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por Douglas Oliveira Donin

DouglasDnn@Hotmail.com
O Senhor dos Sistemas traduzido do Modulo Basico Vermelho

O Senhor dos Sistemas traduzido do Módulo Básico Vermelho


do Marco Sul por Douglas Oliveira Donin ( DouglasDnn@Hotmail.com ). Aqui está contada a história da
Guerra do Sistema e do Retorno do Mestre conforme vista pelos RPGistas

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R torno do Mestre conforme vista pelos RPGistas

Agradecimentos a todos que, de alguma forma, por menor que seja, contribuíram para a
realização deste conto. A lista seria muito grande para constar aqui, então que as seguintes pessoas
representem os que não foram citados: Mário Augusto Flores, Carlos Alberto Baum, Celso Lazzaretti,
Carlos Felipe Prestes, Marcelo W. Tavares, Camila Hott, assinantes da Spellbrasil, da RedeRPG, da Projeto
Final Fantasy, ao Portal RPG, principalmente a Wallace Garradini , e a Marcelo Cassaro e Marcelo Del
Debbio, equipe da Devir e da Dragão Brasil, pelo estupendo espírito desportivo e bom-humor.

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Índice
A SOCIEDADE DO SISTEMA
PRÓLOGO ______________________________________________________________ 5
UMA SESSÃO DE JOGO MUITO ESPERADA________________________________ 5
UMA SOMBRA DO MERCADO ____________________________________________ 6
UM ATALHO PARA O MACDONALDS _____________________________________ 7
DADOLARGO ___________________________________________________________ 8
UMA FACA NO ESCUDO _________________________________________________ 9
O CONSELHO DE HELTON _____________________________________________ 10
UMA JOGADA ATRÁS DO ESCUDO ______________________________________ 11
O VIADUTO DE VARGAS-DÛM __________________________________________ 12
LAUREN ______________________________________________________________ 13
O ROMPIMENTO DO GRUPO DE JOGO ___________________________________ 14

AS DUAS EDITORAS
A PARTIDA DE ADEMIR ________________________________________________ 18
BARBÂNDERSON ______________________________________________________ 18
O REI DO CONDOMÍNIO DOURADO _____________________________________ 19
A ESTRADA PARA VENDECARD _________________________________________ 21
A VOZ DE CASSARUMAN _______________________________________________ 22
SMÉLECOL DOMADO __________________________________________________ 23
O PORTÃO DA DEVIR ESTÁ FECHADO___________________________________ 24
DE FANDANGOS E PÃO COM MORTADELA COZIDA ______________________ 25
A TOCA DA LUNÁTICA _________________________________________________ 26
AS ESCOLHAS DO MESTRE SAMUEL ____________________________________ 27

O RETORNO DO MESTRE
MINHAS TIAS _________________________________________________________ 30
A BATALHA NO CAMPINHO DE FUTEBOL _______________________________ 31
AS LOJAS DE CURA ____________________________________________________ 32
A ÚLTIMA ROLAGEM __________________________________________________ 33
O PORTÃO DA DEVIR SE ABRE__________________________________________ 34
A EDITORA DA SOMBRA _______________________________________________ 35
A PRENSA DA PERDIÇÃO _______________________________________________ 37
A CAMINHO DA MINHA CASA___________________________________________ 38
O EXPURGO COM DADO________________________________________________ 39
OS JOGOS CINZENTOS _________________________________________________ 40

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Primeira parte de
O Senhor dos Sistemas

Três Sistemas para a Steve Jackson Games sob este céu,


Sete para a White Wolf, em seus corredores rochosos,
Nove para as editoras alternativas, fadadas à eterna falência,
Um para a TSR em seu escuro trono
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.
Um Sistema para a todos governar, Um Sistema para encontrá-los
Um Sistema para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.

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PRÓLOGO

O Mercado mudou. Eu sinto isso nos livros. Eu sinto isso nas mesas de jogo. Eu farejo isto nas
lojas. Muito do que era se perdeu, pois ninguém mais tem os livros para que eu tire xerox.
Tudo começou com a criação dos Grandes Sistemas. Três foram criados por Steve Jackson,
imortal, o mais sábio e justo dos seres. Sete pela White Wolf, grandes escritores e designers da linha
Storyteller. E nove, nove foram criados pelas editoras alternativas da Europa, que acima de todas as coisas
desejavam inovar. Pois nestes sistemas estavam o poder e a vontade de proporcionar diversão a cada tipo de
jogador.
Mas eles todos foram enganados.
Pois na Terra da Wizards os the Coast, a editora negra TSR criou outro sistema, um sistema-
mestre, e neste sistema ela colocou toda a sua crueldade, sua malícia e sua vontade de dominar o mercado e
cada mesa de jogo.
Um Sistema para a Todos Governar. Uma por uma, as mentes livres da Terra caíram sob o
poder do Sistema. Mas houve quem resistisse: Uma última aliança de jogadores tradicionais se recusou a
mudar de sistema e compravam outros títulos, e diante das prateleiras das lojas e importadoras, lutavam pela
liberdade dos RPGistas. A vitória estava próxima, mas a preferência pelo Um Sistema não podia ser desfeita.
E neste momento, quando toda a esperança havia desaparecido, a Devir, seguindo os passos da
Abril, resolveu traduzir o Sistema. Os direitos de publicação passaram para a Devir, que teve a chance de
destruir o mal para sempre. Mas o coração dos homens é facilmente corrompido, e o Sistema tem vontade
própria.
O Sistema chegou às mãos dos mestres brasileiros, que o levaram para suas casas, e ali, ele os
consumiu.

“- Ele veio para mim, meu amor, meu precioso.....”

O Sistema trouxe aos cenários de fantasia medieval uma longevidade não natural, e por muitos
anos, ele envenenou as mentes destes mestres, e na escuridão das casas deles, ele esperou. A escuridão voltou
às mesas de jogo de todo o mundo, rumores se proliferavam sobre uma sombra no Norte, sussurros sobre um
grande golpe de mercado da Wizards of the Coast, e o Sistema percebeu que sua hora havia chegado.
Ele abandonou estes mestres, mas então, aconteceu algo que não estava nos planos do Sistema:
ele foi pego pela criatura que menos se podia imaginar: um jogador inteligente, de GURPS.

“- O que é isso? Um sistema?”

E chegará, ainda, o tempo em que um grupo de jogadores de GURPS governará o destino de


nós todos.

CAPÍTULO I
UMA SESSÃO DE JOGO MUITO ESPERADA

Foi com muita satisfação que o mestre de jogo anunciou a nossa sessão de jogo de número 111.
Todos os jogadores que já passaram pelo grupo foram convidados: os Combistas, os Apelões, os
Overpowers, os Advogados-de-Regras, os Barrabás, e até mesmo os Sacola-Combistas, que eram famosos
por seus combos poderosos que acabavam com a graça de qualquer batalha.
Quase todos do grupo estavam envolvidos na preparação da sessão, e o próprio mestre não
atendia o telefone para ninguém que não estivesse tratando do jogo. Pois era uma sessão de jogo muito
esperada, a de número onzenta-e-um, e vários jogadores que não compareciam há tempo apareceram.
E todos os jogadores do grupo se entusiasmaram com as promessas de grandes recompensas
em experiência, pois sabiam que o mestre era generoso nesta parte. Diziam que ele guardava grandes
quantidades de experiência em algum lugar do Bolsão (era aquele bolso grande na pasta do mestre onde ele
guardava as suas anotações).
E assim aconteceu. Antes de iniciar a sessão, todos comeram salgadinhos e bolachinhas
recheadas, e tomaram muita Coca-Cola, principalmente “Fatty Banha”, o nosso jogador mais gordinho, para
desespero da mãe do mestre, que, semana após semana, via a sua despensa esvaziada por aquela tropa de
jogadores esquisitos e folgados.
Mas, antes de iniciar a sessão, o mestre reuniu todos ao redor da mesa e disse:
“- Meus queridos jogadores! Onzenta-e-uma sessões é um período muito curto para ter
mestrado entre jogadores tão excelentes e admiráveis! Eu conheço menos da metade de vocês mais do que o
dobro do que gostaria, e já dei mais do que o dobro da experiência por interpretação que vocês mereciam por
coisas que em grupos sérios vocês não ganhariam nem a metade” – Todos os jogadores se entreolharam

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confusos, mas o mestre continuou – “Eu tenho coisas a fazer. Eu venho fazendo isto por muito tempo. Eu
anuncio, com pesar, que este é o fim. Eu devo parar agora. Desejo a todos adeus.”
E, dizendo isto ele colocou o Anel (na verdade, sua aliança de noivado, pois sua namorada
estava enchendo seu saco há muito tempo dizendo que já era hora de largar o RPG, arranjar um emprego e
noivar), e, para espanto de todos, desapareceu do meio RPGístico no mesmo momento.

CAPÍTULO II
UMA SOMBRA DO MERCADO

Estes foram fatos estranhos e espantaram a todos. Como não ia mais utilizar todo o seu
material de RPG, eu, Alfredo, fiquei com tudo, inclusive com a pasta grande de couro que ele utilizava, a que
tinha um grande Bolsão. E assim as coisas transcorreram com relativa tranqüilidade, até que um amigo meu,
Rodolfo, outro mestre, veio me visitar.
Conversávamos sobre vários sistemas e campanhas, e, no momento em que eu mencionei que
os jogadores do meu grupo cogitavam abandonar tudo para jogar apenas o sistema d20, ele levantou uma de
suas sobrancelhas.
“- Deixe-me ver o livro”, disse ele.
“- Aqui está.”
Logo que ele tomou o livro em suas mãos, correu até a churrasqueira no quintal e, para meu
desespero, o jogou no meio das brasas. Muito espantado, eu tentei impedi-lo, mas ele me parou, e depois de
algum tempo disse:
“- Pegue-o. Não se preocupe, está frio.”
Peguei o livro em minhas mãos, estava frio, e sensivelmente mais pesado.
“- Leia o que está escrito na capa.”
“- Dungeons and Dragons, 3° edição... Livro do Jogador... Espere! O que é isso?”
Um tipo de inscrição começou a aparecer na capa e na contracapa do livro. Era fina, como eu
nunca tinha visto antes, e brilhava com um brilho profundo e avermelhado.
“- Eu não consigo ler muito bem... o que está escrito?”
“- Poucos conseguem ler. Está escrito na língua negra da TSR, a qual eu não me atrevo a
pronunciar aqui. Mas em língua portuguesa comum quer dizer :

Um Sistema para a todos governar, Um Sistema para encontrá-los


Um Sistema para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los”

“- Este é o Um Sistema”, continuou, “o sistema criado e impresso pela TSR nos escritórios da
Wizards of the Coast.”
“- Não pode ser! Meu antigo mestre o achou na prateleira da Forbidden Planet!”
“- Sim, e por algum tempo ele ficou aqui, junto com os seus pertences. Mas agora o Sistema
acordou. Ele ouviu o chamado da TSR.”
“- Mas ela foi destruída! A TSR foi destruída!”
“- Não, querido amigo. Ela foi apenas comprada pela Wizards of the Coast. Seu espírito está
ligado ao Sistema, e o Sistema prosperou. Seus jogadores se proliferam por todo mundo. Sua fortaleza aqui
na cidade, em Planet-Dûr, foi reconstruída. Ela precisa apenas deste Sistema para cobrir o mundo com um
imenso lapso criativo. Eles são Um, o Sistema e a TSR.”
“- Tudo bem. Vamos manter este livro escondido. Vou colocá-lo aqui, junto com a minha
coleção de Novos Titãs e com o meu Almanaque do Escoteiro-Mirim, e nunca mais vamos falar dele. Vamos
apenas jogar GURPS Supers, GURPS Viagem Espacial, Mage, Call of Cthulhu, ou mesmo AD&D Segunda
Edição. Ninguém sabe que temos o livro, certo?” Meu amigo continuou silencioso. “- Certo?”
“- Havia mais alguém que sabia do livro.” Então ele abriu a última página e eu percebi que o
formulário para receber a Dragon Magazine foi enviado. “- Logo as revistas vão começar a chegar, e quando
seus jogadores verem, será tarde demais. Eles vão querer jogar aquelas aventuras prontas horríveis, e você
vai colocar aqueles NPCs prontos estúpidos e deprimentes nas suas histórias.”
Ouvindo isso, eu ofereci o Um Sistema a ele, e disse:
“- Você deve levar este livro, pegue-o!”
“- Você não pode me oferecer isto.”
“- Pegue-o, Rodolfo! Eu o dou para você!”
“- Não me tente! Eu não ouso mestrar isso, mesmo que a arte seja boa. Eu usaria isto com um
desejo de fazer o bem, mas logo me viciaria e meu livre-arbítrio desapareceria.”
Eu perguntei, então, com muito medo:
“- O que eu devo fazer, então?”
“- Você deve ir, e rápido. Saia de sua casa, Alfredo. Pegue o ônibus e vá para o Centro.”
“- E você?”

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“- Eu vou esperá-lo no McDonalds do Centro. Mas antes eu devo ir consultar uma pessoa.”

CAPÍTULO III
UM ATALHO PARA O MACDONALDS

A conversa que eu tive com este meu amigo, um dos cinco mais antigos mestres da cidade, foi
o suficiente para me convencer de que eu corria grande risco. Seguindo suas recomendações, saí
imediatamente de casa, mas não sem encontrar na porta de casa meu amigo Samuel. Ele vinha, como de
costume, me pedir para liberar que o personagem dele tivesse 312 pontos de desvantagens – todas
plenamente justificáveis, segundo ele – ao invés dos 40 que o GURPS sugere. E, claro, puxar o meu saco o
quanto fosse necessário até que eu aceitasse este absurdo. Eu disse a ele, logo que o vi:
“- Eu não posso falar agora, Samuel. Estou apressado e correndo grande perigo.”
“- Não me diga! Pois eu vou junto com o senhor, mestre! Vou protegê-lo de qualquer perigo
com minha própria vida, ah, vou sim, ou meu nome não é Samuel! Além disso, tenho que falar ao senhor
sobre o meu personagem...”
“- Nada feito, Samuel... 312 pontos é muito.”
“- Ah, então tá.”
Tendo ele falado isto, eu percebi que se aproximava de nós uma figura horrenda e macabra...
Toda vestida de preto, da cabeça aos pés, esquelética como um saco de ossos, com a pele branca e ressecada
como a de um morto-vivo... Meu coração se encheu do mais puro terror no mesmo momento. Minha garganta
secou, e eu não conseguia falar uma única palavra, um único sussurro, um único gemido. Mas, à medida que
a terrível criatura se aproximava, com seu fedor horrível de mofo e bolor, recuperei as forças e disse a
Samuel:
“- Um... um jogador de Vampiro, A Máscara!”
“- Sim, e vestido para um Live!”
“- É horrível! Vamos fugir!”
Samuel disse: “- Não precisamos ter medo, querido mestre! É só um jogador de RPG como
nós!”
“- Não, não como nós! Você não ouviu sobre aqueles crimes que eles cometeram?”
“- Ora, mestre, não tente enganar o pobre Samuel! Qualquer idiota sabe que aqueles
assassinatos não tem nada a ver com o RPG!”
“- Não estou falando dos assassinatos, pois só uma anta acharia que eles têm alguma relação
com o RPG! Os crimes aos quais me refiro são sair vestidos assim na rua, jogar em cemitérios e ficam
gritando a amplos pulmões termos de RPG em Shoppings e outros lugares públicos! Se eles fazem isso, não
se pode duvidar mais de nada!”
“- O senhor tem razão, mestre! Vamos fugir!”
Para nossa sorte, estava saindo um ônibus da parada naquele momento. Samuel, que estava à
frente, entrou correndo pela porta, se virou e me deu a mão:
“- Pule, mestre, pule!”
Olhei para trás e vi que a figura corria bem atrás de mim. Tomado pelo pânico, corri mais
ainda, segurei firme o Um Sistema e pulei. A figura parou, frustada, e eu vi que outras se juntavam a ela.
Dentro do ônibus, mais calmos, encontramos dois amigos nossos: Mário e Pepe, dois jogadores
do nosso grupo e meus primos por parte de mãe.
“- Oi, mestre, oi, Samu!”, disseram. “Para onde vão com essa cara de quem viu um jogador de
Vampiro?”
Samuel me olhou. Eu disse:
“- Vamos todos ao MacDonalds. Lá eu explico para todos o que está acontecendo. O meu
antigo mestre, Rodolfo, vai estar lá esperando pela gente.”
E assim, todos fomos ao MacDonalds, enquanto começava a chover.

No entanto, não tínhamos idéia do que se passava longe dali.

Meu antigo mestre tinha ido procurar a orientação de um amigo, um autor de RPG famoso no
Brasil. Chegou ao lugar onde ele autografava umas cópias de Holy Avenger junto com uma desenhista que,
ao contrário dele, era talentosa e simpática.
“- Ora, ora, ora, se não é você. Há quanto tempo não o vejo.”
“- Preciso de sua orientação, Cassaruman.”, disse meu amigo. “- Você tem aqueles amigos na
Steve Jackson Games, deve saber algo sobre como destruir o Um Sistema.”
“- Você o achou?”
“- Sim. Esteve embaixo do meu nariz este tempo todo.”
“- E você não o viu? Estes cards que você anda comprando devem ter deixado o seu raciocínio
mais lento.”

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“- Você sabe que é só para colecionar. Mesmo assim, Cassaruman, devemos bolar um jeito de
destruir o Um Sistema.”
“- Destruir? Você deve estar brincando. O Um Sistema não pode ser destruído. A TSR vai
encontrar quem o possui, e acabar com o seu dinheiro.”
Neste momento, meu mestre olhou para um livro em cima da mesa de Cassaruman. Seu título
era “GURPS Espada da Galáxia”, e tinha um grande carimbo vermelho da Steve Jackson Games, onde se lia:
“REJECTED MATERIAL. AWFUL QUALITY. METALIANS WITH BOOBS?!?! OH, GOD’S SAKE!”
Então, meu mestre entendeu tudo, e disse:
“- Agora eu vejo tudo. Você sabe que a SJG tem bom gosto e senso do ridículo, e que por isso,
não publicaria nunca ‘GURPS Espada da Galáxia’. Você quer usar o Um Sistema para seus próprios
propósitos! Isso é loucura!”
“- Não me desafie! Logo, todas as mesas do mundo vão estar jogando EdG d20, e meu cenário
vai ser mais jogado que Kult, Witchcraft ou mesmo Alternity! HAHAHAHA!”
Desta forma, os dois iniciaram uma luta terrível. Jogavam dados e livros um no outro, cada vez
com mais ferocidade e violência. No entanto, Rodolfo pisou em um d12, escorregou e bateu com a cabeça.
Quando acordou, estava preso no banheiro.

CAPÍTULO IV
DADOLARGO

Chegamos no MacDonalds. Chovia muito lá fora, e já estava escuro. Me dirigi ao caixa, para
comprar mantimentos, e perguntar se não tinha visto Rodolfo, meu antigo mestre.
“- Boa noite. Quero um BigMac, uma porção grande de fritas e um Sprite. E a propósito, não
viu por aí um cara barbudo, alto e vestido com um moletom cinza?”
“- Moletom cinza? Não, não. Aqui está seu pedido. O próximo!”
Desolado, me dirigi à mesa onde me esperavam.
“- Ele não chegou. Deve ter acontecido alguma coisa.”
“- Vamos esperá-lo mais um pouco. A propósito, primo, tem um cara te olhando desde que
você entrou.”
Vi então que, em uma das mesas do fundo, uma figura me olhava. Estava de preto, também,
mas era muito diferente dos jogadores de Vampiro: era bem-apessoada e sóbria. Não tinha os trejeitos
embaraçosos daquelas figuras em lugares públicos. Pelo seu porte físico, imaginei que até devia praticar
algum esporte. Ou seja, um jogador de RPG realmente fora do comum.
Procurei ficar mais calmo, e perguntei a Mário e Pepe se o conheciam. Eles me responderam:
“- Ah, este cara nós conhecemos só de vista. Dizem que ele joga por aí há tempo, e que tem
muita sorte nos dados, e por isso ganhou o apelido de Dadolargo. Pois só tira força 18/00 e nove ou dez nas
jogadas de Pontos de Vida, quando passa de nível.”
Mais calmo, comecei então a explicar a eles o que acontecia. Eles me ouviam com atenção,
principalmente quando eu falava do Um Sistema. Abri então minha mochila para mostrá-los do que estava
falando, e, assim que segurei o livro com a mão direita, senti que uma mão forte agarrava a minha gola,
enquanto a outra facilmente recolocava o livro na mochila.
“- Não tão rápido”, disse Dadolargo, “ou você não vai continuar jogando por muito tempo.
Vamos conversar lá em cima.”
Assim, ele me arrastou para o segundo andar do MacDonalds, e meus amigos vieram atrás.
Logo que sentamos lá em cima, Dadolargo disse:
“- Vocês correm grande perigo, ainda mais mostrando o que carregam assim, publicamente.
Devem me seguir.”
“- Como podemos confiar em você? Você deve ser como os outros, que tentaram nos pegar
agora há pouco.”
Neste momento, percebi que uma grande agitação estava acontecendo lá embaixo. Espiando
entre o corrimão e a escada, vi uma cena horrível.
Os nove jogadores de Vampiro entraram na lanchonete, todos vestidos de preto, da cabeça aos
pés, e maquiados como mortos-vivos, com direito a sangue escorrendo dos lábios, dentes postiços e tudo o
mais (eu sempre achei este um jeito MAGNÍFICO de manter a Máscara), aterrorizando todas as pessoas que
se encontravam no MacDonalds. Gritavam coisas horríveis enquanto passavam pelas mesas:
“- Sou um Nosferatu! Vivo nos esgotos sugando sangue de ratos!”
“- E eu sou um Gangrel! Vou arrancar as suas tripas com minhas garras! JO-KEN-PO!”
“- E eu, como Tremere, vou fazer um ritual taumatúrgico, com muito sangue!”
“- Seu amador! Como Bali, vou fazer um ritual com o dobro de sangue que você usar, e vou
desenhar um pentagrama invertido com vísceras de recém-nascidos!”
Dizendo isto, ele olhou para uma criança que montava Lego ali perto e a ameaçou. A criança
correu, em pânico.

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Todas as pessoas ali ficaram horrorizadas, pois todos ouviram o que eles disseram. As meninas
dos caixas se escondiam, agachadas atrás do balcão, derramando lágrimas de desespero. E as pessoas comuns
que ali estavam comentavam umas para as outras:
“- Viu? Devem ser aqueles jogadores deste tal de RPG que a televisão fala. Bem que o Pastor
me avisou sobre eles, e olha que eu não tinha acreditado! Cruzes!”
“- Filhinho, logo que chegarmos em casa, você vai jogar aquele jogo de RPG que você tem no
videogame fora! Isto é perigoso, bem que eu li no jornal!”
Samuel, que estava ao meu lado, ficou enfurecido, e quis partir para cima deles:
“- Malditos! São eles que acabam com a nossa reputação! É por isso que eu tenho que manter
em segredo o fato de eu jogar RPG no meu colégio! É por causa deles que a minha avó não fala mais comigo,
achando que eu mato pessoas por aí!”
Dadolargo o segurou, e disse:
“- Faça silêncio, pequeno. Vamos esperar eles saírem e seguir nossa viagem. Eles são assim,
escandalosos, pois eras atrás perderam o bom-senso. Eram apenas jogadores comuns, mas se viciaram com
todos aqueles suplementos de World of Darkness, e por isso perderam a noção do que é real e do que é RPG.
Agora, se sentem abandonados, pois as maiores mentes da White Wolf estão escrevendo para o Um Sistema,
e esperam que a chegada de Vampiro para D20 dê novo fôlego ao World of Darkness.”
“- E para onde vamos, Dadolargo?”
“- Vamos levar este livro maldito para a casa de uns amigos meus. Eles são sábios, e lá faremos
um conselho para decidir o que vai ser feito dele.”

CAPÍTULO V
UMA FACA NO ESCUDO

Compramos vários Big Macs, pois Dadolargo nos avisou que a viagem seria longa. Saímos
sem fazer alarde – pois as pessoas ainda estavam traumatizadas pelo encontro com os Jogadores Negros.
Durante a caminhada, Dadolargo nos adiantou sobre o conselho por ocorrer: Seria na casa de
seu amigo Helton, um dos mais sábios e antigos jogadores conhecidos na cidade. Ele morava em uma casa
muito bonita, em um bairro nobre da cidade, com um quintal enorme e cheio de árvores. A irmã de Helton
era uma morena muito bonita, chamada Audrey, e era namorada de Dadolargo. Saber disso nos encheu de
respeito e admiração por ele, pois poucos são os jogadores de RPG que namoram, ainda mais com mulheres
bonitas.
Ele disse também que, logo que chegássemos lá, poderíamos voltar para casa, pois ele e seus
amigos, que eram grandes jogadores, tratariam de por um fim ao poder do Um. Isto, por si só, nos
tranqüilizou.
Caminhamos muito, por várias horas. Mário e Pepe, praticamente sozinhos, dizimaram nosso
estoque de Big Macs.
Mas o pior ainda estava por acontecer.
Virando a esquina, estavam os nove Jogadores Negros. Ao nos ver, correram em nossa direção,
com a boca aberta mostrando os horríveis dentes postiços de plástico, e grandes quantidades de Ketchup
escorriam deles. Dadolargo tirou a mochila que carregava, e acertou um belo mochilaço na têmpora do que
estava na frente. Ele caiu, gritando horrivelmente:
“- Vou gastar um ponto de sangue e regenerar! Avise para o Narrador que eu não morri ainda!”
Mas eles eram muitos, e nos cercaram. Um deles agarrou Mário, e gritou:
“- Seu humano ridículo! Vou usar vicissitude e fazer você ficar com três braços! Narrador!
Narrador! Vou testar vicissitude!”
Samuel e Pepe lutavam bravamente, apesar de pequenos. No entanto, os Jogadores Negros
restantes partiram para cima de mim. Não pude resistir, pois eram muitos e muito maiores do que eu. Logo,
um deles mordeu meu pescoço com suas presas de plástico, enquanto outro deles anotava um ponto de
sangue a mais na sua ficha.
Neste momento, eu vi uma das coisas mais belas da minha vida.
Um Corsa havia parado na calçada, e dele saiu uma mulher linda, espetacular. Era sem dúvida
alguma Audrey, a namorada de Dadolargo. Estava ainda com a roupa da aeróbica, um short branco e verde
com top da mesma cor. Não só era lindo seu rosto, como seu corpo também era magnífico.
Foi o que bastou para os Jogadores Negros: eles não estavam acostumados a ver mulher, muito
menos uma assim tão linda. Quase paralisados, começaram a recuar. Tentaram dizer algo, mas relembraram
que haviam perdido a capacidade de falar de algo que não fosse RPG ou World of Darkness há muito tempo.
Sem saber o que fazer, correram para longe.
Eu estava ainda caído, e Samuel veio me socorrer. Dadolargo recolocava sua mochila. Audrey,
então, se aproximou e me puxou para o colo dela:

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“- Oh, coitadinho! O que aqueles retardados fizeram com ele! Olhe esta marca no pescoço! E
esta maquiagem toda na roupa dele! Vou levá-lo de carro para meu irmão Helton rápido, ou estas manchas de
maquiagem vão secar e manchar a roupa dele para sempre!”
Notei que ela havia apoiado minha cabeça sobre o seu peito, e sentia junto à minha face
aqueles maravilhosos seios. Oh, logo eu, um simples jogador de RPG, tendo contato físico com seios
femininos! Não pude conter a emoção, e logo perdi a consciência em meio àquela imensidão branca e
fofinha, torcendo apenas para que Dadolargo não percebesse o meu sorriso de satisfação. Assim, desmaiei.

CAPÍTULO VI
O CONSELHO DE HELTON

Acordei ainda com aquela sensação magnífica no rosto. Era a manhã seguinte, e eu estava em
um quarto muito bonito e bem iluminado.
“- Enfim você acordou. Você passou a noite inteira aí babando e dizendo besteiras com um
sorriso estranho no rosto”, disse alguém ao meu lado. Virei-me e percebi que era Rodolfo, com um band-aid
na testa.
“- Nós esperamos você, por onde andou?”, perguntei.
“- Eu... eu sofri um contratempo.” Sua expressão ficou séria. Logo depois, ele me contou todo
o acontecido e como conseguiu escapar, quando a equipe de limpeza do salão onde estava o encontrou
encolhido no chão no dia seguinte.
“- Ainda nesta manhã, passei no meu vizinho, peguei sua bicicleta mais rápida, a Scaloifax,
mesmo sem pedir sua permissão, e vim para cá o mais rápido que pude. Sua tarefa acabou aqui, querido
amigo. Helton convocou um conselho para hoje, para decidirmos o que será feito do Um Sistema. Eu,
Dadolargo e os outros cuidaremos disso, e você poderá ir para casa com Samuel, Mário e Pepe.”
Respirei aliviado. Estava livre do Fardo.
Pela tarde, nos reunimos à beira da piscina de Helton. Várias pessoas que eu não conhecia, ou
que tinha visto apenas de relance em convenções, estavam lá: de um lado, jogadores altos, magros, de cabelo
comprido e camisa do Blind Guardian; de outro, alguns gordinhos e baixos, muitos dos quais com barba. Em
uma cadeira, estava Dadolargo, agora melhor vestido (por insistência da namorada), em outra, meu antigo
mestre, Rodolfo. Uma cadeira estava reservada para mim, ao lado de um estranho agitado, Ademir. Helton
então falou:
“- Estranhos de grupos distantes, amigos de longa data, vocês foram chamados aqui para
responder à ameaça da TSR. O RPG se encontra à beira da destruição. Ou nos unimos, ou perecemos. Traga
o Sistema.”
Em uma mesa no centro do grupo, eu coloquei o Um Sistema.
Todos se agitaram. Alguns comentavam:
“- Então é verdade! A Devir publicou mesmo!”
“- O Sistema do Poder!”
“- A Ruína dos Jogadores!”
O estranho a meu lado, Ademir, sorriu e disse:
“- É uma dádiva! As regras devem ser legais! Podemos jogar isto para o bem! Veja como os
desenhos são legais, e tudo... Por que não usar este livro?“
“- Você não pode jogar este Sistema”, Dadolargo disse. “Nenhum de nós pode. Este Sistema
serve para lucrar, apenas. Não pode ser jogado.”
Ademir o olhou, sério:
“- E o que você pode saber disso?”
Um dos rapazes com camisa do Blind Guardian, Leônidas, com cabelo loiro e comprido, se
levantou:
“- Olhe como você fala com ele! Ele é filho de um milionário, herdeiro de uma das maiores
empresas do país!”
Ademir sentou, reclamando:
“- Hmpf, filhinho-de-papai. Montado na grana, até eu namoraria aquela gostosa.”
Meu mestre disse:
“- Dadolargo está certo. Não podemos jogá-lo.”
“Helton então falou:
“- Só temos então uma alternativa: devemos destruí-lo!”
Guilherme, um baixinho barbudo que tinha o apelido de Guile, deu um passo à frente, pegou o
livro e disse:
“- Estamos esperando o quê, então?”
Tendo dito isto, ele jogou o livro no chão, pisou em cima dele, tentou arrancar as folhas, mas
foi tudo em vão. Helton o parou, dizendo:

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“- A encadernação do livro é muito boa, assim como a qualidade das páginas. Não podemos
destruí-lo por qualquer modo que conheçamos. Devemos levá-lo até a gráfica da Devir, o lugar onde foi feito
e único lugar onde pode ser destruído, e jogá-lo na máquina da qual ele veio.”
Ademir falou:
“- Você não pode simplesmente entrar caminhando na Devir! Seus portões negros são
guardados por muito mais do que jogadores de Magic e Pokémon idiotas. Há um grande mal lá, e que nunca
tem prejuízo. É uma empresa estéril, com cards, livros mal-traduzidos e toda a sorte de porcarias. Até o
informativo deles é venenoso! Nem com dez mil reais conseguiríamos!”
Leônidas levantou a voz para ele: “- Você não ouviu nada do que Mestre Helton disse? O
Sistema deve ser destruído!”
Guile disse: “- Ah, e suponho que você vá sugerir que um fã de Metal pode fazer isso!”
Os dois se estranharam, e logo, todos começaram a brigar. Uns empurravam os outros, e
Mestre Helton tentava apaziguá-los sem sucesso. Dadolargo levantava a voz, alguém aproveitava a confusão
para estrategicamente espiar por cima o decote da blusinha da Audrey, e ninguém se entendia.
Eu olhava para o Um Sistema ali parado. Sentia o grande mal nele, e, meio sem saber por quê,
disse:
“- Eu... eu vou levar o Sistema.”
Todos me olharam pasmos.
“- Eu levarei o sistema até a Devir... muito embora eu não saiba o caminho.”
Meu antigo mestre, Rodolfo, se aproximou e disse:
“- Eu ajudarei você a carregar este fardo enquanto ele estiver com você.”
“- Se a vida ou morte de meus personagens puder protegê-lo, eu irei.” Dadolargo disse. “- Você
tem as minhas fichas.”
Leônidas disse: “- E os meus dados!”
Guile completou: “- E o meu escudo!”
Por fim, Ademir disse que me acompanharia até lá. Para minha surpresa, Samuel, Mário e
Pepe, que espiavam tudo, vieram também.
Helton disse, satisfeito:
“- Nove companheiros. Vocês serão a Sociedade do Sistema!”
Assim, partimos logo após o meio-dia, levando nas mochilas latas de batata-frita-de-viagem
Pringles, Gatorade, Fandangos e muitas latinhas de Fanta Uva.

CAPÍTULO VII
UMA JOGADA ATRÁS DO ESCUDO

Seguimos viagem a pé – com o preço da gasolina, não podemos ficar andando para lá e para cá
de carro, além do que nove pessoas não ficariam exatamente muito bem acomodadas no Corsa da Audrey.
Assim, iniciamos nossa jornada rumo ao mais horrendo e terrível dos destinos.
Conversávamos alegremente, contando histórias engraçadas sobre antigos acontecimentos em
nossos grupos de jogo, e isso nos deixou de certa forma mais leves e animados. Até Ademir ria de nossas
histórias, e contou algumas do seu próprio grupo.
Havíamos avançado mais de quatro quarteirões sem descansar, o que foi um feito incrível,
principalmente para Rodolfo, que, apesar de muito sábio, era fumante.
Deste modo, chegamos a um dos parques da cidade. Poderíamos cruzá-lo por dentro, poupando
um valioso tempo, ou contorná-lo. Descansamos um pouco enquanto decidíamos o que fazer.
“- Devemos cruzá-lo por dentro!”, disse Guile. “- Meu primo costuma jogar vôlei neste parque,
e ele vai nos receber como reis!”
“- Eu acho que devemos ir por fora”, disse Leônidas, “pois dizem lá onde eu jogo que tem um
pessoal muito esquisito fazendo Live de Lobisomem neste parque.”
“- Bobagem! Aquela porcaria nem vende mais, e além do quê, na terceira edição não tem mais
Caern de pé!”
“- É, mas não devemos arriscar. Sabe como este pessoal que joga Storyteller é radical.”
“- Vamos deixar que o Portador do Sistema decida!”, disse Rodolfo. “- E então, por dentro ou
por fora?”
Eu pensei muito e, no fim, decidi ir por dentro, pois poderia ver várias meninas fazendo
exercícios no interior do parque, mesmo que a chance de eu me envolver com uma delas fosse, na melhor das
hipóteses, nula.
“- Vamos por dentro!”
“- Hehehe, vocês vão só ver como é legal ali dentro! E meu primo é muito bacana, vai
emprestar a todos nós vários CDs de Playstation!”, bradava Guile, sem esconder a sua felicidade.

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Assim que entramos, vimos que não havia ninguém no parque, o que era muito estranho. No
entanto, continuamos avançando, na esperança de chegar às quadras de vôlei e encontrar o primo de
Guilherme.
Chegando lá, encontramos a quadra vazia. Um pedaço de papel estava no chão. Dadolargo
pegou-o, e Leônidas disse: “- Uma ficha de Lobisomem! Eu avisei que não deveríamos ter vindo por dentro!”
“- Agora vejo tudo claramente... foi mesmo organizado um Live aqui, e quando os
freqüentadores do parque souberam que iria ser jogado RPG por aqui, todos foram embora, pois não queriam
ficar à mercê de maníacos! Não os culpo, eles devem ler jornais e ver televisão!”
Percebi que Pepe, que estava muito cansado, havia se sentado na grama. Meu mestre pegou-o
pelo braço, e gritou:
“- Peterson, seu trouxa imbecil! Saia da grama!”
Não entendemos muito bem o motivo de sua irritação e medo, mas logo ficou claro: os
arbustos começaram a se agitar.
“- É tarde demais! Preparem-se!”, Ademir disse.
Logo, um jogador de Lobisomem saiu dos arbustos. Estava trajado com um casaco de pele
marrom, possivelmente de sua avó ou tia, e tinha pantufas de pelúcia da mesma cor. Tentava estar vestido de
forma a parecer um urso, ou algum outro bicho inclassificável e peludo, e avançou para cima de nós.
“- Vocês machucaram a graminha, e eu vou bater em vocês, pois devo proteger Gaia e este
Caern! Narrador, estou em Crinos! Vou atacar, vou atacar!”
Logo uma porção de jogadores o seguiu, avançando para cima de nós, vestidos como
cachorros, gatos, e outros com fantasias não menos ridículas e embaraçosas. Nosso primeiro impulso foi rir
incontrolavelmente, mas isso só os enfureceu. Guile firmou bem as pernas, agarrou seu pesado GURPS
Vehicles e gritou:
“- Venham, malditos! Vou mostrar a vocês que há alguém neste parque que não joga
Storyteller, ou meu nome não é Guilherme, filho de Glória!”
Neste momento, todos congelamos de medo. Uma voz conhecida veio de trás dos arbustos,
dizendo:
“- Parem! Vamos organizar este Live! Quem está na Umbra, levante a mão direita, e quem não
está, levante a esquerda!””
Rodolfo ficou imóvel de terror, e todos os jogadores do Live pararam. Ele disse então:
“- É o Gordog, um demônio do mundo antigo! Ele trabalhava na Planet quando ela ainda não
tinha se mudado, mas teve que parar depois que ficou muito gordo para sentar atrás do caixa! Contra ele,
nada vai funcionar! Fujam! Para fora do parque, para o viaduto!”
Assim, corremos, com todos aqueles jogadores ridículos atrás, e com os passos pesados do
Gordog fazendo o chão tremer e ressoando nos nossos ouvidos.

CAPÍTULO VIII
O VIADUTO DE VARGAS-DÛM

Corríamos desesperados pelo curto espaço que separava o mundo exterior do local onde era
realizado o Live. Atrás de nós, gritos ferozes, rugidos, latidos, e toda espécie de som que um humano
mentalmente sadio não emite, mesmo com a desculpa de estar participando de um Live-Action. E, na frente
dos jogadores, corria aquela gigantesca massa de pêlo e banha, o Gordog, trazendo consigo o fedor de eras,
pois há quatro anos estava gordo demais para limpar as próprias costas quando tomava banho.
Já vislumbrávamos, bem na nossa frente, o viaduto da Avenida Presidente Vargas, imponente e
ameaçador, passando sobre o intenso fluxo de automóveis e caminhões lá embaixo.
“- Para o viaduto, rápido!”, gritava Rodolfo. “- Lá eles não terão coragem de nos seguir!”
E assim atravessamos o viaduto, correndo como loucos. Os jogadores de Lobisomem, que um
dia já foram pessoas normais, não nos seguiram, tendo vergonha de sair do parque e ir vestidos para a rua
daquela forma. No entanto, o Gordog nos seguia, e podíamos ver que, por trás daqueles óculos, a raiva
brilhava em seus olhos, pois fazia muito tempo que nós não comprávamos nada na sua loja.
Logo que cruzamos a metade do viaduto, Rodolfo disse para Dadolargo:
“- Leve-os para longe daqui, é seu dever agora liderar a comitiva!”
Dadolargo relutou, mas deixou-o para trás. Nos separamos de Rodolfo, que parou bem no meio
do viaduto, virou-se e encarou a horrível besta – em todos os sentidos:
“- Eu sou o guardião das regras no meu grupo! As notas verdinhas dos trouxas que compram
na sua loja não irão ajudá-lo agora! VOCÊ NÃO VAI PASSAR!”
O ser horrível rugiu, lançando o bafo de alho e azeite de oliva de quinta categoria do barzinho
da esquina. Rodolfo cambaleou, mas por pouco tempo.
O Gordog então avançou, procurando forçar a passagem, mas Rodolfo o deteve, segurando-o
pelos pulsos. O demônio de banha perdeu o equilíbrio, e encostou sua horrenda traseira no parapeito do
viaduto.

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Foi demais para a frágil estrutura de concreto e aço, que quebrou-se como uma maquete de
série japonesa. O Gordog caiu, desaparecendo da nossa visão quase por completo.
Porém, sua mão vil e asquerosa se segurou no cinto da calça do Rodolfo, e o puxou para baixo.
Meu mestre, desequilibrado, se debruçava sobre a beirada destruída do viaduto, agüentando
pelo cinto as várias centenas de quilos do Gordog. Olhou-nos, com um olhar de desespero e esforço, e disse:
“- Fujam, tolos!”
Eles então caíram, desaparecendo no profundo abismo de cimento, asfalto e metal.
Todo o resto passou como um pesadelo. Dadolargo nos impedia de voltar, gritávamos e
chorávamos muito. Apesar do barulho da avenida, não ouvíamos nada mais a não ser a batida de nossos
corações, chocados pela horrível cena, aflitos com a perda de um grande amigo. O nó em minha garganta
impedia que eu gritasse ainda mais.
Dadolargo e os outros nos afastaram dali. Sentamos em uns banquinhos mais além, chorando.
Pepe apoiava a cabeça no ombro de Mário, que tentava consolá-lo.
Sentia uma enorme sensação de perda e vazio, apenas comparável à sensação que senti no meu
bolso quando deixei o cinema após ver Dungeons & Dragons. Apesar de ter gasto apenas três reais para ver
aquele filme, senti como se tivesse perdido uma fortuna.
Meus pensamentos foram interrompidos por Dadolargo, que nos colocava de pé.
“- Vamos, vamos! Leônidas, Guilherme, Ademir, ponha-os de pé! Temos que seguir viagem.
Logo esta planície vai estar apinhada de repórteres e câmeras para mostrar o Live e falar besteiras sobre ele, e
não queremos pagar mico na TV. Estamos perto de Lauren, vamos para lá.”
Iniciamos ali, com o coração pesado, uma triste caminhada até a Lauren, tia de Leônidas, que
serviria de abrigo para nós por algum tempo, e que ficava perto da margem do rio que cruzava a cidade.

CAPÍTULO IX
LAUREN

A saudade e a dor da perda de um grande amigo fizeram com que nossa caminhada até Lauren
fosse silenciosa. A Casa de Lauren era onde moravam os numerosos primos de Leônidas, e também era sede
do fã-clube do Blind Guardian na cidade. Haviam muitos rumores correndo sobre ela, inclusive um boato que
parecia muito mentiroso sobre uma lindíssima mestre de GURPS que ali morava.
Logo que cruzamos o portão, que estava aberto, os primos de Leônidas pularam de trás das
árvores do jardim. Fomos pegos de surpresa, e eles pareciam muito pouco amigáveis. Leônidas tomou a
frente e disse:
“- Olá, pessoal. Viemos buscar abrigo aqui, e buscar os conselhos de Gabrielle. Helton nos
mandou, estamos cumprindo uma importante missão.”
“- Não precisa se explicar, Leônidas, Helton já mandou um e-mail para Gabrielle e ela está
sabendo de tudo. O problema é que este baixinho aí não pode entrar”, disse um dos primos de Leônidas
apontando para Guilherme. “Ele e seus companheiros de grupo já avacalharam com muitos de nossos jogos
no passado. Nos esforçávamos fazendo uma história profunda e cheia de oportunidades para interpretação, e
eles a transformavam em apenas uma sessão de tiroteio e pancadaria com seus personagens cheios de
combos. Desde então nossos grupos não se falam.”
Depois de muita discussão, Leônidas prometeu se responsabilizar por qualquer ato de
Guilherme que pudesse desagradar aquele grupo. Assim, fomos aceitos e conduzidos para a mansão onde
morava Lady Gabrielle.
Após subir uma grande escadaria, chegamos à porta de um quarto no segundo andar. O
nervosismo estava nos matando, pois muitos e muitos boatos circulavam em todos os grupos de jogo do país
sobre a existência ou não de Gabrielle. Alguns diziam que era apenas um brincalhão com tendências
homossexuais que assinava como mulher nas listas de discussão sobre RPG, opinião que ficou ainda mais
forte depois que pediram para que Gabrielle aparecesse ao vivo em uma convenção de RPG e ela não
compareceu. Mas poucos, ou muito sortudos ou muito mentirosos, juravam ter encontrado Gabrielle em lojas
pela cidade, comprando livros de todos os sistemas, e diziam que era a mais bela de todas as mulheres no
mundo.
Um primo de Leônidas veio de dentro do quarto e disse que podíamos entrar, pois a Senhora da
Luz estava nos esperando. Com o coração na mão, foi o que fizemos.
É impossível descrever com palavras um décimo sequer da beleza de Gabrielle. A mera visão
de um ser tão perfeito e angelical, como o que víamos na nossa frente, era suficiente para arrancar todas as
preocupações mesmo do coração mais atormentado. Gabrielle era uma menina lindíssima, com cerca de
dezoito anos, olhos de um azul claro e profundo e longos cabelos loiros, brilhantes e lisos. O sorriso dela era
tranquilizador como um bálsamo, belo como um arco-íris. E jogava, imaginem, RPG. O quarto se enchia de
luz com sua mera presença, que irradiava tranqüilidade, doçura e beleza. Foi Dadolargo quem primeiro falou:
“- Bom dia, Gabrielle. Faz muito tempo que não nos vemos.”
“- Bom dia, Dado. Como vai a Audrey?”

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“- Bem... ela ficou na casa de Helton. Estes são meus amigos, sete dos mais corajosos
jogadores que eu já conheci. Acabamos de cruzar o parque.”
“- Fiquei sabendo. Helton me mandou um e-mail pela manhã, e deduzi que vocês atravessariam
aquele lugar perigoso. Mas ele disse que seriam nove... isso quer dizer que Rodolfo pereceu.”
“- É. Ele se sacrificou para nos salvar no Gordog, mas pelo menos acabou com o monstro.”
“- É uma pena, gostava muito de conversar com ele sobre RPG. Mas pelo menos aquele monte
de banha não vai incomodar ninguém, atendendo mal os clientes da sua loja horrível. Vocês estão a salvo
enquanto permanecerem na minha casa, sintam-se à vontade. Descansem, pois temos quartos, camas e
comida para todos.”
Assim, todos fomos descansar, pela primeira vez com conforto e tranqüilidade depois de deixar
a morada de Helton. A madrugada veio, trazendo bons sonhos para alguns, e sonhos atormentados para
outros. Quando eram aproximadamente três horas da manhã, a porta do quarto se abriu, e a luminosidade do
corredor revelou a silhueta de Gabrielle, que entrou e sentou ao meu lado na cama.
“- Eu sei o que você está passando, meu querido Alfredo. Sei o peso do que você carrega. Sei
também a importância da sua missão, e sinto muita pena de você por ter que agüentar toda esta
responsabilidade sozinho. Você é muito corajoso, e eu o admiro muito.”
Aquelas palavras me tranqüilizaram, e eu me senti muito à vontade para desabafar minhas
preocupações:
“- Eu sei o que tenho que fazer, senhora. Mas... eu não se tenho forças ou coragem.”
“- Você vai achar sua coragem. Esta tarefa foi destinada a você, e se você não conseguir,
ninguém irá. Li isso em algum lugar, e sempre quis dizer para alguém!”
“- Gabrielle... eu... bem, eu queria dizer que...”
“- Que eu sou muito bonita e você está apaixonado.”
“- Como... como você descobriu? Eu não ia ter coragem de falar isso, mas era o que eu estava
pensando... você lê mentes?”
“- Não, seu bobo, mas já cansei de ouvir isto. Além disso, sua cara está vermelha e seu cobertor
está meio levantado.”
“- Eu só queria saber... como alguém tão bonita como você pode jogar RPG? Eu digo, deve
haver muitas outras coisas para você fazer, você não precisa ficar sábado à noite em casa jogando por se
sentir excluída em festas como nós, pode ir a qualquer lugar, arranjar qualquer namorado... por quê?”
“- Simples: porque eu quero. Eu realmente poderia fazer tudo isto que você disse, e muitas
outras coisas, e nunca mais voltar a jogar. Mas eu gosto de RPG. Eu não o transformei em uma religião, não
abdiquei de tudo na minha vida por ele, e você se engana muito se pensa que eu não tenho meus namorados
nem vou a festas por ser uma jogadora. Ele é simplesmente um hobby, um hobby do qual eu gosto muito.
Quanto ao fato de eu ser bonita, isso não impede em nada que eu goste de jogar: o mundo está cheio de
jogadoras, muitas mais bonitas do que eu. Você só tem que sair de casa e variar os seus ambientes de jogo.
Talvez a culpa de vocês homens reclamarem que meninas não jogam RPG seja de vocês mesmos, que se
fecham em seus grupos e não as convidam para jogar.”
Falando isto, ela se aproximou ainda mais e disse:
“- Eu sei pelo que você vai passar. Sei dos seus medos, e sei dos desafios que lhe esperam. E
quando você estiver na mais negra das situações, quando tudo mais parecer perdido, eu quero que você se
lembre de mim. Neste momento, a minha luz vai salvá-lo.”
Ela falou isso e me beijou levemente. Não entendi muito bem o porquê, mas nem pensei em
reclamar. Dormi tranqüilo todo o resto da noite, sonhando com as doces e sábias palavras de Gabrielle.

CAPÍTULO X
O ROMPIMENTO DO GRUPO DE JOGO

A apenas algumas centenas de metros da casa de Lauren, morada da linda Gabrielle, ficava a
margem do grande e fedorento rio que cruzava a cidade. Partimos bem cedo, logo após o café da manhã, e
levamos alguns pedaços de um delicioso bolo de chocolate que uma prima de Leônidas fez. A própria
Gabrielle nos deu alguns presentes baratos e inúteis que estavam ocupando lugar na sua casa, e que a nós,
como colecionadores de RPG, eram muito interessantes: uma cópia de Rifts, uma cópia de Werewolf: the
Wild West, seu antigo Desafio dos Bandeirantes, e uma caixa com o jurássico Dragon Quest. Eu fiquei com o
melhor de todos os presentes: uma fita gravada pela própria Gabrielle com as melhores músicas do Blind
Guardian, para ouvir no meu Walkman quando a situação ficasse desesperadora.
Foi sem nenhum esforço que nosso grupo cruzou as duas quadras que separavam a casa de
Lauren do rio. Chegando lá, Dadolargo tirou a mochila, sentou-se na grama e disse:
“- Aqui estamos, pessoal. Vamos esquecer tudo de ruim que passou e que ainda vai ocorrer e
procurar arejar a cabeça, como sugeriu Gabrielle. Temos que nos concentrar em cumprir a tarefa que a nós
foi destinada. Seguindo o curso deste rio, chegaremos ao bairro negro onde está a Devir.”

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Percebi que Leônidas, com seus ouvidos aguçados e bem treinados que apenas um fã de Blind
Guardian possui, estava inquieto. Sem dúvida, ouvia alguma coisa ao nosso redor, algo muito suave para ser
notado por jogadores normais.
Ao olhar para trás de uma árvore próxima, no entanto, eu mesmo vi um ser que acabava de se
esconder atrás dela. Pude notar que era deformado, apenas uma sombra de ser humano, e andava encurvado e
sorrateiramente como um rato... sua pele era branca e nojenta, seus olhos eram fundos, e ele se vestia apenas
com trapos.
Corri para Dadolargo e falei:
“- Dadolargo, há alguém nos seguindo!”
“- Eu sei, está nos seguindo desde que deixamos a casa de Mestre Helton. É o Mallum, um ser
vil e nojento. Seu nome é Mallum, pois é uma mala-sem-alça: sua chatice é lendária em todos os grupos de
jogo da Terra. Ele é do tipo que liga para a sua casa às três da madrugada para perguntar detalhes irrelevantes
sobre regras ou uma cena que você narrou, acordando assim a sua família toda com o barulho do telefone.
Sua pele é branca assim pois não sai de casa, ficando recluso ao seu quarto planejando insistentemente
aventuras e rolando milhares de PCs e NPCs, só para se divertir. Seu corpo é assim deformado pois passa
dezoito horas por dia sentado, debruçado sobre suas anotações. Seus braços não são simétricos pois ele fica o
dia inteiro rolando dados com a mão direita, e com ela também faz coisas inomináveis que eu não ousaria
dizer aqui. Pois são estas as únicas coisas que sabe fazer: não trabalha, pois não sabe que há um mundo lá
fora, não estuda, pois acha que decorar as regras de um livro de RPG é o suficiente para viver uma vida feliz,
não se alimenta, a não ser pelos eventuais insetos desafortunados que voam para dentro de sua boca aberta
quando dorme, e se veste apenas com trapos pois não tem vida social, o que o faz não ligar para a aparência e
não ter amor próprio. Pois ele ama e odeia o Um Sistema, assim como ama e odeia a si mesmo.”
“- O Um Sistema? O que tem ele a ver com o Um Sistema?”
“- Foi há algum tempo, quando Mallum ainda era chamado de Smélecol pelos seus amigos.
Quando seu antigo mestre achou o Um Sistema na loja do Gordog, Smélecol estava lá também. Pois os dois
viram o livro ao mesmo tempo, e como só havia um na prateleira, ficaram com um impasse, sem saber quem
o levaria para casa. Smélecol, ardilosamente, propôs que resolvessem o impasse por meio de um jogo de
Magic, pois estava com um baralho pronto no bolso cheio de cartas apeladas. Mas seu antigo mestre foi mais
astuto, e utilizou aquele velho combo de queimar pontos de vida para aumentar o dano da bola de fogo.
Assim, ele venceu o Mallum, e levou para casa aquele livro, sem saber que se tratava do Um Sistema. Após
isso, Mallum enlouqueceu: Leônidas e seus companheiros tiveram muito trabalho tentando manter Smélecol
afastado do RPG, mas ele por fim abandonou o colégio e o emprego de novo para se dedicar ao vício.”
“- É uma história triste”, eu disse. “- E não sei se odeio o Mallum ou sinto pena dele.”
“- Vamos esquecê-lo por hora. Logo vai escurecer, vamos catar por aí umas folhas de jornal e
gravetos para que possamos fazer uma fogueira dentro deste tonel e nos aquecer.”
Seguindo a orientação de Dadolargo, fui coletar alguns papéis para providenciar o fogo. Como
estávamos perto de um semáforo, isto não foi difícil, pois o meio-fio estava cheio daqueles anúncios de
ofertas de supermercado que os panfleteiros distribuem às turras para os motoristas.
Percebi que Ademir estava por perto. Ele me olhou com surpresa, como se tivesse me
encontrado por acaso, e disse:
“- Oi! Você vem sempre aqui?”
“- Afaste-se, Ademir. Eu sei o que você quer.”
“- Eu? Ah, eu! É mesmo, é mesmo... bem, será que você poderia me dar uma emprestadinha
neste livro aí?”
“- Prefiro emprestar a minha irmã a você do que este livro”, disse eu. “- Ou você não ouviu
todos os avisos de Helton?”
“- Ah, que mal pode haver em mestrar só uma aventurazinha? Vamos, sente aí, vamos jogar só
uma aventurazinha, nem que seja solo, por favor!”
“- Saia!”, gritei eu. “- Afaste-se de mim!”
“- Ora, seu moleque! Me dê este livro!”
Ademir avançou para cima de mim, e eu esquivei de sua agarrada. Ele tropeçou, caiu no chão e
começou a chorar:
“- Meu Deus! Onde eu estava com a cabeça! O que eu fiz! Me desculpe, me desculpe!”
No entanto, já estava longe dali. Segurei forte o livro, e quando fiz isso, quase cambaleei, pois
vi, na minha frente, o símbolo da TSR, enorme, e atrás dele, apenas a escuridão e a falta de criatividade.
Apavorei-me, guardei o livro na mochila, e corri de volta para o lugar onde estávamos reunidos.
Chegando lá, peguei minhas coisas. Estava decidido a partir sozinho, pois não desejava que
meus amigos corressem riscos por minha causa. Dadolargo, apesar de certamente não concordar, me
entenderia. As coisas estavam fugindo do controle, e se eu continuasse por ali, o incidente com Ademir com
certeza se repetiria, com o Poder do Sistema corrompendo um após o outro.
Estava prestes a partir só, quando Samuel me viu e gritou:
“- Mestre! Mestre! O senhor não pode abandonar assim o pobre Samuel! Eu jurei que iria
acompanhá-lo, ou meu nome não é Samuel! Além do quê, tenho que negociar com o senhor aquelas
desvantagens do meu personagem...”

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“- Ok, ok, Samuel! Vamos juntos! É claro que eu deveria ir com você! Nós somos uma dupla
perfeita! Afinal de contas, você é o meu melhor amigo!”
Nos abraçamos como irmãos, e seguimos o curso do grande rio, em direção à Editora Negra,
com a certeza que, embora tivéssemos pouca ou nenhuma chance na missão, de nossa perseverança e
coragem dependia a liberdade do mundo RPGista.

Aqui termina A SOCIEDADE DO SISTEMA, a primeira parte de O SENHOR DOS SISTEMAS.


A próxima parte da história se chama AS DUAS EDITORAS, pois trata da luta da Sociedade do Sistema,
agora desfeita, contra a editora de Tramatanc, na planície de Vendecard, a fortaleza de Cassaruman, e a
torre escura de Devir, no bairro negro da Editora da Perdição

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Segunda parte de
O Senhor dos Sistemas

Três Sistemas para a Steve Jackson Games sob este céu,


Sete para a White Wolf, em seus corredores rochosos,
Nove para as editoras alternativas, fadadas à eterna falência,
Um para a TSR em seu escuro trono
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.
Um Sistema para a todos governar, Um Sistema para encontrá-los
Um Sistema para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.

17
CAPÍTULO I
A PARTIDA DE ADEMIR

Dadolargo percebeu que Alfredo, o Portador do Sistema, estava demorando muito para colher
os gravetos e papéis. Quando percebeu que Ademir também estava sumido, ficou preocupado, e dividiu o
restante da Sociedade em grupos, para que pudessem procurar os dois. Temia que Ademir tivesse sido
seduzido pelo Sistema, e que estivesse jogando alguma aventura-solo com Alfredo.
“- Leônidas, Guilherme, me sigam! Mário, Pepe, fiquem aqui e vejam se eles voltam!”
Mário e Pepe sentaram no chão, enquanto os outros saíam correndo. Começaram a comentar
sobre a má qualidade das matérias da principal revista nacional de RPG, para matar o tempo. Logo depois,
deixaram de ser redundantes e partiram para assuntos menos óbvios.
Estavam tão entretidos na sua conversa que nem perceberam a aproximação dos seres
desprezíveis que os espreitavam. Dezenas de moleques, trajados estranhamente em roupas coloridas, e
falando termos incompreensíveis os espiavam por entre os arbustos da praça onde estavam.
De repente, eles atacaram. Pularam os arbustos bradando algum tipo de grito-de-guerra japonês
e partiram para cima dos dois jogadores desprevenidos. Ademir, que voltava do incidente com Alfredo,
desolado e arrependido, presenciou a cena, e correu para ajudá-los. No entanto, eram muitos e o cercaram,
impedindo que ele auxiliasse os dois pequenos jogadores.
Não muito longe dali, Dadolargo e os outros ouviam os gritos de Mário e Pepe, e as batidas da
mochila de Ademir contra a cabeça aparentemente oca dos misteriosos seres. Voltaram correndo, e não
demoraram para encontrarem as desprezíveis hordas.
Dadolargo, como de costume, abria caminho com a mochila, que passava entre as fileiras
inimigas como uma faca quente na manteiga. Guilherme usava o seu pesado GURPS Vehicles e Leônidas
arremessava dados nos vilões mais rapidamente do que o olho humano acompanharia.
Logo, tinham vencido uma grande quantidade de inimigos, e os que não tinham sido derrotados
fugiam. Encontraram Ademir deitado, babando uma espécie de espuma branca.
“- Eles... eles levaram os pequenos, Dadolargo. Eu não pude evitar. Eu falhei.”
“- Procure não fazer esforço, Ademir. Quem eram eles?”
“- Eles eram os Otaku-hai, seres hediondos. Cassaruman, O Manco, utilizando de muito mal
gosto, misturou RPGistas com fãs de anime e mangá. Eles são uma raça bárbara e têm hábitos detestáveis,
como jogar 3D&T, comprar Tormenta e Holy Avanger, e batizam quase todos os seus personagens com os
nomes de Vegeta, Kurama ou Goku, não importando qual o cenário.”
“- E o que fizeram com você? Onde está Alfredo?”
“- Começaram a cantar trilhas sonoras de animes, como a abertura de Sailor Moon e de Dragon
Ball. Eu procurei resistir, mas alguém cantou a versão nacional da abertura de Cavaleiros do Zodíaco, e isto
foi um golpe forte demais para mim. Acho que meu cérebro derreteu, não sinto mais o meu corpo... E quanto
a Alfredo, eu tentei pegar o Um Sistema dele... ele fugiu de nós, e vai sozinho à Devir. Eu lamento,
Dadolargo, tudo acabou... Eu teria jogado com você, meu amigo... meu mestre!”
Dizendo isso, ele entrou em coma, devido à crueldade sem paralelos dos Otaku-hai.
“- Então, tudo acaba aqui. A Sociedade foi um fracasso.”, Guilherme falou.
“- Não enquanto continuarmos fiéis uns aos outros. E eu não pretendo abandonar Mário e Pepe
nas mãos daqueles fãs de anime. Vamos caçar alguns Otakus.”
Guilherme mal pôde esconder a sua satisfação.

CAPÍTULO II
BARBÂNDERSON

Mário e Pepe foram levados pelos Otaku-hai, as criaturas dementes e perigosas de Cassaruman,
O Manco. Do dialeto terrível dos Otakus, eles podiam entender pouco, já que insistiam em colocar termos em
japonês, de seu vocabulário restrito, no meio da conversação em português, criando assim uma espécie de
“Japoguês”.
“- Atashi vou jogar hoje Tóquio No Defensores, anata quer jogar também?”
“- Hai, domo arigatô. Logo depois que entregarmos estes jogadores para o senmpai
Cassaruman-kun.”
Mário e Pepe tentaram tapar os ouvidos, mas suas mãos estavam firmemente amarradas. Logo
alguém começou a cantar a música de encerramento de Yuyu Hakushô atrás deles.
“- Oh, não, Pepe! Estão apelando para a turtura!”
“- Seres cruéis e desprezíveis, espero que Dadolargo venha dar uma lição neles!”
No entanto, o barulho e a desordem dos Otaku-hais atraíram uma ajuda inesperada.

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Logo que eles passavam em frente a um centro de convenções, uma enorme tropa de pessoas,
vestindo os uniformes da Federação dos Planetas, de Star Trek, outros ainda trajados como Jedis de Star
Wars, saíam enfurecidos, segurando cadeiras, sabres de luz feitos de papel celofane e outros apetrechos.
Os Otaku-hai procuraram resistir, mas foram rechaçados pelos estranhos seres. Mário e Pepe
foram postos no chão e desamarrados. A maior e aparentemente mais velha criatura se aproximou deles e
disse:
“- Olá, amiguinhos! Estão bem, estas pestes machucaram vocês?”
“- Um pouco”, disse Pepe, “meus ouvidos vão doer por umas boas semanas. Mas quem, ou o
quê, é você?”
“- Eu sou Barbânderson, o líder dos Nerds. Este é meu amigo, Nerdesperto. O nome dele é esse
pois decorou todas as falas de todos os filmes de Star Wars. E vocês, quem são?”
“- Somos Mário e Pepe, dois jogadores de RPG.”
“- Jogadores de RPG!! Nós temos muito em comum! Venham, desfrute da nossa
hospitalidade!”
Logo, Mário e Pepe estavam no interior do centro de convenções, assistindo a episódios de
séries antigas e tomando o refresco dos Nerds.
“- Não é bom como cerveja romulana, amiguinhos, mas é muito gostoso. Agora digam, por que
estavam sendo levados por aqueles animais?”
“- Bem, pelo que pude entender, foi ordem de Cassaruman, um editor muito poderoso. Eles nos
confundiram com meu primo, Alfredo, e nos levaram!”
“- Cassaruman! Eu sabia que ele tinha a ver alguma coisa a ver com isso! Já faz algum tempo
que estes malditos Otakus invadem nossos sagrados centros de convenções, organizando encontros com
horríveis números de karaokê e concursos de Cosplay ridículos! Além disso, temos contas antigas a acertar
com Cassaruman, pois há algum tempo, a revista fedorenta dele publicou adaptações ridículas de Star Wars e
Star Trek para vários sistemas, e isso nos deixou enfurecidos! Próton e Nêutron, eles vão nos pagar!”
Barbânderson chamou Nerdesperto e disse:
“- Reúna todos os Nerds, Nerdesperto, vamos fazer um Nerdebate. E traga mais comida e
bebida para os meus amiguinhos aqui, Próton e Nêutron!”
Assim, Mário e Pepe foram muito bem tratados pelos Nerds, que fizeram o seu Nerdebate em
um círculo de cadeiras por ali. Nerdesperto ficou com os dois.
“- Nerdesperto, por que não conseguimos ouvir nada do que eles dizem? Que língua é essa?”
“- Nós, Nerds, falamos em Klingon quando estamos a sós. Mas eu posso traduzir para vocês:
nós estamos planejando marchar até a editora de Tramatanc, local de trabalho de Cassaruman, e colocar o
prédio abaixo, isso sim!”
“- Nós temos que ver isso! É o sonho de qualquer RPGista!”, exclamaram Mário e Pepe.
“- Claro, amiguinhos, claro! Barbânderson e eu vamos levar vocês!”
Apesar das notícias alegres, Mário e Pepe notaram que todos os Nerds, por mais simpáticos
que fossem, apresentavam claros sinais de tristeza. Mário perguntou:
“- É impressão minha, Nerdesperto, ou vocês estão tristes? É ruim ser Nerd?”
“- Não, amigos, não, muito pelo contrário! Ser Nerd é muito bom! Nós nos divertimos muito,
do nosso jeito, e não prejudicamos ninguém! Mas o mais divertido é que nós, Nerds, como somos
inteligentes, passamos em vestibulares para universidades boas, conseguimos bons empregos, ganhamos
bastante dinheiro, e podemos depois rir da cara dos valentões que batiam na gente na época do colégio,
quando os encontramos, tristes e pobres, e burros como sempre!”
“- Isso é maravilhoso, Nerdesperto! Por que a tristeza, então?”
“- Por sermos feios e esquisitos demais, nós não temos Nerdesposas. É muito trsite, pois
gostaríamos de ter a casa repleta de Nerdinhos, jogando videogame e lendo quadrinhos, mas faltam as
Nerdesposas.”
“- Entendemos”, disse Pepe. “Passamos por situação parecida.”
Logo, Barbânderson e os outros Nerds se levantaram e disseram:
“- Vamos, amiguinhos! Decidimos no Nerdebate que vamos acabar com Tramatanc! Não
vamos deixar pedra sobre pedra, isso sim, Próton e Nêutron!”
Assim, todos marcharam para a planície de Vendecard, onde estava a editora de Tramatanc,
com Mário e Pepe sendo levados por Barbânderson para testemunhar a destruição do local de trabalho de
Cassaruman, O Manco.

CAPÍTULO III
O REI DO CONDOMÍNIO DOURADO

Dadolargo, Guilherme e Leônidas correram por vários quarteirões atrás de Mário, Pepe e dos
terríveis Otaku-hai. Os incansáveis heróis passaram por parques, praças e avenidas, e estavam quase
perdendo as esperanças quando Dadolargo achou um objeto no chão:

19
“- Vejam, é um chaveiro do Pikachu! Os Otaku-hai passaram por aqui!”
“- Vamos acelerar, então! Quero ver o sangue daqueles desgraçados!”, disse Guilherme.
“- Calma, amigos, calma! Mário e Pepe estão bem, no domínio dos Nerds!”, disse uma voz
poderosa em resposta.
Os três amigos se viraram, e viram, em meio a uma profusão de raios de luz, uma figura
vestida totalmente de branco, se aproximando em uma bela bicicleta. Era Rodolfo, o do Moletom Cinzento,
que havia perecido no viaduto, na luta contra o Gordog, e que agora retornava milagrosamente são e salvo,
como que renascido das cinzas.
“- Eu volto para vocês agora, amigos... para que mudemos a maré dos acontecimentos.”
“- Rodolfo! Achamos que você havia morrido! Como você sobreviveu?”, perguntou Leônidas,
ao mesmo tempo feliz e confuso.
“- Eu tive muita sorte, companheiros. Quando eu caí do viaduto com o Gordog, um caminhão
de lixo passava na avenida, bem abaixo de nós. Caímos, eu e aquele ser gordo e fétido, nos detritos, e ali
continuamos nossa luta, até que o caminhão chegou ao depósito de lixo municipal. Uma vez lá, os lixeiros
me avistaram e me socorreram. Aquele gordo horrível, no entanto, não teve a mesma sorte: como é
praticamente impossível diferenciar o Gordog da imundície, seja na aparência como no cheiro, acho que ele
vai ficar lá por um bom tempo.”
“- E esta roupa branca? Nunca vi você em outra roupa que não aquele moletom cinzento
surrado!”, estranhou Guilherme.
“- Ora, que pergunta! Passei em casa antes, tomei um bom banho e peguei um moletom da
minha irmã emprestado. Não achavam que eu viria para cá fedendo, não? Mesmo assim, temos trabalho a
fazer: não podemos perder tempo com Mário e Pepe, acreditem em mim, eles estão bem, sob os cuidados dos
Nerds, exatamente como eu disse. Vamos ao condomínio ao lado da minha casa, onde pretendo pedir auxílio
e proteção a um grande amigo meu, Teodoro. Aliás, esta bicicleta é dele, a Scaloifax, e eu pretendo pedir
desculpas por ter usado ela sem avisá-lo.”
Assim, rumaram para o condomínio de Ramos, perto da casa de Rodolfo, agora O Branco, e
morada de Teodoro. Ao chegarem lá, o encontraram reunido com seus amigos, mas tiveram uma decepção,
pois esperavam ser bem-recebidos na sua morada:
“- Rodolfo, seu desgraçado!”, gritava Teodoro, “Você roubou a minha bicicleta! Bem que o
meu novo melhor amigo disse para não confiar em você!”
“- Calma, Teodoro, eu só peguei emprestada! Era um momento de grande urgência, e eu posso
explicar!”
“- Cale-se, seu enganador! Sempre que você vem aqui é para trazer a desgraça, foi o que meu
novo melhor amigo disse, e ele deve estar certo! Suma daqui!”
“- Acalme-se, Teodoro! Eu só vim trazer notícias da grande guerra que se aproxima e prepará-
lo!”
“- Não preciso de ninguém, a não ser do meu novo melhor amigo! E ele disse que, quando você
viesse, era para mandar você embora!”
Rodolfo, o Branco, irritou-se com esta história de “novo melhor amigo” e perguntou:
“- Que sandice é essa, Teodoro, de “novo melhor amigo” que faz você abandonar os antigos
companheiros?”
“- Vocês vão ver, ele vai chegar a qualquer minuto! Ele é sábio e inteligente, e é um escritor de
RPGs muito bons e originais, e quando ele fala, um monte de gente respeita! Olhem, lá vem ele!”
Rodolfo olhou para a figura que passava pela porta e confirmou as suas suspeitas:
“- Debbio Língua-de-Cópia! É você, então, verme! Vejo que Cassaruman não ficou satisfeito
em tentar me aprisionar em Tramatanc, agora ele manda seus carrapatos para envenenar meus amigos!”
Teodoro ficou irritado, e disse:
“- Veja como você fala com ele, Rodolfo! Ele entende muito mais de RPG do que qualquer um
aqui no Brasil!”
Rodolfo então abriu vários exemplares de livros da White Wolf que estavam esquecidos na
prateleira de Teodoro, e pôs todos na mesa, virados para ele:
“- Veja, amigo Teodoro! Aqui está a originalidade de seu amigo! Ele plagiou impiedosamente
estes livros quando escreveu os ‘maravilhosos e originais’ Arkanum e Trevas! E Tormenta, aquele lixo, é
apenas uma desculpa para ganhar dinheiro em cima dos fãs de mangá e anime! Invasão, então, é um complô
montado para socar os personagens imbecis dele e de Cassaruman, inclua aí metalianas peitudas, goela
abaixo dos jogadores nacionais! Este é o seu ‘novo melhor amigo’, Teodoro, caso você não o conheça!”
Debbio Língua-de-Cópia se retorcia de ódio e medo, enquanto Teodoro verificava com seus
próprios olhos a fraude do cruel plagiador:
“- Debbio, Língua-de-Cópia! Você procurou me enganar, copiador e embaixador de
Cassaruman, assim como vem enganando todo o mercado RPGístico nacional! E o mais grave, tentou me
jogar contra meu amigo Rodolfo, que eu, cego por suas palavras, destratei em minha própria casa! Pois eu o
expulso, Língua-de-Cópia! Volte rastejando para a editora de Cassaruman, e volte a lamber seus pés, verme!
E não apareça mais por aqui, se não quiser levar uma surra!”

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Língua-de-Cópia, com uma expressão de desdém, pegou seus livros, colocou-os embaixo do
braço, e voltou para Tramatanc, para nunca mais retornar. Teodoro voltou-se para Rodolfo, agradecido, e
disse:
“- Rodolfo, meu amigo, me desculpe! Mil perdões! Agora que o veneno de Debbio se foi, vejo
que a situação é grave! O que devemos fazer?”
“- Reúna seus amigos, Teodoro, todos do condomínio! Vamos destruir Tramatanc!”
Assim, uma tropa de dezenas de ciclistas, incluindo Rodolfo, Teodoro, Dadolargo e Leônidas,
levando na carona Guilherme, partiram em direção a Tramatanc, entoando canções de guerra.

CAPÍTULO IV
A ESTRADA PARA VENDECARD

Os Ciclistas do condomínio de Ramos pedalavam velozmente rumo à editora de Tramatanc, e


junto a eles, iam Dadolargo, com uma bela bicicleta preta emprestada, e Rodolfo, com a Scaloifax (a qual
Teodoro lhe deu em sua profunda gratidão por livrá-lo do veneno de Debbio Língua-de-Cópia). Um pouco
mais atrás, Leônidas levava Guilherme na carona de uma bela e altiva Mountain Bike, pois os amigos de
Teodoro não tinham tantas bicicletas sobrando para emprestar. No grupo da frente, também pedalava Élber,
melhor amigo de Teodoro e capitão do time de futebol do condomínio. A irmã de Élber, Evelyn, uma garota
não exatamente bela, de óculos e cabelos castanhos, mas por quem era impossível não se apaixonar, ia atrás
de todos, pois era muito tímida.
Guilherme e Leônidas, agora grandes amigos, conversavam sobre as maravilhas que veriam
depois que a guerra acabasse. Guilherme, principalmente, falava entusiasmado:
“- Leônidas, você é um cara mesmo legal, afinal de contas! E eu que o julgava mal por ser um
fã de Blind Guardian! Quando acabar a guerra, isto é, se ela tiver fim algum dia, eu o levarei para jogar no
meu grupo, e você verá as maravilhas das quais somos capazes! Sabemos trabalhar um personagem com
habilidade nunca vista, e transformamos uma ficha de personagem bruta em uma riquíssima coleção de
intrincados combos e desproporcionais modificadores! Pode haver maravilha maior do que esta, amigo?”
“- Ah, meu grande amigo, nós não damos muito valor à matemática como vocês... gostamos de
coisas muito mais belas, como uma boa interpretação, uma cena bem-narrada, coerência com o conceito do
personagem... Vou levá-lo também ao meu grupo, mostrar a você como nós somos bons nisso!”
“- Besteira! De que vale a interpretação se você não tem potencial de dano suficiente para
matar o Godzilla com um golpe só?! Eu acho isso de coerência uma grande besteira, também! O legal é
morte, pancadaria e combo!”
“- Não vamos brigar por causa disso, amigo. Nossos grupos são inimigos desde a primeira era
(nota do tradutor: “primeira era” era o modo como os povos se referiam aos tempos da primeira edição de
D&D) justamente por causa disto! Vamos selar nossa amizade do jeito que combinamos: primeiro, eu jogo
uma campanha no seu grupo, depois, você joga uma no meu!”
“- Tem razão! Está combinado então!”
Mal Guilherme havia dito isto, que Élber e Dadolargo os interromperam:
“- Silêncio! Há algo sinistro acontecendo!”
Virando a esquina, um grupo de criaturas terríveis, conhecidas em todo o país por sua
ganância, crueldade e ignorância discutia rudemente. Estavam trajados com ternos pretos em pleno verão,
mas a ausência de maquiagem indicava que não eram jogadores de live action interpretando Ventrues. Eles
falavam, em sua língua estranha e grosseira, algo completamente odioso e sem lógica:
“- Hehehe, mal posso esperar! Se conseguirmos proibir o RPG, vamos ficar famosos no país
inteiro! Já pensou? Podemos nos eleger facilmente depois vereadores ou deputados! Os humanos, imbecis
como sempre, e achando que fizemos um grande bem à família e aos bons costumes, nos encheriam de
votos!”
“- É você tem razão! Só os votos da comunidade evangélica já nos faria vencedores! Imagine
só o nosso slogan: ‘Vote em quem defende a juventude. Vote em quem luta contra as drogas, a violência e o
RPG!’ O único perigo é se o povo descobre que o RPG é, na verdade, algo perfeitamente sadio e
intelectualmente enriquecedor!”
“- VERDADE? Quem se interessa pela verdade?!? O povo engole qualquer coisa que passa na
televisão, e isso já é o suficiente para os leigos temerem o RPG como o Diabo teme a cruz! A verdade não
me interessa! O que me interessa é a fama e o prestígio!”
“- Mas já estamos indo longe demais! Não podemos ir contra pesquisas científicas que
comprovam a inocência dos jogos de RPG!”
“- Compraremos nossas próprias pesquisas, e proibiremos as outras. Dinheiro não vai ser o
problema, há muitas igrejas que nos financiariam. Ou você quer ser anônimo como nossos colegas justos?
Vamos ser ambiciosos, fazer coisas polêmicas, mesmo que injustas, ganhar destaque na mídia, e o mais
importante: muito dinheiro!”
Um ódio mortal percorreu todos os ciclistas, que conheciam bem aquela raça. Dadolargo disse:

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“- São Procuradorcs! São uma minoria de membros do Ministério Público transformados pela
ganância e pela vaidade! Eles sabem perfeitamente o que é RPG, pois são criaturas inteligentes e pesquisam
sobre vários assuntos, mas colocam a ganância e a vontade de ser famosos em primeiro plano, não se
importando nem um pouco com a verdade e a justiça! Não podemos deixá-los impunes!”
Assim, todos aceleraram ao máximo, investindo em carga contra os Procuradorcs. As bicicletas
passaram rasantes, danificando as pastas e lançando poeira nos ternos e sapatos dos horríveis seres.
Desequilibrado, um deles caiu sentado no chão:
“- Malditos! Vou proibir as bicicletas! Vou proibir os jovens! Vou proibir... o chão!”
“- Acho que não vai dar”, respondeu o outro. “Ao contrário do RPG, todos sabem o que é
jovem, bicicleta e chão. Assim, infelizmente, não vamos poder mentir sobre isto.”
“- Droga, você tem razão... vamos tentar proibir o paddle ou a trigonometria, então.”
Ao longe, os parcialmente satisfeitos, mas ainda muito furiosos ciclistas já viam o edifício
negro da Tramatanc. Embora um tanto quanto... mudado.

CAPÍTULO V
A VOZ DE CASSARUMAN

Os heróis chegaram no edifício de Tramatanc ao entardecer. No entanto, ao contrário do que


esperavam, não encontraram a resistência dos Otaku-Hai: Barbânderson, Nerdesperto e o resto dos Nerds já
haviam os derrotado. O que se via, no entanto, era um quadro desolador: o prédio estava parcialmente
destruído, as portas arrombadas, os vidros apedrejados, a máquina de café virada, papéis por todas as partes,
e milhares, ou centenas de milhares de exemplares da principal revista de RPG do país sendo incendiados no
pátio do prédio.
Esta cena encheu de lágrimas os olhos dos Ciclistas de Ramos, mas não eram lágrimas de
tristeza: eram lágrimas da mais pura alegria, pois o sonho de gerações de RPGistas virava realidade na frente
de seus olhos. Sem perder tempo, desmontaram de suas bicicletas e passaram a ajudar os Nerds a queimar os
exemplares restantes, pois poucos prazeres na vida se comparam ao proporcionado pela destruição daquelas
revistas.
Rodolfo caminhava à frente de seus amigos, e avançava em direção a Barbânderson:
“- Salve, Barbânderson! Vejo que seus amigos nos pouparam do trabalho de pôr este lugar
abaixo! Pois que magnífico trabalho vocês fizeram aqui!”
“- Vida Longa e Próspera, Rodolfo, velho amigo! Nós também temos contas a acertar com
Cassaruman! Eu e meu povo não esquecemos tão facilmente as agressões que sofremos dele! Pois veja que
bela fogueira: aí estão os exemplares da sua revista fedorenta que iriam às bancas neste mês!”
Rodolfo abriu a revista e deu uma olhada no índice:
“- ‘Bambuluá’ para 3D&T, D20 e Storyteller... mais um conto com metalianos... uma história
em quadrinhos com o Capitão Ninja... Meu amigo Barbânderson, fico feliz que você tenha destruído isto! Seu
corajoso ato vai impedir que milhares de RPGistas percam neurônios este mês lendo isso! Mas onde está
escondido aquele rato do Cassaruman?”
“- Ele está trancado na sala da diretoria com seu ajudante, Debbio Língua-de-Cópia, que
chegou há pouco. Já tentamos invadir, mas aquela porta é muito firme. Não conseguimos nem arranhá-la!”
Neste momento, Cassaruman apareceu na janela, e começou a falar com uma voz calma e
poderosa:
“- Calma, amigos, Nerds ou RPGistas! Não façam isto com a minha humilde editora!”
Todos pararam, como que hipnotizados. O vilão continuou:
“- Não tenho culpa nenhuma, seja do que for que vocês me acusam! Tudo o que eu faço é levar
minha vidinha tranqüila, escrevendo minha revista em quadrinhos, sem fazer nenhum mal!”
A voz possante e tranqüila de Cassaruman semeava a dúvida no coração de todos. Logo, tanto
os Nerds quanto os RPGistas começavam a se perguntar se deviam mesmo estar tão irados com um ser tão
insignificante, humilde e digno de pena, que agora parecia inocente. Foi neste momento que Rodolfo, dando
um passo à frente, rompeu o feitiço do vilão:
“- Cale-se, traidor miserável! Seus atos testemunham contra estas palavras traiçoeiras que você
vomita agora sobre nós! Você diz que não fez nada? Pois bem! Como você explica aquela adaptação de Star
Wars para AD&D, que a sua revista fedorenta e pegajosa publicou tempos atrás? Darth Vader era um
Gnomo! GNOMO! E você vai negar que escreveu um conto onde misturava Metalianos com Star Trek, ou
não? Não tem respeito por nada!”
Quando Rodolfo disse isso, os Nerds enlouqueceram em fúria, e começaram a providenciar um
aríete para derrubar a porta. Mas Rodolfo, o Branco, continuou:
“- Não vou continuar a enumerar as matérias de mau gosto sua revista, Cassaruman, pois não
desejo passar os próximos vinte anos gritando aqui em baixo! Mas não é só isso, seu facínora! Não bastasse
você criar personagens deprimentes, ainda quer socá-los goela abaixo de todos nós! Ou vai negar, por acaso,
que já tentou lançar revistas em quadrinhos horríveis com o Capitão Ninja e o resto de suas detestáveis

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criações? E o pior: como elas não fazem sucesso, são canceladas, pois nem a sua mãe compraria uma revista
escrita por você, mesmo mediante tortura! Mas você, insistente como sempre, aguarda alguns meses e lança
de novo outras revistas com outro título e com os mesmos personagens!”
Cassaruman ouvia tudo impaciente. Mas Rodolfo ainda o enfrentava:
“- Não queria tocar neste assunto, Cassaruman, mas a hora de lavar roupa suja é esta: por que
diabos todas as personagens que você cria têm pelo menos dez quilos só de seios? Será que, inseguro com a
qualidade de suas histórias, você quer lucrar também em cima de adolescentes idiotas que passam oito horas
por dia trancados no banheiro?”
Cassaruman procurava manter a calma, sob os olhares das centenas de pessoas lá embaixo.
Mas Rodolfo ainda guardava um último golpe:
“- E quanto à Camarilla Brasil, vilão? Quando ela acabou, ninguém viu a cor do...”
“- Pare! Pare! PARE! Eu me rendo, mas pare!”, urrava, ensandecido, Cassaruman, agora
acuado. “Se você parar, Rodolfo, eu juro que nunca mais escrevo nada! Nem eu, nem Língua-de-Cópia, mas
por favor, pare!”
Dadolargo se aproximou e disse a Rodolfo:
“- Já chega, amigo! Este vilão agora vai passar um bom tempo sem nos incomodar. Tramatanc
caiu, e não resta mais nada para Cassaruman se apoiar. Vamos partir, pois agora devemos auxiliar nossos
pequenos amigos em sua Demanda. Vamos para Minhas Tias.”
“- Você está certo, amigo. Você deve nos liderar nesta guerra agora, Dadolargo, pois é a você
que o inimigo teme. Ele teme o que você pode se tornar. Vamos partir e deixar os Nerds vigiando Tramatanc
para que nenhum mal ocorra mais vindo destes dois.”
Assim, todos montaram em suas bicicletas, e partiam para a casa das tias de Dadolargo. Os
Nerds acenavam em despedida, e Mário e Pepe, agora indo com os ciclistas, davam adeus a Barbânderson.
Longe dali, Alfredo e Samuel observavam o entardecer, antes de enfrentarem o maior desafio
de suas vidas.

CAPÍTULO VI
SMÉLECOL DOMADO

Longe dali, há algum tempo atrás...


Samuel e eu corríamos para escapar da batalha contra os Otaku-hai, e assim abandonar a
Sociedade de vez, poupando-os do destino terrível que nos aguardava no Bairro Negro da Devir. Havíamos
apenas cruzado a passarela sobre o rio, e falei:
“- Estou feliz que tenha vindo comigo, Samuel. Não sei se conseguiria ter forças para fazer isto
sozinho... é muito bom mesmo ter você comigo. Só espero que os outros não compartilhem do nosso
destino...”
“- Dadolargo vai conduzi-los em segurança, Mestre Alfredo. E eu acho que nossa viagem não
está assim condenada... sabe, nós podemos conseguir.”
“- Eu não sou tão otimista quanto você, Samuel... sinto o Sistema ficar cada dia mais pesado, à
medida que nos aproximamos da Devir. Não sei se terei forças para chegar até o final.”
“- Nós conseguiremos, nem que eu tenha que carregar o senhor! E, aliás, sinto uma sensação
estranha, como se estivéssemos sendo observados...”
Mal Samuel acabou de pronunciar estas palavras, que uma figura magra, mal-vestida, com os
cabelos desgrenhados, os dentes amarelados e muito fedorenta pulou de trás de um arbusto sobre mim. Com
certeza, era o Mallum, o ser mesquinho que meu antigo mestre há tempos derrotou em um duelo de Magic.
Ele agarrou meu pescoço, e gritava, com sua voz nojenta e sibilante:
“- Ladrõezzzzinhosss miseráveisssss! Roubaram o meu Precioso! Devolvam, sssssim,
devolvam a Smélecol agora, ladrõessss!”
Samuel pegou, em sua mochila, o pão que havíamos comprado na véspera, antes de cruzar o
parque. Posicionou-se atrás do Mallum e desferiu um violento golpe, que só não matou o vilão por pura sorte.
O Mallum gemeu, no chão, contorcendo-se como uma cobra. Rastejando até meus pés, como
um cão arrependido, ele começou a soluçar:
“- Smélecol bonzzzinho, ssssim, bonzzzzinho, não quis machucar jogadorezinhossssss!
Perdoem o pobre Smélecol! Perdoem! Smélecol sssabe o caminho do lugar onde jogadorezzzzzinhoss
querem ir, sssim, sssabe, e pode mosstrar!”
Samuel aproximou-se:
“- Mestre Alfredo, não devemos confiar neste nojento. Ele vai nos trair na primeira
oportunidade. Temos uma missão importante para cumprir, e ele só vai nos atrapalhar!”
Olhei para o miserável ser, no chão, esfarrapado, magro, sujo, e não pude evitar sentir uma
enorme pena. Afinal de contas, o Mallum já foi um dia como nós, e eu senti uma grande compaixão por ele.
“- Eu... eu acho que ele pode ir conosco, Samuel. Mas isso se ele prometer se comportar!”

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“- SSSSIM! Smélecol bonzzzinho! Smélecol bonzzzinho! Smélecól bonzinho, vai se
comportar, ssim, e vai ajudar Messssstre Bonzzzinho!”
Neste momento, Samuel lançou-me um olhar de reprovação. Eu procurei amenizar a tensão:
“- Estive pensando... O caminho para a Devir é longo, e podemos fazer algo para nos divertir
no caminho. Vamos fazer alguns personagens, e eu mestro uma aventurazinha até lá. Trouxe alguns dados
comigo. O que acham?”
“- SSSSSSSSIMMMM! SSSSSSSIIM! Smélecol gosta de aventurassss! Smélecól vai fazzzer
um Bárbaro, com Força, Destreza e Constituição 18, e Inteligência, Sabedoria e Carisma 3!”
“- Ei, fedegoso, que diabo de personagem é este? Uma minhoca é mais inteligente que esta
porcaria! E com este carisma, ele tem que fazer Fear Check só para olhar no espelho!”
“- SSShhhhh, cale a boca, e deixe o Messsstre Bonzzinho dizzzzer o que acha!”
Sabendo que não ia conseguir nada melhor do Mallum, concordei e passei a Samuel. Ele
começou a descrever o seu personagem, singelo como de costume:
“- Bem, primeiro, vou falar para o fedegoso aqui: não adianta nada fazer personagem apelado.
Isso só estraga o jogo e acaba com a diversão. Mas eis o meu personagem, Mestre Alfredo – e não me
entenda mal, ele não é “apelado”, apenas tem um “background rico”: Ele é um meio-dragão psiônico Mago-
Guerreiro-Clérigo-Bardo, também é avatar de Mystra e foi criado desde pequeno pelos elfos, e treinado
pelos melhores mestres do mundo em todas as artes. Com quinze anos ele encontrou a mão e o olho de
Vecna, e os têm até hoje. Seus atributos são todos 20, exceto pela força, que é 22, mas, ao contrário do
personagem deste apelão fedorento aí, são perfeitamente justificáveis em background, como o senhor viu!
Outros detalhes sobre este singelo personagem: ele salvou o mundo com 15 anos, e desde então todos os reis
do mundo têm uma grande dívida com ele, e prometeram dar tudo o que ele quiser se pedir. O antigo
professor de magia dele morreu e lhe deixou um grimório completo, com todas as magias conhecidas do
mundo, e o mesmo aconteceu com todos os mestres dele: o professor de combate lhe deixou uma espada,
armadura e escudo mágicos +5, o de artes lhe deixou...”
“Chega, Samuel, já entendi... é igual ao seu último personagem. E ao penúltimo. Pois está bem,
vamos começar...”
Samuel olhou para o Mallum com um ar de desprezo e falou baixinho: “- Hmpf, apelão.”
Mallum me interrompeu:
“- Esssspere, essspere, não comprei os talentossss!”
“- Sem talentos, Smélecol. Segunda edição.”
“- NÃAAAAAAAAAO! Terceira! Terceira! Messsstre bonzinho, faça na terceira!”
“- Bem... nós.... eu acho melhor fazer na Segunda, tá bom? Temos nossos motivos...”
Smélecol se retorceu de novo, resmungando algo. Por fim, depois de alguma insistência, ele
concordou. Eu comecei, então:
“- Tudo bem, vocês estão em uma taverna.”
“- Eu mato o taverneiro! XP! XP!”, gritou Mallum.
“- Eu vou procurar um velhinho barbudo com um mapa na mão na mesa do canto da taverna!”,
falou mais alto ainda Samuel.
Assim, caminhávamos em direção ao nosso destino. E o caminho parecia, agora, mais longo do
que nunca.

CAPÍTULO VII
O PORTÃO DA DEVIR ESTÁ FECHADO

Chegamos, por volta das seis horas da tarde do dia seguinte, à frente de um prédio alto, negro e
ameaçador. Mallum se retorcia de medo, guinchando como um porco assustado:
“- Aqui! Aqui é o prédio da Devir, sssim, jogadorezesss bonzinhosss! Mas Smélecol,
pobrezinho, não vai entrar, não messssmo, não vai!”
“- Ora, é claro que vai. Não podemos deixar um traidor fedido como você à solta por aí. Você
com certeza iria nos delatar na primeira oportunidade”, falou Samuel.
“- Parem com isso, vocês dois”, disse eu. “Qual é o seu problema com a Devir, Smélecol?”
“- Ah, Smélecol, pobre Smélecol, foi torturado por gente da Devir! Smélecol até hoje não pode
dormir direito com a lembrança, pobrezinho...”
Samuel gritou então com Mallum: “- Eu não acredito em você, Fedegoso! Mostre as marcas da
tortura, se está falando a verdade!”
A deplorável criatura então retirou de sua pasta as enormes erratas dos livros publicados pela
devir, e isso nos deixou muito impressionados. Mas Smélecol ainda guardava outras terríveis marcas do
passado:
“- Vejam isto, messstre bonzinho e jogador malvado! Comparem esssstes desenhos!”

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Ele nos mostrou, então, o original em inglês do GURPS Supers, e a versão nacional. Um ódio
imenso tomou conta de Samuel quando ele viu os rabiscos amadores e sem sentido que foram colocado no
lugar da arte original.
“- Tem maisss, Smélecol tem maissss! Vejam issssto!”
O ser então nos mostrou a versão nacional de Lobisomem: O Apocalipse, e a versão original.
Eu me aproximei e pude perceber os óbvios, bárbaros e incontestáveis erros de tradução. “The other were-
creaturss also know how to side-step” virou “as outras criaturas-lobo também sabiam andar de lado”, “Rage”
fora traduzido para “Alcance”, entre outras macabras traduções que reviraram nosso estômago. Smélecol
choramingava: “Sílvio Gonçalvezzzzzz malvado, malvado, tortura Smélecol bonzzzinho...”
“- Chega, Smélecol, já é prova suficiente. Ver isto com certeza foi uma horrível tortura. Mas
não podemos ficar aqui conversando o dia todo: temos uma missão a cumprir.”
Começamos a caminhar na direção do prédio. No entanto, sentimos que alguma coisa estava
errada: havia um tumulto lá dentro, e uma aglomeração de pessoas podia ser vista aos empurrões e
cotoveladas. Samuel me agarrou pela camisa e me puxou para trás de um carro, para nos manter escondidos.
Eu não pude entender muito bem o que estava acontecendo, mas então percebi uma coisa terrível: pintado no
carro, estava o símbolo da Rede Globo.
“- Droga, a imprensa! Com certeza, devem estar fazendo algumas entrevistas com o pessoal da
Devir sobre o que é RPG! Não podemos ser vistos!”, disse Samuel.
“- Jogador malvado tem razzzzão”, guinchou Mallum. “Reporterezinhosss malvadoss vão
queimar o filme de jogadorezinhosss bonzinhossss, sssim, filmezinho bonzinho vai ficar queimadinho, pobre
filme...”
“- O fedido tem razão. A imprensa sempre queima o filme dos jogadores de RPG, fazendo-os
parecer idiotas e colocando-os em situações constrangedoras. Vamos ter que deixar para outro dia...”
“- Não mesmo, Samuel. Não podemos deixar para depois, já que o tempo é curto. Vamos
procurar outra entrada.”
“- Não existe outra entrada, mestre Alfredo! Vamos ficar aqui e esperar eles saírem... “
“- Smélecol bonzzzinho, Smélecol conhece outra entrada, sssim, conhece! Ele pode levar
messstre bonzinho e jogador malvado para lá, sssim, pode! Smélecol bonzzzziho!”
Samuel me olhou desconfiado. Eu então perguntei:
“- Que entrada é esta, Smélecol?”.
“- Fica na outra rua, messstre bonzzzinho, e é por onde caminhõzinhosss saem cheios de
livrinhossss, ssim, livrinhossss bonzinhossss!”
Samuel balançou a cabeça, em um sinal de desaprovação. Considerei por um momento a
situação, e por fim decidi.
“- Vamos pela outra entrada que Smélecol conhece.”
Mallum mal pôde esconder um sorriso sinistro, que me assustou muito. Mesmo assim,
pegamos nossas coisas e partimos dali, sem saber que estávamos indo em direção ao mais horrível confronto
de nossas vidas.

CAPÍTULO VIII
DE FANDANGOS E PÃO COM MORTADELA COZIDA

Meia quadra depois, minhas pernas não paravam de tremer. O esforço estava sendo muito
maior do que eu imaginava quando, na casa de Helton, me ofereci voluntariamente para a missão. O Um
Sistema pesava cada vez mais na minha mochila, pesava como se eu estivesse levando ao mesmo tempo o
GURPS Vehicles e o GURPS Compendium II de Guilherme. Não agüentando mais o peso, o cansaço e a
fome, sentei na calçada.
Samuel e Smélecol andavam à frente, mas pararam quando perceberam que eu não estava mais
em condições. Samuel voltou e me ofereceu a mão:
“- Mestre Alfredo, levante-se! Estamos perto demais da Devir, não podemos parar agora!”
“- Eu não posso mais continuar, Samuel. Estou exausto. Deixe-me descansar um pouco, comer
alguma coisa... por favor.”
“- Hmm, tudo bem. Já estava morrendo de fome, mesmo. Vamos abrir aqueles salgadinhos que
compramos.”
Smélecol estava se comportando de maneira estranha. Parecia muito ansioso, agitado, como se
soubesse de algo a mais do que nós. Samuel, pela primeira vez demonstrando alguma bondade para o pobre
coitado, ofereceu um saco de Fandangos para o esquelético ser:
“- Come um pouco aí, ô fedorento. Se você não comer nada, vai acabar ficando mais magro do
que já é, se é que isso é possível.”
“- Desssssculpe, jogador bonzzzinho, mas Smélecol, pobre Smélecol coitadinho, ele não come
salgadinhosss, salgadinhos malvadossss. Mãezinha de Smélecol não deixa.”

25
Samuel jogou pare ele, então, um pão com mortadela que carregava no bolso já havia algumas
semanas.
“- Deixe de frescura, ô coisa ruim. Come um pouco de pão com mortadela então, que tá
novinho.”
“- Smélecol, coitadinho, Smélecol bonzzzinho, não come mortadela. Mortadelazzzinha
malvada, deixa Smélecol bonzzzzinho doente.”
“- Faça um favor para nós e morra de fome, que ninguém vai se importar.”
Com isso, Mallum lançou um olhar de desdém para Samuel e veio falar ao meu ouvido:
“- Messstre bonzzzinho, Smélecól conhece um barzzzzinho aqui perto, barzzzzinho
bonzzzinho, com comida gostozzzzzinha. Smélecol, pobre Smélecol, vai comer algo lá e já volta.”
“- Tudo bem”, disse eu. “Mas não demore muito, já vamos partir de novo.”
“- Smélecol rapidinho, não demora.”
Tendo dito isso, ele saiu em disparada, a toda velocidade. Samuel me olhou com curiosidade e
perguntou:
“- Mestre Alfredo, o que aquela peste foi fazer? Tirar o pai da forca?”
“- Ele só foi comprar uma coisa para comer em um barzinho aqui perto. Falou que já volta”.
“- Não ficarei nem um pouco triste se ele não voltar nunca mais”, resmungou Samuel para si
mesmo.
E foi justamente isso que aconteceu. Acabando nosso lanche, guardamos nossos apetrechos e
esperamos ali por uma, duas, três horas, sem absolutamente nenhum sinal de vida da criatura.
“- Ele está aprontando alguma, mestre. Deve estar nos traindo do pior jeito possível”, disse
Samuel, assustado.
“- Não seja tão pessimista, Samuel. Se ele quisesse nos entregar, já o teria feito há muito
tempo. Além disso, temos algo que ele deseja, embora não saiba qual o nosso plano.”
“- Tem razão. Mas por quanto tempo mais vamos esperar?”
“- Não podemos mais esperá-lo. Vamos seguir viagem e torcer para encontrá-lo no caminho, o
coitado deve ter se perdido.”
Assim nos levantamos, colocamos nossas mochilas e seguimos em direção à outra entrada da
qual Mallum falou. Mas, a cada passo que dávamos, caímos mais e mais fundo na armadilha terrível
preparada para nós pelo vilão Smélecol.

CAPÍTULO IX
A TOCA DA LUNÁTICA

Para chegar na entrada secundária da gráfica da Devir, onde se encontravam as Prensas da


Perdição, deveríamos passar por um beco próximo à sua entrada principal e dar a volta na quadra, isso se
seguíssemos o atalho indicado por Mallum, que desaparecera completa e misteriosamente.
Entramos um pouco desconfiados no beco escuro e estreito. Avançamos uns dez metros, já
podendo ver claramente o outro lado, mas uma sensação horrível percorria nossas espinhas, como se olhos
malignos e repulsivos estivessem nos espionando na escuridão. Neste momento saltou sobre nós o ser mais
nojento, vil e aterrorizante jamais imaginado pelo homem. Um ser que parecia saído do pior dos pesadelos. A
Lunática.
Ela era uma menina horrenda, e sua feiúra beirava a deformidade: era gorda, como se nunca
tivesse feito uma atividade física na vida, a celulite de suas pernas inchadas tremia a cada passo que dava,
seus olhos apontavam um para cada lado, sua bocarra horrenda se abria para nós, com todos aqueles dentes
amarelos e assimétricos fora de alinhamento, seus cabelos, que mais se assemelhavam a uma espécie de
palha, exalavam o fedor de eras de maus cuidados, e seus braços cabeludos se estendiam na nossa direção.
Não tínhamos idéia de como a Lunática nos achou naquele momento e de quais eram suas
intenções, mas depois de um instante tudo ficou claro para nós: Mallum, o traidor, certamente deu a desculpa
de ter ido comer alguma coisa quando na verdade foi até a casa da Lunática, que era sua amiga. Todo o
atalho pelo qual ele nos conduziu era na verdade uma mera desculpa para que nos aproximássemos da casa
do monstro. O que não sabíamos era que Mallum, querendo se livrar a todo custo de nós e se apoderar do Um
Sistema, mentiu para a nefasta criatura, dizendo que eu tinha me interessado muito por ela após ver sua foto,
e que planejava pedi-la em namoro. Como isto nunca aconteceu na vida da Lunática, ela colocou sua melhor
roupa, um short e uma blusinha que ela considerava provocantes mas que funcionavam apenas para revelar
suas hediondas formas, e foi me esperar no beco, local onde Mallum disse a ela que eu ia me declarar.
Pois foi exatamente isso que aconteceu: Lunática pulou sobre mim, apaixonada, babando
horrivelmente enquanto procurava me beijar, e falando:
“- Meu amor! Finalmente você veio! Agora minha vida está completa! Estou feliz que você
tenha vindo, meu amor, meu amor!!”

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Fiquei paralisado de horror, e não sabia o que fazer. A Lunática agora me arrastava para sua
casa, e o medo impedia que eu oferecesse alguma resistência. Samuel também estava tomado pelo medo, só
de ver a horrível cena. A baba da monstruosa menina, pegajosa e quente, escorria pelo meu rosto.
Neste momento, ela começou a cantar de felicidade. No entanto, o que ela cantava não podia
ser chamado de música: eram apenas canções dos Backstreet Boys, Britney Spears e N’Sync, pois o monstro
possuía além de tudo o mais nefasto gosto musical. A situação ficava mais e mais negra, mais e mais
desesperadora.
Tomado por um transe, conformado com um fim pior do que a morte, simplesmente desisti de
lutar, esperando apenas que meus sentidos fossem embora e que tudo acabasse. Mas Samuel, meu
companheiro, meu melhor amigo, não havia perdido ainda as esperanças, e gritava algo para mim.
“- Mestre Alfredo! A fi...”, eu não podia ouvir direito devido às músicas de amor que a terrível
criatura vomitava nos meus ouvidos. “- A ...ta de Gabri.. A Fita de Gabrielle!! Use-a!!”
Sim! A fita de Gabrielle! “Quando você estiver na mais negra das situações, quando tudo mais
parecer perdido, eu quero que você se lembre de mim. Neste momento, a minha luz vai salvá-lo”, disse a
Senhora da Luz! Foi por isso que ela me deu a fita, para que fosse usada nesta hora! Foi por isso que ela me
beijou!
Coloquei a fita no Walkman e comecei a reproduzi-la, com o volume no máximo. A música do
Blind Guardian provocou uma onda de terror na Lunática, que me soltou imediatamente:
“- Não! Música boa! Música boa não, eu não posso agüentar! Eu gosto de Britney Spears, de
N’Sync, de Sandy e Júnior! Meus ouvidos doem com essa música!”
“- Afaste-se, monstro!”, disse eu. “Não vou permitir que a sua boca imunda toque onde os
lábios da Senhora da Luz tocaram! Não vou permitir que a doçura deixada por Gabrielle seja apagada pelo
seu fedor! Suma daqui!”
O monstro correu, mostrando toda aquela banha e celulite subindo e descendo como um ioiô.
Samuel me ajudou a levantar, e limpou o meu rosto da baba da Lunática.
“- Vamos, Mestre Alfredo! Vamos sair deste lugar, aquele bicho horrível ainda pode voltar!
Vamos atravessar o beco agora!”
“- Você estava certo, Samuel, desde o início! Smélecol nos traiu! Foi ele que nos atraiu para
cá! Vamos!”
“- Vamos, mestre! Agora, mais do que nunca, eu quero torcer o pescoço daquela peste
miserável, ou meu nome não é Samuel!”
Corremos até o outro lado do beco, alcançando a rua onde ficava a entrada auxiliar da Devir.
Samuel correu à frente, e foi pego de surpresa. Mallum, o enganador, armara uma emboscada e agarrou seu
pescoço por trás, apertando com toda a força.
Samuel lutou para se libertar, mas sem sucesso. Procurou tirar da mochila o pão com o qual
quase rompeu a cabeça do vilão no primeiro encontro, mas Smélecol foi mais rápido e o chutou para longe.
Quase sem respiração, Samuel fez a única coisa que estava a seu alcance: deu um pulo para trás e prensou
Mallum entre seu corpo e um poste.
Mallum sentiu a batida contra o poste e soltou o pescoço de Samuel. Foi o bastante para que
ele deixasse deslizar pelo ombro uma alça da mochila, segurando-a com uma só mão, e, em uma rápida
virada, acertasse com toda a potência a cabeça de Smélecol com sua mochila cheia de livros.
Mallum foi jogado a uns cinco metros dali, pois Samuel costumava sempre carregar todos os
livros que possuía, na esperança de que uma regra obscura neles contida pudesse ajudá-lo nas sessões. O
vilão saiu correndo, amedrontado. Samuel então se virou para ver se eu estava bem.
Neste momento, ele apenas pode ver que a Lunática, me apertando com toda a força com seu
corpo disforme, me arrastava para dentro da porta da sua casa. Ela falava, enquanto fechava a porta:
“- Eu sei que você está envergonhado, meu querido Alfredinho! Não é todo dia que você
encontra o amor de sua vida, além do mais alguém tão linda quanto eu!”
Samuel correu, mas a porta se fechou. Ele sabia que nada do que fizesse adiantaria. Seu mestre
estava perdido para sempre. Ele estava sozinho agora.
Mas, no chão, o Um Sistema o olhava, como se zombasse do infortúnio dos dois
companheiros. “Pegue-me”, parecia dizer o Livro na sua mente, “Mestre-me!”
Samuel então, pegou em suas mãos o Um Sistema, a Ruína dos Jogadores.

CAPÍTULO X
AS ESCOLHAS DO MESTRE SAMUEL

Samuel estava sentado em um degrau ali perto. Mal podia acreditar no que havia acontecido.
Alfredo, seu melhor amigo, seu companheiro inseparável, o único tolerante o suficiente para deixar com que
ele jogasse utilizando os personagens mais apelados, estava perdido, perdido para sempre. Samuel
resmungava consigo mesmo:

27
“- Eu falhei. Eu sou fraco, sempre me disseram isso. A segurança do Mestre Alfredo dependia
de mim, e eu joguei tudo por água abaixo. Sou um imbecil, um lerdo, um imprestável, isto é o que eu sou.”
A memória de Alfredo sendo levado pela Lunática ainda aterrorizava o coração de Samuel:
“- Ele está perdido para sempre. Agora ele está namorando, e não vai ter tempo de jogar mais.
Isso sempre acontece. Todos os jogadores que eu conheci que arranjaram namoradas sempre paravam de
jogar algum tempo depois, seja porque passam a dedicar muito menos tempo ao RPG, ou porque suas
namoradas ficam enchendo o saco para que eles parem de fazer estas coisas de Nerd. Coitado do meu
mestre.”
No chão, bem à sua frente, estava jogado o Um Sistema. O Livro do Poder parecia deliciar-se
com todo o sofrimento que desfilava à sua volta. Samuel quase podia ouvi-lo na sua mente:
“- Desista, jogadorzinho. Seu sistema não é mais o mais vendido, Eu domino o mercado agora.
Junte-se a todos os outros: abandone seu sistema e Me jogue. Me mestre. O que é GURPS? O que é
Storyteller? O que é Daemon, Opera, ou Call of Cthulhu? São fracassos. Logo eles vão desaparecer, e só Eu
vou existir. Eu sou o padrão. É inútil resistir a Mim. Venha e se una a Mim, e faça da Wizards of the Coast a
única empresa de RPG do mundo, a Senhora de todas as mesas de jogo.”
Samuel se irritou. Levantou-se e gritou para o livro:
“- É tudo culpa sua! Se você não tivesse sido escrito, se você não tivesse sido criado, tudo
estaria como sempre foi! Eu estaria jogando feliz, Mestre Alfredo estaria mestrando suas aventuras, Rodolfo
estaria vivo, e todos estariam bem! Se não fosse por você, desgraçado, várias editoras menores não teriam
falido, por falta de condições de concorrer com a Wizards of the Coast! Se não fosse por você, ainda existiria
variedade nas lojas, e poderíamos encontrar vários novos lançamentos de todos os sistemas, e não só este
maldito d20! Pois quer saber? Eu vou acabar com você! Eu mesmo, Samuel, vou entrar naquela maldita
editora e vou acabar com você! Em nome do meu Mestre Alfredo, eu vou lutar com quem quer que seja até
que você e aquela editora estejam destruídos! Eu juro, ou o meu nome não é Samuel!”
Samuel colocou o Livro dentro de sua mochila, fechou o zíper e a colocou nas costas. O
Sistema pesava, como se resistisse ser levado, mas Samuel não se importava. O pequeno jogador caminhava
com passos firmes e sozinho em direção à gráfica da Devir, pouco se importando com o que iria acontecer a
si mesmo, e com um único pensamento na sua mente: destruir o Um Sistema.

Aqui termina AS DUAS EDITORAS, a segunda parte de O SENHOR DOS SISTEMAS. A


terceira e última parte, O RETORNO DO MESTRE, trata da conclusão da Guerra do Sistema, da resistência
dos jogadores à sombra criativa e dos eventos relativos ao retorno do Mestre.

28
Terceira parte de
O Senhor dos Sistemas

Três Sistemas para a Steve Jackson Games sob este céu,


Sete para a White Wolf, em seus corredores rochosos,
Nove para as editoras alternativas, fadadas à eterna falência,
Um para a TSR em seu escuro trono
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.
Um Sistema para a todos governar, Um Sistema para encontrá-los
Um Sistema para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra da Wizards of the Coast onde a Grana se acumula.

29
CAPÍTULO I
MINHAS TIAS

Dadolargo parava a bicicleta:


“- É aqui. Chegamos em Minhas Tias.”
“- Meu querido sobrinho! Há quanto tempo!”
Dadolargo abraçou uma de suas tias, que o esperavam na porta. Depois de alguns beliscões na
bochecha, que faziam parte do protocolo da morada do monarca, ele ordenou que fossem servidas bebidas
para todos ali presentes (pouco mais de 120 pessoas) e começou a tradicional arrecadação de fundos para a
encomenda das pizzas, que tinha raízes nas mais antigas reuniões de jogadores do continente, ainda na
primeira era.
Sua outra tia, mãe de Ademir, perguntou, aflita:
“- Dinho, você não viu o Demirzinho por aí? Ele falou que ia lá no Heltinho brincar de RPG
com vocês, mas não telefonou desde ontem de noite!”
Dadolargo se irritou com a matriarca:
“- Tia, nós somos adultos! Esqueça os ‘zinhos’, pode nos tratar pelo próprio nome. E não é
‘brincar’ de RPG, é ‘jogar’ RPG.”
“- Está bem, Dinho. Mas se você vir o Demirzinho por aí diz para ele ligar para casa que a
mamãe está preocupada. E a propósito: todos estes seus amiguinhos aí fora vão brincar de RPG aqui com
você hoje? Se quiser eu faço uma janta para todos vocês... tem bolo, tem refresco...”
Dadolargo, que sempre mantinha a compostura de um monarca, retirou-se do ambiente,
deixando a senhora a falar sozinha. Dirigindo-se aos Ciclistas de Ramos, falou:
“- Bem vindos a Minhas Tias, Ciclistas. Como vocês podem notar, ficamos daqui a menos de
meio quilômetro do portão principal da Devir. Logo, é daqui que basearemos nossa ofensiva. É uma casa
murada, como vocês podem ver: há um muro de três metros de altura nos protegendo dos invasores, e mesmo
que o escalem, uma cerca eletrificada cuidará deles, supondo que não esfolem as mãos nos cacos de vidro do
muro. Mas se ainda assim, por sorte, conseguirem furar nosso bloqueio, o Dengoso e o Mimoso, os dois Pitt-
Bulls do Ademir, irão cuidar deles. Como percebem, é uma fortaleza impenetrável.”
“- Formidável, Dadolargo”, disse Teodoro. “- Mas como poderemos ajudar Alfredo e seu
escudeiro daqui?”
A resposta veio de trás deles:
“- Não podemos, Teodoro. O destino de Alfredo só pertence a ele agora.”
Quem dizia isso era o jovem Claudemir, o irmão mais novo de Ademir, que guardava uma
espantosa semelhança com ele. Estava entrando pelo portão, um pouco abatido:
“- Eu vi o que aconteceu ao meu irmão. Sei que ele está perdido. Dizem por aí que foi visto
comprando mangás e participando de sessões de anime. Boatos chegam a afirmar que ele ganhou uma
competição de cosplay em uma convenção otaku.”
“- Ele lutou bravamente contra os Otaku-hai, mas pereceu”, falou Leônidas. “- Sua bravura
como jogador, no entanto, nos acompanhará e servirá de modelo para sempre.”
“- Eu e meus amigos encontramos o tal jogador de quem vocês falam. Estava acompanhado de
um baixinho gordinho, e alguns de meus companheiros dizem ter visto uma criatura fedorenta e esguia
próxima. Quase me dirigi a ele, mas no final das contas achei melhor não o fazer: ainda se soubesse o que ele
carregava, teria o trazido para cá e ele estaria sob nossa proteção.”
“- Você não teria como saber, Claudemir”, disse Rodolfo. “Ele está por sua conta agora, como
você mesmo disse. Devemos apenas apóia-lo.”
“- Mas como faremos isso, Rodolfo?”, perguntou Teodoro. “Ele deve estar longe, dentro do
território da Editora Negra!”
“- Criaremos distrações. Faremos o Inimigo acreditar que nós estejamos tentando invadir a
Devir. Ele com certeza já sabe que Tramatanc caiu, e isso deve ter deixado toda aquela editora em alerta.
Faremos um ataque pela frente, e isso atrairá toda a atenção dele para nós. Só espero que Alfredo e Samuel
tenham usado a entrada de trás para penetrar no território da Devir.”
Rodolfo virou-se para Dadolargo:
“- A hora é esta, meu amigo. Toda a sua vida, todas as suas decisões, todas elas culminaram
neste momento. Cumpra o seu destino, Dadolargo.”
Dadolargo entendeu o que Rodolfo queria dizer. O Mestre Retornara.

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CAPÍTULO II
A BATALHA NO CAMPINHO DE FUTEBOL

Élber, o grande amigo de Teodoro, foi até a esquina comprar refrigerantes a pedido de
Dadolargo, liderando um grande grupo de ciclistas. Évelyn, sua irmã, o acompanhou, o que fez com que
Claudemir, que se apaixonou pela moça à primeira vista, fosse o natural voluntário para mostrar aos Ciclistas
de Ramos onde ficava o mercado mais próximo de sua casa.
O pequeno Mário, que era conhecido por sua inconveniência, seguiu exatamente entre os dois,
em um comportamento ao qual se referiam os antigos tomos como “segurar vela”. Ele desejava comprar
pilhas para o seu Gameboy, usado para amenizar a tensão que dominava o ambiente.
Cruzavam o campinho de futebol que separava a casa de Ademir e Claudemir do mercado mais
próximo quando Élber, sempre atento, falou:
“- Não gosto deste silêncio. Sinto um cheiro estranho... parece o cheiro do pó-de-arroz que a
minha avó usa. Alguém se aproxima, alguém muito maquiado! Cuidado!”
Neste momento dezenas de hediondos adolescentes pularam um pequeno muro de concreto,
invadindo o campinho. Eram jogadores de Magic, Pokémon e de Mage Knight, a julgar pela sujeira,
embalagens de decks rasgadas e caixinhas de miniaturas que deixavam como rastro à medida em que
avançavam.
Élber habilidosamente manobrou os ciclistas, pondo-os em formação defensiva, enquanto
Claudemir se aproximava para proteger Évelyn e Mário. Estavam cercados! À frente dos dementes jogadores,
uma figura negra, ameaçadora, terrível, era agora vista: um jogador de Live-Action, o Ventrue, um dos
mesmos que perseguiram Alfredo e que aparentemente haviam sido derrotados por Dadolargo e Audrey.
Logo, seus horripilantes companheiros apareceram. Pois agora eles estavam de volta, mais aterrorizantes,
macabros e maquiados do que nunca!
“- Diacho! Lá se foi o nosso refrigerante! Preparem-se, todos, vamos lutar! Claudemir, proteja
a retaguarda!”, gritou Élber. Com a fúria de uma tempestade, avançou para cima da multidão, e seus ciclistas
o seguiram.
O que se seguiu foi uma das mais horrendas e sangrentas batalhas que já se viram naquele
campinho desde que o time de futebol da academia de jiu-jitsu do bairro desafiou o time de Ademir. Élber
abria caminho entre os jogadores de cards, espalhando a destruição com os terríveis cascudos que aplicava
nos moleques. Claudemir, por sua vez, mostrava-se um lutador tão formidável quanto seu irmão Ademir,
ainda mais agora que a segurança de Évelyn estava em jogo.
Mas sua habilidade não foi suficiente para deter as horríveis hordas: com a rapidez de um
bando de jogadores em torno dos livros usados vendidos a baixo preço em uma convenção de RPG, os
detestáveis colecionadores de estampas e miniaturas o cercaram. Procurou resistir, mas a mão ossuda e
pegajosa do Ventrue o derrubou da bicicleta. Claudemir estava impotente, caído no solo e com a sua bicicleta
por cima do corpo.
Évelyn era a sua vítima agora. Mas a tímida moça não era completamente indefesa: com toda a
fúria que corria pelo seu sangue no momento desferiu um tapa violento no rosto do jogador de Live, um tapa
que foi ouvido naquele dia a quilômetros dali. A mão de Évelyn poderia ser vista estampada em vermelho na
face do Ventrue durante anos depois destes eventos. Contam as lendas que o mesmo jogador passou a jogar
Lobisomem depois, e que aquela marca vermelha de tapa em alto-relevo lhe dava dois pontos de Renome
como cicatriz de batalha.
Isso, desnecessário dizer, enfureceu ao máximo o Ventrue, que olhou para Évelyn com os
olhos mais aterradores já vistos pela moça. O sangue de Évelyn gelou, e ela ficou sabendo depois que ganhou
um ponto extra de interpretação de um dos diretores pela cara de assustada que fez.
As esperanças estavam indo embora. O Jogador de Vampiro esticou a sua mão ossuda em
direção a ela, que, sem forças, aguardava passiva no chão. Mas uma pequena intervenção mudou o rumo dos
acontecimentos.
Mário assoviou para o Ventrue, que se virou. Por um momento, o Jogador de Vampiro não
compreendeu nada, mas depois de alguns momentos a expressão no seu rosto passou do ódio e excitação para
o medo e o terror. Paralisado de medo, o Ventrue apenas sussurrava, e, em um rompante de desespero, gritou
alto, em uma voz rouca que parou a todos:
“- Lobisomem! Lobisomem! Fujam!”
Pois, atrás dele, Mário estava de pé, babando, com os braços esticados para cima, mãos sobre a
cabeça! Enquanto todos corriam para longe dali, Mário falava:
“- Sou um lobisomem! Vou estraçalhar vocês! Fujam, Vampiros, se não quiserem virar minha
ração!”
Os Jogadores Negros sumiram apavorados, alguns com os braços cruzados sobre o peito,
anunciando que estavam ofuscados, outros pularam sobre o muro e saíram rolando pelo terreno baldio que
ficava ao lado, todos em pânico. Pois esta foi a última vez que se ouviu falar dos Nove Jogadores de Live,
mas não por causa dos acontecimentos da Guerra do Sistema: é que o projeto By Night daquela cidade não

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foi para frente devido à fogueira de vaidades dos realizadores e a acusações mútuas e infundadas de desvio de
verbas.
Os feridos, muitos com horrendos raspões no joelho devido à queda das bicicletas, observavam
a chegada dos reforços: Dadolargo e Rodolfo vinham correndo, pois viram os sons da batalha. Todos se
aproximaram de Mário, parabenizando o pequeno jogador pela coragem e perguntando como havia pensado
naquilo:
“- Ora, não foi nada! Eu só lembrei na hora do gesto que eles usam nos Lives de Lobisomem
para indicar que estão em Crinos. Sabia que eles iam se apavorar com isso, afinal de contas, levam tudo
muito a sério!”
O pequeno jogador era conduzido como herói agora, e seus feitos foram contados em
convenções durante muito tempo. Mesmo os feridos, carregados pelos outros, viam aos poucos renascer as
esperanças enquanto voltavam para Minhas Tias. Agora era a hora de preparar-se para a etapa definitiva da
Guerra do Sistema: a marcha contra a Devir.

CAPÍTULO III
AS LOJAS DE CURA

Foi uma batalha horrível para todos. A esperança permanecia, embora frágil como um mago no
primeiro nível, no coração dos jogadores de RPG apenas devido à liderança firme de Dadolargo e aos feitos
heróicos dos bravos guerreiros na batalha que ocorrera. Muitos falavam:
“- O Mestre retornou! Eu poderia passar a minha vida inteira jogando com Dadolargo atrás do
escudo, mas acho que é tarde demais... O Inimigo é muito mais forte... nunca mais teremos liberdade...”
Outros ainda diziam:
“- Dadolargo lidera uma causa perdida... mas ele é um bravo jogador, e eu o seguirei para onde
for!”
Pois era evidente que a liberdade de todos estava seriamente ameaçada. Rumores começaram a
chegar de todos os lugares, dizendo que pequenas editoras, que nunca pensaram antes em publicar RPG,
estariam aproveitando a licença aberta do sistema D20, a terrível e sedutora armadilha arquitetada nos
escritórios escuros da Wizards of the Coast para a instituição de um monopólio que duraria a eternidade.
Foi neste ambiente sombrio, de depressão e medo, que Claudemir se aproximou de Évelyn. A
moça, ainda enfraquecida pelos acontecimentos da batalha, olhava as prateleiras da pequena lojinha de RPG
que ficava a uma quadra dali.
Évelyn notou a presença de Claudemir, mas não se virou. Com as mãos sobre o balcão, olhar
triste e voz baixa, disse:
“- Está tudo tomado. O Inimigo é muito forte... e eu não tenho mais esperanças. O que
Dadolargo pode fazer? O que nós podemos fazer?”
Claudemir tocou a sua mão, mas ela pareceu não se confortar. Ainda olhava para as prateleiras
da loja, todas ocupadas pelos livros da Editora Negra. Cinco estantes estavam abarrotadas com lançamentos
da linha D20, e não havia mais nada além disso. Claudemir a muito custo conseguiu perceber uma caixa de
papelão ao lado da entrada do banheiro, com alguns poucos livros velhos em seu interior. Uma folha de
caderno ali colada e escrita à mão dizia: “Lixo que não é D20 e não vende, em promoção. Compre um, leve
dez.”
O irmão de Ademir tomou a mão de Évelyn entre as suas e, olhando nos olhos da moça, disse:
“- Évelyn, minha linda amiga... eu não perderia as esperanças. Eu não quero acreditar que,
agora que eu te conheci, tudo vai acabar. Eu demorei anos e anos procurando alguém para amar, alguém que
tivesse os mesmos gostos que eu, e eu não quero aceitar que, agora que aconteceu, tudo vai se perder, e que
eu vou ser obrigado a deixar de jogar. Os jogadores de RPG vão perceber o plano armado contra eles, e irão
reagir!”
Neste momento, alguns moleques entraram na loja e se dirigiram ao balcão. Chamaram o
atendente e perguntaram:
“- Tem aí a nova aventura para D20, ‘Mercadores de Cuecas’?”
“- Não, chega esta semana. Mas se você quiser, ponha logo seu nome na lista de reserva, pois a
procura está grande.”
“- Tem, então, aquele livro de classe para D20, ‘Panelas e Alfinetes’, para jogar com
cozinheiros e alfaiates? A Wizards garantiu que absolutamente ninguém pode jogar sem ler este livro!”
“- Acabei de vender o último.”
“- E o ‘D20 Guide to Photocopy Tolkien Stories Changing Only the Places and Character
Names Without Paying a Single Cent for the Copy Rights’?”
“- Este é importado. Não trabalho com importados.”
“- Que droga, nada novo de D20?”
“- Tenho só os 315 outros lançamentos da semana...”
“- Que porcaria de loja! Vamos embora!”

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“- Não esqueça de pegar um dos brindes gratuitos! Tome um ‘Castle Falkenstein’, numerado e
autografado!”
“- E ocupar precioso lugar na minha casa que poderia estar sendo ocupado por um D20? No,
thanks.”
Évelyn olhou para Claudemir e perguntou:
“- O que você falava sobre esperança?”
“- Nada. Esqueça. Vamos só torcer pro Dadolargo não sofrer muito.”

CAPÍTULO IV
A ÚLTIMA ROLAGEM

O próprio Dadolargo foi abrir o portão de Minhas Tias. Para sua surpresa, cerca de duzentas
pessoas abarrotavam a rua do lado de fora, mas, desta vez, todos tinham caras amistosas.
Um dos rapazes aproximou-se, e estendeu a mão para Dadolargo. Estava vestido com uma
calça jeans e uma camiseta preta do Clã Malkaviano:
“- Saudações, Dadolargo! Não jogamos o mesmo que vocês, mas viemos para ajudar! Eu sou
jogador de Vampiro, em mesa e em Lives, e ouvi dizer que você estava tendo problemas com os nossos
companheiros mais xiitas! Pois eu venho pedir desculpa por qualquer constrangimento que aqueles idiotas
possam ter causado, e como prova disso, trago cinqüenta jogadores de Storyteller para engrossar suas fileiras!
Vamos juntos lutar contra o monopólio do mercado, pela liberdade e espaço de nossos sistemas!”
“- Pois então é mais do que bem-vindo nesta casa, companheiro e irmão!”
Todos entraram aos poucos e foram se apresentando. Além dos cinqüenta jogadores de
Storyteller, vieram quarenta jogadores do AD&D segunda edição, que recusavam a se entregar. Foram
recebidos com toda a educação e respeito pelos donos da enorme casa, como era de se esperar. Sessenta dos
outros jogadores eram oriundos dos sistemas nacionais, como Daemon e 3D&T, arrependidos por todas as
hostilidades que haviam cometido, e também ocuparam lugar ao lado das forças de resistência em posição de
igualdade.
Os jogadores restantes jogavam sistemas pequenos, raros ou caseiros, e eram de certa forma os
que mais sairiam prejudicados caso o plano do Inimigo tivesse sucesso. Dez pessoas curiosamente nunca
haviam jogado RPG, nem nunca pretendiam jogar, mas foram enviados pelo presidente do Clube de
Programadores de Linux da cidade como sinal de simpatia à causa.
O quintal de Minhas Tias estava tomado, apinhado de vibrantes jogadores que agora
rejuvenesciam a esperança e aliviavam a alma de todos. Todo e qualquer sinal de rivalidade ou inimizade
entre eles havia acabado, pois naquele momento o sonho de união entre os jogadores de RPG começava a
virar realidade para enfrentar o pesadelo da destruição, escravidão e falta de opções que estava sendo
materializado pela chegada do sistema D20.
Rodolfo reuniu todos em um grande círculo, e, junto de Dadolargo, deu o seu último discurso:
“- Amigos! Companheiros! É com grande prazer que eu observo a união de todos nós, um
prazer que seria ainda maior se o tempo fosse outro! É uma visão linda, a segunda coisa mais bela que eu já
vi na minha longa vida, atrás apenas daquele dia em que a Gabrielle foi com cosplay de Niele no Encontro
Internacional de RPG!”
Todos bradaram em aprovação. Rodolfo continuou:
“- Pois é esta uma dádiva que só pôde ser alcançada pela noção do perigo comum que nossos
grupos enfrentam! Que a nossa união seja a estrada que nos levará à vitória! É uma pena, no entanto, que isto
só tenha acontecido agora, pois pode ser muito tarde. Muito provavelmente, seremos esmagados pelas
enormes forças do mercado, que o Inimigo agora controla. Mas não lutaremos por nós, amigos! Nosso
sacrifício deve ser suficiente para distrair a Editora Negra, e garantir a segurança dos pequenos jogadores que
se encontram no seu território. Eles carregam o Um Sistema, a fonte do poder monopólico da Devir. Sua
missão está para ser cumprida, mas eles dependem de nós!”
Dadolargo completou:
“- Não posso obrigar ninguém a nos seguir, amigos. Vocês só irão se quiserem, e por sua
própria conta. Esta é a decisão da vida de vocês: lutem ou abandonem a causa. Eu irei, e quem for comigo
terá a chance única de fazer a história acontecer.”
O rapaz com a camiseta do Clã Malkaviano disse:
“- Iremos com você, Dadolargo. Esta luta não é só sua.”
“- Igualmente”, disse Élber. “Não vim até aqui para te abandonar, amigo.”
Todos os outros reafirmaram a lealdade e a amizade naquele momento. Audrey, a namorada de
Dadolargo, estacionou o carro na frente da casa, abriu o porta-malas e retirou um grande pedaço de pano
enrolado. Correu até o meio da multidão, deu um beijo no seu companheiro e entregou o que carregava para
ele:
“- Este, meu amado, será o seu estandarte daqui para a frente. Depois que vencermos esta
guerra, estaremos finalmente unidos, e esta será a bandeira que nos representará. Na verdade, é a sua faixa de

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aprovação no vestibular, que Helton mandou esfregar com sabão até ficar branquinha, e com dizeres que eu e
Gabrielle mesmo escrevemos com batom!”
Dadolargo abriu a faixa, e a ergueu com a ajuda de Rodolfo. Ali estava escrito o lema que
marcou para sempre a união de todos os grupos, mesmo após o término da Guerra do Sistema:
“EU JOGO RPG”.

CAPÍTULO V
O PORTÃO DA DEVIR SE ABRE

A marcha contra a Gráfica da Devir foi rápida. Em menos de duas horas, contando aí os
intervalos para acabar com o estoque de refrigerantes em alguns bares pelo caminho, as três centenas de
jogadores chegaram ao portão principal da Devir.
Como era de se esperar, os portões estavam fechados. O movimento daquele grande número de
pessoas começou a atrair a atenção de todos os funcionários que trabalhavam na Editora Negra, e logo todos
estavam na janela. Dadolargo perguntou então para Rodolfo:
“- E agora, Rodolfo? Alguma sugestão?”
“- Vamos fazer estes portões abrirem de alguma forma. Eu vou até o interfone”.
O maduro jogador se dirigiu até o interfone e apertou alguns dos botões. Depois de alguma
demora, uma voz veio de lá:
“- Oi, quem vocês são e o que vocês querem?”
“- Somos... aham... escritores de RPG e temos algumas idéias para aventuras de D20. Pode
abrir o portão para nós?”
“- Isso é com o Sr. Reis, e ele está de férias em Bariloche. O coitado está se esforçando muito
para conseguir gastar o dinheiro que ganha com o d20... estamos usando notas de cinqüenta reais até no
banheiro... talvez na próxima semana.”
Rodolfo voltou aborrecido:
“- Tente você, Dadolargo.”
Dadolargo foi até o interfone e apertou um dos botões. Indagado com a mesma pergunta que
fizeram a Rodolfo, o líder dos jogadores respondeu:
“- Viemos arrasar esta editora, acabar com a produção de vocês, fazer com que todos estes
livros desapareçam, atacando seus estoques com toda a fúria que estamos segurando há tempo, e vamos
também colocar estes planos de monopólio de vocês no seu devido lugar!”
A voz do outro lado respondeu:
“- Oh! Mais compradores! Por que não disseram antes! Entrem!”
Neste momento, o portão da Devir se abriu. Cada lado do portão metálico era empurrado por
um gigantesco segurança, e os heróis viram o horrendo interior da gráfica. Toneladas e mais toneladas de
livros eram encaixadas, e estas caixas eram colocadas em gigantescos caminhões que saíam freneticamente
pela porta de trás da gráfica. Milhares de funcionários trabalhavam de sol a sol para conseguir despachar a
abissal produção de livros, que mesmo em tão grandes números eram poucos para suprir a fúria consumista
dos jogadores descerebrados que aguardavam ansiosamente a chance de despejar o conteúdo de suas carteiras
nos cofres negros da Devir. O plano da Wizards of the Coast estava quase concluído.
A opressão e grandiosidade macabra daquela visão retirou a ação dos jogadores. Depois de
alguns segundos de silêncio e reflexão, Dadolargo disse a Élber:
“- Ao meu sinal, invadiremos. Prepare seus homens.”
Virando para o Malkaviano, falou:
“- Assegure a ordem da ala esquerda, amigo. É agora ou nunca.”
Ele então olhou para Rodolfo, Leônidas, Guilherme e Pepe, que estavam comandando as linhas
de frente. Rodolfo acenou em sinal de aprovação. Dadolargo deu a ordem final:
“- ATACAR! INVADAM! LUTEM POR SUA LIBERDADE!”
A multidão passou pelo portão em um turbilhão, arrastando o que estivesse no caminho. Os
seguranças e funcionários da Editora Negra voaram para cima dos invasores, lutando na maior e mais
importante batalha que o mercado nacional de RPG já viu.
Dadolargo lutava bravamente, a cada golpe de sua mochila deixando um inimigo no chão.
Guilherme fazia do seu pesadíssimo GURPS Vehicles um instrumento da fúria de sua raça. Leônidas atacava
arremessando dados entre os olhos de quem se aproximava. Mesmo Pepe, o pequeno jogador, retirou
coragem do fundo do seu coração para avançar sobre um segurança de mais de dois metros de altura.
Mas, mesmo com toda a fúria e coragem, o sucesso não podia pertencer aos jogadores. Pois foi
neste momento, neste terrível momento, que as forças sinistras que agiam na sociedade juntaram-se ao
Inimigo.
Dezenas de carros da polícia pararam na frente do portão escancarado. Suas portas abriram e de
lá saíram centenas de policiais, empunhando pistolas, rifles, e cacetetes e, na frente de todos, vinha o
Procuradorc da República, o mesmo ser terrível e insano que, egoisticamente, desejava proibir o RPG:

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“- Peguei vocês no flagrante! HAHAHAHA! Tenho tudo gravado em vídeo! Já que não pude
provar por meios científicos que o RPG estimula a violência, pois isto é uma asneira, pelo menos tenho agora
o vídeo de vocês atacando esta editora! Está tudo aqui: invasão de propriedade privada, agressão, danos à
propriedade... quando isso passar no Fantástico, quero só ver quem não vai me apoiar na cruzada de banir o
RPG do Brasil! Vou ser eleito deputado à custa de vocês! Não, vou ser eleito Presidente! Talvez até PAPA!
HAHAHAHAHAHA!”
Tudo, tudo mesmo estava perdido, além do esforço de qualquer um deles. Dadolargo resignou-
se enquanto um policial se aproximava para algemá-lo. Rodolfo olhou com pesar para os jogadores, que
agora eram postos contra a parede como marginais. A batalha encerrava ali, e os jogadores a haviam perdido.
O futuro, que antes era incerto para todos, agora desfilava terrível e negro perante todos. Um futuro vazio, de
total desespero. Mas eles não contavam com uma coisa:
Mesmo o menor dos jogadores é capaz de mudar o rumo do futuro.

CAPÍTULO VI
A EDITORA DA SOMBRA

Longe dali, algumas horas antes das sirenes da polícia serem ouvidas...
Samuel dava passos firmes, de pura raiva. O pequeno jogador agora avançava decidido em
direção à gráfica da Devir, carregando consigo o peso e a responsabilidade de destruir o Um Sistema, acabar
com o nefasto reinado da Editora Negra e se vingar, pela maneira mais terrível que conseguisse, da perda de
seu mestre e melhor amigo.
Ao dobrar uma esquina, ainda perdido nos seus pensamentos, ele se deparou com um grupo de
jovens que vinham na direção contrária, falando e rindo alto. Assustado, escondeu-se nas sombras e pôs-se a
ouvir que eles comentavam:
“- Caras, vocês viram? A Lunática arranjou um namorado! Anda por aí espalhando para todo
mundo!”
“- Quê? Duvido. Quem seria corajoso o suficiente para encarar aquele brucutu?”
“- Sei lá... mas tem louco para tudo. Talvez seja um cego, ou deficiente mental...”
“- É... parece que a Lunática finalmente desencalhou. A doida anda tão feliz, mas tão feliz, que
trancou o coitado sozinho no quarto e foi correndo avisar para as amigas... ela deve estar avisando toda a sua
turma neste momento. Sei que todos que passam perto da casa da maluca podem ouvir os gritos do cara vindo
de lá de dentro...”
Samuel teve um lampejo de esperança. Se o ser pavoroso estava fora de casa, alardeando aos
quatro ventos que arranjou um namorado, e se o seu mestre estava lá sozinho, talvez ele ainda pudesse fazer
algo para salva-lo! O pequeno jogador não perdeu tempo, e voltou em disparada para a casa da horrenda
menina.

Foi um pouco depois, com o estrondo de vidro quebrando, que eu acordei. Um pesado tijolo
atravessou a janela e caiu na minha frente, por pouco não fazendo os cacos de vidro me atingirem. Ouvia os
gritos de Samuel do lado de fora, e não tinha idéia do que ocorrera.
Enquanto o meu grande amigo me ajudava a passar pela janela, machucando as mãos nos
pedaços de vidro, eu comecei a lembrar o que aconteceu. A armadilha de Mallum, a passagem pelo beco da
Lunática, os momentos de desespero nos braços do pegajoso monstro... e os meus gritos por socorro na casa
da detestável criatura.
“- Mestre! Mestre Alfredo! Meu querido mestre! Eu achei que nunca mais veria o senhor,
mestre! Vamos, eu ajudo o senhor a caminhar!”, Samuel falava, em uma felicidade incontida.
“- Ele... ele está a salvo, Samuel? Está com você?”
“- Sim, mestre! O Samuel aqui o guardou direitinho, mestre!”
“- Ninguém colocou os olhos nele? Você permitiu que alguém jogasse ou tirasse cópias?”
“- Não mesmo, mestre! Ninguém se aproximou dele!”
“- Então me devolva.”, disse eu, mesmo sabendo que seria um peso terrível demais para ser
carregado naquelas condições.
Samuel me olhou com pena. Ele não desejava que eu me sacrificasse tanto, mas esta era minha
missão, e eu não poderia permitir que Samuel carregasse um fardo tão pesado. Se algo acontecesse com
Samuel, se ele fosse seduzido pelo Um Sistema, se desse uma olhada nas regras e quisesse jogar, eu nunca
me perdoaria. Mas, por fim, ele entregou o Sistema do Poder, mesmo que o seu desejo fosse me proteger.
Sem perder mais tempo, coloquei o livro na mochila, fechei o zíper e começamos a correr. O
tempo era curto, pois não sabíamos o que poderia estar acontecendo a nossos amigos longe dali. Viramos
duas esquinas, e, depois de meia quadra, encontramos a entrada de trás da gráfica da Devir.

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Por sorte, o portão estava aberto para a saída de dois caminhões. Nos esprememos entre o muro
e os veículos, com alguma dificuldade, devido à barriga protuberante de Samuel. Estávamos agora dentro do
território da Editora Negra.
Samuel apontou para um prédio alto, de onde estavam saindo vários carregamentos. Só poderia
ser lá o local onde se encontravam as prensas da gráfica! Corremos naquela direção, mas a pressa quase
custou nosso anonimato, pois fomos surpreendidos mais uma vez. Vindo de trás de nós, um grupo grande de
pessoas se aproximou correndo. O maior deles se aproximou de maneira bastante rude:
“- Onde vocês vão? Estão fazendo o quê, andando por aí sozinhos? Vocês deviam estar
conosco!”
Procurando disfarçar o desespero, falei nervosamente:
“- Hã... desculpe-nos... estávamos procurando vocês.”
“- Pois já era hora. Estamos atrasados, já estão nos esperando na sala da diretoria há cinco
minutos.”
Que pesadelo! Seríamos arrastados com aquele grupo de pessoas misteriosas para a própria
diretoria da Devir! A esperança ficava cada vez mais minúscula, e já estava menor do que a qualidade da
interpretação nos jogos de Vampiro da Casa de Cultura. O líder dos estranhos continuava a falar:
“- Que sorte! Quem diria que nós, representantes das várias listas de discussão sobre RPG na
Internet, seríamos chamados para dar idéias de novos lançamentos e suplementos D20 na Devir!”
“- Pois é”, continuou outro, “até pouco tempo, estávamos brigando por aí e discutindo por
qualquer coisa! Parece que finalmente vamos fazer algo produtivo!”
Samuel me olhou, com a cabeça baixa, e deixou mostrar um pequeno sorriso. Fez um sinal de
que tinha alguma coisa em mente. Apesar de geralmente não ser muito genial, começou a falar:
“- Ah, que maravilha! Vou sugerir para eles publicarem ‘Wheel of Time’. Quem gosta de
‘Wheel of Time’?”
“- Eu gosto”, disse um.
“- Eu detesto”, disse outro.
“- Só um IDIOTA não gostaria disso”, retrucou o primeiro.
“- E SÓ UM IDIOTA MAIOR AINDA GOSTARIA!”, esbravejou o segundo.
Samuel alfinetou mais uma vez:
“- É uma pena que a terceira edição de ‘Ravenloft’ seja pior do que a segunda...”
“- Cale-se!”, atacou furiosamente um dos assinantes. “Eu gosto muito dela!”
“- POIS É UM LIXO, E VOCÊ ESTÁ ME ENCHENDO!”, bradou outro.
“- ENCHENDO ESTÁ VOCÊ, E A SUA PORCARIA DE LISTA NEM DEVERIA
EXISTIR!”
“- Opa, Opa, OPA! Não fale assim da minha lista!”
“- Falo como eu quiser! Você que não fale assim da minha irmã!”
“- Eu não falei da sua irmã!”
“- Falou sim! Mentiroso, bastardo! Agora, eu te pego!”
“- Ei, esperem aí, eu acho que segundo Nietzche...”
“- Cale a sua boca, imbecil metido a filósofo! Vocês vão ver agora!”
Os líderes começaram a brigar entre si, atacando com socos, pontapés e puxões de cabelo, e em
alguns momentos todos os outros entraram na contenda de um lado ou de outro. Eventualmente, até um
terceiro lado surgiu, e logo, uns batiam nos outros, pouco importando saber em quem, como ou com qual
motivo. Em pouco tempo, o lugar havia se transformado em uma verdadeira praça de guerra, com dentes
voando, garrafas sendo quebradas e costelas partindo.
Rastejando por baixo da furiosa batalha, saímos Samuel e eu, ilesos, não sendo notados pelos
ensandecidos valentões.
“- Fabuloso, Samuel! Você iniciou uma Flame War entre eles!”
“- Hehehe, mestre, eu assino estas listas de discussão da Internet e sei que eles não conseguem
ficar muito tempo sem brigar! Poderia iniciar uma briga com qualquer motivo, pois eles são muito vaidosos e
intransigentes para dar o braço a torcer em qualquer assunto! Agora, vão ficar brigando por aí até que sejam
expulsos!”
“- Isso nos dá algum tempo. Vamos acabar logo o que viemos fazer, Samuel, pois eu não
agüento mais o peso deste livro.”
Foi com estas palavras que entramos no prédio principal da gráfica, que rugia com o barulho
do funcionamento das máquinas sinistras que lá operavam.

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CAPÍTULO VII
A PRENSA DA PERDIÇÃO

Começamos a subir, dolorosamente, os degraus da escada do prédio. Os meus pés doíam,


esfolados pelas várias quadras que caminhamos, os ouvidos inchados pelo barulho das máquinas, os ossos
triturados pelos abraços da Lunática. O ar se tornava pesado, devido ao cheiro de tinta no ar, e eu não pude
agüentar muito tempo. Caí nos degraus com um barulho seco.
“- Mestre! Mestre Alfredo! Levante, falta pouco!”, falava com dificuldade Samuel.
“- Não... não dá mais, Samuel... não consigo mais...”
“- Não viemos até aqui para nada, mestre! Eu sei como o senhor está se sentindo, mas não
podemos desistir! Eu vou carregar o senhor até lá!”
Samuel, retirando forças do fundo de sua alma, apoiou-me na parede, e, em um movimento
forte, ergueu-me em suas costas, segurando meus braços por cima dos ombros. Falando com muita
dificuldade, dizia:
“- Agüente firme, mestre Alfredo! Eu vou subir os próximos dois andares para o senhor!
Procure se segurar firme!”
E foi assim, carregando todo o meu peso, que Samuel avançou até o terceiro andar, vencendo
cada degrau com um esforço gigantesco e comovente. Chegando lá em cima, chutou a porta e me colocou no
chão. Uma passarela estava à frente de nós, e ela passava bem em cima das prensas da gráfica. As máquinas
funcionavam furiosamente lá embaixo, como uma força da natureza, vomitando centenas de livros por
segundo.
Samuel abriu o zíper da minha mochila e conduziu minha mão até o Um Sistema, o qual não
ousou tocar:
“- Vamos, mestre! Esta é a hora!”
Agarrando o livro com uma mão e me arrastando com outra, fui até a borda da plataforma e
ergui o maldito, o terrível, o nefasto livro que tanto mal havia causado.
“- Jogue, mestre Alfredo! Jogue o livro lá embaixo!”, gritava Samuel, mais alto que o barulho
das máquinas.
“- Eu acho que não, Samuel. Não sei se é isso mesmo que eu quero...”
“- O que o senhor está dizendo, mestre? Jogue isso logo e vamos para casa!”
“- Eu... eu acho que mudei de idéia. Talvez não seja tão mau assim...”
“- Mestre... pense no que o senhor está dizendo! O senhor está fora de si!”
Naquele momento, todo o mal irradiado pelo Um Sistema passava pela minha cabeça. Mas o
Sistema, percebendo que iria ser destruído, tentava a todo custo confundir minha mente. Os pensamentos se
tornavam obscuros, e eu me observava perplexo falando coisas que não queria realmente dizer, mas que
saíam espontâneas:
“- Eu... eu me decidi, Samuel. Não vou destruir este livro, ele é bem melhor que a segunda
edição.”
“- Mestre...”, chorava Samuel desolado. “Isso não está acontecendo, não posso acreditar que o
senhor foi seduzido!”
“- Vamos jogar este sistema, Samuel! Ele é bom! Eu vou fazer uma história muito original e
criativa sobre um grupo de heróis que deve destruir um perigoso artefato desejado por um necromante
poderoso nos seus planos de dominação! Vai ser legal, ninguém nunca jogou isto antes!”
Tudo parecia perdido, e mesmo eu teria me rendido àquele pensamento modista e sedutor. Mas
uma última surpresa ainda mudaria o destino do mundo RPGista.
Pela porta que entramos apareceu Smélecol, o Mallum, traidor, o porco sujo e egoísta que nos
atormentou e entregou ao sofrimento. Guinchava com sua voz irritante, atacando nossos ouvidos:
“- É meu! Meu livrinho precioso, devolvam ele agora para Smélecol, ladrõessss miseráveisss!”
O maldito saltou sobre mim, retirando-me do transe hipnótico, modista e consumista que
tomara a minha mente. Agarrei firme o Um Sistema, ao mesmo tempo em que Mallum fechou suas mãos
sobre o maldito livro. Brigávamos pela posse do Um Sistema, cada um o puxando para seu lado.
Mas neste momento, Mallum apoiou as costas no fino parapeito da passarela, ficando de costas
para a Prensa da Perdição. Chutou forte a minha canela, o que me fez soltar, para sempre, o Um Sistema.
Com o peso do seu corpo e a força que fazia, Smélecol girou sobre o parapeito, voando para
trás com o Um Sistema firme entre os seus braços. Gritava, com uma alegria insana:
“- É meu! Meu precioooooooooooooooooooooo...”
Assim Mallum caiu sobre a prensa. Não ousamos ver o que aconteceu lá embaixo, mas
pudemos ter uma idéia: com um barulho horrível, o metal parecia entortar, as esteiras saíam de linha, as
correias arrebentavam. Os eixos giratórios, com uma pressão titânica, trancavam uns aos outros, e os dentes
das engrenagens quebravam.
“- Senhor... mestre! O senhor esta bem?”, perguntou Samuel, ajoelhado ao meu lado.
“- Sim... sim, Samuel. Desculpe, desculpe por ter sido tão fraco no final...”
“- Esqueça isso, mestre Alfredo. Conseguimos. Cumprimos nossa missão.”

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“- Mas este lugar todo vai pelos ares. As máquinas lá embaixo... logo tudo isso vai virar um
inferno. Desculpe, Samuel, me desculpe por fazer você passar por isso.”
“- Eu não poderia deixar o senhor passar por isso sozinho, senhor. E não vou abandonar o
senhor nunca. Tenho que negociar aquelas desvantagens do meu personagem antes...”
Neste momento, toneladas de papel voaram sobre nós. Olhei para Samuel e abracei-o,
momentos antes de tudo se tornar branco e silencioso ao nosso redor.

CAPÍTULO VIII
A CAMINHO DA MINHA CASA

Acordei em um luxuoso quarto. Dadolargo estava ao meu lado, e fez uma grande reverência.
“- Bom dia, herói. Bem-vindo a Minhas Tias.”
“- Suas Tias? Como viemos parar aqui? Onde está Samuel? O que aconteceu?”
“- Calma, pequeno Alfredo. Tudo a seu tempo. Samuel está no quarto ao lado, está bem e
acordado, e não parou até agora de falar de você e de seu feito. Mas eu acho que o resto pode ser melhor
respondido por outra pessoa...”
Neste momento, Rodolfo entrou no quarto. Fiquei surpreso, pois achava que ele tinha virado
asfalto naquele viaduto, e chorei de felicidade ao revê-lo.
“- Hehehe, calma, Alfredo, pequeno jogador, grande herói! Você conseguiu, mudou o destino
do mundo RPGístico e nos salvou a um só tempo!”
“- Mas como isto aconteceu, Rodolfo? Conte tudo!”
“- Bem, Alfredo, é uma longa história. Estávamos sendo presos por aquele maldito politiqueiro
que queria proibir o RPG e sua laia, quando, momentos antes de sermos algemados, ouvimos um enorme
estrondo vindo das prensas principais da gráfica. Pensei logo em você, e todos nós, jogadores, policiais e
funcionários da Devir, corremos para o prédio onde você estava.”
“- Realmente”, continuou Dadolargo, “tudo aquilo estava um inferno. Os policiais acharam o
Smélecol desmaiado no meio das ferragens, e teria morrido se tivesse mais azar. Como sua cabeça é muito
grande e dura, trancou as máquinas e causou aquele estardalhaço todo.”
“- Eu mesmo retirei vocês dois debaixo de todo aquele papel”, completou Rodolfo. “Mas a
sorte estava mesmo do nosso lado: uma briga insana estava ocorrendo do lado de fora do prédio, com alguns
conhecidos assinantes das principais listas de discussão de RPG da Internet atacando uns aos outros por
algum motivo que eu desconheço. O que importa é que um deles agarrou a câmera do corrompido
procuradorc para usar como arma na briga. Acertou com toda a força a cabeça de um colega, o que
arrebentou câmera e fita, acabando com toda e qualquer imagem que pudesse ser maliciosamente usada
contra os RPGistas!”
“- Que bom, Rodolfo... mas e o império da Devir? E a Sombra Criativa?”
“- Bem, o estrago que vocês fizeram causou um pequeno incêndio na gráfica. Evacuamos todo
o prédio, inclusive retirando o Mallum, enquanto o fogo lentamente consumia todo o estoque de D20 deles.”
“- E esta pesadíssima multa que eles tomaram pela demonstração de falta de segurança na
gráfica, por permitir que pessoas possam cair assim nas máquinas”, dizia Dadolargo, “vai garantir que eles
não comprem máquinas novas por muito tempo.”
“- Sim”, finalizou Rodolfo, “e eles terão que recomeçar seu império do zero, com as máquinas
novas e os únicos originais que sobraram: os suplementos educativos do Mini-GURPS.”
“- Mas isso quer dizer que eles podem ainda voltar a publicar o... o Um Sistema, certo?”
“- Bem... não. Quando foi noticiado que o sistema D20 parou de ser vendido no Brasil, os
jogadores modistas deixaram de jogar este sistema maldito. Eles não queriam mais perder seu tempo com um
sistema que não é o mais vendido do mercado... sabe como são as vítimas da moda. Aqui no Brasil, ele se foi
para sempre.”
Foi assim, com estas notícias maravilhosas, que iniciamos uma nova era. Uma grande festa foi
anunciada para a tarde, onde eu e Samuel fomos homenageados por todos os presentes, incluindo Helton e
Gabrielle, que vieram de longe.
Na festa, foi anunciado o noivado de Dadolargo com Audrey. Claudemir e Évelyn também
anunciaram publicamente o namoro, aproveitando o clima de felicidade e alegria no ar. Cada vez que eu
olhava para Gabrielle, a belíssima jovem sorria e piscava para mim, anunciando interesse. Mas pensar em
assuntos amorosos no momento era doloroso e difícil, tendo em vista os acontecimentos recentes com a
Lunática.
Pela manhã, Dadolargo serviu o café da manhã reforçado, enquanto nos preparávamos para a
volta.
Estava, finalmente a caminho da minha casa.

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CAPÍTULO IX
O EXPURGO COM DADO

“- Nem posso acreditar, Samuel”, disse eu enquanto pedalava tranqüilamente, “estamos de


volta!”
Parecia um sonho. A Guerra do Sistema acabara, e Samuel, Mário, Pepe e eu estávamos em
casa de novo. Descemos das bicicletas cedidas por Teodoro e, prendendo-as com cadeados no quintal, Mário
comentou:
“- Só gostaria que a recepção fosse melhor... parece que ninguém veio nos receber!”
“- É, notei. Vamos ver o que houve com o pessoal.”
Por sorte, Fatty Banha estava passando por ali. Samuel chamou-o:
“- Ô Banha, vem cá! O que houve com todo mundo?”
“- Que bom que vocês chegaram! A situação está feia!”
“- Por quê, o que houve?”
“- Ninguém quer mais jogar RPG. Dizem que saiu de moda. Uma praga muito mais cara e
viciante que Magic apareceu por aqui. O pessoal está todo jogando... isso!”
Fatty Banha puxou do bolso uma miniatura e a passou para que pudéssemos ver do que se
tratava.
“- Mage Knight! Eu sabia! Como vocês conseguiram esta porcaria?”
“- Estão vendendo lá na esquina. São dois caras, eles já deram um monte de miniaturas de
graça, agora estão vendendo estas a preço de banana. Todos foram atraídos, mas eu sei que basta todo mundo
ficar viciado que os preços vão começar a ficar exorbitante!”
“- Pois eu quero ver isso! Vamos ver quem são estes dois!”, bradou Pepe furiosamente.
Correndo até lá, encontramos os tais sujeitos, indivíduos muito suspeitos, cobertos por pesados
capotes e chapéus que escondiam seus rostos. Estavam cercados pelos antigos jogadores do bairro,
distribuindo centenas de miniaturas. Samuel gritou:
“- Ei, vocês dois! O que diabos acham que estão fazendo!”
“- Ih, sujou!”, disse um para o outro. “Fomos descobertos! Vamos embora!”
Os dois tentaram escapar, deixando cair muitas miniaturas. Mário e Pepe, no entanto, já haviam
fechado o caminho, impedindo a debandada dos vilões. Aproximando-me dos suspeitos, disse:
“- Quem são vocês e o que ganham dando estas miniaturas de graça por aqui?”
“- Ah, isso é segredo!”, disse o primeiro.
“- Sim, não vamos contar que estávamos tentando deixar todos viciados para depois lançar,
com grande sucesso, nossa própria expansão!”, disse o outro.
“- Ora, cale-se! Não revele o nosso plano!”, retrucou o primeiro, dando um pontapé no
companheiro.
“- Hmmm, própria expansão...”, falei. “Isto está ficando muito, muito estranho. Eu até poderia
jurar que já vi esta história antes.”
Mário, então, disse:
“- É claro, primo Alfredo, que já vimos tudo isso! Estes dois não podem ser outros senão...”
Pepe puxou os chapéus dos dois:
“- Cassaruman e Língua-de-Cópia!”, todos gritaram surpresos.
“- Maldito seja, Alfredo! Por que você sempre resolve aparecer para atrapalhar nossos
planos!”, resmungou Cassaruman.
Samuel começou a revistar o capote dos dois. Reuniu algumas miniaturas que estavam nos
bolsos internos, e explodiu de fúria:
“- Eu sabia! Mage Knight ‘Espada da Galáxia’! Miniaturas de metalianas peitudas,
Cassaruman! Até onde você pretende ir com esta história!”
“- Ora, vai dizer que não é uma história muito boa para ser desperdiçada?”, sorria
nervosamente Cassaruman.
“- E tem mais!”, interrompeu Debbio. “Na compra de dez unidades, vocês levam inteiramente
grátis a décima sétima edição de ‘Invasão’!”
“- E esta camiseta promocional ‘Eu Amo Metalianos’!”, completou Cassaruman.
“- Mas se vocês comprarem agora, ainda recebem em sua casa...”
“- Chega! Chega! Parem de falar de metalianos! Escutem, escutem bem: eu estou de muito
bom humor para dar o chute na bunda que vocês merecem. Vocês podem partir em paz, mas, pelo amor de
tudo o que é mais sagrado, PAREM COM ESTA HISTÓRIA DE METALIANOS!”
Os dois me olharam, confusos.
“- Por favor... por favor...”, eu pedi.
Cassaruman perguntou, comovido:
“- Quer dizer que... que você vai deixar nós dois partirmos em paz se pararmos com isso?”
“- Sim. Todos somos amigos agora. Não há mais motivo para brigar no mercado nacional. Há
espaço para todos, e vocês estão livres para ir, desde que seja para criar alguma coisa!”

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“- Beleza! Obrigado!”, dizia Cassaruman, enquanto se afastava dali. “Sabe, Debbio, agora estes
moleques me mostraram que eu estava errado! Chega de Capitão Ninja! Chega de metalianos! Vou criar
personagens novos! Já posso até imaginar o primeiro... ele é um... um... um samurai! E é tenente da Marinha!
Usa seus poderes para combater alienígenas peitudas feitas de pedra, as ‘mineralianas’! Vai se chamar
‘Tenente Samurai!”
“- Você está certo, Cassaruman!”, falou Debbio, já longe. “Eu reconheço que um monte de
gente pega no meu pé, me acusando de ser copiador por escrever sobre os mesmos temas e no mesmo estilo
da White Wolf! Pois agora eu vou mudar e acabar com isso! Chega de escrever sobre vampiros! Vou
escrever sobre... Lobisomens! Lobisomens! E chega de jogos de ‘Horror Pessoal’! Agora meus cenários
serão... de ‘Terror Individual’! Quero ver algum dos meus inimigos me acusar de plagiador agora!”
E foi assim, com estas últimas palavras, os dois vilões sumiram de vez do mercado nacional de
rpg... pelo menos até a semana seguinte. Mas isso é uma história que estes tomos não contam.

CAPÍTULO X
OS JOGOS CINZENTOS

O mundo do RPG realmente mudou.


Anos se passaram desde a destruição do Um Sistema. A Editora Devir eventualmente voltou a
ser fértil, sob a vigilância constante dos jogadores nacionais. Hoje, ela publica vários títulos, de diversos
sistemas, e nunca mais a sombra do monopólio e da falta de criatividade foi sequer mencionada por lá.
Dadolargo se casou com Audrey, e são um dos casais mais belos e felizes da cidade. Ele
realmente herdou a administração da empresa do seu pai, e, com parte dos lucros que teve, abriu uma
pequena editora que publica sistemas e cenários nacionais, dando apoio a todos que estão começando e não
querem vender a alma para as grandes companhias de RPG americanas.
Claudemir e Évelyn não se casaram, mas vivem juntos em um apartamento alugado perto da
faculdade. Évelyn perdeu um pouco da timidez e deixou de usar óculos. Eu gostava mais de como ela era
antes, mas mesmo assim, se tornou uma belíssima moça. Quanto a Claudemir, ele ainda visita a mãe em
Minhas Tias (bem, as tias do Dadolargo, mas o nome pegou), pois entre os dotes de Évelyn não está a
culinária.
Ademir ganhou vários concursos de Cosplay. O último foi com uma roupa de Sailor Moon.
Samuel, o meu grande amigo, se tornou mestre, e agora está sentindo na pele o que é ter que
lidar com jogadores apelões. No entanto, suas histórias são muito boas, e ele já está na nona campanha
seguida como mestre.
Mário e Pepe começaram a escrever cenários próprios. Já estão escrevendo um sistema próprio,
o qual planejam lançar exclusivamente na Internet nos próximos meses.
Guilherme e Leônidas continuam sendo grandes amigos, e ainda jogam GURPS, cada um ao
seu modo. Guilherme avacalhou várias campanhas no grupo de Leônidas, matando NPCs importantes da
história sem diálogo algum, apenas porque preferia jogar “Arena” a “estes jogos sem graça onde tem que
ficar interpretando”. Leônidas, por sua vez, foi jogar no grupo de Guilherme, e conseguiu o lendário feito de
perder sete personagens em uma única sessão, pois insistia em querer interpretar. O último deles foi um
conde francês feito sob medida para uma campanha de intriga política que, sem explicação alguma, foi
teleportado por uma arena espacial onde teve de enfrentar uma aranha mecânica gigante de Força 250 armado
apenas com um graveto e um barbante. Mas estas diferenças não atrapalharam a amizade dos dois, muito
pelo contrário: garantem boas risadas sempre que eles se encontram.
Quanto a Rodolfo...
Nunca mais havia visto meu grande amigo e mestre. Cinco anos se passaram, entrei para a
faculdade, e, em uma bela manhã de domingo, ouvi batidas à minha porta. Fui abrir, sem ter a mínima idéia
de quem poderia ser.
“- Bom dia, Alfredo!”, disse meu visitante assim que abri a porta. “Faz realmente muito
tempo!”
“- Rodolfo! Meu amigo! Entre, entre! Que prazer em tê-lo na minha casa!”
“- O prazer é todo meu, amigo, todo meu. Mas eu não posso entrar.”
“- Ora, por quê?”
“- Eu só vim buscar você. Estamos desfazendo nosso grupo, Alfredo. Helton, Gabrielle, e seus
parentes vão viajar. Helton se formou e vai trabalhar na Alemanha, e Gabrielle trabalha como modelo e vai
para o Japão, pois arranjou um contrato importante por lá. Você tem de vê-la, Alfredo, ela está linda, linda...
e faz questão que você compareça na nossa despedida... diz que precisa falar com você algumas coisas que
ficaram muito tempo sem ser ditas... se é que você entende o que eu quero dizer. Se eu fosse você, não
perderia a chance.”
“- E... e você, Rodolfo?”

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“- Eu também devo ir. Por uns tempos. Graças a Dadolargo, consegui ser detectado por alguns
caçadores de talentos de uma grande empresa. Preciso de um ajudante, Alfredo... e estava pensando em
você.”
“- Deixe-me pegar minha mochila!”, disse eu, beijando minha mãe e cruzando a porta. “Onde é
o trabalho?”
“- É uma surpresa. Venha ver com seus próprios olhos. Quem sabe no caminho eu possa te
contar uma história? Já lhe disse em detalhes como seu aquele seu antigo mestre, Fabiano, o Bibo, conseguiu
o Um Sistema? Bem, foi mais ou menos assim... eu mesmo estava procurando por alguém que pudesse nos
acompanhar até...”
Desta forma, nos afastamos lentamente. O que aconteceu depois foi maravilhoso... mas não é
assunto tratado neste relato.

FIM

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