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Fonte: http://www.revistatropico.com.br
Tenho lido com muito interesse o filósofo e crítico russo-alemão Boris Groys (1947),
ainda praticamente desconhecido no Brasil. Pensei então em fazer para Trópico uma
apresentação de seu pensamento.
Posso garantir que é dos mais originais entre a gente que, por ora, vive. A piada vai ficar
clara mais adiante. Não por acaso Groys foi escolhido para escrever o catálogo da
exposição "The Air Is On Fire", composta de desenhos, fotografias, pinturas e
animações de David Lynch, exibida na Fondation Cartier Pour l’Art Contemporain, em
Paris, entre março e maio de 2007.
Na perspectiva de Groys, arte e filosofia têm abordagens análogas: uma e outra, para
ele, tratam fundamentalmente de questões que não admitem solução e que, por isso
mesmo, são imortais.
Em vez de solicitar resposta, como as questões das disciplinas científicas -que são
sempre muito efêmeras e cujas contribuições, passado o seu tempo de vigência, apenas
permanecem interessantes como objeto de história das ciências-, as questões artísticas e
filosóficas existem no âmbito de um espaço “duradouro” da linguagem, no qual os
discursos individuais tratam de se inscrever.
A filosofia possui um tipo de discurso ainda mais estável do que o artístico, embora
este, por sua vez, reivindique uma duração mais longa. Isto se deve, para Groys, a duas
razões.
A primeira, é que a arte tende a ser mais permeável às modas culturais do momento,
enquanto a filosofia não precisa acompanhar o estágio atual das ciências. A segunda
razão é que, no caso da arte, a forma é sempre decisiva, o que implica apreciações
estéticas que variam com o tempo, enquanto na filosofia, as idéias tendem a ser
consideradas como se dependessem pouco da sua apresentação.
O mais relevante para Groys, entretanto, é que a dedicação à filosofia ou à arte supõe
algum ceticismo face a garantias ontológicas fora da linguagem, da cultura ou da
história para sustentação da imortalidade. Tal ceticismo conduz ao que chama de
políticas da imortalidade, que são nucleares às atividades artísticas e filosóficas. É
preciso compreender bem essa questão para atingir o ponto-chave do pensamento de
Groys.
Para Boris Groys, artistas ou pensadores perigosos são aqueles que ganham alto
reconhecimento no seu campo de atuação justamente porque colocam em questão a
estrutura inteira de distinções sobre a qual o campo costuma sustentar as suas operações.
Groys destaca três casos exemplares de pensadores que foram bem sucedidos na adoção
desse tipo de estratégia de risco: Kierkegaard, cujo empenho estava em produzir o
colapso dos critérios de distinção entre Deus e os homens; Husserl, que tratou da
insustentabilidade das distinções entre o mundo que existe e o que é apenas virtual ou
imaginado; e, enfim, Wittgenstein, que se empenhou em “dissolver” toda sorte de
distinções fixadas nos inúmeros “jogos de linguagem” examinados por ele.
Para Groys, entretanto, como, na prática, não é possível trabalhar sem distinções e
oposições, o perigo de colapso do campo acaba revertendo para a reiteração da sua
estrutura por meio da renovação e legitimação de um novo vocabulário distintivo. Ou
seja, o vocabulário do colapso é, assim, incorporado como um novo móvel do cômodo.
No caso dos três filósofos citados, o traço mais comum a eles é a recusa de tratar a
questão do “sujeito” ou da “subjetividade” em analogia com a do “ser”. Deste modo,
eles impedem a sua assimilação a noções como “universalidade” e “evidência”. Quer
dizer, o “sujeito” deixa de ser tomado como condição ontológica do pensamento ou da
ação para ser interpretado no âmbito da própria decisão de produzir distinções, sem
qualquer fundamento objetivo.
3. Crítica sociológica
Para Groys, uma observação de Marx que atinge em cheio o mundo da cultura é a de
que uma idéia deve se impor para poder nos parecer justa, ou, de outra maneira, que
uma idéia dominante é sempre a idéia de alguém que domina. Nesses termos, qualquer
idéia que se apresente possui um “suporte material”, e apenas contradizê-la com outras
idéias não basta para que desapareça. É preciso combater as forças que suportam a idéia,
em vez de se circunscrever à sua crítica.
Para Groys, a chave do sucesso das teorias sociológicas reside justamente aí: em
alimentar a convicção de que, numa economia de mercado moderna, a produção é
exclusivamente ditada pela demanda. Em tal situação, arte e teoria são entendidas como
mercadorias específicas cuja missão é satisfazer necessidades e desejos de um público
atual de consumidores.
Por isso mesmo, considera que os modelos sociológicos, isto é, baseados no público
real, são insuficientes e mesmo implausíveis, embora adequados para tratar da economia
de mercadorias mais perecíveis do que arte ou pensamento. Escrever livros ou produzir
obras de arte significa, ao contrário, que se espera fabricar produtos capazes de
sobreviver aos consumidores atuais, o que também significa que os autores tendem a se
dirigir a consumidores desconhecidos, ainda não nascidos, e, portanto, com
necessidades e desejos ainda indeterminados.
Escreve-se não para um “leitor real”, mas para o que Groys chama de “leitor utópico”,
isto é, aquele que lê o livro com atenção máxima, descobre o que o autor quer dizer e
até o que ele próprio não sabia ao escrever. Mais do que isso tudo, o leitor utópico se
define por “amar” o livro, o que não raro significa que “tem mais estima pelo livro do
que pela realidade”.
Nesses termos, não importa muito se um leitor assim já existe hoje, se vai nascer mais
tarde, ou se vai permanecer para sempre como uma figura onírica. Trata-se apenas de
uma “idéia reguladora”, constitutiva do processo de escrita, que não pode ser substituída
pela invocação do público atual. De resto, apelando para a própria experiência na
Rússia, Groys acha que tal leitor é muito menos utópico do que se poderia pensar, e
dispensa qualquer objetivo de acumulação de capital simbólico, na linha suposta por
Bourdieu.
Em suma, o que Groys argumenta é que se a escrita fosse apenas determinação do leitor
vivo, não se poderia ler ou gostar de livros de períodos fora de seu próprio tempo de
lançamento. O que ocorre, entretanto, é o contrário: os autores mais interessantes, em
geral, são os mais insensíveis aos desejos do público de sua época.
De outro lado, Groys concorda que existe uma realidade da arte e da literatura que se dá
como acumulação de objetos materiais, de vetores e mídias que suportam a cultura por
força da própria materialidade. Tal cultura materializada se liga a instituições como
bibliotecas, museus ou programas de educação e de formação, relacionados à “herança
cultural” –a qual, por sua vez, nos dias atuais, é bastante criticada em nome do tempo
presente, do público atual.
Uma crítica dessas, para Groys, não tem a menor vocação crítica. Para mim, este é um
ponto decisivo a reter em suas idéias. A suposta crítica do antigo em favor da atenção
do crítico à produção atual, não passa de entrega ao “ar do tempo”, isto é, à banalidade
que penetra como resfriado as idéias contemporâneas, e que serve de pretexto para a
adulação do leitor real. Mais interessante que isso seria, na direção oposta, criticar o
tempo presente em nome da herança cultural, olhar para o tempo presente com a
distância crítica que apenas o legado cultural permite.
Ter “vista curta”, segundo Groys, é exatamente isso: interpretar o legado cultural apenas
como coisa atestada e transmitida pela instituição –sendo a instituição, por sua vez,
tomada como objeto primeiro, senão único, de exame da crítica. Ocorre que, posto que a
herança cultural seja material, a sua conservação é também extra-institucional. Isto é,
não apenas a política ou a política cultural determinam a conservação de certos quadros
e obras, ou a perda irreparável de outros, mas também a ocorrência ou não de acasos, de
catástrofes naturais, de circunstâncias imprevisíveis que podem tanto devastar quanto
criar segmentos inteiros de cultura. Portanto, por mais materializada que seja, a
“herança cultural começa antes da institucionalização e termina depois dela".
Essa observação de Groys está em oposição direta à idéia liberal e democrática de que
as pessoas, no fundo de si mesmas, sempre são interessantes e originais. Bem ao
contrário, a noção de subjetividade, nos termos de Groys, define-se em função de um
“trabalho” sobre as imagens feitas a respeito de si. Trata-se de um espaço invisível de
manipulação imagética, bem distinto da idéia de “individualidade”, se esta for entendida
como imagem original, predefinida e intocável.
Groys menciona os escritos tardios de Freud como apoios para leituras que ressaltam os
aspectos reprodutivos dos traumatismos coletivos e interpretam a reprodução traumática
como vetor material da herança cultural. A hipótese dessas leituras é que a cultura não
poderia se reproduzir senão por uma série de traumatismos sofridos, os quais,
paradoxalmente, assegurariam a sua continuidade histórica.
Nada está mais distante que isso da idéia de “política da imortalidade” sustentada por
Groys. Esta, como o próprio termo “política” evidencia, supõe “esforço consciente de
formulação, conservação e institucionalização de procedimentos de intervenção no
campo cultural”. Embora operando com ligações causais, a idéia do trauma como
fundamento da cultura existe sem qualquer fundamento extra-teórico, da mesma forma
que todas as outras idéias.
Assim, está claro que a “teoria do trauma” deveria ser interpretada apenas como mais
uma estratégia de imposição no campo da cultura, a qual, em determinadas
circunstâncias contemporâneas, torna-se muito sedutora.
O primeiro ponto a considerar nessa competição peculiar é que, para ele, “não se pode
obter na vida as vitórias que se deseja conquistar na arte”. Ou seja, em contraste com os
tantos nietzscheanismos ou deleuzeanismos vitalistas, que gostam de brandir a categoria
desbundada da vida como justificativa para a arte, para Groys, bem ao contrário, “a vida
jamais se constitui como um atalho para a grandeza literária”.
Para Groys, foi este atalho que tentaram tomar aspirantes a artistas como Goebbels
(“quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver”) ou Hitler, entre tantos outros.
Tornaram-se criminosos excepcionais, mas não artistas de alto nível.
Groys admite que tal “exigência escandalosa” da cultura seja ficcional, imaginária, mas,
para ele, aí reside a sua força. Se não se tem interesse pessoal ou compromisso com esse
tipo de ficção, não há nada a fazer: a exigência simplesmente perde sua força. Levar a
exigência cultural a sério significa entrar pessoalmente na competição da cultura, ou, de
outra maneira, como diz Groys, “tomar a si próprio como vetor material de cultura”.
Um fenômeno curioso observado por ele é que, quando o encontro de alguém com a arte
e a cultura, ocorre tardiamente (por conta, por exemplo, de um meio familiar inculto), a
tendência é confundir-se a exigência da cultura com uma força institucional real, isto é,
como se ela fosse uma imposição produzida por uma classe, uma raça estrangeira ou
alguma forma de ditadura burocrática, que exige saberes, no fundo, para recusar postos.
Tal experiência traumática de encontro com a cultura pode gerar atitudes tanto de
veneração quanto de horror por ela, tanto uma subjugação extrema à cultura quanto uma
revolta violenta contra ela. Isto porque, nos dois casos, o encontro com a cultura não é
percebido como aquilo que realmente é: um jogo com regras próprias, do qual ninguém
está obrigado a participar.
A adesão ao jogo decorre, como ficou dito, de uma convicção ficcional apenas. É a
perfeita compreensão dessa exigência imaginária que faz com que, na outra ponta do
exemplo, os filhos de meios cultivados sejam, por sua vez, menos produtivos
culturalmente: eles sabem que podem se dispensar sem punição desse tipo de jogo, caso
não se interessem por ele.
As exigências culturais não apenas são fictícias, como dizem respeito a um jogo de
“espectros”. Isto porque o objetivo dos artistas e pensadores é superar os melhores em
seu campo, o que inclui necessariamente, e, em primeiro lugar, os mortos. Isto é, os
artistas que desejarem alcançar o primeiro nível no campo da cultura devem posicionar-
se tão bem quanto o souberam fazer os mortos que se tornaram imortais.
Nessas condições, para Groys, a verdadeira pressão cultural não vem das instâncias de
poder, mas sim desses mesmos mortos ilustres. Eles são um caso muito mais sério do
que os vivos, pois continuam a perturbar o presente como verdadeiros criadores. É, pois,
com os mortos que os artistas estão em competição; como eles, querem, por exemplo,
chegar a ter edições integrais suas nas estantes das bibliotecas.
Mais ainda: os verdadeiros leitores dos artistas mais comprometidos com o campo da
arte são também os mortos, com os quais competem. O que interessa aos artistas
ambiciosos é o que Dante, Camões ou Shakespeare poderiam pensar a respeito deles, e
em que medida os imortais podem ser atingidos ou deslocados de seu lugar superior
pela força de sua própria corrida rumo ao pódio.
Neste ponto também reside uma dicotomia insuperável do artista vivo: o desejo de
matar os mortos, ainda uma vez, vencendo-os na grandeza do nome, e o desejo de que
esses mesmos mortos o reconheçam, sendo os seus primeiros leitores.
Ou seja, escrever livros, se é uma atividade irredutível à economia dos bens perecíveis
(e, portanto, esquiva-se de qualquer sociologia), tampouco se inscreve numa economia
do desejo (esquivando-se igualmente da psicanálise). Trata-se aqui, em suma, de
“construir um túmulo” ("mise au tombeau") para si mesmo.
Dito de outra forma: do ponto de vista cultural, só se começa a ser criativo quando se
começa a fabricar uma imagem duradoura de si. No vocabulário macabro de Groys, essa
imagem só é obtida quando o artista ou pensador começa a “embalsamar a si próprio”, a
se “transformar em múmia”, a construir para si um “perfil de cadáver”, ou, enfim,
quando trata de “representar o próprio enterro” em seus livros, imagens etc.
Assim, quando Groys alerta que arte e filosofia não podem ser deduzidas da vida, ele
pretende dizer que essa impossibilidade é completa: não podem ser extraídas nem do
que a vida de alguém tenha de excessiva, nem do que tenha de fracassada. Assim,
desgraçados de todo o mundo, desenganem-se! Miséria e sofrimento não são condição
relevante para a criação. Isto também significa que, diferentemente do lugar comum
divulgado a respeito, arte ou filosofia não nascem de uma preocupação ditada pela
vaidade, cujo móvel é o corpo vivo, mas de uma preocupação com o cadáver, com o
destino do corpo morto.
Para entender melhor a formulação de Groys, é preciso considerar que o cadáver que
interessa ao artista construir não se situa ao termo da vida, nem se produz como fuga da
vida, mas como marco que está em seu início. A mitologia vulgar sobre o artista
sensível ou frágil diante da vida não cabe aqui. O modo de vida próprio da arte tem
como condição primeira a adesão à corrida com/contra os mortos. Como diz Groys, à
sua maneira peculiar: “No princípio, era a múmia”.
Isto posto, a idéia de uma “política da imortalidade”, cara a Groys, deve ser entendida
como a maneira pela qual um artista ou pensador encontra de se tornar uma “múmia
indestrutível”, um “cadáver vivo”. Ou, para dizê-lo de outro modo, como a maneira que
o artista busca de transcender a sociedade efêmera dos seus contemporâneos por meio
de uma “metaposição”, isto é, da construção da própria imagem que vai além do mundo
dos que vivem e vão morrer. Ou, de outra forma ainda, por meio da construção de uma
forma de se comunicar com os mortos célebres e adquirir a imortalidade que já é deles.
É preciso ter claro que esta comunicação fúnebre, para Groys, nada tem de mística.
Trata-se de uma questão intrinsecamente política, prática, embora não seja matéria que
teorias científicas, sociológicas ou midialógicas possam dar conta. Adotar uma
“metaposição”, produzir uma visão de si mesmo no âmbito do campo artístico,
assemelha-se a entrar em contato com os mortos e esperar daí alguma espécie de
imortalidade.
Isto significa que o grande problema do artista é “entrar na tradição”, encontrar a porta
de entrada para a sala da herança cultural, e não a de saída, como se costuma pensar,
quando se fala de ruptura, inovação ou vanguarda. Os artistas que importam tratam de,
submetendo-se ao campo da herança cultural, buscar lá um bom enterro, ou, como diz
belamente Groys, “um lugar sob o céu do além”.
Este tipo de preocupação, estranha aos ocidentais não voltados para a criação, é,
entretanto, segundo Groys, bastante familiar aos egípcios, por exemplo. Para eles, a
alma deve partir para que o corpo fique. Nessa mesma chave de leitura, Groys entende
de maneira heterodoxa o famoso aforismo de Wittgenstein segundo o qual o filósofo é
como “a mosca que não consegue sair do vidro”. Pensa que isto quer significar que a
alma do pensador ou artista continua para sempre no âmbito do seu corpo, como
prisioneira da linguagem. Para ele, não poderia haver melhor imagem para descrever a
imortalidade no campo da cultura.
Groys aproveita de Husserl a idéia de que uma “atitude natural” em relação à vida está
em contradição com uma “atitude transcendental”, que preside o campo da arte e da
filosofia. Neste último, é irrelevante a separação entre o que existe no mundo real ou
não, como fantasmas e demônios, por exemplo. O decisivo na atitude transcendental é
saber o que é um demônio, reconhecê-lo em suas formas de representação, entender o
que se pensa quando se pensa nele, e, não menos importante, saber o que é preciso
fazer, quando se deseja invocá-lo.
A natureza do espaço da cultura não depende de que os atores do fato cultural estejam
vivos ou que existam realmente. O espaço simbólico da arte evolui, por assim dizer,
excluído da vida, como um espaço de sombras. Os espectros que o habitam, por sua vez,
da maneira como Groys os entende, nada têm a ver com a noção de “espectro”
formulada por Derrida. Diferentemente do que Derrida supõe, para Groys é fundamental
que os espectros possuam “vetores materiais”.
Vem daí o interesse das metáforas do “vampiro”, aplicadas por Groys como a figura que
melhor representa a cultura. De um lado, o vampiro “está entre os homens”, participa da
comunicação social viva; de outro, ocupa uma “metaposição”, isto é, tem a perspectiva
de um morto que não participa dos sentimentos coletivos dos vivos.
Além disso, a imagem do vampiro tem a vantagem adicional de apontar para um lugar
fixo, um vetor material evidente de si: o seu caixão. Um vampiro depende de seu caixão
para continuar vivo, como o artista de sua obra. Sem o corpo da obra, que possa
permanecer materialmente no mundo dos vivos, não há imortalidade que se possa
defender.
Enfim, a questão de Groys é clarificar o funcionamento da competição cultural,
encontrar as determinações de suas regras, isto é, aquilo que a faz, de fato, uma
competição. Nesses termos, um discurso que faz convergir a arte para a vida e vice-
versa, como uma filosofia do êxtase ou da transgressão, se não tem o menor interesse
para ele enquanto imagem particular fornecida à cultura, interessa-lhe muito como uma
estratégia possível a utilizar na competição do campo das artes. Quer dizer, mais do que
conhecer os conteúdos de certa obra, interessa-lhe o exame de sua pragmática, da sua
política de inscrição do artista no campo santo dos grandes da cultura.
Nesta particularíssima maneira de viver, não se admite ensino ou pedagogia. Os que não
a praticam tendem a considerá-la incompreensível. A noção de “forma de vida”, tal
como Wittgenstein a aplica e Groys a toma, supõe que a filosofia, como a arte, “deixe o
mundo como está”, mas transforme o artista ou filósofo, porque exige todo o seu tempo
para as operações do jogo que lhe é próprio.
Desse mesmo ponto de vista, arte e filosofia, diferentemente da ciência, não podem ser
postas à disposição de todos, nem podem ser acumuladas. Isto equivaleria, para Groys, a
uma expectativa tão delirante quanto imaginar que o treino duro de um atleta pudesse
fazer com que toda a assistência adquirisse musculatura.
Rigorosamente, para ele, arte e filosofia são uma forma de treino do espírito, entendido
como trabalho de construção da “subjetividade”. E, em relação a esse tipo de trabalho,
tudo o que se pode dizer é que certas regras e conselhos podem ser utilizados para o
“próprio” treino.
Enquanto forma de vida, arte e filosofia tampouco participam de uma busca cartesiana
de “evidência”. Trata-se, no máximo de “apresentar evidências próprias para outros”,
como o artista exibe publicamente as suas obras ou as imagens que produziu de si. O
artista ou o filósofo também não podem ser alguém que “vê”, que antevê de modo
especial, pois a sua especialidade não existe como substância de uma virtualidade
íntima, mas como técnica de mostrar para outros.
Um dos temas mais desenvolvidos nas reflexões de Boris Groys é o sentido do “novo”,
ao qual dedica um de seus livros. A primeira coisa a dizer a respeito é que, na sua noção
de novo, não é fundamental a idéia de “ultrapassar o antigo”. Se o antigo fosse
ultrapassado seria impossível distinguir o novo, pois este só surge na comparação com o
antigo. A “necessidade de novidade” surge da proibição de violar o direito dos outros
autores em relação àquilo que já disseram ou fizeram. Ou seja, “o novo é uma exigência
imposta pela tradição” e não uma ação independente ou exterior a ela.
Groys supõe que, no terreno da cultura, vigore uma espécie de “regime de propriedade”:
quem quiser se instalar nele, está obrigado a buscar um lugar novo para si. Tal
obrigação ou exigência nada tem a ver com a idéia de produção do “inteiramente
original” romântico, e sim com a de o artista encontrar uma nova maneira de se localizar
no próprio campo duradouro da herança cultural.
Nos discursos artísticos e filosóficos interessantes, está sempre em jogo o que Groys
chama de “refundação”, termo que, para ele, se associa a uma impossibilidade de
compreensão ou de atribuição de sentido. Isto porque, se uma teoria ou objeto artístico
estão obrigados à novidade para se impor, tal imposição implica que a teoria ou objeto
não possam ser confirmados, nem negados pelas posições conhecidas.
Isto é, quando uma teoria ou uma criação são novas, elas se “esquivam” tanto da
simples confirmação na autoridade da herança, quanto da negação dela, pois, no
primeiro caso, não passariam de uma dedução do antigo, no segundo, seriam
contraditadas ou excluídas do campo cultural.
Assim, para Groys, a melhor estratégia para obter o novo está, num primeiro momento,
em encontrar um “lugar neutro” de formulação, isto é, um lugar fora do âmbito das
distinções ou oposições conhecidas. Num segundo momento do jogo, trata-se de tentar,
aí, sim, uma “estratégia revolucionária” de expansão desse discurso. Isto significa
“obrigar a se mexer do lugar” tudo o que o precedeu. Refundação, nestes termos,
implica em reestruturação de toda a herança cultural.
Na metáfora anterior dos móveis da casa, é como se um novo móvel entrasse em seu
espaço e a casa inteira tivesse de sofrer uma reacomodação. Portanto, para que a
refundação ocorra, tem de haver uma operação decisiva que mostre o deslocamento que
a idéia nova produz na tradição, ou, enfim, que demonstre de que maneira esta é forçada
a se rearranjar em função da primeira. Apenas nesse ponto, a idéia tem força para se
impor como nova.
De qualquer modo, o início do processo está em ajuntar uma nova figura ao campo da
filosofia ou da arte, cujas continuidades internas são largamente ilusórias. A aparência
de permanência ou rigidez dos campos se deve, de fato, aos “arquivos”, aos museus, que
são exteriores, artificiais e materiais.
Groys acha que isso se dá porque há uma espécie de “atitude contemplativa” suposta em
ambas, o que as torna especialmente sedutoras em face da tendência dominante de
utilitarismo superprodutivista. Por isso mesmo, supõe que arte e pensamento são ainda a
melhor chance de “sair da prisão do ar dos tempos” e de “estabelecer contato com
outros tempos e espaços”, para, enfim, “submeter o próprio presente a uma observação
crítica e distanciada”.
Por outro lado, cabe lembrar que, se arte e pensamento são uma forma de vida aberta a
todos, também é verdade, como ficou dito mais atrás, que ela não tem grande coisa a
oferecer àqueles que não aceitam jogar o seu tipo de jogo. Isto é, aquele cuja alegria
última, a pensar nos termos de Groys, é se aplicar à construção do próprio túmulo, para
um dia, com muita sorte, poder se deitar nele e gozar de um merecido relaxamento.
Publicado em 12/9/2008
Alcir Pécora
É professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de
"Máquina de Gêneros" (Edusp).