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Vol. 15 | N.

01 | 2016 ISSN 2237-6291

REELABORAÇÃO DO TORÉ TABAJARA NO


CORPO DA IDENTIDADE INDÍGENA PARAIBANA

Kilma Farias Bezerra*

Resumo: O presente artigo trata-se de uma possível análise da reelaboração do Toré Tabajara
e seus aspectos implicados com mito, rito e espiritualidade à luz da fenomenologia, tendo em
vista a atual situação de rememoração vivida pela tribo em questão no município de Conde,
Paraíba. As falas dos atores sociais foram colhidas em visita à Aldeira Vitória, dia 1 de
outubro de 2015, mesma data da vivência do ritual do Toré. O imaginário acionado na luta
pela afirmação da identidade indígena Tabajara aproxima as esferas política e cultural na
reelaboração de uma tradição ancestral na contemporaneidade. Corpo e Terra são os espaços
dessa cena atual indígena paraibana.

Palavras-chave: Tabajaras. Toré. Identidade.

Reviving Tabajara’s Toré In The


Body Of Indigenous Identity In The State Of Paraiba

Abstract: This article is an possible analysis of the reworking of Toré Tabajara and their
aspects involved with myth, ritual and spirituality in phenomenology, taking into account the
current recall situation experienced by the tribe in the municipality of Conde, Paraíba. The
speeches of social actors were taken on a visit to Aldeira Victória, October 1, 2015, the same
date of Toré’s experience. The imaginary triggered the struggle for affirmation of indigenous
identity Tabajara approaching the political and cultural spheres in the reworking of an ancient
tradition in contemporary times. Body and Earth are the spaces of this current scene
indigenous of Paraíba.

Kaywords: Tabajaras. Toré. Identity.

*
Kilma Farias é mestranda em Ciências das Religiões (UFPB), jornalista (UFPB), aluna da Licenciatura em
Dança (UFPB), membro do grupo de pesquisa NEPCênico/CCTA/UFPB (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
o Corpo Cênico) e filiada à FAEB (Federação de Arte Educadores do Brasil). E-mail: kilmita@gmail.com

Revista Litterarius – Faculdade Palotina


www.fapas.edu.br/revistas/litterarius
litterarius@fapas.edu.br
Reelaboração do Toré Tabajara no corpo da identidade indígena paraibana
Kilma Farias Bezerra

Introdução

O interesse sobre a reelaboração do Toré Tabajara surge na disciplina Mito, Rito e


Espiritualidade Indígena, ministrada pelo professor Doutor Lusival Barcellos, dentro do
Programa de Pós-Graduação de Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Descobrir que ainda existem Tabajaras na Paraíba foi espantoso. Assim como foi
espantoso saber que os mesmos mantiveram sua identidade em segredo por 120 anos.
A área compreendida entre o Rio Gamame e o Rio Abiaí, no Conde, Paraíba, é
historicamente terra dos Tabajaras desde a época das Sesmarias em 1616, conforme mapa e
livro de registro da Câmara de Jacoca, segundo o cacique geral Ednaldo dos Santos Silva.
Hoje, a área é chamada de Sítio dos Caboclos e pertence ao Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (INCRA).
Motivado por uma profecia Tabajara, na qual dizia que chegaria um dia em que as
terras desses índios seriam reavidas por um jovem da família, Ednaldo dos Santos Silva
resolve tomar para si essa missão. Desde então, une forças com a comunidade para reaver na
justiça as terras dos Tabajaras. Mas, como parte do processo, uma identidade indígena precisa
ser reelaborada. Desse modo, encontram no Toré, uma das armas para esse embate político.
O que mais chama atenção ao cientista das religiões nesse processo são as relações de
transculturação e traduções culturais vividas entre os que se autodenominam Tabajaras. Estes,
em sua maioria adeptos do pentecostalismo, reaprendem o Toré com os Potiguaras, residentes
em Marcação, Lucena, Paraíba, assim como têm acesso à outra visão de mundo, causando
diversas transformações dentro e fora da comunidade em que vivem.
Esse processo de reorganização dos povos Tabajara tem início em 2006 e aciona
diversos questionamentos. Quais os sujeitos envolvidos nessa cena? Como a religiosidade
Tabajara se reorganiza? Como o mito da profecia Tabajara tornou-se ponto de partida para a
retomada das terras? Que embates políticos se apresentam na luta pelo território?
O presente artigo propõe discutir sobre esses pontos tendo como foco a reelaboração
do Toré, pois é na experiência vivida no corpo que o indígena vem a se conhecer e a se
identificar como tal.
A escolha da fenomenologia foi levada em conta por confluir com o pensamento de
Merleau-Ponty sobre consciência, percepção e corporeidade, onde a subjetividade nos leva a
perceber a corporeidade. Desse modo, a experiência passa a ser objeto de observação e de

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conhecimento e o corpo passa a ser identificado com o sujeito, não numa situação de
pertencimento, mas de existência. O ser humano não tem um corpo, ele é corpo. “Sistema de
potências motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é objeto para um 'eu penso':
ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p.212).
Presentificar a identidade indígena no corpo através do Toré coloca o sujeito em
contato consigo e com a alteridade através da experiência numa intensa negociação de
valores.

1 Questão indígena: uma questão de corpo e terra

A história da constituição do Brasil está intimamente ligada ao extermínio indígena. O


Nordeste brasileiro registra uma história de violência física e cultural, além de desapropriação
de terras. O senso comum dos livros de história até pouco menos de duas décadas construía a
ideia de um índio passivo, indolente, preguiçoso, mas ao mesmo tempo selvagem e violento.
Essa face de uma construção histórica contradita dificultou por muito tempo o pensamento de
uma estruturação da etnia indígena e cabocla – resultado das diversas misturas entre indígenas
com o homem branco.
Outro ponto a ser observado é a extrema violência com que foram tratados os
indígenas desde a época do Brasil Colônia, tendo povos inteiros dizimados e outros tantos
refugiados nos sertões ou em periferias das capitais, dando origem ao caboclo.
Após séculos de exclusão, faz-se necessário conhecer o caboclo e entender como este
afirma a identidade indígena. Essa identidade é reconstruída com base na afinidade pela causa
indígena e afetividades construídas nas reloções comunitárias a partir dos processos de
territorialização, gerando uma reorganização sociocultural. Desse modo, pensar esse caboclo
do Nordeste é entender os processos históricos e os fluxos culturais expressos nas relações
com cada ator social. A cultura deixa de ser vista sob a ótica da perda para ser entendida sob a
ótica das relações sócio-históricas na qual há ganhos e perdas de ambos os lados: do
colonizador e do colonizado.
Ao longo do tempo, o caboclo desenvolveu diversas estratégias de resistência,
questionando as explicações tradicionais do extermínio indígena, colocando-se como sujeitos
que reescrevem a história.

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Uma das principais ferramentas de resistência desses povos é a cultura. Por conta do
processo de colonização, as danças e rituais indígenas adsorveram uma gama de símbolos do
cristianismo resultando em uma nova expressão cultural e religiosa; traduções de uma cultura
imaterial que soube se integrar para sobreviver.
Conforme Barcellos et al., na Paraíba,

[...] existiam 18 povos: Ariú, Bultrin ou Bodopitas, Caeté, Canindé, Caracará,


Carnoió, Icó, Janduí, Jandiú, Paiaku, Panati, Peba, Potiguara, Piancó, Tabajara,
Tarairiú, Xokó e Xucuru ou Sucuru. Desses povos, apenas os Potiguara e os Tabajara
existem na atualidade (2014, p.15).

A terra, no cerne da questão de tantas lutas, guerras e impasses mundiais, recebeu os


corpos dos índios das 16 tribos extintas; e o sangue que regou essa terra é memorado hoje na
imagem do suor de luta dos Potiguara e Tabajara, expressado nas pinturas corporais em
urucum. O corpo mais uma vez se apresenta como fator de afirmação da identidade.
De acordo com o censo de 2010, vivem no Brasil 817 mil índios. Na Paraíba, segundo
a Funasa, habitam 20.750 índios, sendo 20 mil da etnia Potiguara, distribuídos em 32 aldeias
nas cidades de Marcação, Rio Tinto e Baía da Traição. Outros 750 descendentes da etnia
Tabajara vivem em aldeias nas cidades de João Pessoa, Conde, Caaporã, Pitimbu e Alhandra.1
Para o indígena, o espaço e o tempo se integram, sendo o tempo composto em relação
ao homem; aos que o antecedem e aos que o sucederão. E onde esse fenômeno acontece? Na
terra, na Mãe-Terra, nascedouro, morada, abrigo, alimento e jazigo. A concepção de mundo
para o indígena Tabajara também se dá em relação às percepções do homem – consigo, na
relação com o outro e com o mundo – fazendo aflorar uma segunda natureza, além da
biológica: uma natureza simbólica. E onde essa natureza simbólica é manifestada? No
homem, no corpo. E onde esse corpo transita? Na terra enquanto morada e mundo das
relações.

O indígena tem na mãe terra, um tupi yby, seu principal referencial de vida, de luta,
de espiritualidade. A terra é o maior constitutivo do indígena. É o seu oxigênio,
razão do seu existir e do seu viver. [...] fonte geradora de vida, dos espíritos de luz,
dos encantados, da natureza sagrada, de algo vital para a humanidade envolvendo
animais, vegetais e minerais (BARCELLOS et al., 2014, p. 24).

1
Dados disponíveis em: <http://www.ibge.gov.br/>. Acesso em: 01 dez. 2015.
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A questão indígena é, antes de tudo, uma questão de corpo e de terra. Uma questão de
vida que reaviva o tempo e nos vem falar de ética, rito, mito e espiritualidade. Castro (2014)
aponta, pois, para a experiência do humano que só se faz humano no momento em que age
como tal. Partindo desse pensamento, podemos compreender que o indígena só pode
reafirmar sua identidade sendo índio. E a manifestação do Toré apresenta-se como um ato
emblemático do ser índio, cumprindo uma função de identidade cultural. Embora a noção de
pessoa indígena abranja para além dos ritos uma atuação sociopolítica, produzindo sujeitos
que dialogam a ancestralidade e o urbano no corpo. É no corpo que o direito da terra é
reivindicado.
É esse corpo – entre o urbano de periferia e o ancestral – que ritualiza e redescobre o
Toré como forma de ser terra; o Toré é o elo que atravessa o tempo trazendo os Tabajaras de
volta para reivindicar suas terras. “Se quisermos saber o que é terra e corpo teremos que saber
o que é mulher enquanto lua, terra, vida, mãe-fonte, menino” (CASTRO, 2014, p.18). Porque
corpo e terra só são compreensíveis em suas subjetividades na experiência, no fecundar, no
gerar, no alimentar, no viver e morrer.

2 Corpo indígena enquanto imagem, linguagem e morte

Durante aula de campo, em visita à Aldeia Vitória, 01/10/2015, o cacique geral


Tabajara, Ednaldo Santos, nos contou que as terras dos Tabajaras “[...]foram tomadas à força.
Os antepassados foram ‘pegados em dente de cachorro’2 dentro da mata ou dentro de casa;
foram mortos. o cacique Piragibe3 foi preso. Não tinha respeito não.” Na luta para sobreviver,
obtinha mais sucesso os que fugiam para lugares distantes e inóspitos. Continuou o cacique:
“Ser índio é ser renegado em seus direitos constantemente. [...] índio virou caboclo porque
caboclo não tem direito nenhum, não tem terra nenhuma. Não tem tradição. Índio tem”. 4

2
Expressão que conota a violência de terem sidos caçados por cães.
3
Liderança indígena Tabajara que viveu entre os séculos XVI e XVII nas capitanias de Pernambuco e Paraíba.
4
Transcrição de entrevista concedida à turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências das
Religiões da Universidade Federal da Paraíba, em 01/10/2015, dentro da disciplina Mito, rito e espiritualidade
indígena, ministrada pelo professor doutor Lusival Barcellos.
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De acordo com o Informe eletrônico de número 994, do Conselho Indigenista


Missionário (2011). 5, que fala sobre a luta do povo Tabajara contra a empresa Elisabeth na
Paraíba,

O povo Tabajara vive o que o cacique chama de quinto momento. Em 21 de junho


de 2006 tem início a luta com o levantamento da documentação histórica da etnia;
em 2007: Cacique Ednaldo começa a consolidar alianças com o movimento indígena
e indigenista; em 2008 tem início o reagrupamento Tabajara na Paraíba; o quarto
ano, 2009, foi nomeado o da cultura com o aprofundamento dos rituais, do Toré, da
pintura, da cosmologia, do modo de viver; 2010 e este ano marcaram a identificação
do povo pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o despertar dos Tabajara para
o Brasil e mundo. A luta trouxe importantes vitórias, mas também uma realidade
lamentável: as ameaças de morte (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO,
2011).

É sobre o momento da cultura, do aprofundar dos rituais, simbolizado no Toré, que me


dedicarei na reflexão que se segue. Durante visita à Aldeia Vitória (Tabajara), enquanto
pesquisador participante, tive a oportunidade de vivenciar o ritual do Toré à noite, em volta da
fogueira, e perceber algumas possibilidades de leituras simbólicas. O cacique explicou que
reaprenderam sua prática com os Potiguaras, residentes em Marcação, Paraíba.
Em conversa com Juscelino Tabajara (indígena), em 01/10/ 2015, pude entender que a
roda no Toré é o próprio ciclo da vida, o contínuo. A pisada forte na terra reafirma a condição
de estar no mundo, de ter vindo da terra e à terra um dia retornar. O fogo se apresenta como o
entusiasmo, a presença do sagrado que ilumina e aquece a todos. E o canto, a organização do
pensamento através da palavra para reafirmar a cosmologia Tabajara. Desse modo, o rito
atualiza o mito, situando-se, portanto, “[...] na articulação entre tradição, memória,
conservação e transformação” (VILHENA, 2005, p. 23).
Para Sônia Tabajara (indígena), também durante visita realizada no dia 01/10/2015, a
roda do Toré representa movimento. A pisada forte no chão é para puxar a energia da terra e se
alimentar dela; o fogo é o que purifica, o que transforma; e dançar o Toré é dizer: sim, eu
estou aqui, eu sou Tabajara.
Nos dois discursos percebo a multiplicidade de símbolos, dada a particularidade da
percepção de cada um, mas uma convergência no que diz respeito à hierofania, , entendendo-a
como “qualquer coisa que torna manifesto tudo quanto é sagrado” (ELIADE, 1997, p.20) e ao

5
Disponível em: <http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=6018>. Acesso em: 10 dez.
2015.
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entendimento do rito como reafirmação de uma realidade, embora saibamos que um rito não
pode ser decodificado completamente.

De antemão, somos sabedores de que o mito não pode ser decodificado jamais, que
não nos é possível mergulhar nas profundidades a que remete, que muito do que lhe
é próprio permanecerá indevassável a nossos olhares, pois que é indevassável o
mistério que o habita e constitui, tais como são indevassáveis os recônditos da
interioridade humana e da vida social (VILHENA, 2005, p. 35).

O rito opera como um organizador do tempo e do espaço, conferindo sentido à vida.


Um norteador que vai pontuar a rotina em eventos que se sucedem periodicamente, compondo
nesse fazer, um exercício simbólico.
Nesse sentido, Mardones (2006, p. 159) lembra que, no rito, a ação se sobrepõe à
palavra. Assim, o rito desempenha a função de “estruturar, articular e sustentar a experiência
vital”, sendo de fundamental importância para a constituição do ser humano, seja enquanto
indivíduo ou enquanto coletivo, sociedade.
Essa constituição identitária vai depender do quão forte ou fraca é essa ligação com o
ritual. Nesse sentido, “o rito tem uma função legitimadora” (MARDONES, 2006, p. 163) de
construção de mundo, construção de realidades.
O Toré é um rito, mas ao mesmo tempo elabora uma cena, uma imagem. E, como toda
imagem, traz consigo um universo simbólico a se perceber. Para pensar a imagem do Toré
Tabajara trago a hermenêutica simbólica e sua bipartição em redutora e amplificadora.
Apoiando-se nos estudos de Ricoeur, vejo o Toré a partir da hermenêutica simbólica
amplificadora devido ao caráter polissêmico de suas imagens, compondo narrativas abertas.
Ricoeur chama de símbolo “[...] toda estrutura de significação em que um sentido
direto, primário, literal, designa por acréscimo, outro sentido indireto, secundário, figurado,
que só pode ser apreendido através do primeiro” (RICOEUR, 1978, p. 15).
A fenomenologia da imagem analisa a imagem como projeção intencional da
consciência, onde o “espírito se corporaliza e o corpo se espiritualiza” (HIGUET, 2015, p.
17). Mas por que a experiência visual é tão importante e ocupa espaço na simbólica das
culturas e, em especial, das religiões? Por que o indígena precisa reconstruir sua imagem, com
saiote, penacho, pinturas corporais e maracá? Até onde e como o Toré colabora com a
reelaboração da imagem indígena?
A experiência visual coloca o homem em relação intuitiva com o próprio objeto
contemplado, sem passar pelos signos, contrariamente à imagem linguística que sempre
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precisa de um signo ausente da manifestação sensível. Para Wunenburger, a experiência visual


“abre um espaço estético e hermenêutico indefinido. Assim, a imagem visual enriquece mais o
imaginário individual ou coletivo que os atos e as obras da linguagem”. (WUNENBURGER
apud HIGUET, 2015, p. 20).
Nesse sentido, dizer-se indígena não é suficiente. Faz-se necessário ser indígena
sendo. E aí reside a necessidade de reelaboração da identidade, pois, só através do
convencimento de si e do outro no 'ser sendo' é que se pode reaver terra, dignidade, memória,
cultura e corpo.
O Toré em si é linguagem. Não uma linguagem articulada em palavras, mas a
linguagem do corpo, suas narrativas e percepções, embora esse ritual se inicie com a palavra
falada: prece do Pai Nosso em tupi 6e em língua portuguesa. Assunto que será tratado mais à
frente.
Para iniciar o Toré, os índios prostram-se de joelhos diante da mãe terra e de cabeça
baixa veneram ao deus Tupã e invocam os ancestrais. Só depois, o maracá e o bombo ganham
voz e os corpos unem-se à terra numa só linguagem.
A referência constante aos ancestrais e o respeito aos 'troncos velhos', como são
chamados os anciãos, assim como as histórias de lutas e massacres que contam, bem como a
profecia7 que trouxe de volta os Tabajaras, nos faz crer que a identidade indígena também está
intimamente ligada à vida-morte.
A terra é um fim; jazigo de todos os seres viventes. Mas também é um fim enquanto
finalidade. Toda a existência e resistência da luta indígena estão relacionadas à posse de terra.
Terra para o indígena é lugar no mundo, é dignidade, sustento, identidade.
O mito da profecia é linguagem que fala de morte e que traz a perspectiva de uma
nova vida. Em pesquisa de campo à Aldeia Vitória, em 01/10/2015, o cacique geral Tabajara,
Ednaldo Santos, diz que tomou para si a profecia, largando sua oportunidade de ir trabalhar
fora do país como jogador de futebol profissional contratado, porque daqui a 50 anos ele quer
poder olhar para o pôr do sol cobrindo as terras dos Tabajaras e dizer “Valeu a pena um só
6
Oré rub ybákype tekoar / I moetepýramo nde rera t’oîkó / Tóur nde Reino / Tónhemonhang nde remimotara
ybýpe / Ybákype i nhemonhanga îabé / Oré rembiú ‘ara îabi´õndûara / Eîme’eng kori orebe / Nde nhyrô ore
angaîpaba resé orebe / Oré rekomemûâsara supé / Oré nhyrô îabé / Oré mo’arukar ume îepé tentação pupé /
Oré pysyrõ îepé mba’eaíba suí. Disponível em: <http://tupipotiguara.blogspot.com.br/2009/08/o-pai-nosso-na-
lingua-tupi.html>. Acesso em: 10 dez. 2015.
7
Sobre a Profecia dos Tabajaras ver capítulo 2.2 Da profecia a um movimento étnico-político e territorial em
BARCELLOS, Lusival; FARIAS, Eliane. Memória Tabajara: manifestação de fé e identidade étnica. João
Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2012.

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perder um sonho para todos os outros voltarem a sonhar”. É o ciclo que se cumpre, sonhos
que morrem para outros nascerem, assim como o homem. Assim como a roda do Toré, cíclica,
passo após passo, firmados na terra.
Imagem, linguagem e morte que se fazem vida: assim percebo o Toré ao vivenciá-lo,
como reconstrução da identidade cultural e sociopolítica indígena dos Tabajaras.

3 Hibridismo e negociações políticas no corpo do Toré

O indígena Tabajara encontra uma tensão na busca da afirmação de sua identidade


através do Toré. Pois, “Na reelaboração de suas tradições, o ritual do Toré vai se confrontar
com o segmento pentecostal causando desconforto religioso [...]” (FARIAS; BARCELLOS,
2012, p. 72).
Os Tabajaras são em sua maioria pentecostais de Pitimbu, Alhandra, Conde e João
Pessoa, e muitas vezes estão sob o julgo cristão da dicotomia entre o bem e o mal. Facilmente
encontram-se discursos que colocam o Toré como “coisa do demônio”. Outros não veem com
bons olhos, mas entendem o Toré como uma teatralização necessária no jogo político pela
retomada das terras. Canclini nos diz que para entender as relações da modernidade com o
passado, precisamos examinar as operações de ritualização cultural.

Para que as tradições sirvam hoje de legitimação para aqueles que as construíram ou
se apropriaram delas, é necessário colocá-las em cena. O patrimônio existe como
força política na medida em que é teatralizado[...] o fundamento filosófico do
tradicionalismo se resume na certeza de que há uma coincidência ontológica entre
realidade e representação, entre a sociedade e as coleções de símbolos que a
representam (CANCLINI, 2013, p. 161-163).

O conflito entre a memória identitária e a realidade urbana gera o hibridismo religioso.


No tópico 2 deste artigo, me refiro ao Pai Nosso proferido em língua tupi e portuguesa no
início da prática do Toré. Percebo nessa ação um imbricamento religioso: ao mesmo tempo
em que o corpo se prostra na terra – princípio, meio e fim para o indígena – a linguagem oral
conduz o pensamento ao céu, recomendando-se a um pai em obediência “assim na terra como
no céu”. O sentimento indígena de comunhão com a natureza encontra o sentimento de
pertença à Assembleia de Deus, dando origem à uma nova configuração de espiritualidade.
Em sua maioria, os indígenas pentecostais veem o Toré como tradição cultural e
política na reelaboração da identidade e não como ritual religioso. O depoimento da indígena

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Tabajara, Jacyara Marciel, em maio de 2011, concedido a Eliane Farias e Lusival Barcellos
nos faz perceber essa conflitante realidade.

Eu dentro de mim não vou com o pensamento de invocar. Vou com o pensamento de
resgatar uma tradição. Eu gosto das músicas, do ato de dançar, tiro o pé, sinto, fico à
vontade, mas a questão de ter outro sentido mais profundo, de tá chamando espírito
não é intenção minha. Pra gente o Toré é uma tradição indígena, só que não estava
muito bem adequado a nossa realidade. A questão do ritual, ainda é muito diferente,
uma coisa nova para impor para a gente. Eu fui criada no evangelho, meu pai, meus
avós por parte de mãe e por parte de pai. Quando começa a dizer que tá invocando o
espírito de um antepassado que morreu, isso para mim soa muito diferente. Dentro
de mim eu não aceito, confesso que eu digo: sangue de Cristo tem poder (FARIAS;
BARCELLOS, 2012, p. 202).

Percebe-se, portanto, o conflito gerado pelo atrito entre duas visões de mudo distintas
– a instituída e a que está em reconstrução – conflito esse que o próprio indígena não dá conta
de resolver na espiritualidade, transferindo assim para a 'tradição cultural' o que não consegue
digerir. Sob o emblema de cultura, o Toré fica mais palatável aos pentecostais, embora,
segundo Geertz (2008), religião, mitos e ritos sejam componentes constituintes de uma
cultura.
Clifford Geertz define religião como

[...] um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e


duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal
aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas
(GEERTZ, 2008, p.67).

A esse sistema de símbolos ele classifica como 'padrões culturais', entendendo símbolo
como “[...] objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como veículo a uma
concepção – a concepção é o ‘significado do símbolo’” (GEERTZ, 2008. p. 67).
Mesmo sob uma tentativa de separar religião de cultura, o indígena tabajara se vê
envolvido em práticas rituais como o Toré, visto que a reelaboração de uma cultura abrange
toda a esfera religiosa, política e social.
Na fala de Jacyara Marciel – “Eu gosto das músicas, do ato de dançar, tiro o pé,
sinto, fico à vontade [...]” – percebo um aflorar de espiritualidade no ato do Toré. Penso aqui
no conceito de espiritualidade a partir de Boff onde ela é tudo “[...] aquilo que produz no ser
humano uma mudança interior” (BOFF, 2006, p. 16) que lhe traz bem estar e conforto.

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E ao mesmo tempo em que a indígena se percebe à vontade na prática do Toré, lhe


sobrevém a culpa cristã por estar invocando os espíritos dos ancestrais, dos que não
caminham mais sobre a terra, o que é visto como uma prática repreensível pelos pentecostais.
O estranhamento gerado traz a repulsa: 'sangue de Cristo tem poder'. Embora seja o Toré que
demarque o poder simbólico nos embates políticos e seja capaz de identificá-los como
indígenas na luta por reaver as terras.

Conclusão

A reelaboração do Toré Tabajara está totalmente implicada com aspectos como mito,
rito e espiritualidade. Partindo do entendimento de que um mito – a profecia dos Tabajaras – é
apaz de trazer de volta à sociedade uma afirmação de etnia, faz-se necessário um rito que o
atualize no mundo.
O Toré passa a ser esse rito representativo, não apenas por escolha dos indígenas,
mas porque a sociedade e o governo clamam por uma imagem do índio que o identifique
como tal. Assim, os Tabajaras vão buscar na cultura essa valoração. Mas, ao reaprenderem o
Toré com os Potiguaras, entram em contato com o conceito de espíritos ancestrais, de deuses
como Tupã, de uma mãe Terra, ou seja, de uma visão diferente de espiritualidade da que
possuíam no momento.
Afastados 120 anos dessa visão de mundo e com a dispersão das famílias pelas
periferias urbanas, muitos encontraram no pentecostalismo a força que precisavam para a
superação de problemas com alcoolismo, cura de doenças, violência familiar, etc.
Ao assumirem a prática do Toré como aliada no processo histórico de reocupação das
terras dos Tabajaras, o indígena sente um estranhamento entre a visão cristã dicotômica entre
bem e mal, certo e errado, e o pensamento indígena de unidade com a terra, a natureza e
espíritos ancestrais. Surge então uma nova espiritualidade entre os Tabajaras, ainda em
processo de construção, produto híbrido religioso entre os pentecostalismos e a cultura
indígena em reelaboração.
Desse modo, enquanto cientista das religiões, percebo uma ligação profunda entre
corpo e terra no ritual do Toré, sendo estes constituídos como espaços sagrados na cena
ancestral e como espaços simbólicos politizados na atual cena indígena paraibana,
especificamente entre os Tabajaras aos quais dediquei essa reflexão.

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Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.15 | N. 01 | 2016 – ISSN 2237-6291
Reelaboração do Toré Tabajara no corpo da identidade indígena paraibana
Kilma Farias Bezerra

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