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MUTUS LIBER

O LIVRO MUDO DA ALQUIMIA

Um estudo da simbologia alquímica nas imagens do Mutus Liber,


incluindo reprodução integral das pranchas de La Rochelle, 1677

Ensaio Introdutório, Comentários e Notas

José Jorge de Carvalho

AT TA R E D I T O R I A L

SÃO PAULO, 1995


Copyright © 1995 by José Jorge de Carvalho
Gravura da capa: Reprodução a cores da Primeira Prancha
do Mutus Liber de um manuscrito do século XVIII (Arché, 1979)
Revisão: Marcos Martinho dos Santos
Projeto gráfico e editoração: Silvana Panzoldo
Editor: Sergio Rizek

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mutus Liber: o livro mudo da alquimia / ensaio


preliminar, comentários e notas José Jorge de
Carvalho. - São Paulo: Attar, 1995.

Bibliografia.

1. Alquimia 2. Mutus Liber 1. Carvalho, José


Jorge. II. Título: O livro mudo da alquimia.

93-1495 CDD-540.112

Índices para catálogo sistemático:


1. Mutus Liber : Alquimia : Obras clássicas 540.112

ISBN 85-85115-07-6

ATTAR EDITORIAL - rua Madre Mazzarello, 336 – 05454-040 - tel 831 6075 - São Paulo - SP
SUMÁRIO

A P R E S E N TA Ç Ã O

I. O MUTUS LIBER E A TRADIÇ ÃO ALQUÍMIC A


1. ARTE E ESOTERISMO
2. A LINGUAGEM HIEROGLÍFICA: DA IMAGEM À PALAVRA À IMAGEM

3. AS EDIÇÕES DO MUTUS LIBER


4. JUNG E O MUTUS LIBER
5. EUGÈNE CANSELIET, DISCÍPULO E MESTRE
6. POR UMA LEITURA MITO-HERMÉTICA DO MUTUS LIBER

II. MUTUS LIBER


EDIÇÃO ORIGINAL DE ALTUS (LA ROCHELLE, 1677)
TRADUÇÃO DO EX-LIBRIS, DA ADVERTÊNCIA AO LEITOR E DO PRIVILÉGIO DO REI
ACOMPANHADA DA EDIÇÃO DE MANGET, 1702

III. COMENTÁRIOS ÀS PRANCHAS

IV. BIBLIOGRAFIA

V. GLOSSÁRIO
A P R E S E N TA Ç Ã O

Esta é a primeira edição brasileira, crítica e comentada, de uma obra clássica da tradição
alquímica. Apesar da vasta literatura sobre esoterismo que por aqui circula nos últimos anos, os
textos fundamentais da Alquimia continuam inacessíveis ao público brasileiro. O Mutus Liber é um
desses títulos canônicos do corpus literário da Alquimia ocidental. Trata-se de uma obra
extraordinária, tanto pela sua mensagem esotérica ou espiritual, quanto pela sua excepcional
realização iconográfica. Além do claro interesse de erudição e estudo que sua edição em português
possa suscitar, sentimo-nos felizes por colocar à disposição do leitor uma coleção de imagens belas
e fascinantes, apresentadas com um tratamento gráfico que faz justiça sua elegância plástica e
riqueza simbólica. Tal como a primeira prancha do livro já o indica, mergulhar nesse universo de
imagens e idéias alquímicas é antes de tudo atrever-se a sonhar. Os comentários, anotações,
informações contextuais e interpolações pessoais foram feitos exclusivamente com o intuito de
convidar o leitor a realizar essa viagem onírica proposta pelo livro mudo.

A intenção primeira desse trabalho, então, foi apresentar o que pode ser considerado como a
melhor reprodução feita até agora das pranchas originais do Mutus Liber, editado em La Rochelle
em 1677. Contudo, optamos por incluir também, par a par, as pranchas da segunda edição, a cargo
de Manget, publicada em Genebra em 1702. A reprodução de Manget apresenta algumas diferenças
com relação à de La Rochelle e foi, historicamente, mais divulgada que a edição original. O
confronto das duas permitira ao leitor uma compreensão mais acabada desse livro único.

Para a realização desta obra recebi de Bergson Queiroz, além do estímulo constante, vários
comentários e informações valiosas. Sou grato a Ricardo Rocha pelo esforço de digitar criticamente
as sucessivas versões do texto e devo igualmente a Luís Mucillo e a Sérgio Rizek, as leituras atentas
e minuciosas da versão final, que em muito esclareceram detalhes incorretos.

A Rita Segato, minha profunda gratidão pelo estímulo incondicional ao longo de todo este
trabalho.

Dedico este livro à memória de Fausto Alvim Júnior que, nos idos de 1971,
me mostrou pela primeira vez as fascinantes gravuras do Mutus Liber.

José Jorge de Carvalho


Brasília, agosto de 1994
I. O MUTUS LIBER E A TRADIÇ ÃO ALQUÍMIC A

1. ARTE E ESOTERISMO

O Mutus Liber, ou Livro Mudo, é uma das obras mais singulares dentre os milhares de
textos, impressos ou manuscritos, que se reconhecem como pertencentes à tradição alquímica.
Estudiosos, comentadores e adeptos não cansam de destacar-lhe as virtudes filosóficas e estéticas,
utilizando uma variedade de adjetivos e expressões para descrevê-lo: misterioso, enigmático,
fascinante, impenetrável, “Bíblia dos alquimistas”, “pérola máxima da coleção alquímica”. Uma das
razões pelas quais é tão apreciado pelos cultores da arte de Hermes é que supostamente revela, mais
que nenhum outro, detalhes essenciais da opus alquímica, principalmente no que se refere à
manipulação dos elementos para a confecção feliz da Pedra Filosofal. Ou seja, atrás de todo o
aparato alegórico expresso em suas imagens e da ausência de texto escrito, há também informação
factual considerada essencial para quem pretenda realizar a Grande Obra. Assim, são vários os
estudiosos que defendem a precisão das informações de laboratório contidas nas suas imagens,
especialmente se contrastadas com o que pode ser resgatado dos emblemas presentes em obras do
mesmo gênero.

Outra dimensão que o torna igualmente valioso para a maioria dos que o conhecem é a
grande qualidade iconográfica de suas pranchas. Sendo parte de uma tradição espiritual e literária
que primou justamente pelo cultivo de uma riquíssima arte, suas pranchas são consideradas as mais
belas da alquimia, ao lado de obras primas como o Splendor Solis de Salomon Trismosin (1582), o
Atalanta Fugiens de Michael Maier (1618), o Philosophia Reformata de Mylius (1622), e o
Chymica Vannus, de Joannes de Monte-Snyders (1666).

Além de ensinar pela arte como operar com a matéria prima, sua maior fonte de
singularidade reside em ser mudo, sendo possivelmente o único livro conhecido, desde o apogeu da
civilização egípcia, que se propõe condensar uma sabedoria hermética e que chega, inclusive, a
sugerir um caminho para o desenvolvimento da espiritualidade, praticamente sem utilizar a palavra.
Manual de laboratório, obra de arte, tratado de filosofia hermética, guia de espiritualidade, relato de
um sonho, enigma expresso em imagens; a soma de tudo isso transforma o Mutus Liber, de fato,
num livro incomum.

Obviamente, diversas tradições pictóricas já nos mostraram outras seqüências de imagens


capazes de contar uma história e de ser entendidas razoavelmente bem se possuímos a chave das
convenções simbólicas nas quais os artistas se basearam. O teto da Capela Sixtina, por exemplo,
pintado por Michelangelo, poderia, da mesma forma, ser chamado de um livro mudo: todo o mito
cristão da criação do mundo nos é ali mostrado, em seqüências acessíveis ao público e facilmente
traduzíveis em palavras. Em outros casos, não só uma seqüencia de imagens, mas um único quadro
pode ser traduzido em narrativa, de modo a ser tratado como um livro: lembro-me muito bem de
quando, ao visitar o Rijksmuseum de Amsterdã escutei um guia “narrando” a Ronda Noturna de
Rembrandt como uma pequena história, com seus personagens, episódios, mudanças de tempo na
ação e de perspectivas narrativas.

Claro que, nesses casos, trata-se de uma leitura contextualizada de signos que pertencem
exclusivamente ao reino da pintura como arte e cuja eficácia deve medir-se fundamentalmente pela
qualidade dos significantes que o artista foi capaz de criar, nosso interesse pela história contada
sendo tributário da força visual do quadro. E por isso, também, que não é uma, senão muitas as
histórias que podem ser contadas, dependendo da perspectiva e do interesse do espectador. Do
ponto de vista da intenção do artista, todavia, a maioria dessas obras de arte convida a uma leitura
que pode ser profana, política, filosófica, até religiosa, mas raramente hermética.1

Porém, não é este o caso do Mutus Liber, que se propôs justamente condensar
pictoricamente “toda a filosofia hermética”. Suas imagens são, portanto, arte sagrada e ao mesmo
tempo arte secreta. Isso significa que seu anônimo autor buscou reconciliar a produção de
significantes estéticos - expressões, portanto, do exercício da livre imaginação - com símbolos
arcanos, inevitavelmente submetidos ao controle de uma tradição iniciática.

Foi nesse contexto que se desenvolveu a singularíssima iconografia alquímica, pressionada


por dilemas éticos e espirituais bastante distintos daqueles enfrentados pelos grandes pintores da
tradição ocidental dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII. O alquimista, enquanto artista, teve suas
razões para sentir-se um autêntico invidiosus, termo com que então se autodenominavam os
seguidores da arte de Hermes. Como nos lembra Étienne Perrot ao comentar uma passagem de
Michael Maier, o latim invidiosus joga com um curioso duplo sentido: o adepto "invejoso", isto é,
cioso dos seus segredos, guarda para si parte do que sabe; ao fazê-lo, torna-se “invejado”, pois seu
silêncio provoca inquietação nos outros, traindo-o como provável detentor de saber hermético.
Acaba então tendo que enfrentar a mesma desgarradora disjuntiva vivida pelo Rabino Simeon, tal
como nos é contada no Sepher-ha-Zohar (Livro do Esplendor), obra-prima da tradição cabalística:

1. Jacques Van Lennep, o maior pesquisador da Alquimia como produção de obras de arte, procurou indicar a
possibilidade de se fazer uma leitura também hermética de certos quadros de alguns pintores famosos dos séculos
XVI e XVII, como Dürer, Rafael, Bosch e Brueghel.
“Ai de mim se revelo e ai de mim se não revelo! Se digo o que sei, os maus
aprenderão a cultuar seu Mestre; se não digo, os companheiros continuarão
ignorantes da verdadeira sabedoria.”
(Livro I, Prólogo, 11b)

Um modo elegante de lidar com esse dilema entre a arte e o esoterismo foi desenvolvido na
construção das grandes catedrais góticas da Europa medieval, sobretudo das francesas. Por trás da
fachada exteriorizante de arte crista estavam, de fato, poderosos símbolos da tradição hermética,
introduzidos intencionalmente pelos artesãos-alquimistas, e com os quais o iniciado era capaz de
recompor uma outra mensagem inteiramente distinta e secreta, destinada a conduzi-lo à
interpretação e realização da Pedra Filosofal. Foi isso que Fulcanelli, autor do maravilhoso O
Mistério das Catedrais, chegou a usar a expressão mutus liber para designar os templos góticos.

E será também por isso, imagino, que um texto hermético que pretende dizer tanto (de fato,
sua pretensão é de dizer tudo) e cuja intenção reveladora é confirmada por inúmeros autores, se
auto-intitula livro mudo.
2. A LINGUAGEM HIEROGLÍFIC A: DA IMAGEM À PALAVRA...

Deixando de lado a questão das origens históricas da Alquimia, que parece remontar-se à
civilização babilônica, importa ressaltar que o Mutus Liber pertence a um gênero literário (o dos
textos herméticos) que começou na antiguidade tardia. A famosa serpente ouroboros desenhada no
manuscrito alquímico de Cleópatra, do 1° século A.D., 2 é um dos primeiros exemplos dessa
tendência expressiva que só se intensificou realmente já no final da Idade Média, particularmente
nas ilustrações que acompanharam as obras de autores como Arnaldo Vilanova, Raimundo Lúlio e
no Aurora Consurgens, tratado atribuído a Tomás de Aquino e redescoberto na nossa época por Carl
Gustav Jung.

Se a Alquimia é chamada “a arte de Hermes”, é bom lembrar que este deus grego é o
equivalente ao egípcio Thot, a quem se atribui a invenção dos hieróglifos, legado máximo da
civilização egípcia. Tanto histórica como miticamente, coube aos egípcios desenvolverem essa
fascinante forma de expressão em que palavras e imagens se somaram e se fundiram, na intenção de
alcançar a expressão humana total.

Note-se aqui que os hieróglifos são “glifos sagrados”. Martínez-Otero explica bem que o
termo grego glifo significa “gravar”, de onde provém a “glíptica”, a arte de gravar em pedras finas.
As séries de glifos ou imagens sagradas (hierós) foram construídas com um grimório ou gramática
de leitura. É próprio da tradição hermética de hieróglifos utilizar essa gramática para construir uma
narrativa desejada e depois embaralhar a ordem das figuras, de modo a afastar os “invejosos” leigos
e atrair a curiosidade (ou seja, a “inveja”) apenas dos cultores da tradição, que deverão munir-se de
humildade e paciência para montar o quebra-cabeça proposto. É esta gramática que se denomina na
Tradição de “linguagem dos pássaros” ou “gaia ciência”. Ser filósofo, no sentido hermético do
termo, é aprender a falar esta linguagem.

Disso se distanciou radicalmente o chamado milagre grego, que desenvolveu a reflexão


filosófica racional e exotérica, prescindindo das imagens visuais e inaugurando um novo gênero de
discurso escrito puramente com palavras (grámmata).

Deparamo-nos aqui com dois modos de narrar miticamente o momento em que a escrita
gramaticalizada egípcia suplantou a imagem pré-linguística, puramente figurativa e inarticulada,

2. Há uma excelente reprodução dessa serpente, no texto da Chrysopeia de Cleópatra, com a famosa expressão én tó
pan (Um, o Todo) ao centro, no clássico estudo de H. J. Sheppard, Ambix (1962, p. 83), que o leitor encontrará
reproduzida na p. 22 deste volume. Há ainda uma magnífica cópia a cores, datada de 1478, do manuscrito alquímico
grego de Sinósio, exibindo a serpente, que pode ser encontrada no livro de Stanislas Klossowski de Rola, Alchimie, p.
33.
com a qual não era possível construir texto algum. Essas duas versões definem as duas vertentes do
que seja a filosofia e se referem a dois deuses Hermes distintos. O filósofo, no sentido esotérico do
termo (o hermetista propriamente dito), vai falar de um Hermes que trouxe para os homens o
hieróglifo, a escrita-imagem; enquanto o filósofo racional, puramente argumentativo, (como
Sócrates e Platão) fala de um Hermes que trouxe a escrita-letra, o signo lingüístico, abstrato e
arbitrário, desprovido de imagem simbólica (cf. Platão, Phaedro, 274c-275e).

Plotino, o último dos filósofos gregos (e que supostamente deveria enaltecer a tradição da
escrita-letra), exalta, curiosamente, em suas Enéadas a sabedoria hieroglífica dos egípcios:

Parece-me que os sábios do Egito - seja por um conhecimento preciso ou por intuição
natural - indicaram a verdade ali onde, no seu afã de alcançar a exposição filosófica,
abandonavam a forma de escritura que se detém no detalhe de palavras e frases -
aqueles caracteres que representam os sons e comunicam as proposições do
raciocínio - e as substituíram pela execução de desenhos, gravando nas inscrições dos
templos uma imagem distinta para cada conceito distinto, Desta maneira, expuseram
a ausência de discursividade no Reino Intelectual.

Pois cada manifestação de conhecimento e sabedoria é uma imagem distinta, um


objeto em si mesmo, uma unidade imediata, não um agregado de argumento
discursivo e vontade detalhada. Mais tarde, dessa sabedoria na unidade aparece, em
uma outra forma de ser, uma cópia, já menos compacta, que anuncia o original em
termos de discurso e expõe as causas pelas quais as coisas são como são, deixando
surgir a surpresa de como o mundo gerado poder ser tão belo.

(Enéadas, Livro V. 8,6)

É significativo esse reconhecimento do poder dos hieróglifos vindo de quem havia recebido
o legado da argumentação racional grega e que de certa forma já vivia a própria decadência dessa
civilização da escrita, visto que o próprio Plotino não escreveu, mas apenas ditou suas intuições
metafísicas a seus discípulos.3 A escrita-letra, no momento em que se reconhece já incapaz de dar
conta de expressar a realidade última dos mistérios, rende homenagem à escrita-imagem, por ela
suplantada historicamente. Foi nesse encontro de perspectivas opostas de expressão de significado e
de experiência do plano da sabedoria que se desenvolveu a forma literária da Alquimia,

3. Émile Bréhier nos faz lembrar que Plotino, como todo grego, ignorava inteiramente o caráter alfabético dos
hieróglifos egípcios e tratava-os, conforme se depreende de seu texto, como se fossem ideogramas chineses.
desenvolvendo um modelo de síntese entre o símbolo pictórico egípcio e a escrita-signo
argumentativa grega.

Um exemplo paradigmático dessa tradição é o Livro das Figuras Hieroglíficas, escrito em


1419 por Nicolás Flamel, tido pelos historiadores como o maior de todos os alquimistas depois do
legendário Hermes Trismegisto. Seu livro é composto basicamente de sete figuras, numeradas em
romano, quase todas contendo alguma frase, seguidas cada uma de um comentário, de três a seis
páginas, que descreve o conteúdo da figura e elabora seu papel na busca hermética. Formato
semelhante e um pouco mais completo foi empregado pelo frade alemão Basile Valentin, autor de
As Doze Chaves da Filosofia, outro grande clássico da literatura alquímica, publicado em torno de
1626. Aqui, são doze figuras, doze textos de descrição e comentários a cada figura e outros doze
textos de posteriores discussões de temas fundamentais à realização da Grande Obra.

Obviamente, essa grande arte iconográfica se desenvolveu simultânea a toda uma tradição
intelectual que privilegiou a imagem (seja verbal ou visual) ante a estrita argumentação lógico-
racional. Exemplos dessa tradição são encontrados nos filósofos neo-platônicos e seus sucessores
(Marcílio Ficino, Cornélio Agripa, Picco della Mirandola, Giordano Bruno, Robert Fludd,
Athanasius Kircher e muitos outros), e que chegou ao cume de sua criatividade em Jacob Boehme,
cujas especulações teológico-filosóficas, ao mesmo tempo que inauguraram a argumentação
dialética de tipo hegeliana, representam a máxima realização do que se costuma chamar de
Alquimia espiritual.

Na época do Renascimento, e sobretudo no período de 1580 a 1700, surgiram possivelmente


milhares de textos herméticos com esse formato discursivo-hieroglífico, e foi na primeira metade do
século XVII que essa tradição alquímica deu seus frutos mais espetaculares do ponto de vista
hermético e artístico. Em um período de pouco mais de vinte anos foram publicadas maravilhas
como o Atalanta Fugiens e o Splendor Solis, que mencionamos anteriormente; o Philosophia
Reformata, de Mylius; o Chymica Vannus, de De Monte-Snyders; o De Lapide Philosophico, de
Lambsprinck; o Viridarum Chymicum, de Stolcius. Todas essas obras, apesar de muito singulares,
possuem uma certa estrutura comum, que consiste na construção de uma alegoria narrativa - seja a
busca de uma ave, uma pedra, um peixe, um ser mitológico, uma fruta, uma luz oculta, o próprio sol
(todas, evidentemente, imagens do processo alquímico para a obtenção da Pedra dos Filósofos) -,
combinada, segundo os modelos plasmados por Nicolás Flamel e Basílio Valentin, com as figuras
hieroglíficas que formam, com a narrativa, um todo indissociável.4

Esse método de expressão simbólica utilizado pelos alquimistas, apesar de bastante


consistente, difere um pouco do conhecido método quádruplo de simbolismo que encontramos nas
grandes obras literárias da Idade Média, como o Romance da Rosa e a Divina Comédia (cf. Alig.,
Ep., 13 655). A fim de iniciar o leitor nessa literatura, ainda muito pouco conhecida entre nós,
resolvi esquematizar a expressão simbólica alquímica nos seguintes níveis de sentido:

1. O sentido literal, das imagens ou das palavras;

2. O sentido alegórico, convencional ou emblemático; neste nível, por exemplo, a águia


representa a sublimação do composto, o corvo a putrefação, o dragão a matéria prima, a lua a obra
em branco, o sol a obra em vermelho etc. Além desse estilo mais comum de alegoria, há ainda uma
outra forma, bastante usada no século XVII, que foi chamada de esteganografia. Eis como a definiu
Béroalde de Verville, editor francês de O Sonho de Polifilio, tido como o mais belo livro de imagens
emblemáticas de todo o período renascentista:

A esteganografia5 é a “arte de representar ingenuamente aquilo que é de fácil


concepção e que, todavia, por debaixo da densa feição de sua aparência, oculta
assuntos totalmente diversos daqueles aparentemente propostos ao leitor”.

(citado em Van Lennep, Alchimie, p. 167)

Verville quer indicar que, além da arte explicitamente hermética, há aquela produção,
digamos, “enganosa”, porque sequer se apresenta ao leitor como tal. Na esteganografia não somente
os significantes em particular (os emblemas) são alegóricos, mas às vezes também a totalidade de
seu conjunto. É o caso, talvez, da arte hermética das catedrais, que por séculos se ocultou sob a
ingênua aparência de suas imagens cristãs. Esse estilo alegórico teve um uso limitado na literatura
alquímica, pois em geral os tratados trazem uma abertura em que o autor anuncia, em tom

4. Não é aqui o espaço adequado para prolongar-se no tema, mas a proposta de Michael Maier coloca-se num extremo
de ousadia oposto ao do autor do Mutus Liber: o Atalanta Fugiens é de fato uma Gesamtkunstwerk, uma espécie de
obra hermética total, já que consiste em Estampas, Epigramas em verso, Discursos em prosa e pequenas peças
musicais em forma de fuga, cada um desses tipos de textos distintos criados em número de cinqüenta. Para um estudo
moderno da proposta do Atalanta, ver a tradução inglesa de Joscelin Godwin, de 1989, a tradução italiana de Bruno
Cerchio, e a tradução francesa de Étienne Perrot, de 1970, que se distingue pela beleza das reproduções e pela
profundidade e detalhe dos seus comentários ao texto de Maier.
5. Esteganografia é o título da obra em oito volumes do Abade Trithemius, alquimista alemão que muito influenciou
John Dee. Essa obra críptica e misteriosa foi condenada ao fogo pelo conde Palatino Felipe II (v. Arnold Waldstein, Os
Segredos da Alquimia).
triunfalista, que obteve uma extraordinária revelação de como realizar a obra e se dispõe a relatá-la.
Isso vale inclusive para o Mutus Liber, que pretende revelar toda a filosofia hermética.

3. O sentido hermético propriamente dito, que se constrói com esse sistema peculiar de
alegorias. Esse sentido hermético, por sua vez, se desdobra em dois: a) o sentido espagírico, mais
relevante para algumas obras que para outras, que não é a literalidade da operação descrita, mas a
contribuição de uma determinada alegoria alquímica para o desenvolvimento da ciência química; b)
o sentido espiritual, algo parecido com o sentido anagógico medieval, que estabelece uma ligação
entre a alegoria narrada ou expressa em imagens e o estado da alma do alquimista (seja o operador
ou mesmo o leitor).

Como já dissemos, essa grande arte hermética - filosófica e hieroglífica - entrou em declínio
no início do século XVI1I. Vários fatores contribuíram para isso. Para Carl Jung e outros, o próprio
espírito iluminista enfastiou-se do uso de obscuras alegorias como cavernas, pássaros, fogos,
pedras, deuses etc. Segundo a brilhante análise de Luís Costa Lima 6, o que ocorreu foi,
possivelmente, um processo de “controle do imaginário”, análogo ao que sofreu, na mesma época, o
pensamento filosófico e literário ocidental. Para os historiadores da ciência, como Gaston Bachelard
e Ana Maria Goldfarb, foi a consolidação do espírito científico moderno (incluindo o método
experimental, que impulsou enormemente a Química) que prescindiu do plano simbólico ao lidar
com a matéria, viva ou inerte, e minou, de fora para dentro, as pretensões de verdade das
manipulações alquímicas.7

Conforme dissemos, após 1650, a produção de textos de Alquimia diminuiu


vertiginosamente, de forma que quando Altus publicou o Mutus Liber, em 1677, esta obra deve ter
aparecido já bastante isolada do contexto intelectual da época, que passava por grandes mudanças.
E penso que, além dos dois fatores principais que mencionei acima (ambos externos à tradição
alquímica), houve ainda um outro fator que certamente contribuiu para essa diminuição drástica e
que se deveu a transformações e ao surgimento de novas tendências no interior mesmo do
movimento hermético ocidental.

A publicação, em 1614, 1615 e 1616 dos três primeiros manifestos rosacruzes (Fama
Fraternitatis, Confessio Fraternitatis e Núpcias Químicas) deu início a uma nova vertente esotérica
que procurou definir-se mais autoconscientemente como tributária de uma visão esotérica do

6. Um bom resumo da sua trilogia sobre o controle do imaginário pode ser encontrado no seu artigo: “Uma questão da
modernidade: o lugar do imaginário”, na Revista USP, N° 1, 1989.
7. Recentes investigações sobre os manuscritos alquímicos de Sir Isaac Newton têm revelado quão imerso estava o
grande físico no estudo da Alquimia nos anos cruciais em que redigia os Principia. Newton abandonou as manipulações
em 1696, optando definitivamente pelo método experimental. Como possuía uma vastíssima biblioteca alquímica, há
uma possibilidade, ainda que remota, de que ele tenha chegado a conhecer o Mutus Liber!
cristianismo, e que incorporava, além disso, a tradição hebraica, a tradição egípcia e a tradição
grega tardia. Tanto o movimento rosacruz como a maçonaria se sobrepuseram à tradição
estritamente alquímica, e não resta dúvida de que há uma forte dose de racionalismo embutido nos
textos desses movimentos. Desse modo, dedicaram-se a normatizar e regular a própria forma das
alegorias e dos símbolos alquímicos, retirando-lhes a espontaneidade e sua marca
intransferivelmente pessoal e solitária, colocando em seu lugar as regras, deveres e valores
hierárquicos próprios de sociedades secretas que se propõem administrar politicamente a vivência
do mundo espiritual. A produção típica desse movimento é o que se costuma chamar de Alquimia
Espiritual.

Paralela a essa nova postura de espiritualidade, a produção simbólica dos franco-maçons e


dos rosacruzes, a partir da segunda metade do século XVII (e sobretudo durante o século XVIII),
oferece-nos uma arte pictórica e literária bem menos interessante, quando comparada à ousadia e
liberdade quase surrealista dos textos dos adeptos da Alquimia. Se tomamos como exemplo os
emblemas rosacruzes coletados nos livros The Alchemical Mandala, The Rosicrucian Emblems of
Daniel Cramer, ambos editados por Adam McLean, e Símbolos Secretos dos Rosacruzes dos
Séculos XVI e XVII, podemos observar como foi diminuindo a presença dos símbolos pictóricos da
Alquimia clássica, ambíguos e polissêmicos, sendo paulatinamente substituídos por palavras e
frases, fixadoras de conceitos e muito mais limitadas semanticamente. Como se a espiritualidade
dominante da época tivesse decidido expressar-se através do Hermes, pai da escrita-letra, e não
mais pelo Hermes dos alquimistas, portador da escrita hieroglífica.8

Do século XVIII em diante, o único momento em que se deu continuidade à tradição


alquímica, pelo menos do ponto de vista do cultivo das imagens, foi com o pensamento encantado
dos românticos alemães, sobretudo Novalis, Tieck, Jean-Paul e o jovem Goethe. A busca da mística
flor azul, poetizada no Henrique de Ofterdingen de Novalis, evoca perfeitamente essa aproximação
mágica à verdade - na qual se fundem observador e observado. Essa busca é em tudo análoga à
opus alquímica no seu esforço por descobrir a lapis philosophorum (pedra dos filósofos), cuja
matéria, una, é a um só tempo exterior e interior ao filósofo. A importância, então, da tradição
romântica, ao cultivar imagens de transformações e maravi1has, foi deixar latente o espírito
alquímico no seio do racionalismo científico moderno, o que permitiu a reverberação, até os dias de
hoje, desse milenar caminho de busca da verdade, da natureza e do homem.

É preciso frisar, porém, que a tradição alquímica declinou a partir do século XVIII, mas não
morreu de todo. Hermés Devoilé, por exemplo, de Cyliani, escrito em 1832, compara-se

8. Um comentário de grande utilidade, ainda que muito sintético, sobre o período áureo dos livros de emblemas
alquímicos é o ensaio de Gerard Heym, Some Alchemical Picture Books (Isis, vol. I, p. 69-75).
perfeitamente aos grandes textos do século XV. E obviamente, O Mistério das Catedrais e As
Moradas Filosofais de Fulcanelli, o Alchimie e o Deux Logis Alchimistes, de Canseliet, ainda que
utilizando um discurso argumentativo linear, mais ao gosto do século XX, recuperaram, para a
nossa época, o encantamento hermético-imagético das obras de Nicolás Flamel e Michael Maier.
Seus emblemas, agora, já não são as criativas gravuras de um Theodore de Bry, mas as fotos e os
desenhos das figuras das catedrais e das loggias francesas, que voltaram a exercer seu olvidado
poder hieroglífico. Em suma, o que morreu por completo foi essa rica arte iconográfica, que
inclusive só nas últimas três décadas começou a ser estudada seriamente por historiadores da arte.9

O Mutus Liber, editado no ocaso da tradição alquímica e utilizando um número


relativamente pequeno de recursos expressivos, alcançou um ponto simplesmente sublime de
realização. Gosto de compará-lo a Plotino que, escrevendo em plena época de decadência da
filosofia antiga, deixou-nos as etéreas Enéadas. Estas, apesar de não alcançarem o refinamento
gramatical dos tratados da época clássica, são ainda assim um dos mais sutis e elevados de quantos
discursos se plasmaram na língua grega.

O que fez o autor do Livro Mudo foi radicalizar o formato clássico e eliminar de vez a parte
narrada das alegorias e argumentos herméticos. Note-se que uma crítica comum, que fazem todos
esses autores entre si, refere-se ao caráter extremamente obscuro, difícil c ambíguo desses textos
sobre a arte de Hermes. De fato, são os alquimistas os primeiros a confessar que não entendem o
que escrevem os alquimistas – ao mesmo tempo que, oportuna e contraditoriamente, justificam a
obscuridade dos seus próprios textos, devido às pressões externas para que revelem o precioso
segredo da transmutação dos metais comuns em ouro. E devido também a pressões internas,
próprias do modus vivendi alquímico: aquilo que é ensinado com todas as letras não serve, pois
tornaria prescindível a experiência individual da busca, a qual deve mobilizar e aguçar as funções
superiores do iniciado, tais como a intuição, a capacidade de sentir, enfim, a capacidade de pôr-se
em sintonia e correspondência com o todo ao seu redor. Além disso, cada alquimista deve expressar
o que encontrou criando suas próprias imagens, metáforas, alegorias, de modo que o simbolismo de
sua obra escrita ou impressa acaba sendo, em boa medida, intensamente pessoal - portanto, nada
fácil de ser captado por quem não teve as mesmas visões, os mesmos sonhos, as mesmas intuições.10

9. Sobre a arte iconográfica dos alquimistas (central, é claro, para uma compreensão profunda desse universo), os
melhores estudos até o momento são, a meu ver, os livros de Jacques Van Lennep, Art et Alchimie (1966) e Alchimie
(1985). A maior coleção de gravuras alquímicas foi editada recentemente por Stanislas Klossowski de Rola, no seu El
Juego Aureo (1988).
10. No fundo, é como se na Alquimia ninguém ensinasse nada a ninguém, o texto escrito sendo apenas um meio de
reconhecer o que já se sabe e daí não importar tanto a arbitrariedade terminológica. O misterioso Adepto Hortulanus
exemplificou isso muito hem no último capítulo do seu célebre comentário à Tábua de Esmeralda, datado de 1325:
“Oh, amigo leitor, se conheces a operação da pedra, eu te disse a verdade; e se tu não a conheces, eu nada te disse”
(Hortulain, Explications de la Table d'Émeraude de Hermes Trismegiste, p. 12).
A obscuridade exterior, afirmam-no todos os grandes autores, é assim inevitável à expressão
do Adepto.11 Uma folheada em alguns textos de referência como o Lexicon Alchemiae, de Martin
Ruland (1612) ou o Dictionnaire Mytho-Hermétique, de Antoine Dom Pernety (1758), ou no
recente Dizionario d'Alchimia e di Chimica Anticuaria, de Gino Testi (1950), e o leitor terá uma boa
ideia da massa confusa que é a terminologia alquímica: centenas de nomes, imagens narradas e
alegorias da pedra filosofal, do mercúrio, do enxofre, do sol, das operações, dos objetos de
laboratório. Enfim, o autor do Mutus Liber pode muito bem ter concluído que sobraram gramáticas
herméticas com descrições dos passos para a confecção da Grande Obra e muito pouco era o que
diziam de preciso sobre a mesma. Se queria revelar mais, seria justamente dizendo menos; e melhor
de tudo seria nada dizer - mostrar as imagens, apenas, poderia ser mais eficaz e profundo.

Há que ponderar ainda que os hieróglifos herméticos, na sua pretensão de apresentar-se


como alternativa, tanto para a arte pictórica exotérica quanto para a tradição puramente escrita,
tiveram de enfrentar uma dupla dificuldade. Primeiro, como conseguir contornar a insaciabilidade e
a proliferação inevitável e praticamente infinita das palavras, fonte constante de mal-entendidos
(pensemos na disseminação de que fala Jacques Derrida e que representa, miticamente, tanto a
possibilidade de glória como a própria ruína da filosofia, entendida como a busca da verdade pelo
uso correto das palavras). E em segundo lugar, como controlar ou limitar seja a ambigüidade de
leitura (também espiralada), seja a tendência ao silêncio - algumas vezes angustiante, outras
impenetrável - ambas provocadas pelas imagens puras.

Pois... será de fato a imagem pura a melhor alternativa para uma revelação por escrito? A
extrema frugalidade escritural do Mutus Liber parece às vezes uma regressão histórica em relação
àquela revolução do pensamento que fez surgir, simultaneamente, a filosofia racional e as artes
herméticas. Retomando o que discutimos acima, Platão nos diz no Phaedro (274c-275e) que o deus
Hermes trouxe para os egípcios a escrita porque esta seria um modo mais preciso de fixar o saber do
que a imagem, isto é, teria um valor de remédio (phármakon) para a memória.

E aqui tocamos, ao discorrer sobre um texto aparentemente arcaico e obscuro como o Mutus
Liber, uma questão das mais atuais e fascinantes do pensamento filosófico contemporâneo, colocada
por Jacques Derrida num ensaio brilhante. Utilizando um estilo argumentativo digno de um
paracelsista, Derrida nos alerta para o fato de que o phármakon, remédio para a memória e portanto

11. A propósito, esse foi o ponto de discórdia de Eugène Canseliet para com a interpretação junguiana da Alquimia (a
qual discutiremos a seguir): Jung enfatizou esse caráter individual do simbolismo alquímico e desenvolveu a idéia de
que o alquimista projetava nas operações processos internos de sua psique. Canseliet leu nesse argumento a
incapacidade de Jung de ver a unidade profunda das operações físico-químicas praticadas por todos os alquimistas.
fixador da verdade, é também seu veneno! 12 Parece então que o autor do Mutus Liber, em pleno
século das luzes, à época do surgimento do espírito científico, recusou-se a fazer uso desse
poderoso remédio por já saber que ele trazia consigo o seu contrário. E, ao fazê-lo, ele não somente
se dispôs a expressar “toda a filosofia hermética” (como veremos na Primeira Prancha), mas
também desafiou frontalmente essa filosofia, da forma em que começava a se apresentar em sua
época: pois Hermes, o pai da Alquimia, paradoxalmente, já não trazia mais a escrita hieroglífica,
mas uma escrita que voltava a ser mera letra, isto é, uma escrita veneno.

E de que se trata finalmente esse filtro chamado phármakon, maravilhoso e terrível a um só


tempo? Eis como nos é descrito por Derrida:

“O phármakon seria uma substância, com tudo o que esta palavra pode conotar, no
que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade críptica
recusando sua ambivalência à análise, preparando desde então, o espaço da
alquimia...”

(A Farmácia de Platão, p. 14)

Surpreendentemente Jacques Derrida, típico representante da filosofia acadêmica


contemporânea-exotérica, desconstrutivista, exteriorizante, descentradora, anti-metafísica, abre
novamente espaço para se falar do universo da Alquimia! E na medida em que discute o
phármakon, substância tão misteriosa quanto o vitriolum e o alkahest de que falaremos mais tarde, e
aludindo também ao controvertido papel do deus Hermes, ajuda a confirmar, de um modo
inesperado, a atualidade de nosso livro. Assim, o Mutus Liber, ao mesmo tempo em que é um dos
mais espetaculares expoentes dessa tradição, deixa de ser o tipo comum de obra de Alquimia e
passa a falar num registro que ultrapassa o mundo exclusivo dos seguidores e aficionados da ciência
de Hermes.

Unindo assim, silenciosa e elegantemente, as dimensões exotérica e esotérica da busca


filosófica, aí está o Mutus Liber, esse belíssimo e enigmático documento que atesta o elevado
cultivo da imaginação criativa entre os seguidores da tradição alquímica. Livro mudo, ele de fato
usa umas poucas palavras e se nos apresenta como uma verdadeira Pedra de Rosetta: exibe
números, arábicos e romanos; letras; palavras e frases; utensílios domésticos; aparelhos de
laboratório; paisagens; elementos naturais; figuras antropomorfas, algumas de seres humanos,

12. Paracelso, no Cap. 3 do Segundo Livro Pagoyum, explica como alimento e veneno podem ser alquimicamente a
mesma coisa: "O homem tem necessidade de comer e beber porque seu corpo, que é a morada da sua vida ( hospitium
jus vitae), precisa indiscutivelmente de bebida e comida. Isto significa que o homem é obrigado a absorver veneno,
doenças e a própria morte (A Chave da Alquimia, p. 78).
outras de anjos, outras de deuses; imagens da natureza; flores; animais; monstros. Tudo mostrado de
uma forma bastante equilibrada, sem cair nos excessos e delírios pictóricos comuns a muitos
hieróglifos alquímicos da fase áurea, e ao mesmo tempo capaz de mostrar-nos grande originalidade
e beleza, como o atestam sobretudo as três primeiras pranchas, a décima-segunda e a última, todas
reproduzidas com freqüência na literatura moderna sobre a Alquimia.

Como arte iconográfica, o Mutus Liber despojou os deuses gregos daquele aspecto de
nobreza européia que vemos em outras obras, como no Atalanta Fugiens, no Chymica Vannus etc.
Todos aparecem mais despidos, mais princípios antropomorfos, de forma a tornar a alegoria mais
simples, menos carregada de ethos barroco. Suas paisagens, de cunho mais naturalista e sóbrio,
afastam-se da aura de irrealidade ou sonho das paisagens de Michael Maier, Johann Mylius ou
Lambsprinck. Há uma leveza nas figuras, uma discrição no simbolismo que dá a impressão de
tentar recuperar as soluções clássicas de Nicolás Flamel e Basílio Valentin contra um certo excesso
de significantes que encontramos nas obras alquímicas contemporâneas ao movimento rosacruz.

O grande valor do Mutus Liber é justamente que, na medida em que se apresenta silencioso
(ou mudo, idéia que desagradava profundamente a Magophon, um de seus comentadores), mobiliza
quantos conhecimentos da tradição hermética possua o leitor para tentar decifrar seus símbolos -
isto é, para fazê-lo falar. E através das pranchas do Mutus Liber é possível ouvir, não somente a voz
de Altus, seu anonimo autor, mas de todos os grandes adeptos que existiram antes e depois dele:
Nicolás Flamel, Irineu Filaleto, Paracelso, George Ripley, Sethon, o Cosmopolita, Hortolanus,
Robert Fludd, Michael Maier, Limojon de Saint-Didier, Daniel Stolcius, Cyliani, Fulcanelli, todos
nos mandam mensagens por entre os hieróglifos publicados por Jacob Sulat. Pois, para bem
entender um texto alquímico é necessário relacioná-lo com a tradição inteira, tal a superposição e
imbricação dos princípios, lemas, provérbios, alusões, cabalas, axiomas, definições, metáforas,
descrições, que se articulam, como um intricado crochê, para formar o quase sempre elegante e
equilibrado desenho que significa cada texto alquímico em particular.

Indo ao extremo oposto e livrando-nos completamente do peso das infinitas referências


herméticas que evoca ao estudioso, é possível ler o Mutus Liber também como uma grande obra de
ficção, um texto de espiritualidade que descreve o encontro do homem sonhador com o seu mundo
interior, com os poderes celestiais e subterrâneos, com os processos naturais, com sua alma gêmea.
Assim, pode ser lido, tanto como a história do Ser Só que finalmente se encontra com. Aquilo Que
E Só (o Uno plotiniano, assim definido no final das Enéadas), como uma história da conjunção, da
caminhada a dois em busca da integração total. Daí que a sua última prancha nos propõe a
realização do humano e a conseqüente transcendência dessa mesma dimensão na qual ele se situa.
Seu silêncio inicial, portanto, parece corroborar aquele aviso fundamental que nos legou o sublime
poeta de Florença:

Trasumanar significar per verba non si poria.


Divina Comédia, Paraíso, Canto I, 70-71

Se esse místico transumanar não se alcança com palavras, talvez as imagens alquímicas,
carregadas de uma ambigüidade reveladora, nos levem mais longe na busca de uma resposta aos
mistérios da criação e da vida.
3. AS EDIÇÕES DO MUTUS LIBER

A obra que ora reproduzimos e comentamos é a edição original, publicada em La Rochelle,


em 1677. Esta primeira edição esteve perdida para o público durante séculos, os poucos exemplares
existentes sendo vendidos a peso de ouro nos antiquários, até que finalmente um exemplar foi
encontrado na própria cidade de La Rochelle por Eugène Canseliet. As placas de cobre originais não
puderam ser encontradas, e Canseliet mandou fotografar as pranchas impressas no livro, o que
permitiu uma reprodução bastante fiel. Sua reedição, em forma de livro, ocorreu somente em 1967,
trezentos e dez anos, portanto, após sua publicação original.

Todavia, o Mutus Liber ficou mais conhecido na literatura internacional através de uma
segunda edição, uma nova versão realizada em 1702 pelo médico de Genebra Jean-Jacques Manget,
que o incluiu como apêndice ao primeiro volume da obra por ele editada denominada Bibliotheca
Chemica Curiosa, seu rerum ad Alchimiam pertinentium Thesaurus instructissimus (Genebra 1702,
2 vols.).

Uma edição bastante luxuosa e rara dessa segunda edição, publicada em 1914 por Émile
Nourry e Paul Dérain, incluiu os primeiros comentários modernos ao livro, feitos pelo livreiro
Pierre Dujols, que se auto-intitulou Magophon (de mágos - mago, e phoné - voz: a Voz do Mago).
Seu comentário, a que nos referiremos seguidamente, foi por ele chamado uma Hypotypose.13 É
bastante breve, cheio de lacunas e imprecisões; contudo, abre as portas para a exegese hermética,
até aquele momento tão muda quanto suas próprias pranchas. Em outras palavras, Magophon
inventa a própria noção de comentário ao Mutus Liber.

A edição de Manget apresenta várias deficiências em relação à primeira. Não inclui nem a
inicial Advertência ao Leitor nem o Privilégio do Rei, que encerra o volume, fundamental para se
deduzir quem é o autor do livro (certamente, Jacob Sulat, como discutiremos depois). Obviamente,
não tem também o ex-libris da Academia Rupelense. O mais importante, porém, são alterações que
aparecem na prancha de abertura do livro, onde a paisagem que serve de fundo ao sonhador está
mudada, e o R da palavra LIBER (livro) foi deslocado para sua posição convencional, eliminando
assim a sugestão anagramática presente na edição de 1677. Além disso, em várias outras pranchas
faltam certos símbolos propriamente constitutivos da obra, e outros aspectos das imagens foram
retocados, poderíamos dizer, de uma forma errônea, dando a impressão de que quem o fez ignorava

13. Assim abre Magophon o seu comentário: “Esse título, pese ao que pareça, não tem a menor pretensão. É
exclusivamente técnico - o único genuíno e conveniente ao tema -, já que traça, em sua concisão, o plano de nosso
estudo. Uma hipotipose (de hypó, embaixo, e typos, gravado, emblema) é uma explicação situada embaixo de figuras
abstratas, pois o Mutus Liber é uma recompilação de imagens enigmáticas” (Triomphe Hermétique, p. 17).
o conteúdo hermético do livro. Sobre todas essas alterações falaremos no local apropriado, seguindo
os comentários das pranchas por sua ordem de apresentação.

Contudo, para que se tenha uma idéia da importância da edição de Manget (afinal, foi a que
permitiu ao Mutus Liber um papel histórico mais ativo), ela foi usada por Carl Gustav Jung, que
reproduziu suas pranchas em várias de suas obras e a ela se referiu inúmeras vezes. Até onde pude
pesquisar, não creio que Jung tenha chegado a conhecer a edição de 1677 (certamente não conheceu
a de Canseliet, pois faleceu seis anos antes), e embora se refira à edição de Altus, é sempre à de
Manget que ele se reporta em todos os seus comentários e observações ao Mutus. Também o
português Anselmo Caetano, autor do primeiro (e talvez único) tratado alquímico escrito em nossa
língua, Ennoea, ou A Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal, referiu-se à edição de
Manget.14

Em 1979, Jean Laplace publica, pela primeira vez, pela Editora Arché de Milão, uma
reprodução de luxo, de tiragem limitada, de uma coleção de pranchas coloridas do Mutus Liber do
séc. XVIII, depositada na biblioteca do Congresso de Washington. Nesta edição, a Terceira Prancha
é claramente distinta da de Altus e Manget, indicando a existência de um outro artista.

Finalmente, uma das mais curiosas influências do Mutus Liber ocorreu em meados do
presente século, quando o cientista e astrólogo Armand Barbault resolveu abandonar a cidade e
viver no campo, em busca do ouro potável, a matéria prima com a qual se faz o elixir da longa vida.
Seguindo de perto as instruções condensadas nas pranchas do Mutus Liber (imagino que terá usado
a edição de Magophon ou a de Nourri), Barbault recolheu, durante todas as madrugadas de 1948 a
1960, o orvalho celeste (o flos coeli, que discutiremos nos comentários à Quarta Prancha) e,
efetuando as operações clássicas, conseguiu finalmente obter uma substância dourada, possuidora
de amplas propriedades medicinais, e que, apesar de já testada por vários laboratórios alemães, tais
como o Weleda A. G. de Stuttgart e o Wala-Heilmittel, ainda não se conseguiu descobrir sua
composição. Fala-se, inclusive, a partir da substância de Barbault, das possibilidades de um outro
estado da matéria. O Mutus Liber é a principal obra comentada por Armand Barbault em seu
intrigante relato.15

14. Em 1987 foi publicada uma edição fac-símile dessa interessante obra de Alquimia, acrescida de uma excelente nota
de apresentação a cargo de Y. K. Centeno.
15. Serge Hutin reclama (oportunamente, a meu ver), por mais exames, por parte de cientistas de todo o mundo, do
preparado obtido por Barbault, por ele chamado ouro da milésima manhã, que supostamente já curou casos de
paralisia e sífilis. (O livro de Barbault chama-se L'Or du Milliéme Matin; Paris, 1969; há uma tradução espanhola, El
Oro de la Milésima Mañana, Editorial Sirio, Málaga, 1986). Mais informações sobre as experiências de Barbault e
suas relações com as imagens do Mutus Liber podem ser encontradas no livro de Neil Powell, Alchemy, the Ancient
Science, Londres, Aldus Books, 1976.
4. JUNG E O MUTUS LIBER

Há pouco, referimo-nos à reprodução das pranchas da edição de Manget nas obras de Jung.
Não se pode falar de estudos de alquimia no século XX sem mencionar, ainda que brevemente, seus
longos e profundos estudos, que praticamente redescobriram essa riquíssima arte para o pensamento
contemporâneo, sobretudo no que se refere à dimensão psicológica das alegorias alquímicas. As
leituras de Jung do Rosarium Philosophorum, por exemplo, mostram de uma forma bastante
convincente como aquela seqüência de imagens expressa, numa linguagem oblíqua e até então
praticamente desconhecida para a ciência psicológica ocidental, o que ele chamou de "processo de
individuação". Sua obra máxima no campo dos estudos alquímicos foi, sem dúvida, Psicologia e
Alquimia; a influência desse livro tem sido enorme, em termos de chamar a atenção não só dos
profissionais em Psicologia Analítica, mas da intelectualidade em geral, para o fascínio, não
somente dos textos, mas sobretudo das imagens alquímicas. Jung criou uma verdadeira escola de
estudos alquímicos, da qual participam Marie-Louise von Franz, sua principal colaboradora,
Edward Edinger, Erich Neumann, Étienne Perrot, Johannes Fabricius e muitos outros. No Brasil
destaca-se Carlos Byington, que inclusive já complementou a análise feita por Jung das figuras do
Rosarium Philosophorum.

Se essa redescoberta de Jung dos tesouros da Alquimia foi muito bem-vinda por parte da
intelectualidade ocidental, por outro lado, despertou reações não muito favoráveis em pessoas mais
diretamente relacionadas ao hermetismo. O ponto de discórdia é essencialmente o fato de Jung não
se ater ao que se costuma denominar de “ponto de vista da tradição”. Já René Guénon criticava a
abordagem de Jung, não com relação a seus estudos de Alquimia, mas quanto a sua visão do campo
espiritual em geral. O mais acirrado crítico de Jung, entre os intelectuais herméticos, parece ser
Titus Burckhardt, autor de um belo livro sobre o significado espiritual da Alquimia (Alquimia.
Significado e Imagem do Mundo). Conforme mencionamos anteriormente, o próprio Eugène
Canseliet descartou as leituras psicológicas de Jung, por julgá-las especulativas e arbitrárias.16

A questão central que interessa colocar aqui é que Jung fez um mergulho nos textos
alquímicos originais (alguns dos quais inclusive ajudou a resgatar, como foi o caso do Aurora
Consurgens), e empreendeu sua leitura praticamente sem se envolver com quaisquer continuadores
ou estudiosos da tradição hermética que fossem seus contemporâneos. Pode-se dizer que, neste
sentido, não dialogou com os primeiros interessados em utilizar suas conclusões. É de fato notável

16. Para o leitor que queira fazer uma avaliação dos argumentos de Burckhardt, recomendo a leitura do livro
mencionado e muito especialmente do seu ensaio “Psicología Moderna y Sabiduría Tradicional”, do livro Ciencia
Moderna y Sabiduría Tradicional, Madrid, Taurus, 1979. Sobre a crítica de Guénon, ver Símbolos Fundamentais da
Ciência Sagrada, Ed. Pensamento, São Paulo, 1985. Quanto a Canseliet, ver L' Alchimie Expliquée sur ses Textes
Classiques, Ed. Jean Jacques Pauvert, Paris, 1972.
que não se tenha confrontado com as obras de Fulcanelli e Canseliet, publicadas ao longo dos anos
em que se dedicou aos estudos alquímicos.

Dos autores modernos ligados à Alquimia, Jung cita apenas brevemente a Julius Évola. Mais
que uma crítica, quero com isso alertar o leitor para a existência de uma vasta literatura sobre
Alquimia - exegética, historiográfica, de comentário, comprometida com essas dimensões de prática
de laboratório e ao mesmo tempo desenvolvendo sua própria linha de espiritualidade e auto-
crescimento - que evoluiu paralela e inteiramente distante dos estudos de Jung e seus colaboradores.
Essa relativização do valor da opus alquímica junguiana faz-se necessária, sob pena de sermos
injustos com autores da maior importância, apesar de menos conhecidos do grande público
acadêmico e dos seguidores das escolas de Psicanálise. Enfim, a intenção não é tomar partido de
René Guénon ou Titus Burckhardt (afinal, Jung também é um grande criador, havendo legado à
humanidade uma obra escrita à altura dos grandes hermetistas que ele mesmo ignorou), mas
observar simplesmente, sobretudo para aqueles que têm pouca familiaridade com a literatura
hermética que, se Jung diz coisas maravilhosas sobre a Alquimia enquanto psicólogo, Canseliet e
Fulcanelli também nos dizem maravilhas sobre ela enquanto alquimistas. Independentemente da
enorme contribuição que Jung fez à Psicologia ocidental através da sua interpretação da Alquimia, o
fato é que a leitura de seus textos transmite a nítida sensação de que ele estudava uma tradição
morta, enquanto as obras de Canseliet referem-se a cada instante a uma tradição que para ele está
viva, da qual ele é integrante. Por esse motivo, as perspectivas desses dois autores são praticamente
irreconciliáveis.

Mais recentemente, Barbara Obrist formulou uma crítica epistemológica bastante severa à
lei tura de Jung da alquimia ocidental: para ela, Jung mostra uma verdadeira “indiferença ao
conteúdo estritamente alquímico dos textos e à sua retórica complexa” (Les Débuts de l'Imagerie
Alchimique (XIVº- XVº siècles), p.17)

Quanto ao Mutus Liber, como já disse, Jung citou-o inúmeras vezes nas obras Psicologia e
Alquimia, Mysterium Coniunctionis, Psicologia da Transferência e O Espírito Mercúrio. Sua leitura
das pranchas, porém, nem sempre parecem obedecer ao contexto narrativo do livro, refletindo um
esquema interpretativo previamente construído, possivelmente retirado da análise mais
pormenorizada de outras obras alquímicas. Veja-se, por exemplo, a seguinte menção do par sol-lua:

“A elevação da matrix, a solução química, do estado de materialidade ao de Luna é a


alegoria clássica da Igreja, como Ripley [alquimista inglês do séc. XVI] sem dúvida
sabia. A deusa que intervém subitamente na opus é mostrada no Mutus Liber, onde
ela aparece, igualmente de modo súbito, durante a operação como uma figura
feminina nua coroada com o signo da lua e carregando uma criança nos braços. O
milagre é então descrito como uma intervenção dos deuses.

“Luna é mostrada na prancha 5, e Sol ou Febo Apolo na prancha 6 [do Mutus


Liber].”

(Mysterium Coniunctionis, p. 134-135)

Há aqui várias afirmações que me parecem estranhas à simbologia do Mutus Liber. Primeiro,
não entendo o sentido de uma aparição “súbita” de um deus (!) durante a operação, quando se trata
de uma seqüência previsível - ao menos idealmente - de processos de laboratório indicados
inclusive por vários outros adeptos antes de Altus. Em segundo lugar, essa figura, para Jung
feminina, é na realidade masculina, pois trata-se do deus Vulcano com o signo da lua gravado no
peito (v. Sexta Prancha) - daí seu significado de Vulcano lunático, termo utilizado no Le Triomphe
Hermétique, de 1699, e no Dictionnaire Mytho-Hermétique de Pernety, de 1758, entre outros. E
finalmente, ao discutir um tema tão distante do nosso livro como a simbólica da lgreja, parece um
excesso comparar a intervenção da deusa Luna com o fragmento de uma figura hieroglífica
complexa, que mostra uma série de operações interligadas cujo objetivo, para quem estudar a
Quinta Prancha com atenção, é apenas o primeiro estágio de preparação do orvalho celeste! As
diferenças de tema, conteúdo e convenções iconográficas são tão grandes que, se nos ativermos
exclusivamente ao simbolismo próprio do Livro Mudo, somos levados a considerar esse parágrafo
de Jung um equívoco.

Finalmente, afora as demais observações que transcrevo nos comentários às pranchas


correspondentes, há ainda outra passagem do Mysterium Coniunctionis que nos interessa de perto.
Trata-se da observação mais desconcertante que já li de Jung sobre uma obra alquímica - e
infelizmente refere-se precisamente ao Mutus Liber. Transcrevo-a inteira para contextualizá-la
adequadamente:

“O Mutus Liber de Altus, recentemente reimpresso, representa o Mysterium Solis et


Lunae como uma operação alquímica entre homem e mulher em uma série de
figuras. O fato de uma obra tão abstrusa e, esteticamente falando, nada
recomendável, ser reeditada no século XX, é uma prova do caráter secreto e
irracional da participação da psique em seu próprio mistério. Tentei apresentar a
psicologia dessas relações em meu escrito: A Psicologia da Transferência, 1946.

(Mysterium Coniunctionis, p. 153)


Esse texto de Jung é de 1955. Não consegui descobrir a qual edição recente do Mutus Liber
se refere, mas poderia ser a de Marc Haven, de 1947.17 Confesso que sua segunda frase me deixa
perplexo: obra abstrusa... esteticamente de modo algum recomendável... Para quem? Por quê? O
que tem o livro que ver com a participação da psique no seu próprio mistério? O surpreendente é
que, a despeito dessa avaliação negativa, Jung fechou seu estudo sobre a Psicologia da
Transferência, que se baseou nas dez primeiras gravuras do Rosarium Philosophorum, justamente
citando e comentando uma prancha do Mutus Liber (v. texto incluído nos comentários à Terceira
Prancha) sem dar nenhuma indicação de animosidade em relação a seu conteúdo. Jacques Van
Lennep esclarece que o interesse pelas imagens alquímicas como obras de arte é ainda algo muito
recente entre os estudiosos. É sabido que Jung foi um homem de gosto estético um tanto
conservador e, apesar do grande fascínio que sentia pela Alquimia, provavelmente julgava toda essa
iconografia - e não só o Mutus Liber - como de baixo valor artístico.

17. Comentamos anteriormente o fato de Jung se referir sempre à edição de Manget. A confusão sobre as duas edições
sobreviveu à morte do autor. Mesmo no belo e documentado C. G. Jung: World and Image, editado por Aniela Jaffé, a
reprodução da Primeira Prancha de Manget (p. 127) aparece com a seguinte legenda: “Gravuras do Mutus Liber, La
Rochelle, 1677. Cortesia de C. A. Meier, Zurique”. Sem dúvida, um equívoco.
5. EUGÈNE C ANSELIET, DISCÍPULO E MESTRE

A história do Mutus Liber, e em uma boa medida, dos estudos alquímicos como um todo,
transformou-se radicalmente a partir de 1967, com a reedição de seu original, a cargo de Eugène
Canseliet. Pesquisador primoroso, escritor elegante, detentor de uma vastíssima erudição, buscador
da senda do espírito, Canseliet conseguiu, com seus comentários, aproximar-nos do livro, que até
então se apresentava quase que exclusivamente como uma curiosidade histórica. Enfatizando
sobretudo o significado das operações de laboratório descritas nas pranchas, dialogou também com
Magophon e com uma vasta gama de obras de adeptos, desde os mais famosos até alguns
totalmente desconhecidos do público, cujos trabalhos originais em latim, depositados na Biblioteca
Nacional de Paris, foram traduzidos pessoalmente por Canseliet para sua edição.

Fixe-se que uma leitura satisfatória do Mutus Liber deve ser uma atividade espiralada: o
comentário de Canseliet elucida inúmeros aspectos das pranchas, suscitando porém, por sua vez,
posteriores leituras que esclareçam passagens cifradas, incompletas ou obscuras de seu texto. E toda
a obra de Canseliet está de fato comprometida com o Mutus Liber: Alchimie, Deux Logis
Alchimiques e L'Alchimie expliqué sur ses textes classiques, são três obras-primas da tradição
hermética no nosso século que expandem o significado de vários símbolos encontrados no Mutus
Liber e elaboram temas a eles relacionados.

E como se não bastasse sua própria produção, foi ainda Canseliet que editou as duas
maravilhosas obras daquele que (caso haja existido concretamente) foi sem dúvida o maior
alquimista do século XX: Fulcanelli. Esse homem misterioso, que desapareceu em meados do
século sem deixar vestígio (havendo quem acredite tratar-se do próprio Canseliet, que sempre o
negou),18 deixou com nosso comentarista o texto de dois livros, que nos esclarecem, mais que
quaisquer outros, o fantástico mundo dos hieróglifos alquímicos e da ciência hermética em geral:
Le Mystére des Cathedrales e Les Demeures Philosophales. Há ecos de Fulcanelli em cada página
de Canseliet e, conseqüentemente, também nos nossos modestos esforços de acrescentar algo à sua
leitura do Mutus Liber.

18. Em princípio, Fulcanelli foi um Adepto, isto é, um alquimista que obteve a pedra e a partir dela o elixir da
imortalidade. Pôde então viver (sempre discreta e anonimamente) pelo tempo que julgou necessário, trabalhando para
deixar uma contribuição escrita para a humanidade e depois se afastou em direção a outros planos de vida, podendo
regressar ao convívio terrestre a cada vez que o julgar necessário.
Jacques Bergier, co-autor do famosíssimo O Despertar dos Mágicos, narra o encontro que
teve com Fulcanelli em junho de 1937, quando este lhe discorreu sobre a possibilidade da
transformação da matéria em energia através de operações simples. Segundo Canseliet, Fulcanelli
mostrou-lhe em 1921 três pedaços da Pedra dos Filósofos, por ele obtida, e orientou-o para que ele
mesmo fizesse uma transmutação.19 Ao desaparecer, esse misto de lenda e alquimista extraordinário
deveria contar com mais de cem anos de idade e mantinha o aspecto de um homem de quarenta.
Trazendo sem mais delongas o leitor para dentro de nosso texto, o homem de barba que aparece
coroado por dois anjos na parte superior da última prancha pode representar perfeitamente alguém
como o misterioso Fulcanelli.

Enfim, se o Mutus Liber nos fala hoje através da voz de Canseliet, seria mais do que justo
que um novo estudo do livro se convertesse também num diálogo com seus comentários. É o que
fez, por exemplo, Luís Miguel Martínez-Otero, cujo texto, de 1986, partindo de Magophon e de
Canseliet, acrescenta sua própria leitura ou reflexão inspirada nas pranchas. Igualmente ricos em
sugestões e mesmo em alternativas a Canseliet são os comentários de Mino Gabriele, de 1984. Bem
menos feliz, a meu ver, é a leitura de Johannes Fabricius, cuja utilização dos jargões freudiano e
junguiano chega a ser uma interpelação, senão uma ofensa, ao idioma das imagens do Mutus: a cada
passo ele lê incesto, complexo de Édipo, trauma de nascimento, autismo, narcisismo, como se o
Livro Mudo tivesse sido feito, antecipadamente, com a precípua finalidade de ilustrar e
esquematizar as teses da Psicanálise! Já o autor do mais recente comentário ao livro, Adam
McLean, optou (infelizmente, penso) por basear-se nas pranchas de Manget em vez das originais de
La Rochelle e abordou o livro a partir da Alquimia Espiritual de tradição rosacruz. Inspirado nas

19. No seu livro L'Alchimie Expliquée sur ses Textes Classiques, p. 29, há inclusive um quadro (reproduzido acima),
pintado pelo próprio Canseliet, mostrando como era o seu pequeno laboratório no primeiro andar da usina de gás em
Sarcelles, no verão de 1921, quando se deu a memorável transmutação. Uma excelente investigação sobre a vida de
Fulcanelli e as alternativas sobre quem teria sido esse anônimo intelectual foi escrita há pouco por Luís Miguel
Martínez-Otero, no seu Fulcanelli: Una Biografia Imposible.
experiências realizadas por Armand Barbault, McLean nos apresenta uma análise bastante detalhada
e útil das operações e manipulações descritas nas pranchas. Sua leitura, ainda que coerente e valiosa
(afinal, não há como esgotar esse infinito das imagens silenciosas), mostra-se um pouco limitada
justamente por não haver estabelecido nenhum diálogo com o rico material colocado por Canseliet à
nossa disposição.
6. POR UMA LEITURA MITO-HERMÉTIC A DO MUTUS LIBER

Por todo o exposto, creio não haver melhor acesso à simbólica alquímica que através de uma
leitura do Livro Mudo. Infelizmente havia no Brasil, até agora, uma única reprodução, feita sem
nenhum cuidado, das pranchas de Manget, acompanhadas de breves comentários, francamente
deploráveis, com erros crassos de leitura iconográfica e mostrando inclusive ignorância e equívocos
sobre os mitos gregos contidos nas imagens. Além disso, essas pranchas aparecem no princípio de
uma edição brasileira do Triunfo Hermético de Limojon de Saint-Didier (L'Oren Editora, 1976), de
modo que um leitor pouco informado não saberá sequer que se trata do Mutus Liber, podendo
perfeitamente pensar que as pranchas são parte da obra nomeada na capa do livro. O presente
trabalho, portanto, pode ser considerado a primeira edição do Mutus Liber no Brasil.

Quanto às obras mais conhecidas de estudo dos temas básicos da Alquimia, são ainda
escassas em português. E as poucas existentes utilizam um formato linear e esquemático de
exposição, carecendo de um foco, que transmita ao leitor um senso de unidade da massa de dados
apresentados. Esse foco condensador de significados só pode ser um texto da tradição alquímica.
Eis porque optei por discutir todos os grandes temas da Alquimia no contexto do estímulo
provocado pelas imagens do livro, procurando assim ser fiel ao seu estilo de exposição: indireto,
fragmentado, reticente, porém gestáltico e totalizante. O leitor, ao seguir essa aventura que não tem
como não ser labiríntica, poderá recorrer (espero) às obras de referência disponíveis, reproduzindo
em sua esfera pessoal o mesmo tipo de leitura espiralada que também tive que fazer ao deparar-me
com o texto de Canseliet sobre o Livro Mudo.20

E faz-se necessário aqui, tal como fizemos anteriormente com o método de simbolismo da
Alquimia, explicitar algumas das abordagens possíveis ao simbolismo do Mutus Liber, Primeiro,
estaria a possibilidade de avaliar sua contribuição para a história da ciência (ou da Química em
especial), embora não acredite ser este o aspecto pelo qual o livro mereça maior atenção. Outra
leitura perfeitamente plausível seria aquela orientada pela Psicologia Analítica: tentaríamos ler suas
pranchas como expressão de processos psíquicos dirigidos para algum ponto de finalização ou
completude, emulando, por exemplo, a leitura feita por Jung das imagens do Rosarium
Philosophorum. Na medida em que algumas das pranchas são mandalas e mostram uma dinâmica
do casal alquímico em busca de uma opus comum, o repertório dos conceitos junguianos talvez

20. Aqueles que desejem ampliar seus conhecimentos sobre os temas sugeridos pela leitura do Mutus Liber poderão
remeter-se às obras de Fulcanelli, Canseliet, René Alleau, Jacques Van Lennep, Stanislas Klossowski de Rola, Titus
Burckhardt, entre outras mencionadas na Bibliografia.
pudesse ser ativado por algum estudioso e, quem sabe, revelar-nos alguma nova dimensão desses
enigmáticos emblemas.

Conforme disse antes, parti do rico saber que nos legaram Fulcanelli e Canseliet por estar
convencido de que foram eles os continuadores modernos da legítima tradição alquímica, aquela
que, ao preço de debilitar-se quase ao ponto de extinção, buscou preservar sua identidade, frente às
apropriações e racionalizações de seus princípios por parte de outras tradições e movimentos
esotéricos - espiritualistas, religiosos e mesmo científicos - que se intensificaram a partir do século
XVIII e que continuam até hoje. É nesse sentido que tenho reservas pessoais, tanto com a postura
da Alquimia Espiritual e das comparações greco-hebraico-egípcio-cristãs com o simbolismo
alquímico desenvolvidas pelos rosacruzes, quanto pela postura excessivamente tipologizante da
maioria dos estudiosos junguianos, pois ambas as abordagens, ao oferecerem ao leitor uma
gramática de leitura demasiado esquemática e previsível, acabam reduzindo a eficácia simbólica e o
mistério dos textos alquímicos.21

Quanto aos meus comentários, procurei primeiramente incluir uma síntese dos
esclarecimentos oferecidos por Fulcanelli, Canseliet e outros para uma decodificação das operações
de laboratório, tão centrais na iconografia do livro. Em segundo lugar, procurei situar o livro, a cada
passo (ou a cada prancha), no contexto da tradição alquímica, de forma a dar uma idéia do quanto
ele dialoga com os outros grandes clássicos que o precederam. Daí a freqüência com que me referi a
autores como Michael Maier, Irineu Filaleto, Basílio Valentin, Robert Fludd, Lambsprinck,
Mathurin de Martineau e até a John Dee. Ao fazê-lo, procurei reproduzir, segundo minha
imaginação, os diálogos que o próprio Altus teria mantido com esses autores - caso houvesse optado
por um texto escrito - ao preparar uma obra de Alquimia tão tardia e tão sintética.

E finalmente, para mergulhar de cabeça e corpo no cerne mesmo dessa tradição, procurei
exercitar ao máximo uma leitura mito-hermética do Mutus Liber. Esta leitura parece-me a mais
próxima das intenções e do contexto do autor, e me foi praticamente sendo imposta à medida que
fui dando uma atenção cada vez maior aos detalhes iconográficos das pranchas. Há toda uma teoria
da intervenção celestial nas gravuras (pois são inúmeros os deuses que podemos identificar com
precisão) e o livro fala fluentemente através dos mitos e das relações míticas que se estabelecem
entre as diversas entidades descritas. Parti então da hipótese de que uma análise sistemática das
alegorias míticas expressas na obra me levariam a uma compreensão mais inteira e profunda do seu
significado hermético. Retirei então tudo o que pude do valiosíssimo material contido nos dois

21. Esta é a restrição que faço, por exemplo, às leituras de Johannes Fabricius e de Marie Louise von-Franz do Mutus
Liber e de outros clássicos da Alquimia: tudo é visto em termos de um processo de individuação que homogeiniza
criações simbólicas tão diferentes como o Splendor Solis, o Mutus Liber e as Doze Chaves de Basílio Valentin. Adam
McLean, numa perspectiva basicamente rosacruz, critica também esse excesso de psicologização de Fabricius.
livros de Dom Pernety, escritos justamente quando essa tradição declinou e que nos fornecem uma
interpretação perfeitamente sintonizada com a expressão dos grandes adeptos. Pernety acreditava
que a principal mensagem transmitida pela mitologia clássica era uma alegoria da arte hermética e
nenhum texto de Alquimia se presta tanto quanto o Mutus Liber para confirmar essa hipótese.22

Seguindo então essa leitura que se filia à tradição propriamente hermética da Alquimia, creio
estar oferecendo algumas contribuições originais para o conhecimento do livro. Primeiro, procurei
avançar ao menos em alguns elementos na decifração iconográfica geral das pranchas. Com
exceção da nona prancha, extremamente simples, sugeri minha própria leitura de detalhes de cada
uma delas; em alguns casos, corrigi, ou ofereci alternativas ao que julguei leituras impróprias ou
incertas dos outros comentadores, Canseliet inclusive. Sobre a terceira prancha, especificamente -
talvez a mais complexa de todas as pranchas contidas em livros de Alquimia - posso dizer que
ofereço a leitura mais detalhada e completa das que existem até o momento. Enfim, se procurei
levar a sério as implicações herméticas da Obra, foi por acreditar que a Alquimia é também, senão
principalmente, uma via de espiritualidade, e por isso descartei a hipótese - mais cômoda para
qualquer acadêmico - de abordar esse texto de uma forma exclusivamente racionalista ou redutora,
seja ao plano psicológico, seja ao de mera ficção iconográfica.

Este não é, portanto, um mero estudo acadêmico - crítico, historiográfico - de um conjunto


de, para utilizar uma expressão de E. Gombrich, “ícones simbólicos”, mas um exercício de
imaginação criativa, que, espero, tenha continuidade em cada leitor. Basta reconhecer que somos
todos - autores, comentadores, leitores, praticantes - candidatos, cada um em seu nível particular de
possibilidades, a pertencer à luminosa aurea catena Homeri (corrente de ouro de Homero),
plasmada por Hermes na Tábua de Esmeralda e que (quero crer) ainda não se rompeu para sempre,
apesar de tão frágil e desacreditada nos tempos presentes. Pelo que sei, este é o primeiro estudo ou
comentário de uma obra alquímica, extenso e personalizado, feito no país. Procurei então contribuir
para a escassa literatura brasileira sobre o assunto e ao mesmo tempo situar-me (na medida do
possível) em pé de igualdade com os estudos internacionais sobre Alquimia e hermetismo. Foi nesse
sentido, por exemplo, que incorporei o trabalho de pesquisa de Yvette Centeno, editora de um fac-
simile do original do Ennoea de Anselmo Caetano, publicado em Lisboa em 1732 e 1733. Esse
texto, apesar de pouquíssimo conhecido dos estudiosos da Alquimia, está à altura dos grandes
tratados escritos em latim, francês, inglês ou alemão na mesma época. Interessa-nos de perto porque

22. O próprio Jung, à parte sua abordagem de Psicologia Analítica, dá a razão a Dom Pernety. Ao comentar sua
interpretação do mito de Apolo e Corônis diz: “Dom Pernety (Fables Egyptiennes et grecques, II, p. 152) interpreta
corretamente Corônis como putrefactio, nigredo, caput corvi, e o mito como uma opus. Isto é surpreendentemente
correto, já que a Alquimia, ainda que os alquimistas não o soubessem, foi filha dessa mitologia, ou da matriz da qual o
mito clássico surgiu como um irmão mais velho” (Mysterium Coniunctionis, p. 122). Pergunto-me apenas como podia
Jung estar tão seguro de que os alquimistas não sabiam das conexões íntimas que sua arte mantinha com o mito
clássico.
seu autor comenta duas pranchas principais do Mutus Liber. Além disso, nada mais português (e
brasileiro) que o Ennoea, que nos propõe uma visão sebastianista da Alquimia!

Por idêntica razão, inclui textos pouco conhecidos de Fernando Pessoa sobre alquimia que
atestam a extrema sensibilidade e lucidez do nosso poeta maior com relação à tradição hermética.

Além dessas (mais próximas da cultura de nossa língua), procurei estabelecer outras
associações literárias e filosóficas pouco lembradas de forma a ampliar - e ao mesmo tempo
circunscrever, com signos mais poderosos que os que eu mesmo posso emitir, a partir da minha
limitada condição espaço-temporal - o campo de ressonância ativado pelos símbolos desse livro
mágico.

Enfim, não foi fácil apertar a tecla certa, ao tentar combinar dois tipos de discurso distintos,
duas filosofias diferentes e dois modos de conhecimento quase antípodas: redigi este Ensaio como
um acadêmico e comentei as Pranchas seguindo a tradição hermética. Só posso dizer que foi para
mim um imenso prazer ouvir a voz do Livro Mudo, dialogar com ele e tentar passar para o leitor
algo do que, creio, me foi dito por ele. Minha intenção tem sido somente a de insistir em que este
livro fala. Que o leitor se dirija agora a ele, primeiro servindo-se de mim como intérprete e logo por
sua própria conta. A preparação necessária para esse colóquio nos é indicada pelas palavras da
Décima Quarta Prancha:

REZA
LÊ LÊ LÊ RELÊ
PRATICA
E DESCOBRIRÁS.
II. O MUTUS LIBER
E DIÇ Ã O OR IG IN A L DE A LT U S ( L A RO C HE L LE , 1677)
A C O M PA N H A D A D A E DIÇ Ã O DE M A NG E T (1702)

EX-LIBRIS

Victrice Minervâ Minerva Vitoriosa


Regiae Academiae Rupellensi Academia Real de La Rochelle
DU LEGS DA DOAÇÃO
DE M. LA FAILLE DE M. LA FAILLE

“Um braço direito armado saindo de uma nuvem, fêz


brotar, por meio de sua lança fincada na terra, sob as
ondas do céu, o olivo do qual voltaremos a encontrar, a
seu tempo, dois ramos, que enquadram o desenlace da
décima quinta prancha” (Canseliet, Mutus Liber, p. 13).
AO LEITOR

Apesar de quem cobriu os gastos de impressão deste Livro não


ter querido, por razões que a só ele lhe dizem respeito, encabeçá-lo
com Carta dedicatória nem com Prefácio, julguei, outrossim, que não
seria de todo ruim que os dissesse que esta Obra é admirável em si
mesma: em que pese ser intitulada Livro Mudo, mesmo assim todas as
Nações do mundo, os Hebreus, os Gregos, os Latinos, os Franceses,
os Italianos, os Espanhóis, os Alemães etc., podem lê-la e entendê-la.
E também o mais belo livro de quantos já se imprimiram até agora
sobre este assunto; e segundo dizem os Sábios, nele se encontram
coisas que não haviam sido ditas por pessoa alguma. Há que ser
somente um verdadeiro Filho da Arte para conhecê-lo de antemão. Eis
aí (querido Leitor) o que julguei meu dever dizer-lhe.
Prancha 1

Noite escura, o jovem


buscador sonha. Os anjos o
despertam para que dê início
ao trabalho da Grande Obra
Prancha 2

Os anjos trazem o ovo


filosófico, dentro do qual
Netuno anuncia o nascimento
de Sol e Lua. No plano
sublunar, o casal alquímico ora
diante do atanor recém-ligado.
Prancha 3

O Cosmos Filosófico e suas


múltiplas transformações.
Júpiter rege sobre os três
círculos concêntricos, onde os
princípios e as naturezas mais
diversas interagem.
Prancha 4

O alquimista e sua soror


mystica recolhem o orvalho,
ou flor do céu
Prancha 5

Práticas de laboratório: o
orvalho coletado é conduzido
ao fogo vivo, fazendo surgir
enxofre e mercúrio, logo
entregues ao Vulcano
Lunático, o fogo secreto.
Prancha 6

Continuação das práticas


anteriores: o Sol Apolo
recebe a precipitação da rosa
de seis pétalas, símbolo da
pedra filosofal
Prancha 7

Passagem da via úmida à


via seca: Saturno
emasculado, símbolo da
nigredo, entrega o vitríolo a
Diana, símbolo da albedo.
Prancha 8

O Mercúrio filosófico
realizado no interior do Ovo.
Com o fogo do atanor
desligado, o casal alquímico
ora e espera
Prancha 9

Outra etapa da purificação da


matéria prima: a operadora
entrega, pela décima vez, o
líquido sutil ao jovem
Mercúrio.
Prancha 10

Operações finais da fase de


conjunção: Apolo e Diana se
dão as mãos festejando a Obra
que completou, pela primeira
vez, seu ciclo de cores.
Prancha 11

Em cima, a realização do
regime solar da Obra.
Embaixo abrem-se todas as
janelas do laboratório.
Prancha 12

Preparativos finais:
intensifica-se o intercâmbio
entre o casal alquímico e o
deus-princípio Mercúrio.
Prancha 13

Estágio da Multiplicação,
fase terminal da
transmutação dos metais
em ouro
Prancha 14

Realizada a Obra, o casal pede


segredo. No interior do atanor,
o lapis philosophorum (pedra
filosofal) exibe, feliz, o lema
do trabalho alquímico.
Prancha 15

A transfiguração do Adepto: o
sonhador finalmente
completou a viagem iniciática
e ascende agora à união com o
Todo na condição de imortal.
Privilégio do Rei

LOUIS PELA GRAÇA DE DEUS REI DE FRANÇA E DE NAVARRA

A nossos amados e fiéis Conselheiros as Famílias que levam nossas Cortes de Parlamento,
Mestres de Requerimentos ordinários de nossa Casa, grande Conselho, Preboste de Paris, Juízes,
Senescais, Prebostes, seus Lugares Tenentes, & outros Juízes a quem corresponda; SAÚDE. Nosso
bem amado Jacob Saulat, Senhor de Marez, Nos fêz representar que caiu em suas mãos um Livro de
Alta Química de Hermes, intitulado: Mutus Liber, in quo tamem tota Philosophia Hermetica Figuris
hierogliphicis depingitur, ter optimo, maximo Deo misericordi consecratus, solisque Filiis Artis
dedicatus, Authore cujus nome est Altus, o qual ele desejaria dar a Público. Teme, porém, que
depois dele, ou de tal Livreiro ou Impressor que ele haja escolhido, e que haja feito a despesa,
outros se dedique a imprimi-lo, se ele não tem sobre o mesmo nossos Documentos necessários.
POR TUDO ISSO, querendo gratificar o dito Expositor, Nós lhe concedemos permissão & acordo,
permitimos & concordamos pelas Presentes, de fazer imprimir o dito Livro de maneira que melhor
lhe pareça, durante o tempo & o espaço de dez anos consecutivos, a começar do dia em que ele
tenha acabado de imprimir pela primeira vez, e o de vendê-lo & distribuí-lo por todo nosso Reino.
PROIBIMOS a todos os Livreiros, Impressores e Outros, imprimir, fazer imprimir, vender nem
distribuir o dito Livro, sob pretexto de aumento, correção, mudança de título, impressão estrangeira,
nem outro, de qualquer sorte & maneira que seja, nem mesmo de extrair alguma coisa, sem o
consentimento do Expositor ou seus procuradores, sob pena de confisco dos exemplares
reproduzidos, de duas mil libras de multa, & de todos os gastos, prejuízos & interesses; E em caso
de contravenção, Nós & nosso Conselho nos reservamos o conhecimento disso. A seu cargo
depositar dois exemplares em nossa Biblioteca pública, um em nosso Despacho de Livros de nosso
Castelo do Louvre, & um no nosso mui querido & leal Senhor d'Aligre, Chanceler & Guarda dos
Selos da França, & de fazer registrar as Presentes nos Registros da Comunidade de Livreiros de
Paris, sob pena de anulação das Presentes: Do conteúdo das quais vos mandamos & prescrevemos
fazer gozar o Expositor & seus procuradores plena & aprazivelmente, cessando e fazendo cessar
quaisquer perturbações & impedimentos em contrário. Queremos que, ao colocar no princípio e no
fim dos ditos Livros, o extrato das Presentes, as mesmas se tenham por devidamente significadas; &
que se acrescentem as cópias coletadas por um de nossos amados & fiéis Conselheiros e
Secretários, assim como o original.
MANDAMOS em primeira instância ao nosso Meirinho ou Sargento para isso requisitado,
que faça a execução das Presentes, todas as significações, proibições, embargos, & outros Atos
requeridos & necessários, sem solicitar outra permissão; sem prejuízo do Clamor de Haro, Carta
Normanda, ou outros títulos a estes contrários: Pois tal é nosso prazer. DADO em St. Germain dia
vinte e três de Novembro, o ano da graça de mil seiscentos e setenta e seis, & trigésimo-quarto do
nosso reinado, Firmado, Pelo Rei em seu Conselho: DESVIEUX.

O referido Senhor Saulat permitiu a Pierre Savouret, Comerciante Livreiro em La Rochelle, de


imprimir, vender & distribuir o dito Livro, segundo acordo selado entre eles.

Impressão finalizada pela primeira vez, 1 de Fevereiro de 1677.

Registrado no Livro da Comunidade dos Livreiros & Impressores de Paris,


dia 28 de Novembro de 1676, segundo a Disposição do Parlamento de 8 de abril de 1653 & a
do Conselho Privado do Rei de 27 de Fevereiro de 1665. THIERRY. Síndico.

Os Exemplares foram fornecidos.


III. COMENTÁRIOS ÀS PRANCHAS

PRIMEIRA PRANCHA

Na primeira prancha vemos o candidato a Adepto placidamente adormecido, recostado numa


pedra. Acima, noite estrelada, com a lua minguante. As nuvens dão passagem às emanações lunares
e estelares. Canseliet considera que há um erro na prancha, afirmando que a lua deveria estar
crescente. Vejo ao menos duas razões para duvidar de sua opinião. Em primeiro lugar, trata-se do
início da Obra (em todos os sentidos - da Obra alquímica, literária, pictórica, interior, filosófica) e é
a lua minguante (destaca da, aliás, por seu clarão aberto nas nuvens) que motiva os anjos a
descerem ao mundo sublunar e procurar despertar o alquimista para o trabalho. Passada a
minguante, chegará a lua nova, escuridão da nigredo, primeiro estágio dessa caminhada sem início
nem fim. E lícito inclusive associar-se a lua crescente com a obra em branco (a albedo, ou pedra
lunar, a transmutação em prata) e a lua cheia com a obra em vermelho (a rubedo, ou pedra solar, a
transmutação do metal vil em ouro). Todas essas etapas da opus serão detalhadas mais adiante.

O texto em latim, no centro do círculo formado pelos dois ramos diz o seguinte:

Mutus liber, in quo tamen tota Philosophia hermetica, figuris hieroglyphicis


depingitur, ter optimo maximo Deo misericordi consecratus, solisque filiis artis
dedicatus, authore cuius nomen est Altus.

(O Livro Mudo, no qual está contudo representada toda a Filosofia hermética em


figuras hieroglíficas, por três vezes consagrado ao ótimo e máximo Deus de
misericórdia e dedicado exclusivamente aos Filhos da Arte [alternativamente se pode
traduzir: dedicado aos filhos da arte do sol] por um autor cujo nome é Altus.)

Canseliet chama atenção ainda para o nome Rupellae (pequena rocha), posto exatamente sob
o ponto onde os dois ramos dão nó, reforçando a idéia da dificuldade da tarefa de transmutar a
pedra bruta.

Os anjos transitam pela escada de Jacob, é o que o autor do Mutus nos convida a descobrir
lendo as cifras e os números à esquerda de trás para diante, o que resultaria: Gen: 28:11-12/ Gen:
27:28.39/ Deut: 33.13.28.
A primeira referência ao Gênese lê-se na tradução de João Ferreira de Almeida:

“Tendo chegado a certo lugar, ali passou a noite, pois já era sol posto; tomou uma das
pedras do lugar, fê-la seu travesseiro e se deitou ali mesmo para dormir” (28.11).

“E sonhou: Eis posta na terra uma escada, cujo topo atingia o céu; e os anjos de Deus
subiam e desciam por ela” (28.12). (Fig. 1)

Fig. 1 - O sonho de Jacob com a escada pela qual os


anjos sobem e descem. Gravura do séc. XVIII.

A segunda citação do Gênese diz:

“Deus te dê o orvalho do céu, e da exuberância da terra, e fartura de trigo e de mosto”


(27.28).

“Então lhe respondeu Isaac, seu pai: Longe dos lugares férteis da terra será a tua
habitação, e sem orvalho que cai do alto” (27.39).

Finalmente, a citação do Deuteronômio:


“E a José disse: Bendita do Senhor seja a sua terra, com o que é mais excelente dos
céus, do orvalho e das profundezas” (33.18).

“Israel, pois, habitará seguro, a fonte de Jacob habitará a sós, numa terra de grão e de
vinho, e os céus destilarão orvalho” (33.28).

Como de ordinário, fala-nos o alquimista numa linguagem à primeira vista paradoxal: por
um lado, o Adepto receberá de Deus orvalho e fartura (27.28); 23 por outro, deverá enfrentar a
esterilidade e a solidão (27.39). E legítimo também imaginar tratar-se aqui de uma alusão hermética
às duas vias que o Adepto deverá vivenciar após decidir-se (a via úmida e a via seca). Bernard
Gorceix, por exemplo, chega a afirmar que os degraus da escada representam as etapas da via
úmida. Seguindo um raciocínio de Van Lennep, poderíamos reconhecer ainda, nos versículos
conflitantes, os dois estímulos que movem o espírito do alquimista: otimismo, na medida em que o
chamado celeste lhe transmite confiança e, com ela, uma alegria pueril (o que faria dessa atitude um
mero ludus puerorum - brincadeira de crianças - de que falaremos ao comentar a Décima-Quarta
Prancha); e pessimismo, diante da solidão absoluta em que se encontra ao empreender essa
caminhada que, por definição, não pode ter precedentes nem guia estabelecido. Dito ainda de outra
maneira, é possível ler no rosto do sonhador a esperança jupiterina de restauração do reino da luz,
esplendidamente anunciado na Terceira Prancha e a melancolia saturnina (da era de ouro perdida).
De qualquer modo, já está advertido o leitor, bem no início desse labirinto de imagens, idéias e
conceitos, para o estilo de explicação da alquimia que, como dizia Jung, utiliza sempre o obscurum
per obscurius (o obscuro pelo mais obscuro) e o ignotum per ignotius (o desconhecido pelo mais
desconhecido).

Quanto a essa escada de Jacob, é ela o elemento de ligação entre céu e terra, bem marcados
pela oposição entre as tonalidades clara e escura. O homem que dorme é também a matéria prima,
que deverá ser desperta para a realização da Obra. Stanislas Rossowski de Rola considera os anjos o
elemento volátil, enquanto Jacob e as rochas são o elemento fixo. Pela posição dos pés na escada,
podemos deduzir que o anjo de baixo sobe enquanto o anjo de cima desce. Essa possibilidade de
ligação entre céu e terra, então, parece sempre aberta. Como corresponde a um Filho da Arte, o
autor abre o livro com a recomendação de Hermes na famosa Tábua de Esmeralda: “Sobe da Terra
para o céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores.”

23. Este mesmo versículo (Gênese 27-28) foi utilizado anteriormente, no anteverso da edição original, em latim, do
segundo manifesto rosacruz, o famoso Confessio Fraternitatis, de 1615, atribuído a Johann Valentin Andreae. Na
medida em que a Confessio é um texto que também possui uma dimensão alquímica, penso tratar-se de um precedente
importante (e até agora não registrado) da alusão ao Gênese no Mutus Liber.
A alegoria da escada de Jacob - e também a do trono de Júpiter, que apreciaremos na
Terceira Prancha - já havia sido utilizada pelo maravilhoso Robert Fludd no tratado Clavis
Philosophiae et Alchemiae Fluddanae de 1633:

É assim impossível ascender à vida supramundana sem ser por meio da natureza.
Dos degraus da natureza se alcança a escada de Jacob e a corrente para o trono de
Júpiter se inicia na terra

(Silberer, Hidden Symbolism of Alchemy and the Occutt Arts, p. 300).

Finalmente, a referência a Jacob é a pista mais evidente de que o autor da obra é o mesmo
Jacob Sulat, mencionado no Privilégio do Rei como responsável pela publicação do livro.

O efeito da música produzida pelas trombetas dos anjos nos é descrito belissimamente por
Jacob Boehme:

Quando surge a música celestial dos anjos, então sai na pompa celestial, no divino
Sal-niter, todo tipo de plantas e brotos e também toda sorte de figuras, formas e
cores; pois a divindade se mostra em inumeráveis variedades de tipos, cores, formas,
impossíveis de estudar ou pesquisar

(Aurora, XII, 35).

É fundamental conscientizar-se da ausência do sol nesta primeira prancha. Pois a primeira


parte da obra consiste na separação entre luz e trevas. Assim, tudo ainda dorme - homem, pedra, sol
- e é o som da trombeta que porá em movimento esse labor in potentia. Canseliet adverte-nos
inclusive para a necessidade de se submeter o mineral que elegeremos como materia prima a um
choque de ondas (gritos, clamores, sons agudos) para despertá-lo de sua modorra física e espiritual.

Jean Laplace, editor das pranchas coloridas do Mutus, associa a inversão das citações
bíblicas com a posição invertida da lua e acha que essa prancha exibe uma imagem inteiramente
invertida. É a Obra alquímica lida por ele como um “espelho da natureza”.

Pelo que sei, nenhum dos comentadores falou das duas flores situadas nos dois lados da
figura, a da esquerda fechada e a da direita aberta. Mais um símbolo de complementaridade, que
reforça o ideal alquímico de integração e equilíbrio. Podem representar também os lados esotérico e
exotérico presentes em toda Obra (lembremos que a estátua da Alquimia de Notre Dame de Paris
mostra dois livros na sua mão direita: um aberto e um fechado, o que para Fulcanelli significa
exatamente exoterismo e esoterismo): o início e o fim das operações; e ainda o caminho da prima
materia ao lapis philosophorum.

As dez estrelas no céu fechado antecipam simbolicamente a coobação (destilação) repetida


do espírito sobre a matéria, que são as sublimações, representadas por dez águias, como havemos de
ver na Terceira Prancha.

Carl Gustav Jung associa nosso sonhador aos heróis dos contos de fadas, sempre descritos
em suas aventuras vendados ou em sono profundo, representando o estágio de inconsciência que
atravessam (Alchemical Studies, p. 195).

Nessa edição original do Mutus Liber, a paisagem é árida, com areia e rochas. Já na edição
de 1702, a mais conhecida, a paisagem junto ao sonhador é outra, mostrando rochas maiores à
esquerda, penhascos à direita, e até mesmo uma pequena queda d'água. Há quem interprete essa
paisagem referindo-se às duas vias para a realização da Obra: a via seca e a via úmida. Tenham ou
não razão nesse porme nor, parece-me mais importante considerar (o que não tenho encontrado nos
comentaristas) que em ambos os casos o sonhador se apóia sobre uma rocha. É Basílio Valentim,
nas Doze Chaves da Filosofia, que nos lembra que o Adepto deverá buscar o VITRIOLO, solvente
filosófico fundamental, através de um descenso ao elemento ctônico (VITRIOLO: Visita Interiore
Terrae, Rectificando Invenies Occultum Lapidem: “Visita as partes interiores da terra, operando
uma retificação, encontrarás a pedra oculta”). 24 Assim, a pedra que sustenta a cabeça do sonhador,
esconde a Pedra. Daí haver observado Van Lennep a freqüência, na arte pictórica alquímica, de
grutas e penhascos que parecem dominar a atenção dos filósofos.

Essa abertura do buscador para a pedra ainda fechada encontrou possivelmente sua máxima
expressão nesta imagem do livro. Surpreendeu-me encontrar uma menção do Mutus Liber numa
edição recente, a cargo de Alexis Klimov, da vida do místico (e alquimista espiritual) Jacob Boehme
(1575-1624) escrita por Abraham von Frankenberg, em 1651. Ao comentar a primeira visão de
Boehme, que lhe ocorreu quando viu no alto de uma montanha escarpada, nas imediações de
Goerlitz - uma caverna aberta, onde havia um amontoado de pedras vermelhas na entrada e dentro
um tesouro de prata - Klimov recomenda ao leitor: “para uma interpretação do simbolismo

24. É possível encontrar também a forma VITRIOLUM, que acrescenta holofrasticamente outra dimensão essencial da
pedra: Visita Interiore Terrae Rectificandoque Invenies Occultum Lapidem Veram Medicinam (Visita o interior da terra
e operando uma retificação encontrarás a pedra oculta, medicina verdadeira), E há ainda uma terceira maneira de
condensar na palavra VITRIOLUM uma outra frase, de grande significado hermético. Trata-se da seguinte inscrição,
encontrada na pequena porta da misteriosa Villa Palombara, estudada por Canseliet: Villae lanuam Trahando
Recludens Iason Obtinet Locuples Vellus Medeae (Cruzando as portas da casa, Jasão descobre e conquista o precioso
velocino de Medéia).
hermético desta passagem, ver sobretudo o Livro Mudo, comentado por Canseliet...” (Klimov, De la
Vie et de la Mort de Jacob Boehme, p. 209-210). Pergunto-me: por que referir-se ao Mutus Liber
antes das obras bem mais gerais e acessíveis de René Alleau, Julius Évola e Fulcanelli, citadas em
seguida por Klimov? Devo supor que ele reconheceu na nossa primeira prancha um detalhe dessa
famosa Landeskrone (Coroa da Terra), montanha a um só tempo real e mágica que abriu a Boehme
as portas de uma das mais ricas visões espirituais de quantas já registrou a literatura mística.

Esse repouso contra um rochedo expressa também uma atitude de intimidade do alquimista
com a natureza, sem os artifícios dos implementos e das maneiras ordinárias de comer e dormir.
Reescrevendo hermeticamente os versículos de Mateus, 7.24,25, podemos dizer: “feliz aquele que
fez da rocha sua casa.”

Há uma diferença significativa entre esta edição, de 1677, e a de 1702: nesta versão original
da prancha, a palavra LIBER está seccionada, ficando a letra R isolada, logo adiante da cabeça do
anjo. Como tudo parece intencional numa obra como esta, feita supostamente por um iniciado (cujo
nome, inclusive, leva o superlativo positivo de Alto), podemos supor que quem preparou a edição
do livro deixou aberta a possibilidade de uma cabala hermética com essa separação. Já o editor
Manget parece não ter captado nenhuma senha importante oculta neste R deslocado e tratou-o como
um mero erro de impressão que carecia de correção.

Seguindo o método usado extensamente por seu Mestre, Canseliet apresenta aqui uma
solução anagramática para essa frase truncada. Ele lê todas as letras da primeira linha do texto como
se formassem uma só frase: MUTUS LIBE R IN QUO TAMEN; logo, toma inquo como forma
contraída de inquio e compõe o seguinte anagrama: S U M B E T U L I R, INQUO TAMEN: “Sou o
ar do betilo, contudo falo”. O ar de uma rocha... Uma interpretação um tanto forçada e artificial,
mesmo que esse ar seja o mercúrio, como nos garante o intérprete. Além disso, o R em latim foi lido
por Canseliet com pronúncia francesa (ér, para que fosse homofônico de air). Mino Gabriele
discorda da interpretação de Canseliet e propõe uma outra leitura anagramática, capaz inclusive de
reconciliar Manget e Altus, invertendo apenas as palavras da extremidade da frase. MUTUS LIBER
IN QUO TAMEN se transforma então em: SUM UT LIBER IN QUO MANET: “Eu (Mutus Liber)
sou como o Livro (Bíblia) no qual (Jacob) dorme”. E conclui Gabriele: “Altus testemunha que é o
seu livro o texto sagrado do Filósofo hermético, como é a Bíblia para o cristão” (Gabriele,
Commentario sul “Mutus Liber”, p. 65-66). Conjetura por conjetura, prefiro partir do anagrama de
Canseliet e identificar o R solto com a palavra RUPELLAE, que tanto se destaca e que está
exatamente na linha vertical da letra. O que nos daria: “Sou o betilo da pequena rocha [ou: da
pequena caverna]; contudo, falo”. O betilo, explica-nos o nosso criptógrafo, é a pedra negra caída
do céu, devorada por Saturno e que possui poderes oraculares (Fig. 2). Assim, minha solução é ao
menos coerente com a busca daquele elemento que não se mostra, encoberto pela aparência externa
da rocha.

Fig. 2 - Emblema XII do Atalanta Fugiens aparece sob a


seguinte inscrição: A pedra que em lugar de Júpiter, seu
filho, Saturno devorou e vomitou foi colocada sobre o monte
Helicon como monumento para os mortais. O Saturno dos
sábios é a Pedra dos Filósofos, de cor escura. Saturno
também é a Nigredo, o Negror da putrefação, o primeiro
signo importante da Obra.

Na edição colorida do Mutus, editada por Jean Laplace, a palavra IN está inteira no meio da
escada, três degraus acima da cabeça do anjo que sobe e imediatamente abaixo do pé do anjo que
desce. Essa escada comprida, cortando longitudinalmente o círculo formado pelos dois ramos
entrelaçados, lembra a Laplace o signo do sal, cuja qualidade dupla parece simbolizada pelos anjos.

O leitor pouco familiarizado com essa tradição pode ficar um pouco perplexo com esses
malabarismos de letras, palavras e línguas, essa “linguagem dos pássaros”. O próprio Martínez-
Otero, apesar de freqüentemente incorrer nas mesmas práticas, acusa Canseliet de abusar desse
método criptográfico, dizendo que se trata de uma “mania fulcanelliana”, por ele herdada e que
nada tem que ver com a alquimia. Aceito que o abuso de qualquer método deva ser evitado, porém
não é o abuso que o invalida.

E aqui permito-me discordar de Otero: a cabala hermética - principalmente os anagramas e


as construções holofrásticas - tem sido sempre usada pelos alquimistas. Termos como o vitríol,
alkahest, azoth, nostoc, sulphur etc., vêm dos séculos áureos da alquimia, sendo sempre objeto de
condensação e discussão de mensagens crípticas. Eis por que acredito que o exercício da
criptografia é essencial para uma absorção dos fundamentos simbólicos da tradição alquímica. E
afinal, não acredito que a separação do R tenha resultado de um problema de composição gráfica e
sim de uma intenção significativa. Qualquer leitor do livro está portanto justificado ao tentar
desvendar que intenção é essa. O sucesso de sua tentativa deverá ser medido principalmente pela
sua capacidade de convencer-nos ou não. O que acontece é que a própria filologia hermética foi
crescendo com o tempo e coube a Fulcanelli expandir esse lado da hermenêutica alquímica.

No caso particular do Mutus Liber, a própria escassez de textos escritos incita o leitor a
explorar ao máximo seu potencial de significado – cada letra, cada mínimo sinal gráfico, cada
acepção, comum ou rara, de uma palavra-chave pode ajudar-nos a decifrar essa bela pedra de
Rosetta que se mostra aos nossos olhos. Além disso, o Prólogo ao Leitor garante-nos que, apesar de
intitular-se Livro Mudo, pode ser lido e compreendido por latinos, franceses, alemães - abrindo a
porta para inúmeras operações de cabala fonética, extensivas a todos os idiomas nos quais se
encontram praticantes da arte de Hermes.

Atendendo então a esse desafio interpretativo lançado pelo próprio livro, desejo sugerir duas
alternativas não exploradas por meus predecessores e que dizem respeito ao título da obra.

MUTUS LIBER: em uma primeira acepção, o Livro Mudo; ou o Livro que não fala. LIBER
quer dizer também livre, independente, liberado, desvencilhado - ergo, realizado. Quem é o
realizado, no presente contexto? O Adepto. MUTUS: mudo, silencioso, que não fala. MUTUS
LIBER: O liberto que não fala, ou Adepto Silencioso.

Esta versão me parece mais condizente com a intenção da obra do que a convencional.
Afinal, como já foi alertado muito corretamente por Pierre Dujols, em 1912, é um contra-senso
chamar este livro de mudo, pois ele nos fala muitas coisas - algumas delas, inclusive, através da
utilização de textos e números, ainda que escassos. Um dos pontos importantes da ausência de um
texto convencional em seu corpo não é tanto por não construir uma alegoria literária, como outros o
fizeram - o Mutus Liber suprime essa falta até muito bem, na medida em que oferece detalhadas
informações sobre as operações, e, paradoxalmente, consegue ser até mais claro que os tropos
literários e figuras retóricas que às vezes obscurecem inúmeros textos alquímicos ao ponto da
ininteligibilidade - mas por silenciar a voz do sujeito, do operador, do Alquimista, do Adepto. É
uma constante, em todos os clássicos dessa tradição, que seu autor conte como chegou a obter o
conhecimento que agora transmite, ainda que parcialmente, a seus leitores: pode tratar-se de um
sonho, de uma revelação, de uma imagem, de um encontro, de um relatório de operações e práticas,
de uma ordem recebida etc. Enfim, há um repertório de tropos de autobiografias e apresentações nas
obras que nos propicia a fala, ainda que alegórica, do Adepto. E é nesse sentido que o Mutus Liber é
de fato mudo: o Adepto, que nos é inclusive apresentado na Décima-Quinta Prancha, nada nos diz.
Observemos que lá frases idênticas saem da boca do casal de mortais que falam para o novo
Adepto. E o que lhe dizem? Que agora partirá clarividente; louvam-lhe o dom do olhar, não o da
fala. Impõe-se a conclusão de que quem se liberou totalmente das prisões do lado imperfeito da
natureza já não necessita falar; o que faz agora é acenar, apontar, indicar apenas obliquamente o
caminho para os que queiram segui-lo. O livro nos conta, pois, em linguagem essencialmente (mas
não exclusivamente) hieroglífica, a história do Adepto silencioso. Tal como nos sugere essa
primeira imagem, Jacob luta com o anjo, e é essa a luta do alquimista que, esperamos, nos será aqui
revelada.

Até aqui, minha principal contribuição é uma leitura alternativa do significado do título do
livro. Gostaria, contudo, de convidar o leitor de maior curiosidade para uma possibilidade de leitura
ainda mais críptica, embora perfeitamente válida do ponto de vista do hermetismo filosófico. Liber
significa “livro” e “livre” para o dicionário escolar de latim. O Dicionário Mito-Hermético de
Pernety, porém, registra o nome Liber como designador de um epíteto do deus Baco. Consultando
em seguida o verbete sobre Baco, somos informados do seguinte:

“Filho de Júpiter e de Sêmele, filha de Cadmo. A fábula diz que ele nasceu das cinzas
de sua mãe, como Esculápio. Ele nos é representado alado, com chifres, uma cabeça
de touro, masculino e feminino, jovem e velho, barbudo e imberbe. Todas as histórias
que se contam dele não são outra coisa, no sentir dos Filósofos Espagíricos, que uma
alegoria das operações de sua arte, que eles denominam por excelência a Grande
Obra... Pintamo-lo às vezes alado para designar o momento de sua volatilização;
carregando uma cabeça de boi ou de bode, porque esses animais lhe foram
consagrados como a Osíris; masculino e feminino, porque a matéria dos Filósofos,
ou seu Rebis, é andrógina; jovem e velho, porque essa matéria parece rejuvenescer
durante as operações.”

(Dictionnaire Mytho-Hermétique, p.53-54)

Em suma, Baco (ou Liber) é uma representação do Mercúrio Filosófico, da matéria


andrógina, ou Rebis. O que nos possibilita a seguinte tradução, em linguagem mito-hermética:

MUTUS LIBER: Baco Mudo; ou O Mercúrio Filosofal em Silêncio.


Em termos de alegoria alquímica, este título seria o oposto de outros, muito comuns, do tipo:
Hermes Revelado, O Triunfo Hermético, O Fio de Ariadne para entrar com segurança no Labirinto
da Filosofia Hermética, O Carro Triunfal do Antimônio, etc.

Armand Barbault, o experimentador alsaciano de que já falamos acima, intitula esta prancha
de Anunciação. Em sua opinião, “ninguém pode realizar a Obra se não houve uma Revelação, se
não foi chamado de uma ou outra forma pelas divindades ou pelas forças superiores que presidem à
realização da referida Obra” (El Oro de la Milésima Mañana, p. 102). Oportuno comentário.
Contudo, sua leitura da Prancha às vezes tropeça, como na seguinte frase sobre o sonhador: “Parece
que o personagem da figura está atado, portanto não muito livre de si mesmo. Além disso, não se
pode saber se é um homem ou uma mulher” (id.). Francamente! Imagino que será por descuidos de
leitura como esse que Canseliet desenvolveu uma aversão atroz contra Barbault.

Esta escada por onde descem os anjos oferece, para quem sonha, a possibilidade de cruzar os
mundos e libertar-se da comum imperfeição terrestre. Os riscos, porém, são grandes, como nos
mostra o emblema de Guilherme, o Parisiense (Fig. 3), publicado no Hortulus Hermeticus de
Daniel Stolcius (1627). Aqui, são os anjos que ajudam o neófito a subir. O lindo comentário de
Canseliet a esta imagem corrobora a afirmação de inúmeros mestres e Adeptos de que, como a
graça, a realização alquímica só acontece mediante um donum dei (dom de Deus):

“Não se pode subir irrefletidamente a árvore da ciência, sem que se tenha recebido o
assentimento de Deus e que se tenha assegurado sua ajuda onipotente. O verdadeiro
filósofo, humilde e paciente, solicita sobretudo a caridade divina. Eis por que o anjo
iniciador indica ao neófito a sorte de um imprudente que subiu sozinho em direção
ao sol do mundo”

(Alchimie Expliquée sur ses Textes Classiques, p. 214).

Como dissemos na Introdução, foi mais que oportuna a edição fac-similar, feita por Yvette
Centeno, da Ennoea, primeira obra alquímica, talvez a única, escrita em Portugal (coisa raríssima,
devido à intolerância da Inquisição), por Anselmo Caetano em 1732-1733. Profundo conhecedor da
ciência de Hermes, Caetano, tendo tido acesso à edição de Manget, menciona o Mutus Liber e
oferece uma alternativa de leitura bastante original da primeira e da última pranchas. No parágrafo
XX do Prólogo Galeato, escreve:
“No Livro Mudo de Hermes, ... em que não verás outro título, senão este de Livro
Mudo, nem lerás outra doutrina, senão a que mudamente te ensinaram umas figuras
hieroglíficas... Verás, na primeira figura deitada, um homem considerando, e
dormindo como Nabuco: Cogitare copisti in strato tuo; e dous Anjos com duas
trombetas postos em uma escada, como revelando-lhe do alto grandes mistérios, ou
segredos da Pedra Philosophal: Et qui revelat mysteria ostendit tibi”

(Ennoea, p. 148)

Fig. 3

A primeira citação em latim é uma abreviação da frase completa que ele mesmo já havia
mencionado na pág. 145:

“Tu rex cogitare copisti in strato tuo, quid esse futurum post haec”. Anselmo Caetano
refere-se aqui ao que disse Daniel a Nabucodonosor: “Estando tu, ó rei, no teu leito,
surgiram-te pensamentos a respeito do que há de ser depois disto.”

(Daniel, 2.29)

A segunda citação, igualmente truncada, também foi dada inteira na pág. 145:

“Et qui revela mysteria, ostendit tibi, quae ventura sunt”


(Aquele, pois, que revela mistérios, te revelou o que há de ser).
Não deixa de ser intrigante que Caetano veja no sonhador a figura de Nabucodonosor,
quando as referências ao Gênese, sobre a escada de Jacob, parecem bastante óbvias, apesar de
aparecerem invertidas na Prancha. De qualquer maneira, ele quis ver na primeira prancha a
revelação, cifrada, do que “há de ser”, isto é, de como culminará a Obra de Hermes na última
prancha (Transcreveremos a sua leitura da Décima-Quinta Prancha no seu devido lugar).

Caetano conseguiu trazer, além disso, outra feliz idéia ao ler a prancha a partir do Livro de
Daniel. Após transcrever a última frase de Daniel para Nabucodonosor: Verum est somnium, et
fidelis interpretatis ejus: “Certo é o sonho e fiel a sua interpretação” (Daniel, 2.45), apresenta a
seguinte argumentação conclusiva: “Tão certa, e de Fé, é esta Profecia sonhada, como foi a mesma
História sucedida; porém tanto equivoca a palavra Verum [a verdade] com o sonho, que ao mesmo
tempo, em que se crê, e se escreve, que o sonho é verdadeiro: Verum est somnium, parece que
também se escreve e se afirma, que esta verdade é sonho: Verum est somnium” (147-148).

Lúcido setecentista olvidado! Trocadilho da melhor tradição da cabala alquímica, propõe


que nos identifiquemos totalmente com o sonhador que até um momento atrás era basicamente
nosso objeto de contemplação: a Obra, quem sabe, não passa de um sonho sobre a Obra.
SEGUNDA PRANCHA

Conhecida como O Ouro dos Filósofos, esta imagem cindida parece seguir o preceito do
Trismegisto de se fazer embaixo o ovo que está sendo feito em cima. Na parte superior, um sol
radiante, pleno, dá vida ao que se vê: dois anjos, um masculino outro feminino, exibem o Ovo
filosófico, dentro do qual Netuno, senhor das águas, armado de tridente, anuncia o nascimento de
Apolo e Diana: Sol e Lua, ainda crianças, futuros pais da Pedra.

Aos pés de Netuno está um peixe, animal que costuma representar um dos momentos
iniciais da Obra. Como diz Pernety no famoso Dictionnaire Mytho-Hermétique:

“Os filósofos comparam aos olhos de peixe certos tipos de bolhas sulfurosas que se
elevam na superfície da matéria da Obra; o que os levou a dizer que é preciso
estender a rede e pescar o peixe echeneis que nada no mar filosófico”.

Segundo Fulcanelli, essas bolhas, chamadas de ilhas pelo alquimista Cosmopolita, são
“outra figura para o peixe hermético, nascido no mar dos Sapientes - o nosso mercúrio que Hermes
chama mare patens -, o piloto da Obra, primeiro estado sólido da pedra embrionária. Uns
denominam-no o echeneis, outros delfim” (Mansões Filosofais, p. 309). Voltaremos a falar desses
animais aquáticos ao comentar a próxima prancha; porém lembremos apenas que echeneis é o nome
grego da rêmora. Por tratar-se do início da Obra, o que está retratado aqui é mais provavelmente o
delfim, cujo nome grego, explica-nos Fulcanelli, “designa a matriz, e ninguém ignora que o
mercúrio é chamado, pelos filósofos, o receptáculo e a matriz da pedra” (id.).

O pé direito do anjo atravessa a linha divisória horizontal do quadro, de modo a permitir o


contato entre os dois mundos, o da geração e o da corrupção, o divino e o humano, o do Chaos
filosófico e o do ouro transmutado.

Vários comentaristas acreditam estar essa prancha deslocada, seu lugar correto devendo ser
antes da oitava ou da décima primeira, as quais de fato a ela muito se assemelham. Não vejo razões
para que ela deva vir imediatamente antes das outras duas, pois só nesta há ligação entre os dois
planos (feita pelo pé angelical), o que implica um estágio ainda inicial das operações, mais perto da
calcinação que das sublimações presentes na oitava e na décima primeira pranchas. Além disso,
discutir ordem de operações ou de figuras em tratados de Alquimia raramente gratifica, pois o
filósofo espera que o estudioso trabalhe o texto, que por isso mesmo jamais se apresenta em sua
forma conclusiva ou correta. Faz sentido, conforme argumentarei a seguir, imaginá-la trocada com a
terceira, que mais parece uma estampa geral da opus que uma etapa qualquer, ainda que inicial, de
sua realização.

No plano de baixo, o casal se prepara para a operação, orando ajoelhado em frente ao atanor
(Fig. 4). Devem aquecer o ovo para separar cuidadosamente os três elementos que já lá se
encontram: o enxofre, o mercúrio e o sal. O ambiente onde trabalham não possui janelas (em
oposição ao das duas pranchas semelhantes) e a cortina está aberta simetricamente, com dois nós de
cada lado. Neste momento, parecem rezar, atendendo ao primeiro preceito alquímico fundamental
que encontraremos detalhado na Décima Quarta Prancha: Reza, lê, lê, lê, relê, trabalha e
alcançarás.

Fig. 4 - O Atanor - o macrocosmo simbó-


lico, forno sagrado em cujo interior se
operam as inúmeras transformações, físicas
e psíquicas, por que passa a matéria prima
antes de converter-se em pedra filosofal

O alquimista, candidato a Adepto, habitualmente é chamado também de artifex (o termo


preferido de Jung), ou operador, para diferenciá-lo dos sopradores, aqueles práticos de laboratório
que não oram, isto é, que não estão envolvidos espiritualmente com as transformações que
provocam na matéria. Como diz Canseliet na famosa entrevista concedida a Robert Amadou, “a
alquimia não passará de uma simples química se você não trabalhar em harmonia, em acordo íntimo
com o cosmos” (Le Feu du Soleil, p. 48). (Fig. 5)
Fig. 5 - O Laboratório-Oratório, do livro de Heinrich Khunrath, Amphiteatrum Sapientiae
Aeternae, de 1609, uma das mais belas representações da oração do alquimista

Sua companheira, ajudante, operadora, esposa ou soror mystica (também rendendo


homenagem à terminologia predileta de Jung), mantém as mãos em ascensão, num gesto talvez
mais ativo que o do seu parceiro. Este casal alquímico não se desfará até o final da Grande Obra.
Nenhuma soror foi mais famosa e perfeita em seu papel que a Dame Perenelle, já duas vezes viúva
antes de tornar-se esposa do grande alquimista francês Nicolás Flamel, a quem ajudou na confecção
da pedra, por eles alcançada pelo menos duas vezes. Dame Perenelle é sem dúvida a Senhora
Perene, o Eterno Feminino que facilita a espiritualização da matéria e, uma vez transmutada, sua
conseqüente fixação. Gilette Zigler, biógrafa de Flamel, parece não possuir dúvidas que o autor
(anônimo, em princípio) do Mutus Liber retratou Flamel e Perenelle nas pranchas do livro, o que
representa mais um indício, para os que acreditam, de que Flamel, como um verdadeiro Adepto,
sobreviveu a vários séculos (Nicolás Flamel, Paris, Sycomare, p. 212). Fala-se também da mulher
de Helvetius, que o obrigou a fazer a prova do elixir. Mais recentemente, Armand Barbault também
rendeu homenagem à Senhora que o ajudou, por anos, na busca do ouro da milésima manhã. Ele
chega inclusive a dizer algo assaz interessante sobre a coniunctio alquímica: uma das condições da
Obra é justamente provocar a associação de um par, isto é, promover um casamento,
simultaneamente físico e espiritual.

Ainda segundo Barbault, esta prancha “representa aquilo que o Adepto chegará a perceber: a
Obra completa sobre a terra (na parte inferior) e a imagem do seu arquétipo celeste (na parte
superior)” (Barbault, p. 51). É questão de opção de leitura: ou bem achamos que já se entrou aqui na
fase das operações, ou se está ainda numa derivação do sonho inicial, que se prolongará até a
Terceira Prancha. Minha opinião é de que ambas se dão ao mesmo tempo pois, se não agora, em
algum momento o atanor será ligado e o casal se ajoelhará diante dele, orando contrito na esperança
de realizar a Grande Obra.
TERCEIRA PRANCHA

Possivelmente o emblema mais complexo e enigmático de toda a iconografia alquímica, esta


prancha costuma ser chamada de O Regime de Júpiter. Três círculos concêntricos circundados
lateralmente pelas nuvens e pelo sol e a lua mostram imagens de uma simetria fascinante. Acima do
círculo exterior, cavalgando em sua águia, cuja cabeça lembra a de uma fênix, Júpiter, o pai dos
deuses, com o cetro imperial, assiste ao que será a realização solar da Obra.25

De início, lembremos que a fênix é um dos principais símbolos da pedra filosófica (e


conseqüentemente do Cristo alquímico, por seu poder de renascimento). Enquanto a águia
representa sublimação ou volatilização, a fênix em seu corpo parece indicar aqui o mercúrio
filosófico sublimado - afinal, a fase das operações, quando os operadores tentarão fixar o mercúrio,
nem sequer começou.

O leitor há de observar que muitas das divindades no Mutus Liber são representadas como
seres antropomorfos bastante jovens. Isso é perfeitamente compreensível para os casos de Diana,
Apolo, Mercúrio e mesmo de Netuno. Contudo, não deixa de despertar a atenção o fato de Júpiter,
que rege sobre esse universo, aparente um aspecto até mais atlético que o do Adepto transfigurado,
que veremos na Décima-Quinta Prancha. Vejamos por quê: A Júpiter associa-se o metal estanho.
Uma chave interessante sobre o simbolismo da juventude de ambos, deus e metal, nos é dada por
Frankenberg na sua biografia de Jacob Boehme: no parágrafo XI, conta-nos que Boehme foi
tomado pela luz divina, “pelo aspecto súbito de uma vasilha de estanho (isto é, do estado agradável
jovial [grifo do autor]).” Não me foi possível localizar como Frankenberg identificou o estanho com
o estado jovial. Alexis Klimov, editor moderno dessa obra, imediatamente comenta a frase do
biógrafo mencionando o outro nome latino de Júpiter: Jovis! (Klimov, em Confessions, de Jacob
Boehme, p. 225). O que atesta a enorme consistência mito-hermética das convenções iconográficas
do Mutus Liber.

Nosso olhar é conduzido naturalmente ao círculo central – o círculo da água -, onde reina
Netuno, o primeiro solvente. Ele está sentado em um carro, feito de concha marinha, conduzido por
um animal marinho de duas cabeças, possivelmente da família do hipocampo. 26 Sua mão esquerda
segura uma corda que o une à mão esquerda de uma mulher sentada em um barco que pesca num
mar de águas aparentemente tranqüilas. Esta tranqüilidade há de ser aparente, ou ao menos

25. O grande Isaac Newton apôs, à margem de um de seus inúmeros manuscritos alquímicos, poucos anos após a
edição de Altus, a seguinte interjeição reveladora: “Fiz Júpiter voar na sua águia!” (Citado por Richard Westfall, no
livro organizado por Brian Vickers, Occult and Scientific Mentalities in the Renaissance, p. 319).
26. Pernety informa que ao carro de Netuno estão atrelados dois cavalos negros. Altus resolveu inovar no simbolismo
do senhor dos oceanos, apresentando a idéia de duplo através da imagem de um ser bicéfalo.
passageira, pois é também Netuno o responsável pela fermentação do composto, o que ele faz
provocando, quando deseja, grandes tremores e tormentas no seio do elemento aquoso.

Sob o braço desta mulher, divisa-se um animal que se assemelha a um pavão de asas
fechadas (que aparece no terceiro círculo já com sua plumagem aberta), representando assim os
estágios iniciais da Obra, que ainda não encerrou sua fase de nigredo. Seu companheiro maneja o
leme e sua posição indica que tanto o barco como o carro de Netuno deslocam-se para a direita,
enquanto os dois animais que afloram à superfície parecem deslocar-se em sentido contrário. A
mulher capturou o peixe místico, enxofre que coagulará o mercúrio. Há assim a representação do
par Solvência-Coagulação (o lema alquímico fundamental: Solve et Coagula), bem expresso pelos
dois veículos de transporte aquático dispostos nos extremos desse círculo.

O peixe fisgado pela soror pode ser um golfinho ou, para alguns, a diminuta e legendária
rêmora (ou echeneis), animal que se prende ao casco dos navios e os detém em alto mar. O outro
peixe parece um dos tantos monstros marinhos dominados por Netuno (talvez um Tritão) e sua
cauda é igual à do animal que puxa o carro do deus e ainda à do personagem feminino que vemos
na parte inferior do terceiro círculo, que procuraremos identificar mais adiante. Observo apenas esse
traço em comum, netuniano, desses três seres distintos, todos indicando metaforicamente os
primeiros estágios de coagulação.

A Alquimia não é apenas uma agricultura celeste, mas também uma pescaria filosófica,
compatível, de um modo indireto e cifrado, com a via mística cristã. Na famosa entrevista
concedida a Robert Amadou, Canseliet assim explica a Grande Obra:

“Não é o pequeno golfinho que passa de recém-nascido a peixe? Esse peixe é o


Cristo. Faz-se preciso esposar a pérola, elevar seu brilho e fixá-la. Uma vez obtido,
esse pequeno peixe, essa rêmora, esse pequeno Cristo, é incluído em seu ovo
[filosófico].”

(Le Feu du Soleil, p. 99-100).27

A mão direita de Netuno atravessa o primeiro círculo e deposita seu tridente no segundo
círculo, o da terra. Neste, que exibe igualmente um equilíbrio perfeito, estão um touro e um
carneiro, representando o mercúrio e o enxofre, que correspondem aos signos Aries e Taurus, os

27. Tanto a rêmora como a fênix são dois dos símbolos mais poderosos que serviram, durante toda a Idade Média, de
ponto de contato entre a via de espiritualidade cristã (como vimos, ambos são alegorias do Cristo) e a via
aparentemente “pagã” da espiritualidade da Alquimia. As lendas mais significativas sobre esses dois animais
fantásticos foram compiladas por Ignacio Malaxecheverría em seu Bestiario Medieval, Ediciones Siruela, 1986.
dois meses mais ricos da estação primaveril, quando se deve dar início a essas complexas
operações. Canseliet lembra-nos que a primavera era chamada primevere, ou primevoire (o primeiro
verde ou vidro), e é neste período que o espírito do mundo está mais ativo, estimulado pelo esforço
de brotar o primeiro verde da terra seca. Quanto ao tridente, é um símbolo hermético dos três
princípios da Obra, que se encontram reunidos no Mercúrio dos sábios desde o seu nascimento.28

Adam McLean captou algo interessante sobre esse segundo círculo. No lado solar, onde se
encontra o carneiro, vê-se a torre de um castelo, que para ele significa “o poder exterior da força
masculina na sociedade humana, enquanto que no lado lunar, o lado receptivo, está representada
uma igreja, o poder da religião organizada, que rege a humanidade internamente e requer, para sua
existência, o lado imaginativo e devocional de nossa natureza humana” (A Commentary on the
Mutus Liber, p. 20).

A mulher à esquerda da parte inferior (aparentemente, a mesma consorte do alquimista, que


antes pescava) carrega, na mão esquerda, um cesto, ou uma gaiola, ou mais provavelmente uma
lanterna gradeada, símbolo da busca filosófica, mais propriamente dos “filósofos pelo fogo”,
enquanto que, com a mão direita, lança para o terceiro círculo uma rede, ou tarrafa, apropriada para
a pesca do peixe de ouro.

Carl Gustav Jung reproduziu e comentou esta prancha em pelo menos dois trabalhos
distintos. Em Psicologia e Alquimia, definiu-a como sendo a representação dos conteúdos
“secretos” da Obra: “No centro, a soror mystica, com o artifex, pescando Netuno (animus): abaixo,
o artifex, com a soror, pescando a Melusina (anima)” (p. 259).29 Está claro que seu esquema
interpretativo difere completamente daquele da tradição hermética ao qual se aliam todos os
comentaristas do Mutus Liber. Não faz muito sentido, seja do ponto de vista hermético, seja da
própria expressão iconográfica, imaginar que a mulher esteja pescando Netuno: afinal, ela e Netuno
unem-se através da corda, enquanto na mão direita ela realmente pesca um peixe fisgado em seu
anzol. Contudo, uma ideia interessante que está contida nessa observação de Jung, e que aparece
mais explícita no comentário de Johannes Fabricius a esta prancha, é a de uma complementaridade
entre o artifex e a soror através da pesca: ele pesca uma sereia e ela pesca um sereio (no caso, o
próprio Netuno).

No segundo texto onde reproduz e comenta esta terceira prancha - justamente na página
final da sua Psicologia da Transferência - Jung vê na rede lançada pela figura feminina que carrega

28. Mercúrio (o princípio volátil), Enxofre (o princípio denso) e Sal (o princípio de fixação). Não é demais lembrar
aqui que não se trata dos três elementos encontráveis no mercado, mas de princípios.
29. Este mesmo comentário aparece no livro Alquimia de Marie-Louise von Franz, junto com a reprodução da prancha
(p. 204) e no livro de Neil Powell, Alchemy, the Ancient Science.
a lanterna “a soror capturando pássaros com uma rede... pássaros enquanto volatilia = pensamentos
= animus plural” (p. 186). Na perspectiva hermética, não se trata aqui de pensamentos, mas de
executar as ordens de Netuno e ir atrás do “piloto da onda viva” 30, que neste caso não é outra senão
a própria sereia. (Fig. 6)

Fig. 6 - A primeira figura do Tratado da Pedra


Filosofal de Lambsprinck nos alerta claramente
para o fato de que “encontramos dois peixes, mas
há apenas um”. Assim, os dois peixinhos que
navegam no círculo central da Terceira Prancha
são equivalentes simbólicos da sereia, sinal que é
dado pelo próprio tridente de Netuno que,
atravessando dois círculos, aponta para a cabeça
da mulher-peixe.

Seu par masculino usa simplesmente um anzol na mão esquerda, enquanto lhe faz um sinal
com o indicador da mão direita, significando que apenas um peixe basta. Esse ser híbrido de mulher
e peixe que o homem acaba de fisgar caracteriza, segundo o mestre Fulcanelli, a união do enxofre
nascente (o peixe) e do mercúrio comum, chamado virgem - aqui apresentado em seu aspecto
feminino - no “mercúrio filosófico” ou “sal de sabedoria”. Pensando na prancha como um todo,
vale a pena lembrar a etimologia da palavra sereia sugerida por Canseliet em Deux Logis
Alchimiques: vem do grego sirenê, formado por seir (sol) e enê (lua). Em seu outro livro, Alchimie,
ele indica que o termo enê se aplica mais precisamente à lua nova ou jovem. Nossa sereia, presa
pelo anzol do homem e cercada pela rede da mulher, aponta seus braços para os dois grandes astros
que representa, o sol situado à sua direita e a lua à sua esquerda.

30. A alegoria do “piloto da onda viva” serviu de título para o tratado de Mathurin Eyquem du Martineau (1678).
Canseliet explica que a Obra começa quando as ondas “despertam”, movendo-se, e começam a aparecer na sua
superfície móvel pontos de concreção chamados de “olhos de peixe”. Para controlar essa dinâmica de movimento faz-
se necessário um “piloto”, que não há de ser outro - mesmo que metamorfoseado de infinitos modos - que o princípio
mercurial.
Ao que se sabe, nenhum comentarista, ao menos até agora, perguntou-se pela estranha
identificação entre a soror pescando e a sereia. Afinal, não é comum ver-se uma humilde operadora
de torso nu! Muito pelo contrário, os operadores estão sempre vestidos e são os deuses que estão
quase sempre nus ou ao menos de torso nu (exceção feita apenas a Ceres, completamente vestida, e
de Apolo, que usa a armadura de Marte). Se aceitamos (como devemos) que nada foi posto ao acaso
nestas pranchas, ou bem há algum tipo profundo de identidade entre a soror e a sereia, ou então a
mulher com a rede e a lâmpada é ainda outro personagem, cuja identidade escapou até agora aos
estudiosos do Mutus Liber.

Partindo do princípio de que a posse da lanterna é quase sempre um atributo masculino,


chego a supor que essa mulher, cujos seios não são tão femininos quanto os da Melusina, representa
de fato algum tipo de hermafrodita (Fig. 7). Afinal, todos os outros seres antropomorfos do quadro
estão representados sem nenhuma ambigüidade pictórica. E quanto a convenções pictóricas de
hermafroditismo, remeto mais uma vez ao belo Atalanta Fugiens, livro equivalente a este que
comentamos, onde no emblema XXXIX - Édipo vencendo a Esfinge (Fig. 8) -, um homem barbudo
com um signo da lua na testa é suficiente para representar um hermafrodita (um homem-lua). Além
disso, nosso quadro já exibe outra figura dual, qual seja, o cavalo-marinho de duas cabeças de
Netuno. Assim, parece-me possível defender uma identidade profunda entre a mulher pescadora e a
mulher pescada: ambas são seres duais; uma, mulher-peixe, outra, mulher-homem. Lembremos
ainda que o casal alquímico aparece em todas as pranchas, a exceção da primeira; e em todas as
outras treze ocasiões, independentemente da atividade em que estejam engajados, o homem está
sempre à esquerda do quadro e a mulher à direita. Neste caso, porém, sua posição no segundo
círculo está invertida em relação a todas as outras (com o homem à direita); até mesmo no círculo
interior desta prancha, o homem e a mulher no barco, vestidos em trajes normais aparecem em sua
posição convencional.

Além da hipótese do hermafrodita, é possível sustentar-se ainda outra, não menos plausível
para a identificação desse personagem e que apresento igualmente ao juízo da imaginação mito-
hermética do leitor: a de que essa mulher seja Afrodite. Primeiro, porque as pombas são,
miticamente, emblemas de Afrodite. Logo, um olhar cuidadoso nos revela que a rede que essa
personagem segura na mão direita está exatamente entre a água e o ar, o que concordaria com a
história de Afrodite, nascida da espuma formada pelo contato do esperma de Urano com o mar. Há
ainda o episódio da infidelidade conjugal de Afrodite. Quando seu esposo Hefesto saiu, foi Hélio, o
Sol, que se pôs de guarda para avisá-lo do encontro ilícito da deusa do amor com Ares. Hefesto
armou então uma rede invisível para imobilizar o par de amantes em seu leite de núpcias. Aqui
nesta prancha o sol pisca o olho, avisando, quem sabe, ao ferreiro coxo do encontro furtivo.
Lembremos que Afrodite e Ares são opostos, fixados então por um princípio denso.
Fig. 7 - Uma das imagens mais elegantes de toda
a iconografia alquímica, o Emblema XLII do
Atalanta Fugiens, nos mostra o filósofo barbudo
caminhando à noite apoiado num cajado e
carregando na mão uma lanterna que lhe permite
seguir os passos da Natureza, representada por
uma mulher. Esta imagem associa quase que
definitivamente a posse da lanterna ao filósofo.

Do ponto de vista iconográfico, a própria postura do personagem lembra as representações


clássicas de Afrodite. Mais ainda, faz sentido, para o equilíbrio dessa complexa imagem, que
Afrodite também esteja presente. Afinal, em cima, estão Júpiter, Juno e Ceres, três representantes de
princípios mais densos (fogo e terra); e embaixo, Netuno, Afrodite e a sereia, três emblemas de
princípios mais sutis (ar e água). Estou consciente do caráter especulativo dessas teorias, mas afinal
o Mutus Liber oferece-se para que falemos dele, ou através dele.

Na parte superior deste círculo intermediário vemos uma linda mulher segurando um jarro
com seis flores pequenas, e a seu lado cinco grandes flores desabrocham com todo vigor. Magophon
vê na linda jovem a nereida Anfitrite, que tentou escapar da perseguição amorosa de Netuno
escondendo-se no fundo do mar; os golfinhos, porém, persuadiram-na a esposar Netuno. Ele não
esclarece, porém, que papel na ciência hermética poderia ocupar essa ninfa. Além disso, não parece
ter-se perguntado o que poderia estar fazendo uma ninfa do mar no círculo da terra e ainda por cima
vestida como uma rica pastora!
Fig. 8 - Emblema XXXIX do Atalanta Fugiens: A
vida de Édipo (homem-lua) e a Esfinge

As flores que a moça exibe são os espíritos ocultos na matéria prima, sobre cujas operações
vários tratados alquímicos nos instruem. A quinta prancha das Doze Chaves da Filosofia, de Basile
Valentim (Fig. 9), por exemplo, mostra uma linda jovem segurando um jarro de onde brotam sete
grandes flores. Penso que esta jovem poderia ser também Ceres, na medida em que ela preside ao
círculo da terra, onde moram os alquimistas, que ela deverá ajudar a fecundar, trazendo o verde
primaveril que possibilitará uma boa agricultura celeste.

Fig. 9 - Quinta prancha das Doze Chaves da Filosofia, de Basile Valentin

Ceres, diga-se de passagem, é um personagem bem mais conhecido na tradição hermética


que Anfitrite. Michael Maier menciona-a no Discurso VI do Atalanta Fugiens, que comenta
justamente o Emblema dedicado à agricultura:

“Os agricultores esperam a chuva e o calor do sol; do mesmo modo, os químicos


também administram verdadeiramente a chuva e o calor que convêm à sua obra. A
Química é inteiramente paralela à agricultura, ela é o seu substituto; ela preenche em
todos os pontos o seu papel e isso o faz seguindo a mais perfeita alegoria. Eis por que
os antigos apresentam Ceres, Triptólemo, Osíris, Dioniso, como deuses do ouro, isto
é, tendo relações com a Química, pela maneira que ensinam os mortais a lançar as
sementes dos seus frutos na terra”.

Além disso, as referências herméticas mais importantes do ponto de vista histórico, que são
as duas obras de Dom Pernety, não registram o nome de Anfitrite, enquanto Ceres aparece tanto no
Dictionnaire Mytho-Hermétique quanto no Les Fables Égyptiennes et Grecques.

Canseliet propõe uma interpretação distinta para as flores do quadro. No seu entender, elas
possuem as sete cores básicas (a negra, que a todas contém, estando implícita), representando os
sete planetas. Quanto às cinco grandes, representam os cinco metais susceptíveis de
aperfeiçoamento (o ouro e a prata não incluídos), os quais, quando se purificam, “abrem suas
corolas” em plena terra. Os dez pássaros à esquerda do terceiro círculo representam as dez
sublimações a que terão de ser submetidos os elementos. Na medida em que voam para baixo (e
certamente enviados por Juno, que aponta seu dedo esquerdo nessa direção), indicam a precipitação
e a condensação dos produtos antes volatilizados que serão captados na rede alquímica. Ao lado de
Juno vemos o pavão que, agora de asas abertas, simboliza o leque de cores (conhecido como cauda
pavonis) que aparece no fim da nigredo e antes do início da albedo. O arco-íris da cauda do pavão,
conta-nos o mito, são os cem olhos de Argos, aí escondidos por Juno, rainha da Obra.

Observo ainda um detalhe, omitido ou não percebido pelos comentadores em que me baseio,
com referência ao sol e à lua, e às suas posições no quadro. Primeiro, não deixa de ser curioso que o
olho direito se encontre parcialmente fechado, como se estivesse piscando para o leitor. Em segundo
lugar, o fato de os dois astros se posicionarem alinhados horizontalmente, nas laterais dos círculos,
parece indicar que não se trata aqui de nenhuma imagem do mundo exterior (como fica evidente na
próxima prancha, por exemplo, com o sol e a lua em cima) e sim de uma imagem dos processos
alquímicos - desdobrada talvez em etapas simbólicas que podem ou não ser simultâneas em sua
execução - que deverão desenvolver-se no interior do ovo filosófico, cuja anunciação se deu na
prancha anterior. Outra razão pela qual esse emblema não deve representar o mundo exterior é que
há grupos de nuvens nos quatro cantos do quadro, o que não concorda com a convenção
iconográfica claramente naturalista do autor das imagens. Uma leitura astrológica do quadro
corroboraria essa interpretação, pois Netuno indica que o trabalho aqui é puramente interior. E,
como afirmou Canseliet a Robert Amadou, “a Astrologia é inseparável da Alquimia” (Le Feu du
Soleil, p.47).

Dizíamos anteriormente que esse emblema é possivelmente o mais complexo de quantos


foram criados, com uma intenção significativa coerente, pelos desenhistas de hieróglifos
alquímicos. Um ponto que causou perplexidade a todos os comentaristas e que dificultou uma
leitura satisfatória de seu conjunto é a intensa intervenção divina aqui descrita: nada menos que
cinco divindades aparecem nesta imago mundi, além de vários outros personagens míticos (tritões,
rêmoras, pavões, sereias). Pode-se inclusive pensar que nesse emblema a figura humana não é o
centro condutor da ação (independente do plano de realidade em que esta se dê), mas uma parte,
apenas, dessa intricada dança de seres, processos, princípios e elementos.

E se tantas são as imagens de seres míticos, devo acreditar que o silencioso autor do livro
legou-nos um enigma pictórico que só pode ser decifrado apoiando-se na tradição mitológica
correspondente, isto é, privilegiando uma interpretação mito-hermética dos princípios que invoca.
Quatro são os deuses que parecem reger os quatro mundos aí pintados: Júpiter, regendo o espaço
exterior ao círculo; Juno, no alto do círculo exterior; Ceres, no círculo intermediário; e Netuno, no
círculo central. Sobre o que representam, do ponto de vista alquímico, nos explica o seguro e bem
informado Dom Pernety.

Em primeiro lugar, Júpiter montado em sua águia resume o sentido essencial do trabalho
alquímico, pois significa a purificação da matéria pela sublimação filosófica. Enquanto regente
desse espaço fronteiriço ao círculo externo, representa um fogo oculto, inato, como uma centelha
guardada sob as cinzas, que é a primeira fonte de calor através do qual os metais se formam na
terra. É desse Júpiter que nasce, por exemplo, Vulcano, forjador dos objetos (instrumentos e armas)
com a ajuda do fogo celeste. Dom Pernety mostra-nos que há muitos outros símbolos herméticos
nesta figura de Júpiter, que aparece com tanto destaque no Livro. Antes de tudo, seu trono é
constituído de ouro brilhante, ébano e marfim, que são, como veremos durante as operações do
magistério, as três cores principais por que passa a matéria prima (vermelho, negro e branco). O
cetro que carrega na mão direita é composto pelos sete metais, representando assim a hierarquia
espiritual que rege a matéria, do pesado chumbo localizado na sua base até o ouro que reluz na
ponta do cetro. Ao cetro, elemento fixo, opõe-se alquimicamente a águia que o conduz, símbolo do
elemento volátil. A parte superior do seu corpo está nua para representar o princípio jupiterino
através da cor cinza, a cor do estanho, que se manifesta na superfície da matéria em manipulação,
enquanto a parte inferior está coberta com um manto pintado de animais e flores com as cores mais
variadas, representando as cores secundárias que aparecem nas várias fases da Obra (também
chamadas, como vemos em Juno, de cauda pavonis) e as mudanças temporárias de estado dadas
pelos animais e pelas flores. Em resumo, a figura total de Júpiter simboliza o princípio fundamental
do Solve et Coagula.

No círculo exterior, vemos Juno, irma gêmea e mulher de Júpiter. Se ele é o pai da Obra, ela
é a mãe, daí seu lugar de destaque no alto, logo abaixo de seu marido. Juno, ou Hera, deusa das
riquezas, também está associada ao metal perfeito, pois foi uma das três deusas que se lançaram em
busca da maçã de ouro. Para alguns mitólogos, Hera é uma anagrama de aer (ar), de forma que Juno
e o elemento ar são a mesma coisa. Citemos diretamente o Beneditino de Saint-Maur:

“Juno sendo então irmã gêmea de Júpiter, só pode nascer ao mesmo tempo que ele. E
como o ar se encontra no vaso acima da matéria dissolvida, enchendo-se de vapores
que se elevam ao tempo em que o Júpiter filosófico se forma, foi algo natural
personificar também aquela umidade vaporosa e aérea. É portanto a essa umidade
volátil e sempre em movimento, suspensa contudo no alto do vaso, como que apoiada
sobre a terra que sobrenada a água mercurial, que se julgou apropriado dar o nome de
Hera, ou irmã de Júpiter.”

(Fables, II, p.81).

Logo abaixo de Juno, no alto do círculo intermédio, está a bela Ceres que, para os antigos,
representa um dos nomes da Terra. É ela que propicia ao alquimista, conforme já discutimos acima,
o terreno fértil para a realização da agricultura celeste.

Finalmente, Netuno, no círculo exterior, representando claramente o elemento água.

Assim, os quatro deuses irmãos representam, nesta esplêndida prancha, os quatro elementos
filosóficos fogo, ar, terra e água. Apesar de agora apresentar-se óbvia (uma vez acionada a
interpretação hermética dos deuses representados), esta estrutura de quatro elementos na prancha
não havia ainda sido revelada por nenhum comentarista do Mutus Liber.

Havendo aguçado nosso olhar ao observar esta estrutura profunda expressa em alegoria
mitológica, podemos tentar esclarecer ainda mais alguns detalhes da composição desta prancha que
têm sido, a meu ver, mal observados e que estão mais nitidamente definidos na edição de Manget.

Por exemplo, a metade superior da parte externa aos círculos, onde estão as nuvens que
circundam Júpiter, é escura, enquanto a metade inferior é clara, sugerindo uma oposição, senão
entre o noturno e o diurno, certamente entre o criativo e o receptivo, isto é, entre o celestial e o
terrenal. E o terceiro círculo se apresenta dividido em quatro seções, marcadas pictoricamente por
diferenças no traçado das linhas e de suas combinações. Essas seções expressam, com outros
signos, os mesmos quatro elementos regidos pelas quatro divindades discutidas acima.

Vejamos: Abaixo, a área da Melusina é indiscutivelmente o elemento água. Acima, a área de


Juno representa o ar, por razões de simetria e pelos significados herméticos associados à sua figura.
À esquerda, onde voam os dez pássaros, aparece o mundo do fogo (as águias são sublimações,
operação que depende do fogo; além disso, estão associadas a Júpiter, princípio solar); e esta seção
sofre a influência direta do sol externo que está a seu lado. Resta à seção oposta, próxima à lua, o
papel de representar a terra. Há inclusive uma pista para se deduzir o seu elemento que atesta o
trabalho extremamente sutil do artista que desenhou esta imagem: a mão esquerda do alquimista,
que extravasou o segundo círculo, aí aparece simbolizando, enquanto um signo humano, a natureza
terrestre dessa faixa do círculo cósmico aqui representado. Assim, essa divisão quádrupla,
disfarçada de um olhar superficial por referir-se ao fundo e não à forma, comprova mais uma vez a
extraordinária simetria desta imagem alquímica.

Caso optemos por uma leitura mais linear, seria mais coerente que esta prancha antecedesse
à segunda; afinal, o ovo mercurial poderia surgir como uma conseqüência da captação filosófica.

Enfim, acho que seria mais apropriado chamar esta prancha de O Cosmos Filosófico e suas
Transformações, pois aí estão todas as matérias, os princípios e suas complexas interrelações, das
quais o neófito teve a antecipação onírica.
QUARTA PRANCHA

O alquimista e sua soror mystica recolhem aqui o flos coeli - “flor do céu”, ou “orvalho
celeste” - produto cósmico que emana de um ponto do Empíreo situado precisamente entre o sol e a
lua. Nosso casal colocou lençóis pregados em cima de quatro piquetes e deixou-os toda a noite para
que se impregnassem desse elemento sutil. Agora, pela manhã, torcem delicadamente os panos e
recolhem esse divino licor numa grande bacia. Assim como já indicado na prancha anterior, o
carneiro e o touro nos lembram que o Sol ainda deve estar em Áries e a Lua em Taurus.

Vemos, mesmo na paisagem um tanto desolada desta prancha (e isso está muito mais
claramente delineado na edição de Manget), algumas gramíneas ao redor dos adeptos. Essa espécie,
amplamente discutida na literatura alquímica, seria para alguns o nostoc, misteriosa alga gelatinosa
considerada um solvente universal. Canseliet dá para o nostoc vários nomes populares: manteiga
mágica, gordura de orvalho, flor do céu, espuma da primavera, Vitríolo vegetal, princípio da vida
celeste etc. É esse orvalho (filosófico) que torna indissolúvel o amálgama filosófico do mercúrio, do
ouro e da prata com a arte. Segundo o Cosmopolita, é da água do orvalho que se retira o salitre dos
filósofos, pelo qual todas as coisas crescem e se nutrem. Tanto Irineu Filaleto quanto Fulcanelli
chamam-no de “orvalho de maio”.

Segundo o Mestre de Canseliet, nostoc vem do grego noe, niktós, correspondendo ao latim
nox, noctis, noite. É pois alguma coisa que nasce à noite: tem necessidade da noite para
desenvolver-se e só pode ser trabalhada à noite. Lembremos que a Alquimia é uma arte noturna. Daí
ter sido o orvalho celeste (e o seu correlato nostoc) tomado como tipo hieroglífico da nossa matéria,
receptáculo que é do Espírito Universal. Pois a flor celeste representa a um só tempo o espírito (o
que está em cima) que se tornou denso e a matéria (o que está embaixo) que se tornou sutil.

Canseliet dá ainda o grande alerta: “não é o nostoc coletado que serve, mas aquilo que o
produz. É preciso saber captar aquilo que engendra o nostoc”. E o que seria isso? “Uma hidra
celeste [!], o sal do orvalho” (Le Feu du Soleil, p. 97).31

Como bem entendeu Martínez-Otero, o orvalho celeste é a própria substância de Hermes,


que media o mundo de cima com o mundo de baixo. Esse comentarista espanhol acertou também
plenamente ao explicar que “o orvalho encerra a idéia do mais espiritualizado néctar, o soma

31. A discussão mais completa desse assunto nos é dada de fato por Canseliet, nos seus comentários à Quinta Figura
das Douze Clefs de la Philosophie, do Frei Basílio Valentin. Convém lembrar também que a hidra é um metazoário de
água doce. A menção de sua parte celeste nos faz pensar que a Alquimia trabalha com uma espécie de Biologia
Hermética, simultaneamente sub e supra-lunar. Um bom exemplo de uma visão holística da ciência, tão em voga
ultimamente.
contido na copa dos pelasgos e dos gregos, o sangue do graal, ou o amrita dos hindus, prefigurando
a mesma matéria regenerada e o elixir da vida” (Comentarios al Mutus Liber, p.89).

Observe-se também que o líquido captado na toalha ao escorrer possui exatamente a mesma
aparência da substância que cai do céu, alternando faixas contínuas com pontilhadas. Isso nos indica
que nada se perde ou se contamina quando o Adepto conhece o seu magistério.

Sobre essa alternância entre ponto e linha, ao descrever esse agente cósmico que se
condensa em matéria, há curiosas ressonâncias, no autor do Mutus Liber, de idéias anteriores,
ligadas à sociedade secreta Voarchadumia e a linguagem enochiana, como esta do grande mago
John Dee: “nossas linhas elementares são produzidas por uma contínua queda (como um fluxo) de
gotinhas (stillae) (como pontos físicos) em nossa Magia mecânica” (Mônada Hieroglífica, Teorema
VII).32

Vemos ainda à direita do quadro (e, de novo, muito mais claro na edição de Manget), na
ponta aguda da igreja, a cruz de Lorena, símbolo do enxofre negro, que encontraremos nas
operações das pranchas seguintes. Note-se também que a cruz, que aparece nítida e simples na nona
e na décima segunda pranchas, é o único símbolo cristão utilizado no livro, confirmando as
especulações, caras a muitos comentadores, de que a Alquimia é uma das manifestações do lado
esotérico do cristianismo.33 Para os hermetistas egípcios, a cruz era o símbolo principal dos quatro
elementos. E assim nos explica Dom Pernety:

“E como a pedra filosofal é composta da mais pura substância dos elementos


grosseiros, isto é, da substância mesma dos princípios elementais, eles [os egípcios]
diziam: in cruce salus (a salvação está na cruz), por semelhança da salvação de
nossas almas resgatadas pelo sangue de Jesus Cristo atado à árvore da cruz”

(Dictionnaire Mytho-Hermétique, p. 97)

Já Bernard Roger lê nesta imagem o simbolismo iniciático do templo maçônico: o homem e


a mulher ocupam a posição de “duas colunas” [Jakin e Boaz, visíveis na Oitava Prancha], enquanto
que a radiação que parte do centro superior seria o “Verbo”, o “Dom de Deus” emanando do Grande

32. A Voarchadumia era uma sociedade secreta de alquimistas, surgida em Veneza em 1470, da qual fazia parte o
grande alquimista britânico George Ripley. A linguagem enochiana era um sistema mágico usado pelos
voarchadúmicos e muito especialmente por John Dee (v. Arnold Waldstein, Os Segredos da Alquimia)
33. Conforme argumenta Severin Batfroi no seu livro clássico Alchimie et Révelation Chrétienne, “não é que a História
Sagrada ofereça paralelos fortuitos e providenciais para o desenvolvimento dos trabalhos do Filho da Ciência [leia-se:
o alquimista], mas ela é a repetição na escala humana desse mesmo conjunto de operações transcendentes e sagradas”
(p. 12). Enfim, é como se para a alquimia convergissem, sem nenhum conflito, o mito clássico e o mito cristão.
Arquiteto. E as cinco telas no meio do quadro ocupariam a posição do “piso mosaico” no centro da
“loja do aprendiz”, no primeiro grau do rito escocês (Descobrindo a Alquimia, p. 263-3)

Quanto ao Touro, está agora em ereção, em contraste com sua postura na Terceira Prancha: o
primeiro verde está agora mais intenso e o momento presente mostra-se ainda mais adequado para a
extração do sêmen filosófico.
QUINTA PRANCHA

Entramos aqui nas práticas de laboratório: vemos o casal da prancha anterior vertendo o
orvalho coletado numa redoma que deverá ser conduzida incontinenti ao fogo vivo, enquanto a flor
do céu ainda está fresca. Terminada a destilação do orvalho, a esposa alça o capitel do destilador e
seu par recolhe em um balão exatos quatro quintos do líquido repurificado. A quinta parte restante é
recolhida pela soror com uma colher e transferida para uma pequena vasilha de gargalo em cujo
fundo se depositaram quatro partículas de coagulação, ou cal, representadas por quatro pequenos
triângulos. Estas, segundo Magophon, nos dão as proporções dos elementos que aqui atuam, a
saber: uma parte de enxofre para três de mercúrio.

A esposa do alquimista entrega este frasco a um gigante nu e coxo que carrega uma criança,
aparentemente inerte, na mão esquerda e que exibe um signo da lua, em posição horizontal, na
altura do coração. É Vulcano, deus do fogo e das artes metalúrgicas, representado aqui como
Vulcano Lunático, símbolo do fogo secreto, assim descrito por Limojon de Saint-Didier, autor do
Le Triomphe Hermétique, de 1710:

“O fogo natural de que fala este filósofo é um fogo em potência, que não queima as
mãos, porém que faz aparecer sua eficácia pelo fogo exterior; este fogo misterioso é
natural porque é da mesma natureza que a matéria filosófica; o artista, entretanto,
prepara um e outro” (p. 152).

Eis então que ela retira o enxofre fixo, resultado da dissolução (ainda impregnado do
mercúrio) e o deixa a aqua ardens. Como a pedra que não é a pedra, como o mercúrio que não é o
mercúrio, a operação da Grande Obra nos apresenta também o fogo que não é o fogo!

Vulcano (fogo) com a Lua (água) dentro: água ígnea, ou água que não molha; fogo aquoso,
ou fogo que não queima, ambos representam, também, a dupla e antinômica natureza da pedra que
buscamos. Assim, sutilmente, sem a necessidade de uma argumentação lógico-discursiva, o Mutus
nos envolve num paradoxo, típico da experiência mística universal.34

Do ponto de vista narrativo, o recurso de Vulcano com a Lua no peito foi um artifício um
tanto engenhoso, pois não há de ser fácil transmitir, sem palavras, a idéia de um fogo secreto.

34. No Epigrama XXXIV do Atalanta Fugiens Michael Maier nos afirma em verso: Est lapis & non est (Ela é a pedra e
não é). O Tao Te Ching diz: “O Tao de que se fala não é o verdadeiro Tao”. Para o Sutra do Diamante, “o que se
conhece como ensinamento de Buda não é o ensinamento de Buda”. E o cristão Meister Eckhart nos adverte:
“Nenhum homem pode ver Deus, a não ser que esteja cego”.
Como mencionei antes, não vejo em que convenção pictórica Jung se baseia para achar que
“Luna aparece na Prancha 5... como uma figura feminina nua coroada com o signo da lua e
carregando uma criança em seus braços” (Mysterium Coniunctionis, ed. ing., p. 315). Johannes
Fabricius, cujos comentários sublinham o lado dogmático e quase caricaturesco tanto da Psicologia
de Freud como da de Jung, ao menos observou que Luna “possui um corpo estranhamente
masculino...” (p. 48). É o desconhecimento da tradição hermética que se evidencia nessas leituras
que realmente destoam totalmente do que está sendo narrado.

Os quatro quintos (principais ou secundários?) são transferidos pelo operador em quatro


pequenas vasilhas que são fechadas e levadas, em grupo de duas, a um forno para a cocção lenta.
Ao pé do fogo dessa terceira vinheta lê-se o número 40: é este o número de dias que deverá durar
esta fase da operação.

Não achamos razoável a leitura de Canseliet, ao ver Vênus na mulher que entrega o quinto
restante a Vulcano. Pensamos que o autor do Mutus deve ter sido consistente em seus princípios
iconográficos e não há absolutamente nenhum sinal pictórico que distinga as duas mulheres da
segunda vinheta. De qualquer forma, a visão de Canseliet denuncia uma possível ambigüidade no
texto de Altus. E sobre isso vale a recomendação de um dos grandes alquimistas que o precederam,
o prolífico e plural Michael Maier:

“As palavras dos Alquimistas são como nuvens: elas podem significar e representar
qualquer coisa, de acordo com a imaginação daquele que as ouve”

(Os Segredos da Alquimia, p. 204)

E não só as palavras, digo eu: também as imagens das gravuras alquímicas são como
nuvens, pois nem sempre são nuvens o que vemos como nuvens, conforme haveremos de mostrar
ao discutir a Décima Segunda Prancha.

Pergunto-me finalmente se essa criança que o deus do fogo carrega não é o filius, a pedra
filosofal que acaba de nascer. É o que me inspira a leitura paralela de Irineu Filaleto:

“Então, procurando mais ainda este enxofre ativo, os magos o encontraram


profundamente escondido na casa de Áries. O filho de Saturno acolheu-o com
avidez, sendo ele mesmo matéria metálica puríssima, muito branda e próxima do
estado primeiro dos metais, completamente desprovida de enxofre atual, mas capaz
de receber o enxofre. Por esta razão ela o atrai como um ímã, o absorve e o oculta em
suas entranhas.”

(Entrada Aberta ao Palácio Fechado do Rei, XI, 9)


SEXTA PRANCHA

Esta prancha é, claramente, uma continuação das operações descritas na prancha anterior.
Passados quarenta dias, o casal retoma as manipulações num forno similar àquele do fogo lento.
Significativamente, esse forno está apagado nas operações descritas no terço superior da gravura e o
conteúdo das quatro vasilhas da cocção (ou digestão) é de novo reunido na retorta.

Logo abaixo, o forno é novamente aceso e a operação no alambique faz precipitar uma rosa
de seis pétalas (mostrada por Ceres na terceira prancha), ainda contaminada por um pouco de
magma residual que a operadora procura eliminar com uma colher. Isso feito, é agora o esposo que
entrega a nova rosa ao deus-sol Apolo, vestido com o colete de Marte (o que indica a fixação do
ouro almejado, através do denso ferro). Enquanto na Quinta Prancha era a mulher que entregava o
coagulum de orvalho ao fogo lunar, agora é o homem que deve conduzir a Flor da Fixação ao fogo
solar.

Terminada essa fase, tornam a aquecer aquele quinto, composto de três porções de enxofre e
uma de mercúrio, que a mulher havia oferecido ao Vulcano Lunar na prancha anterior.

Magophon sugere que aqui o homem, ativo, representa o enxofre e a sua parceira, passiva,
representa a lua. Quanto à rosa, explica muito bem, é a flor da árvore filosófica que anuncia o fruto.
É nesse sentido que todo tratado alquímico, como bem sugere Magophon, é um verdadeiro
Romance da Rosa. O autor da Hypotypose acha também que nos deparamos aqui com três rosas
distintas, aparecendo na prancha em ordem decrescente e, lembrando os critérios de Irineu Filaleto,
sugere que são filhas umas das outras: a primeira seria a rosa branca, lunar; a segunda, a rosa
amarela ou açafrão; e a terceira a rosa vermelha, perfeita, maior, que é finalmente entregue ao puro
fogo do sol. O colete de Marte, inclusive, poderia ser um indicador da cor avermelhada da rosa
obtida.

Bernard Roger explica que essa bela rosa é a “escuma do mar filosófico” e que está “prestes
a se tornar fruto e semente em vista da multiplicação de sua espécie” (Descobrindo a Alquimia, p.
155). Dela há de nascer a pedra como veremos em seguida.

Canseliet nos alerta para um fato estranho na primeira imagem da prancha: as tampas das
duas vasilhas pequenas parecem levitar. Deverá o neófito quebrar a cabeça para enfrentar essa pista
cifrada que lhe foi deixada por Altus? E é ainda o mesmo editor que nos adverte: “é unicamente a
experimentação que instruirá o artista sobre as lacunas a completar, sobre a ordem a ser
estabelecida, assim como sobre as inverossimilhanças [grifo meu] a esquecer” (Mutus Liber, p. 93).
Em suma, será essa levitação das tampas literal ou metafórica? Real ou ilusória? Stanislas
Klossowski de Rola também considera, ao comentar esta prancha, que seria “ingenuidade crer que
se descreve minuciosamente o modus operandi alquímico, como poderia parecer” (Juego Aureo, p.
287).

Essa ambigüidade entre o literal e o simbólico dá lugar a posições muito distintas com
relação à alquimia. Alguns autores (compreensivelmente), como Jung, não acreditam que os
tratados falem de processos e operações reais ou concretas do ponto de vista químico-físico. Outros,
como o iluminadíssimo Fernando Pessoa, crêem que a alquimia privilegia o simbólico sem desfazer
o literal. As preciosas opiniões sobre o assunto, do maior alquimista do verso em língua portuguesa
do século vinte, são ainda escassamente conhecidas e por isso vale a pena mostrar um pouco delas
aqui:

“A química oculta, ou alquimia, difere da química vulgar ou normal, apenas quanto à


teoria da constituição da matéria; os processos de operação não diferem
exteriormente, nem os aparelhos que se empregam. É o sentido com que os aparelhos
se empregam, e com que as operações são feitas, que estabelece a diferença entre a
química e a alquímica.

“Mas, ao mesmo tempo, os elementos que compõem a matéria têm um outro sentido:
existem não só como matéria, mas também como símbolo. Há, por exemplo, um
ferro-matéria; há, porém, ao mesmo tempo, o mesmo ferro, um ferro-símbolo. Cada
elemento simboliza determinada linha de força supermaterial e pode, portanto, ser
realizada sobre ele uma operação, ou ação, que o atinja e o altere, não só no que
elemento, mas também no que símbolo. E, feita essa operação, o efeito produzido
excede transcendentalmente o efeito material que fica visível, sensível, mensurável
no vaso ou aparelho em que a experiência se realizou.

“É esta a operação alquímica.

“É isto no seu aspecto externo: porque na sua realidade íntima, é mais alguma cousa
do que isto.

Como o físico (incluindo no termo o químico também), ao operar materialmente


sobre a matéria, visa a transformar a matéria e a dominá-la, para fins materiais; assim
o alquímico, ao operar, materialmente quanto aos processos mas transcendentemente
quanto às operações, sobre a matéria, visa a transformar o que a matéria simboliza, e
a dominar o que a matéria simboliza, para fins que não são materiais.”

(“A Alquimia”; em: A Procura da Verdade Oculta, p. 154)

Quanto à rosa que o adepto entrega ao deus, Canseliet ensina-nos que a palavra rosa é muito
próxima do nome orvalho, rocio (rosée em francês); ambos vocábulos, segundo ele, estão próximos
do grego rosis, que significa força, vigor, saúde. Além disso, segundo Macróbio, o termo latino ros,
roris, orvalho, era também o nome do deus, filho do Ar e da Lua. O que vem ao encontro da
suposição de autores como Pernety, de que a mitologia greco-romana esteve basicamente a serviço
da tradição alquímica: o que se entrega ao Sol Marciano é o orvalho, de força controlada e
intensificada.

Marie-Louise Von Franz diz desta prancha: “O esclarecimento é personificado como o sol
trazendo a flor dourada, símbolo da pedra filosofal” (Alquimia, p. 212). Jung diz apenas: “Sol
aparece embaixo, trazendo a flor dourada” (Psychology and Alchemy, p. 261); e em Mysterium
Coniunctionis (p. 315), confirma que é Sol ou Febo Apolo.
SÉTIMA PRANCHA

Seguindo o mesmo ritmo das duas pranchas anteriores, esta começa com o produto das duas
destilações já realizadas. Retirada a vasilha do fogo ardente, e deixada esfriar por um tempo, a
operadora deposita agora as quatro precipitações animadas pelo fogo lunar no prato grande,
enquanto seu companheiro verte o segundo destilado conservado no balão. Vê-se, na figura da
direita do primeiro terço da prancha, a mistura do prato grande sendo transferida, mediante um.
funil, para o balão que continha o destilado. Como observa Canseliet, o preparado parece agora
homogêneo, de forma que os quatro cristais se dissolveram inteiramente na nova mistura.

No segundo terço esse preparado é de novo colocado no prato grande e levado ao fogo
intenso. Uma vez apagado o forno (no quadro direito) vemos que a operadora retira com uma colher
uma camada que se coagulou na superfície do prato. Essa substância, transferida para uma garrafa
que ela segura na mão esquerda, não é outra que o secretíssimo sal harmoníaco, como indicam o
quatro signos em asterisco que se vêem na garrafa. (Não seria conveniente confundir esse sal
harmoníaco - ou sal da harmonia universal - com o seu equivalente e verossímil, chamado
vulgarmente de sal amoníaco.)

No terço inferior entramos na via seca, com Saturno devorando uma criança no meio das
chamas de um braseiro. Devemos observar que Saturno (também como seu pai Urano) se representa
emasculado. A ação de Saturno reflete a Noite ou Escuridão da Dissolução, a Cabeça do Corvo
(caput corvi), desse Corvo que é a Coroação da Obra, visto que sem Putrefação não pode haver
Geração. Eis então a importância desta Prancha: ela apresenta de uma forma sutil a fase da nigredo,
ou putrefactio, em geral amplamente explorada na iconografia alquímica, que abunda em imagens
de corvos, esqueletos, ataúdes, cemitérios etc.

Uma imagem simbolicamente equivalente a esta, do pai devorador, e que é mencionada por
Canseliet, pode ser encontrada no frontispício (Prancha IV), muito reproduzido, da obra de Nicolás
Flamel denominada O Livro de Abraham. Mais parecida ainda é a última prancha do livro Chymica
Vannus, 1666, do holandês Joannes de Monte-Snyders (Fig. 10).

A garrafa que une Saturno a Diana é de fato a cauda pavonis: Saturno é a nigredo e Diana, a
virgem, a imagem da albedo. Daí o verde vitríolo na garrafa.
Fig. 10 - Saturno, ou Cronos, advertido de que um de
seus filhos o destronaria, devorava-os ao nascer.

Sobre a obra em negro, Martínez-Otero faz linda observação:

“A diferença é fundamental, entre qual é a iniciação e quem é que a outorga.


Diremos simplesmente que o espagirista e o hiperquímico podem chegar à obra em
negro, ou assim o cremos. E isso está certo, pois o homem possui seu próprio
sacerdócio, dada sua condição herdada. Seu trabalho, porém, não pode ser mais que
precursor e clama ao Espírito Santo para que culmine a obra em todo o seu espectro
de cores. Somente a obra em negro é própria do homem sozinho, que assim
conquista sua primeira coroa. Nada mais lhe é dado que não seja gratuito”

(Comentarios al Mutus Liber, p. 127)

Martínez-Otero tocou um ponto assaz importante, pois a modernidade é essencialmente


simpática à obra em negro. O mundo das trevas, para cuja descoberta ou liberação contribuíram
inúmeros criadores como Edgard Allan Poe, Bram Stocker, Gérard de Nerval, Isidore Ducasse,
Huysmans, Strindberg, Nietzsche, Freud, Rimbaud, Gustav Meyrink, Bataille, passa a exercer em
nossa época o charme principal. Até a novela mais conhecida sobre a alquimia, da contemporânea
Marguerite Yourcenar, volta-se justamente para a Obra em Negro (Opus Nigrum). É o espírito da
dúvida, da suspeita, do ceticismo, do nihilismo, que faz a simbólica da nigredo atrair os curiosos,
mas que logo se afastam por se sentirem incomodados com a possibilidade da albedo. O que dirá da
rubedo?
É o mesmo motivo que levou Schiller (também precursor deste nosso mundo desencantado)
a gostar do Inferno e a rejeitar o Paraíso de Dante. E como disse nosso comentarista espanhol, a
nigredo pode ser provocada por qualquer um. É o esforço humano-prometéico, fáustico, desejante,
substituto da falta essencial, abrindo o arco-íris de sua cauda. O pavão de Juno, porém, demarca os
limites da vontade humana. Já a albedo é um salto para a intervenção extra-humana, é a graça que
não age segundo nossas leis e que põe em xeque tudo o que buscamos controlar. Quanto à rubedo,
então, é prova cabal da realidade de uma ciência totalmente outra (de fato, a Sofia, a Sabedoria, a
verdadeira Filosofia), que não se baseia em argumentos, mas em certezas. Isso não a torna
obscurantista, pelo contrário, o que assusta é que ela é verdadeiramente luminosa, gerada que foi
pela reflexão e purificação da luz celeste, incontaminada.

Enfim, podemos assim conceber a Alquimia como uma outra simbólica da noite; é uma arte
noturna, porém afirmativa e é nisso que se distancia tanto da visão de mundo da intelectualidade
contemporânea. Sua tarefa maior não é a desconstrução per se, mas a reconstrução; como o
explicou Martin Ruland, no seu Lexicon Alchemiae, ela mergulha no impuro para separar dele
aquilo que é mais puro. Dito ainda no latim do convento franciscano de Cinuêz: Ex foetido purus - o
puro emana do infecto.

Outra versão igualmente curiosa dessa imagem está no emblema XIII do Tratado da Pedra
Filosofal, de Lambsprinck (Fig. 11). Pode-se pensar ainda na dramática pintura de Goya, de
inspiração claramente alquímica, de Saturno comendo os filhos.

Fig. 11 - Emblema XIII do Tratado da Pedra


Filosofal de Lambsprinck
Eugène Canseliet entende, através de uma argumentação tipicamente hermética, que essa
representação de Saturno não é chumbo, mas o antimônio, que contém o azougue fixador do ouro e
que gera o sal amoníaco de que falaremos em seguida.

No segundo quadro vemos a operadora vertendo sobre o deus destronado a parte do líquido
que sobrou no fundo do matraz. Magophon chama esse banho de “branquear o negro”, que tem
como finalidade eliminar todas as impurezas, as toxinas resultantes da fermentação, corrigir os
humores e preparar o Saturno dos filósofos (antimônio para os neófitos) para as operações
subseqüentes.

Esse antimônio que gera o sal da harmonia, agora limpo, ganhou uma brancura e um
resplendor identificados, no terceiro quadro, com a figura da virgem Diana, nua e com o signo lunar
na cabeça, carregando na mão direita a garrafa com as quatro porções do sal amoníaco (Diana nua é
tradicionalmente um símbolo da matéria em branco). A garrafa está atada ao sabre de Saturno, cujo
punho, adornado com uma cabeça de pássaro, evoca sutilmente a volatilização decorrente das
últimas operações. Para Canseliet, o próprio sabre, consagrado ao deus Marte, evoca o planeta
astrológico e o metal a ele consagrados.

Fig. 12 - Frontispício do Philaletha


Illustratus
No belo frontispício do Philaletha illustratus vemos uma mulher com uma balança na mão
esquerda (onde se lê pondere) e uma espada na mão direita, em cuja lamina se lê Sigillum Hermetis
(Fig. 12). Canseliet comenta: “a espada de Marte é aquela pela qual o alquimista aplicará o selo de
Hermes (Sigillum Hermetis) sobre sua Grande Obra” (L'Alchimie expliquée, p. 236). Também a
chave XII de Basile Valentin reproduz o selo de Hermes, exibindo um emblema extremamente
similar (Fig. 13) Penso ainda que esse sabre evoca também o “gládio de fogo” que o operador
utiliza para abrir o ovo, conforme o Emblema VIII do Atalanta Fugiens (Fig. 14). Como diz
Michael Maier:

“Esse gládio de fogo, [é] lança acerada, pois o fogo, igual que a lança ou o gládio
acerado, trespassa os corpos, deixa-os porosos e susceptíveis de serem atravessados,
de sorte que a água possa penetrá-los para os dissolver, e de duros que se
encontravam, deixá-los brandos e flexíveis.”

(Atalanta Fugiens, p. 105)

Fig. 13 - Chave VII de Basile Valentin

É preciso, pois, estar atento para a ambigüidade do simbolismo da espada: ela não se refere
apenas (se é que se refere: pessoalmente, penso que não) ao planeta Marte e ao metal ferro, como
propõe Canseliet. Em se dicionário, Pernety afirma que não só a espada, mas também a lança, a
cimitarra, o machado, são alegorias do fogo dos filósofos. Isso esclarece a imagem da espada no
Philaletha Illustratus, com o dizer Sigillum Hermetis: trata-se do selo de Hermes que é o fogo que
corta a prolongação cilíndrica do ovo de vidro, fechando-o inteiramente, isto é, hermeticamente.
Como em tantas outras matérias, na Alquimia raramente o que se vê de primeiro olhar é o que é. É
por isso que seus seguidores a defendem: Ciência, sim, mas Hermética.
Fig. 14 - Emblema VIII do Atalanta Fugiens. “... pega o
ovo e abre-o com o Gládio de Fogo”.

Martínez-Otero vê aqui representado o duplo batismo do chumbo filosófico: um para


reincrudar, o outro para lavar; acha ainda que aqui se volatiliza o fixo e se fixa o volátil. Em uma
linguagem ainda mais obscurescente, diz que atinamos com o esperma do metal (um arsênico) e o
regamos na sua própria água.

Por minha parte, vejo que essa garrafa, suspensa entre o chumbo filosófico de Saturno e a
prata lunar de Diana, apresenta-nos a segunda fase da obra, a albedo, onde já se realiza, conforme
sugere Canseliet, a sublimação do mercúrio. Seja como for, considero este quadro o mais difícil de
decifrar de todo o livro.

Esta imagem do Saturno devorador é das mais comentadas e reproduzidas do Mutus Liber.
Francis Huxley diz que nela se vê “Saturno como Moloch, e sua transformação alquímica” (O
Sagrado e o Profano, p. 173). Marie-Louise von Franz vê aqui “Saturno como Sol niger, sombra do
Sol (ou o lado escuro de Deus), devorando seus filhos” (Alquimia, p. 136). Já para Jung, Saturno
devorando os filhos é uma imagem da prima materia (Psychology and Alchemy, p. 317). E o
junguiano Edward Edinger a reproduz no seu Anatomia da Psique como exemplo de “Calcinatio do
pai devorador”(p. 41).
OITAVA PRANCHA

Esta prancha, cuja posição é também motivo de discussão, possui uma estrutura pictórica
similar à segunda e à décima primeira. Vemos na parte superior a alegoria do Mercúrio já realizado.
Dois anjos seguram o ovo filosofal exposto aos raios do Sol cósmico, dentro do qual se vê o deus,
que leva na cabeça um pétaso alado, típico dos emblemas de Hermes. Sob seus pés estão os astros
da coniunctio, estando aqui o princípio masculino interno (Sol) com sete raios. A cada lado da
composição vemos 5 pássaros voando, sendo que os dois mais próximos do ovo levam um ramo no
bico, na extremidade do qual se vêem dois signos espagíricos: o do tártaro, à esquerda e o do
amoníaco, à direita. Canseliet nos alerta tratar-se aqui dos dois agentes salinos que constituem a
casca que encerra a substância saída do sol e da lua. Como na terceira prancha, esses pássaros são
águias que representam as dez sublimações por que passa o mercúrio dos filósofos. Em conexão
com essas águias estão as dez pequenas serpentes que Mercúrio carrega numa vara, também cinco
de cada lado, correspondendo aos fragmentos da substância sublimada.

A parte inferior do quadro é quase idêntica à da Segunda Prancha: o casal alquímico reza,
ajoelhado, exercitando a fé intensa e profunda na espera de que a matéria colocada no interior do
ovo passe pelos estágios e cores necessários para a feitura do lapis. Canseliet detecta uma suposta
anomalia neste desenho, se o contrastamos com o da Segunda e da Undécima Pranchas: enquanto
naquelas vê-se muito claramente a vela acesa na base do forno, nesta o registro também está aberto,
mas revela um forno apagado. Martínez-Otero responde a meu ver muito bem a essa inquietação do
editor moderno do Mutus: o composto já está maduro, o rebis já está constituído e deve agora
vegetar no atanor. Também Magophon concorda que o mercúrio dos filósofos já está realizado,
sendo o produto do Sol e da Lua que está a seus pés. Entende também que o fogo deve estar
desligado: “o mercúrio dos filósofos, animado e sublimado segundo as regras, deve circular por um
bom tempo no vaso antes de produzir os felizes efeitos que se esperam dele” (Hypotypose, p. 41).

Isto é intrigante se sabemos que as operações continuam e estamos, ao que tudo indica, a
caminho da albedo, ou melhor, da cauda pavonis: não esqueçamos dos raminhos verdes no bico dos
pássaros, os quais, segundo Canseliet, atestam a presença do cristal ou sal de Cristo. Este vitríolo
filosófico, verde por excelência, não é outra substância que aquele suposto álcali que provocou
séculos de expectativa e disputa, de Paracelso a Jean Kunckel (e, pelo que vemos, até Fulcanelli e
Canseliet): é o famoso alkahest, o tão sonhado solvente universal. O alkahest foi primeiramente
mencionado por Paracelso; logo Van Helmont jurou havê-lo descoberto; até que finalmente Jean
Kunckel negou rotundamente a sua existência.
É a eterna busca da coisa única, solenemente anunciada pelo Trismegisto - busca real, literal,
que se desdobra em uma vertigem de símbolos e princípios metafísicos; em paradoxos lógicos e
absurdos físicos; e (talvez) em disfarces infinitos do aparente e do definitivo. Qual a verdadeira
natureza desse tão desejado solvente universal? Um álcali qualquer (alkali est), como queriam os
seus defensores? Ou o “lugar de energia” (de alké, força, vigor, e eis, lugar), como interpreta
Fulcanelli? Ou ainda All Geist (espírito universal) ou simplesmente All ist (o que tudo é), na visão
dos crédulos discípulos alemães? Ou senão o cortante Alles Lügen ist (tudo é uma grande mentira),
como fulminou lacanianamente o cético Jean Kunckel? Deixando para quem se julga filósofo o lado
puramente filosófico da disputa, que o leitor ao menos se deixe levar pela poética da polêmica, tão
cultivada entre os alquimistas.35

Canseliet nota ainda uma pompa maçônica neste laboratório onde o casal ora: as duas
colunas seriam Jakin e Bohaz (as colunas do Templo de Salomão em Jerusalém) e os três nós na
cortina lhe dariam um clima simbólico e não literal, de modo que estaríamos assim diante de um
atanor “verdadeiramente secreto, que nenhum olho vulgar jamais viu”, para usar a expressão de
Irineu Filaleto (Entrada Aberta ao Palácio Fechado do Rei,
XVIII, 8).

Pondo de lado, ainda que momentaneamente, o atanor secreto, lembremos que o atanor,
forno concreto em forma de pirâmide, peça imprescindível para a realização da Grande Obra, é
constituído de quatro partes independentes e encaixáveis. Transcrevo a descrição detalhada feita por
René Schwaeble, hermetista do princípio do século mencionado por Pierre Dujols (nosso “invejoso”
e simpático Magophon), reproduzida por Martínez-Otero:

“A parte superior possui forma de cúpula, provida de um termômetro mantido num


tampão perfurado em seu centro. A parte seguinte e segunda é um cilindro perfeito
com quatro aberturas circulares fechadas por vidros, de modo a permitir a vigilância
da operação; nesta parte será alojado o recipiente contendo areia fina, sobre a qual
repousará o que os antigos chamavam o Ovo filosófico, que deverá ser afundado na
areia com cuidado e docemente, até que a superfície da matéria que encerra coincida
com o nível da areia. O vaso que contém a areia é suportado por uma grelha leve
colocada horizontalmente entre a segunda e a terceira parte do atanor. A terceira parte
forma no seu interior um cone truncado, de modo a apresentar no seu alto uma
abertura de diâmetro igual ao do vaso de areia situado acima. A quarta parte
comporta no seu interior um cone inteiro invertido, disposto imediatamente acima do

35. Excelente discussão sobre o alkahest pode ser encontrada em Kurt Seligman, Magic, Supernaturalism and
Religion, p. 111-112.
fogão, mantido por ganchos e deixando ao seu redor um vácuo circular que, ao subir,
se reduz à espessura de um dedo.

“O interior do atanor deve estar esmaltado em branco vivo ou envernizado com uma
capa de carbonato de magnésio diluído em gelatina.

“Para a calefação, deve-se utilizar uma lâmpada que tenha uma coroa de matéria
radiante, de zircônio ou magnésio, de modo a proporcionar radiação química a baixa
temperatura. Uma lâmpada ordinária não daria calor luminoso, já que seu calor seria
afogado pelo suporte do ovo, pois não pode, como o calor radiante do zircônio,
atravessar os corpos opacos: é o fogo clibânico de que fala Glauber”

(Martínez-Otero, p. 143)36

Sobre o significado do atanor, muito já se escreveu, tendo sido ressaltado o seu caráter de
imagem simbólica do corpo humano (Titus Burckhardt) e de templo reduzido, análogo a um stupa
budista (com o qual não deixa de parecer-se). Como diz Grillot de Givry, “é um pequeno mundo,
um microcosmo semelhante ao Cosmos astronômico, a seus zodíacos, seus polos, suas estações"
(Musée des Sorciers, Mages et Alchimistes, p. 410).

Por que teve Altus que mostrar-nos o casal orando aos pés do atanor em três pranchas
distintas? Porque quis ressaltar a sintonia profunda, quase de identidade, que há entre o alquimista e
seu forno. Ele está atento às transformações que operam em seu interior, mas que no fundo são as
mesmas que operam no interior do atanor, cuidadosamente controlado e vigiado. O alquimista traz o
atanor para dentro de si (em busca do domínio do fogo interno) e transfere seu eu para o atanor,
atento aos sons que emite, às vibrações que reproduz, ao calor que recebe e libera, ao modo como
reage às condições atmosféricas, às mudanças do zodíaco. “Forno cósmico" é o nome que recebe
numa gravura de uma edição seiscentista da Suma da Perfeição de Geber. Concreção temporária da
unidade que perpassa a natureza como um todo e seus elementos em constante mutação; união dos
astros com seus princípios; o atanor é por excelência um símbolo hermético do estágio terrenal do
homem, volátil combinação de corpo, alma e espírito em seu caminho ourobórico em busca daquele
segundo nascimento que nos é prometido por todas as tradições de espiritualidade e de um modo
muito concreto pela tradição alquímica.

36. Poucos anos depois da publicação de Canseliet, foi encontrada uma terceira edição perdida do livro, reproduzida
em 1976 pela editora Arché de Milão. Nesta, as pranchas 16 e 17 são representações de atanores.
Talvez fosse mais adequado considerar o atanor um símbolo do macrocosmo e o ovo
filosófico um símbolo do si mesmo. Como explica Serge Hutin, o alquimista visa a obter “um
modelo reduzido, animado, de nosso cosmos, com a repetição sucessiva de tudo o que ocorreu na
origem do presente ciclo da terra por ocasião dos 'dias' do Gênesis” (A Tradição Alquímica, p. 60).
E mais: “estabelece-se a analogia entre, de um lado, a gestação e o nascimento do embrião e, de
outro, as metamorfoses sucessivas da matéria prima até o nascimento da pedra filosofal, que se
costuma comparar a uma criança que, quando sai do seio materno, deve ser alimentada e cuidada
com tanta precaução” (id., p. 38).

O mais curioso, a esse respeito, é que o ovo seja colocado no atanor e já não se pode mais
ver o que se passa em seu interior, sob pena de se interromper o processo de gestação da pedra, que
deve ser feito nas trevas (como o feto no útero). Compete ao alquimista observar, zelar, sentir,
intuir, para identificar os sinais emitidos pelo atanor e saber o momento exato de retirar o ovo e
quebrá-lo, para contemplar, entre as cinzas, a Pedra realizada. Se quebrá-lo antes ou depois da hora,
poderá perder meses ou anos de esforço ininterrupto. Não é uma atividade científica no sentido
moderno, obviamente; sobretudo porque demanda uma exatidão excessiva (por que não dizer,
obsessiva), que envolve grande acuidade de observação objetiva (as condições atmosféricas, por
exemplo, devem ser diariamente monitoradas) e também de auto-observação (os estados interiores
do alquimista também influenciam a realização da operação).

Esta Prancha saiu invertida na reprodução feita por Stanislas Klossowski de Rola, tanto na
edição inglesa quanto na espanhola de sua obra, o que é uma pena por tratar-se da melhor cópia
feita até agora da edição de Manget desde a reprodução de Marc Haven de 1947.
NONA PRANCHA

Tudo indica que esta Nona Prancha deve vir imediatamente depois da quarta. Em cima, uma
réplica, ligeiramente modificada, do que se via na outra prancha: esse líquido sutil, captado na
mesma época do ano (a julgar pelas imagens do carneiro e do touro, entre março, abril e maio) é
agora colocado em seis bacias expostas à ação do fluido universal (daí a aparência de uma camada
negra e espessa na sua superfície). Embaixo, o casal que havia recolhido o líquido ao torcer os
lençóis, transfere-o agora das bacias para um matraz, com o auxílio de um funil.

Esse orvalho, ou maná, atrai sem dúvida os dois animais, a julgar pela posição de
movimento em que são mostrados.

Que esta prancha preceda a quinta fica bastante claro pela figura da direita do quadro
inferior: a operadora entrega o líquido ao jovem Mercúrio, dando continuidade ao processo de
purificação do metalóide, especialmente através do sal que retém sua solução. Que o mercúrio
necessita esse trabalho repetidas vezes se evidencia pela vara que carrega, exibindo as dez pequenas
serpentes, correspondentes às dez águias ou sublimações.

Johannes Fabricius observa que esta prancha é mais escura que as suas equivalentes (Quarta
e Décima Segunda). Para ele, o orvalho de maio caiu agora num estado de escurecimento, como se
do céu tivesse surgido uma tempestade. Na medida em que nos encontramos aqui claramente a
caminho da albedo, julgo sua leitura pertinente.

Na maioria das pranchas vemos a soror numa atitude em geral mais ativa que a do homem:
ela move mais as mãos nos momentos de oração, intervém bastante no encaminhamento das
operações e relaciona-se mais com os seres divinos, ou elementos postos em jogo para a confecção
da Obra. Nicolás Flamel afirma que, no curso da Obra, o feminino domina durante um longo tempo,
invertendo assim temporariamente (ou hermeticamente) a prescrição do Gênese: “O teu desejo será
para o teu marido, e ele te governará” (3.16). Não esqueçamos que a Alquimia possui o seu lado de
opus contra naturam.
DÉCIMA PRANCHA

Esta prancha nos mostra a fase da Conjunção. Aqui já se obteve, ainda que em pequena
quantidade, a Pedra dos Filósofos. O alquimista verte uma das quatro porções do sal amoníaco,
conseguido anteriormente num prato (o da esquerda) e uma porção de florão ou corola de ouro
filosófico no outro. Sal e enxofre são reunidos em proporções exatas, muito bem medidas. A julgar
pela inclinação do ângulo medidor da balança, as proporções não são iguais, sendo a de sal
possivelmente maior. Uma vez pesados pelo alquimista, sua companheira os verte cuidadosamente
dentro de um balão. Logo é a vez dele completar a tríade filosófica, passando para esse balão parte
do mercúrio que haviam preparado nas etapas anteriores, purificado como foi pelas sublimações e
enriquecido pelo fluido cósmico: conseguimos assim a tão esperada harmonia dos três princípios,
refletida inclusive no perfeito entendimento e colaboração do casal de adeptos.

Em seguida, no segundo terço, vêmo-lo fechando o matraz de vidro, que deixa ver apenas a
corola de ouro, com o selo de Hermes. Esse ovo filosófico, artesanalmente preparado e
hermeticamente fechado (note-se a qualidade do trabalho de finalização na curva superior do ovo
recém-fechado) é agora introduzido no atanor para sua longa e controlada cocção final. A
colaboração dos cônjuges é aqui igualmente equilibrada. Podemos apreciar a importância, para a
opus alquímica, do ato de aplicação do selo de Hermes no fato do artifex ter retirado sua cabeleira,
colocado na cabeça um barrete e vestir-se de um modo bem mais simples e plebeu, como se tivesse
de fato encarnando agora um outro personagem. É neste quadro, inclusive, que o alquimista aparece
no seu papel mais ativo, cabendo à soror uma tarefa bem menor.

Finalmente, no terço inferior, vemos a consumação da coniunctio (ou matrimônio) de Diana


e Apolo: os deuses se dão as mãos festejando a Obra que completou seu ciclo de cores, as quais são
projetadas ao lado esquerdo do forno na forma de quatro círculos concêntricos: no círculo externo
vemos a nigredo, ou melanosis (trata-se da tão humana e facilmente assimilável opus nigrum ou
putrefactio); a albedo ou leukosis (o embranquecimento) - é a condição de prata, ou da lua, cuja
presença já certifica ter o alquimista recebido a intervenção divina, a ponto de que, para muitos, sua
chegada significava o fim da Obra; a citrinitas ou xanthosis: o amarelecimento, fase intermediária,
que precede a rubedo como a cauda pavonis precede a albedo e que não conta, simbolicamente,
para expressar a grande tríade definidora da opus philosophicum; e finalmente a rubedo, ou iosis, a
cor vermelha, condição de rubi, do ouro, do sol, gran finale da Obra, ponto a partir do qual a
transmutação dos metais em ouro deixa de ser uma quimera ou mera aspiração para tornar-se real.
Conseguido o rubi, que é a pedra filosofal, a transmutação em ouro passa a ser um exercício
controlado e sem dificuldades. Primeiro, sua força pode ser intensificada, multiplicando-a com o
mercúrio que se reservou para essa finalidade.
O número 10 encontrado do lado do casal divino pode representar o coeficiente de
transmutação alcançado pela presente Obra: seu produto foi multiplicado dez vezes. Operada a
multiplicação, faz-se com a pedra o pó de projeção, o qual, fundido em pequena quantidade com os
metais imperfeitos (como o chumbo e o ferro), transmuta-os em ouro.

Um dos depoimentos mais ilustres de alguém que afirmou haver alcançado o segredo da
multiplicação foi o de Sir Isaac Newton, em fevereiro de 1696. Em seu manuscrito alquímico
Praxis, concluiu que cada pedra podia ser multiplicada quatro vezes e não mais. 37 Multiplicação
inferior à indicada por Altus, mas importante por ter sido Newton um dos pais da Ciência Natural e,
segundo alguns, o último dos grandes alquimistas. Na verdade, não é estranho esse coeficiente 4
que, pela tetraktys pitagórica, equivale a 10 (4+3+2+1=10), e todos os alquimistas clássicos
mencionam o número 10 como a relação precisa que se encontra ao alcançar a rubedo. 38 O número
10 possui um valor tanto aritmético quanto simbólico: é o denarius, o número perfeito que nos vem
desde a tradição pitagórica e que para os alquimistas representa o filho de Deus, o filius
philosophorum (filho dos filósofos) que termina sendo associado diretamente ao Cristo.
Rigorosamente, tratar-se-ia aqui do pequeno Cristo, pois se alcançou apenas o denarius; a
possibilidade de uma multiplicação infinita só surgirá, conforme veremos, na Décima-Terceira
Prancha.39

Este quadro exemplifica muito bem o estilo pictórico discreto, pouco enfático do Mutus
Liber. Apesar de ser indicada aqui a etapa de realização, ainda que parcial, da Obra, a Pedra
Filosofal continua oculta, ou invisível, volátil, sugerida apenas ou apresentada em forma de
símbolo. O casal divino, aqui apresentado, simboliza muito bem os dois significados básicos da arte
alquímica. Diana, enquanto Luna, pode ser a perfeita representação da Alquimia ao indicar-nos que
se trata de uma arte essencialmente noturna. Como nos explica Fulcanelli numa das passagens mais
inspiradas d'O Mistério das Catedrais, a condição primordial para provocar a geração no seio da
matéria é a ausência total de luz solar; toda a fecundação é noturna e o nostoc, princípio da vida
celeste que captamos, é algo que nasce à noite. E o alquimista trabalha de fato à noite. O sofrido e
37. Citado por Derek Gjersten, The Newton Handbook, Londres: Routledge & Kegan Paul, 1986.
38. A tetraktys pitagórica é obtida a partir dos números triangulares: resultado da soma dos números inteiros
consecutivos a partir da unidade até cada um dos termos sucessivos da série. O triangular de 1 é a própria unidade -
princípio e origem da série dos números inteiros. O triangular de 2 é 3, polarização que produz de imediato o ternário,
o que explicita a representação geométrica da triangularidade: 1 corresponde ao topo do triângulo, 2 às extremidades
da base, e o próprio triângulo, em seu conjunto, é naturalmente a figura do número 3. O triangular de 3 é 6, que sendo
o dobro do ternário desdobra-se num novo ternário, reflexo do primeiro, formando o símbolo chamado Selo de
Salomão. O triangular de 4 é 10, a tetraktys, que simbolicamente se apresenta como a prefiguração da totalidade no
seio da principialidade (cf. René Guénon em Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada). A tetraktys, tal como a
entendiam os pitagóricos, tinha como representação e correspondência geométrica o ponto, a linha, o plano e o sólido,
reproduzindo uma sintaxe primordial dos 4 mundos, cuja analogia possível, na Opus Alquímica, com os 4 elementos
sugere o porquê de cada pedra poder ser, para Newton, multiplicada 4 vezes, sem no entanto conflitar com o
coeficiente 10 indicado por Altus.
39. Jung explora extensamente o simbolismo do denarius e suas correspondências com o mito da Igreja como corpo
místico no seu estudo das gravuras do Rosarium Philosophorum (ver A Psicologia da Transferência, Cap. X).
desconhecido adepto apelidado por Pierre Dujols de Cyliani, possivelmente o maior alquimista do
século dezenove, declara-nos no seu belo Hermés Devoilé que precisou passar 1.500 noites sem
dormir para obter finalmente a tão almejada pedra!

Por outro lado, Apolo simboliza também perfeitamente dois dos epítetos mais exatos
utilizados pelos participantes desta tradição: primeiro, a de que os alquimistas são “filósofos pelo
fogo” - pois é com o terceiro fogo, escondido no interior da matéria e posto a despertar pelo Adepto,
que se restaura a atividade divina da criação no plano da natureza e do homem. Segundo, a de que a
Alquimia é a verdadeira “arte da música”, ou “harmonia”: há que ouvir as vibrações, as notas que
saem do atanor cósmico para acompanhar as transformações de cores sofridas pela matéria no seu
interior. C. G. Jung, num de seus livros escritos antes de seus famosos estudos de alquimia, incluiu
uma discussão sobre Apolo que é em tudo oportuna:

“Essas imagens apontam para o deus-sol Apolo, cuja lira o distingue como um
músico divino. A fusão de som, fala, luz e fogo é expressa de um modo quase
fisiológico no fenômeno da “audição de cores”, isto é, a percepção da qualidade
tonal das cores e a qualidade cromática das notas musicais. Isto nos leva a supor que
deve haver uma identidade pré-consciente entre eles: os dois fenômenos possuem
algo em comum apesar de suas diferenças reais. Talvez não seja acidental que as
duas descobertas mais importantes que distinguem o homem de todos os outros seres
vivos, a saber, a fala e o uso do fogo, devam possuir uma base psíquica comum”.

(Symbols of Transformation, p. 105)

É esse dom cinestésico - fundante da potencialidade humana - que o alquimista quer


despertar em si, e o deus Apolo, músico e encarnação do fogo solar, simboliza-o plenamente. Jorge
Luís Borges, no seu encantador conto El Aleph (e fixe-se aqui que o aleph não é outra coisa que o
“microcosmo de alquimistas e cabalistas”), conta-nos o seguinte fato fantasiado:

“Os fiéis que freqüentam a mesquita de Amr, no Cairo, sabem muito bem que o
universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central...
Ninguém, claro está, pode vê-lo, mas aqueles que aproximam o ouvido à superfície,
declaram perceber, em pouco tempo, seu atarefado rumor...”.

É aqui o momento indicado para introduzir uma explicação, ainda que breve, sobre aquilo
que mobiliza por inteiro o alquimista e os elementos que submete às mais variadas operações: a
pedra filosofal. E ninguém melhor para ser citado, neste assunto, que Fulcanelli, o último Adepto
conhecido, e que fala da pedra numa linguagem adaptada ao mundo moderno: direta, desprovida de
alegorias e imagens irreais, quase “científica”; sem deixar, é claro, de ser surpreendente e desafiar
as categorias paradigmáticas de conceituação do mundo natural:

“...a pedra filosofal se nos oferece sob a forma dum corpo cristalino, diáfano, vermelho
quando em massa, amarelo depois de pulverizado, o qual é denso e muito fusível,
embora fixo a qualquer temperatura, e cujas qualidades próprias o tornam incisivo,
ardente, penetrante, irredutível e incalcinável. Acrescentemos que é solúvel no vidro em
fusão, mas se volatiliza instantaneamente quando é projetado sobre um metal fundido.
Eis aqui, reunidas num único sujeito, propriedades físico-químicas que o afastam
singularmente da natureza metálica e tornam a sua origem muito nebulosa...

“Os mestres da arte ensinam-nos que o objetivo dos seus trabalhos é tríplice. O que
procuram realizar em primeiro lugar é a Medicina universal, ou pedra filosofal
propriamente dita. Obtida sob a forma salina, multiplicada ou não, não é utilizável
senão para a cura das doenças humanas, a conservação da saúde e o crescimento dos
vegetais. Solúvel em qualquer licor espirituoso, a sua solução toma o nome de Ouro
Potável (embora não contenha o mínimo átomo de ouro), porque apresenta uma
magnífica cor amarela. O seu valor curativo e a diversidade do seu emprego em
terapêutica fazem dela um auxiliar precioso no tratamento de afecções graves e
incuráveis. Não tem nenhuma acção sobre os metais, salvo sobre o ouro e a prata, aos
quais ela se fixa e que ela dota das suas propriedades, mas, conseqüentemente, não
serve de nada para a transmutação.

“... Finalmente, se se fermenta a Medicina universal, sólida, com o ouro ou a prata


muito puros, por fusão direta, obtém-se o Pó de projeção, terceira forma da pedra. É
uma massa translúcida, vermelha ou branca segundo o metal escolhido, pulverizável,
própria somente para a transmutação metálica. Orientada, determinada e especificada
para o reino mineral, é inútil e sem ação nos outros dois reinos.”

(As Mansões Filosofais, p.154-156)

Grillot de Givry, autor do Musée de Sorciers, Mages et Alchimistes, não parece haver
seguido com atenção o que aqui se passa, pois diz tratar-se apenas das “operações preliminares da
Pedra filosofal” (p. 409, fig. 357). Justamente quando presenciamos a rubedo!
Frontispício do Aureus tractatus de philosophorum lapide (Tratado de ouro da pedra
filosofal).

O alquimista renascido como Apolo toca sua lira na cavidade da montanha solar. O
casamento harmônico entre o céu e a terra é indicado pelos triângulos ascendente (fogo) e
descendente (água) unidos ao centro formando o 'selo de Salomão', e pelas duas metades do
anel, inferior e superior, que mostram o sol, a lua e os planetas em sua região terrestre-
material e celeste-espiritual. A gravura traz a seguinte inscrição:

“As coisas que estão no reino superior também estão no reino inferior. O que é mostrado
pelo Céu é sempre encontrado na terra. Fogo e água corrente são opostos, feliz aquele que
consegue uni-los.”
DÉCIMA PRIMEIRA PRANCHA

Esta prancha, muito parecida com a oitava, indica-nos que o operador já entrou no regime
solar, isto é, já conseguiu obter o ouro dos filósofos, distinto do ouro vulgar. As diferenças em
relação à Oitava Prancha são sutis e significativas. Nosso jovem Mercúrio, em pé dentro do ovo,
pisa agora quase que diretamente sobre um sol que tem dez raios, e já não sete, como antes - daí,
portanto, a leitura de uma situação de splendor solis (esplendor solar), lembrando o título da
belíssima alegoria do Trismosin. Outro detalhe milimétrico está na cabeça do jovem deus, que, além
do pétaso, exibe também uma espécie de boné (ou máscara suspensa) com dois furinhos à guisa de
olhos e que, na mirada de Canseliet, dá-lhe um aspecto de coruja em vôo, pássaro noturno
consagrado a Minerva. A idéia é expressar (talvez) o profundo e vasto saber associado ao mercúrio
dos filósofos. É Canseliet que diz do Adepto: “Ele está no presente eterno, e ele sabe tudo que se
passou” (Le Feu du Soleil, p. 128).

Ainda outra mudança, que desafia a atenção do leitor, é que o pássaro que carrega o signo do
tártaro traz também o signo da sublimação, insistindo, quase redundantemente (pois o próprio
pássaro já indica o processo a que tanto nos referimos), para mais uma etapa de purificação da água
do espelho dos sábios. E, mais que redundância, quem sabe Altus queira passar aqui outra
mensagem sobre a Obra: que o signo introduzido pela águia representa também o signo astrológico
de Libra, emblema do equilíbrio, da justa medida. E, como sugere Martínez-Otero: o que é a
alquimia senão o magistério da balança?

Na parte inferior, o ambiente onde nosso casal trabalha tornou-se mais frugal, retiradas as
colunas e as ricas cortinas de cunho cerimonial. Em compensação o local ganhou mais duas janelas,
ficando possivelmente mais arejado e confortável. Continuam orando, a parceira sempre numa
atitude mais ativa, e a vela do forno indica que este está de novo aceso, possivelmente para
intensificar ainda mais a proporção da transmutação conseguida anteriormente.

Finalmente, se o Mutus nos convida à atenção e ao estudo paciente, há ainda outro detalhe,
sutil mas inconfundível, sobre o que se calaram nossos comentaristas (obviamente, não sei se por
ignorância, lapso, deliberada omissão ou por “inveja”, como acusa às vezes Canseliet a Pierre
Dujols): o sol cósmico, pleno de energia para enviar ao ovo mercurial, não olha para o mesmo lugar
que seus iguais da segunda e da oitava pranchas. Sua mirada se deslocou claramente para a
esquerda... indicando o quê? Provavelmente, alerta-nos para a intensidade do sol filosófico sob os
pés de Mercúrio.
Agora, se a observação minuciosa revela-nos o que outros talvez não tenham visto, não me
parece pertinente o seguinte comentário de Martínez-Otero: “O Hermes filosófico que se encontra
dentro do matraz sustentado pelos anjos, estava ali [na Oitava Prancha] sobre um terreno bem
desenhado; aqui, desaparecido aquele, apóia-se diretamente sobre o Sol e a Lua”. Ora, na prancheta
editada por Canseliet, é verdade que o terreno está mais nítido (e diferente, inclusive, na Oitava)
mas é suficientemente reconhecível na Décima Primeira, sobretudo no lado da lua. E questão de
atenção, cuidado, fixidez no olhar.

Stanislas de Rola, por seu lado, também insiste em observar que o solo se aplanou aos pés de
Mercúrio, que dois raios de sol penetram seu pé direito, e que três das serpentes do caduceu, agora
cravam os dentes no seu braço direito e que os pássaros têm a cauda consideravelmente encurtada.
De novo, fico sem ver a relevância dessas observações, que nada acrescentam à mensagem
filosófica da prancha. Vale a pena, à guisa de compensação, registrar a última frase de seu breve
comentário: “O Mercúrio dos Sábios é agora o Espelho da Natureza em que esta vê refletida suas
verdades secretas” (p. 237).

Quanto a Grillot de Givry, que havia errado para baixo em seu comentário à prancha
anterior, agora parece errar para cima, quando diz que esta imagem mostra “a Operação final e a
Apoteose hermética” (p. 409, fig. 358).

Já Bernard Gorceix, que parece ter visto o livro apenas através do Psicologia e Alquimia, de
Jung, acha que esta prancha toca também o tema do homúnculo e o vê “encerrado no ovo do Mutus
Liber, sob o aspecto de um Mercúrio roliço, que com um pé toca o Sol e com o outro a Lua” ( A
Bíblia dos Rosacruzes, p. 52).

Quanto a Jung, vê aqui o seguinte:

“Mercúrio no 'ovo do filósofo' (o útero, vaso alquímico). Como filius ele pisa no sol,
e na lua, indicadores de sua natureza dual. As aves denotam espiritualização,
enquanto os raios ardentes do sol amadurecem o homúnculo no vaso”.

(Psychology and Alchemy, p. 66)

Von Franz dá uma interpretação psicológica mais extensa a essa imagem

Mercúrio, como criança divina - símbolo de uma atitude nova, objetiva, que está
além do conflito - nasce do 'ovo filosofal' (o recipiente alquímico fechado). Como
produto da união de opostos, consciência e inconsciência, ele está de pé sobre o sol e
a lua. Os pássaros indicam a natureza espiritual (psíquica) do processo; os raios do
sol significam a importância do calor (emoção)”.

(Alquimia, p. 146)
DÉCIMA SEGUNDA PRANCHA

Prancha em tudo semelhante à Nona, indica mais um passo na condução do mercúrio a uma
escala superior. Como sintetiza Magophon, “há que recomeçar com as imbibições do flos coeli até
que o mercúrio, ávido delas, fique impregnado ao ponto de saturação” (p. 223). Novamente,
expõem-se os seis pratos grandes à ação do fluido celeste, com a diferença de que seu conteúdo
agora se agita e apresenta ondulações, causadas pela saturação e pela força maior da inseminação.
Canseliet vê no carneiro e no touro não só a representação dos meses mais propícios (neste caso,
note-se, há mais energia e vida no mês de maio, a julgar pelo fato de que o touro corre em estado de
máxima ereção), mas também os dois princípios que sustentam a Grande Obra (o mercúrio e o
enxofre).

Outro comentário relevante do discípulo de Fulcanelli refere-se ao papel das nuvens,


onduladas em torno da lua: ele observa que a noite deve ser calma e isenta de ventos, chuvas ou
nuvens carregadas. Daí encontrar uma falta grave na cópia do Mutus feita por Manget (1702), que
enfeita o céu com cúmulos e nimbos pressagiadores de grandes tormentas, insinuando inclusive
(detalhe que Canseliet não menciona) possíveis relâmpagos vindos da direção do sol. De qualquer
forma, o tom da prancha é tão claro como o da Quarta, indicando que a escuridão da nigredo na
Nona Prancha já foi inteiramente superada.

Quando se fala em saturação, neste caso, é preciso lembrar a questão explicada pelo editor
do Mutus e repetida por Otero: não se trata aqui, rigorosamente, de nuvens, mas de uma espessa
ebulição que a lua se adianta em dar regra. Essa infusão astral promovida pela dama da noite nos
faz penetrar na essência hermética do orvalho: um mediador, que resolve a oposição entre as águas
superiores e as inferiores. Daí a avidez com que, de novo, o deus Mercúrio vem apanhar mais fluido
celeste das mãos da operadora, para intensificar a cristalização do seu elemento.

Os seis pratos estão dispostos na terra formando um triângulo com a ponta para cima. É esse
o símbolo do fogo (secreto ou natural) que ajuda promover a saturação e que o mercúrio absorverá
com avidez, no afã de, finalmente, fixar-se. Prancha de significado a um tempo assaz realista e
profundamente filosófica, exibe com rara felicidade essa dialética hermética, tão presente na Tabula
Smaragdina, a que a Obra nos conduz inevitavelmente, através de inúmeras conjunções e
oposições: a espiritualizar tudo o que é corpo e a corporificar tudo o que é espírito.

De passagem, note-se, na edição de Manget, que na extremidade do campanário se situa uma


bola crucífera, símbolo de Marte, o elemento ferro, o qual, alerta-nos Titus Burckhardt, “indica
fixação e incidência do espírito no lado corporal” (Alquimia, p. 85). Tanto é disso que se trata que o
autor do Livro Mudo colocou esse campanário bem no meio das irradiações celestes, imprimindo a
todo o conjunto de operações significado mais que oportuno.

Fig. 15 - Transposição iconográfica do texto em latim da Tábua de Esmeralda de Hermes, texto máximo da
tradição hermética
DÉCIMA TERCEIRA PRANCHA

Pela mesma lógica de ordenação com que a prancha anterior se parecia à Nona, esta se
parece com a Décima. E, como no caso anterior, as pequenas diferenças tornam-se grandes. No
primeiro quadro vemos que o alquimista verte amoníaco no prato esquerdo da balança, e no direito,
em vez do flosculus de antes, verte um diminuto sol. As proporções também devem ser outras, a
julgar pelo ângulo, agora mais aberto, formado pelo fiel e pelo gancho de sustentação da balança.

O segundo quadro desta prancha é idêntico ao da Décima: primeiro se deposita o sol, logo o
sal, no balão sustentado nas mãos da consorte. Já no terceiro quadro, a operação de lacrar o matraz
apresenta uma significativa mudança: apesar do vaso estar em posição horizontal, a superfície do
líquido não se deslocou, permanecendo vertical quando deveria, pela lógica comum, estar plana e
na posição horizontal. Isso nos indica, em termos da Obra, a fixidez do mercúrio. Sobre o sol
filosófico, agora no lugar da corola, Canseliet pontifica: “estado primeiro da rosa futura e triunfal, a
flor hermética é substituída agora pelo sol a que deu nascimento” (Mutus Liber, p. 124). Sobre esse
sol, conquista do labor paciente e consciente do casal alquímico, diz-nos o seguinte o pouco
conhecido Hortulano, ao comentar a Tábua Hermética:

“Porque o mui verdadeiro sol é procriado pela arte. E diz-se mui verdadeiro em grau
superlativo, porque o sol engendrado por esta arte supera a todo sol natural, em todas
as propriedades naturais e em outras”.
(Explication de la Table d'Émeraude, p. 3)

A conquista desse pequeno sol não é menor façanha. Com ele se faziam (ou ainda se
fazem?) as extraordinárias e fascinantes lâmpadas ardentes capazes de queimar por milhares de
anos.40 Delas nos diz Mestre Fulcanelli:

“As lâmpadas ardentes, também chamadas perpétuas ou inextinguíveis, são uma das
mais surpreendentes realizações da ciência hermética. Fazem-se do Elixir líquido,
posto em estado radiante e mantido num vazio levado tão longe quanto possível”.

(Mansões Filosofais, p. 361)

40. Dentre os casos mais famosos, está a descoberta em Roma, em 1401, de uma lâmpada de Pallas no túmulo de
Túlia, filha de Cícero, que lá ardera por dois mil anos. A chama apagou-se quando fizeram um buraco na terra para
abrir a sepultura. Já no século XX há o relato de Hans Heuler: ao abrir o piso de uma rua em Budapeste, em 1930,
operários encontraram um sarcófago, sob cuja lápide jazia o corpo de uma jovem mulher, aos pés do qual brilhava uma
luz clara de um branco azulado, que se extinguiu pouco depois. Fala-se ainda de uma lâmpada de ouro que brilha há
centenas de anos dentro de um orifício fechado por uma pedra, no interior de um templo em Tranvancore, na Índia
Meridional (v. Fulcanelli, As Mansões Filosofais, p. 361).
Esse sol, que representa ainda o enxofre e o ouro dos sapientes, é em seguida remetido ao
seio do atanor, aceso com fogo de cocção. Esse calor externo é o poder coagulante do enxofre solar,
elevando assim o mercúrio a uma alta fixidez. Como na outra vez, a Obra se completa, passando por
todas as suas fases, cromáticas e sonoras; só que o círculo das cores é aqui bem maior, indicando a
intensidade do resultado. O casal divino se compraz em assistir à realização da Obra. Diana traz à
cabeça a lua em crescente e mostra seu arco agora retesado; Apolo traz nas mangas do casaco duas
faces de leão em vez de uma só, como tinha na Décima Prancha.

Essas fases representam a reunião do duplo princípio sulfuroso, isto é, dos famosos leão
verde e leão vermelho, indicando que o sol regeu todas as fases por que passou a matéria inicial da
Obra. O deus solar mostra também, nas botas, os três pontos em forma de triângulo, clássico sinal
que os maçons emprestaram da Ciência de Hermes. Nesse caso, as duas pernas do deus solar fazem
as vezes das colunas Jakin e Bohaz. O símbolo maçônico dos três pontos evidentemente cai como
uma luva nessa simbólica alquímica: o uno-trino - a pedra e os três princípios (sal, enxofre e
mercúrio). Resta estabelecer uma razão para a presente inversão operada no triângulo, já que na
maçonaria ele se apresenta com o vértice para cima da base.

Curiosamente, o casal inverteu a posição relativa das suas palmas que se tocam: na Décima
Prancha a palma de Apolo ficava por cima; nesta, é a de Diana que se apóia sobre a do consorte.

Os números também cresceram assustadoramente, multiplicados por dez os denários


alcançados na Décima Prancha. A locução et coetera indica que a progressão na obtenção do
produto final é ilimitada. Trata-se, aqui, da fase de Multiplicação, fase terminal da Grande Obra:
uma vez obtido o rebis, é só recolher mais fluido celeste, repetir todas as operações (inclusive com
o tempo reduzido) e assistir de novo à sucessão das cores da obra, após o que teremos multiplicado
a intensidade e as virtudes do lapis obtido. Sobre a Multiplicação, meta maior do operador, vale
citar o sempre útil Dicionário Alquímico de Guillaume Salmon (1645):

“A Multiplicação tem sido ocultada pelos sábios sob o manto da Fábula da Serpente
Hidra, em que, quando se lhe cortava uma cabeça, renasciam dez: pois a cada
Multiplicação a Pedra aumenta em dez vezes sua virtude: é nisto que consiste a
verdadeira Multiplicação”.

(citado em Canseliet, Mutus Liber, p. 125)


A diminuta rêmora, que já vimos nadando nas águas de Netuno, é um apto símbolo da
multiplicação: o mais ínfimo é capaz de capturar o mais imenso (ex infimo totus). Obtenhamos a
rêmora e conseguiremos, sem esforço, dirigir o destino da grande embarcação. Quem obtém a chave
alquímica é capaz de explicar como opera, de fato, o milagre bíblico da multiplicação dos peixes!41

41. E eis que encontro, na boca de São Paulo, palavras de um alquimista: “Eu plantei; Apolo regou; mas o crescimento
veio de Deus” (I Cor, 3.6)!
DÉCIMA QUARTA PRANCHA

Prancha extremamente rica, complexa, expressa a culminação da Obra alquímica e um


resumo da mesma; diz muito mais, portanto, que o indicado por Magophon, que afirma tratar-se
aqui dos instrumentos de trabalho. Para começar, mostra três fornos acesos, todos iguais entre si.
Cada um deles se relaciona com os três personagens diretamente abaixo, os quais vemos
sincronizados e com idêntico zelo, na tarefa de preparar a lâmpada da calefação do atanor: munidos
de tesouras, retiram a parte queimada da mecha e tornam a encher o reservatório de combustível.

Lembremos já aqui o quanto se insiste, em quase todos os textos dos Adeptos, no cuidado
com a regulagem do fogo, a Alquimia podendo ser inclusive entendida como a arte do controle do
fogo. Mais rica mesmo que a imagem prometéica, a Alquimia não rouba o fogo divino, mas se
propõe recriá-lo, como nos foi demonstrado na prancha anterior. Fernando Pessoa não o julgou
possível, mas a Alquimia não é pseudo-ciência, no sentido de reproduzir as coisas. Pelo contrário,
ela é uma atualização da serpente que une o Céu com a Terra.

Os personagens laterais são claramente duas mulheres com suas rocas fechadas enfiadas na
cintura; e o do meio é um menino, que abandonou temporariamente seu jogo (bola e raquete) para
cuidar do fogo do atanor. Perguntar-se-ia por que se retiraram momentaneamente os dois
alquimistas e deixaram em seu lugar duas simples fiandeiras e uma criança? Porque terminou o
processo de multiplicação e agora o que se consegue é demasiado fácil: multum in parvo (pouco
esforço e muito resultado). Altus indica-nos aqui inclusive uma das mais curiosas denominações da
opus filosófica: “Operis processio dicitur omne opus mulierum et ludus puerorum” (Todo o
processo da obra se chama trabalho de mulheres e brincadeira de crianças).42

Esta imagem, de alto significado hermético, talvez possua afinidades com a segunda via,
feita no vaso da natureza e não no vaso da arte, que, nas sábias palavras de Fulcanelli:

“Só reclama, de princípio a fim, o socorro de uma terra vil, abundantemente


espalhada, de tão baixo preço que, na nossa época, bastam dez francos para adquirir
quantidade superior àquela de que precisamos. É a terra e a via dos pobres, dos
simples e dos modestos, daqueles que a natureza maravilha até nas suas mais
modestas manifestações.”

(Mansões Filosofais, p. 327).

42. Traduzido por Canseliet de um manuscrito anônimo de Leipzig do século XIV (Mutus Liber, p. 119).
Ainda sobre a metáfora (ou não?) do ludus puerorum, Canseliet cita um texto raro de um
Adepto que explica o significado dos três jogos das crianças: “O primeiro jogo procura a matéria da
pedra. O segundo jogo aumenta a alma. O terceiro jogo prepara o corpo para a vida” (Mutus Liber,
p. 119). O esquema trabalhado por este anônimo parece mais completo do que o da maioria dos
comentadores, que identificam um primeiro momento, classicamente egóico, digamos, em que o
operador obtém a pedra e se depara com esta infinita fonte de poder: transmutação e elixir de
vitalidade perene representariam o primeiro jogo de criança; e um segundo, em que seu ser interior
se revoluciona e o alquimista passa a ser uma alma transformada, como a do místico (é o segundo
jogo, de intensificação da alma). Faltava uma caracterização do nível super-individual, divinizado,
ou imortal do Adepto, agora feito parte inseparável do Todo que é Uno: seu corpo já não é mais
prescindível e único, como o nosso, e sua alma dispõe agora como quer do corpo denso. 43 É o jogo
de Fulcanelli, de quem disse Canseliet: “Tenho a impressão... de que ele pode viver eternamente”
(Le Feu du Soleil, p. 126).

A preparação dessas três velas representa também os três fogos empregados na Grande
Obra. Assim resume Canseliet o saber de Artefius, autor do Liber Secretus:

“O primeiro - o mais nobre - é o fogo natural, que é também o espírito da vida oculto
na matéria; o segundo é o fogo secreto ou Vulcano lunático, que está enclausurado no
interior do ajudante salino, hialóide e composto pelo alquimista; o terceiro é o fogo
contra natureza, que nutre, excita e anima os precedentes e que produz todo
combustível”.

(Mutus Liber, p. 132)

Canseliet reproduziu ainda, no L'Alchimie Expliquée, uma linda imagem que aparece no
frontispício do desconhecido Le Texte d'Alchimie et le Songe Verd, de 1695, onde aparecem os
emblemas dos três fogos da Grande Obra (Fig. 16). Ele explica que lá estão o fogo elementar do
forno; o fogo da primeira matéria; e o fogo secreto, ou raio solar cristalizado dentro da Pedra
Filosofal. Esse terceiro, diz ele, “é o uno e único agente que pode provocar toda transmutação no
seio dos três reinos da Natureza” (p. 234).

Os próximos sinais hieroglíficos que devemos decifrar são os números em romano situados
ao lado dos três “simples”, no dizer do Adepto. Eles se referem às cores presentes nas três fases da
Obra, representadas pelos três fornos. O VI refere-se aos seis tons revelados pelo prisma no interior
43. Sem querer forçar muito as comparações intercontextuais, esse terceiro jogo seria algo como um grande samadhi
(o êxtase ou o acesso à consciência cósmica, segundo a doutrina hindu), tal como o podemos conceber através dos
relatos sobre as vidas de Ramakrishna, Vivekananda, Yogananda etc.
da opus nigrum (violeta, azul, verde, amarelo, alaranjado e vermelho). Esse espectro prismático
interiorizado é seguido, no labor operatório, pelo II, referente às duas cores presentes a meio
caminho da cocção final: a cauda pavonis (cauda do pavão), arco-íris instantâneo que nos brinda o
negro da putrefação e a brancura que lhe segue com a realização da opus argêntea, ou lunar.

Fig. 16 - Os três fogos da Grande


Obra

Somando-se a essas cores as duas últimas que conduzem à fase solar (o amarelo e o
vermelho intenso), encontramos o número X que vem representar a totalidade, a completude.
Atentemos aqui para o detalhe de que a chama controlada pelo menino está desnivelada para cima
com relação à das mulheres, indicando que o fogo, que vinha crescendo da nigredo à albedo, deverá
de novo diminuir para se alcançar as fases restantes.

Canseliet explica que o vermelho que encerra o período tenebroso do trabalho foi sempre
chamado de falso diante do rubi (ou vermelho-fogo, ou carmesim) final, que caracteriza o Lapis
Philosophorum, ou Medicina Universal, ou Pedra que traz o signo do Sol. E, com extrema
elegância, desenvolve um raciocínio digno de seu Mestre:

“A Alquimia é a separação do impuro da substância mais pura. A mesma idéia de


progressão constante, de melhoramento concomitante na pessoa íntima do artista, é
desvelada pelo vocábulo do que os alquimistas queriam que designasse a cor e a
natureza da Pedra Filosofal: o púrpura, proveniente do latim purpura, que é o
vermelho subido; na alquimia do Verbo, o puro do puro, pyr pyrós, isto é, o fogo do
fogo”.

(Mutus Liber, p. 131)

No terceiro quadro são exibidas as duas partes da cocção discutidas acima; a da primeira, à
esquerda, pela pedra em branco e a segunda pela pedra em vermelho. Ambas as fases alcançaram
sua plenitude, pois tanto a lua da albedo quanto o sol da rubedo brilham ao máximo de sua
potência, exibindo seus dez raios de vibração e irradiação. Ao lado de cada atanor está colocada
uma esfera dentro da qual se vêem três signos alquímicos da jornada - um pequeno círculo na
extremidade de uma linha -, indicando que as cocções, para as duas Obras, deverão estender-se por
três dias.

No meio do quadro, entre os fornos, vermos uma seqüência de instrumentos de trabalho: o


pilão e o morteiro para as triturações, a escumadeira usada pela mulher na quinta prancha, a
balança, agora pendurada, e seus dois grupos de pesos encaixados uns dentro dos outros. É bom
lembrar que regressamos ao tipo de forno retangular utilizado pelo casal até a Sétima Prancha, antes
que transferissem o mercúrio fixado para o atanor.

Passando ao quadro inferior, vemos ressaltadas duas copas emborcadas, de forma análoga,
ainda que de tamanho reduzido, aos recipientes contendo a Obra no quadro acima. Elas derramam
lentamente um líquido, escasso e espesso, sobre dois discos de fino borde que terminam num cabo
com punho. A copa da esquerda verte o líquido com precisão e cobre com ele a placa do disco; a da
direita, porém, falha na inclinação e transborda, deixando o disco vazio. A mulher faz um gesto com
a mão direita, levantando os dois dedos em imitação dos chifres do diabo. Já o homem levanta o
indicador num sinal de vitória. Ambos levam a mão esquerda à boca, pedindo silêncio.

Canseliet afirma que a mulher expressa com o seu sinal (negativo) a gravidade da falta,
enquanto o homem avisa que acertou. Se aceitarmos sua interpretação teremos que admitir que o
alquimista alcançou a obra em branco, mas falhou no estágio final da Grande Obra em vermelho.
Isto não me parece convincente, pois o lapis foi obtido, tal como o celebra intensamente a última
prancha ao apresentar-nos a transcendência alcançada pelo Adepto. Por outro lado, Serge Hutin
acha que os gestos do casal de alquimistas mostrados nas pranchas Dois, Oito e Onze são mudras,
isto é, gestos rituais com as mãos e os dedos, próprios da tradição tântrica hindu. 44 Infelizmente não

44. Os mudras são equivalentes energéticos e simbólicos dos mantrams, esses, expressões orais concentradoras e
transmissoras de energia espiritual.
cita nenhum texto da tradição alquímica que possa ajudá-lo a sustentar essa tese. Lembremos
inclusive que Canseliet negou veementemente, quando pressionado por Robert Amadou, que
existisse alguma equivalência ou correspondência entre a alquimia e o tantrismo. O interesse, para
nós, da conjetura de Hutin, jaz no fato de ele haver identificado justamente o Mutus Liber como o
expoente da tradição alquímica ocidental que revela as conexões (vistas ao menos por ele) com o
tantrismo.

Sobre esse assunto, distancio-me tanto de Canseliet quanto de Hutin. Quanto ao primeiro,
parece-me evidente que o contexto geral do livro, que nos conduz do sonho à realização,
desautoriza essa leitura de um erro, justamente no final. Sobre a hipótese dos mudras, quem já os
viu reproduzidos em livros verá que são infinitamente mais complexos que os gestos elementares
como o “V” de vitória e os “cornos” aqui mostrados. Acrescente-se ainda o fato de que o livro só
nos apresenta um gesto de oração do homem e um da mulher, repetidos nas três pranchas em que
são vistos frente ao forno. Para mim, os sinais em discussão são uma outra expressão da integração
dos opostos: o homem exibe um signo solar e a mulher um signo lunar; 45 positivo e negativo, fixo e
volátil integram-se e complementam-se circundando silenciosamente o mercúrio dos filósofos (ou
“mensageiro hieroglífico”, na imaginativa terminologia de John Dee), exposto triunfalmente entre o
casal como um Santíssimo a ser adorado.

Há que se observar também algo que tem escapado aos comentaristas: enquanto a soror
continua, como sempre, de olhos abertos, o homem está agora de olhos fechados - o que quer dizer:
uma vez conquistada a rubedo, já pode operar exclusivamente com a visão interior. Já na edição de
1702, o alquimista está de olhos abertos. Trata-se de mais um detalhe modificado por Manget e que
não foi detectado por Canseliet. Os olhos fechados do alquimista são coerentes com o que será
mostrado na Décima Quinta Prancha.

Sobre o sinal de segredo, Dom Pernety incluiu no seu Dicionário um verbete sobre
Harpócrates, o deus do silêncio, cuja estátua se encontrava nos templos egípcios. Mostrava dois
dedos da mão sobre a boca fechada, recomendando ao iniciado segredo acerca do que lhe foi
revelado. Uma olhada atenta nos permite ver inclusive que nosso alquimista, como Harpócrates,
leva de fato dois dedos à boca.

Observo também que, neste quadro, aparecem novamente as duas colunas, Jakin e Bohaz - o
que indica, conforme já havíamos sugerido na Introdução, que o Mutus Liber, sendo uma produção
tardia da tradição, exibe símbolos que são comuns tanto ao movimento rosacruz quanto à

45. Como o resumiu classicamente Michael Maier: “O sol e sua sombra completam a Obra”. (Atalanta Fugiens,
Emblema XLV).
maçonaria.

Stanislas Klossowski de Rola oferece aqui uma leitura completamente distinta: para ele,
devemos ler, no indicador levantado do alquimista, que o primeiro passo em direção ao Mercúrio
Filosófico consiste em efetuar uma Dissolução (solve). O segundo, indicado pelos dedos da mulher,
é uma Coagulação (coagula). C. G. Jung vê aqui “o artifex e sua soror mystica fazendo o gesto do
segredo no fim da Obra” (Psychology and Alchemy, p. 482).

Quanto ao disco com cabo onde se derramou a Obra lunar, deve ser o mágico espelho da
natureza, espécie de aleph borgeano, sobre o qual os autores pouco falam e com o qual o alquimista
é capaz de surpreender todos os segredos do mundo. É impossível furtar-se aos comentários que
Fulcanelli faz ao espelho sustentado pela mão esquerda da estátua da Prudência no Túmulo de
Francisco II na Catedral de Nantes:

“É neste espelho, dizem os mestres, que o homem vê a natureza a descoberto. Graças


a ele, pode conhecer a antiga verdade no seu realismo tradicional. Porque a natureza
nunca se mostra a si mesma ao pesquisador, mas só por intermédio deste espelho que
dela guarda a imagem refletida... De modo que, estudando com paciência esta única e
primitiva substância, parcela caótica e reflexo do grande mundo, o artista pode
adquirir as noções elementares duma ciência desconhecida, penetrar num domínio
inexplorado, fértil em descobertas, abundante em revelações, pródigo de maravilhas,
e receber por fim o inestimável dom que Deus reserva às almas de escol: a luz da
sapiência, da sabedoria”.

(Mansões Filosofais, p. 463)

Deixo aqui ainda uma outra pista para o leitor curioso: o que fazem essas pinças, logo
abaixo do frasco mercurial? Canseliet, que colocou um trecho do texto de seu Mestre, que
reproduzimos acima, ao comentar a Décima Primeira Prancha, não levou em conta outra
coincidência: a Prudência de Nantes (Fig. 17) carrega na mão esquerda o speculum creationis
(espelho da criação) e na sua direita mostra um compasso aberto de pontas secas em tudo análogo
às pinças abandonadas nesta nossa Décima Quarta Prancha! Não são os dois, compassos rombudos
e pinças, espéculos, por intermédio dos quais também nos aproximamos dos íntimos segredos da
natureza?

E no frasco central da figura, a vitória do espírito sobre a matéria e da matéria sobre o


espírito: o espírito material foi ali fixado com tal plenitude e maestria que o ovo pode estar agora
aberto. O mercúrio dos sábios absorveu, ao extremo de sua purificação, o fogo secreto advindo do
fogo lunar, a matéria argêntea, e do princípio solar, do ouro (vemos o hieróglifo da lua em cima e o
ponto no círculo embaixo, unindo o hieróglifo do mercúrio com o do sol).

Fig. 17 - A Prudência - Estátua na Catedral de Nantes

Finalmente, o famoso lema, ou conselho, do casal de devotos para quem quer que deseje
iniciar-se na Ciência de Hermes, mensagem simples tantas vezes repetida e nem tantas posta em
prática:

REZA
LE, LÊ, LÊ, RELÊ,
TRABALHA

E ENCONTRARÁS.

Este é possivelmente o lema mais repetido em toda a literatura alquímica pós-renascentista.


Entre tantos planos possíveis de significação condensados por essas poucas palavras, Thierry Page
optou por ver nelas a via mística da alquimia:
“O conhecimento para que se trabalha é o conhecimento de Deus, a leitura que se faz
é da obra de Deus. Pois a pedra é assim chamada por todos os alquimistas sem
exceção: Dom de Deus. Esta é a expressão mais clara da mística alquímica”.

(Encyclopédie des Mystiques, Tomo II, p. 240)

Yvette K. Centeno, editora do fascinante Ennoea, também lê a mesma idéia nesse lema do
Mutus:

“O alquimista, como místico, tem acesso à Verdade, ao Absoluto. A via não é fácil.
Ora, lege, lege, lege, relege, labora et invenies... É necessária a oração, a meditação
prolongada, o trabalho, até se obter a Iluminação final”.

(Cinco Aproximações, p. 63)


DÉCIMA QUINTA PRANCHA

Chegamos finalmente à última imagem do Livro Mudo. Ele nos propôs revelar o inteiro
processo alquímico, que se realizou ao nível da matéria (lembremos do mercúrio brilhando dentro
do frasco na prancha anterior) e também ao nível humano, do operador que a conduziu ao estado de
perfeição em que agora se encontra. Esta prancha, além de relacionar-se com as anteriores, deve ser
vista como uma evidente resposta à primeira. O sonho de nosso sonhador parece ter-se finalmente
realizado. A escada que o despertou para dar início à jornada, jaz agora no chão, sem uso. Como o
mercúrio e o flos coeli, essa escada também vem representar a operação de contato e ligação entre o
mundo superior e o mundo inferior.

O neófito, que no princípio identificava-se com Jacob, passou a ser, ao longo dessa opera
muda, também Hércules; pois a alquimia, além do trabalho de Hermes, é também trabalho de
Hércules. E aqui jaz - morto, extenuado, inerte: cada um vê aqui o que sente -, ainda revestido na
pele do leão de Neméia. Vê-se com nitidez a cabeça, uma pata, a cauda do felino e a clava com que
o dominou. Vale lembrar que esse leão descendeu da órbita da lua, enviado por Diana para assolar a
floresta de Neméia. Sua eliminação significa a conquista do princípio lunar (ou sombrio, na
linguagem de Michael Maier) que presidia a natureza quando do início da Obra, tal como nos havia
mostrado a Primeira Prancha, iluminada apenas pela lua.

O sonhador, que conservou a mesma roupa seiscentista enquanto lia, fazia as operações e
rezava, agora está nu. Sublimou sua parte superior, e seu corpo, confundido com o de um animal, se
apresenta com o aspecto inicial da concepção trinitária do homem presente na alquimia: nos termos
de Plutarco, um dos primeiros grandes formuladores dessa cosmovisão, ele é agora não mais que a
Terra (corpo físico), acima da qual se colocam a Lua (alma) e o Sol (espírito). Essa trindade inferior
no plano terrestre é na verdade a mesma que vemos no plano celeste: o neófito, transcendido,
tornou-se agora um Adepto, um imortal, anônimo para o plano terrenal, cuja transfiguração recente
está sendo celebrada pelos dois anjos bebês que o coroam com as rosas. Esse novo imortal também
exibe nas mãos, junto com a corda que segura, duas rosas gêmeas, uma com sete folhas (a Branca) e
outra com nove (a Vermelha). O significado profundo dessas flores nos é dado por Martin Ruland: a
branca é o símbolo da vida e a vermelha, da imortalidade. O Mutus Liber aqui diz-nos que no fundo
essas duas rosas são uma só: quem realizou a vida, alcançou a imortalidade.

Entre essas duas trindades está o casal hermético, símbolo da perfeita coniunctio, da
integração dos opostos (eles se dão as mãos como antes o fizeram Diana e Apolo). São símbolos
também do mercúrio e do enxofre que agora, superadas suas diferenças de natureza a ponto
inclusive de tê-las aqui intercambiadas (pois é esta a única imagem do livro onde a lua está do lado
do homem e o sol do da mulher), transmitem uma mesma mensagem para o Adepto transcendido,
que sai simultânea de suas bocas: Oculatus abis - “Vais, clarividente”. Ou: “Enfim, abriste os
olhos”.

Há ainda uma outra cabala possível na mensagem, dependendo de como se separam os


conjuntos de letras: Oculatus ab is: “Dentre estes saiu o clarividente”. É possível supor que o autor
do Mutus Liber tenha sido ele mesmo um adepto e provavelmente seu próprio editor, Jacob Sulat,
pois OCULATUS ABIS é um anagrama de IACOBUS SULAT; é ele que parte clarividente e mudo,
depois de deixar-nos algumas pistas do caminho a seguir.

A prancha nos ensina, além disso, a reconhecer o que é clarividência: o homem nu, inerte,
está de olhos fechados. O Adepto, porém, vai de olhos abertos.

Pascal Bernuau oferece uma interpretação para a duplicação da frase Oculatus abis. O
Adepto torna-se duplamente clarividente, “porque ele possui agora a dupla bússola, que lhe permite
conhecer o pólo e orientar seus passos segundo a estrela polar. Isto, óbvio, a nível experimental,
mas também ao nível íntimo do Ser reconciliado com o seu Criador” (Épignôsis, N° 19, p. 92).

Yvette Centeno, num outro ensaio sobre Alquimia como via mística, traduz,
inteligentemente, oculatus por iluminado e vê o Adepto, que agora alcançou a iluminação, “subindo
em direção ao sol, ao céu alquímico" (Literatura e Alquimia, p. 99).

E a propósito de iluminação, tem-se a impressão de que o alquimista está de novo, como na


prancha anterior, de olhos fechados. E também não olhava para fora quando sonhava na Primeira
Prancha. É esse cego exterior que, ajoelhado, levanta a cabeça para cima e diz para o homem
divinizado (pois está de torso nu como os deuses): “Agora vais com olhos”. Tudo isso parece
apontar para uma grande alegoria do olhar iniciático no Mutus Liber. Enquanto manteve os olhos
abertos, recolhendo orvalho, controlando o fogo, efetuando medições, o alquimista nada via. A
visão da pedra em rubi foi a última que necessitou, simbolicamente, do mundo exterior. A partir do
instante em que capturou, no interior do ovo filosófico, um raio reflexo da luz solar (a lux
obnubilata que nos descreve um anônimo do século XVII), libertou-se das trevas aparentes e com
isso prescindiu da visão comum. Na linguagem místico-alquímica de Boehme, o dom de Deus que
encontrou foi justamente ver o mundo com os olhos de Deus.

O Mutus Liber nos conta a aventura da Grande Obra do ponto de vista do alquimista; a
mulher, como boa Dame Perenelle, é a ajudante de oração, leitura e operação; daí manter os olhos
abertos de quem faz perene vigília até o final, consistente inclusive com o fato de que, aqui, quem
transcendeu foi um homem e não uma mulher.

Chamo esta prancha de “A morte do alquimista”: morreu o homem comum para que o Dom
de Deus chegasse ao verdadeiro alquimista. Como diz Fernando Pessoa, “o iniciado tem que morrer
para si mesmo, ou antes, que morrer-se” (citado em Centeno, 1985: 53). O homem-morto se apóia
sobre o leão, símbolo da matéria inerte. A pele do leão, apoio do corpo, representa o mesmo que a
pedra da Primeira Prancha: o estado bruto da prima materia. Conectando essa imagem aqui com
uma outra célebre alegoria alquímica, nosso Hércules filosófico foi à caça do Leão Verde e
morreram ambos - o lado vil da matéria, representada pelo leão, e o lado vil da humanidade, do ego
aprisionador do espírito, representado pelo corpo inerte do caçador.

Esta imagem sintoniza, ainda, com a famosa lenda de Wei Po-Yang, o maior alquimista da
história da China: após descobrir o elixir da imortalidade, deu-o de beber ao seu cachorro e depois
bebeu-o. Ambos morreram, para depois ressuscitarem como Imortais. Julius Évola expressa muito
bem essa situação, citando Plutarco: “A alma do homem no momento da morte experimenta a
mesma paixão que aqueles que foram iniciados nos Grandes Mistérios”. Cita também Jacob
Boehme: “A morte é o único meio mediante o qual o espírito pode mudar de forma”. E arremata
com suas próprias palavras: “A diferença está em que a 'morte filosofal' - mors philosophorum - é
ativa: não se trata do corpo que, ao desintegrar-se, perde a alma, mas sim da alma que, concentrada
no seu poder, se desembaraça do corpo” (A Tradição Hermética, p. 130).

A Alquimia reclama a necessidade da morte. Só realiza a Obra quem experimenta a Morte.


Eis por que os alquimistas chamavam a sua arte de Filosofia. Pois, como disse Cícero, “Tota
philosophorum vita commentatio mortis est” (cf. Tusc., 1-74) Essa frase nos chegou à era moderna
via Montaigne, que a utilizou num ensaio famoso: “Toda a vida dos filósofos é uma preparação para
a morte”.

Ainda sobre o tema da morte - ponto de fuga, afinal, do esforço sobre-humano a que se deve
submeter o alquimista -, Canseliet cita em Deux Logis Alchimiques (p. 124) uma inscrição na porta
lateral da misteriosa Villa Palombara que nos deve servir de alerta:

QUI POTENTIS
NATURAE
ARCANA REVELAT
MORTEM QUERIT

“Aquele que Desvela os Arcanos da Poderosa Natureza Procura a Morte”


Apoiando-nos uma vez mais na convenção iconográfica implícita nas Pranchas, o fato do ser
humano transcendido estar de torso nu aproxima-o da representação de um deus, o que nos leva a
supor haver uma identidade entre o Adepto e Júpiter (representado inclusive na Terceira Prancha
com a mesma barba). Uma vez realizada a Grande Obra, nosso alquimista também passou a ser um
guardião do raio criador. Além disso, ambos representam agora o “estado jovial” que Abraham
Frankenberg atribuiu ao metal jupiteriano - o Adepto, confundido com Júpiter, passa a comungar da
juventude eterna.46

Jung diz desta imagem o seguinte:

“A completude do processo. Inscrição: “oculatus abis” (provido de olhos, segues teu


caminho). Hermes como Anthropos, unido com o artifex e a soror pela corda tripla.
Abaixo, Hércules, um símbolo favorito por causa da sua opera. Ao fundo, a escada
que já não é mais necessária”.

(Psychology and Alchemy, p. 395)

Anselmo Caetano, cuja obra foi recentemente redescoberta por Y. K. Centeno, completa
assim seu comentário sebastianista ao Mutus Liber:

“Na última figura do mesmo livro, acharás o mesmo homem dormindo, e sonhando
com uma grande Estátua à sua vista, a qual está suspensa no Ar, como no ar estava
suspensa, a que viu Nabuco sonhando: Statua sublimis stabat”.

(Ennoea, p. 149)

Esta última prancha nos mostra também o caráter solitário do trabalho alquímico. O livro
começa com o adepto sozinho, sonhando, até que um anjo o desperta para o lusus serius (a
brincadeira séria, título de uma obra de Michael Maier). A partir da Segunda Prancha, sua consorte
o acompanha durante todas as operações. No fim, cumprido o ciclo do sonho, da longa vigília,
sucede a transfiguração: após longos anos ao pé do atanor, orando e laborando, o jovem iniciante
morre; o operador incansável, amadurecido, continua a harmônica relação de troca com sua
consorte; e finalmente, solitário e anônimo, a um só tempo distante e presente a tudo o que ocorre
no plano terrenal, surge o Adepto, coroado de louros e portador de uma barba, que nos faz lembrar a
própria figura do Cristo-Emanuel, Jesus redivivo.

46. Também Adam McLean e Jacques Van Lennep viram a figura de Júpiter nesse homem coroado pelos anjos. Já
Johannes Fabricius acha que o que se representa aqui é o Mercúrio dos filósofos, ou o Cristo que ascendeu.
Aquela pequena oliveira tocada pala lança de Minerva Vitoriosa que divisamos no ex-libris
da Academia Rupelense deu agora todos os seus frutos. E os dois ramos da prancha inicial, que se
fechavam acima da cabeça do anjo, agora se abrem, deixando livre a coroa do Adepto.

A primeira prancha era lua pura, noite negra quando se sonha e se depara com o peso da
matéria inerte; a última é puro sol, que tudo chama para si e que tudo deixa brilhar em seu corpo de
glória.
IV. BIBLIOGRAFIA

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L'ALCHIMIE ET SON LIVRE MUET 1967 Réimpression premiére et intégrale de l'édition


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de Fulcanelli à Paris chez Jean-Jacques Pauvert, 1967. Tradução espanhola: La Alquimia y su Libro
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Barcelona: Muñoz Moya y Montraveta Editores. Biblioteca Esotérica, N. 30, 1988.

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1974.

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MCLEAN, Adam - A Commentary on the Mutus Liber. Grand Rapids: Phanes Press, 1991

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THE WORDLESS BOOK - Em: Neil Powell, Alchemy, the Ancient Science. Londres: Aldus Books
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SAINT-DIDIER, Limojon - O Triunfo Hermético. Reprodução, sem referência ao título da obra,


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3. R E PR OD UÇ ÃO D AS P R ANC H AS EM COR

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4. R E PR OD UÇ ÃO D AS P R ANC H AS M I S TAS

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5. C OME N TÁRIO S

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CANSELIET, Eugéne - L'Alchimie Expliquée sur ses Textes Classiques. Paris: Jean-Jaques Pauvert,
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DE ROLA, Stanislas Klossowski - Alchimie. Florilége de l'Art Secret. Paris: Éditions du Seuil,
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FLAMEL, Nicolás - “Les Figures Hieroglifiques”. Em: Les Oeuvres de Nicolás Flamel. Paris:
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FULCANELLI - Les Demeures Philosophales. Paris: Omnium Littéraire, 1960. Ed. portuguesa, As
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HORTULAIN - Explication de la Table d'Emeraude de Hermes Trismegiste. Paris: Éditions Jobert,
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V. GLOSSÁRIO

A terminologia alquímica é obviamente vasta, complexa e, muitas vezes, um tanto confusa e


enganosa. Por tal motivo apresentamos aqui um guia simplificado dos principais termos utilizados
nesta obra, com o intuito primeiro de facilitar a leitura do livro. Contudo o leitor poderá utilizá-lo
também como material de estudo: lidas em seu conjunto, essas definições poderão transmitir uma
compreensão básica da visão alquímica do mundo.

ADEPTO - o alquimista que realizou a “pedra filosofal”

AGRICULTURA CELESTE - metáfora do trabalho alquímico, que implica a colheita do orvalho celeste
e do nostoc na intempérie noturna. Esse termo ajusta-se perfeitamente ao caso do Mutus Liber.

ALBEDO - a obra em branco; seu aparecimento indica que já se realizou a transmutação dos metais
em prata. Também chamada “condição de prata”, “condição de lua”, ou “cisne”. Costuma ser
representada pela deusa Diana. A albedo surge após a nigredo (ou mais precisamente após a cauda
pavonis). Também chamada Leukosis.

ALKAHEST - a água que queima, o solvente universal, procurado por séculos pelos alquimistas por
sua capacidade de converter todos os corpos à sua matéria líquida primária sem imprimir-lhe o
mínimo sinal de corrosão.

ARTIFEX - o artífice, o alquimista enquanto operador, o lado prático do filósofo.

ATANOR - o forno alquímico, onde a matéria prima é tratada até converter-se em pedra filosofal; o
atanor é o útero onde se aquece o ovo filosófico, é também o microcosmo, símbolo central de todo o
imaginário alquímico.

AUREA CATENA HOMERI - literalmente, a corrente de ouro de Homero; modo de designar a tradição
iniciática ininterrupta, a comunicação secreta entre os alquimistas através das idades. É também
título de uma obra de inspiração rosacruz, publicada em 1723 e que muito influenciou o jovem
Goethe, entre outros românticos.

CAUDA PAVONIS - literalmente, cauda do pavão, também chamada camaleão; imediatamente após o
surgimento da nigredo, a obra exibe, num relance, todo o espectro de cores do arco-íris e logo
regressa à escuridão da nigredo. Essa cauda pavonis estimula o filósofo a prosseguir;
alegoricamente, expressa que tudo está contido no negro: vivenciá-lo significa abrir-se a todas as
possibilidades de ser.

CHAOS - estado do cosmo em que nada se distingue além da prima materia. Em alguns tratados
alquímicos tardios, como o Aurea Catena Homeri, pode significar o estado primordial do cosmo, ou
ser mesmo um sinônimo da prima materia em sua condição de indiferenciação elementar. Visto do
outro lado do caminho para a opus, indica cegueira de visão filosófica.

CISNE - Outro nome da albedo, a obra em branco.

CITRINITAS - coloração amarela apresentada logo após a albedo e que prepara, de certo modo, o
surgimento da rubedo.

CONIUNCTIO - conjunção; estado de união dos princípios masculino e feminino, solar e lunar.

DONUM DEI - dom de Deus; a intervenção, inexplicável e gratuita, de toda a ordem cósmico-
temporal, que coloca o alquimista na direção certa.

ENXOFRE (sulphur) - princípio fixo, masculino; seu lado visível, sólido, está na terra; seu lado
oculto, sutil, está no fogo.

EX FOETIDO PURUS - literalmente, o puro emana do infecto, lema que se conecta em significado à
idéia da Alquimia como uma opus contra naturam: o ouro filosófico só é alcançado quando se
vence o estágio de putrefactio da prima materia.

EX INFIMO TOTUS - literalmente, “do pequeno tudo sai”; lema alquímico importantíssimo: é o mais
ínfimo que captura o imenso.

FLOS COELI - orvalho celeste (ver).

FILIUS - pedra filosofal incipiente, nascida no ovo filosófico como resultado da conjunção de sol e
lua.

FILÓSOFO - alquimista; também chamado “filósofo pelo fogo”.

GRANDE OBRA - obra filosofal, a obtenção da “pedra dos filósofos”.


HARMONÍACO - distinto do vulgar amoníaco; sal ou ácido em “harmonia” com os compostos do
magistério.

IMAGO MUNDI - literalmente, imagem do mundo; refere-se às imagens alquímicas que visam
expressar a totalidade dos princípios operando no cosmo.

LAPIS PHILOSOPHORUM - a pedra filosofal, a pedra dos filósofos, objetivo último da caminhada
alquímica; também chamado simplesmente lapis.

LUDUS PUERORUM - brincadeira de crianças; expressa o trabalho extremamente fácil do artifex,


depois de alcançado o estágio de multiplicação; expressão equivalente à opus mulierum.

LUSUS SERIUS - brincadeira séria; expressão para designar a opus: a outra brincadeira, distinta da
comum, que implica o empenho de toda uma vida na busca do lapis.

LUX OBNUBILATA - luz oculta, luz escura; típica expressão alquímica: assim como o “vulcão
lunático” é um fogo secreto, a luz escurecida é aquela que não emana do Sol, mas que é gerada no
âmago da matéria trabalhada no ovo filosofal.

MAGISTÉRIO - conjunto das operações que conduzem à realização prática da pedra filosofal.

MAR FILOSÓFICO - estado do composto em que começam a se separar e se distinguir os elementos


fixos e os voláteis. É na situação do mar filosófico que se põe em prática o lema básico da alquimia:
solve et coagula. Daí também a metáfora do trabalho alquímico como uma “pescaria filosófica”.

MATERIA PRIMA - matéria bruta, mescla aleatória de metais vulgares encontrada em qualquer lugar
e condição, e que deverá ser trabalhada alquimicamente para converter-se em pedra filosofal.

MERCÚRIO - princípio volátil da matéria prima; seu lado visível, líquido, está na água, seu lado
oculto, gasoso, está no ar.

MULTUM IN PARVO - a riqueza surge da ninharia; ou pouco esforço e muito resultado. Lema
alquímico equivalente a ex infimo totus.

NIGREDO - o mesmo que opus nigrum; obra em negro, primeiro estágio da opus alquímica: o
composto da matéria prima é submetido às operações e apodrece, assumindo o negrume
característico. Também designada por putrefactio (putrefação), caput corvi, cabeça de corvo, ou
cabeça de morto, ou ainda o negro mais negro que o negro. Quando o alquimista depara-se com a
nigredo, sabe que a obra não tarda a realizar-se

NOSTOC - rara alga noturna que muitos consideram o perfeito ponto de ligação entre o plano celeste,
ou hermético, e o plano terrenal.

OPERAÇÕES - inúmeros são os modelos de operações alquímicas; uma das seqüências mais
comumente mencionadas na literatura é: calcinatio, sublimatio, solutio, putrefactio, distillatio e
coagulatio, após o que se alcançaria a tinctur, a tintura, a forma liquefeita que, às vezes, o lapis
pode assumir. O significado prático dessas operações é evidente, assim como seu simbolismo.

OPUS CONTRA NATURAM - trabalho contrário à natureza; lema que indica o caminho seguido pelo
alquimista, que inverte simetricamente a via supostamente tomada pela Criação: enquanto a obra da
natureza consiste em decompor e desgastar a unidade anteriormente criada, a opus philosophorum
parte justamente do degradado, buscando recriar a unidade perdida.

OPUS MULIERUM - trabalho de mulheres; como o ludus puerorum, descreve a facilidade que
aguarda o filósofo, após dominar o processo de multiplicação: todo o esforço anterior é agora
compensado.

OPUS PHILOSOPHORUM - obra dos filósofos; também chamada de Grande Obra, o trabalho
alquímico realizado. Para muitos, a finalidade da opus não é primariamente a transmutação, mas
isolar o elemento que permitiu a própria criação do mundo.

OUROBOROS - serpente que morde a própria cauda (sentido literal do termo grego); símbolo
hermético da totalidade, da reconciliação e integração do caráter essencialmente paradoxal da
matéria e do mundo terrenal. Imagens da serpente ouroboros são encontradas em papiros egípcios
do séc. XVI a.C.; no manuscrito Chrysopeia, da alquimista alexandrina Cleópatra, essa imagem
enfatiza a unidade subjacente ao todo; daí a inscrição no centro da imagem, én to pan (Um, o Todo).

OVO FILOSÓFICO - vaso onde se opera a obra metálica; sêmen mineral, análogo ao feto do reino
animal.

PÓ DE PROJEÇÃO - substância misteriosa obtida a partir da lapis philosophorum e que ao ser


colocado em contato com metais menos nobres, transmuta-os em ouro ou prata. O pó necessário
para se obter ouro é de cor vermelha (operação também conhecida como “Grande Obra”); aquele a
partir do qual se obtém a prata é de cor branca (característico da “Pequena Obra”).
PRINCÍPIOS - três são os princípios alquímicos básicos, presentes na matéria prima e que deverão ser
despertos e combinados durante a opus: o enxofre, o sal e o mercúrio (ver cada um). Observe-se que
não se trata dos elementos comuns, mas de princípios hipostáticos, isto é, substâncias presentes
apenas no plano das qualidades abstratas.

REBIS - de res bina; a coisa dupla, o composto salino, o caráter hermafrodita, a junção do masculino
e feminino; o ser único que surge durante a conjunção carnal. Mircea Eliade dá uma excelente
explicação sobre seu lugar na opus: após o casamento do Rei e da Rainha, banham-se na água
mercurial e morrem (nigredo); sua alma os abandona e voltam mais tarde a dar nascimento ao
filium philosophorum, o ser andrógino (Rebis) que anuncia a iminente obtenção do lapis
philosophorum.

RÊMORA - peixe diminuto; segundo a fábula, uma única rêmora é capaz de atar-se ao casco dos
navios e força-los a deter-se em alto mar; do latim remora, o que atrasa; também chamada por seu
nome grego echeneis; hábil símbolo do poder do pequeno; daí a metáfora da alquimia como uma
pescaria filosófica.

RUBEDO - obra em vermelho, ou rubi; final da caminhada, realização completa da transmutação da


matéria vil em ouro.

SAL - terceiro princípio da matéria; sua função é realizar a integração dos dois princípios opostos,
enxofre e mercúrio.

SOLVE ET COAGULA - um dos lemas fundamentais da alquimia: solve e coagula, isto é, busca fixar o
que é volátil e solver o que é fixo.

SOROR - irmã; par feminino do alquimista, também chamada de soror mystica, para distingui-la,
talvez, das companhias mundanas.

TINCTUR - tintura; associação da pedra filosofal a uma tinta filosófica por sua capacidade de “tingir”
os outros metais de dourado.

VITRÍOLO - solvente filosófico, que às vezes assume a forma de um corpo cristalino, branco ou azul,
capaz de atuar no âmago da matéria prima e prepará-la para que nela possa atuar o sol, fixando o
mercúrio e volatilizando o enxofre.
VOARCHADUMIA - sociedade secreta de alquimistas fundada na Itália no final do séc. XV. Os
ingleses George Ripley e o extraordinário John Dee foram membros atuantes dessa confraria, que
propunha um estilo muito singular de trabalho filosófico. Chamavam voarchadúmico o alquimista
transcendente, puramente espiritual, para diferenciá-lo do “soprador”, aquele que apenas executava
operações nos aparelhos alquímicos

VULCÃO LUNÁTICO - fogo secreto, água seca que não molha as mãos, água ígnea, fogo aquoso;
trata-se de um princípio ígneo que, uma vez ativado, opera no interior da matéria sem queimar do
modo como o faz o fogo comum.

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