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Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde

Coordenação de Saúde Mental


Assessoria de Matriciamento da Coordenação de Saúde Mental

Sobre o Início do Matriciamento em


Saúde Mental na Cidade do Rio de Janeiro:
Reflexões, Relatos e Recomendações

Daniela Albrecht Marques Coelho


Daniela Costa Bursztyn
Luis Eduardo Granato Raulino
Sandra Regina Soares Arôca

Dezembro
2012
FICHA TÉCNICA Sumário
Coordenação Geral
Pilar Belmonte Apresentação...................................................................................................................................... 5
Alexander Ramalho

Coordenação Técnica Introdução.......................................................................................................................................... 6


Daniela Albrecht Marques Coelho Luis Eduardo Granato Raulino
Daniela Costa Bursztyn Sandra Regina Soares Arôca 1. A chegada da ESF em seu território: o compartilhamento de res-
ponsabilidades entre os Serviços de Saúde Mental e os Serviços
Autores
Daniela Albrecht Marques Coelho Luis Eduardo Granato Raulino de Atenção Primária................................................................................................................ 8
Daniela Costa Bursztyn Sandra Regina Soares Arôca
2. O apoio matricial em Saúde Mental: Modalidades e especificidades
Revisão Final do cuidado compartilhado.............................................................................................. 10
Daniela Costa Bursztyn
2.1. O CAPS no apoio matricial à Atenção Primária.............................................. 10
Pilar Belmonte
Sandra Regina Soares Arôca
2.2. Emergências em Saúde Mental na ESF.................................................................... 12
2.3. Unidades mistas (tipo B) e apoio matricial......................................................... 14
Relatos de Experiências – Autores
Adriana Almeida Marcello Roriz de Queiroz 3. O apoio matricial do Núcleo de Apoio à Saúde da Família................... 17
Aline Leorde Márcia Cristina Bezerra Tavares 3.1. O matriciamento em Saúde Mental no NASF....................................................... 18
Ana Adler Vainer Maria José Costa do Lago 3.2. Impasses frequentes no processo de trabalho do NASF ....................... 20
Angelica Vilarim Patrícia Schmid
Berenice Ribeiro
Patrícia Vieira de Matos Considerações Finais...................................................................................................................... 25
Carolina Cardoso Manso
Renata da Silva Miranda
Claudia Gomes de Paula Silva
Edimilson Duarte Sandra Fortes Referências........................................................................................................................................... 26
Fátima Virginia Siqueira de Menezes Silva Thiago Monteiro Pithon
Joana Thiesen Vera Helena Juliano Pereira 4. Relatos de Experiências......................................................................................................... 28
Luara Fernandes França Lima Wagner Monteiro Erlanger
AP 1.0..................................................................................................................................................... 28
PROJETO GRÁFICO AP 2.1..................................................................................................................................................... 30
Assessoria de Comunicação Social – SMSDC/RJ AP 2.2..................................................................................................................................................... 36
AP 3.1..................................................................................................................................................... 40
Imagem da Capa: Alexandre Rajão
AP 3.2..................................................................................................................................................... 44
Fotografia: Flávia Corpas
Imagem cedida pelo Projeto Cartografias da Criação.
AP 3.3..................................................................................................................................................... 48
AP 5.1..................................................................................................................................................... 50
Agradecimentos AP 5.2..................................................................................................................................................... 53
Ana Carla Silva, Ana Cristina Felisberto, Fernando Ramos, Sandra Fortes, Naly Almeida, Marcello Roriz de Quei-
roz, Paula Brandrão, Roberta de Sá e a todos da equipe da Coordenação de Saúde da Família da SMSDC/RJ.
Aos instrutores do Curso BABEL: Sandra Fortes, Naly Almeida, Ana Cristina Felisberto, Fátima Virgínia
Siqueira de Menezes Silva, Berenice Ribeiro, Luiz Fernando Chazan, Thiago Monteiro Phiton, Paulo Cardoso,
Karen Athie, Luciana Oliveira, Susan Gibson, Nair Saraiva de Almeida, Ângela Machado, Alice Menezes, e às
colaboradoras Katrina Souza Pereira e Eloá Sá Borges.
Aos integrantes do GT NASF Saúde Mental: Claudia de Paula, Thiago M. Pithon, Joana Thiesen, Berenice Ribeiro,
Fátima Virgínia S. M. Silva, Carolina Manso, Vivian Laytynher Vasconcelos, Aline Leorde, Ricardo Moncalvo.
Aos integrantes do GT NASF organizado pela Coordenação de Saúde da Família.
Aos participantes das Oficinas Bimensais de Matriciamento.
A todos os matriciadores de Saúde Mental da Cidade do Rio de Janeiro.
Apresentação

A reforma psiquiátrica brasileira vem avançando na consolidação de espaços de cuidado fora dos hos-
pitais psiquiátricos, como os Centros de Atenção Psicossocial. Contudo, a ação do trabalho comunitário
ainda é um desafio para os profissionais de saúde mental. Fazer rede é uma ação pró-ativa das equipes
de saúde mental em estar no território juntamente com outros profissionais, atendendo, mediando,
acompanhando, discutindo o caso clínico, ou seja, matriciando.
O matriciamento da saúde mental no Rio de Janeiro teve seus alicerces forjados há cerca de 10 anos,
quando iniciaram na cidade os fóruns de saúde mental por Área Programática (AP). Como a cidade do
Rio é dividida por 10 distritos sanitários denominados APs, que são bem diversos entre si em relação a
equipamentos de saúde e necessidades da população, foram criados fóruns de saúde mental que até
hoje têm o objetivo de agregar atores inter e intrassetoriais, a fim de pensar estratégias de cuidado para
a região. Os fóruns se tornaram potentes instrumentos de parcerias entre os profissionais e possibilita-
ram a implantação de equipamentos e fluxos de trabalho.
Uma das ações consequente dos fóruns foi a implantação da supervisão territorial, atividade realizada
pelo supervisor do CAPS, inicialmente para discussão clínica de casos com os profissionais dos ambu-
latórios de saúde mental, e posteriormente ampliada para discussão de casos com profissionais da ESF,
Educação e Assistência Social. Na época ainda não se tinha a noção de matriciamento como já compre-
endida hoje. Contudo, nas APs 3.1 e 4.0 foi criado, por um grupo de profissionais dos CAPS e ESF, um
espaço para discussão de casos de saúde mental que estavam sendo detectados pela atenção básica, e
sendo essa ação posteriormente ampliada para as APs 5.1 e 5.2.
Paralelamente à construção desse espaço, foi criada, em 2007, pela Coordenação de Saúde Mental, a fi-
gura do ‘articulador de área’, que tinha como função tecer a rede nos microterritórios dentro de cada AP,
propondo ações de formação, discussão de fluxos, acompanhamento de serviços e de casos clínicos. O
articulador era a ponte entre as ações propostas pela Coordenação de Saúde Mental e os profissionais nos
seus respectivos territórios. Esse trabalho proporcionou um fortalecimento das ações de saúde mental
nas APs, porém criou um distanciamento da saúde mental das demais ações de saúde realizadas nas áreas.
Com a expansão da cobertura da Estratégia de Saúde da Família – ESF – iniciada em 2009, rapidamente
a capilaridade de ações de saúde nas comunidades do Rio de Janeiro, principalmente na Zona Oeste,
proporcionou a implantação de Núcleos de Apoio a Saúde da Família – NASFs – visto que os casos de
saúde mental de menor complexidade rapidamente começaram a ser identificados pela ESF e a deman-
da por atendimento psiquiátrico ou psicoterápico se intensificou. As discussões sobre o trabalho dos
NASFs e a lógica do matriciamento logo tomaram espaço nos fóruns de saúde mental da cidade e então,
no início de 2011, a Coordenação de Saúde Mental decide criar a ‘assessoria NASF’ que, posteriormente,
se tornou ‘assessoria de matriciamento’.
O conhecimento adquirido pela saúde mental em nosso município durante os últimos 10 anos possibili-
tou uma forte discussão e a rápida apropriação da lógica do matricimento pela rede de saúde mental, que
permitiu sua expansão nos últimos dois anos. A experiência desse trabalho está materializada neste livro,
que conta um pouco dessa história, da vivência de diferentes áreas programáticas de nosso município,
fruto de grande empenho da Assessoria de Matriciamento e, naturalmente, apenas possível pela dedica-
ção e compromisso de todos os profissionais de saúde que compõem a rede da cidade do Rio de Janeiro.

Pilar Belmonte
Coordenadora de Saúde Mental da Cidade do Rio de Janeiro
Alexander Ramalho
Gerente de Atenção Psicossocial da Coordenação de Saúde Mental
5
Introdução Ao longo dos anos de 2008 a 2010, a Coordenação de Saúde Mental acompanhou e estimulou a par-
ticipação dos profissionais de saúde mental no BABEL – Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental
O campo da Saúde Mental vem passando por grandes transformações, desde o final dos anos 70, quan- na Atenção Primária, introduzido na rede de saúde do Rio de Janeiro através de um convênio entre a
do trabalhadores, familiares e usuários dos serviços de Saúde Mental começaram a denunciar a vio- SMSDC/RJ e o Ministério da Saúde. Dando continuidade ao objetivo do curso de sensibilizar as equipes
lência e as condições degradantes dos hospitais psiquiátricos, e a afirmar que os cuidados em saúde da ESF em relação à prática do apoio matricial em Saúde Mental, a Coordenação de Saúde Mental as-
mental deveriam acontecer próximos à família e a outros vínculos importantes, no contexto de sua sumiu a sua organização no período de 2011 a 2012. Atualmente, treze turmas foram capacitadas, cada
comunidade. O movimento da Luta Antimanicomial e o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira co- uma composta por cerca de 40 participantes, sendo estes profissionais de Saúde Mental dos NASF, CAPS
meçaram a produzir transformações nos modos de cuidar e de se relacionar com a loucura. A exclusão e ambulatórios, além de médicos e enfermeiros das equipes da ESF. Com efeito, notamos que os parti-
e o confinamento foram substituídos pela circulação na cidade e pela garantia do convívio, entendidos cipantes puderam se apropriar de uma série de ferramentas indispensáveis para o trabalho em equipe,
como elementos fundamentais para a produção da saúde mental. produzindo uma nova configuração da rede de cuidados em Saúde Mental.

Essa nova direção é incorporada às políticas públicas através da aprovação de inúmeras leis e regula- Sabemos que todo momento de transição envolve uma série de dificuldades, como a compreensão
mentações e, aos poucos, passou a se consolidar como uma nova Política Nacional de Saúde Mental. de novos modelos a partir da mudança de paradigmas, a revisão dos atuais modos de funcionamento
Desde então, temos avançado na direção de construir uma nova forma de cuidado para o sofrimento e de reorganização do processo de trabalho, entre tantas outras. No intuito de auxiliar os profissionais
mental, assim como novas formas de encontro entre a loucura e a cidade. Com a redução do número e os serviços da rede no decorrer deste processo de transição de modelo de atenção em saúde e de
de leitos nos hospitais psiquiátricos, os recursos devem ser redirecionados para uma rede territorial e reorganização dos modos de cuidado, a Coordenação de Saúde Mental desenvolveu este conjunto de
substitutiva de atenção psicossocial que conta com uma série de ações e de serviços de saúde mental1, reflexões, recomendações e relatos que se apoiam em um modelo de atenção baseado no cuidado
como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os ambulatórios de Saúde Mental, os Serviços Resi- compartilhado entre diferentes níveis de atenção e na corresponsabilização da coordenação do cui-
denciais Terapêuticos, as Cooperativas de Trabalho, os Centros de Cultura e de Convivência e outras dado. Após os últimos dois anos de trabalho com a rede, registramos nesta publicação nossas consi-
políticas intersetoriais, o Programa de Volta pra Casa, entre tantos outros. Atualmente, a Atenção Primá- derações sobre este processo vivenciado em parceria com diversos profissionais do campo da saúde
ria em Saúde (APS), através da Estratégia de Saúde da Família (ESF), também constitui um dispositivo pública. Esperamos que esta publicação se torne uma ferramenta útil para o prosseguimento das ações
importante da rede de cuidados em saúde mental no qual o apoio matricial assume um papel funda- de matriciamento em saúde mental na cidade do Rio de Janeiro.
mental ao consolidar a ESF como um ponto desta rede. Na primeira parte, apresentaremos algumas reflexões sobre o momento de chegada de uma equipe de
A expansão de cobertura da ESF no Rio de Janeiro implica uma redefinição das diretrizes nos cuidados Saúde da Família em um território, assinalando a mudança produzida pela ESF em relação à lógica do
em saúde e uma reorganização dos equipamentos de saúde existentes no território. A Saúde da Família cuidado e o efeito de reordenamento da assistência em saúde instaurado na rede de serviços públicos.
representa hoje para o Ministério da Saúde uma estratégia de reorientação estrutural do modelo as- Em seguida, abordaremos as diferentes modalidades de organização do apoio matricial e as especifici-
sistencial em saúde, consolidada a partir da implantação de equipes multiprofissionais que se respon- dades envolvidas em cada uma destas. Os tipos de apoio matricial serão diferenciados, baseados nos
sabilizam pelo acompanhamento de um número definido de famílias moradoras de um determinado diferentes dispositivos de onde pode partir o suporte às equipes de Saúde da Família: das equipes dos
território. A atuação dessas equipes abrange um conjunto de ações que vão além da assistência médi- Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II e III, CAPSi e CAPSad), dos ambulatórios de saúde mental e
ca, partindo do reconhecimento das necessidades da população e do território, da construção de um dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF). Na segunda parte, trataremos do apoio matricial a
vínculo entre moradores e profissionais e de um contato permanente com a comunidade. Com foco na partir dos CAPS e dos ambulatórios e, na terceira, exploraremos o matriciamento realizado pelo NASF.
promoção da saúde e na participação comunitária, a ESF deve conseguir solucionar os problemas mais Na quarta e última parte, a palavra será dada, exclusivamente, aos profissionais matriciadores e gestores
comuns e mais frequentes na saúde de sua clientela, definindo, ainda, o melhor momento e local para locais que apresentarão, através de seus breves relatos, as experiências adquiridas ao longo deste pro-
o encaminhamento dos casos que exigem atendimento especializado. cesso de implantação do trabalho de matriciamento em saúde mental na cidade.

Em sintonia com o processo de expansão da Atenção Primária na cidade2, a Coordenação de Saúde


Mental (CSM/SMSDC-RJ) criou, no início de 2011, a Assessoria de Matriciamento que passou a se dedi- Desejamos a todos uma boa leitura!
car ao acompanhamento das ações de apoio matricial desenvolvidas na rede de atenção psicossocial
e à construção de uma direção de trabalho para o matriciamento em saúde mental. Essa construção se
desenvolveu, desde o início, de modo compartilhado com os profissionais matriciadores e com a gestão
no nível local, através de encontros regulares e de uma interlocução constante acerca dos mais diversos
impasses envolvidos na construção de um novo modo de cuidado em saúde.

1
Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, Portaria GM 52 de 20 de janeiro de 2004.
2
A expansão das Clínicas de Família na rede municipal segue uma política de âmbito nacional, que prevê a ampliação da
assistência em saúde de base comunitária nos variados municípios e Estados do país. Na cidade do Rio de Janeiro, a proposta
de expandir de 2% para 60% a cobertura de saúde da família, no período de 2009 a 2016, foi tomada como prioridade no atual
governo municipal, tendo alcançado, no primeiro semestre de 2012, uma cobertura aproximada ao percentual de 35%.
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1. A chegada da ESF em seu território permitindo que as situações de perfil ambulatorial – que se encontram, por exemplo, nos CAPS – pos-
sam ser redirecionadas para os ambulatórios de saúde mental. Situações de maior complexidade que
O compartilhamento de responsabilidades entre os Serviços de Saú- venham a ser identificadas pelas equipes de Saúde da Família, de preferência com o apoio matricial, po-
dem, por sua vez, ser mais facilmente discutidas e encaminhadas para os ambulatórios e para os CAPS,
de Mental e os Serviços de Atenção Primária
fortalecendo o compartilhamento dos cuidados em saúde mental.
No município do Rio de Janeiro, antes da chegada das equipes da Estratégia da Saúde da Família (ESF) É importante considerar que essa reordenação poderá ser efetivada somente a partir de um intenso diálogo
em um determinado território, a assistência em saúde mental se desenvolvia, prioritariamente, através entre os serviços que compõem a rede, sendo necessário, para isto, a repactuação dos fluxos, a ampliação
de duas modalidades: a da atenção intensiva baseada nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a da de parcerias e o acolhimento dos casos de forma corresponsável. Seguindo essa proposta, entendemos o
atenção ambulatorial dos Postos de Saúde (PS), atualmente denominados Centros Municipais de Saúde NASF como o principal dispositivo de apoio à Saúde da Família, mas não é somente a partir desta modalida-
(CMS) e Policlínicas3 . Com a inauguração de uma Clínica da Família4 , esse território passa a contar com de de apoio que a rede de Saúde Mental pode se articular para apoiar a Atenção Primária de um território.
mais um recurso de saúde que também pode atender às demandas de assistência em saúde mental. A
chegada de uma equipe de Saúde da Família em um território induz, portanto, a um reordenamento Atualmente, diferentes desenhos são traçados para a organização do apoio matricial em Saúde Mental
dos fluxos de uma rede ampla de serviços de saúde. às equipes de Saúde da Família nas diferentes áreas da cidade, que variam de acordo com a diversidade
de equipamentos presentes em cada uma destas áreas e com a história singular dos serviços nos territó-
A falta de alternativas para o acolhimento das situações leves e moderadas produz impactos para a rede rios. Assim, os NASF, os CAPS e os ambulatórios de Saúde Mental se articulam de diferentes formas nas
de saúde mental. As vivências e sofrimentos mais cotidianos da população (lutos, tristezas, ansieda- áreas da cidade para apoiarem às equipes de Saúde da Família. Para ilustrar esta ideia, basta pensarmos
des, situações de violência, medos, separações familiares etc.), muitas vezes entendidos exclusivamente em um determinado território coberto pela ESF: essas equipes, apoiadas ou não por um NASF, terão
como “sintomas psicopatológicos”, levam as pessoas a buscarem atendimento especializado em psico- sempre um ambulatório e/ou um CAPS de referência territorial.
logia e em psiquiatria, sobrecarregando as portas de entrada dos ambulatórios de saúde mental. Mes-
mo quando engajados na produção de respostas ‘não medicalizantes’, os ambulatórios de saúde mental Na cidade do Rio de Janeiro, alguns CAPS trabalham com a divisão de suas equipes por micro-território,
freqüentemente se sobrecarregam com demandas variadas de assistência e, com efeito, são absorvidos o que facilita o contato com os outros serviços de suas áreas de abrangência. Para que o cuidado se dê
muito mais usuários para tratamento especializado do que seria necessário. Ao mesmo tempo em que de forma articulada, a comunicação entre as equipes da ESF e do NASF, do ambulatório de referência
isto ocorre, muitas situações que necessitam efetivamente de um cuidado especializado encontram e do CAPS é fundamental, pois parte da clientela da Atenção Primária necessita de atendimento am-
dificuldades de acesso nessas unidades. bulatorial de Saúde Mental ou do apoio do CAPS. Do mesmo modo, os usuários desses serviços devem
usufruir das estratégias da Atenção Primária e das ações compartilhadas com a ESF. Além disso, a articu-
Um dos impactos dessas dificuldades é observado na rede ambulatorial com o fechamento das portas lação dessas equipes fortalece as parcerias intersetoriais, que também atravessam os diferentes níveis
de entrada de inúmeras unidades, ocasionando, não raramente, a migração de usuários para outros de atenção em saúde. Apostamos, então, na importância de estimular a comunicação regular entre
territórios em que o acesso aos serviços é mais fácil. Parte dessa demanda de cuidado em saúde mental estes serviços, como algo não circunstancial, mas como uma condição que se articula cotidianamente
chega imediatamente ao CAPS, na medida em que o seu funcionamento é organizado pelo acolhimen- em torno da própria noção de território.
to diário daqueles que o procuram. Entretanto, o fato do CAPS acolher alguns casos, como efeito desses
desvios no fluxo da clientela que busca o ambulatório de saúde mental, deve se afastar do risco de uma Todos esses dispositivos fazem parte de uma rede de atenção psicossocial e são regidos por uma mes-
ambulatorização em seu modo de assistência. ma diretriz ética e política. Ao mesmo tempo, cada um deles tem um modo particular de funcionamen-
to e um mandato diferenciado na organização da rede de saúde mental. Os CAPS, por exemplo, se res-
Diante deste cenário, situamos o importante papel da ESF no reordenamento dos fluxos da rede de ponsabilizam pelas situações de maior complexidade, como aquelas que apresentam maior fragilidade
atenção psicossocial definido a partir dos níveis de complexidade das situações de saúde. Com a ex- nos vínculos sociais e afetivos e que, portanto, necessitam de uma maior intensidade de cuidados. Os
pansão da cobertura nas diversas áreas, é possível iniciar este reordenamento, encaminhando e com- ambulatórios, por sua vez, que também devem atender às gravidades, se responsabilizam por situações
partilhando com a Atenção Primária algumas situações que, ate então, eram acolhidas exclusivamente que prescindem de uma atenção intensiva. Já os NASF representam uma estratégia de retaguarda espe-
nos ambulatórios e/ou nos CAPS. As equipes de Saúde da Família podem compartilhar com as equipes cializada dedicada exclusivamente às equipes da ESF. Neste último dispositivo de rede, os profissionais
de Saúde Mental o cuidado aos usuários que estão nestes equipamentos especializados e, em muitos de referência avaliam, acompanham e compartilham as situações que demandam cuidados em saúde
casos, podem assumir a condução desse cuidado, desde que devidamente apoiadas. mental junto às equipes da ESF, corresponsabilizando-se pelos encaminhamentos aos outros níveis de
atenção, realizando o diagnóstico dos determinantes de saúde mental de um território, planejando
Ao realizar uma reorganização da atenção pelos níveis de complexidade, algumas situações de menor ações para os respectivos indicadores, entre outras atribuições. Os NASF têm no apoio matricial, portan-
gravidade, que superlotam os ambulatórios de saúde mental, passam a ser acolhidas de modo integral to, o seu próprio modo de funcionamento.
pelas equipes de Saúde da Família. Disto resulta uma abertura de espaço na agenda dos ambulatórios,
Estes são alguns elementos que apontam para as singularidades de cada um desses dispositivos e para
3
Não há diferença para a atuação de profissionais de Saúde Mental lotados em CMS ou Policlínicas, pois ambos os serviços
as diferenças que, certamente, imprimem modos diversos de suporte às equipes de Saúde da Família.
funcionam em modalidade ambulatorial. Para explorar tais diferenças, os próximos itens serão destinados à abordagem dessas questões. Iniciare-
4
Este mesmo exemplo cabe para as demais unidades de Saúde da Família (unidades tipo A) ou, ainda, para os serviços mos, tratando da organização do apoio matricial em saúde mental a partir do CAPS e dos ambulatórios.
ambulatoriais (unidades mistas, tipo B) que contém em seu quadro de profissionais tantos as equipes de Saúde da Família Dedicaremos o último item para tratar exclusivamente do apoio matricial dos NASF abordado, desse
quanto as demais especialidades dos ambulatórios. modo, em função da própria natureza deste dispositivo.
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2. O apoio matricial em Saúde Mental certo modo, incompatível com a da Atenção Primária, especialmente diante da diversidade de situações
com as quais lida e da quantidade superior5 de ações que devem ser desempenhadas pelas equipes
Modalidades e especificidades do cuidado compartilhado da ESF diariamente. Se compreendermos que a Saúde Mental é apenas um dos muitos aspectos e das
questões de saúde dos quais lidam as equipes de Saúde da Família, torna-se mais clara a percepção da
diferença marcante entre esses tempos. Sabemos que os dispositivos especializados em Saúde Mental
2.1. O CAPS no apoio matricial à Atenção Primária costumam e precisam discutir aprofundadamente cada situação, ao mesmo tempo, notamos certa in-
compatibilidade de replicar esse modo de discussão no apoio matricial à ESF. É preciso refletir sobre que
Nas áreas e territórios onde há unidades da ESF que não contam com uma equipe de NASF como reta- tipo de discussão em saúde mental é pertinente ao cuidado de um caso na Atenção Primária.
guarda para o matriciamento e onde a referência ambulatorial em saúde mental se encontra impossibi-
litada de prestar esse apoio, passamos a indicar que o CAPS de referência do território assumisse o apoio É importante perceber que os efeitos do apoio matricial não são efeitos imediatos. A apropriação de
matricial às equipes da ESF. Com efeito, na história da implantação do apoio matricial nas diversas áreas certo modo de fazer das equipes de Saúde Mental – o que esperamos que seja o resultado do apoio
da cidade do Rio de Janeiro, alguns CAPS assumiram essa função junto às equipes de seu território de matricial – se dá, necessariamente, de forma gradual. Notamos que tais efeitos são recolhidos através
forma totalmente integrada ao seu funcionamento diário. da repetição e reedição, ao longo do tempo, das ações compartilhadas com a ESF e da construção de
um vínculo entre o matriciador e essas equipes. Isto significa que o apoio matricial acontece somente
O CAPS não foi indicado, no entanto, como a primeira opção no momento de planejar a organização se houver uma regularidade nos encontros entre as equipes da Atenção Primária e o matriciador, e se
do apoio matricial em uma área, pois em função de sua própria proposta de assistência, em geral, esse essa regularidade se mantiver durante um período significativo de tempo. A construção do vínculo, da
serviço tende a se ocupar do acompanhamento das situações de maior complexidade junto às equipes confiança e da própria garantia de que há um suporte efetivo são elementos fundamentais para que
da ESF. Além disso, ao planejar o apoio matricial em determinada área, foi importante esclarecer que essas equipes possam, gradualmente, sentir maior segurança para incorporarem o olhar e o cuidado
mesmo matriciando algumas destas equipes, um CAPS não poderia assumir a referência do apoio ma- da atenção psicossocial no seu modo de ação cotidiano. Não haverá apoio matricial se não for possível
tricial para todas as equipes da ESF de seu território de cobertura. Isto seria absolutamente inviável em estabelecer certa freqüência e regularidade nestes encontros.
função da atual extensão territorial abrangida pelo CAPS no nosso município.
Outro aspecto importante refere-se ao uso excessivo de um vocabulário muito específico do campo
Atualmente, quando um CAPS é definido como o responsável pelo apoio matricial, os matriciadores da Saúde Mental. É preciso estarmos sempre atentos se somos realmente compreendidos pelas equi-
desse serviço buscam contemplar, nas demandas das equipes matriciadas, as questões mais específicas pes ou se falamos um ‘dialeto incompreensível’ para quem não é da área da Saúde Mental. Também é
da Atenção Primária do seu território, em toda a sua diversidade. As equipes dos CAPS acompanham, importante observar que, algumas vezes, empregamos termos que são comuns aos vocabulários da
conjuntamente com as equipes de Saúde da Família, as situações pertinentes ao cuidado na Atenção Saúde Mental e da Atenção Primária, mas que possuem usos e sentidos bastante distintos É o caso,
Primária, avaliando, por exemplo, os casos que podem ser absorvidos pelo ambulatório de referência, as por exemplo, do termo ‘visita domiciliar’: para o campo da Saúde Mental esta é considerada uma ferra-
situações cujo cuidado deverá ser compartilhado com o CAPS e aquelas que podem ser conduzidas nas menta clínica sofisticada e excepcional, enquanto que para as equipes de Saúde da Família este é um
próprias Clínicas de Família. Desse modo, o CAPS efetua o ordenamento dos fluxos em saúde mental procedimento cotidiano e freqüente. Localizamos aí, a importância de buscarmos construir e aprimorar
junto às equipes da ESF. um vocabulário comum entre as equipes de Saúde Mental e da Atenção Primária.

Sobre esse processo, destacamos a importância do esclarecimento de que o apoio matricial não se reduz É também recomendado que os matriciadores do CAPS participem da construção do Projeto de Saúde
à discussão de casos, embora encontre nessa ação um ponto de partida para o cuidado compartilhado. no Território pelas equipes de Saúde da Família, planejando conjuntamente com as mesmas as ações e
A prática do matriciamento requer o compartilhamento de ações mais amplas como, por exemplo, as atividades voltadas para os problemas de saúde mental do território, tais como grupos e oficinas diver-
de interconsultas, de atendimentos e visitas domicilares realizados conjuntamente e de planejamento sos, e compartilhando essas atividades com as equipes quando for necessário. Apesar da inviabilidade
para a realização de grupos ou demais atividades coletivas nas unidades de APS. do CAPS ser o único responsável pelo apoio matricial de todas as equipes de seu território, sempre que
houver equipe de Saúde da Família em seu território, o CAPS deve compartilhar o cuidado prestado aos
A distinção entre o matriciamento e a discussão de casos é aqui demarcada, considerando que no campo seus usuários no nível da Atenção Primária. Ou seja, o CAPS deve se relacionar com as equipes de Saúde
da saúde mental a discussão de caso é uma tradição marcante e, por isso, deve ser permanentemente sus- da Família do seu território mesmo quando não for o responsável pelo apoio matricial prestado a estas
tentada. Percebemos, no entanto, que na prática do matriciamento em Saúde Mental quando a ênfase se equipes. As equipes de Saúde da Família são mais um recurso do território com o qual o CAPS passa a
dirige exclusivamente para a discussão de casos, sem o compartilhamento das respectivas ações traçadas contar, representando uma parceria rica e proveitosa para a aproximação ao usuário, à sua família e ao
para os mesmos, as queixas recorrentes das equipes de Saúde da Família começam a aparecer. Entre elas, seu território, diante da agilidade e da facilidade de acesso aos mesmos.
é comum recolhermos falas como: “eles vêm aqui, a gente fala, fala... É uma conversa muito boa, mas no
final continuamos sem saber o que fazer!”. As equipes matriciadas, em geral, reconhecem efetivamente o Para isto, é importante que o CAPS tenha sempre atualizado o georreferenciamento das equipes de
apoio matricial somente quando o matriciador dá prosseguimento ao cuidado compartilhado com a ESF. Saúde da Família de todo o seu território. A cada vez que um novo usuário chegar ao serviço, o microter-
ritório do qual ele pertence, e a respectiva equipe de Saúde da Família de referência territorial, deverão
Além deste aspecto, devemos estar atentos também em relação às diferenças entre os tempos dispo-
níveis para a discussão dos casos nos serviços de Saúde Mental e da Atenção Primária. Em um serviço 5
Segundo a Nova Política Nacional de Atenção Básica, Portaria nº 2488 de 21 de outubro de 2011, cada equipe de Saúde da
de Saúde Mental é muito comum passarmos um longo tempo discutindo um caso, cuja complexidade Família deve ser responsável por, no máximo, 4.000 pessoas, com média recomendada de 3.000 habitantes. Estes números
exige de fato uma maior disponibilidade. Observamos, porém, que tal disponibilidade de tempo é, de devem respeitar critérios de equidade e levar em conta o grau de vulnerabilidade das famílias de cada território adscrito.
10 11
ser localizados, registrando estas informações em seu prontuário. Isto permite que o Projeto Terapêu- Quando emergem situações de crise no território, o matriciador deve ser acionado para que possa decidir,
tico Singular (PTS)6 já seja construído de modo compartilhado com a equipe de Saúde da Família de junto à equipe da ESF, o que precisa ser feito. É importante que este profissional, caso seu turno de traba-
referência, potencializando o cuidado integral, a vinculação às atividades no território e a intersetoria- lho possibilite, faça a abordagem ao usuário em conjunto com os membros da equipe. Se esta intervenção
lidade. A ESF também tem no PTS uma de suas ferramentas fundamentais, e se este for construído em não for possível de ser realizada presencialmente pelo matriciador de Saúde Mental, sua participação na
conjunto com as equipes do CAPS, estaremos ampliando as nossas perspectivas de compreensão e de condução da situação poderá ser viabilizada, de acordo com a disponibilidade de seus turnos de trabalho,
intervenção nas mais diversas situações de promoção em saúde. através de contato telefônico, prática que já deve estar incorporada ao seu cotidiano do trabalho. A partir
do atendimento direto ou da discussão do caso a distância, o matriciador poderá orientar a equipe quan-
A Saúde Mental e a Saúde da Família têm muitos princípios e ferramentas em comum, como a valorização to ao tipo de intervenção necessária. Deverá levar em consideração os recursos disponíveis, como por
do vínculo para o estabelecimento do cuidado, a ênfase do cuidado no território, a noção de clínica am- exemplo, a possibilidade de levar o paciente até o CAPS de referência, apostando, desta forma, no manejo
pliada, entre muitos outros. Além disso, sabemos que, muitas vezes, o acesso aos cuidados de saúde inte- à crise dentro do âmbito comunitário da atenção psicossocial e mantendo-o em seu território de vida.
gral é uma dificuldade enfrentada pelos usuários e familiares que freqüentam os serviços de saúde mental.
Por esses e outros motivos, as equipes de Saúde da Família e de Saúde Mental têm se revelado importantes Se isto não for possível e restar somente o encaminhamento à emergência psiquiátrica, o matriciador e
aliadas na construção de um cuidado compartilhado e de ações de saúde mental nos diversos territórios. a equipe da ESF devem providenciar os recursos necessários para que ele chegue até o pronto-socorro
psiquiátrico. É recomendável que algum membro da equipe, especialmente o profissional que possua
2.2. Emergências em Saúde Mental na ESF vínculo terapêutico importante com o usuário, acompanhe-o nesta remoção, a fim de garantir a conti-
nuidade dos cuidados neste primeiro momento. Do mesmo modo, é importante que a equipe acom-
Uma situação de emergência em saúde mental não pode ser desconsiderada no cotidiano da Atenção panhe o retorno do mesmo usuário após esta intercorrência, especialmente se houver uma internação
Primária, ainda mais se a equipe da ESF afirmar desconhecer o caso. De saída, algumas questões devem como desdobramento desta ação.
ser colocadas: porque esta equipe não tomou conhecimento do caso em questão? Se o conhecia, sabia
de sua condição e dos aspectos de saúde mental envolvidos? A equipe da ESF foi apoiada por algum Se o usuário já possui um vínculo com o CAPS da área, o contato deverá ser realizado diretamente com
profissional de um dos dispositivos de saúde mental (CAPS, Ambulatório, NASF)? Ou foi informada de esta unidade para buscar ajuda e orientação quanto às possíveis e necessárias intervenções. Entende-
algum espaço de troca e de aproximação institucional, como o do Fórum mensal de Saúde Mental, da mos que mesmo quando a pessoa em questão não é acompanhada por este dispositivo, o CAPS tam-
Supervisão de Território ou das Rodas de Conversa, onde poderia buscar apoio matricial para a avalia- bém pode ser acionado para avaliar as condições clínicas no manejo à crise, considerando o que pode
ção e para o acompanhamento conjunto dos casos? Este seria um caso para o CAPS ou para o ambula- ser imediatamente oferecido em termos de cuidado territorial, ou em momento posterior à intervenção
tório de Saúde Mental? A ESF, o CAPS e o ambulatório conseguiriam pactuar um cuidado compartilhado da unidade de pronto-socorro. É preciso considerar, por exemplo, a pertinência e a possibilidade de
para a condução deste caso? uma visita domiciliar das equipes do CAPS e da ESF ao usuário, a condução do mesmo até o serviço, ou
ainda, a viabilidade de que a equipe da ESF realize uma intervenção de manejo à crise. No dia seguinte,
As possíveis respostas para essas questões que se colocam frente aos episódios de crise e de agudização a família e/ou profissionais da Atenção Primária poderiam conduzi-lo até o CAPS para que, nesse segun-
de um sofrimento psíquico dependem não somente do quadro clínico apresentado, como também dos do momento, um cuidado territorial e contínuo se desenvolva em parceria entre essas duas equipes.
recursos comunitários, institucionais e terapêuticos com os quais conta um determinado território. De
modo geral, no campo da Saúde Mental não se parte de um a priori quanto ao que deve ser feito em Convém observar, no entanto, que nem todas as situações de crise psíquica indicam, necessariamente,
casos de emergência. Uma questão polêmica que costuma ser levantada é, por exemplo, se a ESF deve que o usuário deve seguir seu tratamento em um CAPS. É relevante considerar se o caso traz uma com-
acionar um serviço de remoção hospitalar, como a SAMU, no momento imediato em que encontra uma plexidade clínica que exige uma atenção igualmente complexa e intensiva, tal como a oferecida por esse
emergência em saúde mental no território, ou se esta equipe deve buscar soluções locais através do serviço. A convocação do CAPS para compor ou para protagonizar uma rede de cuidado ao usuário em
NASF e/ou CAPS da área. questão precisa, portanto, levar em conta o diagnóstico clínico-situacional que avalia não somente o
quadro sintomatológico, como também o momento de cada pessoa, os seus contextos social, material
Diante dos diversos arranjos interinstitucionais que podem ser montados para que se sustente um cui- e cultural, os recursos familiares e de rede social com os quais contamos para compartilhar o cuidado, as
dado contínuo ao usuário, devemos compreender quais seriam as situações de urgência/emergência consequências – físicas, psíquicas, sociais e funcionais – que a condição de adoecimento pode produzir,
em saúde mental no território que precisariam ser objeto de (re)pactuação do cuidado envolvendo os como o nível de risco para si e para terceiros, a condição de vulnerabilidade e de necessidade de prote-
dispositivos necessários, ou até mesmo, se um mesmo dispositivo poderá, em tempos variados, assumir ção. Tais elementos devem ser apreciados no manejo à crise para que se elabore uma proposta territoria-
papéis e graus de importância diferentes. Nessas situações, um usuário pode, em um dado momento, lizada de cuidado ao usuário e, sobretudo, de corresponsabilidade na construção do projeto terapêutico.
pertencer aos diferentes níveis de atenção em saúde e, por isso, temos o compromisso de garantir a
longitudinalidade de seu acompanhamento. É possível que determinadas situações clínicas comportem a necessidade imediata de encaminhamen-
to a uma unidade de emergência psiquiátrica, sobrepondo-se à possibilidade de manejo a tais situações
por parte da Atenção Primária e/ou do CAPS em um dado momento. Ainda que isto ocorra, o CAPS de-
6
A saúde mental tem o projeto terapêutico individual (ou singular) como importante metodologia de trabalho, visando tra- verá ser contatado se o quadro clínico apontar para a necessidade de um cuidado intensivo e complexo.
çar estratégias de cuidado à pessoa em sofrimento que respeitem suas singularidades, em contraposição a respostas univer- A partir daí, o usuário poderá iniciar ou dar continuidade ao tratamento, assegurando a corresponsabi-
salizantes. A construção, o entendimento sobre o caso e as intervenções que são engendradas se dão de forma processual,
considerando as dimensões do sujeito em todas as etapas do cuidado oferecido, o que imprime aos projetos terapêuticos lidade do cuidado psicossocial com a ESF.
uma mobilidade a ser avaliada a todo momento. A ESF utiliza o PTS como ferramenta a ser construída no coletivo interdisci-
plinar de suas equipes, e que conduz as suas ações diante de cada usuário em diferentes momentos da vida.
12 13
2.3. Unidades mistas (tipo B) e apoio matricial em níveis de complexidade variados são visíveis. Sobre esse aspecto, é importante demarcar algumas
especificidades relativas ao apoio matricial em Saúde Mental oferecido pelo psiquiatra e pelo psicólo-
A Carteira de Serviços: Relação de serviços prestados na Atenção Primária à Saúde7 (2011) da cidade do go, cujas diferenças se caracterizam, em especial, pela periodicidade das consultas e pelo número de
Rio de Janeiro apresenta três modalidades de serviços de APS: as unidades do tipo A constituídas exclu- usuários acompanhados por esses profissionais. Tais diferenças merecem reflexão, na medida em que
sivamente por equipes da ESF, as do tipo B que contam tanto com as equipes que funcionam em moda- apostamos na integração entre estes profissionais não somente no cotidiano da prática ambulatorial,
lidade ambulatorial quanto com as equipes da ESF, e as do tipo C cujo funcionamento é exclusivamente mas especialmente para a implementação do processo de matriciamento em Saúde Mental.
ambulatorial. Abordaremos, a partir de agora, as situações e circunstâncias em que o matriciamento das
equipes da ESF pode ser realizado pela equipe de Saúde Mental de um ambulatório. Como a clientela que busca o psicólogo em um serviço ambulatorial poderia se beneficiar da aproxi-
mação deste profissional com as equipes de Atenção Primária? O psicólogo11, por exemplo, pode fazer
As equipes de Saúde da Família de uma unidade mista devem ser apoiadas pelo NASF e, quando isto um levantamento contendo os endereços dos usuários que acompanha no ambulatório. Se estes mo-
não for possível, recomendamos que a própria equipe do ambulatório da unidade mista8 se ocupe, ram em territórios cobertos pelas equipes da ESF, cabe ao mesmo profissional avaliar se o usuário se
parcialmente, do apoio matricial. Observamos que mesmo nos territórios onde uma equipe de ESF já é beneficiaria de alguma atividade ou oficina desenvolvidas pela equipe da Atenção Primária, e se estas
apoiada pelo NASF, o trabalho no ambulatório precisa ser reorganizado e, como discutido anteriormen- poderiam ser realizadas concomitante ao seu acompanhamento ambulatorial. Além disto, notamos que
te, o fluxo da assistência precisa ser reordenado entre os diferentes níveis de complexidade do cuidado. algumas demandas dirigidas aos ambulatórios de Saúde Mental podem ser discutidas e acompanha-
Seguiremos, então, apresentando algumas considerações que podem ser úteis aos profissionais que das nas unidades de Atenção Primária, seja porque já representam um momento em que o tratamento
atuam hoje nos ambulatórios de saúde mental e que, portanto, devem lidar com a chegada de equipes especializado não é mais necessário ou porque se tratam de situações cujas estratégias de socialização
da ESF em seus territórios. e de convivência seriam mais eficazes. Até a chegada das equipes da ESF no território, o psicólogo do
ambulatório de referência para essas equipes, sem outra opção, muitas vezes acabava acolhendo este
As unidades B, de um modo geral, representam as unidades ambulatoriais atualmente conhecidas perfil de usuário em modalidade ambulatorial em função da limitação de outros recursos comunitários.
como Centros Municipais de Saúde (CMS) que passaram a incorporar, em seu quadro de profissionais,
A passagem dos casos, atendidos ambulatorialmente, para o cuidado na Atenção Primária não deve es-
as equipes de ESF. Desta forma, a unidade apresenta tanto o funcionamento ambulatorial como a aten-
tar reduzida aos encaminhamentos para as equipes de Saúde da Família, pois estas só poderão acolher
ção em saúde realizada pela ESF. O fato de dois níveis de cuidado, as da Atenção Primária e Secundária,
essa clientela na medida em que forem apoiadas pelos profissionais de Saúde Mental.
funcionarem no mesmo espaço institucional com propostas muito diferentes, exige uma série de modi-
ficações na organização dessa modalidade de serviço. Se por um lado, o apoio matricial exige a disponibilidade de alguns dos turnos de trabalho do psicólogo no
ambulatório, por outro, esta pode ser uma estratégia para otimizar a porta de saída de alguns casos através
A transformação no âmbito da assistência à clientela de Saúde Mental de um território coberto por uma de alternativas de cuidado territorializadas. Desse modo, nas unidades B, especialmente naquelas que ain-
unidade B exige, ao mesmo tempo, a delimitação dos modos de acesso às portas de entrada do serviço da não contam com a retaguarda do NASF, a equipe da ESF pode ser apoiada pelos profissionais de saúde
(Grupos de Recepção e/ou Apoio Matricial)9 e uma avaliação criteriosa desta clientela, visando integrar a mental desse mesmo ambulatório, introduzindo na passagem dos casos a dimensão da corresponsabi-
participação das equipes da Atenção Primária no cuidado oferecido.10 Na unidade B, a equipe de Saúde lização na continuidade do cuidado. A equipe de Saúde da Família na unidade B torna-se, portanto, um
Mental deve realizar o Grupo de Recepção territorializado, garantindo o acesso ao serviço da parte dos recurso que potencializa as ações de saúde mental no próprio ambulatório de sua abrangência territorial.
moradores de bairros ainda sem cobertura da ESF. Mas também poderá oferecer suporte ao trabalho
das equipes da ESF que representam a própria porta de entrada para os moradores das demais áreas de Em relação à clientela atendida pela psiquiatria, um novo levantamento pode ser realizado através do
abrangência da mesma unidade. endereço de cada usuário, indicando a gravidade e o nível de estabilidade dos respectivos quadros clí-
nicos, no intuito de identificar quais usuários poderiam ser acompanhados pelo médico de família e de-
Quando uma unidade torna-se ‘mista’ (unidade B), a organização do trabalho dos profissionais de Saú- mais profissionais da ESF. Como desdobramento desta ação, é importante criar um espaço de discussão
de Mental, tanto da psicologia quanto da psiquiatria, pode ocorrer de maneira mais integrada com o sobre Saúde Mental na Atenção Primária12, envolvendo os psiquiatras e os médicos generalistas da ESF
da Atenção Primária. Se pensarmos que estes profissionais já se ocupavam de uma clientela específica no debate sobre o uso racional de psicotrópicos na APS, entre tantas outras modalidades de cuidado
através dos atendimentos ambulatoriais, os benefícios da interlocução sobre os casos acompanhados que podem ser trabalhadas em equipe. Com essa proposta, o psiquiatra do ambulatório pode identificar:
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Versão resumida disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/smsdc, acessado em 08/08/2012. a) os casos leves que poderiam ser acompanhados pelas equipes da ESF e medicados pelo médico ge-
8
A mesma proposta pode ser aplicada para as equipes de Saúde da Família que atuam nas unidades tipo A, onde ainda não neralista, sob a retaguarda especializada da psiquiatria. Como exemplo, consideramos as situações
há um NASF responsável pelo apoio matricial. Em situações como esta, o ambulatório de referência pode realizar o apoio em que o médico da ESF encontra dificuldades na prescrição de psicotrópicos como benzodiaze-
matricial.
pínicos ou antidepressivos, no monitoramento dos efeitos colaterais ou dos efeitos terapêuticos
9
Nas unidades do tipo B, quando uma determinada área de abrangência territorial contar com a cobertura de equipes de
11
referência da ESF, o profissional de Saúde Mental da unidade poderá propor algumas ações de matriciamento para a discus- Esta recomendação se estende aos demais profissionais de Saúde Mental, considerando que o apoio matricial em saúde
são e identificação das demandas da clientela deste território. Nas demais áreas de abrangência da mesma unidade, onde mental também pode ser exercido por outras categorias profissionais como as de assistente social, terapeuta ocupacional,
não há a atuação de equipes da ESF, este profissional mantém o dispositivo territorializado de porta de entrada em Saúde musicoterapeuta, enfermeiro e psiquiatra. Entretanto, para consolidar esta proposta de matriciamento a partir dos ambu-
Mental dos Grupos de Recepção. latórios de Saúde Mental é necessário pactuar e obter a autorização dessa prática pela Coordenação de Área Programática
10
Se em uma mesma unidade houver esses dois recursos diferenciados de porta de entrada, o profissional de Saúde Mental (CAP) e pela gerência ou direção da unidade.
12
poderá matriciar as equipes da ESF e acolher alguns casos em regime ambulatorial que forem discutidos nos encontros de É necessário que esses espaços sejam apoiados e acompanhados pela direção das unidades, pelas Coordenações de Áreas
matriciamento. Programáticas, Coordenação de Saúde da Família e Coordenação Municipal de Saúde Mental.
14 15
ou, ainda, na condução do processo de desmedicalização para alguns usuários. Nessas situações, o Turnos de atendimentos individuais ou em grupo para casos que necessitem de acompanhamento no
apoio matricial do psiquiatra encontra um alcance significativo de intervenções que podem ser tra- ambulatório de Saúde Mental.
çadas para cada usuário nos atendimentos em grupo ou individuais desenvolvidos junto ao médi-
co de família. Estes casos podem ser incluídos nas demais atividades comunitárias das unidades de Com essa nova configuração, os profissionais do ambulatório continuarão atendendo uma parcela de
APS, principalmente quando avaliada a ausência de indicação para a prescrição medicamentosa. sua clientela atual, porém de modo mais qualificado: com maior tempo para as consultas e, portanto,
com menor espaçamento entre as mesmas, para a orientação e avaliação do uso de psicotrópicos, para o
b) os casos moderados que poderiam ser acompanhados pelas equipes da ESF, ainda que mantendo acolhimento das demandas de psicoterapia e de trabalho com a rede familiar e para o compartilhamen-
avaliações periódicas no ambulatório especializado de psiquiatria. É importante que o psiquiatra to junto às equipes da ESF de situações que necessitam do apoio matricial para cuidados no território.
assuma o apoio matricial, tornando-se uma referência para a ESF no acompanhamento medica- Consequentemente, a equipe de saúde mental do ambulatório ampliará sua capacidade de assistência
mentoso realizado através de consulta individual no ambulatório ou de consulta conjunta com o em relação aos casos mais complexos identificados pelos CAPS ou pelas ações da Atenção Primária.
médico generalista da ESF na unidade de APS. A vantagem dessa proposta seria a de assegurar um
acompanhamento longitudinal no qual o psiquiatra poderia ser acionado pela ESF, diante de uma
demanda identificada por essa equipe ou, até mesmo, de uma demanda espontânea, para discutir
o projeto terapêutico de um usuário ou atendê-lo conjuntamente na unidade de Saúde da Família 3. O apoio matricial do Núcleo de Apoio à Saúde da Família
antes do período agendado para a consulta ambulatorial.
Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) foram criados pelo Ministério da Saúde, através da Porta-
c) os casos graves mais estabilizados que continuam mantendo a referência no ambulatório de psi- ria GM nº 154 de 24 de janeiro de 2008, com o objetivo de apoiar e de fortalecer a Estratégia de Saúde da
quiatria, mas que poderiam usufruir de ofertas psicossociais presentes na ESF como os espaços de Família (ESF) na ampliação de sua abrangência, resolutividade, territorialização e regionalização. No ano
convivência, as oficinas, as atividades físicas, etc. O acompanhamento psiquiátrico integrado com a seguinte, esta portaria tornou-se ainda mais clara e difusa com a publicação do Caderno de Atenção Bási-
equipe de Saúde da Família favorece, por exemplo, a identificação precoce de um momento de crise ca, Nº 27, mais conhecido como “Caderno do NASF”, que apresenta as diretrizes ministeriais para a conso-
e a construção de estratégias para manejá-la. Entre elas, destacam-se o apoio para o manejo e moni- lidação do trabalho do NASF em território nacional. Em 2011, a nova Política Nacional de Atenção Básica
toramento do uso de psicotrópicos e o acolhimento à família do usuário nos grupos da Atenção Pri- (PNAB) foi regulamentada através da portaria nº 2.488, de 21 de outubro, ampliando as normatizações
mária. Cabe ressaltar que as situações de maior gravidade devem ser compartilhadas com os níveis relativas à Atenção Primária e avançando no processo de expansão da ESF e do apoio matricial do NASF.
de maior complexidade de cuidado, não devendo ser acompanhados exclusivamente pela ESF. Mas
é importante que sejam traçadas estratégias para que o vínculo e o acompanhamento integrado A organização e o desenvolvimento do processo de trabalho do NASF se apoiam, ainda, em algumas
com a ESF se fortaleçam, ainda que a referência ao nível secundário de assistência permaneça. ferramentas já amplamente testadas e difundidas na realidade brasileira, como as noções do Apoio
Matricial, da Clínica Ampliada, do Projeto Terapêutico Singular (PTS) e do Projeto de Saúde no Território
Os processos de passagem e de compartilhamento dos casos devem ser conduzidos de forma organizada e (PST). Em linha direta com essas ferramentas e com as portarias ministeriais, assinalamos, das nossas re-
pactuada entre os profissionais dos ambulatórios e da ESF, evitando um encaminhamento desordenado de comendações e considerações sobre o matriciamento em Saúde Mental, a prática específica dos NASF,
usuários do ambulatório de Saúde Mental para as unidades de SF, que poderia produzir uma ‘desassistência’ tendo como panorama a realidade particular e recente de sua construção na cidade do Rio de Janeiro.
em relação aos mesmos. No que se refere aos atendimentos em psiquiatria, a passagem e o compartilha- O NASF deve ser constituído por uma equipe de profissionais de diferentes áreas de conhecimento, que
mento do cuidado podem ser iniciados, por exemplo, a partir da consulta individual com o psiquiatra no atuam conjuntamente com os profissionais das equipes de Saúde da Família, compartilhando e apoian-
ambulatório onde já será oferecida e agendada a próxima consulta conjunta entre o psiquiatra e o médico do as práticas em saúde nos territórios de referência das equipes da ESF. Na cidade do Rio de Janeiro, a
da ESF. Se essa passagem for bem sucedida, o ambulatório de Saúde Mental terá uma nova configuração composição do quadro profissional de um NASF vem sendo definida pelos gestores municipais de cada
com maior capacidade para atender os casos que necessitem de atendimento especializado. Com efeito, Coordenação de Área Programática (CAP), em conjunto com as gerências das unidades de Atenção
uma parcela desta clientela poderá ser acompanhada exclusivamente pelas equipes matriciadas, enquanto Básica e com as equipes da ESF, por meio da realização de um diagnóstico das necessidades locais que
que a outra parcela será acompanhada de modo compartilhado entre as equipes da ESF e de Saúde Mental. identifique e defina as prioridades de um determinado contexto comunitário. Até o primeiro semestre
Para que o matriciamento se efetue nessas condições, recomendamos aos profissionais dos ambulatórios do ano vigente, a cidade contava com cerca de 44 equipes de NASF – todas estas contempladas com um
que reservem turnos regulares para o compartilhamento dos cuidados de atenção psicossocial. profissional matriciador de Saúde Mental – para em média 712 equipes da ESF.

Seguindo essa proposta, a rotina do ambulatório de Saúde Mental comportaria as seguintes modalida- A constituição de uma rede de cuidados territorializada é uma das principais estratégias do trabalho de
des de cuidado: um NASF. Para a construção de uma rede de atenção integral, tanto a equipe de apoio do NASF quanto
as equipes matriciadas da ESF devem criar espaços de aprendizado coletivo e de discussões internas e
Turnos de matriciamento para atendimentos conjuntos, para o esclarecimento de dúvidas e para a
externas às unidades de saúde, superando a lógica fragmentada das especialidades no campo da Aten-
discussão de estratégias para casos de baixa complexidade que podem ser conduzidos pelas equipes
ção Primária. Trata-se da tomada de responsabilidade da parte de uma equipe de profissionais por um
da ESF com o apoio matricial. Este é também um momento oportuno para avaliar, conjuntamente com
conjunto de pessoas (clientela adscrita), em oposição a um conjunto de procedimentos especializados
a equipe da ESF, tanto a passagem de alguns casos para o cuidado continuado na Atenção Primária,
em saúde, o que redefine a compreensão da dimensão de apoio às equipes da ESF e do compartilha-
quanto a demanda de usuários ou da própria equipe para o tratamento ambulatorial. Essa avaliação
mento do cuidado, em contraste com a prática do encaminhamento e da referência/contrarreferência.
pode ser conduzida através de interconsultas ou de outras modalidades de atendimentos em conjunto.

16 17
O NASF não se constitui como porta de entrada do sistema de saúde, mas representa uma retaguarda ■ Habilidade para desenvolver, junto às Equipes de Saúde da Família e outros profissionais do NASF,
especializada para as equipes da ESF e, por isso, deve atuar segundo as diretrizes da Atenção Primária atividades em grupo.
em Saúde. Sua atuação é caracterizada por ações interdisciplinares e intersetoriais, pela dimensão da
educação permanente em saúde incorporada ao trabalho em equipe e com a população, pelo desen- As atribuições de um matriciador de Saúde Mental no NASF, portanto, devem estar diretamente rela-
volvimento e fortalecimento da noção de território, entre outras ações consonantes com os princípios cionadas com os princípios e diretrizes da Reforma Psiquiátrica e da Política Nacional de Saúde Mental.
de integralidade, participação social, educação popular, promoção da saúde e humanização. Estes se atualizam na prática do matriciamento, na medida em que os cuidados em saúde mental po-
dem ser oferecidos e sustentados no local mais próximo da moradia de cada usuário, contribuindo para
Esta situação desejável não acontece, no entanto, de forma espontânea e natural. É necessário que os a preservação e para a ampliação de seus vínculos afetivos e comunitários. A noção do vínculo é uma
profissionais do NASF assumam suas responsabilidades em regime de cogestão com as equipes da ferramenta fortemente presente no trabalho da Atenção Primária com sua clientela adscrita.
ESF e sob a coordenação do gestor local, como um processo de constante construção e renovação de
estratégias compartilhadas. Algumas intervenções diretas dos profissionais do NASF com os usuários e O apoio matricial às equipes da ESF deve auxiliá-las no desenvolvimento de ações de saúde mental
seus familiares podem ser realizadas na Atenção Primária, mas sempre de modo implicado no trabalho territorializadas, realizadas prioritariamente através de interconsultas, discussão de casos, visitas domi-
com a equipe da ESF como, por exemplo, a partir de discussões e pactuações realizadas entre os demais ciliares e atendimentos conjuntos, sendo estas estratégias privilegiadas de educação continuada. Para
profissionais de referência para estes casos. O atendimento direto e individualizado, se realizado por isto, o matriciador do NASF deve participar regularmente das reuniões de equipe da ESF, fomentando os
um profissional do NASF, deve ocorrer somente em situações extremamente necessárias e inevitáveis. encontros de avaliação conjunta dos casos e a capacidade destas equipes de assumirem a coordenação
do cuidado, garantindo a sua continuidade. Assim, o processo de apoio matricial conduzido pelo NASF
3.1. O matriciamento em Saúde Mental no NASF promove, gradativamente, a autonomia das equipes da ESF em relação ao desenvolvimento de ações
na sua própria esfera de atuação e à capacidade de avaliação da necessidade de compartilhamento do
Podem atuar no NASF como matriciadores de Saúde Mental, os profissionais das seguintes categorias: cuidado com outros níveis de assistência.
Psicólogo, Psiquiatra, Fonoaudiólogo, Assistente Social, Terapeuta Ocupacional e Enfermeiro com espe-
cialização em Saúde Mental. Como discutido anteriormente, cabe também à equipe do NASF a importante tarefa da organização dos
fluxos de acesso e de acompanhamento dos casos em rede, sustentada por uma interlocução permanen-
O matriciador de Saúde Mental deve atuar junto às equipes da ESF, orientado pelas seguintes diretrizes te com os ambulatórios de Saúde Mental, com os CAPS e demais dispositivos territoriais da rede de aten-
políticas e princípios técnicos e práticos: ção psicossocial. A construção do Projeto de Saúde no Território junto às equipes de Saúde da Família, e
aos demais profissionais do NASF e da rede de Saúde Mental, é uma atribuição do matriciador de Saúde
■ Afinidade e conhecimento dos princípios e diretrizes da Reforma Psiquiátrica Brasileira; Mental que favorece, na realização de um diagnóstico local, o desenvolvimento de propostas de inter-
venções de promoção de saúde/saúde mental em rede. Entre essas propostas, destacam-se o monitora-
■ Conhecimento e compreensão dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Atenção
mento do uso racional de psicotrópicos em um determinado território, a promoção de atividades comu-
Primária em Saúde;
nitárias que discutam as temáticas relativas às questões de saúde mental prevalentes naquele contexto e
■ Conhecimento e compreensão das ferramentas do apoio matricial; a identificação das forças do território (pessoas, espaços, eventos, parcerias intersetoriais, competências
culturais etc.), como dispositivos de promoção, prevenção e tratamento da rede de atenção psicossocial.
■ Afinidade com a prática da integralidade e disponibilidade para o trabalho interdisciplinar;
■ Visão sistêmica e integral dos problemas de saúde/saúde mental; O compartilhamento dos casos com os níveis da atenção secundária e terciária deve ser constantemente
avaliado, ainda que a referência do acompanhamento na unidade de APS se mantenha de modo mais
■ Compreensão crítica a respeito dos processos de produção de saúde/doença, levando em considera- acessível e frequente para alguns usuários. Esta avaliação conjunta permite que as equipes do NASF e da
ção os determinantes sociais da saúde/saúde mental; ESF possam compartilhar o cuidado às situações de alta complexidade com outros dispositivos da rede de
■ Habilidade e disponibilidade para o compartilhamento de ações clínicas, considerando o caráter de Saúde Mental, nos momentos em que não há adesão do usuário aos serviços especializados ou quando,
educação permanente implicado nestas ações; por algum motivo, a estratégia do acompanhamento de base comunitária se mostrar mais interessante
para o usuário. Para isto, é essencial que os matriciadores do NASF participem da construção dos Projetos
■ Capacidade de vincular-se às equipes e de oferecer suporte às mesmas; Terapêuticos Singulares para todos os casos matriciados, privilegiando o nível comunitário de assistência.
■ Capacidade de desenvolver ações de planejamento e de promoção em saúde, bem como de realizar
A elaboração de um diagnóstico clínico-situacional deve considerar as múltiplas dimensões (social, cul-
diagnóstico dos determinantes de saúde/saúde mental do território, e de contribuir, desta forma, para
tural, material, subjetiva etc.) da atenção psicossocial e, por isso, deve ser construído a partir da escuta
a elaboração de Projeto de Saúde no Território;
focada na produção singular de sentido de cada usuário sobre o seu adoecimento. No âmbito de sua
■ Disponibilidade para articulação com a rede de saúde mental; atuação, é importante que o matriciador das equipes da ESF assegure aos usuários dos serviços de Saú-
de Mental a manutenção dos cuidados integrais em saúde, auxiliando as equipes de Atenção Primária e
■ Capacidade para fomentar ações de articulação intersetorial; a própria comunidade a lidarem com as dificuldades relativas ao estigma da loucura. Do mesmo modo,
■ Capacidade para o desenvolvimento de ações pedagógicas que contribuam para o processo de edu- ao matriciador do NASF cabe a tarefa de apoiar e acompanhar a condução dos casos em situação de
cação continuada; sofrimento psíquico nas unidades de APS como, por exemplo, nas etapas de prescrição medicamentosa
de psicotrópicos ou de intervenções individualizadas centradas na escuta terapêutica.
18 19
Além do compartilhamento de cuidados individualizados para essa clientela, é fundamental que os ■ O profissional da equipe matriciada relata um caso, geralmente, na expectativa de realizar um ‘enca-
matriciadores proponham e/ou participem das variadas atividades em grupo realizadas pelas equipes minhamento ao especialista do NASF’. Como isso não deve ser efetivado, a equipe tende a desacreditar
da ESF. Os grupos na APS são estrategicamente pensados como uma atividade compartilhada entre os no trabalho do NASF;
profissionais das equipes da ESF e do NASF e, portanto, como uma ação de educação continuada. Em
■ A equipe matriciada não consegue se corresponsabilizar pelos casos, limitando o acompanhamento
muitas situações, o apoio matricial permite que a continuidade de um atividade em grupo seja prota-
longitudinal e troca de informações sobre os mesmos;
gonizada e, até mesmo, assumida integralmente pelas equipes da ESF. Como exemplo, temos recolhido
experiências exitosas de grupos na Atenção Primária para o acolhimento das demandas de cuidado em ■ O processo de educação continuada e a consequente autonomia das equipes da ESF na condução das
Saúde Mental, como os grupos de desmedicalização; grupos de pais e de crianças com problemas de ações propostas são prejudicados.
aprendizagem; rodas de conversa sobre uso de drogas; rodas de Terapia Comunitária; grupos de sala
de espera; grupos de convivência; oficinas de geração de renda; oficinas de criação; palestras e grupos A reunião de matriciamento é, portanto, um espaço fundamental para a organização do apoio matri-
temáticos; grupos regulares das diversas linhas de cuidado em saúde, entre tantas outras iniciativas. cial junto às equipe da ESF. Este é um espaço estratégico para a construção coletiva dos casos e para a
Mas estes são apenas exemplos. Os matriciadores de saúde mental do NASF podem usar e abusar da avaliação conjunta das informações e situações que devem ser priorizadas em um Projeto Terapêutico
criatividade para construir estratégias de grupos junto às equipes da ESF. Singular, tendo como desdobramento a pactuação de ações compartilhadas.

Sobre as atribuições do matriciamento do NASF, é sempre importante lembrar que as equipes da Estratégia Para a organização do processo de trabalho, é recomendável que o matriciador do NASF utilize a reu-
da Saúde da Família representam o seu objeto primordial de intervenção, na medida em que essa prática foi nião mensal da unidade para criar uma agenda de reunião com cada equipe matriciada, confirmando a
implementada para auxiliá-las no planejamento e no desenvolvimento de ações específicas em um deter- data, o horário de início e do final do encontro, o local e os assuntos que serão tratados. Este encontro
minado território. No que diz respeito ao planejamento e desenvolvimento de ações específicas às situações de matriciamento deve ser o ponto de partida para a organização das ações matriciais com a equipe,
de Saúde Mental, podemos demarcar uma especificidade: não é rara a tendência de localizar, nessa clientela, tal como, para a discussão dos casos, para avaliar a participação do matriciador em outras reuniões da
dificuldades que representam os preconceitos, as resistências afetivas e morais ainda presentes na relação es- equipe, para o agendamento de consultas e visitas domiciliares conjuntas, para a implantação ou acom-
tabelecida culturalmente com a loucura. Situamos, então, como mais um desafio do apoio matricial do NASF panhamento de grupos/oficinas nas unidades de APS e para a avaliação conjunta da necessidade de
às equipes da ESF, a possibilidade de um trabalho com essas equipes a partir da desconstrução dessas dificul- acionamento dos dispositivos da rede de Saúde Mental, intersetorial ou comunitários.
dades e resistências, levando a diante a proposta da clínica ampliada como diretriz da atenção psicossocial.
O esquema a seguir exemplifica o modo de organização acima proposto para a organização do proces-
so de apoio matricial em um NASF:
3.2. Impasses frequentes no processo de trabalho do NASF
Reunião mensal da
No apoio às equipes da ESF para a ampliação da assistência em saúde mental de um território, a prática unidade: agenda
do NASF pode encontrar alguns obstáculos na direção de sua implementação e da continuidade de seu de encontros com
processo de trabalho. No momento atual de transição e de reorientação do modelo de cuidado promovi- cada equipe
do pela Atenção Primária em Saúde, o NASF é um dispositivo estratégico para a indução de muitas dessas
transformações. Notamos, entretanto, que sua proposta recente e inovadora produz, ainda, dúvidas e di-
ficuldades de compreensão sobre a prática do apoio matricial, tanto por parte dos próprios matriciadores Equipe A: Equipe B: Equipe C:
e das equipes da ESF, quanto por parte dos profissionais e usuários de uma rede mais ampla de assistência Reunião de Reunião de Reunião de
pública. Diante das dificuldades observadas, destacamos algumas ações específicas do matriciamento do equipe 5ª feira equipe 6ª feira equipe 3ª feira
NASF, tentando contribuir para a organização, manutenção e entendimento do seu processo de trabalho. das 9h às 11h das 8h às 10h das 10h às 12h

Reuniões e encontros com as equipes Agendamento de


Discussão de casos Acionamento
Agendamento interconsultas e, Implantação e/ou
Para acompanhar o cotidiano de trabalho das equipes da ESF, o matriciador de saúde mental do NASF e do calendário da rede de SM,
de Consultas e eventualmente, de acompanhamento
para a participação Intersetorial ou
deve participar regularmente das reuniões da unidade, organizando uma agenda em comum com cada VD conjuntas atendimentos de grupos e oficinas
em outras atividades Comunitária
equipe matriciada para o compartilhamento de novas iniciativas ou de ações em curso nestas unidades. individuais
Nesses encontros, é necessário que o matriciador esteja atento às demandas de qualquer membro da
equipe, inclusive dos Agentes Comunitários de Saúde, para que possa oferecer uma resposta ou acolher Convém esclarecer que esta ilustração não representa um modo único de organização do matriciamen-
uma demanda, somente após o esclarecimento das discussões e tentativas realizadas anteriormente pelos to do NASF13, pois seu formato pode variar de acordo com as diversas possibilidades de encontros do
membros da equipe. Compartilhar os cuidados e os saberes presentes na prática coletiva implica o reco- matriciador com as demandas das equipes matriciadas. É preciso, porém, garantir uma agenda regular
nhecimento dos limites encontrados pelas equipes diante das situações de Saúde Mental de um território. de trabalho com as equipes da ESF como uma estratégia imprescindível para que o compartilhamento
do cuidado à clientela de Saúde Mental de um território se efetue no cotidiano da Atenção Primária.
O incentivo e a sustentação da importância do trabalho em equipe é o pivô da prática do apoio ma-
13
tricial. Sem os encontros com as equipes, observamos que a proposta do cuidado compartilhado não As ações que aparecem no esquema acima são apenas algumas indicações derivadas da observação de situações comuns à prá-
tica do NASF. A escolha de uma ou de outra ação deve ser pensada no contexto específico de cada caso e a partir das considerações
pode ser compreendida e, com efeito, surgem impasses como: que as equipes responsáveis estabelecem com as estratégias já adotadas para abordar e cuidar desses casos em seu território.
20 21
Nos encontros e reuniões do matriciador com as equipes da ESF, tem sido comum recolhermos relatos jetivo de um atendimento em conjunto? Por que realizar uma visita domiciliar? Por que atender esta
de adoecimento de alguns profissionais dessas equipes como, por exemplo, dos Agentes Comunitários situação na unidade de Atenção Primária? Quem deve estar presente neste atendimento?
de Saúde. O estresse e o desgaste emocional desses profissionais também se apresentam como uma de-
manda de cuidados dirigida aos matriciadores de saúde mental, especialmente nos territórios de maior A Visita Domiciliar (VD) é um procedimento bastante realizado pelas equipes da ESF e é, também, uma
vulnerabilidade social. Diante destas situações, notamos que o matriciamento também pode operar em ferramenta específica utilizada pelas equipes de Saúde Mental de um CAPS. Mas isto não significa que o
sua função de acolhimento às situações de sofrimento psíquico mais variadas, através da oferta de uma matriciador de Saúde Mental do NASF deve eleger os mesmos critérios utilizados pela equipe do CAPS,
escuta pontual aos profissionais da ESF ou do desenvolvimento de uma estratégia específica elaborada ao acompanhar uma VD realizada pela equipe da ESF. De qualquer modo, é importante que a escolha da
junto às equipes para lidar com tais questões. Entretanto, convém avaliar nos momentos de acolhimen- utilização de uma VD, como um recurso para o contato com o usuário, seja fundamentada na discussão
to dessas demandas, se estas configuram uma demanda de escuta e acompanhamento mais regular e do caso, como uma estratégia clínica. Pode ser estratégico e recomendável a realização do atendimento
frequente. Nessas situações, é recomendável que o matriciador do NASF redirecione esse acompanha- domiciliar para que a equipe se aproxime do contexto social de alguns usuários e de suas famílias, en-
mento a um outro profissional da rede de Saúde Mental, não assumindo a condução terapêutica para quanto que em outros casos, seria igualmente importante encontrá-los fora do seu ambiente familiar,
os profissionais da ESF que compõem a sua equipe de trabalho. através do agendamento de consultas.

Atendimentos Individuais realizados pelos profissionais do NASF Com a chegada da ESF nos territórios, temos observado a identificação de muitas situações de cárcere
privado em relação à clientela de Saúde Mental. Para essas situações, a visita domiciliar tem se apre-
Como vimos anteriormente, o NASF não se constitui como porta de entrada de um serviço de Saúde sentado como um recurso importante, utilizado com bastante frequencia pelo matriciador do NASF,
Mental, mas como uma retaguarda especializada para apoiar uma equipe de Atenção Primária. O aten- para o estabelecimento do primeiro contato e acolhimento das equipes da ESF ao usuário e aos seus
dimento individual com o profissional do NASF não deve, portanto, representar o primeiro contato do familiares. Em geral, esses atendimentos domiciliares, realizados conjuntamente com as equipes da ESF,
usuário com a unidade de APS. Esta forma de atendimento deve ser excepcional, na medida em que facilitam a aproximação das mesmas aos casos de maior complexidade e vulnerabilidade psicossocial,
enfraquece o processo de educação continuada e de corresponsabilização na condução dos casos com com os quais as equipes não se sentem preparadas para atuarem.
as equipes matriciadas. Notamos que o número excessivo de atendimentos individuais realizados por
alguns profissionais do NASF, aponta para o risco de descumprimento da função primordial do apoio Em todas as modalidades de atendimentos conjuntos, porém, é fundamental que o matriciador de Saú-
matricial e de uma ambulatorização de sua prática. de Mental do NASF procure valorizar o que é avaliado pelos profissionais da ESF, a partir de seu olhar
técnico e territorializado, recolhendo suas contribuições para traçar conjuntamente os encaminhamen-
Se, por um lado, o atendimento individual não deve ser uma prática generalizada pela equipe do NASF, tos pertinentes para cada situação. Para isto, é necessário que o matriciador não se prenda ao lugar do
por outro, localizamos algumas situações em que esta pode se oferecer como uma ferramenta interes- ‘especialista de Saúde Mental’, como o único que possui um saber especializado sobre o manejo desses
sante para o trabalho em equipe na APS. Entre elas, destacam-se as: casos, ainda que suas intervenções sejam essenciais. Trata-se de construir coletivamente a função do
apoio matricial de compartilhamento do cuidado, recusando certa hierarquia entre o saber ‘especializa-
■ Situações clínicas de maior complexidade que demandam intervenções breves e pontuais, como as
do’ e o saber ‘generalista’ para o fortalecimento da proposta do cuidado integral em saúde.
de manejo à crise ou àquelas que derivam de perdas significativas ou de episódios de violência;
■ Situações de complexidade leve ou moderada que demandem intervenções breves; Grupos e oficinas
■ Situações particulares em que a necessidade de escuta individualizada é avaliada como um desdobra- O matriciador de Saúde Mental do NASF deve estimular a construção conjunta, com as equipes de Saúde
mento de uma atividade em grupo; da Família e com os demais profissionais do NASF, das estratégias grupais e comunitárias, considerando
■ Demandas de avaliação de encaminhamentos pela rede intersetorial. as demandas de atenção psicossocial mais comuns de sua referência territórial. Se este matriciador ex-
trai, por exemplo, da maioria das equipes matriciadas de uma determinada comunidade, relatos sobre
É importante assinalar que o atendimento individual realizado por um profissional de Saúde Mental do a vida de mulheres sem atividade laborativa ou ocupacional e em uso frequente de benzodiazepínicos
NASF deve acontecer somente por um período delimitado de tempo, preservando, assim, o seu cará- e/ou antidepressivos, seria estratégico pensar nos benefícios e efeitos terapêuticos de uma ação em
ter estratégico e pontual. Se constatada a necessidade de um acompanhamento prolongado e regular grupo ou comunitária para essas pessoas.
desse usuário na rede especializada, estes atendimentos visarão a construção de uma demanda de tra-
tamento, viabilizando o encaminhamento responsável e qualificado para o serviço indicado. Este é apenas um exemplo das diversas situações em que o matriciamento pode provocar uma refle-
xão mais ampla sobre os fatores em jogo no desencadeamento de alguns sintomas psíquicos e sobre
Atendimentos e Visitas Domiciliares conjuntos os modos de resposta tradicionalmente oferecidos para estes: em geral, atendimentos psicológicos e
psiquiátricos individualizados. Se não criarmos um cardápio consistente e ampliado de atividades em
Como vimos, os atendimentos realizados conjuntamente com as equipes matriciadas devem ser, prefe- grupo para casos como estes, limitaremos o alcance do cuidado na Atenção Primária e do apoio matri-
rencialmente, pactuados nas reuniões de matriciamento para que sua pertinência seja avaliada anteci- cial, estendendo o risco de uma ambulatorização excessiva no modo de assistência em Saúde Mental.
padamente. O vínculo do usuário com o seu profissional de referência é um importante critério para a Os grupos na APS podem ser propostos como disparadores de discussões e como dispositivos que pro-
escolha dos membros da equipe que podem participar desses atendimentos. Entre este critério, outros duzem efeitos terapêuticos, ainda que prescindam de técnicas e de metodologias especializadas. Ao
se colocam como questões que antecedem a realização de um atendimento em conjunto: Qual o ob- invés disto, questionamentos simples, como: Por que constituir um grupo? Que efeitos podem ser extra-

22 23
ídos dessa atividade coletiva? Que elementos norteiam a constituição e a implantação dessa prática em
Procedimentos Procedimentos/Turno Turnos/Semana
grupo? São questões fundamentais. Desse modo, os grupos podem ser pensados como ferramentas,
cuja capacidade de transformar e de produzir novos vínculos e efeitos singulares deve ser considerada Mínimo Máximo Mínimo Máximo
em seu processo, e não apenas como mais um produto oferecido no cardápio de ações comunitárias. É Consulta Individual 4 8 0 1
importante que esse valor do dispositivo de grupos na APS esteja incluído na prática do apoio matricial,
Discussão de Caso 6 8
levando as equipes da ESF à percepção de seus efeitos para a produção de saúde mental.
Consulta Conjunta 4 8 3 6
As diferentes modalidade de grupos, como oficinas, rodas de conversa, rodas de Terapia Comunitária, Visita Domiciliar Conjunta 2 3
grupos temáticos, etc., propostos pelo matriciador de Saúde Mental do NASF, devem ser realizados de Grupos 2 1 3
modo compartilhado com outros profissionais das equipes da ESF e, sempre que possível, do NASF. Isto Articulação Intra e Intersetorial 1 -
1 2
implica em evitar propostas de espaços coletivos nas unidades de APS que dependam da presença do Atividades no Território 1 -
matriciador por um tempo prolongado, mantendo sempre uma abertura para que esses espaços pos- Educação Continuada 1 2
sam ser assumidos pelos profissionais da ESF e, portanto, incorporados ao seu repertório de ações con- 0 2
Atividades de Formação 1 -
tinuadas. É recomendável, ainda, que os matriciadores do NASF atentem para o risco de transformação
Reunião NASF/ESF 1 1
dos grupos em espaços de ‘encaminhamentos’ imediatistas para outros serviços da rede, o que resulta
na desresponsabilização por parte das equipes matriciadas em relação aos casos acompanhados. A in- Registro no prontuário eletrônico - 1/2 1
dicação de participação do usuário em um determinado grupo deve ser a consequência da prática do Referência: 40 horas semanais, totalizando 10 turnos semanais.
apoio matricial, e não uma decisão isolada de um membro da equipe.
É importante assinalar que a sistematização acima é um modelo de organização dos turnos de trabalho dos
Recomendação para a organização dos turnos de trabalho dos profissionais do NASF profissionais do NASF, pensado e proposto pelos integrantes do GT NASF Saúde Mental, podendo variar
de acordo com as características de cada território e com as necessárias pactuações com os gestores locais.
Concluindo essa etapa de esclarecimentos sobre o matriciamento de Saúde Mental das equipes do NASF,
destacamos alguns elementos de grande relevância para o cotidiano de sua prática nas unidades de Aten- A organização desta proposta esclarece, portanto, a ênfase aqui demarcada para a prática do apoio
ção Primária: a organização dos turnos de trabalho para o apoio matricial. Consideramos que a importân- matricial através de ações compartilhadas com as equipes da ESF, em detrimento da realização de aten-
cia desse último item é a de contribuir para a construção e para o fortalecimento de estratégias de apoio dimentos individuais, ainda bastante requisitados ao matriciador. Esperamos que esta proposta repre-
às equipes da ESF, superando algumas dificuldades envolvidas no processo de implementação desse tra- sente um importante passo para a estruturação do trabalho do NASF na cidade do Rio de Janeiro.
balho que correspondem, em especial, à falta de entendimento em relação à prática do matriciamento.

Apresentamos, a seguir, um quadro que sintetiza a proposta de organização do processo de trabalho no


NASF Saúde Mental da cidade do Rio de Janeiro, e que foi levada às discussões do Grupo de Trabalho, Considerações Finais
denominado como GT NASF14. No estabelecimento desta recomendação, encontram-se as definições do
número de procedimentos que podem ser realizados em cada turno diário de trabalho do matriciador de Com esses registros, buscamos apresentar e discutir nossas considerações, reflexões e recomendações
saúde mental, bem como do número de turnos semanais para a realização dos respectivos procedimen- sobre a prática do matriciamento na cidade do Rio de Janeiro, baseados na direção de trabalho construí-
tos. Tais definições foram estabelecidas pelos integrantes do GT NASF15 Saúde Mental de modo que sua da, ao longo dos dois últimos anos, pela Assessoria de Matriciamento da Coordenação Municipal de Saú-
aplicação à rotina do trabalho dos profissionais do NASF possa ocorrer de maneira flexível e não estática, de Mental em parceria com os matriciadores da nossa rede de serviços e com gestores das Coordenações
através de um limite mínimo e um limite máximo, tanto em relação aos turnos quanto aos procedimentos. das Áreas Programáticas da cidade. Tais reflexões também foram geradas a partir da capacitação promo-
Esta flexibilidade é fundamental, pois garante maior autonomia para que o matriciador do NASF organi- vida pelo curso BABEL, no período de 2008 a 2012, para os profissionais e gestores da Atenção Primária
ze seu processo de trabalho conforme as necessidades identificadas junto às equipes de cada território. e da Saúde Mental, provocando o encontro entre estes dois campos de saber e de assistência em saúde.

Não chegaríamos até aqui sem a parceria, permanentemente, mantida com esses profissionais de Saúde
Mental para a construção de um trabalho tão recente e inovador para a rede da atenção psicossocial!
Consideramos, então, como algo essencial para o enriquecimento desta publicação, que a presença dos
relatos de experiência, entoados pelos próprios matriciadores e gestores locais comprometidos com
a montagem e sustentação do trabalho matricial, possa retratar o processo que vem sendo construí-
14
do na cidade, a partir das perspectivas singulares desses profissionais e dos territórios e equipes que
Grupo de trabalho conduzido ao longo do ano de 2012 pela Coordenação de Saúde da Família (CSF) da Secretaria Municipal
de Saúde e Defesa Civil da Cidade do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ). O GT NASF envolveu a participação de representantes de
representam. Visualizamos, neste conjunto de relatos, um retrato vivo e precioso de uma prática que,
todas as Áreas Técnicas da SMSDC/RJ e de todas as Coordenações de Área Programática (CAP) dos diferentes bairros da cidade. mesmo em construção, já vem consolidando novos modos de cuidados em saúde e em saúde mental.
15
Grupo de Trabalho composto pela Assessoria de Matriciamento da Coordenação de Saúde Mental, por grupo de profissio-
nais matriciadores de saúde mental e gestores de diversas áreas programáticas da cidade, a fim de discutir questões relevantes
às definições sobre a prática matricial que, entre outros objetivos, subsidiaram a elaboração do conteúdo deste documento.
24 25
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26 27
4. Relatos de Experiências
AP 1.0 – Bairro de Fátima, Benfica, Caju, Catumbi, Centro, Cidade Nova, Estácio, Gamboa, Lapa, Sendo assim, no Pop Rua teríamos desenhado um cenário dos mais equilibrados no que se refere aos sa-
Mangueira, Paquetá, Praça Mauá, Praça Onze, Praça Tiradentes, Praça XV, Rio Comprido, Santa beres. Profissionais médicos clínicos, enfermeiros e dentistas conduzem casos em corresponsabilidade
Tereza, Santo Cristo. com psicólogos, psiquiatra e assistente social, perfazendo uma dinâmica de assistência singular, o que
incorre no matriciamento mútuo, passível de ser realizado entre os membros dessa equipe transdiscipli-
Matriciamento: uma experiência de corresponsabilização. nar. O matriciamento estabelecido nesta posição um tanto quanto diferenciada do sentido tradicional,
não nos furta de alguns esclarecimentos, ficando demarcada, no entanto, uma aposta da equipe: a de
Claudia Gomes de Paula Silva* não nos colocarmos, ao integrar a equipe, em posições diferenciadas no que se refere à categorização de
nossos saberes. Dito de outro modo, todos os profissionais atuam como generalistas, conforme a especi-
O matriciamento, em seu senso mais comum, quando referido à esfera da atenção básica, traça planos ficidade da concepção acima empregada, frente às múltiplas demandas dos sujeitos em situação de rua.
de ação diferenciados, na intenção de situar saberes específicos em corresponsabilidade. O primeiro
desses planos situa os saberes generalistas na Estratégia de Saúde da Família (ESF), cuja responsabilida- A inversão calculada, melhor dizendo, a invenção calculada se deve às circunstâncias especiais nas quais
de é a de conduzir a assistência em saúde. O segundo plano situa os saberes especializados nos Núcleos essa equipe foi constituída, já surgindo com o propósito do acolhimento ampliado às demandas e sob
de Apoio à Saúde da Família (NASF), como saberes responsáveis por instrumentalizar o primeiro plano, o viés de integração entre a saúde mental e a saúde orgânica. Profissionais da saúde mental que seriam
subsidiando outro nível de intervenções no campo da assistência. considerados ‘especialistas’ atuam na ponta, assim como outros profissionais da ESF. A porta de entrada
do serviço, multidisciplinar e com acolhimento transversalizado, permite que o sofrimento seja veículo da
O matriciamento coloca em cena, portanto, os saberes diferenciados por responsabilizações próprias construção de demandas não específicas, não fragmentárias e nem excludentes entre si. Fundamental-
que, apesar de singulares, dialogam entre si. De um lado, encontram-se os saberes responsáveis pela mente, os sujeitos chegam ao serviço porque sofrem e demandam cuidados para esse sofrimento. E é no
condução cotidiana dos casos no acompanhamento aos processos de vida dentro do território dos usu- corpo desses cuidados estabelecidos em parceria, através de estudos e discussões de casos; de consultas
ários. De outro, os saberes que têm, em sua localização, a incumbência de promover a construção de e interconsultas; da criação de projetos terapêuticos no caso a caso; de visitas ao território e de acompa-
um nível de atuação mais específico, porém não menos complexo, como a abordagem de demandas e nhamentos aos procedimentos estabelecidos, sobretudo, através da ferramenta da escuta clínica – dife-
a proposição de ações concernentes às mesmas. Os saberes identificados nesse segundo nível de atua- renciada a cada saber, mas associadas no corpo dos cuidados – que o matriciamento mútuo se constitui.
ção não devem estar localizados na posição de uma transmissão teórica ou de uma orientação formal,
mas na de instigadores da constituição de processos clínicos compartilhados. Tratamos aqui, do saber- As possibilidades de dividir responsabilidades, discutir e planejar conjuntamente, de conhecer o campo de
-fazer corresponsável e não apenas de um saber-pensar-sobre, autônomo, mais convencional. Trata-se atuação do outro e de reconhecer os limites de atuação de cada um – trocando conhecimentos, partilhan-
de uma práxis, necessariamente, em interlocução contínua. do consultas, procedimentos e efeitos das intervenções – definiram para essa equipe um circuito próprio
de matriciamento e de formação continuada. Quaisquer objeções ao fato desse modelo não se adequar
Na Área Programática 1.0, correspondente à área mais central do Rio de Janeiro, a ESF População de Rua ao formato do matriciamento nos parecem, portanto, infundadas, já que os propósitos do mesmo são am-
/ Consultório de Rua ou Pop Rua16 desenvolve, de forma singular, a proposta do matriciamento anterior- plamente alcançados, seja pela promoção de um plano de trabalho compartilhado ou pela capacitação
mente apresentada por dispor de uma equipe com recursos diferenciados: saberes ditos generalistas dos profissionais, intencionando a ampliação da capacidade de intervenção frente aos casos. Sabemos,
convivem com saberes ditos especialistas, ou seja, com a corresponsabilidade de condução dos casos. porém, que essa discussão não finda aqui e que quanto mais avançarmos na proposição de metodologias
Aqui, nos cabe refletir sobre um ponto fundamental: enfermeiros e médicos de família são considerados e análise das mesmas através da práxis instaurada, mais geraremos questões a serem debatidas.
generalistas por não enfocarem aquilo que numa sociedade cada vez mais fragmentária – cuja apro-
priação individualista e segmentária dos termos culturais parece ser o indicativo de garantia na qualida- Atualmente a equipe do Pop Rua conta com doze técnicos de nível superior, cinco de nível médio e
de de abordagem ao mal estar orgânico e psíquico – isola e trata verticalmente os contextos específicos doze agentes comunitários que, diariamente enfrentam o desafio – apesar das dificuldades desenhadas
da doença como questões ‘recortadas’ de um determinado contexto de vida. Norteados pela paisagem pelas demandas múltiplas da população, na maioria das vezes, muito complexas – de empenhar-se na
descrita, permitimo-nos uma hipótese que nos parece, de grande importância: a qualificação de espe- atuação contínua como generalistas, focando na saúde integral e frisando ser uma das linhas mestras
cialista não dependeria da contextualização, da forma pela qual um saber se inscreve na cena de sua dessa atuação: o comatriciamento, ou seja, o matriciamento mútuo.
prática frente ao que demanda um sujeito a partir de seu sofrimento? Se o saber não se apropria dessa
demanda e a isola dos mencionados contextos de vida do sujeito que a faz e da escuta do sofrimento
em sua integralidade, talvez não o possamos designá-lo como um saber especializado e sim, generalis-
ta, na mais complexa acepção do termo.

* Psicanalista, mestranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ, psicóloga do Consultório de Rua da A.P 1.0 e
supervisora do CAPS Linda Batista.
16
A ESF de população de Rua / Consultório de rua tem como objetivo garantir a acessibilidade da população de rua ao SUS,
através do acolhimento das demandas físicas e mentais, visando estabelecer um processo de acompanhamento de casos e
não de intervenções pontuais de tratamento, associando ações em sua sede e na rua (pensada como território físico e sub-
jetivo de referência para os sujeitos atendidos).
28 29
AP 2.1 – Botafogo, Catete, Copacabana, Cosme Velho, Flamengo, Gávea, Glória, Humaitá, Ipane- fissionais de saúde mental – entre eles, psicólogos, psiquiatras, enfermeiros e assistentes sociais – do
ma, Jardim Botânico, Jardim de Alah, Lagoa, Laranjeiras, Leblon, Leme, Rocinha, São Conrado, NASF19, do CAPS III Maria do Socorro Santos e do Centro Municipal de Saúde Píndaro de Carvalho Ro-
Urca, Vidigal. drigues (CMS PCR), que apóiam um total de trinta e duas equipes da ESF. Para definir a distribuição e
a cobertura das equipes da ESF entre esses matriciadores, foram utilizados critérios balizadores como
Deflagrando movimentos, aquecendo redes: os de vinculações prévias e proximidade com a ESF e seu território, das experiências de intervenções
Processos instituintes na implantação do Apoio Matricial em Saúde Mental compartilhadas, dos projetos terapêuticos já construídos e em operação, do número de apoiadores e da
na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro carga horária disponível de cada profissional.

Thiago Monteiro Pithon* Após várias configurações experimentadas, definiu-se que, temporariamente, o CAPS III realizaria o
Joana Thiesen** Apoio Matricial das onze equipes da Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza20, fisicamente
vizinha ao CAPS e integrada a um complexo de serviços de saúde que inclui também uma Unidade
O arranjo do Apoio Matricial inscreve-se, nesse sentido, nas estraté- de Pronto Atendimento (UPA). A equipe de saúde mental do NASF, por sua vez, vem apoiando as oito
gias de implementação de novos arranjos que produzam outra cultu- equipes de SF da Clínica da Família Rinaldo De Lamare, as seis equipes do Centro Municipal de Saúde
ra e outras linhas de subjetivação, que não as centradas notadamente Dr. Albert Sabin e a única equipe do Centro Municipal de Saúde Vila Canoas. O matriciamento de saúde
no corporativismo e na alienação do trabalhador do resultado de seu mental do Centro Municipal de Saúde Píndaro de Carvalho Rodrigues vem se desenvolvendo através
trabalho. A invenção de outra cultura organizacional que estimule o da atuação de dois psiquiatras e uma psicóloga21 junto às duas equipes da ESF-Gávea, localizadas na
compromisso das equipes com a produção de saúde e permitindo- própria unidade, e junto às três equipes do CMS Dr. Rodolpho Perissé (SF Vidigal)22.
-lhes, ao mesmo tempo, sua própria realização pessoal e profissional.
(CAMPOS, 1998, apud OLIVEIRA, 2008, p. 283). Entre os movimentos deflagrados, destaca-se o de produzir ou afinar discursos, entendimentos e prá-
ticas sobre o Apoio Matricial entre os profissionais de saúde mental desses três serviços heterogêneos
Este relato busca discutir algumas reflexões e dar visibilidade a movimentos instituintes do processo de e com atuações e papéis particulares na rede. Foi necessário, então, dialogar a natureza e a capacidade
implantação e organização do Apoio Matricial em Saúde Mental na Área Programática 2.1 (AP 2.1), zona destes serviços com a agenda dos profissionais para esta “função”, ou seja, incorporar o matriciamento
sul do município do Rio de Janeiro. Nessa área, o macroterrório denominado Dois Irmãos, que envolve ao cotidiano do trabalho, superando a lógica de mais uma tarefa a ser executada, tornando-se prática
os bairros Rocinha, Vidigal, São Conrado, Gávea, Leblon, Ipanema Vila Canoas, Jardim Botânico e Lagoa, integrante da gestão do cuidado e ferramenta de educação permanente.
vem contando, nos últimos três anos, com uma ampliação significativa da Estratégia de Saúde da Famí-
lia (ESF). A Rocinha e o Vidigal, por sua vez, já têm a totalidade de suas áreas coberta. Entre os processos instituintes23, destacam-se a reorganização do fluxo de saúde mental no macroter-
ritório Dois Irmãos, tendo a ESF como ordenadora da gestão de cuidado. E isto implica uma melhor
A AP 2.1 alcançou, no ano vigente, a cobertura completa de matriciamento em saúde mental para to- definição sobre a responsabilidade de cada serviço no acompanhamento de usuários com demandas
das as unidades da ESF. Para tanto, a organização do Apoio Matricial foi pautada na escolha estratégica de sofrimento mental, assim como na atenção à crise e no encaminhamento, envolvendo o exercício de
de não reduzir a responsabilidade do apoio às equipes da ESF e às ações do NASF, no que se refere às diálogo, da autonomia e da integralidade por parte da rede na simplificação do cuidado.
demandas de saúde mental. Discutiremos, portanto, o Apoio Matricial como “função”17 que pode ser
compartilhada entre serviços que possuam, no seu staff, profissionais de saúde mental que viabilizem o Uma das ferramentas utilizadas para alinhavar o Apoio Matricial entre CAPS III, o CMS PCR e o NASF foi
apoio na gestão do cuidado e na corresponsabilização dos casos. a supervisão mensal com os matriciadores24 para discutir os encontros com as equipes da ESF, o levan-
tamento das demandas e, entre elas, as gravidades/complexidades/vulnerabilidades apresentadas em
Observa-se que o Apoio Matricial, enquanto arranjo de gestão, configura-se como um dispositivo que cada caso; o uso das diversas modalidades de matriciamento, como visita domiciliar conjunta, atendi-
induz a mudança cultural de práticas de saúde e de organização da rede. Este arranjo coloca continua-
mente em discussão processos e tecnologias de trabalho como: referência e contra referência, coorde- 19
Esta equipe do NASF estava sendo montada, possuindo, até o momento deste relato, dois psiquiatras e uma psicóloga.
nação do cuidado, projeto terapêutico, corresponsabilidade, núcleo e campo18, equipe de referência e 20
O CAPS III se chama Maria do Socorro Santos, uma homenagem a uma usuária de saúde mental falecida em março de
de apoio, assim como o do papel dos serviços que compõem a rede de saúde. 2005, reconhecida pela sua militância e pelas obras de arte que produziu. Sua vida e obra podem ser pesquisadas no http://
www.rubedo.psc.br/socorro.htm. A Clínica da Família faz homenagem à nordestina Maria do Socorro Silva e Souza que foi
No desenho proposto, por exemplo, para o macroterritório Dois Irmãos, estão envolvidos quatorze pro- uma das primeiras agentes de saúde moradora da Rocinha, falecida em setembro de 2004. Mais sobre sua história pode ser
encontrada em http://smsdc-clinicadafamilia-mariadosocorro.blogspot.com.br/p/conheca-esta-estoria.html.
21
* Psicólogo, Assessoria de Saúde Mental / Grupo Articulador sobre Violência - DAPS / CAP 2.1. Esta psicóloga atua em ambos os serviços, NASF e CMS. A equipe de Saúde Mental do CMS Píndaro tem uma segunda
psicóloga, mas que não atua no apoio matricial, atendendo os casos com indicação ambulatorial.
** Psiquiatra matriciadora do NASF Dois Irmãos. 22
17 A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ) divide as unidades de saúde da atenção básica como Tipo
Devemos entender “função” aqui como oposição à ideia de cargo, tarefa obrigatória ou atribuição exclusiva. Função por
A (só possui equipes de Saúde da Família) e unidades Tipo B (Saúde da Família e ambulatório). O CMS Píndaro de Carvalho
ser um arranjo que tem características e possibilidades de intervenção mutáveis, e sem uma validade predefinida ou vitalícia,
Rodrigues é uma unidade Tipo B, enquanto os demais CMS, unidades de SF e Clínicas da Família aqui relatados são de Tipo A.
podendo até deixar de existir quando cumpre com seus objetivos.
23
18 Segundo Baremblitt (2002), são momentos de transformação institucional, forças que tendem a transformar as institui-
O núcleo demarcaria a identidade de uma área de saber e de prática profissional; e o campo, um espaço de limites impreci-
ções ou também que tendem a fundá-las quando ainda não existem.
sos onde cada disciplina e profissão buscariam em outras apoio para cumprir suas tarefas teóricas e práticas (CAMPOS, 2000,
24
apud CAMPOS, 2000). Texto on line disponível em: Essa supervisão é organizada pela assessoria de Saúde Mental da CAP 2.1 e é realizada com todos os matriciadores do
<http://www.gastaowagner.com.br/index.php/component/docman/cat_view/1-artigos?Itemid= >). macroterritório Dois Irmãos.
30 31
mentos conjuntos, discussões de caso, ações territoriais ou grupais etc; as articulações intersetoriais; acompanhamento especializado. Seguindo essa configuração, a capacidade resolutiva da ESF é amplia-
as estratégias de aproximação entre as equipes mais resistentes ao matriciamento; participação nas da para o acompanhamento dos casos leves e moderados de maior prevalência populacional como os
reuniões de equipe e a montagem das agendas. Com muita frequência, foram estabelecidas, ainda, transtornos mentais comuns que envolvem os transtornos de ansiedade, de humor, queixas somáticas
estratégias de apoio aos próprios profissionais da ESF em sofrimento emocional. difusas (poliqueixosas), sofrimentos psíquicos de intensidades variadas que não fecham diagnóstico.
Tal resolutividade se amplia, ainda, no acompanhamento de usuários crônicos de benzodiazepínicos,
Partindo da premissa de que o Apoio Matricial é um dispositivo técnico-pedagógico em que a troca de de casos de desintoxicação alcoólica e de ações de redução de danos, entre outras previstas na Carteira
saberes e o compartilhamento de ferramentas se colocam em ato, ampliando a capacidade de análise de Serviços da ESF25.
e ação dos trabalhadores, foi pactuada uma direção de trabalho com os gerentes, diretores, coorde-
nadores das unidades e matriciadores. Essa direção passou a priorizar o atendimento conjunto como Esse é um desenho de rede em construção, com avanços e recuos constantes, mas que já possibilita as
estratégia principal, pois este aponta para um maior êxito em cumprir sua função de dispositivo de co- primeiras avaliações para uma adaptação e expansão às demais macroáreas da Zona Sul da cidade.
produção de saúde e de autonomia se comparado com a discussão de caso utilizada de modo exclusivo.
Como diz Oliveira (2008: 283): Referências

O Apoio Matricial introduz no processo de trabalho novas possibi- BAREMBLITT, G. F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 5ed. Belo Ho-
lidades de troca de saber entre profissionais de saúde em diversos rizonte: Instituto Felix Guattari, 2002.
níveis de atenção, favorecendo, também, maior articulação e qualifi-
cação da rede de serviços que compõem a rede de saúde. CAMPOS, G. W. S. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar
o trabalho em equipes de saúde. In: E. E. MERHY & ONOCKO, R. (Org.). Agir em saúde: um desafio para o
Em outras palavras, as equipes precisam ver resolutividade nos encontros com os matriciadores, caso público. São Paulo-Buenos Aires: Hucitec-Lugar Editorial, 1998.
contrário, ficarão desestimuladas. Uma estratégia, portanto, é a de focar as consultas conjuntas. Nestas,
o paciente é acompanhado pela equipe da ESF e pelo matriciador de modo corresponsável. Nas discus- CAMPOS G. W. S. O anti-Taylor e o método Paidéia: a produção de valores de uso, a construção de sujei-
sões de caso, o paciente é apenas acompanhado pela primeira, enquanto nos atendimentos individuais tos e a democracia institucional. Tese de livre-docência. Campinas/ SP, Faculdade de Ciências Médicas
realizados pelo matriciador, o paciente é apenas deste último. da Universidade de Campinas (UNICAMP), 2000.

Outra importante pactuação feita para garantir a regularidade do Apoio Matricial e para induzir o seu CAMPOS G. W. S. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência e Saúde
processo com as equipes da ESF foi a de definir, junto aos gerentes das unidades de Saúde da Família, Coletiva, Rio de Janeiro, 5(2): 219-230, 2000. Disponível em: http://www.gastaowagner.com.br/index.
que os encontros de matriciamento em saúde mental deveriam acontecer, com cada equipe, no míni- php/component/docman/cat_view/1-artigos?Itemid=. Acessado em 20 ago. 2012.
mo, um turno por mês. Assim, os gerentes ficariam responsáveis por acompanhar a construção dessas
agendas e por viabilizar a aproximação dos matriciadores com as equipes de referência. OLIVEIRA, G.N. Apoio Matricial como Tecnologia de Gestão e Articulação em Rede. In: CAMPOS, G,W,S, &
GUERRERO, A.V.P. (Org). Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. Minis-
A experiência de reunir matriciadores do CAPS III, do CMS PCR e do NASF nas supervisões aponta para tério da Saúde, SUS, Organização Pan-Americana da Saúde, UNICAMP, 2008;
um aumento da capacidade de diálogo entre estes serviços e as equipes da ESF, uma vez que quase
todos os matriciadores são trabalhadores dos serviços de saúde mental, ambulatório e CAPS III, onde
são atendidos os casos mais graves. Este compartilhamento qualifica e simplifica a gestão do cuidado, Psiquiatria e Matriciamento
a resolutividade das equipes da ESF na condução dos casos e os encaminhamentos que passam a ser
feitos após avaliação conjunta com o matriciador. Com efeito, o próprio matriciador do CMS PCR ou do Patrícia Schmid*
CAPS III pode passar a agendar para ele ou para sua equipe um caso que matriciou, desburocratizando
o cuidado e otimizando o tempo de resposta para o caso. - Venha de salto baixo, pois amanhã faremos uma VD no Santo Amaro26.

Em última análise, observa-se um reflexo direto do efeito articulador do Apoio Matricial para a orga- A prática de um psiquiatra que realiza Matriciamento em Saúde Mental pode ser bem ilustrada
nização do fluxo da rede, a partir do acolhimento e da porta de saída destes serviços. O CAPS III tem pela frase acima. Faz-se necessário tirar os saltos altos – ou os sapatos sociais nos casos masculinos – e,
avançado na “desambulatorização” da sua clínica, conduzindo de modo responsável as demandas que principalmente, nos desnudarmos dos preconceitos para seguir na direção de uma prática tão próxima
não necessitam uma intensividade do cuidado, tanto por parte da equipe de saúde mental do ambu- das comunidades. Isto não significa um desnudamento da técnica, nem uma menor valorização desta.
latório quanto para as equipes da ESF. Estas, por sua vez, com sua capacidade resolutiva ampliada, tem Ao contrário, isto significa realizar intervenções técnicas que qualifiquem a vida das pessoas, mas des-
qualificado os encaminhamentos para o CAPS III, mudando assim o perfil da porta de entrada para o
atendimento à crise e às gravidades maiores. * Psiquiatra do CMS Manoel José Ferreira, Mestre em Saúde Mental IPUB/UFRJ, Especialização em Saúde Pública e Saúde
Mental JHU/EUA.
25
Documento disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/smsdc/exibeconteudo?article-id=1233196 ou
Já o ambulatório, nas áreas em que existe cobertura de Saúde da Família, tem mobilizado um esforço
http://www.4shared.com/dir/3Rzv8ulo/_online.html#dir=286410734, acessado em 20/08/2012.
para assumir seu papel de trabalhar as gravidades que não são perfil CAPS, mas que precisam de um 26
E-mail recebido pela médica de família da Equipe Águia da ESF / CMS Manoel José Ferreira.

32 33
providas dos rigores tradicionais e das burocratizações; conforme expressa o Guia Prático de Matricia- Outro viés fundamental da ação de um psiquiatra no matriciamento é o de orientar as equipes para a des-
mento em Saúde Mental (2011): medicalização dos problemas da vida. Vivemos tempos de uma psiquiatria maciçamente ‘medicalizante’.
E esse tipo de prática se apresenta historicamente com consequências nefastas, vide os inúmeros depen-
A nova proposta integradora visa transformar a lógica tradicional dentes químicos de benzodiazepínicos, que lotam os ambulatórios de saúde mental. Como uma alterna-
dos sistemas de saúde: encaminhamentos, referências e contra-refe- tiva para essa clientela que busca na medicação um ‘alívio’ para os problemas diários, a equipe da ESF tem
rências, protocolos e centros de regulação. Os efeitos burocráticos e realizado a Roda de Terapia Comunitária, conforme a técnica idealizada por Adalberto Barreto (2007)29.
pouco dinâmicos dessa lógica tradicional podem vir a ser atenuados
por ações horizontais que integrem os componentes e seus saberes A Terapia Comunitária é um instrumento que nos permite construir
nos diferentes níveis assistenciais. (2011:13) redes sociais solidárias de promoção da vida e mobilizar os recursos
e as competências dos indivíduos, das famílias e das comunidades.
Ao psiquiatra que exerce a ação de matriciamento cabe, portanto, dar suporte às equipes das Estratégias Procura suscitar a dimensão terapêutica do próprio grupo, valorizan-
de Saúde da Família (ESF) na direção de construir ações que garantam a assistência desses profissionais do a herança cultural dos nossos antepassados indígenas, africanos,
aos casos de saúde mental. Ações conjuntas que permitam seguir um acompanhamento e não encami- europeus e orientais, bem como o saber produzido pela experiência
nhar os casos. Falamos de ações que se sustentam, ainda que o usuário necessite de suportes mais in- de vida de cada um.
tensivos de cuidado em outros serviços de saúde mental. Nessa direção, as atividades do matriciamento
incluem a discussão de casos, as consultas conjuntas e as visitas domiciliares. A elaboração do projeto A Roda Comunitária acontece semanalmente no CMS Manuel José Ferreira e o estímulo da cliente-
terapêutico de cada usuário deve, necessariamente, envolver os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) la para participação nela tem se desdobrado como uma ação cotidiana do matriciamento em saúde
como personagens fundamentais para o sucesso de qualquer plano de trabalho na atenção primária. mental. Os resultados desta ação são, ainda, iniciais, mas já notamos uma participação regular de al-
guns moradores da comunidade e uma crescente adesão da parte desses. Trata-se, entretanto, de uma
O Centro Municipal de Saúde Manoel José Ferreira27 vem desenvolvendo, desde 2011, ações de matri- proposta contra cultural, uma vez que a cultura vigente é medicalizante. Levará algum tempo para as
ciamento em saúde mental através da atuação de profissionais de psicologia e de psiquiatria. Tais ações, comunidades compreenderem que medicação não trata os problemas e, sim, as doenças. E que medi-
intensificadas recentemente, vêm produzindo efeitos significativos. Um dos efeitos pode ser encon- car os problemas pode produzir outras doenças, não trazendo uma ajuda efetiva para o usuário. Apesar
trado no Blog da Saúde da Família do Catete28, através de um texto e de um vídeo acerca do trabalho dessas dificuldades, a Terapia Comunitária seguirá como uma ação essencial para as equipes da ESF.
realizado com um morador que há oito anos não saía de casa. Trata-se de um jovem psicótico, filho de
uma funcionária da limpeza do CMS Manoel José Ferreira que só conseguiu falar com detalhes sobre O matriciamento é uma ferramenta de trabalho delicada que deve ser utilizada com precisão. Sustentar
seu filho após a visita de uma ACS. Nas discussões de matriciamento, pensamos ações em conjunto ações junto às equipes da ESF nem sempre é fácil, uma vez que encontramos casos muito graves. A pre-
como a medicação injetável em casa e traçamos o acompanhamento delicado do caso nos dias seguin- sença dessas equipes nas comunidades revela problemáticas encobertas e situações jamais abordadas
tes. Os medos da equipe também foram levados em consideração e a questão do estigma em relação a por qualquer serviço público, em qualquer dimensão (saúde, assistência social ou segurança pública).
pacientes com transtorno mental foi discutida. A proximidade com a ACS – que vive na comunidade e O desejo de encaminhar para um setor mais especializado aparece, mas nos cabe redimensionar o de-
conhecia a família de longa data – facilitou a aceitação da abordagem proposta, assim como a dedica- sejo e transformar encaminhamento em parceria. Desse modo, um morador psicótico pode se tratar no
ção da médica e da enfermeira da equipe no acompanhamento do usuário em questão. Hoje, o rapaz sai CAPS e, ainda assim, ser visitado pelo ACS e atendido pelo médico de família.
de casa, ajuda sua mãe e segue em tratamento com a equipe de Saúde da Família, sendo acompanhado
regularmente em conjunto com a psiquiatra matriciadora da equipe. Estamos apenas começando. Esperamos que o matriciamento em saúde mental sirva, principalmente,
para a inserção e inclusão permanente das pessoas com transtorno mental nas ações integralizadas de
Outro morador, residente na comunidade Tavares Bastos, andarilho do bairro, com o diagnóstico de es- saúde, situação da qual tais usuários estiveram desde sempre excluídos. Notamos que os profissionais
quizofrenia, recolhe sucatas e ‘enlouquece’ a mãe com seus ‘pertences’ descobertos no lixo. Nas consultas das ESF estão conscientes dessa tarefa, colocando-se como parceiros no cuidado e dispostos aos en-
com o médico de família, a mãe fala do quanto o filho lhe causa problemas. Após algumas interconsultas frentamentos. Isto faz toda a diferença e permite que o desafio de atender demandas de saúde mental
com a psiquiatra matriciadora, a equipe opta pela visita domiciliar. Nesse momento, a mãe revela as na comunidade aconteça e seja bem sucedido.
dificuldades que vive com seus outros filhos, relata grandes conflitos, demonstrando precisar de ajuda.
Propomos e ela aceita participar na Roda Comunitária. Na volta da VD, em conversa com a ACS e com o Referência
médico de família, pensamos nas possibilidades de ofertas terapêuticas para aquela família, discutindo
de que modo o filho psicótico acabou se tornando um ‘aglutinador’ das queixas da mãe. Na verdade, nos CHIAVERINI. D. H (Org.) et al. Guia prático de matriciamento em Saúde Mental. Brasília: Ministério da
parecia que o filho psicótico era o que menos gerava conflitos na família. Estigmatizado por ser doente Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011.
mental, a presença da equipe na casa desse usuário pôde redimensionar sua problemática, verificar suas
potencialidades e ajudar na elaboração de ações que envolvessem os demais membros familiares.

27
Unidade B com ambulatório de Saúde Mental, localizado na Rua Silveira Martins, 161 – Catete. Parte dos profissionais ds
equipe de Saúde Mental desta unidade realiza ações de matriciamento junto às equipes da ESF do referido CMS.
28 29
Acessível em http://smsdc-sf-catete.blogspot.com.br/p/acs-historias.html Disponível em: http://www.institutoser.com.br/ApresentacaoCanal.aspx?rpt=143
34 35
AP 2.2 – Alto da Boa Vista, Andaraí, Grajaú, Maracanã, Muda, Praça da Bandeira, Tijuca, Usina e O atual contexto da Atenção em Saúde Mental na AP 2.2
Vila Isabel.
De acordo com os dados do Censo de 2010 temos, na AP 2.2, uma população composta por 371.120
Cuidado Compartilhado em Saúde Mental na Atenção Primária: pessoas. Tendo como referência as estimativas do MS citadas anteriormente, verificamos que aproxima-
a integração com o ambulatório damente 10.000 pessoas (3% da população) teriam transtornos mentais severos e persistentes e 30.000
pessoas (9% da população) apresentam transtornos menos graves, constituindo a demanda potencial
Berenice Ribeiro* de cuidado em saúde mental na nossa área. Temos hoje, na AP 2.2, quatro unidades de atendimento
Maria José Costa do Lago** ambulatorial em saúde mental: três da Secretaria Municipal de Saúde (SMSDC/RJ) – Centro Municipal
Vera Helena Juliano Pereira*** de Saúde Heitor Beltrão, Centro Municipal de Saúde Maria Augusta Estrella e Policlínica Hélio Pellegrino
Adriana Almeida**** (com 13 psicólogos e 8 psiquiatras, sendo que dois trabalharam somente três meses no ano e se apo-
Sandra Fortes***** sentaram, e um ficou em licença médica durante seis meses), e uma da UERJ – Policlínica Piquet Carnei-
ro (PPC) – que realizam atendimentos individuais e grupais.
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as relações entre as equipes da Estratégia de Saúde da Famí-
lia (ESF) e os especialistas de Saúde Mental no que tange aos cuidados compartilhados com os pacientes a Os números de atendimentos informados30 pelas unidades da SMSDC/RJ demonstram que, em 2011,
partir da experiência da Área Programática 2.2 do Rio de Janeiro. A utilização do termo cuidado comparti- foram realizadas 361 consultas de primeira vez em psicologia, ou seja, em média, trinta novos pacientes
lhado se justifica pelo fato de que, sendo a ESF responsável por um território adscrito, todos os moradores por mês, o que equivale a uma média de dois pacientes novos, por mês, por psicólogo. Acreditamos
daquele território são de sua responsabilidade sanitária e, portanto, de sua responsabilidade de cuidado. que estes números estão subinformados já que sabemos que todas as unidades contam com grupos de
recepção semanais de saúde mental de novos pacientes, e que nem todos os pacientes são absorvidos
Conforme demonstrado no Documento de 2009 da OMS e WONCA, as perturbações mentais afetam em consultas individuais, mas que devem ser considerados como pacientes novos, que foram acolhidos
centenas de milhões de pessoas e, se não tratadas, cobram um enorme preço em termos de sofrimento, e que muitos tiveram sua demanda atendida nos encontros grupais. No mesmo período, a psiquiatria
invalidez e perda econômica. Porém, apesar das possibilidades de ajuda terapêutica, apenas uma pe- atendeu 1.077 novos pacientes, noventa pacientes novos por mês, com a média de quinze pacientes
quena minoria daqueles que o necessitam, recebem o atendimento mais básico. novos por psiquiatra (cálculo ajustado às aposentadorias e licenças médicas ocorridas no decorrer do
ano) por mês, ou praticamente um paciente novo por turno de atendimento. Quanto ao número de
Segundo estimativas internacionais e do Ministério da Saúde (MS) 3% da população necessita de cuida- consultas realizadas em 2011, a psicologia fez 11.726 consultas individuais e 731 grupos, e a psiquiatria
dos contínuos (transtornos mentais severos e persistentes) e mais de 9% precisa de atendimento even- 7.798 consultas individuais e 35 grupos.
tual (transtornos menos graves). Pesquisas mostram que nos atendimentos na Atenção Primária (AP)
A análise destes números demonstra que há uma maior facilidade de acesso à psiquiatria, porém, com
existe um grande percentual de pacientes que apresentam transtornos mentais comuns, definidos como
um espaçamento maior entre as consultas de acompanhamento, enquanto nos atendimentos da psi-
quadros de sofrimento psíquico cuja intensidade é suficiente para alterarem, significativamente, a ativi-
cologia verifica-se uma permanência de longo prazo dos pacientes e uma dificuldade de acesso ao
dade diária das pessoas. Estes quadros correspondem, geralmente, aos sintomas depressivos e ansiosos,
cuidado regular para novos casos. Além disso, essas intervenções são realizadas sem um contato direto
seguidos de queixas somáticas. Mas a tarefa assistencial na AP inclui problemas como a detecção, a abor-
com as comunidades.
dagem e o tratamento de pacientes com graves transtornos mentais que não têm acesso ou que aban-
donaram o tratamento adequado; de crianças com dificuldades de aprendizado encaminhadas pelas Objetivando aproximar os especialistas da realidade de trabalho das equipes da ESF e da realidade
escolas, e de pessoas que fazem uso nocivo, mas nunca antes abordado, de álcool ou de outras drogas. de vida das comunidades iniciou-se, há quatro anos, um projeto piloto de integração das unidades
ambulatoriais com a AP através do matriciamento, incluindo a participação da UERJ com a proposta
O matriciamento em Saúde Mental junto às Equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) representa de integração da formação de graduação (Residência Médica) e de pós-graduação (Especialização em
uma nova forma de interconexão entre os serviços primários, secundários e terciários em saúde, ofere- Psicologia Médica) com a Rede do SUS da AP 2.2 e com a comunidade no território.
cendo suporte técnico em saúde mental para as Equipes de Referência da Atenção Primária. Situa-se, por-
tanto, na interface entre as práticas e saberes da Saúde Mental e o campo da Atenção Primária em Saúde, Temos, atualmente, no matriciamento em saúde mental quatro psiquiatras e quatro psicólogos apoian-
estruturando atividades multiprofissionais e interdisciplinares. Atua também na educação permanente, do 15 equipes da ESF e dando cobertura para aproximadamente 60.000 pessoas. Cada equipe tem um
podendo integrar ensino, pesquisa e assistência. No cenário da Atenção Primária, as ações de Saúde Men- turno mensal de interconsulta com o matriciador de psicologia e psiquiatria, centrada nas consultas
tal não podem ser restritas aos transtornos psiquiátricos, pois incluem a promoção de saúde, a prevenção conjuntas, englobando ainda as visitas domiciliares, as reuniões para discussão dos projetos terapêuti-
de agravos e o desenvolvimento de ações que permitam a ampliação da qualidade de vida, o resgate da cos dos pacientes em acompanhamento pela ESF, o desenvolvimento de grupos e de ações interdisci-
cidadania e o apoio às situações de violência, de conflitos familiares e/ou na própria comunidade. plinares. Em sua maioria, os matriciadores possuem turnos de “ambulatórios de retaguarda”, podendo
receber pacientes que necessitem de atendimento especializado.
* Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica e Saúde Pública, CAP 2.2/Divisão de Ações e Programas de Saúde.
A produtividade do matriciamento em psicologia demonstra a facilitação do acesso, tendo em vista que
** Psicóloga, Núcleo de Saúde Mental/ Policlínica Piquet Carneiro/UERJ.
apenas três matriciadores de psicologia, em um turno mensal, registraram o atendimento de 236 novas
*** Psicóloga, CAP 2.2/Centro Municipal de Saúde Heitor Beltrão. pessoas em 2011, numa média de 59 novos pacientes por psicólogo.
**** Psicóloga, CAP 2.2/Divisão de Ações e Programas de Saúde.
30
***** Médica Psiquiatra, Policlínica Piquet Carneiro/Faculdade de Ciências Médicas/UERJ. MS / SE / DATASUS / GIL
36 37
Na Atenção Primária, a demanda de saúde mental se apresenta na crise hipertensiva, na dificuldade de cial, em relação àqueles que não se estabilizam e que demandam cuidado compartilhado. Os recursos
adesão aos tratamentos, nas frequentes ‘dores de barriga’ de uma criança, no absenteísmo escolar etc. psicossociais do território de moradia dos pacientes não são conhecidos pelo especialista isolado na
Na verdade, o número de atendimentos que chega ao especialista, representa uma parcela mínima da unidade ambulatorial, o que o impede de incentivar a procura desses recursos pelos usuários. Trata-se,
prevalência de problemas de saúde mental. A AP se encontra, então, diante do desafio de detectar e portanto, de um processo de superação do medo e do desconhecimento por parte dos profissionais da
cuidar do grande número de “50% da clientela atendida nas unidades” de casos com problemas de saú- ESF sobre a inserção do cuidado em saúde mental no cotidiano de suas ações e, ao mesmo tempo, da
de mental de menor gravidade, utilizando tecnologias leves de cuidado e, ao mesmo tempo, oferecer o superação desse desconhecimento e descrédito por parte dos especialistas em relação aos recursos da
cuidado compartilhado dos casos mais graves diante de sua responsabilidade territorial. Por outro lado, ESF. O matriciamento articulado ao cuidado ambulatorial apresenta um novo caminho de integração,
o ambulatório especializado também assume o desafio de ampliar a sua porta de entrada para os casos de construção de novas formas de cuidados e alternativas para a vida de nossos usuários.
que forem detectados no território pelas equipes da ESF com os matriciadores e que necessitarem do
atendimento especializado. Referências

Para que o cuidado compartilhado venha a ser efetivo e eficaz, é necessário um bom fluxo de comuni- BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação de Saúde Mental e Coordenação de Gestão da Atenção Bá-
cação entre a AP e os especialistas dos ambulatórios, promovendo a integração destes dois dispositivos sica. Saúde Mental e Atenção Básica. O Vínculo e o Diálogo Necessários: Inclusão das Ações de Saúde
e a dissolução das limitações atualmente existentes para o compartilhamento do cuidado. Não se trata Mental na Atenção Básica. Brasília, 2003. Site: http://portal.saude.gov.br. Acessado em junho de 2012
de substituir o atendimento ambulatorial especializado pela atividade de matriciamento em suas ações
de saúde mental realizadas junto às equipes de ESF. A vocação e a estratégia do matriciamento é o FORTES, S.; LOPES, C. S.; VILLANO L. A. B.; LUIZ, A. B.; CAMPOS, M. R.; GONÇALVES D. A.;MARI, J. J. Transtor-
cuidado compartilhado. O principal desafio colocado para o matriciador é o de não reproduzir na AP o nos mentais comuns em Petrópolis-RJ: um desafio para a integração da saúde mental com a estratégia
modelo de assistência ambulatorial especializada, mas desenvolver novas práticas e novas intervenções de saúde da família. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, 33(2):150-156, jun. 2011
conjuntamente com a ESF.
FORTES, S.; VILLANO, L. A. B. ; LOPES, C. S. Nosological profile and prevalence of common mental disor-
A partir dessa realidade, algumas inovações já vêm sendo realizadas na AP 2.2, contando com o trabalho ders of patients seen at the Family Health Program (FHP) centers in Petrópolis, Rio de Janeiro. Revista
integrado entre o ambulatório e a ESF através do matriciamento. Com a implementação do acesso pela Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, 30(1): 32-37, mar. 2008.
ESF aos medicamentos controlados e a presença regular do matriciador psiquiatra, houve um avanço
significativo no cuidado na AP, em especial, em relação a quadros mais graves e persistentes não trata- OMS. WONCA. Integração da saúde mental nos cuidados de saúde primários: Uma perspectiva global,
dos, como também vem permitindo que psiquiatras dos ambulatórios possam transferir uma parcela 2009. Site:http://www.who.int/eportuguese/publications/Integracao_saude_mental_cuidados_prima-
do cuidado dos pacientes estabilizados para a ESF. Esta transferência, porém, necessita ser realizada rios.pdf
a partir da presença dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e dos matriciadores de saúde
mental para que as equipes possam se empoderar do seu potencial de detectar e de cuidar, incluindo o
atendimento esporádico das consultas especializadas. É necessário que a ESF tome conhecimento dos
tratamentos psiquiátricos e de sua prescrição medicamentosa para que o aumento de seu poder de
resolutividade seja incorporado até mesmo nas situações de crise, comuns no cotidiano da AP. Esta in-
tegração tem ocorrido através da estruturação de um turno de atendimento ambulatorial especializado
na PPC/UERJ para que o matriciador, que atua como retaguarda para as equipes da ESF, também ofereça
um cuidado mais intensivo para os casos mais graves.

Em relação ao atendimento realizado pelos profissionais de psicologia, por exemplo, o encaminhamen-


to para o turno ambulatorial do matriciador de saúde mental demonstra ser mais efetivo do que o en-
caminhamento direto para os serviços especializados. Isto facilita o acesso, a maior adesão do usuário
e a comunicação entre profissionais de uma equipe. No entanto, diante da grande demanda, verifica-
-se que, novamente, este “ambulatório de retaguarda” rapidamente se sobrecarrega, fato que nos leva,
hoje, a interrogar sobre os critérios que devemos adotar para oferecer este dispositivo. Nota-se, com
isso, a importância de novas modalidades de cuidado, de novas intervenções terapêuticas interdiscipli-
nares, serem implementadas na AP. Este é o nosso desafio no momento.

Essas novas práticas de cuidado compartilhado entre ESF, matriciadores de saúde mental e serviços
especializados, potencializam a capacidade e aproveitam os recursos da Atenção Primária. Observamos
que a ESF é capaz de recolher informações sobre o paciente – suas condições de vida, relacionamentos
familiares etc. – que não chegam ao conhecimento dos especialistas nos ambulatórios. Além disso, os
vínculos potentes com as famílias e com a comunidade podem auxiliar na condução de casos, em espe-

38 39
AP 3.1 – Bancários, Bonsucesso, Brás de Pina, Cacuia, Cidade Alta, Cidade Univesritária, Cacotá, Com- Iniciamos o trabalho com o compromisso de agenciarmos um conjunto de ações clínicas e de gestão
plexo do Alemão, Complexo do Caricó, Cordovil, Freguesia, Galeão, Grotão, Ilha do Governador, Jar- compartilhada, envolvendo vários atores e profissionais nessa tomada de posição. Muitas reuniões de
dim América, Jardim Carioca, Jardim Guanabara, Jequiá, Manguinhos, Maré, Moneró, Morro do Den- equipe foram dedicadas à discussão e à organização deste trabalho e, antes mesmo do funcionamento
dê, Nova Holanda, Olaria, Parada de Lucas, Penha, Penha Circular, Pitangueira, Portuguesa, Praia da integral das atividades do CAPS, os profissionais já se organizavam para que um turno de trabalho fosse
Bandeira, Ramos, Ribeira, Roquete Pinto, Tauá, Vigário Geral, Vila Cruzeiro, Vila do João, Zumbi. dedicado exclusivamente ao matriciamento em saúde mental. Esta foi uma tarefa direcionada para todos
os profissionais do serviço, incluindo a equipe de técnicos de enfermagem e de oficineiros que também
A Implantação do Matriciamento do CAPS III João Ferreira junto às equipes se organizavam em ‘duplas’ de matriciadores, com um profissional de nível superior e um de nível médio.
da Estratégia de Saúde da Família na AP 3.1
A atuação dos profissionais do CAPS no território passou a estar vinculada à presença da ESF, já que não
Ana Adler Vainer* conhecíamos bem o lugar e, tampouco, éramos conhecidos. A necessidade de parceria com a ESF para
Fatima Virginia Siqueira de Menezes Silva** entrar nesse território tornou-se, então, um facilitador no processo de implantação do matriciamento,
Marcia Cristina Bezerra Tavares*** assim como para a confirmação da potencialidade do CAPS como serviço de base territorial.
Patricia Vieira de Matos****
Renata da Silva Miranda***** O matriciamento ampliando o cuidado
Wagner Monteiro Erlangen******
O matriciamento realizado pelo CAPS vem se desenvolvendo a partir da construção de parcerias de
O início do trabalho: a construção do matriciamento
trabalho que potencializam a atuação da ESF no cuidado integral à saúde. Como uma nova forma de
A implantação do matriciamento do CAPS III João Ferreira da Silva Filho junto às equipes de Estratégia de produzir saúde a partir da ampliação dos olhares e da construção compartilhada do cuidado, o matricia-
Saúde da Família (ESF) na AP 3.1 será o tema de nosso breve relato que terá a intenção de compartilhar a mento proporcionou, de saída, a troca de saberes entre as duas equipes: a da Saúde Mental e a da Saúde
experiência coletiva da construção do Apoio Matricial e seus efeitos na rede de cuidados em saúde mental. da Família. Esses encontros trouxeram a oportunidade do entrosamento entre as equipes e da realiza-
ção do cuidado integral. Antes de discutir um caso e de compartilhar a construção de uma intervenção,
Tudo começou há exatos dois anos com a inauguração do CAPS III no Complexo de Favelas do Alemão. por exemplo, era preciso que as equipes se conhecessem e compreendessem a forma diferente, porém,
O Centro de Atenção Psicossocial João Ferreira da Silva Filho é respaldado pela Portaria n. 336/ GM de necessariamente aproximada de trabalhar.
2002 que define o CAPS III como um serviço de atenção diária e de funcionamento 24 horas. Este é um
serviço de referência para usuários com quadro de sofrimento psíquico grave e severo, cujo tratamento Muitas vezes, os encontros de matriciamento começaram com conversas sobre saúde mental: ouvir as
visa à reinserção social através de ações intersetoriais e de base territorial, bem como o acolhimento à equipes, saber de sua compreensão sobre a saúde mental, de suas dúvidas e preconceitos, nos permi-
crise, evitando recorrer às internações nos hospitais psiquiátricos. tiu abordar alguns temas como vínculo, acolhimento, escuta clínica, diagnóstico, trabalho em grupo e
equipe multidisciplinar. Em vários encontros, acolhemos também as questões específicas das equipes
Desde seu início, o CAPS é convocado, a partir de uma diretriz traçada pela Coordenação de Saúde da ESF. Escutamos e aprendemos sobre ‘como é ser agente comunitário de saúde’: suas dificuldades, al-
Mental da Cidade do Rio de Janeiro, ao trabalho de matriciamento como um novo arranjo institucional gumas histórias pessoais, as cobranças das gerências das unidades e da população, seus medos em lidar
de apoio às equipes da ESF. Tomada como uma tarefa do serviço, a prática do matriciamento passa a ser com pacientes com transtorno mental e suas inseguranças em falar sobre o tráfico e sobre os usuários
desenvolvida em um território coberto por vinte equipes da Estratégia da Saúde da Família, apoiando, de drogas no Complexo do Alemão.
assim, a organização no nível da atenção primária em saúde. Na ocasião, este território não contava com
o recurso do NASF em seu planejamento de expansão da rede de atenção básica e era totalmente domi- No início, a maioria das reuniões de matriciamento acontecia fora da reunião de equipe da ESF, che-
nado pelo poder paralelo, com becos e vielas ocupados por “meninos do tráfico” fortemente armados. gando a ser realizada semanalmente. No entanto, o momento era também o da expansão do número
de profissionais nas equipes, tanto do CAPS quanto da ESF, e das consequentes mudanças nos horários
Endolação, venda e consumo de drogas de maneira explícita e abusiva eram, portanto, características e na organização dos processos de trabalho. Com essas mudanças, passamos a estabelecer encontros
desse território. Estávamos diante de um cenário cujos aspectos demandavam da saúde pública saídas quinzenais entre as equipes realizados, preferencialmente, durante as reuniões de equipe da ESF. As
complexas que nos colocavam na direção necessária de incorporar outros parceiros e práticas de cuida- mudanças de matriciadores, em função da troca de horários, tal como a alta rotatividade de profis-
do fora do campo da saúde mental. Foi, então, um desafio implantar o CAPS III como um novo serviço de sionais da ESF, principalmente, de médicos e enfermeiros, muitas vezes impediram a continuidade do
atenção psicossocial da cidade, iniciando, ao mesmo tempo, a atividade do matriciamento. Havia pouca trabalho que, por isso, tinha que ser constantemente reiniciado.
clareza sobre o assunto e sobre essa prática: o que é o matriciamento? Essa era uma pergunta comum
aos profissionais do CAPS e da ESF. Com a parceria estabelecida entre o CAPS e a ESF houve um ganho imediato para os usuários já refe-
* Psicóloga do CAPS III JF/SMDC-RJ, CAP 3.1, especialista em saúde mental ridos ao CAPS. A aproximação do trabalho através do matriciamento, além da proximidade geográfica
entre o CAPS e as Clínicas da Família, possibilitou o acompanhamento de demandas clínicas e do cuida-
** Enfermeira da CAP 3.1 SMDC-RJ, especialista em saúde mental.
do integral aos usuários. Pudemos acompanhar com satisfação os relatos de consultas com os usuários
*** Psicóloga do CAPS III JF/SMDC-RJ, CAP 3.1, especialista em saúde mental.
do CAPS para avaliação de hipertensão e diabetes, para a inserção no programa de odontologia, para a
**** Psicóloga, diretora do CAPS III JF/SMDC-RJ, CAP 3.1, especialista em saúde mental realização dos curativos diários, entre tantas outras situações.
***** Psicóloga do CAPS III JF /SMDC-RJ, CAP 3.1, especialista em saúde mental.
****** Psicólogo do CAPS III JF /SMDC-RJ, CAP 3.1, mestre em clínica psicanalítica.
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Inicialmente, o recurso da visita domiciliar (VD) era bastante solicitado aos matriciadores pelos profis- do trabalho coletivo. Com o caminho percorrido até aqui, é possível constatar como o CAPS no papel de ma-
sionais da ESF, seguindo a lógica de atuação freqüente dos agentes comunitários de saúde (ACS). Pouco triciador assume seu protagonismo para a construção deste processo. Temos experimentado um trabalho
a pouco, introduzimos a importância da discussão do caso na reunião de equipe da ESF como um modo vivo, em ato, na construção permanente da lógica do apoio matricial que dá condições para a existência do
de conhecer a situação do usuário e de aproximação do caso, sem que fosse necessário realizar a VD cuidado em saúde mental ‘do lado de fora’ do CAPS, sustentado pela disponibilidade das equipes em cons-
como primeiro recurso. As consultas conjuntas também foram ofertadas como uma ferramenta para a truir, a cada dia, num território de tantas tensões e desafios, o acesso ao cuidado em saúde mental.
aproximação da equipe do CAPS aos casos de saúde mental acolhidos nas Clínicas de Família. Ao mes-
mo tempo, notamos que somente através das visitas domiciliares seria possível atender e acompanhar Referência
casos muito graves como, por exemplo, os de cárcere privado. Em relação a esses casos, observamos
uma ampliação significativa do acesso ao tratamento ao identificarmos que alguns destes usuários já BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Legislação em Saúde Mental 1990-2002 . 3ed. Brasília:
haviam sido atendidos em serviços de saúde mental em algum momento de suas vidas, mas não con- Ministério da Saúde, 2002.
seguiram dar continuidade ao tratamento.

Muitas situações graves, trazidas pelas equipes da ESF para o matriciamento, exigiram da equipe do
CAPS o estabelecimento de ações conjuntas de trabalho para casos como o de M.: mulher, 48 anos,
moradora da Grota, comunidade do Complexo do Alemão. M. passava o dia todo na rua catando lixo e
colocando-o em um carrinho de mão para depositar em sua casa ou vender. A situação de insalubridade
e de risco de desabamento da casa mobilizou diversos atores do território: a ESF, o CAPS, a Defesa Civil,
a Comlurb, a associação de moradores, o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, responsável
por melhorias de urbanização –, o gabinete da Casa Civil, entre outros. Anos antes da chegada do CAPS
nesse território, uma ação para a remoção do lixo acumulado na casa de M. resultou em sua internação
em um hospital psiquiátrico da cidade, cujos efeitos foram devastadores. Apesar da urgência de todos
que nos exigiam uma “solução”, o trabalho proposto pelo CAPS a partir do cuidado compartilhado foi o
de acolhimento, escuta e defesa dos direitos de M., sendo preciso negociar, em vários momentos, um
tempo marcado pela construção de uma resposta coletiva desses diversos dispositivos que garantisse
um lugar para M. Este caso se destaca, portanto, pela quantidade de atores envolvidos, pela parceria
com a ESF e pelo acolhimento que dispensou o recurso da internação psiquiátrica, ilustrando algumas
das situações clínico-pedagógicas e de gestão compartilhada que o matriciamento promove.

Atualmente, o trabalho compartilhado dos casos de saúde mental vem se dirigindo não só para os
casos mais graves, mas também para a construção coletiva de dispositivos de acompanhamento aos
casos mais leves de sofrimento psíquico junto à ESF, o que nos coloca diante de um novo desafio para
o matriciamento em saúde mental. Percebemos, porém, que as equipes ainda não se sentem totalmen-
te preparadas para absorver toda esta demanda, entendendo muitas vezes que esta tarefa caberia ao
‘especialista’ de saúde mental.

Trabalho em construção: um caminho a percorrer

Após dois anos de trabalho, já podemos recolher alguns efeitos significativos do trabalho de matricia-
mento desenvolvido pela equipe do CAPS João Ferreira junto às equipes da ESF do Complexo do Ale-
mão. No que concerne à melhoria do cuidado, confirmamos a possibilidade da construção permanente
de uma rede de atenção em saúde para os moradores do território, afirmando o lugar do CAPS como
serviço de base totalmente territorial. Nesta tarefa, também podemos confirmar um protagonismo ne-
cessário do CAPS ao promover uma circulação de lugares no processo de trabalho, na qual o CAPS apóia
e é, ao mesmo tempo, apoiado por seus parceiros.

Vivemos hoje uma maior aproximação da ESF nos cuidados em saúde mental na medida em que essas equi-
pes já se autorizam a ousar, um pouco mais, nas ações do campo atenção psicossocial, ampliando o acesso
e promovendo aos usuários uma atenção integral. Do mesmo modo, tal aproximação permite incorporar ao
cotidiano desse trabalho algumas iniciativas da clínica da atenção psicossocial como incremento da lógica

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AP 3.2 – Abolição, Água Santa, Árvore Seca, Cachambi, Cotia, Del Castilho, Encantado, Encontro, O início da implantação do NASF foi marcado, então, por um período de descoberta, tanto por parte dos
Engenho da Rainha, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Gambá, Higienópolis, Inhaúma, Jacaré, profissionais recém contratados quanto por parte das equipes da ESF, em relação ao modo como o Nú-
Jacarezinho, Lins de Vasconcelos, Maria da Graça, Méier, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha, São cleo de Apoio a Saúde da Família deveria atuar no território. Cada equipe de NASF começou a organizar
Francisco Xavier, Todos os Santos, Tomás Coelho. sua agenda de trabalho, preservando os dias da semana em que a maioria dos profissionais da ESF e do
NASF estaria presente na unidade de saúde. Atualmente, esta organização tem favorecido a constituição
Práticas em Equipe: o processo de constituição do NASF de uma equipe de trabalho para que, desta maneira, os profissionais envolvidos se apóiem mutuamente.
e o deslocamento do lugar do especialista
Neste primeiro momento, o cenário do apoio matricial esteve composto do seguinte modo: um grupo de
Carolina Cardoso Manso* especialistas, selecionados a partir de seus saberes específicos e que não possuía uma experiência prévia
sobre o modo de atuação do NASF. Nosso desafio era, portanto, o de construir, em conjunto com as equi-
O convite para elaborar um relato de experiência sobre práticas interdisciplinares entre profissionais do pes da Estratégia da Saúde da Família, de que modo se daria o apoio matricial na prática desses profis-
Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) nos convocou a um exercício de reflexão sobre o processo sionais. Assim, apesar das diferentes especialidades, o que nos ligava era o “não saber” em relação ao tra-
de implantação das equipes de NASF da Área Programática 3.2 do município do Rio de Janeiro. Preten- balho associado à tarefa de construí-lo. Compreendemos que este “não saber” comum a todos favorece,
demos examinar as possíveis contribuições deste processo para as práticas interdisciplinares ou, até de modo significativo, o aprendizado sobre o NASF, na medida em que isto nos impulsiona à construção
mesmo, transdisciplinares31 no campo da saúde mental em sua atuação na atenção básica. coletiva do apoio matricial e do compartilhamento, indispensável, de saberes sobre a clínica e o cuidado.

A partir do presente texto, compartilharemos de que maneira as equipes de NASF têm se constituído Diante disso, percebemos que para a realização desta tarefa não poderíamos contar apenas com as
nesta área, entendendo que este processo de formação de equipe favorece o encontro entre diferentes nossas especialidades, melhor dizendo, não poderíamos ser um grupo de especialistas trabalhando em
saberes em prol da promoção de cuidado. É importante ressaltar que a constituição do NASF na A.P. conjunto, pois era necessário trocar, compartilhar e produzir novos saberes sobre as possíveis formas de
3.2 vem se desenvolvendo a partir de um campo de experimentação e de reflexão baseado em nosso promover um cuidado integral. Era preciso conhecer o campo de conhecimento do outro e, além disso,
próprio cotidiano de trabalho que se apropria das produções teóricas sobre o tema e dos relatos de im- o cotidiano de trabalho da ESF – dos Médicos, Enfermeiros, Agentes Comunitários de Saúde, Técnicos de
plantação de NASF em outros municípios. Mais do que apresentar experiências exitosas, pretendemos Enfermagem e da Equipe de Saúde Bucal –, e do território que iríamos apoiar, tal como a rede de saúde
relatar os desafios, as fragilidades e os impasses encontrados nesse processo, destacando as potenciali- já existente. Enfim, era importante conhecer todos os dispositivos do universo de trabalho das equipes
dades e as estratégias que já puderam ser criadas até o momento. da ESF, dos profissionais do NASF e do território.

Iniciaremos o relato, resgatando o início deste processo. Em julho de 2011 foram contratados os primei- Em uma visita domiciliar que, a princípio, visava à aproximação de uma pessoa com sofrimento mental,
ros profissionais para compor três equipes de NASF que apoiariam o total de trinta e quatro equipes além do Enfermeiro e do Psicólogo, o Nutricionista também esteve presente. Na discussão sobre um
da Estratégia da Saúde da Família (ESF). Em dezembro de 2011, em virtude da expansão da cobertura paciente diabético, com vários riscos de saúde, participaram, além da equipe da ESF, o Fisioterapeuta, o
de ESF no território, mais três equipes de NASF foram contratadas, ampliando, então, o apoio matricial Nutricionista, o Educador Físico e o Psicólogo. Do mesmo modo, em uma capacitação para a ESF sobre
para, em média, oitenta e uma equipes de ESF, número que se mantém até o presente momento. Logo dislipidemia33 esteve presente toda a equipe do NASF. Para nós, foi importante estarmos juntos em to-
que os profissionais foram contratados, realizamos a divisão dos mesmos em equipes interdisciplinares, das as atividades para que pudéssemos ter contato com o campo de conhecimento de diferentes profis-
de modo que cada equipe do NASF pudesse apoiar, no máximo, quinze equipes da ESF, conforme a sionais e, com isso, somar, interferir e, até mesmo, estranhar esses campos para iniciarmos a construção
orientação do Ministério da Saúde32. do apoio matricial, seguindo o direcionamento da clínica ampliada.

As categorias profissionais que atualmente compõem todas as seis equipes de NASF da área são: Nu- Segundo Campos e Domitti (2007), a proposta do Apoio matricial é, antes de tudo, uma metodologia
tricionista, Psicólogo, Educador Físico e Fisioterapeuta. Além destes profissionais, existem duas equipes de gestão e um arranjo organizacional que visa ampliar as possibilidades de realização de uma efetiva
de NASF compostas por Terapeuta Ocupacional, duas compostas por Médico Psiquiatra, duas equipes clínica ampliada e a integração entre distintas especialidades e profissões. Ressaltam que a abordagem
compostas por Médico Pediatra e uma composta por Médico Ginecologista. Com o objetivo de coorde- do apoio matricial desloca o poder do saber do especialista para o poder de gestão da equipe interdis-
nar as seis equipes apresentadas, foram contratados, ainda, dois Assistentes Técnicos que, em conjunto ciplinar, afirmando que nenhum especialista isoladamente pode assegurar uma abordagem integral.
com as equipes de NASF, organizam e direcionam o processo de trabalho dos profissionais citados.
Deste modo, o especialista é contratado para o NASF não para exercer prioritariamente o seu ‘especia-
lismo’ e sim, para compartilhar, construir e inventar, conjuntamente com outros saberes, diferentes mo-
dos de produzir saúde de forma integral. O profissional do NASF não é aquele que define a direção do
cuidado, ao contrário, seu campo de conhecimento deve se misturar e se reconstruir, continuamente, a
* Psicóloga, Mestre em Psicologia, Assistente Técnica NASF A.P. 3.2
31
partir de outros saberes: dos saberes de outros profissionais, dos usuários e do território no qual o NASF,
Segundo Passos e Benevides (2000) a transdisciplinaridade ocorre quando os limites entre as diferentes disciplinas é per-
turbado, já a interdisciplinaridade ocorre quando se cria uma zona de interseção entre as diferentes disciplinas, porém as
a partir de agora, faz parte. Cabe ao ‘especialista’, em muitos momentos, desocupar este lugar para que
fronteiras disciplinares são mantidas. Pelo fato deste ser um breve relato de experiência, não será possível nos aprofundar- uma construção coletiva e efetiva de cuidado se torne possível.
mos nas definições de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, porém cabe apontar que talvez a noção de transdiscipli-
naridade seja mais adequada para a proposta do NASF. 33
Termo genérico para o aumento de triglicerídios e/ou colesterol, corresponde a um fator de risco para o desenvolvimento
32
Referência à Portaria GM nº 2488 de 21 de outubro de 2011. de placas de aterosclerose no interior das artérias podendo causar infarto agudo do miocárdio.
44 45
O descolamento desse lugar, porém, não tem se configurado uma tarefa fácil. Uma das dificuldades procurem também esses dispositivos. Outra estratégia que começamos a realizar recentemente é a do
surge da prática de grande parte dos profissionais do NASF que se depara com a necessidade de não mapeamento realizado com as ESF dos casos e situações de saúde mental do território. Atualmente,
responder apenas a partir de sua formação profissional para que possa lidar com uma gama maior de exploramos o levantamento das famílias e das pessoas que indicaram certa demanda de cuidados em
situações de saúde. Identificamos que uma parcela considerável desta dificuldade se associa ao fato de saúde mental quando foram cadastradas. Através deste levantamento, as equipes da ESF e do NASF
que o lugar de ‘especialista’ é um lugar conhecido e, portanto, seguro. A proposta do apoio matricial começam a conhecer os casos e a construir, quando necessário, um projeto terapêutico para cada situa-
como compartilhamento do cuidado é um desafio e uma novidade. É importante, então, se arriscar ção. Este mapeamento tem movimentado as equipes em torno do tema da Saúde Mental, promovendo
nesta nova forma de trabalhar. uma maior aproximação por parte das equipes em relação aos usuários.

Outra importante dificuldade encontrada se refere ao modo como somos cotidianamente convoca- Temos, ainda, um longo caminho a percorrer tanto na direção da constituição e da qualificação das
dos pelas equipes da ESF a responder sobre determinado sofrimento, partindo do lugar “daquele que equipes do NASF quanto na da promoção de um cuidado integral e ampliado. Entretanto, a partir da ex-
possui o saber” e do que “teria todas as respostas para isto”. O pedido se remete, geralmente, ao enca- periência já obtida, podemos afirmar que o trabalho do apoio matricial está intimamente ligado à pos-
minhamento do caso e não ao compartilhamento do cuidado, já que a expectativa é a de que iremos sibilidade de entender o indivíduo de forma não fragmentada e, sim, complexa. Entendemos que mais
“resolver” uma situação de sofrimento sem que, para isso, a equipe da ESF se implique neste processo. importante do que ser especialista de um determinado campo de saber é a possibilidade de levar em
Em relação ao campo da Saúde Mental, esta última dificuldade se intensifica. Notamos que quando se conta o conhecimento do indivíduo, do território e dos profissionais envolvidos no cuidado. Somente o
trata do sofrimento mental, a maioria dos profissionais da Saúde da Família não se sente capaz de lidar saber do especialista não basta. Diante disso, compreendemos que a qualidade do cuidado em saúde
ou de aprender a manejar tais situações. Nossa percepção é a de que diante de uma pessoa com um não se localiza em um profissional, em uma profissão ou em um campo de saber específico, mas na
sofrimento psíquico, a maioria dos profissionais da ESF e, muitas vezes, do próprio NASF, entende que possibilidade de compor e de considerar todos os aspectos envolvidos no processo de saúde-doença.
somente um psicólogo ou um psiquiatra encontra possibilidades de ação.
Referências
Cada vez mais temos compreendido que uma das principais tarefas do profissional de Saúde Mental
no NASF é a de facilitar que o profissional da ESF – e até mesmo de outras categorias profissionais do BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretri-
NASF – se sinta capaz de se aproximar das situações de sofrimento mental, de acolhê-las, ouvi-las, de zes do Nasf: Núcleo de Apoio a Saúde da Família. Brasília, Caderno de Atenção Básica, n. 27, 2010
cuidar de sua saúde física que, em geral, fica esquecida, construindo com o usuário em questão, uma
rede de apoio. Para isto, temos criado algumas estratégias a fim de favorecer o encontro entre NASF e CAMPOS, G.W.S.; DOMITTI, A.C.D. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão
ESF e o deslocamento do lugar do “especialista”, aproximando essas equipes das questões e situações do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(2):.399- 407 , feve-
que envolvem o cuidado em Saúde Mental. reiro, 2007.

Cada equipe de NASF, além das consultas e visitas domiciliares conjuntas, tem procurado estabelecer COIMBRA, C.M.B.; LEITÃO, M.B.S. Das essências às multiplicidades: especialismos psi e produções de sub-
encontros periódicos com cada equipe da ESF, de modo que os profissionais da equipe de apoio e da jetividade. Documento eletrônico disponível em http://www.slab.uff.br/textos/texto51.pdf. Acessado
Estratégia de Saúde da Família estejam presentes. Estes encontros buscam fortalecer o vínculo com em agosto de 2012.
a ESF através de discussões de casos e da construção conjunta de projetos terapêuticos singulares.
Além disso, cada equipe de NASF realiza apresentações sobre o papel do NASF para que as equipes da PASSOS, E.; BARROS, R.B. A construção do plano da clínica e o conceito de transdiciplinaridade. Psicolo-
ESF possam compreender melhor a idéia do compartilhamento do cuidado e do apoio matricial. Outra gia: Teoria e Pesquisa, Brasília,16(1):.71-79, 2000.
estratégia que temos utilizado é a realização das Oficinas de Qualificação do processo de trabalho do
NASF como proposta da Coordenação de Saúde da Família (SMSDC/RJ), cuja finalidade é a de favorecer
o trabalho em conjunto entre essas duas equipes.

Somadas a estas estratégias, realizamos reuniões mensais com cada equipe de NASF, incluindo todos
os seus profissionais. O objetivo é o de garantir um espaço de reflexão sobre o processo de trabalho e
de fortalecimento do trabalho em equipe. Desenvolvemos, ainda, encontros periódicos de cada eixo
temático do NASF, como por exemplo, Saúde Mental, Reabilitação e Atividade Física, para que os profis-
sionais possam discutir o que é específico de cada um desses eixos ou de sua profissão. Refletir e discutir
sobre os limites e possibilidades de cada profissão no NASF, sobre o que é possível ou não de ser com-
partilhado com as equipes da ESF, revelou-se um importante exercício para qualificar o nosso trabalho.
Em relação à aproximação das questões de saúde mental e à desconstrução da ideia de que o espe-
cialista é necessário em toda e qualquer intervenção de saúde mental, pudemos desenvolver novas
estratégias. Realizamos apresentações para a ESF sobre essa temática, participamos e propomos rodas
de conversa de saúde mental com os dispositivos da rede e incentivamos a participação das equipes da
ESF nos Fóruns de Saúde Mental para que conheçam a rede de saúde mental e para que, aos poucos,

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AP 3.3 – Acari, Anchieta, Barros Filho, Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Cavalcanti, Coelho Neto, Conversando com os ACS, testemunhei relatos impressionados com as condições de vida que encontra-
Colégio, Costa Barros, Engenho Leal, Guadalupe, Honório Gurgel, Irajá, Madureira, Osvaldo Cruz, vam, causando-lhes certa preocupação com o que poderiam fazer para transformar aquela realidade:
Parque Anchieta, Pavuna, Praça do Carmo, Quintino, Ricardo de Albuquerque, Rocha Miranda, Turia- como as ações de saúde poderiam promover alguma mudança naquele cenário? A sensação transmitida
çu, Vaz Lobo, Vicente de Carvalho, Vila Cosmos, Vila da Penha, Vilage, Vista Alegre, Parque Colúmbia. pelos ACS era a de que, naquele território, a autoestima das pessoas “era muito baixa”, as necessidades eram
muitas e o que teriam para oferecer não “daria conta” de tantas dificuldades. Com isso, tornou-se comum a
“Final Feliz”, casa 11: relato de uma intervenção em saúde mental no território. demanda por atendimento em saúde mental para aquelas pessoas, mas na perspectiva de um atendimen-
to individualizado: “todos precisam de algum atendimento de psicologia”, diziam os agentes comunitários.
Luara Fernandes França Lima* Sobre essa demanda, no entanto, nos questionávamos: que tipo de “atendimento de psicologia” seria efi-
caz naquele território com tamanha situação de vulnerabilidade, social, econômica e ambiental? O mais
Este relato foi construído a partir da experiência como psicóloga matriciadora do Núcleo de Apoio à importante era, então, pensar nas ações implementadas por esta equipe de saúde e de que modo estas
Saúde da Família (NASF) Nascimento Gurgel que atuou no apoio ao Centro Municipal de Saúde Sylvio se configuravam como intervenções em saúde mental, entendendo que estas ações poderiam produzir
Frederico Brauner, com oito equipes de saúde da família, localizado no bairro de Costa Barros, na Zona transformações no contexto de relações que se dão no território do qual passam a serem atores.
Norte do município do Rio de Janeiro. Falar deste território implica em caracterizá-lo, principalmente,
pela sua densidade populacional, pelas condições de vida de seus moradores e pela atuação de institui- Na chegada ao “Final Feliz”, a equipe da ESF sentiu a necessidade de organizar minimamente aquele
ções governamentais ou não governamentais, embora ainda haja muitas coisas a dizer. espaço, numerando as casas e mapeando o local. As primeiras ações de promoção de saúde foram os
grupos de escovação com a equipe de Saúde Bucal e as atividades de educação em saúde com divul-
Território é lugar, espaço geográfico. Mas é também espaço onde ocorre a vida, onde pessoas se rela- gação de informações sobre doenças sexualmente transmissíveis e sobre doenças crônicas. Para ações
cionam, se organizam e constituem modos singulares de afetar e de serem afetados por este contexto. futuras, a equipe procurou ouvir os moradores e identificar a necessidade de novas parcerias, como as
Um território tem uma história construída através da cultura, dos costumes e das redes de poder que o estabelecidas com os Agentes de Endemias para a desratização e para promover atividades relaciona-
compõem (Oliveira e Furlan, 2010). Ao longo do tempo, estas relações se modificam através das chega- das à questão do lixo e do contato com os equipamentos da Assistência Social. Uma das repercussões
das e partidas, dos encontros, dos agrupamentos e das associações que vão acontecendo. dessas ações foi, por exemplo, a de ouvir de alguns moradores relatos sobre a importância de possuírem
agora um endereço, uma identidade naquele local e a de se ‘territorializarem’. Saber que o lixo acumula-
A Estratégia Saúde da Família (ESF), política adotada pelo governo brasileiro para o fortalecimento da do pode provocar a transmissão de doenças também produziu outra relação com aquele lugar.
Atenção Primária em Saúde a partir de 1994 (Brasil, 1994), intensifica a relação do cuidado em saú-
de com o território. Serviços organizados em equipes multiprofissionais responsáveis por uma área de A expansão da ESF tem como um de seus objetivos a ampliação do acesso à saúde. A população mo-
abrangência relativamente pequena, com agentes comunitários de saúde (ACS) percorrendo o territó- radora do “Final Feliz”, assim como outras áreas precárias da cidade, demanda hoje cuidados em saúde
rio cotidianamente, têm a potência de atuar de forma mais consistente, compreendendo os processos de forma ampliada, nos impulsionando a pensar muito além da cura das doenças ou da vacinação das
de saúde e de adoecimento das pessoas, levando em consideração o território do qual faz parte. Na ESF crianças, por exemplo. As grandes problemáticas sociais presentes neste território colocam para cada
o território é o fio condutor de suas ações, na medida em que a oferta, principalmente, de atividades equipe a necessidade de elaborar estratégias diferenciadas evidenciando, com isso, o desenvolvimento
coletivas e a organização do serviço devem ser flexíveis às necessidades de saúde que se revelam ali. de práticas de promoção de saúde como ferramentas para a ampliação da clínica. Essas práticas reque-
rem, mais uma vez, colocar o usuário no centro das discussões para que se definam os melhores arran-
Em agosto do ano de 2011, quatro meses após o início do trabalho de matriciamento em saúde mental jos dos serviços e as relações estabelecidas com a população que vive em um determinado território.
no Centro Municipal de Saúde Sylvio Frederico Brauner, o território de abrangência desta unidade de A partir destas afirmações, esclarecemos o quanto ações como estas, protagonizadas por uma equipe
saúde passou por um processo de expansão para que cada uma das equipes da ESF atingisse o limite de de saúde, têm a potência de produzir transformações na rede estabelecida por relações, fazendo com
4 mil pessoas cadastradas, conforme preconizado pela Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2006: que se operem transformações subjetivas. Através do acolhimento e da troca em relação a estratégias
26). Com isso, uma das equipes passou a abranger a área denominada “Final Feliz”, localizada no limite de cuidado, as pessoas mudam também o olhar sobre si mesmas, apropriando-se deste novo olhar e
entre os bairros de Costa Barros e Pavuna. Ao longo do cadastramento da área, a equipe foi compreen- criando outras formas de lidar com o cuidado, com o corpo e com seu território.
dendo as especificidades do local e as necessidades da população.
Referências
O “Final Feliz” é uma ocupação com significativa parcela de moradores migrantes, na maioria mulheres
que vivem sozinhas com seus filhos, pois também são comuns as histórias de homens que foram presos BRASIL. Ministério da Saúde. Programa de Saúde da Família, Brasília, COSAC, 1994.
ou que não registraram seus filhos. Uma grande quantidade de pessoas povoa os bares logo pela ma-
nhã e os ACS relatam uso abusivo de drogas na rotina de grande parte dessa população. As mães decla- BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, 2007.
ram não saber a data de nascimento de seus filhos e que alguns não têm registro civil. As casas são, em
sua maioria, construídas de maneira informal com material aproveitado como placas e tapumes, sem LANCETTI, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2006.
saneamento adequado, sem numeração ou ruas nomeadas. A associação de moradores tinha apenas
seis meses de funcionamento na ocasião da chegada da equipe da ESF. OLIVEIRA, G. N.; FURLAN, P. G. Co-produção de projetos coletivos e diferentes “olhares” sobre o território.
In: CAMPOS, G. W. S. e GUERRERO, A. V. P. (Org.). Manual de práticas de Atenção Básica: saúde ampliada
* Psicóloga especialista em Saúde da Família pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ). NASF Nascimento e compartilhada. 2ª ed. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2010.
Gurgel, AP 3.3.
48 49
AP 5.1 – Bangu, Barata, Campo dos Afonsos, Coréia, Deodoro, Jardim Novo, Jardim Sulacap, Ma- Um dos fatores limitantes, no entanto, encontrava-se na própria rotina de trabalho dos profissionais das
galhães Bastos, Mallet, Marechal Hermes, Padre Miguel, Periquito, Realengo, Rio da Prata, Santo equipes de saúde da família ainda baseada em uma lógica de cuidado fragmentado. Além disso, o hábito
André, Sapo, Senador Camará, Vila Aliança, Vila Kennedy, Vila Militar, Vila Vintém. do encaminhamento ao especialista e a preocupação constante com metas de produtividade compro-
metia a disponibilidade dos profissionais para a oferta de uma atenção integral ao usuário que chegava
Cuidado em saúde mental no contexto da violência armada em meio urbano: ao serviço. O cuidado com as questões de saúde mental que envolviam o acompanhamento dos usuários
a invisibilidade do problema e os desafios para o matriciamento. passou, então, a ser interpretado pelas equipes como uma ‘atribuição a mais’, ou seja, como algo que lhes
exigiria mais tempo e paciência, como se não fosse compatível com as atribuições da atenção primária.
Marcello Roriz de Queiroz*
Angelica Vilarim** A apropriação gradual do cuidado em saúde mental pelos profissionais da ESF demandou discussões
sistemáticas com as equipes. Destacar a necessidade do trabalho, tendo em vista o perfil epidemio-
A proposta deste relato é a de apresentar as atividades de suporte às pessoas afetadas pela violência lógico do território, negociar possibilidades de intervenção, definir prioridades e incentivar a corres-
armada em meio urbano que vem sendo desenvolvidas pelas equipes de referência da Estratégia de ponsabilização entre as equipes foram ações sustentadas constantemente pelo matriciador durante
Saúde da Família (ESF) com o apoio matricial. A iniciativa de implementar estratégias de saúde mental as reuniões. Mostrar-se parceiro através da escuta dos próprios profissionais em suas vulnerabilidades
dirigidas ao tema da violência através da ESF é fruto da parceria institucional da Coordenação de Saúde – como medo e sensação de impotência – nesse processo de trabalho, também possibilitou uma maior
Mental da cidade do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ) com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)34. aproximação do matriciador com os profissionais da equipe de referência, facilitando a incorporação do
Este relato tem como foco a apresentação das atividades desenvolvidas pelas equipes da ESF na comu- tema da Saúde Mental no processo de trabalho das equipes.
nidade de Vila Vintém, no período de abril de 2010 a maio de 2012.
Paralelamente a este trabalho de aproximação e de incorporação das questões de saúde mental à prá-
A comunidade de Vila Vintém, localizada no bairro de Padre Miguel, possui uma população aproximada tica da saúde da família, foi possível discutir o tema da violência, até então naturalizado e ‘invisível’37.
de 20 mil habitantes e conta com cinco equipes da ESF. Essa comunidade, historicamente associada à Na medida em que os impactos da violência na vida da população foram se tornando visíveis para os
escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, vive há alguns anos sob constantes situa- profissionais, os casos foram identificados mais facilmente, o que proporcionou a realização de atendi-
ções de violência armada ocorridas, ora entre grupos de traficantes rivais, ora entre estes grupos e as mentos individuais e a formação de grupos terapêuticos. Os protagonistas das intervenções passaram
forças policiais. As marcas da violência são visíveis nos muros das casas e, ainda, pela escassez de servi- a ser os próprios profissionais das equipes de referência com o apoio do matriciador. Observamos que
ços públicos e comunitários35. o estabelecimento do vínculo de confiança das equipes da ESF com o matriciador de saúde mental foi,
aos poucos, sendo reproduzido na relação das equipes com os usuários.
As estratégias de cuidado à população afetada pelas situações de violência armada incluem, então, a ca-
pacitação dos profissionais para abordagem aos usuários, supervisões mensais e atividades de cuidado Durante a reunião de matriciamento, discutia-se o projeto terapêutico mais adequado para cada usuário,
às equipes da ESF36. A proposta tem por objetivo sensibilizar os profissionais da ESF sobre a necessida- respeitando a particularidade de cada situação. Após a escuta empregada pelos profissionais das equipes
de do suporte às pessoas afetadas pela violência no nível da Atenção Primária em Saúde, ampliando e de referência – médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde –, e a con-
qualificando o cuidado com os usuários. Esta iniciativa possibilita, portanto, a realização de um trabalho sulta individual realizada por médico ou enfermeiro38 39, era oferecido ao usuário a participação no grupo
integrado entre as equipes de Saúde da Família e de Saúde Mental, desmistificando a especialidade psi terapêutico (focal e de duração breve) criado a partir deste projeto, ou outras estratégias de cuidado, tais
como a única capaz de oferecer suporte as situações de sofrimento emocional. como atendimentos individuais regulares, consultas conjuntas do profissional da ESF com o matriciador
e indicações para as atividades de promoção em saúde realizada na própria unidade de atenção primária.
A aposta neste trabalho conjunto surge como um estímulo à abordagem do cuidado integral, tornando
possível a identificação de pessoas em condição de sofrimento psíquico cujos sintomas eram avaliados O grupo, atualmente, vem sendo coordenado em parceria entre o matriciador, o médico ou o enfermeiro
clinicamente de forma objetiva e totalmente dissociados do seu contexto de vida. No processo de im- de uma das equipes de referência e é realizado em oito encontros consecutivos, dentre os quais ocorre
plantação e de sustentação deste trabalho, o maior desafio consistia na sensibilização das equipes pela um atendimento individual como etapa intermediária. Tendo em vista a delicadeza da situação, esta ativi-
relevância de propostas de atividades com ênfase em Saúde Mental. dade acontece em uma sala tranquila na Vila Olímpica de Padre Miguel, próxima ao Centro Municipal de
Saúde Padre Miguel. Ao término de cada grupo, uma entrevista individual é realizada no intuito de ava-
* Psicólogo do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). liar os benefícios da intervenção e as estratégias de acompanhamento pós-grupo. Para a realização deste
** Psicóloga do NASF Realengo Norte - CAP 5.1, SMSDC - Rio de Janeiro. trabalho, a equipe de referência e o matriciador contam com uma supervisão mensal oferecida pelo CICV.
34
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) é uma organização humanitária internacional que se dedica à proteção e
assistência das vítimas de conflitos armados e outras formas de violência. No Rio de Janeiro, além do Programa de Saúde Men- 37
A visibilidade das conseqüências da violência também trouxe para discussão a situação delicada do Agente Comunitário
tal, o CICV conta com mais dois projetos em parceria com a SMSDC/RJ:Acesso a Saúde e Mães Adolescentes e suas Crianças, de Saúde, profissional da ESF que, por ser morador da comunidade, também sofre com a violência local. Tal questão susci-
em parceria, respectivamente, com a Coordenação de Saúde da Família e a Coordenação de Políticas e Ações Intersetoriais. tou uma demanda de cuidado diferenciado, originando a elaboração de um outro projeto de trabalho específico chamado
35
Em função da violência, a unidade da ESF que se localizava no interior da comunidade foi transferida para o Posto de Saú- “Cuidar de quem cuida”.
de de Padre Miguel em 2009, onde permanece até a presente data. As consequências da violência armada urbana na região 38
Nas entrevistas individuais são utilizadas algumas escalas como instrumentos de suporte da avaliação clínica: Escala de
de Vila Vintém foi o principal critério para decisão do CICV de priorizar suas atividades nesta comunidade. avaliação do nível de ansiedade e depressão (HAD) e Avaliação global de funcionalidade (AGF).
36 39
Além da Vila Vintém, este Projeto apóia as equipes da ESF em outras três comunidades: em Vigário Geral (equipes do Centro A opção de uma avaliação individual através do médico ou enfermeiro da equipe foi tomada em função da delicadeza dos
Municipal de Saúde Iraci Lopes), no Complexo da Maré (equipes do Centro Municipal de Saúde Gustavo Capanema e Centro conteúdos trazidos pelos usuários e, invariavelmente, relacionados à violência na comunidade, o que poderia comprometer
Municipal de Saúde Vila do João) e no Complexo do Alemão (equipe Fazendinha da Clinica de Saúde da Família Zilda Arns). a segurança dos ACS, que também são moradores do território.
50 51
A partir desta iniciativa de trabalho tornaram-se visíveis para os profissionais a grande vulnerabilidade AP 5.2 – Amazonas, Bairro Alessandra, Bairro Elisa Maria, Bairro Esplanada, Bairro Iracema, Bair-
e a fragilidade do território diante da gravidade dos casos identificados. Pessoas com histórico de sofri- ro Letícia, Bairro Macedo, Bairro Maria Luiza, Bairro Mário Lombardi, Bairro N. Sra. Aparecida,
mento devido a um determinado evento traumático e/ou à exposição à violência armada mostravam- Bairro Nova Cidade, Bairro Oiticica, Bairro Santa Inês, Bairro Santa Margarida, Barra de Guarati-
-se muito deprimidas e ansiosas. Dentre os sintomas apresentados, algumas pacientes não saíam de ba, Califórnia, Campo Grande, Carobinha, Cosmos, Figueiras, Guandu do Sena, Guaratiba, Inhoa-
casa há anos ou o faziam com muita dificuldade, já que não possuíam laços sociais preservados, nem íba, Ipiranga, Jardim Bela Vista, Jardim do Campinho, Jardim Campo Belo, Jardim da Inês, Jardim
condições de manter os cuidados mais básicos de higiene e de alimentação. Além disso, apresentavam Guararapes, Jardim Mendanha, Jardim N. Sra. Das Graças, Jardim Paraíso, Jardim Paulista, Jardim
uma série de reações corporais associadas às lembranças dos eventos traumáticos, acompanhados de Pedregoso, Jardim São Geraldo, Lameirão, Mendanha, N. Amanhecer, N. Sra. das Graças, Pedra de
medos excessivos, e às dificuldades de traçar qualquer perspectiva de planejamentos futuros. Guaratiba, Santa Bertília, Santa Terezinha, Santíssimo, São Basílio, São Jerônimo, Senador Vas-
concelos, Serrinha, Souza, Tingui, Vila Nova, Vila Araújo, Vila Carobinha, Vila do Céu, Vila Guana-
Um exemplo é o caso de B., uma paciente grave que sofria com a impotência diante do testemunho bara, Vila Ieda, Vila Igaratá, Vila Magali, Vila Palmares, Vila Santa Maria.
de uma série de ‘execuções’ e assassinatos que aconteciam frequentemente ao lado de sua residência.
Esta usuária já não saía mais de casa, não conseguia se alimentar e, por este motivo, encontrava-se mui- Apoio Matricial e Práticas Grupais na Estratégia de Saúde da Família
to emagrecida, enfraquecida e com sensações de tremores no corpo. Precisava do auxílio da cunhada
para chegar até o local de realização do grupo, pois já não conseguia mais caminhar sozinha. Durante Aline Leorde*
os encontros do grupo e com o apoio dos outros pacientes, foi possível que B. refletisse sobre os recur- Edimilson Duarte**
sos possíveis para lidar com a situação difícil que vinha enfrentando. Observamos que no decorrer do
grupo, a usuária foi recuperando sua autonomia. Hoje já consegue sair de casa, realiza suas atividades O presente relato visa apresentar a experiência do trabalho de matriciamento em saúde mental junto à Es-
domésticas e cuida dos seus netos. tratégia de Saúde da Família (ESF), utilizando as práticas grupais como um recurso privilegiado para o cam-
po de assistência da saúde pública. Tal experiência vem se desenvolvendo na Área Programática (AP) 5.2, no
Até o momento, 88 pessoas foram identificadas pelas equipes da ESF do território da Vila Vintém. Deste território de Guaratiba do bairro de Campo Grande, localizado na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
percentual, 66% apresentaram quadros de sofrimento psíquico associados à violência na comunidade.
Ao analisar a tipologia da violência relatada pela população atendida, destacaram-se algumas dimen- O matriciamento em saúde mental opera como uma metodologia de trabalho na Atenção Primária em
sões do seu impacto: 27% do total das pessoas identificadas tiveram, pelo menos, um membro da famí- Saúde (APS) que busca acolher e assistir, dentro de um território adscrito, pessoas com transtorno men-
lia assassinato ou desaparecido, 20% associam a gravidade do seu quadro à exposição contínua às situ- tal a partir da lógica do cuidado compartilhado e da clínica ampliada. A noção de grupo ganha, nesse
ações de violência armada na comunidade e 10% foram testemunhas de execuções40. Desde setembro contexto, contornos e forças, funcionando como mais um dispositivo capaz de potencializar o apoio
de 2010, três grupos já ocorreram na Vila Vintém. Em geral, os usuários que participaram já apresentam matricial enquanto metodologia de trabalho compartilhado entre as equipes de saúde mental e da ESF,
melhora significativa a partir do terceiro encontro, com retorno gradual da funcionalidade e com a di- proporcionando, ainda, o cuidado ampliado e a assistência integral para essa clientela.
minuição dos sintomas de ansiedade e depressão.
O papel do matriciador em saúde mental é o de oferecer um apoio técnico no cotidiano do trabalho da
atenção primária a partir das demandas de matriciamento explícitas ou não, apresentadas pelas equi-
Espera-se, com este suporte, o aumento da resiliência das pessoas afetadas pela violência armada atra-
pes da ESF. Nesse cenário, os grupos se oferecem como um espaço potente de educação permanente
vés do estímulo à criação de recursos subjetivos mais saudáveis para a superação das adversidades vi-
e/ou continuada, envolvendo os profissionais na tarefa de um trabalho coletivo. Assim, entendemos
venciadas na comunidade, tal como o fortalecimento, junto aos profissionais e usuários, de um espaço
que “um grupo é mais que a soma dos indivíduos que o compõem; um grupo é um campo de relações
que proporcione o acolhimento da angústia e a troca de experiências; a ampliação da rede de solida-
interpessoais... o indivíduo é um dos modos de subjetivação” (BENEVIDES, 1993, p. 146).
riedade entre pessoas, com dificuldades em comum, que possam ofertar e receber apoio diante dos
problemas enfrentados, e a redução dos agravos na saúde mental em decorrência da violência através Diante dessa perspectiva, o grupo se constitui como espaço coletivo e de construção de subjetividade.
de uma variedade de ofertas de serviços que, em diferentes níveis de complexidade, possam promover Na medida em que os participantes falam das suas experiências pessoais, tanto as agradáveis como
o bem estar e o aumento na qualidade de vida do usuário. aquelas que geram dor e sofrimento, uma dinâmica de troca de experiências se instaura, favorecendo a
reciprocidade e a ajuda mútua como elementos que norteiam o alcance terapêutico da atividade gru-
Diante do cenário complexo encontrado nesta prática de trabalho e dos indícios que apontam para a pal. Dessa forma, podemos pensar a proposta de grupos na APS por intermédio da experiência que vem
violência armada como propulsora de sofrimento psíquico intenso, recomenda-se a ampliação do su- se difundindo com o matriciamento em saúde mental, incluindo aí os desafios e as diversas perspecti-
porte às pessoas afetadas em duas direções. A primeira, intersetorial, através da cooperação entre pro- vas dessa prática coletiva. Daremos destaque, nesse texto, ao trabalho iniciado, em outubro de 2011,
jetos e serviços de diferentes setores, como os de Educação, Assistência Social, Justiça, entre outros, que na Clínica da Família Dalmir de Abreu Salgado com a constituição do ‘Grupo de Medicação’41 que vem
sejam compatíveis com as possibilidades da ESF. A segunda direção, interna ao campo da saúde mental, sendo realizado pela matriciadora e por uma médica da unidade.
aponta para a necessidade de uma maior apropriação, clínica e estratégica, por parte das políticas pú-
blicas de saúde mental articuladas ao tema da violência armada em meio urbano e de seus efeitos para * Psicóloga Matriciadora do NASF Magarça – AP 5.2. Especialista em Psicologia da Saúde pela PUC - Rio.
as populações afetadas. ** Psicólogo Matriciador do NASF Cesário – AP 5.2. Psicólogo, doutorando e mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-
-graduação em Psicologia Social da UERJ. Especialista em Saúde Mental pela UFRJ.
41
Não falamos em grupo de desmedicalização/medicalização, mas sim de um grupo onde o ponto em comum entre os
40
Estes dados foram colhidos através de uma ficha de avaliação inicial de todos os casos identificados pela equipes e leva- usuários, num primeiro momento, é a medicação, sendo produzido nesse encontro um espaço de escuta e oferta além do
dos para o matriciamento. Eles integram uma base de dados monitorada pelo matriciador e pelo CICV. que a medicação nos diz. Tratamos aqui do uso racional da mesma.
52 53
Esse grupo foi proposto a partir do pedido de matriciamento da médica de família para o acompanha- Abordamos aqui o uso racional de psicotrópicos na APS, ampliando a tarefa de desmedicalizar a de-
mento conjunto de usuários do serviço que faziam uso de psicotrópicos sem regularidade. A formação manda dos usuários pertencentes ao grupo para corresponsabilizá-los pelo seu tratamento. E, com isso,
do grupo se deu, então, após o levantamento desses casos realizado pela médica generalista e pelos regular de forma mais adequada os encaminhamentos dos casos de maior complexidade para os am-
Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Em seguida, foram agendadas as consultas conjuntas conduzi- bulatórios de psiquiatria, referindo os casos leves e moderados ao acompanhamento, através do grupo
das pela médica e pela matriciadora de saúde mental, visando não somente investigar a história clínica na ESF, da médica da Clínica da Família.
desses usuários, mas também localizar o momento em que a medicação passou a fazer parte de seu
histórico de vida e de tratamento e o motivo pelo qual esse ciclo fora, ou não, interrompido. Com efeito, A possibilidade de cada participante expor o seu sofrimento e adoecimento de modo singular no grupo
indicamos alguns retornos dos usuários aos serviços especializados de origem – ambulatórios de psi- gera um movimento de ressonância proporcionado pela troca de experiências em relação ao que escu-
quiatria – enquanto que para outros casos, identificados como ‘usuários crônicos’ de benzodiazepínicos tam do relato da dor do outro. Além disso, a experiência de grupo reduz o risco de isolamento. Nesse
e/ou antidepressivos’ em função de diagnósticos feitos há anos sem nenhuma regularidade de avalia- dispositivo, cada sujeito elabora novas formas de ressignificar as experiências que lhe causam sofrimento,
ção psiquiátrica, recomendamos o acompanhamento na própria Clínica da Família. desenvolvendo suas habilidades pessoais e sociais a partir de um processo de conscientização e de en-
gajamento com sua própria história. O grupo corresponde, assim, a um espaço de troca e de escuta tanto
Ao longo desse processo inicial, pudemos traçar, portanto, um perfil de usuários indicados para a en- para os usuários quanto para os profissionais que o conduzem, dando lugar à particularidade de cada
trada no grupo como, por exemplo, o de usuários pouco esclarecidos quanto ao uso prolongado de sintoma pela produção de novos sentidos sobre o adoecimento, no espaço onde, inicialmente, somente
uma determinada medicação, embora considerado como extremamente necessário. Nesse momento, o efeito da medicação era capaz de responder sobre o sofrimento que acometia cada um desses usuários.
a médica generalista da unidade participava do Encontro de Sensibilização para o Uso Clínico de Psico-
fármacos na Atenção Primária, como atividade organizada pela Assessoria de Matriciamento da Coor- Destacamos, portanto, a possibilidade de um novo olhar sobre os casos que vá além de uma prescri-
denação de Saúde Mental da Cidade do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ)42, no intuito de instrumentalizar os ção medicamentosa, propondo esse modo de cuidado compartilhado como força motriz da prática de
médicos de família para acolherem e acompanharem os pacientes com o perfil assinalado. Diante dessa matriciamento em saúde mental. Aqui, a promoção de saúde é pensada também como um processo
disponibilidade e abertura da médica, o trabalho do matriciamento tornou-se ainda mais aprimorado cuja ênfase se localiza nos efeitos terapêuticos que a prática do trabalho em grupos produz. O grupo é
na medida em que a mesma passou a se apropriar da condução desses casos, tendo em vista as ques- considerado um dispositivo estratégico para o apoio matricial por promover a construção desse novo
tões de saúde mental como algo já incorporado na sua rotina de trabalho, conforme preconizado na olhar dos profissionais da ESF, permitindo-lhes lidar com o sofrimento psíquico no acolhimento dessa
carteira de serviços da atenção primária. clientela nas unidades de Atenção Primária em Saúde.

Demos início, então, aos encontros mensais realizados na unidade. Recolhemos no primeiro encontro, Referências
a partir de um questionário impresso e das discussões em equipe, informações importantes que nos
ajudaram na construção do processo do grupo. Trata-se, atualmente, de um grupo semi-aberto, já que BARROS, R. B. Grupo e Produção. Saúde/Loucura: Grupos e Coletivos. São Paulo: Hucitec, 4:145-154,
estamos sempre avaliando a possibilidade da entrada de novos casos, assim como o encaminhamento, 1994.
quando necessário, daqueles que iniciaram esse processo. Este é também um grupo que assume um
caráter de educação continuada sobre a temática do uso racional de psicotrópicos na APS a partir da ZIMERMAN, D; OSÓRIO, L.C. & Col. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
demanda de cada usuário. LIMA, E. D. & TEIXEIRA, M. Grupo como uma estratégia do PSF e como dispositivo no campo da saúde
mental. Revista Academus, Rio de Janeiro, 2005.
Realizamos as atividades do grupo da seguinte forma: no primeiro momento, estabelecemos o acolhi-
mento dos participantes seguido da leitura de uma poesia e/ou de um escrito de um dos participantes CAMPOS, G.W.S.; DOMITTI, A.C. Apoio Matricial e Equipe de Referência: uma metodologia para gestão
do grupo e, logo em seguida, se inicia a apresentação dos novos pacientes encaminhados. O segundo do trabalho interdisciplinar em saúde. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(2):. 399 - 407, 2007.
momento destaca-se pela exposição dialogada sobre a temática em questão, visando o espaço de es-
cuta e de troca entre os participantes pela problematização das questões apontadas tanto pelo grupo, CHIAVERINI. D. H (Org.) et al. Guia prático de matriciamento em Saúde Mental. Brasília: Ministério da
quanto pelos profissionais. Por fim, o terceiro momento se caracteriza pela prescrição das medicações e Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011.
pelas marcações das consultas individuais quando avaliada tal necessidade.

Sempre que necessário, contamos com a entrada de outros profissionais para enriquecer o conteúdo e
as discussões do nosso grupo. No segundo mês de formação do grupo, pudemos contar com a entrada
da farmacêutica que passou a realizar uma exposição dialogada sobre “os benefícios e prejuízos do uso
de benzodiazepínicos”. E, há dois meses, contamos com o suporte do matriciador psiquiatra que vem
oferecendo retaguarda para as avaliações do acompanhamento medicamentoso desses usuários, enri-
quecendo, assim, a prática do matriciamento em saúde mental e a discussões dos casos.

42
Esta atividade foi promovida em parceria com a ESAM (Escola de Saúde Mental do Rio de Janeiro) e as Coordenações de
Área programática (CAP) 5.1, 5.2 e 5.3, com o apoio da Coordenação de Saúde da Família.
54 55
Sobre o Início do Matriciamento em Saúde Mental na Cidade do Rio de Janeiro:
Reflexões, Relatos e Recomendações

Tiragem: 1ª edição – 2012 / 1.000 exemplares

Elaboração, distribuição e informações:


Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil
Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde
Coordenação de Saúde Mental

Endereço: Rua Afonso Cavalcanti, 455 / 8º andar – Cidade Nova – Rio de Janeiro/RJ
Telefone: 3971-1911
Blog: saudementalrj.blogspot.com.br

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