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CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO FAVENI

APOSTILA
MÉTODOS E TÉCNICAS DE
TRABALHO COM A FAMÍLIA

ESPÍRITO SANTO

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O NEOLIBERALISMO, AS POLÍTICAS
PÚBLICAS E SOCIAIS

Para compreender as políticas públicas sociais praticadas por um governo


(usualmente ligadas aos direitos de cidadania – previdência, saneamento, educação,
saúde, habitação, etc.), os fatores são complexos, variados e exigem análise
aprofundada. Devem-se analisar, para além de índices dos programas, as chamadas
―questões de fundo‖, as concepções de
Estado e política social que sustentam suas
ações. Elas informam escolhas e decisões,
modelos de avaliação aplicados e métodos de
implementação traçados nas estratégias de
intervenção governamental. Visões diferentes
de sociedade, Estado, saúde, educação, etc.,
geram projetos diferentes de intervenção.
Além disso, as intervenções e políticas
públicas são influenciadas pelo contexto
geopolítico e econômico no qual se encontram, que geram uma conjuntura que se
refere a um contorno de Estado.
É preciso então distinguir Estado e governo, tomando o Estado como o
conjunto de instituições permanentes, como órgãos legislativos, tribunais, exército e
outras que não necessariamente formam um bloco monolítico, mas possibilitam a
ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que os
atores do poder (políticos, técnicos, dispositivos da sociedade civil, etc.) propõem
para a sociedade, constituindo uma orientação política que assume e desempenha
funções do Estado por certo período. Políticas públicas podem ser entendidas como
o "Estado em ação" (GOBERT, MULLER, 1987), na implantação de um projeto de
governo, através de programas e ações. O Estado não deve ser reduzido à

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burocracia, a órgãos que conceberiam e programariam políticas. Estas devem ser de
responsabilidade do Estado, mas implantadas, implementadas e mantidas num
processo de decisões que envolvem, junto ao governo, diferentes organismos e
agentes sociais a elas relacionados. Políticas públicas não devem ser reduzidas a
políticas estatais, mas implicar no entrelaçamento entre Estado e sociedade.
No delineamento das políticas públicas, é importante ressaltar o processo de
diferenciação da área social. Muitas vezes, o ―social é entendido apenas como a
parcela excluída da população, traçando-se uma diferença entre ―social e
―sociedade, na qual a sociedade representaria a parcela economicamente
produtiva. Esta distinção é falaciosa e implica várias consequências. Inicialmente, ao
considerar as políticas públicas como voltadas a um ―social‖ excluído, perde-se seu
caráter democratizante, reproduzindo a desigualdade: políticas de saúde, educação,
previdência devem alcançar a todos e implicar a participação de todos, de modo que
a própria gestão estatal possa adquirir um caráter democrático efetivo. Além disso,
confundem-se estratégias de regulação da própria estrutura socioeconômica, que
atingem a vida pública e coletiva, com ações caritativas e assistencialistas. Políticas
públicas não são ―boas ações‖ do Estado, mas são garantias mínimas, financiadas
com o dinheiro de impostos pagos por toda a população, contra a precarização das
condições de vida da sociedade num contexto capitalista de exploração do trabalho
e produção de desigualdades. Neste sentido, é preocupante o discurso emergente a
partir dos anos 90 em relação ao trabalho voluntário e ao estímulo da substituição
das ações de Estado pelas ações de Organizações Não governamentais, por
conferir às ações sociais um cunho caritativo que obscurece sua real função e
constituição histórica.
As políticas sociais têm raízes nos movimentos populares do século XIX,
vinculadas aos conflitos entre capital e trabalho surgidos nas primeiras revoluções
industriais. As políticas sociais implicam ações voltadas para a redistribuição dos
benefícios sociais, que determinam o nível de proteção social implementado pelo
Estado, visando diminuir as desigualdades estruturais produzidas pelo incremento
econômico do capital e se relacionam às próprias condições de manutenção do
sistema capitalista. Um exemplo desta relação é a emergência do Estado de Bem-
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Estar social na Europa, fomentado economicamente no período pós-guerra como
garantia de manutenção do capitalismo face à ampliação socialista no leste.
Desse modo, pode-se, por exemplo, entender a educação como política
pública social, cujas ações são informadas por uma acepção particular de Estado.
Essas formas de interferência do Estado visam a manter as relações sociais de certa
formação social. No caso brasileiro, muitas políticas de implementação de escolas
técnicas, por exemplo, vinculam-se à concepção de uma formação pouco crítica e
meramente instrumental voltada ao mercado de trabalho e dirigida à população de
menor poder aquisitivo. Assim, a divisão de uma ―formação para os ricos‖ e uma
―formação para os pobres‖ consistiu numa política de reprodução de desigualdades
sociais pela diferenciação de escolarização (PATTO, 2005). Offe (1984) ressalta que
seria equivocado pensar nos objetivos da política educacional voltados apenas para
a qualificação da força de trabalho conforme interesses de determinadas indústrias
ou formas de emprego, afirmando que:

(...) parece mais fecundo interpretar a política educacional estatal sob o


ponto de vista estratégico de estabelecer um máximo de opções de troca
para o capital e para a força de trabalho, de modo a maximizar a
probabilidade de que membros de ambas as classes possam ingressar nas
relações de produção capitalistas. (OFFE, 1984, p. 128).

Assim, é possível analisar alguns aspectos de planejamento e concepção das


políticas sociais e da política educacional no Estado Capitalista, focalizando,
respectivamente, certas análises marxistas do sistema capitalista e a concepção e
discurso neoliberal a respeito da sociedade, com a ressalva de não se pretender
esgotar as interpretações e leituras, mas oferecer um arcabouço conceitual que
permita compreender as políticas públicas no Estado brasileiro contemporâneo.
Na análise marxista do sistema capitalista, considera-se que as ações estatais
acabam garantindo, em última instância, a produção e reprodução das condições de
acumulação do capital e de desenvolvimento do capitalismo. Assim, a autonomia
estatal é constitutivamente comprometida, e a ação social do Estado capitalista
ocorre como resposta a reivindicações e demandas dos trabalhadores e setores não
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beneficiados pelo desenvolvimento econômico. Nesse contexto, o Estado atua de
uma maneira que concentra e manifesta as relações sociais de classe em que
conflitos ocorrem, já que em seu interior estão presentes interesses referentes à
acumulação do capital e às reivindicações dos trabalhadores. No pensamento
contemporâneo, essa análise do Estado e das relações sociais contribui para
compreender a dimensão política do Estado na fase atual do capitalismo,
considerando suas funções no capitalismo neoliberal financeiro.
Analisando as origens das políticas sociais traçadas pelo Estado Capitalista
contemporâneo para a sociedade de classes, pode-se depreender que o Estado
atua como regulador das relações sociais a serviço da manutenção das relações
capitalistas em seu conjunto (OFFE, 1984) e não especificamente a serviço dos
interesses do capital, a despeito de
reconhecer a dominação deste nas
relações de classe. No processo
de acumulação capitalista e em
suas crises, as formas de
utilização da força de trabalho são
deterioradas, transformadas ou destruídas, e escapa aos indivíduos decidir quanto à
sua utilização. O sistema de acumulação capitalista engendra em seu
desenvolvimento problemas estruturais referentes à constituição e reprodução
contínua da força de trabalho e à sua socialização através do trabalho assalariado.
Em períodos de profunda assimetria nas relações entre proprietários dos meios de
produção e trabalhadores, o Estado atua visando garantir a manutenção do conjunto
de relações capitalistas. Assim, conforme Offe, "(...) a política social é a forma pela
qual o Estado tenta resolver o problema da transformação duradoura de trabalho
não assalariado em trabalho assalariado" (OFFE, 1984, p. 15). O Estado não só
qualificaria continuamente mão de obra para o mercado, como ainda, através das
políticas sociais, procuraria controlar parcelas da população excluídas do processo
produtivo, assegurando condições materiais de reprodução da força de trabalho,
inclusive visando uma adequação quantitativa entre a força de trabalho ativa e a
força de trabalho passiva, e de reprodução da aceitação da condição de exploração.
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Estas podem ser consideradas funções últimas da política social, em que as
diversas instituições sociopolíticas e estatais intervêm no jogo de forças entre
segmentos sociais divergentes, gerando intervenções do Estado que atingem o todo
da sociedade, equacionadas por referenciais que refletem o pensamento capitalista.
Ressaltando a dinâmica própria do Estado nas sociedades capitalistas modernas,
Offe (1984) relaciona as origens da política social à estratégia estatal de mediação
entre interesses conflitivos:

(...) para a explicação da trajetória evolutiva da política social, precisam ser


levadas em conta como fatores causais concomitantes tanto exigências
quanto necessidades, tanto problemas da integração social quanto
problemas da integração sistêmica (...), tanto a elaboração política de
conflitos de classe quanto à elaboração de crises do processo de
acumulação. (OFFE, op. cit., p. 36)

Assim, os modos de organização econômicos, políticos e sociais se realizam


numa dinâmica que é instituída por relações de dominação e exploração em sua
estrutura, e na qual, pressões e ações por mudanças sociais acabam por agir de
modo compensatório. As ações perpetradas pelo Estado não se implementam
automaticamente, mas num movimento que comporta conflitos e contradições,
podendo gerar efeitos distintos dos esperados. Sobretudo por se referirem a grupos
diferentes, as políticas sociais de Estado sofrem a influência de interesses diversos,
expressos nas relações sociais de poder.
Essa dinâmica de relações da sociedade capitalista é legitimada pelo discurso
liberal sobre a sociedade e o Estado, de origem Iluminista, estabelecido no século
XVIII, com A riqueza das nações, de Adam Smith (1776). O liberalismo se configura
num contexto de luta política e econômica da burguesia nascente contra o
Absolutismo e a nobreza do Antigo Regime. Buscando justificar o poder político e
econômico da burguesia enquanto classe social, o liberalismo concebe como função
do Estado apenas garantir direitos individuais, devendo não interferir nas relações
econômicas. Entre estes direitos, destaca-se a "propriedade privada como direito
natural" (LOCKE, 1632-1704), bem como o direito à vida e à liberdade de
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organização do mercado. Ao conceber a dinâmica sócio-econômia capitalista como
ordem natural, o liberalismo iluminista ―eximiu o burguês de justificar o fardo da
desigualdade e da exploração‖ (BACHUR, 2006, p.170). Estas ideias baseavam-se
numa teoria do progresso da história, na qual o próprio desenvolvimento do homem
trataria de permitir, pelo uso da razão, a justiça social, presente no lema ―liberdade,
igualdade, fraternidade‖, da Revolução Francesa (1789). O Estado, ao contrário do
Antigo Regime, não deveria gerenciar nem conceder a propriedade privada, mas
arbitrar conflitos surgidos numa sociedade pautada pela competição entre
indivíduos, em que proprietários e trabalhadores disputam interesses, realizam
contratos, etc. Adam Smith expressa essas ideias em A riqueza das nações:
(...) deixe-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita
liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e
faça com que tanto seu trabalho como seu capital, concorram com os de
qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas.

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que


esperamos nosso jantar, mas de sua consideração por seus próprios
interesses. Nós nos dirigimos não a sua humanidade, mas a seu auto-
interesse (self-love), e nunca falamos de nossas próprias necessidades,
mas de suas vantagens (SMITH, 1994, p. 20).

Tendo por principais expoentes Hayek (1944:1977) e Friedman (1977), o


neoliberalismo retoma e reorienta as ideias liberais numa perspectiva que rejeita o
racionalismo estatal, pressupondo que as relações sociais são efeito apenas de
ações individuais, nunca coletivas, e amplia a ideia de que conhecimento e justiça se
fazem pela competitividade de mercado para além da economia, abarcando a
competição e não estruturação nas esferas política e social. O neoliberalismo
abandona, assim, a concepção de progresso da história e enfatiza o discurso
econômico de mercado como ordem espontânea e natural sobre todas as esferas da
sociedade e o sobre próprio saber humano. Esse paradigma, absorvendo mudanças
da história do capitalismo, ganhou força, sobretudo, a partir dos anos 80 e 90, após
a dissolução dos governos socialistas na Alemanha e na União Soviética. Criticando

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o Estado de Bem-Estar Social de Keynes (1883-1946), oriundo de uma visão liberal
originada no racionalismo francês, o neoliberalismo defende enfaticamente
liberdades individuais, acredita nas virtudes reguladoras do mercado e critica a
intervenção estatal, numa concepção individualista, utilitarista e competitiva da
sociedade. A promoção e a proteção do indivíduo, dos interesses e das relações que
individualmente se estabelecem e se equilibram naturalmente na sociedade são
destacados por Friedman:

(...) os valores de uma sociedade, sua cultura, suas convenções sociais,


todos eles desenvolvem-se de idêntica maneira, através do intercâmbio
voluntário, da cooperação espontânea, da evolução de uma estrutura
complexa através de tentativas e erros...

O neoliberalismo defende a iniciativa individual como base da atividade


econômica, justificando o mercado como regulador da riqueza e da renda, com foco
no capitalismo competitivo, organizado através de empresas privadas. Atribui ao
Estado o papel de promotor de condições positivas à competitividade individual e
aos contratos privados, e percebe qualquer outra ação estatal como coercitiva:

(...) só há dois meios de coordenar as atividades de milhões. Um é a


direção central, utilizando a coerção, a técnica do Exército e do Estado
totalitário moderno. O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos à
técnica de mercado. (HAYEK, 1976, p. 53).

Percebendo a economia de mercado como ordem reguladora da sociedade,


Hayek (1976) a dissocia de um julgamento de justiça que caberia a condutas
humanas, pois a considera como natural, um pressuposto da sociedade humana
cujos resultados não podem assim ser julgados ou modificados:

Tem-se que admitir claramente que a maneira pela qual os benefícios e


encargos são distribuídos pelo mecanismo de mercado deveria ser
considerada como muito injusta em várias instâncias se fosse o resultado
de uma alocação deliberada a pessoas particulares. Mas não é esse o caso
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(HAYEK, 1976, p. 64).

Os neoliberais consideram as políticas públicas sociais, ações do Estado para


regular desequilíbrios gerados na acumulação capitalista, um dos maiores entraves
ao desenvolvimento do capitalismo e corresponsáveis pela crise social. Assim, as
políticas públicas são rejeitadas ou diminuídas como ameaças aos interesses e
liberdades individuais, que inibem a concorrência privada, a livre iniciativa e o
crescimento econômico, considerado como mecanismo do próprio mercado para
restabelecer o equilíbrio social. Assim, o neoliberalismo cria uma preponderância do
discurso econômico sobre a sociedade e a política, tomando o crescimento do livre
mercado como grande equalizador das oportunidades e condições de vida na
sociedade, e desconsiderando sua organização estrutural como pautada por
relações de exploração e dominação. Nesses postulados, os neoliberais criticam a
responsabilidade do Estado quanto à oferta de direitos sociais, como saúde e
educação pública universal a todo cidadão. Em relação à educação, por exemplo,
consideram que um sistema estatal de oferta de escolarização compromete, em
última instância, as possibilidades de escolha por parte dos pais em relação à
educação desejada para seus filhos. Estendendo a lógica do mercado para esta
política social, Friedman (1980) assinala que:

(...) em escolarização, pais e filhos são os consumidores, e o mestre e o


administrador da escola, os produtores. A centralização na escolaridade
trouxe unidades maiores, redução da capacidade dos consumidores de
escolher e aumento do poder dos produtores. (p.81).

Os neoliberais propõem que o Estado divida ou transfira suas atribuições com


o setor privado, para permitir às famílias o direito de livre escolha quanto ao tipo de
educação desejada e estimular a competição entre os serviços oferecidos no
mercado. A proposta de participação da verba pública para educação, primária e
secundária, seria através de "cupons", oferecidos a quem os solicitasse, para
"comprar" no mercado os serviços educacionais que mais se identificassem com
suas expectativas e necessidades, arcando as famílias com o custo da diferença de
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preço, caso este seja superior ao cupom recebido. São nesse prisma que se
constituem alguns programas recentes de ação pública, sobretudo em países
subdesenvolvidos, que não possuem uma tradição de garantia de bem-estar social
estabelecida, como os programas de financiamento público da educação em
instituições privadas (no caso brasileiro, por exemplo, o Pro uni), bem com os
convênios com hospitais privados para atendimento público e a transmissão de
ações sociais para Organizações Não governamentais, numa clara transferência de
recursos do Estado ao setor privado. A estratégia de descentralização, que numa
acepção democrática visa ampliar a participação das comunidades nas instituições
públicas que passam a possuir maior
autonomia, nesse contexto, tem relevância
como possibilidade de ação a partir do núcleo
de instituições privadas. A transposição, pelo
Estado, da responsabilidade de executar
políticas sociais às esferas menos amplas,
além de contribuir para esses objetivos, é vista
de modo empresarial como meio de aumentar
a eficiência administrativa e reduzir custos.
Embora tais procedimentos sejam
justificados pelo livre mercado e pelo controle
maior dos ―consumidores‖ de serviços sociais, acabam fragilizando as políticas
sociais, que passam a possuir menos recursos financeiros e menor relevância frente
à hegemonia do discurso econômico. Ao tomar em termos de produtividade de
mercado ações e dimensões da vida social que possuem vital relevância política e
democrática, esses artifícios descaracterizam e desqualificam as ações sociais
enquanto meio de constituição de um espaço público, coletivo e participativo. Como
aponta Plastino (2005),

Considerado isoladamente, o crescimento da produtividade é, sem dúvida,


um fenômeno positivo. Entretanto, sob uma ótica humanista — isto é, que
priorize o interesse humano — esse crescimento constitui apenas um

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instrumento que, no contexto predatório da sociedade de mercado, está se
revelando um desastre para os interesses globais da Humanidade. (p.127)

O processo de definição de políticas públicas para uma sociedade reflete os


conflitos de interesses, arranjos feitos nas esferas de poder que perpassam as
instituições do Estado e da sociedade como um todo. Um elemento importante neste
processo na análise de políticas públicas refere-se a fatores sócio-históricos que vão
tecendo discursos, representações e processos de legitimação, rejeição,
transformação e incorporação sobre as ações, conquistas, lutas e participações
sociais. Assiduamente, percebem-se nessa teia conjuntural as incongruências e
conflitos de interesses sociais que permitem, impedem e direcionam as ações em
políticas públicas. As formas de organização, o poder de pressão política, social e
econômica e a articulação de diferentes grupos sociais no estabelecimento e
reivindicação de demandas são fatores fundamentais na conquista ou retraimento de
direitos sociais, incorporados ao exercício da cidadania. Num Estado de cunho
neoliberal, ações e estratégias sociais de governo são minimizadas e várias vezes
articuladas a iniciativas e interesses privados, enfraquecendo ou desvirtuando seu
caráter público. Elas não permitem e, muitas vezes, não visam alterar as relações
sociais estabelecidas. No Brasil, esse cenário teve ainda outra decorrência:

...o enfraquecimento das fronteiras entre o público e o privado, ou melhor, a


mais completa subordinação do primeiro ao segundo, como resultado do
núcleo da opção programática das políticas públicas, com a exaltação do
privado e o aviltamento do que é público, convenientemente confundido
com o que é estatal, ampliou o espaço para a corrupção. (GUIMARÃES,
2001, p.138).

Além disso, o viés econômico na análise neoliberal das relações sociais tem
ocultado dados ligados à real condição de vida da população. Por exemplo, mede-se
a pobreza por diversos critérios que mostram seu agravamento, mas ela é
desvinculada do exame de outros aspectos, utilizando-se como critério o dado
macroeconômico do PIB per capita. Esse índice, porém, descreve apenas a esfera

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econômica e enxerga o conjunto pela média, cego à sua distribuição real, não
considerando que, em países como o Brasil, tal média é permeada pelo contexto
histórico de desigualdade econômico-social. O discurso neoliberal, que se dispõe
como discurso único e verídico sobre as relações sociais e políticas, não pode
ocultar as decorrências sociais e culturais que seu modelo e sua racionalidade
geram presentes na expansão do desemprego, na piora da condição de trabalho, na
fragilização de vínculos trabalhistas, no aumento da violência, da miséria e da
marginalização. Seus efeitos se notam ainda na constituição das subjetividades e
das relações humanas, com influências na família, no trabalho, na escola e todos os
espaços de socialização, trazendo para eles a lógica das relações humanas como
mercadorias e do ―lucro‖ social, subjetivo, educacional, político. Uma gestão
pública informada por uma acepção crítica de Estado, que considere seu papel
atender toda a sociedade, sem privilegiar interesses de grupos detentores do poder
econômico, deve ter como prioritários programas de ação universalizantes, que
compreendam as ações públicas sob uma lógica democrática e não sob uma lógica
de mercado, e possibilitem o acesso e a participação equitativa nas conquistas
sociais por todos os cidadãos, visando reverter o desequilíbrio social. Mais do que
oferecer "serviços" sociais, as ações públicas articuladas com as demandas da
sociedade, devem se voltar para a construção de direitos sociais.

NEOLIBERALISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO


CONTEXTO BRASILEIRO

A concentração de renda na América Latina, que permeia a história dos


países do continente e a torna a região mais desigual do planeta, cresceu ainda
mais nos últimos 30 anos. A desigualdade na região, segundo relatório do Banco
Mundial (1993), supera África, Ásia e Europa Central e acompanha o aumento da
pobreza. Ambas se vinculam à sua estrutura econômico-social, que gera enormes

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diferenças na distribuição de renda e nas oportunidades de inclusão econômica e
social. No contexto desses trinta anos, as concepções sobre a pobreza e sobre seu
combate guardaram diferentes vínculos com o discurso ideológico liberal, por vezes
estimulando políticas reformistas e compensatórias em detrimento de mudanças na
estrutura social e favorecendo a retificação das relações de classe da sociedade
capitalista. A ideia de pobreza como insuficiência de emprego, em voga ao fim dos
anos 60 e início dos 70, indicava o modelo de desenvolvimento econômico atado ao
aumento da dívida externa e à ênfase no setor privado e nas multinacionais,
privilegiado pelos países latino-americanos a partir dos anos 50. Tal modelo,
pautado por uma relação colonialista com países desenvolvidos, não incorporou as
massas urbanas, que permaneceram excluídas de direitos de cidadania, condições
de trabalho e renda. Pautado no discurso liberal de justiça social pelo crescimento
econômico, tal modelo gerou o aumento do subemprego, do setor informal e da
marginalidade urbana, num processo de industrialização e crescimento econômico
de caráter nitidamente excludente.
A noção de pobreza como insuficiência de renda tomou corpo na primeira
metade dos anos 70, supondo que os setores chamados modernos das estruturas
produtivas crescem e se alimentam pela presença dos setores atrasados. Nessa
vertente, pobreza e processo de exclusão social se verificariam no interior mesmo do
núcleo moderno dessas sociedades, como resultado do próprio processo de
modernização, sendo necessária a realização de políticas compensatórias que, no
entanto, não modificariam a estrutura econômica. A ideia de pobreza como
carências múltiplas, que define grupos mais sujeitos ao processo de exclusão social,
se fortalece nos anos 80. Nesse quadro, crescem estudos sobre população idosa e
juventude, por exemplo, e propostas de políticas emergenciais: para debelar a fome,
conseguir o primeiro emprego ou uma renda familiar mínima. Fragmentando as
dificuldades sociais, tal noção ofusca a dinâmica social produtora das desigualdades
e verte o atendimento público a grupos miseráveis.

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Com o avanço dos efeitos da política neoliberal, inclusive em regiões de
industrialização avançada, como América do Norte e Europa, o debate sobre a
pobreza ressurge como contraponto às teses e políticas liberais. Vários analistas
ressaltam o caráter massivo de fenômenos como o aumento da pobreza, do
desemprego, da desigualdade e exclusão social e da violência, ligando-os às
mudanças operadas na ordem político-econômica, por força de interconexões
globais, metamorfoses no mercado de trabalho e da redução da proteção social.
Na América Latina, a globalização e liberação dos mercados, priorizando a
abertura comercial e financeira e a
estratégia de integração à ALCA, a
estabilidade econômica, a reforma do
Estado pelas privatizações, aliadas à
ausência de uma política industrial
ativa, tiveram consequências
destrutivas sobre o emprego e os
direitos sociais. Durante as duas
últimas décadas, os processos de
globalização da economia e
reestruturação produtiva tiveram alto
impacto sobre os centros urbanos,
gerando o aumento do déficit habitacional, a deterioração das condições ambientais,
o encarecimento do solo urbano, o aumento do desemprego, do custo de vida e do
subemprego, a intensificação de desigualdades sociais, da pobreza e da violência.
No mesmo período, a maioria dos governos latino-americanos adotou reformas
estruturais de caráter setorial, enquanto tomava medidas de ajuste fiscal na política
macroeconômica. Tais reformas afetaram o mercado de trabalho, agravando o
desemprego a partir da década de 90, diminuindo o padrão salarial e de renda e
aumentando a participação dos trabalhadores no setor informal.
Em políticas públicas na saúde, tem-se um exemplo desse processo: a
dinâmica demográfica e a mudança na faixa etária da população, ligada à miséria e
às más condições de vida nos bolsões populacionais, geraram a justaposição de
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perfis epidemiológicos em que coexistem problemas de higiene e saúde, fazendo
ressurgir doenças que se pensava controladas. De outro lado, políticas cada vez
mais voltadas a dispositivos privados fragilizaram a atenção pública em saúde,
mormente em ocasiões de cunho epidemiológico, dificultando a redução de
situações de vulnerabilidade e o atendimento aos mais excluídos.
Ao considerar o avanço neoliberal nos países subdesenvolvidos, destaca-se a
fragilidade dos organismos de justiça social e de representação política. Na Europa,
onde a exploração de colônias nos séculos precedentes e a ascensão do Estado de
Bem-Estar Social no pós-guerra, como contraposição ao avanço do socialismo,
admitiram erigir uma forte estrutura econômico-social de proteção dos cidadãos, a
fragilização das conquistas sociais e os efeitos colaterais da política econômica,
como a violência e o desemprego, se dão de modo mais gradativo e menos
impactante. Em revés, no cenário latino-americano, sobretudo brasileiro, séculos de
dominação colonial, desigualdade social e governos autoritários levaram ao frágil
estabelecimento de direitos sociais e da participação democráticos, somente
conquistados com alguma segurança nas lutas sociais após o período ditatorial, nos
anos 80. Desse modo, a estrutura autoritária de governo e a pouca força política da
participação social abriram terreno ao progressivo avanço neoliberal e às rápidas
sequelas sociais de suas ações.
No caso brasileiro, a agenda neoliberal começou a se efetivar na década de
90, já que a ofensiva popular que acompanhou a redemocratização do país nos anos
80 adiou o domínio neoliberal. No entanto, a própria ideologia elitista dos governos
autoritários anteriores favoreceu o posterior programa neoliberal no Brasil, que
ultrapassou a reforma da gestão de Estado e incidiu na continuidade do
autoritarismo político pelas alianças de elite formadas após a ditadura militar, sobre o
vazio político da recém-constitucionalização, num contexto em que ainda não
haviam sido implantadas as diretrizes da Constituição de 1988. Por exemplo, o
governo Cardoso (1994-2002) deflagrou um uso exponencial de medidas
provisórias, gerando reformas constitucionais seguidas, que significaram a revisão
de vários de seus contratos básicos numa direção liberal, ―com intensidade inédita
na história republicana do século XX‖ (CODATO, 2005). Assim, a manutenção das
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relações autoritárias constituídas historicamente nas instituições brasileiras, inclusive
com o dispositivo de subordinação do Congresso Nacional ao Executivo, favoreceu a
implantação da política neoliberal a despeito da opinião popular.

Uma dimensão importante da herança institucional da ditadura militar para


os governos da década de noventa foi a permanência de núcleos de poder
específicos no Estado (...), dotados de grande independência e nenhum
controle político (i. e., parlamentar) ou social (i. e., público). Nos governos
Cardoso (1995-1998; 1999-2002), para ficarmos no melhor exemplo (...) Na
área econômica continuou vigorando, assim como no arranjo ditatorial, o
esquema do "superministério", agora representado pela tríade Banco
Central, Conselho de Política Monetária e Ministério da Fazenda (...) Por
fim, na área "empresarial", e naqueles aparelhos de Estado em que, por
sua natureza ou competência, se administram os "interesses do mercado"
(política de privatizações, política de transportes, de comércio exterior, de
comunicações, de educação etc.), a regra foi o contato direto de
representantes influentes do mundo dos grandes negócios com decisores
estratégicos, mecanismo muito pouco transparente e que, a propósito do
"regime autoritário", Cardoso (1975) conceituou como ‗anéis burocráticos‘.
(CODATO, 2005, p. 89).

Nesse contexto, o Brasil tem assistido o sistemático avanço dos direitos do


grande capital financeiro em detrimento da soberania nacional, com repactuação da
dívida externa de modo desfavorável, abertura comercial, internacionalização e
privatização de setores produtivos e financeiros-chave, muitas vezes precedida de
sucateamento, desregulamentação do controle de fluxos de capitais e atrelamento
dos gastos públicos a metas negociadas com o FMI, perdendo para os mercados
financeiros, após a redemocratização, grande parte das deliberações sobre seu
destino econômico (CODATO, 2005). O projeto neoliberal gerou, ainda, o retrocesso
de direitos sociais indicados pela Constituição de 1988, incorporando um amplo
ataque à lógica de direitos dos trabalhadores, rompendo o processo de inclusão no
mercado formal de trabalho ocorrido desde a Era Vargas. De direção
universalizante, as políticas sociais passaram a visar o padrão focal: a redução ao

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mínimo do papel do Estado em ações sociais, dirigindo o restante ao mercado e a
políticas assistenciais voltadas localmente a grupos de extrema penúria (Vianna,
1998), com base nas ideias de carências múltiplas e população de risco.
No projeto de redução do Estado, conforme Guimarães (2001), os impostos
indiretos e a carga fiscal aumentaram muito para assalariados, mas os ganhos do
capital foram protegidos de tributação e novos subsídios favoreceram grandes
capitalistas, inclusive multinacionais e proprietários recentes de empresas estatais.
Houve um deslocamento patrimonial do Estado estimado em 30% do PIB para
grupos privados. Setores estratégicos da economia brasileira, vitais em qualquer
plano de soberania econômica, foram vendidos de modo pouco claro. Esse projeto,
cuja conjuntura atual é marcada pela crise, é palco de uma disputa política na qual a
agenda neoliberal ainda possui hegemonia, mas encontra sólida oposição.
Igualmente, o modelo de crescimento econômico como base da justiça social mostra
sua falência, pois esse crescimento diminuiu impedido pela própria dívida pública,
pelo déficit externo e a desestruturação do setor produtivo estatal: 1,8% nos anos
90, cerca de um terço do obtido entre 1945 e 1980. No contexto desse
desinvestimento, ocorrem crises em setores estratégicos, como no setor energético
no governo Cardoso ou no aéreo no governo Lula. O plano neoliberal ampliou ainda
a desigualdade, cogerindo a explosão da violência urbana.

O caráter social da crise, em parte decorrente do fracasso econômico


estratégico, é impulsionado pela grave deterioração do mercado de trabalho
no país. O desemprego aberto saltou de 4,5 milhões para mais de 7,64
milhões em 1999, segundo o IBGE. A informalidade, segundo a mesma
fonte, elevou-se de 51% em 1989 para 59% em 1999. O gasto nas áreas
sociais recuou de 18,5% do PIB em 1995 para 14,5% em 2000.
(GUIMARÃES, 2001 p.).

17
POLÍTICAS DE EMANCIPAÇÃO NO ESTADO CAPITALISTA

Transferência de Renda

No mundo, há vários mecanismos de garantia de renda mínima destinados a


públicos diferentes e com objetivos e critérios diversos. O debate sobre renda
mínima começou com o liberalismo no séc. XVIII, mas os programas iniciais de
garantia de renda mínima (PGRM) surgiram em países desenvolvidos no século XX,
atrelados à constituição do Estado de Bem-Estar-Social. Esses programas faziam
parte de um projeto que se ampliou com a reconstrução da Europa no pós-guerra,
financiado pelos Estados Unidos, contra a ascensão socialista, e pela garantia da
força política do capitalismo. Sua meta era criar uma rede de proteção social para as
populações mais pobres, pela transferência de renda. Um dos primeiros programas
de transferência de renda foi instituído pelo governo britânico em 1908 e muitos
países europeus entre os anos 1930 e 1940 passaram a adotar políticas de perfil
redistributivo. A partir de 1975, quando o desemprego passou a afetar a Europa, os
governos introduziram políticas compensatórias, como o salário-desemprego, e em
1986 fundou-se a Rede Europeia da Renda Básica.

18
No Brasil, a ascensão de movimentos sociais contribuiu para a aprovação do projeto
de lei do senador Eduardo Suplicy (PT/SP) em 1991, instituindo o Programa de
Garantia de Renda Mínima (PGRM), no qual toda pessoa de 25 anos ou mais que
não recebesse o equivalente ao salário mínimo teria direito de 30% a 50% da
diferença entre esta quantia e sua renda. A elevada concentração de renda é
marcante na sociedade brasileira, cujos índices de desigualdade estão entre os mais
altos do mundo. Neste cenário, implantar a garantia de uma renda mínima – a
transferência monetária para pessoas que não alçam um nível mínimo de renda – é
uma das políticas compensatórias e meio de combate à miséria.
Tais programas se ampliaram por municípios e estados: é criado em 1995 o
PGRM de Campinas, (gestão Magalhães Teixeira) e o Bolsa-Escola, do Distrito
Federal (gestão Cristovam Buarque). Os resultados positivos no Distrito Federal
tornaram o programa Bolsa-Escola referência para vários países (VAN PARIJS,
2000). No nível federal, a Bolsa-Escola passou a vincular renda mínima e política
educacional: a complementação busca elevar a renda de famílias pobres e ainda
incentivar a escolarização de seus filhos, atendendo hoje 5% da população, em
5.531 municípios brasileiros dos 5.561 existentes. No programa federal, cada criança
entre 6 e 15 anos, frequentando regularmente escolas da rede pública, tem direito a
R$ 15,00 mensais, até o máximo por família de R$ 45,00. O dinheiro é mensalmente
sacado por cartão magnético pela mãe ou responsável legal, nas agências da Caixa
Econômica. A escolha de favorecidos obedece a critérios legais e o pagamento é
suspenso em caso de frequência escolar
mensal inferior a 85%, cujo controle é feito
pelas prefeituras participantes do programa,
trimestralmente. Em comparação às
políticas sociais tradicionais no Brasil, os
programas de transferência de renda
avançam politicamente ao dispor metas
sócio-educativas e explicitar a preocupação
de articular políticas diversas. Assim, Van

19
Parijs (2000) elogia o programa brasileiro como promotor da autonomia dos
cidadãos.
Há, porém barreiras para articular os diversos programas de política social,
pois mesmo com a grande quantia de recursos envolvidos e pessoas atendidas nos
programas nacionais, eles não conseguem formar em seu conjunto uma política
nacional unificada. Assim, muitas vezes, programas de transferência monetária
acabam atuando de modo isolado e regional, sem maior articulação a programas de
educação, saúde, trabalho e outros. Seria preciso sua articulação às iniciativas em
torno do desemprego do país, numa política nacional de cidadania instituída de
modo descentralizado e coordenado. É preciso ainda lembrar que estas políticas não
questionam modelo econômico de pobreza estrutural e podem não implicar
participação popular, mostrando-se vulneráveis ao contexto político.

Políticas de Microcrédito como estímulo ao desenvolvimento social

No Brasil, 50% da população economicamente ativa trabalham em


microempresas (até cinco empregados), mas apenas 4,8% delas obtém empréstimo,
pois não há condições e aval para crédito bancário. Assim, há grande demanda por
microcrédito, num mercado potencial de seis milhões de pessoas. Para atendê-la, foi
criado o Banco do Povo, política pública baseada num programa de microcrédito que
institui um vínculo entre credor e investidor que inclui consultoria técnica e
acompanhamento. Também chamado crédito produtivo, tal crédito opera por
agências financiadoras (bancos federais, governos estaduais e municipais, em
parceria com empresários ou ONGs), e visa combater o desemprego e a pobreza, e
auxiliar a sobrevivência econômica dos pequenos empresários frente ao grande
capital. O Brasil foi um dos primeiros países a implantar um programa de
microcrédito para o setor informal urbano, a União Nordestina de Assistência a
Pequenas Organizações (UNO). Criado em 1973, em Salvador e Recife, era gerido
20
por duas ONGs parceiras, uma de empresas e bancos e uma internacional, que
após 18 meses suspendeu suas atividades. Em 1987, surge em Porto Alegre o
Centro de Apoio aos Pequenos Empreendimentos Ana Terra (Ceape), ONG apoiada
pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pela Inter-American
Foundation (IAF). Hoje, a Rede Ceap é composta por 12 centros em vários estados.
Em 1989, cria-se na Bahia o Banco da Mulher, que hoje possui filiais, com apoio do
UNICEF e do BID e filiado ao Women's World Banking.
Essas ações estavam relacionadas à luta pelos direitos sociais do fim da
década de 70 e início da de 80, e ao movimento constituinte, de redemocratização e
da reorganização do sistema público. Até 1994, havia poucas opções de
microcrédito, em apenas 20 agências de financiamento popular. Em 1995, o
Conselho Comunidade Solidária começou a discutir formas legais e apoios de
organizações civis para expandir o microcrédito e em 1996, o Banco Nacional do
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) passou a apoiar iniciativas
populares, criando o Programa de Crédito Produtivo Popular. Nos últimos sete anos,
com o início das medidas para ampliar o microcrédito no Brasil, pequenos
empreendedores do trabalho informal ou de microempresas passaram a obter
investimentos de até 10 mil reais com juros baixos (que variam de 1% até 4% ao
mês). Várias pesquisas indicam baixo índice de inadimplência em políticas de
microcrédito (3% a 5% após 30 dias), o relacionado à metodologia de capital social,
em que a própria comunidade gerencia os financiamentos. Porém, seu crescimento
no Brasil ainda é baixo e nem sempre garante acesso a crédito à população de baixa
renda. Para Neri & Giovanni (2005, p.644), ―o mercado de crédito brasileiro visa
mais ao consumidor do que ao produtor. É mais de curto do que de longo prazo e
atinge mais a alta do que a baixa renda‖.
Conforme a legislação, a estrutura do setor de microfinanças é formada por
instituições chamadas de "primeira linha" (da sociedade civil, setor público e
iniciativa privada) e "segunda linha" (BNDES, pelo Programa de Crédito Produtivo
Popular - PCPP e SEBRAE, pelo Programa de Microcrédito). As instituições de
"segunda linha" oferecem capacitação, apoio técnico e recursos financeiros para as
instituições de "primeira linha", que atuam diretamente com o cliente. Em 2001
21
decretou-se a Medida Provisória 2.172-32, legalizando contratos de microcrédito
com Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP‘s. Antes disso,
as iniciativas de ONGs, não sendo entidades financeiras e sem vinculação ao Banco
Central, estavam sujeitas à Lei da Usura, que limita a cobrança de juros a 12% ao
ano. Em 2001, também foi publicada a Lei 10.194, que permitiu a criação de
Sociedades de Crédito ao Microempreendedor (SCM), liberando juridicamente a
iniciativa privada a atuar como instituição de "primeira linha" em organizações de
microcrédito.
Há políticas de microcrédito a trabalhadores de baixa renda na maioria dos
estados e em muitas prefeituras no Brasil, com poucas diferenças entre elas, a
maioria de intervenção do governo e
viabilizando pequenos empréstimos. Em
Recife, o Banco do Povo dirigido pela
prefeitura tem um programa de crédito voltado
a microempresas e trabalhadores informais
(sem registro no CNPJ), que inclui análise de
viabilidade do negócio, cursos e
acompanhamento. Durante a análise, é
definida a quantia a emprestar, com limite
menor a trabalhadores informais e maior para formais, a ser retirada no Banco do
Brasil ou Caixa Econômica Federal. O Banco do Povo de Juiz de Fora - MG, criado
em 1997 numa parceria entre prefeitura e empresários que criaram uma OSCIP, tem
linhas de microcrédito para capital de giro, de menor valor, e investimentos em
equipamentos, de maior valor, com juros de 3,9% ao mês. Em casos de parceria
público-privada, é preciso observar a idoneidade das iniciativas, que podem servir à
atuação financeira lucrativa de entidades privadas com recursos públicos.
Entre as dificuldades encontradas para o acesso a crédito aos pobres em
programas de microcrédito está a dificuldade de provar garantias de pagamento, a
lentidão da justiça, que dificulta a cobrança em caso de inadimplência, o excesso de
burocracia e impostos, que dificulta o desenvolvimento de micronegócios e exige
informação e acessoria ao empreendedor. Assim, a ampliação do microcrédito exige
22
a reavaliação de medidas estruturais. Neri & Giovanni (2005) apontam que, embora
em sua pesquisa, apenas 7% dos micronegócios tivessem obtido crédito, houve
aumento de chances para aqueles ligados a entidades de classe (cooperativas,
sindicatos, etc) e empresas com constituição jurídica, e ressaltam que o microcrédito
se institui mais solidamente atrelado a um programa de crédito solidário, engajado
na associação e na participação coletiva.

A organização cooperativa como resposta ao desemprego

Segundo Singer (2000), a organização econômica mais simples possível e por


isso uma das mais antigas é a ―produção simples de mercadorias‖, na qual cada
agente é possuidor individual de seus meios de produção e, portanto, dos produtos
de sua atividade, que negocia diretamente nos mercados. O capitalismo surge deste
tipo de produção e organização dos mercados, mas o nega quando separa posse e
uso dos meios de produção. Essa divisão surge mais ou menos ―naturalmente‖ do
funcionamento dos mercados, pela apropriação, pelos que venceram no jogo
econômico, dos meios de produção daqueles que o perderam. Os mercados, ao
contrário do que consideram alguns teóricos, não tendem ao equilíbrio: a história
demonstra que os mercados transitam de um desequilíbrio a outro, por fatores
relativamente aleatórios: invenções, forças naturais (geadas, chuvas), mudanças
econômicas, etc. Os perdedores da competição econômica, expropriados de meios
de produção, se reintegram ao mercado na venda de sua força de trabalho a outros
donos de meios de produção: o capitalismo é o modo de produção em que os meios
de produção e distribuição, exceto a força de trabalho, se tornam mercadorias
23
privadas. Assim, um traço central do capitalismo é a concentração da posse de
meios de distribuição e produção de mercadorias, pelos que venceram o jogo de
mercado, que se tornam capital centrado na posse de poucos, enquanto a maioria
tem apenas sua força individual de trabalho, o que gera uma população denominada
proletária, que vende seu trabalho no mercado.
Assim, há divisão da posse dos meios de produção (do capitalista) e seu uso,
atribuído aos trabalhadores. A concentração dos meios de produção permite investir
na invenção de meios automáticos de produção, viabilizando o emprego de forças
de trabalho que substituam a humana, como tração animal ou energia elétrica. Isso
levou à expansão do capitalismo em detrimento da produção simples de
mercadorias: pela concentração de capital houve as revoluções tecnológicas, das
quais a Revolução Industrial é um ícone. Outro atributo central do Capitalismo é a
perpetuação do ―exército industrial de reserva‖: uma massa trabalhadora que não
consegue vender sua força de trabalho na empresa capitalista. Parte dessa
população permanece à margem do mercado de trabalho, sustentada pelo seguro-
desemprego, e parte tenta vender sua força de trabalho em outro mercado:
marginalizada da organização maior dos mercados, se organiza em mercados
paralelos, como o mercado informal, pela ―produção simples de mercadorias‖.
Pelo fato de os trabalhadores terem se organizado relativamente cedo em
sindicatos e por certas garantias trabalhistas terem se consolidado, seu salário é
termômetro da economia capitalista, pois os sindicatos influem para monopolizar a
oferta de trabalho e garantir um piso salarial. Igualmente, o desemprego tem função
central no capitalismo: quando a economia tende ao pleno emprego, os preços
sobem, ameaçando o valor ―real‖ da riqueza, e a economia é freada antes que a
espiral preços- salários leve a uma inflação exponencial. Esse desemprego
estrutural leva trabalhadores desempregados ou ameaçados de desemprego a
buscar alternativas de sobrevivência. Parte deles recorre ao seguro-desemprego e
parte precisa vender a força de trabalho nalgum mercado, inchando a produção
simples e empobrecendo seus integrantes, que atuam em mercados vulneráveis.
As cooperativas surgem tanto como modo de produção e distribuição de
mercadorias distinto do capitalismo quanto como um arranjo entre trabalhadores
24
capazes de organizar produtos e serviços de forma a ter condições de competir com
a empresa capitalista. A cooperativa não é uma construção teórica de um autor,
embora haja estudos que buscam refletir sobre sua organização. Ela é um modo de
organização surgido em vários períodos da história, criado e recriado pelos que
estão marginais ao mercado de trabalho ou sofrem este risco, sempre que
trabalhadores buscam alternativas à economia marginal que os habilitem para
competir no mercado capitalista. Ela é uma organização surgida da prática, que casa
a unidade posse-uso dos meios de produção, próprios da produção simples de
mercadorias, com o princípio de socialização destes, isto é, de sistemas só utilizados
por grande número de pessoas, próprios do capitalismo. Embora este sistema
pareça um híbrido entre estes dois modos de operação da economia, ele é uma
síntese que os supera. Há afinidade entre trabalhadores e a economia solidária
porque, embora nem todos os trabalhadores se oponham ao capitalismo, a maioria
deles o faz, e a economia solidária é também uma base ideológica dessa oposição.
A economia solidária consiste, assim, numa criação em processo contínuo de
trabalhadores em luta contra o capitalismo, que não o precede, mas o acompanha
como uma sombra, condenando a ditadura do capital na empresa e o direito de
propriedade do dono dos meios de produção, que gera desigualdade social e,
sobretudo, uma associação de trabalhadores para produzir, distribuir, comercializar e
comprar bens e serviços, em iniciativas não capitalistas.
Há teorias que afirmam que as cooperativas não teriam condições de se
estabilizar e desenvolver no seio do capitalismo, falindo ou tornando-se empresas
capitalistas pelo fato de haver uma ―cultura capitalista‖: os trabalhadores não
conseguiriam se organizar de forma solidária, pois adotam a lógica capitalista no
arranjo cooperativo, e ficam na contradição de serem simultaneamente operário e
capitalista. Outras teorias afirmam que as empresas capitalistas têm uma lógica de
mercado em que é impossível à cooperativa instalar-se. Mas nenhuma delas se
mostra verossímil ao se observar que algumas cooperativas se estabilizam e
continuam operando como tal durante muito tempo.
De fato, as cooperativas têm de enfrentar desafios para se estabilizar nos
mercados, sendo preciso mudanças organizacionais em comparação ao sistema de
25
produção capitalista. O desafio inicial se dá, então, na gestão da empresa solidária,
pois se acredita que a administração é um saber científico, decorrendo daí que, se a
maioria de trabalhadores ingressantes na cooperativa tem baixa escolaridade, não
haveria subsídios para sua boa administração. Essa questão na verdade se
desdobra em duas: primeiramente, em oposição à gestão capitalista, na qual o
capitalista em geral contrata um técnico ou corpo técnico que administra a empresa,
a gestão da empresa cooperativa é a um só tempo direito e tarefa de todos os
cooperados, sendo esta lógica de gestão democrática uma das noções que a define.
Há aí o embate ideológico de que, sendo a
administração um saber técnico, haveria
pessoas melhor ou pior instruídas para
realizá-la e seria inviável a gestão coletiva
não efetuada por um corpo técnico. Porém,
deve-se ponderar que a administração,
embora seja estudada ou aprimorada pela
ciência, é uma arte que une experiência e
conhecimento de uma pessoa ou grupo de
pessoas na tomada de decisões, o que se
nota ao verificar que as decisões na
cooperativa, conquanto usualmente mais
demoradas que na empresa capitalista, são também mais acertadas, pois incluem
um conjunto mais abrangente de informações, advindas do conhecimento e da
experiência de todos os cooperados. Assim, o problema que se coloca para a
cooperativa não é a falta de capacidade para a gestão, mas o discurso dominante de
que a administração só é viável por um discurso competente (CHAUÍ, 1984) de
natureza técnico-científica. Isso não quer dizer que a cooperativa prescinda de
informação técnico-científica. Ao contrário, ela é necessária e a cooperativa poderá
incluir membros com saberes específicos da área em que atua ou contratar serviços
de um grupo exterior. Nesse sentido, a cooperativa torna-se mais viável quando o
―know-how‖ de que ela precisa pode viabilizar-se aos cooperados. Este é o
segundo entrave, de cunho político: a falta de ação político-governamental para dar
26
subsídios à formação e capacitação de cooperativas. No Brasil, esse problema é
tratado, sobretudo, pelas universidades, através dos programas de incubadoras de
cooperativas, mas não é considerado pelo governo como um todo, onde não há
assessoria tecnológica para este fim.
O problema da falta de políticas públicas que viabilizem cooperativas está
presente ainda em outras áreas necessárias à sua estabilização, como o acesso a
crédito, que é em geral menor para cooperativas em comparação às empresas
capitalistas, a redes de comercialização, etc, havendo assim uma falta de garantia
das bases de sustentação da economia solidária. Um exemplo é a legislação
tributária brasileira: sendo os cooperados sócios da cooperativa, pagam impostos
como tal, e sendo assalariados, também pagam os impostos referentes. Assim,
devido à falta de legislação específica para empresas cooperativas, elas acabam por
ser tributadas duas vezes. Isso ocorre também, além desses fatores, porque a
maioria das unidades cooperativas atua isoladamente em mercados dominados por
empresas capitalistas, sem haver uma rede de cooperativas que atue para minimizar
esses problemas. No Brasil, as cooperativas surgem nos anos 1980, junto ao
fortalecimento dos sindicatos e à redemocratização do país, e se ampliam na
segunda metade da década de 90. Elas resultam de movimentos sociais que reagem
à crise de desemprego iniciada em 1981 e agravada pela abertura do mercado para
a importação nos anos 90, e se viabilizam pelo apoio de incubadoras tecnológicas
de cooperativas nas universidades públicas. Mas seu desenvolvimento enfrenta,
além dos problemas supracitados, a falta de fiscalização, que deixa uma brecha para
que empresas capitalistas registrem-se como cooperativas, anulando direitos
trabalhistas de seus funcionários e diminuindo de forma ilícita o preço de seus
produtos para competir com as próprias cooperativas. Essa operação intensificou-se
nas décadas de 1990 e 2000, tanto pelo aumento do nível de desemprego que levou
à degradação das condições de trabalho quanto pela privatização da oferta de
serviços sociais através de ONGs e parcerias público-privadas. Nestes casos, os
contratos, desvinculando do Estado a responsabilidade social e a contratação de
funcionários para oferecer serviços e implantar projetos sociais integrados a um
plano de desenvolvimento social, abrem novas brechas para a fragilização dos
27
vínculos trabalhistas pelo uso ilícito e falso da organização cooperativa.
Programas de qualificação profissional no Estado neoliberal

A década de 1990 assistiu à redução drástica no nível geral de emprego.


Segundo Pochman (2002), só no município de São Paulo, de 1991 a 2000, os
postos de trabalho reduziram em 11%, passando de 3,55 milhões em 1991 para 3,16
milhões no fim da década. A exigência de qualificação e a competitividade maior
apresentam um lado "perverso", aponta o Relatório de Pesquisa do Dieese n.14.
Com a pressão, sob os trabalhadores, do desemprego e da fragilização do trabalho,
a requalificação profissional é cada vez mais necessária para manter o emprego. A
formação profissional se torna um critério de seleção que transcende exigências
concretas da vaga. Conforme Dedecca (2002), tem-se contratado pessoas de maior
escolaridade para cargos de baixa qualificação, pois os quadros foram reduzidos na
reestruturação produtiva neoliberal. Sendo restrito o número de vagas, seleciona-se
um trabalhador mais escolarizado, independente de qual seja a qualificação
necessária para o desempenho da tarefa. A premissa de que o trabalhador melhor
qualificado obtém melhores vagas é uma avaliação que culpabiliza perversamente o
desempregado pela exclusão do mercado, ocultando fatores estruturais geradores
do desemprego. O próprio mecanismo de funcionamento e os preceitos do
capitalismo se pautam pela ampliação da exploração do trabalho e pelo corte de
gastos, visando aumentar a lucratividade e gerar a evolução tecnológica que
substitui o trabalho humano. Compreendendo o homem como mero recurso, a
administração capitalista não permite uma inclusão real: mesmo um crescimento
econômico amplo é incapaz de garantir a participação de toda a sociedade nos
processos de produção e desenvolvimento.
Segundo Dedecca (1998), a qualificação dos trabalhadores no atual período
do neoliberalismo não é responsável pela obtenção do emprego, que depende mais
do cenário concorrencial e da realidade econômica. Nesse contexto, as ações de
governo se direcionam mais a práticas condizentes com o discurso dominante da
necessidade de qualificação do que à busca de soluções estruturais do sistema
28
socioeconômico brasileiro. Por exemplo, o Panfor (Plano Nacional de Educação
Profissional), iniciado em 1995, que é um programa de política pública de trabalho e
renda ligada ao Fundo de Amparo ao Trabalhador do Ministério do Trabalho e
Emprego (FAT-MTE). A verba é repassada aos estados ou parceiros nacionais e
regionais por convênios que exigem contrapartida de 20% do valor conveniado em
média, definida em lei para os estados. Segundo o MTE, a meta do Planfor é
garantir a educação profissional permanente, auxiliando a reduzir o desemprego e o
subemprego e elevar a qualidade e competitividade do setor produtivo. No médio
prazo, pretende-se oferecer educação profissional suficiente para qualificar no
mínimo 20% da População Economicamente Ativa (PEA) por ano. Embora a
iniciativa de qualificar contribua para o acesso de trabalhadores à cultura e à
educação, buscar a redução do desemprego e subemprego através desta política é
desconhecer as reais causas destes fenômenos no quadro socioeconômico. É
preciso considerar, assim, que o Brasil trouxe ao século XXI as marcas centrais da
situação que conheceu na segunda metade do século XX: uma das estruturas
sociais mais desiguais do mundo e um sistema de proteção social frágil, incapaz de
afetar significativa e positivamente a desigualdade e a exclusão social.

GESTÃO
DEMOCRÁTICA EM
EDUCAÇÃO E SAÚDE

Os rumos da gestão social têm


sido historicamente traçados pela
gerência de empresas, já que são
adotados pressupostos empresariais de

29
produtividade no desenvolvimento das ações. No Brasil, a gestão pública acaba se
vinculando aos princípios empresariais, dada sua característica capitalista, em que
os interesses do capital atuante nas organizações se reproduzem nas relações
políticas e sociais, que se adaptam a esse modelo hegemônico. Segundo Paro
(1996), na sociedade capitalista "as regras capitalistas vigentes na estrutura
econômica tendem a se propagar por toda a sociedade, perpassando as diversas
instâncias do campo social" (p.48). Nesse contexto, supervisores de ensino,
coordenadores de saúde ou diretores de escola passam a atuar compreendendo
suas funções básicas como organizar e administrar num prisma produtivo e
avaliando as ações em termos de eficácia, eficiência e produtividade em contextos
em que seria mais próprio pensar em termos de pertinência, efetividade, cooperação
e participação social. Assim, para entender os paradigmas presentes na gestão
social pública, é preciso antes delinear historicamente os conceitos de administração
na sociedade capitalista, que vêm condicionando a gestão em instituições e
organizações.
Hora (1997) demonstra que a teoria administrativa do século XX se
desenvolveu em três escolas: a clássica, que tem como critério central a eficiência
(capacidade real de produzir o máximo com o mínimo de recursos), representada
pela teoria científica de Taylor, pela teoria de Administração Geral de Fayol e pela
administração burocrática, concebida por alterações da teoria da racionalidade de
Weber; a psicossocial, representada por Mayo e Dickson, que substitui o critério da
eficiência pelo da eficácia, em que os objetivos a alcançar são intrínsecos ao
sistema, e a contemporânea, que tem como critério a efetividade (capacidade de
criar a resposta desejada). Embora com ideias distintas, as duas primeiras teorias
têm como objetivo central obter lucro. Elas nortearam a organização institucional na
sociedade capitalista, trazendo a noção de lucro ao interior das instituições, que
passou a permear as relações humanas, com implicações sociais e políticas.
Ao entender os recursos humanos não como recursos do homem (técnicas e
procedimentos), e sim o homem como recurso (PARO, 2002), tais concepções
desumanizam as relações humanas, pois deslocam o homem, de sujeito, a objeto do
processo, desconsiderando que "o homem é meio, não fim" (PARO, 2002, p.25), e
30
gerando relações de dominação. Na Administração capitalista, a produção, que visa
lucro, "só se sustenta a partir da exploração do trabalho alheio" (Ibid., p.44). Paro
(2002) aponta dois campos de administração: a "racionalização do trabalho", ligada
à utilização dos recursos materiais e conceptuais, e a "coordenação", ou seja, o
emprego do esforço humano coletivo.

No modo de produção capitalista, a ‗racionalização do trabalho‘ tem como


preocupação central o aumento da eficiência e produtividade, visando lucro.
"Tal objetivo é conseguido pela divisão pormenorizada do trabalho (...). Os
chamados estudos da administração concentram-se (...)
predominantemente nos problemas relacionados ao controle dos
trabalhadores" pela "gerência, que constitui (...) a forma que assume a
‗coordenação‘ sob esse modo de produção. A superação do desinteresse
do trabalhador e a neutralização de suas resistências às condições de
trabalho (...) são buscadas através da gerência (p. 59, 60).

A divisão do trabalho entre manual e intelectual auxilia a desqualificação e o


controle do trabalhador, separando planejamento e execução das atividades. “Ao
arrebatar do trabalhador a função de concepção, pode-se determinar o método e
retorno do trabalho mais adequados à eficiência capitalista" (PARO, p. 64). A
administração assume a função de mediação entre capital e produção de lucro, a
serviço do capital e justificando o lucro. Ela não visa o crescimento do homem, e
representa apenas interesses de classe. No Brasil, noções mais democráticas da
gestão pública, considerando a participação popular em contraponto à tecnocracia
da produtividade, apenas se legitimaram na Constituição de 1988, co-gerada nos
movimentos e lutas sociais pela abertura democrática. Nesse período, uma agenda
democrática de reforma social orientou um movimento de mudanças, sob o duplo
signo de democratização das políticas e melhoria da efetividade do gasto social.
Nesse cenário, as lutas sociais visavam superar o autoritarismo e reordenar as
políticas públicas. No sistema de proteção social, a demanda por redução das
desigualdades, norteou uma melhora da efetividade das políticas e a afirmação dos
direitos sociais orientou projetos de extensão da cobertura dos programas e

31
universalidade das políticas, com leis asseguradas na nova Constituição. Assim,
abordou-se a contradição entre o alto gasto social e os medíocres resultados
alcançados. Institucionalmente, tais metas nortearam ações de descentralização,
maior transparência nos processos decisórios e ampliação da participação social.
Porém, após o processo constituinte, em seguida ao curso de implantação da
nova legislação, as pressões do jogo de forças políticas não se dirigiram a esse
olhar progressista. Mobilizações corporativistas e mecanismos clientelistas, quase
sempre associados a práticas populistas
dos governos, buscaram capturar as
demandas e ensaios de reformas,
impondo limites ao exercício democrático
e à participação popular nas novas
políticas públicas. Embora a constituição
de 1988 fosse um avanço, essas ações
tolheram a efetiva construção de uma
opção democrática na modernização e
reforma das políticas sociais ainda nos
anos 80.
Nos anos 90, os termos da
reforma do sistema brasileiro de proteção
social foram redefinidos. Compõe o
cenário a maior estabilidade política e democrática, mas também de globalização
econômica, avanço da hegemonia neoliberal e queda do Estado de bem-estar social.
Assim, as políticas públicas e sociais são palco de lutas e jogos de forças entre
discursos econômicos focados na redução do Estado e movimentos sociais e
políticos que alertam para a situação ainda mais excludente e perversa delineada na
terceira fase do capitalismo, buscando participação popular democrática e acesso a
condições de desenvolvimento humano melhores. No quadro internacional, nota-se
um novo jogo de forças entre Estado e mercado, em que organizações
multinacionais e conglomerados empresariais, por seu poder econômico, acabam
impondo acordos e exigências aos países, muitas vezes reivindicando a fragilização
32
de condições de trabalho e menores dispêndios tributários e sociais, afetando
conquistas sociais históricas. Nossos governos, sob forte pressão financeira
internacional, teriam optado por um lado da balança - o do ajustamento econômico e
fiscal. Para Narita (2004),

A opção por um modelo neoliberal limita o papel do Estado que, por meio
das políticas econômicas e sociais, não universaliza os direitos sociais à
saúde e à educação. Isso porque o Estado - democrático e de direito -
existe formalmente, mas de fato, grande parte da população vive sob a
condição de não-cidadania, participando de um contrato social excludente,
em um não-Estado de direito. E, com as reformas do Estado, de cunho
neoliberal, torna-se mais difícil construir um Estado público, democrático e
que assegure os direitos sociais e a cidadania plena a todos (p.26).

No cenário brasileiro, onde os direitos sociais têm ainda cunho embrionário e


cuja história é permeada por governos autoritários, essas conquistas são ainda mais
ameaçadas pelo avanço neoliberal. Em uma década, o Brasil reduziu em cerca de
um quinto a mortalidade infantil e o analfabetismo, mas praticamente não obteve
êxito nenhum na redução da desigualdade social. Em 1999, os 10% mais ricos da
população possuíam renda média 19 vezes maior do que os 40% mais pobres,
mesmo índice de 1992, atestando a permanência da desigualdade. Embora projetos
mais voltados aos problemas sociais brasileiros e ao incentivo da participação
coletiva em saúde e educação, até pela criação de órgãos geridos pela população,
como Conselhos Tutelares e de Saúde, tenham tido êxito em certos aspectos, a
estrutura geradora de más condições de desenvolvimento humano e a ação focal do
Estado acabaram dificultando a reversão do quadro de miséria e exclusão da
maioria da população. Desse modo, programas como os de Saúde da Família, de
Agentes Comunitários, de Aleitamento Materno e Atenção Materno-Infantil
favoreceram a redução da mortalidade infantil e programas de incentivo à
permanência ou volta à escola, à educação de adultos, de Livro Didático e Merenda
Escolar permitiram a redução do analfabetismo. Todavia, os índices de pobreza e
desigualdade apontam para os limites das políticas sociais, enredadas em

33
problemas estruturais de duração secular, agravados atualmente pelo desemprego,
a instabilidade do trabalho e a redução da renda das famílias.
Junto a essas questões, há a distorção dos mecanismos de participação
conquistados na década de 80. Sobretudo nas políticas de educação, assistência
social e saúde, os últimos quinze anos registram um elevado grau de alterações e
inflexões nos programas, afetando desde concepções até financiamento, modo de
operação, organização e estilo de gestão. Projetados para o conjunto das áreas
sociais, os dados registram relevantes mudanças nas metas, orientações e eixos.
Ainda assim, há ganhos para a gestão democrática, cujas diretrizes na Constituição
permitiram a formação de conselhos populares e cuja execução em saúde e
educação tem constituído os melhores resultados nestas áreas.

Administração escolar democrática: questões e desafios em educação

A escola serve ao Estado porque é organizada, controlada e fornecida por ele.


Ela pode servir à população se desenvolve consciência crítica da realidade em que
se insere, reconhecendo, refletindo e transformando os centros de poder e
exploração no nível científico, cultural e tecnológico. Seria preciso repensar, assim,
noções de gestão pública e de gestão escolar, construindo novas diretrizes para
uma prática de gestão atenta à transformação social. O caráter conservador da
teoria e prática da Administração Escolar no Brasil leva os estudos a proporem
extremos: ou a defesa das condutas da empresa capitalista ou a negação da
necessidade de administração escolar. O primeiro ponto de vista defende que

Diante da necessidade de se promoverem a eficiência e a produtividade na


escola, não há razão para que esta, entendida também como organização,
não possa pautar-se, na consecução de seus objetivos, por procedimentos
administrativos análogos àqueles que com tanto êxito alcançam na situação
empresarial (HORA, 1997, p.12,13).

34
Já a segunda posição é contra qualquer tentativa de organização escolar
burocrática, reagindo ao caráter autoritário das relações sociais contemporâneas,
devido à histórica cultura empresarial em gestão, na qual a maioria dos estudos
considera o modelo empresarial capitalista como ideal de gestão escolar. Paro
(2002) aponta certas diferenças dessas instituições, mostrando que é impossível
colocá-las no mesmo patamar. Quanto aos objetivos, a escola visa fins de difícil
mensuração, enquanto a gerência capitalista visa produzir um bem ou serviço
determinado. Além disso, a aula é uma atividade em que se buscam resultados
contínuos: o educando apropria-se de um saber que o leva à sua transformação
prolongada por toda vida. É inviável medir prontamente o alcance dos resultados,
assim como não há um mecanismo de sanção efetivo, já que quem provê e regula a
escola é o Estado e não se pode automatizar a educação para otimizar sua
produção: a mão de obra na escola é item permanente. A escola é, ainda, uma
instituição prestadora de serviço onde o aluno não é apenas beneficiário (como o
cliente capitalista), mas também participante sujeito e objeto da educação. Ele é a
matéria prima (que se altera no processo), mas não pode ser selecionado como nas
empresas. A aula é produzida e consumida ao mesmo tempo e as relações
escolares, mesmo no trabalho de seus agentes, não se pautam pela produção de
lucro. O trabalho pode ser produtivo para o empregador, mas não para o aluno.
Hoje, também a gestão escolar é similar à gerência capitalista, referida ao
comando administrado do trabalho alheio. A decisão final é do diretor, que está no
topo da hierarquia, responsável pela supervisão das atividades, que têm funções
específicas, facilitando seu controle. Além de pressões de órgãos superiores, todo o
corpo escolar (professores, alunos, pais, funcionários) cobra do gestor, que tem de
conciliar interesses de ambas às partes, inclusive naquilo que não tem domínio
direto (recursos, por exemplo), e quando tais solicitações não são ouvidas, sua
imagem se estigmatiza como autoritário. Nesse quadro, o diretor da escola:

Passa a assumir duas ordens de funções, em princípio, inconciliáveis: como


educador, ele precisa cuidar da busca dos objetivos educacionais da escola;
como gerente e responsável último pela instituição escolar, tem de fazer

35
cumprir as determinações emanadas dos órgãos superiores do sistema de
ensino que (...) acabam por concorrer para a frustração de tais objetivos.
Tais órgãos bombardeiam a unidade escolar com um número enorme de
leis, pareceres, resoluções, portarias, regulamentos, etc. assoberbando as
atividades do diretor, que se vê, assim, na contingência de dedicar parte
considerável de seu tempo ao atendimento de formalidades burocráticas.
Tais formalidades aparecem de forma ainda mais embaraçosa quando se
interpõem como obstáculo à solução dos múltiplos problemas que o diretor
deve enfrentar em seu dia-a-dia, principalmente daqueles relacionados à
escassez de recursos de toda ordem (...). Envolvidos, assim, com inúmeros
problemas da escola e enredado nas malhas burocráticas das
determinações formais (...) o diretor se vê (...) tolhido em sua função de
educador, já que pouco tempo lhe resta para dedicar-se às atividades mais
diretamente ligadas aos problemas pedagógicos no interior de sua escola
(PARO, 1996 p. 133).

Os percalços da gestão escolar por sua vinculação ao sistema capitalista


promoveram críticas e questionamentos às formas como a gestão escolar vem se
dando. Paro (2002) avalia essas duas posições extremadas como equivocadas por
não analisarem os determinantes sociais e econômicos da gestão escolar,
mostrando-se acríticas à realidade concreta. A primeira eleva à universalidade um
tipo de gestão socialmente marcado e a segunda considera essa gestão geradora de
todo autoritarismo. Esse debate trouxe questões acerca de uma gestão escolar
democrática, ampliando noções sobre limites e aberturas da gestão participativa.
Nesse sentido, pode-se resgatar a ideia de gestão que, se no capitalismo se liga à
área econômica, tem de fato origem política e precisa ser compreendida nessa
esfera. Arendt (2001) aponta como atributo central da esfera política a ação
conjunta, que consiste no diálogo e no pensamento no plural. Nessa acepção,
gestão refere-se à participação que atua em problemas da formulação de políticas
públicas, em especial nas políticas sociais e de educação e saúde. Paro, por
exemplo, propõe uma gestão escolar voltada a mudanças sociais. Para isso "nem a
Administração será vista apenas enquanto conjunto de princípios, métodos e
técnicas (...) nem a escola será tomada como entidade autônoma para o qual

36
apenas se buscarão os procedimentos administrativos mais adequados" (1996,
p.13).
Assim, compreende-se que a transformação social inicia-se pela análise de
antagonismos e desigualdades sociais, pela conquista de espaços mais amplos na
sociedade civil, visando à transformação do Estado em prol de uma relação menos
coercitiva e mais democrática e convergente com o interesse popular. A educação
escolar pode servir de artifício em poder dos grupos sociais dominados, visando à
autonomia, como aponta Freire (1993): a apropriação crítica do saber historicamente
forjado leva à emancipação cultural, desconstruindo relações de opressão. Hoje, a
educação atenta para os requisitos
intelectuais ligados ao treino de funções
de produção, em prejuízo da autonomia e
do pensamento crítico, pois o saber
veiculado é guiado por critérios
econômicos de produção e consumo, não
por metas de ascensão social coletiva. O
papel do educador voltado a mudanças
sociais é valorizar sua ação,
questionando, pesquisando e refletindo a
realidade para entendê-la e superá-la. Para mudanças efetivas na escola, deve-se
incluir a produção pedagógica, além de uma gerência que explicite os alvos que
deseja alcançar e perceba os reais interesses da população que atende. O gestor
deve estar cônscio da ação tecnocrática de seus órgãos superiores, questionando a
função de mero burocrata, obrigado a fazer cumprir programas educacionais que
muitas vezes desconsideram a realidade e necessidades da comunidade escolar. O
ideal de gestão que separa concepção e execução leva a ações centralizadoras e
autoritárias, voltadas ao controle e inspeção de atividades. Isso gera uma ação
fragmentada do professor, na qual ele efetua uma prática pedagógica planejada por
especialistas incumbidos ainda do seu controle, cerceando o saber constituído nas
relações forjadas em sala de aula e desvinculando sua própria habilidade de pensar
e tecer relações favorecedoras da autonomia com os alunos.
37
É preciso também reconhecer o hiato entre formulação de políticas sociais e
sua implantação, vinculado tanto ao modo muitas vezes técnico de formulação das
políticas, que desconsidera as experiências e relações concretas nas quais a ação
ocorrerá, quanto à implantação das políticas, que amiúde desobedece à formulação,
seja pela má gestão, por mudanças de governo ou pelo enfoque em índices
quantitativos, desfavorecendo caminhos qualitativos de progresso social. Um
exemplo é o sistema de progressão continuada, inserido no conjunto da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. As mudanças centrais se
dão na avaliação: criação da recuperação paralela ao ensino através de classes de
aceleração; apoio a meios de avaliação diversificados e flexíveis; auto-avaliação.
Tornar a avaliação "formativa" e "diagnóstica", focalizando o processo de ensino-
aprendizagem e não apenas o produto final, é a intenção da proposta segundo o
Conselho Estadual de Educação ( CEE). As mudanças não se restringem à
avaliação, mas envolvem uma "alteração radical" da organização da escola, da
proposta pedagógica e da concepção de educação, segundo o CEE. Embora seja,
sobretudo, uma diretriz pedagógica, baseada na ideia de ciclos da aprendizagem,
que questiona o processo de ensino-aprendizagem tradicional, ela muitas vezes
permite a promoção automática de alunos. Assim, o processo de implantação do
sistema contraria seu conjunto de propostas, e problemas de aprendizagem são
protelados para anos seguintes, maquiando estatísticas de repetência escolar para
atender exigências das instituições internacionais.
No processo de municipalização do ensino fundamental, intensificado pelo
governo federal a partir da década de 1990 também há este problema. Tornando o
ensino fundamental atribuição das prefeituras, e não mais do governo estadual,
buscava-se aumentar a participação dos cidadãos na elaboração, implementação e
avaliação do processo de ensino-aprendizagem. Na realocação do centro de poder
para secretarias municipais, se permitiria que as negociações ocorressem
diretamente, pois os integrantes do processo – professores, diretores, alunos e pais -
estão mais próximos à administração municipal em comparação ao governo
estadual. Mas essa política mostra também dificuldades em sua implementação,
pois a municipalização criou uma instabilidade profissional para os professores:
38
aqueles que reivindicam melhores salários correm o risco de serem transferidos para
escolas distantes de suas residências ou serem demitidos. Outra diretriz referente à
municipalização do ensino que apresenta obstáculos está no Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef),
criado em 1998. Com esse fundo, o governo federal impeliu os municípios a se
responsabilizar pelo ensino fundamental com liberação de recursos para a
educação, mas não os obrigou a tal compromisso. O Ministério da Educação
avaliava que o Fundef aumentaria o número de matrículas no ensino fundamental,
os salários dos professores e a oferta de vagas, favoreceria os planos de carreira
municipais e a capacitação de professores leigos presentes no sistema de ensino,
auxiliando a meta da LDB de permitir que, até 2006, todos os professores tivessem
formação média ou superior. Porém, houve resistência ao processo, pois a
transferência do ensino se deu de modo hierarquizado, sem discussão ampla junto
aos docentes e reorganização conjunta dos sistemas de ensino, criando conflitos e
entraves. Além disso, nem sempre recursos materiais e humanos se fizeram
presentes como deveriam, faltando profissionais preparados para fazer a
capacitação de professores, por exemplo. Além disso, o Fundef se tornou atrativo
para gestores municipais mais preocupados em receber recursos do que em investir
na qualidade do ensino. Por lei, o município deve aplicar 25% da receita na
educação, oriundos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS),
do Fundo de Participação dos Estados e dos Municípios, e de parte do Imposto
sobre Produtos Industrializados (IPI), que devem ser gastos na manutenção e
desenvolvimento do ensino público e na valorização do magistério.
Essa dificuldade em implantar políticas vincula-se ao escasso diálogo entre
legisladores, secretarias de ensino, professores, diretores e alunos. Na passagem da
formulação à implantação, certas medidas tomadas no tocante ao sistema de
progressão continuada pelas Secretarias e Conselhos de Educação acabam por
tornarem-se prescritivas e normatizadoras. A falta de participação na criação e
viabilização das políticas educacionais tem levado ao desencontro entre a escola e a
execução de diretrizes educacionais da legislação. As condições de trabalho dos
professores - jornadas fragmentadas, contrato por hora aula, alta rotatividade e
39
baixos salários – revelam falta de iniciativa para prestar condições de realização de
um trabalho coletivo. Igualmente, políticas de capacitação para professores muitas
vezes ocorrem prescrevendo inovações, relacionando competências que os
educadores devem aprender e aplicando cursos de treinamento. Tais medidas,
pautadas na racionalidade técnica e na lógica dedutiva que pressupõe que as
normas criam a realidade social, desconsideram o que é criado e vivido na própria
escola e buscam modificar a escola por meio de ações externas e alheias a seu
contexto cultural. É preciso, ao contrário, ponderar os modos pelos quais, diante da
legislação e das condições presentes, os professores têm pensado seu papel social
e constituído suas práticas,
considerando os sujeitos
sociais integrantes do
processo de produção de
saberes, criação e
transformação das práticas.

Administração em Saúde:
avanços e percalços

A reforma do setor saúde esteve em voga no plano internacional na década


de 90. Tendo como conjuntura o aumento do nível de gasto público em saúde,
contrapondo-se às dificuldades decorrentes dos distintos ajustes nas economias
nacionais na esteira da agenda neoliberal, que limitava a expansão destes gastos,
consolidou-se um conjunto de pressões sobre os governos nacionais no sentido de
alterar e o perfil das políticas públicas setoriais. No cenário comum aos países
ocidentais, evidenciam-se ainda questões relativas a mudanças demográficas, em
especial aquelas decorrentes do envelhecimento da população e do declínio
imediato ou futuro da população economicamente ativa, levando a um aumento da
demanda por serviços de maior complexidade e custo, que tornaria cada vez mais
40
problemática a capacidade de resposta dos serviços (EUROSTAT, 2000).
Estas questões tornam-se mais graves nos países situados na periferia do
sistema financeiro e econômico-produtivo. Submetidos a um desastroso passado
inflacionário, mesmo ao obter condições de estabilidade da moeda o fizeram por
meio de estratégias macroeconômicas de subordinação ao capital internacional,
endividamento e reforma neoliberal da estrutura socioeconômica, dificultando um
desenvolvimento econômico sustentado e meio de investimento público e social. No
Brasil, antes da constituição de 1988, apenas aqueles com carteira de trabalho
assinada, e assim associada ao antigo INPS, podiam utilizar a saúde pública. Esta
conexão entre saúde e trabalho, regulada legalmente desde 1923 e que já exprimia
uma resposta a movimentos populares urbanos, ligava-se à necessidade de, de um
lado, garantir meios mínimos de sobrevivência aos trabalhadores e, de outro lado,
discipliná-los frente a formas altamente predatórias de disposição do trabalho
presentes na sociedade brasileira (MACEDO, 2005). Esse consistia num modelo de
saúde e seguro social não-universalizante e assistencialista, voltado a grupos
assalariados, de maior peso econômico e articulação política. Além disso, a visão
centralizadora das políticas de saúde, justificada exatamente por entraves sociais e
econômicos, reforçava a exclusão da população na tomada de decisões.
Essa situação se alterou mais sensivelmente apenas nos anos 80, quando
movimentos sociais emergentes no processo de redemocratização firmaram a luta
política por soluções aos problemas sociais brasileiros. Isto levou à reorganização da
gestão na saúde, pela Proposta de Emenda Constitucional da Saúde (PEC 29), que
definiu a participação da União, Estados e Municípios no financiamento de ações e
serviços públicos de saúde, através da aplicação mínima de recursos fixada por lei.
A PEC 29 foi o passo inicial em direção ao Sistema Único de Saúde (SUS), que
declarou a saúde ―direito de todos e dever do Estado por princípios de
universalidade no atendimento, descentralização, participação da sociedade,
equidade no custeio e uniformidade de benefícios. Essas diretrizes constitucionais
permitiram maior participação popular, em níveis integrados e descentralizados nos
municípios e estados e na regionalização do atendimento. Mas enquanto a
concepção e criação do SUS se desenrolaram na conjuntura política favorável da
41
redemocratização, sua regulamentação, em 1990, deu-se num período marcado
pelo acirramento da crise fiscal e econômica e pelo avanço neoliberal mundial. O
presidente Fernando Collor realizou vetos importantes na homologação das Leis
Orgânicas de Saúde, mas foi possível, pela força do Movimento Sanitário, manter os
Conselhos de Saúde, estabelecidos como:

Órgãos colegiados de caráter permanente e deliberativo, compostos por


representantes do governo, prestadores de serviços, trabalhadores da área
de saúde e usuários, com representação paritária entre os grupos, devendo
atuar na formulação de estratégias e no controle da execução das políticas
de saúde, inclusive nos aspectos econômico e financeiro. Suas decisões
são homologadas pelo chefe de poder legalmente constituído em cada
esfera de governo. (MACEDO, p.36).

Esse espaço, aliado às Conferências de Saúde convocadas periodicamente


pelo governo para propor diretrizes na área, permitiu a inserção popular na gestão
em saúde. No início dos anos 90, proliferaram-se Conselhos de Saúde no país,
sendo criados dois mil entre 1991 e 1993 (MACEDO, 2005). Pela avaliação da
descentralização do SUS, a IX Conferência Nacional de Saúde de 1992 buscou
ampliar a descentralização para além do repasse de verbas pela gestão municipal
da saúde, visando à participação social e o respeito a diferenças regionais. Assim,
foi regulamentado um processo descentralizador que, pela variedade econômica,
social e populacional dos municípios brasileiros, ocorreria em níveis de gestão
(incipiente, parcial e semiplena), e apenas no semipleno os municípios teriam o
encargo integral da gestão. Em 1998 foi criado o Piso de Atenção Básica (PAB), em
que os recursos seriam proporcionais à população municipal, permitindo mais
estabilidade na elaboração de ações locais de saúde. A descentralização ocorreu de
modo negociado e gradual, atrelado à adesão dos municípios, gerando níveis de
gestão heterogêneos, articulados por Comissões Ingestores Tripartites e Bipartites,
com integrantes de distintas esferas de governo. O processo apenas se dinamizou
com a X Conferência Nacional de Saúde, num cenário de negociações e conflitos
entre gestores de várias esferas, que possibilitou que, em 2000, 98% dos municípios
42
fossem cadastrados em algum nível de gestão. Isso permitiu a transferência
automática de outros recursos além da assistência médica, como vigilância sanitária
e epidemiológica e controle de doenças transmissíveis, bem como a inverter o
modelo assistencialista, pela adoção de ações como o Programa de Saúde da
Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários (PACS).

Estas propostas efetivam o princípio da participação e do


controle social através do envolvimento da comunidade no
processo de planejamento das Equipes de Saúde da Família
e na programação local, fomentando o exercício da
cidadania pela comunidade junto aos Conselhos Locais de
Saúde (MACEDO, 2005, p.41).

Todavia, embora a legislação afirme a


inserção social, leis municipais que retiram o
cunho deliberativo dos conselhos, a ausência de
dotação orçamentária própria a estes e de
informações sobre a gestão de governo os
tornam órgãos de mero sentido formal ou
consultivo, obstruindo a participação democrática
de fato (FORTES,1997). Além disso, em
municípios marcados pela desigualdade de acesso a recursos, ao poder e à
informação, "a implementação da política de saúde do SUS é marcada por
procedimentos clientelísticos, patrimonialistas, associados ao tráfico de influências
no exercício da política pública e muito arraigados na cultura política e institucional"
(GERSCHMAN, 2004, p.1677). Nesse quadro, o privilégio que alguns vereadores
dão à sua base eleitoral e a escolha da pauta dos conselhos por secretários de
saúde mostram que, em contextos altamente estratificados, apenas legislação e
intervenção do poder público não podem garantir direitos básicos de cidadania. Nos
municípios onde a participação popular se efetivou, como Londrina (LOPES &
ALMEIDA, 2001), houve importantes avanços, inclusive com a injeção de recursos
municipais para além das diretrizes estaduais e federais. Em outros, nota-se que a
43
instituição de programas e práticas de saúde é formulada apenas no nível federal e
efetuada pela gestão municipal apenas como "forma de injetar recursos externos,
principalmente federais, no município" (GERSCHMAN, 2004). Em geral, notam-se
dificuldades relacionadas à falta de estrutura dos conselhos com participação
comunitária e à forte tradição de autoritarismo e centralização do poder no Brasil,
fomentando situações em que o uso dos conselhos para fins eleitoreiros, o endosso
de decisões governamentais não discutidas e a falta de clareza sobre participação
social obstruem a gestão democrática. Assim, o controle social sobre as ações
estatais deve decorrer de transformações nas relações entre Estado e sociedade,
com a consciência de que estes espaços são palco de lutas políticas, de defesas
dos direitos de cidadania e de garantia de idoneidade na gestão pública, permitindo
que os movimentos sociais influenciem as políticas públicas para o atendimento de
suas demandas.

TERCEIRO SETOR NO BRASIL: QUESTÕES JURÍDICAS,

ADMINISTRATIVAS E SOCIAIS

As pessoas jurídicas são criações do direito de Estado para sistematizar


relações de natureza econômica ou social. O Estado constitui o primeiro setor, e lhe
compete fazer vigorar Constituição Federal e realizar os direitos de cidadania, e
pessoas jurídicas com fins econômicos integram o segundo setor. Compõem o
terceiro setor pessoas jurídicas com fins não lucrativos, que podem empreender
ações que beneficiam um círculo restrito de pessoas (um clube, por exemplo) ou
empreender ações voltadas à comunidade. Integram o terceiro setor fundações,
associações e organizações civis, que muitas vezes têm programas patrocinados
por verbas públicas ou captados junto a empresas. O termo foi traduzido do inglês
―third sector‖, oriundo dos EUA, como ainda a expressão ―non profit organizations

44
(organizações sem fins lucrativos). Há 250 mil organizações da sociedade civil
(OSC‘s) no Brasil, que empregam cerca de 1,5 milhões de pessoas. Muitas de suas
atividades se dão na área social: educação, meio ambiente, geração de emprego e
renda, saúde, cultura, ciência e tecnologia, etc. As OSC‘s mais antigas são de
assistência social ligada à igreja católica, como os orfanatos do período colonial.

A emergência do Terceiro Setor no Brasil é um fenômeno das últimas três


décadas, sobretudo com as ONG‘s a partir dos anos 1980. No panorama múltiplo
que tais entidades hoje expressam, devem-se notar os frágeis limites entre o terceiro
setor e os demais setores. Algumas entidades confundem-se com empresas
privadas, ou se instituem pela pressão de empresas como meio de não contratar
funcionários pela CLT, outras se confundem com o Estado, assumindo funções que
concernem ao bem-estar social. Com afirma Lopes (2004)

Um elemento característico das esferas públicas instituintes tem sido


identificado nas ONG‘s. Ocorre que esta esfera não é tão pública como
parece, à primeira vista, visto que as ONG‘s se articulam em torno de
interesses públicos, mas regularmente se constituem em uma esfera
privada, visando gerir necessidades públicas específicas ou atuar sobre
elas utilizando recursos advindos geralmente da fonte pública (...). Trata-se
de uma administração oficiosa de negócios públicos, sem mandato ou
representação legal definidos na esfera pública (p. 59).

O Estado, coerente à agenda neoliberal, atualmente delega grande parte da


prestação direta dos serviços de interesse coletivo, efetuados por associações de
usuários, fundações ou organizações não governamentais, sob financiamento
estatal. Nessa conjuntura, o Estado atua como regulador e promotor apenas de
serviços sociais considerados básicos e econômicos estratégicos. Busca-se uma
ação apenas parcial, e gradualmente reduzida, na saúde e na educação, havendo
inclusive o financiamento do Estado a entidades privadas, numa fragilização das
relações e prestação de contas do estado com a população. Além disso, muitas
vezes as ONG‘s se voltam à preservação de interesses parciais, nem sempre da

45
população de baixa renda. Lopes (2004) relata vários casos de ONG‘S que se
organizam para propor diretrizes políticas condizentes com interesses da classe
média à qual seus integrantes pertencem, prejudicando interesses da população
mais pobre. Essa difusão das políticas toma impulso pelas mudanças promovidas na
economia neoliberal. Com a reforma do estado, torna-se frequente a execução pelo
terceiro setor de funções antes promovidas pelo Estado, muitas vezes com
pagamento deste, instituindo relações de instabilidade econômica e dependência
institucional nas organizações, que a despeito da expansão do setor em grande
parte sofrem crise de recursos. Tais relações podem intervir na qualidade, reduzir ou
fragilizar ações sociais, condições e vínculos de trabalho, contribuindo para compor
a agenda neoliberal de enxugamento do Estado. Também a globalização da
economia com a fragilização de vínculos trabalhistas e a crescente contratação de
empregados como pessoas jurídicas ou associações profissionais leva ao uso dos
dispositivos jurídicos do terceiro setor de modo desviado da função original.
Numa conjuntura de organização recente e relações de dependência com
empresas privadas e com o Estado numa sociedade capitalista como a brasileira, as
OSC‘s enfrentam dificuldades e ambiguidades no tocante à sua organização,
profissionalização e seu papel social. Por um lado, a história de tais organizações,
em grande parte vinculada ao voluntarismo e a instituições religiosas, dificulta a
profissionalização e organização de informações. Por outro lado, o próprio quadro
social, marcado pelo discurso econômico neoliberal e a organização empresarial
capitalista, favorece a adoção deste modelo como modo hegemônico de formação
das ONG‘s. Cabe ressaltar, nesse contexto, a ligação entre o crescimento das
ONG‘s no Brasil e o período de redemocratização, quando diversas organizações
civis se formaram na luta por direitos sociais, para resgatar o caráter político e
vinculado à cidadania pelo qual a expansão de organizações civis se pautou.
Desse modo, para permitir um arranjo coerente, sólido e profissional, é
relevante delinear metas, meios e instrumentos das organizações civis, bem como
definir o público alvo e a comunicação da organização com este e informar com
qualidade potenciais financiadores: os próprios beneficiários, empresas, órgãos de
governo ou fundações. Todavia, é preciso diferenciar a gestão civil da gestão
46
empresarial e do pensamento em termos da ação como um "produto". O trânsito por
várias linguagens e culturas de setores com que a organização se relaciona, como
empresas financiadoras capitalistas, órgãos governamentais de cultura quantitativa,
própria à escala de políticas públicas e usuários que podem cobrar serviços não
pode obliterar uma gestão democrática. Responder a esses desafios implica clareza
do papel da organização, pela definição da missão que orientará o planejamento de
longo prazo, pelo estabelecimento coletivo de metas e meios de realização, de
avaliação de atividades e arranjo da
contabilidade e dos custos. Enfim, uma
transformação das instituições, numa
ação reflexiva que desenvolva
alternativas de gestão vinculadas, de um
lado, à cidadania e participação coletiva
e, de outro lado à gestão profissional e
social das ações. Certas caracterizações
previstas em lei auxiliam à compreensão
da função social do terceiro setor.
Para as ONG‘s, há certificações
que atuam com distintas
regulamentações e níveis, nas esferas
federal ou estadual. As certificações
públicas conferidas pela lei apenas exprimem um atributo da instituição, não
garantindo isenção tributária, que pode ser cassada por órgãos fiscalizadores diante
de infrações às leis que concederam os benefícios fiscais. Os recursos de uma
entidade beneficente provêm inicialmente de doações. Porém, a entidade poderá
recorrer a recursos públicos, efetuando convênios, parcerias e solicitando auxílios e
subvenções a governos municipal, estadual e federal, autarquias e sociedades de
economia mista, além de crédito no BNDES, isenção de tributos, caso seja
reconhecida por filantrópica, e recursos de órgãos internacionais. A entidade pode
ainda agregar a seu quadro associativo um investidor para causas sociais que,
embora seja uma opção para captação de recursos, leva à situação de fragilidade e
47
submissão da instituição a interesses particulares. As empresas que financiam
sociedades civis obtêm vantagens em sua imagem publicitária, propagando
preocupação e envolvimento com questões sociais, bem como na isenção fiscal
conferida pela lei de Responsabilidade Social Empresarial, pois a entidade que tem
Certificação de Utilidade Pública Federal pode fornecer recibo autorizando a
empresa a deduzir a doação como despesa operacional, até o limite de 2% do lucro
operacional.
Concessão de Títulos Jurídicos No Terceiro Setor: mecanismos de
regulamentação na ação social

O título não designa uma pessoa jurídica, mas uma qualificação que pode ser
conferida, suspensa ou retirada. A concessão de títulos jurídicos a entidades do
terceiro setor visa distinguir entidades qualificadas em comparação às comuns,
inserindo as primeiras num regime jurídico de vantagens frente ao Estado. Busca-se
ainda padronizar o tratamento jurídico de entidades que apresentem atributos
comuns e orientar o controle das atividades das entidades, tanto pela concessão do
título quanto pela suspensão e cancelamento. Essa organização, em princípio, pode
ser vantajosa, pois entidades que recebem o título e passam a possuir certificação
de idoneidade têm benefícios garantidos em lei e recebem enquadre jurídico distinto
do comum. A titulação evita ainda que se criem vantagens isoladas em favor de
entidades que visem o interesse coletivo.
Mas existem desvantagens nessa concessão de títulos jurídicos, como na
certificação indevida, por falta de critérios, favorecimento político ou fraude. Há
também desvantagem na insegurança jurídica que acompanha a concessão, pois a
manutenção do título se condiciona ao cumprimento de exigências aferidas
periodicamente pelo governo, e este mecanismo de controle gerencial não possui
previsão jurídica clara nem normas que assegurem às entidades garantias contra o
exercício abusivo do controle. A entidade qualificada está então sujeita a desvios,
inclusive pela corrupção. Algumas dessas desvantagens se observam em situações
relativas ao título de utilidade pública.
48
Crise do título de utilidade pública

Entidades do terceiro setor obtêm o título de utilidade pública, um dos mais


antigos da legislação, para efetuar ações de fim público como parceiras do Estado.
Devido à formulação antiga, por um lado, a maioria das leis que regulam parcerias
entre Estado e terceiro setor têm este título como referência, e por outro suas
normas, dispostas na Lei n. 91, de 1935, e pouco alteradas ao longo do tempo,
tornaram-se antiquadas, havendo críticas sobre sua utilidade, atualidade e
pertinência. No quadro neoliberal, com aumento de entes "públicos não estatais".
(CUNIL GRAU, 1996; PEREIRA, 1996; 1997), pelo cumprimento de requisitos que
visam, porém muitas vezes não garantem a salvaguarda do interesse público, a
cooperação é lícita e mesmo estimulada na Constituição (MODESTO, 1997),
levando à preocupação ainda maior com a gerência do Estado quanto às parcerias
com entidades privadas. Agravando a situação, transparência e clareza de
propósitos na relação entre Estado e organizações nem sempre encontram
ressonância na legislação.
As leis federais sobre utilidade pública, deficientes e lacônicas, têm facilitado
o desvirtuamento do terceiro setor no país, pois deixam vários temas sem cobertura
e sob o comando de autoridades administrativas, favorecendo a proliferação de
entidades inautênticas e de fachada, atadas a interesses econômicos, políticos ou
de grupos restritos ou ainda de processos de corrupção no setor público. A ausência
de distinção clara entre entidades de fins ou favorecimento mútuo (que beneficiam
um círculo restrito de sócios, inclusive pela cobrança de contribuição em dinheiro) e
entidades de fins comunitários, fins públicos ou solidariedade social (voltadas à
comunidade em geral, sem perfilar vínculos jurídicos especiais) agrava ainda mais
tal situação, qualificando de igual modo creches, clubes, escolas comunitárias e
privadas, etc. Pelo título Utilidade Pública, a lei autoriza aos dois tipos de entidade
um tratamento de renúncia fiscal, previsão de subvenções sociais, contratação direta
49
etc., e deixa de prever formas de controle além da exibição periódica de
documentos. Esse cunho indiferenciado e a debilidade do sistema de controle
facilitam abusos, como no "escândalo do orçamento", esquema de corrupção
descoberto por acaso, no qual parlamentares utilizavam entidades filantrópicas de
fachada, que recebiam recursos públicos por sua ação parlamentar sem nenhum
compromisso com ações sociais. Entidades como estas já foram inclusive chamadas
por Leite (1997) como "filantrópicas". Este contexto levou a discussões dentro e fora
do Estado, propondo formas de reconfigurar o título de utilidade pública.
Recentemente, duas propostas tornaram-se leis (Lei n. 9.637/98 - Organizações
Sociais; Lei n. 9.790/99 - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público),
criando novos títulos jurídicos.
O título de entidade filantrópica

Uma entidade filantrópica é uma sociedade sem fins lucrativos (associação ou


fundação), criada com propósitos como: assistir à família, à velhice, à infância, à
maternidade, à habilitação e reabilitação de portadores de deficiência, etc. Para ser
reconhecida legalmente como filantrópica, a entidade precisa comprovar uma
atuação voltada aos mais desprovidos por no mínimo de três anos, sem distribuir
lucros nem remunerar seus dirigentes. Deverá possuir os títulos de Declaração de
Utilidade Pública e o título de Entidade Beneficente de Assistência Social, do
Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Obtendo o título de entidade
filantrópica, esta pode receber isenção tributária após preencher outros requisitos da
Lei, em especial aplicar ao menos 20% de sua receita em obras sociais. A entidade,
tendo utilizado recurso público, passa a possuir compromisso com o erário, ou seja,
passa a ter interesse público e a obrigação de destinação comunitária do recurso
público. Assim, caso encerre as atividades, deve reverter o patrimônio a uma
instituição congênere, senão irá caracterizar enriquecimento ilícito. Pelo decreto nº.
3.048/99, entidades filantrópicas devem ainda entregar no INSS anualmente um
relatório, o Plano de Ação, que visa informar o órgão sobre os projetos sociais a
serem efetuados, bem como dois outros relatórios sobre as atividades sociais
50
efetuadas no ano anterior, chamados Relatório de Atividades. A não entrega dos
relatórios no INSS e no Ministério da Justiça implica sanção à entidade, como multas
e a perda da isenção fiscal e da Certificação de Utilidade Pública Federal e do
Certificado de Filantropia.

O título de organização social (OS)

A Lei n. 9.637/98 criou título Organização Social (OS) como uma resposta à
crise do título de utilidade pública. A denominação organização social designa um
título conferido a entidades sem fins lucrativos que atendem requisitos de
constituição e atuação que visam assegurar o interesse público e fixar garantias para
uma relação de confiança e parceria entre a entidade e o Poder Público. Embora
tanto o título de Utilidade Pública quanto o de Organização Social (OS) afiancem
benefícios e controles inexistentes a outras pessoas jurídicas privadas (como
vantagens tributárias e fiscalização pelo Ministério Público), o título de OS confere
vantagens e sujeições inexistentes para entidades de Utilidade Pública. Entre estas
está a publicação no Diário Oficial da União do relatório de execução do contrato de
gestão, o uso de bens materiais e recursos humanos de órgãos extintos do Estado,
e a absorção de suas
atividades, contratos e seus
símbolos designativos,
seguidos do símbolo OS.
O título de organização
social busca corrigir desvios
do título de utilidade pública,
restringindo a cessão a entidades

51
de fins comunitários, evitando certificar entidades de favorecimento mútuo. Assim, a
lei dispõe regras para compras e salários; exige um colegiado superior composto por
fundadores, representantes da comunidade e do Estado; prevê auditorias; exige
para fomento público um contrato de gestão com o Estado, que define tarefas a
cumprir; responsabiliza os dirigentes pelo mau uso de recursos públicos, entre
outros critérios ausentes no título de utilidade pública. Mas isso não significa que a
legislação de OS seja imune a desvios: este título foi concedido a apenas duas
entidades no nível da União e, em ambas, a qualificação foi precedida da extinção
de entidade ou órgão público, recaindo em entidades com pouco tempo de
existência, sem ações comprovadas nem capital próprio, salvo o capital humano.
Assim, o título acabou atuando como meio de enxugamento do Estado, com
favorecimento privado.
Essa situação revela lacunas na lei, como falta de exigência das entidades
candidatas de um tempo mínimo de atuação comprovada em sua área de ação. Em
leis estaduais sobre o título de OS, essa exigência tem sido incluída (v.g, Lei
Complementar n. 846/98, do Estado de São Paulo, exige atuação de mais de cinco
anos). Há ainda lacunas na não exigência de patrimônio ou qualificação técnica e na
não exigência de contraprestação por um percentual de serviços gratuitos
diretamente voltados ao cidadão nos contratos entre Estado e OS.

O Título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)

A lei sobre o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público


(OSCIP – Lei n. 9.790/99) concede isenção fiscal a entidades de confirmada ação
social e transparência. A entidade sem fins lucrativos deve preencher requisitos
como: promover a cultura, educação, segurança alimentar, meio ambiente, saúde,
combate à pobreza, etc., e manter uma gestão de transparência financeira. O
Ministério da Justiça avalia os requisitos, reconhece e expede o título de OSCIP. A
lei permite pagamento aos dirigentes e prioriza a OSCIP como parceira de ações
52
efetuadas pelo Estado. Criada na reformulação da lei de utilidade pública, a lei tem
alguns itens semelhantes à lei de Organizações Sociais (OS): restringir a distribuição
de lucros pela entidade, exigir identificação de áreas sociais de ação e um conselho
fiscal para os gestores, exigir o caráter público de documentos, realizar auditorias
externas, etc. Prevê pagamento restrito a salários do mercado e responsabilização
dos dirigentes e desqualificação da entidade em caso de fraude ou atuação ilícita. O
título inova no aval do cunho social da entidade, com exigências nas quais a lei
identifica aquelas que não devem receber o título, exige especificação dos
candidatos potenciais e observância de condutas das Normas Brasileiras de
Contabilidade. Em educação e saúde, exige prestação de serviços gratuitos e proíbe
a participação em campanhas político-partidárias ou eleitorais.
A lei exige atuação por pelo menos um exercício financeiro, por documentos
como o balanço patrimonial e demonstrativo do resultado do exercício. O novo título,
porém, admite por apenas dois anos a cumulação do título de OSCIP com outros
títulos jurídicos para entidades do terceiro setor, após o que a entidade deve
renunciar outras qualificações para manter o título de OSCIP. Como a maioria dos
benefícios para entidades do terceiro setor supõe o título de utilidade pública, pode-
se afastar deste título entidades idôneas pouco dispostas a perder vantagens atuais
por benefícios incertos, mantendo o financiamento nas bases menos claras do título
de Utilidade Pública. A lei cria ainda um paradoxo: nos dois anos iniciais, entidades
duplamente qualificadas (Utilidade Pública e OSCIP) têm mais vantagens que
entidades qualificadas há mais tempo como OSCIP. Evitando tais lacunas, a lei de
organizações sociais é exigente ao qualificar entidades novas, mas não exige perda
de benefícios, pois entidades que obtêm o título OS têm também o título Utilidade
Pública, tornando o título OS um atributo adicional. Há um cuidado nas novas leis
para reduzir a margem de manobra de autoridades administrativas na cessão do
título, alçando um antigo problema do título Utilidade Pública. Mas as leis deixam
brechas relevantes, como a falta de disciplina mais detalhada do processo de
cassação do título, omissões sobre a liberação financeira dos recursos públicos
vinculados às parcerias em ambas as leis. No geral, deve-se avaliar que a
concessão de títulos, embora vise à idoneidade das entidades, participa de relações
53
público-privadas passíveis do prejuízo público, e não foram instituídas no quadro de
um plano articulado e democrático de atenção social do Estado. Nesse sentido,
Oliveira & Haddad (2001) lembram que:

No Brasil, a legislação que regula as OSC‘s é um cipoal de normas


construído a partir do Código Civil de 1916, ao sabor das circunstâncias
políticas e lobbies setoriais. Não existe uma tipologia das entidades sem fins
lucrativos, mas frouxas categorias criadas por leis sucessivas para atribuir
privilégios a grupos bem articulados de organizações (...) também vem
crescendo o interesse de parte dos grupos empresariais e do capital, em
geral, nos rumos e no controle das orientações e do atendimento
educacionais. Há uma proliferação de institutos e fundações de empresas
privadas, constituídas muitas delas com base nas isenções fiscais, quase
todas mantendo a educação como uma das suas atividades principais. A
forte presença do capital no plano das ações sociais e da educação, em
particular, demonstra (...) um compromisso social de parte do capital (...).
Mas, ao mesmo tempo, aponta para um crescente descomprometimento do
setor público com a educação, correndo-se o risco de rompimento de um
dos aspectos mais importantes na construção da democracia social
brasileira. (p. 81).

TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA: SUA RELAÇÃO COM O


TRABALHO, A CULTURA E A SOCIEDADE

O estudo da relação família-trabalho aborda o conjunto das influências


recíprocas da dinâmica das atividades produtivas e da dinâmica das famílias,
buscando conhecer de que maneira as transformações e criações de novas
atividades econômicas e novas formas de produção e gestão que afetaram as
oportunidades de emprego de homens e de mulheres, bem como sua atuação no
mercado de trabalho, influenciam e se manifestam na unidade familiar. No Brasil, os
54
períodos de transformação do mercado de trabalho afetaram profundamente a
organização da família. O período do final dos anos 70 e início da década de 80 é
marcado pela crise econômica e a acentuação da entrada da mulher no mercado de
trabalho, tanto cônjuges como filhas, que conhece nova ascensão no início da
década de 90. Essa inserção acompanha as próprias restrições colocadas pelo
mercado, quando cresce o desemprego masculino, indicando rupturas na
possibilidade concreta de realização do padrão de família mantido pelo chefe
provedor, especialmente nas conjunturas recessivas (MONTALI, 2003), e pode
expressar transformações nas relações internas de hierarquia e de poder.
Na década de 90, as mudanças na relação família-trabalho ocorrem sob o
impacto da desconcentração industrial, do desenvolvimento do terciário e da
reestruturação produtiva. O intenso processo de inovações organizacionais e
produtivas acentuou a deterioração das relações de trabalho e o desemprego,
gerando novas estratégias de vinculação das famílias ao mercado de trabalho. No
final dos anos 90, há um discreto recrudescimento do desemprego, que, todavia, é
acompanhado pela queda da renda dos ocupados e da renda familiar per capita,
gerando rearranjos de inserção no mercado de trabalho. Percorre toda a década de
90 o maior compartilhamento ou deslocamento da responsabilidade financeira dos
principais mantenedores tradicionais para outros componentes da família, em
especial para a mulher-cônjuge. Essa tendência se delineia face à redução de
postos de trabalho, sobretudo para ocupações predominantemente masculinas, e às
maiores dificuldades de absorção vividas pelos jovens a partir de 1992, que
resultaram em crescente
desemprego dos principais
mantenedores das famílias até então
(chefes e filhos masculinos e filhas
maiores de 18 anos).
Destacam-se nesse contexto
duas importantes tendências. A
primeira, no caso de famílias

55
estruturadas em torno do casal, refere-se à participação crescente da mulher-
cônjuge entre os ocupados da família, à redução do peso do chefe masculino entre
estes e à diminuição da participação dos filhos. Uma exceção entre famílias
conjugais é encontrada naquelas cujos casais têm mais de 50 anos e há filhos
residentes, em que cresceu a participação do chefe masculino entre os ocupados da
família de forma concomitante à redução da participação dos filhos adultos, afetados
pelo desemprego. A segunda tendência refere-se às famílias com chefia feminina
sem cônjuge, nas quais a participação da chefe entre os ocupados da família
aumenta devido à menor absorção de filhos e parentes jovens pelo mercado de
trabalho. Até o final da década de 90, há a continuidade progressiva destes
rearranjos familiares de inserção no mercado de trabalho.
Essas alterações afetaram a relação família/trabalho, por exemplo, pela
exigência de escolarização, usualmente maior entre mulheres, e geraram mudanças
das relações hierárquicas na família, como diferenças nas relações de gênero ou
idade em seu interior. Mudanças nas vagas, vínculos trabalhistas e padrões de
contratação, entre outros, tais como o aumento do desemprego e de vínculos
flexíveis que não consideram a legislação trabalhista também afetaram
diferentemente os componentes familiares. Sob o aspecto social, transformações na
posição da mulher no círculo familiar, com sua inserção no mercado de trabalho e
um acesso à escolarização que muitas vezes supera os homens geraram
transformações na imagem representada de paternidade e maternidade. Nesse
sentido, constituíram-se novas formas de articulação entre conjugalidade e
paternidade, já bem estabelecidas nos anos 90. As transformações nas práticas e
representações da paternidade estão vinculadas às alterações concomitantes na
conjugalidade. Assim, pesquisas referem uma memória da corte mais velha sobre
seus próprios pais que, a despeito de diferentes nuances, é construída à imagem e
semelhança de um austero e respeitável ―homem de família‖ provedor, casado e
pai.
As tensões introduzidas na relação conjugal ao longo das duas gerações –
pelo trabalho remunerado das mulheres e por suas reivindicações de equidade,
pelos novos padrões de consumo familiar, pela mobilidade social e por projetos de
56
vida crescentemente mais individualistas – e a fragmentação observada na imagem
do homem de família, constituem um campo para a coexistência de distintas
experiências de vivência parental, com uma crise desta figura paterna tradicional,
sem a consolidação de um modelo que a substitua.
Assim, pesquisas relatam dificuldades de consagração dessa imagem em
contextos de baixa renda, em que os homens se encontram distanciados do modelo
central da masculinidade. Nesse contexto, as redes de relações e as estratégias
comunitárias de sobrevivência preponderam e, paradoxalmente, há dificuldade para
construir lugares masculinos que não sejam o de provedor, chefe e pai. As ações
dos trabalhadores para aproximá-los do modelo partilhado idealmente vinculam-se a
situações que inviabilizam a efetivação desta demanda, pois os trabalhadores são
marcados por períodos de desemprego e constroem argumentos para legitimar sua
condição de desempregados. Nessa conjuntura, há uma dificuldade de continuar a
reivindicar o lugar tradicional de homem devido a períodos de sustento financeiro
pela esposa, a mãe ou outro membro da família e novas relações de gênero
caminham ambiguamente ao lado de múltiplas situações de providência financeira.
Por isso, trabalhar a dimensão da família brasileira sob a ótica da chefia familiar
representa ainda uma delicada questão epistemológica, na medida em que a maioria
dos estudos sobre família tende a incorporar a perspectiva de gênero como um
problema unicamente feminino.
Dados estatísticos sobre o perfil de homens e mulheres chefes de família
permitem mostrar a permanência de diferenciais em termos educacionais e de
acesso aos serviços e bens de consumo coletivos bem como ao mercado de
trabalho. Esses dados mostram também que, embora entrando no mercado de
trabalho com desvantagens no tocante ao vínculo trabalhista mais frágil, as mulheres
acabam desenvolvendo alguma vantagem em relação à manutenção do posto de
trabalho. Observa-se ainda a alteração de relações, ou constituição de novas
relações de família como, por exemplo, o crescente afastamento da tradicional
imagem de dependente do idoso e sua relativa substituição pela de contribuinte ou
até esteio do grupo familiar. Além disso, vêm se ampliando os interesses e
horizontes sociais dos idosos no que se refere a outros grupos e relações,
57
principalmente por espaços sociabilizadores nos programas de lazer e cultura para a
―terceira idade‖, embora seja mantida a importância da família.
Outro fator para a análise das relações familiares é a transformação, ao longo
das últimas décadas, na compreensão da homossexualidade, alavancada pela
exposição do preconceito com o fenômeno da AIDS. A crescente organização civil
em torno do respeito à homossexualidade, as resoluções de diversos conselhos
profissionais na área da saúde proibindo sua avaliação como doença e o número
crescente de mortos que deixavam parceiros legalmente sem direitos sobre o
patrimônio muitas vezes construído em conjunto contribuiu para que, nos anos 80 e
90, vários países da Europa legalizassem a união entre pessoas do mesmo sexo. Se
a crise da família vem sendo anunciada há alguns anos, a reivindicação do direito a
ser pai e mãe feita por homossexuais, visto como desdobramento desse novo
conjunto familiar, oferece novos matizes à discussão, referindo o surgimento de
novas organizações familiares que fogem ao padrão tradicional, tal como ocorreu há
trinta anos em relação ao divórcio.
No contexto das transformações na formação, estruturação e dinâmica da
família, permanece seu papel central de ―amortecedor‘ social. Frente aos baixos
salários, à carência de serviços públicos e a outros fatores desfavoráveis, o grupo
familiar se viabiliza ―em decorrência de uma lógica de solidariedade e de um
conjunto de práticas no campo de ação de grupos domésticos, que atuam como
unidades de formação de renda e de consumo, procurando maximizar os recursos à
sua disposição‖ (CARVALHO e ALMEIDA, 2003, p. ). Assim, a família mantém sua
importância como espaço de sociabilidade e de socialização, e mudanças em seu
entorno refere-se mais à sua grande capacidade de adaptação frente às
transformações econômicas, sociais e culturais do que a uma pretensa ameaça de
dissolução. Por isto, a família tem sido considerada foco central das políticas sociais,
constituindo o eixo sobre o qual os programas e ações podem possuir maior
efetividade e pertinência.

Família e Políticas Sociais

58
Nesse capítulo, serão discutidas algumas abordagens no trabalho com
famílias, visando apresentar certos modos de compreensão e organização da ação
clínica em saúde em alguns contextos do atendimento público. Essas ações
contextualizadas não visam abranger todo o espectro do cuidado bio-psico-social em
políticas de assistência pública, mas apenas oferecer referências para refletir sobre
modos de ação diferenciados conforme o contexto e demanda em questão.
Desse modo, a compreensão da assistência em políticas públicas se remete à
compreensão de ações de cuidado como clínicas, que em seu sentido etimológico
refere-se ao cuidado e atenção a outro. De acordo com Lévy (2001), clínica refere-se
à palavra grega kline, e tem o sentido
de atenção e cuidado a uma
demanda. Esse modo de
compreender a clínica possibilita
articular o atendimento
multidisciplinar enquanto múltipla
atenção em diferentes direitos da
cidadania, tais como saúde,
educação, moradia, etc. Os problemas relacionados a demandas a múltiplos
profissionais – médico, assistente social, psicólogo, educador, terapeuta
ocupacional, agente de saúde, entre outros – estão geralmente associados a uma
variada e imbricada gama de aspectos e problemas na situação de vida da
população, tais como doenças, crises repentinas que rompem a dinâmica familiar
estabelecida, dificuldades de apropriação e pertencimento aos espaços já instituídos
de socialização ou cuidado público (escolas, dispositivos de saúde, associações de
bairro, etc.), o contato cotidiano com problemas da realidade social, tais como o
tráfico, situações de violência, desemprego, miséria, etc. Assim, apresentar-se-á
alguns trabalhos no âmbito da saúde e assistência social que usualmente possuem
abordagem interdisciplinar.

59
Reintegração Familiar

O trabalho de reintegração familiar se origina na determinação judicial para a


reintegração à família de uma criança residindo em abrigo. Para efetuar tal ação, é
preciso analisar meios pertinentes para alcançar tais objetivos, atentando para as
situações específicas de cada família e constituindo elos de referência por meio dos
quais a família possa sustentar social, econômica, psicológica e institucionalmente, a
situação de reintegração. Nesse processo, é importante analisar o desejo da criança
e da família, e buscando evitar sofrimentos para ambos, numa atitude de escuta
atenta e compreensiva, analítica e avaliativa.
Além disso, para implementar encaminhamentos e intervenções, o técnico
deverá estar atento a suas próprias questões valorativas, visando compreender, de
forma não preconceituosa, as diferenças de articulação e estruturação da família,
sobretudo quando escapam ao modelo de família tradicional. Isso porque vários
fatores interagem nesse momento, alguns de ordem prática, como a possibilidade de
que o retorno da criança onere o orçamento familiar, outros de ordem subjetiva,
como o reordenamento de papéis exercidos na dinâmica familiar.
Anteriormente à reintegração, deve-se investigar alguns aspectos para
possibilitar a cesura de um tecido relacional no qual a criança possa se inserir.
Primeiramente, é preciso avaliar a motivação da família na desinstitucionalização. A
origem da proposta de desligamento da criança (a família, o abrigo, o Juizado ou
uma ONG) indica possíveis dificuldades, sobretudo quando tal iniciativa não parte da
família, requerendo um apoio sistemático, a médio e longo prazo.
Em segundo lugar, é necessário conhecer a história de vida da família – sua
constituição, a rede social intra e extrafamiliar, sua dinâmica e interação – e as
razões da institucionalização, do ponto de vista da família. Por meio da percepção
dos aspectos sócio-psicológicos e jurídicos que possam estar dificultando o
acolhimento familiar, é possível articular estratégias contextualizadas de intervenção.
Identificar, na história familiar, os fatores significativos – violência doméstica, rejeição
mútua ou unilateral, doença mental, desemprego, etc. – que possam sinalizar a
60
pertinência ou contraindicação da reintegração naquele momento. Ao longo desse
processo, visitas domiciliares à família, entrevistas biográficas, de anamnese, e
entrevistas familiares sistêmicas, realização de grupo de pais (espaço social);
investigação da rede social de contatos (espaço social) são importantes
instrumentos que possibilitam o enfoque em aspectos fundamentais, tais como: a
investigação da dinâmica e rede social familiar; o papel da criança a ser reintegrada
nessa dinâmica, com a investigação de hipóteses e de informações sobre as
relações; a história do afastamento da criança, com o questionamento dos fatos
ocorridos; a análise do ciclo de vida da família; a rede social da família e o contexto
cultural.
Quando há negativa da família para a reintegração, pode-se buscar
alternativas junto a parentes afins. Muitas vezes, a família afirma desejar o retorno
da criança, mas não se mobiliza para efetivar sua saída do abrigo, sendo importante
criar ações que favoreçam a convivência familiar da criança e evitar que ela
permaneça definitivamente institucionalizada. A negativa da criança pode sinalizar a
vivência de algum tipo de violência, como vitimização psicológica, abusos ou
violência física, que em geral está ligada ao próprio abrigamento e precede o
encaminhamento efetuado pelo Conselho Tutelar, pelo Juizado da Infância e da
Juventude ou por familiares. Quando a família toma a iniciativa para abrigamento,
pode haver uma situação de violência camuflada, sendo relevante investigar as
representações e referências que a criança possui de sua família.
No contexto de investigação das inter-relações nas quais se dará a
reintegração da criança, é preciso analisar junto a ela quais vínculos lhe são mais
significativos, suas motivações e modos de constituição, bem como os fatores que
dificultaram a manutenção dos vínculos entre ela e a família (visitas esporádicas ou
inexistentes, embargo jurídico e outros). Do mesmo modo, a investigação de suas
expectativas e referências de família, de abrigo, de futuro para a sua vida, bem como
os sentimentos com relação ao abandono (como o viveu, e como o vê no momento)
alicerça o desenvolvimento de ações de preparação gradativa para o desligamento
do abrigo, visando tornar essa passagem a menos traumática possível. Por outro
lado, o conhecimento da dinâmica da instituição auxilia a compreender os aspectos
61
que podem influenciar na manutenção ou não dos vínculos familiares nela (pouca
flexibilidade nos horários reservados para as visitas, por exemplo), bem como
observar quais são os vínculos existentes entre a criança e o abrigo em sua interface
com a família (a criança pode tecer relações no abrigo que lhe garantam uma rede
de significação com a qual compara a dinâmica familiar, por exemplo). Nesse
contexto, é necessário o estabelecimento de um contrato de consenso sobre os
objetivos da reintegração.
Após o desligamento, é necessário um trabalho de acompanhamento, que
avalie os modos da criança e da família de lidar com a reintegração, investigando os
meios de ―reorganização‖ e tessitura de vínculos colocados em prática para o
acolhimento efetivo, as mudanças na dinâmica familiar para viabilizar a permanência
da criança no lar, bem como a necessidade de suportes socioeconômicos de apoio à
família, que devem ser procurados, entre os recursos da rede social (rede de
serviços), dentro da pertinência de cada caso. Durante o trabalho, é importante
refletir junto à família a dicotomia entre FAMÍLIA e ABRIGO, preparando-a para
eventuais exigências da criança/adolescente, bem como fortalecê-la no
enfrentamento das dificuldades que poderão ocorrer na adaptação da
criança/adolescente, suas idealizações e expectativas diante da mudança de
realidade. É importante também atentar para as formulações do estatuto da criança
e do adolescente nesse sentido, que afirma em seu artigo 19 que ―Toda criança ou
adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes‘‘. Assim, os abrigos devem ser um recurso provisório, visando sempre
a reintegração familiar, quando possível. Quanto maior o tempo de permanência da
criança no abrigo, maior será o desapego com relação à família (principalmente
quando a instituição não favorece esse contato), o que torna mais difícil reatar os
vínculos. (VASCONCELOS, 1985).

62
TRABALHANDO COM FAMÍLIAS EM SAÚDE DA FAMÍLIA

No trabalho em saúde da família, é preciso refletir e construir metodologias de


interação com a comunidade, analisando suas demandas, para a implantação de um
programa eficiente de atenção primária em saúde, em etapas progressivas para o
acompanhamento familiar de longo prazo, fomentando o auto cuidado e práticas de
vida comprometidas com a saúde. O trabalho com famílias possui uma perspectiva
própria e dever ser distinto da terapia familiar: enquanto o primeiro é um
acompanhamento multidisciplinar com múltiplas intervenções e ações que se valem
das estruturas da família, o segundo propõe uma intervenção especializada, que
busca modificar a dinâmica de relações familiares. O trabalho com famílias se
desenvolve pela compreensão sistêmica, tanto da dinâmica familiar quanto de suas
interações no contexto social e econômico mais amplo: redes de relações e apoio
fora do âmbito familiar, relações de trabalho de membros da família, outras
instituições que participam de seu cotidiano (escola, creche, associações de bairro e
instituições de saúde), etc.

63
A relação deve ser construída ao longo das ações de saúde, explorando as
estruturas da família a partir das brechas para, compreendendo-a, preparar uma
estratégia pertinente a cada conjunto familiar. A ocasião de cadastro das famílias, as
mudanças de fase do ciclo de vida destas, o surgimento de doenças crônicas ou
agudas de maior impacto são momentos-chave que devem ser explorados. Estas
situações permitem que o profissional de cuidados primários crie um vínculo
pertinente com membros da família, pois atua no momento de emergência de uma
demanda familiar. O trabalho na atenção primária em saúde da família deve
considerá-la como lócus central de atuação e basear-se na realidade local,
construindo um fazer consistente que parta
dos recursos comunitários para a melhoria
dos indicadores de saúde. Nesse sentido, é
fundamental a constituição de estratégias
de investigação e conhecimento da
comunidade, que podem se dar em
conjunto com a intervenção. O processo
junto às famílias deve considerar diferentes
etapas de trabalho, favorecendo a
aderência e a efetividade do serviço de
atenção primária. Assim, o trabalho pode
ser dividido didaticamente em diferentes etapas – Associação, Avaliação, Educação
em Saúde, Facilitação e Referência – para melhor explicação e compreensão. A
utilização destas etapas depende da situação dada e das necessidades de cada
família atendida.

Associação

Associar-se ao paciente e sua família é fundamental para a construção do


processo de promoção do cuidado em saúde. A associação se inicia no momento
64
em que um paciente traz ao profissional uma situação em que a família (ou o grupo
com o qual interage) interfere direta ou indiretamente no processo. Muitas vezes, o
desenvolvimento do processo terapêutico do paciente fica comprometido por
dificuldades familiares, necessitando de uma intervenção clínica ou social, sendo
este um momento muito rico para se estabelecer parceria com o grupo.
Para uma boa interação, o profissional deve respeitar a realidade e crenças
do grupo, o que pode ser difícil. A realidade de vida das pessoas é diversificada e
exige do profissional uma observação atenta para não recair em atitudes centradas
em seu próprio modo de compreender e em soluções baseadas no seu próprio
núcleo de conhecimentos, que podem levar ao confronto e mesmo ao rompimento
da relação com o paciente e sua família. Partindo da concepção de Paulo Freire
acerca da necessidade de se perceber as experiências pessoais na construção de
uma comunicação efetiva, deve-se considerar que, para que esta comunicação
ocorra, é preciso que ela se baseie na realidade vivida e constitua uma
complexidade de sentidos pertinente à pessoa que se pretende atingir.
Assim, o trabalho de associação com os pacientes e famílias abrange o
encontro com grupos familiares e a busca de compreensão dos sentimentos e
vivências de cada paciente. Nessa aproximação, é importante a atenção e o cuidado
aos momentos de contato, às crenças, relações e hierarquias familiares. Deve-se
ainda considerar os obstáculos possíveis, tanto de ordem profissional (como a falta
de clareza dos motivos e direções da entrevista familiar), quanto do paciente (como
o temor de perder seu status perante o profissional na escuta dos demais membros
da família) e as armadilhas neste tipo de intervenção que podem expor o profissional
(como a lateralização da comunicação com um dos membros da família, uso de
linguagem inapropriada para aquele grupo familiar, etc.). A associação ao paciente e
sua família possibilita a efetiva inserção dos cuidados primários de saúde para uma
melhoria da qualidade de vida da comunidade.

Avaliação

65
Uma vez construída a associação com a família, é importante perceber sua
dinâmica, por meio de instrumentos mais objetivos de análise. Essas ferramentas
buscam explicitar as linhas de poder e decisão da família, seu modo de perceber o
processo de saúde e doença, seus recursos concretos e simbólicos e seus apoios
internos e comunitários. A partir desta análise de conjuntura se constituirá o projeto
de intervenção, reconhecendo a crença da família no processo de adoecer e
acordando com ela um plano de ação que respeite o seu modo de vida.
A análise clínica do grupo familiar permite entender os caminhos pelos quais
surgem as diferentes situações de agravo à saúde, como os motivos da grande
incidência familiar do alcoolismo, ou das dificuldades de um paciente hipertenso em
controlar sua hipertensão. Minuchin & Colapinto, por exemplo, descrevem a situação
de gêmeas idênticas portadoras de diabete que mostravam controle desigual da
moléstia. Ao analisar as relações familiares destas meninas, constataram que a que
possuía mal controle da doença manifestava-a como sintoma devido aos problemas
de relacionamento dos pais – sempre que estes brigavam, ela apresentava uma
crise na diabete. Assim, além da eficácia das medicações e da pertinência das
orientações profissionais, é necessária uma compreensão das situações de saúde e
doença no conjunto de fatos e relações no cotidiano do sujeito e da família, para
prevenir doenças e suas consequências.
A avaliação adequada do papel da pessoa portadora de qualquer agravo em
sua estrutura familiar (como esta doença é percebida pelos membros do grupo, em
que coisas eles acreditam ou gostam de fazer), possibilita a efetividade e aumenta a
resolutividade das intervenções e ações em saúde. Por exemplo, uso de álcool em
tradições familiares e em momentos de comemoração da família dificulta sua
percepção como risco à saúde ou a compreensão da situação de consumo frequente
como um passo inicial para a dependência. Intervenções que proponham enfrentar o
alcoolismo devem considerar seu significado para o grupo alvo e usar as
representações deste nas ações em saúde, para melhorar os resultados na
prevenção e tratamento. Já o enfrentamento de doenças crônicas deve investigar
como o paciente e sua família entendem a doença, ampliando seu conhecimento
66
através de orientações em linguagem apropriada à compreensão, sobretudo no
tocante à influência da modificação de hábitos na prevenção ou no retardo da
evolução de doenças. Essas negociações só são possíveis pela efetuação
satisfatória do processo de associação e avaliação, permitindo resultados mais
consistentes e duradouros no acompanhamento do paciente.
Dentre as ferramentas de avaliação disponíveis em atenção primária, há
algumas particularmente úteis, como o Genograma, um instrumento de identificação
de padrões de repetição de patologias que permite uma visualização rápida das
ações a serem desenvolvidas pela família em estudo. O Ciclo de Vida das Famílias é
outra ferramenta relevante, pois identifica as situações mais frequentes de
surgimento de disfunções. Percebe-se, por exemplo, que o surgimento de doenças
aumenta nas fases de transição e estresse, em que a família é desafiada a se
reestruturar. A análise do Ciclo de Vida permite auxiliar a família a compreender e
construir modos de atravessamento dessas transições.
Um terceiro instrumento é a Rede Social, que permite vislumbrar os apoios e
crenças da família, identificando pessoas-chave para a busca de amparo e
compreendendo as bases culturais de interação familiar. Os contatos e estruturas da
comunidade permitem buscar soluções a partir do próprio núcleo, criando alicerces
para o auto cuidado. A cartografia (MORATO, 1999) da comunidade e do núcleo
familiar também constitui um importante método clínico, que permite reconhecer
relações, compreensões e percepções da família, buscando vias de passagem e
construção de soluções. Pode-se, assim, partindo da intervenção e escuta clínica
dos problemas relativos a certo tema, resgatar recursos negados socialmente
(SZYMANSKI, 2004). A enquete clínica (LEVY, 2001), por sua vez, permite conhecer
profundamente vivências e representações sociais de grupos e indivíduos, sendo útil
na investigação de obstáculos, facilitações e motivações da família para a aderência
às ações em saúde. Para um aprofundamento dos instrumentos de avaliação
pertinentes a intervenções em atenção primária, pode ser encontrado material
adequado nas referências bibliográfica.
Educação em Saúde

67
A constituição de um processo de educação em saúde deve favorecer o
desenvolvimento do auto cuidado e de hábitos de vida saudáveis, antecipando
situações que permitam às famílias e pacientes compreender o processo de adoecer
e como ele pode impor alterações e restrições a suas vidas. Um dos momentos mais
pertinentes para abrir espaços para a educação em saúde é quando a família ou o
paciente procura a equipe de saúde para resolver um problema, pois permite uma
discussão sobre o processo de adoecer que deu origem à demanda que encontra
maior receptividade do paciente.
Nessa fase, é mister lembrar que o
viver e o fazer da população possibilitam
novos modos de construção de caminhos,
de produção de cultura e de criação de
soluções, e que considerar os recursos e
discursos da família e da comunidade é a
melhor maneira de promover ações em
saúde, bem como de criar novas ações
pertinentes ao contexto. As possibilidades
são dadas pela própria comunidade, que
tem parâmetros e crenças, sobre os quais deve trabalhar o profissional, no diálogo
entre suas informações e as percepções dos clientes. Muitas vezes, os pacientes
não seguem orientações do profissional de saúde porque essas foram elaboradas
sem atentar para a contextualização e o sentido das informações e ações junto à
história, experiência e possibilidades da comunidade em questão.
Para possibilitar a discussão e transformação de hábitos perante situações
tratamento e prevenção de doenças, a educação em saúde deve considerar as
informações que a comunidade traz, valorizando as "dicas" expressas de modo
velado e respeitando os caminhos e soluções da comunidade. Muitas vezes, alguns
procedimentos não são possíveis por falta de possibilidades financeiras, por
inadequação às circunstâncias familiares ou outras razões, e será preciso buscar
soluções alternativas. A discussão e percepção de valores, referências e relações,
68
bem como a abertura de espaços de expressão dos clientes, permite encontrar
recursos pertinentes, que muitas vezes não são reconhecidos por não serem os
tradicionais. Não perceber o modo como as pessoas vêem e lidam com questões de
saúde pode levar à oposição perante as propostas apresentadas.

Facilitação

Outra tarefa importante em saúde primária é facilitar a comunicação entre os


membros da família. Para isso, é preciso uma compreensão das inter-relações no
interior da família e do modo de se comunicar que ela apresenta. Segundo a teoria
sistêmica, as pessoas tendem a manter, por meio de mecanismos de controle
negativo, as regras e as posições que ocupam na estrutura. Isto gera, com
frequência, bloqueios de comunicação, que configuram situações de crise e conflito,
podendo desencadear o processo de adoecer. O profissional de cuidados primários,
por sua posição na comunidade, pode abordar estes bloqueios e, por meio de ações
programadas, favorecer uma troca de informações e sentimentos que facilite a
manutenção e recuperação da saúde da família em estudo.
Uma das grandes chaves para o sucesso da facilitação da comunicação é
perceber a dinâmica de relações da família, nas suas interfaces de discursos,
poderes, fazeres, práticas e afetos. Na compreensão dessa teia de relações, é
possível interpor e ressaltar caminhos e questionamentos frente aos favorecimentos
e desfavorecimentos para a fluência da comunicação e para o engendramento de
práticas promoção de saúde e doença. Desse modo, podem-se entretecer redes de
significados e sentidos participando dos anéis de comunicação da família, discutindo
os processos e meios de vida do grupo familiar e fazendo um arco de reflexão sobre
sua origem, seu percurso, seu momento e seus projetos. Esse arco de comunicação
permite que a família reconfigure seu senso de união e de direção, interpondo a
equipe de saúde como elo de fomentação do crescimento familiar e da promoção de
saúde.
69
O diálogo em situações de doença ou conflito exige atenção do profissional de
cuidados primários para perceber sentimentos e articulações de sentido que o grupo
manifesta. Situações de doença grave ou óbito iminente podem representar na
família um momento de crise, uma perda de referências desalojante, na qual os
recursos e referências já constituídos não contemplam a experiência que se
desenrola, nem orientam um caminho a seguir. (BRAGA, 2005). Por isso, a
comunicação tende a se dar de modo entrecortado e permeado por silêncios, culpas,
angústias. A facilitação do diálogo permite às pessoas explorar seus sentimentos e
esclarecer suas dúvidas, evocando uma abertura para a expressão de afetos, não
ditos e interditos que podem acompanhar situações de doença.
A construção dessa proposta passa pela discussão do quadro, com respeito
às hierarquias e linhas de comunicação da família, considerando sua perspectiva
sobre as questões que se fizerem e esclarecendo e discutindo o processo e seus
agentes causais. Pessoas importantes na estrutura familiar, mesmo que não
pertencentes ao agrupamento, devem ser convidadas a participar do processo para
que a comunicação atinja o nível desejado de troca. Isto evita a permanência de
sombras na comunicação, o que pode torná-la menos satisfatória. A atitude do
profissional durante estes encontros familiares deve ser de estímulo à troca de
sentimentos e de expectativas entre os componentes, de modo a facilitar a
interação, e de esclarecimento das dúvidas que existam sobre a patologia e sua
progressão, e das alternativas de tratamento disponíveis para o caso.

Referência

Nos casos em que é preciso referir a família ou seu paciente a outros


serviços, o trabalho com famílias deve ocorrer de modo interativo, discutindo com a
família as razões e os resultados esperados do encaminhamento e os modos locais
mais pertinentes para atendimento. O encaminhamento deve ser acompanhado,
fazendo-se contato com o profissional referenciado de modo e realizando-se ao
70
menos uma entrevista de retorno com o paciente para discutir o atendimento junto a
este e dar subsídios tanto sobre a situação experienciada pela família durante o
adoecimento quanto sobre o atendimento a ser realizado junto ao paciente. Este
processo de comunicação aumenta a satisfação com o encaminhamento, além de
permitir resultados mais efetivos, pois garante informações à família e ao profissional
de referência, permitindo acompanhar eventuais problemas e complicações e
evitando o abandono do cuidado de saúde e possíveis agravamentos de problemas
não tratados. Desse modo, a perspectiva preventiva pode continuar a atuar na
assistência.

Conclusão

A atenção à família em cuidados primários de saúde redireciona o enfoque do


atendimento exclusivo ao doente - visão tradicional da atenção à saúde no Brasil –
envolvendo a comunidade nas políticas de saúde, contrapondo-se à prática
meramente criadora e executora de políticas de prevenção. A partir das habilidades
clínicas do profissional a execução das ações preventivas se apresenta como

intervenção1, entrelaçamento de recursos e ofícios entre rede de saúde e grupos

familiares, visando políticas contextualizadas que possam repercutir nas


comunidades onde atuam. Desenvolvê-las implica compreender ações clínicas e
educativas no contexto de uma abordagem dialógica e cartográfica, na qual as
ações se constituem no próprio contato e investigação junto à comunidade. Assim,
as práticas clínicas e educativas devem considerar os objetivos das famílias,
entrelaçando-os às atividades educativas da equipe de saúde. Perceber os modos
de se relacionar da população, sua epidemiologia e seus credos exige a presença da
equipe na comunidade, compreendendo e respeitando suas representações,
concepções, anseios e práticas. A construção das ações de saúde e educação deve

71
levar em conta estas prioridades locais, de modo que, ao se introduzir um conceito
ou propor uma ação, eles possam ser legitimados dentro da comunidade como
coadunados aos seus interesses.
Muitas das ações propostas pelas equipes de saúde são embasadas em
saberes que a população pode dominar, porém pode não conseguir incorporar a seu
cotidiano. Assim, as ações em saúde lidarão com os sistemas de vida e suas
correlações e é nesta direção que se mostra a necessidade de um sentido prático
para ações conectadas com o pensamento local, constituído e analisado pela
investigação clínica e interventiva dos modos de sentir, pensar, dizer se relacionar
das famílias, favorecendo a eficiência na implantação de um estilo de vida mais
saudável, com intervenções e resultados em longo prazo. Outro relevante aspecto
da atenção primária em saúde é o trabalho em equipe multidisciplinar. A visão de
vários profissionais sobre uma situação permite uma percepção ampliada de seus
múltiplos aspectos, possibilitando maiores interconexões e construção de caminhos
no sentido da aproximação das aspirações da comunidade. Olhares compartilhados
vislumbram as várias faces do caleidoscópio familiar em sua inter-relação com a
ação clínica, facilitando a compreensão do processo de adoecer e a identificação
dos recursos comunitários para apoiar o caso em questão.
1
Intervenção é compreendida aqui tal como apontada por Heloísa Szymanski (2004) significando
interpor os bons ofícios. Refere-se assim a uma ação constituída em conjunto, de modo dialógico e
plural e não unidirecionalmente.

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