informar, que não é por isso um direito absoluto, é a
salvaguarda do direito ao bom-nome. Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres
éticos, deontológicos, de rigor e objectividade.
II - Assiste aos media o direito, a função social, de difundir notícias e emitir opiniões
críticas ou não, importando que o façam com respeito pela verdade e pelos direitos
intangíveis de outrem, como são os direitos de personalidade.
III - O direito à honra em sentido lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são
tradicionais domínios de conflito.
IV - O sentido crítico dos leitores que seguem o fenómeno desportivo, mormente as
discussões em torno do futebol, é exacerbado por questões de toda a ordem, já que o
constante debate na imprensa escrita e falada, sobredimensiona a importância de questões
que, numa sociedade onde os valores cívicos deveriam ser a preocupação maior dos
cidadãos, são relegados para segundo plano pela constante evidência de acontecimentos
distractivos, sejam os da imprensa desportiva, cor-de-rosa, ou quejanda.
V - A crítica tem como limite o direito dos visados, mas não deixa de ser legítima se for
acutilante, acerada, desde que não injuriosa, porque quantas vezes aí estão o estilo de quem
escreve.
VI - No âmbito do desporto e do futebol os actores do palco mediático nem sempre
convivem de modo são com a crítica, quantas vezes por culpa dos media que se dividem
entre apoiantes de uns e antagonistas de outros, não mantendo a equidistância postulada
por uma actuação objectiva, com respeito pelos valores da ética jornalística.
VII - Não lidando bem com as críticas do autor, o réu pôs em causa a idoneidade pessoal e
profissional daquele, afirmando “que era um opinador pago para dizer mal, diariamente,
referenciando o seu nome e afirmando que se pagasse jantares, whiskeys e charutos seria
uma pessoa muito bem vista”. O autor foi, publicamente, apelidado pelo réu, de jagunço
que, notoriamente, é um termo injurioso. Segundo o “Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa”, jagunço significa - “valentão que serve de guarda-costas a fazendeiros”,
33
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

“homem que serve de guarda-costas a fazendeiros e caciques”, “capanga”, “guarda-


costas”, “pistoleiro contratado para matar”, […] pessoa torpe, reles, que vive de
expedientes”.
VIII - Qualquer leitor, medianamente avisado, colherá destas afirmações a ideia que o
autor, como jornalista, é um mau profissional, dado a influências em função de pagamentos
e favores, o que é demolidor para o seu trabalho que deve ser isento, e para a sua imagem
de pessoa que deve ser incorruptível e séria na suas apreciações, e também o lesa como
cidadão que preza a sua honra.
IX - Criticar implica censurar, a censura veiculada nos media só deixa de ser legítima
como manifestação da liberdade individual quando exprime antijuricidade objectiva,
violando direitos que são personalíssimos e que afectam, mais ou menos duradouramente
segundo a memória dos homens, bens que devem ser preservados como são os direitos
aqui em causa, à honra, ao bom nome e ao prestígio social.
20-01-2010 - Revista n.º 1839/06.9TVLSB.L1.S1 - 6.ª Secção - Fonseca Ramos (Relator)
*, Cardoso de Albuquerque e Salazar Casanova

Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Direitos de personalidade -


Direito ao bom nome - Direito à honra - Conflito de direitos - Ofensa do crédito ou do
bom nome - Jornalista - Televisão - Boa fé
I - A definição dos limites do direito à liberdade de expressão por via da comunicação
social, quando conflituem com outros direitos fundamentais e com igual dignidade, como o
direito de qualquer pessoa à integridade moral e ao bom nome e reputação, obedece a
determinados princípios consagrados na jurisprudência deste Tribunal, do TC, bem como
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, e sempre dependendo da análise das
circunstâncias do caso.
II - Entre estes princípios são de salientar, na divulgação de informações que possam
atingir o crédito e bom nome de qualquer cidadão, o cumprimento das regras deontológicas
que regem a profissão de jornalista, designadamente procedendo de boa fé na sua recolha e
na aferição de credibilidade respectiva antes da sua publicação.
III - Uma dessas regras deontológicas é a que vincula o jornalista a comprovar os factos
que relate, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso, como resulta até do n.º 1
do denominado Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses, por estes aprovado em
04-05-1993. Ou seja, as empresas que desenvolvem a actividade jornalística e os
jornalistas que nelas operam, devem ser rigorosos e objectivos na averiguação da
veracidade dos factos ou acontecimentos relatados, sobretudo quando sejam susceptíveis
de afectar direitos de personalidade.
IV - Em caso de colisão de direitos, o sacrifício de um dos bens só pode admitir-se pela
verificação de uma causa justificativa, e essa causa justificativa deve respeitar o princípio
da proporcionalidade, necessidade e adequação do meio.
V - A boa fé, nesse sentido objectivo, deve considerar-se afastada sempre que o autor da
notícia não realiza, podendo fazê-lo, todas as diligências tendentes à sua comprovação e se
demonstre não corresponderem tais factos à verdade, sendo noticiados em consequência
dessa falta de diligência.
VI - Embora a liberdade de imprensa deva respeitar, no seu exercício, o direito
fundamental do bom nome e da reputação, o jornalista não está impedido de noticiar factos
verdadeiros ou que tenha como verdadeiros em séria convicção, desde que justificados
pelo interesse público na sua divulgação, podendo este direito prevalecer sobre aquele,
desde que adequadamente exercido, nomeadamente mediante exercício de um esforço de

34
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

objectividade com recurso a fontes de informação fidedignas por forma a testar e controlar
a veracidade dos factos.
27-01-2010 - Revista n.º 48/04.6TBVNG.S1 - 6.ª Secção - Silva Salazar (Relator), Sousa
Leite e Salreta Pereira

Liberdade de imprensa - Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Direito


ao bom nome - Juiz - Danos não patrimoniais
I - A protecção do art. 496.º do CC abrange apenas os danos que, pela sua especial
gravidade, mereçam a tutela do direito.
II - A gravidade dos danos não deve - não pode - ser apreciada por uma sensibilidade
colocada no patamar de qualificação com a qual o ofendido se apresenta, pessoal e
profissionalmente.
III - Essa especial qualificação, em contraponto com um universo mais comum de outros
profissionais (de outras profissões), não pode conduzir a uma sensibilidade sensível mas a
uma sensibilidade tolerante, que tenha em conta as condições concretas do exercício
profissional donde proveio a ofensa.
IV - Os juízes, os tribunais - sem prejuízo de lutarem por uma formação especializada dos
profissionais que com eles trabalham por forma a que possa ser cumprido com a preceito o
dever de informar - não podem ser particularmente sensíveis a alguns destemperos ou
inexactidões na publicitação da sua actividade.
25-02-2010 - Revista n.º 1016/06.9TVLSB.S1 - 7.ª Secção - Pires da Rosa (Relator) *,
Custódio Montes, Alberto Sobrinho, Maria dos Prazeres Beleza e Lopes do Rego

Direito ao bom nome - Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Ilicitude -


Dano - Equidade - Especulação - Jornalista
I - Quer o direito ao bom-nome e à reputação quer a liberdade de expressão e informação
têm guarida constitucional e na lei ordinária.
II - Relativamente ao direito ao bom-nome e à reputação, a Constituição não estabelece
qualquer restrição, o que não acontece em relação à liberdade de expressão e informação
em que as infracções cometidas no seu exercício ficam submetidas ao princípio geral de
direito criminal.
III - A ilicitude reporta-se apenas ao facto e não também ao seu efeito (danoso), podendo
haver factos danosos que sejam indiferentes à ordem jurídica ou por ela tolerados, se o
bom senso e a equidade do julgador assim o concluir, no caso concreto.
IV - A dialéctica concorrencial entre a política e o jornalismo justifica que se entre em
alguma especulação em certos casos, como são os que representam para a população em
geral grande repercussão e sensibilidade.
V - Não é ilícita a notícia que, fora um ou outro pormenor, é verdadeira e está escrita com
sobriedade, havendo a preocupação, nas questões mais controversas, em ouvir as partes
interessadas.
04-03-2010 - Revista n.º 677/09.1YFLSB - 7.ª Secção - Custódio Montes (Relator) *,
Alberto Sobrinho e Maria dos Prazeres Beleza

Direito ao bom nome - Liberdade de imprensa - Direitos fundamentais - Colisão de


direitos - Lei de imprensa - Jornalista - Responsabilidade extracontratual - Causas de
exclusão da ilicitude - Danos não patrimoniais - Junção de documento
I - Não basta alegar que os documentos, que se pretende juntar com as alegações do
recurso de apelação, se referem a factos notórios para afastar as regras relativas à junção de
documentos, só possível nos termos do art. 706.º do CPC.
35
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

II - Para que a divulgação de um facto respeitante a determinada pessoa possa vir a gerar a
obrigação de indemnizar por danos não patrimoniais é necessário que seja apta a provocar
danos graves.
III - A gravidade é aferida objectivamente, em função de um padrão médio de
sensibilidade.
IV - Tratando-se de um facto divulgado através da comunicação social, há que ponderar o
impacto negativo que essa divulgação terá, atento o destinatário médio da notícia.
V - A divulgação do facto, não verdadeiro, da associação com um caso de tráfico de droga
de quem, por profissão, está reconhecidamente envolvido na investigação criminal e, no
momento da publicação da notícia, tutela os órgãos de polícia criminal, assume especial
gravidade.
VI - Nesse contexto, não pode ser invocada a qualidade de personalidade pública do visado
para diminuir ou excluir a gravidade da ofensa.
VII - Só se torna necessário resolver um conflito entre o direito fundamental ao bom nome
e reputação e o direito fundamental de informar se, no caso concreto, a conduta
potencialmente lesiva do titular deste último corresponder efectivamente ao exercício desse
direito.
VIII - A verdade de uma concreta notícia não pode ser aferida em função de cada um dos
factos isoladamente relatados, com maior ou menor correspondência com a realidade, mas
da mensagem que com ela se quis transmitir ao público.
25-03-2010 - Revista n.º 576/05.6TVLSB.S1 - 7.ª Secção - Maria dos Prazeres Beleza
(Relator) *, Lopes do Rego e Barreto Nunes

Jornalista - Juiz - Órgãos de comunicação social - Ofensa do crédito ou do bom nome


- Responsabilidade extracontratual - Pressupostos - Texto de opinião - Causas de
exclusão da culpa
I - Numa acção inserida na responsabilidade civil aquiliana ou extracontratual, a nível
probatório, como elementos constitutivos do direito à indemnização, é ao autor, lesado, que
compete a prova de todos os pressupostos, inclusive a prova da culpa, salvo se houver
presunção legal em contrário - arts. 483.º, 487.º e 342.º, n.º 1, do CC; ao réu, por sua vez,
compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado - art.
342.º, n.º 2, do CC.
II - No caso em apreço, como em nenhuma das partes dos textos publicados no jornal havia
qualquer referência ao autor ou algo que o identificasse como um dos juízes
desembargadores subscritores do acórdão, não estão preenchidos todos os pressupostos
para a responsabilidade civil extracontratual em que assentava a acção; não está provado o
nexo de causalidade entre o facto ilícito (divulgação de um texto que não correspondia à
verdade dos factos) com as lesões concretas sofridas pelo autor.
III - Os danos que o autor refere como tendo por si sofridos (profundo desgosto por ver
prejudicada a sua reputação e imagem pessoal), resultaram da publicação de textos que
noutros meios de comunicação social o apresentaram como um dos subscritores do
acórdão; só que, sublinha-se, foram outros órgãos de comunicação social que fizeram essa
revelação, pelo que a relação directa dos danos com o acto ilícito está ausente nos textos
em apreciação.
IV - Aos artigos de opinião/comentário não pode exigir-se o grau de rigor na investigação
dos factos em que os comentários ou opiniões assentam, pois mais do que a notícia - já
conhecida - o que pretendem é levar o leitor à reflexão e lançar o debate sobre factos já
conhecidos.

36
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

V - Se cada opinante ou comentarista tivesse de fazer a sua própria investigação,


provavelmente teria de ficar sempre calado ou só em muito poucos casos poderia escrever.
É certo que o próprio comentador tem de ter contenção e colocar dúvidas quando a fonte
em que se assenta não é credível. Mas, sendo credível a fonte, é demasiado exigir que
tenha de desconfiar da eventual autenticidade e veracidade desta.
VI - Os desmentidos de notícias, quando provenientes de agências credenciadas são casos
raros, não porque só raramente se fazem, mas porque são normalmente fiáveis as notícias
que vão sendo comunicadas.
VII - A avaliação da diligência deve ser feita em função da actuação que em abstracto
tomaria o bonus pater familiae, colocado perante as circunstâncias concretas de cada caso -
art. 487.º, n.º 2, do CC. O bonus pater familiae será aqui o jornalista/comentador ou
jornalista/opinante prudente, que, em órgão de comunicação social, teria assumido naquela
situação, ou seja, pensando que fosse verdadeira a base sobre a qual trabalhava e não tendo
razões para desconfiar da sua veracidade, por ser a sua fonte uma entidade credenciada.
VIII - A nível psicológico os réus actuaram com culpa na sua forma mais leve (culpa
inconsciente), mas perante um quadro que se lhes apresentou como real, sem terem razões
objectivas para duvidar que assim não fosse ou não pudesse plausivelmente ser. Afigura-
se-nos que mesmo que se aceitasse o nexo causal entre o ilícito e o dano, estaríamos
perante uma causa de escusa, exonerante de responsabilidade.
21-04-2010 - Revista n.º 6160/05.7TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção - Mário Cruz (Relator),
Garcia Calejo e Helder Roque (declaração de voto)

Direitos de personalidade - Direito ao bom nome - Direito à honra - Liberdade de


expressão - Liberdade de informação - Liberdade de imprensa - Televisão - Colisão
de direitos - Jornalista - Ilicitude - Culpa - Ónus da prova - Danos não patrimoniais
I - Os princípios fundamentais da liberdade de expressão e do direito de informação têm
dignidade constitucional; por isso, os direitos em colisão com a liberdade de expressão só
podem prevalecer na medida em que a Constituição os acolha e valorize.
II - Perfila-se como igualmente relevante o princípio da salvaguarda do bom nome e
reputação individuais, da imagem e reserva da vida privada e familiar.
III - Ocorrendo situações em que os direitos mencionados entrem em conflito, há que
entender que a liberdade de expressão não pode (e não deve) atentar contra os direitos de
personalidade, salvo quando estiver em causa um interesse público que se sobreponha
àqueles e a divulgação seja feita de forma a não exceder o necessário a tal divulgação.
IV - O princípio norteador da informação jornalística deve ser o de causar o menor mal
possível, pelo que, quando se ultrapassam os limites da necessidade ou quando os
processos não são, de per si, injuriosos, a conduta é ilegítima.
V - Cabe ao autor da notícia ou escrito o ónus da prova relativamente à verdade dos factos
bem como à boa fé na prestação da notícia.
VI - Revelando os factos provados que as notícias dos jornais nacionais de 29 e 30 de Abril
de 2004 e do jornal da tarde deste último dia (todos da mesma estação televisiva), foram
transmitidas sem previamente ouvir o visado e sem correspondência com a realidade e
transformaram-se em tema de conversa em todo o País, criando em muitas pessoas um
clima de desconfiança relativamente àquele, dando-lhe a imagem de cidadão pouco
escrupuloso e desonesto nos meios onde se move, sendo certo que os réus representaram
que a publicitação dos factos relatados e as considerações expendidas nos programas
televisivos, acerca do autor, produziam um efeito nocivo para a personalidade deste,
realidade com a qual se conformaram, deve considerar-se que a informação veiculada pela
estação televisiva em causa é ofensiva dos direitos do autor à honra, dignidade e imagem,
37
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

ultrapassando, manifestamente, os limites a que a liberdade de informação está sujeita,


sendo certo que entre estes está a verdade, a qual se mede pela objectividade, pela
seriedade das fontes, pela isenção e pela imparcialidade dos jornalistas, evitando
manipulações que a deontologia profissional, antes da lei do Estado, condena.
VII - Tais notícias constituem, por isso, um facto que é ilícito.
VIII - Demonstrando ainda os mesmos factos que quem deu rosto à notícia divulgada foi a
ré X, que também era directora-adjunta de informação e pivot do serviço noticioso Jornal
Nacional (20h00), e não tendo esta logrado provar que actuou com o grau de diligência
normalmente adequado a evitar o evento produzido ou que não teve condições de o
observar no contexto da notícia reportada, deve considerar-se que referida a ré agiu com
culpa.
IX - Evidenciando ainda a mesma factualidade que: do teor das notícias em causa, que
foram vistas e ouvidas por cerca de 2.000.000 de pessoas, decorria, para o telespectador
comum, que o autor estava implicado em actos qualificáveis como crime e que, por isso,
estava a ser objecto de inquérito pela Polícia Judiciária, que chegara a realizar buscas em
sua casa, para tentar apurar factos concernentes a essa implicação; dando tais notícias, do
autor, uma imagem de cidadão pouco escrupuloso e desonesto, nos meios em que se tem
movido e que se move; a imagem dada, do autor, através das mesmas, diminuiu o seu
crédito, como homem e como deputado; nos dias subsequentes à transmissão das notícias,
o autor foi contactado por familiares, amigos, colegas de Partido e membros de diversos
grupos parlamentares, que se mostravam incomodados e chocados com o conteúdo
daquelas; as declarações constantes das mencionadas notícias foram tema de conversa em
todo o país e criaram, em muitas pessoas, um clima de desconfiança em relação ao autor;
por efeito da difusão de tais notícias, o autor sofreu desgosto, revolta, indignação,
humilhação e angústia; em virtude da emissão de tais notícias, o autor ficou vexado e
ofendido no seu “pundonor” e no bom nome e reputação; a emissão das notícias e o
respectivo impacto provocou no autor perturbações que se prolongaram no tempo; deve
concluir-se que tais factos constituem, no seu conjunto, muito mais do que meros
incómodos sem relevância jurídica: são, na verdadeira acepção da palavra, lesões - e lesões
suficientemente graves para merecerem a protecção do direito - de aspectos essenciais dos
direitos de personalidade atingidos.
X - Em função do exposto, reputa-se de justa e equitativa a quantia de € 40 000 destinada
ao ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
29-04-2010 - Revista n.º 5583/04.3TBOER.S1 - 2.ª Secção - Oliveira Rocha (Relator),
Oliveira Vasconcelos e Serra Baptista

Direitos de personalidade - Direito ao bom nome - Direito à honra - Liberdade de


expressão - Liberdade de informação - Liberdade de imprensa - Colisão de direitos -
Jornal - Jornalista - Ilicitude - Culpa - Presunções judiciais
I - O responsável civil por factos lesivos do direito ao bom nome e reputação de outrem,
nos termos previstos nos arts. 483.º, n.º 1, e 484.º do CC, cometidos por meio de imprensa,
é, em princípio, o autor da imagem ou do escrito nela inserido; as empresas jornalísticas
respondem solidariamente, quando o escrito tenha sido inserido na edição do jornal com o
conhecimento e sem oposição do director do jornal ou por quem então o substitua (art.
29.º, n.º 2, da Lei n.º 2/99, de 13-01).
II - O director pode, também ele, ser responsabilizado, desde que demonstrada a sua culpa
na publicação do escrito, por omissão dos deveres impostos por lei de obstar a essa
publicação, enquanto susceptível de acarretar responsabilidade, por violação do direito ao

38
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

bom nome de outrem e, logo, ultrapassando os limites da liberdade de informação


constitucionalmente consagrada no art. 38.º da CRP.
III - O tribunal pode inferir o conhecimento e aprovação pelo director da publicação
periódica de notícia nele inserida, por lhe caber a responsabilidade última pela
determinação do conteúdo respectivo, a menos que se provasse que nada teve que ver com
ela, por quaisquer ponderosas razões circunstanciais.
IV - Incumbe ao director de uma publicação periódica o dever especial de obstar à
publicação de escritos ou imagens que possam integrar um facto ilícito gerador de
responsabilidade civil.
V - No caso vertente, a notícia publicada pelo jornal semanário em causa, tido como
referência e com larga tiragem, de que o autor, na sequência da sua detenção em Maputo,
Moçambique, confessara o aliciamento de quatro homens para praticarem um crime de
homicídio de uma sua ex-amante, notícia a que se deu grande destaque, com título
apelativo, na última página do principal caderno do jornal, reportando-se a um facto falso,
não tendo sequer havido queixa da ofendida, traduz, por si mesmo, um ilícito, enquanto
gravemente lesivo do bom nome, imagem e reputação do autor, pessoa com notoriedade na
comunidade portuguesa, antigo jornalista e director de uma revista de informação
económica.
VI - Não houve exercício adequado e rigoroso do direito de informação sobre o caso e de
controlo desta no jornal, se o escrito, de autoria não assumida, foi enviado por um
correspondente do jornal em Maputo e foi dada ordem de publicação, sem outro critério
que não o de uma confiança pessoal no autor do escrito, não obstante a dificuldade óbvia
de acesso a um processo sob investigação, não tendo sido feitas averiguações sobre a
credibilidade das fontes invocadas ou tentado ouvir familiares do visado ou o seu
advogado, dado que o próprio se encontrava detido em Moçambique.
VII - É lícita a presunção, à luz das regras de experiência e da normalidade das coisas, do
conhecimento prévio pelo director da publicação do teor do artigo, atento o destaque que
mereceu e que punha em causa o bom nome, a imagem pública e a reputação do autor, com
base numa ficcionada e inexistente confissão do crime de homicídio tentado que
determinara a sua detenção, apelidada de “golpe” no título com recorte sensacionalista para
o efeito escolhido, pelo que deve ser confirmada a condenação do director do jornal e da
empresa proprietária e editora do mesmo.
21-09-2010 - Revista n.º 4226/06.5TVLSB.L1.S1 - 6.ª Secção - Cardoso de Albuquerque
(Relator) - Salazar Casanova e Azevedo Ramos

Direitos de personalidade - Liberdade de expressão - Direito ao bom nome - Direito à


honra - Colisão de direitos - Município - Assembleia da República
I - As palavras têm de ser medidas e pesadas no contexto em que foram proferidas e não
fora dele.
II - As Assembleias Municipais são uma réplica minimalista de debates partidários da
Assembleia da República. São areópagos por excelência, onde o vigor das discussões e da
confrontação dos casos e das ideias são vividos de forma apaixonada, na perspectiva de se
fazer valer aquilo que cada deputado (representante do povo) pensa que esteja ao serviço
da lei e do bem comum, e onde se denunciam comportamentos desviantes ou porventura
menos correctos de órgãos ou agentes que seria suposto estarem ao serviço desses valores.
III - Os deputados municipais, como representantes dos cidadãos eleitores da respectiva
circunscrição, têm o dever de questionar e o direito de ficarem esclarecidos sobre a
actuação dos órgãos do Município, designadamente do seu Presidente, quando no exercício
da res publica, se lhes afigurarem ou sejam vistos aos olhos dos munícipes como ilegais ou
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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

de cariz duvidoso. Mas os visados têm o direito de se justificarem perante a mesma


Assembleia sobre os actos que lhes sejam pessoalmente atribuídos ou em que tenham
participado, quando nela estejam presentes.
IV - É normal que a pessoa visada ou aquela que dá a cara pelo órgão que dirige e cuja
actuação seja posta em causa, não consiga despegar-se de uma certa paixão ou emotividade
e que, no calor dos esclarecimentos ou da defesa, tenha de trazer a terreiro alguns factos
que, em circunstâncias normais, não teria necessidade de referir ou revelar.
V - Os caminhos das discussões não são sempre absolutamente lineares ou limpos, sendo
também absolutamente normal que, no calor delas, possa haver alguns destemperos, por
palavras ou gestos, susceptíveis de ferir a melopeia da boa educação ou das conveniências
sociais de terceiros, pessoas visadas mais sensíveis.
VI - Para bem da res publica, não devem castrar-se à partida essas discussões, em órgãos
vitais para a democracia, instituindo ou exigindo uma auto-censura tão rígida, feita
“palavra a palavra”, que corresponda a uma mordaça face ao muito que haja a dizer-se ou
esclarecer-se, pois, colocada a situação de exigência a esse nível, corre-se o grave risco de
nem tudo se poder levar ao conhecimento da Assembleia para que o assunto fique devida e
cabalmente esclarecido.
VII - Por isso, nesses ambientes, devem tomar-se eventuais destemperos como questões
menores.
21-09-2010 - Revista n.º 254/06.9TBFZZ.C1.S1 - 1.ª Secção - Mário Cruz (Relator) -
Garcia Calejo e Helder Roque

Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Direitos de personalidade -


Direito ao bom nome - Direito à honra - Conflito de direitos - Jornalista - Televisão -
Responsabilidade extracontratual - Danos não patrimoniais
I - A actividade dos jornalistas está submetida a regras apertadas impostas pela lei
ordinária, tendentes a, por um lado, permitir o exercício pleno do direito constitucional de
liberdade de expressão e de informação e, por outro lado, compatibilizar esse exercício
com o respeito dos direitos de personalidade dos cidadãos.
II - Essas regras constam quer da Lei da Televisão (aprovada pela Lei n.º 31-A/98, de 14-
07, em vigor à data dos factos), quer da Lei de Imprensa (aprovada pela Lei n.º 2/99, de
13-01), bem como do Estatuto dos Jornalistas (aprovado pela Lei n.º 1/99, de 13-01, em
vigor à data dos factos) e do Código Deontológico (aprovado pela Assembleia Geral do
Sindicato dos Jornalistas em 04-05-1993).
III - Destas normas resulta que os jornalistas estão sujeitos aos deveres seguintes: exercer a
actividade com respeito pela ética profissional, informando com rigor e isenção; abster-se
de formular acusações sem provas; respeitar a privacidade de acordo com a natureza do
caso e a condição das pessoas; não falsear ou encenar situações.
IV - Da necessidade legal de, por um lado, permitir o exercício do direito de liberdade de
expressão e de informação e de, por outro, possibilitar o respeito do direito de
personalidade e, sobretudo, do direito à honra e ao bom nome, nele integrado, pode resultar
um conflito de direitos, para cuja solução têm sido apontados diversos critérios como o de
procurar o melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes, por forma a atribuir a
cada um desses direitos a máxima eficácia possível, o da proporcionalidade ou o da
supremacia do direito de maior relevância social.
V - É pacificamente aceite que o direito à honra e ao bom nome tem, em regra, supremacia
sobre o direito de liberdade de expressão e de informar.

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

VI - Se o autor não logrou provar o factos necessários para o preenchimento da culpa, da


ilicitude e do dano, requisitos legais de que depende a responsabilidade civil
extracontratual das rés, improcede o pedido de indemnização formulado.
VII - É certo que se provou que o autor, ao tomar conhecimento do programa televisivo em
causa, se sentiu ofendido e triste. Porém, estando em apreço a ressarcibilidade de um dano
não patrimonial, há que concluir pela gravidade do mesmo dano aferido objectivamente
(art. 496.º, n.º 1, do CC), gravidade essa que não resulta dos factos provados, não podendo
o tribunal relevar uma sensibilidade excessivamente apurada.
19-10-2010 - Revista n.º 8215/04.6TBOER.L1.S1 - 6.ª Secção - João Camilo (Relator) -
Cardoso de Albuquerque e Salazar Casanova

Matéria de facto - Quesitos - Factos conclusivos - Direitos de personalidade - Direito


ao bom nome - Direito à honra - Dever de respeito - Liberdade de expressão - Direitos
fundamentais - Colisão de direitos - Campanha eleitoral
I - É conclusivo o quesito no qual se pergunta “o réu, ao proferir este tipo de afirmações
[num artigo publicado num concreto jornal, com o título de “Delinquente”, e no qual
afirmou que “a delinquente socialista X fez mais uma das suas peixeiradas” e “numa
atitude de insolência colonial atreveu-se a vir a este território autónomo perurar e salivar
sobre a nossa estratégia de desenvolvimento, que não é a deles, os rectangulares”], quis
ofender a honra e consideração da autora?”.
II - O direito à honra e consideração tem como contraponto o direito de liberdade de
expressão, estando ambos consagrados na Constituição (arts. 1.º, 26.º, n.º 1, 37.º, n.ºs 1 e
2), na lei ordinária (70.º, n.º 1, e 484.º do CC) e no direito internacional a que o Estado
português tem de atender (Declaração Universal dos Direitos do Homem e Convenção
Europeia dos Direitos do Homem).
III - A honra, em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto síntese
do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos
demais valores pessoais por ele adquiridos.
IV - Estes valores impõem-se às pessoas por via de um dever geral de respeito e de
abstenção de ofensas, ou mesmo de ameaças de ofensas à honra alheia.
V - O carácter ofensivo de certas palavras tem de ser visto num contexto situacional, para
além de que se o significante daquelas permanece intocado, o seu significado varia
consoante os contextos.
VI - A liberdade de expressão é um dos pilares fundamentais de toda a sociedade
democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e da realização individual.
VII - Daí que as excepções a que se encontra sujeita devam ser objecto de interpretação
estrita e qualquer restrição estabelecida de modo convincente.
VIII - A liberdade de expressão não tem como limite absoluto o bom nome e a reputação
de terceiros quando se trata de questões de interesse geral.
IX - Na luta político-partidária, nomeadamente em períodos de pré-campanha ou
campanha eleitoral, é recorrente a utilização de linguagem mais descabida, agressiva e
indelicada, sendo esse um risco do confronto político-eleitoral.
X - Resultando dos factos provados que o réu, ao apodar a autora de “delinquente
socialista”, não a visou como pessoa, mas antes a sua vertente política, é de considerar que
tal expressão não é ofensiva do bom nome e da honra da visada.
XI - Do mesmo modo, as expressões “peixeiradas”, “insolência colonial”, “perurar” e
“salivar”, referidas em I, não têm carácter estigmatizante da honra e consideração pessoais
nem consubstanciam um juízo de valor negativo referente à autora.

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

09-12-2010 - Revista n.º 734/05.3TCFUN.L1.S1 - 2.ª Secção - Abílio Vasconcelos


(Relator) - Bettencourt de Faria e Pereira da Silva

Responsabilidade extracontratual - Direitos de personalidade - Direito à imagem -


Direito a reserva sobre a intimidade - Protecção da vida privada - Vida privada -
Reserva da vida privada - Liberdade de expressão - Liberdade de imprensa -
Publicação
I - A lesão da personalidade é, em princípio, ilícita.
II - Para a apreciação do grau de ilicitude deve ser ajuizado, em concreto, o modo como for
feita a publicação da imagem ou a revelação dos factos da vida privada.
III - O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela da privacidade e
do pudor e do direito da personalidade.
IV - Só deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem aquilo que,
razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião das pessoas de bem, deverá considerar-se
ofensivo daqueles valores individuais.
V - A dignidade das pessoas exige que lhe seja reconhecido um espaço de privacidade em
que possam estar à vontade, ao abrigo da curiosidade dos outros.
VI - A reserva da privacidade deve ser considerada a regra e não a excepção.
VII - O direito à privacidade só pode ser licitamente agredido quando – e só quando – um
interesse público superior o exija, em termos tais que o contrário possa ser causa de danos
gravíssimos para a comunidade;
VIII - O direito à privacidade colide frequentemente com o direito à liberdade de
expressão, principalmente com da liberdade de imprensa.
IX - Quando o interesse público o imponha, o direito à honra e à privacidade não podem
impedir a revelação daquilo que for estritamente necessário e apenas no que for
estritamente necessário.
X - Qualquer pessoa tem o direito de exigir que o conhecimento da sua situação de
presidiária seja apenas conhecida pelas pessoas que necessariamente e inevitavelmente
tomaram contacto com ela como actores de factos relacionados com a prisão e não seja
publicitada para além desse círculo de pessoas.
13-01-2011 - Revista n.º 153/06.4TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção - Oliveira Vasconcelos
(Relator) * - Serra Baptista e Álvaro Rodrigues

Associação desportiva - Clube de futebol - Sociedade anónima - Sociedade anónima


desportiva - Interpretação da declaração negocial - Contrato de prestação de serviços
- Rescisão do contrato - Acordo - Direito à honra - Liberdade de expressão - Cláusula
penal - Redução
I - Pese embora as “SAD” serem sociedades anónimas, o seu escopo e o seu processo de
formação, a partir de clubes desportivos, que são meras associações de direito privado,
conferem ao novo ente uma especial conformação, não sendo dissociáveis o clube e a
SAD; de outro modo, não se compreenderiam aspectos essenciais dos requisitos das SAD,
mormente, a menção obrigatória do nome do clube, a irreversibilidade da opção de
constituição do clube em SAD, sob pena de não poder participar em competições
desportivas de carácter profissional e o facto de as acções do clube no capital da SAD
serem privilegiadas.
II - Se Autor e Rés, Clube Desportivo e SAD, acordaram, extrajudicialmente, no contexto
da rescisão de um contrato de prestação de serviço, que aquelas entidades se empenhariam
em evitar que colaboradores seus, publicamente, fizessem afirmações que pusessem em
causa a honorabilidade e a competência profissional do Autor, esse acordo é violado se um
42
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

jogador de futebol profissional, ao serviço daquelas entidades, devendo ser considerado


colaborador das Rés, publica um livro com a concordância do responsável máximo do
Clube e da SAD, onde põe em causa o bom nome e a competência profissional daquele.
III - A cláusula penal, livremente negociada, prevista para a violação daquele acordo, tem
cariz compensatório e um fim punitivo, que só será ilegítimo se houver uma chocante
desproporção, entre os danos que previsivelmente o infractor causar com a sua conduta e a
indemnização prevista na cláusula para os ressarcir.
IV - O devedor, que pretender a redução da cláusula penal com fundamento na sua
excessividade manifesta, carece de alegar e provar os factos pertinentes, não sendo a
questão de conhecimento oficioso pelo Tribunal.
V - Tendo em conta o intuito compulsório da cláusula penal e o interesse do lesado, bem
como o dano efectivo num bem da personalidade, valor imaterial violado, e o elevado grau
de culpa dos lesantes, com ampla difusão mediática de afirmações atentatórias da honra e
profissionalismo do Autor, não se afigura excessiva, no circunstancialismo do caso, a
convencionada cláusula penal de € 200 000.
22-02-2011 - Revista n.º 4922/07.0TVLSB.L1.S1 - 6.ª Secção - Fonseca Ramos (Relator) *
- Salazar Casanova e Fernandes do Vale

Jornal - Meio de comunicação social - Liberdade de expressão - Liberdade de


imprensa - Direito ao bom nome - Direito à honra - Conflito de direitos - Direitos
fundamentais - Princípio da proporcionalidade - Lei de Imprensa - Responsabilidade
extracontratual - Culpa
I - Em qualquer notícia é necessário distinguir o facto da imputação.
II - A liberdade de imprensa é o pressuposto da formação de uma opinião pública livre,
indispensável ao pluralismo político no Estado democrático.
III - A solução de um conflito entre o direito à liberdade de expressão através da imprensa
e o direito à honra, ao bom nome e reputação há-de assentar na ponderação dos bens e
direitos em conflito, buscando reduzir ao máximo a eventual afectação de cada um para
tentar obter a concordância prática e optimizar a eficácia de ambos, já que todos decorrem
da dignidade da pessoa humana.
IV - Esta ponderação concretiza-se através da convocação para a solução do problema do
princípio da proporcionalidade nos três sub-princípios em que este se desdobra: adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
V - O problema não é de hierarquia de bens ou normas (ambos são direitos constitucionais
situados ao mesmo nível), mas de equilíbrio de direitos fundamentais.
VI - O critério normativo que deve presidir à ponderação dos bens, para solucionar o
problema do conflito entre liberdade de expressão e o direito à honra, bom nome e
reputação, é o que consta do art. 3.º da Lei da Imprensa, no qual se apontam os limites
internos e externos dessa mesma liberdade.
VII - Deve ter-se como cumprido o dever de verdade quando o jornalista realizou
previamente um trabalho de averiguação dos factos sobre os quais versa a informação e a
referida indagação se realizou com a diligência exigível a um profissional de informação.
VIII - A publicação de notícias e comentários sobre factos que envolvam pessoas que
exerçam cargos públicos e, como tal notoriamente conhecidas, relacionadas com o
exercício do respectivo cargo (interesse público), representa o exercício legítimo do direito
de liberdade de expressão e informação através da imprensa e, como tal, insusceptível de
desencadear responsabilidade civil, a menos que se demonstre que o respectivo autor tinha
consciência da sua falsidade ou actuou com negligência grosseira quanto a saber se eram
ou não falsos (falta de preocupação com a verdade).
43
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

24-05-2011 - Revista n.º 4957/04.4TVPRT.S1 - 2.ª Secção - Fernando Bento (Relator) -


João Bernardo e João Trindade

Nulidade de acórdão - Omissão de pronúncia - Direito à honra - Liberdade de


expressão - Liberdade de informação - Liberdade de imprensa - Convenção Europeia
dos Direitos do Homem - Hierarquia das leis
I - A nulidade prevista na primeira parte do art. 668.º, n.º 1, al. d), do CPC só tem lugar
quando o juiz deixe de conhecer, em absoluto, de questões que devesse apreciar.
II - A CRP tutela, quer o direito à honra, quer o direito à liberdade de expressão e
informação.
III - Sem estabelecer hierarquia entre eles.
IV - Por força dos arts. 8.º e 16.º, n.º 1, da Lei Fundamental, a CEDH situa-se em plano
superior ao das leis ordinárias internas.
V - Esta não tutela, no plano geral, o direito à honra, a ele se reportando apenas como
possível integrante das restrições à liberdade de expressão enunciadas no art. 10.º, n.º 2.
VI - O que leva o intérprete a ter seguir o caminho consistente, não em partir da tutela do
direito à honra e considerar os casos de eventuais ressalvas, mas em partir do direito à livre
expressão e averiguar se têm lugar algumas das excepções deste n.º 2.
VII - Este caminho sai reforçado pelo texto da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia.
VIII - Na interpretação daquele art. 10.º é de acatar, pelos tribunais internos, a orientação
jurisprudencial que, muito reiteradamente, o TEDH vem seguindo e que se caracteriza, no
essencial, pelo seguinte: - a liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais
do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do
desenvolvimento de cada pessoa; - as excepções constantes deste n.º 2 devem ser
interpretadas de modo restrito; - tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou
outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade; -
os políticos e outras figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das
ideias que professam, quer ainda pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela
comunicação social, seja pelo cidadão comum – quanto à comunicação social, o Tribunal
vem reiterando mesmo a expressão “cão de guarda” – devem ser mais tolerantes a críticas
do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de
intensidade destas; - na aferição dos limites da liberdade de expressão, os Estados dispõem
de alguma margem de apreciação, que pode, no entanto, ser sindicada pelo próprio TEDH.
IX - Neste quadro – considerando que o autor era Presidente da Câmara, que se tratou de
obras públicas e que, nos documentos alusivos a estas obras, se passou da designação de
“Obras de recuperação e beneficiação do edifício dos Paços do Concelho” para
“Reabilitação do Centro Histórico ..............- Restauro e Renovação do Edifício do Antigo
Hospital do Espírito Santo” – ainda é de considerar integradas no círculo de liberdade de
imprensa as seguintes expressões, proferidas em entrevista a um jornal local: “O processo
antes designado como da “Câmara Municipal...........” passou, a dada altura, a chamar-se
“Hospital do Espírito Santo.” Sabe porquê? Porque a União Europeia (UE) não subsidia
obras em Câmaras. Quero dizer que, à boa maneira portuguesa, vigarista, para se conseguir
subsídios da UE, alterou-se o nome do processo. O Estado português, a CMB, o arquitecto
Teles e AA defraudaram a UE em milhares de euros. Isto é uma trafulhice. E se calhar na
UE nem sequer sabem o que pagaram”.
X - O que não significa que tais expressões sejam de avalizar.

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

XI - Cabendo a cada um, quer na vertente de produção da comunicação social, quer na sua
vertente de consumo, ajuizar sobre a inaceitabilidade de muito do que se diz ou do modo
como se diz.
30-06-2011 - Revista n.º 1272/04.7TBBCL.G1.S1 - 2.ª Secção - João Bernardo (Relator) *
- Oliveira Vasconcelos e Serra Baptista

Meio de comunicação social - Jornalista - Direitos de personalidade - Direito à honra


- Direito ao bom nome - Liberdade de expressão - Liberdade de informação -
Liberdade de imprensa - Conflito de direitos - Danos não patrimoniais - Lesado -
Direito à indemnização - Pessoa colectiva
I - Os arts. 26.º, n.º 1, da CRP, e 70.º do CC, visam proteger os indivíduos contra qualquer
ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade moral, assegurando-lhes a
possibilidade de requerer as providências necessárias às circunstâncias do caso para evitar
a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida e garantindo-lhes o
recurso aos mecanismos da responsabilidade civil.
II - A honra configura-se como um direito fundamental do desenvolvimento da
personalidade do indivíduo e estabelece-se como um valor axial e inderrogável da
dimensão social-pessoal do homem numa determinado comunidade histórico-socialmente
situada.
III - A par dos direitos de personalidade, de honra, bom nome e reputação, a Constituição
consagra o direito à livre expressão de opinião e pensamento e de difusão de ideias – cf.
art. 37.º, n.º 1, da CRP. Será ocioso debater a ideia de que uma sociedade democrática só
mantém incólume a sua matriz de pluralidade e diversão de ideias se incentivar e promover
a livre troca de ideias e o intercâmbio de opiniões.
IV - Numa sociedade pluralista e democrática surpreende-se uma tensão latente e
permanente entre a salvaguarda do direito à honra e ao bom nome e reputação e o direito
de informar e dar a conhecer a todos os cidadãos o que de mais relevante e com interesse
para a formação de uma consciência cívica esclarecida acontece num determinado meio
social.
V - A gravidade dos danos não patrimoniais, a que alude o n.º 1 do art. 496.º do CC, deve
ser aferida objectivamente e de acordo com um padrão de valorações ético-culturais aceite
numa determinada comunidade histórica.
VI - Na determinação do quantitativo para ressarcimento por danos não patrimoniais
resultante da lesão de um direito subjectivo e absoluto de personalidade, através da
comunicação social, maxime de uma publicação com uma razoável e impressiva difusão,
devem ter-se em conta alguns vectores orientadores, ainda que meramente enunciadores:
1.º) a veracidade ou falsidade da notícia; 2.º) a difusão da notícia e/ou a possibilidade de
conhecimento que a notícia teve no meio social, em geral e em concreto, frequentado pelo
visado; 3.º) o destaque gráfico e/ou simbólico conferido à notícia, 4.º) o tratamento
jornalístico dado à notícia e o conteúdo objectivo da mesma; 5.º) o estatuto social do
visado; 6.º) a projecção que a notícia, potencialmente, teve no meio social em que o lesado
se movimenta, tanto no plano pessoal, como profissional; 7.º) as apreensões concretas
pressentidas e, objectivamente, projectadas na esfera pessoal e familiar do lesado.
VII - O desânimo e a falta de iniciativa provocada pelo estado de espírito de um sócio
gerente, momentaneamente, quebrado na sua iniciativa por condicionalismos determinados
por uma notícia, desde que não se tenham repercutido, de forma indelével e inarredável, na
imagem da empresa, não podem servir como factor indutor de um ressarcimento por danos
não patrimoniais desta.

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

06-07-2011 - Revista n.º 2619/05.4TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção - Gabriel Catarino (Relator)


- Sebastião Póvoas e Moreira Alves

Direito à honra - Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Liberdade de


imprensa - Meio de comunicação social - Jornal - Direito à informação - Colisão de
direitos - Conflito de interesses
I - Numa sociedade livre, democrática e plural, a existência duma opinião pública atenta e
esclarecida é essencial à vitalidade da democracia, sendo verdade que para a formação de
tal opinião pública a liberdade de expressão e de informação constitui elemento nuclear.
II - O direito à honra, ao bom nome e reputação constitui igualmente suporte essencial de
uma sociedade livre e democrática.
III - De acordo com o disposto nos arts 18.º, 25.º, 26.º, 37.º e 38.º da CRP, em abstracto,
não deve estabelecer-se uma qualquer relação de hierarquia entre o direito de liberdade de
expressão e o direito à honra e ao bom nome.
IV - Quando o exercício do direito de informar, maxime pelos órgãos da comunicação
social, e o direito à honra, ao bom nome do visado pela notícia conflituem, deve prevalecer
em cada caso o interesse que se mostre de maior relevo, salvaguardando o núcleo essencial
de cada um dos direitos em presença.
V - Numa sociedade livre e democrática há um inquestionável interesse legítimo na notícia
que revela a existência de uma investigação do Ministério Público sobre eventuais práticas
de natureza penal num serviço público por responsável público.
VI - Há interesse público legítimo na notícia que dá conta de eventual irregular exercício
de funções por parte de médico que na qualidade de agente de um instituto público, entre
outras actividades, certifica o óbito das pessoas.
VII - Se um jornal revela existência da investigação criminal relativa a determinado
cidadão deve noticiar o seu encerramento, designadamente quando não é formulada
acusação e o processo é arquivado.
15-09-2011 - Revista n.º 2634/06.0TBPTM.E1.S1 - 7.ª Secção - Sérgio Poças (Relator) * -
Granja da Fonseca e Silva Gonçalves

Direitos de personalidade - Liberdade de expressão - Liberdade de informação -


Direito ao bom nome - Colisão de direitos - Lei de Imprensa - Jornalista - Jornal -
Responsabilidade extracontratual
I - A liberdade de expressão de pensamento constitui um dos pilares fundamentais do
Estado de Direito, com sede de previsão no art. 26.º, n.º 1, da CRP, que o reconhece
expressamente de forma programática remetendo no n.º 2 para a lei ordinária a forma como
o exercício do mesmo deverá processar-se.
II - Estando em causa a prática de ofensas ao bom nome cometidos através da imprensa
regem as disposições da Lei n.º 2/99, de 13-01, que aprovou a Lei de Imprensa.
III - Para além de ali se consagrar a liberdade de imprensa apenas com os limites que
decorrem da Constituição e da lei, de molde a encontrar o ponto de equilíbrio entre o
direito de informar e o de garantir o bom nome e a defesa do interesse público e a ordem
democrática (direitos de igual hierarquia constitucional) – art. 3.º da Lei de Imprensa – nos
arts. 29.º e segs. estabelece-se formas de responsabilidade, tipificando criminal e
contravencionalmente condutas ao arrepio do estatuído.
IV - Provado que a directora do jornal onde foi publicada uma notícia, susceptível de gerar
a responsabilidade civil, a desconhecia, não pode aquela nem a empresa ser
responsabilizada pela mesma, mas tão só, e eventualmente, a jornalista que a escreveu.
V - Perfilando-se no seio do ordenamento jurídico os dois direitos supra aludidos em III
46
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

com igual relevo constitucional, haverá pois que conciliar tanto quanto possível, ainda que
por vezes tal passe, de harmonia com as circunstâncias do caso concreto, em valorizar um
deles em detrimento do outro, com o fito de encontrar a solução justa.
13-10-2011 - Revista n.º 2729/08.6.TBLSB.L1.S1 - 2.ª Secção - Távora Victor (Relator) *
- Sérgio Poças e Granja da Fonseca

Recurso de agravo na segunda instância - Admissibilidade - Recurso para o Supremo


Tribunal de Justiça - Nulidade de acórdão - Falta de fundamentação - Matéria de
facto - Nulidade da decisão - Prova testemunhal - Prova documental - Excesso de
pronúncia - Condenação ultra petitum - Pedido - Poderes do Supremo Tribunal de
Justiça - Abuso do direito - Venire contra factum proprium - Liberdade de imprensa
- Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Direito ao bom nome - Colisão
de direitos - Direitos fundamentais - Responsabilidade extracontratual - Danos não
patrimoniais - Cálculo da indemnização
I - Não é admissível recurso de agravo em 2.ª instância de decisão proferida pela Relação,
por violação de lei de processo, salvo se o recorrente especificar, no requerimento de
interposição, que o recurso tem uma função de uniformização de jurisprudência, visando
solucionar o conflito de arestos por ele especificado.
II - Não é nulo por falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto o acórdão
da Relação que específica as razões pelas quais manteve a decisão da matéria de facto
proferida em 1.ª instância, debruçando-se especificadamente sobre a prova testemunhal e
documental.
III - A nulidade a que alude o art. 668.º, n.º 1, al. e), do CPC, não se confunde com a errada
aplicação do direito.
IV - Só nos estritos limites em que há violação de normas de direito probatório substantivo,
definidos pelos arts. 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 3, do CPC, é que em recurso de revista se pode
questionar a decisão sobre a matéria de facto.
V - O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium só se verifica se a
conduta do titular do direito for adequada a criar a convicção, fundada, na contra parte, de
que nunca o exerceriam.
VI - Os direitos (e as liberdades) de expressão e informação, constitucionalmente
consagrados, encontram-se em igual valência normativa com outros direitos, com o direito
fundamental à honra.
VII - É à luz do princípio da ponderação de interesses, que, em concreto, tem que definir-
se a medida e o direito que deve prevalecer.
VIII - O direito de informar deve prevalecer quando, no caso concreto, resulta que a notícia
(i) é dada na prossecução de interesse público legítimo, (ii) é verdadeira ou, não há razões
objectivas para em boa fé não a considerar como tal; e (iii) se mantém dentro dos limites
informativos.
IX - Há razões objectivas para em boa fé a considerar como verdadeira determinada notícia
se a notícia é dada após se proceder a investigação, recolher informação e diversificação de
fontes para apurar da sua veracidade.
X - Mantém-se nos limites informativos a notícia que é necessária para uma informação
clara e isenta, relatando factos com relevância para o esclarecimento do público.
XI - Empresa jornalística, a que alude o n.º 2 do art. 29.º da Lei da Imprensa (Lei n.º 2 /99,
de 13/01), é a expressão utilizada para referir, sinteticamente, as pessoas singulares ou
colectivas que exercem, em nome e por conta própria, e de um modo organizado, uma
actividade de recolha, tratamento e divulgação de informações destinadas ao público.

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

XII - A imputação de plágio, ainda que sob a forma de suspeita, constitui ofensa grave à
honra, bom-nome e reputação do autor, sendo a ultima ofensa que pode ser feita a um
escritor, pelos efeitos destruidores que encerra.
XIII - Provando-se que o artigo contendo a imputação referida em XII: (i) foi publicado em
revista com tiragem de 34 000 exemplares semanais; (ii) deixou o autor magoado,
revoltado, desanimado, amargurado; (iii) atingiu o autor no seu prestígio pessoal e
profissional; (iv) que o 1.º réu é jornalista, tendo escrito a notícia; que o 2.º réu é director
da revista; e que o 3.º réu é seu proprietário, é adequada a condenação solidária destes na
indemnização, pelos danos não patrimoniais sofridos, de € 65 000, fixada pelas instâncias.
XIV - Se, além do referido em XIII, se provou que o 1.º réu tem um blogue, que assina,
onde colocou um post-it com o referido artigo, que ocasionou vários comentários ao
mesmo, referindo-se ao autor como “vergonhoso”, é ainda equitativa a sua condenação na
indemnização de € 5 000, fixada pelas instâncias.
19-01-2012 - Revista n.º 414/07.5TVLSB.L1.S1 - 7.ª Secção - Sérgio Poças (Relator) -
Pires da Rosa e Silva Gonçalves

Responsabilidade extracontratual - Direitos de personalidade - Direito ao bom nome -


Direito à honra - Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Liberdade de
imprensa - Colisão de direitos - Abuso de liberdade de imprensa - Jornal - Jornalista
- Cargo de direcção - Deveres funcionais - Conhecimento - Ilicitude - Culpa - Dolo -
Negligência - Presunções legais - Ónus da prova - Causas de exclusão da ilicitude -
Matéria de direito - Matéria de facto - Danos não patrimoniais
I - Impondo-se ao director da publicação o dever, de acordo com as competências definidas
por lei, de conhecer e decidir, antecipadamente, sobre a determinação do seu conteúdo, em
ordem a impedir a divulgação de escritos ou imagens susceptíveis de constituir um facto
ilícito gerador de responsabilidade civil, a imputação ao mesmo do conteúdo que resulta da
própria titularidade e exercício da função e dos inerentes deveres de conhecimento, integra
uma presunção legal, porque a lei considera certo um facto quando se não faça prova em
contrário.
II - Esta presunção legal dispensa o lesado do ónus da prova do facto a que a presunção
conduz, isto é, a demonstração da culpa do agente, admitindo-se, porém, que o onerado a
ilida, mediante prova em contrário, dada a natureza tantum iuris da presunção em causa.
III - O art. 29.º, n.º 2, da Lei da Imprensa, não determina, como condição da efectivação da
responsabilidade da proprietária da publicação, que o director da mesma seja demandado,
conjuntamente com aquela, por inexistir uma situação de litisconsórcio necessário passivo,
relativamente ao director da empresa, independentemente de se ter provado que o escrito
tinha ou não sido publicado com o conhecimento e sem a oposição do mesmo.
IV - A questão de saber se houve ofensa à honra, se há ou não ilicitude, há-de ser decidida
pelo julgador de direito, pelo menos, em parte, em face dos factos provados relativos à
imputação, não devendo ser provada através de um juízo de valor a efectuar pelo julgador
de facto.
V - O direito ao bom-nome e reputação consiste, essencialmente, no direito a não ser
ofendido ou lesado na honra, dignidade ou consideração social, mediante imputação feita
por outrem.
VI - A tutela civil da honra abrange a globalidade deste bem, não se limitando ao
sancionamento das condutas dolosas, compreendendo, igualmente, as condutas meramente
negligentes, sendo indiferente que o facto ou opinião informativa sejam ou não
verdadeiros, desde que os mesmos sejam susceptíveis, dadas as circunstâncias do caso, de

48
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida [prejuízo do
bom-nome], no meio social em que vive ou exerce a sua actividade.
VII - Mas deve exigir-se a negligência grosseira, consubstanciada na violação grave dos
deveres mais elementares, concretamente, impostos e que regem o exercício da profissão
de informar o público.
VIII - O direito do público a ser informado tem como parâmetro a utilidade social da
notícia, ou seja, deve restringir-se aos factos e acontecimentos que sejam relevantes para a
vivência social, sendo certo que a importância social da notícia deve ser integrada pela
verdade do facto noticiado ou pela seriedade do artigo de opinião, o que pressupõe a
utilização pelo jornalista de fontes de informação fidedignas, tanto quanto possível,
diversificadas, por forma a testar e controlar a veracidade dos factos.
IX - As afirmações de facto ou são verdadeiras ou falsas, pressupondo a indispensabilidade
da sua prova, ao contrário do que sucede com os juízos de valor, que não podendo
encontrar-se, totalmente, desprovidos de base factual, já não impõem, em princípio, a
averiguação da sua verdade ou falsidade, ou do seu escoramento emocional ou racional,
desde que a génese subjectiva do juízo de valor seja, imediatamente, perceptível junto dos
destinatários.
X - São pressupostos da justificação das ofensas à honra, cometidas através da imprensa,
causa de exclusão da ilicitude da conduta, a exigência de que o agente, ao fazer a
imputação, tenha actuado, dentro da sua função pública de formação da opinião publica e
visando o seu cumprimento [a], utilizando o meio, concretamente, menos danoso para a
honra do atingido [b], com respeito pela verdade das imputações [c], em que,
fundadamente, acreditou [d], depois de ter cumprido o dever de verificação da verdade da
imputação [e].
XI - O dever de comprovação não corresponde ao facto histórico narrado, nem à sua
comprovação cientifica ou sequer à sua comprovação judiciaria, antes há-de satisfazer-se
com as exigências derivadas das legis artis dos jornalistas, que se não contentarão com um
convencimento, meramente subjectivo, mas imporão que aquele repouse numa base
objectiva, de que resulta que, no quadro do direito de informação, uma crença fundada na
verdade haverá que possuir o mesmo efeito que esta, por se estar perante um erro
relevante, que pode afastar a ilicitude.
XII - O direito não assegura ao lesado a protecção contra todas as opiniões,
desmesuradamente, agrestes, mas não afasta a valoração como ilícitas das ofensas,
exclusivamente, motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido, pelo
que, exceptuadas estas, dificilmente se conceberão constelações de formulações críticas
cuja ilicitude possa escapar à eficácia dirimente do exercício de um direito.
XIII - Não sendo a imputação legítima, nem tendo o agente actuado de boa fé, o conflito de
direitos verificado entre a personalidade [a honra] e o seu exercício [a liberdade de
expressão], sendo ambos de igual importância e não ocorrendo a possibilidade da sua
cedência recíproca, resolve-se, in casu, em detrimento da liberdade de expressão, que cede
o seu lugar, em virtude de o seu exercício se revelar ilícito, com base no abuso de direito,
ao direito à honra, cuja supremacia só seria sacrificada quando não fosse ilegítimo o
exercício da liberdade de expressão.
XIV - A ilicitude da conduta do agente traduz-se na violação dolosa da norma que tutela a
ofensa do crédito e do bom-nome a que o lesado tem direito, não tendo aquele actuado no
exercício de um direito, como causa justificativa do facto danoso.
XV - A afectação da consideração pessoal do lesado, junto da sua família, e a ofensa
profunda da sua credibilidade, prestígio, crédito, reputação e imagem constituem danos
relevantes que, pela sua gravidade, aferida por um padrão objectivo, ainda que a sua
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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas, merecem a tutela do


direito, porquanto atingem a dignidade da personalidade moral do mesmo.
XVI - A gravidade do dano depende, por um lado, da intensidade das afirmações feitas e
da divulgação que lhes foi dada, e, por outro, da personalidade e funções do visado,
assumindo particular acuidade, no caso de alguém que desempenhava as mais altas funções
na chefia do Governo, como Primeiro-Ministro.
14-02-2012 - Revista n.º 5817/07.2TBOER.L1.S1 - 1.ª Secção - Helder Roque (Relator) * -
Gregório Silva Jesus e Martins de Sousa

Responsabilidade extracontratual - Direitos de personalidade - Direito ao bom nome -


Direito à honra - Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Liberdade de
imprensa - Abuso de liberdade de imprensa - Jornal - Jornalista - Cargo de direcção -
Deveres funcionais - Conhecimento - Ilicitude - Culpa - Presunções legais - Ónus da
prova - Obrigação solidária - Litisconsórcio necessário - Danos não patrimoniais -
Nexo de causalidade - Teoria da causalidade adequada
I - Impondo-se ao director da publicação o dever especial de conhecer e decidir,
antecipadamente, sobre a determinação do seu conteúdo, em ordem a impedir a divulgação
de escritos ou imagens susceptíveis de constituir um facto ilícito gerador de
responsabilidade civil, a imputação ao mesmo do conteúdo que resulta da própria
titularidade e exercício da função e dos inerentes deveres de conhecimento integra uma
presunção legal.
II - Trata-se de uma presunção legal que dispensa o lesado do ónus da prova do facto a que
a presunção conduz, isto é, a demonstração da culpa do agente, admitindo-se, porém, que o
onerado a ilida, mediante prova em contrário, dada a sua natureza de presunção tantum
iuris.
III - Tendo o lesado invocado os factos constitutivos do ilícito, isto é, no caso concreto, a
publicação do «escrito» e a qualidade de director do agente, o qual, por seu turno, não
alegou e provou que ignorava, de forma não culposa, o teor do escrito causador da lesão ou
que este foi publicado sem o seu conhecimento ou com a sua oposição, não ilidiu,
consequentemente, a base da presunção, tornando-se, assim, civilmente, responsável pelos
danos causados.
IV - Em matéria de responsabilidade civil, no âmbito da comunicação social, está
consagrado um regime de solidariedade passiva dos titulares das empresas jornalísticas
com o autor da publicação, mas não de litisconsórcio necessário, relativamente ao director
da publicação.
V - A gravidade do dano não patrimonial depende, por um lado, da intensidade das
afirmações feitas e da divulgação que lhes foi dada, e, por outro, da personalidade e
funções do visado, assumindo particular acuidade no caso de alguém que foi futebolista de
eleição e exercia, na ocasião, funções de responsabilidade na Federação Portuguesa de
Futebol.
VI - De acordo com a doutrina da causalidade adequada, na sua vertente negativa, um facto
é causal de um dano quando é um de entre várias condições sem as quais aquele se não
teria produzido, exigindo-se entre o facto e o dano indemnizável um nexo mais apertado do
que a simples sucessão cronológica, de modo que nem todos os danos sobrevindos ao facto
ilícito estão incluídos na responsabilidade do agente.
VII - Muito embora os réus, na contestação, não tenham invocado a insolvência de terceiro
como circunstância obstativa do cumprimento do contrato que o lesado celebrou com o
mesmo, mas apenas com a junção de documentos que efectuaram antes da audiência de
discussão e julgamento, não se tratando de defesa por excepção, mas antes de factos que
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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

compõem a negação motivada, era ao autor que competia a prova dos mesmos, como
factos constitutivos do seu alegado direito à indemnização, e não aos réus.
15-03-2012 - Revista n.º 3976/06.0TBCSC.L1.S1 - 1.ª Secção - Helder Roque (Relator) * -
Gregório Silva Jesus e Martins de Sousa

Poderes do Supremo Tribunal de Justiça - Matéria de facto - Factos conclusivos -


Matéria de direito - Direito ao bom nome - Direito à honra - Ofensa do crédito ou do
bom nome - Liberdade de imprensa - Liberdade de expressão - Meio de comunicação
social - Conflito de direitos - Figura pública - Interesse público - Direito à informação
I - Ao STJ, nos poderes de apreciação da matéria de facto a que aludem os arts. 729.º e
722.º do CPC, não está vedada a apreciação sobre se determinada matéria que consta nos
factos provados deve ser considerada não escrita, por constituir mera conclusão ou encerrar
em si o “thema decidendum”.
II - Factos, para os efeitos do art. 511.º do CPC, são não só as situações da vida real mas
também o estado, a qualidade ou a situação real das pessoais ou das coisas.
III - Não contém matéria conclusiva a afirmação de que “o réu visou apenas criticar o
percurso político e público do autor”.
IV - O direito ao bom nome e reputação consiste, essencialmente, em não ser ofendido na
sua honra ou consideração social, mediante a imputação feita por outrem, mas também o
direito a defender-se dessa ofensa e obter a competente reparação.
V - A liberdade de imprensa implica a liberdade de expressão dos jornalistas, ou seja, o
direito de informação sem impedimentos, discriminações ou limitações por qualquer tipo
de censura.
VI - O conflito de direitos pode conduzir à sua concordância (direitos constitucionalmente
garantidos) ou à prevalência do que seja superior – arts. 18.º da CRP e 335.º do CC,
respectivamente.
VII - O critério normativo que deve presidir à ponderação em caso de conflito entre
liberdade de expressão e o direito à honra, bom-nome e reputação, é o da adequação da
informação ao cumprimento do fim (interesse público) de informar.
VIII - Referindo-se a pessoa que exerça cargos públicos, descrevendo, ainda que em tom
irónico e crítico, o seu percurso político e público – a actuação no âmbito do
funcionamento de algumas Universidades privadas (em que foi conferido grau de
licenciatura ao então Primeiro-Ministro, das relações do visado) e o percurso partidário, em
que foi nomeado Ministro (cargo de que foi demitido) e administrador de instituição
bancária – sem qualquer referência à vida íntima da mesma, a(s) notícia(s) e opiniões do
réu – comentarista político e um dos mais importantes “opinion makers” portugueses –
inserem-se no âmbito de um “relevante interesse público” que se sobrepõe ao direito à
honra e ao bom nome referido em IV.
IX - O exercício legítimo do direito de liberdade de expressão e informação através da
imprensa, nos moldes referidos em VII, é lícito e, como tal, insusceptível de desencadear
responsabilidade civil, em que se funda a obrigação de indemnizar nos termos gerais dos
arts. 483.º e 484.º do CC.
28-06-2012 - Revista n.º 3728/07.0TVLSB.L1.S1 - 7.ª Secção - Granja da Fonseca
(Relator) * - Silva Gonçalves e Ana Paula Boularot

Meio de comunicação social - Jornalista - Deveres funcionais - Pessoa colectiva -


Comitente - Comissário - Responsabilidade extracontratual - Titulares de cargos
políticos - Direitos de personalidade - Direito ao bom nome - Direito à honra -

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Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

Liberdade de expressão - Liberdade de informação - Liberdade de imprensa - Danos


não patrimoniais - Danos patrimoniais - Teoria da causalidade adequada
I - Em toda e qualquer acção cível para ressarcimento de danos provocados por factos –
acções ou omissões – cometidos através da comunicação social, os responsáveis são os
autores das peças divulgadas e a empresa proprietária do órgão ou estação difusora, desde
que esteja provado que os factos danosos praticados pelos referidos autores (comissários)
tenham sido no exercício das funções confiadas ao comitente.
II - Para qualquer pessoa dotada de um padrão médio de razoabilidade e bom senso,
apresenta-se como óbvio que a não fundada imputação, pública e reiterada, através de um
órgão de comunicação social (no caso, um relevante canal de televisão) a um cidadão (em
concreto um cidadão com demonstrada e reconhecida intervenção a nível cívico, público e
político) de envolvimento em actos de pedofilia e envolvimento sexual com menores,
ainda que objecto de posterior rectificação, constitui, no seu conjunto, muito mais do que
meros incómodos destituídos de relevância jurídica.
III - Tal imputação constitui uma grave lesão de aspectos essenciais dos direitos
fundamentais de personalidade que atingem de forma marcante a honra e dignidade da
pessoa e merecem a protecção do direito.
IV - Os danos morais ou prejuízos de natureza não patrimonial são, por princípio,
insusceptíveis de avaliação pecuniária, uma vez que atingem bens que não integram o
património material do lesado, e o seu ressarcimento deve assumir uma natureza
fundamentalmente compensatória e acessoriamente sancionatória, não servindo para aqui o
dano de cálculo, julgando-se adequado, no caso concreto, fixar em € 50 000 a
indemnização devida a título de danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
V - A teoria ou princípio da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da
condição determinante, no sentido de que tenha determinado por si só e exclusivamente o
dano, entendendo-se, antes, a possibilidade de intermediação de outros factores que podem
colaborar na produção do dano, factores esses concomitantes ou posteriores (relevância da
causalidade indirecta ou mediata).
VI - Nestas circunstâncias, apesar de a demissão do autor, a seu pedido, de cargo político
que exercia e a consequente perda de rendimentos não ser consequência directa e imediata
dos factos lesivos da sua honra, verdade é que tais efeitos não se teriam verificado se não
fossem esses factos, havendo assim causalidade adequada entre os factos e o prejuízo
patrimonial sofrido pelo autor.
VII - No domínio da apreciação da responsabilidade civil por actos praticados através da
comunicação social importa ter em conta que o trabalho dos jornalistas nos operadores de
televisão (tal como em geral acontece em todo os sector da comunicação social) é prestado
num regime de relação juridicamente subordinada, sob orientação e supervisão dos órgãos
próprios da hierarquia das empresas operadoras, sendo importante realçar que a decisão de
transmitir ou não determinados programas, notícias ou conteúdos pertence exclusivamente
ao operador, através do órgão por si designado, implicando esta circunstância, em primeira
linha, a eventual ou potencial responsabilização da empresa operadora pela divulgação de
factos violadores de direitos de terceiros.
VIII - Estando-se perante uma situação onde não seja possível apurar a responsabilidade
individual e subjectiva dos jornalistas que actuaram no interesse e por conta do operador de
televisão, deverá a decisão ser ponderada e tomada por recurso ao disposto nos arts. 165.º e
500.º, n.º 2, do CC. Ou seja, havendo responsabilidade solidária entre a pessoa colectiva e
o órgão, agente ou mandatário, responderá apenas a sociedade se não for possível
determinar em concreto o agente culpado do acto.

52
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

23-10-2012 - Revista n.º 2398/06.8TBPDL.L1.S1 - 1.ª Secção - Mário Mendes (Relator) -


Sebastião Póvoas e Moreira Alves

Responsabilidade extracontratual - Liberdade de imprensa - Jornal - Rádio -


Jornalista - Liberdade de expressão - Direitos de personalidade - Direito à honra -
Direito ao bom nome - Abuso sexual - Leges artis - Boa fé - Obrigação de indemnizar -
Nexo de causalidade - Causalidade adequada - Danos não patrimoniais - Cálculo da
indemnização
I - O consentimento do lesado (anterior à lesão) constitui causa justificativa do facto,
consistindo aquele na aquiescência do titular do direito à pratica de acto que, sem aquela,
constituiria uma violação desse direito ou uma ofensa da norma tuteladora do respectivo
interesse.
II - A publicação de uma carta enviada pelo autor ao director do jornal onde se reporta a
caluniosos boatos que circulam e adverte da sua intenção de responsabilizar judicialmente
quem ajudou a difundir a notícia, afasta qualquer consentimento por parte do autor quanto
à notícia publicada no jornal.
III - O director de uma publicação periódica que permite a publicação de notícia cujo
conteúdo lese gravemente o bom nome e reputação de alguém preenche a previsão do art.
484.º do CC, sendo solidariamente responsável – juntamente com os autores do escrito e a
empresa jornalística proprietária – pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo demandante
(art. 497.º do CC), verificados que estejam todos os pressupostos da responsabilidade civil
extracontratual.
IV - À liberdade de transmitir informações contrapõe-se o dever de informação e de
cumprimento das leges artis, isto é, o cumprimento das regras deontológicas que regem a
profissão de jornalista, designadamente procedendo de boa fé na aferição da credibilidade
respectiva antes da sua publicação.
V - Uma dessas regras deontológicas é a que vincula o jornalista a comprovar os factos que
relate, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso.
VI - Embora se reconheça o interesse público de uma notícia que denuncia publicamente
situações de abuso sexual (por forma a evitar o cometimento de outros actos de igual
natureza) bem com a necessidade de divulgar a identidade dos (alegados) autores dos
factos para a prossecução daquele fim, deveriam os autores da notícia ter ouvido o jovem,
ou pelo menos tentado fazê-lo, e assim aferido da sua credibilidade.
VII - A obrigação de indemnizar só existe quando ocorre um nexo de causalidade entre o
acto ilícito do agente e o dano produzido, tendo o nosso sistema acolhido a teoria da
causalidade adequada, ao consignar no art. 563.º do CC, que a tal obrigação só se verifica
em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
VIII - Tendo-se apurado que (i) algumas pessoas que ouviram e leram as notícias
difundidas e publicadas, ou tiveram conhecimento através de quem o fez, ficaram
convencidas que o autor tinha praticado os factos nelas referidos; (ii) nas semanas que se
seguiram à divulgação e propagação das notícias houve pessoas na rua e no
estabelecimento que se dirigiram ao autor dizendo “maricas”, “paneleiro”, e escreveram na
montra do seu estabelecimento «olha o Bibi cá da vila» e «O Bibi de Alenquer»; (iii) o
autor é pessoa sensível, de bom relacionamento, trabalhadora, respeitadora e respeitada por
todos quantos o rodeiam; (iv) antes da divulgação da notícia era uma pessoa alegre e bem
disposta, tendo –em consequência da mesma – sofrido abalo psicológico, depressão,
desgosto, vergonha, humilhação e tristeza; (v) a filha do autor foi alvo de comentários na
escola que frequenta, e por via disso o autor deixou de a levar e buscar à escola; (vi) depois
da divulgação das notícias o autor tentou suicidar-se; e sendo previsível, para um homem
53
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

médio, que da publicação das notícias poderiam resultar os danos referidos em (i) a (vi),
considera-se verificado o nexo de causalidade.
IX - A vertente negativa do nexo de causalidade não pressupõe a exclusividade do facto
condicionante do dano.
X - A determinação indemnizatória dos danos não patrimoniais deve ser efectuada segundo
um juízo de equidade, que mais não é do que a procura da justiça do caso concreto, assente
numa ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso.
XI - Tendo em atenção os factos referidos em VIII afigura-se adequado o montante
indemnizatório de € 22 500 – a título de danos não patrimoniais – atribuído pela Relação
ao autor.
18-12-2012 - Revista n.º 352/07.1TBALQ.L1.S1 - 2.ª Secção - Pereira da Silva (Relator) -
João Bernardo e Oliveira Vasconcelos

Responsabilidade extracontratual - Liberdade de imprensa - Direito ao bom nome -


Meio de comunicação social - Jornalista - Falsidade - Dano - Danos não patrimoniais -
Culpa - Obrigação de indemnizar - Juiz
I - Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral,
provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se,
por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais,
vexames, perdas de reputação, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má
imagem perante outrem, estados de angústia e outros, tudo com o sofrimento psíquico que
lhes é inerente.
II - A avaliação da sua gravidade tem de aferir-se segundo um padrão objectivo, e não à luz
de factores subjectivos.
III - As simples contrariedades ou incómodos apresentam um nível de gravidade objectiva
insuficiente para os efeitos no n.º 1 do art. 496.º do CC.
IV - Dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é exorbitante ou
excepcional, mas também o que sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da
banalidade; um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade duma dor,
duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da
experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação.
V - Provado que, na sequência da publicação de um acórdão que o juiz desembargador
autor subscreveu como adjunto, entregue por cópia integral à imprensa, a agência de
notícias ré inseriu no seu “site” na Internet uma notícia na qual são atribuídos ao colectivo
de juízes que o subscreveu juízos e afirmações da autoria dos defensores de um dos
arguidos no processo, extraídos do relatório do acórdão, o que foi transmitido a outros
órgãos de comunicação social e veio a ser publicado em importantes jornais diários, tendo
a notícia em causa e aquelas que nela se fundaram sido lidas por muitos milhares de
pessoas, nomeadamente profissionais do foro, sendo várias as pessoas que contactaram o
autor para lhe manifestar perplexidade pelo facto de ter subscrito um acórdão com tal tipo
de retórica, tendo o autor, juiz muito prestigiado, que sempre foi considerado um
profissional altamente qualificado, sensato e dedicado às suas funções, e que é uma pessoa
bastante conhecida, tendo desempenhado, além da magistratura, elevados cargos públicos,
sentiu profunda indignação, preocupação, incomodidade, perturbação, angústia e desgosto,
verifica-se que a situação configurada ultrapassa a medida de exigibilidade de resignação
que, objectivamente, será razoável fazer suportar a alguém colocado na posição do autor.
VI - Os réus jornalistas, estando vinculados a relatar os factos com rigor e exactidão,
desrespeitaram esses comandos comportamentais, não se mostrando que não tivessem
podido transmitir a informação correcta, sendo que circunstâncias como a pressão inerente
54
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

ao trabalho jornalístico e o erro comum a outros seus colegas de profissão de outros órgãos
de informação não integra qualquer situação de não exigibilidade atendível para efeito de
exclusão da culpabilidade; se se aceita que a primeira possa mitigá-la, o segundo
apresenta-se completamente despido de relevância, pois que o que está sob avaliação é a
actuação dos réus, que não a de terceiros que nela não interferiu.
VII - A culpa do agente refere-se ao acto ilícito, no tempo e modo em que foi praticado,
contemporânea e indissociavelmente, e não ao dano, razão por que o direito desconsidera,
em sede de culpabilidade, o circunstancialismo que não se reporte directamente à ilicitude
do acto; de desconsiderar, portanto, em matéria de culpa, como requisito de
responsabilidade – relevará apenas para efeito de reparação de prejuízos ou de valoração
do dano –, a actuação posterior de anulação de notícias anteriormente divulgadas ou
pedidos de desculpa.
26-02-2013 - Revista n.º 6064/05.3TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção - Alves Velho (Relator)
Paulo Sá - Garcia Calejo

Liberdade de imprensa - Direitos de personalidade - Direito de crítica - Liberdade de


expressão - Texto de opinião - Jornalista - Juiz
I - Os arts 70.º, n.º 1, e 484.º do CC, são preceitos legais que tutelam os direitos de
personalidade, os quais, aliás, encontram consagração constitucional no art. 25.º da CRP.
II - A par da protecção dos direitos de personalidade, a lei protege igualmente,
designadamente em sede constitucional, o direito à liberdade de imprensa e o direito de
livre expressão de opinião e pensamento, bem como o direito de difusão de ideias – arts.
37.º e 38.º da CRP. Os mesmos direitos têm consagração na CEDH – art. 10.º – e na
DUDH – art. 19.º.
III - Não obstante a importância fundamental que assumem os direitos de liberdade de
imprensa e de livre expressão nos modernos Estados democráticos, há que frisar que não se
trata de direitos absolutos e ilimitados, como, da mesma forma, não são ilimitados os
direitos de personalidade.
IV - O jornalista não pode publicar aquilo que entender se, ao fazê-lo, violar outros direitos
de igual dignidade, designadamente, se violar os direitos de personalidade de outrem.
V - Na doutrina e na jurisprudência tem-se procurado encontrar uma linha de orientação na
ponderação de cada caso concreto, isto é, casuisticamente, lançando mão dos princípios
gerais do abuso do direito – art. 334.º do CC –, sem esquecer, porém, que nessa
ponderação o direito de informação e junto com ele o de livre expressão garante a
existência de uma opinião livre, condição necessária, por seu lado, para um recto exercício
de todos os demais direitos em que se fundamenta o sistema político democrático.
VI - Tem-se admitido que, em casos especiais, pode dar-se prevalência ao direito de
liberdade de imprensa em detrimento do direito de personalidade, mas, para que se
imponha tal solução há que submeter o conflito concreto ao crivo de três critérios de
análise: o critério da verdade, o critério do interesse público e o critério da personalidade e
adequação.
VII - Assim e desde logo, nunca poderá prevalecer o direito de liberdade de imprensa ou o
direito de livre expressão da opinião, se os factos noticiados forem falsos, equívocos,
traduzirem meras suspeitas sem prova ou se fundarem em simples boatos.
VIII - Por outro lado, é sempre necessário que a informação veiculada pela comunicação
social corresponda à realização de um interesse público ou social de relevância, isto é, o
interesse público há-de, atenta a sua relevância, justificar a agressão do direito de
personalidade com o qual, eventualmente, entre em colisão.

55
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

IX - Finalmente, pressuposta a verdade da imputação e o interesse público relevante, deve


ser respeitado o devido grau de proporcionalidade e adequação, perante as circunstâncias
concretas, em ordem a maximizar a eficácia prática dos dois direitos em conflito ou a
prejudicar, o menos possível, aqueles dos direitos que deve ceder perante o outro.
X - Resultando claramente da prova, e de qualquer modo é uma evidência, que a questão
tratada pelas publicações em causa nos autos era de manifesto interesse social, justificava-
se o seu debate público e o respectivo tratamento não estava prejudicado, mesmo quando
se critica, debate e opina sobre matéria de sentenças judiciais.
XI - Num país democrático qualquer decisão judicial, para além do controlo interno, a
cargo dos tribunais superiores (através dos recursos) está sujeita à crítica pública.
08-05-2013 - Revista n.º 1486/03.7TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção - Moreira Alves (Relator) -
Alves Velho - Paulo Sá

Matéria de facto - Juízo de valor - Liberdade de imprensa - Liberdade de expressão -


Liberdade de informação - Direito ao bom nome – Direito à honra – Ofensa do
crédito ou do bom nome - Colisão de direitos - Conflito de direitos -Direitos
fundamentais - Responsabilidade extracontratual - Danos não patrimoniais - Cálculo
da indemnização - Meio de comunicação social - Figura pública - Interesse público -
Direito à informação
I - As conclusões e juízos de valor que o Juiz legitimamente tira dos factos provados, não
têm que ater-se a estes, podendo ir mais além desde que obedeçam a uma linha coerente de
raciocínio; neste caso não há pronúncia indevida.
II - Estando em causa a prática de ofensas ao bom nome cometidas através da imprensa,
regem as disposições da Lei n.º 2/99, de 13-01, que aprovou a Lei de Imprensa. Ali se
consagra a liberdade de imprensa apenas com os limites que decorrem da CRP e da lei de
modo a encontrar o ponto de equilíbrio entre o direito de informar e o direito ao bom nome
e defender o interesse público e a ordem democrática (direitos de igual hierarquia
constitucional) – art. 3.º da Lei de Imprensa.
III - Ao aquilatar da lesão ao direito à honra das queixosas visadas num artigo de jornal ou
revista, não pode deixar também de ter-se em linha de conta as suas pessoas,
nomeadamente quando se trata de uma figura pública com forte exposição aos media, que
procuram, por seu turno, e para satisfazer uma clientela ávida de mexericos, inteirar-se de
aspectos mais íntimos da sua vida que depois vertem em artigos de revistas dedicadas a
este tipo de matérias.
IV - Movendo-se, a pessoa alvo desse jornalismo, permanentemente no raio de acção dos
media, bem se compreende que apenas os casos que comportem nítida e grave ofensa de
dignidade daquela devam ser alvo de censura jurídica.
V - Os mesmos factos publicados numa revista de grande tiragem e que visam uma
conhecida apresentadora de TV e a sua mãe, podem relevar em diversos termos de ilicitude
e culpa para com cada uma delas, gerando a obrigação de indemnizar esta última, porque
lesam o recato que mantém e pretende preservar, ao mesmo tempo que não são geradores
de responsabilidade civil para com a primeira, tendo em linha de conta o critério mais
amplo que deve presidir à respectiva ponderação.
03-10-2013 - Revista n.º 687/10.6TVLSB.L1.S1 - 7.ª Secção - Távora Victor (Relator) -
Sérgio Poças (vencido) - Granja da Fonseca

Televisão - Suicídio - Direitos de personalidade - Direito à imagem - Liberdade de


expressão - Direito à informação - Colisão de direitos - Direito à indemnização - Ex-
cônjuge - Descendente
56
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

I - A liberdade de expressão e o direito à informação constituem direitos fundamentais,


neste sentido podendo ser convocados os princípios plasmados no art. 19.º da DUDH, de
10-12-1948, e no art. 100.º, n.º 1, da CEDH, de 04-11-1950, integrados no direito interno
ex vi do art. 8.º da CRP, gozando de consagração constitucional nos arts. 37.º, n.ºs 1 e 2, e
38.º, n.ºs 1 e 2.
II - Reflexamente, a todas as pessoas é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o
direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos
sofridos – art. 37.º da CRP.
III - Os direitos em colisão com a liberdade de expressão só podem prevalecer sobre esta
na medida em que a própria Constituição os acolha e valorize.
IV - Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na
medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior
detrimento para qualquer das partes, o que traz ínsita a ideia de limites ao próprio exercício
do direito, que, uma vez ultrapassados, conduzirá o agente para o campo da ilicitude.
V - Tendo uma estação de televisão exibido, em virtude do cometimento de suicídio pelo
A, que se imolou pelo fogo – na sequência da execução de uma decisão administrativa de
despejo do seu restaurante –, uma entrevista a um amigo da vítima mortal, seguida das
imagens de arquivo de uma pessoa que se encontrava num quarto de hospital, coberta de
ligaduras, incluindo a face, à excepção dos olhos, com 90% do corpo queimado, e ligado a
um ventilador, demonstrando o sofrimento do doente que estava a ser filmado, e cuja
visualização causou uma forte e intensa dor nas autoras (respectivamente, viúva e filha da
vítima) – que, além do mais, tiveram negado o acesso ao quarto de A e se convenceram
que tal acesso havia sido dado aos jornalistas –, deveria a mesma (estação de televisão) ter
informado que a imagem exibida era de arquivo, afastando, assim, a ideia nos
espectadores, e em particular nos familiares próximos, de que o visionado era A.
VI - Afigura-se, no entanto, que não ocorreu qualquer violação dos arts. 6.º e 9.º do Código
Deontológico dos Jornalistas, apenas se podendo sustentar ter ocorrido uma infracção ao
art. 10.º, por o relato não ter sido rigoroso, permitindo interpretações erróneas, sendo que
esta norma não se destina a proteger qualquer direito pessoal dos espectadores.
VII - É certo que as autoras invocam que as imagens lhes causaram e agravaram o
sofrimento, mas também que parte desse sofrimento, como se deu por provado, derivou
não directamente da notícia mas da sua convicção de que lhes havia sido coarctado o
acesso à vítima e autorizado o mesmo à comunicação social; por outro lado, o sofrimento
resultante de terem sido abordadas por diversas pessoas não pode ser imputado ao
visionamento da imagem do hospitalizado, mas antes pelo insólito da imolação pelo fogo
(no nosso meio e pela publicitação da notícia), perfeitamente natural, uma vez que a vítima
optou por uma atitude pública de protesto, dessa forma tão radical.
VIII - Não existe violação do direito à imagem, nem reserva da intimidade das autores,
uma vez que não se demonstrou que tenham sido tomadas fotografias não autorizadas à
vítima, nem existe violação da reserva da vida privada, uma vez que foi a própria vítima
que tornou público o facto e suscitou esse mesmo interesse público, afastando assim a
ilicitude da actuação da ré.
IX - A transmissão das imagens descritas, imprimindo no contexto da notícia uma especial
nota de dramatismo, com infracção da moderação e objectividade a que a ré, operadora de
televisão, estava obrigada, não releva senão relativamente ao espectador em geral e ao seu
direito de ser informado com verdade.
X - Reconhece-se que todas as notícias que relatam um grave acidente, uma catástrofe
natural ou acto de desespero que deixa determinada pessoa em risco de vida cria nos seus

57
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

familiares um agravamento da ansiedade e do sofrimento, mas este facto não pode dar
origem a uma indemnização por não ser, em si mesmo, um acto ilícito.
XI - É de conceder revista e revogar a decisão das instâncias que atribuíram a cada uma
das vítimas, a título de danos não patrimoniais, a indemnização de € 10 000 a cada uma, no
montante global de € 20 000.
02-12-2013 - Revista n.º 1667/08.7TBCBR.L1.S1 - 1.ª Secção - Paulo Sá (Relator) -
Garcia Calejo - Helder Roque

Direitos fundamentais - Direitos de personalidade - Figura pública - Liberdade de


imprensa - Direito ao bom nome - Colisão de direitos - Danos não patrimoniais -
Indemnização
I - No normativo inserto no art. 70.º, n.º 1, do CC, instituiu-se o direito geral de
personalidade, com natureza de direito subjectivo, pessoal e absoluto, que, como tal, goza
da tutela do direito público – direito constitucional e criminal – e de “reforçada” tutela
civil, nomeadamente, a derivada do instituto da responsabilidade civil por facto ilícito.
II - De entre os direitos especiais de personalidade em que aquele se desdobra, emergem os
direitos ao bom nome e à reputação pessoal, que integram o bem da personalidade humana
e têm a seu lado a tutela inerente a esta.
III - A regra da prevalência deste direito fundamental no confronto com o exercício do
direito de liberdade de imprensa sofre uma interpretação restrita quando os queixosos são
políticos ou outras figuras públicas, cujo estatuto e proeminência no governo das
sociedades hodiernas há-de ser mais permissivo e tolerante com o tom mais elevado e
intenso das críticas de que são objecto pela imprensa, desde que não se trate de ofensa
gratuita, desproporcionada ou desvirtue o interesse geral subjacente à informação.
IV - Atenta contra o bom nome e reputação do autor – ao tempo a exercer funções de
Secretário Regional do Governo Regional de Região Autónoma –, um título/notícia de um
jornal diário, que os respectivos subdirector e director fizeram publicar, por ser falsa e
suscitar a suspeita de o autor ter violado a lei em favor de um familiar.
V - O autor – que gozava de prestígio profissional – viu, como efeito da notícia publicada,
prejudicada a sua imagem pessoal e profissional, causando-lhe inerente desgosto e
desconforto os comentários a que a mesma deu azo.
VI - Trata-se de danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do
direito, e justificam a atribuição de uma compensação adequada, acentuando-se também
nesta uma função sancionatória, fixada na quantia de € 10 000 (e não de € 15 000,
conforme decidiu o acórdão recorrido).
01-04-2014 - Revista n.º 218/11.0TBPDL.L1.S1 - 1.ª Secção - Martins de Sousa (Relator) -
Gabriel Catarino - Maria Clara Sottomayor

Direito à honra - Liberdade de informação - Jornalista - Segredo de justiça -


Presunção de inocência - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
I - A prevalência do direito à honra e ao bom-nome, no confronto com o direito à liberdade
de expressão e de informação, relativamente a afirmações lesivas do mesmo, não se
compadece com as situações em que aquelas afirmações, embora potencialmente
ofensivas, sirvam o fim legítimo do direito à informação e não ultrapassem o que se mostra
necessário ao cumprimento da função pública da imprensa.
II - O direito do público a ser informado tem como referência a utilidade social da notícia –
interesse público –, devendo restringir-se aos factos e acontecimentos que sejam relevantes
para a vivência social, apresentados com respeito pela verdade.

58
Sumários de acórdãos das Secções Cíveis

III - A verdade noticiosa não significa verdade absoluta: o critério de verdade deve ser
mitigado com a obrigação que impende sobre qualquer jornalista de um esforço de
objectividade e seguindo um critério de crença fundada na verdade.
IV - Embora seja difícil estabelecer o equilíbrio ténue entre o princípio da presunção de
inocência, de que todos os cidadãos devem gozar, mormente na fase de inquérito, e o
direito à informação, é inderrogável o interesse em dar a conhecer aos cidadãos uma
matéria que, encontrando-se porventura sujeita ao segredo de justiça, releva do
cometimento de irregularidades graves passíveis de configurar a prática de crimes. Há
interesse público.
V - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem acentuado que a liberdade
de imprensa constitui um dos vértices da liberdade de informação, não podendo as
autoridades nacionais, por princípio, impedir o jornalista de investigar e recolher as
informações com interesse público, e de as transmitir, o que é inerente ao funcionamento
da sociedade democrática.
VI - No que toca ao confronto do segredo de justiça com a liberdade de expressão e de
informação, o TEDH tem-se pronunciado contra as restrições à liberdade de expressão que
não considera serem necessárias, designadamente quando as informações em causa já
sejam públicas.
21-10-2014 - Revista n.º 941/09.0TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção - Gregório da Silva Jesus
(Relator) * - Martins de Sousa - Gabriel Catarino

59
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

Sumários de acórdãos das Secções


Criminais

61
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

Ofensa a pessoa colectiva - Difamação - Meio de comunicação social - Constituição de


arguido - Nulidade - Alteração da acusação - Despacho de pronúncia - Recurso penal
I - Para que ocorra a agravante, mencionada no n.º 2 do art. 183.º do CP, da difusão do crime
de difamação através de meio de comunicação social, não tem que se verificar
necessariamente um crime de abuso de liberdade de imprensa.
II - Tendo sido promovida pelos arguidos a “conferência de imprensa” em que foram
proferidas as afirmações indiciariamente consideradas criminosas, os jornalistas transmitiram
o que lhes foi veiculado, com referências de enquadramento normais em situações do mesmo
tipo, nomeadamente a qualificação dos eventos como de “escândalo”, na presunção razoável
de que era verdadeira a informação transmitida, que a imputação realizava “interesses
legítimos”, ou que os agentes estavam em condições de provar a sua verdade - n.º 2 do art.
180.º do CP.
III - A não observância dos preceitos referentes à constituição de arguido, não se encontra
prevista como nulidade nem consta do elenco das mencionadas nos arts. 119.º e 120.º, do
CPP; também não se configura nem é invocada qualquer situação de ausência a acto
processual em que fosse exigível a comparência do arguido ou lhe fosse provocado algum
prejuízo processual; considerado já arguido no debate instrutório disse outrossim renunciar à
arguição de eventual nulidade de não ter sido ouvido em inquérito, e prestou declarações
nessa qualidade, pelo que não se verifica qualquer invalidade de acto processual.
IV - Sem embargo de se considerar formalmente mais correcta a indicação, na acusação, do
disposto no n.º 2 do art. 183.º do CP, em vez da simples menção de violação do art. 183.º,
como disposição aplicável, uma vez que esta engloba tanto o n.º 1 como o n.º 2, o recorrente
teve oportunidade de se defender quanto à totalidade da previsão, como aliás, a interpretou,
não tendo havido alteração substancial ou não substancial, feita pelo despacho de pronúncia.
V - Observado o teor do “Assento” n.º 6/2000, conjugado com o que se refere no art. 310.º -
Recurso da decisão instrutória - do CPP, uma vez analisada a matéria relativa às nulidades
arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais,
no restante do despacho de pronúncia vinga a situação da sua irrecorribilidade.
23-01-2002 - Proc. n.º 3645/01 - 3.ª Secção - Lourenço Martins (relator) *, Pires Salpico e
Leal-Henriques

Recurso para fixação de jurisprudência - Oposição de julgados - Identidade de situações


de facto - Abuso de liberdade de imprensa
I - Para que exista relevante oposição de julgados com vista ao recurso extraordinário para
fixação de jurisprudência, importa que o recorte das situações jurídicas seja idêntico, o que
supõe a identidade de situações de facto.
II - Não há identidade de situações jurídicas quando num dos acórdãos pretensamente em
confronto, ambos versando a responsabilidade criminal do director de um mesmo periódico
por abuso de liberdade de imprensa, num - o acórdão fundamento - se decidiu absolvê-lo por
ter sido considerado com trânsito em julgado que o artigo publicado era de opinião e só
responsabilizava o respectivo autor, e noutro - o recorrido - o mesmo director foi condenado,
agora com fundamento em que estava em causa não, um qualquer artigo de opinião, antes e
só, uma difamação através da imprensa.
23-10-2003 - Proc. n.º 2390/03 - 5.ª Secção - Pereira Madeira (relator) *, Simas Santos e
Costa Mortágua

Comissão Nacional de Eleições - Contra-ordenação - Eleições - Órgãos de comunicação


social - Princípio da igualdade de tratamento das candidaturas - Erro - Competência do
Supremo Tribunal de Justiça - Crime continuado - Questão nova
63
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

I - Se um arguido num processo de contra-ordenação não invocou, na sua defesa perante a


CNE, que não é ele o proprietário de uma “publicação informativa”, já não pode fazê-lo no
recurso para o STJ, pois que os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a
conhecer questões novas não apreciadas pela entidade recorrida, mas sim para apurar da
adequação e legalidade das decisões sob recurso.
II - Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da
expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão,
eleger a verdadeira e decisiva: é fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou
seja determinar o seu sentido e alcance decisivo, pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da
lei.
III - Os arts. 49.º e 212.º da LEOAL (Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14-08) dirigem-se a todos os
órgãos de comunicação social e publicações informativas, e não só à imprensa escrita, o que
inclui as televisões a quem se impõe igualmente o dever de dar um tratamento jornalístico não
discriminatório às diversas candidaturas em presença, na decorrência dos princípios gerais de
direito eleitoral consagrados na Constituição, nomeadamente do princípio da igualdade de
oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas, prescrita na al. b) do n.º 3 do seu art.
113.º, que a LEOAL, enquanto legislação eleitoral, reafirmou e desenvolveu, vinculando
todas as entidades públicas e privadas.
IV - Pretendeu a lei impedir que os órgãos de informação, pela sua importância no
esclarecimento do eleitorado, bloqueiem a comunicação entre as acções das candidaturas e os
eleitores ou que realizem um tratamento jornalístico que, de alguma maneira, gere uma
deturpação daquelas mesmas acções junto dos eleitores.
V - O que não é contrariado pela liberdade de expressão e criação dos jornalistas, que não tem
um carácter absoluto, uma vez que tem de ser conjugado, no caso, com o falado dever de
igualdade de tratamento das candidaturas aos órgãos de poder local.
VI - A exclusão de candidaturas de debates públicos, com convites dirigidos só a candidaturas
“com assento na assembleia municipal” viola esse dever de tratamento igual e não
discriminatório, pois que a actividade dos órgãos de comunicação social, que façam a
cobertura da campanha eleitoral, deve ser norteada por critérios que cumpram os requisitos de
igualdade entre todas as forças concorrentes às eleições; por preocupações de equilíbrio e
abrangência, não podem adoptar condutas que conduzam à omissão de qualquer uma das
candidaturas presentes.
VII - Sendo a estação de televisão a marcar unilateralmente e sem fundamentar a duração do
debate e não determinando em concreto se o número de candidaturas impedia tecnicamente
esse debate, nunca poderia invocar sequer a necessidade de um critério limitativo.
VIII - E tendo a CNE tomado anteriormente deliberações em relação à mesma estação de
repúdio do critério que norteara o adoptado - «candidaturas com representação parlamentar» -,
não pode esta invocar um pretenso erro sobre o elemento normativo do tipo.
IX - É pressuposto essencial da continuação criminosa a existência de uma relação que, de
fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez
menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o
direito, o que se não verifica quando o que facilitou a repetição da sua actividade foi o seu
próprio entendimento que esteve subjacente àquela repetição.
06-07-2006 - Proc. n.º 1383/06 - 5.ª Secção - Simas Santos (relator) *, Santos Carvalho, Costa
Mortágua e Rodrigues da Costa

Interpretação - Interpretação extensiva - Analogia - Princípio da legalidade - Contra-


ordenação - Eleições - Comissão Nacional de Eleições - Princípio da igualdade -

64
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

Propaganda eleitoral - Órgãos de comunicação social - Rádio - Liberdade de expressão -


Liberdade de informação - Coima - Publicação informativa - Constitucionalidade
I - Em sede de interpretação jurídico-penal está excluído o recurso à analogia.
II - Por um lado, o direito penal não contém lacunas, devido às suas características de
subsidiariedade e de fragmentariedade, que levam a que só sejam puníveis os factos que
foram eleitos, segundo uma prévia valoração axiológico-social, como capazes de
representarem um especial tipo de ilicitude.
III - De outro ângulo, o princípio da legalidade, exigindo a determinação, com o máximo de
objectividade, de todas as componentes do facto que é objecto da incriminação, impõe que o
tipo legal não possa conter zonas lacunosas ou vazias, que possam vir a ser integradas pelo
recurso à solução conferida a casos análogos.
IV - Não está, porém, excluída a interpretação extensiva, pois sendo o texto legal constituído
por palavras e sendo estas, quase sempre, polissémicas, «tal texto torna-se carente de
interpretação, oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal,
um quadro (e portanto uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se
pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora desse
quadro, sob não importa que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínio da
analogia proibida» (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, Tomo I,
págs. 175 e ss.).
V - Os princípios hermenêuticos acabados de referir aplicam-se às contra-ordenações, não
obstante as diferenças que distinguem o direito penal primário ou secundário do regime
contra-ordenacional.
VI - Dos arts. 40.º e 49.º da LEOAL decorre claramente que o legislador pretendeu dar às
diversas forças concorrentes ao acto eleitoral condições para serem todas tratadas igualmente
por entidades públicas e privadas no que toca aos actos de propaganda, a levar a cabo
livremente por aquelas. E, no que toca aos órgãos de comunicação social que façam a
cobertura da campanha, impôs a estes um tratamento não discriminatório das diversas
candidaturas, excluindo da injunção legal as publicações de carácter doutrinário, nas
condições referidas no n.º 2 do mencionado art. 49.º.
VII - Enquanto o referido art. 40.º se refere ao dever de proporcionar igualdade de tratamento
e de oportunidades que as entidades públicas e privadas têm de observar face à propaganda
que as candidaturas entendam levar a cabo, no exercício de um direito próprio, o art. 49.º já
impõe um tratamento não discriminatório a uma actividade própria da comunicação social e
não das forças concorrentes ao acto eleitoral: a cobertura jornalística. Tal importância advém
do papel crucial que a informação (ou dito de outro modo: o direito à liberdade de expressão e
à informação) desempenham na formação, consolidação e desenvolvimento de uma sociedade
democrática, em que toda a soberania reside no povo; no papel que os partidos políticos e,
eventualmente, grupos promotores de candidaturas desempenham na formação da opinião
pública e da vontade popular; na relevância dos princípios da igualdade de oportunidades e de
isenção das entidades públicas e privadas em relação à propaganda dos partidos, coligações
partidárias e grupos proponentes de candidaturas para o correcto e cabal esclarecimento do
público e formação daquela vontade popular - tudo princípios estruturantes que derivam de
vários preceitos constitucionais (entre outros, os arts. 2.º, 3.º, 9.º, als. b) e c), 10.º, 12.º, 13.°,
38.°, 39.°, 45.°, 46.°, 48.°, 49.°, 50.°, 51.°, 108.°, 109.°, 113.° e 266.º) e da própria LEOAL.
VIII - Comentando o art. 113.° da Constituição, Vital Moreira e Gomes Canotilho (CRP
Anotada) opinam no sentido de que «a igualdade de oportunidades e de tratamento das
candidaturas, além de exigir iguais tempos de antena (art. 40.º, n.º 3) impõe a atribuição de
iguais facilidades aos candidatos em todos os domínios».

65
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

IX - Ora, sendo esta a razão de ser da lei, não se compreenderia que a violação dos
comportamentos impostos e dos princípios que se pretendem ver respeitados não acarretasse
qualquer sanção. Seria o mesmo que consagrar normas utópicas ou, quando muito,
facultativas, despidas de toda a eficácia ou tendo uma eficácia aleatória, num domínio de
grande relevância para a vida social e pública. Mais: para a organização e estruturação da
sociedade democrática.
X - Por isso, a LEOAL consagrou, no Capítulo III, um sistema sancionatório com 4 secções, o
que significa que quis dotar de eficácia sancionatória (e uma eficácia sancionatória exaustiva)
as disposições relativas a toda a orgânica eleitoral.
XI - O termo “publicação informativa” constante do art. 212.º da LEOAL pode aplicar-se,
ainda que de forma menos própria, à publicidade dada pelos órgãos de comunicação social,
sobretudo quando se trata de informar e esclarecer o público em matérias que relevam da
informação em termos gerais, tanto mais que aqueles também praticam jornalismo, estando
nessa parte os seus profissionais subordinados à deontologia própria dos jornalistas, ao seu
estatuto e às mesmas ou idênticas leges artis.
XII - Aliás, a génese do termo “publicação” aponta para tornar público, tornar conhecido de
todos um determinado facto (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporâneo, Academia
das Ciências de Lisboa).
XIII - Em conclusão: na previsão do art. 212.° cabem, por interpretação extensiva, os órgãos
de comunicação social. Com efeito, não se trata de lacuna que importasse preencher pelo
recurso a outras normas ou aos princípios gerais do direito, mas de reconstituição do
pensamento legislativo sem extravasar o teor verbal da lei.
XIV - E não se vê como tal interpretação seja inconstitucional, nomeadamente por referência
ao art. 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, que se reporta ao chamado princípio da legalidade da lei
criminal. É que não se trata de falta de lei ou de falta de previsão legal mas de lei já existente
ao tempo da prática do facto e prevendo o mesmo facto, mas apenas sujeita a uma
interpretação extensiva, permitida no âmbito da interpretação da lei criminal e, por maioria de
razão, no âmbito contra-ordenacional.
XV - Apurando-se que:
- a estação de rádio R, na cobertura que realizou no âmbito das eleições autárquicas de A,
referentes a 2005, entendeu levar a cabo um frente-a-frente com as duas principais forças
partidárias concorrentes (a coligação B e D), as quais teriam mais possibilidade de ganhar as
eleições, de fora do debate ficando, entre outros, o candidato da X que de imediato reclamou
para a CNE, a qual pediu esclarecimento à rádio R;
- aquela estação de rádio veio a realizar tal frente-a-frente sem a participação do candidato da
X, alegando tratar-se de uma opção sua e que isso nada tinha a ver com a cobertura das acções
de campanha eleitoral em A, que dava relevo a todos os partidos ou forças concorrentes;
é óbvio que estamos perante uma discriminação da candidatura X, pois tal tipo de debate,
ainda que se possa dizer que só logra resultado com a intervenção de um número limitado de
participantes, devido à sua natureza contraditória, representa sempre uma oportunidade para
os intervenientes exporem os seus programas eleitorais, confrontarem pontos de vista,
extremarem posições, definirem as suas singularidades e caracterizarem o seu perfil eleitoral.
XVI - Ora, se essa possibilidade é dada a uns e negada a outros, sempre se pode dizer que há
uns que são privilegiados e outros que são discriminados, assim se fazendo tábua rasa do
princípio da igualdade de tratamento e da não discriminação, princípios que, como vimos, são
estruturantes do nosso sistema constitucional.
XVII - Quando se trata de campanha eleitoral, a lei quer que todos os concorrentes sejam
tratados por igual, e isto porque quer que os cidadãos sejam esclarecidos igualmente de todas

66
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

as propostas eleitorais, para poderem votar o mais livre, consciente e informadamente


possível.
04-10-2007 - Proc. n.º 809/07 - 5.ª Secção - Rodrigues da Costa (relator), Carmona da Mota e
Simas Santos
Santos Carvalho (tem declaração de voto no sentido de que: «Voto a decisão, mas com o
entendimento de que o “tratamento jornalístico não discriminatório” a que estão obrigados
os órgãos de comunicação social que fazem a cobertura de uma campanha eleitoral, referido
no art. 49.º da LEOAL, se afere pela cobertura geral da campanha, que não pelos debates
frente-a-frente. Contudo, no caso em apreço, a arguida não fez acintosamente a entrevista ao
candidato da [X], como o mesmo expressamente reclamou para compensar o facto de vir a
estar ausente no frente-a-frente e, por isso, houve “tratamento discriminatório”, expressão
esta que não é equivalente a “tratamento igual”»)

Pedido de indemnização civil - Princípio da adesão - Absolvição crime - Direitos de


personalidade - Pessoa colectiva - Abuso de liberdade de imprensa - Títulos - Liberdade
de expressão - Causas de exclusão da ilicitude - Princípio da necessidade - Princípio da
proporcionalidade - Responsabilidade civil emergente de crime - Director da publicação
- Presunções
I - O art. 71.º do CPP («processo de adesão») consagra a interdependência das acções penal,
para aplicação das reacções criminais adequadas, e civil, para a reparação dos danos
patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa.
II - A interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e
nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um
ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção, e a acção civil dos pressupostos
próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime
é regulada pela lei civil (art. 129.º do CP) nos respectivos pressupostos, e só processualmente
é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois,
independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível ao processo
penal.
III - Aderindo ao processo penal, o pedido («a acção») para indemnização civil mantém, no
entanto, alguma autonomia funcional, quer por regras procedimentais próprias a que está
vinculado (art. 73.º e ss. do CPP), quer pela possibilidade de intervenção dos responsáveis
meramente civis que, enquanto tais, seriam extraneus no processo penal.
IV - A obrigatoriedade, como regra, da adesão (que só por excepção e nos casos enumerados
cede - art. 72.º do CPP, permitindo-se, então, o uso autónomo dos meios processuais civis),
determina, porém, para respeitar a finalidade funcional do princípio, que a autonomia
qualitativa dos pressupostos se sobreponha e exija a continuidade instrumental do processo
para apreciação do pedido de indemnização sempre que, cedendo por circunstâncias próprias
a acção penal, se mantenham, ainda assim, em aberto possibilidades de verificação dos
pressupostos da reparação civil.
V - Os fundamentos da acção que, aderindo ao processo penal, ficam interdependentes, sendo
qualitativamente diversos, têm, no entanto, que revelar uma unidade material que constitui a
base relevante para a verificação, positiva ou negativa, dos respectivos pressupostos. A
reparação fundada na prática de um crime reverte, na base, às correlações factuais e ao
complexo de factos que constituem, ou são processualmente identificados como constituindo,
um crime: tipicidade dos factos, ilicitude, imputação ao agente, dignidade penal.
VI - Consistindo a ilicitude penal numa «ilicitude qualificada», não está excluído que uma
base factual, com autonomia e identidade próprias, que não atinja a dimensão «qualificada»
do nível de ilicitude, possa suportar ou exigir uma valoração de outro nível segundo uma
67
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

outra fonte de antinormatividade, nomeadamente no plano dos pressupostos da


responsabilidade civil.
VII - Deste modo, se o arguido for absolvido de um crime e subsistir, apesar da absolvição,
uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação
da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa
dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão
especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos - seja
responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco.
VIII - No que respeita a valores inerentes à personalidade, a lei tutela em geral, no art. 70.º do
CC, a personalidade individual, determinado a protecção dos indivíduos contra qualquer
ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física e moral, e especificamente protege
no art. 484.º do CC aspectos particulares da personalidade moral, impondo a reparação dos
danos causados por «quem afirmar ou difundir facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom
nome de qualquer pessoa singular ou colectiva».
IX - O crédito ou o bom-nome são, pois, elementos que compõem e integram os direitos
inerentes à personalidade, tanto no plano da seriedade e honestidade negocial, como na
reputação, que é «a consideração dos outros na qual se reflecte a dignidade pessoal» e que
pode ser afectada «independentemente de se atribuírem qualidades eticamente aviltantes». A
reputação «representa a visão exterior sobre a dignidade de cada um, o apreço social, o bom-
nome de que cada um goza no círculo das suas relações» ou da comunidade onde se insere
(cf. Ac. do STJ de 12-01-2000, Proc. n.º 761/99).
X - A ofensa ao crédito resultará da divulgação de facto que tenha como consequência a
diminuição ou a afectação da confiança sobre a capacidade de cumprimento das obrigações da
pessoa visada; a ofensa ao bom-nome abala o prestígio e a consideração social de que uma
pessoa goze, perturbando o conceito e a apreciação positiva com que alguém é considerado no
meio social onde se insere e se desenvolve a sua vida: o prestígio coincide, assim, com a
consideração social das pessoas, que se projecta em perspectiva relacional entre a pessoa e o
meio social.
XI - Os direitos de personalidade não estão, por seu lado, excluídos da capacidade de gozo
das pessoas colectivas, que têm direito ao bom-nome e à honra e consideração social - arts.
26.º, n.º 1, da CRP, e 70.º, n.º 1, e 72.º, n.º 1, do CC. O direito ao bom-nome das pessoas
colectivas está, assim, protegido por lei, entendido no quadro da actividade que desenvolvem,
ou seja, na imagem e consideração exterior, na honestidade da acção, na credibilidade e no
prestígio social (cf. Ac. do STJ de 08-03-2007, Proc. n.º 566/07).
XII - A afirmação ou divulgação de facto susceptível («capaz», na expressão da lei - art. 484.º
do CC) de prejudicar o crédito ou o bom-nome constitui, pois, um facto ilícito que integra um
dos pressupostos da obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil - art. 483.º,
n.º 1, do CC.
XIII - Na imprensa escrita, os títulos, bem como as fotografias ou outras representações
gráficas, têm uma função de destaque preliminar, imediato, impressivo que se destina a
transmitir uma mensagem de primeira aparência, simples e mais facilmente apreensível sobre
determinados factos noticiados ou sobre comentários produzidos.
XIV - Os títulos pretendem evidenciar os aspectos mais característicos da notícia,
«apresentando-a de forma icástica e sintética», com «particular força impressiva», possuindo,
por isso, muitas vezes, «uma acrescida eficácia corrosiva»; constituem uma «síntese» que
«por antonomásia se identifica com o conteúdo total da notícia», com a consequência de
muitas vezes a imagem ou a impressão resultante do título ser aquilo que se retira e se fica a
saber (cf. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, págs. 620-621). Por
isso, para intensificar a força das impressões, o título exorbita, por vezes, dos factos narrados,
68
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

em «escala variável» de distanciamento com maior ou menor deformação ou desvio dos


textos a que se refere e que pretende apresentar de forma sintética.
XV - Os títulos possuem, assim, um conteúdo informativo ou de mensagem que existe (pode
existir) autonomamente na análise de conjunto com o conteúdo do artigo ou da notícia a que
se referem, identificam ou titulam. Possuindo conteúdo autónomo, que pode descolar dos
textos titulados que assinalam, possuem uma «intrínseca idoneidade» para afectar o direito ao
crédito ou ao bom-nome, que pode ser particularmente reforçada pela natureza «sintética,
apelativa e assertiva» que usualmente revelam (Faria Costa, ibidem, pág. 621).
XVI - O grau de autonomia do conteúdo do título está, pois, dependente da leitura conjunta
com o texto a que se refere, e da relação de confirmação, infirmação, proximidade ou
afastamento, ou da natureza assertiva dos juízos de valor que impressivamente transmite, e do
maior, menor ou mesmo inexistente fundamento nos factos narrados ou comentados no texto
que enquadra, ou até na identificação externa com o conteúdo total da notícia.
XVII - Na construção do título, o qualificativo «maus tratos», associado a «terror» e
«pesadelo», transmite, por si, uma ideia de imensa e pavorosa gravidade, dada a carga
significante ligada a «maus tratos» que é assimilada a crimes contra menores e vista como
atitudes ou comportamentos em que se manifestam no mais elevado grau qualidades muito
desvaliosas, sobretudo estando em causa uma instituição que se destinaria precisamente a
garantir segurança, tranquilidade e bem-estar aos menores para o adequado desenvolvimento
psicológico e educativo destes e para segurança e tranquilidade dos pais, pelo que a
publicação dos títulos com o referido conteúdo constitui um facto «capaz» de prejudicar o
crédito e o bom-nome, sendo, por isso, ilícito, com o sentido dos arts. 483.º, n.º 1, e 484.º do
CC, salvo se concorrer alguma causa de justificação que afaste a ilicitude da afirmação ou
divulgação.
XVIII - A circunstância de a afirmação e a divulgação terem ocorrido através da imprensa
introduz um elemento específico de decisão, porque a ilicitude será excluída se a divulgação
constituir o exercício do direito de expressar opiniões ou o pensamento, ou o cumprimento do
dever de informar.
XIX - A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, não obstante o respectivo lugar
constitucional (arts. 37.º e 38.º da CRP), estão, como outros direitos fundamentais, sujeitas a
condições ou limites que são impostos pela consideração de outros valores ou direitos com
semelhante dignidade constitucional, de entre os quais avultam, pela natureza e pela
susceptibilidade de frequência do conflito, os direitos de personalidade, especialmente os
direitos ao bom-nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e
familiar, também constitucionalmente protegidos no art. 26.º, n.º 1, da CRP, e no art. 70.º e ss.
do CC.
XX - A coordenação, compatibilidade ou concordância prática em casos de confluência ou
conflito devem considerar o «efeito recíproco de mútuo condicionamento entre normas
protectoras de diferentes bens jurídicos», que impõe que «a violação do núcleo essencial do
direito ao bom nome e reputação dificilmente poderá ser legitimada com base no exercício de
um outro direito fundamental» (cf. Jónatas Machado, Liberdade de Expressão: Dimensões
Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, 2002, pág. 767).
XXI - Na consideração do «efeito recíproco de mútuo condicionamento», a demonstração da
existência de um interesse socialmente relevante, não estritamente político ou público, que
justifique a conduta expressiva, constitui um elemento essencial de avaliação, uma vez que
«dadas as dimensões públicas do crédito e do bom nome há que ponderar o impacto negativo
efectivo da expressão nos bens jurídicos em presença, comparando-a com o impacto positivo
das expressões na transparência e na verdade das relações sociais» (ibidem, pág. 770).

69
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

XXII - Na interpretação e aplicação do art. 10.º da CEDH (que garante a «liberdade de


expressão») no que respeita à liberdade de imprensa, a jurisprudência do TEDH tem revelado
acentuada coerência em registo de protecção forte, por vezes numa função de verdadeira
quarta instância - cf., v.g., os acórdãos Gomes da Silva c. Portugal, de 28-09-2000, Roseiro
Bento c. Portugal, de 18-04-2008, e Azevedo c. Portugal, de 27-03-2008.
XXIII - Tendo em consideração que:
- no contexto em que foram produzidas, as expressões em causa («creche do terror» e «maus
tratos denunciam terror e pesadelo na creche …») não têm relação nem correspondência
factual, ou, ao menos, proporcionada, com os factos mencionados nos artigos que sinalizam
ou titulam, não constituindo, por isso, uma forma forte, simples, imediata e sintética de
apresentação dos artigos publicados no jornal C, pela amplitude da «escala» de afastamento
que revelam entre a narrativa factual das disfunções ocorridas na creche e o conteúdo
semântico e significante das expressões utilizadas;
- as disfuncionalidades ou os incidentes relatados sobre o funcionamento da creche, embora
geradores de legítima preocupação dos pais das crianças, não eram de natureza
exponencialmente grave que indignasse, justificasse, ou estivesse «à medida» da «resposta»
contida nas expressões dos títulos em causa;
- embora a função da imprensa na revelação de situações que podem causar inquietação,
exercendo o direito de denúncia em assuntos de interesse público e social relevante, possa
justificar alguma dose de exagero ou mesmo de provocação, como meio de sublinhar a força
da mensagem ou da revelação, não poderá chegar ao limite de afectar o direito ao bom nome
sem qualquer necessidade ou proporcionalidade, usando modos verbais impressionistas cujo
significado não tem escala de correspondência com as contingências narradas no artigo
elaborado com rigor informativo e de acordo com as regras de cuidado, responsabilidade e
deontologia da profissão de jornalista. Neste particular aspecto, tem de haver algum sentido
grano salis, sem leituras de valor facial, que a adequação e a proporcionalidade não
suportariam. Alguma «dose de exagero e mesmo de provocação», na interpretação da
jurisprudência, tem de ser sempre compreendida no contexto, pela gravidade dos factos
relatados e «na medida» da indignação que suscitem;
é de concluir que ao títulos se constituem assim, autonomamente, como desproporcionados,
ultrapassando manifestamente a necessidade própria ao exercício da liberdade de informação
e expressão.
XXIV - E, nestas circunstâncias, em leitura conjugada e em contexto comunicante dos arts.
10.º, § 2, da CEDH, e 483.º, n.º 1, e 484.º do CC, não se verifica uma causa de justificação,
porque a publicação dos títulos com o referido conteúdo não integra, nas condições referidas,
o exercício do direito de criação jornalística e expressão adequada e proporcional à afirmação
da liberdade de imprensa. A publicação das expressões contestadas constitui um facto ilícito,
e a reparação no âmbito da responsabilidade civil, se integrados os restantes elementos de que
depende, uma ingerência que se impõe numa sociedade democrática, e proporcional à
necessidade de protecção dos direitos da pessoa visada.
XXV - Da conjunção normativa dos arts. 19.º a 21.º e 29.º da Lei 2/99, de 13-01 (Lei de
Imprensa), sobre as competências e as obrigações do director, resulta que, por directa
imposição da lei, a orientação e a determinação do conteúdo da publicação competem àquele -
ou a quem legalmente o substitua nas ausências e impedimentos -, ficando constituído em
primeiro e último responsável pelos «escritos ou imagens» inseridos em publicação periódica
que dirija (cf., também, Ac. do STJ de 14-05-2002, Proc. n.º 4212/01, e Ac. do TC n.º 270/87,
BMJ 369.º/250).
XXVI - A imputação ao director da publicação do «escrito», que resulta da própria
titularidade e exercício da função e dos inerentes deveres de conhecimento, integra, na
70
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

construção conceptual, uma presunção legal, que dispensa o interessado da prova do facto (o
conhecimento, a aceitação e a imputação da publicação) a que a presunção conduz (art. 350.º,
n.º 1, do CC), admitindo, porém, que o onerado ilida a presunção mediante prova em
contrário (art. 350.º, n.º 2, do CC). Deste modo, demandado civilmente o director, e vista a
amplitude da formulação dos termos da responsabilidade e da consequente presunção, basta
invocar os factos que integrem o ilícito (no caso, a publicação do «escrito») e a qualidade de
director do demandado, cabendo a este ilidir a presunção, alegando e provando que o escrito
foi publicado sem o seu conhecimento ou com oposição sua ou do seu substituto legal.
XXVII - Não tendo o director do jornal, demandado civil, alegado sequer qualquer facto que,
se provado, permitisse ilidir a base da presunção, há que concluir, segundo as regras materiais
e processuais referidas, que agiu com culpa, por ter aceite, expressa ou tacitamente - ou por,
no cumprimento dos deveres do cargo, não ter impedido -, a publicação dos textos
questionados.
10-07-2008 - Proc. n.º 1410/08 - 3.ª Secção - Henriques Gaspar (relator) e Armindo Monteiro

Recurso de revisão - Difamação - Liberdade de expressão - Tribunal Europeu dos


Direitos do Homem - Convenção Europeia dos Direitos do Homem - Inconciliabilidade
de decisões
I - O recorrente foi condenado pela prática de um crime de difamação, na pena de 100 dias de
multa, à taxa diária de € 10 ou 66 dias de prisão subsidiária, sendo certo que, com base no
mesmo quadro factual, o TEDH concluiu que a condenação do requerente “resultaria num
entrave substancial da liberdade de que devem beneficiar os investigadores no âmbito do seu
trabalho científico”, pelo que, no caso concreto, foi violado o art. 10.º da CEDH, assim sendo
condenado Portugal, na sua qualidade de subscritor dessa Convenção - Ac. de 27-03-2008. II
- Esta decisão, proferida por uma instância internacional e que vincula o Estado Português,
está frontalmente em oposição com a decisão condenatória proferida pelos Tribunais
portugueses.
III - O TEDH, na esteira, aliás, de jurisprudência abundante, onde se contam várias decisões
condenando o Estado Português, considerou que, estando em causa a liberdade de expressão
em matéria científica e portanto, em matéria de relevante interesse público, a liberdade de
expressão goza de uma ampla latitude, só se justificando uma ingerência restritiva do Estado,
mesmo por meio dos tribunais, desde que a restrição constitua uma providência necessária,
numa sociedade democrática, entre outros objectivos, para garantir a protecção da honra ou
dos direitos de outrem, em conformidade com o n.º 2 do art. 10.º da Convenção, sendo que
essa excepção tem de corresponder a uma “necessidade social imperiosa”.
IV - No caso sub judice, o TEDH teve como não verificada essa condição, afirmando a
primazia da liberdade de expressão, considerando que a condenação do requerente não
representou um meio razoavelmente proporcional, com vista ao cumprimento do objectivo
legítimo visado, tendo em conta o interesse da sociedade democrática em assegurar e manter a
liberdade de expressão.
V - Verifica-se inconciliabilidade de decisões e, mais do que isso, oposição de julgados, visto
que, enquanto que os Tribunais portugueses consideraram violado o direito à honra da
assistente e condenaram o recorrente com esse fundamento, o TEDH considerou que aquela
violação se continha dentro dos limites do art. 10.º da Convenção, sendo a sua condenação
desproporcionada e não justificada como meio de defesa do direito à honra, em face do direito
à liberdade de expressão.
VI - A CEDH foi acolhida pela CRP (art. 16.º) e o Estado Português ratificou-a pela Lei
65/78, de 13-10; tendo sido depositada em 09-11-1978, entrou em vigor nessa data, passando

71
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

a vincular o Estado Português; assim sendo e dada a inconciliabilidade de decisões, há


fundamento para a pretendida revisão de sentença.
23-04-2009 - Proc. n.º 104/02.5TACTB - A.S1 - 5.ª Secção - Rodrigues da Costa (relator),
Arménio Sottomayor e Carmona da Mota

Recurso de revisão - Sentença - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem -


Inconciliabilidade de decisões - Caso julgado - Interpretação - Violação de segredo
I - O fundamento de revisão de sentença previsto na al. g) do n.º 1 do art. 449.º do CPP foi
introduzido no nosso ordenamento jurídico-penal pelas alterações processuais operadas em
2007, concretamente pela Lei 48/2007, de 29-08, fundamento que o legislador estendeu,
também, ao processo civil (art. 771.º, al. f), do CPC, na redacção dada pelo art. 1.º do DL
303/2007, de 24-08).
II - O legislador de 2007, na estrita literalidade da lei, foi bem mais longe do que a
Recomendação R (2000) 2 [adoptada na reunião do Comité de Ministros do Conselho da
Europa ocorrida em 19-01-2000] dirigida aos Estados membros, relativa ao reexame e
reabertura de determinados processos ao nível interno na sequência de acórdãos do TEDH.
III - Não só considerou admissível a revisão de sentença (condenatória) perante sentença
proveniente de qualquer instância internacional, obviamente desde que vinculativa do Estado
Português, como se limitou a exigir, como seu único pressuposto, a ocorrência de
inconciliabilidade entre as duas decisões ou de graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
IV - Verdadeiramente, o legislador de 2007, ao permitir a revisão de sentença em termos tão
latos, instituiu, indirectamente, um novo grau de recurso, quer em matéria criminal, quer em
matéria civil, grau de recurso manifestamente inconstitucional, por notoriamente violador do
caso julgado. Tenha-se em vista que a própria CEDH prevê como excepções ao caso julgado,
em processo penal, a descoberta de factos novos ou recentemente revelados ou um vício
fundamental no processo anterior.
V - Por isso, é mister proceder a uma interpretação restritiva da lei no que concerne ao
fundamento de revisão recentemente criado, interpretação que deverá ser claramente assumida
pela jurisprudência deste Supremo Tribunal designadamente nos casos em que se revele
intoleravelmente postergado o princípio non bis in idem, obviamente na sua dimensão
objectiva, ou outros direitos e princípios de matriz constitucional.
VI - Tal interpretação restritiva deve orientar-se no sentido dos princípios consignados na
referida Recomendação, concretamente do princípio segundo o qual a reabertura de processos
só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH constate que a decisão interna
que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à Convenção, ou quando constate a
ocorrência de uma violação da Convenção em virtude de erros ou falhas processuais de uma
gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada
continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que
não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas
podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio
in integrum.
VII - É esta, aliás, a solução legislativa consagrada na lei processual penal francesa que
permite, também, a revisão de sentença penal condenatória perante decisão proferida pelo
TEDH.
VIII - Trata-se de limitações razoáveis que visam a harmonização entre o princípio non bis in
idem, na sua dimensão objectiva (exceptio judicati), princípio inerente ao Estado de Direito, e
a necessidade de reposição da verdade e da justiça, designadamente quando estão em causa
direitos fundamentais do cidadão, limitações impostas, também, pela necessidade de garantir,
minimamente, a soberania nacional em matéria judicial.
72
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

IX - Para além destas limitações, decorrentes da própria Recomendação, há que ter em


consideração, ainda, a partir de uma interpretação histórica e teleológica, o desejo e a intenção
do Comité de Ministros do CE que aprovou a Recomendação, desejo e intenção expressos na
respectiva exposição de motivos, através da indicação das situações em que se justifica a
revisão, quais sejam:
a) pessoas condenadas a longas penas de prisão e que continuam presas quando o seu caso é
examinado pelo TEDH;
b) pessoas injustamente privadas dos seus direitos civis e políticos;
c) pessoas expulsas com violação do seu direito ao respeito da sua vida familiar;
d) crianças interditas injustamente de todo o contacto com os pais;
e) condenações penais que violem os arts. 10.º ou 9.º, porque as declarações que as
autoridades nacionais qualificam de criminais constituem o exercício legítimo da liberdade de
expressão da parte lesada ou exercício legítimo da sua liberdade religiosa;
f) nos casos em que a parte não teve tempo ou as facilidades para preparar a sua defesa nos
processos penais;
g) nos casos em que a condenação se baseia em declarações extorquidas sob tortura ou sobre
meios que a parte lesada nunca teve a possibilidade de verificar;
h) nos processos civis, nos casos em que as partes não foram tratadas com o respeito do
princípio da igualdade de armas.
X - No caso vertente estamos perante decisão do TEDH condenatória do Estado Português, na
qual se considerou que a sentença condenatória proferida pelas instâncias nacionais contra o
recorrente violou o art. 10.º da CEDH, por se haver entendido que a sua condenação não
correspondia a uma necessidade social imperiosa, atenta a necessidade de tutela do segredo de
justiça no caso concreto, constituindo uma ingerência desproporcionada no direito à liberdade
de expressão, razão pela qual foi decidido condenar o Estado Português a pagar ao recorrente
a quantia pedida de € 1750, a título de danos materiais, acrescida de € 7500, a título de
reembolso de custas e outras despesas, e considerar que a confirmação da violação ocorrida
por parte do TEDH constitui por si reparação equitativa suficiente pelos danos morais
sofridos, nos termos do art. 41.º da CEDH.
XI - Tendo o TEDH considerado violado o art. 10.º da CEDH há que conceder provimento ao
recurso, autorizando a revisão de sentença.
XII - Já a peticionada revogação da sentença terá de improceder, consabido que o
ordenamento jurídico nacional permite, apenas, a revisão de sentença e não também recurso
de revogação ou anulação.
27-05-2009 - Proc. n.º 55/01.0TBEPS-A.S1 - 3.ª Secção - Oliveira Mendes (relator), Maia
Costa (tem declaração de voto) e Pereira Madeira

Difamação - Injúria - Bem jurídico protegido - Crimes de perigo - Abuso de liberdade


de imprensa - Liberdade de expressão - Direito de crítica
I - O crime de difamação, tendo como objecto o mesmo bem jurídico do crime de injúria - a
honra e consideração -, distingue-se desta por a imputação de factos ou utilização de
expressões ser feita por intermediação de um terceiro, com quem o agente comunica por
qualquer forma verbal ou escrita, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos
ofensivos da sua honra e consideração, ao passo que, na injúria, a imputação ou juízo
ofensivos da honra são dirigidos directamente ao titular desse bem jurídico (arts. 180.º, n.º 1, e
181.º, n.º 1, do CP).
II - Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da
pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas

73
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade
da ofensa para produzir o dano.
III - Se as expressões utilizadas pelo demandado no seu escrito constituem um ataque directo
à pessoa do demandante, nada têm a ver com uma crítica da sua actuação, pois esta, por muito
contundente que seja, exige sempre uma relação com o objecto criticado, e uma relação
lógica, racionalmente fundada, o que não exclui a ironia, o humor, mesmo corrosivo, e o tom
sarcástico.
IV - Criticar é tomar o objecto da crítica e julgá-lo, pois a crítica tem uma vertente judicativa.
Não se exigindo que a actividade judicatória seja necessariamente sisuda e circunspecta,
sendo compatível com uma multiplicidade de registos, desde o sério ao cómico, o que é certo
é que ela tem de manter uma relação lógica com o objecto criticado e não descambar para o
ataque pessoal, sobretudo quando tal ataque entre no domínio da ofensa à honra e
consideração das pessoas. Se é verdade que o exercício da liberdade de expressão e de
comunicação exigem, muitas vezes, um recuo da tutela da honra, esse recuo há-de ser
justificado como meio necessário, adequado e proporcional para o exercício eficaz daquele
direito.
V - O mesmo se diga em relação ao direito de emitir opinião num artigo opinativo. Sendo a
opinião de tónica subjectiva, a verdade é que ela tem de partir de um substrato objectivo e
manter com ele uma ligação lógica. Podendo expender-se uma opinião, tanto sobre um facto,
um acontecimento, como sobre uma pessoa, esta última é sempre mais difícil de aceitar,
sobretudo quando se traduz numa opinião desfavorável, porque aí é mais fácil o resvalamento
para o domínio do ilícito.
VI - Uma tradição longamente firmada no seio das democracias admite com largueza a crítica
e a opinião em certos domínios sociais e sobretudo políticos, aqui envolvendo mesmo os
protagonistas. Todavia, a crítica e a opinião não podem ter como único sustentáculo, mesmo
aí, o ataque pessoal, sobretudo quando esse ataque é imotivado, cego, ditado pela paixão
ideológica ou por um espírito de vindicta ou de ajuste de contas.
03-06-2009 - Proc. n.º 617/09 - 5.ª Secção - Rodrigues da Costa (relator) e Arménio
Sottomayor

Recurso para fixação de jurisprudência - Pressupostos - Difamação


I - O recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excepcional, com tramitação
especial e autónoma, tendo como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da
jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da
mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
II - Como se extrai do Ac. do STJ de 26-09-1996, Proc. n.º 47750, CJSTJ 1996, tomo 3, pág.
143, face à natureza excepcional do recurso, a interpretação das normas que o regulam deve
fazer-se apertis verbis, ou seja, com o rigor bastante para o conter no seu carácter
extraordinário e não o transformar em mais um recurso ordinário na prática. Ou, como se
refere no Ac. de 23-01-2003, Proc. n.º 1775/02 - 5.ª, que citado no Ac. de 12-03-2008, no
Proc. n.º 407/08 - 3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 253 (5) e no Ac. de 19-03-2009, Proc. n.º
306/09 - 3.ª, a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras deste recurso deve fazer-se
com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excepcionalidade.
III - O “Assento n.º 9/2000”, de 30-03, publicado in DR - I Série - A, de 27-05-2000, fixou
jurisprudência no sentido de que, no requerimento de interposição de recurso deveria constar,
sob pena de rejeição, para além dos requisitos exigidos no n.º 2 do art. 438.º, o sentido em que
deveria fixar-se a jurisprudência cuja fixação era pretendida.
IV - O AUJ n.º 5/2006, de 20-04, publicado in DR - I Série - A, de 06-06-2006, que reputou
ultrapassada a jurisprudência assim fixada, procedeu ao seu reexame, e fixou-a no sentido de
74
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

que no requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência o


recorrente ao pedir a resolução do conflito não tem de indicar o sentido em que deve fixar-se
jurisprudência.
V - Para além dos requisitos de ordem formal, como o trânsito em julgado de ambas as
decisões, a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do
acórdão recorrido, a invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao
recurso e a identificação do acórdão - fundamento, com o qual o recorrido se encontra em
oposição, indicando-se o lugar da sua publicação, se estiver publicado, é necessária a
verificação de outros pressupostos de natureza substancial, como a justificação da oposição
entre os acórdãos, que motiva o conflito de jurisprudência e a verificação de identidade de
legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.
VI - Como se extrai do Ac. do STJ de 13-10-1989, in AJ, n.º 2, «É indispensável para se
verificar a oposição de julgados:
a) que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como
efeito fixar ou consagrar soluções diferentes (e não apenas contraposição de fundamentos ou
de afirmações) para a mesma questão fundamental de direito;
b) que as decisões em oposição sejam expressas (e não implícitas);
c) que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as
decisões, idênticos. A expressão “soluções opostas” pressupõe que nos dois acórdãos é
idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição
respeita às decisões e não aos fundamentos».
VII - Segundo o Ac. de 25-09-1997, Proc. n.º 684/97 - 3.ª, in Sumários de Acórdãos do STJ,
Gabinete de Assessoria, n.º 13, pág. 142, são pressupostos da admissibilidade do recurso
extraordinário para fixação de jurisprudência na oposição de acórdãos da mesma Relação:
- existência de soluções opostas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento;
- relativamente à mesma questão de direito;
- no domínio da mesma legislação;
- identidade das situações de facto contempladas nas decisões em confronto; e
- julgados explícitos ou expressos sobre idênticas situações de facto.
VIII - No que respeita aos requisitos legais (decisões opostas proferidas sobre a mesma
questão de direito e identidade de lei reguladora - requisitos resultantes directamente da lei) a
jurisprudência do STJ, de forma uniforme e pacífica, aditou, de há muito e face ao disposto no
art. 763.º do CPC, a incontornável necessidade de identidade dos factos contemplados nas
duas decisões e decisão expressa, não se restringindo à oposição entre as soluções ou razões
de direito.
IX - Segundo o Ac. de 15-11-1966, Proc. n.º 61536, publicado no BMJ n.º 161, pág. 354, não
há oposição que legitime o recurso para o Tribunal Pleno quando o acórdão invocado em
oposição só implicitamente se pronunciou sobre a questão controvertida.
X - Como se extrai do Ac. de 23-05-1967, Proc. n.º 61873, BMJ n.º 167, pág. 454, de entre os
requisitos de seguimento de um recurso para o Tribunal Pleno, era “indispensável, ainda,
segundo a orientação do STJ, que sejam idênticos os factos contemplados nos dois acórdãos e
que em ambos sejam expressas as decisões”. Ainda neste sentido podem ver-se os Acs. do
STJ de 19-02-1963, BMJ n.º 124, pág. 633; de 25-05-1965, BMJ n.º 147, pág. 250; de 08-02-
1966, BMJ n.º 154, pág. 263 e de 21-02-1969, BMJ n.º 184, pág. 249.
XI - A jurisprudência do STJ tem sido constante neste sentido ao longo do tempo – cf. Acs. de
11-07-1991, Proc. n.º 42043; de 26-02-1997, Proc. n.º 1173, SASTJ, n.º 8, pág. 102; de 06-
03-2003, Proc. n.º 4501/02-3.ª, in CJSTJ 2003, tomo 1, pág. 228; de 28-09-2005, Proc. n.º
642/05 - 3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 178; de 18-10-2006, Proc. n.º 3503/06 - 3.ª; de 23-
11-2006, Proc. n.º 3032/06 - 5.ª; de 10-01-2007, Proc. n.º 4042/06 - 3.ª; de 06-02-2008, Proc.
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Sumários de acórdãos das Secções Criminais

n.º 4195/07 - 3.ª; de 27-02-2008, Proc. n.º 436/08 - 3.ª; de 27-03-2008, Proc. n.º 670/08 - 5.ª;
de 16-09-2008, Proc. n.º 2187/08 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 4272/07 - 5.ª, in CJSTJ 2008,
tomo 2, pág. 194; de 02-10-2008, Proc. n.º 2484/08 - 5.ª; de 08-10-2008, Proc. n.º 2807/08 -
5.ª; de 12-11-2008, Proc. n.º 3541/08 - 3.ª CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 221; de 12-02-2009,
Proc. n.º 3542/08 - 5.ª; de 15-04-2009, Proc. n.º 3263/08 - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º
107/07.3GASPS-B.C1-A.S1 - 3.ª; de 10-02-2010, Proc. n.º 583/02.0TALRS.L1-A.S1 - 3.ª, de
18-02-2010, Proc. n.º 12323/03.2TDLSB.L1-A.S1 - 5.ª; de 03-03-2010, Proc. n.º
6965/07.4TDLSB.L1-A.S1 - 3.ª.
XII - Explicitam os citados Acs. de 03-04-2008, de 02-10-2008, de 08-10-2008 e de 12-02-
2009, todos do mesmo relator, que a expressão “soluções opostas” «pressupõe que nos dois
acórdãos seja idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e
que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos; se nas decisões em confronto se
consideraram idênticos factores, mas é diferente a situação de facto de cada caso, não se pode
afirmar a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do n.º 1 do art. 437.º do CPP».
XIII - Segundo o Ac. de 13-02-2008, Proc. n.º 4368/07 - 5.ª, a exigência de soluções
antagónicas pressupõe identidade de situações de facto, pois não sendo elas idênticas, as
soluções de direito não podem ser as mesmas.
XIV - E de acordo com o Ac. de 10-07-2008, Proc. n.º 669/08 - 5.ª e de 25-03-2009, Proc. n.º
477/09 - 5.ª, o recurso tem de assentar em julgados explícitos ou expressos sobre situações de
facto idênticas, sendo necessário, como requisito prévio, que tenha havido decisões jurídicas
fundamentadas e expressas sobre o mesmo ponto de direito, por dois tribunais superiores e em
sentido oposto, sendo necessário, na explicitação do Ac. de 03-07-2008, Proc. n.º 1955/08 -
5.ª, que ambos se debrucem especificamente sobre a questão jurídica que esteve na base da
decisão diferente.
XV - Podem ver-se ainda os Acs. de 12-03-2009, Procs. n.º 576/09 - 5.ª (interessa pois que a
situação fáctica tenha os mesmos contornos, no que releva para desencadear a aplicação das
mesmas normas) e n.º 477/09 - 5.ª (o recurso para fixação de jurisprudência tem de assentar
em julgados explícitos ou expressos sobre situações de facto idênticas); de 25-03-2009, Proc.
n.º 477/09 - 5.ª; de 15-04-2009, Proc. n.º 3263/08 - 3.ª; de 10-09-2009, Proc. n.º
458/08.0GAVGS.C1-A.S1 - 5.ª (interessa que a situação fáctica se apresente com contornos
equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas) e de
10-09-2009, Proc. n.º 183/07.9GTGRD.C1.S1 - 3.ª, onde se refere: «Situação de facto
idêntica para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência é apenas a que consta dos
acórdãos legitimados à fixação, no caso a matéria de facto fixada respectivamente em cada
acórdão da Relação. (…). Se a matéria de facto provada nos acórdãos da Relação é diferente,
implicando consequência jurídica também diferente, é óbvio que não pode dizer-se que houve
soluções divergentes que conduziram a soluções opostas relativamente a mesma questão
jurídica. (…) Somente após a fixação da matéria de facto provada se pode definir e decidir o
direito, pois que é sobre a matéria de facto, definitivamente estabelecida, que incide depois o
direito constante da lei aplicável. É a matéria de facto que gera a questão de direito e convoca
à aplicação da lei e não o contrário. E somente depois de fixada a questão de facto é que surge
a questão de direito. Por isso se compreende que somente perante situações jurídicas
decididas de forma oposta perante matéria de facto idêntica é que pode configurar-se recurso
de fixação de jurisprudência, verificados os demais pressupostos».
XVI - No mesmo sentido ainda os Acs. de 28-10-2009, Proc. n.º 326/05.7IDVCT-B - 3.ª,
Proc. n.º 536/09.8YFLSB-A.S1 - 3.ª, e de 05-05-2010, Proc. n.º 61/10.4YFLSB - 3.ª.
XVII - Ainda de acordo com o Ac. de 13-01-2010, Proc. n.º 611/09.9YFLSB.S1 - 3.ª, a
oposição tem de ser expressa, e não meramente tácita, e incidir sobre a decisão, e não apenas

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Sumários de acórdãos das Secções Criminais

sobre os seus fundamentos, e pressupõe igualmente uma identidade essencial da situação de


facto de ambos os acórdãos em confronto.
XVIII - Como se extrai do Ac. de 25-02-2010, Proc. n.º 471/08.7GEGMR.G-A.S1 - 5.ª, não
se pode fixar jurisprudência sobre o grau de culpa de um determinado facto ilícito, pois a
apreciação da culpa supõe sempre uma margem de liberdade do tribunal que não pode ser
objecto de qualquer fixação de jurisprudência; essa apreciação varia de caso para caso, de
acordo com as circunstâncias concretas, em que entram elementos objectivos como
subjectivos.
XIX - Segundo o Ac. de 18-03-2010, proferido no Proc. n.º 353/04.1GDSNT.L1-A.S1 - 5.ª, o
recurso em causa não visa a correcção de erros de subsunção.
XX - A questão central em debate num e noutro dos processos em confronto gira em torno da
dicotomia direito à honra e bom nome/direito à liberdade de crítica e expressão, discutindo-se
a prevalência de um ou outro, mas assume características, enquadramentos, contornos,
incidências e desenvolvimentos muito diversos num e noutro processo.
XXI - Ademais, as circunstâncias concretas em que assentaram os julgados são efectivamente
muito diversas, tendo os julgadores de pronunciar-se sobre situações de facto diferentes, sem
dúvida revestindo maior complexidade o caso do escrito difundido na imprensa, desde logo
face à “intromissão” da ponderação de ocorrência no caso da causa de justificação prevista na
al. b) do n.º 2 do art. 180.º CP. Desde logo, há que assinalar que em confronto estão, por um
lado, um acórdão confirmativo de uma sentença final, condenatória, que inclusive passou pelo
crivo do TC por questões relacionadas com a fixação da matéria de facto, determinando
segundo julgamento com vista a reparar o juízo de constitucionalidade, para possibilitar ao
arguido a prova da exceptio veritatis, do que resultou ampliação da matéria de facto; por
outro, um acórdão confirmativo de um despacho de não pronúncia, o que desde logo patenteia
as diferenças entre um e outro casos.
XXII - Confrontadas as duas situações pode concluir-se que no fundo a razão da discrepância
das duas decisões não reside tanto na interpretação divergente da lei aplicável, pois essa
divergência seria visível se estivéssemos perante situações de facto idênticas. Mas não é isso
o que ocorre aqui. O que se verifica é a divergência entre a facticidade apurada num e noutro
caso, e inclusive, a necessidade de formulação de juízos de diversa amplitude, bastando
atender que no caso do processo de que emergiu o acórdão recorrido houve que decidir, se
sim ou não, se preenchia a causa de justificação da prova da veracidade dos factos imputados,
supondo-se num e noutro caso uma margem de apreciação do tribunal que não pode ser
uniformizada, pois variará de caso para caso.
XXIII - Não se pode fixar jurisprudência em caso em que o que está em causa é saber se
determinada conduta, consoante a sua intensidade/potencialidade ofensiva da honra deve ou
não prevalecer sobre o direito de expressão e assim, determinar se é ou não punível, pois tal
depende da configuração de parâmetros objectivos e subjectivos, absolutamente variáveis, que
suportarão a formulação de juízo num ou noutro sentido, o que impede que se trace um
sentido uniformizador de procedimentos.
XXIV - Sendo diferentes os pressupostos factuais, diversas foram as situações de facto e em
consequência os respectivos enquadramentos jurídicos, o que não surpreende, pois a aferição
da tipicidade/atipicidade das condutas tem necessariamente de ser feita caso a caso, tendo em
conta o circunstancialismo próprio, as especificidades de cada situação submetida a juízo.
15-09-2010 - Proc. n.º 82/00.5TBVGS.C1-A.S1 - 3.ª Secção - Raul Borges (relator) -
Fernando Fróis e Pereira Madeira

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Sumários de acórdãos das Secções Criminais

Acusação - Princípio da vinculação temática – Rejeição - Despacho que designa dia para
a audiência - Nulidade sanável – Difamação – Injúria – Bem jurídico protegido - Direito
de crítica- Direito à honra
I - O objecto do recurso centra-se em saber se o despacho de rejeição da acusação (particular,
que rejeitou considerando-a manifestamente infundada, por os factos imputados ao arguido
não constituírem crime), se contém nos limites do controlo dos vícios estruturais da acusação.
II - A acusação, sendo uma condição indispensável do julgamento, por ser pela acusação que
se fixa o objecto do processo, há-de conter os factos que são imputados ao arguido e esses
factos hão-de integrar a prática, pelo arguido, do ilícito penal pelo qual é requerido o seu
julgamento; não havendo lugar à fase da instrução, a legalidade da acusação está sujeita a
fiscalização judicial, por via do despacho a que se refere o art. 311.º do CPP, no âmbito do
qual se terá de aferir da ocorrência dos pressupostos legais para que a acusação possa ser
admitida.
III - O art. 311.º, n.º 2, al. a), dispõe que se o processo tiver sido remetido para julgamento
sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a
considerar manifestamente infundada, devendo entender-se como tal aquela que não contenha
a identificação do arguido, a narração dos factos, as disposições legais aplicáveis ou as provas
que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime (n.º 3 dessa norma).
IV - Já foi notado, e com razão, que os vícios elencados no n.º 3 do art. 311.º se sobrepõem às
nulidades sanáveis do art. 283.º, n.º 3, als. a), b), e c), pelo que as ditas nulidades se
convertem em matéria de conhecimento oficioso do tribunal.
V - A tutela penal do direito constitucional “ao bom-nome e reputação” – art. 26.º, n.º 1, da
CRP –, é assegurada, em primeira linha, pelos arts. 180.º e 181.º do CP que, na descrição
típica, utilizam a expressão “ofensivos da honra e consideração”, não se podendo prescindir
de definir o conceito de “honra”.
VI - A doutrina dominante adopta uma concepção dual da honra: esta é vista como um bem
jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na
sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que o bem jurídico
protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais
e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua reputação no seio da comunidade.
VII - Esta é a doutrina compatível com a nossa própria lei, já que o nosso ordenamento
jurídico-penal, em consonância com a ordem constitucional, alarga o conceito da honra
também à consideração ou reputação exteriores.
VIII - A jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado
sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico “honra”, que o
faça contrastar como o conceito de “consideração” ou com os conceitos jurídico-
constitucionais de “bom-nome” e de “reputação”, nunca tendo tido entre nós aceitação a
restrição da “honra” ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de
fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e
opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de
um conceito puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo da honra.
Por isso se pode concluir seguramente pela total congruência entre a tutela jurídico-penal e a
protecção jurídico-constitucional dos valores da honra das pessoas – cf. Figueiredo Dias, RLJ,
Ano 115.º, pág. 105.
IX - Segundo o entendimento hoje dominante, os juízos de apreciação e valoração vertidos
sobre realizações ou prestações, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica
objectiva, caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação – cf. Costa Andrade,
Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, págs. 232 a 240.

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Sumários de acórdãos das Secções Criminais

X - E no sentido da atipicidade da crítica objectiva afastam-se, hoje, as exigências de


proporcionalidade e da necessidade objectiva, do bem-fundado ou da “verdade”, bem como o
pressuposto do meio menos gravoso.
XI - Ou seja, a tese da atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação
material ou da “verdade” das apreciações subscritas. Por outro lado, o direito de crítica com
este sentido não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das
expressões utilizadas.
XII - É hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a actuação das instâncias
públicas ao escrutínio do direito de crítica objectiva.
XIII - São ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da
crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame: nesta
linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua” pode
igualmente assumir que o seu agente teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” ou
“iníqua” ou que ele foi, em concreto, “persecutório” ou “iníquo”. Aqui, está já presente uma
irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, mas trata-se de sacrifício
ainda coberto pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levado à conta de lesão
típica.
XIV - Já o mesmo não se poderá sustentar para os juízos que atingem a honra e consideração
pessoal perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em
princípio, legitimaria a crítica objectiva.
17-11-2010 - Proc. n.º 51/10.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção -Isabel Pais Martins (relatora, por
vencimento) - Soares Ramos (com declaração de voto) e Santos Carvalho

Processo respeitante a magistrado – Difamação - Abuso de liberdade de imprensa – Juiz


- Acórdão da Relação - Admissibilidade de recurso - Prova indiciária - Direito de crítica
- Prevenção geral - Prevenção especial - Medida concreta da pena - Danos não
patrimoniais- Indemnização - Equidade
I - O recurso, intentado mercê da absolvição, pela Relação, de juiz de direito, pela imputação
de crime cometido no exercício das suas funções, contra procuradora-adjunta, endereçado ao
STJ por força dos arts. 12.º, n.º 3, al. a), 433.º e 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, abrange no seu
poder cognitivo a reponderação, em forma parcial, de pontos de facto havidos por
incorrectamente julgados, para os quais se procura remédio, em ordem ao estabelecimento de
uma acertada decisão de direito.
II - A decisão, em tal caso, não se basta com meras declarações gerais quanto à razoabilidade
do decidido, requerendo sempre a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e
da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de base à
convicção.
III - A fundamentação da convicção probatória, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, não
impõe a descrição, à exaustão, de todas as motivações, argumentos, razões, em substituição
concentrada dos princípios da oralidade e imediação, transformando-os numa redocumentação
da prova, sem embargo de perante os intervenientes processuais e perante a própria
comunidade a decisão a proferir dever ser clara, transparente, permitindo acompanhar de
modo linear a forma como se desenvolveu o raciocínio que culminou com a decisão da
matéria de facto e, também, de direito.
IV - No processo penal há quem distinga entre factos principais e factos instrumentais, estes
integrados por fragmentos individualizáveis, referindo-se aqueles aos que titulam o objecto da
imputação penal, a premissa fáctica da norma aplicável, e que são pressuposto essencial para
que siga o efeito jurídico visado por tal norma.

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Sumários de acórdãos das Secções Criminais

V - A actividade probatória socorre-se de elementos aptos a integrar directamente a imputação


do facto principal, mas também de factos sobrevindos ao longo da sequência probatória e que
auxiliam à fixação definitiva e mais rigorosa do acervo factual. E esses são os factos
instrumentais. Entre os factos principais ocupam relevo os factos probatórios e, neles, os
notórios e os elementos de prova.
VI - O Tribunal recorrido não fixou factos, não compreendidos entre os provados e os não
provados, mas que relevam à decisão da causa, em certa medida se quedando por uma fixação
lacunar integrante do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito – art.
410.º, n.º 2, do CPP – e que o STJ, a fim de evitar o reenvio, ele próprio, os fixa, como lhe é
legalmente consentido, já que funciona, excepcionalmente, como tribunal em primeiro e
último grau de recurso.
VII - O art. 180.º do CP, ao tipificar o conceito de difamação, distingue entre imputação de
facto, ou suspeita dele, juízo ofensivo da honra e consideração ou reprodução de tal
impugnação, obriga à distinção clássica entre honra e consideração, que conotam os dois bens
ou valores jurídicos envolvidos no tipo.
VIII - A suspeita não envolve um juízo de valor. O juízo só se faz quando se chega a uma
certeza a respeito de alguém. A suspeita é uma hipótese que se formula a respeito de alguém,
não se apresentando, sem mais, um juízo temerário. Uma suspeita só é censurável quando se
basear em elementos logicamente insuficientes, ou seja, quando o for por leviandade, má
vontade ou malícia. Trata-se do mau emprego das regras da lógica e implicitamente de uma
injustiça censurável.
IX - O homem, só pelo facto de o ser, de existir, de ter nascido, tem direito a que a sua
dignidade como tal seja respeitada, por isso, a CRP, no seu art. 26.º, n.º 1, protege, além do
mais, o bom nome e a reputação pessoal, funcionando tal direito como limite a outros, como,
por exemplo, o de informar.
X - A arguida, enquanto juiz de direito, em jeito de balanço sobre o que fora a sua actividade
num determinado tribunal, ao longo de mais de 10 anos, concedeu uma entrevista a um jornal,
onde, depois de aflorar outras questões, aborda a temática da corrupção, acabando por afirmar
que sempre que «se me suscitam dúvidas, elaboro o dossier respectivo e envio para quem de
Direito». Por via de regra, disse, essas participações vão para os superiores hierárquicos e/ou
para o MP.
XI - Mais referiu que no caso que lhe pareceu de maior gravidade, claro que dentro dessa
linha de pensamento com conexão à corrupção, «mandei para o topo da autoridade, o que fiz
muito recentemente, e que não caiu em saco roto». Ora, o dossier reputado por si, da maior
gravidade, enviado ao PGR, permitem os indícios probatórios recolhidos, devidamente
concatenados, sem dispensar, como cumpre em ofensas cometidas em documento, a leitura
integral, concluir ser o que respeitava a certidão de inquérito onde a assistente promoveu a
suspensão provisória e não mereceu acolhimento, ao invés do que antes sucedera em casos
similares.
XII - A prova indiciária é uma prova indirecta, baseada em indícios, também apelidada de
prova lógica; indícios esses que são todas as provas conhecidas e apuradas a partir das quais,
mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão firme, segura e
sólida; a indução parte do particular para o geral e apesar de ser prova indirecta tem a mesma
força que a testemunhal, documental ou outra.
XIII - Os indícios representam uma grande importância em processo penal, já que se não tem
à disposição prova directa, sendo imperioso fazer um esforço lógico, jurídico-intelectual para
o facto não ficar impune. Exigir a todo o custo a existência destas provas directas seria um
fracasso em processo penal, ou forçar a confissão, o que constitui a característica mais notória
do sistema de prova taxada e como expressão máxima a tortura.
80
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

XIV - O indício, para servir de base probatória, tem como requisito de teor formal o facto de
da sentença deverem constar os factos-base e a sua prova, os quais vão servir de base à
dedução ou inferência, além de ali se explicitar o raciocínio através do qual se chegou à
verificação do facto punível, explicitação essa necessária para controlar a racionalidade da
inferência.
XV - Requisito material é estarem os indícios plenamente comprovados por prova directa, os
quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos de facto
punível e sendo vários, devem mostrar-se interrelacionados de modo a reforçarem o juízo de
inferência. Este juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado,
respeitando a lógica da experiência da vida, para que dos indícios derive claramente o facto a
provar, existindo um nexo directo, preciso e adequado.
XVI - A arguida agiu intencionalmente, ao denunciar a suspeita de corrupção, considerando
que, para além de ausência de transparência e a verificação de irregularidades, o procedimento
usado na apresentação do concreto processo no TIC, não sendo habitual, «vem sendo usado
em certos e determinados processos, que envolvem certas e determinadas pessoas e via de
regra, mais cedo ou mais tarde, são alvo de celeuma, para já não falar daquela que provocam
de imediato nos Tribunais aonde ocorrem, tais “atropelos” ao normal e habitual
procedimento».
XVII - E esse seu comportamento intencional, visando a assistente, mostra-se, ainda, presente
na prestação de depoimento no âmbito de inquérito, onde reitera o “eventual favorecimento
pessoal” presente no inquérito onde foi proposta a suspensão provisória do processo.
XVIII - Mas mesmo que não lhe presidisse esse específico intuito, por não ser necessário o
dolo específico, que não prescinde da actuação de acordo com a forma de dolo indicada no
tipo legal, nem por isso o seu comportamento seria impunível, pois o legislador basta-se com
a formulação da suspeita e esta a ser ofensiva da honra e consideração.
XIX - A arguida, juiz de direito, não ignora – não pode ignorar – porque julga o seu
semelhante e, mais ainda, possui em sentido axiológico ou normativo das palavras, arredio,
por vezes, do cidadão comum, que ao pôr a descoberto a existência de favorecimento pessoal,
ofendia a honra e consideração da ofendida.
XX - A arguida criticou certas práticas processuais seguidas em processos penais, em geral,
para depois, em particular, endereçar a crítica a um processo que as entidades nele
directamente envolvidas – e outras sem o estarem –, logo identificaram, e, necessariamente, a
assistente, usando meio público, como é um jornal, em violação, além do mais, do direito de
reserva (art. 12.º, n.º 1, do EMJ) a que está vinculada, por isso sendo até punida, embora sem
trânsito até ao presente, disciplinarmente pelo CSM, além de que a magistrada em causa não é
sua subordinada, devendo-lhe, como às demais pessoas, um tratamento correcto, urbano.
XXI - O direito de crítica, sobretudo o ligado à imprensa, tende a provocar situações de
conflito potencial com bens jurídicos como a honra, e cuja relevância jurídico-penal está, à
partida, excluída por razões de atipicidade. Mas há uma linha de fronteira abaixo da qual se
não pode descer em termos de protecção da honra e consideração da pessoa, sob pena do seu
aviltamento e atentado inqualificável; em nome de uma liberdade irrestrita não pode
desculpabilizar-se uma ofensa à pessoa humana e muito menos se gratuita, sem fundamento,
pois, mais intolerável.
XXII - A independência, imparcialidade e objectividade que se não dispensa a quem julga,
aplica ou promove a aplicação da lei, ou seja, aos magistrados, não é um privilégio seu, mas
um dever funcional que a comunidade lhes defere para a defesa dos seus interesses, situando-
se numa posição acima e além dos intervenientes, à margem de centros de pressão,
condicionantes de uma actuação de isenção e rigor.

81
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

XXIII - A acusação de suspeição de favorecimento pessoal, de corrupção, é altamente lesiva


da visada, por ser magistrada, a quem cumpre, além do mais, o exercício da acção penal,
subordinada ao princípio da legalidade – art. 3.º, n.º 1, al. c), do EMP –, desqualificando-a
pessoal e profissionalmente em alto grau, altamente censurável, porque vinda de juiz de
direito, adstrito à obrigação especial de não lançar essa suspeita sobre outro magistrado e mais
ainda quando absolutamente infundada.
XXIV - A finalidade da pena é a da protecção dos bens jurídicos, sua finalidade pública,
instrumento de contenção de eventuais prevaricadores, ou seja, de prevenção geral, tanto mais
necessária quanto o for a importância dos bens jurídicos a acautelar, sempre com respeito pelo
princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18.º, n.º 1, da CRP, e a de reinserção social
do agente, finalidade particular da pena, actuando sobre a pessoa do agente, em termos de se
conseguir uma emenda cívica, em ordem a não voltar a afrontar a lei, a reincidir – art. 40.º, n.º
1, do CP.
XXV - Estas duas vertentes, exprimindo a teleologia pragmática cabida à pena, interagem na
medida agora concreta da pena, a determinar em função da culpa e das exigências de
prevenção, interferindo, nesse concretismo, circunstâncias inerentes à pessoa do agente, que
agravam ou atenuam a responsabilidade penal, como resulta do art. 71.º, n.ºs 1 e 2, do CP.
XXVI - O dolo da arguida é intenso; a ilicitude, ou seja, o grau de contrariedade à lei, a
atender ao meio de que se serviu para veicular a suspeita, aos maus efeitos dela derivados,
levando à desfiguração da sua imagem, precisamente através de um meio de informação, um
jornal de grande tiragem, aviltando magistrada de grande prestígio entre os seus pares – e não
só –, pessoa de apurada sensibilidade, educação esmerada, de grande apego e brio pelo
trabalho, de reconhecida competência profissional, honesta e digna, absolutamente imérita do
labéu de que foi alvo.
XXVII - E se num primeiro momento essa suspeita, aos olhos do leitor comum, não tinha
rosto, salvo para o núcleo restrito de pessoas que logo a identificaram, logo passou a ser
visada mais a descoberto no mesmo jornal, em data posterior, para depois o seu nome vir
completamente à luz do dia, num outro jornal, desfazendo-se equívocos, dúvidas ou
interrogativas.
XXVIII - O juízo de censura a dirigir-lhe é mais acentuado quando, tendo sido a arguida juiz
de direito por mais de 10 anos no referido tribunal, forçosamente não desconhecia que aquilo
que lhe gerou estranheza não tinha fundamento, era prática seguida. A arguida é delinquente
primária, empenhada no trabalho, dedicada, humana e juiz há longos anos. Gerou algumas
desavenças no mencionado tribunal, consequentes a questões administrativas e de distribuição
de processos, como provimentos.
XXIX - As necessidades de prevenção especial, de emenda cívica, mostram-se esbatidas,
visto a sua ausência de antecedentes criminais, pela integração laboral que denota, pela
qualidade profissional que detém, tudo levando a crer que não reiterará.
XXX - As necessidades de prevenção geral sobrelevam as anteriores, pela frequência a que se
assiste à ofensa ao bom nome e reputação das pessoas, servindo os meios de comunicação
social, escrita e falada, de meio de transmissão da ofensa.
XXXI - Por isso, se condena a arguida como autora material de um crime de difamação
agravada, p. e p. nos arts. 180.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), do CP, na pena de 75 dias de
multa, à taxa diária de € 10, ou seja, na multa de € 750.
XXXII - A lei protege a violação da personalidade, tanto física como moral, desde que esse
dano não patrimonial assuma gravidade para ascender à categoria de interesse juridicamente
protegido, por sensibilização comunitária impressa na lei – art. 70.º do CC. A ofensa ao
crédito e ao bom nome é protegida no art. 484.º do CC. A gravidade da ofensa há-de aferir-se
por um padrão objectivo, segundo as circunstâncias do caso concreto, que exclui uma
82
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

sensibilidade embotada ou particularmente sensível, hiperbolizando o grau de satisfação a ter


presente, pois que o dano deve assumir uma gravidade tal que não fique sem compensação.
XXXIII - Dano é a frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica. A
responsabilidade atinente aos direitos de personalidade insere-se, como regra, no âmbito da
responsabilidade extracontratual, por respeitar ao exercício dos direitos subjectivos. Os
interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podendo ser
reintegrado mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano,
compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, em virtude da aptidão
deste para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses.
XXXIV - Esse dano é fixado em função da equidade, que é o critério do bom senso, da justa
medida das coisas, objectivadas nelas, modelado pelo contributo da jurisprudência dos
tribunais superiores, repudiando o arbítrio e o subjectivismo puro.
XXXV - Esse dano não patrimonial deve, no caso, ser compensado com a atribuição da
importância de € 5000.
26-01-2011 - Proc. n.º 417/09.5YRPTR.S2 - 3.ª Secção - Armindo Monteiro (relator) -
Santos Cabral (com voto de vencido, porquanto «entre os elementos objectivos do tipo a que
alude o art. 180.º do CP avulta a distinção entre facto e consideração, exigindo um horizonte
de contextualização para que se afirme a sua integração. Porém, tal contextualização tem
sempre de ser efectivada em função da sua relevância interpretativa do concreto acto que
corporiza o acto ilícito de difamação, o qual, no caso vertente, é o teor da entrevista
publicada. Esta consubstancia a ofensa da honra e consideração e a sua compreensão é
passível de recurso à coadjuvação de elementos exteriores que possibilitem uma perspectiva
do contexto em que se reproduziu. Todavia, já não é admissível que seja o elemento externo a
corporizar a outorga da ilicitude à conduta concreta, ou seja, que a tipicidade criminal do acto
seja concedida por algo que lhe é exógeno e sem correspondência no acto ilícito. A conduta
típica vale pelo que vale e não em função de outros elementos que não os que nela estão
recenseados. Significa o exposto que, em nosso entender, a mesma entrevista não atinge
directamente a honra e consideração da assistente (…). Pode-se suscitar a questão de o mesmo
acto ser gerador de grave suspeita sobre a honorabilidade profissional dos magistrados do MP
que exerciam funções naquele tribunal e que tal efeito devesse ser previsto como
consequência da conduta da arguida. Porém, tal situação é distinta da que ficou consignada
nos presentes autos, em que a integração objectiva do crime com a ofensa da honra e
consideração de uma concreta e determinada pessoa – a assistente – só logra concretização
com a apelo a todo um historial das relações profissionais, mas sem correspondência no texto
da entrevista. Assim, entende-se que deveria ser diversa a factualidade provada com as
inerentes consequências») e Pereira Madeira («com voto de desempate»)

Decisão instrutória - Difamação - Acusação manifestamente infundada - Processo


respeitante a magistrado - Direito à honra - Dolo específico - Fundamentação de facto -
Fundamentação de direito - Causas de exclusão da ilicitude
I - Com a alteração operada pela Lei 59/98, de 25-08, continuou a subsistir a redacção da al.
a) do n.º 2 do art. 311.º do CPP, no sentido de que se o processo tiver sido remetido para
julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação,
se a considerar manifestamente infundada, mas foi aditado o n.º 3 que, fazendo caducar a
jurisprudência fixada no Assento do STJ n.º 4/93, segundo o qual «A alínea a) do n.º 2 do
artigo 311.º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta
insuficiência de prova indiciária», esclarece que a acusação se considera manifestamente
infundada:
- quando não contenha a identificação do arguido;
83
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

- quando não contenha a narração dos factos;


- se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
- se os factos não constituírem crime.
II - Como refere Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado – Legislação
Complementar, 17.ª edição, 2009, pág. 729, «Acusação manifestamente infundada é aquela
que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade. Os casos em que,
para efeitos do n.º 2, a acusação se considera manifestamente infundada estão agora
contemplados no n.º 3», entre os quais o da al. d): se os factos não constituírem crime e, por
conseguinte, sem dependerem da prévia insuficiência indiciária dos mesmos.
III - O art. 379.º, n.º 1, do CPP, determina que a sentença condenatória especifique os
fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, o que aliás resulta do
art. 71.º do CP, que manda o tribunal atender na determinação concreta da pena e todas as
circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele,
nomeadamente as ali indicadas, impondo o n.º 3 do citado preceito que na sentença são
expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
IV - A sentença penal condenatória contém sempre factos desfavoráveis ao arguido são
susceptíveis, em abstracto, de integrar um tipo legal de crime e, na medida em que
configuram um comportamento criminoso são, objectivamente, uma ofensa à honra. Embora
nem sempre, o mesmo pode acontecer nos motivos de facto e de direito que fundamentam a
decisão, bem como na indicação e exame crítico das provas ou dos meios de prova em que se
baseou e fazer um resenha daquilo que de cada um extraiu, mas também demonstrar o
raciocínio que lhe permitiu chegar à prova dos factos, sem o que a sentença também é nula.
V - No caso dos autos, as expressões que os assistentes consideraram difamatórias, para além
de constarem dos factos provados, constam também da motivação de facto e da motivação de
direito, concretamente da escolha e medida concreta da pena. Tais expressões resultam do
teor dos depoimentos das testemunhas (elementos da GNR), devidamente escalpelizados na
motivação fáctica e outras foram retiradas dos relatórios sociais, encontrando-se algumas
delas entre aspas. Com efeito, as apontadas expressões são usadas, nos factos provados, com
um verdadeiro animus narrandi, ou seja, para descrever a ocorrência e, no mais, para
fundamentar as premissas do raciocínio da julgadora, não podendo, por isso, ficar vulneráveis
e sujeitas ao crivo da tipificação penal comum.
VI - As expressões utilizadas pela arguida em decisão judicial no exercício da função
jurisdicional, de harmonia com os seus poderes legais de cognição, no âmbito do objecto do
processo, não resultaram de actuação pessoal, particular, de sua mera invenção, de forma a
que delas se retire que a arguida quis ofender a honra e consideração dos assistentes;
outrossim, as explica com fundamento na prova que indica e delas retirando a fundamentação
da pena, pelo que não extravasam os limites legalmente exigidos pela decisão,
circunscrevendo-se, assim, no exercício de um direito e no cumprimento de um dever
imposto por lei (o direito de julgar perante o dever de administrar a justiça), o que exclui a
ilicitude nos termos do art. 31.º, n.º 1, als. b) e c), do CP, e, por isso, não constitui ilícito
criminal.
23-05-2012 - Proc. n.º 6/09.4TRGMR.S1 - 3.ª Secção - Pires da Graça (relator) e Raul Borges

Instrução – Requisitos - Factos genéricos - Objecto do processo - Princípio da


vinculação temática - Direitos de defesa - Princípio do contraditório - Rejeição -
Requerimento - Abertura da instrução - Juiz de instrução - Convite ao aperfeiçoamento
- Nulidade - Inquérito - Taxa de justiça - Processo respeitante a magistrado
I - O requerimento de abertura de instrução, não estando sujeito à observância de quaisquer
formalidades, deve, por imposição de lei – n.º 2 do art. 287.º do CPP – conter uma narração
84
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

sintética das razões de facto e de direito de discordância da acusação, narrar os factos e


indicar as normas jurídicas violadas, pois é ele que vai delimitar o objecto do processo, pela
vinculação temática que desempenha, e especificar os meios de prova adequados, quer os não
valorados em inquérito, quer os que o foram.
II - No caso vertente, o requerimento de abertura de instrução não se aproxima sequer da
conformação de uma acusação à luz da exigência da lei – art. 283.º, n.º 3, do CPP –, pois
deixa ao tribunal a tarefa, vedada, de sondar nas entrelinhas quais os concretos autores dos
ilícitos que se diz terem sido cometidos, a sua concreta quota parte de responsabilidade neles,
os concretos e muito claros factos em que incorreram, em ordem ao pleno exercício do seu
direito de defesa, que não prescinde dessa enunciação balizada, não passando de um bloco de
afirmações genéricas, difusas, sem conexão evidente com pessoas visível e individualmente
discriminadas e sequência temporal.
III - E porque a falta de imputação de factos concretos não satisfaz, de forma alguma, a
exigência, nos termos do art. 32.º, n.º 1, da CRP, da vertente inabdicável do direito de defesa,
por esta não consentir acusação sem factos, vazia de conteúdo substantivo a que se equiparam
os factos genéricos, resta concluir pela inadmissibilidade legal da instrução, seu motivo de
rejeição, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP.
IV - Embora ao juiz caiba investigar autonomamente o caso sujeito a instrução, tem de
mover-se dentro do quadro factual fornecido, que constitui o limite material e formal da sua
actuação, qual linha de força, estando-lhe vedado completar o requerimento ou convidar o
apresentante a fazê-lo (neste sentido, AUJ 7/05, de 12-05-2005, DR I Série-A, de 04-11-
2005).
V - Está ao alcance do JIC sindicar, nos termos do art. 308.º, n.º 3, do CPP, as nulidades
cometidas a montante da instrução, no inquérito, em ordem a alcançar a finalidade de tal fase
processual, judicial, situada a meio caminho entre o inquérito e o julgamento. Mas esse
conhecimento tem que ser útil, o que não sucede quando a instrução não é admitida e o
arquivamento do inquérito adquiriu, por isso mesmo, foros de definitividade.
VI - A abertura de instrução leva ao pagamento de 1 UC de taxa de justiça, podendo ser
corrigida, a final, pelo juiz, para um valor entre 1 e 10 UCs, tendo em conta o propósito a
atingir, a utilidade prática da instrução. Nesta situação, está em causa a incriminação de três
magistrados e a obtenção de pressupostos condenatórios em vista da liquidação da
indemnização, a pedir-lhes, no futuro. Por isso, a taxa de justiça acolhida (5 UCs) não se
mostra desajustada – art. 8.º, n.º 2, do RCP.
20-06-2012 - Proc. n.º 8/11.0YGLSB.S2 - 3.ª Secção - Armindo Monteiro (relator) e Santos
Cabral

Liberdade de expressão - Delito de opinião - Criminalização do negacionismo do


Holocausto - Mandado de Detenção Europeu
I - Os motivos de não execução facultativa não vinculam a autoridade judiciária de execução a
não proceder á detenção e entrega, pois conferem-lhe, uma potestas decidendi dentro da
liberdade e independência de convicção e de decisão que lhe é comummente reconhecida,
mas vinculam-na a perpetrar um juízo jurídico de hermenêutica profundo e de ponderação da
tutela de interesses juridicamente protegidos em conflito - a protecção de bens jurídicos em
confronto com o crime e a protecção de interesses humanos face ao jus puniendi.
II - A recusa facultativa assenta em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao
processo e susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente factos invocados pelos
interessados, que, devidamente equacionados, levem a dar justificada prevalência ao processo
nacional sobre o do Estado requerente.

85
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

III - O mandado de detenção europeu corporiza três características que simbolizam o princípio
do reconhecimento mútuo.
IV - A liberdade de opinião e de expressão são indissociáveis: a primeira é a liberdade de
escolher a sua verdade no segredo do pensamento, a segunda é a liberdade de revelar a outrem
o seu pensamento; liberdades simétricas, têm necessidade uma da outra para se
desenvolverem e se expandirem.
V - A liberdade de expressão, segundo a jurisprudência do TEDH "constitui um dos
fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, o que vale mesmo para as ideias que
ferem, chocam ou inquietam; e qualquer restrição a essa liberdade só é admissível se for
proporcionada ao objectivo legítimo protegido.
VI - A liberdade de expressão não é, não pode ser, a possibilidade de um exercício sem
quaisquer limites alheio á possibilidade de colisão com outros valores de igual ou superior
dignidade constitucional. Em Portugal, tal como na Alemanha, existem limites ao exercício
do direito de exprimir, e divulgar, livremente o pensamento, e a sua violação pode conduzir á
punição criminal ou administrativa. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive,
penal.
VII - A liberdade de expressão não pode prevalecer quando o seu exercício violar outros
valores aos quais a lei confere tutela adequada. Tais valores tanto podem emanar de uma
necessidade de defesa de bens jurídicos radicados na ordem constitucional, e cuja valoração é
intuitiva, como podem resultar de uma necessidade de tutela de valores que inscritos no
espaço jurídica em que o nosso país se inscreve nomeadamente o comunitário.
VIII - Critério da dupla incriminação, ou da sua ausência, sendo omisso no elenco do artigo
12 da Lei 65/2003, está por alguma forma enunciado no nº3 do artigo 2 quando afirma que só
é possível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de
detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos
seus elementos constitutivos ou da sua qualificação. IX - Fundamental na negação do
Holocausto é a rejeição do facto de ter existido uma política de perseguição, e extermínio, dos
judeus, elaborada pelo estado nacional-socialista alemão, com a finalidade de sua
exterminação enquanto povo; que mais de cinco milhões de judeus foram sistematicamente
mortos pelos nazistas e seus aliados; e que o genocídio foi realizado em campos de extermínio
recorrendo a formas de extermínio em que prevalece a utilização de ferramentas de
assassinato em massa, tais como câmaras de gás.
X - Existem duas formas de encarar a maneira de combater o negacionismo: ou no campo das
ideias do debate livre, e aberto, ou na valorização do bem jurídico fundamental que está em
causa, tutelando-o com o recurso á criminalização. Tal dualidade está bem patente na
circunstância de o negacionismo do Holocausto ser explícita ou implicitamente ilegal em
dezasseis países, mas não criminalizado noutros países.
XI - A mera difusão de conclusões sobre a existência, ou não, de determinados factos, sem
emitir juízos de valor sobre os mesmos, ou a sua ilicitude, não se pode considerar como uma
excepção á liberdade de expressão, mas sim como o produto de uma eventual elaboração
intelectual, porventura injustificada ou patética, mas admissível. Falamos, assim, da diferença
entre a mera negação do genocídio por contraposição á conduta que comporta uma adesão
valorativa ao mesmo crime de genocídio, promovendo-o e exprimindo sobre ele um juízo de
apreciação positiva. No mesmo plano se situa a incitação indirecta ao genocídio apresentando-
o como justo, ou resultante de alguma espécie de provocação por parte daqueles que foram as
suas vítimas. O entendimento de que deve ser penalizada a difusão de condutas justificativas
do genocídio como manifestação do discurso do ódio está em consonância com as mais

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Sumários de acórdãos das Secções Criminais

recentes aquisições em termos de direito comunitário como é o caso da Decisão-Quadro


2008/913/JAI do Conselho.
XII - Não contém o vício da inconstitucionalidade a penalização de condutas que, embora não
sejam claramente idóneas para incitar directamente á comissão de delitos contra o direito dos
povos como o genocídio, supõem uma incitação indirecta ao mesmo ou provocam, de modo
mediato, a discriminação, o ódio ou a violência que é precisamente o que permite, em termos
constitucionais, o estabelecimento do tipo legal do artigo 240 nº 2 b) do Código Penal.
XIII - A decisão sobre a prestação de garantia nos termos do artigo 13 da Lei 65/2003
depende da resposta formulada ao módulo do formulário pré estabelecido e, nomeadamente, á
resposta afirmativa, ou negativa, á pergunta de se o interessado foi notificado pessoalmente,
ou por outro modo informado da data e local da audiência. Interpretada a norma pela forma
referida a resposta apenas admite uma daquelas alternativas e não uma incursão sobre a
notificação dos prazos judiciais que foram fixados, como faz o mandado emitido.
05-07-2012 - Proc. n.º 48/12.2YREVR.S1 - 3.ª Secção - Santos Cabral (relator) - Oliveira
Mendes e Pereira Madeira

Concurso de infracções - Conhecimento superveniente - Cúmulo jurídico - Denúncia


caluniosa – Difamação - Extinção da pena - Fins das penas - Fórmulas tabelares –
Fundamentação - Imagem global do facto – Juiz - Matéria de facto - Medida concreta da
pena - Novo cúmulo jurídico - Pena cumprida - Pena parcelar - Pena suspensa - Pena
única - Revogação da suspensão da execução da pena - Suspensão da execução da pena
I - O pressuposto básico da efectivação do cúmulo superveniente é a anulação do cúmulo
anteriormente realizado, o que significa que no novo cúmulo entram todas as penas, as do
primeiro cúmulo e as novas, singularmente consideradas.
II - Na reelaboração do cúmulo não se atende à medida da pena única anterior, não se procede
à acumulação, ainda que jurídica, das penas novas com o cúmulo anterior. O novo cúmulo
não é o cúmulo entre a pena conjunta anterior e as novas penas parcelares.
III - Não tem, assim, fundamento jurídico considerar como limite mínimo do novo cúmulo a
pena única fixada no primitivo cúmulo jurídico.
IV - As penas objecto de suspensão devem ser incluídas no cúmulo jurídico a efectuar
porquanto o juiz que decreta a suspensão da pena parcelar, ignorando a existência do
concurso, elabora um juízo de prognose sobre a evolução da personalidade do arguido com
base numa delinquência ocasional que não se verifica.
V - Dentro das penas susceptíveis de ponderação para efeito de cúmulo, a Lei 59/2007,
suprimiu o requisito que anteriormente estava inscrito normativamente exigindo que a
condenação anterior não se encontrasse ainda cumprida, prescrita ou extinta.
VI - Face à actual redacção da norma é necessária a realização do concurso mesmo nestes
casos, o que implica pelo tribunal que realiza o concurso o ónus de descontar a pena já
cumprida, quando da efectivação da pena conjunta do concurso.
VII - A pena de prisão cuja execução foi suspensa só deve ser englobada no cúmulo jurídico
desde que não tenha sido declarada extinta pelo decurso do prazo de suspensão. Por
contraposição devem ser abrangidas as penas suspensas na sua execução, desde que subsistam
como realidades autónomas.
VIII - A extinção da pena suspensa implica uma declaração consubstanciada numa decisão
fundamentada e recorrível. Por isso, deve proceder-se à sindicância do cúmulo jurídico
efectuado com a inscrição dos processos em que a pena foi declarada suspensa quando não
existiu a declaração de extinção a que alude o art. 57.º do CP.

87
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

IX - O STJ tem-se pronunciado, de forma uniforme, no sentido de que se impõe um especial


dever de fundamentação na elaboração da pena conjunta, o qual não pode reconduzir-se à
vacuidade de formas tabelares e desprovidas das razões do facto concreto.
X - Na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os
factos que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de
uma visão panóptica sobre aquele pedaço de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias
que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao
cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar
a sua compreensão à face da respectiva personalidade.
XI - É uniforme o entendimento do STJ de que, após o estabelecimento da respectiva moldura
legal a aplicar, em função das penas parcelares, a pena conjunta deve ser encontrada em
consonância com as exigências gerais de culpa e prevenção.
XII - Os factos ocorridos, no mínimo há cerca de 7 e no máximo há cerca de 10 anos, foram
cometidos por um cidadão com um processo de socialização normal, em que relevam a
proximidade à família e o trajecto profissional empreendedor. Dotado de personalidade
paranóide, o eixo da conduta do arguido situa-se num litígio em que, em seu entender, os
magistrados ofendidos adoptaram intervenção parcial. As razões de prevenção geral são
intensas já que a expectativa dos cidadãos é que seja preservada a dignidade institucional dos
magistrados. Deste modo, tem-se por adequada a pena conjunta de 5 anos de prisão.
XIII - Pressuposto básico da aplicação de pena de substituição é a existência de factos que
permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro, ou seja é
necessário que o tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação e a ameaça
de execução da pena de prisão aplicada são suficientes para afastar o arguido de uma opção
desvaliosa em termos criminais para o futuro.
XIV - Como o arguido tem assumido na vida uma postura globalmente normativa e como os
factos cometidos constituíram um momento da vida do arguido em que se conjugaram as
características da sua personalidade com o envolvimento em litígio judicial, é de determinar a
suspensão da execução da pena nos termos do art. 50.º do CP.
17-10-2012 - Proc. n.º 182/03.0TAMCN.P2.S1 - 3.ª Secção - Santos Cabral (relator) -
Oliveira Mendes (“vencido” de acordo com declaração que junta nos seguintes termos: “(…)
tendo em atenção o ilícito global e a personalidade do arguido, da qual não pode ser
dissociada a sua paranóia, anomia que, simultaneamente, mitiga e agrava o juízo a formular,
tanto mais que bem reflectida nos factos, em especial na recorrente perpetração do crime de
denúncia caluniosa (dez crimes), reduziria a pena conjunta para 5 anos e 6 meses de prisão”) e
Pereira Madeira

Recurso contencioso - Comissão Nacional de Eleições - Contra-ordenação - Decisão


Remissão - Proposta do instrutor - Aplicação subsidiária do Código de Processo Penal -
Princípio da imediação - Princípio da oralidade - Decisão administrativa - Garantias de
defesa - Direito de informar - Liberdade de imprensa e meios de comunicação social -
Liberdade de expressão - Pluralismo ideológico - Notícia - Campanha eleitoral -
Princípio da igualdade de tratamento das candidaturas - Princípio da oportunidade de
esclarecimento público - Liberdade de expressão jornalística - Liberdade de escolha
esclarecida do eleitor - Dolo - Prova indiciária - Medida concreta da coima
I - A decisão da CNE fundamenta-se expressamente no relatório de instrução, e projeto de
decisão, que consta em anexo à respectiva acta.
II - Quanto à remissão feita na decisão recorrida para a proposta elaborada por um instrutor,
entidade que continua legalmente encarregada de elaborar a instrução e que esteve em
contacto directo com a defesa, pois que presidiu à audição do arguido e à inquirição das
88
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

testemunhas por aquele apresentadas ou constantes da acusação, entende-se que os preceitos


do processo penal deverão ser aplicados “devidamente adaptados”, o que não pode ter outro
sentido senão o de considerar que é diferente a natureza da decisão porque é diversa a
estrutura organizatória e funcional da Administração.
III - Por um lado, é preciso ter em conta que a estrutura do processo de contraordenação na
sua fase administrativa não é uma estrutura acusatória baseada em duas magistraturas
autónomas e independentes, ao contrário do que sucede com os processos judiciais. Na fase
administrativa o processo obedece a uma estrutura inquisitória, tanto mais que quem instrui
está na dependência hierárquica de quem decide.
IV - Por outro lado, a função jurisdicional do juiz não é rigorosamente a mesma da autoridade
administrativa quando decide aplicar a coima. Se mais diferenças não houvesse, aí está a lei a
dispor que a decisão administrativa é revogável até ao envio dos autos ao tribunal, e quanto a
nós poderá mesmo ser reformada em caso de invalidade relativa, ao passo que a função do
juiz se esgota com a prolação da sentença, salvaguardando-se apenas a correcção de erros
materiais.
V - Acresce que se não se põe em dúvida que se aplicam no processo contraordenacional não
só os princípios constitucionais de garantia processual penal dos arguidos, além de diversos
outros inseridos no respectivo CPP, não é menos verdade que alguns haverá que não terão ali
aplicação. É o caso do princípio da imediação e do seu corolário da oralidade ou do princípio
de que toda a prova é feita em julgamento. Ao contrário do que se passa com o juiz, o decisor
administrativo não esteve em contacto directo com o arguido nem assistiu à audiência e
defesa. A realidade do que ali se passou tem, por isso, de lhe ser transmitida por quem ali
esteve: o instrutor.
VI - Por último, não se pode nunca esquecer que a decisão, se bem que integrando um
“procedimento especial”, aparentado com o processo administrativo de tipo sancionador, mas
dele se distinguindo, é fatalmente uma decisão administrativa, porque tomada por autoridade
administrativa, embora a lei-quadro lhe atribua características especiais, entre as quais avulta
a não admissão de recurso hierárquico em busca da definitividade vertical, uma vez que a
decisão da autoridade administrativa (Delegado) se torna definitiva transcorrido o prazo de
impugnação judicial.
VII - Como decisão administrativa que é, hão-de aplicar-se neste procedimento especial “as
normas que não envolvam diminuição das garantias dos particulares”, conforme determina o
próprio CPA a partir da reforma de 96.
VIII - Face às características e natureza do procedimento por contraordenação não se vê que
sejam diminuídas as garantias de defesa pelo facto de ser o instrutor a elaborar a proposta de
decisão de onde conste o designado “relatório” e a “fundamentação”, ficando o decisor
incumbido de proferir a decisão em sentido próprio, isto é, a determinar a coima,
eventualmente as sanções acessórias que ao caso couberem, remetendo, quanto à
fundamentação de facto e de direito, quanto aos elementos de agravação ou de atenuação da
culpa e às normas legais aplicáveis, para a proposta do instrutor.
IX - Esta posição vai ao encontro do disposto no n.º 1 do art. 125.º do CPA. Acresce que se
trata de solução que encontra eco numa corrente que se vem formando por virtude da
decantada morosidade da justiça e que já teve um primeiro afloramento, ao nível judicial, nas
alterações do CPP entradas em vigor no início de 2001, designadamente no que se refere aos
acórdãos absolutórios mencionados no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP.
X - No fundo, obrigar a decisão a repetir literalmente considerações já expressas noutra peça
processual é uma imposição vazia de sentido, que apenas tem por resultado o desperdício de
tempo.

89
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

XI - Em Portugal, o direito de informação encontra consagração constitucional no art. 37.º da


CRP, integrando três níveis: o direito «de informar», o direito «de se informar», e o direito
«de ser informado». A conjugação desse artigo com o art. 38.º, que incide concretamente
sobre a liberdade de imprensa e meios de comunicação social, imprime a ideia de protecção
quer da actividade individual de comunicação das notícias quer a “informação”, entendida
como a acção de comunicar as notícias através dos meios de comunicação social. A liberdade
de informação, como base da formação da opinião democrática, é um elemento essencial da
liberdade de expressão. A liberdade de informação não é o direito de informar os outros, mas
o direito de a si mesmo se informar, sendo um pressuposto da liberdade de expressão e da
livre formação da opinião pública e não uma consequência; um Estado democrático não
funciona sem uma opinião pública livre e informada, o mais objectivamente possível, sobre os
factos.
XII - A não referência expressa, na CRP (art. 37.°, n.º 1), aos meios através dos quais opera o
direito de informação deverá, por força do art. 16.º, n.º 2, ser colmatada pelo recurso à
DUDH, que, no seu art. 19.º, consagra o direito de procurar, receber e difundir informações,
sem consideração de fronteiras, «por qualquer meio de expressão»; tal significa que tanto a
expressão do pensamento como a informação podem ser veículadas por qualquer meio;
significa também não estar nominalmente previsto um regime especial para os meios de
comunicação de massa; finalmente, em termos puramente normativos, resulta dificultada a
possibilidade de aderir à posição que distingue a crónica individual da liberdade de
informação levada a cabo pelos meios de comunicação.
XIII - É do conceito de informação – no que respeita ao lado activo do direito de informação
– que decorrerá, em certa medida, o estatuto de alguns meios de comunicação.
XIV - O direito de informar é um direito de estrutura complexa, capaz de conter em si
faculdades que o qualificam simultaneamente como direito, liberdade e até garantia
institucionais.
XV - O conteúdo do direito de informação não pode desentender-se da definição do
respectivo objecto. Se olharmos em especial ao direito de informar, poderemos verificar que
os pressupostos e requisitos que integram o conceito de informação acabam por funcionar
como margens delimitadoras do seu conteúdo.
XVI - Os limites do direito de informar são, por consequência, mais numerosos e mais
extensos que os limites da liberdade de expressão. Assim, além dos limites assinalados a esta
– que se aplicam, por maioria de razão, ao direito de informar –, podem indicar-se as
seguintes linhas orientadoras:
a) A delimitação do direito de informar tem de resultar igualmente de uma interpretação
sistemática da CRP, podendo relevar, consoante os vários tipos de mensagem (política,
religiosa, filosófica, publicitária, etc.), porém, não só os demais direitos e liberdades
fundamentais, como a tutela de certos princípios e valores constitucionais inerentes à
liberdade política e à forma democrática do governo;
b) Tal delimitação só pode ocorrer no quadro da CRP (art. 18.º, n.º 2) e deverá corresponder
essencialmente à modulação do alcance dos direitos fundamentais concorrentes; em
particular, além dos direitos que relevam da inviolabilidade pessoal, e que não podem ser
lesados no seu conteúdo essencial, devem ser aqui chamadas outras limitações como as
relativas à utilização de informação sobre pessoas e famílias (art. 26.º, n.º 2, da CRP), aos
direitos dos arguidos (art. 32.º da CRP) ou à protecção constitucionalmente amparada do
segredo;
c) Tal como para a liberdade de expressão, em princípio, a CRP (salvo os casos já apontados)
não permite à lei que venha estabelecer limitações – no sentido que habitualmente lhe vem
sendo dado de restrições – decorrentes de exigências da moral, da ordem pública ou do mal)
90
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

e, por outra, os que correspondem à delimitação do âmbito de protecção ou conteúdo do


direito.
XVII - É liminar, por um lado, a importância do direito a informar como pilar de uma
sociedade democrática, mas também a circunstância de que tal direito não é uma entidade
absoluta e está limitado pela observância de regras de igual ou superior dimensão. Um dos
princípios fundamentais do estatuto constitucional do sector público da comunicação social é
o pluralismo ideológico. Cada órgão de comunicação social deve apresentar uma
programação ou conteúdo ideologicamente «contrabalançado» e expressivo das diversas
correntes de opinião.
XVIII - O pluralismo traduz-se em dar expressão às «diversas correntes de opinião». Não
especifica a CRP que tipo de opinião é que está em causa, mas há-de naturalmente tratar-se
das correntes de opinião de natureza política, ideológica, religiosa, e, em geral, cultural. O
princípio pluralista exige, designadamente: a proibição de silenciamento de qualquer corrente
de opinião relevante na colectividade; a obrigação de atribuir a cada um mínimo adequado de
expressão; a proibição de dar expressão a cada uma de forma desproporcionadamente grande
ou pequena.
XIX - É nesta compreensão da relatividade do direito de informar que se deve partir para a
destrinça entre a noticia que se inscreve num inalienável exercício de um direito, e que não
está cerceada por qualquer limitação legal, obedecendo única e simplesmente ao critério da
importância jornalística e a noticia que, em período de campanha eleitoral, toca ou, por
alguma forma, convoca algo mais do que a mera notícia, entrando no tratamento das
candidaturas em presença.
XX - A recorrente, no caso em apreço, orientou-se naquele primeiro caminho aduzindo duas
ordens de razões que se consubstanciam na existência de um critério editorial tendo em conta
a representação que cada um dos partidos tinha no executivo municipal sendo natural que a
cobertura jornalística tivesse sido feita na mesma proporção, e, ainda, a circunstância de a
eleição à Presidência da Câmara Municipal X revestir a particularidade de o ainda Presidente
da Câmara se ter candidatado num movimento independente e o seu vice Presidente ser o
candidato do Partido A.
XXI - Contudo, a peça jornalística em causa estendeu-se às afirmações produzidas por um
candidato de um terceiro partido, que nada tinha a ver com a invocada situação que, na
perspectiva da arguida, justificaria o tratamento jurídico diferenciado. A partir do momento
em que é dada oportunidade a um candidato às eleições locais da cidade de X de se
pronunciar sobre as mesmas, também os restantes candidatos devem ter igual oportunidade
não existindo qualquer justificação para um tratamento discriminatório, tanto mais que esta
era a única intervenção da recorrente relativa às eleições na mesma autarquia. Estamos pois
em condições de afirmar que aquela peça noticiosa, respeitando, não só, mas também, à
campanha eleitoral não deu um tratamento igual a todas as candidaturas.
XXII - Dispõe o art. 49.º da LOAL que os órgãos de comunicação social que façam a
cobertura da campanha eleitoral devem dar um tratamento jornalístico não discriminatório às
diversas candidaturas. Por seu turno, o art. 212.º do mesmo diploma pune a empresa
proprietária de publicação informativa que não proceder às comunicações relativas a
campanha eleitoral previstas naquela lei ou que não der tratamento igualitário às diversas
candidaturas com coima de 200 000$00 a 2 000 000$00.
XXIII - Nos termos do DL 85-D/75, de 26-02, considera-se matéria relativa à campanha, as
notícias, reportagens, a informação sobre as bases programáticas das candidaturas, as matérias
de opinião, análise política ou de criação jornalística, a publicidade comercial de realizações,
entre outros. Às notícias ou reportagens de factos ou acontecimentos de idêntica importância
deve corresponder um relevo jornalístico semelhante. A parte noticiosa ou informativa não
91
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

pode incluir comentários ou juízos de valor, não estando contudo proibida a inserção de
matéria de opinião, cujo espaço ocupado não pode exceder o que é dedicado à parte noticiosa
e de reportagem e com um mesmo tratamento jornalístico.
XXIV - Os princípios gerais de direito eleitoral consagrados na CRP, nomeadamente os
prescritos na al. b) do n.º 3 do art. 113.º da LEOAL, visam a igualdade de tratamento de
candidaturas e oportunidade de esclarecimento público.
XXV - Tratando-se, como se trata no caso vertente, de uma invocação feita da liberdade de
expressão e criação dos jornalistas, a mesma não tem um carácter absoluto uma vez que tem
de ser conjugada, com o dever de igualdade de tratamento das candidaturas aos órgãos de
poder local. A LEOAL estabelece regras de adequação de outros direitos, liberdades e
garantias ao especial tempo de propaganda eleitoral, em nome exactamente de um outro
direito fundamental em democracia e igualmente com assento constitucional: a liberdade de
escolha esclarecida do eleitor alicerce, da soberania popular que funda o Estado de direito
democrático, que somos (art. 2.º da CRP).
XXVI - Ao jornalista assiste a liberdade de adoptar os critérios de exercício da sua profissão e
de tratamento da notícia, com a salvaguarda de que não crie, nomeadamente no período
eleitoral, uma situação de discriminação de candidaturas concorrente a um órgão de poder
local. A actividade dos órgãos de comunicação social, que façam a cobertura da campanha
eleitoral, deve, pois, ser norteada por critérios que cumpram os requisitos de igualdade entre
todas as forças concorrentes às eleições; por preocupações de equilíbrio e abrangência, não
podem adoptar condutas que conduzam à omissão de qualquer uma das candidaturas
presentes.
XXVII - No caso dos autos, face aos seguintes factos demonstrados:
- no concelho de X concorreram aos dois órgãos municipais os seguintes partidos e
coligações: A, B, C, D e o grupo de cidadãos eleitores E;
- apresentou candidatura apenas à Câmara Municipal o partido F;
- a recorrente transmitiu uma reportagem num dos seus noticiários, de 08-10-2009, em que
apenas fez referência a três das candidaturas formalizadas à eleição da Câmara Municipal de
X, tendo sido entrevistados os principais candidatos daquelas forças políticas;
- na reportagem da recorrente assim transmitida não foram feitas quaisquer referências às
restantes candidaturas;
- a reportagem foi emitida durante o período de campanha eleitoral, o qual se iniciou em 29-
09-2009;
- no período de campanha eleitoral (entre 29-09-2009 e 09-10-2009) não se registaram
quaisquer outras reportagens nos serviços noticiosos da recorrente relativas às eleições
autárquicas dos órgão do município de X;
- o critério editorial adoptado pela recorrente para a cobertura das campanhas no âmbito das
eleições autárquicas de 2009, nela se incluindo a referente aos órgãos municipais de X, teve
em conta a representação que cada um dos partidos políticos detinha no executivo municipal;
entende-se que se encontram perfectibilizados os elementos fácticos relativos ao elemento
material da infracção imputada.
XXVIII - A prova do elemento subjectivo do tipo, criminal ou contraordenacional, é
complexa e, consequentemente, os tribunais para o afirmar têm que recorrer a juízos de
inferência a partir de dados externos qualificados. Na verdade, os elementos subjetivos
localizados no intelecto e consciência humana assumem-se como noções psicológicas que se
furtam a uma percepção directa, ou apreciação imediata, por qualquer pessoa que não o
próprio.
XXIX - É aqui que a prova indiciária assume uma especial importância para a acreditação
desses elementos; tornando-se numa ferramenta necessária e única, na ausência de outros
92
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

materiais comprobatórios que possam coadjuvar nesta tarefa. O conteúdo do pensamento só


pode ser avaliado por indução ou por inferência, usando o juiz dados objectivos existentes no
processo para afirmar até que ponto chegou o conhecimento do agente e quais eram suas
verdadeiras intenções.
XXX - Consequentemente, será a partir do comportamento externo do sujeito e das
circunstâncias em que surgiu o facto que o tribunal estará em condições de inferir os
elementos subjectivos ou, por outras palavras, determinar qual foi a intenção e o grau de
conhecimento que, sobre as suas acções, teve a pessoa acusada da prática de uma infracção.
Importa aqui a inferência operada na base dos elementos objectivos (indícios) decorrentes do
seu comportamento e das características do facto.
XXXI - No caso concreto, encontramo-nos perante uma das mais importantes estações de
televisão que opera em Portugal e para a qual não é desconhecida toda a problemática
relacionada com a campanha eleitoral, incluindo as questões jurídicas suscitadas pela mesma.
Igualmente é exacto que ao dar espaço de promoção eleitoral a um candidato no âmbito de
uma notícia mais abrangente relativa a outros dois candidatos a arguida não estava a tratar de
forma igualitária todas as candidaturas pois que não tiveram projecção televisiva as restantes
candidaturas. De tais elementos objectivos pode-se inferir a existência do conhecimento de
um tratamento desigual em relação a algo que não o devia ser.
XXXII - O dolo existente não se pode ajuizar como portador de uma forte carga de censura e
as circunstâncias da contraordenação também se situam numa zona pouco densa em termos de
consequências ou em termos de ilicitude contraordenacional. Sendo certo que não se justifica
o apelo à mera admoestação, está suficientemente fundamentado a aplicação de uma coima
situada no limite mínimo da moldura contraordenacional.
15-11-2012 - Proc. n.º 91/12.1YFLSB.S2 - 3.ª Secção - Santos Cabral (relator) - Oliveira
Mendes e Pereira Madeira

Recurso de revisão - Sentença - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - Difamação -


Liberdade de expressão - Inconciliabilidade de decisões - Graves dúvidas sobre justiça
da condenação - Direito ao recurso – Constitucionalidade - Caso julgado - Interpretação
restritiva - Non bis in idem
I - O recorrente sustenta o seu pedido de revisão de sentença no fundamento previsto na al. g)
do n.º 1 do art. 449.° do CPP, invocando a prolação de sentença pelo TEDH, instância a que
recorreu nos termos do art. 34.° da CEDH, sob a alegação de que a sua condenação como
autor material de um crime continuado de difamação agravada constitui uma ingerência no
seu direito de liberdade de expressão, violadora do art. 10.° daquela CEDH.
II - O fundamento de revisão de sentença invocado pelo recorrente foi introduzido no nosso
ordenamento jurídico-penal pelas alterações processuais operadas em 2007, concretamente
pela Lei 48/07, de 29-08, fundamento que o legislador estendeu, também, ao processo civil,
sendo resultado de recomendação adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa,
relativa ao reexame e reabertura de determinados processos ao nível interno na sequência de
acórdãos do TEDH. Porém, na estrita literalidade da lei, foi bem mais longe.
III - Não só considerou admissível a revisão de sentença (condenatória) perante sentença
proveniente de qualquer instância internacional, obviamente, desde que vinculativa do Estado
português, como se limitou a exigir, como seu único pressuposto, a ocorrência de
inconciliabilidade entre as duas decisões ou de graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
IV - Verdadeiramente, o legislador de 2007, ao permitir a revisão de sentença em termos tão
latos, instituiu, indirectamente, um novo grau de recurso, quer em matéria criminal, quer em
matéria civil, grau de recurso inconstitucional, por notoriamente violador do caso julgado.
Tenha-se em vista que a própria CEDH prevê como excepções ao caso julgado, em processo
93
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

penal, a descoberta de factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no


processo anterior. Por isso, entendemos que é mister proceder a uma interpretação restritiva
da lei no que concerne ao fundamento de revisão recentemente criado e ora em causa no
presente recurso, interpretação que deverá ser claramente assumida pela jurisprudência do
STJ, designadamente nos casos em que se revele intoleravelmente postergado o princípio non
bis in idem, obviamente na sua dimensão objectiva, ou outros direitos e princípios de matriz
constitucional.
V - Interpretação restritiva que entendemos dever orientar-se no sentido dos princípios
consignados na mencionada Recomendação, concretamente o princípio segundo o qual a
reabertura de processos só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH constate
que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à CEDH, ou
quando constate a ocorrência de uma violação da CEDH em virtude de erros ou falhas
processuais de uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e,
simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na
sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável
arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do
processo, isto é, mediante a restitutio in integrum.
VI - Trata-se de limitações razoáveis que visam a harmonização entre o princípio non bis in
idem, na sua dimensão objectiva (exceptio judicati), princípio inerente ao Estado de direito, e
a necessidade de reposição da verdade e da justiça, designadamente quando estão em causa
direitos fundamentais do cidadão, limitações impostas, também, pela necessidade de garantir,
minimamente, a soberania nacional em matéria judicial.
VII - No caso vertente, estamos perante decisão do TEDH condenatória do Estado Português,
na qual se considerou que a sentença condenatória proferida pelas instâncias nacionais contra
o recorrente violou o art. 10° da CEDH, por se haver entendido que a sua condenação
constitui uma ingerência no direito à liberdade de expressão. Nesta conformidade, há que
conceder provimento ao recurso autorizando a revisão de sentença.
VIII - Quanto à peticionada revogação da sentença é evidente que a pretensão do recorrente
terá que improceder, consabido que o ordenamento jurídico nacional permite, apenas, a
revisão de sentença e não também recurso de revogação ou anulação.
15-11-2012 - Proc. n.º 23/04.0GDSCD-B.S1 - 3.ª Secção - Oliveira Mendes (relator) - Maia
Costa e Pereira Madeira

Liberdade de expressão - Segredo de justiça - Ofensa do crédito ou do bom nome -


Pessoa colectiva - Pessoa singular - Admissibilidade de recurso - Acórdão da Relação -
Competência do Supremo Tribunal de Justiça - Pena de multa - Alteração da
qualificação jurídica - Alteração não substancial dos factos - Pedido de indemnização
civil - Responsabilidade civil emergente de crime - Ilicitude - Culpa - Dolo directo -
Dano - Indemnização - Prevenção geral - Prevenção especial - Equidade - Danos não
patrimoniais
I - Não há recurso para o STJ quando o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, em
recurso, não aplique pena privativa de liberdade, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP
(pese embora o Tribunal da Relação não tenha mantido nos seus precisos termos a decisão da
1.ª instância, alterando a matéria de facto em determinados aspectos – alteração não
substancial – e a qualificação jurídica, no que se refere a uma das agravantes, que retirou).
II - No que diz respeito às pessoas colectivas, a afectação do seu crédito ou bom nome está
especificamente prevista, do ponto de vista civilístico, no art. 484.º do CC, constituindo, ao
mesmo tempo, a lesão desse bem jurídico um crime com assento no CP.

94
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

III - Daí resulta que a violação desse direito ou bem jurídico afecta não só os interesses da
pessoa lesada, mas também interesses colectivos que com a tutela civil e criminal se visam
proteger, ou seja bens tidos como fundamentais à vivência comunitária, que dão à
indemnização, enquanto reparação dos danos causados, uma outra vertente, que tem a ver
com aqueles interesses colectivos e que estão ligados à prevenção geral e especial (cf.
Antunes Varela, in Das Obrigações Em Geral, 2.ª edição, Livraria Almedina, 1973, pág. 414).
IV - Segundo o art. 494.º do CC são a culpabilidade do agente, a situação económica deste e
do lesado e as demais circunstâncias do caso que determinam o montante da indemnização a
fixar. E uma vez que a responsabilidade de indemnizar se funda aqui num facto ilícito, haverá
que atender também à gravidade do facto, ao seu grau de ilicitude, pois que a indemnização a
arbitrar tem de ser proporcionada a tal gravidade, dentro do tal critério de equidade, que deve
respeitar todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas,
de criteriosa ponderação das realidades da vida.
V - O demandado fez afirmações e propalou factos que são fortemente denegridores do
crédito e bom nome de que gozam as pessoas colectivas ofendidas. Nomeadamente afirmou,
no âmbito da Comissão de Ética Sociedade e Cultura da AR que aquelas agremiações eram
«duas centrais de gestão de informação processual, concretizada através da promiscuidade
com os jornalistas (…), obte[ndo] documentos de processos para os jornalistas publicarem,
troca[ndo] esses documentos nos cafés, às escâncaras, se pude[ssem] ajudar a violar o segredo
de justiça (…) e fornece[ndo] mesmo documentos. O demandado, por fim, advertiu o
respectivo presidente e deputados nestes termos: Isto vai acabar mal, Senhor Presidente,
Senhores Deputados, se não voltarmos ao período de regras em que a Justiça não faz
política.». O arguido proferiu, ainda, estas palavras ao jornal … «De onde sai a matéria que
está em segredo de justiça? Só pode vir da justiça? (…) Se estivessem a resolver questões de
natureza sindical, mas não: o que tenho visto é uma intervenção mais extensa e larga de
intervenção política, com efeitos nocivos. (…) Tentam condicionar decisões do Procurador-
Geral da República e a opinião pública, e têm relações privilegiadas com jornalistas a quem,
de vez em quando, vão passando documentos de natureza diversa.».
VI - Estas afirmações, para além de produzidas publicamente, em local de significado
institucional e numa comissão especializada, imputando às referidas pessoas colectivas e seus
membros factos tradutores de uma muito censurável falta de ética a nível profissional, e
depois repetindo-as, fora dessa Comissão, para um jornal de grande projecção nacional, são
profundamente lesivas do seu bom nome e reputação. A ampliação que foi dada às citadas
afirmações pela sua divulgação por quase todos os meios de comunicação social, desde
periódicos de âmbito nacional a meios audiovisuais de numerosas estações de rádio e canais
de televisão intensifica a lesão daqueles bens jurídicos.
VII - Quer a AS, quer o SM se manifestaram, através dos seus órgãos directivos,
profundamente atingidos com as afirmações feitas, tanto mais que são associações
representativas dos magistrados de ambas as magistraturas no âmbito sócio-profissional,
pugnando pela defesa de valores ligados à ética e deontologia profissionais, tais como a
independência, a isenção e a objectividade, que são características do exercício das
respectivas funções com assento na CRP e nos respectivos Estatutos. As imputações feitas
pelo demandado implicam uma quebra total daqueles princípios por que se devem reger os
juízes e os magistrados do MP, assim envolvidos nas afirmações ofensivas feitas pelo
demandado de forma genérica – afirmações que, a corresponderem à verdade, por sobre serem
violadoras dos sobreditos princípios, constituiriam crime. E, não obstante o anúncio por parte
dos demandantes de que iriam participar criminalmente, pelos factos imputados, contra o
demandado este reiterou as afirmações feitas desta forma: «Mantenho tudo o que disse ontem.

95
Sumários de acórdãos das Secções Criminais

A Justiça deve ser prudente e exercer com recato as suas funções, algo que estas instituições
não permitem que aconteça».
VIII - A fixação da indemnização tem aqui, também, uma natureza de sanção, visando
também fins de prevenção, funcionando nesses casos como uma espécie de pena (ou de
multa) privada, não tanto em proveito do Estado, mas em benefício das vítimas.
IX - A indemnização como reparação pelos danos não patrimoniais causados e como sanção
de carácter civil gradua-se em função da culpabilidade (culpa/ilicitude), situação económica
do lesante e do lesado e demais circunstâncias do caso. Tendo a culpa revestido a modalidade
mais gravosa, ou seja, a forma dolosa e, dentro do dolo, uma especial intensidade, sendo a
ilicitude de grau elevado, atendendo às consequências danosas, ao modo de actuação do
demandante e ao universo das pessoas que compõem o substrato colectivo, tendo ainda em
mente a situação económica dos demandantes e a do demandado, é adequada a indemnização
de € 25 000 para cada um dos demandantes.
05-06-2013 - Proc. n.º 1667/10.7TDLSB.L1.S1 - 5.ª Secção - Rodrigues da Costa (relator) e
Arménio Sottomayor

Convenção Europeia dos Direitos do Homem - Difamação - Inconciliabilidade de


decisões - Recurso de revisão - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
I - O recurso de revisão visa, não uma reapreciação do anterior julgado, mas uma nova
decisão assente em novo julgamento da causa, com base em novos dados de facto.
II -Na primitiva condenação, o requerente foi alvo de condenação pela prática de um crime de
difamação cometida através da comunicação social dos arts. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 2, ambos
do CP, mas o TEDH considerou que a decisão do tribunal português não era necessária numa
sociedade democrática e que existiu violação do art. 10.º da CEDH.
III - Deve ser autorizada a revisão, de acordo com a al. g) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, se a
sentença vinculativa proferida por uma instância internacional for inconciliável com a
sentença criminal condenatória proferida pelo Estado português ou se suscitarem dúvidas
graves sobre a justiça da condenação.
26-03-2014 - Proc. n.º 5918/06.4TDPRT-A.S1 - 3.ª Secção - Santos Cabral (relator) - Oliveira
Mendes e Pereira Madeira

96
Índice
NOTA INTRODUTÓRIA ....................................................................................................................... 3

Sumários de acórdãos das Secções Cíveis ............................................................................................... 5

Sumários de acórdãos das Secções Criminais ........................................................................................ 61

97
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis
do Supremo Tribunal de Justiça

(Sumários de Acórdãos
de 1997 a Setembro de 2012)

Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça


Assessoria Cível
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

O DIREITO AO DESCANSO E AO SOSSEGO

Poderes de cognição
Cumprimento defeituoso
Boa fé
Cláusula penal - Redução

I - O art.º 715, n.º 1, do CPC, na redacção do DL 329-A/95, de 12-12, prevê


expressamente que no julgamento da apelação, o tribunal de recurso se substitua ao
tribunal recorrido, ainda quando este tenha deixado de conhecer de certas questões,
designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio.
II - Anteriormente a lei apenas previa que o tribunal de recurso se substituísse no caso
de nulidade da sentença da 1ª instância.
III - Tendo a embargante se comprometido a proceder às obras indispensáveis ao
isolamento da sua «boite» ou discoteca, tendo resultado provado que a embargante
procedeu a obras de insonorização e que, posteriormente ao seu termo, continuaram a
ouvir-se no interior do prédio do embargado, emissões sonoras causadoras de
reclamações e de prejuízos para o mesmo embargado; tratando-se, de uma obrigação de
resultado, porque a prestação só seria cumprida se fosse obtido o isolamento acústico de
tal modo que as emissões não fossem audíveis nos apartamentos, esta situação traduz,
objectivamente, um incumprimento ou, melhor, um cumprimento defeituoso.
IV - O embargado, como credor dessa prestação, devia, à data da reabertura da
discoteca, ter avisado a outra parte de que as obras não tiveram a eficácia bastante para
obstar aos inconvenientes indesejáveis, mas nunca o fez, e ao recusar mais tarde a
autorização para que se procedesse à medição acústica do ruído nos seus apartamentos,
fez subir de ponto a sua posição de contrariedade à boa fé de modo a considerar-se
justificável a desresponsabilização da embargante pelos danos a partir de então sofridos.
V - Se as partes tivessem previsto o encerramento da discoteca no período de realização
das obras, certamente que não cominariam uma pena de 50.000$00 por dia durante o
período em que devido ao encerramento da discoteca, nenhum prejuízo viria para o
embargado.
VI - Os ditames da boa fé não justificam nas condições apontadas, que se preveja uma
cláusula penal, na ausência de quaisquer danos para o embargado.
VII - A redução da cláusula penal prevista no art.º 812, n.º 1, do CC, é uma medida de
carácter excepcional destinada a prevenir situações de abuso ou de grande iniquidade, e
com o fim de afastar o exagero a que poderia levar a pena acordada, de modo a ajustá-la
a um valor que equitativamente se deva considerar justo.

22-01-1997
Processo n.º 338/96 - 1.ª Secção
Relator: Cons. Ramiro Vidigal

Ruído
Prédio confinante

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

Resultando que o sistema de ar condicionado instalado pelo réu, em prédio confrontante


com o dos autores, causa incómodos a estes, e que o banco réu tem a obrigação de
proporcionar aos seus funcionários boas condições de trabalho e a necessidade de
atender à comodidade dos clientes, justificando, assim, a instalação do sistema de ar
condicionado, verificando-se, por isso, a existência de colisão de direitos, é necessário
apurar se o sono e sossego dos autores é perturbado de noite ou de dia e dentro de que
horário para que se possam opor à emissão de ruídos provenientes do prédio vizinho.

04-02-1997
Processo n.º 492/96- 1.ª Secção
Relator: Cons. César Marques

Actividade comercial
Ruído
Direito ao repouso
Direito de personalidade
Colisão de direitos
Responsabilidade civil

I - O DL n.º 251/87, de 24 de Junho (Regulamento Geral sobre o Ruído) não se


destinou, nem se destina, a resolver conflitos que possam surgir entre o direito de
propriedade do prédio (estabelecimento) onde se desenvolva actividade que produza
ruído e os direitos à integridade física e moral das pessoas, à saúde, ao ambiente e à
qualidade de vida.
II - Em caso de conflito entre os "direitos, liberdades e garantias" não sujeitos a reserva
de lei restritiva com outros direitos fundamentais (ex. direitos económicos, sociais e
culturais) devem prevalecer aqueles.
III - No campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos o art. 335.º do
CC que, apesar de anterior à Constituição de 1976, se mantém em vigor, tendo em vista
o disposto no art. 293.º, desta Constituição.
IV - Na interpretação do art. 335.º, a propósito de a colisão ocorrer entre um direito de
personalidade e um direito que não de personalidade, devem prevalecer, em princípio,
os bens ou valores pessoais aos bens ou valores patrimoniais.
V - Para que haja responsabilidade civil por facto ilícito - art. 483.º do CC - necessário
é que se verifiquem, além do mais, os pressupostos ilicitude e culpa.

13-03-1997
Processo n.º 557/96 - 2.ª Secção
Relator: Cons. Miranda Gusmão *

Direito de personalidade
Direito ao repouso
Ruído
Licença de estabelecimento comercial e industrial
Colisão de direitos

I - Os direitos da personalidade são poderes-deveres em que cada um, ao exercer o


poder (de exclusão dos outros, ou sobre si próprio) está a levar a cabo um plano de

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realização pessoal fundado eticamente, ou a colaborar na intensificação das relações


sociais também eticamente fundadas.
II - Estes direitos são assim protegidos contra qualquer ofensa ilícita, não sendo precisa
a culpa para se verificar uma ofensa, nem sendo necessária a intenção de prejudicar o
ofendido, pois, decisiva é a ofensa em si - estas soluções, assentes no facto objectivo da
violação, compreendem-se perfeitamente, uma vez que a lei pretende protecção o mais
ampla possível.
III - O direito ao repouso integra-se no direito à integridade física e a um ambiente de
vida humana sadio e ecologicamente equilibrado e, através destes, direito à saúde e
qualidade de vida.
IV - O direito ao repouso é ofendido mesmo que a actividade de exploração de
discoteca desenvolvida pelos réus tenha sido autorizada administrativamente.
V - A consagração de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a
administração não pode autorizar a instalação de equipamento nem conceder
licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite máximo e quem
desrespeitar esse limite incorre em ilícito de mera ordenação social punida com coima,
praticando uma contra-ordenação punida com coima, nos termos do art.º 36, n.º 2 do
Regulamento Geral Sobre o Ruído, aprovado pelo DL 251/87, de 24/6.
VI - Face à lei civil deve entender-se que o direito de oposição à emissão de ruídos
subsiste mesmo que o seu nível sonoro seja inferior a 10 decibéis e que a actividade
donde eles resultam haja sido autorizada administrativamente.
VII - Havendo colisão de direitos de espécies diferentes (dum lado o direito à
integridade física, ao sono... e do outro o direito ao exercício de uma actividade
comercial), prevalece o que deva considerar-se superior, nos termos do n.º 2 do art.º 335
do CC e não há dúvida de que o direito ao repouso é de valor superior ao direito ao
exercício de um actividade comercial.

06-05-1998
Revista n.º 338/98- 1.ª Secção
Relator: Cons. Fernandes Magalhães

Acção ordinária
Tiro aos pratos
Habitação
Direito ao repouso

I - Manter um campo de tiro aos pratos a cinquenta metros da residência dos autores, e
no meio de uma zona habitacional, é pouco menos que dantesco.
II - A personalidade humana é, verdadeiramente, a estrutura-base dos direitos do
Homem, já que sobre ela assentam todos os demais direitos, nomeadamente os de
natureza e carácter diferente.
III - Daí que a própria lei comine de nulidade ou confira a faculdade revogatória aos
casos de limitação destes direitos de base (art.º 81 do CC).
IV - Daí também que em caso de conflito entre eles e outros, prevaleçam aqueles
primeiros que, hierarquicamente, são superiores por serem de espécie dominante (art.º
335, n.º 2, do CC).
V - Impõe-se obviamente ao de quem pretende - à sexta-feira, à noite - atirar aos pratos
como forma de recuperar do desequilíbrio semanal, o direito complexo constituído pelo
direito ao repouso, à saúde, ao sossego, a todas aquelas faculdades que integram e

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comandam a necessidade de recuperação fisiológica do ser humano e que se não


compadecem com o ruído frequente ou a poluição sonora rastejante, o direito a ter um
trem de vida diário equilibrado sem sobressaltos semanais ou cíclicos que afectem o
psiquismo humano.
VI - É certo que as actividades ruidosas podem ser levadas a efeito - mesmo na
proximidade de escolas e hospitais – até às 22 ou 24 horas, ficando então suspensas até
às 8 horas do dia seguinte (a hora da suspensão varia conforme o dia da semana).
VII - O DL 251/87, de 24-06, aqui inaplicável, serviria para que a autoridade
administrativa autorizasse a ré a fomentar o tiro aos pratos; mas não serve para dizer
que ela - só porque está administrativamente autorizada - não viola os direitos de
personalidade dos vizinhos que habitam junto ao seu campo de tiro.

22-10-1998
Revista n.º 1024/97 - 2.ª Secção
Relator: Cons. Noronha Nascimento

Direito ao repouso
Ruído
Ilicitude
Reconstituição natural

I - A integridade moral e física das pessoas é inviolável, seja qual for o tipo de agressão,
como por exemplo o ruído.
II - O repouso não pressupõe silêncio completo, pois o ruído é algo de inerente à
civilização moderna, integrado na sua essência; o que pode e deve é domar-se, tornar-se
suportável.
III - Não é a produção de qualquer ruído que acarreta ilicitude: este há-de ser
caracterizado por frequência ou intensidade que o tornem insuportável.
IV - Provando-se que a passagem de veículos automóveis provoca ruído excedendo o
nível normal de tolerância, de forma a, pela frequência ou pela intensidade, se alcançar
um resultado traumatizante ou intoleravelmente insuportável, existe o direito à
reconstituição natural, viável por meio da colocação de barreiras acústicas que eliminem
ou baixem o nível de poluição sonora para parâmetros toleráveis.

10-12-1998
Revista n.º 1044/98 - 2.ª Secção
Relator: Cons. Pereira da Graça

Propriedade horizontal
Relações de vizinhança
Direito de personalidade
Violação

I - A propriedade horizontal é uma forma jurídica do aproveitamento do espaço na


vertical em zonas urbanas de grande concentração demográfica que, exactamente por
isso, implicam uma grande densidade habitacional.

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II - As relações de vizinhança são, frequentemente aí, mais intensas, conflituosas ou


constantes do que em zonas rurais com proprietários de prédios rurais, muitas vezes
nem sequer contíguos entre si.
III - A violação de direitos de personalidade ou do uso de prédios de outrem ocorre em
regra - quando há relações de vizinhança que estão em jogo - de formas diversas: ou
porque a actividade do lesante é em si mesmo violadora, substancial e estruturalmente
violadora, ou porque a actividade do lesante não é estruturalmente lesiva dos direitos de
terceiros mas a forma como é exercida facilita ou permite a lesão.
IV - A violação dos direitos de personalidade envolve a apreciação concreta da conduta
do lesante e da situação do lesado; daí que seja possível que o ruído emitido no
exercício de uma actividade, mantendo-se embora dentro dos limites impostos
legalmente, possa configurar uma infracção àqueles direitos.

15-12-1998
Revista n.º 839/98 - 2.ª Secção
Relator: Cons. Noronha Nascimento

Direito de personalidade
Direito ao repouso
Ruído
Dever de indemnizar
Equidade

I - O facto de se respeitar o que se acha regulamentado sobre ruídos, designadamente


produzindo ruído inferior ao máximo permitido pelo Regulamento sobre Ruído,
aprovado pelo DL 251/87, de 24 de Junho, não quer dizer seja permitido afectar os
direitos ao repouso e à saúde.
II - Assim, têm de ser eliminados os ruídos produzidos por um sistema de ar
condicionado instalado e em funcionamento em parede contígua à parede comum com
outra casa, apesar de inferiores ao máximo permitido, mas causadores de desassossego e
perda de condições de sono, bem como do agravar duma doença.
III - Existe ainda o dever de indemnizar, pelo facto de se ter causado sofrimento
profundo e duradouro; sendo impossível a reconstituição natural, nos termos do n.º 1 do
art.º 566, do CC, há que fixar equitativamente o montante da indemnização, nos termos
do seu n.º 3.

28-10-1999
Revista n.º 427/99 - 2.ª Secção
Roger Lopes (Relator)
Costa Soares
Peixe Pelica

Expropriação por utilidade pública


Indemnização
Ambiente
Ruído

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Em processo de expropriação, tem suporte legal e não constitui condenação num


qualquer pagamento em espécie, nem é parcela da indemnização justa, a condenação da
entidade expropriante no prolongamento e alteamento de uma barreira acústica, de
forma a minorar o impacto ambiental negativo que adveio para a zona habitacional da
propriedade dos expropriados em consequência do ruído proveniente de auto-estrada
construída em área expropriada.

01-03-2001
Revista n.º 58/01 - 1.ª Secção
Lemos Triunfante (Relator)
Torres Paulo
Reis Figueira

Colisão de direitos
Direito de personalidade
Ambiente

I - Não se pode partir de uma hierarquização legal abstracta dos valores em causa para
se concluir que os direitos de personalidade se sobrepõem a todos os outros – a
definição da superioridade de um direito em relação a outro, a que se refere o n.º 2 do
art.º 335 do CC, tem que ser feita em concreto, apreciando casuisticamente a situação e
após ponderação séria dos interesses que se procuram alcançar.
II - Nem sempre os valores pessoais precedem os valores patrimoniais: tal precedência
verifica-se quanto ao valor da personalidade humana total, integrando todos os valores
singulares da personalidade, quanto ao valor da dignidade humana essencial e quanto
aos valores vitais; fora disto, já a indispensabilidade ou a importância de certos valores
patrimoniais básicos poderão sobrepor-se ao relevo de valores personalísticos menos
prementes.
III - A diminuição da qualidade de vida dos vizinhos de uma fábrica em razão do
funcionamento desta, causador de acréscimo do depósito de poeiras e excessivo ruído
de fundo, que se reduzem a incómodos, não justifica o encerramento daquela.

19-04-2001
Revista n.º 210/01 - 1.ª Secção
Pinto Monteiro (Relator)
Lemos Triunfante
Reis Figueira

Colisão de direitos
Direito de personalidade
Ruído

Em caso de conflito, os direitos de personalidade, nomeadamente o direito ao repouso e


à tranquilidade, prevalecem sobre o direito de propriedade ou sobre o direito ao
exercício de uma actividade comercial ou equiparada e, por maioria de razão, de uma
actividade que constitui um mero hobby para quem a pratica e que é causadora de ruído.

03-05-2001

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Revista n.º 978/01 - 1.ª Secção


Lemos Triunfante (Relator)
Reis Figueira
Torres Paulo

Danos não patrimoniais


Ambiente
Ruído

I - A existência de danos não patrimoniais avalia-se à luz de padrões objectivos em face


das circunstâncias de cada caso, tendo designadamente em conta que não há que tomar
relevantemente em consideração a circunstância de o lesado ter uma sensibilidade
particularmente embotada ou especialmente requintada.
II - O facto de o funcionamento de um centro comercial ser causador de ruído e
poluição não possibilita, sem que se faça prova que permita imaginar o nível concreto
dos ruídos e da poluição e o incómodo por via deles sofrido pelos habitantes de um
prédio vizinho, a afirmação de que os danos causados têm gravidade que possa justificar
a tutela do direito.

03-05-2001
Revista n.º 628/01 - 1.ª Secção
Ribeiro Coelho (Relator)
Garcia Marques
Ferreira Ramos

Direito de personalidade
Ruído

I - A produção ou emissão de ruído, seus efeitos lesivos para o homem e a sociedade, e


tutela dos direitos e interesses envolvidos, pode ser encarada por três ópticas: a do
direito do ambiente, enquanto causa de poluição (art.ºs 21 e 22, da LBA), a do direito de
propriedade, no domínio das relações de vizinhança (art.º 1346, do CC) e a dos direitos
da personalidade, enquanto possível ofensa à personalidade física ou moral de alguém
(art.ºs 25, n.º 1 da CRP e 70, do CC).
II - O direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono, são aspectos do direito à integridade
pessoal (art.º 25, n.º 1 da CRP), que faz parte do elenco dos direitos fundamentais, do
acervo de direitos, liberdades e garantias pessoais.
III - A ilicitude dum comportamento ruidoso que prejudique o repouso, a tranquilidade
e o sono de terceiros está no facto de, injustificadamente e para além dos limites do
socialmente tolerável, lesar tais baluartes da integridade pessoal.
IV - A ilicitude, nesta perspectiva, dispensa a aferição do nível do ruído por padrões
legais estabelecidos.

17-01-2002
Revista n.º 4140/01 - 7.ª Secção
Quirino Soares (Relator)
Neves Ribeiro
Óscar Catrola

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Direitos fundamentais
Direito de personalidade
Ruído

I - Perante contradições normativas, concorrências ou colisões de vários direitos


fundamentais, o intérprete não deve proceder a uma ponderação abstracta e ao confronto
entre os direitos constitucionais garantidos, sacrificando uns aos outros, mas antes
estabelecer limites e condicionalismos recíprocos de forma a conseguir uma
harmonização ou concordância prática entre esses direitos.
II - São aplicáveis, em termos gerais, os art.ºs 483 e segs. do CC à responsabilidade por
ofensas à personalidade física ou moral.
III - A autorização administrativa para funcionamento dum café não afasta a ilicitude e a
culpa na produção de exagerada poluição sonora no estabelecimento.
IV - O facto de determinado ruído ser de intensidade inferior ao máximo permitido não
justifica que alguém seja ilicitamente lesado no seu direito ao descanso.

26-09-2002
Revista n.º 1994/02 - 2.ª Secção
Loureiro da Fonseca (Relator)
Eduardo Baptista
Moitinho de Almeida

Direito de personalidade
Ruído

O DL n.º 251/87, de 24-06 (Regulamento Geral sobre o Ruído) apenas tem efeitos
dentro da actividade administrativa e no seu âmbito, não podendo interferir com a
salvaguarda dos direitos de personalidade das pessoas, cuja protecção se não esgota no
limite do ruído estabelecido em tal diploma.

17-10-2002
Revista n.º 2255/02 - 2.ª Secção
Simões Freire (Relator)
Ferreira Girão
Duarte Soares

Direitos de personalidade
Direito ao repouso
Ruído

I - Os direitos de personalidade são protegidos contra qualquer ofensa ilícita, não sendo
precisa a culpa para se verificar a ofensa, nem sendo necessária a intenção de prejudicar
o ofendido, bastando, pois, o facto objectivo da violação, o que se compreende uma vez
que a lei pretende a protecção mais ampla possível.
II - O direito à integridade física, à saúde, ao repouso, ou sono, gozando da plenitude do
regime dos direitos, liberdades e garantias, é de espécie e valor superior ao direito ao

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exercício de uma actividade comercial (concretamente, a exploração de um bar), que é


um direito fundamental que apenas beneficia do regime material dos direitos, liberdades
e garantias e, tratando-se de direitos desiguais, prevalece o que deva considerar-se
superior.
III - A ofensa do direito ao repouso, ao descanso ou ao sono não é excluída pela simples
circunstância de a actividade em causa ter sido autorizada administrativamente - a
consagração legal de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a
Administração não pode autorizar a instalação de equipamento, nem conceder
licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite.
IV - Face à lei civil, deve entender-se que o direito de oposição à emissão de ruídos
subsiste mesmo que o seu nível sonoro seja inferior a 10 decibéis.

18-02-2003
Revista n.º 4733/02 - 6.ª Secção
Fernandes Magalhães (Relator)
Silva Paixão
Armando Lourenço

Direito ao repouso
Ruído

I - A habitação é o local privilegiado para o repouso, sossego e tranquilidade


necessários à preservação da saúde e, assim, da integridade material e espiritual que o
art.º 25, n.º 1, da CRP tutela.
II - Nesta perspectiva, as emissões dos prédios vizinhos, designadamente de ruídos
elevados e constantes, vibrações, odores e cheiros nauseabundos, que prejudicam
substancialmente o uso do andar destinado à habitação das AA., transcendem as meras
relações pessoais de vizinhança, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade.
III - Nos termos do art.º 335, n.º 2, do CC, o direito ao repouso é superior ao direito de
propriedade (art.º 62, n.º 1, da CRP) e ao direito de exercício de actividade comercial
(art.º 61, da CRP).

21-10-2003
Revista n.º 2782/03 - 6.ª Secção
Afonso de Melo (Relator)
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos

Trespasse
Autorização
Ruído
Queixa
Abuso do direito

Tendo autorizado no trespasse que fizeram, o exercício do mesmo ramo de actividade


comercial com a mesma extensão, além da churrascaria que autorizaram que o
trespassário instalasse, sendo idênticos os barulhos e ruídos quando os réus exploravam
o estabelecimento e os que agora se produzem, os réus, ora recorrentes, abusaram do

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seu direito de moradores e proprietários do prédio, ao apresentarem queixas junto da


autoridade administrativa por causa dos barulhos produzidos no estabelecimento,
através do qual obtiveram uma limitação do horário e do âmbito do negócio dos autores,
ora recorridos, causando-lhes prejuízos.

18-03-2004
Revista n.º 518/04 - 2.ª Secção
Loureiro da Fonseca (Relator)
Lucas Coelho
Santos Bernardino

Direito de personalidade
Responsabilidade civil
Brisa
Direito à qualidade de vida
Poluição
Ruído
Auto-estrada

I - Questões relevantes para efeitos processuais são os pontos essenciais de facto e ou de


direito em que as partes baseiam as suas pretensões, incluindo as excepções, e os
recursos, meios instrumentais ao reexame de questões antes submetidas à apreciação de
tribunais inferiores e não de resolução das que aos últimos não tenham sido submetidas,
designadas questões novas.
II - Por imperativo da própria vivência dos seres humanos em sociedade, a protecção
dos direitos de personalidade física das pessoas, designadamente ao sossego e ao
descanso, e do ambiente sadio e ecologicamente equilibrado nas suas vertentes de não
poluição por via de ruídos e gases não é absoluta, sendo susceptível de afectação em
razoáveis termos, ou seja, desde que ela não atinja a sua própria substância e seja
proporcional ao interesse público a prosseguir.
III - A administração pública pode condicionar a implantação de infra-estruturas viárias
se elas causaram impacto violento sobre a paisagem, do que se infere um princípio geral
aplicável em matéria de ambiente, no sentido da tolerabilidade razoável da sua
afectação.
IV - A responsabilidade civil por danos causados a terceiros no âmbito da construção de
auto-estradas pela respectiva concessionária de obras públicas rege-se pelo que
prescreve a lei civil em geral; e a indemnização pelo dano ambiental no quadro da
responsabilidade civil objectiva depende de ocorrer afectação significativa derivada de
alguma actividade perigosa.
V - Em virtude de não ocorrer acção ou omissão ilícita e culposa dos agentes da
concessionária na edificação do viaduto da auto-estrada, não tem direito a exigir-lhe
indemnização o proprietário da moradia a quem aquela construção diminuiu a paisagem
de que desfrutava, lhe projectou sombra sobre ela antes do pôr do sol, lhe provocou a
audição do vento e do ruído parcial dos veículos automóveis e lhe implicou a percepção
do cheiro dos combustíveis neles queimados na auto-estrada, com os consequentes
incómodos e desvalorização da moradia.
VI - A interpretação normativa nesse sentido não infringe o art.º 62 n.º 1 da CRP nem o
art.º 1 do Protocolo Adicional à Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais.

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02-12-2004
Revista n.º 3912/04 - 7.ª Secção
Salvador da Costa (Relator) *
Ferreira de Sousa
Armindo Luís

Direitos de personalidade
Ruído
Danos não patrimoniais
Indemnização

I - Constituindo facto de conhecimento comum dos cidadãos, que os ruídos nocturnos


que ocorram em qualquer local fechado, provenientes, quer de instrumentos musicais,
quer da exibição de cantores, quer de conversas, quer do arrastar de mobiliário, se
tornam potencialmente mais audíveis nos locais contíguos àqueles onde os mesmos
sejam produzidos, por foca da inexistência da sua diluição com quaisquer outros ruídos
exteriores, a sua continuada ocorrência, por mais baixo que seja o volume dos mesmos,
e, no caso em apreço, tal diminuta sonoridade não se verificou, constitui factor gerador
de uma situação de total debilitação, não só física, como também psicológica, de um
qualquer cidadão sujeito a tal imposição diária.
II - Provando-se, nomeadamente, que os AA. viram-se obrigados a receber tratamento
médico por mais que uma vez e, nesta altura, ingerem ansiolíticos e indutores de sono,
para diminuírem os sintomas do desequilíbrio psicológico e emocional, consequência do
barulho permanente do estabelecimento dos RR., que até hoje nada fizeram para o
eliminar, funcionando quatro dias por semana, impossibilitando os AA. de descansarem
nesses dias e assim retemperarem as forças de que carecem para continuarem a trabalhar
e a viver tranquilamente, é adequada a fixação da quantia de € 2.500, a título de danos
não patrimoniais.

18-01-2005
Revista n.º 4018/04 - 6.ª Secção
Sousa Leite
Salreta Pereira
Azevedo Ramos

Brisa
Ruído
Direito de personalidade
Colisão de direitos
Responsabilidade civil
Obrigação de indemnizar

I - Mostrando-se provado que o prédio, cuja parede está voltada à auto-estrada, se situa
a cerca de 10 metros daquela, não permitindo aos autores ou a quem ali esteja um
minuto de descanso, tal é a intensidade dos ruídos produzidos pelos motores, rodas e
simples deslocações aerodinâmicas, quer de dia, quer de noite, tem a ré que indemnizar
os autores pela ofensa, comprovada, à sua integridade física.

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II - Considerando tal matéria de facto e o disposto nos arts. 25.º, 62.º, 64.º e 66.º da CRP
e art. 335.º do CC, no conflito entre os direitos de personalidade (saúde, repouso, sono)
e o exercício de uma actividade como a exercida pela Brisa, enquanto concessionária do
Estado na construção de auto-estradas, que produz ruído, há que dar prevalência o
primeiro.

22-02-2005
Revista n.º 7/05 - 6.ª Secção
Ponce de Leão (Relator)
Ribeiro de Almeida
Nuno Cameira

Direito de propriedade
Direito à qualidade de vida
Colisão de direitos

I - Utilizar um prédio situado numa zona habitacional como estábulo de gado caprino,
pela ameaça que significa para a qualidade de vida dos habitantes dessa zona, constitui
um uso anormal do prédio para efeitos do art.º 1346 do CC, por se traduzir numa sua
utilização disfuncional, atento o destino sócio-económico que lhe deveria ser dado.
II - Se da referida utilização resulta para alguns vizinhos incómodo e mal estar, existe
prejuízo substancial nos termos do aludido preceito, dado que o que está em causa é a
sua residência, ou seja, o centro da sua vida pessoal, logo, onde têm o direito a serem
menos perturbados.

07-04-2005
Revista n.º 4781/05 - 2.ª Secção
Bettencourt de Faria (Relator) *
Moitinho de Almeida
Noronha Nascimento

Auto-estrada
Ruído
Brisa

I - Estando provado apenas que a Ré Brisa informou a gerência da Autora, sociedade


que se dedica à suinicultura, que estava prevista a aplicação de cerca de 200 metros de
barreiras acústicas na zona de influência das instalações da Autora, tal não basta para
concluir que a Ré se comprometeu perante a Autora a aplicar a barreira anti-ruído.
II - Não obstante no art. 37.º da Contestação a Ré tenha afirmado que iria construir tal
barreira acústica quando se atingisse um nível de ruído de 65 dB e tenha ficado provado
que esse nível de ruído já foi ultrapassado, não é possível concluir que a Ré se
comprometeu perante a Autora a construir tal barreira.
III - Com efeito, as partes não assumem, nem confirmam compromissos nos articulados
e os mandatários poderão, quando muito, confessar factos, nos termos do art. 38.º do
CPC, mas não assumem compromissos.

22-06-2005

Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça


Assessoria Cível
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

Revista n.º 1624/05 - 6.ª Secção


Afonso Correia (Relator)
Ribeiro de Almeida
Nuno Cameira

Ruído
Poluição
Direito de personalidade

Face à lei civil, acontecida emissão de cheiros e ruídos, mesmo que o nível sonoro
destes seja inferior ao legal (não podendo, por via de tal, ser considerada agressão
ambiental) e a actividade daqueles geradora tenha sido autorizada, pela competente
autoridade administrativa, ocorre direito de oposição, sempre que tais emissões
impliquem ofensa de direitos de personalidade e (ou) violação das relações de
vizinhança.

22-09-2005
Revista n.º 4264/04 - 2.ª Secção
Pereira da Silva (Relator) *
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida

Conflito de direitos
Direito à integridade física
Direito à qualidade de vida
Ambiente
Princípio da proporcionalidade

I - A actividade pecuária desenvolvida pelo réu/recorrente tem prejudicado gravemente


o direito dos recorridos ao ambiente, qualidade de vida e integridade física, não sendo
exigível a estes que continuem a suportar os intensos e desagradáveis cheiros que
emanam da suinicultura do réu e que lhes causam mal estar e ansiedade.
II - O recorrente exerce a sua actividade sem as condições adequadas e sem que a
exploração suinícola disponha das necessárias licença camarária e alvará sanitário.
III - A verificada impossibilidade de, em termos de razoabilidade e de
proporcionalidade, se proceder à modificação do modo de funcionamento dessa
exploração com vista à eliminação dos efeitos negativos que dela decorrem para
terceiros e, consequentemente, de se estabelecer, no caso, o equilíbrio ou a
compatibilidade entre os direitos em conflito leva a que se dê prevalência aos direitos de
personalidade dos recorridos sobre os direitos patrimoniais do recorrente, pelo que se
justifica o decretado encerramento da exploração pecuária deste.

06-07-2006
Revista n.º 1966/06 - 7.ª Secção
Ferreira de Sousa (Relator)
Armindo Luís
Pires da Rosa

Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça


Assessoria Cível
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

Conflito de direitos
Direito de personalidade
Direito ao repouso
Ruído
Direito à qualidade de vida
Direito de propriedade

I - Os autores são donos de um prédio rústico no concelho de Silves onde se encontra


implantado um edifício composto de rés-do-chão, 1.º andar e logradouro, sendo este
composto por jardim e piscina, destinado a habitação.
II - Os autores não residem naquele edifício e só ocasionalmente ali passam alguns dias,
incluindo fins de semana.
III - No prédio da ré, contíguo aos dos autores, encontra-se implantada vinha; nesta
vinha, a ré tem colocada uma máquina que emite um som semelhante ao de um tiro de
arma de caça cujo objectivo é afugentar os pardais, impedindo que estes comam as
uvas; tal máquina funciona entre a segunda quinzena de Junho e a primeira de Agosto,
entre as 08.30 horas até cerca das 20.30 horas de cada dia.
IV - Não está em causa um interesse permanente dos autores, considerando o tempo
(limitado) em que residem na casa e o facto de apenas temporariamente o equipamento
estar a funcionar (cerca de dois meses por ano e nunca durante a noite).
V - Por outro lado, a ré vive dos rendimentos da actividade agrícola e, se não for
utilizado qualquer sistema de protecção das uvas produzidas na vinha, a respectiva
produção sofrerá decréscimo acentuado, o que pode levar à perda de toda a vinha, por
não ser economicamente rentável a sua exploração.
VI - Assim, mesmo numa perspectiva constitucional, não é possível resolver o caso
concreto a favor dos autores com base no entendimento de que o direito ao repouso e à
qualidade de vida prevalece sobre o direito de propriedade e o exercício da actividade
económica; a proibição de utilização da aludida máquina apresenta-se como providência
desproporcionada à invocada ofensa dos direitos de personalidade dos autores.
VII - Acresce que não se verificam os requisitos previstos no art. 1346.º do CC: que as
emissões (no caso, de ruídos) importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel
vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio de que emanam; assim,
improcede o pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

15-03-2007
Revista n.º 585/07 - 2.ª Secção
Oliveira Rocha (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Duarte Soares

Ambiente
Direito à qualidade de vida
Conflito de direitos
Danos não patrimoniais

I - Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover, do


mesmo modo que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e
ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.

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Assessoria Cível
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

II - O proprietário de um imóvel pode tirar dele todos os frutos, no uso do exercício do


direito pleno de propriedade, desde que não colida com os direitos dos donos dos
prédios vizinhos.
III - Estes podem opor-se à emissão de fumos, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos
ou quaisquer outros factos semelhantes, provenientes do prédio vizinho, sempre que os
mesmos importem prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem de
utilização normal do prédio de que emanam (art. 1346.º do CC).
IV - Revelando os factos provados que: o réu faz criação no terreno contíguo ao do
autor de galinhas e pombos para consumo da casa, de cabras, vacas e bezerros,
utilizando como locais de abrigo dos animais e armazenamento de palhas, rações e erva,
uns palheiros, que se encontram junto ao muro que separa a casa do autor da do réu; nos
palheiros existem duas sanitas e uma moagem e junto ao muro de separação da casa do
autor, o réu faz depósito de lixos, onde se encontram madeiras, garrafas de gás e telhas
partidas; o réu também é revendedor de gás, possuindo no terreno, junto aos palheiros,
30 garrafas de gás; os referidos animais provocam cheiros nauseabundos, que se
acentuam mais em dias ventosos e de calor que, associados à presença dos referidos
animais, da comida destes e dos seus dejectos se desenvolvem insectos, carraças e
moscas, que impedem o autor de proceder à abertura de portas e janelas que deitam para
o quintal, nomeadamente, para arejar a casa; tais cheiros e insectos assim como os ratos
que frequentemente aparecem no quintal do autor condicionam-no, a si e à sua família,
de desfrutarem do seu quintal; deve considerar-se que estes factos são suficientemente
incomodativos e justificam o impedimento do réu no prosseguimento da sua exploração
agro-pecuária de galináceos, vacas, vitelos e cabras.
V - O constrangimento e a vergonha que o autor tem sentido perante terceiros em
virtude de tais factos e o desgosto com a situação descrita não são de tal modo graves
que possam dar lugar a indemnização a título de danos não patrimoniais, pois não
merecem a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do CC).

03-05-2007
Revista n.º 586/07 - 7.ª Secção
Gil Roque (Relator)
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa

Direito ao repouso
Ruído
Estabelecimento comercial
Liberdade de empresa
Direitos fundamentais
Colisão de direitos

I - O repouso e o sossego que cada pessoa necessita de desfrutar no seu lar para se
retemperar do desgaste físico e anímico que a vida no seu dia a dia provoca no ser
humano é algo de essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente
sadia.
II - O direito ao repouso, ao sossego e ao sono são uma emanação da consagração
constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente
de vida sadio, constituindo, por isso, direitos de personalidade e com assento
constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais.

Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça


Assessoria Cível
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

III - A nossa lei fundamental concede uma maior protecção jurídica a estes direitos do
que aos direitos de índole económica, social e cultural, havendo entre eles uma ordem
decrescente de valoração; e na lei ordinária existe um dispositivo que expressamente
manda dar prevalência, em caso de conflito de direitos, àquele que for considerado
superior - n.º 2 do art. 335.º do CC.
IV - Ainda que durante o período diurno o nível de ruído induzido pela actividade
desenvolvida no estabelecimento da ré continue a ser elevado, esse ruído de fundo, por
força da actividade associada a todo o bulício citadino diário, esbate-se bastante,
estando a pessoa humana habituada a conviver com outros níveis sonoros durante o dia.
Nesta medida e numa perspectiva de razoabilidade e de consideração dos direitos em
causa, afigura-se que a laboração do estabelecimento da ré já não deve cessar quando
não colida com aqueles direitos, de natureza superior.
V - A limitação do horário de funcionamento do estabelecimento constitui uma medida
eficaz e adequada para defesa dos direitos dos autores e permite compatibilizar o
conjunto dos direitos em jogo. Tem-se como adequada a medida de limitar o fecho do
estabelecimento ao horário nocturno, entre as 22 h e as 7 h, tal como demarcado no
Regulamento Geral do Ruído (aprovado pelo DL n.º 292/00, de 14-11, então em vigor),
coincidente com o período em que as pessoas habitualmente repousam e dormem, assim
recuperando física e psiquicamente.

13-09-2007
Revista n.º 2198/07 - 7.ª Secção
Alberto Sobrinho (Relator) *
Maria dos Prazeres Beleza
Salvador da Costa

Propriedade horizontal
Título constitutivo
Fracção autónoma
Alteração do fim
Comércio
Abuso do direito
Tu quoque

I - Em assembleia geral de condóminos do prédio sito na Rua do Alecrim, foi alterado,


por unanimidade, o destino da fracção E, pertença do autor, passando a mesma de
comércio para habitação; resta apenas o requisito formal, isto é, a escritura pública, para
que opere a modificação do título constitutivo.
II - Só que este acto não depende apenas da vontade do autor; exige, ainda, a
intervenção da Câmara Municipal; por outro lado, trata-se de um acto unilateral, que
pode ser praticado pelo administrador em nome do condomínio.
III - No caso do autor, fixa-se um “uso menos pesado e desgastante”, quer para o prédio,
quer para os ocupantes.
IV - No caso da ré é exactamente o contrário, com a agravante da sua ocupação
industrial lesar direitos de eminente relevância: direito ao sossego, ao descanso e,
consequentemente, à saúde do autor e sua família, maxime filhos em idade escolar.
V - Assim, o autor não cometeu o invocado abuso de direito, na modalidade tu quoque.

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

VI - Na falta de outros elementos, o termo “comércio” constante do título constitutivo


da propriedade horizontal só pode ter o sentido vulgar e corrente de mediação de trocas,
coincidente com o seu sentido económico, aquele que um declaratário normal deduz.
VII - Por isso, utilizando a ré a fracção de que é locatária para restauração, está a dar-lhe
um uso diverso do fim a que é destinada, o comércio, em violação da norma do art.
1422.º, n.º 2, al. c), do CC, razão porque se impõe a cessação, aí, dessa actividade.

27-11-2007
Revista n.º 2943/07 - 2.ª Secção
Oliveira Rocha (Relator)
Gil Roque
Oliveira Vasconcelos

Propriedade horizontal
Fracção autónoma
Título constitutivo
Direitos de personalidade
Direito ao repouso
Direito à qualidade de vida
Ruído
Licença de estabelecimento comercial e industrial
Actividade comercial
Actividade industrial
Abuso do direito

I - O autor, por virtude da actividade industrial da sociedade ré, fica impedido de abrir
as janelas da sua habitação, sem que um cheiro intenso a pão, bolos e óleos provenientes
da sua laboração invada a sua fracção, o que causa sensações de enjoo e mau estar; a sua
habitação é também invadida por fumos e fuligens provenientes da laboração da ré, que
impedem o arejamento.
II - É constante, e perfeitamente audível, na fracção do autor, o arrastar de elementos
como cadeiras e mesas, pancadas secas, quedas de objectos, arrastar de tabuleiros e
cestos do pão; são audíveis ruídos diversos, tais como o de uma batedeira, o raspar de
tabuleiros, o constante bater e chiar de portas, que se desenvolvem a qualquer hora do
dia e da noite e mesmo ao fim de semana; tudo isto perturba o sono e o descanso do
autor e sua família.
III - O calor produzido pelos fornos da ré provoca temperaturas elevadíssimas na
fracção do autor, o que se agrava no verão, tornando quase insuportável aí habitar
durante esse período; isso causa ao autor e sua família abundante transpiração, mau
estar e desidratação.
IV - É inevitável a conclusão de que o fumo, fuligem, vapores, cheiros e ruídos
provenientes da fracção da ré arrasta um prejuízo substancial para o uso da fracção do
autor, conferindo a este o direito de se opor a tais factos - art. 1346.º do CC -, mesmo
que a ré tenha obtido licença camarária que autorize o funcionamento de uma
padaria/pastelaria.
V - Tal oposição do autor não constitui abuso do direito.
VI - Quando o título constitutivo da propriedade horizontal menciona como destino da
fracção o “comércio, profissões liberais ou outras actividades económicas” claramente
não inclui a indústria entre os seus destinos.

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

VII - Foi perfeitamente possível destrinçar o que é comércio de padaria e pastelaria do


que é indústria de panificação, por forma a poder manter em funcionamento o comércio
e encerrar a indústria.

10-01-2008
Revista n.º 413/07 - 7.ª Secção
Pires da Rosa (Relator)
Custódio Montes
Mota Miranda

Propriedade horizontal
Título constitutivo
Fracção autónoma
Comércio
Uso para fim diverso
Ruído
Direito ao repouso
Câmara Municipal
Licença de utilização
Licença de estabelecimento comercial e industrial

I - Por comércio tem de entender-se, não o sentido normativo defendido pelo recorrente,
mas o sentido vulgar e corrente de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido
económico, aquele que um declaratário normal deduz, não sendo relevante para a
determinação do destino daquela fracção o facto de se localizar em zona balnear, com
maior movimento em férias e fins de semana, bem como a instalação noutra fracção de
um café-bar.
II - Assim, naquela fracção do réu pode ser exercitada a actividade de comércio e não
qualquer actividade industrial; ora, ao exercer a actividade de restauração, o réu faz da
sua fracção um uso indevido, um uso diverso do fim a que se destina, um uso não
normal da fracção por contrário ao do título constitutivo de propriedade horizontal -
1422.º, n.º 2, al. c), do CC.
III - Como o réu faz um uso contrário ao que lhe impõe o estatuto de direito real
definido no título constitutivo de propriedade horizontal, aos autores assiste o direito de
fazerem cessar os ruídos provenientes da fracção do réu, cessando a sua causa e
impondo o cumprimento do estabelecido naquele título.
IV - Têm, portanto, os autores direito a que o estabelecimento do réu seja encerrado, por
força do disposto nos arts. 1346.º e 1422.º, n.º 2, al. c), do CC.
V - Mas os autores também têm direito a oporem-se à actividade do réu por a utilização
que o réu faz da fracção importar um prejuízo substancial para o uso da fracção dos e
pelos autores; com efeito, está provado que os autores, sendo a sua fracção destinada a
habitação, segundo aquele título constitutivo de propriedade horizontal, devido ao ruído
que vem da fracção do réu, não podem descansar, dormir e ter sossego, o que lhes causa
incómodos e aborrecimentos e os traz nervosos e stressados.
VI - Por fim, não se diga que, tendo a Câmara Municipal emitido licença de utilização,
aos autores está vedado oporem-se a que o réu exerça aquela sua actividade naquele
local; é que a Câmara Municipal tem como função assegurar o respeito pelas normas de
direito público, a defesa de interesses públicos, não lhe cabendo resolver conflitos de
natureza meramente privada entre particulares.

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

15-05-2008
Revista n.º 779/08 - 7.ª Secção
Mota Miranda (Relator)
Alberto Sobrinho
Maria dos Prazeres Beleza

Poderes da Relação
Matéria de facto
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
Direito de propriedade
Restrição de direitos
Direito à qualidade de vida
Ruído
Prova pericial

I - Não cabe nos poderes do STJ censurar o não uso pela Relação da faculdade de alterar
as respostas dadas aos artigos da base instrutória; mas o STJ pode sindicar o bom ou
mau uso dos poderes de alteração/modificação da decisão de facto que à Relação são
conferidos nas restritas hipóteses contempladas no art. 712.º, n.º 1, do CPC.
II - O Regulamento Geral sobre o Ruído, aprovado pelo DL n.º 251/87, de 24-06
(alterado pelo DL n.º 292/89, de 02-09, e revogado pelo DL n.º 292/2000, de 14-11) não
regula o ruído provocado pelos actos de uma pessoa ou várias, por modo mais ou menos
instantâneo, mas sim o gerado por actividades de cariz ruidoso.
III - Logo, o mesmo não é aplicável aos casos que se enquadram nas relações de
vizinhança num mesmo prédio entre várias pessoas, pelo que não é imprescindível uma
perícia técnica para aferir se os ruídos produzidos por aquelas ultrapassam os valores
fixados por lei.

23-09-2008
Revista n.º 2414/08 - 2.ª Secção
Oliveira Rocha (Relator)
Oiveira Vasconcelos
Serra Baptista

Dano causado por coisas ou actividades


Actividades perigosas
Explosivos
Direito de propriedade
Prova
Nexo de causalidade
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
Direitos de personalidade
Danos não patrimoniais
Presunção de culpa

I - Em acção de indemnização, fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos, em


que os autores reclamam indemnização por danos materiais causados pelos réus, no

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

exercício de uma actividade perigosa, em prédio de que aqueles se arrogam donos, por
sucessão mortis causa, e onde habitam, o invocado direito de propriedade sobre o
prédio não constitui o objecto da acção (como nas acções reais, maxime na de
reivindicação), apenas integrando a respectiva causa de pedir.
II - Assim, a prova de que são donos do prédio e, por via disso, titulares do direito de
indemnização, basta-se com a junção de certidão, comprovativa de que o prédio lhes foi
adjudicado em partilha judicial, homologada por sentença transitada em julgado, não
lhes sendo exigível a prova da aquisição originária do domínio por parte dos seus
antecessores.
III - O estabelecimento ou a determinação do nexo de causalidade naturalística entre o
facto e o dano constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, que o
Supremo, enquanto tribunal de revista, não pode sindicar.
IV - Tendo, para a implantação de uma construção, sido efectuados rebentamentos de
rocha com explosivos, ao longo de cerca de sete meses, sendo as explosões fortes,
verificadas durante a semana, em número de três e por vezes quatro por dia,
provocando, pelo seu ruído, sustos e vibrações, e causando, durante esse período, nos
autores, que viviam a cerca de 350 metros do local das explosões, intranquilidade e
ansiedade, ausência de bem-estar físico e psíquico, estamos perante danos não
patrimoniais por estes sofridos, e indemnizáveis porque, pela sua gravidade objectiva,
se ajustam ao rigor limitativo da lei (art. 496.º, n.º 1, do CC), merecendo a tutela do
direito.
V - No n.º 2 do art. 493.º do CC estabelece-se uma presunção de culpa para quem, no
exercício de uma actividade perigosa, causar danos a outrem, só ficando o lesante
exonerado da responsabilidade se provar que empregou todas as providências exigidas
pelas circunstâncias para evitar a produção de tais danos.
VI - É insuficiente a observância dos deveres inerentes à normal diligência, pois onde a
periculosidade está ínsita na acção há o dever de proceder tendo em conta o perigo; o
dever de evitar o dano torna-se, assim, mais rigoroso, quando se actua com a nítida
previsão da sua possibilidade, pelo que o sujeito deve adoptar, mesmo que com
sacrifícios, todas as medidas aptas para evitar o dano.

12-03-2009
Revista n.º 4010/08 - 2.ª Secção
Santos Bernardino (Relator) *
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

Direitos de personalidade
Direito ao repouso
Direito à qualidade de vida
Ruído
Atividade comercial
Abuso do direito

I - Em matéria de tutela de direitos de personalidade - no caso, direito ao sossego e ao


descanso - não se pode considerar excessivo, antes se tem por adequada e equilibrada, a
condenação do réu a abster-se de imediato de prosseguir a exploração de um
estabelecimento comercial no qual se organizam festas e eventos enquanto não dotar o
espaço em causa das condições necessárias ao desenvolvimento de tal actividade sem a

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

emissão de ruídos causadores de danos na saúde e bem estar do autor, o qual reside num
prédio vizinho.
II - O facto de o réu - cuja conduta ilícita perdurou de modo contínuo - ter sido
demandado três anos depois da abertura do estabelecimento não é susceptível de criar a
expectativa do não exercício do direito por parte do autor lesado.

28-05-2009
Revista n.º 167/09.2YFLSB - 7.ª Secção
Custódio Montes (Relator)
Mota Miranda
Alberto Sobrinho

Direitos de personalidade
Direito ao repouso
Direito à qualidade de vida
Protecção da saúde
Ruído
Licença de utilização
Abuso do direito
Venire contra factum proprium

I - O art. 62.º do RGEU, que estabelece as condições de autorização de utilização de


edifícios, consiste numa norma de conteúdo administrativo destinada a regular a
utilização de edifícios. Esta norma não limita (nem o poderia fazer) os direitos dos
proprietários dos prédios vizinhos. O estabelecido naquela norma visa a salvaguarda de
interesses públicos, não podendo restringir o direito dos particulares ofendidos por
cheiros e sons que possam ser causados pela manutenção no prédio vizinho de animais,
pois a protecção daqueles está tutelada pelos arts. 70.º e 1346.º do CC. Por outras
palavras, pelo facto de ter entendido que o local onde os réus guardam o gado, sob o
ponto de vista administrativo, obedece ao alvará de utilização concedido pela Câmara
Municipal, não fica o mesmo a coberto de poder, através da permanência de animais
naquele local, violar os direitos de personalidade assegurados pelas ditas disposições do
CC.
II - Apesar da permanência de 3 ovelhas numa corte instalada no rés-do-chão do edifício
em que os autores habitam, não se considera abusivo o exercício do direito a pedir a
condenação dos réus a manterem fora do estábulo localizado junto a tal edifício os
animais (cerca de 30 ovelhas) que aí estiveram colocados, provado que o estábulo dista
cerca de 10 m da casa onde habitam os autores e a porta de acesso deita directamente
para esse prédio, que o estábulo não tem condições de higiene e salubridade, os animais
produzem fortes ruídos de dia e de noite, os dejectos por eles produzidos ficam a
descoberto no estábulo e, muitas vezes, à porta dessa dependência, o que provoca
concentração de insectos, que invadem, pela proximidade, a casa onde habitam os
autores e que as ovelhas produzem mau cheiro e, quando saem e passam junto à casa
dos autores, deixam o caminho conspurcado.
III - A situação da existência de 30 ovelhas junto à casa dos autores, nas condições
descritas, é substancialmente diversa da existência de (apenas) 3 ovelhas no rés-do-chão
da casa onde os autores habitam. É que um muito maior número de animais gera um
dano muito mais intenso para quem tem que suportar os respectivos cheiros e sons, em
termos de salubridade, saúde e conforto ambiental. Tal permanência das 3 ovelhas no

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

dito local, não poderá ser entendida como um sinal de anuência por parte dos autores
aos réus, à estada das 30 ovelhas junto à sua casa nas circunstâncias apuradas, assim não
ocorrendo abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

25-06-2009
Revista n.º 599/04.2TBCBT.S1 - 1.ª Secção
Garcia Calejo (Relator)
Helder Roque
Sebastião Póvoas

Vícios da sentença
Direitos de personalidade
Direito ao repouso
Direito à qualidade de vida
Danos não patrimoniais
Ilicitude
Danos patrimoniais

I - Entre os vícios da sentença figuram os chamados vícios de essência – aqueles que


atingem a sentença nas suas qualidades essenciais, dando lugar à sua inexistência
jurídica.
II - Como inexistente, para além da sentença que condena ou absolve quem não é parte
na causa, deve igualmente considerar-se a sentença que condena a favor de quem não é
parte: também esta não produz quaisquer efeitos jurídicos.
III - A actuação de quem, habitando o 1.º andar de um prédio, produz ruído,
propositadamente, a partir das 22 horas, batendo com um objecto tipo martelo ou
actuando como tal, no soalho da sua habitação, ao longo das divisões, atirando com
objectos pesados que produzem estrondo no chão e pondo o volume da aparelhagem
sonora e da televisão em registo audível no rés-do-chão do mesmo prédio, impedindo
tal ruído, pela sua intensidade, duração e repetição, os habitantes do rés-do-chão – um
casal e duas filhas menores – de dormir, e obrigando-os, por vezes, a pernoitar fora de
casa, em hotéis e pensões, viola o direito ao descanso e ao sono, à tranquilidade e ao
sossego destes, que são aspectos do direito à integridade pessoal.
IV - Se, em consequência de tal actuação, o casal e as duas filhas sofreram profundo
sofrimento, angústia e dor, as menores mostravam agitação e terror de voltar para casa,
a mulher passou a ter crises compulsivas de choro e a andar deprimida, sendo o seu
quadro depressivo agravado por estar grávida, e o marido ficou angustiado e ansioso, e
perdeu algumas deslocações profissionais ao estrangeiro pelo extremo cansaço
decorrente da impossibilidade de dormir, estamos perante danos não patrimoniais que
assumem gravidade suficiente para justificar a intervenção reparadora do direito.
V - A ilicitude, nesta perspectiva, dispensa a aferição do nível de ruído pelos padrões
legais estabelecidos: a ilicitude de um comportamento ruidoso que prejudique o
repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros está, precisamente no facto de,
injustificadamente, e para além dos limites do socialmente tolerável, se lesar um dos
direitos integrados no feixe dos direitos, liberdades e garantias pessoais.
VI - Distinguem os autores entre dano real – toda a ofensa de bens ou interesses alheios
protegidos pela ordem jurídica, a lesão causada no interesse juridicamente tutelado, que
reveste habitualmente a forma de uma destruição, subtracção ou deterioração de certa

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

coisa, material ou incorpórea – e dano patrimonial ou de cálculo, que é o reflexo do


dano real sobre a situação patrimonial do lesado, a expressão pecuniária do dano real.
VII - Constitui dano patrimonial indemnizável as despesas efectuadas com as obras de
isolamento acústico feitas no rés-do-chão pelo casal aí residente, devido ao ruído
proveniente do 1.º andar, e com intenção de obstar aos efeitos perniciosos no repouso,
tranquilidade e saúde de ambos e de suas filhas.

02-07-2009
Revista n.º 511/09 - 2.ª Secção
Santos Bernardino (Relator) *
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

Expropriação por utilidade pública


Expropriação parcial
Dano
Ambiente
Indemnização

I - Se um prédio não é expropriado na totalidade, pode acontecer que a parte sobrante


fique depreciada ou ocorram encargos ou prejuízos derivados da divisão. Neste caso,
haverá que calcular, em separado, o valor e o rendimento que a totalidade do prédio
tinha antes da expropriação e o valor ou rendimento que passaram a ter as áreas
expropriadas e as áreas sobrantes (art. 29.º, n.º 1, do CExp).
II - Consente, no entanto, a lei aos avaliadores não avaliarem a parte sobrante ou uma
fracção dela, se concluírem, justificadamente, que essa área, pela sua extensão, não
deixa de assegurar proporcionalmente os mesmos cómodos que oferecia a totalidade do
prédio e que os cómodos assegurados por ela continuam a ter interesse económico para
o expropriado, determinada objectivamente (arts. 29.º, n.º 3, e 30.º, n.ºs 2, als. a) e b), e
3).
III - A doutrina tem vindo a discutir a ressarcibilidade dos prejuízos causados
indirectamente pela expropriação, havendo quem não distinga e quem só considere
indemnizáveis os danos directos.
IV - Estando em causa a construção de uma via de comunicação, entre os prejuízos que
resultam indirectamente da expropriação encontram-se os relativos à perda ou
deterioração da qualidade ambiental, aos ruídos resultantes da circulação automóvel e à
diminuição do valor de mercado resultante daquela deterioração de qualidade de vida.
V - Da análise do artigo e da sua conjugação com os demais artigos do Código das
Expropriações, nomeadamente o art. 23.º, n.º 1, entendemos que os prejuízos
ressarcíveis no âmbito do processo expropriativo deverão ser, apenas, os directamente
resultantes da expropriação parcial. O Código das Expropriações fala em depreciação ou
outros prejuízos resultantes da divisão do prédio, e no valor real e corrente do bem à
data da declaração de utilidade pública. Os prejuízos supra referidos não resultam da
expropriação em si mesma (da divisão do prédio), mas da construção da obra a que se
destinou a expropriação, ou seja, os prejuízos não resultam directamente da
expropriação, mas da obra realizada, pelo que não deverão ser abrangidos na
indemnização por expropriação.
VI - Tais danos são ressarcíveis, mas na acção própria, não no processo expropriativo.

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

07-07-2009
Revista n.º 95/09.1YFLSB - 1.ª Secção
Paulo Sá (Relator)
Mário Cruz
Garcia Calejo

Ruído
Obrigação de indemnizar
Factos supervenientes
Inutilidade superveniente da lide
Falta de fundamentação
Fundamentos de direito
Nulidade de sentença
Prova pericial
Força probatória

I - Os factos supervenientes atendíveis terão de ser relevantes – ainda que instrumentais


– com aptidão para modificarem ou extinguirem o direito peticionado, quer por via
principal, quer reconvencional. O juízo decisor terá de ponderar se o facto que se
apresenta importa para a decisão nos precisos termos em que a bosquejou, sendo que,
nesse primeiro esboço do silogismo judiciário, a alteração da premissa menor por um
facto recém aparecido pode conduzir a uma diferente conclusão. Mas desconsiderá-lo-á
se o sentido da decisão se mantiver mau grado aquele surgimento (tal como para o
articulado superveniente – n.º 3 do artigo 506.º do Código de Processo Civil).
II - Quando é imputada uma violação reiterada constitutiva de um ilícito contratual ou
extracontratual, a cessação dessa actividade posterior à propositura da acção não releva
em termos de extinguir o direito peticionado, mas, tão só, e eventualmente, para apurar
o “quantum” indemnizatório, não se figurando, por isso, uma situação de inutilidade
superveniente da lide.
III - Só ocorre a ausência de fundamentos de direito geradora da nulidade da alínea b)
do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil quando essa motivação é total e
absoluta e não apenas deficiente, por muito sucinta ou abreviada.
IV - A prova pericial – conceptualizada no artigo 388.º do Código Civil – é realizada
por pessoas idóneas conhecedoras de factos que exigem conhecimentos especiais
estranhos ao tribunal ou quando os factos relativos a pessoas não devam ser objecto de
inspecção judicial. Os peritos farão uma percepção, ou apreciação técnica em áreas onde
são especializados.
V - A força probatória da prova pericial é apreciada livremente pelo Tribunal, não sendo
exigido esse tipo de prova para concluir que uma pessoa se mostra ansiosa e nervosa
com ruídos e fica impedido de descansar convenientemente durante a noite.
VI - O ruído, afectando a saúde, constitui não só uma violação do direito à integridade
física, como do direito ao repouso e à qualidade de vida. Direitos que, no seu cotejo
com o de exercício de uma actividade comercial ou industrial se lhe sobrepõem e
prevalecem, de acordo com o artigo 335.º do Código Civil.
VII - A emissão de ruídos, desde que perturbadores, incómodos e causadores de má
qualidade de vida, e ainda que não excedam os limites legais, autorizam o proprietário
do imóvel que os sofre a lançar mão do disposto no artigo 1346.º do Código Civil, que
só deve suportar os que não vão para além das consequências de normais relações de
vizinhança.

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

VIII - A apreciação da normalidade deve ser casuística, tendo como medida o uso
normal do prédio nas circunstâncias de fruição de um cidadão comum e razoavelmente
inserido no núcleo social.
IX - Sendo ilícita a emissão de ruídos recai sobre o poluidor sonoro o dever de
indemnizar nos termos dos artigos 483.º e 487.º do Código Civil.

22-09-2009
Revista n.º 161/05.2TBVLG.S1 - 1.ª Secção
Sebastião Póvoas (Relator) *
Moreira Alves
Alves Velho

Poderes do Supremo Tribunal de Justiça


Matéria de facto
Presunções judiciais
Regras da experiência comum
Princípio da livre apreciação da prova
Responsabilidade extracontratual
Ilicitude
Direitos de personalidade
Direito à qualidade de vida
Ambiente
Defesa do ambiente
Ruído
Estabelecimento comercial
Encerramento de estabelecimento comercial
Responsabilidade extracontratual

I - Não compete ao STJ, como tribunal de revista, sindicar o uso ou não pelas Relações
dos poderes sobre a concreta matéria de facto que lhes confere o art. 712.º do CPC, nem
sindicar a substância das ilações extraídas através da utilização de presunções naturais,
extraídas de factos conhecidos, em conformidade com regras de experiência e em
matéria probatória sujeita à livre apreciação do julgador.
II - Ao ajuizar da ilicitude da lesão do direito básico de personalidade –
constitucionalmente tutelado – de residentes nas imediações de estabelecimento de
diversão nocturna de grande dimensão, pode e deve o tribunal ter em consideração o
impacto ambiental negativo global que está necessariamente associado ao tipo de
actividades nele exercidas, incluindo comportamentos lesivos ocorridos no exterior do
estabelecimento, desde que quem o explora com eles pudesse razoavelmente contar, por
serem indissociáveis da actividade exercida, sem que tal traduza uma imputação
objectiva de responsabilidade civil por facto de terceiro ou envolva sub-rogação no
dever do Estado de garantir a ordem e tranquilidade pública.

08-04-2010
Revista n.º 1715/03.7TBEPS.G1.S1 - 7.ª Secção
Lopes do Rego (Relator) *
Barreto Nunes
Orlando Afonso

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

Erro de julgamento
Omissão de pronúncia
Propriedade horizontal
Condomínio
Assembleia de condóminos
Deliberação
Anulação
Abuso do direito

I - Se as instâncias consideraram prejudicadas determinadas questões face à resolução


de outras, ainda que tal entendimento constitua error in judicandum, não pode
logicamente ter-se por verificada a nulidade de omissão de pronúncia, a não ser que tais
razões prejudiciais configurassem mero pretexto para não tratamento de outras.
II - Proibindo o regulamento de condomínio a instalação de aparelhagens nas fachadas
com vista à conservação da estética e bom funcionamento do imóvel, mas proibindo
também a instalação de aparelhagens que possam prejudicar o sossego dos moradores, a
circunstância de terem sido instalados aparelhos de ar condicionado que já afectaram a
estética do imóvel, não impõe que a assembleia de condóminos não possa opor-se à
instalação de outros aparelhos sem que quem os instala não assegure, em termos
efectivos, que tais aparelhos não causam, nem irão causar, qualquer ruído, vibração ou
incómodo aos demais condóminos.
III - Por isso, porque não se demonstrou que tivessem sido proporcionadas garantias
adequadas, não pode entender-se que a deliberação que não permitiu a instalação de um
aparelho de ar condicionado se traduz ipso facto num manifesto abuso do direito.

13-04-2010
Revista n.º 2264/06.7TBAMT.P1.S1 - 6.ª Secção
Salazar Casanova (Relator) *
Azevedo Ramos
Silva Salazar

Inspecção judicial
Poderes da Relação
Direito de propriedade
Prédio confinante
Direitos de personalidade
Direito à qualidade de vida
Protecção da saúde
Colisão de direitos

I - A inspecção judicial tem em vista o esclarecimento do tribunal, quando este o


entender conveniente, sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa (art. 612.º
do CPC).
II - A reapreciação pela Relação dessa inspecção não ofende qualquer disposição
expressa da lei que exija certo meio de prova nem que fixe a força de determinado meio
de prova (art. 722.º, n.º 2, do CPC).
III - A interpretação sistemática do art. 1346.º com o art. 1347.º, ambos do CC, revela
que a proibição das emissões de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calores ou ruídos, bem

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

como a produção de trepidações e outros quaisquer factos semelhantes provenientes de


um prédio, e que conferem ao proprietário do prédio vizinho o direito de a tal se opor,
também se estende às actividades donde provêm tais emissões.
IV - Deve ter-se por preenchida a previsão do art. 1346.º do CC perante o caso em que
os anexos do prédio dos réus, muito próximos do prédio dos autores, e nos quais aqueles
criam e albergam animais, por deficientes condições de higiene, dimanam cheiros e
ruídos, nocturnos e diurnos, que provocam a poluição do ar, assim como os dejectos
daqueles animais, correndo a céu aberto, determinam uma concentração de insectos o
que, tudo junto, causa incómodos que importam um prejuízo substancial para o prédio
dos autores.
V - Este prejuízo deve ser entendido numa vertente económica, mas, também, por
referência ao art. 1305.º do CC e ainda num aspecto englobante dos direitos de
protecção à integridade física.
VI - A violação de tais direitos acarreta o dever de indemnizar os danos sofridos pelos
lesados.
VII - Na colisão de direitos entre os já assinalados dos autores e o de propriedade dos
réus, devem prevalecer os daqueles.

29-04-2010
Revista n.º 1491/08 - 7.ª Secção
Costa Soares (Relator)
João Bernardo
Oliveira Rocha

Responsabilidade extracontratual
Direitos de personalidade
Direito à qualidade de vida
Direito ao repouso
Actividade industrial
Ruído
Conflito de direitos
Estabelecimento industrial
Danos não patrimoniais
Peritagem
Custas de parte
Danos patrimoniais
Procuradoria

I - O direito ao sono, repouso e descanso, que faz parte do elenco dos direitos
fundamentais, protegido pelos arts. 25.º, n.º 1, da CRP e 70.º, n.º 1, do CC, prevalece,
nos termos do art. 335.º do CC, sobre o direito de propriedade e o direito ao exercício de
uma actividade industrial ou comercial, e a sua violação consubstancia um dano não
patrimonial justificativo de ser compensado pecuniariamente por parte do autor da
lesão.
II - Demonstrando os factos provados que a laboração fabril da ré iniciou-se junto da
residência dos autores quando estes já lá habitavam há cerca de 30 anos, a idade
avançada dos mesmos (ele, então, com 73 anos e ela com 68), impositiva de um maior
repouso e sossego, e a sua sujeição à tortura de, em consequência dos ruídos provocados
com a laboração da ré, nem com calmantes conseguirem dormir, tem-se por ajustada a

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

quantia de € 15 500 arbitrada pela 1.ª instância, destinada ao ressarcimento dos danos
não patrimoniais sofridos pelos autores (e não € 10 000 como a Relação havia fixado).
III - O custo dos relatórios acústicos, que não foram realizados na decorrência da acção,
não integra o conceito de custas de parte; mas revelando os factos provados que aquela
despesa foi suportada pelos autores no contexto do processo de produção de ruídos
desencadeado ilicitamente pela ré, tal custo configura um dano patrimonial que dá
direito à sua reparação, pelo autor da lesão, nos termos gerais.
IV - As custas englobam o pagamento de uma quantia à parte vencida a título de
procuradoria que, na ausência de indicação, é igual a um décimo da taxa de justiça
devida (arts. 33.º, n.º 1, al. c), e 41.º, n.º 2, do CCJ).
V - Na procuradoria considera-se o valor e a complexidade da causa, o volume e a
natureza da actividade desenvolvida (art. 41.º do CCJ).

01-07-2010
Revista n.º 1188/06.2TBBCL.G1.S1 - 2.ª Secção
Abílio Vasconcelos (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

Direito à indemnização
Reconstituição natural
Procedimentos cautelares
Direitos de personalidade
Ruído
Danos não patrimoniais
Responsabilidade extracontratual
Culpa
Dever de vigilância
Ónus da prova

I - O art. 566.º do CC dispõe que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a


restituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja
excessivamente onerosa para o devedor, donde se retira que, em regra, se deve usar a
reconstituição natural e só quando esta não seja possível se recorra à execução não
específica, por sucedâneo pecuniário.
II - Tendo os autores se servido da reconstituição natural através de providência cautelar
que intentaram (e que foi deferida) com vista a afastar as aves dos réus que lhes
perturbavam o descanso, não podem exigir destes o pagamento de uma caixilharia de
vidros duplos que de todo não solucionou o problema dos ruídos provocados pelo canto
dos garnisés.
III - O dano real dos autores cessou com a restituição natural, isto é com a retirada dos
animais, tendo-se, assim, conseguido a remoção do dano, pelo que a indemnização
pecuniária por eles pedida cai fora do âmbito do art. 566.º do CC.
IV - O art. 502.º do CC – estabelecendo um princípio de responsabilidade objectiva –
não afasta, para o proprietário de um dado animal, a responsabilidade que lhe pode advir
do seu dever de vigilância.
V - Os arts. 493.º e 502.º do CC não se excluem mutuamente, podendo até cumular-se
as duas responsabilidades: uma resultante da vigilância que o dono ou a quem o animal

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

está entregue deve exercer; outra da utilização material, recreativa ou moral que do
animal se tenha.
VI - A culpa dos réus, in casu, não decorre do cantar dos garnisés que, por se tratar de
uma função biológica inerente aos próprios animais, não podiam impedir; porém,
podiam e deviam ter tomado as providências necessárias, nomeadamente, deslocando à
noite os animais para outro local da residência de forma a que o seu canto não
perturbasse o descanso dos autores.
VII - Aos réus competia a prova de que utilizaram todos os meios ao seu alcance para
evitar a perturbação de tal sossego e, assim, a violação dos direitos de personalidade dos
autores.
VIII - Não o tendo feito, mesmo depois de advertidos pelos autores, incorreram na
responsabilidade de os ressarcir dos danos indemnizáveis causados.

09-09-2010
Revista n.º 6679/07.5TBMAI.P1.S1 - 7.ª Secção
Orlando Afonso (Relator)
Cunha Barbosa
Gonçalo Silvano

Direitos fundamentais
Princípio da proporcionalidade
Responsabilidade extracontratual
Direitos de personalidade
Direito à qualidade de vida
Direito ao repouso
Ruído
Ónus da prova
Nexo de causalidade
Conflito de direitos

I - Só a violação ilícita e culposa dos direitos fundamentais dos Autores (direito à saúde
e ao repouso) é susceptível de fundamentar a condenação dos Réus.
II - Para que se verificasse a ilicitude da sua conduta na permissão de que os seu cães
ladrassem à noite, era necessário que os Autores lograssem provar a relação de
causalidade entre os latidos do cães e a sua falta de sono, o que não lograram provar,
tanto mais que esta ocorre só em algumas noites.
III - Ainda que se entendesse, numa atenuação do rigor interpretativo, que a afirmação
conjectural da Relação sobre a possibilidade ou probabilidade de os episódios de
insónia dos AA, em algumas noites, serem consequência do ladrar dos cães referidos,
equivaleria ao estabelecimento da exigível conexão causal, admitindo-se que tal juízo
seria bastante para preencher o conceito de causalidade adequada entre a conduta
permissiva dos Autores e as insónias comprovadas dos Réus, verificar-se-ia,
relativamente à colisão dos direitos fundamentais já referidos no Acórdão, a falta dos
princípios de proporcionalidade e de adequação (também referido como de
razoabilidade) essenciais para a determinação do direito prevalente no caso em apreço.
IV - É que a convivência comunitária, como a que ocorre nas cidades, implica real ou
potencialmente, ex natura rerum, algumas contrariedades e incomodidades que os
elementos do grupo social sujeitam-se a suportar, para poderem continuar a viver no
meio urbano que escolheram.

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

V - Trata-se da conhecida figura dogmática da área do Direito Penal, transponível,


vantajosamente, para a jurídico-civil, designada por adequação social (do alemão sozial
Adäquanz, expressão cunhada por Hans Welzel), que constata a tolerância comunitária
para certas condutas que, em abstracto se poderiam considerar como infracções, mas
que, em homenagem às concretas necessidades da convivência social e aos valores
preponderantes na interacção comunitária, em dado momento histórico, são
comummente suportadas como toleráveis.
VI - Isto porque, como é sabido, na convivência social em núcleos populacionais
densos, impõem-se algumas restrições de interesses individuais, para que todos possam
viver em conjunto em espaços necessariamente limitados.
VII - Daí que não baste falar-se in abstracto na prevalência ou preponderância de uma
espécie de direitos fundamentais em relação a outra, como parece ser a tese dos
Recorrentes, condensada na conclusão J) das suas alegações e acima transcrita, antes se
exigindo a avaliação concreta do circunstancialismo fáctico de cada situação, tendo em
pauta os referidos princípios.
VIII - Por isso mesmo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 15-03-2007, desta
mesma Secção Cível, de que foi Relator, o Exmo. Conselheiro Oliveira Rocha, decidiu-
se, na parte que ora interessa: «Caso a caso, importa averiguar se a prevalência dos
direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos
interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá
ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo
direito dominante».

30-09-2010
Revista n.º 1229/05.0TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção
Álvaro Rodrigues (Relator) *
Teixeira Ribeiro
Bettencourt de Faria

Direitos de personalidade
Ambiente
Defesa do ambiente
Direito à qualidade de vida
Direito ao repouso
Ónus de alegação
Ruído
Actividade comercial
Acção inibitória
Colisão de direitos
Princípio dispositivo
Condenação
Condição

I - Em acção, fundada em alegada violação dos direitos de personalidade dos residentes


em fracção habitacional, contígua àquela em que é exercida actividade de restauração
por determinada sociedade, geradora de ruídos que afectam de forma relevante o direito
ao sossego, repouso e tranquilidade dos AA – que peticionam a condenação da R. a
abster-se de exercer no local tal actividade –, incumbe à R. o ónus de alegar, de modo
tempestivo e adequado, a sua disponibilidade para proceder a obras eficazes de

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

isolamento acústico no seu estabelecimento, facultando à parte contrária o contraditório


sobre tal matéria de facto – essencial para a dirimição do pleito, já que se traduz na
invocação de factualidade parcialmente impeditiva do efeito jurídico pretendido pelos
lesados.
II - Não tendo sido alegada tal factualidade pela R. durante o curso do processo e
culminando este na prolação de sentença que julgou procedente o pedido de abstenção
do exercício da actividade lesiva, não é lícito à Relação, exorbitando a matéria de facto
alegada e processualmente adquirida, substituir – na óptica da aplicação dos princípios
contidos no art. 335.º do CC – tal condenação por uma inibição, meramente temporária
e condicional, da actividade em causa, posta na dependência da realização eventual de
obras eficazes de insonorização por parte da R., insuficientemente concretizadas e
densificadas, e sem que aos AA. fosse facultada oportunidade processual de discutir tal
factualidade nova.
III - A lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade
do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença
judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação
de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da
causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior
verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da
composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo
demandante.

07-04-2011
Revista n.º 419/06.3TCFUN.L1.S1 - 7.ª Secção
Lopes do Rego (Relator) *
Távora Victor
Pires da Rosa

Liquidação em execução de sentença


Condenação em quantia a liquidar
Pedido genérico
Ónus da prova
Equidade
Danos não patrimoniais
Direitos de personalidade
Direito de propriedade

I - O art. 661.º, n.º 2, do CPC tem aplicação quer o autor tenha formulado um pedido
genérico, quer tenha deduzido um pedido específico, mas não tenha conseguido fazer
prova da especificação, sendo tal normativo determinado por razões elementares de sã
justiça e equidade que vedam a absolvição do réu nos casos em que, apesar de
demonstrada a realidade da sua obrigação, não se conseguiu alcançar o seu objecto ou
quantidade.
II - O art. 566.º, n.º 3, do CC – que determina a fixação de uma indemnização através da
equidade – só deverá ser usado em termos meramente residuais.
III - Tendo resultado provado que desde o início da actividade da ré os autores
suportaram os cheiros a asfalto, alcatra, fumos e fuligem, ficando expostos ao contacto
regular com tais emissões – que os obrigavam a respirar ar insalubre – e ficaram ainda
expostos aos ruídos dos camiões cisterna que vinham abastecer os depósitos para o

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O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

funcionamento das caldeiras, é patente que os mesmos se viram afectados nos seus
direitos de personalidade, designadamente os relativos ao repouso, descanso e
tranquilidade do lar e à saúde e bem-estar, bem como viram afectado o uso normal e
adequado do prédio que destinavam à sua habitação.
IV - A indemnização por danos não patrimoniais, prendendo-se com a pessoa do lesado
individualmente considerada, e com as perdas sofridas no seu bem-estar físico e
psíquico, não varia consoante se é, e em que proporção, co-proprietário de um
determinado imóvel sujeito a danos.

08-09-2011
Revista n.º 8753/05.3TBVNG.P1.S1 - 2.ª Secção
João Trindade (Relator)
Tavares de Paiva
Bettencourt de Faria

Ruído
Direitos de personalidade
Direito à integridade física
Direito ao repouso
Direito à qualidade de vida
Iniciativa privada
Colisão de direitos
Casa de habitação
Estabelecimento comercial

I - Pretendendo os autores ver tutelado o seu direito de personalidade ao repouso e a um


ambiente saudável, deve reconhecer-se que esse invocado direito ao repouso, ao sono e
à tranquilidade de vida na sua própria casa, se configura manifestamente como requisito
indispensável à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo
emanação do referido direito fundamental de personalidade.
II - A simples circunstância de a actividade de restauração e lúdico musical se exercer
num estabelecimento instalado num prédio (também habitacional) obriga a que, e isto
independentemente do cumprimento das condições administrativas de licenciamento, se
devessem adoptar todas as medidas necessárias à prevenção de quaisquer ofensas
ilícitas a direitos de personalidade, direitos estes que são protegidos contra qualquer
ofensa ilícita independentemente de culpa ou de qualquer intenção directa de prejudicar.
III - A emissão de ruídos, resultantes da música, do arrastamento de cadeiras ou das
vozes de clientes, no contexto concreto de um estabelecimento de restauração e de
actividades lúdico musicais (com funcionamento no primeiro caso até às duas da manhã
e no segundo até a meia-noite) é obviamente susceptível de perturbar o ambiente de
tranquilidade e repouso de pessoas que habitam no andar imediatamente superior,
ultrapassando os limites do socialmente suportável.
IV - O pedido formulado pelos autores, no sentido de os réus se absterem de produzir
barulhos resultantes da actividade exercida que invadam o interior da sua habitação, é
totalmente legítimo, não colocando sequer em causa o prosseguimento da actividade
exercida no estabelecimento, uma vez que a irradiação desses ruídos pode ser evitada
através da utilização de eficazes elementos de insonorização.

28-02-2012

Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça


Assessoria Cível
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

Revista n.º 4860/05.0TBBCL.G1.S1 - 1.ª Secção


Mário Mendes (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

Direitos de personalidade
Direito à qualidade de vida
Direito ao repouso
Ambiente
Ruído
Estabelecimento comercial
Responsabilidade extracontratual
Obrigação de indemnizar
Danos não patrimoniais
Sanção pecuniária compulsória

I - Os direitos ao sossego, ao repouso e ao sono traduzem-se em factores que se


mostram potenciadores, em grau muito elevado, da recuperação física e psíquica da
pessoa, nomeadamente nas situações da vida quotidiana em que a suspensão da
actividade laboral, por motivo de férias, tem como principal escopo a prossecução de
tais fins, constituindo-se esses direitos como uma emanação do direito à integridade
física e moral da pessoa e a um ambiente de vida sadio, direitos esses acolhidos, como
direitos de personalidade, na DUDH (art. 24.º), encontrando-se constitucionalmente
consagrados, como direitos fundamentais, nos arts. 16.º e 66.º da CRP, e sendo objecto
de protecção na lei ordinária no âmbito do preceituado no art. 70.º do CC, nos arts. 2.º e
22.º da Lei n.º 11/87, de 07-04 (LBA), e do DL n.º 292/2000, de 14-11 (Regulamento
Geral do Ruído), actualmente substituído pelo DL n.º 9/2007, de 17-01.
II - A actividade musical desenvolvida no estabelecimento do qual o réu era
proprietário, e ao qual pertencia a respectiva exploração, não pode deixar de ser
considerada como um facto directamente dependente da sua vontade, já que, nada em
contrário vindo provado por parte do mesmo (art. 342.º, n.º 2, do CC), aquela actividade
lúdica era directa e inquestionavelmente por si controlável, nomeadamente numa zona
de lazer e de elevada projecção turística.
III - Provada a impossibilidade de adormecer, por parte do autor, enquanto decorria a
actuação de uma banda musical, bem como o estado psíquico de irritação e nervosismo
de que foi portador durante o Verão de 2004, em consequência do ruído e da
impossibilidade de conseguir um sono retemperador, constituem-se como danos de
natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, se não configuram como simples
incómodos, atendendo a que tais situações se mostram susceptíveis de enquadramento
no âmbito da violação do direito à saúde, devendo, consequentemente, esses danos ser
objecto de ressarcimento pela via indemnizatória, atendendo-se, no respectivo cálculo,
ao critério da equidade – art. 496.º, n.ºs 1 e 3, do CC.
IV - Embora tenha sido considerado provado, pela Relação, que a música e as vozes
audíveis no interior da residência do autor provinham de diversas bandas que
realizavam espectáculos de “música ao vivo” nos bares da zona onde aquela se
localizava, bandas essas entre as quais se englobava a que actuava no bar do réu, tal
circunstância não se constitui como factor dirimente da responsabilidade indemnizatória
deste.

Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça


Assessoria Cível
O direito ao descanso e ao sossego
na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

V - Se a obrigação a cargo do agente se traduz num comportamento negativo por parte


do mesmo, de natureza continuada, o autor tem direito, igualmente, a peticionar a
condenação do réu numa sanção pecuniária compulsória, por cada dia de
incumprimento da não produção de som musical no seu estabelecimento, que perturbe o
direito de personalidade daquele.

17-04-2012
Revista n.º 1529/04.7TBABF.E1.S1 - 6.ª Secção
Sousa Leite (Relator)
Salreta Pereira
João Camilo

Actividade comercial
Direitos de personalidade
Direito à vida
Direito à integridade física
Direito ao repouso
Direito à qualidade de vida
Ambiente
Ruído
Colisão de direitos

I - A actividade de bar com aparelhos de som e música, junto a residências privadas,


especialmente com carácter habitual, nas horas consagradas ao descanso reparador da
generalidade das pessoas, é, ainda que potencialmente, gravemente lesiva do sono dos
habitantes de tais residências e, consequentemente, do seu indeclinável direito ao
descanso e à saúde, como integrantes do direito à vida e à integridade física, além de
outros, como o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, portanto,
como direitos de personalidade, legal, constitucional e supranacionalmente tutelados,
como é por demais sabido.
II - Como anotam Jorge Miranda e Rui Medeiros, «enquanto conformável como direito
de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, perpassa no direito ao ambiente
uma estrutura negativa – embora não sem incidências positivas – visto que ele tem por
contrapartida o respeito, a abstenção, o non facere. O seu escopo é a conservação do
ambiente e consiste na pretensão de cada pessoa a não ter afectado, hoje, já o ambiente
em que vive e em, para tanto, obter os indispensáveis meios de garantia. E, para lá desse
núcleo essencial, deparam-se aí, conjugando o art. 66.º com outros aspectos:…O direito
a promover a prevenção, a cessação ou a «perseguição judicial», de actos tendentes à
degradação do ambiente» [J. Miranda – Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I ( arts. 1.º
a 79.º), 2005, pág. 682]
III - Como é consabido, a poluição sonora (ruídos prejudiciais, sobretudo nas horas
consagradas ao descanso reparador da generalidade das pessoas) constitui uma das
variantes dos atentados ao direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.

19-04-2012
Revista n.º 3920/07.8TBVIS.C1.S1 - 2.ª Secção
Álvaro Rodrigues (Relator) *
Fernando Bento
João Trindade

Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça


Assessoria Cível
“Alguns aspectos processuais da tutela da personalidade
humana no novo Código de Processo Civil de 2013”

Texto de João Paulo Remédio Marques – Professor da Faculdade de Direito de


Coimbra, disponível no e-book do CEJ, “A reforma do processo civil”, em:

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Reforma_do_processo_civil.pdf
ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS DA TUTELA DA PERSONALIDADE
HUMANA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013

Pelo Prof. Doutor JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES


PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DE COIMBRA

SUMÁRIO: I. INTRODUÇÃO. RAZÃO DE ORDEM. — II. A PROPOSTA DE


REDACÇÃO DA COMISSÃO DE REVISÃO DO PROCESSO CIVIL. — III. A
TELEOLOGIA E ANÁLISE DO REGIME NO NOVO CPC. A (DES)ADEQUAÇÃO DA
JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. — IV. CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS AMEAÇAS
OU DAS OFENSAS JÁ CONSUMADAS E DO PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA
DA PERSONALIDADE. — 1. OFENSA DIRECTA E ILICITUDE DA OFENSA. — 2. A
GRAVIDADE DA AMEAÇA E A DISPENSA DE CULPA DO DEMANDADO. — 3.
FUNGIBILIDADE POR PROVIDÊNCIA CAUTELAR INOMINADA? — V. A
TRAMITAÇÃO. — VI. A IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO E O REGIME DA
EXECUÇÃO. — VII. CONCLUSÃO.

I. INTRODUÇÃO. RAZÃO DE ORDEM. — Os direitos de personalidade


constituem um conjunto de direitos subjectivos, que incidem sobre a própria pessoa
humana ou sobre alguns modos de ser fundamentais, físicos ou morais, da
personalidade, inerentes à pessoa humana. Noutra formulação, estas posições jurídicas
subjectivas traduzem os direitos das pessoas, que tutelam bens ou interesses da
personalidade e exprimem o minimum necessário e imprescindível da personalidade
humana1.

1
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, 2001,
Coimbra, Almedina, pp. 32 e 33; PAULO MOTA PINTO, ―Os Direitos de Personalidade no Código Civil de
Macau‖, in: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXVI (2000),
Coimbra, pp. 205-211.
As linhas que seguem destinam-se a apresentar, explicitar e justificar, de uma
forma sucinta, o regime proposto pela Comissão de Revisão do Processo Civil2, em
matéria de tutela da personalidade humana, o qual foi agora plasmado no novo CPC.
O n.º 2 do art. 70º do Código Civil, no domínio da tutela dos direitos de
personalidade, prevê o direito de solicitar providências tendentes a evitar a consumação
da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. Para alcançar essa forma de
tutela, actualmente, os meios processuais ajustados eram, independentemente da
responsabilidade civil a que haja lugar, o procedimento cautelar comum e o processo
especial de jurisdição voluntária previsto nos artigos 1474.º e 1475.º do CPC de 1961.
Nestes últimos processos, além da intimação ao lesante para que cesse a conduta
ofensiva dos seus direitos, ou se abstenha de a iniciar, pode o lesado requerer uma
multiplicidade de providências que consistam na imposição ao lesante de actuações
positivas ou negativas, a título definitivo, e não apenas provisoriamente, como ocorre,
ainda hoje, com os procedimentos cautelares.
Todavia, o regime jurídico previsto nos artigos 1474.º e 1475.º do Código de
Processo Civil (CPC) de 1961 padecia de uma notória e consensual exiguidade
aplicativa e de um diminuto sector normativo da realidade que é susceptível de atingir.
Ademais, os lesados (ou ameaçados de lesão eminente) veem-se, não raras vezes, na
necessidade de instaurar providência cautelar inominada, a fim de acautelar o
periculum in mora.

II. A PROPOSTA DE REDACÇÃO DA COMISSÃO DE REVISÃO


PROCESSO CIVIL. — Face às apontadas debilidades, a Comissão de Revisão do
Processo Civil desenhou e aprovou a seguinte proposta de redacção de um novo regime
da tutela geral da personalidade humana:

Artigo 1474.º

2
A (1.ª) Comissão de Revisão do Processo Civil foi constituída em Dezembro de 2009, no
âmbito do XVIII Governo Constitucional (cujos trabalhos decorreram entre Dezembro de 2009 e
Dezembro de 2010), tendo os membros desta Comissão (incluindo o autor deste pequeno estudo) sido
reconduzidos pelo actual XIX Governo Constitucional, numa nova Comissão de Revisão (entre Agosto de
2011 e Dezembro de 2011), cujo projecto esteve em discussão pública e se encontra, no momento em que
escrevo, em sede de apreciação parlamentar.
Pressupostos
1. Pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer
ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de
ofensa já cometida.
2. [Revogado].
3. [Revogado].

Artigo 1475.º
Termos posteriores
1. Apresentado o requerimento com o oferecimento das provas, se não houver motivo para o seu indeferimento
liminar, o tribunal designa imediatamente dia e hora para o julgamento.
2. A contestação é apresentada na própria audiência, na qual, se tal se mostrar compatível com o objecto do litígio, o
tribunal procurará conciliar as partes.
3. Na falta de alguma das partes ou se a tentativa de conciliação se frustrar, o tribunal ordena a produção de prova e,
de seguida, decide, por sentença, sucintamente fundamentada.
4. Se o pedido for julgado procedente, o tribunal determina o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito
e, sendo caso disso, o prazo para o cumprimento, bem como a sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso
no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
5. Pode ser proferida uma decisão provisória, irrecorrível e sujeita a posterior alteração ou confirmação no próprio
processo, se o requerimento permitir reconhecer a possibilidade de lesão eminente e irreversível da personalidade
física ou moral e se, em alternativa:
a) O tribunal não puder formar uma convicção segura sobre a existência, extensão, ou intensidade da
ameaça ou da consumação da ofensa;
b) Razões justificativas de especial urgência impuserem o decretamento da providência sem prévia audição
da parte contrária.
6. Quando o réu não tiver sido ouvido antes da decisão provisória, aquele poderá contestar, no prazo de 20 dias, a
contar da notificação da decisão, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos números 1 a 4.

Artigo 1475.º-A
Regimes especiais
1. Os recursos interpostos pelas partes devem ser processados como urgentes.
2. A execução da decisão é efectuada oficiosamente e nos próprios autos, sempre que a medida executiva integre a
realização da providência decretada, e é acompanhada da imediata liquidação da sanção pecuniária compulsória.

Esta proposta de redacção foi, no entretanto, plasmada nos artigos 878.º3, 879.º e
880.º do novo Código de Processo Civil, aprovado na Assembleia da República, em 10
de Maio de 2013, e enviado para promulgação no dia 16 de Maio deste ano.

III. TELEOLOGIA E ANÁLISE DO REGIME NO NOVO CPC. A


(DES)ADEQUAÇÃO DA JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. — O regime jurídico
objecto da alteração dos artigos 1474.º e 1475.º do CPC de 1961 visou alargar o sector
normativo da tutela da personalidade humana e a eficácia irradiante dessa tutela, no

3
A única diferença de redacções surpreende-se no artigo 878.º, que não manteve a referência
(―revogado‖) aos dois números (2 e 3) do proposto artigo 1474.º, por meras razões de legística.
que respeita às faculdades jurídicas processuais postas ao serviço das pessoas
humanas4.
Um dos problemas que os direitos de personalidade convocam é o da
prevalência, que se coloca, quer nos casos de conflitos de direitos de personalidade
entre si, quer nas hipóteses de colisão entre direitos de personalidade e quaisquer outros
direitos ou bens de natureza diferente. Noutros casos, estar-se-á perante um problema de
determinação do conteúdo e limites de direitos de personalidade invocados pelas partes
e da sua recíproca delimitação5. É sabido que o problema deve ser resolvido com
recurso ao instituto da colisão ou conflito de direitos, de harmonia com uma ideia de
harmonização ou concordância prática de direitos e, no caso de tal se revelar
necessário, na prevalência de um direito ou bem em relação a outro.
A tutela, ainda que puramente cível e cautelar, envolve em muitos casos,
necessariamente, a restrição, desde que proporcional e justificada, de direitos do
lesante: na colisão entre os direitos do lesado e do lesante devem prevalecer os direitos
do primeiro, maxime, nos casos em que o exercício dos direitos do último é causa ilícita
de lesão dos direitos do primeiro.
É verdade que esta renovação da tutela processual da personalidade humana foi
originária e formalmente inserida (scilicet, se é claro que tal tutela é mantida) no quadro
da jurisdição voluntária. Todavia, na sequência de algumas fragilidades apontadas à
inserção sistemática deste processo de tutela da personalidade humana no âmbito dos
processos de jurisdição voluntária — em particular, a questão da recorrente situação da
existência de colisão de direitos de personalidade ou de direitos fundamentais por
ocasião do exercício desta tutela jurisdicional —, a proposta aprovada na Assembleia da
República reposicionou-o no quadro dos processos especiais.
Mesmo que esta tutela jurisdicional cível da personalidade humana continuasse a
ser inserida nos processos de jurisdição voluntária, não se colocava, ao que creio,
qualquer problema quanto à realização de eventuais juízos de ponderação de bens e de
concordância prática, especialmente nos casos de colisão de direitos invocados pelas

4
Por exemplo, não pode usar-se o procedimento cautelar de embargo de obra nova para tutelar
direitos de personalidade, o qual somente se acha predisposto a tutelar a ofensa a direitos reais de gozo ou
a posse — já, assim, acórdão do STJ, de 14/01/1997 (MACHADO SOARES), proc. n.º 96A760, in:
http://www.dgsi.pt.
5
ELSA VAZ SEQUEIRA, Dos Pressupostos da Colisão de Direitos no Direito Civil, Lisboa,
Universidade Católica Editora, 2004, pp. 250-257.
partes ou de recíproca delimitação do conteúdo de direitos de personalidade
conflituantes6. Isto é especialmente importante os casos de litígios envolvendo direitos
de personalidade em situações jurídicas ―poligonais‖ (v.g., proprietário do prédio onde
sejam afixadas mensagens ofensivas ao ofendido e alegado autor das mensagens; titular
da infraestrutura digital, provedor dos serviços de Internete, responsável pelo
armazenamento das mensagens ilícitas, lesado, etc.), aí onde deixa de haver dúvida
quanto à legitimidade processual para a sua presença em juízo, ainda que por via do
incidente da intervenção principal, atento o ponderoso interesse em contradizer de tais
sujeitos.
Não se objecte — contra esta originária inserção da tutela jurisdicional da
personalidade humana no quadro dos processos de jurisdição voluntária — dizendo que
nos processos de jurisdição voluntária, o legislador não pressupõe a existência de um
conflito de interesses, mas apenas visa a tutela de um interesse ou de um feixe de
interesses. O que, nesta perspectiva, tornaria praticamente inaplicável tal regime à
protecção dos direitos de personalidade perante agressões de terceiros, cuja posição
jurídica bem podem achar-se alicerçada em outros tantos direitos de personalidade ou
direitos fundamentais.
Na verdade, não é apodíctico que todos os processos formalmente inseridos, pelo
legislador, no capítulo da denominada jurisdição voluntária visam a tutela de um
específico interesse ou de um feixe de interesses, aí onde a actuação do tribunal é
materialmente administrativa. Isto porque muitos processos de jurisdição voluntária
pressupõem ou convocam, do ponto de vista substancial, um verdadeiro conflito de
interesses7 — traduzindo, por isso, um processo de adversários e, logo, uma lógica
adversarial, pondo em causa a autonomia dogmática da denominada jurisdição
voluntária —, pese embora o seu regime jurídico adjectivo esteja previsto neste capítulo
do CPC.
Creio, na verdade, que alguns processos classificados pelo CPC como de
jurisdição voluntária constituem, substancialmente, processos de jurisdição
contenciosa, têm na sua base um conflito de interesses8 e permitem a justa composição

6
Por exemplo, direito à honra do lesado e o direito à livre circulação do lesante.
7
LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, 2.ª edição,
Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 16, nota 13.
8
REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 118.
de interesses e direitos contrapostos dos litigantes, diferentemente da apelidada
jurisdição voluntária, que visa essencialmente promover a realização de interesses
privados não organizados em conflito. Será o caso dos processos que visam o exercício
de direitos sociais e este outro processo de tutela da personalidade9-10.
A estas considerações acresciam duas outras vantagens em situar a tutela da
personalidade humana neste capítulo do CPC: por um lado, critérios de decisão postos à
disposição do Tribunal gozam de carta de alforria relativamente aos critérios de
legalidade estrita, uma vez que aqueles pautam-se por juízos de oportunidade ou de
conveniência na prolação das suas resoluções assim melhor adequadas ao caso concreto;
por outro, o princípio do inquisitório é mais intenso, em particular no domínio da
instrução probatória. O que também se justifica, de certo modo, em atenção à
verificação de lesões eminentes e irreversíveis, bem como à eventual urgência que
impuser o decretamento de providência sem prévia audiência da parte contrária.
A recolocação desta tutela jurisdicional da personalidade humana nos processos
especiais situados formalmente fora da jurisdição voluntária — se bem que supondo um
conflito de interesses e uma lógica processual adversarial — não afasta, porém, a
necessidade de o tribunal determinar ―o comportamento concreto a que o requerido fica
sujeito‖ (n.º 4 do artigo 879.º), bem como a eventual revisão ou alteração da decisão
provisória decretada pelo tribunal ―quando o exame das provas oferecidas pelo
requerente permitir reconhecer a possibilidade de lesão iminente e irreversível da
personalidade física ou moral‖ (n.º 5 do artigo 879.º).

1. O OBJECTO DA PROTECÇÃO: A PERSONALIDADE HUMANA. —


A nova redacção proposta para o artigo 978.º inspira-se no artigo 109.º, n.º 1, do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais.

9
Já, neste sentido, LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa, 2.ª edição, 2011, cit., p. 16, nota 3,
tal como os processos que visam o exercício de direitos sociais.
10
Esta conclusão conduz-nos a uma outra consequência, qual seja a da validade de convenção de
arbitragem que atribua a tribunal arbitral competência para apreciar e julgar uma alegada ofensa à
personalidade humana, mesmo que as partes não tenham acordado que esse julgamento possa ocorrer com
recurso à equidade. Além disto, avulta uma outra consequência: o juiz, caso aprecie e julga o litígio no
âmbito de um poder vinculado, de modo que não pode, discricionariamente, investigar ou ordenar a
realização de diligências para além das que possam ser enquadradas no pedido do autor e nas ocorrências
da vida real por este alegadas.
No essencial, esta proposta tenta resolver os desafios colocados pelo n.º 5 do
artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa no que tange às providências cíveis
destinadas à defesa de direitos de personalidade (ou do direito geral de personalidade,
como muitos preferem). Muitos direitos fundamentais são direitos especiais de
personalidade; mas há direitos fundamentais tipificados que somente podem ser
civilmente enquadrados mediante o recurso ao direito geral de personalidade (v.g.,
identidade e autodeterminação genética e informativa).
De acordo com o n.º 2 do art. 70.º do Código Civil, no domínio da tutela dos
direitos de personalidade, um alegado lesado desfruta do direito de solicitar
providências tendentes a evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa
já cometida. Para alcançar essa forma de tutela até ao advento do novo Código de
Processo Civil, os meios processuais ajustados eram, independentemente da
responsabilidade civil a que haja lugar, o procedimento cautelar comum e o processo
especial de jurisdição voluntária previsto nos arts. 1474º e 1475º do CPC, no qual, além
da intimação ao lesante para que cesse a conduta ofensiva dos seus direitos, podia o
lesado requerer uma multiplicidade de providências que consistam na imposição ao
lesante de actuações positivas. Estas providências eram (e continuarão a ser) decretadas
a título definitivo e não simplesmente provisório, como decorreria da tutela cautelar11.
O regime jurídico constante do novo código de Processo Civil privilegia, como
se vê, uma tutela definitiva processual geral da personalidade humana fora das
pretensões indemnizatórias. De facto, o autor fica impedido, face a uma violação
iminente ou consumada de direitos de personalidade, de cumular, no âmbito deste
processo especial, o pedido de condenatório na abstenção de conduta ou na cessação de
comportamento com um pedido indemnizatório de reparação dos danos12.
Daí que a revogação dos n.ºs 2 e 3 do artigo 1475.º do CPC de 1961 visa
confirmar o alcance geral da tutela dos bens da personalidade, para a qual é supérfluo e
contraproducente prever, para os casos particulares actualmente referidos nestes dois
números, regras relativas à legitimidade processual passiva.

11
Acórdão do STJ, de 2/7/2009 (SANTOS BERNARDINO), proc. n.º 09B0511, in:
http://www.dgsi.pt.
12
As pretensões indemnizatórias deverão ser deduzidas com base em responsabilidade civil
extracontratual ou delitual, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, em acção com processo comum.
Em sentido próximo, cfr. o acórdão do STJ, de 26/06/2007 (U RBANO DIAS), proc. n.º 07A2022, in:
http://www.dgsi.pt.
Convém precisar que — sem recearmos infringir o núcleo essencial do princípio
da igualdade — esta tutela processual especial somente aproveita às pessoas
humanas13.
Como é sabido, às pessoas colectivas é admissível o reconhecimento de
conteúdos devidamente adaptados do direito geral de personalidade das pessoas
humanas, que não sejam inseparáveis destas últimas e se mostrem compatíveis com a
natureza das pessoas colectivas e, portanto, se surpreendem como direitos necessários

13
Às pessoas humanas e, provavelmente, aos nascituros já concebidos nas pretensões de tutela
da sua personalidade e da spes vitae que incarnam, ainda que esta tutela seja qualificada, por muitos
autores, como uma tutela fraccionada ou fragmentária. O n.º 2 do artigo 71.º do Código Civil, que
desfruta de um alcance instrumental em relação ao que se prescreve no seu n.º 1, determina as pessoas
com legitimidade processual para requererem as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior, quais
sejam: o cônjuge sobrevivo, os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os sobrinhos ou herdeiros do
falecido. Resulta deste normativo que a legitimidade a que se reporta desconsidera a posição jurídica de
herdeiro em relação à pessoa falecida à qual foi dirigida a ofensa, mas tem por relevante a proximidade
familiar ou presumivelmente afectiva. A referida legitimidade inscreve-se na titularidade das pessoas
mencionadas naquele normativo, isto é, trata-se, segundo creio, de interesses em agir próprios
funcionalmente dirigidos à protecção de vertentes da personalidade do defunto, que, por força da lei, dele
se destacaram ou separaram para além da morte. O referido normativo circunscreve a mencionada
legitimidade processual dos vivos para proteger a memória dos mortos às providências adequadas às
circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da que já esteja
consumada. É uma limitação que exclui a primeira parte do n.º 2 do artigo 70.º do Código Civil, ou seja, a
que se refere à salvaguarda da responsabilidade civil a que haja lugar. Daqui resulta, da conjugação das
normas dos n.ºs 2 do artigos 70.º e 71.º do Código Civil, a conclusão no sentido de que as pessoas
legalmente legitimadas para requerer as aludidas providências não o são para formular algum pedido de
indemnização ou de compensação no quadro da responsabilidade civil, seja com base na ofensa à pessoa
falecida, seja por virtude de sofrimento próprio derivado dessa ofensa. Neste sentido, acórdão do STJ, de
18/10/2007 (SALVADOR DA COSTA), proc. n.º 07B3555, in: http://www.dgsi.pt. Igualmente, no sentido de
que o n.º 2 do artigo do Código Civil tutela um interesse próprio de pessoas vivas contra a ofensa à
dignidade de um seu parente já falecido e o respeito pelos mortos, ―como valor ético e subjectivamente a
defesa da inviolabilidade moral dos seus familiares e herdeiros‖, cfr. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS,
Teoria Geral do Direito Civil, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 51-52; JOÃO DE CASTRO
MENDES, Teoria Geral do Direito civil, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de
Lisboa, Vol. I, 1978, pp. 100-101; LUÍS CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral d Direito Civil, Vol. I, 3.ª
edição, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2001, p. 205; C ARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO,
Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, por P INTO MONTEIRO/PAULO MOTA PINTO, Coimbra, Coimbra
Editora, 2005, p. 211; PAULO MOTA PINTO, ―O Direito à Reserva sobre a Intimidade sobre a Vida
Privada‖, in: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 69, 1993, p. 555 ss.,
nota 184. Aos animais não humanos não aproveita, directamente, esta tutela processual. Porém, não
obstante os seres humanos tenham ponderosos deveres para com os outros animais, há bens de
personalidade cuja realização adequada passa pelo contacto do titular desses bens com animais (maxime,
de companhia), cuja privação ou condicionamento de acesso ou utilização pode desencadear esta tutela
processual.
ou convenientes à prossecução dos seus fins, tais como o direito ao bom nome, o direito
de associação, a inviolabilidade da sede, o segredo de correspondência e de
telecomunicações. Inclusivamente, deve admitir-se a reparação de danos não
patrimoniais a pessoas colectivas quando exista ofensa ao crédito ou ao bom nome14.
Todavia, mesmo que as ofensas deste tipo fossem dirigidas a pessoas humanas, a
reparação dos danos somente poderá ser lograda no quadro de acções de
responsabilidade civil com processo comum.
Observe-se, desde já, que o facto voluntário e ilícito que pode estar na origem do
decretamento destas providências não implica que haja culpa por parte do demandado,
nem que da ofensa ou da ameaça de ofensa da personalidade resultem danos para o
autor. A produção destes danos é indispensável em acções de responsabilidade civil
onde se peticionam indemnização, não sendo, como referi, requisito da tutela processual
especial da personalidade prevista no CPC.

IV. CARACTERÌSTICA GERAIS DAS AMEAÇAS OU DAS OFENSAS


JÁ CONSUMADAS E DO PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA
PERSONALIDADE. — Na redacção do n.º 1 do artigo 878.º estão em causa as
providências cíveis de prevenção e de sancionamento de ameaças de ofensas à
personalidade humana.
Embora o casuísmo seja inabarcável, visa-se, por exemplo, a proibição ou a
inibição:
- de acesso a registos de informações ou dados da vida privada;
- de utilização, reprodução ou divulgação abusiva de imagem alheia;
- de publicação não autorizada, de cartas ou outros escritos confidenciais;
- da realização de reunião ou assembleia;
- da publicação de livros, filmes ou outras criações intelectuais lesivas de direito
de autor ou contenham graves ofensas à identidade ou à honra;
- da colocação de máquinas ou maquinismos produtores de ruídos, cheiros,
fumos, etc.).

14
FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom
Nome, Coimbra, Almedina, 2011, p. 363 ss.; MARIA MANUELA VELOSO, ―Danos não patrimoniais a
sociedade comercial?‖, in: Cadernos de Direito Privado, n.º 18, 2007, p. 29 e ss.
- de condutas alegadamente ofensivas da honra, bom nome ou reputação (v.g.,
proibir que o demandado se aproxime a menos de X metros do autor ou de certo local,
ou a não contactar com o autor; de não remeter, por escrito, oralmente ou outra forma,
comunicação cujo conteúdo seja injurioso para o autor; de não se manifestar em público
sobre factos ou circunstâncias íntimas ou vexatórias para o autor; de ordenar ao
demandado para se abster em perturbar a liberdade de determinação e de movimentos
do autor e o seu sossego e a tranquilidade, designadamente, cessando de imediatamente
os telefonemas e o envio de mensagens ou quaisquer manifestações junto do domicílio
daquele15, etc.)
Ademais, estou a pensar, igualmente, nas providências civis de atenuação (ou de
cessação imediata) de ofensas já consumadas, como, por exemplo:
- a cessação de captações sonoras ou audiovisuais;
- a eliminação de registos ou de ficheiros, em linha, fora de linha, materiais ou
digitais;
- a cessação da ofensa ao direito moral de autor;
- a apreensão, destruição ou inutilização de imagens ou fotografias ilicitamente
captadas;
- a eliminação de cheiros, ruídos ou fumos;
- a imposição do dever de intervir, com pessoal qualificado para lidar com
multidões, dentro dos espaços de entrada e saída do edifício onde funciona
estabelecimento de diversão, de serviços religiosos, ou de prática de desporto, bem
como nos respectivos parques de estacionamento, a fim de evitar a causação de ruídos
que excedam os permitidos pela lei16, ou outros comportamentos que perturbem o
descanso do autor17;
- a condenação na declaração de desmentido;
- a condenação na publicação de rectificação ou de divulgação de escrito;

15
Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 27/10/2010 (HENRIQUE ANTUNES),
proc. n.º 18645/10.9T2SNT.L1-2, in http://www.dgsi.pt.
16
É claro que estes limites definidos na lei apenas são os considerados como os razoáveis,
perante uma situação normal. Isso não significa que tais ruídos não provoquem danos em determinadas
pessoas (v.g., ansiedade, dificuldade em adormecer, irritação, cansaço). Se tal suceder, o autor da
providência de tutela da personalidade, poderá obter uma reparação pecuniária. Todavia, só pode fazê-lo
no quadro de uma acção com processo comum.
17
Cfr., em concreto, o recente acórdão da Relação de Guimarães, de 24/4/2012 (ESPINHEIRA
BALTAR), proc. n.º 1116/05.2TBEPS.G1, in: http://www.dgsi.pt.
- a condenação na cessação de ofensas à vida, integridade física, bom nome,
reputação, identidade ou intimidade da vida privada, ou à liberdade das pessoas;
- a condenação na cessação da ofensa a outros bens pessoais não tipificados,
protegendo aspectos da personalidade cuja lesão ou ameaça assumem um significado
ilícito com a evolução da ciência e da tecnologia (v.g., identidade e autodeterminação
genética, autodeterminação informacional, etc.).
- a condenação na comunicação de factos a terceiros, ou de publicação nos
meios de comunicação social, etc.).
Observe-se que a circunstância dos factos imputados ao demandado também
assumirem natureza criminal não deve impedir a tutela por meio destas providências
cíveis, nem, tão pouco, obsta à tutela por via de providências cautelares18. Não se
verifica a consumpção da tutela cível dos direitos de personalidade pela tutela penal.
Até porque algumas das condutas para cuja inibição se pede a condenação do tribunal
não constituem factos típicos criminalmente puníveis.
Decisivo para o efeito da boa ou da má qualificação da medida de tutela da
personalidade requerida, quer nos termos do art. 70.º do Código Civil, quer nos termos
do art. 381.º do C.P.C., é a sua adequação às concretas circunstâncias do caso, de
modo a assegurar a efectividade do direito ameaçado ou a remoção da lesão já
consumada19.
Por vezes, é aconselhável pedir e dotar a condenação de inibição em conduta
imposta ao lesante (obrigação de non facere) com um amplo espectro, susceptível de
abranger um amplo leque de possíveis actividades lesivas. É, por vezes, desaconselhável
pedir e condenar em específicos deveres de fazer ou de não fazer. Essa amplitude
justifica-se, não raras vezes, pelo carácter não vinculado dos comportamentos lesivos

18
No sentido em que a circunstância de os factos também assumirem uma natureza criminal não
é de molde a recusar a providência cautelar, cfr., neste sentido, o recente acórdão da Relação de Coimbra,
de 15/05/2012 (JORGE ARCANJO), proc. n.º 322/12.8T2AVR.C1, in: http://www.dgsi.pt.; já, assim, no
mesmo sentido, por ex., Acórdão da Relação de Lisboa, de 18/9/2007 (FOLQUE MAGALHÃES), proc. n.º
6973/2007; idem, de 27/10/2010 (HENRIQUE ANTUNES), proc. n.º 18645/10.9T2SNT.L1-2, in
http://www.dgsi.pt.
19
Neste sentido, cfr. o citado acórdão da Relação de Lisboa, de 29/07/2009 (F OLQUE
MAGALHÃES), proc. n.º 6973/2007-1, in: http://www.dgsi.pt.
dos direitos para cuja tutela é decretada a medida de tutela da personalidade20. É que
esta medida de tutela dos bens da personalidade deve ser decretada em função do
resultado dos comportamentos (do lesante) para cuja prática o tribunal determine uma
proibição.
De resto, é inquestionável, tanto hoje como no passado, a faculdade de
peticionar e impor sanção pecuniária compulsória por cada conduta ou comportamento
judicialmente proibido ou inibido, uma vez que o efeito jurídico pretendido pelo autor,
nestes processos de tutela da personalidade, consiste, as mais das vezes, em prestações
de facere ou de non facere.

1. OFENSA DIRECTA E ILICITUDE DA OFENSA. — A ofensa deverá ser


ilícita e tais factos devem violar a personalidade juridicamente tutelada. Por outro lado,
exige-se a adequação da providência cível às circunstâncias de cada caso concreto,
mesmo que não tipificadas no artigo 70.º do Código Civil. Pode discutir-se, no que às
providências cíveis preventivas diz respeito, se deve ser significativo o mal cominado e
ponderável o receio ou o medo pela sua cominação.
O exigir-se que a ameaça à personalidade humana seja directa visa impedir a
protecção, por esta norma, das agressões patrimoniais das quais resultem danos não
patrimoniais.

2. A GRAVIDADE DA AMEAÇA E A DISPENSA DE CULPA DO


DEMANDADO. — Embora não se proponha, expressamente, que a ameaça seja grave,
a doutrina (Profs. PESSOA JORGE21, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA22) já se
encarregou de esclarecer que deve ser significativo o mal cominado e ponderável (ou
razoável) o receio, o medo ou a perturbação pela sua cominação — por,

20
Com efeito, uma enumeração precisa e minuciosa ou uma descrição típica das condutas
objecto da condenação (maxime, em inibição) permite mais facilmente ao lesante tornear a condenação
em obrigação de não fazer.
21
FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa,
Centro de Estudos Fiscais, 1968, p. 387, sustentando que a ameaça deve ter um mínimo de gravidade.
22
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, Coimbra
Editora, 1995, p. 475.
designadamente, a própria ameaça, em si mesma, poder ser fonte de perturbação ou de
humilhação do ameaçado.
Note-se, porém, que, pretendendo o lesado obter uma indemnização por danos
(patrimoniais e não patrimoniais), está-lhe apenas aberta a via da instauração de uma
acção de condenação com processo comum — quer a fonte do dever de indemnizar seja
a responsabilidade civil pelo risco ou a responsabilidade civil por factos lícitos.
O facto jurídico voluntário e ilícito de que pode resultar o actuar desta tutela
processual especial da personalidade humana não importa a verificação de culpa por
parte do demandado23, já que os pressupostos das providências previstas no.º 2 do artigo
70.º do Código Civil e actuadas processualmente por meio deste processo especial não
se confundem com os pressupostos da responsabilidade civil consignados no artigo
483.º do mesmo Código.

3. FUNGIBILIDADE POR PROVIDÊNCIA CAUTELAR INOMINADA?


— O processo de tutela da personalidade já constituía, no quadro do CPC de 1961, uma
verdadeira acção e não um procedimento cautelar. Era, por isso, já então admissível a
antecipação da tutela jurisdicional que se dispensa à personalidade através do
decretamento de uma providência cautelar24. Com o que assim temos, ainda que em
moldes diversos dos que estão actualmente previstos no denominado regime processual
civil experimental (art. 16.º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho), a convolação
de um meio de tutela cautelar num meio de tutela final, com valor de sentença final25.
Essa providência bem pode ser, naturalmente, uma providência cautelar não
especificada ou inominada. E a providência cautelar inibitória repressiva pode, hoje, ser
solicitada como mecanismo instrumental relativamente a uma acção principal provida

23
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito geral de Personalidade, cit., 1995, p. 473; Já
assim, MANUEL DE ANDRADE, ―Esboço de um Anteprojecto de Código das Pessoas e da Família. Parte
relativa ao começo e termo da personalidade jurídica, aos direitos de personalidade e ao domicílio‖, in:
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 102.º, p. 156, § 2 do art. 6.º do Anteprojecto.
24
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., 1995, pp. 485-
488.
25
REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, 2011, cit., p.
183; RUI PINTO, Critérios judiciais de convolação não homogénea pelo art. 16º do Regime Processual
Civil Experimental, in: http://www.fd.ul.pt/LinkClick.aspx?fileticket=yrGXkKzX_9k%3D&tabid=332, p.
6 ss.
de finalidade reparatória, ou seja, que tenha por objecto, a mais do direito acautelado, a
indemnização do dano sofrido pelo titular do direito de personalidade imputável à
actuação do demandado.
Sendo esse o caso, deve, no entanto, exigir-se, para o seu decretamento, a
verificação dos respectivos pressupostos. Na verdade, para evitar a demora na obtenção
das providências jurisdicionais definitivas, é legítimo instaurar procedimentos
cautelares, de forma a acautelar o efeito útil das acções de responsabilidade civil e
acções especiais de tutela da personalidade; e é também verdade que, neste caso,
sobressaem as providências cautelares inominadas, atenta a sua maleabilidade e
adequação26.
Todavia, mesmo que as providências cautelares possam, de iure condendo,
antecipar a decisão final sobre o mérito da causa, por meio do mecanismo da inversão
do contencioso27, o certo é que nelas o tribunal somente pode ser suscitado a intervir
uma vez verificados os requisitos gerais (fumus boni iuris, periculum in mora,
proporcionalidade, adequação).
A alteração do regime da tutela jurisdicional da personalidade humana, agora
vazada no novo Código de Processo Civil, dispensa, pelo contrário, a alegação e prova
dos requisitos exigíveis para o decretamento de uma providência cautelar. De facto,

26
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral da Personalidade, cit., 1995, p. 485 ss.
27
Nos termos da proposta de redacção do artigo 369.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil:
1 – Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o
requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir
formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência
decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
2 – A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência
final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do
contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada.
3 – Se o direito acautelado estiver sujeito a caducidade, esta interrompe-se com o pedido de
inversão do contencioso, reiniciando-se a contagem do prazo a partir do trânsito em julgado da decisão
proferida sobre a questão.
No mais, de acordo com o n.º 1 do artigo 371.º, deste novo CPC: ― Sem prejuízo das regras sobre a
distribuição do ónus da prova, logo que transite em julgado a decisão que haja decretado a providência
cautelar e invertido o contencioso, é o requerido notificado, com a admonição de que, querendo, deverá
intentar a acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado nos 30 dias subsequentes à
notificação, sob pena de a providência decretada se consolidar como solução composição definitiva do
litígio‖.
esta tutela não deve ser confundida com aquela outra28. A vantagem reside, desde logo e
como veremos, na tramitação relativamente célere do novo processo (da renovada
acção) de tutela da personalidade, o qual não exige a alegação e demonstração sumária
do periculum in mora e do fumus boni iuris.
Quando for, na verdade, de entender que a situação controvertida de direito de
personalidade pode ser composta (provisoriamente, de uma forma tendencial) por via
cautelar (por exemplo, o lesado pretende fazer cessar a consumação da lesão e
peticionar, na acção principal, uma indemnização pelos danos), esta deve ser a escolha,
em detrimento do meio processual especial cuja fisionomia e configuração é agora
intrduzido. De facto, o efeito útil pretendido pelo alegado lesado (scilicet, o pedido
formulado pelo autor) ao lançar mão deste renovado meio de tutela da personalidade
humana não pode consistir na condenação no pagamento de uma quantia a título de
indemnização pelo dano sofrido. Será, no entanto, de admitir que os interessados terão
maior interesse em lançar mão deste processo especial — atenta a tramitação célere
com que ficará dotado e com o regime recursório a ser processado com urgência —,
relativamente à instauração de providência cautelar.
A tutela jurisdicional especial da personalidade humana agora consagrada pode
actuar cumulativamente com outros instrumentos de tutela, contanto que não se
verifiquem situações de litispendência. Esta urgência processual, proposta nos n.ºs 5 e 6
do artigo 879.º deve corresponder à fonte de perigo, pelo que a especial celeridade da
tramitação processual agora proposta deve ser recusada quando não sua base se
identifique incúria em não recorrer previamente a tribunal a fim de defender a
personalidade, ou seja, sempre que se identifiquem situações culposamente tornadas
urgentes. Na verdade, o autor não pode tornar urgente o que, se tivesse adoptado uma
conduta diligente, teria sido possível alcançar em tempo útil.
Importa acentuar que a tutela da personalidade humana agora proposta visa ser
uma tutela tendencialmente rápida e contundente do exercício legítimo de direito de
personalidade face a qualquer tipo de ameaças, restrições, lesões, violações
provenientes de acção ou de omissão.

28
Isto não obstante no regime vigente já se admitir que a tutela da personalidade, por via do
artigo 1474.º e ss. do CPC, pode ser cumulada com pedido de providência cautelar cível, em particular, se
for visada a antecipação dessa tutela — cfr., inter alia, Acórdão da Relação de Lisboa, de 27/10/2010
(ANTUNES HENRIQUES), proc. n.º 18645/10.9T2SNT.L1-2, in: http://www.dgsi.pt.
Esta urgência na tutela da personalidade humana manifesta-se, como é bom de
ver, em função do facto temporal, no sentido em que se cura, designadamente, de
situações cujo desenvolvimento ou produção de efeitos:
- Está sujeito a um curto período de tempo;
- Diz respeito a direitos que devem ser exercitados num prazo certo ou em datas
fixas (v.g., situações conexas com eleições para orgãos de entes privados; situações
decorrentes de limitações ao exercício de direitos de personalidade num certo dia ou
data próxima).
- Respeita a actos ou comportamentos que devem ser realizados numa data fixa
próxima ou num período de tempo determinado.

V. A TRAMITAÇÃO. — A sequência dos actos plasmada na nova redacção do


artigo 879.º inspira-se, de uma forma ténue, no disposto no artigo 111.º do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos. Procedeu-se, no entanto, à articulação deste
trâmite com a tramitação prevista no artigo 400.º do CPC, em matéria de alimentos
provisórios.
Os meios de prova devem ser logo apresentadas no requerimento destinado a
assegurar esta tutela tendencialmente urgente da personalidade e que o demandado
ofereça a contestação na própria audiência, se a conciliação não puder ser aí lograda.
Note-se, porém, que, salvo quando ocorra uma situação de lesão iminente e
irreversível da personalidade física ou moral, o tribunal deve ter cuidado de não marcar
a audiência para uma data muito próxima à apresentação da petição. Faz-se necessário
que o exercício do contraditório seja exercido de uma forma eficaz. Deve assim, no
caso, a audiência ser marcada, no mínimo, para uma data não inferior a 20 dias, a contar
da citação do demandado, à semelhança do que se dispõe expressamente no n.º 6 do
artigo 879.º; isto se for entendido que o prazo para apresentar a defesa não deve ser
determinado pelo regime geral, que prevê um prazo de 10 dias.
Na verdade, no que se refere à audição do demandado, propôs-se uma
tramitação bipartida:
(1) tendencialmente urgente (n.ºs 1 a 3); e com
2) especial urgência (n.º 5).
Julga-se adequado prever a prolação de despacho liminar. O indeferimento
liminar pode ocorrer por qualquer uma das circunstâncias previstas no artigo 226.º, n.º
4, do novo CPC (anterior artigo 234.º-A, n.º 1, do CPC de 1961).
A proposta de redacção do n.º 6 visa acautelar aquelas situações em que, nas
situações de especial urgência — atenta a possibilidade reconhecida de lesão eminente
e irreversível29 — não é possível, ou não se mostra aconselhável ouvir o demandado
antes de o tribunal decidir. Nesses casos, o tribunal não pode logo formar uma
convicção segura sobre os contornos ou as singularidades da lesão ameaçada ou
consumada quanto à sua existência, extensão e intensidade. Assim, se o tribunal proferir
uma decisão provisória, esta será sujeita a posterior confirmação ou alteração nos
próprios autos30.
Este regime não se deve aplicar, já se vê, às eventualidades em que a lesão
ameaçada ou em vias de ser consumada se esgota num único acto, irrepetível, cuja
abstenção ou prática, por parte do demandado, se verifica num momento temporal de tal
maneira próximo à instauração da acção, que torna inviável, em concreto, a prolação de
uma decisão provisória.

VI. A IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO E O REGIME DA EXECUÇÃO. —


Atente-se que a impugnação da decisão final — de indeferimento ou de provimento —

29
Independentemente da ocorrência de circunstâncias posteriores à decisão ou anteriores, que
não tenham sido alegadas, por ignorância ou outro motivo ponderosos.
30
Esta decisão, já no quadro da proposta da Comissão de Revisão do Processo Civil, não é
susceptível de recurso (ordinário). Com efeito, uma vez que se trata de uma decisão provisória
susceptível de alteração ou de confirmação fora do esquema dos procedimentos cautelares, julga-se que,
do ponto de vista da economia processual — até porque o recurso de apelação interposto desta decisão
provisória gozaria de efeito meramente devolutivo (artigo 647.º, n.ºs e 3, do novo CPC; artigo 691.º, n.ºs
1, 2 e 3, do CPC de 1961) —, a faculdade jurídica de impugnação fará mais sentido se o objecto do
recurso for a decisão final da 1.ª instância que tenha confirmado ou revogado a decisão provisória. Julga-
se que entre uma e a outra decisão não deverá decorrer um lapso de tempo significativo em termos de o
seu transcurso ser susceptível de ofender substancialmente o ―núcleo essencial‖ do direito de acção na
modalidade do direito de impugnar as decisões em que o recorrente se acha vencido. De resto, mesmo no
seio dos procedimentos cautelares, está vedado o recurso autónomo de decisões interlocutórias, excepto
se estiverem abrangidas pelo disposto no artigo 647.º, n.º 3, alínea d), do novo CPC (correspondente, cum
grano salis, ao antigo artigo 691.º, n.º 2, alínea l), do CPC de 1961). Cfr. ANTÓNIO ABRANTES
GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, 5. Procedimento Cautelar Comum, 4.ª edição,
Coimbra, Almedina, 2010, pp. 267-268.
não segue o regime das providências cautelares31, uma vez que nos situamos no
domínio dos processos especiais.
Uma outra alteração, constante do n.º 1 do artigo 880.º, consiste em conferir a
natureza urgente aos recursos interpostos da decisão final32. Embora pudesse ter sido
proposta a atribuição de natureza urgente a todo o processado na 1.ª instância,
ponderou-se o risco de a generalização desta urgência desembocar na ... falta dela,
atenta a inflação de processos que, actualmente, são tramitados com preferência
relativamente a outros (maxime, providências relativas a menores, procedimentos
cautelares, acção de despejo). De resto, ocorrendo a possibilidade de lesão iminente e
irreversível, o novo regime do n.º 5 do artigo 879.º já permite a prolação de uma decisão
(provisória) no mais curto espaço de tempo.
No que respeita à execução coerciva dos deveres de facere (de non facere ou,
eventualmente de dare coisas diferentes de prestações pecuniárias) decretados pelo
tribunal, a Comissão de Revisão optou pela desnecessidade de instauração de uma
acção executiva autónoma, mesmo que por apenso, mas apenas nos casos em que a
medida executiva integrar a própria realização da providência de tutela da
personalidade, designadamente nas situações de falta de cumprimento voluntário de
obrigações de dare (maxime, a apreensão de objectos, com ou sem restituição ou
entrega ao autor). Uma vez que tais situações não constituem a maioria, a execução
coerciva de deveres de facere — (in)fungíveis — positivos ou negativos, em que os
demandados tenham sido condenados implicam o recurso à acção executiva, por isso
mesmo que se faz mister a cooperação espontânea do obrigado e este não efectua a
prestação ou viola a obrigação negativa; outrossim, a realização coerciva da falta de
pagamento da sanção pecuniária compulsória implica a instauração de execução para
pagamento de quantia certa33, embora a quantificação (liquidação) do montante

31
Desde logo, o recurso de apelação interposto da decisão que indefira liminarmente a
providência cautelar ou não a ordene desfruta de efeito suspensivo (artigo 647.º, n.º 3, alínea d), do novo
CPC).
32
Isto significa que a tramitação do recurso de apelação, interposto da decisão final, no tribunal a
quo e no tribunal ad quem precede qualquer outro serviço judicial não urgente.
33
Note-se, ainda, que, com base na proposta da Comissão de Revisão do Processo Civil — tendo
em vista suprimir, tanto quanto possível, os obstáculos à cumulação de execuções quando os seus fins
sejam diferentes —, o n.º 4 do artigo 626.º do novo CPC dispõe agora que: ―Se o credor, conjuntamente
com o pagamento de quantia certa ou com a entrega de uma coisa, pretender a prestação de um facto, a
notificação prevista no n.º 2 do artigo 868.º é realizada em conjunto com a notificação do executado
exequendo se deva processar, previamente à execução, nos autos da acção declarativa
especial — e por incidente —; antes, portanto, da propositura desta outra acção
executiva, nos termos dos artigos 358.º, n.º 2, e 360.º, n.º 3, ambos do novo CPC.
Ao invés, neste domínio, julgou-se mais adequada uma aproximação ao regime
da execução das providências cautelares (art. 375.º, in fine, do novo CPC); vale dizer,
consagra-se a execução nos próprios autos, sempre que a medida executiva de
reintegração da tutela da personalidade já concedida integrar a realização da providência
decretada34. O que significa a desnecessidade, nestas eventualidades — que serão as
mais comuns — de apresentação de requerimento executivo, designação de agente de
execução, remessa dos autos a este agente, etc. O oficial de justiça desempenhará, por
conseguinte, a função de agente de execução. Por outro lado, a execução da providência
concretamente decretada é oficiosa. Todavia, de harmonia com as regras gerais do
dispositivo, o requerente da providência ficará salvo de requerer que esta execução não
seja efectuada, já que estamos perante direitos disponíveis.

para deduzir oposição ao pagamento ou à entrega‖. E para dar consistência e celeridade a este regime de
cumulação de execuções, se forem diversas as medidas decretadas de tutela da personalidade, propôs-se,
ademais, que: ―Se a execução tiver por finalidade o pagamento de quantia certa e a entrega de coisa
certa ou a prestação de facto, podem ser logo penhorados bens suficientes para cobrir a quantia
decorrente da eventual conversão destas execuções, bem como a destinada à indemnização do exequente
e ao montante devido a título de sanção pecuniária compulsória‖ (n.º 5 do artigo 626.º do novo CPC).
Este regime compreende-se, de resto, à luz da redacção do artigo 710.º do novo CPC, segundo o
qual ―Se o título executivo for uma sentença, é permitido cumular a execução de todos os pedidos
julgados procedentes‖. Ora, o vocábulo sentença — há muito usado no artigo 46.º, n.º 1, alínea a), do
CPC de 1961 —, abarca as decisões condenatórias proferidas por tribunais colectivos (acórdãos), as
decisões proferidas por tribunais arbitrais, as decisões condenatórias proferidas por tribunais estaduais
estrangeiros, as decisões condenatórias proferidas por orgãos jurisdicionais de organizações
internacionais (p. ex., no âmbito do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, aprovado para
ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/92, in: Diário da República, 1.ª Série-A, n.º
291, 3.º Suplemento, de 18/12/1992: art. 110.º do referido Acordo; as decisões proferidas pelo Orgãos de
Fiscalização da Associação Europeia de Comércio Livre — EFTA —, pelo Tribunal da Associação
Europeia do Comércio Livre, pela Comissão Europeia, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e pelo
Tribunal Geral), os despachos e — no que ao caso interessa — as decisões proferidas em sede de
procedimentos cautelares. Cfr. LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma,
5.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 48; R EMÉDIO MARQUES, Curso de Processo Executivo
Comum à Face do Código Revisto, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 57-59, pp. 64-65.
34
Para a execução de providências cautelares, cfr. LEBRE DE FREITAS/MONTALVÃO
MACHADO/RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra
Editora, 2008, pp. 67-68; ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III,
4.ª edição, 2010, cit., pp. 263-264.
Nos demais casos, a execução seguirá os termos gerais do processo executivo
comum (na forma sumária, de harmonia com as propostas de alteração da acção
executiva, já que o executivo é uma decisão judicial)35.

VII. CONCLUSÃO. — A novo regime processual de tutela jurisdicional da


personalidade humana pretende alargar, não apenas o sector normativo dos ilícitos a
ofensas de bens pessoais tipificados e não tipificados, para cuja protecção o direito de
acção visa demonstrar que a eficácia irradiante dos direitos de personalidade está, hoje
mais do que nunca, processualmente dependente, como também revitalizar este
mecanismo processual, por via da concessão de uma maior celeridade à sequência dos
actos destinada, ainda assim, a lograr uma composição definitiva do litígio.
Esta tutela apresenta-se substancialmente como um processo que tem na sua
base um conflito de interesses. Lembre-se que alguns processos formalmente
disciplinados no âmbito da denominada jurisdição voluntária comungam de uma lógica
adveersarial e supõem um verdadeiro conflito de interesses. Isto permite que o Tribunal
possa resolver tais litígios numa lógica adversarial, seja quando se está perante uma
colisão ou conflito de direitos, seja quando nos situamos face à determinação do
conteúdo e limites de direitos de personalidade invocados pelos litigantes.
Por outro lado, embora seja claro que esta tutela processual não é uma tutela
indemnizatória, o regime processual agora consagrado evitará, em muitos casos, a
instauração de providências cautelares inominadas para a tutela destes bens pessoais,
atenta a sequência dos actos — assim adequada a direitos que devem ser exercidos num
prazo certo ou em datas fixas próximas, ou cujo desenvolvimento e produção de efeitos
está sujeito a um curto período de tempo — e a desnecessidade de alegar e demonstrar
sumariamente o fumus boni iuris e o periculum in mora.

35
Nos termos do artigo 550.º, n.º 2, alínea a), do novo Código de Processo Civil ―Emprega-se o
processo sumário nas execuções baseadas: a) Em decisão arbitral ou judicial nos casos especiais em que
esta não deva ser executada no próprio processo‖. Por outro lado, ao abrigo do artigo 626.º, n.º 1, do
novo CPC: ―A execução da decisão judicial condenatória inicia-se mediante simples requerimento, ao
qual se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 724.º e seguintes, salvo nos casos de
decisão judicial condenatória proferida no âmbito do procedimento especial de despejo‖. Mas, nos
termos do n.º 2 deste artigo 626.º, a execução da decisão condenatória no pagamento de quantia certa
segue a tramitação prevista para a forma sumária (acção executiva com processo sumário), havendo lugar
à notificação do executado após a realização da penhora.
Ao que acresce a possibilidade de o tribunal poder decretar decisão provisória
— exactamente uma decisão independente da verificação destes últimos pressupostos da
tutela cautelar — quando não possa formar uma convicção segura sobre a existência,
extensão ou intensidade da ameaça ou da consumação da ofensa ou se a especial
urgência derivada da ameaça ou da sua consumação impuserem, à luz do princípio da
necessidade, o decretamento de tal decisão provisória.
De igual sorte, a execução coerciva dos deveres de dare coisas (maxime,
apreensão de objectos, com ou sem restituição ou entrega ao autor) processa-se nos
próprios autos, sempre que a medida executiva integra a própria realização da
providência de tutela da personalidade e tem lugar nos próprios autos. O que —
concede-se — muitas vezes não ocorrerá. De facto, a execução coerciva de deveres de
facere (in)fungíveis (positivos ou negativos) implicará, as mais das vezes, a necessidade
de dedução de acção executiva. Se a decisão for acompanhada do decretamento de
sanção pecuniária compulsória, a execução coerciva deste dever de prestar as quantias
pecuniárias em dívida implica a instauração de uma acção executiva para pagamento de
quantia certa, mas a quantificação do montante exequendo processa-se previamente nos
autos e antes da propositura desta outra acção executiva (artigos 358.º, n.º 2, e 360.º, n.º
3, ambos do novo CPC).
Por último, o conferir a natureza urgente aos recursos interpostos da decisão
final transporta para a instância superior a celeridade que se espera instilar no tribunal a
quo.

Coimbra, Maio de 2013.


O processo especial de tutela da personalidade,
no Código de processo Civil de 2013

Texto de Maria dos Prazeres Beleza - Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de


Justiça, disponível em:

http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/6399/jurismat5_63-80.pdf?sequence=1
O processo especial de tutela da personalidade, no
Código de Processo Civil de 2013
MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA *

Sumário
1. O Código de Processo Civil de 2013 reformulou o processo especial de tutela da
personalidade, com o objectivo de aperfeiçoar a protecção urgente contra ameaças
ou ofensas a direitos de personalidade.
2. Os traços essenciais dessa reformulação traduzem-se na retirada do âmbito da
jurisdição voluntária e na previsão de uma providência cautelar integrada no pró-
prio processo, que possibilita a adopção de medidas urgentes e provisórias, even-
tualmente sem contraditório prévio.
3. Os princípios da adequação formal e da gestão processual, possibilitando adap-
tações de tramitação e ritmos de processamento em função do caso concreto, pode-
rão ampliar a abrangência e a utilidade do processo agora revisto, nomeadamente
quando o requerente pretender deduzir um pedido de indemnização fundado na
ameaça ou ofensa invocada no pedido de tutela e a cumulação não implicar o des-
virtuamento da celeridade e simplificação do processo especial.

I. Considerações gerais

1. Como tem sido recordado, em inúmeros trabalhos e repetidas sessões de comentá-


rio e debate das opções que assumiu, o Código de Processo Civil que entrou em
vigor em 1 de Setembro de 2013 resultou de um processo legislativo complexo, que
começou por ter como objectivo a elaboração de um projecto de alteração pontual de
disposições do Código anterior, julgadas desajustadas, mas terminou com a aprova-

JURISMAT, Portimão, n.º 5, 2014, pp. 63-80.

* Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça.


64 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

ção de um Código formalmente novo, aprovado pela Assembleia da República na


sequência da apresentação da Proposta de Lei nº 113/XII.1

Nesse processo de transformação, que incluiu alterações de sistematização das maté-


rias – com repercussões relevantes, nomeadamente, na disciplina do processo espe-
cial de tutela da personalidade, retirado do âmbito da jurisdição voluntária2 –, manti-
veram-se opções de fundo que poderão traduzir-se numa maior abrangência ou
utilidade do referido processo. Penso nos princípios da adequação formal e da gestão
processual e na sua aplicação combinada no âmbito dos processos especiais.

No breve estudo que se segue procurar-se-ão explicar os motivos que levaram às


alterações, descortinar a sua real extensão e concluir com uma breve apreciação do
novo regime.

2. Afirma-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XIII que se preten-


deu conferir “especial relevo à disciplina dos procedimentos cautelares e dos pro-
cedimentos autónomos urgentes, introduzindo-se na lei de processo relevantes ino-
vações. É previsto um procedimento urgente, autónomo e auto-suficiente, destinado
a possibilitar a obtenção de uma decisão particularmente célere que, em tempo útil,
assegure a tutela efectiva do direito fundamental de personalidade dos entes singu-
lares. Assim, opera-se um rejuvenescimento e alargamento dos mecanismos proces-
suais de tutela da personalidade, no sentido de decretar, no mais curto espaço de
tempo, as providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qual-
quer ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral do ser humano ou a
atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida, com a execução nos
próprios autos”.

Da análise do texto que veio a ser aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho,
retira-se que este propósito se traduziu, por um lado, na introdução de alterações nos
preceitos relativos ao (anterior) processo especial de “tutela da personalidade, do
nome e da correspondência confidencial”, os (então) artigos 1474º e 1475º do Códi-
go de Processo Civil e, por outro, na deslocação desse processo especial do elenco
dos processos de jurisdição voluntária para o primeiro lugar de entre os processos

1
Disponível em
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DiplomasAprovados.aspx
2
O projecto de alteração que esteve na base da proposta, que já continha as alterações que hoje
figuram nos artigos 878º a 880º do Código, mantinha-o na jurisdição voluntária, correspon-
dendo aos artigos 1474º, 1475º e 1475º-A respectivos. Sobre esse projecto, veja-se João Paulo
Remédio Marques, Alguns aspectos processuais da tutela da personalidade humana no novo
Código de Processo Civil de 2013, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a
compreensão do novo Código de Processo Civil, Caderno I, 2ª ed., Centro de Estudos Judiciá-
rios, Lisboa, Dezembro de 2013, pág. 499 e segs., pág. 500 e segs.
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 65

especiais, mas de jurisdição contenciosa (artigos 878º a 880º do Código actual),


designado como “tutela da personalidade”.

3. Começo todavia por observar que a leitura da Exposição de Motivos faz supor que
se pretendeu aperfeiçoar a execução do comando constitucional do nº 5 do artigo
20º da Constituição, resultante da revisão constitucional de 1997, e que determina ao
legislador que assegure “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais”,
“procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a
obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violação desses direitos”.

Foi este imperativo de garantia da tutela judicial efectiva, como se sabe, que assumi-
damente3/4 esteve na base da introdução do “processo de intimação para protecção
de direitos, liberdades e garantias”, na reforma do contencioso administrativo,
como processo urgente e autónomo, embora subsidiário em relação aos procedi-
mentos cautelares,5 e não limitado aos direitos, liberdades e garantias pessoais, em
alargamento da exigência constitucional.

O contexto em que ambos os procedimentos se inserem explicam facilmente as dife-


renças de concretização do mesmo direito à tutela judicial efectiva. O meio previsto
no Código do Processo nos Tribunais Administrativos traduz-se numa intimação
dirigida à Administração;6 o processo especial regulado no Código de Processo

3
Cfr. Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei nº 92/VIII (Aprova o Código do
Processo nos Tribunais Administrativos, revoga o Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho), na
qual se escreveu, no ponto 15: “Merece, entretanto, destaque a introdução de um novo meio
processual, destinado a dar cumprimento à determinação contida no artigo 20.º, n.º 5, da
Constituição: a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (…)”, disponível
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=18673
4
Cfr. anotação XXIII ao artigo 20º da Constituição in, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constitui-
ção Portuguesa Anotada, tomo I, 2ª ed., Wolters Kluwer Portugal / Coimbra Editora, Coimbra,
2010, pág. 453 e segs.
5
Artigo 109º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº
15/2002, de 22 de Fevereiro. Segundo relata João Paulo Remédio Marques, Alguns aspectos
processuais.. cit., pág. 504 e segs., as alterações propostas pela Comissão que elaborou o pro-
jecto que esteve na base da Proposta de Lei, que integrou, inspiraram-se “no artigo 109º, nº 1,
do Código do Processo nos Tribunais Administrativos”.
6
No fundo, é uma modalidade de amparo legal, sabendo-se que, entre nós, não foi constitucio-
nalmente previsto o amparo constitucional, como o Tribunal Constitucional repetida e unifor-
memente tem afirmado, a propósito da configuração do recurso de constitucionalidade. Cfr, a
propósito, o nosso estudo Subsistência do controlo difuso ou migração para um sistema con-
centrado de reenvio prejudicial, in Perspectivas de Reforma da Justiça Constitucional em Por-
tugal e no Brasil, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 89 e segs. e, para o direito ordinário, José
Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., Almedina, Coimbra, pág
275 e segs. e Maria Fernanda Maçãs, As formas de tutela urgente previstas no Código do Pro-
cesso nos Tribunais Administrativos, in Revista do Ministério Público, ano 25, Out/Dez 2004,
nº 100, pág. 41 e segs., pág. 48 e segs.
66 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

Civil, não subsidiário relativamente aos procedimentos cautelares, desenrola-se entre


particulares (ou entre particulares e entidades que, embora públicas, não intervêm no
âmbito dos seus poderes de autoridade), permitindo a obtenção de medidas preventi-
vas ou atenuantes de ofensas aos direitos abrangidos, mas que se discutem entre os
mesmos.

Acresce que não é nova a existência de um processo autónomo e expedito de tutela


geral da personalidade, nem sequer a sua previsão no Código de Processo Civil,
como se viu; por isso falo em intenção de aperfeiçoamento e não, apenas, de execu-
ção.

II. Confronto com o anterior processo especial de tutela da personalidade, do


nome e da correspondência confidencial (artigos 1474º e 1475º do Código de
Processo Civil então vigente).

Do confronto entre os dois regimes definidos saltam à vista duas diferenças, que vou
começar por analisar: a deslocação para fora da jurisdição voluntária e a previsão de
uma providência cautelar sem processamento autónomo, eventualmente sem contra-
ditório prévio

Concluído esse estudo, vou referir as outras diferenças agora introduzidas.

1. O processo especial de tutela da personalidade, do nome e da correspondência


confidencial era um dos processos de jurisdição voluntária e correspondia a uma das
vias possíveis de tutela judicial dos direitos de personalidade,7/8 a par das acções
comuns (nomeadamente, de responsabilidade civil) e dos procedimentos cautelares
(em regra, do procedimento cautelar comum, ou inominado), em tradução da previ-
são da possibilidade de obtenção de “providências (…) com o fim de evitar a con-
sumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida” à “personalidade
física ou moral” pelo nº 2 do artigo 70º do Código Civil; e assim era mantido no
projecto que esteve na origem da Proposta de Lei nº 113/XII, como se observou já. É
agora o primeiro dos processos especiais (artigos 878º a 880º do Código de Processo
Civil).

7
Tendo como objectivo o processo constante do novo Código de Processo Civil, não se curarão
aqui de meios especiais de tutela judicial previstos em áreas específicas. Também se não trata-
rão questões de natureza substantiva, como seja a de saber se, para além da ilicitude da ameaça,
é ou não necessária a culpa do agente, para que a providência seja decretada.
8
Inseridos no Código de Processo Civil, na sequência do Código Civil de 1966, pelo Decreto-
Lei nº 47.690, de 11 de Maio de 1967, com a designação de tutela da personalidade, do nome e,
seguramente por lapso, da correspondência oficial. O objectivo foi o de adjectivar as providên-
cias previstas no nº 2 do artigo 70º.
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 67

Deixou assim de estar sujeito às regras próprias da jurisdição voluntária, quer no que
respeita à sujeição a princípios próprios, reveladores de que se pretende que o juiz
disponha dos poderes necessários à melhor prossecução, em cada momento, do inte-
resse fundamental cuja tutela lhe incumbe defender ou controlar, quer quanto à tra-
mitação, decalcada sobre a dos incidentes (cfr. anterior Código de Processo Civil,
artigo 1409º, nº 1 e actual nº 1 do artigo 986º) e, portanto, significativamente simpli-
ficada.

Sucintamente, esta deslocação tem implicações no que respeita:

– À delimitação entre os poderes das partes9 e do juiz, quanto aos factos de que o
tribunal pode conhecer para julgar;
– Ao critério de julgamento;
– Ao valor das resoluções proferidas;
– À admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça;
– À inaplicabilidade legal das regras de tramitação dos incidentes.

2. Nos processos de jurisdição voluntária, o tribunal investiga livremente os factos


que entender necessários à boa decisão da causa, sem estar dependente, directa ou
indirectamente, de alegação das partes (nº 2 do artigo 986º do Código de Processo
Civil).

Ao sair do âmbito da jurisdição voluntária, o processo especial de tutela da persona-


lidade passa a estar abrangido pelas regras gerais sobre os poderes de cognição do
tribunal em matéria de facto, que, em termos simplificados, se poderão descrever
desta forma:

– Foi eliminada do Código de Processo Civil a afirmação genérica de que o tribunal


está limitado pelos factos alegados pelas partes, constante do anterior artigo 664º; tal
como desapareceu a referência ao princípio dispositivo, anteriormente incluída na
epígrafe do (então) artigo 264º (correspondente hoje, no que agora releva, ao artigo
5º). Este desaparecimento não significa, nem poderia significar, a supressão do prin-
cípio, que é a tradução processual da natureza privada e disponível da generalidade
dos direitos apreciados segundo as regras do processo civil, e que continua a infor-
mar pontos basilares do regime aplicável à generalidade das acções (princípio do
pedido, limitação dos poderes de cognição do tribunal, admissibilidade de negócios
processuais, para além de outros);

9
Utiliza-se este termo no sentido de sujeitos do processo; não se está a adoptar qualquer posição
sobre a natureza dos processos de jurisdição voluntária, muitas vezes apresentados como pro-
cessos sem partes.
68 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

– No que respeita aos factos, mantém-se o ónus da alegação (e a consequente impos-


sibilidade de conhecimento oficioso pelo tribunal) quanto àqueles que constituem a
causa de pedir ou nos quais se baseiam as excepções (nº 1 do artigo 5º do Código);

– Tratando-se de factos complementares ou concretizadores da causa de pedir ou da


excepção, o tribunal pode utilizá-los para julgar, quer tenham sido alegados, quer
resultem da instrução da causa, presumindo-se o consentimento da parte a que bene-
ficiam (nº 2 do mesmo artigo 5º);10

– Não dependem de alegação os factos instrumentais ou indiciários (mesmo nº 2).


Tendo fundamentalmente uma função probatória, vale quanto a eles a regra de que o
tribunal os pode conhecer tenham ou não sido alegados; neste caso, também desde
que venham ao seu conhecimento pela instrução. Note-se que, quer na jurisdição
voluntária, quer na jurisdição contenciosa, o tribunal dispõe de poderes inquisitórios
em matéria de prova, embora se possa detectar uma diferença de grau entre uma e
outra (cfr. artigos 411º e 986º, nº 2).

Estas distinções, que traduzem a diferente função dos diversos factos e que poderão
nem sempre ser de fácil concretização, têm hoje que ser consideradas no processo
especial de tutela da personalidade; o que pode implicar uma dificuldade acrescida e
significa, seguramente, uma diminuição dos poderes do tribunal. Uma deficiente
alegação poderá ter consequências diferentes da que teria, caso se mantivesse a apli-
cação do princípio da livre investigação pelo tribunal. Mesmo que se entenda que os
princípios da adequação formal e da gestão processual – ou, como suponho que será
mais adequado, uma correcta compreensão do princípio da prevalência do fundo
sobre a forma – permitem um convite à correcção dos articulados, adequadamente
inserido na tramitação do processo, sempre haverá que respeitar os limites da possi-
bilidade de correcção, numa aplicação adaptada do disposto no artigo 590º, n os 3 e
segs.11

3. No âmbito da jurisdição voluntária, o tribunal decide segundo critérios de conve-


niência e oportunidade (não de equidade, nem de direito estrito). Naturalmente que
esta regra, que mais uma vez se explica pela intenção de dotar o tribunal das ferra-
mentas adequadas à melhor prossecução do interesse único ou dominante no con-
creto processo que estiver em causa, não vale para os pressupostos (processuais ou

10
Trata-se de uma presunção que, segundo penso, pode ser afastada, mediante declaração do
interessado de que não pretende que o tribunal utilize o facto para julgar. Embora tenha sido
eliminada a alegação a posteriori, considerada pelo anterior nº 3 do artigo 264º como condição
dessa utilização (“desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar
…”)., suponho que deve prevalecer a disponibilidade da parte.
11
Tendo em conta a tramitação simplificada do processo especial de tutela da personalidade, o
momento adequado ao convite será o da audiência, perante o requerimento inicial e a contesta-
ção.
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 69

substantivos) da decisão, mas apenas para esta última. Os pressupostos são estrita-
mente vinculados.

Admito que, da conjugação entre o nº 2 do artigo 70º do Código Civil (“a pessoa
ameaçada ou ofendida pode requerer providências adequadas às circunstâncias do
caso”) com o nº 4 do artigo 879º do Código de Processo Civil (“o tribunal deter-
mina o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito”), se possa concluir
no sentido de que se mantém o afastamento do princípio de que o tribunal está limi-
tado qualitativa e quantitativamente pelo pedido formulado (nº 1 do artigo 609º do
Código de Processo Civil), devendo continuar a determinar-se, na decisão, segundo
a conveniência e a oportunidade. Mas a verdade é que o intérprete tem de atribuir
um significado consistente à deslocação do processo para a jurisdição contenciosa; e
um dos objectivos poderá ter sido, precisamente, o de obrigar a interpretar o nº 2 do
artigo 70º do Código Civil e o nº 4 do artigo 879º do Código de Processo Civil à luz
da limitação ao pedido e à legalidade estrita (artigo 4º do Código Civil e 607º, nº 3,
do Código de Processo Civil).

4. Nos processos de jurisdição voluntária, vigora a regra da modificabilidade das


resoluções tomadas, em conformidade com uma eventual superveniência de factos
(objectiva ou subjectiva) que justifique a alteração. Tem-se dito que não adquirem
força de caso julgado, ainda que se tenham esgotado os recursos admissíveis, ou que
não haja sido interposto recurso (cfr. artigos 619º, 628º, 988º, nº 1).

Mais uma vez, é a melhor defesa do interesse relevante que assim se permite; pense-
se, por exemplo, na modificação das decisões de regulação do exercício das respon-
sabilidades parentais e, no âmbito dos direitos de personalidade, na possibilidade de
modificação dos horários de funcionamento de um estabelecimento que perturba o
descanso dos habitantes do prédio onde se situa, por exemplo, em virtude de ter sido
melhorado o sistema de isolamento ou, em geral, de uma medida de execução dura-
doura.

Suponho que esta susceptibilidade de modificação foi eliminada. O Código actual


apenas prevê a possibilidade de modificação da “decisão provisória” referida no nº
3 do artigo 879º; admito que se possa sustentar a aplicação do regime da renovação
da instância, em caso de obrigações duradouras, previsto pelo nº 2 do artigo 282º do
Código de Processo Civil.

5. Das resoluções tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade não


cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (nº 2 do artigo 988º do Código de
Processo Civil). Trata-se de uma restrição decorrente da limitação dos poderes de
controlo deste Tribunal, que apenas conhece de direito (artigo 682º do Código de
Processo Civil) e que o Supremo Tribunal de Justiça é frequentemente chamado a
interpretar, desde que se substituiu a regra de que não havia em caso algum recurso
70 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

para o Supremo Tribunal de Justiça no âmbito da jurisdição voluntária, vigente até à


reforma de 1995/1996.12

A restrição deixa de valer, naturalmente; o que não significa que a fiscalização que o
Supremo Tribunal de Justiça pode exercer sobre o critério de conveniência e oportu-
nidade do mérito da decisão de que se interpõe recurso de revista tenha a mesma
amplitude que o controlo de legalidade.

6. O Código de Processo Civil definia a tramitação deste processo, como se disse já,
mediante remissão para o regime dos incidentes e pelo artigo 1475º, que apenas
determinava que o requerido tinha de ser citado e, que, quer contestasse, quer não, se
decidia “após a produção das provas necessárias”.

Deixando de lado, por enquanto, a inclusão neste processo de uma (eventual) provi-
dência cautelar, salientam-se os seguintes pontos, dentro da tramitação especifica-
mente definida pelo artigo 879º:

– As provas devem ser oferecidas com o requerimento inicial ou com a contestação.


O mesmo se verifica, aliás, quer no processamento dos incidentes (nº 1 do artigo
293º), quer no processo declarativo comum, embora com possibilidade de alteração
posterior (cfr. 552º, nº 2 e 572º, d));

– Não se fixa um prazo determinado para a apresentação da contestação, salvo se


tiver sido proferida uma decisão provisória, sem citação prévia do requerido (nºs 1, 2
e 6 do artigo 879º). Caberá ao tribunal ponderar cuidadosamente, quer a conveniên-
cia da sua audição, sem esquecer que o princípio basilar é o do contraditório (artigo
3º do Código de Processo Civil), quer o prazo em que há-de marcar a audiência, que
pode realizar-se “num dos 20 dias subsequentes” à entrada do requerimento inicial e
na qual, tendo sido citado, o requerido pode apresentar a defesa.13

A não fixação genérica de prazo de realização da audiência permite indiscutivel-


mente uma melhor adaptação ao caso concreto; mas pode traduzir-se numa séria

12
Estou a referir-me ao nº 2 do artigo 1411º do Código de Processo Civil, na redacção anterior a
essa reforma, interpretado pelo Assento nº 2/1965: “Nos processos de jurisdição voluntária em
que se faça a interpretação e aplicação de preceitos legais em relação a determinadas ques-
tões de direito, as respectivas decisões são recorriveis para o Tribunal Pleno, nos termos do
artigo 764º do Código de Processo Civil”, disponível em www.dgsi.pt, como processo nº
060184 ou no Boletim do Ministério da Justiça nº 146, pág. 325 e segs.
13
Rita Cruz, Algumas notas à Proposta de alteração do processo especial de tutela urgente da
personalidade, A Reforma do Processo Civil 2012, Contributos, in Revista do Ministério Públi-
co, cadernos, 11, 2012, Lisboa, 2012, pág. 63 e segs., pág. 69, sustenta mesmo que a falta de
determinação do prazo da contestação “não garante a igualdade processual entre as partes na
apresentação quer dos factos quer das provas”.
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 71

limitação da defesa, se for marcada com uma antecedência que impossibilite ou


dificulte desproporcionadamente a defesa cabal do requerido. Nomeadamente, o
tribunal deverá ter em conta eventuais indícios de uma conduta processual menos
correcta, no que toca à escolha do momento da apresentação do requerimento e à
pressa ou urgência da decisão, exigindo ao requerente a devida consideração dos
interesses da parte contrária e a diligência adequada às circunstâncias do caso;

– Na audiência, se o objecto do pedido estiver na sua disponibilidade e se o reque-


rido tiver sido citado e comparecer, ou se estiver representado por mandatário com
poderes para o efeito, o juiz deverá tentar obter a conciliação das partes e, se esta
falhar, produz-se a prova e é proferida decisão. O prazo em que o processo é deci-
dido dependerá da maior ou menor complexidade da prova;

– A anterior remissão para o regime dos incidentes permitia saber qual o número de
testemunhas que cada parte podia apresentar (cinco, de acordo com o nº 1 do artigo
294º, tal como “nas acções de valor não superior à alçada do tribunal de primeira
instância” – nº 1 do artigo 511º). A falta de remissão parece conduzir à aplicação do
regime do processo comum (dez, em regra, mesmo nº 1 do artigo 511º); note-se que
os poderes conferidos ao juiz, nesta matéria, apenas lhe possibilitam admitir um
maior número de testemunhas (nº 4) e que a deslocação do âmbito da jurisdição
voluntária exclui a regra, constante do nº 2 do artigo 986º, de que “só são admitidas
as provas que o juiz considere necessárias”.

Suponho que os princípios da adequação formal e da gestão processual não podem


justificar a fixação de um limite de testemunhas inferior ao legal; tenha-se em conta,
nomeadamente, que a “admissibilidade de meios probatórios” é um dos limites à
irrecorribilidade das decisões proferidas neste âmbito.

Não deixa todavia de ser contraditório com a intenção de aperfeiçoamento da tutela


célere dos direitos de personalidade a admissibilidade de dez testemunhas por cada
parte, por confronto com o processamento anterior, que o legislador de 2013 julgou
ser insuficiente e carecer de reformulação. Admite-se, assim, que se possa aplicar o
regime previsto para as providências cautelares e, por esta via (nº 3 do artigo 365º e
nº 1 do artigo 294º), limitar a cinco esse número.

Esta aplicação fundamenta-se na circunstância de o novo processo de tutela da per-


sonalidade conter a hipótese, já enunciada, de uma providência cautelar inserida no
processamento (nº 5 do artigo 879º). Ora a eventualidade de a decidir, mediante uma
decisão provisória, pressupõe “o exame das provas oferecidans pelo requerente”;

– A sentença deve ser “sucintamente fundamentada” (nº 3 do artigo 879º); cfr. arti-
go 295º e a remissão para o artigo 607º, embora acompanhada da indicação da
necessidade de proceder às devidas adaptações.
72 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

7. Analisadas as implicações da deslocação, sou levada a concluir que não terá sido a
melhor opção, porque afastou a possibilidade de aplicação de regras que me parecem
manifestamente adequadas à melhor tutela dos direitos em causa.

É certo que têm sido apontados inconvenientes ao regime anterior, dos quais saliento
os seguintes:

– Por regra, os processos de tutela da personalidade respeitam a situações de conflito


entre direitos, o que torna inadequada a inserção na jurisdição voluntária;14

– A inclusão na jurisdição voluntária impede a cumulação da medida requerida,


preventiva ou atenuante de uma ofensa ao direito de personalidade do requerente,
com pedidos de indemnização decorrentes da mesma ofensa.15

8. É incontestável que normalmente existe um conflito de direitos entre o requerente


que inicia um processo de tutela de direitos de personalidade e o requerido. Mas
suponho que a lei portuguesa, que optou por uma delimitação formal e não material
do âmbito da jurisdição voluntária – são processos de jurisdição voluntária aqueles
que a lei como tal qualifica –, há muito que se determina por razões de ordem prá-
tica. Ou seja: independentemente de não esquecer o critério material de distinção,
qualifica como jurisdição voluntária os processos aos quais entende conveniente a
aplicação das respectivas regras.

Da consideração conjunta dos que assim foram seleccionados, o que concluímos é


que se trata de processos relativos a interesses em si mesmos privados mas relativa-
mente aos quais é de interesse público que o tribunal intervenha para definir a
melhor forma de os tutelar;16 o que se alcança por uma de três vias: adopção de
medidas directas pelo tribunal (ex: regulação responsabilidades parentais), como
seria o caso da tutela preventiva ou atenuante de ofensas à personalidade, integração
de actos de particulares (mediante homologações, autorizações ou suprimentos de
vontade) ou verificação da regularidade de actos de particulares (ex: notificação para
preferência).

14
Como dá nota Rita Cruz, op. cit., pág. 65, citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto
de 6 de Julho de 1989, in Colectânea de Jurisprudência, 1988-IV, pág. 192 e segs., segundo o
qual “Para prevenir o dano que representa ofensa dos direitos de personalidade, prevê a Lei a
forma de processo do art. 1474º do C.P.Civil, a acção comum para a resolução e reparação e
resolução do conflito de direito do art. 335º do C. Civil” (pág. 193).
15
Desenvolvendo o problema, face à lei anterior, Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Persona-
lidade, Almedina, Coimbra, Novembro, 2006, págs. 135-136.
16
Processo Civil, Processos de Jurisdição Voluntária in Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade
e do Estado.
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 73

Trata-se frequentemente de situações de conflito, mas que a lei pretende que sejam
solucionadas de modo a prosseguir o interesse que, do seu ponto de vista, deve pre-
valecer. Atente-se, nomeadamente, no significado da inserção dos processos relati-
vos ao exercício de direitos sociais no âmbito da jurisdição voluntária, que em regra
têm subjacentes situações de conflito agudo.

O que esta observação pode traduzir é antes a da eventual inadequação de um pro-


cessamento tão simplificado para dirimir conflitos complexos, para cuja adequada
resolução, por exemplo, se exija prova também ela complexa. Pense-se, por exem-
plo, num conflito entre o direito ao repouso e o direito de iniciativa económica pri-
vada.17/18

Suponho, todavia, que essa observação continua a ser fundada, não obstante a reti-
rada da jurisdição voluntária, porque se mantém uma tramitação bastante simplifi-
cada, por confronto com a acção declarativa comum. Apesar de se ter introduzido na
lei a possibilidade de obtenção de uma medida rápida e provisória, dentro do próprio
processo de tutela da personalidade, e de ter sido conferido ao juiz o poder de adap-
tar ao caso concreto a tramitação abstractamente aplicável, continuará seguramente a
colocar-se a questão de saber se não será contraditório com a razão de ser da manu-
tenção de um processo simples e expedito permitir-lhe aproximá-lo da tramitação do
processo comum.

9. Também se observa que a inclusão na jurisdição voluntária impede, por exemplo,


a cumulação com pedidos de indemnização fundados na mesma ofensa; ou que, de
qualquer modo, esse impedimento resulta de se tratar de um processo especial, sendo
certo que as acções de responsabilidade civil por violação ilícita e culposa de direitos
de personalidade seguem a forma de processo declarativo comum.

A observação tem pleno cabimento, naturalmente; e fundamenta-se nas exigências


processuais relativas à admissibilidade de cumulação de pedidos.

Com efeito, quando pretende evitar a consumação de uma ameaça ilícita ou a ate-
nuar os efeitos de uma ofensa já concretizada e, simultaneamente, pedir a condena-

17
Cfr. o caso sobre o qual recaiu o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2 de Fevereiro de
1998, www.dgsi.pt, proc. nº 9751142, no qual se contrapunham “os direitos à saúde e ao
ambiente, como direitos de personalidade” e o “direito à laboração das instalações fabris”.
18
Cfr., no entanto, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Junho de 2011,
www.dgsi.pt, proc. nº 2345/10.2YXLSB.L1-1, no qual se afirmou expressamente que “O facto
do processo especial de tutela de personalidade previsto nos artos 1474º e 1475º do CPC ser
expedito e simplificado, não proíbe antes aconselha o meio processual agora em apreço,
designadamente, quando há um conflito com a administração do prédio e restantes condómi-
nos, os quais se opõem a instalação da cadeira elevatória no prédio onde todos vivem.”
74 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

ção do agente no pagamento de uma indemnização, o interessado depara-se com o


obstáculo da diversidade de formas de processo, que o novo Código de Processo
Civil mantém como condição da cumulação de pedidos;19 obstáculo esse que acaba
por conduzir à propositura de uma acção comum de indemnização na qual se for-
mulam simultaneamente o pedido de indemnização e de cessação da ofensa, ou de
proibição de condutas que possam traduzir-se em ofensas, com uma providência
cautelar associada, caso se verifiquem os respectivos pressupostos.20 É claro que esta
opção pressupõe que não seja obrigatório o recurso ao processo especial de tutela da
personalidade, em caso de coincidência (no caso, parcial) de objectos.

O obstáculo existe e, em abstracto, funciona nos dois sentidos, ou seja, quer a acção
seja proposta como acção de responsabilidade, segundo o processo comum, quer o
autor opte pela via do processo especial de tutela da personalidade; e não resulta da
qualificação (ou não) de jurisdição voluntária.21

Será interessante fazer a ponderação a que se alude no final do ponto anterior: até
que ponto a consagração simultânea dos princípios da adequação formal e da gestão
processual permitirá ultrapassar obstáculos formais desta natureza.

É provavelmente certo que a vantagem se encontraria, desde logo, na circunstância


de, quer o pedido de providência, quer o pedido de indemnização, se basearem na
mesma ofensa; mas é igualmente certo que o processamento da acção teria de sofrer
a adaptação indispensável à correcta apreciação dos pressupostos da responsabili-
dade civil e do cálculo da indemnização adequada, o que dificilmente se ajustaria ao
objectivo de simplicidade e de celeridade pretendido com a redução do processo
especial ao mínimo indispensável de complexidade.

Poder-se-ia eventualmente sugerir que, em execução do princípio da gestão proces-


sual, se obviasse a esse inconveniente organizando o processo em etapas sucessivas,
resolvendo em primeiro lugar o pedido destinado a evitar a ameaça (proibição de
publicação, por exemplo) ou a fazer cessar a ofensa em curso (encerramento do

19
Por razões evidentes, uma vez que a tramitação a seguir há-de ser adequada a todos os pedidos
e apreciação numa mesma acção, a lei exige sempre como condição da pluralidade de pedidos
(cumulação, reconvenção, coligação…), quer que o tribunal seja absolutamente competente
para conhecer de todos eles, quer que a forma de processo não seja diferente (ou, pelo menos,
“manifestamente incompatível”, inviabilizando a adequação formal) – cfr., artigos 37º, nos 2 e
3, 266º, nº 3, 553º, 555º do Código de Processo Civil).
20
Sobre o objectivos dos diversos meios disponíveis, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 26 de Junho de 2007, www.dgsi,pt, como proc. nº 07A2022.
21
Tiago Soares da Fonseca, Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade, in Revista da
Ordem dos Advogados, ano 66 (2006), vol. I, Janeiro, disponível em www.oa.pt, escrevendo a
propósito da lei anterior e tendo em conta o artigo 470º do Código de Processo Civil anterior,
sustenta que a cumulação era uma prática contra legem.
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 75

estabelecimento que produz ruído) e, seguidamente, o pedido de indemnização; o


princípio da gestão processual, especialmente se for combinado com o da adequação
formal, possibilita ao juiz separar questões, segundo a sua premência ou prejudicia-
lidade, por exemplo, e ir decidindo parcelarmente a causa, ou separando a prova e a
discussão em blocos, como for mais adequado. A forma ampla como estes princípios
estão consagrados parece inculcar que o juiz pode introduzir as alterações que consi-
dere ajustadas, sempre com respeito dos limites do fim que prosseguem – julgamento
da causa num prazo razoável – e dos princípios do contraditório e do processo equi-
tativo, da igualdade e da proporcionalidade.

A inclusão da providência cautelar, prevista no nº 5 do artigo 879º do Código de


Processo Civil, permitiria não frustrar a eventual urgência das medidas preventivas
ou atenuantes requeridas.

Na verdade, porém, esta solução só se torna necessária se a previsão do processo


especial de tutela da personalidade impedir a obtenção das medidas a que corres-
ponde através da via do processo comum; e se a medida cautelar do nº 5 do artigo
879º citado excluir a admissibilidade de uma providência cautelar comum.

Não tem sido esse o sentido da jurisprudência22 e provavelmente não se justificará


uma mudança de orientação; o que naturalmente implica que se aceite o desvio à
regra de que o processo comum só é aplicável na falta de processo especial (nº 2 do
artigo 546º do Código de Processo Civil) e que o processo de tutela da personalidade
é de utilização facultativa, solução que, além do mais, permite ao requerente ponde-
rar se a sua simplicidade é compatível com a devida apreciação da sua pretensão.

Se assim for, parece que lhe será permitido optar por qualquer das vias até hoje
admitidas: propositura do processo especial de tutela da personalidade ou de uma
acção comum com uma providência cautelar associada, se houver urgência; na
segunda alternativa, cumulando ou não um pedido de indemnização. Ou a proposi-
tura do processo especial seguido de uma acção comum de indemnização, benefi-
ciando do caso julgado parcial.

10. De entre as demais alterações introduzidas pelo Código de Processo Civil de


2013, começo por salientar a que me parece mais positiva, que reforça a natureza
expedita do processo especial e, portanto, a sua eficácia: a previsão de uma provi-

22
Cfr, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1998,
www.dgsi.pt, proc. nº 97B1024, no qual se condenou uma empresa que explorava um campo de
tiro aos pratos, próxima de uma zona residencial, a cessar essa actividade, conforme pedido, em
defesa do “direito ao repouso, à saúde, ao sossego, a todas aquelas faculdades que integram e
comandam a necessidade de recuperação fisiológica do ser humano (…)”.
76 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

dência não autónoma, no sentido de se inserir no próprio processo, de natureza cau-


telar e irrecorrível, em caso de “possibilidade de lesão iminente e irreversível da
personalidade física ou moral” do requerente (nos 5 e 6 do artigo 879º).23/24

Permite-se agora que o tribunal, eventualmente sem contraditório prévio, profira


uma decisão provisória, se as provas oferecidas pelo requerente demonstrarem “a
possibilidade de lesão iminente e irreversível da personalidade física ou moral” do
mesmo.

O contraditório prévio só poderá ser dispensado em situações de especial urgência; e


a decisão provisória apenas deverá ser tomada se o tribunal não dispuser de ele-
mentos para decidir o pedido (se “não puder formar uma convicção segura sobre a
existência, extensão, ou intensidade da ameaça ou da consumação da ofensa”).

Não creio que o texto seja particularmente claro, quanto à inserção da providência na
tramitação, em particular quanto a saber como se articula com a audiência de con-
testação e de produção de prova. Suponho, no entanto, que o regime desenhado
pressupõe que o interessado requeira a emissão da decisão provisória, cabendo então
ao tribunal marcar uma audiência de produção da prova oferecida apenas pelo reque-
rente, sem citação do requerido, uma vez que é em função dessa apreciação que o
tribunal pondera se deverá ou não definir a medida provisória (corpo do nº 5), e se a
especial urgência do caso impõe a dispensa de contraditório prévio.

Realizada a audiência, e consoante a conclusão a que chegar, ou decreta a medida,


ou determina a citação do requerido. Se, requerida a medida provisória e citado o
requerido, forem necessários mais elementos para a decisão definitiva, pode também
ser decretada uma composição provisória do litígio.

23
Fica por esta via resolvida a dúvida que se levantava quanto à possibilidade de requerer provi-
dências cautelares associadas ao processo especial, questão de especial relevância porque o
processo especial anterior não dispensava em caso algum a citação do requerido. Sendo difícil
essa citação, a utilidade do processo era diminuta ou nula, em casos de urgência, forçando os
interessados a recorrerem às providências cautelares, seguidas da propositura da acção princi-
pal.
24
Trata-se de um mecanismo semelhante ao que existe, por exemplo, quanto à suspensão ime-
diata de titulares de órgãos sociais, no processo de, destituição de titulares de órgãos sociais,
incluído na jurisdição voluntária (artigos 1053º e segs.). Também aí se encontra prevista uma
providência cautelar dentro de um processo especial, que pode ser decretada sem audição pré-
via do requerido (artigo 1055º); e aproxima-se, no fundo, da relação que, no Código do Pro-
cesso nos Tribunais Administrativos, se estabelece entre a intimação para protecção de direi-
tos, liberdades e garantias e a possibilidade de decretamento provisório de uma providência
cautelar, prevista no artigo 131º do mesmo Código (cfr. nº 1 do artigo 109º).
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 77

Em qualquer dos casos, a decisão provisória é irrecorrível e há-de ser alterada ou


confirmada no próprio processo especial. Suponho que o tribunal poderá deparar-se
com a eventualidade de serem necessárias mais provas, ainda que determinadas
oficiosamente (cfr. artigo 411º do Código de Processo Civil), ou de terem sido
requeridas provas de produção demorada (prova pericial, por exemplo), que acon-
selhem uma medida provisória enquanto não estiverem concluídas.

11. Encontram-se ainda outras diferenças, a saber:

a) Quanto ao âmbito do processo especial:

– Esclareceu-se que o processo especial tem um âmbito de aplicação genérica, como


meio judicial de tutela da personalidade e de execução do nº 2 do artigo 70º do
Código Civil. Suscitava-se na verdade a dúvida, a meu ver infundada, sobre se o
processo apenas se poderia aplicar à tutela preventiva ou atenuante dos direitos de
personalidade especificados nos artigos 1474º e 1475º, inseridos numa secção cujo
título era tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial.

Receio, no entanto, que suscite dificuldades a sua utilização em caso de protecção de


cartas missivas confidenciais cujo destinatário faleceu, que deixou de ser especial-
mente referido (cfr. artigo 1474º, nº 3 do Código de Processo Civil anterior); embora
entenda que devem ser ultrapassadas com a consideração de que o artigo 71º tutela a
ofensa da personalidade de pessoas falecidas, com remissão expressa para as provi-
dências previstas no nº 2 do artigo 70º;

– Afastou-se a sua aplicabilidade à tutela de direitos de personalidade de pessoas


colectivas, aliás em sintonia com a letra do artigo 70º do Código Civil (“1. A lei
protege os indivíduos…”);25

– Continua a comportar o pedido de providências preventivas (“evitar a consuma-


ção”) e de providências destinadas a atenuar os efeitos de ofensa já cometida, escla-
recendo-se agora que também se pode pretender fazer cessar uma ofensa em curso
(já se devia considerar englobada, como medida atenuante);

– Esclarece que a ofensa tem que ser ilícita e directa. Não creio que o Código de
Processo Civil seja o local próprio à definição destes requisitos, de natureza subs-
tantiva. Para a escolha da via processual não se pode previamente averiguar se é
lícita ou ilícita, ou directa ou indirecta a ofensa ou a ameaça alegada pelo requerente;

25
Claro que não está de forma alguma em causa saber se os direitos de personalidade podem ou
não ser encabeçados em pessoas colectivas; apenas se trata do âmbito de aplicação deste pro-
cesso especial.
78 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

b) Quanto à legitimidade passiva:

Numa preocupação de explicitar quem tinha legitimidade passiva neste processo


especial, o Código de Processo Civil anterior referia-se ao “autor da ameaça ou
ofensa”, àquele que “usou ou pretende usar” o nome ou ao “detentor da carta”.
Suponho que essa especificação se explicava pela opção por um conceito de legiti-
midade que foi expressamente abandonado com a reforma do Código de Processo
Civil de 1995/1996, em alteração ao (então) nº 3 do artigo 26º, correspondente ao
actual nº 3 do artigo 30º.

A ausência de qualquer indicação significa que são plenamente aplicáveis as regras


gerais sobre legitimidade (activa ou passiva).

c) Quanto aos recursos:

Pese embora a afirmação, no trecho já transcrito do preâmbulo da Proposta de Lei nº


113/XII, de que se trata de um procedimento urgente, não se encontra nenhuma
indicação nesse sentido quanto ao processamento em 1ª Instância.

Para ser processado como urgente, um processo tem de assim ser qualificado, tendo
em conta as correspondentes implicações (cfr. por exemplo as regras de contagem ou
de duração de prazos, nº 1 do artigo 138º, nº 3 do artigo 156º, nº 1 do artigo 162º, nº
1 do artigo 638º do Código de Processo Civil).

Suponho que se justificaria o esclarecimento, nomeadamente quanto à medida provi-


sória, que funcionalmente é uma providência cautelar; recorde-se que as providên-
cias cautelares são sempre urgentes (nº 1 do artigo 363º do Código de Processo
Civil).

Prevê-se, todavia, que os recursos seja “processados como urgentes” (nº 1 do artigo
880º), o que, para além do mais, significa que os prazos são reduzidos a metade (nº 1
do artigo 638º) e correm em férias (nº 1 do artigo 138º). Mas devem ser interpostos
em férias, entendendo-se aplicável o nº 2 do artigo 137º (“actos que se destinem a
evitar prejuízo irreparável”)?

Admito que, em casos onde esteja em causa “evitar prejuízo irreparável”, o pro-
cesso possa ser iniciado em férias; e que assim deva ser processado, até à decisão da
medida provisória.

Seria preferível ter esclarecido expressamente se, em 1ª Instância, o processo é ou


não urgente.
O PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE 79

d) Quanto à execução da medida decretada: esclarece-se hoje, no nº 2 do artigo 880º


do Código de Processo Civil, que é executada nos próprios autos do processo espe-
cial, assim se resolvendo dúvida anterior, e sem necessidade de requerimento (ofi-
ciosamente), com liquidação imediata de sanção pecuniária compulsória, se tiver
sido imposta ao requerido a realização de uma conduta.

III. Confronto com as providências cautelares e conclusão.

O processo especial de tutela da personalidade é um processo expedito, mas que se


não confunde nem identifica com as providências cautelares, nem sequer com aque-
las nas quais pode ser decretada a inversão do contencioso (cfr. artigo 369º e segs.
do Código de Processo Civil), ou seja, a deslocação, para o requerido, do ónus de
propositura da acção principal, sob pena de se consolidar como definitiva a medida
que tiver sido decretada.

É antes um processo definitivo e autónomo que, aliás, pode conter uma providência
cautelar tramitada no próprio procedimento, como se viu já; mas que, no fundo,
desempenha uma função preventiva, mesmo quando apenas se pretende a atenuação
ou a cessação da ofensa ao direito do requerente.

Em caso de urgência e não pretendendo, senão, uma das finalidades admitidas pelo
nº 1 do artigo 878º do Código de Processo Civil, não se tendo como obrigatória a sua
utilização, o requerente poderá optar pelo processo especial, requerendo eventual-
mente uma medida provisória e sem contraditório prévio, ou por uma providência
cautelar comum, sendo-lhe provavelmente possível requerer a inversão do conten-
cioso (nº 1 do artigo 169º citado).

Se optar pela segunda via e conseguir que seja decretada a providência e a inversão,
o efeito prático alcançado pode acabar por ser equivalente ao que conseguiria pela
primeira, em caso de êxito; assim sucederia se o requerido não propusesse a acção
principal, com o objectivo de demonstrar que o direito do requerente não existia (nº
1 do artigo 371º do Código Civil), pois se consolidaria a decisão proferida.

Com esta especialidade, mantêm-se com o novo Código de Processo Civil as vias de
tutela da personalidade individual anteriormente existentes e que exigem ao interes-
sado uma ponderação entre as respectivas vantagens e inconvenientes, tendo em
conta o caso concreto.

A terminar, suponho que o balanço do novo regime permite tirar duas conclusões:
positiva, quanto à inclusão de uma providência cautelar do próprio processo, abrindo
uma via em abstracto mais expedita do que a conjugação entre uma acção comum e
um procedimento cautelar (mas com a prevenção de que, contrariamente à justiça
80 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

cautelar, o processo especial não é qualificado por lei como urgente, em 1ª Instân-
cia); mas também negativa, quanto à retirada do processo do âmbito da jurisdição
voluntária.

Bibliografia especificamente utilizada:

– António Menezes Cordeiro, Os Direitos de Personalidade na Civilística Portuguesa,


in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, Almedina,
Coimbra, 2002, pág. 21 e segs.;
– João Paulo Remédio Marques, Alguns aspectos processuais da tutela da personalida-
de humana no novo Código de Processo Civil de 2013, in O Novo Processo Civil,
Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil,
Caderno I, 2ª ed., Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, Dezembro de 2013, pág. 499
e segs.;
– Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2ª ed.,
Wolters Kluwer Portugal / Coimbra Editora, Coimbra, 2010;
– José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., Almedina,
Coimbra;
– Maria Fernanda Maçãs, As formas de tutela urgente previstas no Código do Processo
nos Tribunais Administrativos, in Revista do Ministério Público, ano 25, Out/Dez
2004, nº 100, pág. 41 e segs.;
– Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo Civil, Processos de Jurisdição Voluntá-
ria in Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, 4, Verbo, Lisboa, 1997;
– Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Subsistência do controlo difuso ou migração para
um sistema concentrado de reenvio prejudicial, in Perspectivas de Reforma da Justiça
Constitucional em Portugal e no Brasil, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 89 e segs.
– Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Coimbra, Novem-
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– Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora,
Coimbra, 1995;
– Rita Cruz, Algumas notas à Proposta de alteração do processo especial de tutela
urgente da personalidade, A Reforma do Processo Civil 2012, Contributos, in Revista
do Ministério Público, Cadernos, 11, 2012, ed. do Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público, Lisboa, 2012, pág. 63 e segs.;
– Tiago Soares da Fonseca, Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade, in
Revista da Ordem dos Advogados, ano 66 (2006), vol. I, Janeiro, disponível em
www.oa.pt
Título:
A tutela geral e especial da personalidade humana - 2017

Ano de Publicação: 2018

ISBN: 978-989-8815-84-2

Série: Formação Contínua

Edição: Centro de Estudos Judiciários

Largo do Limoeiro

1149-048 Lisboa

cej@mail.cej.mj.pt

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