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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ALEXANDRE FERREIRA DA SILVA

A POLÍTICA EM IMMANUEL KANT

O PROBLEMA DA PAZ MUNDIAL

Porto Alegre
2013
ALEXANDRE FERREIRA DA SILVA

A POLÍTICA EM IMMANUEL KANT

O PROBLEMA DA PAZ MUNDIAL

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção de grau de


Graduado em Filosofia (Licenciatura e Bacharelado) na Faculdade de
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Dr. Norman Madarasz


Co-orientador: Dr. Sérgio Augusto Sardi

Porto Alegre

2013
ALEXANDRE FERREIRA DA SILVA

A POLÍTICA EM IMMANUEL KANT

O PROBLEMA DA PAZ MUNDIAL

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção de


grauGraduado em Filosofia (Licenciatura e Bacharelado) na
Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.

Aprovada em: _____ de ______________ de _______.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Prof. Dr.

_________________________________________

Prof. Dr.

_________________________________________

Prof. Dr.

Porto Alegre
2013
Em memória de Sérgio Vieira de
Mello...
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, pela confiança depositada e esforços realizados para me educar. Ao
governo brasileiro que possibilitou, através de uma política de inserção universitária
(PROuNI), minha entrada nesta notável instituição. À Casa de Estudante Aparício Cora de
Almeida (CEUACA), onde me abriguei durante o tempo decorrido da minha graduação. À
Renata dos Reis, pela paciência e carinho. E ao meu amigo, Juliano Menark de Bittencourt,
sempre honesto e fiel.
A política diz: “Sede astutos como serpentes”; a moral acrescenta
(como condição limitante): e sem falsidade como as pombas”.
(KANT, 2012, p. 57)
RESUMO

O tema monográfico é o problema da paz mundial, que se refere às dificuldades de


estabelecimento de convivência pacífica entre Estados. Todo ato de Estado é ação política,
que pode ter como objeto a consecução da paz. Esta é a finalidade dessa monografia:
apresentar um conceito de política que viabilize, no cenário das relações internacionais, o
estado de segurança. Para alcançar esse objetivo, a revisão bibliográfica se baseou em duas
obras de natureza histórico-política de Immanuel Kant: Ideia de uma História Universal de
um Ponto de Vista Cosmopolita, que compõe o primeiro capítulo e; À Paz Perpétua, que
norteia o capítulo dois. O primeiro capítulo mostra que é possível uma evolução política
(Politischen Fortschritt) na história, conforme houver o esclarecimento (aufgeklärt) das
nações em transformar a insocial sociabilidade em uma constituição política
(Staatsverfassung) civil. Nesta conjuntura, Kant apresenta a proposta de que os Estados
possam ter suas proteções garantidas através de uma Confederação de Nações (Foedus
Amphictyonum). Essa proposta é sofisticada no capítulo dois, onde se trabalha À Paz
Perpétua. Kant a renomeia Aliança da Paz (foedus pacificum), cuja principal meta é trabalhar
para acabar com as guerras. Essa sofisticação se dá através do entendimento jurídico de que a
paz entre nações decorre do Direito Internacional, que deve ser constituído por um
federalismo de Estados livres. Ao mesmo tempo, o fundamental da constituição política civil,
que é a autonomia, deve ser estendido ao Direito Internacional, porque ela é condição
garantidora das liberdades dos Estados. Do mesmo modo, a autonomia garante igualdade
jurídica, a despeito do tamanho territorial e da potência dos Estados. Portanto, existe uma
relação entre a base filosófica da autonomia, que vislumbra o estabelecimento da segurança
internacional, com a força da lei do Direito Internacional, que visa à paz entre Estados. Trata-
se da paz através da lei, fundamentada filosoficamente. Entrementes, a política se torna uma
ferramenta que interliga o sistema filosófico kantiano com o direito. O conceito de política
deriva de uma inter-relação entre uma estrutura político-jurídica dos Estados, com o Direito
Internacional fundamentado em uma federação. A principal meta dessa instituição,
denominada Liga da Paz, é trabalhar para acabar com as guerras. Ela é expressão máxima da
evolução política (Politischem Fortschritt) a nível internacional. Na história real, o exemplo
dessa evolução é a Organização das Nações Unidas, cujos membros estão acordados em
princípios e metas que efetivem paz e segurança internacional. Outrossim, esse tratamento
colabora para que se subtraia os elementos que constituem o problema da paz mundial.
PALAVRAS CHAVES: Paz Mundial, Política Internacional, Direito Internacional, Guerra e
Paz, Política em Kant.
ABSTRACT

This essay’s theme is the World Peace problem, which refers to the difficulties of the
establishment of a peaceful living among all States. Every statal act is a political action, which
can aim the attainment of peace. This is the purpose of this monograph: to present a concept
of politics that turns viable, on the international relations scenery, the state of security. To
reach this goal, the bibliographical revision was based upon two works of historical-political
nature from Immanuel Kant: Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose,
which defines the first chapter and; Perpetual Peace, that guides the second chapter. The first
chapter shows that a political evolution is possible (Politischen Fortschritt) in History, as long
as there is enlightenment (aufgeklärt) of nations in transforming the non-social sociability
into a civil political constitution (Staattsverfassung) Within this juncture, Kant presents the
idea that a State could have its protection guaranteed by a Confederation of Nations (Foedus
Amphictyonum). This propositon is refined within the second chapter, wherein Perpetual
Peace idea is developed. Kant renames it Peace Alliance (foedus pacificum), which main goal
is to work to prevent and end all wars. This sofistication rises through the introduction of
legal understanding that peace among nations is derived from International Law, that must be
constituted by a federalism of Free States. At the same time, the most fundamental of civil
political constitution, autonomy, must be extended upon International Law, for it is the keeper
condition of freedoms of all States. In the same way, autonomy guarantees legal equality,
despite of the States land size or power. Therefore, there is a relation between philosophical
basis of autonomy, which aims the stablishment of international security, and the International
Law strenght of law, which aims peace among States. It’s about peace though law,
philosophically grounded. Meanwhile, politics become a tool that connects kantian
philosophical system with law. The concept of politics derives from an interrelation between a
political-legal structure of States, with International Law, that is grounded in a Free States
federation, which main goal is work to end all wars. This federation is named Peace Alliance,
the maximum expression of political evolution(Politischem Fortschritt) in an international
level. In factual History, the example of this evolution is the United Nation, whose members
agree concerning principles and goals that make peace and international security effective.
Likewise, this approach colaborates in subtracting the elements that constitute the World
Peace Problem.
KEYWORDS: World Peace, International Politics, International Law, War and Peace, Kant’s
Politics
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................. 9

CAPÍTULO I -A FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM IMMANUEL KANT ............ 13

1.1 AS PROPOSIÇÕES DA IDEIA ....................................................................................... 16

1.2 RAZÃO TEÓRICA E LIBERDADE DA VONTADE ........................................................... 20

CAPÍTULO II - A POLÍTICA EM IMMANUEL KANT ....................................... 44

2.1 OS ARTIGOS PRELIMINARES PARA A PAZ ENTRE OS ESTADOS ................................... 46

2.2 A CONSTITUIÇÃO CIVIL REPUBLICANA .................................................................... 54

2.3 O DIREITO INTERNACIONAL ..................................................................................... 60

2.4 O DIREITO COSMOPOLÍTICO ..................................................................................... 66

2.5 UM CONCEITO DE POLÍTICA EM KANT ..................................................................... 69

CAPÍTULO III -ONU: CONSCIÊNCIA DO MUNDO E EVOLUÇÃO

POLÍTICA .............................................................................................................................. 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 83

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 87

ANEXO A – VOCABULÁRIO DE À PAZ PERPÉRTUA DE KANT ...................90


9

INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como tema o que comumente é denominado de problema


da paz mundial. De maneira geral, essa denominação se refere às dificuldades de
estabelecimento de uma convivência pacífica entre os povos. A consecução da paz é
considerada uma das metas mais importantes que a humanidade deve alcançar. Entretanto, por
causa do problema, esta meta é vista como utópica. Deveras, um breve olhar sobre a história
real irá denunciar a presença embargante de guerras. Por definição, guerra é um conflito
armado entre facções, partidos ou grupos que queiram impor seu ponto de vista. Dos tipos de
guerras existentes, destacam-se as de natureza econômica, psicológica, religiosa, étnica,
ideológica, territorial, vingativa e virtual. Contudo, entre tantas causas para realizar a
beligerância, a de conquista talvez seja a principal, quase sempre camuflada por outros
motivos que são apresentados a opinião pública como justificativa.

Uma ilustração atual de conflito, que colabora para o entendimento do problema, é a


situação atual na Síria. As diferentes partes do conflito não conseguem sentarem-se ao redor
duma mesa e negociarem. As alegações quanto ao uso de armas químicas, nas imediações do
centro de Damasco, demonstram as dimensões da crise política local que, contudo, não se
restringe apenas à Síria. O conflito envolve também outras nações à medida em que as
alianças entre as partes envolvidas no confronto têm recebido ajuda externa, conforme os
interesses que os demais Estados têm na região. Politicamente, a oposição síria acusa o
governo de Bashar AL-Assad de ter derramado as armas químicas nos arredores de Damasco,
vitimando centenas de pessoas. O governo, por sua vez, afirma ser esse um golpe dos rebeldes
para colocar a opinião pública mundial contra o regime do presidente. Ainda assim, a Síria
não é o único foco de tensão bélica no planeta. Existem outros locais aonde os conflitos
permanecem por causa da dificuldade para estabelecer um diálogo entre os governos e as
demais partes envolvidas.

A política pode ser vista como a arte de resolver conflitos sem recorrer ao uso da
violência. Por definição, a escolha pela guerra também pode ser vista como ineficácia dos
métodos políticos de conversação. Mas essa perspectiva da qualidade política enquanto
intermediadora se torna comprometida ao estudarmos a história. Ao qual há incontáveis
ilustrações do uso da política para conduzir acordos de paz instáveis ou, para promover
10

conflitos. Nesse aspecto, a política patrocina a força do problema da paz, tornando-a mais
distante. A escolha pela é decisão política. Cuja justificativa é a necessidade de proteção
interna do Estado. Isso configura manobra unilateral. Vejamos alguns exemplos.

Após a Guerra da Indochina, na Conferência de Genebra1, o Vietnã foi divido em dois


no paralelo 17: ao norte, formou-se a República Democrática do Vietnã, apoiada pela URSS e
a China. Ao sul, formou-se a República do Vietnã, ligada aos EUA. A conferência
determinava que no ano de 1956 se fizesse um plebiscito para promover a unificação do país.
Ou seja, se seria orientada pelas ideologias capitalista ou socialista. No entanto, o Vietnã do
Sul, com apoio americano, se negou a convocá-la. Como consequência dessa recusa “um
grupo de guerrilheiros, os vietcongs, membros da Frente Nacional de Libertação, inicia um
forte movimento comunista pró-unificação2”. O general do Sul I Ngo Dinh Diem recebeu
apoio dos EUA e, tempos depois, primeiramente com “assessores militares americanos [...]
depois, milhares de soldados [...] e no auge da guerra, eram 600 mil soldados americanos em
combate no Vietnã3”. Sobre o contexto da Guerra Fria, o único indicativo de justificação para
os EUA entrarem na guerra do Vietnã era a de extinguir a possibilidade de o socialismo
triunfar na região após o plebiscito. O que não era absolutamente válido. Pelo menos do ponto
de vista da soberania de Estado. O Vietnã era um Estado desmembrado, em duas partes, por
uma desunião interna, em que cada parte requeria para si um Estado peculiar. Tanto sua
soberania, como seu território precisavam ser reequilibrados. Mas esse reequilíbrio somente
poderia se dar através da sua consolidação política interna, e essa era a pretensão do
plebiscito. No entanto, vendo os seus interesses na região ameaçados, os Estados Unidos
decidiu intervir militarmente. Não por acaso, as consequências econômicas e políticas para a
Casa Branca foram enormes.

Houve outros exemplos tristes de como a política foi usada, se não para promover a
guerra, tampouco serviu do modo adequado para frear o agravamento dos acontecimentos.
Relembremos, pois, da Primeira Guerra Mundial. Após quatro anos de confronto, a
interrupção das hostilidades ocorreu em 1918, ratificada no ano seguinte pelos termos do
Tratado de Versalhes, através de uma paz punitiva à Alemanha. Para a assinatura desse
1
A Conferência de Genebra (26 de abril a 21 de julho de 1954) foi realizada com a participação do Camboja,
República Democrática do Vietnã, França, Laos, China, República do Vietnã, URSS e EUA, com o objetivo de
restaurar a paz na antiga Indochina e na Coreia. Fonte: Wikipedia. Tag: Conferência de Genebra. Acessado em
19 de maio de 2013 as 15h 47min.
2
SCHNEEBERGER, Carlos Alberto. História Geral – Teoria e Prática. p. 345-346. 1ª Edição. Editora Rideel. São
Paulo-SP, 2006.
3
Ibid. p. 345-346.
11

Tratado reuniram-se chefes políticos das nações vencedoras, mais a Alemanha. Não
entraremos no mérito do Tratado. Mas pode-se afirmar que o Tratado confeccionou apenas
trégua circunstancial entre os beligerantes. Foi feito como vingança francesa aos alemães, o
que significa dizer que nele já continha o germe da próxima guerra. De fato, na primeira
oportunidade, escreve Hobsbawm, a Alemanha revidou o golpe francês e, o conflito
interrompido em 1918 foi recomeçado em 1939. Entrementes, algo que, anos mais tarde, seria
a ONU, foi ensaiado após a Primeira Guerra Mundial. A Liga das Nações, entidade pioneira
de nível internacional dedicada à resolução de contendas entre países através dos seus
representantes políticos. Foi por meio da política que se pensou discutir formas para
administrar disputas. Mas, também, havia sido através de um modo de política ostensivo que
as hostilidades entre as partes não foram superadas. Ao afinal, a política para a resolução de
conflitos da Liga das Nações falhou estrondosamente. Junto do Tratado de Versalhes4, foi a
grande decepção política daquele começo de século. Vinte anos depois o mundo estava
novamente em guerra.

As ilustrações das dificuldades de estabelecimento de uma convivência pacífica entre


os povos podem seguir indefinidamente. Mas essas três são suficiente para afirmar que o tema
dessa monografia é um problema que depende da ação dos Estados. Toda ação de Estado é
uma ação política. E o modus operandi, da política realizada entre Estados, é elemento que
viabiliza ou a eminência da guerra, ou uma forma de tratamento menos incisivo do problema.
Portanto, a configuração de estratégias e esforços, que criem condições de possibilidade para
a efetivação da paz, também é de natureza política. Supondo que a paz seja uma meta ao qual
interessa a toda a humanidade, é necessário um modo político que seja adequado na lida com
o problema, sem perca de realismo, mas também não desprovido de um princípio. Esse modo
deve conter, em seu âmbito, a finalidade de promoção da paz entre as nações, sem abdicam de
suas autonomias, sem permitir ingerências externas.

Assim, com esses pressupostos, queremos saber: é possível um conceito de política


que viabilize, no cenário das relações internacionais, procedimentos que objetivem a paz e a
segurança pública de maneira abrangente? Essa questão irá orientar o nosso estudo. Para saber
se esse conceito é possível, a produção monográfica se valerá de parte da bibliografia de

4
Hobsbawn escreve que o “Tratado de Versalhes não podia ser a base de uma paz estável, [ele estava]
condenado desde o início ao fracasso e, portanto, outra guerra era praticamente certa”. HOBSBAWM, Eric. A
Era dos Extremos: O breve século XX 1914-1991. p. 47. São Paulo: 2ª ed. Companhia das Letras, 2012.
12

Immanuel Kant. O que significa um conceito de política em Kant? Esse é o objetivo maior
dessa monografia. E porque sabemos que a realidade pela qual essa política de Kant irá servir
é a relação entre Estados na história real, se faz necessário apoiar sua política na definição
prévia de história. Igualmente, porque a história é um processo propriamente humano,
definiremos, com Kant, a sua concepção de Homem.
No primeiro capítulo vamos compreender a filosofia da história de Kant na obra Ideia
de uma História Universal de Um Ponto de Vista Cosmopolita. Concomitante a concepção de
história, o entendimento kantiano a cerca do Homem será apresentado. Veremos que é
possível conceber o processo histórico no nível da razão, através de uma Ideia. Nesta, a
espécie humana eleva-se ao nível da cultura e do estado jurídico, conforme administra as
inclinações da insocial sociabilidade. No decorrer da história acontece uma evolução política
(Politischen Fortschritt) conforme o esclarecimento das nações (aufgeklärt) viabilizar a
realização da constituição política (Staatsverfassung) civil nos Estados. Através desse
ajustamento político nacional, a segurança pública internacional pode ser pensada na
Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum). Trata-se de uma federação de nações onde
um Estado tem sua proteção garantida através de uma grande confederação de nações.
No segundo capítulo Kant apresenta as bases jurídicas para que a paz possa ser
introduzida no Direito Internacional. Serão importantes os Artigos Definitivos da Paz
Perpétua, que são as bases jurídicas que devem compor o Direito Internacional. O conceito de
política, em Immanuel Kant, advirá de um entrecruzamento dos ensinamentos da Ideia de
uma História Universal e À Paz Perpétua.

No capítulo três, com base no procedimento da política kantiana e, fazendo uso de seu
método historiográfico, será realizada uma tentativa de ilustrar, na história real, um elemento
de evolução política (Politischem Fortschritt). Tentaremos justificar que a Organização das
Nações Unidas é este elemento. Para fortalecer essa tese, o pensamento de Sérgio Vieira de
Mello, ex-funcionário da ONU, será importante. Entre outras declarações, Mello afirma que
as Nações Unidas é a consciência do mundo, que conduz elementos da consciência individual
e coletiva para uma sabedoria superior. Outras contribuições de Mello serão inseridas no
decorrer dos capítulos um e dois. Para finalizar, foi anexado ao final desta monografia O
Vocabulário De À Paz Perpétua de Kant, por mim construído. Elaborado inicialmente para
complementar o trabalho monográfico. No entanto, foi sugerida a anexação desse vocabulário
no TCC, a fim de informar o leitor à existência desse recurso, que contribuiu para alcançar o
resultado.
13

CAPÍTULO I -

A FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM IMMANUEL KANT

A primeira obra cujo pensamento essencial da política em Kant aparece é o opúsculo


Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. É composta por oito
proposições, nas quais o autor desenvolve o conceito de história do mundo (Weltgeschichte).
Nesse capítulo esse conceito será compreendido, o que implicará na apresentação e
desenvolvimento gradual de outros conceitos. A compreensão dessa obra, que peço licença
pra chamar de Ideia, é condição necessária para que o estudo de Paz Perpétua advenha de
forma eficaz. Na Ideia os elementos de guerra e paz, que são discutidos amplamente na Paz
Perpétua, também são abordados por Kant, mas enquanto expressões das relações humanas,
oriundas de um antagonismo antropológico. O estudo da política em Kant inicia, assim, com
esclarecimentos sobre a sua filosofia da história e a sua concepção de Homem. A trajetória
rumo ao conceito de política inicia com o esclarecimento de parte do título da obra principal
deste primeiro capítulo. Trata-se da Ideia, ao qual Kant afirma ser um:

conceito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos sentidos nenhum objeto
congruente. Portanto, os nossos conceitos racionais puros são ideias
transcendentais. [...] ultrapassam os limites de toda experiência, na qual,
consequentemente, não poderá jamais apresentar-se um objeto que seja adequado à
ideia transcendental [KANT, p. 383, 1988].

Para melhor compreensão dessa citação, devemos entender o significado de


transcendental. Trata-se de um conceito que será explicado a partir da obra mais conhecida de
Kant, a Crítica da Razão Pura. Nesta o filósofo escreve que são possíveis aos Homens certos
conhecimentos independentes da experiência e, ate mesmo de todas as impressões dos
sentidos. Estes conhecimentos, denominados a priori, foram designados de intuições puras e
categorias. Através deles pode-se antecipar a forma dos objetos externos. É necessário
compreender tais formas do conhecimento, porque também são transcendentais, embora não
no sentido que Kant usa esse termo na Ideia. Assim, inicialmente é necessário apresentar um
14

primeiro sentido ao conceito transcendental, que se refere as formas do conhecimento. Só


então estaremos seguros para apresentar a transcendência em uso com a Ideia.

No que se refere às intuições puras, consideremos, por exemplo, quando um sujeito


realiza a ação do pensar ou do imaginar uma árvore. Tais ações da mente se realizam tendo
como pano de fundo a espacialidade e a temporalidade. Estas são condições de possibilidade
para que as ações mentais aconteçam. É possível pensar ou imaginar um lugar sem uma
árvore e sem qualquer objeto que o ocupe, restando apenas o espaço vazio. Porém, o contrário
é impossível. Não é o caso que se possa pensar a árvore ou qualquer objeto sem que o espaço
o anteponha estruturalmente. Do mesmo modo, o tempo é estrutura primária da mente.
Quando se pensa em uma árvore, a ação pensante, juntamente de seu objeto (árvore), acontece
em uma duração. Ou seja, a partir do instante em que se inicia o imaginar da árvore, essa
ação dura um período e, se encerra em seguida. Esses processos mentais ocorrem no Homem
na medida de uma durabilidade considerada em seus elementos constitutivos que são o
passado, o presente e o futuro. Numa palavra: tempo.

Essas condições definem a qualidade de ser finito ao Homem, porque é determinado (e


limitado) às formas a priori da temporalidade e da espacialidade. No entanto, enquanto
estrutura primária que a priori, espaço e tempo pre-configuram as condições do
conhecimento. O primeiro permite que as intuições captadas externamente sejam, por assim
dizer, acomodadas internamente no sujeito. Acomodar internamente significa que os
elementos internalizados passam a fazer parte da constituição interna do sujeito, portanto, de
seu tempo. Em seguida, esses dados captados e acomodados pelas intuições sensíveis são
sintetizados e elevados à condição de conceitos por causa da atividade do intelecto. É sobre
essas condições que as intuições puras, através de seus elementos espaço-tempo, são a
primeira condição de possibilidade para o conhecimento.

No que se referem às categorias, são os conceitos do entendimento, o modo de


funcionamento do pensamento. Tais categorias advêm da síntese que a intuição pura realiza.
Kant as classificou em doze modos de unificação do múltiplo: unidade, pluralidade,
totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causa, comunidade, possibilidade,
existência e necessidade. Esses são os conceitos mais elementares a partir dos quais conceitos
compostos podem ser formados, por exemplo: “árvore”, “árvore verde” etc. Assim, para
compor um entendimento, ocorre a reunião dessas categorias primordiais para a formação,
cada vez mais composta e complexa, de termos derivados. As categorias se constituem como
15

condição de possibilidade para certos juízos básicos emitidos sobre o mundo na tentativa de
interpretá-lo. Elas podem ser compreendidas como unidades cognitivas que guiam a
apreensão da multiplicidade. Em suma, as categorias são modos de unificação do múltiplo
puro da sensibilidade do sujeito5.

Esclarecidas as categorias dos modos de conhecimento a priori, retornaremos à


explicação do conceito de Ideia. O que, para tanto, é necessário definir previamente o termo
transcendental. A apresentação dos modos de conhecimento a priori foi necessária porque
elas constituirão a explicação de Kant sobre o termo que queremos. Assim, o filósofo define
que transcendental é “todo conhecimento que em geral se ocupe, não dos objetos, mas da
maneira que temos de conhecê-los, tanto quanto isso possível for de forma a priori6”. Essa
maneira é, precisamente, as formas puras da intuição em mútua relação sintetizante com as
categorias. As condições para a conhecimento transcendem as determinações empíricas ou a
posteriori. Quando se busca fazer ciência, as condições de possibilidade para o conhecimento
seguro devem se dar sobre bases a priori das intuições e categorias.
Entretanto, na Ideia, o uso da transcendência não possui o mesmo significado há
pouco apresentado. Seu uso acontece enquanto transcendência em relação a própria
transcendência do conhecimento a priori (e suas formas de intuições puras e categorias). Por
isso que Kant escreve que Ideia é um conceito puro e “necessário da razão ao qual não pode
ser dado nos sentidos objetos congruentes7”. Portanto, sua ilustração é impossível porque não
existem na intuição pura, ou nos desenhos categóricos do intelecto, as condições de
possibilidade para representar a Ideia. Nesse sentido, ela é a-histórica, porque não é o caso de
que algum elemento seu possa ser encontrado nas ações das gerações de Homens no espaço e
tempo da Terra. “Portanto, os nossos conceitos racionais puros são ideias transcendentais”
que, por sua própria natureza, “ultrapassam os limites de toda experiência”, esta que “não
poderá jamais apresentar-se um objeto que seja adequado à ideia transcendental8”. Tal é a
compreensão em Kant do conceito de Ideia em seu aspecto formal.

Tendo especificado o uso do termo transcendental, que poderia ser o conteúdo da Ideia?
Ou seja, que ideal pode ser adequado à condição formal da Ideia? Por ideal queremos dizer

5
O conteúdo a respeito das intuições puras e categorias foram extraídos de REALE & ANTISERI. História
da Filosofia Vol. 2, 8ª. ed. São Paulo – SP. Ed. Paulus, 2007.
6
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura; parágrafo 3. Coleção Os Pensadores, 1988, ; ed. Nova Cultural; São
Paulo-SP, 1988.
7
Ibid. parágrafo 384.
8
Ibid. parágrafo. 384.
16

um algo singular determinável apenas pela Ideia. A razão contém ideais, que têm força
prática, pois são princípios reguladores que fundamentam a possibilidade da perfeição de
certas ações9. Assim, supondo a parte formal da Ideia com o acréscimo do ideal,
perguntamos: qual a Ideia (qual o ideal) de uma História Universal de um Ponto de Vista
Cosmopolita?

A resposta para essa pergunta está no desenvolvimento do livro da Ideia Universal de um


Ponto de Vista Cosmopolita. Cuja finalidade é redigir uma história não como de facto é, mas
como em princípio deveria ser. Nas palavras de Kant, a Ideia é uma forma de pensar “como
deveria ser o mundo, se ele fosse adequado a certos fins racionais10”. Definiremos quais fins
(finalidades) são esses, necessários para compor o maior desígnio da espécie humana:
Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum). A busca por essa Confederação constitui-
se numa trajetória de evolução política (Politischen Fortschritt) na história, onde os elementos
que constitui sua narrativa significa são ilustrações do esclarecimento das nações (aufgeklärt).

1.1 As Proposições da Ideia

O conteúdo do livro é composto por oito proposições. Seu estudo, além de apresentar
o essencial de política em Kant, também é importante para a boa compreensão da Paz
Perpétua. Essa afirmação começa a ser justificada agora. Mello escreve11 que as três
primeiras propostas da Ideia evidenciam os três pilares da filosofia kantiana do Homem e da
história. Ora, o objetivo nesse primeiro capítulo é definir a história em Kant. Mas isso implica
em discorrer a cerca do Homem.

A primeira proposição diz: “todas as disposições naturais de uma criatura estão


destinadas a um dia se desenvolver completamente e conforme um fim12”. Essa afirmação
abrange todas as criaturas e faz referência ao fato de que estão destinadas ao completo
desenvolvimento. Existe um determinismo natural que impele as criaturas ao seu destino (fim)

9
Ibid. p. 383.
10
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. 20. São Paulo – SP –
Ed. Wmf Martins Fontes, 2011.
11
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. P. 41;1ª. ed. São Paulo: Saraiva,
2004.
12
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita; p. 5; São Paulo:
Martins Fontes; 2011.
17

máximo. Em Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático13 Kant escreveu que numa


comunidade de castores a natureza determina a forma do equilíbrio social (jogo da vida), tanto
para os atores individuais quanto para a totalidade da espécie que vive em determinada região
do espaço e tempo terrestre. Portanto, a plena destinação do progresso nessa espécie, e em
todas as criaturas não racionais, é garantida pela natureza ao nível individual e coletivo
simultaneamente. Kant escreveu que nos “animais irracionais isso ocorre realmente e é
sabedoria da natureza14”. Porque as disposições naturais das criaturas estão destinadas a se
desenvolver completamente e conforme um fim. Tal afirmação coloca-se como um princípio
que ressalta a necessidade da natureza de ser regulada por leis que têm como alvo uma
finalidade pré-estabelecida. Interessa, sobretudo, perceber que, inerente ao processo de
desenvolvimento rumo à completude, há um fio condutor que perpassa toda a trajetória, a
despeito das contingências e irregularidades do percurso. A partir desse fio condutor e,
buscando explicar como isso acontece na condição humana, Mello escreve que:

sendo a razão [...] o ponto distintivo do homem, a inteligência da História – apesar


de seu ruído e furor – consiste em destacar-lhe os traços profundos que a levam a
realizar sua finalidade lógica que não pode ser senão uma racionalidade universal.
(2004; p. 41).

Cabe ao Homem, através da racionalidade individual dos atores, investigar na história


quais são os elementos estruturais que as gerações possam ter deixado às famílias humanas do
devir. Elementos esses que conduzem a história (e portanto, o Homem) na direção de um
desenvolvimento cada vez mais amplo. Tal completude é a finalidade lógica, que consiste em
ser uma racionalidade universal na história. Essa afirmação é a premissa que deve ser ‘levada’
à próxima proposição e, com esta, ser somada.

Na segunda proposição está escrito: “no Homem (única criatura racional sobre a
Terra) aquelas disposições naturais que estão voltadas para o uso de sua razão devem
desenvolver-se completamente apenas na espécie e não no indivíduo15”. Numa comunidade
de castores, o pleno desenvolvimento de suas disposições acontece tanto ao nível individual

13
KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Dogmático, p. 218. São Paulo: Iluminuras, 2009.
14
Ibid. p. 223.
15
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. 5. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
18

como coletivo, porque a natureza assim o determina. Essa situação não acontece com os
Homens. Nestes, o progresso máximo de todas as faculdades potenciais não acontece no
indivíduo porque a configuração de sua raça impede uma história planificada. O Homem é um
ser finito e, sobretudo essa finitude se expressa individualmente. Mas suas finalidades plenas
“pode(m) avançar até sua destinação mediante um progresso numa série imensa de
gerações16”. Portanto, é no devir da espécie humana que o pleno progresso acontece.

E quais são as disposições do homem? São muitas. Mas nos interessa aquela que
conduz ao pleno desenvolvimento de uma racionalidade universal. A razão e suas disposições
são o ponto distintivo, a inteligência da história. Kant afirma que “a razão é a faculdade de
ampliar as regras e os propósitos do uso de todas as suas forças muito além do instinto
natural, e não conhece nenhum limite para seus projetos17”. O pleno desenvolvimento das
atribuições racionais do Homem não acontece individualmente, mas na espécie humana. É
através das gerações de Homens ao longo do espaço e tempo da Terra que as luzes do
conhecimento são transmitidas para conduzir ao propósito de constituir uma racionalidade
universal na história. A razão individual só pode se desenvolver dentro da espécie e não na
singularidade dos sujeitos. Mello escreve que as contribuições particulares de cada sujeito
apenas adquirem sentido através das suas conjugações e pela resultante que as integra e
explicita ao longo da história18. O movimento da humanidade, segue Mello, relativiza as
injeções específicas, resolve as contradições pontuais, superando-as em direção a uma síntese
totalizante.

A última das três proposições em que, conforme Mello, evidencia os três pilares da
filosofia do homem e da história na Ideia de uma História Universal é:

A natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo o que ultrapassa a


ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse de nenhuma
felicidade ou perfeição senão daquela que ele proporciona a si mesmo, livre do
instinto, por meio da própria razão. (KANT, 2011, p. 6).

16
Ibid. p. 4.
17
Ibid. p. 5.
18
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 41. São Paulo: Saraiva, 2004.
19

Esta proposição diz muito a cerca da concepção de Homem em Kant. Em primeiro lugar,
que a natureza arquitetou que não seria ela a responsável pela felicidade e perfeição do
Homem. Este, em desejando obter tais estados de vida, não haveria de adquiri-los mediante
força instintiva - como ocorre nos animais – ou através de conhecimento inato. É fácil notar
que forças instintivas ou forças que gerassem habilidades inatas não seriam, elas próprias,
construções do intelecto e da vontade humana. Elas são, na verdade, advindas da
externalidade da condição humana, alheia ao princípio racional que determina a vontade no
Homem. Mas de que natureza é esse externo? O que significa esse externo em relação ao
Homem?

Supondo que a realização da nossa felicidade e perfeição adviesse da natureza, ou seja,


que fossem de intenções externas ao gênero humano, tal condição excluiria a possibilidade de
sermos seres autônomos e, por consequência, desconheceríamos a liberdade. No entanto, em
Kant, a felicidade e o progresso devem ser consequências de nossas escolhas e trabalho.
Interessante notar que Kant atribui à natureza – como se assim ela ambicionasse – a
determinação pela qual o Homem deve ser, dela, independente. Estando o Homem
determinado a não aguardar da natureza a origem ou a causa de sua felicidade e progresso,
Kant transfere, por assim dizer, a responsabilidade daqueles estados inteiramente ao próprio
Homem. Para o filósofo, o Homem possui, nos exercícios de suas capacidades racionais, as
ferramentas adequadas para realizar alguma felicidade e realizar o progresso. Essas
capacidades são a razão teórica e a liberdade da vontade. Elas expressam duas qualidades
inerentes à condição humana e merecem explicação imediata, ainda que sucintamente.

O leitor notará que o entendimento dessas capacidades justificará a posição de Kant ao


atribuir, ao Homem, responsabilidade sobre a sua felicidade e, sobretudo, sobre o seu devir
histórico. Assim, serão apresentadas, a seguir, explicações sobre a razão teórica e a liberdade
da vontade. Feito isso, continuaremos com o estudo da Ideia de uma História Universal de
um Ponto de Vista Cosmopolita, para as considerações finais da Terceira Proposição.
20

1.2 Razão Teórica e Liberdade da Vontade

Em Kant a razão tem duas capacidades: a de conhecer, denominada de razão teórica,


e a de determinar a vontade e a ação moral, denominada razão prática. Na Crítica da Razão
Pura Kant analisou, sinteticamente, as condições, pretensões e limites do conhecimento. Essa
obra mostra que o conhecimento é possível ao Homem dentro da atmosfera fenomenal,
porque nossa mente apreende apenas juízos sintéticos a priori. Esses são conhecimentos que
reúnem a aprioriedade – que em si contém as qualidades da universalidade e necessidade – e
a sinteticidade. Por exemplo, na fórmula 5 + 7 = 12, a qual não é preciso recorrer a testes
empíricos para provar sua validade, qualquer mente humana, com boa saúde, que realize essa
operação alcançará o mesmo resultado necessário. Além de possuir elementos 5 e 7, que são
distintos um do outro, gera seu produto, 12, distinto dos seus anteriores, embora os represente
sinteticamente. A fundamentação dos juízos sintéticos a priori está no próprio Homem que
sente e pensa. Enquanto ser que sente, se destacam os dois tipos de conhecimento imediato
apresentados antes: as intuições do espaço e tempo.

O Homem pensa ou imagina algo tendo como amparo a espacialidade. Recuperando


nosso exemplo, se imaginarmos uma árvore e junto o espaço envolto dessa árvore, é possível
retirar a árvore e conceber apenas o espaço vazio. O contrário, entretanto, é impossível. Não é
o caso que se possa pensar ou imaginar uma árvore sem que, sobre ela, haja o amparo do
espaço. Quanto ao tempo, quando se pensa ou imagina a árvore, isso somente acontece em
uma durabilidade: no passado, no presente e no futuro. Essas intuições são a priori e quando
pensamos algo do mundo, esse algo é antecipado, é ‘projetado’ no espaço e tempo. A ciência
deve, assim, se basear nesses juízos para realizar suas pesquisas. As pretensões da Metafísica
foram redefinidas porque os conceitos do entendimento não ultrapassam o âmbito fenomenal:
lugar onde espaço e tempo ‘habitam’.

Com o limite do conhecimento teórico definido na atmosfera fenomenal, tentar pensar


objetos que estejam além dos fenômenos ( o que Kant chama de noumêno) significa abuso
para com os limites das categorias e, inconsequência em relação aos alcances das intuições
puras. Sobre essas condições, limitadas ao mundo fenomênico, está amparado o conceito de
razão teórica.

A segunda capacidade da razão humana é a de determinar a vontade e a ação moral.


Ela é designada como razão prática, e é analisada na Fundamentação da Metafísica dos
21

Costumes e na Crítica da Razão Prática19. O mote dessas duas obras é a liberdade da


vontade. Kant fundamentou a (nova) Metafísica no campo da moral e, concomitantemente,
procurou estabelecer princípios para a ação do Homem. Já sabemos que a ciência deve operar
com juízos sintéticos advindos de forma a priori ao conhecimento. Segundo a divisão a cerca
desse tipo de conhecimento, Kant denomina de “a priori puros aqueles conceitos aos quais
nada de empírico está mesclado20”. Conforme vimos, Ideia adequa-se à essa concepção.
Portanto, também será nesse ‘lugar’ puro da razão, absolutamente independente de relações a
posteriori, que os princípios da ação do Homem serão erguidos.

A regra geral que regula o comportamento do Homem deve ser situada na dimensão da
razão teórica pura. Esse alicerce à moral também oferecerá, por consequência, novo sentido
para a liberdade. O nome desse princípio puro é Imperativo Categórico. Esse Imperativo diz
‘deves porque deves’ fazer uma ação, porque trata-se de lei prática a priori que determina a
vontade. O Imperativo é lei moral válido por si mesmo e determinante da vontade de
realização da ação. Lei moral significa uma norma que não consisti em ordenar a partir de
móbiles a posteriori, mas tão somente a partir de sua forma de lei, ou seja, da racionalidade
inerente. Uma vez que a lei moral abdica dos conteúdos externos, também denominados leis
materiais, então, resta somente a forma da lei. Por si só, tal forma da lei é a priori e constitui-
se pela sua inerente universalidade e necessidade. Assim, porque a lei moral advém da forma
da lei, portanto, independente dos conteúdos empíricos, das autoridades exteriores ou
contingentes, considera-se que o critério da moralidade deve depender exclusivamente do
princípio pelo qual as coisas devem ser pretendidas. Não sendo a vontade movida por móbiles
externos, mas por princípio advindo da sua forma, a questão da moralidade deve responder a
seguinte pergunta: como fazer aquilo que se quer fazer? A resposta que Kant oferece e, que
constitui a expressão basilar do Imperativo categórico é: “Age de tal forma que a máxima da
tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal21”.
Essa fórmula evidencia a pura forma da lei moral e se fundamenta na liberdade. Entendamos
esse fundamento.

O Imperativo Categórico é proposição que determina a vontade de forma a priori e


objetivamente. Objetivamente, porque em sendo a lei moral um fato da razão pura que

19
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 1ª ed. Lisboa: Edições 70, 2009. Crítica da
Razão Prática. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
20
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, p. 26. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
21
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA 52. Lisboa – Portugal, 2009.
22

determina a vontade, essa mesma se torna prática precisamente porque determina a vontade
sem qualquer influência a posteriori. Portanto, um querer regido pela consciência do dever
(essa consciência é o fato da razão) é expressado na fórmula universal, que faz do Homem um
sujeito livre. Vejamos. Uma vez que o Homem (i) dá a si próprio o dever a partir da razão
pura prática ele se proclama independente das determinações das forças da natureza, das
autoridades externas e até mesmo dos costumes da história. No desenvolvimento dessa
concepção de liberdade da vontade, Kant pressupõe que a vontade seja um tipo de
causalidade do ser racional. Isso é interessante porque, em sendo assim, (ii) o Homem pode
produzir efeitos no mundo a partir dessa sua causalidade inerente. Nesse sentido, somos
capazes da criação em sentido moral no jogo da vida. A vontade é causadora de ações
moralmente boas. Tais ações desdobradas na história, começadas no dia a dia das relações
entre Homens, porém, principiadas na razão pura prática (porque se trata de princípio),
criam a liberdade da vontade a partir da autonomia dessa vontade.

Autonomia é a capacidade de agir segundo o princípio expresso a partir da vontade


causadora. Kant confere grande valor ao entendimento da autonomia. Na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes o filósofo explica que ela é a propriedade graças a qual se torna,
para si mesma, lei independente dos objetos da natureza e do querer próprio. O princípio da
autonomia é somente escolher máximas que possam ser incluídas, concomitantemente, no
querer privado e universal. Por isso, a autonomia é indeterminada no que tange objetos
externos à pura forma da lei moral, pois contém apenas a forma do querer em geral. Dela
deriva a liberdade enquanto independência para com os mecanismos naturais, muito embora o
Homem seja, sensorialmente, submetido às leis da natureza. Acontece que, enquanto pessoa,
este Homem também está submetido a sua personalidade, ou seja, ao seu mundo inteligível22.
É importante esclarecer isso.

O Homem, diz Kant, é “bastante ímpio, mas a humanidade em sua pessoa tem que ser
23
santa ”. Essa afirmação presente na Crítica da Razão Prática é útil para mostrar a
importância que Kant dá ao conceito de pessoa. Santa quer dizer inviolável, que não se deve
atacar, alterar, confundir, reconfigurar, em suma, que não se deve ‘contingenciar’. Ao afirmar
que a humanidade do Homem deve ser inviolável, Kant realiza, ao nosso entender, uma
distinção profunda entre os Homens e todos os demais componentes do universo. Peço licença
para oferecer uma minha interpretação sobre esse tema.
22
Ibid. p. 84, 90 e 96.
23
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, [155] p. 141. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
23

Em primeiro lugar: afora os Homens (e outra criatura também racional que,


supostamente, possa existir em algum lugar do Universo), quaisquer outros componentes do
universo são coisas. Essa expressão, coisas, sintetiza a qualidade dos seres determinados
apenas pelas leis da natureza. O Homem também é determinado por leis naturais. No entanto,
no que se lhe distingue das coisas, estas estão somente sujeitas às leis naturais. Por exemplo:
uma maçã, o bicho da maçã, uma mesa e o chão. A mesa está sobre o chão. O bicho percorre
o interior da maçã que está sobre a superfície da mesa. Alguém ou algo (que são agentes
externos em relação a cada destes entes) fez com que a maçã, percorrida pelo verme, esteja
sobre a mesa, que se encontra sobre o chão. Alguém ou algo determinou essas relações físicas
e químicas. Um Homem pode ter organizado esses entes: por uma maçã sobre a mesa. Mas a
possibilidade física primária dessa organização, bem como qualquer outra no universo,
acontece porque por determinação das leis naturais, por exemplo, a gravitação universal24.
Portanto, as coisas são entes que não possuem autonomia (autós – por si mesma; nomos –
lei). Elas não possuem o poder de determinar as leis as quais elas próprias estão submetidas.
Assim, não são capazes de realizar a escolha para permanecer na posição Y ou Z e, por isso,
desconhecem a liberdade. Se a liberdade lhes é algo impossível, logo, não se pode falar em
moralidade para (e das) coisas. De modo que é inválido supor uma dignidade das coisas,
porque elas são desprovidas de liberdade da vontade. Uma vez que a maçã foi posta sobre a
mesa, assim ela permanecerá, a menos que uma força externa aja sobre ela novamente.
Somente forças exteriores agem sobre as coisas. Estas são invariavelmente heterônomas
(hetero – outro; nomos lei). As condições das suas existências são garantidas fora dos seus
sistemas internos. Em suma, as coisas são entes destituídos da qualidade de fins em si e,
portanto, podem ser empregadas como meio para conseguirmos alcançar outra coisa. São
seres passíveis de violação.

A autonomia foi trabalhada por outros filósofos contemporâneos de Kant. Nessa


monografia não serão feitas comparações desse conceito. Limitarmo-nos a informar que, de
maneira geral, no século XVIII a autonomia era denominada como “condição de uma pessoa
ou de uma coletividade cultural, que determina ela mesma a lei à qual se submete25”. Seu
contrário é a heteronomia: “condição de uma pessoa ou de uma coletividade que recebe do

24
A gravitação universal é uma força fundamental de atração que age em todos os objetos por causa de suas
massas. A gravitação mantém o universo unido. Foi formulada pelo físico inglês Sir Isaac Newton em sua obra
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, publicada em 1687, que descreve a lei de gravitação universal e
as Leis de Newton – as três leis dos corpos em movimento que são fundamentos da mecânica clássica.
25
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, p. 115. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
24

exterior a lei a qual se submete26”. Essa autonomia iluminista se apresentava como uma
antítese à Escolástica27, à tradição, à religião e ao Ancien Régime. A razão dos iluministas
deveria se dobrar, somente, às evidências empíricas e matemáticas.

A razão dos iluministas é aquela do empirista Locke, que analisa as ideias e as reduz
todas às experiências. Trata-se, portanto, de uma razão limitada à experiência [...]
A razão dos iluministas é a razão de Newton, que [...] partindo da experiência e em
contínuo contato com a experiência, procura as leis do seu fundamento e as
submete à prova. (REALE & ANTISSERI, 2007, p. 672).

A filosofia iluminista, portanto, estrutura-se em confiança na racionalidade e defende a


autonomia. Kant foi entusiasta desse movimento. No Prefácio da Crítica da Razão Pura,
escreve que a sua época é:

por excelência uma época de crítica à qual tudo deve submeter-se. De ordinário, a
religião, por sua santidade, e a legislação, por sua majestade, querem subtrair-se a
ela. Mas neste caso provocam contra si uma justa suspeição e não podem fazer jus a
uma reverência sincera, reverência esta que a razão atribui exclusivamente àquilo
que pode sustentar-lhe o exame crítico e público (KANT, 1987, p. 20).

Assim, Kant faz do entendimento iluminista de autonomia uma premissa sua. O


primeiro acréscimo ao entendimento desse conceito aparece na resposta para O que é
Iluminismo?, Kant responde ser a era do esclarecimento (Aufklärung). Nas palavras do autor,
Iluminismo é:

26
Ibid: p. 115.
27
Escolástica foi a filosofia cristã da Idade Média que propunha o exercício da atividade racional visando
ascender a verdade religiosa, na medida que fosse possível, para defende-la de heresias. Quanto a tradição, o
Iluminismo via como um movimento de antítese, retrógrado, que mantinha fortes valores que independiam da
racionalidade. O termo Ancién Regime foi formalizado durante a Revolução Francesa (1789) para designar o
absolutismo monárquico baseado no direito divino de governar, a aliança entre Igreja e Estado, a sociedade
estamental, cuja ordem social se baseava nos privilégios de nascimento.
25

O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado.


A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento se a orientação de
outrem.Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a
orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio
entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. (KANT, 2008, p. 9).

Assim, Kant preserva o sentido de autonomia iluminista e o estende ao campo da


moral. O sujeito, faz uso do próprio entendimento através de uma decisão pela coragem de
pensar por si mesmo. Por conseguinte, agir segundo essa postura epistêmica, que não é
somente epistêmica, uma vez que se subordina à vontade, faz da razão a fonte do princípio
intelectual e moral da autonomia. Portanto, agir moralmente é fazer uso da razão prática. O
que equivale afirmar que, ao agir, devemos escolher os meios necessários para atingir um fim.
Também, equivale afirmar que devemos adotar fins que são equivalentes a natureza da razão.
Agir moralmente é se comportar segundo os padrões que nós mesmos, como agentes
racionais, estabelecemos livremente. Desse modo, tal como expresso na Antropologia de um
Ponto de Vista Pragmático, embora o Homem pertença ao mundo sensorial e aos mecanismos
da natureza, sendo heterônomo, ele também está submetido a outra lei. Essa lei é “a sua
própria personalidade, na medida em que ela pertence ao mesmo tempo ao mundo
inteligível28”. Essa personalidade, não está sujeita às leis da natureza, mas às leis da razão.
Portanto, por ser independente dos mecanismos naturais, existe uma autonomia própria
inerente que é imposta ao Homem.

Com tudo o que foi esclarecido, já pode dizer que o Homem enquanto pessoa é aquele
que, supondo ser ele um fim em si, se eleva sobre si próprio, para além do mundo sensorial e,
absolutamente, não pode ser coisificado. O Homem relaciona uma ordem de atos que só o
entendimento pode pensar. Tem a sua disposição o mundo sensorial inteiro e a existência
empiricamente determinada no tempo e espaço. E, no entanto, o Homem, enquanto pessoa é
ser “dotado de uma faculdade da razão prática e da consciência da liberdade de seu arbítrio”
e, portanto, é capaz de legislar29. Assim, o “primeiro traço característico da espécie humana,

28
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, [155] p. 141. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
29
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 218. Lisboa, 2009.
26

como seres racionais, é a capacidade de se proporcionar um caráter em geral, tanto para a sua
pessoa, quanto para a sociedade em que a natureza o coloca30”.

Realizada a necessária explicação a cerca da pessoa, encerremos com informações da


Crítica da Razão Prática, onde Kant escreve que a autonomia da vontade é o único princípio
da moralidade que consiste na independência de toda a matéria de lei heterônoma. Além de
ela determinar o arbítrio pela simples forma da lei universal, ela determina ao Homem a
liberdade em sentido negativo. É assim que Kant denomina a liberdade quando independente
das leis da natureza. Segundo ele, a liberdade em sentido positivo é quando, através da
legislação própria da razão pura prática se torna, ela própria, condição formal de todas as
máximas31. Kant escreve que a liberdade é a autonomia da vontade. Também podemos dizer
que a autonomia é a “propriedade da vontade de ser lei para si mesma32”. Dessa forma, Kant
liga a liberdade à moralidade de modo que uma vontade livre e autônoma apenas deve se
basear em agir segundo a máxima da fórmula universal.

Agora que apresentamos o que é a razão teórica e a liberdade da vontade, bem como
os conceitos que delas derivam, retornemos as considerações finais da terceira proposição da
Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. O entendimento das
capacidades teóricas e da liberdade da vontade reforçará o peso da afirmação de Kant:
Homem é o único responsável pela sua felicidade e, sobretudo, pelo seu devir histórico.
A natureza arquitetou que deveria o Homem, ser o único responsável pela composição
da sua felicidade e perfeição por meio da razão. Como se dá essa composição? O Homem é
dotado das capacidades da razão teórica e da liberdade da vontade, essa última concebida
como a expressão da razão prática. Do ponto de vista epistêmico, o conhecimento dela
circunscreve-se ao âmbito fenomenal e, do ponto de vista moral, sua vontade pode ser causa
livre de ações no mundo; portanto, o Homem é portador de vontade autônoma. Assim, por ser
ele capaz de uma vontade autônoma, a natureza não lhe respalda na construção da felicidade e
perfeição. Ambas devem ser construções suas, conforme a ação fundadora da autonomia da
vontade criadora e, segundo os critérios determinantes do imperativo categórico. No que diz

30
KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Dogmático, p.223.São Paulo, 2009.
31
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. pg. 56 e 57 . São Paulo: Martins Fontes, 2011.
32
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA 98. Lisboa, 2009.
27

respeito à perfeição, a entendemos como algo relacionado a uma noção de progresso


histórico. Nessa monografia, focaremos no progresso relacionado à evolução política
(Politischen Fortschritt).

Integremos o conhecimento das proposições vistas até aqui. As disposições racionais


do Homem (tanto para conhecer quanto para determinar a vontade) não se desenvolvem
plenamente no âmbito da individualidade, mas somente no da coletividade da espécie humana
e, no desdobrar da história. Assim, a noção de progresso epistêmico e, sobretudo, moral do
Homem, aponta para uma marcha bastante irregular e desafiadora. Sobre esse sentido, é
pessimista a hipótese de que a felicidade seja algo que a humanidade obterá plenamente e
conjuntamente. A despeito desse realismo, concentrando-se nas efetivas possibilidades do
Homem, o importante é destacar que em alguma dimensão da felicidade sendo alcançada,
juntamente com níveis de progresso, o Homem haverá de ser grato somente a si próprio por
ter adquirido tais estágios. A capacidade da autonomia permite ao ser racional ser, ele próprio,
senhor do seu sucesso e, responsável pelo seu fracasso. Devido a importância a cerca do
entendimento da razão e da liberdade da vontade, entende-se agora porque a compreensão
delas reforça o peso da afirmação sobre a responsabilidade que o Homem, inerentemente,
possui quanto a possibilidade da felicidade e, sobretudo, a respeito do seu devir histórico.

O mérito da felicidade e do progresso é o resultado e o produto da liberdade da


vontade de escolher as melhores formas dos acontecimentos na história real. Kant declara a
completa autonomia do Homem afirmando que este “não participa de nenhuma outra
felicidade ou perfeição senão daquelas que ele mesmo criou para si33”. Chama a atenção para
o fato de que a existência humana está estritamente condicionada à liberdade, e o que
fazemos dessa liberdade parece ser, em última instância, o resultado daquilo que
denominamos de história. Mas como acontece o progresso na história do Homem? Na quarta
proposição da Ideia de uma História Universal Kant escreve que:

O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas


disposições é o antagonismo delas na sociedade, na medida em que ele se torna ao
fim a causa de uma ordem regulada por leis desta mesma sociedade (KANT, 2011,
p. 8).

33
Ibid. p. 9.
28

Especificamente, é a partir dessa Proposição que a Ideia de uma História antecipa a


Paz Perpétua no que tange o problema da paz mundial. A Paz, em Kant, é algo que o Homem
deverá instituir, não sendo ela advinda da natureza. Por outro lado, a guerra é fruto da
maldade do gênero humano. Tanto a paz como a guerra, a bondade como a maldade, são
forças que originam-se do antagonismo enraizado no gênero humano. A esse antagonismo,
Kant dá o nome de insocial sociabilidade: tendência dos Homens para aderir à sociedade e, ao
mesmo tempo, se opor a essa mesma sociedade, ameaçando-a e desequilibrando-a. Kant
afirma que essa dupla inclinação é evidente na natureza humana. O Homem, diz ele, “tem
uma inclinação para associar-se porque se sente mais como homem num tal estado, pelo
desenvolvimento de suas disposições naturais34”. Mas essa mesma tendência é confrontada
pela tendência rival de separar-se porque o Homem encontra, em si mesmo:

uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir tudo simplesmente em seu
proveito, esperando oposição de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está
inclinado a fazer oposição aos outros. (KANT. p. 8, 2011).

A natureza se utiliza desses antagonismos para levar até o fim o desenvolvimento de


todas as disposições não instintivas do Homem. Esta oposição desperta nos Homens todas as
suas forças e, por meio dela, são dados os primeiros passos que levam da rudeza à cultura, que
consiste no valor social do Homem. Kant chega ao ponto de dizer que sem essa oposição, em
si nada agradável, todos os talentos permaneceriam escondidos.

Agradeçamos, pois, à natureza a intratabilidade, a vaidade que produz a inveja


competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de dominar! Sem eles
todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneceriam sem
desenvolvimento num sono eterno. O homem quer concórdia, mas a natureza sabe
mais o que é ,melhor para a espécie: ela quer discórdia. (Kant. p. 9, 2011).

A insocial sociabilidade presente no gênero humano faz os Homens oporem suas


disposições antropológicas na história. Isso inclui as culturas, as sociedades e as relações entre
34
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal do Ponto de Vista Cosmopolita; p. 8. São Paulo: ed.
Martins Fontes, 2011.
29

os Estados. Todos estão sobre o raio de influência do antagonismo antropológico. Este,


enquanto fonte da cultura, que faz avançar fortemente as artes, incentiva um desenvolvimento
discreto no âmbito político e moral. Nestes, o progresso que acontece é em velocidade menor
e, infelizmente, no mais das vezes, através da oposição que, levada ao extremo, conduz à
guerra. Por definição, a guerra é uma onda de conflitos armados entre facções, partidos ou
grupos que querem impor seu ponto de vista35. Existem vários tipos de guerra: econômica,
psicológica, religiosa, étnica, ideológica, territorial, vingativa, etc. Talvez, entre tantas causas
alegadas para fazer o empreendimento bélico, a de conquista seja a principal, quase sempre
camuflada por outras causas que servem de justificativa à opinião pública. Se a história é o
resultado de nossas escolhas feitas em sociedade, então, foi na sociedade que os elementos
opostos da condição humana foram, um ou outro, escolhidos e desdobrados praticamente.
Entrementes, tanto a escolha pela guerra quanto os esforços pela efetivação da paz são
manifestações da insocial sociabilidade. No entanto, durante sua trajetória pelo espaço e
tempo da Terra, o Homem não deve ser apenas conduzido pela espontaneidade de ora fazer
guerra, ora fazer paz, como se não tivesse ele próprio o direito de assumir deveres e
responsabilidade.
A necessidade do Homem em assumir responsabilidades é imprescindível para
administrar a liberdade. A capacidade para a autonomia lhe permite escolher entre aquilo que
pode ser universalizado, em termos de ações benéficas a uma coletividade; ou pretender o
mal, o que equivaleria a uma ação que interessaria beneficamente apenas um agente junto
com seus interessados, com consequências potencialmente desagradáveis para as demais
pessoas – coletividade. O mal histórico, derivado da insociabilidade, é uma patologia inerente
da natureza humana que se revela na relação livre dos povos – ao passo que se dissimula
muito no estado civil (lugar onde existe uma constituição civil). ‘Relações livres’ entre povos
quer dizer relações entre Estados que não sejam amparadas pelo Direito Internacional. Ainda
assim, mesmo com a presença desse, ou seja, com a sua normatividade reconhecida pelos
Estados, tal aparelho não elimina as possibilidades de relações belicosas entre Estados.
O mal histórico é o que de agora em diante vamos chamar de o problema da paz
mundial, derivado da insociabilidade. Ele é uma patologia que deve ser superada pelo
‘iluminar-se’ (Aufklärung) em direção a um todo moral. Mello escreve que o mal é “uma
perversão que cabe à razão humana dominar. Em Kant, o problema do mal e da injustiça

35
MORETTI, Fernando. As Maiores Guerras do Mundo, p. 4. São Paulo: Discovery Publicações, 2013.
30

permanece inteiro na filosofia da história36”. Do mesmo modo, o problema também deverá ser
uma questão possível ao Homem. Que é o único responsável pela história e pelo devir. Mello,
ao interpretar essa quarta proposição, explica37 que à medida que os antagonismos forem se
subtraindo na sociedade, as paixões transformando-se em cultura e em uma ordem jurídica
moral, o progresso irá acontecer. O paradoxo da insocial sociabilidade, concebido como fonte
do mal e ao mesmo tempo progresso jurídico e cultural, leva Kant a escrever, na quinta
proposição, que o “maior problema para a espécie humana, a cuja solução a natureza a
obriga, é alcançar uma sociedade civil que administre o direito38”.
O mais alto propósito da natureza, relativo à espécie humana, é o desenvolvimento de
todas as disposições desta. Mas a natureza quer que o próprio Homem proporcione para si
este propósito, com todas possibilidades in potentia. É como se houvesse uma sabedoria
natural que, sabendo que o melhor ao Homem está no exercício da autonomia, então, tal
sabedoria o direciona à melhoria através de suas próprias capacidades. O meio pelo qual a
natureza intervém para efetivar a melhoria é a insocial sociabilidade. Expressada nas relações
entre Homens como forças antagônicas. Assim, como alcançar uma sociedade civil numa
coletividade que apenas progride sob a condição dos antagonismos? Perguntando de outra
forma: como a tensa oposição dos opostos antropológicos na história, fonte do problema da
paz mundial, pode ter o nível de tensão subtraído, sem a perca daquilo que contribui como
estímulo a cultura? Kant responde que é através do Direito Internacional.
Nesse Direito Internacional, Kant escreve que devem ser preservadas e garantidas às
liberdades dos membros da comunidade internacional. Para tanto, devem ser consideradas
suas diferenças recíprocas e, mesmo o antagonismo, à medida que se garanta, para cada
liberdade, a possibilidade criadora de atos que compitam entre si. Em última instância, o que
empurra a ordem social na direção do progresso é o antagonismo. No que tange a organização
política interna dos Estados, a maneira de se preservarem as diferenças enriquecedoras, as
liberdades criativas e, alguma medida dos antagonismos, é através de uma constituição civil.
Essa constituição deve ser o princípio que comporá o Direito Internacional. Abonar uma
constituição é condição necessária para o desenvolvimento cultural e jurídico, condição de
possibilidade para a paz.

36
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 44. São Paulo: Saraiva, 2004.
37
Ibid. p. 41.
38
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p. 10. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
31

MELLO, ao interpretar essa quarta Proposição, também escreve que só a sociedade


organizada permite preservar as diferenças enriquecedoras e a liberdade criadora de cada um
e, ao mesmo tempo, pôr limites ao exercício desta. Sendo que é exatamente dentro dessa
ordem social que se realiza o desígnio supremo da humanidade, a constituição civil será o
resultado daquilo que foi:

patologicamente extorquido (acordado) aos Homens, a saber, o acordo e/ou contrato


primário de sociedade, na medida que progredir através da educação em livre adesão
ao direito, isto é, à razão – tal sociedade estará realizando o desígnio supremo da
humanidade. (MELLO, p. 43).

Para Kant, uma sociedade em alto grau é aquela ao qual o progresso foi tal que a
liberdade se encontra irresistivelmente correlacionada a leis exteriores justas, no caso,
preservada no conteúdo normativo do internacional. Tais leis “são o reflexo do longo
caminhar da humanidade em direção a um projeto razoável comum39”. Em Kant, a liberdade
está beneficiada na ordem jurídica, assim, progressivamente instituída.
Uma nova relação das proposições até aqui analisadas. Temos que todas as
disposições do Homem devem se desenvolver completamente, algum dia, na espécie. A
própria natureza configurou, no gênero humano, as faculdades da razão teórica e da razão
prática, que são recursos que o Homem tem a liberdade de usar para contrapor as forças
antagônicas da insocial sociabilidade. À medida que esse contraponto for ocorrendo ao longo
das gerações, o progresso se constitui, enquanto prevalência da educação em livre adesão ao
direito conforme uma instituição civil em detrimento do mal radical. Assim, por meio dessa, o
devir histórico – que de certo será sacudido pelas forças antagônicas expressadas no
desdobramento histórico – será também ele regulado pelo Direito. Afinal, ao longo do tempo,
e sobre essas condições, as disposições do Homem se desenvolvem e a sociedade progride até
a construção de uma constituição civil que, segundo Kant, é o “maior problema para a espécie
humana40”. A respeito dessa dificuldade, Mello escreve que “a própria natureza do Homem e
da sociedade faz com que, na verdade, a busca do fim e da perfeição só possa ser indefinida e

39
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 43. São Paulo: Saraiva, 2004.
40
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p.10. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
32

imperfeita41”. A sexta proposição é um realce sobre a dificuldade de alcançar uma sociedade


civil que administre universalmente o direito porque este “problema é, ao mesmo tempo, o
mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana42”.
Se Kant reservou uma proposição para ressaltar a dificuldade a cerca da consecução de
uma sociedade civil que administre o direito em geral, temos que entender a natureza dessa
dificuldade que, especificamente, é a dificuldade de encontrar entre os Homens (mas também
entre Estados) uma disposição voluntária e desinteressada para não abusarem das suas
liberdades em sociedade. Não se pode duvidar do caráter dessa afirmação quando conhecemos
a história das relações internacionais, lugar onde o problema da paz mundial é uma constante.
Isso porque o Homem, diz Kant, enquanto “criatura racional, deseja uma lei que limite a
liberdade de todos”, ao mesmo tempo em que “sua inclinação animal egoísta o conduz a
excetuar-se onde possa43”. Para regular e equilibrar as relações é necessária a presença de um
chefe que possa administrar a sociedade e a condução das leis em geral. No entanto, a
necessidade desse chefe é sempre limitada por causa da natureza humana. “O supremo chefe
deve ser justo por si mesmo e, todavia, ser um homem44”. Nesse sentido, a dificuldade de
administrar o direito é a mais grave, porque sempre será um Homem o gerenciador. Kant
escreve que a “solução perfeita é impossível: de uma madeira tão retorcida, da qual o homem
é feito, não se pode fazer nada reto45”.
Kant escreve, de forma um tanto hermética, que a impossível tarefa de encontrar um
chefe justo por si mesmo também é uma ideia a qual devemos construir aproximação
constante no decorrer da história. O que é essa ideia de aproximação? Mello oferece uma
interpretação oportuna a respeito. A busca humana pela perfeição é imperfeita, e preenchida
de irregularidade. A construção de uma sociedade civil que administre o direito em geral
apenas tardiamente e erraticamente irá acontecer. Portanto, existe um alto grau de
irresolubilidade e constrangimento histórico. No entanto, para Mello, isso contribui para uma
continuação, uma abertura na história rumo ao devir46.
Mello denomina esse grau de incerteza e irresolubilidade de ‘abertura da história’,
sendo um dos elementos principais que constitui a Ideia. A história, ele argumenta, não está e
não será esgotada porque não existe um limite para a liberdade. Mello não explica porque a
41
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 43. São Paulo: Saraiva, 2004.
42
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. 11. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
43
Ibid. p. 11.
44
Ibid. p. 11
45
Ibid. p. 11
46
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 43. São Paulo: Saraiva, 2004.
33

liberdade não tem limites. Mas ele supõe esse conceito em Kant para escrever que a abertura
na história se relaciona com a Ideia. Queremos acrescentar uma colaboração para entender o
sentido dessa liberdade aberta. De acordo com o que escrevemos até aqui, e buscando
justificar essa afirmação, temos condições de alegar que não se pode falar em limite para a
capacidade da razão prática, ou capacidade para determinar a vontade. Porque é através dessa
vontade que a autonomia para com as leis da natureza ocorre. E mais importante. A
autonomia da vontade, enquanto categoria de causa livre que permite ao Homem criar ações
universalmente válidas. A liberdade não pode ser limitada porque é força criadora das ações
morais do Homem. Essas ações são começadas empiricamente, mas são principiadas na
capacidade da razão pura prática de determinar a vontade concebida autonomamente. Se a
liberdade da vontade enquanto causa criadora de ações no mundo não pode ser limitada,
então, os Homens não são como os castores, que tudo fazem e agem segundo determinismos
naturais. Logo, a autonomia da vontade, inerente ao Homem, lhe permite abrir campos de
possibilidades em seu agir na história real. A autonomia da vontade é fonte do devir enquanto
criação humana, não advinda da natureza, mas da condição criadora autônoma, fonte da
liberdade e criatividade. Em outras palavras: a razão outorga a escolha entre realizar um ato
que inicie uma séria de reações racionais ou irracionais. A abertura na história, que Mello se
referia, é essa capacidade autônoma do Homem em optar por percursos futuros que
dificultam ou facilitam o progresso.
A liberdade tem esse sentido muito específico e forte, capaz de determinar - conforme
o nível de responsabilidade que assume para com ela - o bem ou o mal no devir. A abertura da
história é uma Ideia, garantida substancialmente pela capacidade da liberdade em competição
com aquelas tendências da insocial sociabilidade. Mello ainda adverte que a responsabilidade,
o bem e o mal, sempre estão presentes na filosofia da história de Kant. Ele chama a atenção
para algo muito importante, ao nosso ver. A forma como se interpreta o Homem pode ser feita
de maneira míope. Uma visão puramente realista dos acontecimentos humanos ao longo da
história mantém as atenções somente nas contingências e os fatos urgentes do momento,
aprovando condutas político-jurídica que fomentam ações apressadas, com o objetivo
imediato de conseguir pactos e acordos entre governos. De outro modo, Mello também
adverte que uma visão puramente idealista contempla o discurso de uma sociedade global,
multilateral, amparada por uma lei jurídica internacional que rege as constituições estatais
regionais, podendo isso beirar a utopia. Escreve o Sr. Sérgio de Mello que “conforme se
valoriza indevidamente um ou outro desses elementos críticos da equação histórica (...) corre-
34

se o risco de torná-la (...) insolúvel47”. No entanto, em Kant não há essa polarização. Mello
afirma que ocorre uma síntese entre utopia e realismo. Por um lado, está o poder das
possibilidades por conta da racionalidade na história; e do outro, a atualidade do mal nas
cenas do mundo. E entre um e outro elemento dessa síntese, o Direito intermedeia a
resolubilidade que, via de regra, objetiva a segurança e a paz. Nas palavras de Sérgio Vieira
de Mello, Kant crê com isso no que o ex-funcionário da ONU chamou de “sobrefunção”
educadora da utopia.

Esta sobrefunção questiona a si mesma e procede a reavaliações constantes dos fins


táticos e últimos que ela se propõe à História, a cujos desdobramentos procura
precisamente se adequar, mantendo, entretanto, a intenção de alinhavar essa
adequação ao eixo central humanizador que a ideologia propõe a história real.
(MELLO. p. 43).

A consecução de uma sociedade civil que administre o direito em geral é um desafio


proposto e constantemente presente na história. É um tema inerente ao problema da paz
mundial à medida que é responsabilidade do Homem os rumos que essa consecução toma
segundo o manejo que o ser racional faz da liberdade e que permite a abertura. Conforme os
desdobramentos da história, a presença de uma constituição civil que regule a liberdade
deverá ocorrer. Entendemos que a consciência dessa responsabilidade quanto ao devir, que
ocorre concomitantemente à consciência da liberdade (fato da razão), pode ser bem
assessorado pelo conceito de sobrefunção educadora da utopia. Pois se a consciência da
responsabilidade não acontece sobre a crueza dos fatos em si, e também não se sustenta
segundo uma utopia romântica. A responsabilidade não se ampara nem pelo o que desencanta
e nem pelo o que cega a esperança. Mas tão somente por uma síntese entre utopia e realismo.

O estabelecimento de uma sociedade civil e de uma “constituição civil perfeita


depende do problema da relação externa legal entre Estados, e não pode ser resolvido sem
que este último o seja48”. Esse é o conteúdo da sétima proposição, ao qual Kant aponta
diretamente para às relações internacionais, lugar onde o problema da paz mundial acontece.
É importante notar que a insociabilidade, conforme vimos, obriga os Homens à tarefa de
construir uma constituição civil conforme leis que regulem as liberdades. Interessantemente,

47
Ibid. p. 43
48
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. ??? . São Paulo: ed.
Martins Fontes, 2011.
35

Kant estende para o âmbito das relações internacionais o antagonismo antropológico. De


modo que os Estados se tornam pessoas quando das relações uns com os outros. Kant trabalha
com a situação em que a insociabilidade entre os Estados seja causada pelo uso da liberdade
irrestrita, a mesma liberdade excessiva que outrora incentivou os “indivíduos e os obrigou a
entrar num estado civil conforme leis49”. Ou seja, a natureza protagoniza no cenário
internacional a incompatibilidade “entre as grandes sociedades e corpos políticos [...] como
um meio para encontrar, no seu inevitável antagonismo, um estado de tranquilidade e
segurança50”.

No seio da historia real, onde tanto o pior quanto o melhor do gênero humano é
desdobrado, um equivalente para uma constituição civil para as relações internacionais pode
acontecer. A constituição civil é uma forma de instituir o estado de paz na sociedade, cujo
equivalente para a comunidade internacional é a formalização do Direito Internacional. Na
Ideia de uma História Universal esse Direito deve ser composto sobre a égide da
Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum) – que na Paz Perpétua será sofisticada
para Liga da Paz (foedus pacificum). Trata-se, a Confederação, da condição na qual a razão
e o progresso conduzem os Estados, após a sangria vivida por muitas gerações, a um estado
jurídico de integração e normatização de condutas. Para Kant, as consequências do problema
da paz mundial não devem ser ocasionais, não devem ser interpretadas como mero conteúdo
da loucura na história. Na Ideia, Kant nos faz pensar que o problema é uma oportunidade para
a razão destacar, na história, pouco a pouco, a saída das relações:

sem leis dos selvagens para entrar numa federação de nações em que todo Estado,
mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito não da própria força
ou do próprio juízo legal, mas somente desta grande confederação de nações
(Foedus Amphictyonum). (KANT, 2011. p. 13).

A realização dessa Confederação é a conjunção de poderes e de escolhas


unificadas pelos Estados. A sua realização acontece como elemento racional no seio das
tensões que caracterizam as relações internacionais na história. Ou seja, uma história racional
e filosófica que ocorre no âmago da história real e, na maioria das vezes, irracional do

49
Ibid. p. 12.
50
Ibid. p. 13.
36

Homem. Kant escreve que a Ideia de uma saída inevitável do homem do estado de natureza
para a realização de uma sociedade civil, regida por sua respectiva Constituição, também
acontece do ponto de vista internacional. Tal como entre os Homens, os Estados também se
colocam em relações miseráveis de guerras e paz instáveis. Ao longo do tempo, por mais
penoso que possa ser, tal situação acaba por obrigar à instituição de leis internacionais que
regulem os comportamentos. Kant explica que as guerras são tentativas da natureza de
estabelecer “novas relações entre os Estados [...] por meio da destruição” para “formar novos
corpos51” políticos. Estes, por sua vez, no decorrer do devir histórico também incorrerão em
novas revoluções. Essa situação permanecerá até que a melhor ordenação das constituições
internas e a construção das leis internacionais sejam alcançadas, como um grande Estado
republicano (gemeines Wesen).

Kant defende essa interferência da natureza justamente para impedir que o acaso e
a espontaneidade sejam as normas reguladoras dos Estados e dos Homens. O filósofo
desacredita fortemente que os Estados possam conseguir, por meio de choques casuais, algum
tipo de configuração que fundamente a segurança coletiva. É impossível que acidentalmente
haja teleologia para a história. Menos possível ainda que o acaso possa integrar e fazer
progredir uma espécie que, sendo antropologicamente extorquida em sua condição, possa ter
direito de ter esperança em melhoria e progresso. Da mesma maneira que não se faz ciência
ao acaso, também não se progride na espontaneidade. Por isso, na Ideia de uma História Kant
afirma que a interferência da natureza acontece para que haja um:

concurso regular para conduzir a nossa espécie aos poucos de um grau inferior de
animalidade até o grau supremo de humanidade, por meio de uma arte que lhe é
própria, embora extorquida no homem, e desenvolver de maneira bem regular essa
ordenação aparentemente selvagem aquelas disposições originais. (KANT, 2011. p.
14 e 15).

Na citação última estão reunidas todas as Proposições anteriores. O que se destaca


no Homem é a sua racionalidade, que pode alcançar amplo desenvolvimento ao longo do
tempo na espécie, embora não de forma homogênea. O pleno desenvolvimento de uma
sociedade mundial é embasado em constituições internas civis. Essa é a condição potencial

51
Ibid. p. 14.
37

para a execução de leis internacionais cuja função será de normatizar as liberdades dos
Estados no palco internacional. Ao mesmo tempo em que as guerras impedem “o pleno
desenvolvimento das disposições naturais em seu progresso, por outro lado52”, por causa dos
males que as pessoas (tanto no sentido civil como jurídico) recebem, elas também levam ao
desenvolvimento do direito no cenário internacional. Neste, a segurança e a paz dos Estados é
a principal meta. Assim, na Ideia de uma História, Kant afirma que a ocorrência de
infortúnios pelo desdobrar das gerações no espaço e tempo terrestre faz com que as pessoas
busquem:

encontrar uma lei de equilíbrio para a oposição em si mesma saudável, nascida da


sua liberdade, entre Estados e vizinhos, e um poder unificador que dê peso a esta lei,
de modo a introduzir um Estado cosmopolita de segurança pública entre Estados –
que não elimine todo perigo, para que as forças da humanidade não adormeçam,
mas que também não careçam de um princípio de igualdade de suas ações e reações
mútuas, a fim de que não se destruam uns aos outros. (KANT, 2011. p. 15, 16).

Kant é bem objetivo ao dizer que a humanidade irá padecer o “pior dos males”
antes de atingir esse estágio53. Embora o Homem seja civilizado em termos de arte e ciência,
falta muito para ser considerado moralizado. Entendamos que o sentido de moral, em Kant,
assume o contexto outrora explicado da liberdade da vontade entendida autonomamente
segundo os ordenamentos do Imperativo Categórico. Não se trata, portanto, do uso comum da
moralidade de amor à honra e decoro social (Sittenähnliche). A humanidade irá padecer dos
males das guerras: “enquanto os Estados empregarem todas as suas forças em propósitos
expansionistas ambiciosos e violentos54” o Estado Cosmopolita não acontecerá. No entanto,
Kant explica que, por causa da miséria, da calcificação, do cansaço e da degradação do gênero
humano, causados pelas guerras, isso tudo motiva no Homem a ambição pelo bem em sua
própria intenção, o que, consequentemente, gera a vontade boa. Enquanto tal, essa ambição
assume a força de uma intenção moralmente boa e, é condição para a efetivação da
possibilidade de saída do Homem do estado caótico para um estado de relações entre Estados
firmadas sob o princípio de leis exteriores.

52
Ibid. p. 7.
53
Ibid. p. 16.
54
Ibid. 16.
38

Se Kant desacredita que a possibilidade de estabelecer uma sociedade política não


acontece quando a comunidade internacional é marcada pela insegurança e hostilidade, isso
significa dizer que não há razão particular no caos coletivo. E o contrário também é válido.
Na oitava proposição, o filósofo escreve sobre a necessidade de construir constituições
internas e leis externas que sejam equivalentes entre si. Além disso, que a concepção de
história pode acontecer como uma narrativa a cerca da construção dessas constituições.
Leiamos:

Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a


realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição
política (Staatsverfassung) perfeita interiormente e, quanto a este fim, também
exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver
plenamente, na humanidade, todas as suas disposições (KANT. p. 17, 2011).

A história pode ser considerada segundo um plano ignoto da natureza para o


desenvolvimento pleno das disposições humanas Mas como a “experiência revela algo de um
tal curso do propósito da natureza55”? Kant diz que muito pouco ela revela, pois o ciclo
necessário de aprendizado exige demasiado tempo para completar tais disposições na história
real. Tendo ainda que considerar que será de maneira incerta a forma dessa trajetória, tanto
em relação ao todo para com as partes, e vice versa. No entanto, o filósofo enfatiza que
mesmo diante desse realismo desencantador, o desenvolvimento pode, de certa forma, ser
acelerado, “por meio de nossa própria disposição racional56” para uma era futura da qual
nossos descendentes desfrutarão. A experiência pouco revela dos propósitos da natureza
quanto a história. Mas Kant chama atenção para algo que me parece contemporânea da nossa
era. Escreve:

a liberdade civil não pode mais ser desrespeitada sem que se sintam prejudicadas
todos os ofícios, principalmente o comércio, e sem que por meio disso também se
sinta a diminuição das forças do Estado nas relações exteriores [...] Se se impede o
cidadão de procurar seu bem-estar [...] desde que se possam coexistir com a

55
Ibid. p. 17.
56
Ibid. p. 17
39

liberdade dos outros, tolhe-se assim a vitalidade da atividade geral e com isso, de
novo, as forças do todo. (KANT, 2011. p. 18).

Essas palavras parecem ter sido proferidas por um Secretário Geral das Nações
Unidas quando da divulgação de relatórios a cerca dos níveis de liberdade de cidadãos de
países em conflitos civis. Mas não é o caso. Foram escritas há mais de dois séculos e isso
merece destaque no interior da experiência cármica dos Homens ao longo da história. Na atual
conjuntura da evolução política e jurídica internacional, frequentemente as ofensas e afrontas
aos direitos fundamentais dos Homens são reverberadas para toda na mídia e tribunais.
Existem entidades e pessoas com o “interesse de coração que o homem esclarecido
(aufgeklärt) não pode deixar de ter em relação ao bem, que ele concebe perfeitamente57”.
Podemos chamar isso de solidariedade universal. Não se trata mais de que, em havendo
ofensas e maus tratos às pessoas de uma região específica, que isso fique como informação
isolada. Sobretudo, trata-se de uma ofensa àquilo que é essencial e deve-se defender, o que
em Kant podemos dizer: pessoa humana.

Essa fraternidade universal está na base para a formação de um corpo político


(Staatskörper) no qual todos os seus membros estejam carregados do sentimento comum da:

manutenção do todo; e isto traz a esperança de que, depois de várias revoluções e


transformações, finalmente poderá ser realizado um dia aquilo que a natureza tem
como propósito supremo, um Estado Cosmopolita universal, como o seio no qual
podem se desenvolver todas as disposições originais da espécie humana. (KANT,
2011. p. 19).

Mello, sobre esta proposição, escreve que a única saída concebível para evitar a
brutalização das relações entre Estados é a composição de uma segurança internacional
resguardada pelo direito internacional das sociedades das nações – foedus amphictyonum.
Uma sociedade assim reúne potências, juízos e as leis advindas das vontades comuns de seus
integrantes. Exemplos desse tipo de sociedade, cita ele, foram o projeto anfictiônico da Grécia
Antiga, o Congresso Anfictiônico do Panamá, o Modelo Federal Europeu, a Sociedade das

57
Ibid. p. 18.
40

Nações Unidas e a Organização das Nações Unidas. Por fim, a respeito do corpo
cosmopolítico, Mello diz ser o vislumbre de ações equilibradas pelo princípio da segurança
pública internacional e pelo objetivo de conservação das sociedades interestatais58.

Quais as lições que a Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista


Cosmopolita nos reserva? Na última proposição temos, finalmente, ocasião de reunir o
entendimento dessa obra. Vejamos:

Uma tentativa filosófica de elaborar a história universal do mundo segundo um


plano da natureza que vise à perfeita união civil na espécie humana deve ser
considerada possível e mesmo favorável a este propósito da natureza. (KANT, 2011
p. 19).

Essa tentativa de elaboração de uma história universal é possível de acordo com as


seguintes razões. Em primeiro lugar. Kant não se vale da metodologia da historiografia
factual, de modo que não começa a narração da história a partir desta, via de regra,
contingente. Para fazermos uma distinção: quando uma elaboração a cerca das ações das
gerações dos Homens começa na história real, nós temos coleções de informações dos dados
do saber empírico, concernentes à natureza empírica do Homem – a essa altura, já sabemos
que essa natureza, resumida no conceito da insocial sociabilidade, é tanto capaz do pior
quanto do melhor. Desse modo, uma história começada na história real e, supondo essa
natureza baseada na experiência, deve ser considerada, proporcionalmente, como uma ciência
empírica, propriamente circular e sem um fim que lhe garanta sentido. Para uma história com
tal metodologia, Kant utiliza o termo em latim Historie. E afirma que esse modelo
historiográfico não abrange a condição humana, muito embora enfatize que não é para
“excluir a elaboração da história (Historie) propriamente dita59”. O uso da obra Ideia de uma
Hostória Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita significa, em primeiro lugar, não
valer-se de conceitos e pressupostos empíricos, ou seja, não vale aqui a ciência da Historie.
Em seguida, quanto a justificação de seu uso, formalmente falando, a Ideia tem
transcendência em relação à própria transcendência dos conceitos da sensibilidade e do

58
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 45. São Paulo: Saraiva, 2004.
59
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. 22 . São Paulo: ed.
Martins Fontes, 2011.
41

entendimento, sendo que sua ilustração é impossível. Portanto, ela é a-histórica. Ela possui
uso restrito à finalidade de redigir uma história não como de facto é, mas como em princípio
deveria ser. Nas palavras de Kant, a Ideia é uma forma de pensar “como deveria ser o mundo,
se ele fosse adequado a certos fins racionais60”. E qual seria o ideal da Ideia de uma História?
Na Crítica da Razão Pura Kant afirma que um ideal é algo singular determinável
apenas pela Ideia. E a razão contém ideais, que têm força prática, pois são princípios
reguladores que fundamentam a possibilidade da perfeição de certas ações61. Assim, na parte
formal a Ideia de uma História é um modo de pensar “como deveria ser o mundo, se ele fosse
adequado a certos fins racionais62”, que é o ideal da Ideia de uma História Universal de um
Ponto de Vista Cosmopolita. Portanto, o ideal da história, seu fim, a sua meta é o
desenvolvimento das disposições racionais da espécie humana. A realização plena do ideal é
impossível. No entanto, através do progresso dessas disposições é permitido, aos Homens, o
desenvolvimento das normas de convivência, expressas nos conteúdos das constituições civis,
com sua respectiva equivalência em leis externas, no Direito Internacional. A finalidade
maior da espécie humana é a realização da sétima Proposição: a criação de uma grande
Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum), cuja trajetória do seu desenvolvimento
possa ser narrada segundo a finalidade que ela mesma responde. Portanto, a Ideia de uma
História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita é uma tentativa filosófica de:

redigir uma história (Geschichte) segundo uma ideia de como deveria ser o curso do
mundo, se ele fosse adequado a certos fins racionais [...] poderá nos servir como um
fio condutor para expor, ao menos em linhas gerais, como um sistema, aquilo que de
outro modo seria um agregado sem plano das ações humanas. Pois se partirmos da
história grega [...] se perseguirmos sua influência sobre a formação e degeneração
(Missbildung) do corpo político (Staatskörper) até nossos dias; e se acrescentarmos
episodicamente a história política de outros povos tal como seu conhecimento
chegou até nós por meio destas nações esclarecidas (aufgeklärt) – descobriremos um
curso regular de aperfeiçoamento da constituição política (Staatsverfassung).
[KANT, 2011. p. 20]

60
Ibid. p. 20.
61
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, p. 383. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
62
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. 20 . São Paulo: ed.
Martins Fontes, 2011.
42

Portanto, pode-se conceber o processo histórico de civilização como algo natural no


sentido em que é fim determinado pela Providência63 com a qual a humanidade elevará, no
futuro, por meio do seu trabalho, os germes que a natureza nela colocou até o pleno
desenvolvimento. Não podemos confundir esse sentido de natural com o da ciência da
Historie, que se vale dos dados concernentes à natureza empírica do Homem. Com a Ideia,
Kant apresenta uma história do mundo (Weltgeschichte), na qual o empreendimento filosófico
humano pode encontrar um fio condutor (Leitmotiven) a priori da historia universal.
Universal porque, a história (Geschichte) é interpretada do Ponto de Vista Cosmopolita. Essa
última expressão é a palavra grega que, em português, significa “cidadão do mundo”. Se
refere àquilo que é comum entre os países. Portanto, para além dos limites da divisão
geopolítica e das cidadanias nacionais dos Estados soberanos e suas respectivas narrativas de
glória, a história cosmopolita (Geschichte Weltbürgerlicher) é uma tentativa filosófica de
empreender sentido de uma história sapientiae no seio da historia stultitiae64. Ou seja, uma
história racional e filosófica no âmago dos acontecimentos, por vezes alucinantes, das ações
do Homem no espaço e tempo da Terra.

Estejamos atentos ao seguinte: o estudioso da História Cosmopolita (Geschichte


Weltbürgerlicher), ao interpretar os desdobramentos dos eventos do passado até o presente,
procura por eventos que indiquem a realização da finalidade do Homem na Terra. Dito com
outras palavras: procura pela história as ações e empreendimentos dos Homens e Estados que,
somados, viabilizaram a realização do ideal. A história da civilização, pensamos, bem pode
ser constituída segundo esse critério: ordenar o que a humanidade conseguiu acumular de
manifestações históricas concernentes à criação de constituições civis que corroborem para a
efetivação futura da Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum). Trata-se de um
empreendimento que remete ao passado das ações das gerações humanas que ocorreram na
Terra. Por exemplo, parafraseando Kant, se partíssemos da história grega, perseguindo sua
influência filosófica, cultural e política sobre os romanos e, como estes também influenciaram
outros povos, considerando a inerente formação e degeneração (Missbildung) dos corpos
políticos (Staatskörper) dos Estados, isso em si causado pela insocial sociabilidade, e ao
chegar até nossos dias, mesmo após os inauditos picos de horror da Primeira e Segunda

63
Kant escreve que a Providência é “a finalidade do curso do mundo de sabedoria profunda, causa superior do
gênero humano, ao qual a razão humana não pode conhecer, mas que podemos introduzir nosso pensamento
para, então, fazer um conceito da sua possibilidade segundo a analogia das suas obras através das artes
humanas”. KANT, A Paz Perpétua. p. 44. Porto Alegre: L&M POCKET, 2008.
64
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 48. São Paulo: Saraiva, 2004.
43

Guerra Mundial, descobriremos, por mais amargo que seja, um curso regular de
aperfeiçoamento da constituição política (Staatsverfassung) dos Estados. Portanto, ocorreu
uma evolução política (Politischem Fortschritt) ao longo do tempo65.

Do ponto de vista cosmopolita, é por meio dessa evolução que a Confederação de


Nações (Foedus Amphictyonum) deve acontecer. Mas tanto a história do mundo
(Weltgeschichte) quanto, sobretudo, a Historie, demonstram a lentidão dessa forma de
política. Sabendo que o Homem é uma criatura de disposições racionais com finalidades
também racionais determinadas pela Providência (pois o Homem não poderia ser apenas
poeira de estrelas ou, joguete do destino), o que deve o Homem fazer para acelerar o seu
progresso político no devir? É exatamente no trato dessa questão que vamos avançar para uma
importante obra de Kant: À Paz Perpétua. A Ideia de uma História Universal de um Ponto de
Vista Cosmopolita apresenta o essencial de política em Kant, muito ligado à condição formal
da Ideia. Já na Paz Perpétua, o tema da política ascende determinantemente. O conteúdo
adequado à Ideia é trabalhado. Por isso, a leitura da Paz depende, previamente, da
compreensão da Ideia. Esta é a obra que nos diz como estudar o passado histórico, se
quisermos ver nele uma evolução política segundo fins racionais. A Paz Perpétua é a obra
que se refere a um projeto de futuro. Apresenta as condições políticas e normativas para para
que a paz internacional seja alcançada, através de um estado jurídico internacional. A Paz
constitui expressão da razão prática e deve ser entendida como uma continuação da Ideia.
Conforme Mello, À Paz Perpétua de Kant é:

dominado por duas ideias mestras: a necessidade de inaugurar a pacificação


construtiva das relações entre nações e a de encontrar o ponto de equilíbrio
contratual que permita dar a forma a essa paz sem, no entanto, ferir o sacrossanto
princípio da soberania. [MELLO, 2004, p. 54]

65
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. 20 . São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
44

CAPÍTULO II -

A POLÍTICA EM IMMANUEL KANT

Aqui a conceituação de política em Kant será mais diretamente realizada. E envolverá


as relações entre Estados. O conceito de Estado, que usaremos amplamente nesse capítulo, é
aquele advindo da Antiguidade, que vê o “Estado como ordem política da Sociedade66”. Tanto
as degenerações como a formação (Missbildung) de Estados acontecem na história. A respeito
desta última, pode-se concebê-la como algo natural no sentido de que é fim determinado pela
Providência, ao qual a humanidade elevará no futuro, por meio do seu trabalho, os germes
que a natureza nela colocou ao pleno desenvolvimento. No entanto, para Kant, a história é um
processo propriamente humano. Na história cosmopolita (Geschichte Weltbürgerlicher), ao
interpretar o desdobramento dos eventos do passado ate o presente, procura-se por eventos
que, reunidos, possam conduzir a maior finalidade do Homem na Terra, que é a execução da
Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum). Esta, por sua vez, será sofisticada na Paz
Perpétua para uma aliança da paz (Foedus Pacificum). A principal meta é manter e trabalhar
pela finalidade de acabar com todas as guerras, tanto quanto isso for possível para a espécie
da insocial sociabilidade.

O pressuposto de Kant para nortear a leitura da sua história do mundo


(Weltgeschichte) é a insocial sociabilidade pela qual se deriva tanto a história sapientiae
quanto a historia stultitiae. As forças antagônicas do gênero humano se expressam na história
real causando o que denominamos de problema da paz mundial, particularmente narrado pelo
conteúdo da factual que compõe historia stultitiae. No entanto, o procedimento da história do
mundo (Weltgeschichte) de Kant permite reconstituir uma história cosmopolita (Geschichte
Weltbürgerlicher). Trata-se de uma tentativa filosófica de empreender sentido de uma história
racional no seio da real, por vezes alucinante.
Através da história do mundo (Weltgeschichte), não se exclui as dificuldades inerentes
do problema que o antagonismo instaura. Porém, é possível encontrar nela a realização do
ideal de evolução política (Politischen Fortschritt) desde a civilização grega até nossos dias.
O aperfeiçoamento da cultura e, da constituição política (Staatsverfassung) dos Estados pode
ser destacado, mesmo que a densidade das guerras e as dificuldades para instaurar a paz seja

66
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. p. 65. São Paulo: Malheiros. Junho de 2013.
45

uma realidade. Assim, a Ideia é procedimento que se remete a investigar o passado. E quanto
ao devir histórico? Essa mesma evolução deve ser garantida na posteridade. Não mais apenas
enquanto encargo da Providência para com a humanidade. Absolutamente, o aperfeiçoamento
da constituição política (Staatsverfassung) dos Estados deve ser responsabilidade do Homem.
A constituição da Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum) deve acontecer a partir
de um projeto de futuro, coerente com a natureza racional do Homem. O que deve o Homem
fazer para acelerar o seu progresso político no devir? É exatamente no trato dessa questão que
A Paz Perpétua será importante.
A política, em Kant, terá um lugar ao mesmo tempo central e derivativo. Os conceitos
e as propostas práticas que constituem À Paz Perpétua dão a entender que a política é um
instrumento de intermediação de dois universos: por um lado, o sistema kantiano, tal como
desenvolvido nas três Críticas. De outro, o de sua filosofia prática, que inclui a obra pela qual
vamos analisar agora e, também, a Doutrina do Direito, que também nos valeremos de
algumas passagens.
Na Paz Perpétua, que gosto de chamar de Projeto, na medida em que se propõe lançar
as bases para as condições positivas da paz internacional, é obra onde a noção de razão
prática é amplamente aplicada. Seu conteúdo se refere a normas e procedimentos de lei
necessários para que o estado de segurança pública mundial seja alcançado. O Projeto pode
ser lido, também, como uma conjunção da Ideia de uma História, uma vez que está em jogo a
estabilidade das relações entre Estados no palco internacional, tendo como suposto a insocial
sociabilidade. Assim, a continuação do nosso trabalho nesse segundo capítulo está
pressuposta na Ideia de uma História em dois aspectos: (i) a história humana pode ser narrada
como ela deveria ser, desde que reunamos os elementos que conduzam ao desenvolvimento
das capacidades racionais da espécie humana; (ii) os fenômenos de guerra e paz são uma
constante na história porque são condições expressadas da insocial sociabilidade.

A respeito do antagonismo antropológico, o máximo que a Ideia oferece é que ele é


fonte tanto do mal histórico, quanto da cultura, do direito, das artes e das ciências. Um
artifício que a natureza se utiliza para que a humanidade efetive suas disposições racionais
potenciais. Já no Projeto, a insocial sociabilidade é elemento invariavelmente basilar. No
entanto, acrescenta-se o ideal de política internacional, ao qual deve ser conscientemente
perseguido. A evolução política (Politischen Fortschritt) não deve ser um concurso apenas
guinado pela estrutura patológico-antropológica do Homem. Deve ser, muito mais, sua
intenção racional. E deve ser resguardada no Direito. Veremos que o ideal para a realização
46

da paz internacional é a criação da liga da paz (Foedus acificum), que se difere em


sofisticação da sua antecessora, (Foedus Amphictyonum), porque é constituída em bases
jurídicas que respeitam a autonomia dos Estados. Para alcançar essa liga, é importante a
consecução de regras políticas e, da presença constante do Direito, ao que Kant denomina
evolução política das constituições dos Estados (Politischen Fortschritt Staatsverfassung). A
segurança interna das nações deve pressagiar as reflexões sobre segurança internacional. Por
isso, o tema da instauração da constituição civil republicana será abordado. E o princípio do
federalismo e a ordenação do Direito Internacional, a partir da constituição civil, será
desenvolvido.

À Paz Perpétua é obra que se afirma como Projeto porque apresenta uma
argumentação que pretender ser suficiente para amparar, basilarmente, a necessidade de
instaurar a paz enquanto direito dos povos, o que apenas pode ser feito em uma
normatividade. A palavra povos, e por vezes povo, que serão usadas nesse capítulo, se
caracteriza pelo vínculo de indivíduos ligados ao Estado através da nacionalidade ou da
cidadania67. Será por meio da normatividade que Kant apresentará uma sua colaboração para
pensar do problema da paz mundial.

2.1 Os Artigos Preliminares para a Paz entre os Estados

O título À Paz Perpétua diz mais sobre o humor de Kant ao trabalhar o problema
da paz mundial do que outra interpretação. Em verdade, o próprio filósofo escreve que,
considerando o gênero humano, aquilo que está configurado antagonicamente em suas
inclinações, a paz total é somente possível ao Homem nos cemitérios do mundo. Sendo assim,
Kant a paz absoluta é impossível. E pelo que estudamos no capítulo anterior, a insocial
sociabilidade é necessária para o progresso. Mas isso cria uma questão. Entre a liberdade de
agir e, o progresso que ocorre na história, um e outro devem ser intermediados. Como? Kant
ensina que entre a história do que foi e do que será, entre a liberdade do que podemos e
devemos fazer, o Direito deve equilibrar as ações das relações humanas. Esse equilíbrio visa a
paz, que o filósofo quer viabilizar normativamente e abrangentemente, como uma doutrina do
direito internacional aos Estados. Não se pode esperar que alguma regulação pacífica aconteça

67
Ibid. p. 72.
47

de forma espontânea ou natural. “De uma madeira tão retorcida, da qual o homem é feito, não
se pode fazer nada reto68”.

No Projeto Kant trabalha a realização da paz em dois sentidos distintos. Um


primeiro, onde ele supõe que os conflitos já estejam acontecendo e, o estado de paz deve ser
reestabelecido. Para isso acontecer apresenta os Artigos Preliminares para a Paz entre os
Estados. Os Artigos preliminares pressagiarão o estudo da paz no segundo sentido, concebido
como um projeto de futuro possível. Este acorrerá ao estudarmos os três Artigos Definitivos.

O estado de paz é uma conquista que deve ser fundamentada em uma


normatividade jurídica. Kant escreve que existem três tipos de leis que, em geral contêm, um
fundamento de necessidade objetiva prática. Lei de mandamento (leges praceptivae), lei de
proibição (leges prohibitivae) e, lei permissiva (leges permissivae), que contém um
fundamento de contingência prática de certas ações. Todos os seis Artigos Preliminares são
leis proibitivas (leges prohibitivae). E enquanto leis proibitivas, alguns são leis do tipo Leges
Strictae, isso quer dizer que o conteúdo da lei deve ser aplicado imediatamente. Outros são
leis do tipo Leges Latae69, ou seja, a depender das circunstâncias, pode-se adiar sua
consecução. A justificativa para adiar a aplicação dessa lei é que, tal lei pode inflamar a
situação que, em verdade, se quer acalmar.

Importa dizer ainda que, em Kant, refletir sobre as dificuldades inerentes ao problema
da paz mundial denota supor o caráter do mal na história Segundo o filósofo, o mal se faz
presente, ou se revela, na relação livre (sem leis) entre povos, ao passo que se dissimula muito
no estado civil e legal pela coerção do governo70. Nessa monografia não existe espaço e
tempo suficiente para tratar O Problema do Mal na Conjuntura Política Internacional. No
entanto, uma pré-projeto de mestrado foi encaminhado para especificar esse tema da política
em Kant71.

A Lei é conquista importante na cultura e, Kant atribui-lhe peso especial porque ela
tem poder de frear o mal nas relações entre Estados. No Primeiro Artigo Kant escreve que

68
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. p. 11.
69
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 20 e 21. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
70
Ibid. p. 32.
71
Trata-se de um pré-projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia como
requisito para aprovação na seleção de mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em
2013/02.
48

“nenhum tratado de paz deve ser tomado como tal se tiver sido feito com reserva secreta de
matéria para uma guerra futura72”. Trata-se de um conselho basilar e necessário para todo
corpo diplomático de Estado. Trata-se de lei do tipo Leges Stricta, ou seja, vale sem
consideração pelas circunstâncias, urge que seja realizada imediatamente73. Sérgio Vieira de
Mello escreve que se os homens políticos meditassem sobre esse conselho, inúmeras
ilustrações bélicas podiam ter sido evitadas na história. Apenas a simples precaução de “não
fundamentar tratados internacionais na desconfiança e no desprezo do amor-próprio das
nações74” poderia, ao menos, ter subtraído o nível do horror. Eis que se pode derivar o
seguinte.Sendo a paz um estado de lei ao qual deve ser instituída, uma condição que pode
dificultar ou mesmo interromper esta meta é a ausência da confiança. Conforme escreve
MELLO:

o que Kant expressa nesse Projeto é [...] que todo e qualquer tratado ou acordo que
não leve em consideração o estabelecimento ou reestabelecimento da confiança
entre os povos e Estados e que, na sua forma política, militar e geográfica ou sócio-
cultural, institui ou mantém certo grau de humilhação ou negação de direito, será,
sem dúvida alguma, fonte de novos desentendimentos e conflitos. [MELLO, 2004,
p. 47]

Diante do afirmado, não pode ser surpreendente alguns eventos de meados do século
XX. A Primeira Guerra Mundial foi sucedida pela Segunda, com mais furor e irracionalidade.
Conforme escreve HOBSBAWM, o conflito apenas foi interrompido em 1918, ele retornaria
com mais força em 193875. A paz é um estado de lei ao qual deve ser instituído. E a confiança
– em suas formas geográfica, militar, sócio-cultural e, sobretudo, política – é elemento
importante para alicerçar a instituição da paz. Mas a análise das condições que possam
dificultar esta meta deve ser mais estendida. A paz deve ser tanto instituída quando
fundamentada. Dito de outra forma: o conhecimento a cerca do mal, em alguma medida, deve
ser abordado através do problema.

72
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 14. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
73
Ibid. p. 20 e 21.
74
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 47. São Paulo: Saraiva, 2004.
75
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos - O Breve Século XX 1914 – 1918. p. 38. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
49

Um dos principais motivadores ao problema da paz mundial é a intervenção de um


Estado em outro. Tal ação se constitui como sério impedimento para a estabilidade das
relações no cenário internacional. Na história do século XX, por exemplo, a questão das
apropriações indevidas de Estado no caso do Tibet, invadido pela China. Também, a incursão
no Vietnã, pelos EUA. Para ambos os casos, a partir de uma interpretação kantiana, houve
afronta para com o direito de autonomia Sabemos que este conceito o filósofo aplica aos
Homens. Contudo, Kant também aplica ao Estado, que “é uma sociedade de homens de que
ninguém [...] pode dispor” porque é feito pela presença de pessoas76. No caso do Vietnã,
existe uma característica a mais, porque a guerra aconteceu após uma traição77 do Vietnã do
Sul, que teve apoio dos EUA, com a também indiferença da política externa desse último país
para com os resultados da Conferência de Genebra de 1954. A traição, escreve Kant, é um
forte incentivo para a instabilidade, porque mina aquela necessária confiança de que falamos.
Por isso, Kant escreve que nenhum “Estado em guerra [...] deve permitir hostilidades (ao qual
se insere a) traição (perduleio) que tornem impossível (ou difícil) a confiança na paz futura78”.
A regra geral para evitar contendas por causa de intervenções está descrita no Segundo
Artigo: “Nenhum Estado independente (pequeno ou grande, isso aqui tanto faz) pode ser
adquirido por outro Estado por herança, troca, comprar ou doação79”, ao que nós
acrescentaríamos, também não deve ser adquirido por conquista. Talvez, “entre as tantas
causas para as guerras, a de conquista seja a principal, quase sempre camuflada por outros
motivos que ocultam os reais interesses, apresentando-se outros que servem de justificação
frente à opinião pública80”. A lei do Segundo Artigo trata-se do tipo Leges Latae, ou seja, a
depender das circunstâncias, pode adiar sua consecução, podendo ser postergada caso sua
imediata colocação contrarie sua finalidade.
A análise das dificuldades inerentes em executar o estado da paz também passa por
compreender a questão dos exércitos permanentes no mundo. Este é um atemporal que o
filósofo realiza. Em nossos dias toca no delicado problema do desarmamento. Dados mostram
que os gastos dos governos em tecnologias militares ultrapassam as cifras dos trilhões de

76
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 15. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
77
A Conferência de Genebra (26 de abril a 21 de julho de 1954) foi realizada com a participação do Camboja,
República Democrática do Vietnã, França, Laos, China, República do Vietnã, URSS e EUA, com o objetivo de
restaurar a paz na antiga Indochina e na Coreia. Fonte: Wikipedia. Tag: Conferência de Genebra. Acessado em
19 de maio de 2013 às 15h 47min.
78
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 19. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
79
Ibid. p. 15.
80
MORETTI, Fernando. As Maiores Guerras do Mundo, p. 4. São Paulo: Discovery Publicações, 2013.
50

dólares. O Relatório das Despesas com Armas no Mundo81 em 2012 justifica a afirmação de
Kant: os Estados constantemente ameaçam uns os outros “mediante a prontidão para tanto em
que sempre parecem estar82”. Tal rivalidade sobre a quantidade de armamentos e Homens
incita a emulação entre Estados e geram despesas que faz da paz algo mais onerosa do que
uma guerra curta. Poder-se-ia pensar quantas guerras curtas podem ter sido empreendidas para
facilitar a administração do arsenal. Ou, quantas armas e tecnologias já superadas podem ter
sido vendidas para grupos rivais em zonas de conflito no planeta. O problema sobre o que
fazer com as armas é grave e contemporâneo. Para contrapor a essa tendência, Kant escreve
no terceiro artigo que os “exércitos permanentes (miles perpetuus) devem desaparecer
completamente com o tempo83”. Que também é Leges Latae, o que incentiva supor que Kant
crê que seja adequada apenas uma determinada quantidade de exércitos, especificamente para
defender o todo de algum movimento anárquico.

O conceito de paz que estudamos por ocasião dos Artigos Preliminares deve ser
instituído. E suoõe uma condição de paz negativa. Porque não sendo possível impedir em
absoluto as guerras, o que é provável para o animal da insocial sociabilidade, então que seja,
pelo menos, apresentada as obrigações possíveis entre os beligerantes a fim de que a
possibilidade da paz futura seja preservada. Os seis Artigos são leis proibitivas. No quarto
artigo Kant intenta contra a apropriação de dívida externa para manutenção da indústria
bélica. A ocupação do Afeganistão84 pela então URSS foi empreendida as custas de desvio da
economia, o que prejudicou o desenvolvimento em outras áreas importantes da vida civil.
Depois de anos de ocupação, a saída comunista do Afeganistão foi vista como um presságio
do deblaquê soviético, em 1991. Quanto aos EUA no Vietnã, Hobsbawm escreve que a
medida que a Guerra Fria se estendia o peso econômico da economia mundial passava dos
EUA para as economias europeias e japonesas. Porque os dólares fluíam para fora dos EUA.
Essa saída de dólares americanos ocorreu, sobretudo, na década de 1960 por causa da
“tendência85 americana a financiar o déficit gerado pelos enormes custos de suas atividades
militares globais, notadamente a Guerra do Vietnã, depois de 1965”.

81
Relatório das Despesas com Armas no Mundo em 2012. Stockholm International Peace Research institute.
Disponível em <http://www.sipri.org/>, acessado em 19 de maio de 2013, as 18h51.
82
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 16. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
83
Ibid. p. 16.
84
PREZISI, Walter. 28 Anos de Invasão Soviética no Afeganistão. Centro de Estudos Evolianos de Buenos Aires,
2007, disponível em http://www.nuevorden.net/portugues/b_7.htm.
85
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos – O breve século XX 1914-1991, p. 238. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
51

Sérgio Vieira de Mello, a respeito da apropriação de dívida externa para manutenção


da indústria bélica, apresenta proposta interessante. Que haja uma reconversão das despesas e
industrias de caráter militar para a área civil, num grande esforço de desenvolvimento das
áreas sociais e econômicas86. O que é coerente com a máxima do quarto artigo: “não deve ser
feita nenhuma dívida pública em relação a interesses externos do Estado87”. Ademais, Kant
diz ser esta lei do tipo Leges Latae.

O quinto artigo preliminar invoca um aspecto do problema da paz mundial muito


atual. As intervenções não se dão apenas de forma bélica, como as ocupações feitas no Vietnã
e Afeganistão. Por causa do avanço das tecnologias digitais, as espionagens virtuais são
realizadas por meio da rede mundial de computadores. Recentemente foram divulgadas
informações de que os governos dos EUA tem realizado espionagens nas comunicações
oficiais de vários Estados. Trata-se, fundamentalmente, de uma nova forma de afrontar o
direito de soberania das nações e das pessoas que compõe sua população civil. Dentro do
repertório filosófico kantiano, ofensa às soberanias dos países colabora para a subtração da
confiança entre Estados. Como regra a evitar esse mal estar, Kant escreve no quinto artigo que
nenhum “Estado deve imiscuir-se com emprego de força na constituição e no governo de um
outro Estado88”. E o conceito de força pode ser estendido para o aparato tecnológico de
espionagem. Essa é uma lei do tipo Leges Strictae que, tal como no primeiro artigo, deve ser
válida imediatamente, a despeito das circunstâncias. Mello escreve que o direito de
intervenção em outros países é uma norma cardeal do Direito Internacional que, infelizmente,
é mais afirmada do que respeitada. O ex-funcionário das Nações Unidas lembra que, a única
exceção que Kant abre para justificar intervenção em outro país é quando um Estado cai na
anarquia e ameaça a estabilidade do conjunto89. Anarquia ali quer dizer ausência de princípios
e leis internas, motivo pelo qual os demais Estados vizinhos podem vir a sofrer
desestabilizações.

Todos os seis Artigos Preliminares são leis proibitivas (leges prohibitivae), e não leis
de mandamento (leges praeceptivae) ou permissivas (leges permissivae). E dentro das leis
proibitivas, uma lei do tipo Leges Strictae é aquele que deve ser aplicada imediatamente. Já a
Leges Latae, ou seja, a depender das circunstâncias, pode adiar sua consecução. O último

86
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos - O Breve Século XX 1914 – 1918. p. 48. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
87
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 17. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
88
Ibid. p. 18.
89
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 48. São Paulo: Saraiva, 2004.
52

Artigo Preliminar trata-se de uma lei do tipo Leges Strictae. E não poderia ser diferente. Em
acontecendo a guerra, deve-se supor que a dimensão de conflitos deverá, no futuro, ser
encerrada. Mas para que tal futuro seja possível, deve-se manter entre beligerantes o mínimo
necessário para o reestabelecimento da paz. Assim, um laivo de confiança entre os inimigos
deve ser preservado. Para que esta confiança não seja absolutamente minada, Kant apresenta o
sexto artigo que pretende ser uma lei que preserve o mínimo necessário para que o declaração
futura da paz seja admissível.

Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir hostilidades tais que tornem
impossível a confiança recíproca na paz futura; deste tipo são: emprego de
assassinos (percussores), envenenadores (veneci), quebra de capitulação e instigação
à traição (perduleio) no Estado com que se guerreia etc. (KANT. 2008, p. 19).

Não deve haver, nas guerras, espaço para métodos extremos. A guerra é uma relação
do tipo negativa entre Estados. Em ela não sendo possível de ser evitada, deve-se, pelo menos,
respeitar certas “normas para impedir a total desumanização das partes em conflito90”. Mello
vai mais longe ao referenciar Kant. Diz que é mérito do filósofo ter lançado as bases tanto do
direito humanitário, quanto da noção de anti-relação. Por definição, é a constituição da guerra,
ao qual não pode “solapar irresistivelmente a confiança mútua entre as nações, sem a qual
uma organização internacional positiva é impensável. Com outras palavras, a guerra não deve
eivar de infâmia o estado de paz91”.

Os Artigos Preliminares são leis proibitivas (leges prohibitivae). Enquanto condições


negativas que devem ser realizadas quando do acontecimento de guerra, o conceito de paz é
limitado. Tal conceito deve ser alargado. Trata-se, praticamente, de efetivar o estado de
segurança que, segundo Kant, deve ser instituída. De acordo com sua filosofia, num primeiro
momento essa segurança é assegurada pela natureza quando a razão cria seu espaço na
manutenção da insocial sociabilidade através da lei. Desse ponto de vista, o problema da paz
mundial tem uma causa antropológica. No entanto, para Kant, a história é um evento
propriamente humano. O Projeto, no tocante aos Artigos Preliminares, são fórmulas

90
Ibid. p. 49.
91 Ibid. p. 49.
53

reguladoras dos atos do Homem, atos estes em sua esmagadora maioria pré-formatados pelo
antagonismo originário. As tendências egoístas devem ser administradas mediante a lei. A
história bem pode ser pensada como o processo pelo qual os acontecimentos máximos
aconteceram conforme o nível de influência do avanço jurídico-político. Na composição da
letra da lei, esta sempre deve visar à segurança pública em seu nível regional e mundial. A
razão é importante nesse processo. Ela intervém, num primeiro momento, para que a argúcia
que anuncia a necessidade da lei aconteça. A razão se manifesta, outra vez e em seguida,
quando se compõe a letra da lei. A razão cria na lei o seu espaço, para que as coisas não
percam tanto a essência pela qual adveio sua necessidade, quanto seu fim ao qual a coisa
pública se projeta. Toda letra da lei, ensina Kant, deve mirar um estado de coisas ideal que
seja racional, tal como racional veio sua origem. A prescrição jurídica significa, do ponto de
vista de sua originalidade, uma herança que a razão lhe outorga, do auto do seu trono
legislativo – entendamos, razão pura. A razão tem como uma de suas capacidades ser fonte
legisladora da moral devido a sua razão prática inerente. Mediante isso, promover condições
de possibilidade para que a paz seja instituída não é apenas uma obrigação, mas um fim
evidente na natureza racional do Homem92.

Na história real, a possibilidade de instauração jurídica da paz deve ser feita pelos
Estados. A longa trajetória que a priori sabemos ser importante (e também desafiadora) de se
percorrer, irá compor a segurança pública. Será consequência dos esforços que as nações
farão em torno de diálogos multilaterais sobre princípios do direito e da política que possam
ser universalizados. Do ponto de vista formal, o indiscutível é que a paz mundial deva ser
instituída. A próxima etapa no Projeto de Kant é apresentar os três Artigos Definitivos para a
paz entre Estados. Existe um pressuposto no trato destes Artigos. Novamente, a frequência do
mal nas relações internacionais. Não poderia ser diferente. Uma vez que no ser humano o mal
é elemento do antagonismo antropológico, não se pode tomar ideia de projeto da paz futura
sem pressupô-lo. Estruturalmente falando: é por causa do mal que os Artigos Preliminares
foram propostos, porque a paz tem um caráter negativo e, o realismo histórico evidencia o
que, filosoficamente, a insocial sociabilidade aponta. Entretanto, se o mal não pode ser
extirpado da condição humana, ele deve, contudo,ser freado, no mínimo contido em parte sua
força. E através das leis. Em Kant, a maldade da natureza humana se faz presente, ou se
revela, na relação livre (sem leis) entre povos, ao passo que se dissimula muito no estado civil

92
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 51-52. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
54

e legal pela coerção do governo93. Por isso a Lei é conquista importante na cultura e, deve ser
desenvolvida na direção da instituição da paz, que praticamente se efetiva no estado de
segurança jurídica.
A estratégia para evitar o predomínio do mal no futuro, bem como as medidas que
paulatinamente devem ser instauradas, para que ao cabo elevem o nível da segurança pública
mundial, será exposto nos três Artigos Definitivos. A segurança será mérito e
responsabilidade de todos os atores internacionais, cada qual imbuído de sua responsabilidade
inerente. No Primeiro Artigo será destacada a necessidade da Constituição de Estado ser
republicana. No Segundo Artigo, estudaremos a fundo o federalismo. E no Terceiro Artigo
vamos analisar o direito cosmopolita.

2.2 A Constituição Civil Republicana

Entendo94 que se deve pressagiar com a noção de Direito Civil este tópico. Não é o
objetivo aqui debater as disputas entre Direito Natural e Positivo; mas quero deixar escrito
que estou ciente dos debates. Importa saber, muito sumariamente, que o primeiro se refere ao
conjunto dos princípios do justo e do injusto que se inspiram na natureza e, portanto, são
universais e inalienáveis. Kant poderia chamá-los de a priori. E, conforme defendem alguns
juristas e filósofos, o direito natural se materializa através do Direito Positivo. Que, por sua
vez, pode ser considerado aquele conjunto de normas jurídicas criadas por meio de decisões
voluntárias dos agentes envolvidos na construção da lei. O agente que, hoje, toma tais
decisões é o Estado. Tais normas jurídicas estão sujeitas a mudanças. No Estado brasileiro,
por exemplo, diariamente criam-se novas leis, modificando seu Direito Positivo. Este, pois,
torna-se mutável.
A partir da positivação das leis, o Direito se ramifica conforme assim classificou os
romanos, em Privado (jus privatum) e Público (jus publicum). A este último diz ser a esfera
de ação e encontro do Homem livre que se governa, ao qual o cidadão decide, junto dos
demais cidadãos, conforme uma coletividade, os assuntos de interesse geral. Distingue-se do
Direito Privado, que é o lugar do indivíduo, o que inclui o espaço de sua casa, bens,
atividades de labor; a noção de indivíduo é atrelada como aquele ser que realiza atos livres,
segundo sua vontade e interesse. A noção de Direito Civil surge, de maneira geral, como

93
Ibid. p. 32.
94
COSTA, Elder Lisbôa Ferreira da. História do Direito, p. 18. Belém: Unama, 2008.
55

sinônimo a Direito Privado.


O Direito Civil95 regula as relações privadas dos cidadãos entre si, através de um
conjunto de normas (regras e princípios). Este ramo reconhece cada pessoa como sendo
sujeito de direito, independentemente das suas atividades peculiares. Por isso as pessoas
encontram-se em situação de equilíbrio de condições. O seu objetivo consiste em proteger e
defender os interesses da pessoa na ordem moral e patrimonial. Sendo o direito do dia a dia
das pessoas, em suas relações privadas cotidianas, tem como finalidade estabelecer padrões
normativos que regem as relações jurídicas das pessoas físicas e jurídicas.
Kant também irá justificar porque o Direito Civil é importante para a instituição da
paz. Justificará na Segunda Seção do Projeto, onde estão os três Artigos Definitivos que, são
como que condição de possibilidade para a paz a ser instituída de forma abrangente. E no que
tange a fundamentação desses três Artigos, Kant diz que o Direito Civil é o único onde se
pode fundar duradouramente um projeto de paz. Escreve que “o postulado que serve de
fundamento a todos os artigos é: todos os homens que podem influenciar-se reciprocamente
têm de pertencer a alguma constituição civil96”. É por causa dessa afirmação que escolhemos
realizar uma contextualização e definição do Direito Civil. Este regula as relações privadas
dos cidadãos entre si através de um conjunto de normas e, reconhece a cada pessoa ser sujeito
de direito, a despeito das suas atividades peculiares (isso que, em si, gera igualdade jurídica).
O objetivo do Direito Civil consiste em proteger e defender os interesses da pessoa através de
padrões normativos. Sendo o Direito Civil a base para a promulgação de uma Constituição
Civil, importa compreender o que é esta é:

um sistema de normas e princípios institucionais integrados na Constituição,


relativos à proteção da pessoa em si mesma e suas dimensões
fundamentais - familiar e patrimonial - na ordem de suas relações jurídico-
privadas gerais, e concernentes àquelas outras matérias residuais
consideradas civis, que tem por finalidade firmar as bases mais comuns e
abstratas da regulamentação de tais relações e matérias, nas que são
suscetíveis de aplicação imediata, ou que podem servir de ponto de

95
Conceito de Direito Civil, disponível em Conceito de direito civil - O que é, Definição e Significado
<http://conceito.de/direito-civil#ixzz2hoOsce90>, acesso em 15 de outubro de 2013. Direito Positivo X Direito
Natural – definições, fontes, relações e críticas. Disponível em <http://introducaoaodireito.info/wpid/?p=413>,
acessado em 15 de outubro de 2013.
96
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 23. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
56

referência da vigência, da validez e da interpretação da norma aplicável da


97
pauta para o seu desenvolvimento [FLORES – VALDEZ, 2011].

O que Kant quer, não esqueçamos, é superar a guerra caracterizada pelo estado de
natureza (status naturalis) fundado nas relações espontâneas, sem leis. Ele quer combater a
guerra tanto a nível regional quanto mundial. Mais. O filósofo amplia o horizonte teórico para
inibir a guerra também enquanto propensão para isso. Ainda que nem sempre haja uma
eclosão bélica dentro de um território ou entre países, a ausência de leis inaugura uma
permanente ameaça disso98. O Homem (ou povo) no puro estado de natureza tira de outros
povos a segurança e, portanto, põem em perigo seus vizinhos apenas por fazer fronteira. A
simples ausência de leis é suficiente para instaurar a insegurança porque não há o que
discipline as relações. Portanto, Kant entende que condição necessária para que haja a
segurança internacional é que, preliminarmente, haja estabelecida a segurança interna nos
Estados.

Por ‘segurança’ deve-se entender a “instituição de uma sociedade civil juridicamente


organizada [para] acabar com a insegurança fundamental99” que a ausência das leis permite.
Ao mesmo tempo, os países individualmente considerados também devem esperar que suas
seguranças advenham dos outros. Nesse sentido, o que deve perpassar o Direito para compor
os elementos dessa segurança, ao qual tem como meta instituir a paz, é lançar uma
constituição civil distribuída em três níveis, que começa na sua dimensão regional ate a sua
universalização. Portanto, conforme Kant, o Direito deve ser composto em três condições:

1. O direito civil (ius civitatis) dos Homens que forma o povo de um Estado.
2. O direito das gentes (ius gentium), que rege as relações dos Estados entre si.
3. O direito cosmopolítico (ius cosmopoliticum) que diz respeito aos Homens e Estados,
em suas relações exteriores e sua interdependência, como cidadãos de um Estado
universal da humanidade.

Essa relação entre as partes (Estado) e o todo (a comunidade internacional) como


vínculo necessário para a instituição da paz é o que chama a atenção em Kant. Assim, porque

97
Direito Civil Constitucional, FLORES-VALDEZ, disponível em http://jus.com.br/artigos/19899/o-direito-civil-
constitucional#ixzz2i05WFMLp.
98
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 23. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
99
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 49 e 50. São Paulo: Saraiva, 2004.
57

Kant mira a paz, escreve no Primeiro Artigo Definitivo: “A Constituição civil em cada Estado
deve ser republicana100”. Nós já compreendemos os significados de Direito Civil e
Constituição. Importa agora entender o que é república. De maneira geral, a república (do
latim res publica) é uma forma de governo101 na qual o chefe de Estado é eleito pelo povo ou
seus representantes, tendo sua chefia uma duração limitada. Por que uma constituição civil e
republicana é a única que conduz a institucionalização da paz em um Estado?
Kant quer evitar a guerra. Essencialmente, isso significa que o filósofo quer impedir
que pessoas morram ou possa morrer por meio das beligerâncias perpetradas entre Estados.
Por guerra, Kant entende o estado de natureza (status naturalis), isto é, ainda que nem sempre
haja uma eclosão de hostilidades é, contudo, uma permanente ameaça disso102. O desfecho da
violência é o triste e irracional meio que os Estados escolhem agir como se fosse, tal meio,
força de direito. Mas na guerra, o direito conquistado se dá via vitória da força, na derrota do
inimigo. O Direito adquirido é direito não julgado, portanto, não se pode dizer,
necessariamente, que a razão outorga legitimidade na história quanto à vitória narrada pela
fresta dos vencedores. Quanto menos republicana for uma constituição (e não raro, uma
constituição não republicana também não é civil), mais propenso e livre para executar a
guerra o Estado se torna. Kant exemplifica que nas formas de governo como a monarquia ou o
despotismo, onde o súdito não é cidadão, estão às condições políticas e jurídicas as mais
propícias para realizar a guerra à revelia das pessoas. Vamos ler com atenção essas palavras
de Kant:

em uma constituição em que o súdito não é cidadão, que, portanto, não é republicana
[...] a questão se deve ou não ocorrer guerra [...] é a coisa sobre a qual (o
governante) menos se hesita no mundo, porque o chefe, não sendo membro do
Estado, mas proprietário do Estado, não tem o mínimo prejuízo por causa da guerra
à sua mesa, à sua caçada, a seus castelos de campo, festas da corte etc., e pode,
portanto, decidir sobre a guerra por causas insignificantes como uma espécie de jogo
de recreação e, por conta de boas maneiras, deixar a justificação do conflito
indiferentemente ao corpo diplomático, que está todo tempo pronto para isso.
(KANT, 2008 p. 26 e 27).

100
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 24. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
101
São formas de governo a república, a monarquia e o despotismo, conforme enumeração que consta no
Espírito das Leis de Montesquieu.
102
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 23. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
58

A história mostra que cada Estado coloca sua majestade precisamente na condição de
não se submeter a nenhuma coerção legal exterior. E o esplendor desse chefe consiste em que
a ele, sem que possa incorrer ele mesmo em perigo, seja forte o bastante para fazer com que
milhares – sujeitos as suas ordens – estejam dispostos a sacrificarem-se por ele, muitas vezes
por motivos que não lhes diz respeito103. Nas culturas, os valores que se dão a honra e a
lealdade se tornam formas de conduta apreciáveis, sobretudo porque privatiza os destinos das
pessoas conforme as vontades do soberano. Mas um Estado cuja forma de poder permite
tratar as pessoas como coisas, instrumentos para guerras, é o que Kant quer evitar. Por que
uma constituição civil e republicana é a única que conduz a institucionalização da paz em um
Estado?

Em primeiro lugar, entendamos que além das claras vantagens que o Direito Civil
proporciona para a preservação e defesa da pessoa, essa “preservação” se principia antes de
tudo através do cuidado para com sua vida. A vida é o primeiro bem de uma pessoa e,
absolutamente, requer preservá-la da morte violenta, não-natural. Portanto, causada por
outrem, no mais das vezes, nas guerras. Ademais, a constituição civil deve, também, ser
republicana, porque ela acrescenta forte teor de soberania ao povo. Conforme escreve Sérgio
Vieira de Mello:

o que Kant entende como republicanismo é antes de tudo um regime representativo


do povo, que permite a este proteger a própria autonomia e, portanto, é baseado
numa nítida separação dos poderes legislativo e executivo. É uma maneira de dizer
que o povo, e só ele, detém a soberania. (MELLO, 2004, p. 50).

Uma constituição republicana faz com que o povo e, em última instância, as pessoas,
não seja mero súdito de seu legislador. A constituição civil republicana realiza, portanto,
como que uma reverência ao conceito de pessoa e vê, neste, um cidadão. Em Kant, o cidadão
é o integrante de uma sociedade cuja constituição civil é republicana104. E pela natureza dessa
constituição, o cidadão é parte decisiva nas escolhas do devir histórico de sua sociedade.
Claro – Kant estava ciente disso – o fato de reconhecer ao povo seu direito de decisão a cerca
do futuro não implica que este povo não se decida pela beligerância. Não se pode supor um
imediato esclarecimento (Aufklärung) nessa situação ao senso comum. O que Kant quer é que
seja garantido o mínimo essencial indiscutível do direito de escolha aos povos. As pessoas

103
Ibid. p. 32.
104
Ibid. p. 26 e 27.
59

tem o direito de escolher quanto aos rumos de suas vidas no devir histórico, uma vez que são
as elas as mais atingidas pelas consequências das guerras. “Talvez os povos, estas eternas
vítimas da guerra, nem sempre adotem uma conduta modelar apoiada na razão. No entanto,
Kant quer que lhes seja facultada uma escolha responsável105”. Mas o estímulo para o
manifesto da consciência é a responsabilidade que cada um tem no processo decisório. Ainda
que possa ser preciso algum tempo (com muitos desastres) para que o esclarecimento ocorra,
a o poder de participação essencial sobre os destinos da nação deve ser preservado.

Kant, depois de afirmar que Constituição Republicana tem como perspectiva a paz
perpétua106, explica também que a razão para isso (a paz como objetivo final) é que tal
Constituição é a melhor para os cidadãos. Quando o consentimento dos cidadãos é requerido
para decidir “se deve ou não ocorrer a guerra”, nada é mais natural do que, “já que têm de
decidir para si próprios sobre todas as aflições da guerra [...] eles refletirão muito para iniciar
um jogo tão grave107”. Ou seja, ser um cidadão, em Kant, significa participar do poder e,
exercer o direito em decidir e escolher a história futura da república. Tem o poder de exercer
seu consentimento (ou não) sobre um evento de guerra. Isso é expressar sua responsabilidade
inerente. E a relação entre ser cidadão com o conceito de autonomia é prática, segundo a
dimensão filosófica inaugurada por Kant.

A razão, escreve em seu Projeto, de cima de seu trono do poder legislativo


moralmente supremo (ou seja, a razão a priori através do imperativo categórico) condena
absolutamente a guerra como procedimento de direito e, torna, ao contrário, o estado de paz
mundial um dever imediato108. Que deve ser instituído. Para o alcance da paz mundial,
portanto, o primeiro passo é a realização de uma normatividade que começa pela constituição
civil republicana de um Estado particular. Trata-se de lei do tipo leges Strictae, ou seja,
merece imediata aplicação. A justificativa dessa forma de organização política de um Estado,
será peça fundamental para pensar em segurança internacional, nos demais Artigos
Definitivos.

105
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 51. São Paulo: Saraiva, 2004.
106
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 26. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
107
Ibid. p. 26 e 27.
108
Ibid. p. 34.
60

2.3 O Direito Internacional

Fundamentalmente, o Primeiro Artigo para a Paz estipulou que somente se pode falar
em paz internacional quando a segurança, considerada em seu nível regional, estiver
instituída. Esta instituição ocorre através das normas de segurança mediante o concurso da
Lei, garantida pela Constituição Civil Republicana concernente às pessoas em um Estado. E
qual seria a segunda condição para a instituição da paz mundial?

É o que apresenta Kant no Segundo Artigo Definitivo para a Paz que também é
fundamentado na afirmação de que “todos os homens que podem influenciar-se
reciprocamente têm de pertencer a alguma constituição civil109”. Realizaremos a
demonstração dessa afirmação. Antes, saibamos que o Segundo Artigo diz que o “direito
internacional deve fundar-se em um federalismo de Estados livres110”. O sentido dessa
afirmação será explorada. Para tanto, importa, mais uma vez, preparar o terreno, que se trata
de esclarecer os termos importantes: ‘federalismo’ e, o sentido de ‘livres’ das liberdades dos
Estados, contidos na afirmação. E vincular o conteúdo semântico do Segundo Artigo a sua
fundamentação. Por federalismo compreende-se:

a uma união de Estados para a formação de um Estado único, onde as unidades


federadas preservam parte da sua autonomia política, enquanto a soberania é
transferida para o Estado Federal [...] em nenhuma hipótese a União pode perder a
sua soberania. O federalismo [...] possibilita a coexistência de diversas coletividades
públicas, havendo variadas esferas políticas dentro de um único Estado, com
atribuições fixadas pela própria Constituição. Assim, ressalta-se que a principal
característica do federalismo é a sua descentralização111.[PRESTES, 2013]

Quanto à expressão “Estados Livres”, vejamos. Consideremos, em primeiro lugar, que


Kant foi um liberal. Esse termo deriva de liberalismo. Conforme está escrito no Dicionário de
Filosofia de Cambridge, trata-se de uma filosofia política que primeiramente foi formulada

109
Ibidi. p. 23.
110
Ibid. p. 31.
111
PRESTES, Lisiê Ferreira. Federalismo e sua Aplicabilidade no Sistema Brasileiro Atual. Disponível em
http://www.dji.com.br/artigos/principal/federalismo_e_sua_aplicabilidade_no_sistema_brasileiro_atual.htm,
acessado em 22 de outubro de 2013.
61

durante o Iluminismo como uma reação ao desenvolvimento dos Estados modernos, que cada
vez mais centralizavam as funções governamentais. Tais funções eram as de compor as leis,
executar tais leis e, a reinvindicação exclusiva de exercício do poder coercitivo dentro de suas
fronteiras. A tese central do liberalismo é que a reivindicação dessa autoridade exclusiva por
um governo justifica-se apenas se este governo for capaz de mostrar àqueles que vivem
subordinados a ele que suas liberdades serão preservadas. Mais diretamente: o liberalismo é a
filosofia política que tem como fundamento a defesa da liberdade individual das pessoas nas
dimensões econômicas, políticas, religiosas, intelectual e, também, no direito de propriedade.
Sua essência é a defesa e valorização do indivíduo contra o poder estatal independente da
forma de organização política112. Então, quando se diz que Kant foi um liberal, queremos
dizer que ele foi um defensor das liberdades individuais, por ele fundamentada na autonomia
da pessoa humana. De modo que o Estado não deve intervir no espaço de abrangência dessa
liberdade individual113.

Para Kant, bem como em outros teóricos políticos, para salvaguardar o espaço de
liberdade da pessoa é necessário se valer do princípio da separação dos poderes. Vejamos
como isso se dá. Conforme escreve Bonavides, Kant enalteceu a separação do poder do
Estado, sobretudo em seu aspecto ético, “elevando os poderes à categoria de dignidades,
pessoas morais, em relação de coordenação (potestas coordinatae), sem sacrifício da vontade
geral114”. Esses poderes são os mesmos apresentados por Montesquieu (Do Espírito das Leis).
O poder legislativo soberano (potestas legislatória) faz as leis. Poder executivo (potestas
rectoria), que executa as resoluções públicas. Poder judiciário (potestas iudiciaria), que puni
crimes ou solve pendências entre particulares. Essa é a trias política de Kant que vê em cada
poder uma pessoa. Conforme o jurista, Kant vê “numa alta esfera de valoração ética que o [...]
legislativo é “irrepreensível”, o executivo é “irresistível” e o judiciário é “inapelável115””.

112
CAMBRIDGE, Dicionário de Filosofia. p. 566 e 567. São Pulo: Paulus, 2ª edição, 2011.

113
Kant foi um liberal e sofreu, por parte do Estado prussiano, intervenção por causa da publicação da Religião
nos Limites da Simples Razão, que teve declarações que não foram bem acolhidas pelo rei da Prússia, a
Frederico II. Este governante era contrário às medidas iluministas do seu antecessor (Frederico, o Grande), e
proibiu Kant de se pronunciar sobre religião, no que foi prontamente atendido, até sua morte, em 1797. Por
outro lado, se na Prússia Kant se viu freado em sua liberdade, durante a Revolução Francesa, Kant elogia essa
liberdade quando apoia o Levante Parisiense, mediante a evolução que esta proporciona para as efetivações
das suas promessas racionais, dentre as quais, a liberdade, que também insere a do indivíduo diante do Estado.
VILLACAÑAS, J.L. Kant y La Época de las Revoluciones: Madrid – España. Ed. Akal, 1997.
114
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, p. 150 e 151. 20ª edição, São Paulo: Malheiros. 2013.
115
Ibid. p. 151.
62

Portanto, a liberdade das pessoas também é assegurada do ponto de vista político em Kant,
quando este ‘herda’ Do Espírito das Leis uma forma de assegurar o controle do exercício do
poder governamental sobre aquelas. Se internamente o povo é livre, externamente o Estado
também o deve ser. Afinal, somente um Estado Livre pode conceber um povo livre. Mas de
que forma a liberdade externa do Estado será garantida?

Escrevemos antes que a fundamentação dos três Artigos Definitivos para a paz é:
“todos os homens que podem influenciar-se reciprocamente têm de pertencer a alguma
constituição civil116”. As leis civis garantem um mínimo de convivência com segurança
dentro de um Estado. Quer dizer: o estado de natureza foi substituído por um estado
normativo de direito. A sociedade foi elevada, pela sua própria história, a uma condição
jurídica onde as liberdades das pessoas são preservadas numa Constituição Civil e
Republicana. Ao mesmo tempo, autonomia do povo é reconhecida. Um país com essa
estrutura, na relação com outras nações, demonstra o exemplo de organização interna ao qual
a segurança provém do estabelecimento da lei em conjuntura com a forma política adequada.
Igualmente, tal Estado colabora para o esclarecimento das nações (aufgeklärt), quando
demonstra que a segurança interna é viabilizada através da preservação da autonomia dos
cidadãos. Um Estado organizado dessa maneira influencia para a mesma realização de
constituição política (Staatsverfassung) civil nos demais Estados. Nesse sentido, Mello
parafraseia Kant ao afirmar que os Estados, enquanto “expressões políticas dos povos, são
comparáveis aos indivíduos e, com algumas adaptações117”, o fundamental do direito civil,
que é a autonomia, pode ser estendido aos demais Estados.

Deveras, os Estados ao atuarem na independência de leis no cenário internacional se


igualam aos Homens no estado de natureza. Lesa seu vizinho apenas por fazer fronteira.
“Ainda que nem sempre haja uma eclosão de hostilidades é, contudo, uma permanente
ameaça disso (...). que é o mesmo que um estado de guerra118”. Para superar esse cenário,
devem-se substituir as relações espontâneas por uma normatividade que garanta a segurança
pública mundial. É nesse ponto que o fundamental do direito civil, presente num Estado
particular, necessita ser estendido às relações internacionais.

Em um Estado particular, o indivíduo, através da sua condição de pessoa, possui o


primado de que o Estado seja, para com ele, o protetor e cumpridor (garantidor) do tema de
116
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 23. Porto Alegre: L&M POCKET, Porto Alegre, 2008.
117
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 51. São Paulo: Saraiva, 2004.
118
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 23. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
63

defesa da liberdade civil. E isso é garantido na esfera da lei. Em troca, o indivíduo reconhece
ao Estado a condição de seu legislador soberano. Mas se o indivíduo possui o primado da
autonomia, numa escala ascendente, outros entes devem sucedê-lo, a fim de intermediar as
relações indivíduo-Estado. Essa intermediação é necessária para que: (i) tanto a defesa da
liberdade civil pelo Estado ao indivíduo ocorra; (ii) quanto a instauração da soberania daquele
sobre este se aconteça; (iii) esse mesmo canal de intermediação Estado-indivíduo também
permitirá o acesso do indivíduo ao Estado, tanto para cobrar o espaço de sua liberdade civil,
(iv) quanto reconhecer sua soberania do Estado. Nesse sentido, o primeiro ente que
intermedeia a relação indivíduo-Estado é a cidade, que também pode ser entendida como
pessoa, porque toda cidade possui seus direitos e deveres, tanto para com os indivíduos,
quanto para com o Estado. E, sobretudo, a ela também deve ser reconhecida sua autonomia e,
portanto, sua liberdade em poder escolher os rumos do seu devir histórico. Portanto, se cabe
ao soberano Estado preservar a liberdade das pessoas, também lhe cabe igual procedimento
para com as cidades. E seguindo essa lógica, o ente seguinte que sucede a cidade é a unidade
da federação, ou província, ao qual o Estado deve, finalmente, reconhecer sua autonomia. De
fato, seria uma contradição reconhecer autonomia a unidade da federação e não ao indivíduo,
ou a cidade. Portanto, a autonomia em uma federação deve ser abrangente. Relembremos da
conceituação de federalismo: condição política pela qual um Estado soberano reconhece às
unidades federativas a “autonomia política, que possibilita a coexistência de diversas
coletividades públicas, havendo variadas esferas políticas dentro de um único Estado ou
províncias119”. Essa conceituação contém, de forma subtendida, além da autonomia, o
conceito de descentralização do poder, que juntos são como colunas conceituais que
sustentam o entendimento de federalismo.

Tendo este conhecimento como premissa, consideremos o seguinte. No interior da


organização política de um Estado soberano há preservada a autonomia dos seus entes:
unidades federativas (ou províncias), cidades e, no primado que constitui o povo, é também
preservada a da pessoa. É coerente que esse status seja preservado no âmbito internacional. O
Estado soberano deve ter garantida sua autonomia quando se relaciona externamente.
Significa: sua autonomia abrangente interna deve ser reconhecida, na condição se Estado
soberano, pelos demais atores internacionais. Este Estado também deve reconhecer a

119
PRESTES, Lisiê Ferreira. Federalismo e sua Aplicabilidade no Sistema Brasileiro Atual. Disponível em
<http://www.dji.com.br/artigos/principal/federalismo_e_sua_aplicabilidade_no_sistema_brasileiro_atual.htm
>, acessado em 22 de outubro de 2013.
64

autonomia dos demais. Dito de maneira específica. A autonomia, que é o essencial da


constituição civil e republicana, deve nortear as leis que regulam as relações internacionais.

Estados que reconhecem as autonomias de seus entes internos devem reconhecer essa
mesma condição na categoria soberana do Estado pelo qual se relaciona. Nesse
reconhecimento, o conceito de pessoa também é estendido ao Estado. Poder-se-ia dizer, num
primeiro momento, que o Estado se constitui na soma das pessoas que ele reconhece e
protege. Mas não. Isso é apenas interpretação quantitativa. A melhor definição de Estado,
nesse contexto, advém quando este se relaciona com outros Estados. Na relação as diferenças
entre pessoas estatais são expressas. Todo Estado é pessoa internacional, um fim em si. Cada
Estado possui sua peculiaridade que lhe garante identidade. Esta, é a base da diferença entre
nações. Quando os Estados se relacionam, essas diferenças, que podemos pensar como
diversidade cultural, se expressam na história real a partir da condição antagônica da insocial
sociabilidade. E porque sabemos as condições desafiadoras que as ações espontâneas
causam, sobretudo entre os desiguais na disputa de semelhantes interesses, as relações
internacionais devem ser fincadas sobre a égide do Direito Internacional, cujo princípio é a
autonomia.

A lei, que normatiza as relações internacionais, possui um primeiro sentido negativo.


Porque ela é necessária porquanto é reconhecida na qualidade de ser a intermediadora entre a
liberdade de ação de cada indivíduo com o coletivo. E supõe a insociabilidade como sua fonte
invariável de preocupação. Nesse sentido, a “Ideia do direito internacional pressupõe a
separação de muitos Estados vizinhos independentes uns dos outros [...] e tal situação (é) um
estado de guerra120”. No entanto, nesta negatividade, os Estados podem acrescentar-se em
pessoalidade, quando se relaciona com outros. Porque suas seguranças podem advir, não da
força das guerras, mas pela força das leis válidas a todos. Ao mesmo tempo, as diferenças
entre Estados que poderiam causar complicações e conduzir a hostilidades, são pelo menos
contidas a não agir espontaneamente. Pois o conceito de autonomia integra a multiplicidade
cultural das nações, de modo que as diferenças não podem justificar hostilidades. Ademais,
elas podem ser possibilitar o desenvolvimento. Conforme escrito na quarta Proposição da
Ideia de uma História Universal, as diferenças, numa comunidade organizada, permite
preservar o que de melhor possa haver, bem como estimular a liberdade criadora de cada um,
enquanto o Direito impõe limites ao exercício desta.

120
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 52. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
65

No Direito Internacional é necessário reconhecer a autonomia da Constituição Civil


dos deve ser estendido para o Direito Internacional. Quando Kant escreve que o “direito
internacional deve fundar-se em um federalismo de Estados livres121”, esse federalismo
principia na condição política de cada Estado, no tocante a autonomia das pessoas. Preservada
a soberania do Estado, este fundamental se estende ao Direito Internacional, como forma de
organizar as relações entre Estados com mira na paz. Do ponto de vista prático, isso é
preponderante. Porque impede que essa federação de Estados livres se torne um grande
Estado federativo supranacional, regido por uma potência. Conforme explica Mello, Kant é
demasiado “liberal e realista para deixar se iludir por uma eventual renúncia dos Estados à
própria soberania, sob pretexto de garantir-lhes a liberdade122”. O próprio Kant escreve que
seria:

preferível que os Estados, em suas relações recíprocas e para preencher a ausência


da legalidade, renunciassem à sua liberdade selvagem e formassem um Estado das
Nações [civitas gentium] em livre e contínuo crescimento, que se estenderia
finalmente a todos os povos da terra (KANT, 2008, p. 36).

Mas o realismo, continuando com Mello, não autoriza o uso de um contrato que
permitisse uma república universal. Assim, para que não se perca tudo e, para que se possa
manter a pauta da paz, resta a possibilidade de instituir numa “aliança permanente cada vez
mais ampliada, que possa preservar da guerra e conter a correnteza123” das disposições da
insocial sociablidade dos Estados no cenário internacional. O que Kant quer é uma federação
de povos, que é condição para que exista uma convenção mútua de nações que mire uma paz
duradoura e global. Por isso, escreve Kant:

É preciso que seja criada uma aliança de um gênero particular, que poderia chamar-
se aliança de paz (foedus pacificum) e se distinguiria do tratado de paz (pactum
pacis) pela sua finalidade: acabar pra sempre com todas as guerras, enquanto o
tratado de paz só põe fim a uma delas. (KANT. 2004 p. 51).

121
Ibid. p. 31.
122
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 51. São Paulo: Saraiva, 2004.
123
Ibid. p. 52.
66

Trata-se, conforme dito na Ideia de uma História, da realização da maior finalidade da


humanidade, ali nomeada de Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum), mas
sofisticada no Projeto para foedus pacificum. Uma evolução em relação a sua antecessora,
porque demonstrada pelas vias do direito em conjunção do entendimento kantiano das
características políticas que deve existir nos Estados. Nestes, com uma constituição política
(Staatsverfassung) civil e republicana, e através da história, deverá acontecer no gênero
humano (Menscengesclecht) uma “disposição e capacidade para ser causa de seu próprio
progresso (Fortrücken) para o melhor124”. Não se trata mais e apenas do concurso da insocial
sociabilidade como fonte das culturas. Conforme o esclarecimento das nações (aufgeklärt)
acorram, com as inerentes mudanças estatais (Staatsveränderungen) e culturais, será natural
que no decorrer do devir estas nações influenciem as demais por suas próprias inteções
racionais.

A partir dessa influência a formação e degeneração (Missbildung) do corpo político


(Staatskörper) dos demais Estados também entrarão no processo de esclarecimento
(aufgeklärt), pois todas a história demonstra que as culturas tendem a absorver o melhor uma
das outras. Na medida em que a dimensão normativa do Direito Civil, através dos aspectos
políticos da Constituição Civil Republicana, for sendo absorvida pela demais nações, esse
cenário constituirá uma fundamental reformulação da história humana. Conforme a
constituição política (Staatsverfassung) dos Estados se organizarem federativamente, a
“condição de possibilidade de um direito internacional” baseado em “um estado jurídico125
acontecerá.

2.4 O Direito Cosmopolítico

O Direito Civil dos Homens deve ser para o povo. O Direito Internacional deve ser
para reger as relações entre os Estados. E o Direito Cosmopolita? O termo cosmopolita é
comumente aceito como sinônimo de cidadão do mundo. A Paz Perpétua trata do direito
cosmopolítico ao qual deve circunscrever-se às condições de uma hospitalidade universal.
Kant escreve: “O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade
universal126”. Trata-se do “direito de um estrangeiro, por conta de sua chegada à terra de

124
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 45 e 46. Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
125
Ibid. p.83.
126
Ibid. p. 37.
67

outro povo, de não ser tratado hostilmente por este127”.


Na prática, Kant introduz no terceiro artigo definitivo os modos como os cidadãos de
uma localidade devem receber o visitante. Existem distintos modos dos indivíduos
intervirem nas relações com outros. Ao Homem que porventura esteja distante de sua
terra, portanto, estando presente no território de outrem, este pode repelir aquele caso
venha interferir d forma hostil em sua terra. De outro modo, entretanto, permanecendo
pacifico na terra estrangeira, as pessoas do local não devem hostiliza-lo. A hospitalidade
não exclui uma hostilidade, mas restringe o acontecimento desta. Kant escreve que o
direito cosmopolítico não obriga necessariamente o visitante a esperar delicadeza dos
anfitriões. Mas que é dever dos Homens em geral reconhecer o direito dos integrantes da
espécie humana em poder se apresentar nas sociedades.

Kant chama atenção para os limites das extensões físicas do planeta Terra. Porque não
se trata de terra infinita, o que obriga os Homens a se organizarem em comunidades. O
uso de cada Estado na superfície terrestre deve ser limitado. Inclusive, o Direito deve ser
pensado, também, em função das dimensões da Terra, que força a relação entre Homens e
Estados. A natureza obriga os Homens à relação, tendo como produto as atividades de
todo tipo. Os Homens devem tolerar-se uns aos outros, e um aspecto deste tolerar é
reconhecer o direito de visita a todos os Homens. O direito da posse comunitária da
superfície terrestre pertence a todos aqueles que gozam da condição humana. Mas isso
implica uma tolerância recíproca através da convivência. O seguimento dessas
orientações, assomado das condições dos Artigos anteriores, fomenta o favorecimento da
paz e da segurança internacional.

Mello escreve que o Direito Cosmopolítico deve presidir toda elaboração das leis que
regulam as relações entre Estados. Deve ser o pano de fundo da atitude conceitual e
prática que inspiram as regras de relação e, a relação propriamente dita. Esse presidir se
constitui na essência do internacionalismo kantiano, porque é constituído no direito de ir e
vir pela Terra e, na equidade de tratamento entre os Homens128. Embora essa perspectiva
pareça utópica, Mello afirma que “toda utopia tem vida própria, que ela desenvolve na
corrente profunda da História129”. E a vida do cosmopolitismo, bem como seu alvo, deve
ser entendido como uma ideia, no sentido explicado no capítulo um. Isso quer dizer trata-
127
Ibid. p. 37.
128
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 53. São Paulo: Saraiva, 2004.
129
Ibid. p.53.
68

se de uma meta irrealizável em sua plenitude, mas que devemos trabalhar para nos
aproximar, porque é um referencial teórico. Para reforçar esse entendimento, uma outra
obra de Immanuel Kant será importante.

Na Doutrina do Direito130 o filósofo escreve que a razão moralmente prática declara


que “não deve haver nenhuma guerra, nem entre tu e eu no estado natural, nem entre nós
como povos [...] porque o direito não deve ser buscado por meio da guerra131”. Não
obstante essa declaração, não se trata de saber se a paz perpétua é possível na realidade ou
não. O que Kant quer é que nós tenhamos consciência de que é nosso dever “proceder
como se este suposto, que talvez não se realizará, devesse, no entanto, realizar-se132”. Este
‘proceder’ significa estabelecer as condições políticas (apresentadas nas seções anteriores
do atual capítulo) que conduzam a efetivação da segurança pública mundial. O que é mais
próximo a tal meta e, ao mesmo tempo faz da guerra um evento execrável, é a mudança
de fim das instituições internas dos Estados quando das suas relações para com os demais
Estados no cenário internacional. O corpo político dos Estados não deve ser composto
como se sempre estivessem na eminência de uma guerra. A guerra é “objeto ao qual todos
os Estados, sem exceção, têm dirigido até hoje suas instituições interiores, como pra seu
fim principal133”. As condições para evitar a guerra tornam-se aspiração, com mais poder
do que a letra de lei. Mas Kant insiste para não enganarmos, haja vista que é um dever
imposto pela razão buscar as garantias de paz, que não pelo conflito bélico. O ideal de
uma “associação jurídica dos homens sob leis públicas em geral134” é mais significativo
que todos os melhores exemplos da experiência. Estes, são passíveis de serem falazes, o
que justifica a necessidade de uma metafísica – no sentido dado pelo próprio Kant
segundo sua revolução epistemológica.

Uma Ideia racional de uma sociedade de paz entre todos os povos é possível, por mais
lento que seja o processo. Um tratado de paz universal e duradouro que seja o fim do
Direito é a meta maior. As vantagens de uma organização desse tipo são de todos. Porque
o “estado de paz é o único em que o meu e o teu estão garantidos por leis em meio a
homens que mantêm relação constante entre si, e por conseguinte vivem reunidos sob uma

130
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. São Paulo: Ícone, 4ª edição. 2013.
131
Ibid. p. 205.
132
Ibid. p. 204.
133
Ibid. p. 204.
134
Ibid. p. 205.
69

constituição135”. Este é o estado de segurança pública mundial, condição possível através


da Ideia de paz mundial, que tem, ao mesmo tempo, confirmada sua necessidade pela
experiência e, determinada como fim pela razão. E no tocante a razão, que nos determina a
paz, sua proposta não precisa ser ensaiada no decorrer da história, como aconteceu
inúmeras vezes ao longo dos séculos através de revoluções. Kant é específico ao dizer que
a implementação de um Direito, tanto civil, quanto internacional, que tenha como meta o
maior grau de paz, pode ser realizado “por meio de uma reforma lenta, insensível e
segundo princípios firmes [...] por meio de uma aproximação perpétua do soberano bem
político136”. Por isso que “o gênero humano apenas insensivelmente deverá se aproximar
de uma constituição cosmopolítica137”. Como escreveu Mello, parafraseando Kant,
“devemos agir como se a coisa, que talvez não seja, fosse138”.

2.5 Um Conceito de Política em Kant

Da relação entre a Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita


com o Projeto de Paz Perpétua de Kant, vamos destacar alguns ensinamentos que mais
diretamente direcionam na composição de um conceito de política. A meta maior da
humanidade, que invariavelmente deverá acontecer, mesmo que lentamente ao longo da
história, é a continuidade da evolução que a leve a realizar uma perfeita constituição política
(Staatsverfassung). A metodologia que Kant oferece para perceber essa continuidade da
evolução política (Politischen Fortschritt), ao longo dos tempo, foi apresentada na Ideia de
uma História. Trata-se do procedimento denominado de história do mundo (weltgeschichte).
A metodologia historiográfica de Kant fundamenta-se em sua antropologia filosófica. Que
extrai do gênero humano os elementos e diretrizes comuns que norteiam os povos. Uma vez
que o Homem e as nações tornem-se esclarecidas (Aufklärung e Aufgeklärt), tornam-se, pois,
suas responsabilidades realizar esforços conscientes para fazerem-se avançar na evolução
política (Politischen Fortschritt). Porque esse esclarecimento não acontece sem que,
concomitantemente, haja um fato da razão, que justifique aquela consciência do dever, que
diz ser responsabilidade do Homem e dos Estados procederem de acordo com a finalidade

135
Ibid. p.204.
136
Ibid. 205.
137
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 37 Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
138
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: Pensamento e Memória. p. 60. São Paulo: Saraiva, 2004.
70

inevitável estabelecida pela Providência. Portanto, a primeira característica da política de


Kant é a realização de uma perfeita constituição política (Staatsverfassung) ao longo da
história, com a finalidade de supressão da guerra e afirmação da paz. Esta paz somente é
possível num estado jurídico.

No Projeto Kant especifica como dever ser a constituição política (Staatsverfassung).


No Primeiro Artigo Definitivo para Paz Perpétua, coloca a constituição republicana como a
única em consonância com o princípio de liberdade. Através dela se reconhece o princípio
pelo qual os cidadãos obedecem uma legislação comum. Com essa receita, onde reina a lei de
igualdade entre cidadãos, podendo participar das decisões que vinculam o futuro da nação,
sobre todas essas premissas, a segurança pública nacional deve ser garantida. A forma de
governo deve ser republicana, pois nela o poder executivo está separado do legislativo e do
judiciário. O governo obedece às leis promulgadas pelo soberano, que devem estar de acordo
com a vontade geral, uma vez que o governo é eleito e seu regime é representativo. Essa
descentralização do poder impede que o Estado e as pessoas estejam sujeitas a possíveis
vontades injustificáveis do soberano.

Quando Kant escreve que o “direito internacional deve fundar-se em um federalismo


de Estados livres139”, esse federalismo principia na condição política de cada Estado,
especificamente na autonomia das pessoas. Feitas as devidas adaptações, este fundamental se
estende ao Direito Internacional, como princípio que organiza as relações tendo, sempre,
como meta as realização da paz. Evitando que esse projeto se torne um grande Estado
federativo supranacional, o que comprometeria a autonomia dos Estados, esse projeto deve
estimular a evolução política (Politischen Fortschritt) dos Estados, ate alcançar a Liga da Paz
(foedus pacificum). Trata-de do maior modelo político de instituição internacional que,
substancialmente, visa a formatação das condições da segurança pública abrangente.
O fundamento do “direito cosmopolita deve ser limitado às condições da
hospitalidade universal140”. Ou seja, é o “direito de um estrangeiro, por conta de sua chegada
à terra de outro povo, de não ser tratado hostilmente por este141”. Kant traz o fato de que
existe um direito dos indivíduos intervirem nas suas relações com outros indivíduos. Uma vez
que a pessoa que esteja em seu território pode repelir o visitante se este interfere erraticamente
em seu domínio. Tal procedimento não vale, no entanto, se o visitante manter-se pacifico, o
139
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. 31 Porto Alegre: L&M POCKET,Porto Alegre, 2008.
140
Ibid. p. 37.
141
Ibid. p. 37.
71

que desautoriza qualquer hostilidade. Kant pressupõe que qualquer Homem tem o direito de
apresentar-se nas sociedades da Terra.
Estes ensinamentos reúnem o que de política existe na Ideia e no Projeto. Em sua
filosofia, Kant posicionou a política em um lugar que podemos chamar de dinâmico. A
depender do ângulo que interprete a política em seu sistema filosófico, pode-se ter uma visão
periférica ou central. De maneira periférica, quando o desenvolvimento das disposições
originárias do Homem acontecem mediante o concurso da Providência através da insocial
sociabilidade. Aqui, não se pode ver relação direta dessa argumentação com alguma política.
Entretanto, ao especificar estudos sobre como o desenvolvimento das disposições acontecem
na história real, muitos objetos da cultura surgem. A própria cultura é tida como produto da
efetivação histórica das inclinações egoístas. Um primeiro produto, muito importante, é o
Direito, que equilibra as relações no quanto o Homem pode e deve ser livre. E depende do
Direito a continuidade do desenvolvimento das disposições, tanto quanto ele também é
resultado disso. E surge também a política, concomitante a organização dos Estados. Através
da história do mundo (weltgeschichte) a evolução política (Politischen Fortschritt) dos
Estados busca seguranças internas e externas. A continuidade do desenvolvimento das
disposições originárias do Homem também depende dessa organização e evolução política.
Do mesmo modo que no Direito, tanto quanto esse desenvolvimento depende da política, esta
também é resultado dos avanços de outrora. Aqui a política já não ocupa posição periférica.
Sua importância é central. O desenvolvimento das disposições originárias do Homem, nesse
nível, não acontece mediante o concurso da Providência através da insocial sociabilidade.
Mas através da combinação político-jurídico da administração direta daquele antagonismo
antropológico, mediante a organização dos Estados e do Direito Internacional.

A política em Kant é um meio de inter-relacionar os dois universos do seu sistema. Está


entre o universo de suas três Críticas e seu direito natural. Desta feita, os ensinamentos
políticos de Immanuel Kant podem ser sintetizados em uma frase: governo republicano com
uma constituição civil que encontre consonância, dessa estrutura política, na forma geral da
organização dos Estados a nível internacional. Trata-se de uma doutrina do Estado que tem
como alicerce o direito, entendido como único garantidor e viabilizador da paz, que deve ser
instituída normativamente. Trata-se da paz através da lei, possível através da passagem do
estado de natureza para o estado de direito. E trata-se da lei através da razão, que fundamenta
o ideal do direito na necessidade de reconhecimento da paz através da sacrossanta condição
de autonomia da pessoa, seja esta humana ou estatal. Em Kant, a paz depende da lei. E a lei
72

depende de fundamentos filosóficos. A política é o modus operandi que, de modo geral, deve
evitar o estado de guerra.
73

CAPÍTULO III -

ONU: CONSCIÊNCIA DO MUNDO E EVOLUÇÃO POLÍTICA

Vamos ilustrar um elemento da evolução política (Politischem Fortschritt), segundo a


história do mundo (Weltzeschichte) de Kant, na história real. Defenderemos a tese de que a
Organização das Nações Unidas (ONU) é esse elemento. O procedimento para apresentar essa
tese não excluirá as dificuldades que antecederam a criação da Organização. Porém, mesmo
assumindo a realidade dos eventos, a narrativa foi constituída de modo a justificar que a ONU
representa evolução na política internacional. Para fazer pesar a argumentação, o artigo A
Consciência do Mundo: A ONU diante do Irracional na História, escrito pelo ex-funcionário
da ONU, Sérgio Vieira de Mello, será importante.

Na eminência do irracional, ocorrido entre 1914 e 1945, a decadência da civilização foi


antecedida por dois séculos de espetacular otimismo, confiança e euforia, ao qual a filosofia
teve papel importante. O século XX foi herdeiro do Iluminismo. E é assombroso que, embora
antecedido pelas Luzes, seu começo tenha mergulhado na mais ignota e podre treva da batalha
sem princípios. Fundamentado no Humanismo Renascentista, o Iluminismo foi um
movimento filosófico, político, cultural e literário que anunciava a necessidade (embora talvez
seja melhor dizer, o direito) de o Homem valer-se de sua própria razão e da ciência como
formas de compreensão do mundo. Significava pensar de forma independente do jugo da
natureza, das religiões, misticismos, dogmatismos e repressões. A técnica avançava. Isso
justificava, do ponto de vista prático, o otimismo teórico dos filósofos do período. A filosofia
iluminista é otimista porque acredita no progresso por meio do uso crítico e construtivo da
razão. A razão é uma faculdade que só se pode compreender plenamente em seu exercício e
ampliação. Conforme Reale:

A razão dos iluministas é aquela do empirista Locke, que analisa as ideias e as reduz
todas às experiências. Trata-se, portanto, de uma razão limitada à experiência [...] A
razão dos iluministas é a razão de Newton, que [...] partindo da experiência e em
contínuo contato com a experiência, procura as leis do seu fundamento e as submete
à prova. (2012, p. 672):
74

Os direitos políticos e os direitos humanos, então conquistados, reforçavam a


confiança na razão. Também, a literatura da época refletia o entusiasmo de a razão ser a
“senhora” que permitiria finalmente, ao Homem, sua independência e autonomia para
processar seu próprio devir histórico142. Autonomia, da maneira como os iluministas a
apresentavam, foi uma antítese à Escolástica, à tradição, à religião e ao Ancien Régime.
Fundamenta-se na razão que somente se dobra às evidências empíricas e matemáticas. Nesse
sentido, as crenças e o conhecimento viriam do natural, através da associação entre
racionalidade dedutiva e empirismo indutivo. Essa associação comporia uma espécie de
tribunal onde se define o que deve ser uma crença ou conhecimento válido.

Com a razão pressagiando os pensamentos que se ocupariam da constituição do futuro,


a responsabilidade sobre a liberdade na histórica ficaria, toda ela, a cargo do Homem. Nesse
sentido, a eminência das guerras entre países haveria de ser subtraída ou, no mínimo,
controlada quando ocorresse. Afinal, a razão busca, primariamente, a autopreservação dos
indivíduos, em última instância, dos povos. Igualmente, influenciada pelo contágio intelectual
das Luzes, a narrativa da história acreditava que a sociedade europeia do século XVIII estava
próxima do progresso culminante. Acima de qualquer crendice ou dogma, a reflexão crítica e
o Homem eram, concomitantemente, os responsáveis pela liberdade, pelo devir e pela
felicidade143. O século XIX adentrou sobre esse espírito. E o século XX também assim
penetrou na história. Mas não passaria de um mero penetrar.
O espirito das Luzes não avançou. Alegoricamente falando. Foi como se a história
tivesse ocultado, entre as fines da virada do século, um demônio debaixo do próprio sol do
esclarecimento, em alguma improvável fresta de sombra qualquer. E tendo dado ordens ao
demônio, este entrou na sala da senhora razão, disfarçado de um enunciado válido e, lançou
sobre a face da nobre senhora o veneno contra o esclarecimento. E cegando-a de fel humano,
cuja principal substância continha o elemento contingente da irracionalidade, então, a história
recupera seu domínio sobre o Homem. Do auto do otimismo, o Homem foi lançado para as
trincheiras alamaçadas da frente ocidental, aos fornos de Auschwitz, às bombas atômicas de
Hiroshima e Nagasaki. O Homem foi arremessado para a decadência da civilização. Numa
expressão: uma segunda queda original.

142
Ler, por exemplo, de Voltare, “ História de um Brâmane”.
143
O Homem era visto como uma mônada, no sentido de que somente sua existência física importa. Desse
modo, a autonomia dos iluministas esta ligada a possibilidade de ser feliz, incluindo a sensualidade e a redução
do sofrimento através da razão de eficácia instrumental. ZATTI, Vicente. Autonomia e Educação. EDIPUCRS:
Porto Alegre, 2007.
75

Herdeiro do Iluminismo, o século XX recebeu um período de relativa ausência de


guerras entre as potências europeias144 nos cem anos anteriores. Assomado do progresso
científico, tecnológico e industrial na Europa, essa atmosfera inicial bem poderia permitir o
prolongamento do otimismo. Pode-se dizer que restava alguma empolgação advinda das
evoluções políticas, como, por exemplo: Revolução Francesa (ao qual Kant defendeu
ardorosamente), a independência dos países do novo mundo e, a conquista dos sagrados
direitos do Homem. No entanto, a empolgação e o otimismo desapareceram junto do
Arquiduque Francisco Ferdinando, em 28 de junho de 1914.
O assassinato do herdeiro do trono da Áustria-Hungria, na cidade de Sarajevo,
formalizou aquilo que seria, até então, a maior tragédia bélica da humanidade. Conforme
escreve Hobsbawm, para as pessoas que cresceram antes de 1914, o contraste era tão
impressionante que muitos “se recusavam a ver qualquer continuidade com o passado. “Paz”
significava “antes de 1914”: depois disso veio algo que não merecia esse nome145”. Quatro
anos de guerra, e a suspensão das hostilidades ocorreu em 1918, ratificada no ano seguinte
pelos termos do Tratado de Versalhes, através de uma paz punitiva à Alemanha. Não vamos
entrar no mérito do Tratado. Mas pode-se afirmar que o Tratado confeccionou trégua
circunstancial entre os beligerantes. Na primeira oportunidade a Alemanha revidou o golpe
francês e, o conflito interrompido em 1918 foi recomeçado em 1939. Entrementes, algo pelo
qual, anos mais tarde, seria a ONU, foi ensaiado após a Primeira Guerra Mundial. A Liga das
Nações, entidade pioneira de nível internacional dedicada à resolução de contendas entre
países através dos seus representantes políticos. Foi por meio da política que se pensou
discutir formas para administrar contendas. Mas também havia sido por meio dela que as
contendas se iniciaram. Mas afinal, a Liga das Nações falhou estrondosamente. Junto do
Tratado de Versalhes146, foi a grande decepção política daquele começo de século. Vinte anos
depois o mundo estava novamente em guerra.

144
Antes de 1914 não havia grande guerra que envolvesse as grandes potências (Grã-Bretanha, França, Rússia,
Áustria-Hungria, Prússia – após 1781 ampliada para Alemanha – e, depois de unificada, a Itália, EUA e, Japão)
fazia um século. Houvera apenas uma breve guerra em que mais de duas das grandes potências haviam
combatido: Guerra da Crimeia (1854-6), entre a Rússia, de um lado, e a Grã-Bretanha e França do outro. Além
disso, a Guerra Civil dentro dos EUA (1861-5). HOBSBAWM, E. Era dos Extremos - O breve século XX 1914-
1991, p. 30. Companhia das Letras, 2ª edição, São Paulo 2012.
145
Ibid. p. 30.
146
Hobsbawn escreve que o “Tratado de Versalhes não podia ser a base de uma paz estável, [ele estava]
condenado desde o início ao fracasso e, portanto, outra guerra era praticamente certa”.Ibid. p. 47.
76

Em 1946, com exceção dos EUA e Canadá147, que não tiveram seus territórios
atacados, as demais nações envolvidas no conflito se encontravam a beira da hecatombe. Por
um lado, a dimensão arruinada das infraestruturas sociais, econômicas, jurídicas e políticas.
Do outro, a metamorfoseada visão de Homem, embrionada pelas cenas espetaculares dos
extermínios. A pessoa do Homem transformada em coisa. Vidas destituídas da qualidade de
fins em si, empregadas como meio para destruírem umas as outras, como se suas existências
não lhes pertencessem. Nesse processo, de vidas conduzidas segundo os propósitos dos
governantes, as liberdades foram desvisceradas, as autonomias reprimidas e, sobretudo,
aquela sensibilidade que nos distingue dos demais animais foi subtraída. Essas destituições
geraram consequências que ultrapassaram a quantificação empírica dos prejuízos. Eksteins148
afirm que durante a Primeira Guerra, as mais diversas tecnologias foram aplicadas: gás
venenoso, lança-chamas, canhões de longa distância, aviões, submarinos, dentre outros. No
entanto, tudo seria superado, tecnicamente, na Segunda Guerra. Concorda Hobsbawm:

a impessoalidade da [Segunda Guerra] tornava o matar e estropiar uma consequência


remota de apertar um botão ou virar uma alavanca. A tecnologia tornava suas
vítimas invisíveis, como não podiam fazer as pessoas evisceradas por baionetas ou
vistas pelas miras das armas de fogo [...] não viam-se homens, mas estatísticas
hipotéticas. (Hobsbawm . 2012, p. 57) (Grifo nosso).

A desumanização do inimigo foi permitida pelas tecnologias desenvolvidas para matar. A


“arma moderna substituiu a moral de suas vítimas149”. A reverência mútua, a aceitação de
regras e, mesmo o cavalheirismo, que poderia suscitar uma violência do tipo respeitosa, num
padrão aristocrático, bismarckiano, do século XVIII, eram completamente ausentes. Nas
guerras do século XX “os adversários são naturalmente demonizados para fazê-los
devidamente odiosos ou pelo menos desprezíveis150”. A impessoalidade da guerra e o vazio
de espírito entre beligerantes, além de irromper lividez, realizou uma cisão com o passado.

147
Embora EUA e Canadá não sofressem danos bélicos em seus territórios, ambos tiveram perdas humanas na
2ª Guerra Mundial. Os EUA tiveram 418,500 mortos. O Canadá 45,300. SOMMERVILLE, Donald. The Complete
Illustrated History of World War Two: Authoritative of the Deadliest in Human History with Analysis of
Decisive Encounters and Landmark Engagements. p. 5. Lorenz Books, 2008.
148
EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera, p. 200, São Paulo: Rocco, 2001.
149
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. .. 54, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.
150
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos - O breve século XX 1914-1991, p. 56. Companhia das Letras, 2ª edição,
São Paulo 2012.
77

“Os sobreviventes do século XIX ficaram talvez mais chocados com o colapso dos valores e
instituições da civilização liberal151”. Afinal, os compromissos com governos constitucionais,
assembleias representativas e livremente eleitas, domínio da lei e, direitos e liberdades aos
cidadãos eram processos de um progresso histórico que aquele século dava como certo. “O
Estado e a sociedade deviam ser informados pelos valores da razão, do debate público, da
educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente da perfeição)
da condição humana152”. No entanto, a pungência das duas Grandes Guerras desintegrou tais
pretensões. O Homem, nessa cadeia de reações, representa muito bem a encarnação histórica
de Sísifo153, onde sua experiência na Terra se define mais pela provação que pela superação, e
os mesmos erros são reencontrados nas gerações subsequentes. A responsabilidade para com
o futuro não deve ser maior do que a preocupação imediata com as forças do Estado. E se
tiver que significar algo, será a partir da crença no revolver dos eventos de guerra e paz,
possivelmente manifestos em novas motivações.

A Organização das Nações Unidas foi nesse contexto, ao fim do segundo cataclismo
do século passado. Foi uma reação aos picos inauditos do horror das batalhas, das destruições
das cidades e, dos extermínios sistemáticos. Tais horrores fermentaram suspeita sobre a
capacidade do Homem em manter desenvolvimento qualitativo e equilibrado na história. Sua
criação também respondeu a esse desencantamento. tratou-se de uma reação racional contra o
irracional presente na história do século XX até 1945. Os novos contornos das guerras do
século XX justificava uma reação dessa magnitude. A guerra moderna passou a envolver:

todos os cidadãos [...] travada com armamentos que exigem um desvio de toda
economia para a sua produção, e são usados em quantidades inimagináveis; produz
indizível destruição e domina e transforma absolutamente a vida dos países
envolvidos. (Hobsbawn, 2012, p. 51)

151
Ibid. p. 113.
152
Ibid. p. 113-4.
153
Na mitologia grega, Sísifo foi condenado por Zeus a ter que rolar uma grande pedra de mármore com suas
mãos até o cume da montanha, sendo que tal pedra rolava novamente montanha a baixo, no ponto de partida.
Por esse motivo, as tarefas que envolvem ações inúteis e cansativas passou a ser chamada de trabalho de
Sísifo. Albert de Camus escreveu um ensaio filosófico intitulado O Mito de Sísifo onde introduz a filosofia do
absurdo. Nele, o Homem fútil vai em busca de sentido num mundo inteligível desprovido de Deus.
78

A principal missão da Organização é interromper e/ou dificultar a repetição da


destruição e das atrocidades. Sua existência deve multiplicar ao mundo a informação das
humilhações, dos abusos e das desobediências que possam conduzir a beligerâncias ou ao
destrato para com os Direitos do Homem. Era como se a Organização respondesse ao mundo:
“... a pesar de tudo, dizer ‘sim’ à vida154”. A existência da ONU não é suficiente, porém, é
necessária para então se falar em nome de uma razão. Esta, deve se contrapor ao ceticismo,
ao desencanto e ao pessimismo do desenvolvimento político no cenário internacional.

Desde a elaboração da ONU, em Dumbarton Oaks155, antes do fim da Segunda Guerra,


um mesmo vetor perpassava as conversas nas reuniões que culminou na elaboração da Carta
das Nações Unidas. A ONU haveria de ser a entidade internacional máxima onde o Direito
Internacional e, os diálogos entre Estados, devessem ocorrer em vista da manutenção da paz e
da segurança mundial. O multilateralismo político156 foi estabelecido como a ferramenta
política aos quais chefes de Estados deveriam se pautar. Por princípio, tem no horizonte
teórico o logos cuja concepção de história lhe permite crer na possibilidade de um devir mais
racional, através da soma qualitativa dos esforços multilaterais entre nações. A concepção de
história, inerente aos projetos da Organização, está estritamente ligada à paz, que é a meta
principal.
O interessante, na concepção de devir histórico da ONU é que o Homem volta a ter
inteira responsabilidade pela sua constituição. A casualidade e a espontaneidade das relações
entre Estados não deve ser uma constante. Pelo projeto, a história haveria de ser contada como
a resultante da internacional cooperação política entre Estados submetidos ao direito
internacional e, a Carta da ONU. Ambos os documentos miram a realização da segurança
pública e instituição da paz mundial. Trata-se de uma meta pretenciosa para a Organização,
quando se sabe que a desunião é própria da natureza das nações. Conforme escreve Ayron:

154
Essa é a tradução literal para o português da obra Ein Psycholog Erlebt das Konzentrationslager, de Viktor
Emil Frankl, de 1946, tendo nas edições portuguesas o título Em Busca de Sentido da Vida.
155
Dumbarton Oaks é uma mansão localizada na cidade de Washington, EUA, que recebeu uma série de
conferências internacionais, entre agosto e outubro de 1944, entre EUA, Reino Unido, URSS e China, ao qual
delinearam os primeiros projetos do que seria a Organização das Nações Unidas.
156
Multilateralismo político são os esforços empreendidos entre nações no raio de ação internacional. Quando
direcionados às pautas bélicas da geografia mundial, invocam a conjunção das forças individuais dos Estados
através da ONU, em foco de um comum tema, podendo ter muitos objetivos, mas invariavelmente tendo como
meta a paz e a segurança pública mundial. O multilateralismo depende muito de consensos e divisões de
responsabilidades entre seus seguidores.
79

Os homens sempre se mataram, empregando os instrumentos fornecidos pelo


costume e a técnica disponível: com machados e canhões, flechas ou projéteis,
explosivos químicos ou reações atômicas; de perto ou de longe; individualmente ou
em massa; ao acaso ou de modo sistêmico157 (AYRON, 2002, p. 65)

A meta da ONU, entretanto, contrasta com a realidade factual desdobrada “a sombra


da guerra”, diante do embargante revezamento entre guerra e paz, plena contingência na
história. Está escrito no preâmbulo da Carta das Nações Unidas:

Nós, os povos das Nações Unidas, [estamos] resolvidos a preservar as gerações


vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe
sofrimentos indizíveis à humanidade, e reafirmar a fé nos direitos fundamentais do
homem, na dignidade [...] e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o
respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito
internacional possam ser mantidos 158. (Grifo Nosso).

Foi com essa enorme responsabilidade que as Nações Unidas avançaram pelo século
XX. Realizou importantes intervenções humanitárias e, criou diversos organismos internos
que representam as multifacetadas conjunturas das culturas. Atualmente, ela contém trinta e
quatro agências e programas, como por exemplo, o Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR), do qual Sérgio Vieira de Mello trabalhou. No entanto, mesmo
a ONU não está ilesa de críticas. De fato, aconteceram momentos onde o sentido da
Organização foi questionado e sua credibilidade e força postas sobre reflexão.
No que se refere às multifacetadas conjunturas culturais dos Estados que integram a
Organização, Mello escreve que a ONU pode ser vista como um espelho delas, no sentido de
que, dada as diversas tendências que compõe a realidade contemporânea, a Organização
representa as escolhas que as gerações fizeram ao longo da história. De fato, hoje a
Organização é um complexo de várias entidades reunidas, cada qual com sua pauta específica.
No entanto, o ex-funcionário da Organização admite que, em muitas ocasiões, a passividade

157
ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. p. 65. Brasília/São Paulo:Editora UnB/Imprensa Oficial do
Estado/Instituto de Pesquisa de Ralações Internacionais, 2002.
158
Carta das Nações Unidas, Preâmbulo, p.3.
80

manchou essa representatividade. Ele usa o termo passividade por causa de alguns fatos que
se tornaram exemplos tristes de ineficiência, trazendo à mente a imagem de uma Organização
pusilânime, como se fosse uma sombra das descritas na Republica de Platão, na qual se
projetavam as sombras da realidade exterior. Caricatura inerte, como se assistisse em
parcimônia o teatro lastimável da vida real. Deveras, apenas para citar alguns episódios, a
invasão do Tibet pela China e, o massacre em Ruanda, são eventos que sinalizam a
passividade que acometeu a instituição.
No entanto, outra função se configura na Organização, que lhe acrescenta em valor e
põe em ação todas as técnicas que lhe permite emitir uma imagem responsável. A ONU,
escreve Mello, tem como uma de suas importâncias a Assembleia Geral, que age como uma
corrente fundamental na produção normativa a longo prazo. Contudo, para Mello, somente o
Conselho de Segurança e o Secretário-Geral podem atuar eficazmente sobre os problemas que
acontecem imediatamente. Seus poderes são mais dinâmicos e são capazes de, pela sua
interface, incitar uma jurisprudência e promover novas alianças. A busca pela maturidade da
instituição através de uma maior coesão entre o Secretário-Geral e a vontade do Conselho
relativamente às questões de ordem vital, deve ser constantemente cultivada.
O primeiro passo nessa direção é o reconhecimento mútuo de suas competências em
matéria de violações graves do direito humanitário e dos princípios da humanidade. As
evidências de que ameaças à paz e à segurança internacional estejam acontecendo devem ser
trabalhadas com firmeza. Tendo no trabalho o motivo de colaboração entre o Conselho e o
Secretário-Geral, pode-se começar a provar que a Organização das Nações Unidas deve
exercer um papel de Consciência do Mundo. Uma consciência que deve ser viva e dinâmica.
E sob múltiplos aspectos, tantos quantos lhe são proporcionados pela realidade que absorve e
espelha, a ONU deve se tornar rica e plural. Sérgio é específico ao afirmar que esta
consciência é antidogmática, ou seja, não deve ter o pensamento fechado em si mesmo. De
outro modo, deve ser fundamentalmente receptiva e tolerante, porque a força do seu poder é
instituída moralmente. E essa força deve ser alargada pela constante redescoberta e
reconhecimento das carac159terísticas e dos valores particulares das culturas da Terra e,
“sobretudo, pela sua capacidade de extrair da massa bruta dos acontecimentos e da nossa
história [...] os princípios e os interesses comuns”.
Mello esclarece que a ONU, enquanto consciência do mundo se posiciona na história
segundo o estado de tensão desta. O que faz com que a Organização esteja em permanente
159
MARCOVITCH, Jacques. Sérgio Vieira de Mello: A Consciência do Mundo: A ONU diante do Irracional na
História. p. 85. São Paulo: Saraiva, 2004.
81

instabilidade, tão frágil quanto o real que ela expressa. E que, no entanto, é o mesmo real da
história que a ONU critica e se propõe a transformar. Nesse sentido, a ONU, consciência do
mundo, é também razão atuante, voluntarista, persuasiva e atuante. Numa associação com a
filosofia da história, de Kant, a Organização pode ser vista como ilustração de evolução
política (Politischen Fortschritt) dos Estados e instituições internacionais. Antes da realização
da ONU, houveram outras tentativas políticas de desenvolvimento. Para citar alguns, o
Projeto Anfictiônico da Grécia Antiga, que visava integrar diversas cidades por uma rede de
laços políticos, culturais e comerciais. Também, a independência e unidade latino-americanas,
mais particularmente Simon Bolívar que, segundo Mello, já havia sofrido influência de Kant
quando convocou o Congresso Anfictiônico de Panamá, em 1826, cujo objetivo era
confederar os Estados do Sul.
Evidentemente esses espasmos de evolução política se deram envolta de atos bélicos
capazes de escurecer a visão. Mas é precisamente no tocante em saber lidar com esse cenário
envolto em guerras e, em seu centro, interpretar seus eventos, que uma história do mundo
(Weltzeschichte) é possível. Mesmo no epicentro das hecatombes do início do século XX, é
possível localizar um fio condutor que liga a realização da ONU com as metas da filosofia
iluminista e, sobretudo, com a filosofia política de Kant. As Nações Unidas representa a
reunião de todos os elementos que a irracionalidade não destruiu e, possibilitou uma evolução
política (Politischem Fortschritt) no seio da história real.
A leitura da história do mundo (Weltgeschichte) não exclui as dificuldades inerentes
ao problema da paz mundial que, conforme vimos de Kant, advém do composto antagônico
da insocial sociabilidade. Destarte, mesmo a passividade que por vezes marcou a história da
ONU não deve ser ignorada. Foram erros que, em verdade, representaram as diferenças de
posições das nações do mundo presentes na Organização. A experiência mostra que o conflito
de interesses tem poder de paralisar a instituição. Mas essas situações devem ser superadas.
Não se deve reproduzir na ONU o mesmo daquilo que ela quer evitar e combater, qual seja, a
disputa improdutiva e sem lei.
Nas palavras de Mello, a ONU é consciência do mundo e, se posiciona na história
segundo o estado de tensão, instabilidade e fragilidade que lhe caracteriza. E, no entanto, é o
mesmo real da história que a Organização critica e se propõe a transformar. Tal transformação
se dará através de novas ilustrações que faça continuar a evolução política (Politischen
Fortschritt) na comunidade internacional. Para que isso aconteça, no entanto, o Conselho de
Segurança, juntamente com o Secretário-Geral das Nações Unidas, devem buscar a
82

maturidade de suas relações, sobretudo nas questões de ordem vital: violações graves do
direito humanitário e dos princípios da humanidade.
A teoria da consciência do mundo que Mello propõe é, ao mesmo tempo, filosófica.
Ele próprio justiça isso. Explica que tudo que conduz a consciência individual e coletiva para
uma sabedoria superior, é filosofia. Ao mesmo tempo, diz que essa filosofia é prática, porque
as Nações Unidas é o instrumento destinado a articular os valores e a materialidade da
história. Essa mesma história, irá verificar a veracidade da proposta de que a ONU seja a
Consciência do Mundo. Essa resposta da história, ao nosso ver, poderá ser de bom grado, uma
vez que a ONU continue promovendo a evolução política (Politischen Fortschritt) no mundo
real.
Mello, invocando sua experiência prática, escreve que o interesse comum é possível
tanto no que diz respeito aos princípios como na prática. Isso deve ser pensado pelo Conselho
e Secretário Geral. Mas também no quadro da unidade da ONU. É nesse interior que os
acordos devem ser realizados. As outras consciências (instituições) do mundo, por vezes bem
intencionadas, não são, contudo, abrangentes. A ONU, enquanto entidade racional, de
princípios fixados e metas estabelecidas, compõe a unidade de abrangência global com poder
e potencial para fazer subtrair a eminência do irracional, que consistem em negar a utilidade
desta garantia estrutural da racionalidade política e moral, no âmbito das relações
internacionais.
83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema desta monografia é o problema da paz mundial, especificamente às


dificuldades em estabelecer uma convivência pacífica entre os Estados. Toda ação de Estado é
ação política. Consequentemente, o problema possui ligação com o modus operandi da
política realizada. Supondo que a paz seja a maior meta da humanidade, os Estados têm a
responsabilidade de configurar estratégias que criem condições de possibilidade para a
efetivação da paz. Uma política que agregue, na sua finalidade, a promoção da paz entre as
nações, sem abdicar da autonomia dos mesmos, deve ser pensada. Com esse intento e, para
propor resolução ao tema monográfico, o objetivo da presente monografia foi apresentar um
conceito de política em Immanuel Kant. Esse conceito foi obtido a partir da relação de duas
obras do filósofo, dispostas em dois capítulos.
Nas conclusões da primeira obra, Ideia de uma História Universal de Um Ponto de
Vista Cosmopolita, trabalhadas no capítulo um, Kant apresenta sua filosofia da história. É
possível conceber o processo histórico no âmbito da razão, através da Ideia de uma história.
Esta, num primeiro momento, é o resultado de um plano ignoto da natureza, ao qual a espécie
humana elevará, no devir histórico, as suas disposições racionais. A natureza, para garantir
essa elevação, configurou no gênero humano a insocial sociabilidade, que é a tendência do
Homem para aderir a sociedade e, ao mesmo tempo, para se opor a ela, ameaçando-a e
desequilibrando-a. Conforme o Homem transformar o poder desse antagonismo em cultura, o
desenvolvimento das disposições não instintivas ocorrerá. Entrementes, no decorrer da
história, a evolução política (Politischen Fortschritt) acontecerá, conforme se ajustarem as
questões socioculturais, políticas, artísticas e jurídicas. Injeções específicas de progresso
contagiam os demais povos e, do caos originário, se ergue uma autorregulação de ações que
se pode deduzir um sentido na história. Outrossim, o esclarecimento das nações (aufgeklärt)
viabiliza a realização da constituição política (Staatsverfassung) civil nos Estados. Com esse
ajustamento político no interior das nações, Kant apresenta o conceito máximo de evolução
política na Ideia. A Confederação de Nações (Foedus Amphictyonum) é uma federação de
nações onde o Estado tem sua proteção garantida através de uma grande confederação..
Nas conclusões da segunda obra, À Paz Perpétua, trabalhadas no capítulo dois, Kant
apresenta as bases jurídicas para que a paz possa ser introduzida no Direito Internacional,
válido a toda comunidade global. Para que isso aconteça, primeiramente ele expõe os Artigos
Preliminares, que são leis proibitivas para o restabelecimento da paz. Contudo, é na Segunda
84

Seção, com os Artigos Definitivos para a Paz, que as bases jurídicas que devem compor o
Direito Internacional são abordadas. No Primeiro Artigo conclui-se que, somente se pode
pensar em paz internacional quando a paz nos Estados estiver instituída através da
Constituição Civil Republicana. Esta, é a única que tem como perspectiva a paz, sendo a
melhor ao povo. A decisão pela guerra também deve ter participação da população. Isso é
viabilizado pelo sistema político de governo, organizado de forma representativa e, com
separação de poderes. Assim, quando da iminência de uma guerra, a escolha pelos conflitos
terá participação dos cidadãos, que pensarão muito antes de decidirem-se por esse destino.
No Segundo Artigo, ocorre uma extensão do sistema político da constituição civil
republicana de uma nação às normas que disciplinam as relações entre Estados. Por isso, o
“direito internacional deve fundar-se em um federalismo de Estados livres160”. O federalismo
é fundamentado na autonomia dos Estados, que viabiliza suas liberdades e igualdade
jurídica, garantindo, assim, suas soberanias. A autonomia é qualidade inerente ao Homem, e
lhe permite abrir campos de possibilidades em seu agir na história real. A fonte do seu devir
não reside na natureza, mas na sua condição criadora autônoma, fonte da liberdade e
criatividade. Em outras palavras: a razão outorga a escolha entre realizar um ato que inicie
uma séria de reações racionais ou irracionais. Existe relação de congruência entre a
autonomia do Homem e a do Estado. É essa característica do sistema político da constituição
republicana de Estado que deve ser estendida à comunidade internacional. Um Estado
autônomo é uma sociedade, onde cada pessoa possui peculiaridade que, vistas em conjunto,
demarcam identidade à nação. O Estado garante liberdade às pessoas para escolherem
campos de possibilidades em seu agir na história real. As pessoas podem realizar e expressar
escolhas diferentes: modos de vida, concepções política, credos religiosos etc. Ao garantir a
liberdade, reconhece-se a inevitabilidade da diferença. E a despeito das diferenças entre as
pessoas, o Estado deve garantir igualdade jurídica entre os cidadãos da república. Portanto,
inerente à condição de ser o reconhecedor e protetor da autonomia das pessoas, o Estado
admite seu dever de proteger a liberdade civil, o direito da diferença e da igualdade jurídica.
A soberania do Estado decorre da autonomia dos seus entes internos que ele protege e
reconhece. Um Estado que sofre ingerência de outro não pode cuidar da saúde civil de sua
população. Essa relação de congruência entre a autonomia do Homem e a do Estado deve ser
preservada quando este mantém relações internacionais. Por isso, o federalismo deve ser
fundamentado na autonomia dos Estados, pois dessa forma se preserva a liberdade e

160
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. p. Porto Alegre: L&M POCKET, 2008.
85

igualdade jurídica entre Estados no Direito Internacional. Em última instância, isso garante
soberania. O Direito Internacional deve garantir leis, fundamentadas na autonomia, para
racionalizar o relacionamento. Isso enfraquecerá a eminência de ingerência de um governo na
soberania de outro. Além disso, deve compor leis para fazer com que as diferenças entre as
nações, resultantes de suas autonomias, não sejam usadas como motivos ou justificativas de
hostilidades. Kant nomeia essa Federação de Estados Livres de aliança da paz (foedus
pacificum), cuja principal meta é manter e trabalhar pela finalidade de acabar com as guerras,
tanto quanto isso for possível para a espécie da insocial sociabilidade.
No terceiro Artigo Definitivo, Kant escreve que o “direito cosmopolita deve ser
limitado às condições da hospitalidade universal161”. Trata-se do “direito de um estrangeiro,
por conta de sua chegada à terra de outro povo, de não ser tratado hostilmente por este162”, a
despeito das diferenças entre o estrangeiro e seus anfitriões. Fala-se em hospitalidade de um
Estado e seu povo para com um estrangeiro, quando se sabe que a insocial sociabilidade é
elemento antropológico inerente nas relações desses atores. Entretanto, o esclarecimento
(Aufklärung) da sociedade tem o poder de contrabalancear a inclinação da desconfiança. Esta,
incentiva a ocorrência da aversão em receber o estrangeiro e, estimula o receio deste em sair
de seu país. Conforme o esclarecimento (Aufklärung) da sociedade avançar, o Direito
Cosmopolita acontecerá. Tal Direito se baseia a partir da relação entre um Estado com os
cidadãos dos outros. Aos Homens em geral é garantido o direito de visita a todos os cantos do
mundo. A pessoa tem o direito de ser cidadão do mundo e, portanto, de visitar um Estado
estrangeiro. Essa visão de Kant em oferecer direitos aos estrangeiros, aonde quer que estejam,
demonstra que a preocupação quanto à proteção do Homem precisa ser garantida
juridicamente, válido em toda circunferência da Terra.
O terceiro capítulo foi finalizado com a apresentação do conceito de política em
Immanuel Kant. Isso foi possível a partir do entrecruzamento do essencial de política extraído
da Ideia de uma História Universal com os ensinamentos de À Paz Perpétua. A política em
Kant é um meio de inter-relacionar os dois universos do seu sistema. Ela está entre o universo
de suas três Críticas e seu direito natural. Desta feita, os ensinamentos políticos de Immanuel
Kant podem ser sintetizados em uma frase: governo republicano com uma constituição civil
que encontre consonância, dessa estrutura política, na forma geral da organização dos Estados
a nível internacional. Trata-se de uma doutrina do Estado que tem como alicerce o direito,
entendido como único garantidor e viabilizador da paz, que deve ser instituída
161
Ibid. p. 37.
162
Ibid. p. 37.
86

normativamente. Trata-se da paz através da lei, possível através da passagem do estado de


natureza para o estado de direito. E trata-se da lei através da razão. Esta, fundamenta o ideal
do direito na necessidade de reconhecimento da paz, através da sacrossanta condição de
autonomia da pessoa, seja esta humana ou estatal. Em Kant, a paz depende da lei. E a lei
depende de fundamentos filosóficos. A política é o modus operandi que, de modo geral, deve
evitar o estado de guerra.
Já no terceiro e último capítulo, vimos que a ONU é uma ilustração de evolução
política (Politischem Fortschritt). Representa as multifacetadas conjunturas das culturas do
mundo. Posiciona-se na história segundo o estado de tensão desta. Esse posicionamento faz
com que ela esteja em permanente instabilidade, tão frágil quanto o real que ela expressa,
critica e se propõe a transformar. Para transformar esse real da história, a Organização tem a
capacidade de extrair, da massa bruta dos acontecimentos da história real, os princípios e os
interesses comuns. Tais qualidades da ONU lhe confere a condição de consciência do mundo,
que conduz elementos da consciência individual e coletiva para uma sabedoria superior.
Portanto, porque as Nações Unidas têm, entre seus princípios e metas estabelecidas, um
posicionamento que assume sua responsabilidade entre o ideal de uma história e, o real de
história possível, diz-se que ela é ilustração de evolução política (Politischem Fortschritt). Tal
como na federação de Estados livres de aliança da paz (foedus pacificum), a Organização tem
como principal meta manter e trabalhar pela finalidade de acabar com as guerras, tanto quanto
isso for possível para a espécie da insocial sociabilidade. Os Estados que lhe compõe
acordaram em aderir às normas do Direito Internacional e da Carta das Nações Unidas. Esta é
a maior aproximação para com a política derivada do sistema kantiano. A ONU executa na
história real as leis do Direito, estas inspiradas na autonomia dos Estados. Trata-se da paz
através da lei, também viabilizada politicamente.
Assim, para o tratamento do problema da paz mundial, os Estados devem exercer
responsabilidades inerentes ao tema. Devem-se configurar estratégias que criem condições de
possibilidade para a efetivação da paz. O que inclui o modus operandi da política realizada.
Que deve agregar a promoção da paz entre as nações, sem abdicar da autonomia dos seus
Estados. Havendo articulação político-jurídica entre o sistema de cada Estado com um Direito
Internacional, a eminência do problema da paz mundial será freada. O alcance do objetivo
monográfico também é uma forma de pensar, com Immanuel Kant, as dificuldades em
estabelecer uma convivência pacífica entre os Estados, bem como forma de solução.
87

BIBLIOGRAFIA

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ZATTI, Vicente. Autonomia e Educação. Porto Alegre: EDIPUCS, 2007.


90

ANEXO A – VOCABULÁRIO DE À PAZ PERPÉRTUA DE KANT

O VOCABULÁRIO DE À PAZ PERPÉTUA tem como obra a tradução e prefácio de


Marco Zingano, editora L&M POCKET, Porto Alegre, 2008. Foi elaborado quando da
realização do meu trabalho de conclusão de curso de Filosofia, pela PUCRS, em 2013. O
objetivo inicial era apenas complementação de estudos No entanto, foi sugerida a anexação
desse vocabulário no TCC, a fim de informar o leitor à existência desse recurso, que
contribuiu para alcançar o resultado final da monografia.

Um mesmo conceito possui sua explicação em diferentes trechos do Projeto. Ao final


de cada frase, após o sinal de ponto e vírgula (;), haverá a indicação da página ao qual o
trecho foi extraído. Também, em Kant é frequente que os conceitos se relacionem com outros.
Quando isso acontecer, durante a explicação de um determinado conceito será escrito, em
negrito, o outro conceito ao qual se deve consultar para averiguar as relações. Veja esse
exemplo.

Destino

Denomina-se destino de uma causa desconhecida por nós segundo suas leis de efeito; p. 42.
Ver também Natureza. Estar tutelado ao destino significa que a razão não está
suficientemente iluminada para apreciar a série de causas predeterminantes que anunciam
antecipadamente com segurança o resultado (embora espere que seja conforme ao desejo)
bom ou ruim do agir e sofrer dos homens, segundo o mecanismo da natureza; p. 58.

O VOCABULÁRIO DE À PAZ PERPÉRTUA DE KANT oferece somente conceitos


com seus respectivos significados extraídos da obra do filósofo. Essas extrações foram feitas
literalmente na maioria das vezes. Em algumas ocasiões foram cometidas pequenas
alterações. O Vocabulário é uma indicação de localização direta de consulta. E vale mais a
interpretação pessoal do leitor do que a literalidade dos trechos extraídos. Portanto, não se
trata de um dicionário, no sentido de oferecer um acabamento conceitual. Este, porém, pode
ser um plano de futuro, talvez apropriado para ser desenvolvido concomitante ao projeto de
mestrado.
91

Importa informar que não está incluído o Apêndice de À Paz Perpétua. Trata-se de um
trecho que é, ao mesmo tempo, tanto indispensável, quanto desafiador, mesmo para os leitores
mais experientes. De minha parte, quando da ocasião de composição deste Vocabulário,
escolhi integrar o Apêndice após a conclusão da graduação. No entanto, essa ausência
momentânea não causa prejuízo, pois a maior parte dos conceitos é apresentada nas partes
anteriores do livro, sendo usados nesta conclusão. Ademais, o que porventura ficar obscuro no
Vocabulário, pode ser esclarecido nos conceitos abordados no nosso trabalho de conclusão do
curso de filosofia.

Pra finalizar, os conceitos que serão apresentados estão dispostos logo abaixo.
Originalmente, estavam tabulados em um sumário. Mas houve problema de harmonizar o
sumário do TCC com o do Vocabulário, pois gerava desformatação em todo arquivo. Então,
mantive a classificação em ordem alfabética, mas retirei o sumário, deixando somente o
indicativo.

Formas de estado
Artigo secreto
Formas de governo
Cidadão
Guerra
Comércio
Hospitalidade
Constituição civil
Insocial sociabilidade
Constituição republicana (cr)
Liga dos povos (lp)
Democracia
Mal
Destino
Moral
Direito cosmopolita (dct)
Não-cidadão
Estado civil
Natureza
Estado
Paz
Exemplo
Providência

Tratado de paz (tp)


10

ARTIGO SECRETO

Um artigo secreto nas negociações do direito público é, objetivamente considerado, segundo


seu conteúdo, uma contradição. Subjetivamente, porém, julgado segundo a qualidade da
pessoa que o dita, pode bem ter lugar aí um segredo, que nela acharia comprometedor para
sua dignidade anunciar-se publicamente como seu autor. O único desse artigo está contido na
proposição: “as máximas dos filósofos sobre as condições de possibilidade da paz pública
devem ser consultadas pelos Estados equipados para a guerra” [...] portanto, o Estado os
convocará silenciosamente (portanto, fazendo segredo disso); o que não significa que ele os
deixará discursar livre e publicamente sobre as máximas gerais da conduta de guerra e
conclusão de paz (pois isso eles farão já por si se e somente não os proíbe), e o acordo dos
Estados uns com os outros sobre este ponto tampouco precisa de um encontro especial dos
Estados em si nessa intenção, mas reside já na obrigação pela razão humana universal (moral
legislativa). O Estado não tem de dar preferência aos princípios do filósofo frente às sentenças
do jurisconsulto [...] mas somente que se escute [...] Não é de se esperar que reis filosofem ou
que filósofos se tornem reis, mas tampouco é de se desejar, porque a posse do poder corrompe
inevitavelmente o livre julgamento da razão [...] é ideal que reis não emudeçam a classe dos
filósofos, mas deixem falar publicamente, porque esta classe é incapaz, segundo sua natureza,
de agremiações e alianças, insuspeitos de propaganda por meio de boato; p. 55 e 56.

CIDADÃO

É o integrante de uma sociedade cuja constituição é republicana; p. 26-27. E pela natureza dessa
constituição aquele integrante é parte decisiva nas escolhas do devir de sua sociedade. Depois de
afirmar que Constituição Republicana tem em sua perspectiva a paz perpétua (p. 26), Kant afirma que
a razão para isso (a paz como fim) é que: “quando o consentimento dos cidadãos [...] é requerido para
decidir “se deve ou não ocorrer a guerra”, nada é mais natural do que, já que têm de decidir para si
próprios sobre todas as aflições da guerra [...] eles refletirão muito para iniciar um jogo tão grave”; p.
26-27. Ou seja, ser cidadão, em Kant, é participar no sentido de poder exercer o direito em decidir a
história futura da república. O integrante de uma sociedade ao poder exercer seu consentimento (ou
não) sobre um intento de governo torna-se cidadão.
11

COMÉRCIO

Se por um lado, a natureza separa sabiamente os povos (ver Natureza e Insocial


Sociabilidade), por outro, mediante o proveito recíproco (entre povos), o espírito comercial,
que não pode subsistir juntamente com a guerra é estabelecido. Cedo ou tarde esse espírito de
apodera de cada povo. A potência do dinheiro é bem mais possível de estabelecer confiança
e, por causa dela, os Estados veem-se forçados a promover a paz; não por móbiles morais,
mas pela possibilidade do lucro. Assim, seja onde for, no mundo, onde a guerra ameasse
eclodir, o conhecimento de que a guerra trará prejuízos, evitará grande reunião para esta.
Desse modo a natureza garante a paz perpétua pelo mecanismo das próprias inclinações
humanas; certamente com uma segurança que não é bastante para pressagiar (teoricamente) o
futuro, mas é suficiente na intenção prática e cria o dever de trabalhar para este fim (não
simplesmente quimérico); p. 54.

CONSTITUIÇÃO CIVIL (CC)

Pertence à Constituição Civil – CC – todos os homens que podem influenciar-se


reciprocamente; p. 23 na nota de rodapé. As pessoas que estão sob a atmosfera da CC estão
atreladas ao direito civil de Estado dos homens em um povo (ius civitatis). Também, estão
atreladas ao direito internacional dos Estados em relação uns aos outros (ius gentium). Por
fim, estão atreladas ao direito cosmopolita, enquanto homens e Estados que, estando em
relação de influência mútua exterior, têm de ser considerados como cidadãos de um Estado
universal da humanidade (ius cosmopoliticum). Esta divisão não é arbitrária, mas necessária
em relação à ideia de paz perpétua. Pois se somente um destes, na relação da influência física
sobre o outro, estivesse no estado de natureza, e tornar-se liberto de tal estado é justamente a
intenção aqui; p. 24 na nota de rodapé.

CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA (CR)

Deve ser instituída por: 1) princípios de liberdade dos membros de uma sociedade (como
homens); 2) princípios de dependência de todos a uma única legislação comum (como
súditos); 3) a lei da igualdade dos mesmos (como cidadãos) – única que resulta da ideia do
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contrato originário, sobre a qual tem de estar fundada toda legislação jurídica de um povo; p.
24. A CR, no que concerne ao direito, é aquela que é em si mesma originalmente fundamento
de todos os tipos de constituição civil; p. 26. A CR, além da pureza de sua origem, por ter-se
originado da fonte pura do conceito de direito, tem ainda a perspectiva da consequência
desejada, a saber, a paz perpétua; p. 26. A CR é a única que é plenamente conforme ao direito
dos homens, mas também a mais difícil para instituir e muito mais difícil para conservar, de
tal modo que muitos afirmam que tinha de ser um Estado de anjos, porque os homens, com
suas inclinações egoístas (ver Insocial Sociabilidade), não seriam capazes de uma
constituição tão sublime; p. 50.

DEMOCRACIA

Kant escreve que todo modo de governo que não é representativa é propriamente uma não-
forma. Porque o legislador não pode ser, em uma mesma pessoa, ao mesmo tempo,
representante e executor de sua própria vontade – que é contradição. E afirma que esse é um
problema presente nas formas de governo democráticas, onde todos querem ser senhor. Entre
as três formas de Estado, a democracia, no sentido próprio da palavra, é necessariamente um
despotismo, por que: I. ela funda um poder executivo onde todos decidem; ii. mas todos não
são, efetivamente todos; iii. então, todos decidem algo sobre o qual uma pessoa não concedeu
consentimento; iv. Kant afirma ser isso uma contradição da vontade geral consigo mesma e
com a liberdade; p. 28. Assim, o problema na democracia é que: todos querem ser senhor, e,
enquanto senhor, lhes é impossível (ao mesmo tempo) exercer soberania (poder) de Estado e,
exercer representatividade, que é precisamente o contrário de ser senhor soberano; p. 28. Kant
afirma que a democracia é necessariamente um despotismo (p.28), porque ela funda um poder
executivo onde todos decidem sobre e, no caso estremo, também contra um (aquele que,
portanto, não consente), por conseguinte todos que, contudo, não são todos, o que é uma
contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade; p.28.

DESTINO

Denomina-se destino de uma causa desconhecida por nós segundo suas leis de efeito; p. 42.
Ver também Natureza. Estar tutelado ao destino, isto é, a razão não está suficientemente
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iluminada para apreciar a série de causas predeterminantes que anunciam antecipadamente


com segurança o resultado (embora espere que seja conforme ao desejo) bom ou ruim do agir
e sofrer dos homens, segundo o mecanismo da natureza; p. 58.

DIREITO COSMOPOLITA (DCT)

Com a comunidade global estando com suas relações mais estreitas (em razão do comércio,
tecnologias de transporte e informação), ocorre que: a infração do direito em algum lugar da
Terra é sentido em todos os cantos. Ou melhor: onde ocorre uma infração do direito de
alguém – suponhamos, de receber hospitalidade quando realiza uma visita n’algum país –, a
inospitalidade pode ser reverberada em todo planeta. Essa capacidade de uma lesão feita a um
Homem poder ser levada aos ouvidos de toda humanidade. Pode ser um complemento
necessário do código não escrito, tanto do direito de Estado, como do direito internacional,
para um direito público internacional dos homens em geral. Dessa maneira, a paz perpétua, da
qual pode-se aprazer encontrar-se na aproximação contínua somente sob esta condição, é
possível; p. 41. O DCt deve ser limitado às condições da Hospitalidade universal; p. 37.

DIREITO INTERNACIONAL (DH)

Também denominado de coerção legal exterior, é importante nesse processo. E a condição


para que ocorra o DH é que: considerando o cenário das relações internacionais, cada Estado
sendo aceito em sua individualidade e, em ocorrendo que algum Estado individual não esteja
vinculado a leis exteriores, então, surge o estado de natureza no cenário das relações
internacionais. Um Estado independente de leis exteriores lesa outros que lhes faz fronteira
apenas pela ameaça de insegurança que causa (Guerra). Cada Estado ameaçado, em vista de
sua segurança interna, pode e deve exigir do Estado sem lei exterior que entre, com eles, em
uma constituição similar à civil, em que cada um pode ficar seguro de seu direito. Isso seria
uma liga de povos; p. 31. Pela coerção dos outros Estados, o Estado sem lei interna será
levado a uma constituição legal interna, segundo os conceitos de direito; p. 34. Estados que
estão submetidos a leis exteriores estão sob uma coerção comum exterior; p. 33. Uma forma
em que o Estado procura seu direito é o tribunal externo; p. 33. No conceito de direito
internacional enquanto direito para a guerra, nada se pode pensar propriamente (porque seria
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um direito de determinar o que é direito, não segundo leis exteriores, que valem
universalmente limitando a liberdade de cada indivíduo, mas pela força segundo máximas
unilaterais). O direito internacional enquanto direito para a guerra é bem feito para os homens
que estão assim dispostos se se aniquilarem entre si e encontram, portanto, a paz perpétua na
grande cova que recobre, juntamente com seus autores, todas as atrocidades do emprego da
força; p. 36. A ideia do DH pressupõe a separação de muitos Estados vizinhos independentes
uns dos outros, embora uma tal situação seja, em si, já um estado de guerra; este estado
potencial de guerra que o DI não impede, é, contudo, melhor do que a fusão dos Estados
através de uma potência que cresça sobre as outras e que se converta em uma monarquia
universal, porque as leis, com a abrangência aumentada do governo, sofrem danos com sua
pressão sempre maior e um despotismo vazio de alma, depois que extirpou-se os germes do
bem, degenera, ao fim, em anarquia. Este é o anseio de cada Estado (ou de seu chefe
supremo): transpor-se o estado de paz perpetuamente, de modo que ele, sempre que possível,
domine o mundo inteiro. Mas a natureza quer de outra maneira; p. 52.

ESTADO CIVIL

Condição de um Estado onde se admite proceder hostilmente contra um outro Estado quando
este, de fato, agiu hostilmente com o outro primeiramente, lesando-o. Sobre essa medida, qual
seja, a segurança de um Estado X é praticada por outro Estado Y quando este Y abstêm-se de
agir hostilmente com X. Desse modo, cada Estado recebe inteiramente para si sua estrutural
responsabilidade sobre a paz do Estado vizinho, que deve começar na paz interna do Estado
em questão. No Estado Civil-Legal um Estado dá a outro a segurança requerida, pois em
ambos existem leis internas que são coerentes com as leis externas de segurança; p. 23.

ESTADO

Para estabelecer um estado deve-se “ordenar uma multidão de seres racionais, que no todo
exigem leis universais para sua conservação, das quais, porém, cada um está inclinado a
eximir-se em segredo, e estabelecer sua constituição de modo que, embora tentem uns contra
os outros em suas disposições privadas, as contenham uns aos outros de modo que o resultado
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em sua conduta pública seja justamente o mesmo como se não tivessem nenhuma das tais más
disposições”; p. 50-51.

EXEMPLO

Kant escreve que um Estado desvinculado de leis exteriores (ver Direito Internacional), ou
seja, que não participa de uma coerção comum exterior, não tem força legal junto aos demais.
No entanto, esse Estado livre pode ser inserido como participante no Direito Internacional.
Para isso, é importante que “haja um exemplo de que alguma vez um Estado teria sido levado
a desistir de seus propósitos por argumentos armados com testemunhos (intervenção) de
homens tão importantes (referindo-se aos filósofos e diplomatas)”. E de forma a contrastar
com o mal presente na natureza do homem, Kant escreve que os Estados, ao usarem das
palavras dos filósofos e diplomatas, presta homenagem “ao conceito de direito (pelo menos
segundo as palavras)”, o que demonstra que “se encontra no homem uma disposição
originária moral ainda maior, embora atualmente dormente, de se tornar senhor do princípio
mau nele (que ele não pode negar) e esperar (incentivar, com seu exemplo) isto também dos
outros”. O exemplo de adoção por parte de um Estado para com o Direito Internacional
impede que o respeito pelo direito caia em troça: “o direito é a vantagem que a natureza deu
ao mais forte sobre o mais fraco de que este deve obedecer àquele”; p.33. A composição da
Liga da Paz, que mira à conservação e à garantia da liberdade dos Estados através da
federalidade, é uma ideia exequível porque deve estender-se gradualmente sobre todos os
Estados. Em assim feito, tal conduz à paz perpétua. Pois, quando um povo poderoso e
ilustrado consegue formar-se em uma república (que tem de ser, segundo sua natureza,
inclinada à paz perpétua), então esta dá para os outros Estados um centro da união federativa
para juntar-se a ela e, assim garantir o estado de liberdade dos Estados, conforme à ideia do
Direito Internacional, e expandir-se sempre cada vez mais por várias ligas desse tipo; p. 35.

FORMAS DE ESTADO

O Estado (civitas) é dividido em três possibilidades: autocracia, aristocracia e democracia.


Estas formas podem ser divididas da seguinte maneira: (I) A diferença das pessoas que detêm
o poder, quero dizer, a forma de exercer a soberania (forma imperi) de Estado supremo. A)
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Autocracia: onde apenas um, que perfaz a sociedade civil, possui o poder soberano, sendo o
poder o do príncipe. B) Aristocracia: onde alguns ligados entre si, que perfazem a sociedade
civil, possuem o poder soberano, sendo o poder da nobreza. C) Democracia: onde todos
juntos, que perfazem a sociedade civil, possuem o poder soberano, sendo o poder do povo.
(II) Segundo o Modo de Governo do povo por seu chefe, seja quem for. Trata-se da forma de
governo (forma regiminis) e concerne ao modo fundado na constituição (no ato da vontade
geral pelo qual a multidão torna-se um povo) como o Estado faz uso de sua plenitude de poder
e, é a este respeito, republicana ou despótica. A) O republicanismo é o princípio de Estado da
separação do poder executivo (o governo) do legislativo. B) O despotismo é o da execução
autocrática do Estado de leis que ele mesmo propôs, por conseguinte da vontade pública
enquanto ela é manipulada pelo regente como sua vontade privada. (p. 27, 28, 29 e 30). Kant
escreve que interessa mais ao povo o modo de governo (república ou despotismo) do que a
forma de Estado (autocracia, aristocracia e democracia). Ressalta dentro dessa ideia que, se
for para ser conforme o conceito de direito, interessa mais ao povo o modo de governo
republicano, pois lhes pertence o sistema representativo. Kant ressalta que, em não havendo o
modo de governo republicano, a despeito da constituição, ocorrerá o despotismo e a violência.
Nenhuma das repúblicas antigas conheceu a república sem antes ter o despotismo desfarelado
ao longo do tempo através de revoluções violentas do povo; p. 31. Kant defende que a
aristocracia e autocracia são melhores do que a democracia porque: 1. Embora autocracia e
aristocracia sejam imperfeitas, são nelas, pelo menos, possível adotar um modo de governo
conforme o espírito do sistema representativo, como fez Frederico II nos dias de Kant. 2.
Quanto menos o número de pessoal do Estado (número de dirigentes), maior, em
contrapartida, a sua representação, tanto mais concorda com a constituição de Estado com a
possibilidade do republicanismo e; 3. Pode alçar, este governo de poucos, reformas graduais
ate alcançar a república. Ou seja, a república é mais difícil de ser instaurada na democracia do
que na autocracia e aristocracia. Nestas últimas, é mais difícil na aristocracia, porque são
grupos de pessoas; mais fácil na autocracia, porque trata-se somente do regente. Mas é
impossível na democracia alcançar a república se não através de revolução violenta para
atingir a constituição republicana; p. 29. Ver também Formas de Estado e Democracia.
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FORMAS DE GOVERNO

Ou modo de governo, é determinada pela constituição do Estado. Tais formas são o sistema
republicano ou, o sistema despótico. Kant realiza distinção entre tais sistemas. Afirma que
exemplos de bons governos nada provam quanto ao modo de governo. Exemplifica: Tito e
Marco Aurélio foram bons governantes para Roma e, no entanto, deixaram sucessores
péssimos. Situação que não aconteceria em um Estado cuja Constituição teria mecanismos
próprios para evitar uma inadequada sucedância; p. 30 nota de rodapé.

GUERRA

Estado de natureza (status naturalis), que é antes um estado de guerra, isto é, ainda que nem
sempre haja um eclosão de hostilidades, é contudo uma permanente ameaça disso; p. 23. O
Homem (ou povo) no puro estado de natureza tira de mim esta segurança ( Estado Civil) e me
lesa já por esse mesmo estado, na medida em que está ao meu lado, ainda que não de fato
(facto), pela ausência de leis de seu Estado, pelo que sou continuamente ameaçado por ele, e
posso força-lo ou a entrar comigo em um Estado comum legal ou a retirar-se de minha
vizinhança; p. 23, na nota de rodapé. Kant escreve que “em uma constituição em que o súdito
não é cidadão, que, portanto, não é republicana (p. 27)”, a questão “se deve ou não ocorrer
guerra” (p. 26) “é a coisa sobre a qual (o governante) menos se hesita no mundo, porque o
chefe, não sendo membro do Estado, mas proprietário do Estado, não tem o mínimo prejuízo
por causa da guerra à sua mesa, à sua caçada, a seus castelos de campo, festas da corte etc., e
pode, portanto, decidir sobre a guerra por causas insignificantes como uma espécie de jogo de
recreação e, por conta de boas maneiras, deixar a justificação do conflito indiferentemente ao
corpo diplomático, que está todo tempo pronto para isso”; p. 27. Kant diz que é impossível na
democracia alcançar a república se não através de revolução violenta para atingir a
constituição republicana; p. 29. Os Estados podem ser considerados como homens
individuais; estes, em estando no estado de natureza, tal significa a ausência de leis que os une
a um estado jurídico. Esse mesmo raciocínio serve para os Estados se considera cada qual
individualmente diante do cenário das relações internacionais. Um Estado que não seja adepto
de leis exteriores é como um homem no estado de natureza. Na independência de leis
exteriores um Estado lesa o seu vizinho apenas por fazer fronteira, por lhe ameaçar a
segurança interna; p. 31 – ver Direito Internacional. Nós “olhamos com profundo desprezo
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o apego dos selvagens à sua liberdade sem lei de preferir brigar incessantemente a submeter-
se a uma coerção legal a ser constituída por eles mesmos, por conseguinte preferindo a
liberdade insensata à racional, e os consideramos estado bruto, grosseria e degradação
animalesca da humanidade (...) os povos civilizados (cada um unido em um Estado) teriam de
apressar-se a sair o quanto antes de um estado tão abjeto”; p. 32. No entanto, afirma Kant,
cada Estado coloca antes sua majestade (pois majestade do povo é uma expressão absurda)
precisamente em não estar submetido a nenhuma coerção legal exterior, e o esplendor de seu
chefe consiste em que a ele, sem que possa incorrer ele mesmo em perigo, muitos milhares
estão às ordens para deixar sacrificar-se por uma coisa que não lhes diz respeito; p. 32. A
diferença entre os selvagens europeus e americanos consiste principalmente em que, se muitas
tribos dos últimos foram inteiramente devoradas por seus inimigos, os primeiros sabem usar
melhor seus derrotados do que degluti-los e de preferência sabem aumentar mediante o
número de seus súditos, por conseguinte também a quantidade de instrumentos para guerras
ainda mais vastas; p. 32. Kant, depois de afirmar que o mal se revela na relação livre entre
Estados, escreve que “é de se admirar que a palavra direito ainda não tenha sido inteiramente
relegada em política de guerra como pedante [...] pois os Estados ainda invoca” a filosofia e a
diplomacia (meros tristes consoladores) que, entretanto, não tem “força legal e tampouco
possa ter sem que haja um exemplo; p. 33. Uma forma de procurar seu direito é pela guerra,
através da vitória sobre o oponente. A vitória na guerra é direito não julgado. Porque ela foi
adquirida, primeiramente pela força; em seguida, pelo tratado de paz, onde se faz cessar a
guerra em curso; p. 34. Estado de guerra entre nações que não pode ser imediatamente injusto,
porque nele cada um é juiz de sua própria causa; p. 34. Os Estados procuram seu direito pela
guerra. Entre Estados beligerantes, não vale o que vale para, segundo o direito natural, para
homens em estado sem lei (ver Direito Internacional). Porém, a razão, de cima de seu trono
do poder legislativo moralmente supremo, condena absolutamente a guerra como
procedimento de direito e, torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato, que,
porém, não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si (ver Liga
dos Povos); p. 34.

HOSPITALIDADE

Direito de hospitalidade significa o direito de um estrangeiro, por conta de sua chegada à terra
de um outro, de não ser tratado hostilmente por este. Este pode rejeitá-lo, se isso puder ocorrer
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sem sua ruína; enquanto, porém, comportar-se pacificamente, não pode trata-lo hostilmente.
Não há nenhum direito de hospitalidade que possa reivindicar (para o que seria requerido um
contrato caritativo particular para fazê-lo hóspede durante certo tempo), mas um direito de
visita, que assiste a todos os homens, de oferecer-se à sociedade em virtude do direito de
posse comunitária da superfície da Terra, sobre a qual, enquanto esférica não podem
dispersar-se ao infinito, mas tem finalmente de tolerar-se uns aos outros, e ninguém tem mais
direito do que outrem de estar em um lugar da Terra; p. 38. Os indivíduos podem utilizarem-
se do direito de superfície, que compete ao gênero humano comunitariamente, para o
comércio possível; p. 38. A inospitalidade é contrária ao direito natural; p. 38. O direito de
hospitalidade é a autorização dos recém-chegados estrangeiros de procurar um intercâmbio
com os antigos habitantes; p. 38. Desse modo podem as partes distantes do mundo entrar
pacificamente em relações umas com as outras, e por fim tornam-se publicamente legais e
assim podem trazer o gênero humano finalmente sempre mais próximo de uma constituição
cosmopolita; p. 38.

INSOCIAL SOCIABILIDADE

Dupla faceta da condição humana, também chamada por Kant de ‘concórdia pela discórdia’
(p. 42). Argumenta que, por meio desta, há garantia para a paz perpétua, por causa da
natureza (natura daedada rerum). A natureza, em cujo curso mecânico transparece a
finalidade de fazer prosperar a concórdia pela discórdia dos homens, mesmo contra a vontade
destes; p. 42. Kant escreve que esta finalidade no curso do mundo obedece a uma
providência; p. 44. A própria guerra, (p. 48) não precisa de nenhum motivo particular, mas
parece estar enxertada na natureza humana e até como algo nobre, para o qual o homem é
animado pelo impulso de honra, sem móbiles de interesse próprio, de tal modo que a coragem
guerreira (tanto dos selvagens americanos como dos europeus nos tempos cavalheirescos) é
julgada ser de grande valor imediato não somente quando há guerra (como seria normal), mas
também se julga de grande valor que haja guerra, e ela é frequentemente iniciada
simplesmente para mostrar a coragem, por conseguinte é posto na guerra em si mesma uma
dignidade interna, e até filósofos fizeram-lhe também elogio como um certo enobrecimento da
humanidade, esquecidos do dito daquele grego: “a guerra é má porque faz mais pessoas más
do que elimina”. Eis o suficiente quanto ao que a natureza faz por seu próprio fim no que
respeita ao gênero humano como uma espécie animal; p. 48-49. Se um povo não fosse
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forçado também pela divergência interna a submeter-se à coerção de leis públicas, então, a
guerra externa o faria, na medida em que, segundo a disposição da natureza antes mencionada
(ver natureza), cada povo encontra à sua frente um outro povo que o incomoda como
vizinho, contra quem ele tem de instituir-se internamente em um Estado para, como potência,
estar preparado contra este; p. 50. Estabelecer um Estado é um problema que tem solução via
o mecanismo da natureza. Desta, é exigida a tarefa de conhecer como se pode utilizar o
mecanismo nos homens para dirigir de modo tal o conflito das disposições hostis num povo
que eles mesmos forcem uns aos outros a submeter-se a leis de coerção e assim tenham de
conduzir ao estado de paz, no qual as leis tem força. Pode-se ver isso também nos Estados
existentes, ainda muito incompletamente organizados, que já se aproximam muito, na conduta
exterior, àquilo que ideia de direito prescreve, embora o âmago da moralidade não seja
seguramente a causa disso (como, pois, também não se deve esperar dela a boa constituição
de Estado, mas antes, inversamente, da última é de se esperar primeiramente a boa formação
moral de um povo). Por conseguinte, o mecanismo da natureza pelas inclinações egoístas, que
naturalmente atuam contrapostas exteriormente, pode ser usado pela razão como um meio de
criar espaço ao seu próprio fim, a prescrição jurídica, e mediante isso também, no quanto
depende do próprio Estado, promover e assegurar a paz interna tanto quanto a externa. O que,
portanto, significa: a natureza quer irresistivelmente que o direito por fim tenha o poder
supremo. O que se descuidou aqui de fazer, isto se faz por si mesmo no fim, ainda que com
muito inconveniente. – “Quem dobra muito forte o junco o quebra; e quem muito quer nada
quer”, Bouterwek; p. 51 e 52.

LIGA DOS POVOS (LP)

Quando os Estados, em vista da segurança, exige-se reciprocamente que estejam em uma


constituição similar a civil, em que cada um pode ficar seguro de seu direito; p. 31. O estado
de paz é determinado pela razão como dever imediato e, tal somente pode ser instituído
através de um contrato de povos entre si; p. 34. Trata-se de uma liga do tipo especial, que se
pode denominar liga da paz (foedus pacificum) que tem por meta por fim a todas as guerras
para sempre, necessariamente distinta do tratado de paz (pactum pacis). Esta Liga não visa a
nenhuma aquisição de alguma potência de Estado, mas meramente à conservação e à garantia
da liberdade de um Estado para si mesmo e ao mesmo tempo para outros Estados aliados, sem
que estes, porém, por isso devam ser submetidos (como homens no estado de natureza) a leis
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públicas e a uma coerção sobre elas. Pode-se representar a exequibilidade (realidade objetiva)
dessa ideia da federalidade, que deve estender-se gradualmente (ver Exemplo) sobre todos os
Estados, conduzindo assim à paz perpétua; p. 35. Reconhecer o poder legislativo supremo que
assegure ao Estado o seu direito e, ao qual, esse mesmo Estado assegura o de outro Estado,
funda a confiança do outro no meu direito (concomitantemente, funda minha confiança no
direito do outro). Assim se funda o livre federalismo, que a razão liga necessariamente ao
conceito de direito internacional; p. 35. Para os Estados, em relação uns com os outros, não
pode haver, segundo a razão, outro meio de sair do estado sem leis, que encerra mera guerra, a
não ser que eles, exatamente como homens individuais, desistam de sua liberdade selvagem
(em lei), consintam a leis públicas de coerção e assim formem um (certamente sempre
crescente) Estado dos povos (civitas gentium), que por fim viria a compreender todos os
povos da Terra; p. 36.

MAL

A maldade da natureza humana se faz presente, ou se revela, na relação livre dos povos (ao
passo que se dissimula muito no estado civil e legal pela coerção do governo) (ver Guerra); p.
32. Um Estado, ao realizar o exemplo de desistir de seus propósitos bélicos por causa do
testemunho e interferência da filosofia e diplomacia, oferece aos Estados desvinculados de
leis exteriores o incentivo necessário para participarem do direito. Essa homenagem que cada
Estado presta ao conceito de direito (pelo menos segundo as palavras), demonstra que se
encontra no homem uma disposição originaria moral de se tornar senhor do princípio mau
nele (que ele não pode negar); p.33.

MORAL

A moral é já em si mesma uma prática no sentido objetivo, como conjunto de leis que
ordenam incondicionalmente, segundo as quais devemos agir, e é evidente absurdo, depois de
se ter concedido a este conceito de dever sua autoridade, ainda querer dizer, porém, não se
pode obedecer; p.57.
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NÃO-CIDADÃO

Ou, súdito, é aquele integrante de uma sociedade cuja constituição não é republicana e,
consequentemente, este tal integrante não tem o direito de ter consultado o seu consentimento
se o Estado “deve ou não (escolher pela) guerra” (p. 26).

NATUREZA

A natureza (natura daedada rerum), que Kant chama de grande artista (p. 42). O uso do termo
natureza (p. 44) é também – quando, como aqui, somente tem a ver com teoria (não com a
religião) – mais conveniente para as limitações da (p. 45) razão humana (como a que se tem
de manter, com respeito à relação dos efeitos às suas causas, dentro dos limites da experiência
possível) e mais modesta do que a expressão de uma providência cognoscível por nós, com a
qual se colocariam temerariamente asas icárias para aproximar-se do segredo de sua intenção
insondável; p. 45. A natureza, em cujo curso mecânico transparece a finalidade de fazer
prosperar a concórdia pela discórdia dos homens, mesmo contra a vontade destes; p. 42. A
natureza (p. 45) dispôs, provisoriamente, as pessoas que agem em seu grande palco, que por
fim fez tornar-se necessária sua segurança de paz, e primeiramente o modo como ela a
fornece. Primeiro, a natureza cuidou que os homens pudessem viver em todas as regiões da
Terra. Em seguida, os dispersou para todos os lugares através da guerra, para povoá-los. Em
terceiro, também pela guerra, obrigou-os a entrar em relações mais ou menos legais. À
medida que (p.47) a natureza cuidou que os homens pudessem viver em todos os lugares da
Terra, ela cuidou que eles também devessem viver em todos os lugares da Terra; mesmo
contra a inclinação de sair e, sem que este imperativo da natureza pressupusesse ao mesmo
tempo um conceito de dever que se associasse a ela mediante uma lei moral. A natureza
escolheu a guerra para isso; p. 47. A garantia da intenção de paz perpétua é assegurada pela
natureza nos seguintes termos: É verdade que no homem, sua razão lhe impõe como dever a
paz para o favorecimento de sua intenção moral. O homem devia fazer, segundo leis da
liberdade, essa paz, mas não faz. Essa paz não pode permanecer na intenção, embora seja
necessário este princípio de intenção para sua efetivação. Não sendo suficiente a intenção do
homem, interveem a natureza, para assegurar a paz perpétua ao homem, que será realizada
pelo homem, mas através de uma coerção da natureza sem prejuízo de sua liberdade, e isso
segundo as três relações do direito público, a saber: direito de Estado, direito Internacional e,
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direito cosmopolita; p. 49. Quando (Kant) fala natureza, quer dizer “ela quer que isso ou
aquilo aconteça, isto significa não tanto que ela nos coloca um dever de fazê-lo (pois isso
somente pode a razão prática livre de coerção), mas que ela mesma faz, queiramos ou não
(fata volentem ducunt, nolentem trahunt) “o destino conduz quem aceita e arrasta quem não
aceita”; p. 49. A natureza vem ao auxílio da vontade geral fundada na razão, venerada, mas
impotente na prática, e precisamente mediante aquelas inclinações egoístas (ver insocial
sociabilidade), de modo que compete a uma boa organização do Estado somente (o que
contudo está na faculdade dos homens) que um dirija suas forças contra o outro, de modo que
umas detenham as outras em seu efeito destruidor ou as suprimam, de sorte que o resultado
para a razão redunda como se não estivessem presentes, e assim o homem é coagido a ser,
embora não um homem moralmente bom, contudo um bom cidadão; p. 50. Da natureza é
exigida a tarefa de conhecer como se pode utilizar o mecanismo (da insocial sociabilidade)
nos homens para dirigir de modo tal o conflito das disposições hostis num povo que eles
mesmos forcem uns aos outros a submeter-se a leis de coerção e assim tenham de conduzir ao
estado de paz, no qual as leis tem força; p.51 e 52. O mecanismo da natureza pelas
inclinações egoístas, que naturalmente atuam contrapostas exteriormente, pode ser usado pela
razão como um meio de criar espaço ao seu próprio fim, a prescrição jurídica, e mediante isso
também, no quanto depende do próprio Estado, promover e assegurar a paz interna tanto
quanto a externa. O que, portanto, significa: a natureza quer irresistivelmente que o direito por
fim tenha o poder supremo. O que se descuidou aqui de fazer, isto se faz por si mesmo no fim,
ainda que com muito inconveniente. – “Quem dobra muito forte o junco o quebra; e quem
muito quer nada quer”, Bouterwek; p. 51 e 52. O anseio do Estado (ou de seu soberano) é o de
transpor-se ao estado de paz permanente, de modo que ele, sempre que possível, domine o
mundo inteiro (ver Direito Internacional para entender essa frase). Mas a natureza quer de
outra maneira. – Ela serve-se de dois meios para deter os povos da fusão e separá-los: a
diversidade das línguas e das religiões, que precisamente carrega consigo a propensão ao ódio
recíproco e pretexto para a guerra, mas conduz, pela cultura crescente e aproximação gradual
dos homens, à maior harmonia em princípios, para a concordância em uma paz que não seja
engendrada e assegurada, como despotismo (no cemitério da liberdade), pelo enfraquecimento
de todas as forças, mas por seu equilíbrio na sua mais vívida emulação; p. 52 e 53. A natureza
separa sabiamente os povos, esta que também é vontade geral dos povos, segundo os
fundamentos do Direito Internacional; a natureza, por outro lado, mediante proveito pessoal
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recíproco (relação dos povos entre si) do comércio; p. 53. Ver também Insocial
Sociabilidade e Providência.

PAZ

1) Um estado de Paz tem de ser instituído, pois a cessação das hostilidades ainda não é
garantia de paz e, a menos que ela seja obtida de um vizinho a outro (o que, porém, pode
ocorrer somente em um estado legal), pode tratar o outro, a quem exorta para tal, como
inimigo; p. 23. A paz é a perspectiva da Constituição Republicana; p. 26. A garantia da
intenção de paz perpétua é assegurada pela natureza nos seguintes termos: É verdade que no
homem, sua razão lhe impõe como dever a paz para o favorecimento de sua intenção moral. O
homem devia fazer, segundo leis da liberdade, essa paz, mas não faz. Essa paz não pode
permanecer na intenção, embora seja necessário este princípio de intenção para sua
efetivação. Não sendo suficiente a intenção do homem, interveem a natureza, para assegurar a
paz perpétua ao homem, que será realizada pelo homem, mas através de uma coerção da
natureza sem prejuízo de sua liberdade, e isso segundo as três relações do direito público, a
saber: direito de Estado, direito Internacional e, direito cosmopolita; p. 49. O mecanismo da
natureza pelas inclinações egoístas (ver insocial sociabilidade), que naturalmente atuam
contrapostas exteriormente, pode ser usado pela razão como um meio de criar espaço ao seu
próprio fim, a prescrição jurídica, e mediante isso também, no quanto depende do próprio
Estado, promover e assegurar a paz interna tanto quanto a externa. O que, portanto, significa:
a natureza quer irresistivelmente que o direito por fim tenha o poder supremo; p. 51 e 52. a
natureza garante a paz perpétua pelo mecanismo das próprias inclinações humanas;
certamente com uma segurança que não é bastante para pressagiar (teoricamente) o futuro,
mas é suficiente na intenção prática e cria o dever de trabalhar para este fim (não
simplesmente quimérico); p. 54.

PROVIDÊNCIA

Consideração de sua finalidade no curso do mundo como sabedoria profunda de uma causa
superior dirigida ao fim último do gênero humano e predeterminando o curso do mundo, que
nós propriamente não podemos conhecer nessas obras de arte da natureza nem sequer daí
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inferir, mas (como em toda relação da forma das coisas com os fins em geral) somente
podemos e temos de introduzir em pensamento para nos fazer um conceito de sua
possibilidade segundo a analogia das obras de arte humanas. Representar-se, porem, sua
relação e acordo com o fim que a razão nos prescreve imediatamente (o fim moral) é uma
ideia que, em verdade, é transcendente na intenção teórica, na prática, porém (por exemplo,
com respeito ao conceito de dever de paz perpétua, de utilizar pra isto aquele mecanismo da
natureza [ver Insocial Sociabilidade]) é dogmática e bem-fundada segundo sua realidade; p.
44. A finalidade na natureza é exemplificada. Kant, depois de apresentar as três disposições
provisórias das pessoas (ver Natureza), escreve que (p. 45) é “digno de admiração que, nos
desertos frios, junto ao mar glacial, ainda cresça o musgo, que a rena desenterra de debaixo da
neve, para ser ela mesma alimento, ou também veículo do ostíaco ou samoiedo, ou que os
desertos salgados de areia contudo ainda contenham o camelo, que parece como que feito para
sua travessia, de modo a não deixa-los inutilizados. Porém, o fim mostra-se ainda mais claro
quando se percebe como, além dos animais de pele junto às margens do mar glacial, ainda
focas, morsas e baleias fornecem aos habitantes de lá alimento de sua carne e combustível
com seu óleo. Mas suscita sobretudo admiração a previdência da natureza através da madeira
flutuante que ela traz (sem que se saiba exatamente de onde vem) a essas regiões sem
vegetação, e sem esse material não poderiam nem fazer seus veículos e armas, nem erguer
suas cabanas; eles têm assim o bastante a fazer com a luta contra os animais para poder viver
pacificamente entre si. O que, porém, os levou para lá não foi presumivelmente senão a
guerra. O primeiro instrumento de guerra, porém, que o homem, entre todos os animais,
aprendeu a domar e domesticar, nos tempos de povoação da Terra, foi o cavalo [...]. Assim
como a arte de cultivar certas gramíneas denominadas cereais, agora não mais conhecidas por
nós em sua constituição primitiva, da mesma forma a multiplicação e o aprimoramento dos
tipos frutíferos mediante transplante e enxerto [...] só puderam aparecer em Estados já
estabelecidos, onde existia propriedade assegurada da terra – depois que os homens, antes na
liberdade sem lei, passaram, da vida da caça, pesca e pastoreio à vida agrícola - , então foram
descobertos o sal e o ferro, talvez os primeiros artigos largamente procurados em um
comércio de diferentes povos, pelo que os povos foram levados pela primeira vez a uma
relação pacífica uns com os outros e, assim, à compreensão da comunidade uns com os
outros, mesmo com as mais distantes. Quando (Kant) fala natureza, nos termos da finalidade
irresistível, quer dizer “ela quer que isso ou aquilo aconteça, isto significa não tanto que ela
nos coloca um dever de fazê-lo (pois isso somente pode a razão prática livre de coerção), mas
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que ela mesma faz, queiramos ou não (fata volentem ducunt, nolentem trahunt) “o destino
conduz quem aceita e arrasta quem não aceita”; p. 49. Ver também Natureza e Insocial
Sociabilidade.

TRATADO DE PAZ (TP)

O Tratado de paz (pactum pacis) que põe fim a guerra em curso, mas não ao estado de guerra
(de sempre encontrar um novo pretexto). Simplesmente procura por fim a uma guerra; p. 34.

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