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Resumo: O presente artigo trata-se de uma possível análise da reelaboração do Toré Tabajara
e seus aspectos implicados com mito, rito e espiritualidade à luz da fenomenologia, tendo em
vista a atual situação de rememoração vivida pela tribo em questão no município de Conde,
Paraíba. As falas dos atores sociais foram colhidas em visita à Aldeira Vitória, dia 1 de
outubro de 2015, mesma data da vivência do ritual do Toré. O imaginário acionado na luta
pela afirmação da identidade indígena Tabajara aproxima as esferas política e cultural na
reelaboração de uma tradição ancestral na contemporaneidade. Corpo e Terra são os espaços
dessa cena atual indígena paraibana.
Abstract: This article is an possible analysis of the reworking of Toré Tabajara and their
aspects involved with myth, ritual and spirituality in phenomenology, taking into account the
current recall situation experienced by the tribe in the municipality of Conde, Paraíba. The
speeches of social actors were taken on a visit to Aldeira Victória, October 1, 2015, the same
date of Toré’s experience. The imaginary triggered the struggle for affirmation of indigenous
identity Tabajara approaching the political and cultural spheres in the reworking of an ancient
tradition in contemporary times. Body and Earth are the spaces of this current scene
indigenous of Paraíba.
*
Kilma Farias é mestranda em Ciências das Religiões (UFPB), jornalista (UFPB), aluna da Licenciatura em
Dança (UFPB), membro do grupo de pesquisa NEPCênico/CCTA/UFPB (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
o Corpo Cênico) e filiada à FAEB (Federação de Arte Educadores do Brasil). E-mail: kilmita@gmail.com
Introdução
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Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.15 | N. 01 | 2016 – ISSN 2237-6291
Reelaboração do Toré Tabajara no corpo da identidade indígena paraibana
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conhecimento e o corpo passa a ser identificado com o sujeito, não numa situação de
pertencimento, mas de existência. O ser humano não tem um corpo, ele é corpo. “Sistema de
potências motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é objeto para um 'eu penso':
ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p.212).
Presentificar a identidade indígena no corpo através do Toré coloca o sujeito em
contato consigo e com a alteridade através da experiência numa intensa negociação de
valores.
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Uma das principais ferramentas de resistência desses povos é a cultura. Por conta do
processo de colonização, as danças e rituais indígenas adsorveram uma gama de símbolos do
cristianismo resultando em uma nova expressão cultural e religiosa; traduções de uma cultura
imaterial que soube se integrar para sobreviver.
Conforme Barcellos et al., na Paraíba,
O indígena tem na mãe terra, um tupi yby, seu principal referencial de vida, de luta,
de espiritualidade. A terra é o maior constitutivo do indígena. É o seu oxigênio,
razão do seu existir e do seu viver. [...] fonte geradora de vida, dos espíritos de luz,
dos encantados, da natureza sagrada, de algo vital para a humanidade envolvendo
animais, vegetais e minerais (BARCELLOS et al., 2014, p. 24).
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Dados disponíveis em: <http://www.ibge.gov.br/>. Acesso em: 01 dez. 2015.
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A questão indígena é, antes de tudo, uma questão de corpo e de terra. Uma questão de
vida que reaviva o tempo e nos vem falar de ética, rito, mito e espiritualidade. Castro (2014)
aponta, pois, para a experiência do humano que só se faz humano no momento em que age
como tal. Partindo desse pensamento, podemos compreender que o indígena só pode
reafirmar sua identidade sendo índio. E a manifestação do Toré apresenta-se como um ato
emblemático do ser índio, cumprindo uma função de identidade cultural. Embora a noção de
pessoa indígena abranja para além dos ritos uma atuação sociopolítica, produzindo sujeitos
que dialogam a ancestralidade e o urbano no corpo. É no corpo que o direito da terra é
reivindicado.
É esse corpo – entre o urbano de periferia e o ancestral – que ritualiza e redescobre o
Toré como forma de ser terra; o Toré é o elo que atravessa o tempo trazendo os Tabajaras de
volta para reivindicar suas terras. “Se quisermos saber o que é terra e corpo teremos que saber
o que é mulher enquanto lua, terra, vida, mãe-fonte, menino” (CASTRO, 2014, p.18). Porque
corpo e terra só são compreensíveis em suas subjetividades na experiência, no fecundar, no
gerar, no alimentar, no viver e morrer.
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Expressão que conota a violência de terem sidos caçados por cães.
3
Liderança indígena Tabajara que viveu entre os séculos XVI e XVII nas capitanias de Pernambuco e Paraíba.
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Transcrição de entrevista concedida à turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências das
Religiões da Universidade Federal da Paraíba, em 01/10/2015, dentro da disciplina Mito, rito e espiritualidade
indígena, ministrada pelo professor doutor Lusival Barcellos.
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Disponível em: <http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=6018>. Acesso em: 10 dez.
2015.
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entendimento do rito como reafirmação de uma realidade, embora saibamos que um rito não
pode ser decodificado completamente.
De antemão, somos sabedores de que o mito não pode ser decodificado jamais, que
não nos é possível mergulhar nas profundidades a que remete, que muito do que lhe
é próprio permanecerá indevassável a nossos olhares, pois que é indevassável o
mistério que o habita e constitui, tais como são indevassáveis os recônditos da
interioridade humana e da vida social (VILHENA, 2005, p. 35).
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perder um sonho para todos os outros voltarem a sonhar”. É o ciclo que se cumpre, sonhos
que morrem para outros nascerem, assim como o homem. Assim como a roda do Toré, cíclica,
passo após passo, firmados na terra.
Imagem, linguagem e morte que se fazem vida: assim percebo o Toré ao vivenciá-lo,
como reconstrução da identidade cultural e sociopolítica indígena dos Tabajaras.
Para que as tradições sirvam hoje de legitimação para aqueles que as construíram ou
se apropriaram delas, é necessário colocá-las em cena. O patrimônio existe como
força política na medida em que é teatralizado[...] o fundamento filosófico do
tradicionalismo se resume na certeza de que há uma coincidência ontológica entre
realidade e representação, entre a sociedade e as coleções de símbolos que a
representam (CANCLINI, 2013, p. 161-163).
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Tabajara, Jacyara Marciel, em maio de 2011, concedido a Eliane Farias e Lusival Barcellos
nos faz perceber essa conflitante realidade.
Eu dentro de mim não vou com o pensamento de invocar. Vou com o pensamento de
resgatar uma tradição. Eu gosto das músicas, do ato de dançar, tiro o pé, sinto, fico à
vontade, mas a questão de ter outro sentido mais profundo, de tá chamando espírito
não é intenção minha. Pra gente o Toré é uma tradição indígena, só que não estava
muito bem adequado a nossa realidade. A questão do ritual, ainda é muito diferente,
uma coisa nova para impor para a gente. Eu fui criada no evangelho, meu pai, meus
avós por parte de mãe e por parte de pai. Quando começa a dizer que tá invocando o
espírito de um antepassado que morreu, isso para mim soa muito diferente. Dentro
de mim eu não aceito, confesso que eu digo: sangue de Cristo tem poder (FARIAS;
BARCELLOS, 2012, p. 202).
Percebe-se, portanto, o conflito gerado pelo atrito entre duas visões de mudo distintas
– a instituída e a que está em reconstrução – conflito esse que o próprio indígena não dá conta
de resolver na espiritualidade, transferindo assim para a 'tradição cultural' o que não consegue
digerir. Sob o emblema de cultura, o Toré fica mais palatável aos pentecostais, embora,
segundo Geertz (2008), religião, mitos e ritos sejam componentes constituintes de uma
cultura.
Clifford Geertz define religião como
A esse sistema de símbolos ele classifica como 'padrões culturais', entendendo símbolo
como “[...] objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como veículo a uma
concepção – a concepção é o ‘significado do símbolo’” (GEERTZ, 2008. p. 67).
Mesmo sob uma tentativa de separar religião de cultura, o indígena tabajara se vê
envolvido em práticas rituais como o Toré, visto que a reelaboração de uma cultura abrange
toda a esfera religiosa, política e social.
Na fala de Jacyara Marciel – “Eu gosto das músicas, do ato de dançar, tiro o pé,
sinto, fico à vontade [...]” – percebo um aflorar de espiritualidade no ato do Toré. Penso aqui
no conceito de espiritualidade a partir de Boff onde ela é tudo “[...] aquilo que produz no ser
humano uma mudança interior” (BOFF, 2006, p. 16) que lhe traz bem estar e conforto.
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Conclusão
A reelaboração do Toré Tabajara está totalmente implicada com aspectos como mito,
rito e espiritualidade. Partindo do entendimento de que um mito – a profecia dos Tabajaras – é
apaz de trazer de volta à sociedade uma afirmação de etnia, faz-se necessário um rito que o
atualize no mundo.
O Toré passa a ser esse rito representativo, não apenas por escolha dos indígenas,
mas porque a sociedade e o governo clamam por uma imagem do índio que o identifique
como tal. Assim, os Tabajaras vão buscar na cultura essa valoração. Mas, ao reaprenderem o
Toré com os Potiguaras, entram em contato com o conceito de espíritos ancestrais, de deuses
como Tupã, de uma mãe Terra, ou seja, de uma visão diferente de espiritualidade da que
possuíam no momento.
Afastados 120 anos dessa visão de mundo e com a dispersão das famílias pelas
periferias urbanas, muitos encontraram no pentecostalismo a força que precisavam para a
superação de problemas com alcoolismo, cura de doenças, violência familiar, etc.
Ao assumirem a prática do Toré como aliada no processo histórico de reocupação das
terras dos Tabajaras, o indígena sente um estranhamento entre a visão cristã dicotômica entre
bem e mal, certo e errado, e o pensamento indígena de unidade com a terra, a natureza e
espíritos ancestrais. Surge então uma nova espiritualidade entre os Tabajaras, ainda em
processo de construção, produto híbrido religioso entre os pentecostalismos e a cultura
indígena em reelaboração.
Desse modo, enquanto cientista das religiões, percebo uma ligação profunda entre
corpo e terra no ritual do Toré, sendo estes constituídos como espaços sagrados na cena
ancestral e como espaços simbólicos politizados na atual cena indígena paraibana,
especificamente entre os Tabajaras aos quais dediquei essa reflexão.
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Referencias
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
CASTRO, Manuel Antônio. Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Lisboa: Edições Asa, 1997.
GEERTZ, Clifford. A Religião como Sistema Cultural. In: A Interpretação das Culturas.
Rio de Janeiro: Ed. LTC, 2008.
MARDONES, José Maria. As ações simbólicas. In: A vida do símbolo: a dimensão simbólica
da religião. Tradução de Euclides Martins Balancin. SP: Paulinas, 2006.
VILHENA, Maria Angela. Ritos: Expressões e propriedades. São Paulo: Paulinas, 2005.
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