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a.C. Imagine sendo esse o exato momento em que você ganha consciência de sua
existência. É só você e o mundo. Você é um personagem de teatro colocado numa peça
sem que lhe dessem o roteiro.
Você não sabe o que fazer, mas algo o impele para que busque uma ordem, um sentido
a tudo isso. Há, arrisco, uma vontade de sentido ― termo emprestado de Viktor
Frankl ― na própria essência humana. Isto dá-se pois há uma coisa inerente a essa
situação embaraçosa: é a própria percepção da existência e de que ela transcorre
dentro de algo do qual não podemos escapar ― não dá para sair do teatro com o fito
de ler o cartaz, a sinopse da peça ou:
Não há nenhuma posição fora da existência a partir da qual seu significado possa
ser visto e um curso de ação possa ser traçado de acordo com um plano, nem há uma
ilha bem-aventurada para a qual o homem possa se retirar a fim de recapturar seu
eu.
Temos a seguinte tensão: o homem sabe que existe, mas não sabe por quê e nem muito
bem no que existe. Resta, então, observar agudamente o cenário e nele colher alguma
pista que ajude a desvendar esse mistério agoniante que é a existência.
O homem primitivo, o homo religosus de que fala Mircea Eliade, vive num mundo
mágico. Tudo para ele pode ter algum sentido, tudo pode redundar numa explicação
para além daquela realidade material circundante. O homem moderno, por sua vez, tem
signos linguísticos para explicar quase tudo que vê; tem a ciência ditando o que
pode e o que não pode ser considerado real ainda que isso não lhe caiba e tem uma
série de ideologias turvando sua percepção direta da realidade. O homem primitivo,
diversamente gozava de uma participação mais intensa no todo do real. A relação nua
e crua do homem com seu meio, ali, no seu ambiente natural medonhamente hostil,
tendo que enfrentar feras de dia e as trevas da noite, isso fazia certamente com
que a experiência de participação no ser fosse sentida com uma intensidade brutal
dificilmente sentida pelo homem médio das metrópoles contemporâneas. Por fim, para
usar o termo cunhado por Eliade, podemos dizer que o homem antigo concebia o mundo
como uma grande hierofania, uma permanente manifestação do sagrado. Ele escreve em
História das Crenças e das Ideias Religiosas:
É difícil imaginar de que modo o espírito humano poderia funcionar sem a convicção
de que existe no mundo alguma coisa de irredutivelmente real; e é impossível
imaginar como a consciência poderia aparecer sem conferir significação aos impulsos
e ás experiências do homem. A consciência de um mundo real e significativo e o que
é desprovido dessas qualidades, isto é, o fluxo caótico e perigoso das coisas, seus
aparecimentos e desaparecimentos fortuitos e vazios de sentido.
Coaduna com tal opinião o historiador e filósofo galês Christopher Dawson. Diz ele
em Progresso e Religião:
Diz Voegelin:
Seja o homem o que for, ele sabe que é uma parte do ser. A grande corrente do ser,
em que ele flui e flui nele, é a mesma corrente a que pertence tudo aquilo que
flutua até a sua perspectiva. A comunidade do ser é vivenciada com tal intimidade
que a consubstancialidade dos parceiros se sobrepõe à separação de substâncias.
Movemo-nos em uma comunidade encantada em que tudo que vem ao nosso encontro tem
força, vontade e sentimentos, em que animais e plantas poder ser homens e deuses,
em que homens podem ser divinos e deuses são reis, em que o diáfano céu da manhã é
o falcão Hórus e o Sol e a Lua são seus olhos, em que a unicidade subterrânea do
ser é um condutor de correntes mágicas de forças boas ou más que alcançar]ao
subterraneamente o parceiro superficialmente inalcançável, em que as coisas são as
mesmas e não são as mesmas, e podem se transformar uma nas outras.
Temos então que o homem antigo não está sozinho na peça. Há outros componentes e
estes têm uma dinâmica própria, independente. Lembre-se que o teatro é o planeta
Terra, dentro da via Láctea, nesse mesmíssimo universo. Há toda a natureza
funcionando exatamente como hoje, malgrado sem a astronomia explicando tudo no
linguajar intrincado que hoje lhe é peculiar, sem biólogos, agrônomos, físicos etc.
Sequer existem os teólogos. A experiência psicológica é diferente. O mundo é um
lugar fantástico, sagrado. Tudo o que existe pode nos ensinar um pouco mais sobre a
ordem do ser, tudo pode tornar-se um símbolo de ordem.
A ideia de duração e passagem é uma orientação das mais essenciais pois dá a noção,
ainda que falseada à primeira vista, de uma hierarquia nessa comunidade do ser. O
homem compreende que a vida de seus semelhantes é passageira, logo, a sua também é.
A experiência da morte, não obstante a comum esperança de um retorno, é qualquer
coisa de arrebatadora. Todo mundo está mais ou menos consciente de que é frágil
ante a avalanche das forças naturais e que a vida está sempre por um fio.
Entretanto, apesar da morte de um e de outro dos seus, o homem percebe que sua
sociedade segue existindo. Há o nascimento compensando, em termos de existência
comunitária, a perda anterior. Compreende-se, então, que o homem passa, mas a
sociedade permanece. E se a sociedade fosse destruída? E se ocorresse um dilúvio
que acabasse de um só golpe com todos? Quais seriam as consequências ontológicas? O
mundo, ainda assim, continuaria aí. A existência do cosmos prescinde da existência
do homem e das sociedades humanas. O mundo físico do espaço-tempo-matéria é,
portanto, o mais permanente dos membros.
Um exemplo muito interessante que Voegelin nos dá sobre esse tipo de simbolização
da hierarquia do ser são os primeiros capítulos de Gênesis:
Fica posto, então, que temos uma comunidade do ser. O homem na sua busca por ordem
descobriu a hierarquia que subjaz a essa comunidade. Até um certo período
histórico, nas ditas civilizações cosmológicas, só eram percebidos três desses
quatro parceiros – ou melhor, não havia as condições experienciais para distinguir
Deus e o cosmos, daí que só se concebiam divindades intracósmicas ou se atribuía
divindade a objetos do mundo espaço-físico. O cosmos era então o ente máximo e,
portanto, a referência para a adequada ordem social e para melhor sintonização do
homem individual no ser como um todo. A revelação no Monte Sinai rompeu com esse
paradigma e mostrou que há um quarto membro na comunidade do ser e que, destarte,
era a partir dele que deveríamos buscar a ordem na sociedade e na alma.
3 ― Criação de símbolos:
Por fim, Voegelin indica como a terceira característica típica desse processo de
simbolização a criação propriamente dita de símbolos que desturvam realidades até
então não apreendidas. São analogias das percepções reais mais sutis que as tornam
moeda corrente naquele meio social que engendrou o símbolo. De certo modo, toda
nomeação ou processo de criação de um signo torna os entes do mundo real senão mais
inteligíveis – na medida em que a inteligência capta o ser das coisas ainda que não
as possamos transpor num discurso linguístico – ao menos pensáveis. Doravante pode-
se especular por meio de um raciocínio articulado sobre aquilo. Saímos da linguagem
animalesca dos sinais e gestos, para uma linguagem nominal, que utiliza nomes para
comunicar o ente a que se refere.
Essas tentativas têm uma história na medida em que a análise reflexiva, respondendo
à pressão da experiência, gerará símbolos cada vez mais adequado à sua tarefa.
Blocos compactos do cognoscível serão diferenciados em suas partes componentes, e o
próprio cognoscível será gradualmente distinguido do essencialmente incognoscível.
Assim, a história da simbolização é uma progressão de experiência de símbolos
compactos para diferenciados.
Há, por conseguinte, um legado comum humano nessa busca pela ordem no ser. Voegelin
diria:
Isto,
Em suma, quer dizer que tanto nós quanto os paleantropídeos de que fala Mircea
Eliade somos partes de um empreendimento comum. A despeito das tradições culturais
particulares e do weltanschauung, da cosmovisão que ela produz, tudo isso serve, no
fim, como capital de experiências humanas para que possamos alcançar a perseguida
ordem existencial.
Para concluir a ideia desse terceiro tópico, acrescenta-se que Voegelin distingue,
como assinalou-se brevemente acima, duas formas básicas de simbolização que
caracterizam grandes períodos da história, quais sejam: a) sociedade como microsmo;
b) sociedade como macroantropo.
A sociedade como microcosmo é uma experiência comum aos povos das primeiras grandes
civilizações. Aventou-se acima que até um dado momento da história o cume na
hierarquia do ser era o cosmos. Nada mais natural. Diria Mircea Eliade que a
simples contemplação da abóboda celeste é suficiente para desencadear uma
experiência religiosa. A grandeza do céu, as revoluções que periodicamente
assistia-se desenrolando nele, o mistério que até hoje ele propõe, enfim, tudo ali
decerto sugeriria ao homem antigo a impressão de divindade e, por conseguinte,
deveria ser considerado o fator organizador, o modelo de ordem a ser copiado.
Diz Voegelin:
Pode-se dizer que esse é o modo mais comum, alterado somente pela intervenção
direta do Deus transcendente que se fez notar pelos meios que diremos a seguir.
Durante o estudo Voegelin dá os detalhes de como essa mudança pôde ocorrer. Como um
resumo, vale dizer que ele denomina esse fenômeno como salto no ser. Esse salto,
com clareza definitiva, dando uma compreensão evidente sobre um Deus que transcende
o estrato físico da realidade, teria ocorrido fundamentalmente em dois lugares: em
Israel quando Deus se revela e conversa diretamente com Moisés e na Grécia, com o
advento da filosofia. Não obstante, como assevera Toynbee para as civilizações em
geral e Vernant no caso específico da Grécia ― mas sugerindo uma espécie de regra ―
essa mudança na concepção humana deu-se, conquanto de maneira parcial, em outros
povos num mesmo recorte histórico-temporal que se inicia mais ou menos no IX a.C.
Embora esses sejam saltos parciais rumo a compreensão do ser ― compreensão cujo o
auge, segundo Voegelin, é a religião judaico-cristã e a filosofia grega de Platão e
Aristóteles ―, todos essas escolas de pensamento trazem a novidade do indivíduo
moralmente guiado como sendo o modelo para a ordem social em detrimento da ordem
cósmica. É escusado dizer que todos os que se lançaram em tal intento foram tidos
como malucos e perturbadores da ordem social. A percepção desse Deus abscôndito,
transcendente, escorregadio, não é disponível a todos. Imagine você
confortavelmente podendo ver, com os olhos da cara, todos os dias, a divindade no
céu e, de repente, lhe dizem que na verdade aquilo não é deus coisa nenhuma e que
na verdade o Deus não se pode ver senão nos recônditos mais profundos da alma só
acessíveis com dificílimas práticas de piedade ascética. É uma troca
psicologicamente arriscada. A própria história do Povo Escolhido é travejada por
essa tensão entre a tentação da ordem cosmológica e a existência sob o Deus
transcendente.
Ademais, o homem passa a ser mais responsável pela busca de ordem, uma vez em que o
princípio ordenador só pode ser acessado na sua própria alma. Não basta agora estar
incluso no cosmos social, como acreditavam os egípcios, para receber a maat, a
graça. Com a novidade do salto no ser, a responsabilidade moral é o foco principal
do homem religioso. É preciso ser santo e é necessário amar a verdade a ponto de
busca-la a qualquer custo ― ainda que a verdade divina seja diferente da verdade
compreendida no cosmion da sociedade. É Moisés contra o faraó. É Sócrates contra a
pólis. É Cristo contra o Império.
Um outro ponto que Voegelin toca já nessa introdução, e que é de suma importância à
compreensão da obra, é a questão da: tolerância x intolerância na criação de
símbolos de ordem.
Essa seria uma característica que se adiciona às outras três nesse processo de
formação de símbolos. Os homens estavam conscientes do aspecto meramente simbólico
daquilo que estavam criando e as incoerências com que se deparavam nesse processo
não era motivo de preocupação.
Porém, esses esforços iniciais são insuficientes. Algo mais profundo mudou. E mudou
na percepção mesma do homem quanto a verdade do ser. Por detrás do emaranhado de
símbolos engendrados por analogia com a realidade mundana, o parceiro longínquo
começa a fazer-se notar. E não dá para ignorá-lo, mas também não dá para simbolizá-
lo adequadamente. O homem começa a sentir sua participação no ser, tal como
estabelecida pelo bloco compacto das civilizações cosmológicas, defeituosa. A
sintonia não está boa. Então, nas palavras do Voegelin:
Não só os símbolos impróprios serão rejeitados, como o homem voltará as costas para
o mundo e a sociedade como fontes da analogia enganosa. Ele ― o homem ―
experimentará a periagogé platônica, uma inversão ou conversão no sentido da
verdadeira ordem.
Mas, e os outros dois parceiros, o mundo e a sociedade, até então deveras estimado?
Israel é o povo escolhido. Seus membros vivem agora numa sintonia com o parceiro
transcendente da comunidade. Mas Israel está no mundo e é uma sociedade. A
comunidade quaternária não se transmuta em comunidade binária pela nova descoberta.
Não é só Deus e homem. A estrutura do real é fixa independente dos eventos
paradigmáticos de diferenciação pneumática (revelação) ou noética (análise
filosófica).
Estamos ainda no teatro, descobrimos quem é o diretor, Ele nos revelou o roteiro,
explicou como tudo começou e disse que mais dia menos dia a peça vai acabar para
todos. Não obstante, ele não abre a porta do teatro para que nos retiremos e
possamos ir prontamente à Sua casa regozijarmo-nos. Temos que continuar encenando
nesse mesmo teatro. Ele o criou para isso.
Há uma luta profunda pela verdade. O povo que recebeu a revelação do Deus
transcendente não pode aceitar as divindades cananeias, o culto à Moloch. O faraó ―
ou o que ele quer simbolizar ― é visto como uma mentira existencial. Ou: o homem
que teve o vislumbre da dimensão metafísica por meio da contemplação do Bom, do
Justo e do Belo, não pode transigir com o relativismo do culto às divindades
baseadas em realidades físicas as quais ele vê como enganosas. Ou ainda: o homem
que sabe da vinda do Messias – da maior hierofania da história –, quando ouve dizer
ou quando ele mesmo presencia a Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição, não é
mais possível aceitar o culto ao Imperador.
Mas há, a despeito de tudo isso, a necessidade de sintonia no ser como um todo. Há
a existência e a participação. Temos que reavaliar essa intolerância à simbolização
imprópria, pois nutrimos amor ao ser e a verdade, e a verdade é que por mais alto
que saltemos em direção ao ser essas tensões do real não podem ser desfeitas. Elas
são as condições mesmas da existência daí que essa intolerância tenha que ser
acomodada em algum novo esquema simbólico.
Sobre esse problema Voegelin cita o exemplo de Platão. O filósofo, já idoso, teria
uma atitude de tolerância quanto aos símbolos equivocados, apesar de afirmar com
intensidade o princípio de que Deus é a medida de tudo e de que é a partir dele que
devemos buscar a fonte de ordem. Isto pois,
…há uma nova consciência de que um ataque à simbolização imprópria da ordem pode
destruir a própria ordem junto com a fé em suas analogias, de que é melhor ver a
verdade obscuramente do que não a ver de forma alguma, de que a sintonia imperfeita
à ordem do ser é preferível à desordem. A intolerância inspirada pelo amor ao ser é
equilibrada por uma nova tolerância, inspirada pelo amor à existência e pelo
respeito aos caminhos tortuosos em que o homem se move historicamente para mais
perto da verdadeira ordem do ser. No Epinomis, Platão pronuncia a palavra final de
sua sabedoria ― que todo mito tem sua verdade.
Como conclusão, vale dizer que essa introdução serve como um guia introdutório à
leitura de Israel e a Revelação, O Mundo da Pólis e Platão e Aristóteles, os três
primeiros volumes da série Ordem e História. Esses três livros foram escritos na
década de 1950. À época Voegelin não tinha ainda discernido alguns problemas
teóricos que só se solucionaram na sua obra mais madura das décadas de 1970 e 1980.
Daí que o quarto volume, A Era Ecumênica, já se inicie com alguns reparos a esse
primeiro conjunto de impressões. No entanto, como o próprio autor afirma, as
correções não invalidam as chaves analíticas aqui apresentadas: simbolização da
ordem, comunidade quaternária do ser, compactação-diferenciação, salto no ser,
tolerância-intolerância mantém sua validade teórica e serão refinadas no inacabado
quinto volume intitulado Em Busca da Ordem.