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Etnodesenvolvimento & Universidade:

formação acadêmica para povos indígenas


e comunidades tradicionais

Assis da Costa Oliveira & Jane Felipe Beltrão


(Organizadores)

Editora Santa Cruz


Belém - 2015
Etnodesenvolvimento & Universidade:
formação acadêmica para povos indígenas
e comunidades tradicionais

Assis da Costa Oliveira & Jane Felipe Beltrão


(Organizadores)

Editora Santa Cruz


Belém - 2015
Comissão Científica

Aloir Paccini (PPGAS/UFMAT)


Antonio Carlos de Souza Lima (MN/LACED/UFRJ)
Antonio Gomes Moreira Maués (PPGD/UFPA)
Carmen Lúcia Silva (PPGAS/UFMT)
Claudia Lee William Fonseca (PPGAS/UFRGS)
Cristhian Teófilo da Silva (CEPC/UnB)
Denise Pahl Schaan (PPGA/UFPA)
Eliane de Silva Sousa Faria (FACEtno/UFPA)
João Pacheco de Oliveira Filho (MN/UFRJ)
Jorge Eremites de Oliveira (PPGA/UFPel)
José Héder Benatti (PPGD/UFPA)
Márcio Couto Henrique (PPHIST/UFPA)
Mariana Trotta Dallalana Quintans (FND/UFRJ)
Nelson Souza Júnior (PPGFIL/UFPA)
Paulo Gilberto Cogo Leivas (MPF/RS – UNIRITER)
Rita Gomes Nascimento Potiguar (MEC)
Rosa Sebastiana Colman (UCDB/MS)
Sérgio Baptista da Silva (PPGAS/UFRGS)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (PPGAS/UFAM)
William César Lopes Domingues (FACEtno/UFPA)
Zélia Amador de Deus (ICA/UFPA)
Copyright © 2015 by Universidade Federal do Pará – UFPA
Editora: Santa Cruz / Capa e contracapa: Paula Lacerda.
Revisão: Jane Felipe Beltrão, Camille Gouveia Castelo Branco Barata e
Assis da Costa Oliveira.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP

D598 Etnodesenvolvimento & Universidade: formação acadêmica para povos indígenas e


comunidades tradicionais / Assis da Costa Oliveira e Jane Felipe Beltrão,
organizadores. Belém: Editora Santa Cruz, 2015.

314p.

ISBN: 978-85-68980-00-2

1. Etnodesenvolvimento. 2. Universidade. 3. Povos Indígenas. 4. Comunidades Tradi-


cionais. I. Oliveira, Assis da Costa. II. Beltrão, Jane Felipe. III. Título.

CDD - 23.ed. 306.362098115


Prefácio
Aurélio Vianna Jr.1

O livro Etnodesenvolvimento & Universidade reúne artigos de professo-


res e colaboradores do Curso de Etnodesenvolvimento sobre experiências de
educação superior para jovens de comunidades indígenas, quilombolas, extra-
tivistas e assentadas pela reforma agrária. O Curso, oferecido pela Faculdade
de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA) no Campus de
Altamira, é um dos resultados de um inovador programa de ação afirmativa, co-
ordenado pela professora Jane Beltrão e apoiado pela Fundação Ford. Em 2008
fui o assessor de Programa da Fundação Ford, responsável pela doação que
colaborou com a criação desse programa, o Programa de Políticas Afirmativas
para Povos Indígenas e Populações Tradicionais (PAPIT). Assim, aproveito-me
desta oportunidade para recuperar parte das ações e discussões ocorridas na
Fundação Ford que levaram à aprovação dessa inovadora proposta apresentada
pela UFPA à Fundação Ford.
O apoio da Fundação Ford ao PAPIT deu-se por meio de uma doação
do programa internacional Pathways to Higher Education. A iniciativa2 Pa-
thways foi estabelecida pela Fundação Ford em 2001 como complemento ao
International Fellowship Program (IFP), também da Fundação Ford. Pathways
foi uma iniciativa global de dez anos, com recursos totais da ordem de U$50 mi-
lhões, que buscou apoiar mudanças em instituições de ensino superior fora dos
Estados Unidos da América, com vistas a possibilitar que estudantes oriundos
de parcelas da população “sub-representadas” no ensino superior (graduação)
tivessem acesso à universidade, por meio da transformação das políticas insti-
tucionais universitárias, de suas práticas de ensino, currículo e outras atividades
educacionais e culturais3 (Petrovich, 2007: 1-2). Assim, enquanto o Programa
1
Doutor em Antropologia Social, oficial senior de programa da Fundação Ford no escritório do Rio de
Janeiro. Contato: a.vianna@fordfundation.org.
2
“Iniciativa” é um termo utilizado pela Fundação Ford para designar um programa de apoio financeiro
(mediante doações) a projetos, tanto no âmbito internacional quanto regional ou nacional.
3
“In 2001 the Ford Foundation launched a $50 million, ten-year global initiative, Pathways to Higher
Education, to support efforts that transform higher education institutions outside the United States to
enable greater numbers of poor, minority, or otherwise underrepresented students to obtain a university
degree.Pathways supports more that 125 higher education institutions across the world that are working
to transform their policies, classroom practices, missions, curricula, and daily operations so that more
students from marginalized groups enter and graduate from universities” (Petrovich, 2007: 1-2).
V
IFP, coordenado no Brasil pela Fundação Carlos Chagas, apoiava individual-
mente estudantes no acesso à pós-graduação, a Pathways pretendia contribuir
para mudanças institucionais (em universidades).
O programa Pathways apoiou uma notável diversidade de ações em onze
países, sendo que, entre eles, apenas no Brasil considerou-se apoiar projetos que
delimitem seus “beneficiários” de diferentes maneiras. Assim, a Fundação apoiou
projetos em dois grandes campos: “afro-brasileiros” (“estudantes negros e par-
dos”) e “indígenas”, e, em um único caso, estudantes classificados como “povos
tradicionais”. E, à exceção da primeira doação feita em 2001, todas as outras tive-
ram como responsáveis oficiais de programa da Fundação Ford que não eram da
área de Educação, mas de Direitos Humanos, Saúde Reprodutiva e Sexualidade,
Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Gabriel Lopez, oficial de programa de Desenvolvimento Sustentável, foi
responsável pela primeira doação ao Pathways “indígena”. Ondina Leal, de Se-
xualidade e Saúde Reprodutiva, deu seguimento à mesma doação; Denise Dora,
de Direitos Humanos, foi a responsável pelas doações relativas a afro-descen-
dentes; e, enfim, eu mesmo fui responsável pela segunda etapa do Pathways
indígena e pela primeira doação a povos tradicionais, o já referido PAPIT.
As doações da Fundação a programas de educação superior direcionados a
“estudantes negros” são anteriores à iniciativa Pathways. Em artigo que analisa a
atuação da Fundação Ford na área educacional no Brasil, Campos (2002) destaca
a mudança ocorrida na década de 1990, consolidada com a contratação de Nigel
Booke como oficial de programa em 1994, depois empossado representante, em
2000. Booke implantou a saída da Fundação do “campo do ensino superior e da
atividade acadêmica” e a entrada “na área da reforma educacional” (116). A partir
daí, a Fundação Ford passou a apoiar no Brasil duas iniciativas: uma, de “forta-
lecimento da gestão do ensino”, e outra, de “combate às desigualdades raciais na
educação, diretriz que já vinha sendo trabalhada desde a década anterior e que
ganhara crescente impulso.” Nesta última, a Fundação teria assumido, “desde o
início, um papel de liderança, apontando numa direção que ainda era incipiente na
área de educação” (117), com destaque para o apoio a pesquisas sobre educação
dos “negros” e à “experimentação de novos métodos para melhorar o acesso ao
ensino superior e os índices de graduação dos alunos negros” (118).
VI
Em 2001, o escritório do Brasil começou a discutir a iniciativa global
Pathways e Booke foi responsável por uma doação ao Laboratório Políticas
da Cor, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, de apoio ao acesso à
educação superior para afro-brasileiros.
A seguir, verificou-se a possibilidade de apoiar a formulação de um pro-
grama de educação superior para a formação de “populações tradicionais”. O
sucesso do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvi-
mento (LACED) do Museu Nacional (MN) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) com o Curso de Especialização Gestão em Etnodesenvol-
vimento, organizado em 2002 em parceria com a Universidade Federal do
Amazonas (UFAM) e apoiado pela Fundação Ford, qualificava-o para coor-
denar a iniciativa e serviu como parâmetro para o diálogo sobre uma nova
proposta na área de educação a ser apoiada pela Fundação Ford.
Ao escolher o LACED como donatário, a Fundação garantia que esse
programa de educação estaria vinculado, ao mesmo tempo, ao debate mais
amplo sobre povos indígenas e políticas públicas e, por outro, às organiza-
ções indígenas que participavam dos movimentos indígenas. Ou seja, o que
parece ter sido decisivo na escolha não foi o acúmulo do LACED no campo
da educação superior – onde existiam outras instituições acadêmicas com
bem mais acúmulo e legitimidade, mas sua experiência e reconhecimento
como um centro de excelência em relação à questão indígena e políticas pú-
blicas, particularmente as relativas a territorialidades.
Depois de meses de diálogo, surgia, assim, uma proposta: Trilhas de
Conhecimento: O Ensino Superior de Indígenas no Brasil. Assim, o progra-
ma Trilhas de Conhecimento foi iniciado em 2004, restrito ao apoio a povos
indígenas, apesar de originalmente pensado para “populações tradicionais”.
O LACED passou a exercer múltiplas funções, sendo prioritária a de coorde-
nação de um conjunto de doações a universidades a serem selecionadas com
vistas à criação de pilotos, ou casos exemplares, de mudanças institucionais
que facilitassem o acesso e a permanência de indígenas em universidades.
Os pressupostos conceituais do programa podem assim ser resumidos: a)
a característica singular dos povos indígenas no Brasil, considerando-se sua
reduzida importância demográfica, grande diversidade étnica e o considerá-
VII
vel avanço na demarcação de terras indígenas na Amazônia; b) a existência de
organizações indígenas (e de movimentos indígenas) que, apesar de buscar re-
presentar apenas 0,4% da população, conta com grande prestígio simbólico no
campo político; c) a importância da qualificação acadêmica de indígenas com
vistas a qualificá-los a melhor controlarem suas terras (12% do território brasi-
leiro, 23% da Amazônia brasileira); d) a diversidade de situações de “contato” e
a relevância, até então não considerada, dos chamados “índios nas cidades”; e)
a baixa priorização da temática da educação superior por parte dos movimentos
e das organizações indígenas.
O LACED logrou estabelecer contatos, ao mesmo tempo, com as principais
instituições acadêmicas, governamentais, não governamentais e, ainda, com os
movimentos indígenas, com vistas a desenhar e implantar o processo de seleção
de projetos a serem apoiados com recursos do programa.
O Trilhas constituiu um Conselho Consultivo que contou com a participação
de representantes indígenas e da comunidade acadêmica e serviu para discutir os
critérios de apoio e incentivo à elaboração de propostas a serem apoiadas finan-
ceiramente e, ainda, para discutir as propostas e monitorar sua execução.
A um só tempo, o LACED desenvolvia pesquisas (dissertações, teses), traba-
lho de advocacy junto ao Ministério da Educação, parcerias com os movimentos
indígenas, que ainda não priorizava a temática da educação superior, e atividades
de apoio à elaboração de projetos a serem apoiados. A pequena equipe do LA-
CED logrou atuar como centro de pesquisas, instituto de educação e “think tank”.
Em setembro de 2004, o LACED organizou seminário com apoio do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), quando foi lançado publicamente
o programa Trilhas. O seminário, considerado por muitos um ponto de inflexão
nas políticas públicas de educação superior concernentes aos povos indígenas,
teve como um de seus resultados a parceria do programa com o governo bra-
sileiro, que resultou na publicação de uma série de quatro livros didáticos ela-
borados pelo LACED, publicados e distribuídos pelo Ministério da Educação4.

4
Série Vias dos Saberes: O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil
de hoje, de Gersem dos Santos Luciano – Baniwa; A presença indígena na formação do Brasil, de João
Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire; Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito
à diferença, organizado por Ana Valéria Araújo; e Manual de linguística: subsídios para a formação de
professores indígenas na área de linguagem, de Marcus Maia.
VIII
Desde 2004, a iniciativa Pathways, em suas doações relativas à edu-
cação superior indígena, encontra-se relacionada a outras que consideram
os povos indígenas e outros “povos tradicionais” como sujeitos de direitos
territoriais na Amazônia.
Nesse sentido, a perspectiva do programa Trilhas de Conhecimento para a
formação de indígenas com melhor qualificação universitária em diversos cam-
pos do conhecimento poderia levar ao fortalecimento das organizações e do mo-
vimento indígena, de suas demandas e, particularmente, as que tivessem maior
controle sobre suas terras demarcadas.
A doação Pathways foi internalizada em carteira de projetos que naquele
momento também apoiava indígenas por meio das seguintes instituições: a Co-
ordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), com
o projeto de fortalecimento das organizações dos povos indígenas na Amazônia;
o Instituto Socioambiental (ISA), em seu Programa de Políticas Públicas para
o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia; o Instituto Indígena Brasileiro
da Propriedade Intelectual (INBRAPI), com o Projeto de Proteção de Conheci-
mentos Tradicionais e de Desenvolvimento Sustentável; o Vídeo nas Aldeias, na
produção audiovisual para o fortalecimento de comunidades indígenas.
O Pathways indígena, do ponto de vista da carteira de projetos que o ge-
renciava no Brasil, encontrava-se ainda num contexto relacionado ao apoio à
diversidade de povos tradicionais e de iniciativas de reconhecimento e visibi-
lização de suas identidades, particularmente quando relacionadas a demandas
territoriais. Assim, o Pathways também se inseria num conjunto mais amplo de
projetos, não apenas relacionado à questão indígena, mas a processos de iden-
tificação, fortalecimento institucional e mapeamento de povos e comunidades
tradicionais, como o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, que busca
identificar e mapear povos e comunidades tradicionais na Amazônia, do Progra-
ma de Pós-Graduação de Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Ama-
zonas (UFAM); o projeto do Laboratório de Informações Georreferenciadas da
Região Transamazônica, que tem servido de instrumento para a demarcação
de unidades de conservação (como as reservas extrativistas) e projetos de as-
sentamento, da Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP); o projeto Saúde
e Alegria, que, pela implantação e manutenção de laboratório de informações
IX
georreferenciadas, tem servido para responder às demandas de mapeamento
de organizações da sociedade civil na região de Santarém (Pará), como, por
exemplo, as associações de quilombolas; e o Fundo Dema, com linha de apoio
institucional a associações de quilombolas.
Nesse sentido, a iniciativa Pathways no Brasil, no que se refere aos povos
indígenas e, veremos adiante, povos tradicionais, passou a situar-se num contexto
de valorização da diversidade cultural (e de relação com a terra e territórios) de
diferentes sujeitos, ainda que priorizando um conjunto de grupos identitários clas-
sificados como indígenas ou membros de diferentes comunidades tradicionais.
O Trilhas de Conhecimento desenvolveu, em sua primeira fase, as seguin-
tes ações: instalou seu Comitê Assessor com a participação de lideranças in-
dígenas (Gersem dos Santos Luciano – Baniwa5 e Maninha Xucuru-Cariri) e
especialistas; selecionou os projetos de universidades que deveriam ser apoia-
dos (E’ma Pia e Rede de Saberes); interagiu com os núcleos dos programas
nas universidades selecionadas; criou uma rede de discussões sobre a temática;
desenvolveu pesquisas; publicou livros; organizou seminários temáticos sobre
educação superior indígena e, mais do que planejado, colaborou decisivamente
para a formulação de políticas de educação superior indígena junto às organiza-
ções indígenas e ao governo federal.
Do ponto de vista da Fundação Ford, a coordenação do programa logrou
atingir resultados bem mais ambiciosos que os originalmente estipulados ao
considerar, ao longo de todo o período de execução, atividades de: a) apoio a
programas já existentes em universidades (como o INSIKIRAN, da Universi-
dade Federal de Roraima (UFRR)), na expansão de sua atuação para além da
formação de professores indígenas (licenciaturas), incluindo, assim, outros cur-
sos superiores (direito, medicina, enfermagem, por exemplo); b) assistência ao
governo federal em relação à questão indígena e ao sistema de ensino superior
no Brasil; c) formação junto a organizações indígenas com vistas à inclusão da
temática da educação superior em sua agenda política, o que levou a trabalho
específico com o então recém-criado Centro Indígena para Estudos e Pesquisas
(CINEP); d) produção de conhecimento sobre a educação superior indígena,

5
Ao mesmo tempo, uma liderança indígena e um pesquisador/especialista.

X
num contexto mais amplo de grupos sociais identificados como povos ou
comunidades tradicionais, com vistas a fazer com que a educação superior
realmente atendesse às demandas desses povos no Brasil, algo que somente
foi equacionado pelo programa em sua segunda etapa, quando o LACED,
apesar de não estar coordenando processos de subdoações, colaborou deci-
sivamente para a elaboração do PAPIT da UFPA; e) apoio a um novo progra-
ma – Rede de Saberes, que desenvolveu um trabalho junto a universidades
públicas e privadas no estado de Mato Grosso do Sul, de apoio ao acesso e
à permanência de estudantes indígenas; g) inclusão dos indígenas nos de-
bates sobre ação afirmativa, até então centrado na discussão sobre cotas em
relação a afro-descendentes; e h) análise e formulação de projetos que con-
sideram a dupla lógica de configuração da demanda indígena de educação
superior no Brasil que, por um lado, se relacionava com as terras indígenas e
a luta por direitos dos povos indígenas e, por outro, com a demanda basica-
mente de indígenas que vivem nas cidades, de aperfeiçoamento por melhor
inserção no mercado do trabalho, mesmo sem se relacionar com as organi-
zações ou os movimentos indígenas.
A segunda fase do Pathways indígena no Brasil foi inaugurada com doa-
ção para o LACED desenvolver iniciativas de produção de conhecimento, ad-
vocacy e, ainda, da formulação de um inovador curso a distância para aten-
der a funcionários de universidades que trabalham com estudantes indígenas.
O LACED, naquele momento, já havia consolidado o site do Programa e uma
lista de discussão que continua ativa, tanto no que tange à educação superior
indígena quando à questão indígena em geral.
Simultaneamente, foi realizada uma segunda doação do Programa Redes de
Saberes, que, depois de uma fase piloto, buscava, com a criação de ampla rede
de universidades no estado do Mato Grosso do Sul, atender a mais de 95% dos
estudantes indígenas matriculados, além de desenvolver iniciativas de apoio à
organização dos estudantes indígenas.
A última doação da segunda fase do Pathways foi para a Universidade Fe-
deral do Pará, para, em parceria com outras instituições, inclusive o LACED,
desenvolver pesquisas e formatar um curso de etnodesenvolvimento, a ser
ministrado no Campus de Altamira, para atender prioritariamente a estudantes
XI
indígenas, quilombolas ou membros de comunidades tradicionais. Se os desa-
fios colocados pela demanda de acesso à educação superior por indígenas já
eram imensos, o de atender a uma diversidade ainda maior de grupos identitá-
rios apresentava-se como ainda maior. Além disso, como assinalado anterior-
mente, os indígenas e os demais povos e comunidades tradicionais formulavam
demandas que iam além do acesso ao ensino superior, mas também o do reco-
nhecimento do conhecimento tradicional pela Universidade.
Ainda que os avanços na educação superior indígena indicassem caminhos
para se enfrentar esse novo desafio, o que talvez tenha possibilitado a formulação
e a discussão de um programa como o PAPIT tenha sido um dos resultados mais
palpáveis das lutas dos povos e comunidades tradicionais: o reconhecimento e a
demarcação de terras indígenas, reservas extrativistas, assentamentos extrativis-
tas e quilombos, particularmente na Amazônia. O extraordinário avanço do re-
conhecimento dos direitos territoriais desses povos e comunidades na Amazônia
colocou, para eles mesmos, a necessidade de uma maior qualificação para garantir
seus territórios e para manejá-lo respeitando a forma tradicional de uso sustentá-
vel dos recursos naturais, o que implicava se relacionar com diferentes agências
do Estado, agências de cooperação internacional, organizações não governamen-
tais e outras instituições. Essa necessidade vinha – e diria, vem sendo – atendida
por profissionais que não são oriundos dessas comunidades. Tratava-se aqui não
apenas da necessidade do trabalho em seu próprio território, mas de diferentes ati-
vidades profissionais, dentro ou não dos territórios tradicionais, que poderiam ser
desenvolvidas por jovens dessas comunidades, se qualificados profissionalmente
para tanto. Quantos indígenas e quilombolas são contratados por agências do go-
verno de atendimento a essas comunidades? Quantos indígenas e quilombolas,
são funcionários das ONGs que apoiam ou trabalham com comunidades indí-
genas ou quilombolas? Perguntas como essas começavam a ser formuladas nas
reuniões entre “acadêmicos indígenas”, mas também entre jovens quilombolas e
moradores de comunidades extrativistas. Assim, o reconhecimento e a demarca-
ção desses territórios, que certamente são resultado da visibilização da afirmação
política de grupos identitários existentes, também parecem ter favorecido a ir-
rupção de novas demandas relacionadas à defesa e gestão desses territórios, que
também passava a incluir o acesso à educação superior.
XII
Esse foi o contexto que levou à aproximação da equipe coordenada pela
professora Jane Beltrão e a Fundação Ford, em conjunto com o Programa
Trilhas do Conhecimento, que resultou no apoio em 2008, por meio do pro-
grama internacional da Fundação Ford referido anteriormente, para a cria-
ção do PAPIT, que buscou: a) “assegurar a continuidade da discussão sobre
políticas afirmativas via os fori de graduação e pós-graduação da UFPA, vi-
sando modificações estruturais necessárias à implementação das mesmas”;
b) “implantar políticas institucionais ... (de criação) de vagas reservadas
e outros mecanismos”; c) “apoiar o acesso e a permanência dos estudan-
tes selecionados, garantindo e acompanhando o processo de formação em
nível superior”; d) “implantar no Campus de Altamira o Curso Piloto de
Etnodesenvolvimento”; e) “garantir que nas políticas diferenciadas se con-
templem as especificidades sócio-histórico-culturais desses segmentos”; e f)
“garantir o acesso dos estudantes aos meios de produção do conhecimento
acadêmico necessário ao enfrentamento de situações quotidianas adversas”
(Beltrão, 2008: 8).
O PAPIT apresentava como proposta algo como “tudo ao mesmo tempo
agora”, uma proposta ousada, que tratava a diversidade identitária em sua ple-
nitude, como diversidade, comportando diferentes identidades sociais territo-
rializadas como pertinentes a serem atendidas pelo Programa, que buscava, ao
mesmo tempo, estabelecer um processo seletivo especial na UFPA para jovens
indígenas, quilombolas, extrativistas e assentados e, ainda, criar um curso de
graduação em Etnodesenvolvimento no Campus de Altamira.
A criação do Curso de Etnodesenvolvimento em 2010, a formação de ba-
charéis e licenciados em 2014, a implantação de ações de etnodesenvolvimento
junto às comunidades tradicionais agora inspiram outras universidades, e mes-
mo movimentos sociais, que reconhecem a importância dessa iniciativa para a
Amazônia e para o Brasil. Ao considerar as comunidades indígenas e as comu-
nidades tradicionais como sujeitos políticos e sociais que demandam educação
superior, e não apenas como “pobres” destituídos de recursos financeiros e sim-
bólicos, o Curso de Etnodesenvolvimento busca contribuir para reforçar o papel
dos indígenas e dos povos tradicionais como protagonistas desse processo.
XIII
Referências
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diferença. Vol. 3. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional. Disponível em:
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genas e Populações Tradicionais. Belém, UFPA. (Inédito)
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Telles, E.. 2003. “US Foundations and racial reasoning in Brazil” In Theory, Culture
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XIV
Sumário
Prefácio ................................................................................................................... V
Aurélio Vianna

Leia e venha ao Etno .............................................................................................. 17


Assis da Costa Oliveira & Jane Felipe Beltrão

I. Etnodesenvolvimento & Educação

Povos Indígenas, antropologias e Estado no Brasil ............................................. 28


Antônio Carlos de Souza Lima

Etnodesdenvolvimento e desenvolvimento sustentável nas políticas para


quilombolas no Brasil ............................................................................................ 54
Rosa Elizabeth Acevedo Marin
Raimundo Erundino Santos Diniz

Para uma compreensão étnica do mercado de trabalho: reflexões sobre o


campo profissional em Etnodesenvolvimento ..................................................... 74
Assis da Costa Oliveira
Ivaíde Rodrigues dos Santos
Marilande Paiva Menezes

Educação universitária para povos e comunidades tradicionais: a experiên-


cia da UFGD ........................................................................................................... 93
Antônio Dari Ramos

II. Pedagogias & Vivências Diferenciadas

Interculturalidade e Diversidade: possibilidades de trabalho pedagógico em


contextos amazônicos ............................................................................................. 110
Rosani de Fatima Fernandes

Educação formal, mobilização política e mobilidade social: notas sobre


“lutas”, escolas e trajetórias .................................................................................. 129
Paula Lacerda

Etnodesenvolvimento & Arqueologia: experiências de ensino, pesquisa e


extensão com povos e comunidade tradicionais da região da Transamazônica
e do Xingu ............................................................................................................... 145
Eliane da Silva Sousa Faria

Diversidade & Educação: o desafio à docência intercultural ............................... 164


William César Lopes Domingues
Jane Felipe Beltrão
Educação superior diferenciada e reelaboração da diferença entre
indígenas na UFPA ............................................................................................ 171
Francilene de Aguiar Parente

Estradas, florestas, igarapés e sala de aula: lugares de aprender e ensinar


na Amazônia ....................................................................................................... 191
Flávio Bezerra Barros

III. Pedagogias & Interculturalidade

Ensino superior e os povos indígenas: um diálogo em construção? .................. 209


Adir Casaro Nascimento
Antonio Hilario Aguilera Urquiza
Beatriz dos Santos Landa

Nos tempos da Comunidade: interculturalidade pedagógica nos quilombos


de Salvaterra, Marajó (PA) ............................................................................... 225
Rhuan Carlos dos Santos Lopes
Eliane Faria de Sousa

Indígenas, quilombolas e trabalhadoras rurais: trajetórias no ensino


superior .............................................................................................................. 240
Mariah Torres Aleixo

Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas & Ensino Superior: a experi-


ência da Universidade Federal do Pará ............................................................ 252
Edimar Antonio Fernandes
Jane Felipe Beltrão
Assis da Costa Oliveira

Entre dois mundos: demandas & respostas à educação superior para/com


povos e comunidades tradicionais .................................................................... 281
Raquel Lopes

IV. Ensaios Fotográficos

Educação no banco dos réus – o que os discentes do Etnodesenvolvimento


têm a dizer? ........................................................................................................ 301
Paula Lacerda

Etnicidade & Universidade: a presença de povos indígenas e comunidades


tradicionais ......................................................................................................... 308
Assis da Costa Oliveira
Jane Felipe Beltrão
Leia e venha ao Etno

A elaboração de Etnodesenvolvimento & Universidade: formação acadêmi-


ca para povos indígenas e comunidades tradicionais representa a culminância
do “ciclo inicial” de construção do Curso de Licenciatura e Bacharelado em
Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará (UFPA), no Campus
de Altamira, contemplando artigos e registros fotográficos que problematizam
aspectos relevantes do desafio de concretizar o direito à diferença no campo
educacional.
Chamamos “ciclo inicial” porque, em 2015, a primeira turma que ingres-
sou no Curso, composta, originalmente, por 45 estudantes oriundos de povos
indígenas e comunidades tradicionais das regiões do Marajó, Tapajós, Transa-
mazônica e Xingu, completa sua trajetória dentro da UFPA. O compromisso
assumido antes e durante o percurso acadêmico logrou o êxito correspondente
a 40 concluintes, número que poucos cursos universitários podem comemorar!
Por outro lado, o ciclo continua, mais uma turma está em atividade letiva e outra
encontra-se em processo de inserção via processo seletivo diferenciado, com
uma demanda de acesso seis vezes maior do que o número de vagas ofertadas
(284 candidatos/as para 45 vagas, numa concorrência de 6,31 candidata/o por
vaga6), o que demonstra a existência de uma demanda estudantil que garante a
vitalidade da proposta por muitos anos.
É por, para e com tais discentes e os grupos de pertença que eles representam,
além de muitos outros inseridos na constelação da diversidade étnico-cultural brasi-
leira, que se plantou a semente de política afirmativa de curso universitário diferen-
ciado “às margens do Xingu”, sagrado rio dos povos indígenas, fruto do compro-
misso político-acadêmico de docentes e lideranças sociais, muitas das quais foram
gentilmente convidadas a contribuir com o livro que vem a público, de modo a
refletir e teorizar sobre as experiências vividas ao longo do Curso ou no âmbito da
educação intercultural em seus múltiplos níveis e espaços de ocorrência no Brasil.

6
Dados obtidos do Centro de Processos Seletivos (CEPS) da Universidade Federal do Pará (UFPA), re-
ferente ao Processo Seletivo Especial 2014-7 (Etnodesenvolvimento), cujo endereço eletrônico para ve-
rificação é: <<http://www.ceps.ufpa.br/daves/PSE%202014%20-%207/Demanda%20-%20Etno.pdf>>.
Acesso em: 10.12.2014.

17
Desde o surgimento institucional do Curso de Etnodesenvolvimento, em
2009, há a preocupação de possibilitar a produção teórica e de material audio-
visual que pudesse preservar a memória do percurso e das ações desenvolvidas,
ciente da responsabilidade em conduzir proposta inovadora no âmbito da gra-
duação acadêmica com a visão estratégica de transformá-lo em referência para
outras iniciativas de educação diferenciada nas universidades, pensadas a partir
(ou não) da ótica do etnodesenvolvimento, mas que tenham como elemento
comum a inclusão socioacadêmica de estudantes pertencentes aos povos indí-
genas e as comunidade tradicionais.
Em grande medida, tal preocupação, pode-se dizer, institucional – ou do
corpo docente e discente do Curso – deve-se a constatação da riqueza da expe-
riência desenvolvida ao longo de cinco anos de existência, quatro dos quais em
diálogo com os estudantes. A “consciência da riqueza educacional” não é outra
coisa senão a própria compreensão de que os momentos e os sujeitos envolvi-
dos estão construindo um caminho de “respeito à” e “qualificação para” diver-
sidade cultural e cujo retorno de transformação das estruturas universitárias é
ainda maior e de difícil mensuração, pois o processo continua em andamento.
Ao mesmo tempo, compartilham-se experiências de teorização e prática em
educação universitária diferenciada com povos indígenas e comunidades tradi-
cionais para comunicar o processo em si e estabelecer conexão com iniciativas
semelhantes desenvolvidas em outras universidades e escolas, na intenção de
fortalecer a articulação entre as ações empreendidas e a mobilização em prol de
melhores condições institucionais para o desenvolvimento das propostas.
Certamente, há uma mudança profunda no fazer universitário com a im-
plantação de cursos diferenciados como o de Etnodesenvolvimento. Mudança
que pode ser avaliada pelo protagonismo de povos indígenas e comunidades
tradicionais, por intermédio de seus representantes estudantis que “deixam
de ser expectadores” do processo de formação para tornarem-se sujeitos do
direito no acesso à formação acadêmica, à produção de conhecimentos in-
terculturais (no apoio mútuo entre conhecimentos científicos e conhecimen-
tos tradicionais) e à atuação profissional em consonância com as demandas
políticas e os direitos étnicos, em adequação à “forma étnica” de realizar o
18
desenvolvimento, logo, o etnodesenvolvimento – ainda que tal processo seja
marcado por embates internos e externos ao Curso e à UFPA, o que demonstra
que o colonialismo interno do Estado brasileiro ainda reverbera em mentes e
instituições, traduzindo-se em processos cotidianos que lamentavelmente con-
vertem a diversidade em desigualdade ou procuram reduzir a importância da
presença étnica no espaço universitário.
O livro divide-se em quatro sessões estabelecidas de modo a inserir conteú-
dos que reflitam sobre a formação acadêmica em Etnodesenvolvimento e/ou de
povos indígenas e comunidades tradicionais.
A sessão inicial, denominada Etnodesenvolvimento & Educação, abre com
o artigo Povos Indígenas, antropologias e Estado no Brasil, de Antônio Car-
los de Souza Lima, debatendo a mudança no cenário de garantias jurídicas,
investimentos socioeconômicos e acadêmicos aos povos indígenas no Brasil,
sobretudo depois da Constituição Federal de 1988 e da entrada de financiamen-
tos de organismos internacionais. Problematiza os embates levados pelos povos
indígenas para afirmação da cidadania frente à reprodução histórica, ainda pre-
sente, de ideologia desenvolvimentista e tutela extemporânea, sem descuidar
de uma percepção crítica das estratégias dos povos indígenas para fazer frente
a tais ideologias e a relação “unitária” do Estado, pela constituição de organi-
zações indígenas, alteração da administração pública e ainda pela formação de
uma “intelectualidade indígena”. A provocação reflexiva do autor indica que
“[é] preciso proceder a estudos em que analisar o Estado no tocante às políticas
indigenistas implique em analisar os povos indígenas como nelas entramados”
(Souza Lima, 2015: 51).
Rosa Elizabeth Acevedo Marin e Raimundo Erundino Santos Diniz, anali-
sam as formas como o Estado produz políticas de intervenção junto às comuni-
dades quilombolas com base em discursos e procedimentos políticos classifica-
dos como “desenvolvimento sustentável” e “etnodesenvolvimento”, discutindo:
“existem no Brasil condições de possibilidades para práticas de etnodesenvolvi-
mento em comunidades quilombolas?” (2015: 60).
A reflexão sobre as estruturas institucionais e tecnocráticas indica que há
ajustes e renovações aparentemente em favor do desenvolvimento sustentável,
19
local ou etnodesenvolvimento, que, na prática, colidem com as demandas qui-
lombolas, principalmente no que tange a garantia de direitos territoriais, a auto-
nomia na concepção e decisão sobre as políticas e o fortalecimento da organiza-
ção social, o que leva às disjunções entre o “fazer quilombola” e as estratégias
dissolutivas do Estado.
Na sequência, Assis da Costa Oliveira, Ivaíde Rodrigues dos Santos e Ma-
rilande Paiva Menezes problematizam o campo de atuação profissional em Et-
nodesenvolvimento a partir da ressignificação étnica da própria concepção de
mercado de trabalho e de formação acadêmica promovidas pelos estudantes do
Curso de Etnodesenvolvimento e seus grupos de pertença. Após descortinarem
a construção histórica da relação entre formação educacional e atuação pro-
fissional no contexto ocidental-capitalista, os autores abordam um cenário no
qual o “fator étnico” dos sujeitos formados em Etnodesenvolvimento possibilita
tanto o fortalecimento político-organizacional dos grupos de pertença com a
participação dos etnogestores, quanto a inserção dos profissionais em espaços
de mercado de trabalho para tencionar a atuação institucional mais coerente e
condizente com as demandas, direitos e interesses dos grupos de pertença.
Encerrando a sessão, Antônio Dari Ramos descreve e analisa a experiência
desenvolvida nos cursos diferenciados existentes na Faculdade Intercultural In-
dígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Inicialmente,
aborda o processo histórico de invasão e opressão aos povos Guarani e Kaiowá,
que resultou, no século XX, no confinamento populacional em reservas diminu-
tas que acentuam a precarização das condições de vida. Tal abordagem auxilia a
compreensão do papel estratégico que os cursos diferenciados da Faculdade In-
tercultural possuem para a mudança no cenário de reconhecimento identitário e
garantia de direitos aos povos Guarani e Kaiowá, procurando demonstrar como
ocorreu o planejamento e a execução dos cursos diferenciados, detalhando ana-
liticamente a Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu (Viver com sabe-
doria), iniciado em 2006.
Nesse caso, é particularmente interesse o modo como o corpo docente e
discente apropriou-se criticamente do termo interculturalidade, cuja opção po-
lítico-ideológica pela interculturalidade crítica foi a base para construção de
20
“episteme de fronteira que desse conta de valorizar ambos os saberes” (Ramos,
2015: 98), com consequências estruturais tanto na Licenciatura Intercultural
quanto nos demais Cursos ofertados. De maneira transversal, encontra-se evi-
dente o investimento permanente na avaliação coletiva e participativa das etapas
e ações realizadas, de modo a relevar a complexidade e as inovações empreen-
didas no diálogo profícuo entre Universidade e povos indígenas.
Pedagogias & Vivências Diferenciadas, segunda sessão do livro, traz um
conjunto de artigos que refletem sobre as experiências de docência junto aos
povos indígenas e comunidades tradicionais, especialmente, no âmbito do
Curso de Etnodesenvolvimento, mas não somente nele.
Rosani de Fátima Fernandes, educadora Kaingang, com larga experiên-
cia na docência e assessoria pedagógica de escolas indígenas, desenvolve
problematização bastante interessante sobre interculturalidade enquanto
princípio orientador da educação escolar indígena, demandada pelos povos
indígenas nas elaborações pedagógicas pela possibilidade de diálogo com
“novos conhecimentos”, considerados estratégicos aos enfrentamentos his-
tóricos e atuais.
Fernandes discute ainda a interculturalidade enquanto conceito na Lei nº.
11.645/2008 – que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e da cultural
afro-brasileira e indígena no ensino fundamental – mas que apresenta uma série
de dificuldades para implementação nas escolas não indígenas, e cuja inaplica-
bilidade, no entender da autora, prejudica a construção de práticas pedagógicas
interculturais que respeite a diversidade cultural em contextos amazônicos.
Paula Lacerda parte da vivência junto às lideranças e aos movimentos sociais
existentes na região da Transamazônica – adquirida durante o doutoramento e
pós-doutoramento – somada a convivência com estudantes da primeira e segun-
da turmas do Curso de Etnodesenvolvimento, realiza entrevistas com os prota-
gonistas, as quais permitem analisar a trajetória de “luta” de lideranças da região
em busca da educação formal revelando como ocorreu o processo sociopolítico
de conformação da educação enquanto reivindicação capaz de unir diferentes
movimentos sociais, em estreita relação com a percepção e intervenção sobre os
problemas estruturais da política de colonização da Transamazônica. Além dis-
21
so, atenta para a construção discursiva das lideranças entrevistadas indicando a
potencialidade transformadora atribuída à educação em suas vidas e os benefí-
cios e desafios que a formação em Etnodesenvolvimento faz emergir.
A docente do Curso de Etnodesenvolvimento, Eliane da Silva Sousa Faria,
reflete, no texto seguinte, sobre as experiências de ensino, pesquisa e extensão
desenvolvidas na área da Arqueologia, no âmbito do Curso, em disciplinas,
oficinas de extensão e visitas monitoradas ao Laboratório de Arqueologia Rio
Xingu. A autora reflete sobre como os participantes se apropriam da discussão
e dos saberes arqueológicos como possibilidade de lidar com seus patrimônios,
fato que evidencia a importância da Arqueologia para o entendimento da his-
tória local e das estratégias de povos indígenas e comunidades tradicionais em
“utilizar” dos artefatos arqueológicos para a afirmação de identidades étnicas e
efetivação de direitos ao território.
William César Lopes Domingues, educador Xakriabá, e Jane Felipe Beltrão,
ambos docentes do Curso de Etnodesenvolvimento, discutem a importância de
registrar e valorizar os materiais didáticos produzidos no Curso, enquanto suportes
pedagógicos da educação diferenciada propiciando aos estudantes que “se vejam”
e “se encontrem” na condição de protagonistas, uma vez que a pauta primeira é
a interculturalidade. Os autores brindam os leitores com o conteúdo de um texto
didático, trabalhado como material de apoio da disciplina Antropologia da Saúde
e da Doença, que indica não apenas a construção de linguagem adequada para o
trabalho com a diversidade cultural, mas também, e acima de tudo, permite com-
preensão étnica – no caso, de povos indígenas – da saúde relacionada a diferentes
formas de intervenção e construção social do corpo e da pessoa, que ao final inter-
rogam e fomentam o debate e a problematização coletiva do tema.
O quarto artigo, escrito por Francilene de Aguiar Parente, docente do Curso
de Etnodesenvolvimento, analisa de que maneira as atividades propostas no
decorrer do Curso contribuíram para o processo de afirmação e reconhecimento
étnico de sujeitos e pertenças, tomando como suporte relatos escritos e depoi-
mentos de indígenas estudantes, os quais, apesar de circunscrito ao plano local,
é contextualizado, pela autora, a partir das lutas dos movimentos indígenas em
prol de uma educação diferenciada e pela conquista de cidadania diferenciada.
22
Atenção está centrada no modo como os indígenas estudantes passam da au-
to-representação enquanto “descendentes” de povos indígenas – interligada à
leitura das discriminações e dificuldades sofridas por viver na área urbana da
cidade de Altamira, sobretudo no período da educação escolar – para a da auto-
denominação de indígena, enleada num conjunto de saberes e atos elaborados
ao longo do período de permanência no Curso, provavelmente por conta da
estrutura curricular, da Pedagogia da Alternância e da oportunidade futura de
entrar no mercado de trabalho.
Escrito por Flávio Barros, o último artigo da sessão, desfia memórias e expe-
riências pedagógicas vividas pelo autor durante o processo de interação com os
discentes do Curso de Etnodesenvolvimento, apresentando a forma de execução
das disciplinas e as atividades de campo desenvolvidas em comunidades dos
grupos de pertença dos estudantes. O texto aponta dificuldades e diversidades
de saberes, fazeres cosmologias, práticas e modos de vida que “marcam” de
forma indelével as práticas educacionais dialogadas.
Pedagogias & Interculturalidade é a denominação da terceira sessão do livro
e traz a lume o debate sobre a interculturalidade no plano da educação universi-
tária, entrecruzando experiência de profissionais “de dentro” do Curso e colegas
da Universidade Católica Dom Bosco que pioneiramente desenvolvem trabalho
de grande repercussão no Mato Grosso do Sul.
Em Ensino superior e os povos indígenas: um diálogo em construção? Adir
Casaro Nascimento, Antônio Hilario Aguilera Urquiza e Beatriz dos Santos
Landa, abordam a luta dos movimentos indígenas pelo acesso e permanência de
pessoas indígenas na educação universitária, com ênfase na apreciação de es-
pecificidades e dificuldades para condução e consolidação de tais experiências
no âmbito da graduação, pós-graduação e pesquisa. Para os autores, a chegada
dos povos indígenas à universidade provocou, ao mesmo tempo, visibilidade
de suas culturas e modos de vida e uma inquietação epistemológica fruto do
próprio deslocamento – ou inserção – de indígenas no espaço universitário e do
imperativo da reafirmação das diferenças e da autonomia dos povos. Fato que
desafia a prática docente nos cursos diferenciados para povos tradicionais – in-
dígenas e não indígenas – “obrigando-os” a repensar a construção do conheci-
mento até então desenvolvido na academia.
23
Os autores, de forma arguta, indicam a necessidade de promover o debate
sobre novas configurações em torno da produção de conhecimento, no senti-
do de considerar o conhecimento a partir de outras lógicas epistemológicas e
de sujeitos indígenas inseridos na condição de pesquisadores, e de práticas de
educação universitária que exercitem constantemente a interculturalidade com
capacidade de caracterizarem-se “... pela porosidade, permeabilidade e flexibi-
lidade, abrindo espaço, especialmente, para a pesquisa, exigência para que seja
possível a interculturalidade e a ‘bricolagem’, permitindo aos alunos índios esse
constante ajustar (de) peças entre si díspares, reorganizando-as e dando-lhes um
sentido” (Nascimento, Aquilera Urquiza & Landa, 2015: 222).
Rhuan Carlos dos Santos Lopes e Eliane da Silva Sousa Faria, na sequência,
abordam as atividades desenvolvidas durante o Tempo-Comunidade, do Curso
de Etnodesenvolvimento, nos locais de pertença dos discentes, com foco nas
comunidades quilombolas de Salvaterra, no Marajó. O trabalho, ao descrever
as práticas, busca analizar o proceso de produção de conhecimento situado na
fronteira entre a educação tradicional e a universitária, de modo a problematizar
a atuação de docentes e discentes e a pedagogía intercultural que compõem a
formação em Etnodesenvolvimento.
Mariah Torres Aleixo investiga as expectativas e experiências das mulhe-
res de pertenças indígenas, quilombolas e agricultoras rurais, na condução do
Curso de Etnodesenvolvimento, com foco especial nas transformações de co-
nhecimentos e relações de gênero. No texto ganha destaque o fato das mulhe-
res estudantes informarem que a “migração temporária” para estudar fora das
comunidades e/ou municípios de origem, por conta do Tempo-Universidade do
Curso de Etnodesenvolvimento, gera tensões entre elas e os maridos/compa-
nheiros, devido aos ciúmes masculinos, pois o acesso à universidade – e o tem-
po empreendido para cursá-la –não corresponde às expectativas de gênero cria-
das pelos homens das referidas comunidades, provocando, de maneira positiva,
o deslocamento dos papéis de gênero instituídos no âmbito da conjugalidade
que, com a inserção educacional e a formação acadêmica das mulheres torna-as
“fortes” para fazer frente as múltiplas formas de violência que as afetam e rela-
tivamente “autônomas” nas decisões que tomam.

24
O penúltimo artigo, escrito a “seis mãos”, por Edimar Antônio Fernandes,
educador Kaingang, Jane Felipe Beltrão e Assis da Costa Oliveira, com base em
narrativas indígenas e quilombolas ouvidas durante à divulgação e a execução
do Processo Seletivo Especial (PSE) da Universidade Federal do Pará (UFPA)
destinado ao ingresso de estudantes oriundos desses grupos, tentam compreen-
der como ocorreu, quais as dificuldades e as estruturas das políticas afirmativas
implicadas no processo.
Os autores analisam a intensa disputa envolvendo o planejamento e a exe-
cução dos PSEs, permeada por mobilizações de lideranças e organizações indí-
genas em torno do direito à participação e divulgação no certame, assim como
de modificação da política de permanência estudantil para melhor trabalhar as
dificuldades de continuidade da presença de indígenas e quilombolas na Uni-
versidade.
O último artigo é escrito por Raquel Lopez analisa o processo de institu-
cionalização do Curso de Etnodesenvolvimento e as contradições identificadas
no decorrer da experiência concreta de educação diferenciada em nível uni-
versitário, ao que, para ela, está em “rota de colisão” entre as expectativas dos
“demandantes” e as condições objetivamente existentes na UFPA para proceder
o correto atendimento e acolhimento dos estudantes.
Ensaios Fotográficos compõem a quarta sessão do livro quando “cenas” e
“bastidores” do fazer educação diferenciada no Curso de Etnodesenvolvimento
vem a público.
No primeiro ensaio, Paula Lacerda registra a preparação e a execução do
Júri Simulado da Turma 2010 do Curso de Etnodesenvolvimento, ocorrido em
agosto de 2012, que teve por “réu” a educação, com a disposição de equipes de
acusação, defesa, testemunhas e juízes formada pelos discentes, como parte das
atividades da disciplina Gestão Educacional e Etnoeducação, conduzida pelos
docentes Francisco Oliveira, Eliane da Silva Sousa Faria e Francilene de Aguiar
Parente. O ensaio revela a poética e a seriedade com que os discentes encar-
naram a tarefa avaliativa, fazendo uso de roupas, arquitetura e performances
similares ao do Tribunal do Júri, para “encenar” a defesa e a acusação à edu-
cação, mas, sobretudo, exercitar a argumentação oral com base nos conteúdos
aprendidos na disciplina.

25
Assis da Costa Oliveira e Jane Felipe Beltrão registram “impressões” e “ex-
pressões” dos primeiros dias de Universidade da Turma 2010 do Curso de Etno-
desenvolvimento, em janeiro de 2011. Com registros do Seminário de Abertura
e da prática educacional nas primeiras disciplinas ministrada, os autores abor-
dam as complexidades e os desafios do reconhecimento do direito à diferença
na educação universitária.
Organizamos a coletânea, escrevemos alguns pedaços e contamos com a co-
laboração de muitos para informar sobre trajetos e trajetórias dentro do Curso.
Ousadia e empenho de mãos, mentes e corações tornaram o Etno – como cari-
nhosamente os participantes chamam o Curso – o sonho de muitos, conforme os
relatos autorais indicam. O livro é feito por nós, mas as histórias são coletivas e
extrapolam as páginas, pois dizem respeito a inclusão social.
Agradecemos o instigante prefácio de Aurélio Vianna que há alguns anos,
via fundação Ford, tornou a tarefa possível, vencemos uma etapa formando os
primeiros gestores em etnodesenvolvimento, entretanto docentes, discentes e
lideranças sociais, possuem um rosário de desafios que exigem coragem para
consolidar o acesso e a permanência adequados da diversidade cultural na Uni-
versidade.
Parafraseando o filme Narradores de Javé, diríamos que o curso vale pelo
que produz, mas pode valer mais ainda pelo que esconde, no sentido de compre-
ender registros, reflexões e narrativas presents no livro como pequena parcela
da multiplicidade de aprendizagens e experiências desenvolvidas no cotidiano
do fazer o Etno, razão pela qual esperamos ser lidos e, para além da leitura,
formulamos “singelo convite” às pessoas que nos leem: venham conhecer e
vivenciar conosco a experiência realizada no e pelo Etno.
Boa leitura! Esperamos sua visita!

Assis da Costa Oliveira


Jane Felipe Beltrão

26
I. Etnodesenvolvimento & Educação

27
Povos Indígenas, antropologias & Estado no Brasil

Antonio Carlos de Souza Lima1

Algumas informações gerais devem anteceder qualquer apresentação acer-


ca da situação indígena brasileira, pois que entre o peso da questão indígena
no imaginário nacional, as realidades indígenas e os estereótipos, vão muitas
diferenças. Em primeiro lugar, é importante dizer que o perfil da população
indígena habitante do Brasil é, em termos demográficos, totalmente diferente
daquele de populações indígenas que habitam a Bolívia, o Peru ou o México,
por exemplo. Segundo dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE) do Censo de 2010, os povos indígenas no Brasil totalizavam
896.917 indivíduos autodeclarados indígenas, sendo 0,4% da população total
de brasileira de 190.755.799 habitantes. Destes, 572.083 indígenas estão situ-
ados em áreas rurais, dos quais 517.383 vivem em terras indígenas, isto é, em
áreas reconhecidas pelos poderes públicos como terras de direito originário dos
povos indígenas. Em áreas urbanas vivem 324.834, sendo que 25.963 em terras
indígenas e 298.871 fora delas.2
Quando da invasão das Américas pelos europeus, estima-se que, na região
do atual território brasileiro, habitassem 1.000 povos indígenas distintos. Hoje
são cerca de 241 povos falantes de mais de 150 línguas distintas, alguns ainda
isolados do contato com não-indígenas. Muitos desses povos falam apenas o
português, tendo perdido suas línguas de origem em função da violência as-
similacionista do processo de colonização, constituindo-se no maior leque da

1
Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor de Etnologia da mesma instituição,
pesquisador 1B do CNPq e bolsista do Programa Cientistas do Nosso Estado da Faperj. Homepages:
<<http://www.laced.etc.br>> e <<http://www.museunacional.ufrj.br/ppgas/>>. Contato: acslima@supe-
rig.com.br.
2
Há grandes controvérsias quanto ao total de habitantes indígenas no país, o que sem dúvida se deve a
diferentes critérios de identificação de quem seja indígena por essas instituições (Fundação Nacional do
Índio, Fundação Nacional de Saúde, as ONGs Instituto Socioambiental e Conselho Indigenista Missioná-
rio), frente ao IBGE. É importante lembrar que todas as instituições citadas, trabalham com estimativas,
e a única instituição oficialmente encarregada (e detentora do saber necessário a isso) de recensear o país
é o IBGE, que apresenta assim dados de natureza diferente de todas as outras. Ver: << http://indigenas.
ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/os-indigenas-no-censo-demografico-2010.>> Acesso
em: 25.01.2014.

28
diversidade humana contido num país. Distribuem-se por entre 690 terras indíge-
nas cujo direito lhes é reconhecido constitucionalmente, e que se situam em quase
todos os estados da federação brasileira, numa área total de 113.178.687 hectares
(1.131.787 km²).3 Na região da Amazônia Legal, segundo estimativas do Instituto
Socioambiental (ISA), em geral coincidentes com outras fontes, habitam aproxi-
madamente de 60% dos indígenas habitantes no Brasil, sendo que destes algo por
volta de 15% estão em cidades, bem como vemos a urbanização de numerosas
aldeias indígenas de largas dimensões. Nessa região do Brasil também se concen-
tram, em termos numéricos, as “organizações indígenas”.
Destarte, as terras indígenas, perfazem 13,3% de todas as terras brasileiras
(851.196.500 hectares, ou seja, 8.511.965 km²), sendo das mais ricas em recursos
naturais (biodiversidade e recursos minerais), e das raras áreas preservadas num
país cada vez mais devastado pelo extrativismo selvagem, pelas queimadas de
florestas para transformá-las em carvão, ou abrir pasto a gado e à soja pelo agro-
negócio, pela exploração mineral. Na prática, muitas delas estão invadidas e os
povos indígenas nelas encerrados não têm contado com políticas governamentais
de suporte à sua exploração em moldes sustentáveis.
Nos últimos 40 anos diversas foram as mudanças nas relações entre o Es-
tado Nacional brasileiro e os povos indígenas habitantes do território do país.
De uma política desenvolvimentista marcada por um assimilacionismo desen-
freado, chegamos até a demarcação na condição de terras indígenas de extensas
partes do território brasileiro, a partir dos anos 1990. De grupos integralmente
submetidos ao Estado brasileiro na condição de legalmente tutelados – isto é,
apenas parcialmente responsáveis por seus atos e necessitados, para efeitos da
estrutura jurídico-administrativa brasileira, da mediação e da condução de um
tutor, equiparados assim, em termos de Direito Civil, aos brasileiros não-indíge-
nas menores de 18 e maiores de 16 anos –, passaram, por efeito da Constituição
de 1988 a serem reconhecidos como capazes de se representarem juridicamente
por meio de suas organizações, e tiveram seu estatuto de povos reconhecido
por força da ratificação pelo governo brasileiro da Convenção 169 da Organi-
3
Dados elaborados pelo Instituto Socioambiental, disponíveis em: <<http://pib.socioambiental.org/pt/c/
no-brasil-atual/quem-sao/povos-indigenas>> e <<http://pib.socioambiental.org/pt/c/terrasindigenas/
demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis>>. Acesso em: 25.01.2014.

29
zação Internacional do Trabalho, ratificada pelo Congresso Nacional em junho
de 2002. Em tal contexto histórico os antropólogos tiveram lugar significativo.
Unificados por um novo modelo de formação acadêmica, em pós-graduações
surgidas em grande parte sob os auspícios dos recursos sobretudo da Fundação
Ford e de agências da administração pública brasileira, como a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Es-
tudos e Projetos (Finep). Muitos desses novos antropólogos vieram a criar e se
instalar em Organizações Não Governamentais (ONGs) destinadas ao exercício
de formas de ação embasadas por pressupostos da Antropologia Social, muitos
mantendo seu vínculo com as universidades, tanto por receberem salários quan-
to por recrutarem pessoal formado pelas mesmas para os projetos de pesquisa e
intervenção social que mantiveram no que hoje se chama de “Terceiro Setor”.
As associações civis de defesa aos índios e outras ONGs surgidas em torno
de 1978/1980 tinham perfis e tomaram rumos muito distintos. Algumas organi-
zações ou iniciativas surgidas então já nesta época atuavam também no suporte
à busca de alternativas de geração de renda em face de cenários regionais bas-
tante complicados. Esboçava-se naquele momento o que viria a ser chamado
em tempos mais recentes de mercado de projetos. Naquela quadra histórica,
a composição de um espectro de financiadores para as organizações de apoio
aos povos indígenas se deu mais sob a chave da filantropia e da ajuda huma-
nitária, com uma forte presença das igrejas europeias de variadas confissões,
suporte voltado à luta pelos direitos humanos, em meio à onda avassaladora dos
impactos dos empreendimentos desenvolvimentistas sobre os povos indígenas
pelo mundo afora, em que o uso da categoria povos indígenas em contexto
extra-americano se deu por movimentos complexos e por uma generalização
construída também a partir de organismos multilaterais do e no sistema da Or-
ganização das Nações Unidas (ONU).4 A ideia de cooperação técnica para o
desenvolvimento como ação que encampava o ideário do desenvolvimento sus-
tentável ainda estava por surgir no cenário nacional brasileiro.
4
Sobre alguns aspectos importantes das movimentações no plano mundial em defesa dos direitos in-
dígenas e o papel de um país-chave neste processo ver: Hoffmann, Maria Barroso. 2009. Fronteiras
étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a cooperação internacional
norueguesa junto aos povos indígenas. Rio de Janeiro, Editora E-papers.
30
Em diversos contextos regionais, e sob a mediação das organizações de
apoio, os povos indígenas foram assim adquirindo conhecimentos que desem-
bocariam simultaneamente nos processos de organização para luta pela terra
e na constituição de saberes mínimos necessários a conduzir uma progressiva
libertação da mediação tutelar seja governamental ou não. Lançavam-se, nos
cenários extra-locais, as bases de uma condução propriamente indígena de seus
projetos de futuro.
Tal se alicerçava e reforçava em ações desenvolvidas em outras escalas, mas
com repercussões importantes no cenário nacional. No âmbito latino-americano,
a anteceder este momento, as críticas dos efeitos etnocidas das políticas desenvol-
vimentistas tiveram dois momentos de grande destaque e visibilidade mundial,
com a autocrítica de Igrejas e de intelectuais. O primeiro se deu na Reunião de
Barbados, em 1971. O segundo foi aquele da “Reunião de Peritos sobre Etnode-
senvolvimento e Etnocídio na América Latina”, promovida pela articulação en-
tre UNESCO e Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO), em
dezembro de 1981, em San José de Costa Rica Costa. Tais reuniões foram even-
tos especiais na formulação de críticas ao establishment desenvolvimentista em
escala global e nacional, e de propostas para um “desenvolvimento alternativo”,
marcado pelos projetos de futuro próprios aos povos indígenas – o etnodesen-
volvimento, proposta da qual o antropólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen
foi um dos principais formuladores (Hoffmann, 2009:157). Os antropólogos,
juntamente com a ação da Igreja Católica, atuaram como aliados essenciais na
formulação de novos horizontes para a presença indígena no Brasil contempo-
râneo, em especial ao longo do processo constituinte.
São agora povos que contam com demandas por sustentabilidade e desen-
volvimento, por projetos e parceiros (dentre estas organizações de intervenção
indigenista – as ditas ONGs indigenistas, hoje altamente profissionalizadas e
exercendo funções de governo, agências de cooperação técnica governamentais
e não-governamentais bi ou multilaterais, dentre as quais redes ambientalistas
conservacionistas e seus parceiros nacionais). No meio dos movimentos indí-
genas e suas organizações evidencia-se, assim, a incorporação do léxico (neo)
desenvolvimentista como modo de expressar necessidades amplas e interesses
multifacetados num cenário de tentativas (externas) de mudança social induzi-
31
da e (internas) de transformações aceleradas, com grandes decalagens entre as
gerações indígenas. O protagonismo indígena é a moeda corrente do momento.
Como efeito mais geral, tem-se a singular despolitização da ação de represen-
tantes indígenas e sua tecnificação, tão ao gosto do mundo do desenvolvimento5.
De outro lado, vimos nos últimos tempos o anverso deste processo. Em
primeiro lugar, certos setores governamentais têm divulgado a ideia de que já
se tem o ‘‘problema fundiário indígena’’ equacionado, com enormes porções de
terras demarcadas, o que é superficial e falso diante da realidade escruciante
do Brasil como um todo: essa afirmação só é relativamente válida para certas
porções da região amazônica, pois mesmo nela estão pendentes situações mais
espinhosas em que agências de Estado se enfrentam com sobreposições de áreas
destinadas a funções distintas. Se isto é assim para a Amazônia, onde pratica-
mente todo o trabalho demarcatório foi realizado com recursos da cooperação
técnica internacional para o desenvolvimento, em regiões do país onde esta
(focada no meio ambiente) não atuou, os problemas e a violência da terra têm
se tornado cada dia mais intensos. Exemplos disso são o Mato Grosso do Sul,
com as investidas do agronegócio da soja e da produção de cana para o etanol,
no Nordeste, área tradicional de pressão fundiária intensa que sob a investida do
turismo, da construção de portos como o que atinge os Anacé no Ceará, e nu-
merosos outros pontos do litoral brasileiro, sem falar na região sul do país. De
forma mais geral, situações difíceis como a dos Tapeba, também no Ceará, dos
Guarani Mbyá do sul do Brasil (com sua órbita de circulação cruzando frontei-
ras nacionais do ainda muito parcamente regulamentado Mercosul), estão longe
de ver um horizonte de resolução tranquilo.
Em segundo lugar, vemos com frequência surgirem verdadeiras campanhas
acirradas na midia, tais como a que ‟denunciavaˮ a prática do infanticídio entre
povos indígenas no Brasil, dando suporte a projetos de leis espúrios. Melhor
exemplo, porém, não poderia ser senão a construção como um ‟debate nacio-
5
Sobre os efeitos despolitizantes das intervenções desenvolvimentistas, ver: Ferguson, James. 1999.
The anti-politics machine. “Development”, Depoliticization and Bureaucratic Power in Lesotho. Min-
neapolis and London, University of Minnesota Press. Dentre muitos títulos sobre desenvolvimento, ver:
Escobar, Arturo. 1995. Encountering development. The making and unmaking of the Third World. Prin-
ceton, Princeton University Press; Rist, Gilbert. 1999. The history of development: from Western origins
to global faith. London & New York; Cape Town, Zed Books, UCT Press.

32
nalˮ do julgamento no Supremo Tribunal Federal da constitucionalidade da de-
marcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado
de Roraima, na fronteira com a Guiana e a Venezuela. Tal tentativa, largamente
produzida pelas elites locais, de reverter a demarcação de uma terra indígena
numa região de fronteira aliou segmentos militares (que alegam que terras in-
dígenas em regiões fronteiriças são ameaças à soberania do país), atores políti-
cos de esquerda e de direita (imbuídos de perspectivas desenvolvimentistas as
mais canhestras e próximas daquelas do regime ditatorial dos anos 1960-1980),
num cenário legislativo pouquíssimo propício ao debate da questão indígena.
A vitória da manutenção da área contínua e a determinação de retirada dos pou-
quíssimos ocupantes não-indígenas que restavam na terra, finalmente obtida em
19 de março de 2009, teve um sabor amargo: a definição da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol veio acompanhada de 19 condicionantes que, generalizan-
do-se, tolhem a autonomia dos povos indígenas em suas terras e podem por em
risco numerosas situações fundiárias indefinidas e, até certo ponto, restituem
condições tutelares supostamente ultrapassadas, visando ser um óbice à expan-
são e à revisão das terras por eles tradicionalmente ocupadas, um velho desejo
de um conjunto amplo de políticos, operadores do direito e outros atores.
No cenário legislativo democrático atual são defendidos os mais variados
argumentos contra os povos indígenas, somando-se a eles desde representantes
do agronegócio e das empresas de mineração até o vice-presidente, ministros
de Estado e outros funcionários de alto escalão do presente governo. Todos
estes elementos demonstram a fragilidade das visões positivas sobre os povos
indígenas na sociedade brasileira contemporânea, vis-à-vis a ideologias desen-
volvimentistas sempre redivivas.
Nessas quatro décadas cruzam-se, portanto, fios que podem nos conduzir
ao entendimento do complexo da questão indígena no Brasil contemporâneo,
desanimador à primeira vista, no plano governamental, face a períodos como o
dos anos 1990 e início dos anos 2000, em aparência tão promissores de mudan-
ças e novas perspectivas, mas que todavia deixaram pouco ou nada institucio-
nalizado. Recuperar um pouco da história das relações entre povos indígenas e
Estado nacional brasileiro, pode ajudar a perceber, ainda que superficialmente, o
regime de preconceitos que torna possível ataques tão frontais como os que têm
33
sido desferidos no cenário presente, perguntas e perplexidades do grande pú-
blico que demonstram a ampla ignorância do brasileiro médio, seja das grandes
cidades, seja do interior, acerca dos modos de vida indígenas no país.
De novidade mesmo a se destacar, ainda que sendo necessário, para melhor
situá-lo, entender alguns de seus principais dilemas, registre-se o associativis-
mo indígena, que não se iniciou com a Constituição de 1988, mas teve desde
então um estímulo considerável. O movimento indígena e suas inúmeras formas
de expressão institucional, sobretudo no modelo não-autóctone das chamadas
Organizações Indígenas (O.I.s), tem feito a diferença essencial desde os anos
1970-1980. As O.I.s têm amplitudes de ação muito distintas – desde as que re-
presentam aldeias ou de corte étnico (representando um povo) até as de âmbito
regional, passando por grandes redes de organizações, como a Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB – http://www.coiab.
com.br/) ou a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo (APOINME – http://apoinme.org.br/), a Articulação dos Povos
Indígenas do Sul (ARPINSUL – http://www.arpinsul.org.br/), Articulação dos
Povos Indígenas do Pantanal e Região Centro-Oeste (ARPIPAN – http://www.
uniaoplanetaria.org.br/), ou a tentativa de reuni-las na Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB – http://blogapib.blogspot.com.br/). Em padrões dis-
tintos de tentativas anteriores como a da criação da União das Nações Indígenas
(UNI), criada em 1980 e que na prática se desarticularia no imediato pós-Cons-
tituinte.6 As funções das organizações indígenas eram inicialmente voltadas
para a defesa de direitos e para a ação política, tecnificando-se ao longo dos
anos 1990, sendo direcionadas à operação de projetos e planos não explicitados
de transformação mais abrangente.
6
Para uma análise importante produzida desde dentro do movimento indígena por um de seus princi-
pais pensadores e atores, com larga experiência em posições institucionais distintas em organizações
indígenas e representando-o em instâncias participativas e postos burocráticos na administração pú-
blica brasileira, ver: Luciano, Gersem José dos Santos (Baniwa). 2006. O índio brasileiro: o que você
precisa saber sobre o índio brasileiro de hoje. Rio de Janeiro/Brasília, Trilhas de Conhecimentos/LA-
CED, MEC/SECAD, UNESCO, (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes), disponível
em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET12_Vias01WEB.pdf. Acesso em:
30.06.2014. Gersem Baniwa é mestre e doutor em Antropologia pela UnB. Ver também: Matos, Maria
Helena Ortolan. 1996. O Processo de Criação e Consolidação do Movimento Pan-Indígena no Brasil
(1970-1980). Dissertação de mestrado. DAN/Universidade de Brasília; Matos, Maria Helena Ortolan.
2006. Rumos do Movimento Indígena no Brasil Contemporâneo: Experiências Exemplares no Vale do
Javari. Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas. Inédita.
34
Ainda estão por ser sopesados adequadamente os ganhos e perdas desses
processos, que não só aportaram muitos novos conhecimentos, mas também im-
plicaram na assunção de responsabilidades para as quais essas organizações de
distintos matizes e naturezas, âmbitos e especializações, não estavam preparadas
e nem vêm sendo adequadamente subsidiadas na aquisição de capacidades varia-
das. O próprio movimento indígena tem sido crítico da descontinuidade imposta
pelo formato projeto que determina uma espécie de contrato entre um financiador
e uma organização, onde são previstos conjuntos de ações a serem executadas
com certas finalidades com valores e tempos precisos de execução, sendo muitas
vezes o processo de formalização de um projeto uma penosa – e muitas vezes ex-
tremamente criativa – negociação entre facções e gerações de um ou mais povos.7
De qualquer forma, aí está a ponta do iceberg das questões relativas à sus-
tentabilidade dos povos indígenas, da superação do assistencialismo clientelista
tutelar ainda em vigência nas ações de numerosos segmentos administrativos
governamentais e não-governamentais no país. Por outro lado, é importantís-
simo ressalvar o quanto as O.I.s têm sido pró-ativas na busca de alianças, seja
com a cooperação técnica internacional para o desenvolvimento (sem a qual,
cabe destacar, muitas coisas não teriam acontecido, nem estariam acontecendo),
dentre as ONGs indigenistas, grupos de pesquisa em universidades, setores da
administração pública etc.
O mais importante, porém, está no que o texto constitucional tem signifi-
cado no plano de outra ideia de Estado, como suporte para a imaginação social,
onde o reconhecimento dos direitos dos indígenas joga um papel de destaque. O
texto constitucional tem se caracterizado, junto com a Convenção Nº. 169/OIT,
em horizonte de construção de outras práticas administrativas, e, consequente-
mente, no respeito a esses povos como agentes de sua história, na construção
de espaços políticos à sua necessária participação. Esses elementos foram es-
senciais à quebra da visão unitarista que defendia a necessidade da tutela, su-
7
Para um raro exemplo de busca de sistematização e disseminação reflexiva e crítica de informações
acerca – afinal existem muitos pequenos guias e manuais publicados por ONGs, órgãos de governo entre
outros – do fazer projetos ver: Almeida, Fabio Vaz Ribeiro de. (Org.) 2008. Guia para a formação em
gestão de projetos indígenas. Brasília, PDPI/Paralelo 15. Para um esforço crítico de conceituação acerca
da forma administrativa projeto e do que chama projetismo no mundo do desenvolvimento, ver: Pareschi,
Ana Carolina Cambesis. 2002. Desenvolvimento Sustentável e Pequenos Projetos: entre o projetismo, a
ideologia e as dinâmicas sociais. Tese de Doutorado. Brasília, PPGAS/UnB. Inédita.

35
pondo-a como essencialmente protetora, propondo novos horizontes a pedaços
ponderáveis do que chamei de arquivo colonial.
Como a Constituição estabeleceu o Ministério Público Federal (MPF)
como instância de defesa dos povos indígenas contra o Estado, a efetiva atri-
buição de capacidade processual civil pelo texto constitucional de 1988 às co-
munidades indígenas e suas “organizações” (no que para muitos foi o “fim” da
tutela) significou, como dito antes, a proliferação, sobretudo na Amazônia, de
organizações locais – associações, federações etc. – e supralocais, congregando
um grupo indígena específico, ou articulando diversos grupos de uma mesma
região, com funções de representação política e jurídica. Muitas dessas O.I.s
têm hoje vínculos e projeção internacional, integrando um panorama heterogê-
neo e mal-conhecido.
A mencionada COIAB, o Conselho Indígena de Roraima (CIR – http://
www.cir.org.br/), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
(FOIRN – http://www.idbrasil.gov.br/noticias/), a APOINME, são quatro redes
de organizações de âmbito regional muito distintas. Todas são fruto de modelos
e parâmetros não-indígenas de organização e associação, e na prática diferem
das formas políticas localmente implementadas, próprias a cada povo. No en-
tanto, essas organizações têm funções e formas de ação muito diferentes dos
modelos verticalizados e “sindicalistas” de associativismo que o senso comum
brasileiro tem em mente, e têm percorrido um árduo caminho de construir no-
vas possibilidades de interlocução. A elas junta-se a participação indígena em
legislativos (municipais, sobretudo) ao longo do país, e também nos executivos
municipais: vereadores e prefeitos indígenas são hoje uma realidade bem mais
frequente que no final dos anos 1990.
Assim, a quebra do monopólio da ação tutelar do Estado sobre os povos in-
dígenas, até o início dos anos 1990 exercido pela Funai, se deu em grande medi-
da pela organização dos povos indígenas, o principal motor das transformações
que vêm efetivamente ganhando solidez e esperança de mudanças substanciais.
Mas houve também um conjunto de alterações na administração pública que de-
vem ser consideradas. Com os Decretos presidenciais de nº. 23, 24, 25 e 26, de
04/02/1991 (portanto, da presidência de Fernando Collor de Mello), as tarefas
relativas à saúde, educação, desenvolvimento rural e meio ambiente, exercidas
36
com enorme precariedade – salvo exceções pontuais – pela Funai, foram atribu-
ídas aos Ministérios da Saúde (MS), da Educação (MEC), do Desenvolvimento
Agrário (MDA), do Meio Ambiente (MMA). Em especial as consequências da
Conferência das Nações Unidas para o Meio-Ambiente e o Desenvolvimento
(CNUMAD-92), realizada no Rio de Janeiro, conjuntura na qual o movimento
indígena teve intensa atuação e em que se negociaram grandes projetos como
Projeto Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7 – http://
www.mma.gov.br/ppg7/), e lançaram-se as bases de discussão de seu sub-com-
ponente indígena, o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indí-
genas da Amazônia Legal (PPTAL).8
É verdade que tais políticas, alicerçadas na presença da cooperação técnica
internacional para o desenvolvimento (em especial a alemã, pela presença es-
sencial da Agência Alemã de Cooperação Internacional – GTZ, hoje GIZ) no
aparelho de Estado brasileiro e entre as próprias organizações indígenas, restrin-
giram-se em especial à Amazônia e atenderam à ambientalização dos conflitos e
políticas sociais. Isso significou um abandono relativo de áreas de grandes con-
flitos e enorme pressão fundiária, como o Mato Grosso do Sul ou o Nordeste.
Mas as alterações trazidas pela implementação dessas novas políticas acabaram
por gerar, juntamente com as demandas das organizações indígenas, o impera-
tivo da participação indígena em diferentes instâncias e em outras políticas.9 É
importante não esquecer que a maioria das revisões constitucionais realizadas
em países da América Latina foram seguidas por pesados programas de reajuste
estrutural idealizados a partir de instituições financeiras multilaterais presididas
pela visão neoliberal do funcionamento do aparelho de Estado e suas formas de
intervenção. Na verdade, uma coisa e outra não correram, jamais, separadas.
Foi durante as gestões de Fernando Henrique Cardoso na presidência do
país (1994-2002) que estas ações “extra-Funai” adquiriram contornos próximos
8
Sobre o surgimento do PPTAL ver: Valente, Renata C. 2010. A GTZ no Brasil. Uma etnografia da coo-
peração alemã para o desenvolvimento. Rio de Janeiro, LACED/E-papers. Ver também: Lima, Ludmila
Moreira. 2002. “Cooperação e parceria no contexto de um projeto piloto: a experiência do PPTAL” In
Souza Lima, Antonio Carlos de. (Org.) Gestar e gerir. Estudos para uma antropologia da administração
pública no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará, Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ,147-198.
9
Para a ideia de ambientalização dos conflitos, ver Leite Lopes, José Sérgio (Org.). 2004. A Ambienta-
lização dos Conflitos Sociais; Participação e Controle Público da Poluição Industrial. Rio de Janeiro,
Relume-Dumará.

37
à organicidade de políticas. Cada uma delas tem, no entanto, trajetórias mui-
to distintas e impactaram de modo muito diferenciado os povos indígenas
ao longo do país. Em geral, tais políticas chegaram a um mesmo povo de
maneira dissonante e conflituosa entre si, gerando aquilo que muitos de-
fensores da Funai chamam de “divisão” dos índios, um “acirramento de
faccionalismos”, confundindo os efeitos de sua má implementação com os
contornos de um novo modelo. Para outros ainda, em geral defensores de
ações indigenistas de matriz tutelar, a diversidade de culturas, histórias e
padrões sociais (muitas vezes, em casos de proximidade física as rivalidades
e os preconceitos sedimentados no tempo) inviabilizariam a construção de
organizações pan-indígenas ou mesmo de âmbito regional mais amplo, o que
colocaria como inevitável a mediação não-indígena.
Os governos Fernando Henrique Cardoso deram mostras de procurar se-
guir as coordenadas constitucionais, e de um ensaio de reconhecimento dos
direitos culturais coletivos dos povos indígenas quanto a diferentes aspectos
de sua vida social, bem como de sua capacidade civil plena. O que poderia
ter se transformado nas bases de um planejamento de Estado etnicamente
informado e de uma execução regionalizada sob o duplo controle dos povos
indígenas e de dispositivos federais, ficou muito aquém do possível, sem
ganhar institucionalidade e, como lamentavelmente temos visto, sendo de
fácil reversão. É importante frisar que, sob o jogo democrático, as pressões
anti-indígenas jamais deixaram neste período todo de ser intensas.
Mesmo o fato altamente positivo de que, ao longo do período FHC, al-
gumas O.I.s, e as muitas ONGs indigenistas de mediadores, adquiriram pro-
gressivamente maior participação em ações de implementação de políticas,
foi uma via de mão dupla: passaram a ser executoras de políticas de governo,
muito mais do que exercendo o papel de crítica e de proposição de políticas,
e de correções ao seu exercício. Antes que participar politicamente, trans-
formaram-se em responsáveis técnicas por processos burocráticos de ações
de Estado. Mais importante ainda, houve pouca ou nenhuma preparação dos
quadros indígenas que assumiram posições de participação em tais ativida-
des, deixando-os mais uma vez, em parte, à mercê de uma cadeia de media-
dores governamentais e não-governamentais. Esta progressiva mudança foi
38
perpassada, porém, por numerosos conflitos. Todavia, é importante ressaltar
o quanto de aprendizado muitas O.I.s obtiveram ao longo deste período: se não
se atingiram patamares ideais de organização e transmissão de conhecimentos
pelos agentes de governo aos integrantes de O.I.s e a presença de ONGs foi fato
essencial, os povos indígenas não deixaram de colher importantes frutos nos
mais variados planos, em especial o da lenta libertação das formas tutelares de
poder de Estado. O que se engendrou em séculos de colonização, e quase um
século de ação de um Estado republicano não poderia ser revertido, seja por
indígenas ou não-indígenas, da noite para o dia.
Na quase década de governos FHC o mundo do indigenismo viu-se, pois, em
aparência e momentaneamente modificado. Novos atores, novas linhas de força
e novas configurações de poder, “novos cenários” regionais viram-se reforçados
(sobretudo os amazônicos) ou enfatizados. As antigas redes de poder emanadas
do órgão indigenista foram confrontadas com as dificuldades de reprodução co-
locadas pela parcial reforma da administração pública (ou do “Estado”, como foi
chamada inadequadamente) que impediu concursos, propôs novas morfologias
organizacionais, fez entrar em cena outras redes regionais e internacionais.
João Pacheco de Oliveira (2001), anteriormente, apontou que a explosão
em número das O.I.s durante os anos 1990 marcou uma virada significativa nos
caminhos trilhados, a partir daí, com relação às décadas anteriores. Da marca
própria ao debate em torno da construção de uma pauta sobre direitos humanos
e de construção de um movimento indígena no plano internacional, passou-se,
como vimos, à progressiva ambientalização desse debate como vetor prioritário
de globalização de ativismos, a postura crítica cedendo lugar progressivamente
a debates “técnicos”.
Refletindo sobre o fenômeno e a atuação das organizações indígenas, Bru-
ce Albert (2000) menciona o que seria a mudança do que chama de etnicida-
de política para uma etnicidade de resultados como característica desta fase de
proliferação de organizações. As O.I.s teriam seguido a mudança mais geral de
ênfase da interpelação crítica do Estado na luta por direitos territoriais, passan-
do para um diálogo pulverizado com uma pletora de atores nacionais e globais
pertencentes às agências de fomento e cooperação governamentais ou não. Tais
39
agências passaram a doar recursos para os povos indígenas mediante a forma
contratual dos projetos. Albert (2000) usou a expressão mercado dos projetos
para designar uma peça essencial das “novas políticas” descentralizadas de de-
senvolvimento”.10 Se percebemos o conjunto de possibilidades surgidas nos
últimos anos e um certo redirecionamento das ações governamentais à expres-
são mercado de projetos, que “pegou” no mundo do (etno)desenvolvimento e
do indigenismo, com aderentes e detratores, merecia ser menos jornalística e
mais analiticamente repensada, talvez para de fato adquirir a dimensão de uma
noção explicativa ou mesmo a de um conceito e não meramente uma forma de
denunciar a fragmentação das ações de governo. Para aqueles que perscruta-
ram os exercícios tutelares é sempre motivo de cautela pensar em como criar
instâncias de interlocução onde se “centralize” – sem que uma agência ou ator
monopolize o cenário – os debates e a condução das políticas indigenistas.
Assim, se o advento das organizações indígenas tem sido aprioristicamen-
te tratado como um “avanço”, é fundamental não esquecermos que sem um
quadro institucional compatível esse “avanço” pode significar a subsunção a
relações clientelísticas agora não mais com a Funai apenas, ou mediadas por
aqueles que Gersem Baniwa (2006) chama de líderes carismáticos, mas sim
por novos segmentos profissionalizados em direta relação com instâncias exe-
cutoras de políticas setorizadas (educação, saúde, meio-ambiente etc.) e suas
organizações, por vezes muito voltadas para demandas mais de seus setores
profissionais que para um movimento político onde os direitos diferenciados e
a cidadania indígena estejam em jogo (Luciano (Baniwa), 2006).
A importante meta da participação indígena mostrou-se apenas relativa-
mente atingida, mas sem sombra de dúvidas descortinou-se uma gama de possi-
bilidades e conhecimentos até então nunca antevista. Viu-se confrontada com a

10
Ver: Pacheco de Oliveira, João de. “Políticas indígenas contemporâneas na Amazônia Brasileira: ter-
ritórios, modos de dominação e iniciativas indígenas” In D’Incao, Maria Ângela. 2001. O Brasil não
é mais aquele. Mudanças sociais após a redemocratização. São Paulo, Ed. Cortez, 217-235.; Pacheco
de Oliveira, João. 2002 “Cidadania e globalização: povos indígenas e agências multilaterais” In Souza
Lima, Antonio Carlos de & Barroso-Hoffmann, Maria. (Orgs.) 2002. Além da tutela. Bases para uma
nova política indigenista III. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, LACED/Museu Nacional,105-119;
e ainda: Albert, Bruce. 2000. “Associações indígenas e desenvolvimento sustentável na Amazônia bra-
sileira” In Ricardo, Carlos Alberto (ed.). Povos indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo, Instituto
Socioambiental, 197-203.

40
ignorância mais geral por parte dos tomadores de decisão governamentais acer-
ca da situação indígena no país. Tal ignorância é fato arraigado pela sistemática
ausência de informação sobre os povos indígenas desde nossos livros escola-
res até mesmo aos cursos de graduação em História e Ciências Sociais, e pela
inexistência de processos de formação de gestores capacitados a conhecê-los e
com eles interagir. Rever as variadas tendências que afetaram as novas políticas
ensaiadas face à dimensão estagnada da agência indigenista no período, só nos
pode levar à conclusão de que os avanços obtidos foram imensos. É, no entanto,
importante confrontá-las ao pano de fundo das alterações mais amplas do apa-
relho administrativo brasileiro.
A entrada do governo de Luis Inácio Lula da Silva trouxe inúmeras expec-
tativas expressas na maciça adesão eleitoral dos indígenas ao presidente eleito
em 2002. Mas já no primeiro ano do governo as frustrações eram grandes. Num
plano político mais abrangente, o primeiro governo Lula (2003-2006), no entanto,
estabeleceu pouca ou nenhuma interlocução efetiva com os povos indígenas e
suas organizações, com as suas demandas, expectativas e proposições no tocante
a temas como terra, saúde e educação, dentre outros. Um dos principais temas
da pauta do movimento indígena foi longamente evitado: a criação de um conse-
lho propositor e deliberativo para as políticas indigenistas, paritário entre Estado
e organizações indígenas, com participação da sociedade civil organizada e do
MPF. Tal Conselho foi concebido e pactuado a partir do seminário Bases para
uma Nova Política Indigenista II, ocorrido em dezembro de 2002, nas dependên-
cias do Museu Nacional, com a presença de representantes indígenas de todo o
país, realizado pela COIAB e pela APOINME, e amplo apoio logístico da GTZ.
Nele estiveram presentes os integrantes da Equipe de Transição do Governo Lula,
responsáveis por política indigenista – Márcio Meira (ex-presidente da Funai),
Gilney Vianna e Adriana Mariz.11
A ideia de um Conselho dessa natureza, sedimentada durante a reunião do
Fórum Social Mundial de 2003, foi apresentada aos diversos setores de governo
(à própria Fundação Nacional do Índio, ao Ministério da Justiça, à Casa Civil

11
Ver em: <<http://www.laced.etc.br/seminarios_02.htmm>> os diagnósticos e resultados propositivos
do seminário.

41
etc.) e insistentemente apresentada por uma ampla articulação de atores indí-
genas e pró-indígenas, que resultaria na organização do Fórum em Defesa dos
Direitos Indígenas, tendo sido barrada por setores específicos em momentos de
tramitação bastante avançada. A dispersão das políticas indigenistas, saudável
pela quebra da tutela, gerou grande estilhaçamento de ações, por total falta de
coordenação, quando não por concorrência entre elas. A escolha do antropólo-
go Mércio Gomes, que ocupou a presidência da Funai de setembro de 2003 a
março de 2007, em seguida à demissão de Eduardo Almeida (fevereiro a agosto
de 2003), primeiro presidente da Funai no governo Lula, representou a vitória
das alianças interpartidárias contra os compromissos assumidos pelo PT e por
Lula ao longo da campanha junto aos povos indígenas. Acarretou no retorno de
perspectivas pró-tutelares, com direito inclusive a comemorações efusivas de
trinta anos do caduco e inconstitucional Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001/1973),
e na total quebra de diálogo com o movimento indígena.
Do mesmo modo que o compromisso de homologação da demarcação da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol só se efetivou em 2005, a demanda pelo Conselho
só se viu satisfeita em abril de 2008, mas no plano apenas normativo. Sua criação
ainda está de fato por acontecer. De fato foi instalada em 19 de abril de 2007 uma
Comissão Nacional de Política Indigenista, após pesadas reivindicações, no bojo
das ações do Acampamento Terra Livre, parte das movimentações do chamado
Abril Indígena, mês de intensa mobilização anual há mais de sete anos dos povos
indígenas em realção à data de celebração do Dia do Índio, em 19 de abril.12
Em 15 de abril de 2008 o Ministro da Justiça à época, Tarso Genro, encami-
nhou o projeto de lei à Presidência da República com a proposta de criação do
Conselho tão intensamente demandada ao longo do período todo após a eleição
de Lula, que se transformou no Projeto de Lei nº. 3571/08.13 Contudo, até o
presente momento não há maiores sinais nessa direção. A ideia de um diálogo
12
Cf. <<http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2447>>. Acesso em: 17.08.2011.
13
Para a íntegra da proposta e a exposição de motivos que a acompanha, ver: <<http://www.camara.gov.
br/sileg/integras/575650.pdf>>. Algumas informações podem ser obtidas também em <<http://www.
direito2.com.br/acam/2008/jul/25/projeto-cria-conselho-nacional-de-politica-indigenista>>, acesso em:
17.08.2011. Em: <<http://www.coiab.com.br/coiab.php?dest=show&back= index&id=354&tipo=E>>,
consultada em 17.08.2011, encontramos e íntegra do Documento Final do VI Acampamento Terra Li-
vre, de maio de 2009, no qual diversos pontos favoráveis e críticos na ação estatal estão devidamente
localizados.
42
aberto e respeitoso para com os povos indígenas parece estar longe de orientar
práticas de governo mais comuns bem como projetos mais ambiciosos.
Diante desse quadro mais amplo que foi se delineando ao longo dos governos
Lula e está em plena vigência no de Dilma Rousseff, Meira e seus aliados buscaram
redefinir o papel da Funai, consoante a diretriz mais geral dos governos de Lula de
fortalecimento de áreas específicas da administração pública, suportada pela estabi-
lização financeira que colocou, com grande alarde da imprensa, o Brasil dentre as
potências econômicas emergentes. Não à toa a administração de Meira sofreu em
alguns momentos ataques na imprensa, como se décadas de desmandos e de funcio-
namento tutelar pudessem ser rapidamente revertidas, como se um concerto entre
diferentes políticas pudesse emergir sem instrumentos de intermediação.
Na contramão de direções anteriores que procuraram, ao retirar de uma úni-
ca agência de Estado a função de monopolizar as ações governamentais junto
aos povos indígenas, e assim de fato gerar novo modelo de ação indigenista, em
28 de dezembro de 2009 foi lançado o Decreto n°. 7056, que reestruturou a Fu-
nai, conferindo-lhe novo Estatuto, seguindo essa direção de “fortalecimento da
Funai”. A suposta principal novidade do novo Estatuto foi a mudança da função
da agência, que anteriormente era responsável por exercer a tutela dos índios, e
passou então a “exercer, em nome da União, a proteção e a promoção dos direi-
tos dos povos indígenas” (Decreto nº. 7056, Art. 2°. do Estatuto).
Em termos de estrutura organizacional, a antiga Diretoria de Assistência foi
substituída por uma Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável
(DPDS) e a antiga Diretoria de Assuntos Fundiários foi denominada Direto-
ria de Proteção Territorial (DPT). Os órgãos descentralizados, antigas Admi-
nistrações Executivas Regionais (AER), se transformaram em Coordenações
Regionais (CRs), e os Núcleos de Apoio Local (NALs) ligados às ERA foram
denominados Coordenações Técnicas Locais ligadas às CRs. Os Postos Indíge-
nas, localizados nas Terras Indígenas, foram todos extintos. Uma das maiores
polêmicas envolvendo esse decreto de reestruturação se concentrou exatamente
na extinção de algumas AERs e NALs e dos Postos. Muitos povos indígenas
(e também servidores da Funai) questionaram a extinção de Administrações da
Funai a que estavam diretamente vinculados por laços complexos e de ponderá-

43
vel profundidade histórica. Um questionamento recorrente foi a falta da consulta
livre, prévia e informada aos povos indígenas sobre o processo de reestruturação,
em franco descumprimento da Convenção 169 da OIT, segundo o entendimento
de muitos. Outro ponto importante nessa reestruturação foi a criação dos Comitês
Regionais, vinculados às Coordenações Regionais, a serem integrados por repre-
sentantes indígenas e da Funai regional. Está previsto também que ONGs, estados
e municípios e outros órgãos da administração pública federal poderão compor tais
Comitês Regionais. A ideia é que estes Comitês se tornem as instâncias decisórias
da política e das ações que serão implementadas pelas Coordenações Regionais.
No entanto, mais de um ano depois da publicação do Decreto de Reestruturação,
apenas em 18 de maio de 2011 foi criado em Marabá, por meio de Portaria do Pre-
sidente da Funai, o primeiro Comitê Regional. Em muitas regiões a reestruturação
ainda não se concretizou: até hoje há coordenações regionais e locais sem estrutura
física e sem o aparato burocrático administrativo necessário para funcionar.
Tais perspectivas correm em paralelo aos grandes planos de crescimento eco-
nômico do país, com todo o aparato do desenvolvimento (sem o qualificativo sus-
tentável) em ação. As metas e projetos que organizam essa raiz desenvolvimentista
de cunho neo-nacionalista em sua retórica estão enfeixados em torno do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC).14 Obras como hidrelétricas, estradas, portos
e outras intervenções de grande porte, muitas incidindo em terras indígenas, estão
sendo justificadas sem qualquer debate ou negociação, sob o signo da oferta de em-
pregos às classes populares e das possibilidades de crescimento que venham a miti-
gar as grandes desigualdades sociais existentes no país. A Funai vem sendo descon-
siderada e aprovações vêm sendo negociadas em esferas supra-ministeriais, pondo
em suspenso toda a retórica da parceria ou as implicações da adesão à Convenção
169 da OIT, que determina a consulta prévia e informada aos povos indígenas nes-
tas e em outras situações. A resistência indígena tem sido grande, e aqui a chance
de uma retomada de rumos políticos que se somem à aquisição importantíssima de
capacidades técnicas singularmente tem-se feito mais expressiva.
As movimentações apontadas como Abril Indígena, sob a coordenação atual
da APIB, têm sido os meios mais englobantes de reunião de forças no sentido de
dialogar com os segmentos superiores do governo federal. 15 Mas é também aqui

14
Ver: <<http://www.brasil.gov.br/pac/>>.
15
Como fruto do fato de que o governo brasileiro assumiu em 1945 o dia 19 de abril, data proposta pelo
indigenismo interamericano, para comemoração do “Dia do índio”, mantendo-se a mesma data desde
então no calendário cívico brasileiro, o movimento indígena assenhoreou-se da efeméride (tradicional-
mente folclorizada) como momento importante de protesto político.

44
que, mais uma vez, (neo)liberais, (neo)nacionalistas, empresários de diver-
sos matizes se unem e com facilidade parecem formar opinião com o suporte
da grande mídia: afinal porque 0,4 % dos habitantes do país, esses indígenas
“privilegiados” diante de tanta pobreza, podem ter o direito de impedir o
progresso que levará à redenção de grandes maiorias numéricas (e ao au-
mento dos lucros dos que sempre lucraram e continuarão lucrando)? Con-
tudo, essa formulação, facilmente contestável para os especialistas e (raros)
conhecedores dos vários aspectos da questão indígena, tem ampla aceitação
popular no momento.
O que os últimos 25 anos nos mostram é que se podemos reconhecer
sem dificuldades que o modelo tutelar instituinte do SPI e da Funai, e um
dos grandes escaninhos do nosso arquivo colonial na entrada do século XX e
num regime republicano, encontrou seu fim legalmente com a Constituição
de 1988 e seus desdobramentos, não podemos nos orgulhar de ter gerado,
desde então, alternativas consistentes no plano de políticas governamen-
tais integradas. Reconhecer o “fim jurídico” da tutela da União não basta:
não acabaram de fato as formas tutelares de poder, de moralidades e de
interação; aos menos no âmbito da administração pública – em especial do
Legislativo e do Judiciário – os povos indígenas continuam sendo a parte
menor na consciência dos políticos e no senso comum brasileiro. Porém,
como todo Estado (e aí incluídos tanto os aspectos da administração pública
estatal, quanto o dos legisladores e “tomadores de decisão” que “pensam”
a coletividade de uma comunidade política nacional) é contraditório, seg-
mentado e incoerente, os avanços do movimento indígena, sobretudo no to-
cante à aquisição de capacidades, de experiências de elaboração e gestão de
projetos seja para superação de impasses tópicos, seja aqueles que apontam
para um futuro de médio longo prazo, como a formação de intelectuais e
profissionais indígenas, que pensem e atuem no movimento, foram muitos e
contaram com aliados e inicativas importantes.
Dois exemplos disso são o Projetos Demonstrativos para os Povos Indí-
genas (PDPI), desenvolvido no Ministério do Meio Ambiente (MMA), e a
ação da Carteira Indígena, programa do Ministério do Desenvolvimento So-
cial (MDS) em parceria com o MMA, cujas atuações e repercussões mere-
45
ceriam ser melhor documentadas e refletidas.16 Podemos ainda arrolar a entrada
de uma outra agência, o Ministério da Cultura (MinC) que trouxe a presença da
cultura para a esfera da administração pública de uma maneira até então intoca-
da. Haveria muito a ser dito de positivo e negativo também sobre as ações em
educação e saúde, se a proposta aqui fosse fazer uma avaliação. Em todos eles
o administrar por projetos a que se concorre por editais estiveram presentes, de-
sautomaziando redes e recolocando problemas. Deveríamos indagar em todos
esses e outros casos sobre as práticas da gestão governamental por projetos jun-
tos aos povos indígenas, as lições aprendidas e propostas para o futuro, dentro
de quadros mais abrangentes de reflexão onde um saudável vento utópico deve
vir se somar ao que se apresenta como as figuras dominantes do presente.
Se comparamos o momento atual com as metas que o Brasil se comprometeu
a honrar ratificando a Convenção 169 OIT, há muito por ser concebido, discutido
e exercitado no plano do diálogo inter(sócio)cultural. Mas não podemos deixar
de registrar que por mais que se apontem imperfeições nos anos da gestão da Fer-
nando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva, realizaram-se Conferências
Nacionais de Saúde Indígena, uma primeira Conferência Nacional de Educação
Indígena em novembro de 2009, e a Funai realizou uma Conferência Nacional
de Política Indigenista (ainda que sob seu controle estrito e com resultados que
reforçam a necessidade de suas existência sem questionar a fundo seu modelo
organizaional), a ação do MPF contribuiu fortemente para a expressão da vonta-
de política dos povos indígenas, com repercussões que se colocam para além de
intervenções pontuais. É indiscutível o quanto estamos longe da ditadura militar
e dos aspectos mais cruentos da tutela.17
Há muito por ser analisado de maneira mais distanciada sobre estas experi-
ências esboçadas na área da saúde e da educação, da regularização fundiária, do
direito, da antropologia e do “desenvolvimentismo”, termo que uso aqui para de-
signar, provocativamente, as intervenções voltadas à “melhoria do nível de vida”
das populações indígenas, entendido sobretudo como geração de renda e cresci-
mento econômico. Mas o complexo cenário atual, aqui precariamente esboçado,

16
Para apresentações oficiais do PDPI ver: <<http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD0E56FE 7ITEMID-
8368F95A11F7469A938D7DE6DDB88050PTBRNN.htm>>; e sobre a Carteira Indígena ver: <<http://www.
mds.gov.br/programas/seguranca-alimentar-e-nutricional-san/carteira-indigena>>. Acesso em: 17.08.2011.
17
Cf. Pacheco de Oliveira, João. 2008. “Sem a tutela, uma nova moldura para a nação” In Oliven, Rubem
George; Ridenti, Marcelo & Brandão, Gildo Marçal. (Orgs.) A Constituição de 1988 na vida brasileira.
São Paulo, HUCITEC, ANPOCS.

46
só é desanimador se acreditarmos em demasia nas propostas prévias à colocação
em prática de ações que efetivassem os dispositivos constitucionais, e que um país
colonial e de regime escravista fosse capaz de superar em 25 anos o que se cons-
truiu em mais de 500 anos. Isso é no mínimo muito fantasioso, mas antes de tudo
desconhece que se as raízes deitadas nos avanços ocorridos não geraram bases
institucionais sólidas para que os povos indígenas fossem interlocutores legítimos
de numerosas instâncias do Estado Brasileiro, permitiram muitas outras invenções
de futuros e toda uma dinâmica que se reflete numa nova geração de indígenas e
põe em questão os próprios parâmetros antropológicos de avaliá-los. Na verdade,
os povos indígenas têm se feito sempre presentes no cenário político nacional, em
que pese os contextos de violência exacerbada como em regiões do Nordeste, do
Mato Grosso do Sul e em outros pontos do país.
Muitos se perguntaram e perguntam – em meio aos arroubos desenvolvimen-
tistas – se o Brasil, por meio de seu governo, mas com larga aceitação popular,
está entrando em mais uma era de obscurantismo unitarista, preocupado em se tor-
nar, à luz de “nossas tradições”, plenamente civilizado e desenvolvido, de modo
a que no plano de uma imaginação social paranóica, se veja livre da fantasia de
se fragmentar em unidades soberanas. Soberania é algo que os povos indígenas
nunca reivindicaram para suas terras, mas que nossos militares insistem em afir-
mar ser um perigo. O essencial me parece é perceber o que as mudanças enseja-
das desde o(s) movimento(s) indígena(s), ainda que estejam longe do alardeado,
significam conquistas que paulatinamente vão mudando as feições da relação dos
povos indígenas com o espaço público brasileiro, mais especificamente com o
Estado como ideia e rede de agências e agentes, como “centro exemplar” e matriz
de invenções coletivas, talvez com isso fazendo parte de um conjunto mais amplo
de ações e relações que estejam no curso de uma mudança do próprio Estado em
todos os planos (ver adiante). Como afirma Luciano (Baniwa):
“[a] crescente participação política dos povos indígenas nos últimos anos, embora não tenha sido
suficiente para eliminar a prática tutelar e paternalista do Estado brasileiro em relação aos povos
indígenas – ainda presente em alguns órgãos do governo - tem se diversificado e dinamizado
essa relação, propiciando o surgimento de programas e projetos governamentais inovadores”
(2006: 79).

Aos poucos, e pelo esforço dos próprios indígenas, sem dúvida com o su-
porte de aliados vários, ainda que de forma tensa e sempre sujeita a retrocessos
ou ao cinismo da negociação política de largo espectro, mudam as imagens que
norteiam as práticas públicas no Brasil. Tais imagens, que chamo de unitaristas,
47
vivem em paralelo com imagens dos indígenas altamente distintas da vida atual
da maioria desses povos, que hoje lutam, dentre inúmeras outras coisas, por
acessar o ensino superior, obter conhecimentos que lhes permitam navegar em
suas próprias águas com autonomia, mantendo o que de suas tradições culturais
parecer-lhes adequado e substancial. Sem esse aporte de novos conhecimentos,
no quadro atual as organizações indígenas não poderiam ver ultrapassar a de-
pendência de mediadores não-indígenas, o que não querem perpetuar. “Alian-
ças sim! Submissão não!”, esta parece ser a ideia força, ainda que as realidades
concretas sejam bem distintas.
Ao que parece, num plano público – nem sempre refletido na pesquisa
acadêmica e muito pouco condizente com muito do que se diz sobre os povos
indígenas em Etnologia no presente-a imagem do “índio dos cronistas e viajan-
tes” vem cedendo espaço, deslocada pelas ações dos póprios indígenas, e isso
em muitas escalas. Esse ser eternamente fora da história, signo por excelên-
cia do exotismo dos trópicos americanos, puro, parado num tempo estagnado,
intocado pela colonização, frequentador das imagens divulgadas do Brasil no
exterior na sua versão ambientalista, parece que só viverá mesmo na pesquisa
científico-filosófica, que continua reivindicando a autoridade máxima para falar
de indígenas e dissiminar informações sobre seus modos de vida e pensamento.
Mantendo-se esta imagem, e vendo-se sempre em algum lugar um “índio pro-
fundo” inconquistado, o “verdadeiro índio”, que precisa ser protegido, salvo,
que necessita de mediadores não-indígenas para se fazer representar, é sempre
possível acionar a “retórica do resgate”, pondo em ação formas reelaboradas do
passado colonial brasileiro, solucionando dúvidas e angústias quanto a futuros
que não estão esboçados.
O ideal político-filosófico de construção de condições político-morais para
um diálogo intercultural, construído desde o local e o regional, baseado num
conjunto de princípios e direitos partícipes de um projeto nacional de reco-
nhecimento dos direitos à diferença sócio-histórica rumo à inclusão e à justiça
social, tendo como ponto de partida o respeito à diferença de projetos de futu-
ro, disseminado entre antropólogos, apoiadores, indigenistas e movimento(s)
indígena(s), mereceria ser pensado em confronto com a realidade histórica das
relações entre povos indígenas e Estado Nacional brasileiro. Sem uma reflexão
que aprofunde as imagens e práticas de indígenas e não-indígenas no campo
48
político contemporâneo arriscamo-nos, sob as novas vestes da década (susten-
tabilidade, parceria, participação, capacitação etc.), a repetir o pior da tutela e
do clientelismo de Estado, reeditando prateleiras inteiras de nosso arquivo fan-
tasmagórico. A pesquisa científica tem aí, portanto, um papel fundamental, de
desvendamento e crítica social.
Afinal se efetivamente a mediação tutelar não desapareceu, ela não é mais a
única via de acesso aos espaços de gestão governamental e o único dispositivo
de poder em jogo nesse cenário: representantes indígenas indicados por organi-
zações ocupam mais de 30 postos em conselhos de diferentes níveis de atuação
da administração pública, ou instâncias variadas nos quadros do governo. Isso
sem considerarmos as posições em contextos estaduais e municipais, bem como
a presença nos legislativos municipais. Falta-lhes, aos representantes e suas or-
ganizações, condições de sinergia e articulação, espaços para a construção de
ideias comuns fruto daquilo que os aproximam em detrimento daquilo que os
separam, bem como informações básicas, e domínio de trâmites assentes em
códigos letrados.
Uma nova utopia para uma política indigenista adequada ao Brasil con-
temporâneo se esboça, tendo como ponto de partida, por um lado, que ela seja
co-construída, sem porta-vozes, sem “reservas indígenas” ou ghettos. Por outro,
o movimento indígena tem se colocado enfrentar o que é hoje um de seus prin-
cipais desafios:
“... garantir a capacitação dos membros do movimento, das organizações e das comunidades
indígenas para superar as deficiências técnicas e políticas na condução das lutas em defesa dos
direitos indígenas, diante de uma sociedade cada vez mais complexa, tecnocrática e cientificista.
Para além disso, como garantir uma educação ou formação política e técnica para os índios de
uma maneira geral, necessária para que eles ampliem suas capacidades de compreensão e de
interação com o complexo mundo branco? Uma das iniciativas propostas pelos povos indígenas
é a construção e implementação de uma escola de formação política do movimento indígena,
vinculada às suas necessidades e demandas atuais e aos seus históricos projetos sociais e étnicos.
O sistema escolar, em todos os seus níveis, presentes ou não nas comunidades indígenas, precisa
ser apropriado e direcionado para servir aos projetos coletivos de vida de cada povo indígena.
Por fim, o grande desafio dos povos indígenas é como garantir definitivamente e em determinadas
condições sociojurídicas ou de cidadania o seu espaço na sociedade brasileira contemporânea,
sem necessidade de abrir mão do que lhes é próprio: as culturas, as tradições, os conhecimentos
e os valores” (Luciano (Baniwa), 2006: 85).

Cabe ao pesquisador, dentre outras inúmeras tarefas, desnaturalizar expres-


sões que se vulgarizaram nas últimas décadas – tais como cooperação técni-
ca, mercado de projetos, capacitação, políticas públicas (em especial oposições
ilusórias entre políticas de governo e de Estado), interculturalidade, educação
49
intercultural – na busca de qualificar fenômenos por vezes sutilmente muito dis-
tintos, diferença que passa desapercebida e ajuda a validar uns pelos outros. Isto
é essencial ao avanço da reflexão antropológica sobre a relação entre Estado e
povos indígenas no Brasil.
Os trabalhos que tenho realizado têm se movido nessa fronteira temática,
e como fruto da consciência de que analisar e escrever sobre o fenômeno esta-
tal é também (re)construí-lo enquanto realidade, têm sido também de natureza
aplicada. De modo consistente com essa percepção teórica e com certos prin-
cípios éticos e ideológicos, tenho buscado produzir conhecimento no bojo de
intervenções focadas – nos últimos 10 anos – em ações de suporte e indução
qualificada à formação universitária de estudantes indígenas enquanto quadros
partícipes de formas de articulação política variadas de seus povos, e agentes
em processos associativos de várias naturezas. Trata-se aqui, mais especifica-
mente, de acompanhar – em muitos sentidos do termo – a formação de uma in-
telligentsia indígena, uma intelectualidade formada no bojo da luta política, da
pós-graduação e no diálogo com seus povos e autoridades, produzindo sínteses
e interpretações que vêm buscando espelhar as orientações que partem de suas
coletividades de origem.
Minha hipótese principal, no presente, para reflexão e intervenção, é a de
que a formação e o fortalecimento de uma intelectualidade indígena é condição
essencial para processos de redefinição das relações entre Estado (como ideia
e como rede de agências e agentes, como forma de “descentrar” – ou produzir
“novos centros” – a crença fetichista na existência do Estado como centro e
no seu poder de realização, colhido daqueles que nisso acreditam) e povos
indígenas, na medida em que podendo entender demandas e superando a ne-
cessidade de mediadores, podem se colocar como formuladores de utopias para
além daquelas determinadas para e pelas suas tradições específicas. A busca de
qualificação que é apresentada como parte do interesse pela formação no ensino
superior é também uma busca de entender e dominar a avassaladora entrada das
políticas públicas em meio às aldeias indígenas, e até mesmo em aspectos os
mais recônditos como o do parentesco e das relações intergeracionais. O novo
regime de poder em que a participação é um imperativo coloca desafios varia-
dos, como procurei mostrar antes, se entretece com as formas tutelares e coloca
a necessidade de se conhecer de ângulos variados as políticas governamentais
50
incidentes sobre os povos indígenas, contando ou não com sua presença efetiva
nas etapas de formulação e implementação. É preciso proceder a estudos em
que analisar o Estado no tocante às políticas indigenistas implique em analisar
os povos indígenas como nelas entramados.
Suponho, ainda, que para lidar com as ficções e realidades estatais, e alterá-
-las, é necessário em alguma medida apreendê-las no plano do reconhecimento
de sua existência, abstrações e crenças que são para além de experiências afe-
tivo-cognitivas específicas e diretas. Essa intelectualidade indígena que vem
surgindo, em diálogo com as transformações (quiçá mudanças) estatais, vem
formulando concepções que partem de seu aprendizado – distributivamente va-
riado – em suas tradições culturais e do que tais tradições, nos contextos locais
e regionais específicos de seus povos no presente, propiciam como chaves de
leituras das intervenções de Estado em seus modos de vida. Mas se tal é o ponto
de partida, parece-me que estes intelectuais indígenas vêm buscando adquirir a
capacidade de extrapolar seus contextos e formular interpretações em diálogo
com outros contextos locais e regionais sobre as relações entre povos indígenas
e Estado. Em suma, acham-se em jogo modos indígenas de entender e conceber
as formas e processos estatais.
Parece-me que nossas tarefas não se restringem a pensar no lugar do an-
tropólogo nas ações de Estado ou diante delas, mas sim em produzir os instru-
mentos para entender o entrejogo complexo entre os povos indígenas e o Estado
no cenário contemporâneo, para além de chaves filosóficas, da ciência política
ou das prescrições normativas do direito. Cabe-nos, antes de tudo, mesmo que
quando intervindo, etnografar e teorizar sobre tal cenário.

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53
Etnodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável
nas políticas para quilombolas no Brasil

Rosa Elizabeth Acevedo Marin1
Raimundo Erundino Santos Diniz2

Introdução
Nos últimos anos, o Estado brasileiro adotou o desenvolvimento sustentável
como discurso e destaca-se, no conjunto de Estados modernos, pela definição
de uma série de políticas, instituições, programas e planos consoantes com esse
conteúdo. Atualmente, é amplíssima a relação de iniciativas com esse discurso
articuladas pelo Estado, pelas organizações não governamentais, por empresas
e movimentos sociais.
A primeira vista esta coerência entre discurso e políticas representaria uma
possibilidade de avanço no sentido de solucionar as questões sociais, econô-
micas e ecológicas que interferem na reprodução material e social dos povos
e comunidades tradicionais no Brasil. Além disso, mantém consonância com
o discurso enunciado por organismos, atores econômicos e políticos na ordem
internacional relativo a um “novo modelo de desenvolvimento”.3 Entretanto,
em inúmeras situações de intervenção as políticas e atividades entram em con-
flito com seus pressupostos ou nelas se desconhece que os grupos possuem
experiências, consciência de suas necessidades e projetos próprios. Os modos
de refletir e enfrentar as questões concretas e situacionais por esses projetos
revela limitações pela força que adquirem os mecanismos de convencimento
com traços autoritários de modelo único, a exemplo do Programa Nacional de
Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (PRONAF-M-
DA), aplicado à geração de renda. Em muitos casos essas ações caracterizam-se
1
Doutora em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Atualmente é
professora Associada III junto a Universidade Federal do Pará vinculada ao Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (NAEA) e ao Programa de Pos-Graduação em Antropologia (PPGA). Contato: ream30@
hotmail.com.
2
Historiador, mestre em Planejamento do Desenvolvimento do Trópico Úmido (NAEA/UFPA). Douto-
rando em Ciências Sócio-Ambientais (NAEA/UFPA) com estudos sobre comunidades quilombolas na
Amazônia. Contato: derundinosantos@yahoo.com.br.
3
Fernandes (2006) apresenta, a propósito, uma questão pertinente: podemos esperar que as instituições
que dão forma ao movimento ecológico internacional, como a ONU, o Banco mundial, o G-8, apre-
sentem uma proposta de organização social destinada a promover efetivamente a equidade social, a
eficiência econômica e a preservação ambiental de maneira a interferir no ordenamento sóciopolítico e
econômico mundial?

54
pela ampliação de contradições locais e reprodução da estrutura agrária nacional
marcada por centralização, inoperância e descontinuidades das políticas públicas.4
Fernandes identifica na proposição de desenvolvimento sustentável “uma ar-
ticulação de símbolos, significados e conceitos capazes de mobilizar uma acei-
tação mundial, um consenso altamente significativo” o qual requer “um esforço
intelectual profundo para o enfrentamento das questões concretas envolvidas
na discussão” (2006: 135). No Brasil esse discurso penetra nas universidades e
instituições de pesquisas que centralizam suas atividades na análise e represen-
tação de realidades socioambientais, fazendo eco dessas questões. Sua influen-
cia mais notável confere-se após a Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (ECO 92), no Rio de Janeiro, em 1992; na 8ª Conferência das Partes
sobre a Convenção da Diversidade Biológica (COP 8, sigla em inglês), no 3º
Encontro das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP-3,
sigla em inglês), ambas em Curitiba, no ano de 2006, e, mais recentemente, na
Rio+20, no Rio de Janeiro, em 2012.5
De certa forma, a atividade cientifica tem-se tornado auto-referente, com ten-
dência a uma analise sociológica acrítica que serve mais à divulgação da impor-
tância e vantagens do desenvolvimento sustentável em eventos, conferências e
publicações, que ao debate sobre os atos da burocracia em nome da sustentabi-
lidade, às condições de possibilidade, práticas sociais dos agentes e as relações
com as diversas políticas do gênero.
Almeida (2012) produz a leitura crítica do desenvolvimento sustentável exami-
nando a posição assumida pelo Brasil na Rio+20, e destaca que as políticas de “re-
organização de espaços e territorios”, como ações do Estado protecionista, estão
voltadas para a reestruturação de mercados, a qual disciplina a comercialização da
4
Guanziroli (2007) avalia a “eficiência e eficácia” do PRONAF apontando que este programa ainda
apresenta os vícios do modelo monocultor capitaneado por grupos de interesses do grande latifúndio
e tenta padronizar a metodologia de aplicação, acompanhamento e avaliação não respondendo aos an-
seios e singularidades locais referentes ao distanciamento entre a capacidade de produção e pagamento
de crédito por parte dos beneficiados, gerando uma grande cadeia de inadimplentes, falta de conexão e
sincronia entre os entes institucionais que compõem o sistema de políticas complementares necessárias
à promoção, efetivação e consolidação da agricultura familiar, a exemplo do PRONAF Eco Dendê no
Pará, da cadeia dos biocombustíveis.
5
A Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável (13 e 22 de junho de
2012), marcou o vigésimo aniversário da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e dez
anos da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, que ocorreu em Johanesburgo, África
do Sul, no ano de 2002, conhecida como Rio+10. A ênfase tematica esteve foi da “economia verde no
contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza” e a “estrutura institucional para
o desenvolvimento sustentável”.
55
terra, das florestas e do subsolo. Tais políticas favorecem a expansão da produção de
commodities e novas regras que forçam a flexibilização dos direitos territoriais de
povos e comunidades tradicionais, redifinem os direitos dos “trabalhadores migran-
tes” e estigmatizam as identidades étnicas. A propósito do protecionismo, analisa:
“[o]s povos e comunidades tradicionais encontram-se premidos entre a inocuidade das
políticas de ‘proteção’ – regularização fundiária das Resex, desintrusamento das terras
indígenas, titulação das terras de quilombos, pleno reconhecimento das demais terras
tradicionalmente ocupadas (faxinais, fundos de pasto, babaçuais livres, comunidades
ribeirinhas) e em dirimir os conflitos em situações classificadas como de sobreposição
– e a ofensiva sobre seus recursos básicos desencadeada pelas medidas ‘protecionis-
tas’” (Almeida, 2012: 70).

No Brasil, o acesso e usufruto aos recursos naturais e autonomia de gestão


por povos e comunidades tradicionais têm-se modificado desvantajosamente
devido às intervenções de políticas e projetos que estão orientados por interes-
ses do mercado e de atores econômicos privilegiados. Desde 2003, no Ministé-
rio do Ambiente (MMA), no MDA, no Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome (MDS) estão sendo contemplados programas e projetos de
desenvolvimento sustentável para os primeiros. O Decreto Nº. 6.040 de 7 de
fevereiro de 2007 institui a “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
para os Povos e Comunidades Tradicionais” e a Comissão Nacional de Desen-
volvimento Sustentável para os Povos e Comunidades Tradicionais – CNPCT
(criada pelo Decreto de 27 de dezembro de 2004 e modificada pelo Decreto de
13 de julho de 2006) com a finalidade de coordenar a implementação da Polí-
tica Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, cuja inovação está no fato de focalizar a categoria “povos e comu-
nidades tradicionais”, definidos como
“grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos natu-
rais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e eco-
nômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição” (Artigo 3o, inciso I, grifos nossos).

Este decreto está inspirado nos principais artigos da Convenção 169, rati-
ficada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo Nº. 143 de 20 de maio de
2002 e em vigor desde julho 2003. Ainda é complementar no plano jurídico
ao artigo 68 das Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da
Constituição Federal de 1988 e do Decreto Nº. 4.887/2003. A definição legal
56
de territórios tradicionais é a segunda contribuição conceitual do Decreto Nº.
6.040/2007. Estes constituiriam
“os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comu-
nidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, obser-
vado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que
dispõem os arts. nº. 231 da Constituição e no. 68 do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias e demais regulamentações” (Artigo 3º, inciso II).

É por força das demandas atualizadas pelos movimentos sociais e suas en-
tidades organizativas que essas noções e procedimentos normativos têm incor-
porado instrumentos para acionar direitos e reformular as políticas de maneira
a torná-las um meio de acessar recursos técnicos, administrativos e financeiros
por parte dos povos e comunidades tradicionais, que se apoiam na organização
coletiva, produzem articulações externas e inserem-se em espaços de mediação.
Nesse agir, também experimentam os efeito das dissonâncias entre leis, políti-
cas e as práticas, como observado no campo dos direitos territoriais, ao mesmo
tempo constatam que o reconhecimento pelo Estado brasileiro não se traduz em
práticas concretas.
Em 2009, foi instituido o Programa Terra Legal pela aprovação da Lei Nº.
11. 952, de 25 junho de 2009, que resultou da conversão da Medida Provisória
nº. 458/2009, e visava titular 67 milhões de hectares, examinado como um
dispositivo de institucionalização da grilagem de terras. Com base no enten-
dimento de que a regularização fundiária de terras federais na Amazônia tem
dois objetivos: promover a inclusão social e a justiça agrária, dando amparo
a posseiros de boa-fé, que retiram da terra o seu sustento; e, aperfeiçoar o
controle e a fiscalização do desmatamento na Amazônia, ao permitir uma me-
lhor definição dos responsáveis pelas lesões ao meio ambiente nas áreas re-
gularizadas. No entanto, a Procuradora-Geral da República, Deborah Duprat,
ingressou, em julho de 2009, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADIN) junto ao Supremo Tibunal Federal (STF) contra os artigos 4º, pará-
grafo 2º; o artigo 13; e o artigo 15, parágrafos 1º, 4º e 5º da referida. Conforme
a Procuradora “a norma institui privilégios injustificáveis em favor de grilei-
ros que, no passado, se apropriaram ilicitamente de vastas extensões de terra
pública”. A prática das grilagens “... frequentemente envolveram emprego ex-
tremo de violência, uso de trabalho escravo e degradação, em grande escala,
57
do meio ambiente.”6 Argumenta ainda que, “o legislador, em alguns pontos,
deixou de proteger adequadamente este magnífico patrimônio nacional, que
é a Floresta Amazônica brasileira (art. 225, § 4º, CF), bem como os direitos
de minorias étnicas como os povos indígenas, os quilombolas e as populações
tradicionais que habitam na região” e que a titulação dos territorios de povos
e comunidades tradicionais deve ter prioridade.
Não raro, as políticas públicas, planos, programas – enquanto atos au-
torizados pelo Estado7 – são analisados como inadequados, descontínuos
e com balanços inexpressivos. Tais resultados atribuem-se as aparentes
inabilidades e descompetências, o que é indefensável. O ato público da
Presidência da República de 06 de dezembro de 2013, que noticiou a de-
sapropriação de terras (aproximadamente 14.000 hectares para “assentar
749 famílias”, em 10 áreas dos estados de Paraíba, Ceará, Rio Grande
do Norte, Pará, Maranhão, Tocantins e Minas Gerais) finalizava por uma
justificativa: “[o] governo informa que o processo de desapropriação e en-
trega dos títulos de terra envolve muitas etapas e que, por isso, não pode
definir um prazo para que as áreas sejam entregues” (Grifos nossos). 8
Uma das entrevistadas, e beneficiada com o documento, vive na região de
Carlos Chagas, em Minas Gerais, e declarou ter esperado oito anos para
receber a dupla notícia. O que foi banalizado, neste ato político, é a vio-
lência simbólica contra os quilombolas convidados para ouvir o que não é
a solução definitiva.
Esse ato ocorreu no final de 2013, anteriormente havia circulado a Nota Pú-
blica da Confederação Nacional das Associações dos Servidores (CNASI) do
Instituto Nacional e Colonização e Reforma Agrária (INCRA), manifestando
preocupação em relação à falta de celeridade e a descontinuidade da política de
garantia de direitos constitucionais das comunidades quilombolas, por parte do
Estado Brasileiro. Na Nota Pública, declarava:
6
Ver Notícias STF. PGR questiona lei que trata da regularização fundiária na Amazônia. Disponível
em: <<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=110756>>. Acesso em:
09.07.2009.
7
Bourdieu sugere a possiblidade de análise antropológica do Estado atraves dos seus “atos politicos
legitimos”. Nessa linha pode ser analisada a elaboração de políticas públicas, planos, programas como
formas da ação do Estado que têm efeitos sobre o mundo social (Bourdieu, 2012: 16-45).
8
Conferir: Dilma anuncia medidas para agilizar regularização de terras quilombolas. Disponível em:

58
“[p]ercebemos que o Governo tem sucumbido a esta ofensiva dos setores governa-
mentais e da sociedade que controlam a malha fundiária no Brasil contra os direitos
de populações tradicionais de diversas maneiras. No INCRA foram instituídas rotinas
administrativas excessivas cujo objetivo é a intencional protelação dos processos.”9

No primeiro semestre as mobilizações dos quilombolas chegaram à


presidência.10 No interim o MDA/INCRA lançou, em Brasilia, em 20 de agosto
de 2013, a Mesa Permanente de Regularização de Territórios Quilombolas insta-
lada em São Paulo, Pará, Bahia e Maranhão, definindo-a como “um espaço aberto
e de diálogo entre as estruturas do governo e os movimentos sociais que está
formando uma cultura política”. O secretário nacional de Articulação Social da
Secretaria-Geral da Presidência da República, fez referência, na oportunidade,
ao lançamento da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e reforçou a
metodologia da Mesa Quilombola para assegurar direitos. Este dispositivo está
inspirado na recente PNPS, implantada via Decreto Nº. 8.243, de 23 de maio de
2014, o que parece a ilusão de entrada no jogo da solução da questão lenta e tortu-
osa da titulação dos territórios quilombolas pelo atual governo.11
Novamente, ante a inoperância, lentidão dos processos de titulação é desen-
cadeada pelo Ministério Público Federal (MPF)12 uma “operação” em todo o
9
Ver: Nota dos Servidores do INCRA. Brasília, 14 de agosto de 2013. Conferir em: <<http://www.
cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/noticias-2/14-acoes-dos-movimentos/1681-nota-dos-servi-
dores-do-incra-sobre-a-inoperancia-do-governo-brasileiro-no-reconhecimento-dos-territórios-quil om-
bolas>>. Acesso em: 19.06.2014.
10
O Superintendente do INCRA, na abertura da Mesa Permanente de Regularização de Territorios qui-
lombolas, no Pará, comentou: “[m]ais recentemente houve um encontro do movimento negro e das co-
munidades quilombolas com a Presidenta, né, e neste encontro foi registrado o encontro da representação
das comunidades quilombolas sobre o andamento dos processos de regularização dentro do INCRA.
Situação essa que pra nós também é objeto de encontro ou era, né, na época, porque nós vamos fazer um
levantamento histórico da nossa atuação, principalmente após o Decreto 4887, a gente percebe que de
um lado quem é a favor da regularização quilombola está incomodado com a ação do INCRA e quem é
contra também tá incomodado, tanto que está se movimentando pra derrubar o Decreto, pra fazer com
que haja uma interpretação mais restritiva do preceito constitucional que garante os direitos territoriais
para as comunidades quilombolas. Então, nós deflagramos que não é possível, a gente está desagradando
todo mundo ao mesmo tempo. E nesse sentido, a nossa produção foi que, nós tínhamos que rever todos
os nossos procedimentos internos, respeitando aquilo que não só pelo Decreto, mas também com um
olhar muito atento à própria Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que rege todos
os reconhecimentos dos direitos das populações tradicionais e que abrange a perspectiva da criação da
regularização quilombola”. (Discurso do Sr. Carlos Mário Guedes de Guedes. Presidente do INCRA, na
SR-O1- Belém - Pará em 10 de setembro de 2013).
11
Ver: Miguel Rossetto abre 5ª Mesa Nacional de Negociação Quilombola. Disponível em:
<<http://www.incra.gov.br/noticias/miguel-rossetto-abre-5-mesa-nacional-de-negociacao-quilombo-
la>>. Publicado dia 26/05/2014. Acesso em: 21.10.2014.
12
Ver: Procuradores desencadeiam ações em defesa de quilombos. Conferir em: <<http://politica.esta-
dao. com.br/noticias/geral.procuradores-desencadeiam-acoes-em-defesa-de-quilombos,1097398>>. Em
16 de novembro de 2013. Acesso em: 20.07.2013.

59
país em novembro de 2013 cujo objetivo é a questão da regularização e titula-
ção das terras reivindicadas pelas comunidades quilombolas.
Neste artigo destacam-se os impactos da intervenção do Estado e de atores eco-
nômicos na existência deste segmento dos povos tradicionais do Brasil. Quilombos
e quilombolas estão reconhecidos na maioria das unidades administrativas do país
e diversos estudos têm mostrado que a identidade coletiva, e consoante política
identitária, tem inicio com a disputa por recursos naturais e defesa dos territórios.
A questão formulada é: existem no Brasil condições de possibilidades para
práticas de etnodesenvolvimento em comunidades quilombolas? De um lado,
se reconhecem as limitações para políticas de etnodesenvolvimento dentro do
Estado moderno e, de outro, apontam-se as ações políticas dos agentes sociais
para enfrentar e superar os obstáculos políticos e burocráticos, tanto no caso da
lentidão das titulações, como nas contradições e descontinuidades na execução
da política social para esse segmento.

Etnodesenvolvimento e direitos dos quilombolas no Brasil


Etnodesenvolvimento é uma noção política que no seu sentido mais direto é
politizada por atos, ações e práticas dos agentes sociais. O antropologo Guillermo
Bonfil Batalla definiu o etnodesenvolvimento fixando-o na ideia da capacidade de
uma sociedade culturalmente diferenciada de elaborar propósitos de dirigir seu pró-
prio destino.
Na compreensão de Stavenhagen (1985) é destacado o “diferencial sociocultu-
ral” de uma sociedade como sendo sua etnicidade. De forma integral, Stavenhagem
entende que: “o etnodesenvolvimento significa que uma etnia, autóctone, tribal ou
outra, detém o controle sobre suas próprias terras, seus recursos, sua organização
social e sua cultura, e é livre para negociar com o Estado o estabelecimento de rela-
ções segundo seus interesses” (1985: 57).
Almeida, no estudo das chamadas terras de preto no Maranhão, frisa: “[o] fator
étnico aparece como o componente que assegura a garantia de titulação definitiva das
terras. E é a partir dele que o grupo social se reestrutura e consolida sua identidade
coletiva em confrontação com seus tradicionais antagonistas” (Alemeida 2011: 53).
O reconhecimento de direitos territoriais é condição sine qua non para a comu-
60
nidade acessar e usufruir recursos naturais, em consonancia com o sistema de
regras consensuadas, e de produzir e reproduzir as formas de existência social.
O Estado reconhece os direitos étnicos e territoriais, o que não significa que
lhe tenha assegurado as territorialidades – garantia para sua reprodução física,
social e cultural – ou que se tenha adotado uma política étnica, implicando inter-
venções governamentais coerentes, ágeis e sistemáticas (Almeida, 2005).
O debate sobre etnodesenvolvimento de comunidades e territórios quilombo-
las significa compreender que o processo é profundamente político e relaciona-
-se com a consciência da necessidade de um coletivo, a autonomia de sua visão
de mundo para elaborar e construir o seu projeto, que deve ser respeitado. Além
disso, nele a dimensão econômica não é separada da dimensão identitária.
O “Programa Brasil Quilombola” aprovado em 2004 é marco de uma polí-
tica pública com definição orçamentária. Nele estão inseridos projetos e ações
rubricados como de “Etnodesenvolvimento das comunidades remanescentes de
quilombo”; “Fomento ao desenvolvimento local para comunidades remanes-
centes de quilombolas”; “Apoio ao desenvolvimento sustentável das comuni-
dades quilombolas” e ainda de “Gestão ambiental em terras quilombolas” e a
“Regularização fundiária” que
“implica na resolução dos problemas relativos a emissão do título de posse das terras
pelas comunidades remanescentes de quilombo e é a base para a implantação de alter-
nativas de desenvolvimento, além de garantir a reprodução física, social e cultural de
cada comunidade” (SEPPIR, 2004:16).

Esse Programa é um argumento para examinar os atos legítimos e refletir


que o Estado não é apenas a domesticação, ele é “também assistência, fi-
lantropia...” como frisa Bourdieu (2013: 566). Na análise da politica étnica,
Almeida (2005: 2011) afirma que se trata de ação realizada nas ou pelas bor-
das e caracterizada por ações pontuais, dispersão e, ainda, sua subordinação
a outras políticas governamentais, tais como a política agrária, políticas de
educação, saúde, habitação e segurança alimentar, a qual se somaria outras
classificadas no âmbito “da cultura afro-brasileira”13. Em outras palavras,

13
No orçamento quilombola de 2005 definem-se Programas e Ações da Cultura Afro-Brasileira. Nesse
ano o item “implantação de Unidades do Centro Nacional de Cidadania Negra” contemplou quase 50%
(R$ 8.000.000) do orçamento autorizado em 2004. Foi de mais de um terço do autorizado em 2005 (R$
15.739.757). No orçamento para 2007, cinco itens do sub-programa Cultura Brasileira, que constavam
nos anos antes citados, deixaram de ser orçados.

61
essa política elide o fator étnico e muitas de suas definições e decisões si-
tuam-se no campo contrário da consciência e posição reivindicativa dos
quilombolas, dos “direitos étnicos e a capacidade de autodefinir-se como
tal, mediante os aparatos de poder, organizando-se em movimentos a partir
de lutas concretas” (Almeida, 2005: 6) que se objetivam constantemente e
constituem um freio renovado aos interesses e racionalidade do capital.14
Estudos recentes têm permitido sistematizar informações sobre uma diver-
sidade de definições e projetos referidos às diversas situações sociais dos qui-
lombolas e que não correspondem aos critérios técnicos da burocracia admi-
nistrativa. Em pesquisa sobre as políticas públicas em territórios quilombolas
na região nordeste do Pará, Diniz (2011) identificou que o tempo e a lógica de
produção dos agentes da tecnocracia que se deslocam para as comunidades qui-
lombolas, para desenvolver atividades de registros, mapeamentos e execução
de planos e programas, têm como premissa o cumprimento da carga horária de
trabalho e o preenchimento de questionários para dar respostas mais imediatas
e objetivas. Nestes imediatismos são elaborados diagnósticos apressados e im-
precisos, contribuindo para reforçar a marginalização e fomentar interpretações
preconceituosas. Vários projetos executados, inacabados ou em andamento en-
tram em choque com os interesses das unidades domésticas e sequer atingem
seus objetivos.
As observações indicam que o tempo de permanência, o nível de confian-
ça e de conhecimento do território permitem estudos mais acurados sobre as
modalidades de uso e domínio dos recursos a partir do lugar. Com tecnologias
específicas e adaptadas às condições locais e maior participação dos agentes
sociais podem expandir o repertório de informações essenciais para superação
de políticas públicas tradicionais, incoerentes e contraditórias às demandas
quilombolas.
Na atual ordem econômica e política do Brasil, abordar a questão das terri-
14
Nesse avanço político a capacidade de mobilização dos quilombolas foi se consolidando em moviento
organizativo em nível nacional e “constituindo-se um interlocutor indispensável nos antagonismos so-
ciais que envolvem aquelas territorialidades especificas” (Almeida, 2002: 73). A Coordenação Nacional
de Articulação das Comunidades Negras Rurais (CONAQ), criada em 1996, em Bom Jesus da Lapa, na
Bahia, após a realização do I Encontro Nacional de Quilombolas. Esta organização de âmbito nacional
representa os quilombolas no Brasil e dela participam as comunidades quilombolas de 18 estados da
Federação.

62
torialidades ameaçadas conduz ao mapeamento de estratégias empresarias que
são paralelas às do próprio Estado face ao aquecimento dos preços das commo-
dities. Nesse contexto de busca de crescimento econômico estão sendo redefini-
das as tensões e o aumento dos conflitos em relação aos territórios ocupados por
povos e comunidades tradicionais.
A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) tem tornado públicas suas
pretensões em termos de terras para expansão do agronegócio e consoante à
ampliação de sua organização política e busca de meios de garantir seus pleitos.
A CNA pretende ampliar a área sob seu controle para 260.000 hectares e, nesse
projeto de expansão, as ocupações especiais e as formas de existência e de titu-
lação coletiva dos territórios quilombolas, assim como das terras indígenas, são
tidas como empecilhos.
Por parte dos órgãos fundiários do Estado, observa-se uma tensão para o
reconhecimento de situações de uso coletivo da terra, ditadas, respectivamente,
por fatores étnicos, por tradição e costumes, por práticas de autonomia produti-
va e por mobilizações políticas para afirmação de direitos básicos. Praticamente
cada titulação reporta-se à uma ou varias situações de conflito social. Em cada
caso, os interesses contra a titulação coletiva dos territórios coletivos mobilizam
forças, recursos jurídicos e políticos.
Assim, o fato mais novo é o quadro de conflitos com agentes econômicos e
instâncias governamentais que obstaculizam a existência de territórios tradicio-
nalmente ocupados. Trata-se de novos conflitos, diferentes aos dos anos 1970,
que envolviam os chamados posseiros-migrantes. Os quilombolas constituem
formas de ocupação especiais que se remontam ao processo colonial e estão
ameaçadas pelo mercado de terras.
Não obstante os avanços que teve a lesgislção, é reconhecido que o intervalo
de 2007 a 2013 mostra-se crítico e regressivo no tocante a titulação das terras
quilombolas, ação praticamente paralisada, enquanto a política quilombola as-
sume um viés produtivista, sem a condição agrária.
No Pará esse viés produtivista destaca-se no interesse no biodiesel, objeto do
empreendimento de antigas e novas empresas no setor, integradas na economia
do dendê que avança sobre o nordeste paraense e que impõe restrições de uso de
recursos para os quilombolas. No Arquipelago do Marajó concretiza-se a corri-
63
da pela compra de fazendas para instalação do agronegócio voltado para o cul-
tivo do arroz irrigado. Nos dois últimos anos se registram no sul e noroeste da
ilha as vendas de fazendas (São Marçal, Forquilha, Coração e Santo Agostinho)
mostrando um súbito aquecimento do mercado de terras. A valorização do açaí
no mercado global impulsa a luta acirrada entre os quilombolas dos municípios
de Cachoeira do Arari, Ponta de Pedra e os fazendeiros pelo controle desse re-
curso. Ainda, com a transformação de fazendas em unidades turísticas, ocorre o
aquescimento do valor da terra. Outras estratégias empresariais correspondem
à sojicultura, pecuária, exploração madeireira e pesca industrial impulsionadas
pelas exportações. O setor madeireiro é reorientado para o mercado com os Dis-
tritos Florestais. Outra ingerência econômica na floresta é dada pela posta em
circulação dos créditos de carbono. Os territórios das comunidades expõem-se
à poluição industrial das cidades, pela contaminação. Os igarapés morrem ou se
transformam em cloacas, como se observa no território quilombola de Jambua-
çu. Ainda existe o risco de ruptura de minerodutos de bauxita que pesa sobre a
existência do grupo.
As hidrelétricas do Madeira são uma ameaça concreta sobre os povos negros
do Guaporé, como também é a transposição do rio São Francisco para as comu-
nidades quilombolas de Bahia. Os conflitos tem uma dimensão agrária, étnica
e ambiental e, nessas circunstancias, elementos de consciência da necessidade
vão aparecer com força. As comunidades quilombolas do Xingu afirmam que,
no lugar de barragens, querem a titulação de seus territórios. A dinâmica desses
conflitos envolve a identidade e o tempo de autoconsciência.
As territorialidades são constitutivas do social. Toledo (2003) procede a ela-
borar diversas acepções de território indígena, como: jurisdição, zona geográfica
sob controle do coletivo indígena; espaços geográficos de terra a demarcar, res-
tituir e titular em propriedade; habitat, segundo a Convenção 169, constituindo a
base material, conjunto sistêmico de recursos essenciais para a existência coleti-
va; biodiversidade e conhecimentos indígenas sobre a natureza e sua expressão
em direitos de propriedade intelectual (Convenção da Diversidade Biológica);
territórios simbólicos e históricos, referido a espacialidade socialmente constru-
ída, vinculada primordialmente à identidade coletiva – etnoterritorialidade. Es-
ses territórios são as espacialidades da resistência, associado à noção de lugares
como “locus de identidade, relações e história” na construção de sentido das lutas

64
sociais (Toledo, 2003: 95). O trabalho de campo permite compreender como sur-
gem estrategias de resistência para a permanência no território.
O processo de reconhecimento oficial das comunidades quilombolas não
acompanha o de titulação coletiva de territórios, pois poucas chegam a esta
última etapa. Não basta produzir as peças da visibilidade histórica e cultural
dos quilombolas – políticas de reconhecimento, por meio do ato de “certificar”,
que é atribuição da Fundação Cultural Palmares (FCP), que produz a Certi-
dão de Autodefinição das comunidades quilombolas, é fundamental a garantia
e usufruto de direitos territoriais. Lutas por reconhecimento não se separam das
reivindicações por redistribuição, como intepreta Fraser (2007).
O MPF, na operação de 2013, divulgou dados dos beneficiados com a ti-
tulação: um total de 207 comunidades, o que abrangeu uma área de 995 mil
hectares, representando 8,5% das comunidades já reconhecidas pela Fundação
Cultural Palmares (FCP). A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR) insere a informação: “[a]tualmente, 2.040 comunidades qui-
lombolas são certificadas pela Fundação Cultural Palmares” que esclarece que
no grupo de tituladas se contam 12.946 famílias beneficiadas.
Os decretos de desapropriação, como os anunciados pelo governo em de-
zembro de 2013, e as titulações estão mostrando a desproporcionalidade do ta-
manho do território em relação ao número de familias. As notícias da SEPPIR
sobre os atos do referido mês chamam atenção pela figura juridica nova: “títulos
parciais de propriedade”.
“Na ocasião, haverá o anúncio de treze títulos parciais de propriedade para as comuni-
dades quilombolas de Lagoas dos Campinhos, em Amparo do São Francisco, Mocam-
bo, em de Porto da Folha e Pirangi, todas em Sergipe. Até o final do mês, também serão
contempladas com títulos parciais as comunidades de Castainho (PE) – 1 título, Con-
ceição das Crioulas (PE) – 3 títulos, e em Jatobá (RN) – 6 títulos, totalizando 1979,2
ha, para 1.176 famílias quilombolas, em títulos definitivos imitidos pelo INCRA, em
2013. Haverá a entrega da Imissão de Posse para comunidade de Brejo do Crioulos
(MG), representando o conjunto de quilombos beneficiados com 55.495,84 ha para
3.071 famílias, nos estados de Pernambuco, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul,
São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Paraíba,
Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Tocantins e Goiás.” 15

O movimento quilombola nacional tem feito manifestações e lutas por re-


15
Ver:<<http://www.seppir.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2013/12/presidenta-dilma-rousseff-for-
talece-programa-brasil-quilombola-com-o-anuncio-de-uma-serie-de-atos-e-medidas>>. Acesso em:
04/12/2013.

65
conhecimento associadas às lutas por redistribuição, diferente do Estado que
está mobilizado a por em prática politicas de reconhecimento e obstaculiza a
titulação dos territorios quilombolas, uma politica redistributiva. Para Fraser
(2007) as dimensões do reconhecimento e da redistribuição permitem pensar
um modelo mais abrangente e inclusivo, estas são dimensões da justiça mutua-
mente irredutíveis.
As etapas de identificação, reconhecimento, demarcação, desintrusão, certifi-
cação e, finalmente, titulação, seguem passos lentos na consolidação do processo
de titulação se intensificaria o acesso às políticas públicas, projetos e programas
tornando esses grupos étnicos em “sujeitos” de direitos. Essa é análise e propósito
do movimento quilombola. A politica de reconhecimento do Estado é condição
para essa posição. Para isto se institucionalizar, funciona o Cadastro Geral de
Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares
FCP (Cadúnico).
O quilombola é classificado mediante dispositivos pelo Estado. Esta é condi-
ção para ser sujeito da assistência e filantropia do Estado. Esse jogo de ilusão é
mais eficiente e é mediante esse disposito que se banalizam as lutas pela titulação.

Políticas sociais e quilombolas


Recentemente, o Estado-nação se propôs tornar os quilombolas em “clien-
tes” de políticas sociais, de intervenções e de disposições burocráticas que pro-
curam controlar a etnicidade, de coagir e restringir as demandas por território,
como ilustra os interesses contrários à aplicação dos dispositivos legais tanto
dentro como fora da burocracia governamental.16
O Estado reconhece a existência de 214 mil famílias e 1,17 milhão de qui-
lombolas distribuídos em todo o território nacional.17 Baseado nas estimativas18
16
Em 2004, o Partido Frente Liberal (PFL), atual Democratas, apresentou uma ADIN contra o Decreto
Nº. 4887/2003. Com essa medida o partido tenta impugnar o uso da desapropriação na efetivação do
artigo 68, bem como se opõe ao critério de identificação dos remanescentes de quilombos pela autoatri-
buição. Em 2007, Valdir Colatto (PMDB – SC) e Waldir Neves (PMDB – SC), deputados federais, apre-
sentaram o Projeto de Decreto Legislativo Nº. 44/07 que susta a aplicação do Decreto Nº. 4.888/2003,
argumentando inconstitucionalidade e que ultrapassa os poderes do presidente da República. A organi-
zação Paz no Campo reúne grupo de poder econômico e político conservadores e desenvolve uma cam-
panha contra a titulação dos territórios quilombolas na mídia, jornais e meios eletrônicos. Latifundiários,
agronegócio e grileiros são os autores da campanha na imprensa contra os direitos quilombolas (Ver
dossiê do Observatório Quilombola com 68 notícias em: <<www.koinonia.org.br>>).

66
da SEPPIR de que “[a]tualmente, 80 mil famílias quilombolas estão identifica-
das no Cadastro Único de Programas Sociais (referência: janeiro/2013). Dessas,
79,9% são beneficiárias do Programa Bolsa Família e 75% estão em situação de
extrema pobreza”.
O Programa Brasil Quilombola19 – representando as ações governamentais
que materializariam a denominada “política étnica do governo” – pode ser visto
como um “deslocamento da questão da terra” para a de prover serviços básicos das
comunidades e se mostraria como uma política social se constituindo em medida
compensatória. As comunidades quilombolas se tornam “clientes” e beneficiárias
de programas, projetos e planos governamentais passando a ser designadas como
“pobres”, “carentes”, excluídos”, “população de baixa renda” e “vulnerável”.
A segurança alimentar pelos grupos, relacionada historicamente ao con-
trole dos recursos do território, é deslocada quando são incluídos no Progra-
ma Fome Zero, ação que se revela parcial (algumas comunidades e algumas
famílias), fora dos padrões alimentícios, pois não atenta para gostos e regi-
mes alimentícios, além de ter qualidade questionável. Ainda, é indiferente
as capacidades, possibilidades e aspirações que vários grupos tem de incluir
os gêneros por eles produzidos, por exemplo, mel em lugar de açúcar branco
nas escolas.
Observa-se que este programa não pode ser entendido como política étnica por ter
cunho generalizante ao atender outras demandas do “Programa Brasil Sem Miséria”.
Não se avaliam as dificuldades e condições de acesso ao programa ao se pensar a
geografia quilombola e estatística de que 23,5% não sabem ler e 75,6% das famílias
quilombolas estão em situação de extrema pobreza, como informa a própria SEPPIR.
A participação dos agentes sociais no processo de elaboração dos programas
e projetos compõe um canal importante para a minimização dos desacertos, re-
17
Dr. João Carlos Bemerguy Camerini (Assessor Jurídico da “Terra de Direitos”) publicou a nota com
título “Portaria institui GTI para elaboração de proposta de cadastro e plano de gestão ambientais em
territórios quilombolas”. site: Racismo Ambiental. Acesso em: 08.04.2013.
18
Os dados apresentados pela SEPPIR, em diagnóstico do Programa Brasil Quilombola, indicavam ca-
dastradas no Cadúnico que auxiliam as políticas públicas a serem implementadas, apresenta defasagem
de 142 mil famílias sem registros. As desatualizações explicam o pequeno alcance e a ineficiência das
políticas públicas destinadas às demandas quilombolas. O principal programa do governo que chega às
comunidades quilombolas, de forma deficiente, é o “Bolsa Família” que compreende 78% do total de
beneficiários em um universo de 1,17 milhão de quilombolas.
19
Várias políticas estão compreendidas nas atividades da SEPPIR, que criou o Programa de Programação
de Igualdade de Gênero, Raça e Etnia (PPIGRE).
67
cuperação de aspectos culturais e identitários relacionados à trajetória etnohis-
tórica dos grupos, descrição pormenorizada dos diversos interesses e maneiras
de uso e apropriação do solo, subsolo e demais recursos naturais.
A falta de participação dos quilombolas na elaboração, planejamento e efe-
tivação de tais programas lhes deixam em condições de vulnerabilidade e tute-
lagem em relação aos mediadores e interlocutores de esquemas políticos locais
que muitas vezes se julgam responsáveis pela chegada de tais serviços.
Em comunidades estudadas na região Nordeste e Arquipelago do Marajó,
alguns programas sociais, como “Bolsa Escola” e “Bolsa Família”, atendem
algumas famílias que relatam dificuldades em receber e renovar o benefício.
Identificou-se, também, que entidades e representações políticas locais, media-
doras das políticas sociais, colocam-se enquanto responsáveis pela chegada dos
serviços, como forma de tentar barganhar votos e/ou influências políticas.
Quanto às habitações, no mesmo diagnóstico a SEPPIR informa que, em
media, as unidades domésticas contém 4,3 cômodos, o que não se observa em
atividades de campo de algumas comunidades quilombolas do estado do Pará.
São habitações desprovidas de mobílias e divisórias, quando existem são fre-
quentes no máximo 2 divisórias. Para o mesmo item são diagnosticados que
63% possuem piso de terra batida, 62% não possuem água canalizada, 36% não
possuem banheiro ou sanitário, 76% não possuem saneamento adequado, 58%
queimam ou enterram o lixo no território e 78,4% possuem energia elétrica,
número bastante audacioso ao se considerar as precárias condições dos sistemas
de distribuições de energias para as comunidades.
Torna-se imperioso analisar para além das estatísticas e refletir sobre as con-
dições de vida das famílias quilombolas que sofrem com a aquisição de doenças
causadas por lugares infectos, insetos, água contaminada, exposições às formigas,
cupins, mudanças climáticas, dependência ao ciclo das mares e animais peço-
nhentos para citar algumas. Estas situações sociais inflamam outras áreas, como
saúde, educação, lazer e segurança, às indiferenças e ausências propositais do
Estado expõem idosos, crianças, doentes e grávidas a condições subumanas.
Grande parte das comunidades, em especial as que se intitulam “quilombolas
ribeirinhos”, estão desprovidas de qualquer serviço de transporte, sendo necessário
alugarem ou comprarem canoas, barcos ou “rabetas”, constituindo custos extras
68
e endividamentos entre as famílias. Para as que vivem em terra firme o acesso é
dificultado devido a existência de buracos, lamas, alagamentos, poeira e pontes que-
bradas que encurtam ainda mais o tempo de vida dos transportes utilizados (moto-
cicletas, bicicletas e carroças) em deslocamentos que duram de 30 à 60 minutos.
Existem outros problemas sérios relacionados à incompatibilidades de dados
nos registros indicados pelas comunidades nos estudos histórico-antropológicos
no que refere ao perímetro demarcado pelos técnicos durante a elaboração dos
mapas oficiais, nos territórios titulados e, por fim, nos hectares divulgados pelos
órgãos públicos. Da mesma forma, existem relatos de negociatas para a redução
do território a ser titulado em caso de terras intrusadas por proprietários do en-
torno, com promessas de maior celeridade nos processos. Estas situações foram
mapeadas em atividades de campo na região nordeste do Pará, em acompanha-
mento com uso de GPS e conversas com lideranças quilombolas em comunida-
des quilombolas tituladas ou em processo de titulação.
As realidades observadas em comunidades quilombolas são diversas e in-
coerentes com os cifrões anunciados pelo governo para outros setores volta-
dos às políticas públicas que compreendem o “Programa Brasil Quilombola”.
Ainda com referência ao ano de 2012, foram anunciados investimentos de R$
152.193.055,34 para o saneamento, mas obras concluídas somam o valor de
R$ 18,7 milhões e em execução totalizam R$ 55,7 milhões. Para o sistemas
de abastecimento de água um total de R$ 35 milhões em 2012, habitação, R$
55.878.009,42, educação (escolas), R$ 30,6 milhões, e Programa de Aquisição
de Alimentos (PAA) num quantitativo de R$ 3,4 milhões.
As atitudes de autoridades e funcionários que atuam em órgãos públicos res-
ponsáveis pelas transformações dos cifrões em políticas públicas concretas para
as comunidades quilombolas apontam para uma contra postura aos discursos
anunciados pelo governo. Para algumas famílias quilombolas são décadas de
esperas e, nos últimos anos, observa-se um intenso processo de desaceleração
da titulação. O INCRA possui mais de 1.167 processos abertos entre os anos de
2005 e 2014. Nesse periodo o INCRA titulou apenas 21 comunidades quilom-
bolas, no total de 173 processos em diferentes fases, nos últimos três anos foram
três títulos em 2012, um em 2013 e nenhum em 2014 (até meados do primeiro
semestre). As titulações não ocorrendo, aumentam as situações de conflitos e
mesmo os processos concluídos não são homologados pelo INCRA.
69
No município de Cachoeira do Arari, os quilombolas dos rios Arari e Gurupá
estão em situação de conflito aberto pelo território com fazendeiro e durante a
primeira reunião da Mesa Permanente, em setembro de 2013, os representantes
da Associação de Remanescentes de Quilombo do Rio Arari e Gurupá (AR-
QUIG) e o da MALUNGU descreveram as situações que, após o assassinato do
Senhor Teodoro Lalor de Lima, presidente dessa Associação, vinham se repe-
tindo, acentuando a violência e o desrespeito de direitos humanos.
Do ponto de vista juridico, nessa reunião foi mencionado pelo diretor do
ITERPA o fato de existirem mais títulos do que terras. Em maio de 2014, os
Técnicos da Superintendência do INCRA – SR-01 solicitaram celeridade da Su-
perintendência em Brasília no processo de titulação, em especial face as invasões
dos igarapés por extratores. A Associação de Remanescentes de Quilombo do
Rio Arari e Gurupá ARQUIG, em representação de quase 240 famílias que ocu-
pam tradicionalmente os igarapés afluentes do rio Arari e do Gurupá, já realizou
várias ações junto a orgãos públicos – MPF, IBAMA, INCRA e ITERPA – para
informar da invasão dos igarapés com a construção de casas à margem esquerda
do rio Arari por um fazendeiro de Cachoeira do Arari, devidamente nomeado
nos documentos que neles foram protocolados. Aguardam os quilombolas pela
emissão da Portaria de Reconhecimento que se encontra desde abril deste ano
(2014) no DFQ/INCRA em Brasília. No Pará uma informação do ITERPA é fun-
damental para as decisões que poderão interferir nos rumos do processo se a carta
de sesmaria do século XVIII viesse ganhar fantasticamente vida e valor jurídico.

Considerações finais
Projetos de etnodesenvolvimento dificilmente têm alcançado o nível de con-
cretização desejado, pela ausência de uma condição sine qua non: a garantia
de direitos territoriais, a autonomia na concepção e decisão sobre os projetos,
o desenvolvimento da organização social e política do grupo. Na maioria dos
territórios existem recursos naturais e formas de uso e apropriação, produto
de estratégias sociais, que têm favorecido a reprodução material e social dos
grupos. Essas formas encontram limites externos nos avanços de processos de
perda por expropriação e usurpação do território.
Estudo realizado na comunidade quilombola Itacoã Mirim debate os pilares
70
do etnodesenvolvimento: território, biodiversidade e organização social. Scoles
Cano (2005) destaca o processo de transformação das suas atividades produtivas
pressionado pela necessidade de recursos monetários pelas famílias. Situações
combinadas modificam rapidamente o grupo. O território recentemente titulado
não é compatível com o ritmo de crescimento demográfico do grupo e apresen-
ta perdas de produtividade. A biodiversidade é, em boa parte, conservada com
hortas e quintais. A mobilização e organização política, com base na cultura lo-
cal, é capaz de atrair e executar projetos econômicos e ecológicos. Scoles Cano
(2005) mostra que a diferença consiste em projetos de etnodesenvolvimento
com apoio institucional e coerentes com as necessidades, cultura e organização
social do grupo.20 Contudo este é descontinuo e diferenciado, sobrecarregando a
capacidade de algumas famílias e gera processos complexos, inclusive os jogan-
do no modelo oficial do “agricultor familiar”. Essa é a tendência da intervenção
dos órgãos responsáveis por projetos denominados de desenvolvimento susten-
tável ou de etnodesenvolvimento.
Quando o grupo é estimulado a desenvolver praticas sociais inovadoras, com
referências na sua historia, cultura e ecosistema, os resultados tendem a ser dife-
rentes. Comunidades quilombolas de Rio Grande do Sul retomam o cultivo do
“arroz dos escravos” (provavelmente Oryza glaberrima) e esta escolha encadeia
uma série de significados culturais e simbólicos, além de vantagens econômicas
e ecológicas. A intervenção e as práticas sociais de etnodesenvolvimento impli-
cam experiências complexas que podem repercutir na gestão e autonomia do
grupo em diálogo com grupos de mediação (pesquisadores e assessores).

20
Scoles Cano aponta em relação à biodiversidade, que “a ação conjunta de pressão demográfica e li-
mitações territoriais intervêm em contra do tradicional ciclo de fertilização da agricultura itinerante de
‘corte e queima’ e pode chegar a comprometer a benevolência ambiental do sistema agrícola tradicional.”
(2005: 234) Em Itancoã, os projetos implementados foram piscicultura, manejo de açaizais com uma
visão de inserção acelerada no mercado. A questão da comercialização é um empecilho para os grupos.
Várias intervenções insistem na piscicultura, apicultura.

71
Referências
Almeida, Alfredo Wagner Berno de. 2011. Quilombos e as novas etnias. Manaus,
UEA, Edições.
_____. 2012. “Entre a “Proteção” e o “protecionismo”” In Especial Fundação Ford.
Le Monde Diplomatique. Brasil, 04.05.2012, p.70.
Bourdieu, Pierre. 2012. Sur l’État. Cours au Collège de France. 1989-1992. Paris,
Raisons d’agir.
Diniz, Raimundo E. S. 2011. Territorialidade e uso comum entre os quilombolas
de Santa Rita da Barreira em contradição com “políticas de etnodesenvolvimento”
(Dissertação de Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Tró-
pico Úmido, Belém. Inédita.
Duprat, Déborah. 2009. PGR afirma que lei cria privilegio para grileiros. Disponível
em: <<http://www.conjur.com.br/2009-jul-09/pgr-afirma-lei-cria-privilegios-injusti-
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Fraser, Nancy. 2007. “Reconhecimento sem ética?” In Lua Nova. 70: 101-138.
INCRA. Miguel Rossetto abre 5ª. Mesa Nacional de Negociação Quilombola. Dispo-
nível em: <<http://www.incra.gov.br/noticias/miguel-rossetto-abre-5-mesa-nacional-
-de-negociacao-quilombola>>. Acesso em: 26.05.2014.
Scoles Cano, Ricardo. 2005. Comunidad negra de Itacoã: territorio, biodiversidad
y organización social, pilares para el etnodesarrollo? (Dissertação de Mestrado) –
Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Belém. Inédita.
Stavenhagen, Rodolfo. 1985. Etnodesenvolvimento: Uma dimensão ignorada no pen-
samento desenvolvimentista. In: Anuário Antropológico 84, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, p. 11-44
Toledo, Victor. 2005. “Politicas indigenas y derechos territoriales en América Lati-
na: 1990-2004 Las fronteras indigenas de la globalización” In Pueblos indigenas,
Estado y Democracia. Buenos Aires, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales,
(CLACSO). 20: 67-102.

Sites
Dilma anuncia medidas para agilizar regularização de terras quilombolas. Disponí-
vel em: <<http://g1.globo.com/economia/agronegocios/vida-rural/noticia/2013/12/
dilma-anuncia-medidas-para-agilizar-regularizacao-de-terras-quilombolas.html>>.
Acesso em: 20.06.2014.

72
Nota dos Servidores do INCRA. Brasília, 14 de agosto de 2013. Conferir em: <<http://
www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/noticias-2/14-acoes-dos-movimen-
tos/1681-nota-dos-servidores-do-incra-sobre-a-inoperancia-do-governo-brasileiro-
-no-reconhecimento-dos-territorios-quil ombolas>>. Acesso em: 19.06.2014.
Procuradores desencadeiam ações em defesa de quilombos. Conferir em: <<http://
politica.estadao.com.br/noticias/geral.procuradores-desencadeiam-acoes-em-def esa-
-de-quilombos,1097398>>. Acesso em: 20.07.2013.

Observatório Quilombola. Disponível em: <<www.koinonia.org.br>>.

73
Para uma compreensão étnica do mercado de trabalho:
reflexões sobre o campo profissional em Etnodesenvolvimento

Assis da Costa Oliveira1


Ivaíde Rodrigues dos Santos2
Marilande Paiva Menezes3

À guisa de introdução
O processo de formulação e execução do Curso de Licenciatura e Bachare-
lado em Etnodesenvolvimento4 – política afirmativa, na modalidade de curso
específicos5, para inclusão socioacadêmica de estudantes oriundos de povos e
comunidades tradicionais – fez emergir uma série de debates de bastidores ou
oficiais, motivado por setores da comunidade acadêmica, sobre o campo de
trabalho dos sujeitos formados, justificado ora pelo ineditismo6 da proposta de
graduação universitária ou pela dificuldade de compreender a localização do
profissional a partir de uma determinada leitura de mercado de trabalho.
A questão central levantada por pessoas externas ao Curso era basicamente
esta: “e eles vão trabalhar no quê?” O questionamento acionava, quase de imedia-
to, uma reflexão sobre o lugar dos futuros profissionais no mercado de trabalho.
Tais argumentos se direcionavam para o entendimento “aceitável” de que a for-

1
Professor de Direitos Humanos do Curso de Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade da
Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Altamira. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da UFPA. Secretário Nacional do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPD-
MS). Advogado. Contato: assisdco@gmail.com.
2
Agricultor familiar da Comunidade Bom Jesus, Uruará/PA. Estudante do Curso de Etnodesenvolvimen-
to da Faculdade de Etnodiversidade da UFPA, Campus de Altamira. Ex-coordenador geral da Fundação
Viver, Produzir e Preservar (FVPP), em Altamira/PA. Contato: vairsantos@yahoo.com.
3
Agricultora familiar e técnica educacional da Comunidade Jorge Bueno, Medicilândia/PA. Estudante
do Curso de Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade da UFPA, Campus de Altamira.
Contato: lande_paiva@hotmail.com.
4
Vinculado à Faculdade de Etnodiversidade, no Campus de Altamira da UFPA, em Altamira/Pará.
5
Os cursos específicos fazem parte de uma modalidade de ações afirmativas voltadas para elaborar pro-
postas de formação universitária – em nível de graduação ou pós-graduação – na qual o projeto político
pedagógico e a forma de ingresso são estruturadas a partir de um perfil específico de público-alvo. São
exemplos de cursos específicos a Licenciatura Intercultural Indígena, a Licenciatura em Educação do
Campo, a Turma Especial de Direito para Assentados da Reforma Agrária e da Agricultura Familiar, a
Especialização em Residência Agrária, assim como o Curso de Etnodesenvolvimento, entre outras pro-
postas em andamento. Sobre o assunto, consultar: Oliveira (2012) e Rosemberg (2007).
6
Apesar da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) ter proposto um Bacharelado Interdiscipli-
nar em Etnodesenvolvimento, a partir de 2011, o mesmo nunca se efetivou, e encontra-se, na atualidade,
sem discentes. Assim, o Curso da UFPA é o único existente no Brasil com formação na perspectiva do
etnodesenvolvimento.

74
mação universitária encontraria dificuldade de inserir os futuros formandos no
rol de empregos oferecidos pelo mercado, cujo núcleo da “barreira ontológica”
estaria no fato de ser uma modalidade diferenciada de qualificação universitária
destinada aos povos e comunidades tradicionais com difícil comunicabilidade às
opções e às competências instituídas de cargos e carreiras profissionais existentes.
No entanto, a estrutura argumentativa acima disposta esconde dilemas e im-
plicações muito maiores do que a simples resposta sobre o campo profissional
dos que ingressam no Curso, e cuja orientação é menos no sentido de discutir a
“validade existencial” da proposta de formação universitária, do que fomentar
a disputa relativa às formulações ideológicas orientadoras da percepção do pro-
cesso de inclusão de povos e comunidades tradicionais no mercado de trabalho.
Assim, o trabalho objetiva reordenar os termos da discussão ao problemati-
zar a relação educação-trabalho a partir da perspectiva dos povos e comunida-
des tradicionais para possibilitar a formulação teórica do papel profissional do
egresso bacharel e/ou licenciado em Etnodesenvolvimento.
Para tanto, parte-se da análise da interligação histórico-cultural entre diversida-
de cultural, universidade e mercado de trabalho, de modo a descortinar os elemen-
tos políticos de abertura do campo universitário para o ingresso de representantes
de povos e comunidades tradicionais e os aspectos socioculturais de normalização
e de questionamento do campo universitário às demandas do mercado de traba-
lho. Em seguida, faz-se referência ao modo como dois representantes7 de povos
e comunidades tradicionais se apropriaram da formação educacional em Etnode-
senvolvimento para conceber as práticas profissionais por vir, com consequente
disputa pela ressignificação da “função social” do trabalho e da preparação uni-
versitária. Por fim, apresenta-se reflexão sobre os sentidos, desafios e dificuldades
que a prática profissional do etnogestor assume no Curso de Etnodesenvolvimen-
to, problematizando, também, de que forma o etnogestor pode (ou deve) se inserir
no mercado de trabalho.
7
Os representantes do Curso são coautores do trabalho. O desafio colocado para que se pudessem pro-
duzir o texto em conjunto foi o de refletir sobre como, na condição de discentes, imaginam como será
(ou deverá ser) a atuação profissional quando estiverem formados? Para tanto, os discentes usaram da
experiência, justamente para teorizar a respeito de suas práticas, considerando a posição estratégica do
lugar de onde falam, pois pertencem a primeira turma do primeiro curso de graduação em Etnodesenvol-
vimento, cuja formação se completou em 2014.
75
Universidade, Estado e Mercado de Trabalho: entre senso comum e cliva-
gens históricas
A relação histórica dos povos e comunidades tradicionais com a educação
universitária estruturou-se pela lógica da exclusão de acesso e formação, ao
mesmo tempo em que as áreas científicas – sobretudo às das Ciências Sociais
– produziam conhecimentos discriminatórios e ideologicamente comprometi-
dos com o colonialismo interno e/ou externo, objetivando disseminar distinções
classificatórias que hierarquizavam, de maneira subalterna, os modos de vida de
povos e comunidades tradicionais.8
Assim, seja devido ao processo seletivo de caráter meritocrático – que não
levava (e leva) em conta as desigualdades sociais de acesso às oportunidades
de educação escolar de qualidade e as peculiaridades culturais de produção do
conhecimento9 –, à inexistência de educação básica com percurso completo (en-
sino fundamental e médio) nos territórios étnicos – fazendo-os ter que optar
por abandonar a continuidade dos estudos ou ter que se transferir para outro
lugar onde pudesse dar continuidade aos estudos, enfrentando dificuldades de
adaptação e permanência – e/ou a percepção negativa dos coletivos para com a
universidade, vista como espaço de produção de saberes e intervenções que os
colocavam na condição de objetos de conhecimento, ao invés de sujeitos deste,
o fato é que a universidade estruturou diversas barreiras institucionais para nor-
malizar a exclusão socioacadêmica de povos e comunidades tradicionais.
A clivagem histórica produzida pelo protagonismo político das organizações
e movimentos sociais de povos e comunidades tradicionais – entre as décadas
de 1960 e 1980, principalmente de indígenas, extrativistas e agricultores, depois
ampliado para quilombolas, pescadores, ribeirinhos, quebradeiras de coco ba-
baçu, entre outras coletividades étnicas, a partir da década de 1990 em diante – e
pela reconfiguração dos direitos étnicos no plano normativo do Estado brasileiro,

8
As raízes do processo excludente e discriminatório da relação entre universidade e povos e comunida-
des tradicionais pode ser compreendida pelo entendimento do paradigma moderno da ciência, estruturado
numa perspectiva positivista e racional. Para um entendimento mais amplo do paradigma dominante da ci-
ência moderna e bases da crise paradigmática que produzem a emergência de novas condições de conheci-
mento e novos sujeitos do conhecimento, conferir: Marques Neto (2001); Santos (2004a); Touraine (1994).
9
Conforme enfatiza Urquiza e Nascimento, “[n]ão lidamos apenas com ‘sujeitos escolares carentes’,
mas com ‘sujeitos étnicos diferentes’, frente aos quais não se trata apenas de universalização da esco-
larização ou de inclusão desses outros, excluídos, mas de abertura de espaços de diálogo de saberes”
(2013: 64).

76
ante o advento da Constituição Federal de 1988 e de tratados internacionais de
direitos humanos de caráter étnico, não apenas introduziram uma nova condição
social aos povos e comunidades tradicionais de afirmação e reconhecimento das
identidades culturais para enfrentamento do colonialismo interno, como também
reordenaram a função social atribuída à educação universitária, de espaço impe-
ditivo de acesso e produtor de valores coloniais por interesse estatal/empresa-
rial, para o de campo de apropriação estratégica para formação de seus membros
nos saberes, tecnologias e instrumentais exógenos, de modo a preparar recursos
humanos que possam manejar, com maior grau de igualdade de condições, as
relações e intercâmbios desenvolvidos com a sociedade, o Estado e o mercado,
além de passarem a ocupar cargos profissionais definidos como necessários para o
fortalecimento das lutas sociais e do atendimento às demandas locais.
As iniciativas de ações afirmativas implantadas pelas universidades públicas
brasileiras, de maneira mais consistente a partir do ano de 2002, impulsionaram
o acesso e a permanência de representantes de povos e comunidades tradicio-
nais na condição de estudantes universitários e, posteriormente, de profissionais
habilitados a compor quadros especializados de atuação. Porém, a formação
acadêmica, ao habilitar a inserção em áreas profissionais, também direciona
campos de ação no mercado de trabalho, os quais não podem ser assumidos de
maneira naturalizada, e dizer, sem a devida problematização do formato hege-
mônico de mercado de trabalho para descortinar a historicidade do senso co-
mum atribuído hoje para a relação educação-trabalho, e que repercute na lógica
diferenciada de relação pensada para o Curso de Etnodesenvolvimento.
É importante compreender que a relação entre universidade e mercado de traba-
lho se desenvolveu ao longo do processo histórico de emergência e reprodução do
capitalismo, numa comunicação que estabeleceu aos poucos as bases para o entrela-
çamento umbilical e naturalizado, como visto atualmente, que resulta na percepção
de que não seria possível pensar numa formação universitária “desconectada de” ou
“não adequada para” um lugar no mercado de trabalho ocidental-capitalista.
Segundo Santos (2000), no primeiro período de desenvolvimento do capita-
lismo (capitalismo liberal) havia uma dicotomia entre o mundo ilustrado – de
pertença dos universitários – e do mundo do trabalho, incomunicáveis entre si.
Os ilustrados assumiam a prerrogativa de desenvolver os conhecimentos cientí-
77
ficos da época, enquanto os trabalhadores tinham a responsabilidade de garantir
o progresso econômico da sociedade europeia.10
Porém, com o advento da segunda fase capitalista (capitalismo organizado),
Santos (2000) indica que a dicotomia passou a significar a separação temporal
de dois mundos intercomunicáveis, emergindo a ideia da relação educação-tra-
balho, em que o processo de formação das pessoas está direcionado a durar o
tempo-educação necessário para que possa amadurecer as técnicas e habilidade
para atuar no tempo-trabalho.11
O avanço do conhecimento científico no âmbito das sociedades capitalistas
fortaleceu ainda mais tal vinculação histórica, sendo um dos fatores para a es-
pecialização cada vez maior da ciência moderna, a qual estaria condicionada às
exigências do mercado de trabalho por novos profissionais que atendessem as
demandas da dinâmica laboral.
Importante, para os objetivos do trabalho, é destacar o processo histórico que
levou a ligação entre educação universitária e trabalho profissional, cujo núcleo
ideológico da relação passou a ser, de certo modo, tão naturalizada – ou assu-
mida de maneira automática – na política e institucionalidade universitária que
não se discute a validade e legitimidade das regras instituídas para concretizá-
-lo. Mészáros (2004) designa tal conformação enquanto a criação de uma nova
identidade da universidade, pautada na articulação entre o “progresso científi-
co” e o modo de produção capitalista.
Tal conformação identitária da universidade desenvolveu-se, desde então,
sabendo ajustar-se às conjunturas sociais sem perder ou minorar a legitimidade
de sua relação. É verdade que a relação educação-trabalho passou (e passa) por
10
Teixeira (1998) chega a afirmar que os primeiros séculos da universidade (até meados do século XIX)
foram marcados pela desvalorização do saber aplicado ou utilitário, considerados um “abastardamento
dos objetivos da instituição, que visava antes de tudo à vida do espírito” (1998: 38). A representação da
universidade como o lugar da alta cultura, é dizer, de guardiã e transmissora do conhecimento científico
autodesignado de maneira hierarquicamente superior e contrastante ao saber religioso, filosófico e à
cultura popular (Marconi & Lakatos, 2007), contribuiu para reforçar o ideal de isolamento social em que
se colocava a formação universitária dos demais espaços sociais, especialmente do mercado de trabalho.
11
Conforme indica: “[e]sta transformação da relação entre os termos da dicotomia acarretou inevita-
velmente a transformação interna de cada um dos termos... Assim, a educação, que fora inicialmente
transmissão da alta cultura... passou a ser também educação para o trabalho, ensino de conhecimentos
utilitários, de aptidões técnicas especializadas capazes de responder aos desafios do desenvolvimento
tecnológico no espaço de produção. Por seu lado, o trabalho, que fora inicialmente desempenho de força
física no manuseio dos meios de produção, passou a ser também trabalho intelectual, qualificado, produ-
to de uma formação profissional mais ou menos prolongada” (Santos, 2000: 196).

78
mudanças históricas, mas ainda mais forte é sua conversão em senso comum,
de tal forma enraizado na sociedade, que a mera ameaça de reconfiguração e de
disputa pelo campo de significação da relação instituída, assim como dos refe-
renciais de educação (universitária) e (mercado de) trabalho, coloca em eviden-
cia não apenas discursos que se retroalimentam do senso comum instituído para
legitimar a identidade sedimentada, mas também, e acima de tudo, a emergência
de novos sujeitos e saberes que passam a reivindicar “por dentro” da universida-
de a mudança do paradigma universitário, inclusive no que concerne a relação
educação-trabalho.
Santos (2004b) designa tal reforma universitária como “ecologia de saberes”,
consistindo “na promoção de diálogos entre o saber científico ou humanístico,
que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos,
camponeses, providos de culturas não ocidentais ... que circulam na sociedade”
(2004: 76). Para outros autores (Candau, 2008; Paula, 1999; Servindi, 2005), o
aporte político-teórico de reconversão da educação (universitária e escolar) es-
taria na entronização da interculturalidade como ferramenta de descolonização
das relações de pode-saber no campo educacional, plasmada na valorização das
identidades culturais ante a conformação de espaços de diálogo intercultural.
Os diálogos interculturais não se reduzem a processos de ensino-aprendiza-
gem, no seu teor mais amplo representam a possibilidade de reconstrução das
estruturas institucionais e das condições de produção do conhecimento, ou seja,
a suspensão das certezas historicamente produzidas sobre a educação e a ciência
ante o advento do diálogo ativo com novos sujeitos (negros, indígenas, quilom-
bolas, extrativistas, camponeses, entre outros povos e comunidades tradicionais,
assim como movimentos sociais) que passam a disputar tais elementos a partir
de seus modos de compreender e instrumentalizar a universidade e a escola.
Certamente, no campo universitário, a inclusão acadêmica destes sujeitos,
por meio das políticas afirmativas, potencializou a repercussão interna das crí-
ticas e mobilizações para conformar a universidade a melhores perspectivas de
respeito, reconhecimento e valorização da diversidade cultural. Isto envolve,
reitera-se, discutir os cânones universitários, dentre os quais o da relação edu-
cação-trabalho, por um olhar intercultural ou de ecologia dos saberes, em suma,
compreendendo que os processos históricos não são um dado revestido em sen-
sos comuns, mas preceitos construídos em determinadas condições políticas,
79
econômicas e culturais que precisam ser visibilizadas e disputadas, para saber,
ao fim, o que cabe manter e o que cabe transformar, não sob qualquer perspec-
tiva, mas sim tendo em vista os conhecimentos e as deliberações produzidas
junto com os novos sujeitos, antes de tudo ouvindo seus argumentos para com
aquilo que está em discussão: o campo de atuação do profissional em Etnode-
senvolvimento.

A etnogestora pela perspectiva da agricultora familiar e estudante12


O Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento instru-
mentaliza o profissional para ter conhecimentos e habilidades em várias áreas,
como Educação, Saúde, Meio Ambiente, Elaboração de Projetos, Patrimônio
Cultural, Memória, Conhecimentos Tradicionais, Sustentabilidade, Etnoecolo-
gia, Território e Direitos Humanos. Portanto, possuímos habilitação para atuar
em busca dos direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais, atu-
ando, por exemplo, em assessorias internas e externas de nossas comunidades.
Tal formação possibilita negociar, propor e saber reivindicar e ocupar os espa-
ços que temos por direito, seja na administração municipal, estadual, federal ou
em Organizações Não-Governamentais (ONGs).
A principal atuação profissional tem como foco nossa colaboração junto
à comunidade de pertença, traçando estratégias de sustentabilidade sempre
em consonância com a mesma, seja na área da educação, direitos humanos
ou no desenvolvimento sociocultural. Entretanto, o campo profissional é
muito mais amplo e multidisciplinar, levando em consideração os conheci-
mentos tradicionais, as relações sociais e a realidade cultural local, assim
como o fato da política nacional para povos e comunidades tradicionais
ser, ainda, muito recente no Brasil e produzida sem maior participação dos
interessados.13
Para que haja participação no planejamento, monitoramento e execução dessas
políticas com maior empenho, o profissional possui habilidades para acessar essas
políticas, reparar os direitos violados dos diversos grupos de pertença, levando

Marilande Paiva Menezes.


12

Fala-se, aqui, do Decreto Federal nº. 6.040/2007 que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento
13

Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Sobre o assunto, conferir: Brasil (2007).

80
em consideração as especificidades das comunidades, as culturas, as histórias, e
as estratégias de produção e sobrevivência.
Diante das demandas das comunidades é de fundamental importância buscar
respostas para nossos povos e comunidades, principalmente na elaboração de
projetos de intervenção nos locais de pertença, considerando os anos de invi-
sibilização a qual estivemos sujeitos, devido à ausência de políticas públicas
adequadas à diversidade cultural.
Como agricultora e estudante do Curso, posso dizer que devido esta forma-
ção estou atuando na área educacional na escola dentro da comunidade, como
agente administrativo, mas recebi proposta de atuar em sala de aula, como pro-
fessora, e faço parte do Conselho Municipal do Fundo de Manutenção e Desen-
volvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(FUNDEB) e do Conselho Municipal de Saúde de Medicilândia, portanto mi-
nhas habilidades estão sendo potencializadas.
O mercado de trabalho é interessante, mas a maior demanda são as conquistas,
reivindicações de direitos e a sustentabilidade das comunidades e povos tradi-
cionais. O processo educacional do meio rural, por exemplo, na maioria dos mu-
nicípios atende com escolas de infraestrutura inadequada para o funcionamento
das salas de aula, a falta de transporte e merenda escolar, além de salas de aulas
que atendem somente turmas multisseriadas. Realidades que não contemplam e
não levam em consideração os conhecimentos tradicionais das comunidades. O
etnogestor estará apto para atuar com intervenções para a melhoria da educação
dessas escolas do meio rural, priorizando a realidade das comunidades, a partir
dos conhecimentos e do empoderamento das leis, como a Convenção nº. 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Constituição Federal de 1988, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros diplomas legais.
Certamente, nós, etnogestores, temos comprometimento com os moradores da
comunidade na elaboração de projetos de intervenção e acompanhamento da apli-
cação das políticas públicas. A discente Elianete de Souza Guimarães relata que:
“... sempre perguntaram a nós sobre a área de atuação, mas não estamos apenas preocupados
onde vamos trabalhar, até porque estamos trabalhando há muito tempo, inclusive na área da
educação. A pergunta é como vou atuar, o que fazer para melhorar as condições de vida da minha

81
comunidade, a começar pela educação. A mudança começou a acontecer, sete de nós [estudantes
quilombolas] atuamos em sala de aula e secretaria de educação, e foi a partir dos conhecimen-
tos adquiridos no tempo universidade, principalmente no tocante aos nossos direitos... Fizemos
uso desta ferramenta onde acionamos a lei ... E, questionamos sobre a prioridade de se ter uma
educação voltada para nossa pertença [quilombola], nossa cultura, nossas atividades sociais. E
percebemos que os responsáveis pela educação não sabiam da obrigação de se ensinar de acordo
com nossas particularidades. Independente onde vou atuar, quero é ajudar meu grupo, quero
possibilitar que outros tenham acesso ao ensino superior assim como eu” (Guimarães, 2014).

As perguntas em relação a atuação profissional são pertinentes, porém nós


atuamos em nossas comunidades, seja ela quilombola, ribeirinha, agriculto-
ra, indígena, pescadora ou extrativista. A formação em Etnodesenvolvimento
é uma conquista dos povos e comunidades tradicionais, juntamente com os
movimentos sociais da região do Xingu, que veio para nos fortalecer para
encaminhar a luta por um desenvolvimento que não viole nossos direitos.
Somos nós que devemos avaliar quais são os conhecimentos necessários
para a comunidade. Sobretudo, somos protagonistas de nossa história, capazes
de atuar em relação às políticas diferenciadas para reconhecer e lidar com a
sociodiversidade.

O etnogestor pelo olhar do agricultor familiar e estudante14


Depois dos anos vividos como estudante do Curso de Etnodesenvolvimento,
posso dizer que a partilha e transmissão de conhecimento são duas das princi-
pais características que distinguem o etnogestor dos demais profissionais que
atuam no campo de elaboração e implementação das políticas de intervenção
(comunitárias e/ou públicas).
Minha atuação deve estar em consonância com meu coletivo, mas não pos-
so, em hipótese alguma, ser a referência do meu grupo pelo simples fato de
ter cursado universidade ou saber elaborar projetos. O grupo é a referência,
minha atuação deve ocorrer no sentido do fortalecimento do coletivo, isto sig-
nifica estrategicamente nivelar os conhecimentos e informações, esta prática
se dará por meio da formação, da partilha e transmissão dos conhecimentos,
não se constrói um grupo sólido quando apenas um detém as informações e/
ou conhecimentos!
14
Ivaíde Rodrigues dos Santos.

82
Não se pode restringir a atuação dos etnogestores apenas às atividades de co-
ordenação de nossas entidades representativas, atuando em salas de aulas como
docentes, entre outros, dada a competência e versatilidade destes profissionais.
É preciso ampliar o campo de atuação, para não correr o risco de sermos apenas
bons executores de projetos e articuladores.
Impreterivelmente, o etnogestor deve atuar nos espaços onde são pensadas e
elaboradas as políticas publicas, e esta presença/participação não pode ser me-
ramente quantitativa, é necessário ter qualidade, capacidade de dialogar, propor,
questionar e intervir, ser, de fato e de direito, um representante de seu grupo de
pertença a partir de um discurso técnico e político de alto nível argumentativo,
tendo em vista que este sujeito sabe a realidade do seu respectivo grupo e as
necessidades do mesmo.
Após quatro anos de efetivação da proposta de formação acadêmica em Etno-
desenvolvimento, voltada aos atores dos povos e comunidades tradicionais, penso
que a discussão agora não é onde devemos atuar, pois atuamos em nossos espaços
locais há muito tempo, nem tão pouco o que seremos, pois somos sujeitos dota-
dos de saberes e agora com uma gama de conhecimento acrescido por ocasião
de nosso tempo na Universidade. O discurso agora é quais as nossas estratégias
de atuação para atingir o resultado esperado que é a retomada da construção do
nosso projeto de resistência. Para tanto, penso que a primeira estratégia que se faz
necessária é se apossar de informações sobre como se opera o sistema que regu-
lamenta as políticas, os programas e os projetos, como um instrumento que possa
nos ajudar nas formulações das propostas de intervenção local.
A segunda estratégia é a retomada da construção do planejamento político
do grupo, contendo diretrizes que orientem os objetivos do plano, obedecendo
a três aspectos: quem somos, onde estamos e onde pretendemos chegar; e, isto
necessariamente está ligado ao território e à identidade, principais focos da re-
sistência do coletivo. Para que um projeto tenha resultado é preciso contemplar
as relações sociais, práticas culturais e modos de produção, considerados menos
importante pelas políticas públicas, visto serem produzidas com restrita ou ne-
nhuma participação dos protagonistas.
Onde vou está atuando, isto deve ser bem analisado para não correr o risco
de queimar uma etapa ou nos esconder atrás de uma rotina burocrática, que
83
pode nos tornar invisível aos nossos coletivos. Logo, alguns questionamentos
devem ser feitos para nós mesmos e com os nossos coletivos, exemplo: será
que em sala de aula vou poder contribuir para que meu coletivo se fortaleça?
Ou seria melhor estar na direção, supervisão da escola? Ou de dirigente de mi-
nha associação ou cooperativa? Preciso estar ciente que não sou o salvador do
meu coletivo, mas se não tiver o apoio do mesmo certamente não conseguirei
desenvolver meu trabalho.
É preciso ter a capacidade de fazer a leitura da conjuntura social, política e
econômica para que isso possa se transformar em subsidio na hora de elabo-
rar o nosso planejamento. Por isso, penso que não faríamos tanta diferença se
restringirmos nosso potencial de intervenção apenas às nossas comunidades,
uma vez que muitas das políticas não são decididas nas comunidades, nem tão
pouco com a participação de agentes locais. Estrategicamente, devemos, no
mínimo, ter condições e capacidade de transitar pelos espaços onde são pensa-
das e elaboradas políticas, programas e projetos, usando de nosso potencial de
articulação, no sentido de colaborar com o rompimento destas estruturas buro-
cráticas que impossibilitam aos povos e comunidades tradicionais de exercer
sua autonomia.
A ideia de preparar profissionais para o mercado de trabalho também neces-
sita de uma reflexão, por três motivos. Primeiro, porque o campo de atuação,
atualmente, é muito mais amplo do se imaginou quando no início do Curso;
segundo, porque devemos pensar, também, na continuidade do próprio Curso,
e isto vai depender de nossa atuação e valorização pelo mercado de trabalho;
e, em terceiro lugar, devemos pensar na permanência destes profissionais, dada
as circunstâncias conjunturais da Amazônia que tem um planejamento a longo
prazo de implantação de grandes projetos, modelo adotado pelos governos, no
qual, infelizmente, as políticas públicas para as minorias ficam vinculadas aos
ditos megaprojetos.
Observa-se que as pessoas que estão ocupando os cargos em órgãos federais
e estaduais, que atuam diretamente conosco, são, em sua maioria, de fora da re-
gião, e não conhecem (e nem se esforçam para conhecer) a realidade, às vezes
nem gostam de estar aqui, estão porque passaram em um concurso público e, em
breve, solicitam transferência e, quando ainda assim são da região, acabam com-
84
prometidos e/ou a serviço político de grupos que sempre tiraram proveito de nos-
sas riquezas, explorando povos e comunidades tradicionais a qual pertencemos.
Descrevo a situação para ilustrar a necessidade de se ter representantes dos
grupos étnicos nestes espaços de discussões das políticas de intervenção, que
conheçam a realidade local e tenham compromisso social. Tal carência tem cau-
sado graves prejuízos, seja em virtude da subtração de nossos recursos naturais
e minerais, quanto das informações repassadas pelos moradores locais às pes-
quisas e diagnósticos que jamais retornam às comunidades.
Evidentemente que esta situação não se altera com o simples fato de termos
chegado até a Universidade, mas é um grande passo na direção de fazer valer
os nossos direitos básicos e diferenciados enquanto cidadãos. Acredito que isto
possibilitará a construção de mecanismos que nos ajudem a superar as adver-
sidades presentes em nosso cotidiano, as quais nos mantêm acorrentados, nos
impedindo de soltar o “grito de alforria” e, assim, viver num território livre das
cercas e dos títulos grilados, dando direito à terra a quem não tem: dos pisto-
leiros que ceifam as vida dos que se opõem a este modelo de latifúndio; dos
atravessadores que usurpam nossos produtos; do analfabetismo, principalmente
o político, num território onde se produza e viva dignamente; da busca por nossa
emancipação política, técnica, econômica e social para que ninguém possa falar,
agir e decidir por nós. Não queremos ser consultado, queremos sim dar a nossa
opinião, dizer o que queremos, pois somos sujeitos de nossa própria história.

O “etno” no/do mercado de trabalho


A compreensão da atuação do etnogestor mobiliza um conjunto de significa-
dos e propostas por parte dos interlocutores do grupo de pertença dos agricul-
tores familiares. Neles, identifica-se, cabalmente, a presença do “fator étnico”
como um valor e uma condição que torna-se presente na profissão – e na forma-
ção acadêmica – para projetar formas de atuação múltiplas, mas sempre com-
prometidas com as reivindicações e as necessidades dos povos e comunidades
tradicionais.
Tal “fator étnico” – tão bem criticado por Stavenhagen (1985) e Almeida
(2011a), quanto de sua ausência no planejamento das políticas de desenvolvi-

85
mento e da atuação da burocracia estatal – converge, agora, para a formação
de uma intelectualidade militante nos moldes definidos por Souza Lima (2013)
para a “intelectualidade indígena militante”15, no sentido de defini-los como
sujeitos que formulam concepções que partem de seus processos de aprendiza-
do em tradições culturais e lutas sociais, e que buscam adquirir a capacidade de
retroalimentar seus contextos e formular novas interpretações sobre as relações
entre povos/comunidades tradicionais, Estado e mercado, em conexão com ou-
tras escalas contextuais de âmbito local, regional, nacional e/ou internacional.
O caráter amplo e polifônico dos espaços de atuação do profissional em Etno-
desenvolvimento revela não apenas opções de inserção trabalhista, vinculadas à
satisfação das demandas/necessidades dos grupos de pertença, mas de disputar e
ressignificar a própria compreensão que se tem de mercado de trabalho, deslocan-
do-o do sentido “moderno” de prestação de serviço para obtenção de remuneração,
para outro, interculturalizado, de entrelaçamento dos serviços individuais aos com-
promissos coletivos, ou melhor, à realidade objetiva dos povos e comunidades tra-
dicionais, com a “consciência da necessidade”16 de intervenção articulada às opor-
tunidades adquiridas com o entendimento e o domínio de conhecimentos obtidos na
formação acadêmica empreendida, não descartando as opções de acesso ofertadas
pelo mercado de trabalho capitalista, mas se apropriando delas em decorrência de
estratégias político-organizativas predefinidas, de modo a promover inserções e in-
tervenções profissionais com a clarividência dos riscos e das possibilidades de cada
campo de atuação, seja interno ou externo aos grupos de pertença.
Tenciona-se, assim, a “etnicização do mercado”, algo que ocorre há algum
tempo na realidade brasileira, sobretudo com o ingresso, cada vez maior, de
membros de povos e comunidades tradicionais em cursos técnicos ou universi-
tários por meio de políticas afirmativas, os quais, consequentemente, tencionam
15
Acrescido por algumas caracterizações definidas por Santos (2009) para os ativistas sociais.
16
No sentido estabelecido por Almeida (2011b), que não significa uma noção de necessidade que consis-
ta no simples estado provisório da falta de necessidades sociais básicas – mais ligada às definições das
políticas sociais que colocam povos e comunidades tradicionais como “pobres”, “população de baixa
renda”, “desassistidos”, entre outros termos, para oferta-los recursos e serviços que consigam suplantar
suas necessidades físicas – e sim à uma “consciência de necessidade” atribuída pelo autor às comunida-
des quilombolas – mas, possível de ser ampliada para o conjunto dos povos e comunidades tradicionais
– que afirma que estas “não são o ‘reinado da necessidade’, nem tampouco um conjunto de ‘miseráveis’
e ‘carentes’, já que os quilombolas se constituíram enquanto sujeitos, dominando a necessidade e se mo-
bilizando politicamente para instituir um ‘reinado da autonomia e da liberdade’” (2011b: 169).
86
o acesso posterior em cargos profissionais. Logo, a “etnicização do mercado”
compreende ressignificar criticamente sua concepção e suas lógicas de reali-
zação com base na autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais,
seja para garantir formas mais igualitárias de relações de troca que envolvam
mercado e povos/comunidades, seja para internalizar a participação de lideran-
ças e profissionais oriundas destes povos/comunidades nos espaços de trabalho
produzidos pelo mercado, em âmbito público e privado.
Evidencia-se uma “política de identidade étnica” em processo de disputa pelo
alargamento do campo conceitual e operacional do mercado de trabalho ainda
bastante restrito às demandas e dinâmicas sociopolíticas da diversidade cultural,
e cujo domínio implica num maior ou menor grau de transformação das relações
de poder nas diferentes escalas de atuação, sempre prezando pela valorização da
diversidade cultural ao internalizar o “fator étnico” como determinante da atuação
profissional e da capacidade social dos povos e comunidades tradicionais exerce-
rem formas variadas de controle das intervenções que visam o desenvolvimento.
Trata-se, em suma, da capacidade de atuação profissional de sujeitos oriun-
dos de povos e comunidades tradicionais em função da formação acadêmica
especializada que obtiveram, e que os habilita a ocupar/disputar espaços no
mercado por terem um diferencial identitário e educacional que agrega elevado
grau de valor, de qualidade técnica e de legitimidade social às ações que vierem
a empreender. Afora a crescente necessidade de ampliar a ocupação de postos
atendendo as políticas de inclusão social.
Desse modo, é possível perceber o surgimento de dois campos interdepen-
dentes de atuação profissional em Etnodesenvolvimento – e nas demais pro-
fissões em que se inserem representantes de povos e comunidades tradicionais
– que conformam uma outra lógica de sustentação da interculturalidade no mer-
cado do trabalho.
Numa primeira linha, tem-se o denominado “mercado de trabalho étnico”,
entendido enquanto o conjunto de demandas dos povos e comunidades tradi-
cionais pela atuação especializada, com ou sem necessidade de profissionaliza-
ção, por parte de seus membros nas instâncias internas criadas em decorrência
do contato/interação com à sociedade nacional (organizações, postos de saúde,
escola, projetos, entre outros) e definidas como prioritárias de autogestão local.
87
Aqui, aliam-se determinados tipos de organização social com a necessidade de
qualificação técnica de recursos humanos internos aos povos/comunidades para
estabelecer um controle sustentável do gerenciamento de tais instâncias.
De outra parte, o “mercado de trabalho etnicizado” consistiria no conjunto de
cargos e ocupações estabelecidos em instâncias externas aos povos e comunidades
tradicionais que define um perfil de atuação em que o “fator étnico” do profissional,
e de sua formação em Etnodesenvolvimento, possibilita uma intervenção especia-
lizada com competências variadas, a depender do tipo de instância, mas com uma
finalidade bem nítida: garantir a inclusão, participação e disputa interna da filosofia
de administração das instâncias, tencionando-as a partir dos interesses, reivindica-
ções e suportes interculturais dos profissionais membros de povos e comunidades
tradicionais, assim como o de servir de intermediador e conformador entre as neces-
sidades e demandas dos povos/comunidades e aquelas da instância externa, de tal
forma que conduza a formulação de práticas de intervenção híbridas, no sentido de
inter-relacionando os “grupos de interesse” com base nas habilidades e competên-
cias adquiridas para promover tal inter-relação, de caráter intercultural, mas ciente
das condições materiais, políticas e simbólicas que lhes colocam limites e possibili-
dades, a depender do contexto.
Em ambos os casos pode-se identificar riscos da atuação do etnogestor que
estão relacionadas, em grande medida, às análises de Little (2002) quanto aos
perigos de implantação de políticas de etnodesenvolvimento local. 17
Num primeiro plano, tem-se o perigo de cooptação dos profissionais e/ou
dos grupos locais por parte de entidades ou forças antagonistas (Little, 2002),
isto é, situações em que os profissionais e/ou grupos locais são inseridos em
estruturas econômicas e políticas de tal forma que perdem o poder de atuação
e de decisão dentro delas, ou passam, no caso dos profissionais, a exercê-las de
maneira contrária ou sem diálogo com as demandas político-organizativas dos
povos e comunidades tradicionais.
Um segundo perigo consiste na tendência ao projetismo que representa a “ideia
de projetos como uma solução mágica de todos os problemas” (Luciano, 2006:
198), delineando que atividades ligadas, por exemplo, à seguridade do território,
17
Aqui apropriada e retrabalhada para não apenas discutir os perigos destas políticas para os grupos locais, como
faz Little (2002), mas também para com os profissionais em Etnodesenvolvimento, e, num sentido mais amplo,
para os demais profissionais oriundos dos recursos humanos internos dos povos e comunidades tradicionais.

88
ao fortalecimento da organização política e à valorização das práticas tradicio-
nais “precisam ser ‘traduzidas’ num ‘projeto’ para seu possível financiamento”
(Little, 2002: 46) e solução. Assim, dissemina-se um discurso de projeto como
panaceia para todos os problemas estruturais dos povos e comunidades tradi-
cionais, reduzindo-se a amplitude e o potencial de compreensão e intervenção
sobre tais problemas às formatações de tempo, recursos e procedimentos defi-
nidos nos projetos, e avaliando, em última instância, que estes podem substituir
as políticas públicas no trabalho de concretização dos direitos reivindicados.18
O terceiro perigo é denominado por Little (2002) como novo tipo de pater-
nalismo – mas também poderia ser compreendido como novo tipo de tutela ou
dominação política – no qual uma entidade ou organização externa exerce um
monopólio sobre os contatos de um grupo local com entidades que funcionam em
outros níveis de integração social. A situação de monopólio sobre os contatos e as
informações também poderia se reproduzir na atuação do etnogestor, que se con-
verteria no elo “obrigatório” de comunicação e/ou mediação entre “os de dentro
e os de fora”, no sentido de concentrar em si os mecanismos de acesso e diálogo
com as instâncias, as informações e os contatos externos aos povos e comunidades
tradicionais, instituindo um grau de poder e posição social com potencial elevado
de provocar relações paternalistas e/ou de conflitos, divisões e alijamento do pro-
fissional de uma interação mais saudável com os grupos de pertença.
Por fim, um último perigo seria o que Martín-Baró (1998) denomina de
“mandarinismo tecnocrático”, que compreende as três situações analisadas an-
teriormente, e consistiria na instrumentalização do título de graduado em Et-
nodesenvolvimento para “consagração de um status social mantenedor de uma
serie de poderes que o separam, distinguem e põe por encima do resto da so-
ciedade” (1998: 136. Tradução nossa). Nesse caso, a formação acadêmica é
internalizada pelo sujeito como uma representação simbólico-instrumental para
18
Little inclui outras mudanças negativas que a ênfase no projetismo pode provocar nos povos e comuni-
dades tradicionais, e que também implicam na atuação do profissional em Etnodesenvolvimento: “uma
forte ênfase em atividades letradas (em vez de orais), a introdução de uma noção ‘métrica’ de tempo
(na qual toda atividade deve ser realizada num momento específico) e a monetarização das atividades
produtivas. No plano das lideranças internas, o projetismo corre o risco de criar novas divisões nas co-
munidades locais, já que as pessoas jovens (que tendem a ter mais experiência em lidar com a sociedade
dominante e níveis mais altos de alfabetização) ganham poder rapidamente, muitas vezes com uma
correspondente desvalorização das lideranças tradicionais mais velhas” (2002: 47).

89
produção de distinções sociais, ao invés de contribuir para a valorização das di-
ferenças culturais e reivindicações político-organizativas do grupo. O fato gera
novas formas de dependência e subalternidade que se colocam contrárias aos
objetivos da formação acadêmica e aos interesses dos grupos de pertença.
Os esforços para evitar (ou controlar) as “tentações” e os interesses que in-
dicam os perigos de atuação profissional em Etnodesenvolvimento são de ordem
individual e coletiva. Envolvem a permanente auto-avaliação dos sujeitos e ava-
liação coletiva dos grupos para com as práticas e posturas profissionais, de modo
a produzir críticas e orientações que balizem a (re)condução das ações, se for o
caso. Porém, há algo de mais profundo no processo de adequação da prática pro-
fissional, que remete à produção de parâmetros éticos sobre a atuação, cuja base
consistiria no estabelecimento de relações sociais de confiança19 junto ao povo/
comunidade tradicional em que se insere ou com o qual passa a trabalhar.
Sem abdicar da compreensão de que os conflitos são próprios das ações políti-
cas e do convívio em sociedade, também passíveis de ocorrer entre povos e comu-
nidades tradicionais, e da certeza de que a formação universitária implica algum
grau de mudança da posição social junto ao grupo de pertença, o certo é que as
relações sociais de confiança precisam se estabelecer com base na internalização
na prática profissional dos mesmos direitos que são reivindicados no plano socio-
estatal, especialmente o da participação social na tomada de decisões e da partilha
de informações para melhor instrução coletiva sobre os assuntos.
Assim, a construção ética da prática profissional converge para o sentido de
“práxis da mediação cultural” estabelecido por Oliveira (2008) para análise da
ética dos antropólogos que atuam diretamente com povos indígenas, na qual
o esforço para a compreensão dos problemas confrontados em sua atividade é
acompanhado pela preocupação com a responsabilidade de estar mediando não
apenas conceitos e pressuposições culturais, mas o equacionamento de direitos
e anseios sociais.
Assim, e antes de qualquer produção de projetos de intervenção que visem o
etnodesenvolvimento, o que está em jogo é a capacidade dos povos e comunidades

19
A ideia de “relações sociais de confiança” foi sugerida pela professora Rosa Elizabeth Acevedo Marin,
durante os debates da disciplina Etnodesenvolvimento ministrada à Turma 2010 do Curso de Etnodesen-
volvimento, no período de 7 a 12 de julho de 2014. Aqui damos aprofundamento teórico-analítico para
tal ideia, considerando a importância da mesma.
90
tradicionais – e dos profissionais em Etnodesenvolvimento de apoiá-los – em
estabelecerem projetos políticos20 de seus interesses para planejar o que querem
para o futuro e como almejam concretizá-lo, fortalecendo então a capacidade
político-organizacional e controlando as tentações do projetismo e do individu-
alismo interventivo.

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20
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91
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Gravação
Guimarães, Elianete. 2014. Gravação do II Seminário Etnodesenvolvimento:
formação universitária e prática profissional para povos e comunidades tradi-
cionais. Altamira, Inédito.

92
Educação Universitária para Povos e Comunidades Tradicionais:
a experiência da UFGD1

Antonio Dari Ramos2

Introdução
Inicialmente, agradeço o convite para participar deste importante evento pro-
movido pela Faculdade da Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará
(UFPA). Agradeço o apreço de sua diretora, professora Raquel Lopes, de seu cor-
po docente e discente. Um agradecimento especial ao professor Assis Oliveira
pela gentileza e acuidade intelectual. Esse evento faz parte do esforço envidado
para formar uma rede de instituições brasileiras de Ensino Superior que oferecem
cursos específicos voltados para os povos e comunidades tradicionais. Eventos
como esse possibilitam a troca de experiências e a projeção de ações mais articu-
ladas tanto em nível regional quanto nacional. Trazemos aqui a experiência que
desenvolvemos no Mato Grosso do Sul, na cidade de Dourados, na Faculdade
Intercultural Indígena (FAIND), unidade acadêmica da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD).
Nesse sentido, tratar sobre os cursos que temos ofertado e sobre aqueles direcio-
nados aos povos e comunidades tradicionais que pretendemos abrir, objetivando
que possam contribuir para sua sustentabilidade, é tarefa que exige uma boa dose
de utopia, aliada a grande policiamento ético e epistemológico. Mantemos viva a
constatação de que a universidade, ao longo da história brasileira, tem sido impor-
tante veículo de formação para um tipo específico de sociedade: capitalista, branca
e masculina. Assim, para não reforçar as bases epistemológicas e éticas que têm
negligenciado a participação social dos povos e comunidades tradicionais, visando
possibilitar-lhes construir caminhos para a sustentabilidade social, econômica e
cultural, a autocrítica acaba sendo necessária. O importante é que não se perca o
horizonte utópico de auxiliar a construir um mundo melhor para todas as pessoas.
1
Parte das análises realizadas neste texto encontra-se na apresentação do Projeto Político Curricular
(PPC) da Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu, no Prelo, elaborado juntamente com o atual
coordenador do curso, professor Andérbio Márcio Silva Martins.
2
Graduado em Filosofia e em História, com mestrado e doutorado em História, é atualmente o diretor da
Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (FAIND/UFGD). Con-
tato: antonioramos@ufgd.edu.br.

93
No estado de Mato Grosso do Sul, os indígenas acessam o Ensino Superior
em três universidades públicas (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
– UEMS, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS e UFGD) e em
diversas universidades e centros universitários privados, com destaque para a
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), instituição que possui uma grande
tradição no acolhimento de indígenas em seus cursos.
No entanto, somente a UFGD e a UFMS mantêm cursos superiores especí-
ficos para povos indígenas e comunidades tradicionais. Obedecendo ao critério
de divisão do estado em territórios etnoeducacionais, a UFMS possui uma li-
cenciatura intercultural que habilita docentes para o Território Etnoeducacional
Povos do Pantanal, e a UFGD oferta ensino superior específico para os autode-
nominados Guarani e Kaiowá, pertencentes ao Território Etnoeducacional Cone
Sul. Ambas as universidades abriram recentemente a Licenciatura em Educação
do Campo. Não é demais salientar que o Mato Grosso do Sul possui a segun-
da maior população indígena do país e que grande parte dos indígenas, assim
como outras comunidades tradicionais, tem feito sua formação universitária em
cursos indiferenciados, sejam de graduação ou de pós-graduação. Trataremos,
entretanto, nesse texto, somente da formação superior que a UFGD tem dispo-
nibilizado aos povos indígenas e comunidades do campo.

Sustentabilidade e cursos para os povos indígenas


Na metade sul de Mato Grosso do Sul, diversos são os diagnósticos que têm
sido feitos por agências estatais, universidades, Organizações Não-Governa-
mentais (ONGs) e pelos próprios movimentos indígenas acerca dos principais
problemas enfrentados pelos povos indígenas. Em todos esses diagnósticos, ao
lado da violência, a educação, a sustentabilidade e a saúde precárias têm apa-
recido como os principais problemas. De alguma forma, a violência, expressa
através do tráfico e do consumo de drogas lícitas e ilícitas, do homicídio, do
suicídio, da gravidez precoce, da desnutrição e da exploração sexual, deve ser
vista como consequência e não como causa dos demais problemas. Para falar
em sustentabilidade, e em cursos superiores para indígenas que contribuam para
alcançá-la, temos considerado esses elementos, sem descurar do percurso histó-
rico que desemboca nessa situação.
94
A história recente dos Guarani e Kaiowá é história do esbulho gradativo
de seu território, e isso lhes tem afetado a sobrevivência física e cultural. Os
povos falantes da língua Guarani, por certo, no momento da chegada dos colo-
nizadores europeus, eram, embora o parentesco cultural, bastante diversos entre
si. Eles ocupavam, dividindo o espaço com outros povos, um vasto território
que abrangia a metade sul do atual Mato Grosso do Sul, parte do Paraguai, do
nordeste argentino, dos estados do sul do Brasil, chegando ao Espírito Santo.
Grande parte desse território passou para o reino português somente em meados
do século XVIII.
A primeira redução territorial para os povos de fala Guarani aconteceu com
a implantação do projeto reducional, através da ação dos missionários jesuítas,
em nome do reino espanhol. Com o fim das missões jesuíticas, na segunda meta-
de do século XVIII, os grupos que haviam aceitado a redução, e aqueles que ha-
viam sido refratários a ela, no atual território do MS, passaram a conviver com
a presença não indígena, embora pudessem manter, ao mesmo tempo, boa parte
do seu grande território e certa distância dos colonizadores. Esse processo de
ocupação das terras indígenas por não-indígenas é intensificado após a Guerra
contra o Paraguai, na segunda metade do século XIX, momento em que o gover-
no brasileiro cede, para a exploração da erva-mate, inicialmente pelo sistema de
arrendamento, grande parte do território à Companhia Matte Laranjeira. Após
esse período, já no século XX, visando diminuir o poder da Matte Laranjeira, o
governo brasileiro estabeleceu incentivos, através de projetos oficiais, para que
os colonos não-indígenas ocupassem essas terras. Para dar conta de levar avante
esse projeto, já em pleno período da ação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
criaram-se, entre 1915 e 1928, oito pequenas reservas indígenas com o objetivo
de liberar terras para os colonos. Atualmente, no MS, vivem cerca de 45 mil
Kaiowá e Guarani em 42 mil hectares demarcadas, numa densidade populacio-
nal de uma pessoa para 0,9 hectares.
A situação de confinamento populacional vivida pelos Kaiowá e Guarani
tem promovido a agudização dos problemas dentro das reservas, que efetiva-
mente não são locais escolhidos para construir a vida digna e livre, levando a
que a expectativa de vida dessas populações não ultrapasse os 45 anos, ante
uma média nacional de 73 anos. As taxas de suicídio são também alarmantes.
Entre 2003 e 2010, 83% dos suicídios de indígenas no Brasil foram cometidos
95
por Guarani e Kaiowá (176 casos, ante os 30 no restante do Brasil). O número
de homicídios no estado do MS também é preocupante, pois, nos últimos oito
anos, ocorreram 250 homicídios de indígenas ante 202 homicídios também de
indígenas ocorridos no restante do Brasil no mesmo período.
Como dissemos, para falar em sustentabilidade, e em ações que a promovam, há
que se considerar toda essa problemática de confinamento populacional que tem le-
vado ao mal-viver. Numa situação dessas, a ideia de sustentabilidade cultural e socio-
ambiental adquire, no movimento indígena e indigenista guarani e kaiowá, o sentido
de construção do teko porã, ou do bem-viver, potencializando aqueles elementos e
práticas culturais que sobreviveram ao contato com os não-indígenas e qualificando
o trânsito indígena tanto em seu mundo quanto no mundo não-indígena, a fim de que
se possa usufruir das conquistas humanas sem necessitar abandonar seu modo de ser.
A proximidade das reservas indígenas dos núcleos urbanos e o ingresso no mer-
cado de trabalho, principalmente em funções pouco desejadas por não-indígenas,
tem levado os Guarani e Kaiowá à procura de cursos superiores como forma de,
para uns, manter e fortalecer processos culturais próprios, para outros, inserir-se no
mundo dos não-indígenas. Ofertar cursos superiores em uma situação como essa é
desafiador para a UFGD, motivo pelo qual foi criada, em 2012, uma unidade acadê-
mica específica para pensar cursos mais alinhados às reais necessidades locais dos
povos e comunidades tradicionais. O primeiro curso lotado na FAIND foi a Licen-
ciatura Intercultural Indígena Teko Arandu (Viver com sabedoria).

2. O Teko Arandu
A abertura de cursos superiores específicos para os Guarani e os Kaiowá é
fruto de um processo amadurecido por vários anos. Os movimentos indígenas
e indigenistas ligados aos Guarani e aos Kaiowá conquistaram, inicialmente,
um curso de formação de professores em nível médio, o Àra Verá, desenvolvido
pela Secretaria Estadual de Educação do Mato Grosso do Sul desde o ano de
1999, com vistas a realizar a formação de docentes para a educação infantil e
para os anos iniciais do ensino fundamental.
Para dar continuidade à formação, visando atingir os anos finais do ensino fun-
damental e ensino médio, o Movimento dos Professores Guarani e Kaiowá propôs,
inicialmente para a UEMS, posteriormente para a UFGD, a abertura da Licencia-
tura Intercultural Indígena Teko Arandu. Acompanhou o desejo do Movimento de

96
Professores Indígenas e da Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani) a parceria de
indigenistas ligados à UCDB, aos municípios, ao estado de MS, ao CIMI. A Licen-
ciatura iniciou-se em 2006 e, até o presente, formou duas turmas – em torno de 80
docentes indígenas. Atualmente, possui 210 acadêmicos em formação.
Fruto de uma leitura política da realidade feita por indígenas e indigenistas,
a proposta da Licenciatura Intercultural Indígena está centrada em três eixos:
língua (ñe’e), cultura (teko) e território (tekoha). O curso é tomado, tanto por
indígenas quanto pela universidade, como um espaço de resistência (e de for-
mação para a resistência!).
Após a colação de grau da primeira turma, em 2010, com vistas a avaliar
o percurso percorrido, e a própria institucionalização3 da Licenciatura que se
processava, procedemos a uma reestruturação do PPC. Esse processo de rees-
truturação iniciou com uma contundente avaliação do primeiro PPC do Curso,
realizada sistematicamente através de instrumentos padronizados e de intensos
debates pelo corpo discente (composto pelos acadêmicos cursistas e pelos ex-a-
cadêmicos), pelo corpo docente e pelo Movimento dos Professores Guarani e
Kaiowá. A partir daí, foram diversos os momentos de estudos coletivos (sobre
interculturalidade crítica, políticas linguísticas, docência multidisciplinar, dife-
renciação entre cursos modulares e cursos desenvolvidos por meio da alternân-
cia e inter-transdisciplinaridade). Apenas num terceiro momento é que se pas-
sou à proposição de mudanças no antigo PPC do curso, retomando-se aspectos
esquecidos ou abandonados, e aprofundando os debates em torno da qualidade
social da Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu.
As políticas educacionais brasileiras da contemporaneidade voltadas para os
povos indígenas são alicerçadas na noção de interculturalidade. Essa categoria
teve, no entanto, de ser depurada no decorrer do processo de reestruturação
do PPC, já que atualmente não revela o modelo de sociedade que se pretende
construir. Para tanto, fomos incitados à aproximação teórica com o filósofo Fi-
del Tubino, da Universidad Católica del Perú, que analisa os usos do conceito
de interculturalidade. Para ele, haveria um uso que não questiona as regras da

3
A institucionalização de qualquer iniciativa que parta dos movimentos sociais é sempre desafiadora. A
necessidade de institucionalização pode levar ao distanciamento do desejo das comunidades envolvidas e
à perda do sentido social de tais iniciativas. Manter a proximidade com o chão duro da aldeia, da reserva
e do acampamento, ao mesmo tempo em que não se esquece da academicidade das ações, tem sido um
desafio com o qual temos nos defrontado cotidianamente na FAIND.

97
lógica do modelo econômico neoliberal, por ele chamada de interculturalidade
funcional, que deve ser contraposto pela interculturalidade enquanto projeto
ético-político de ação transformativa e de democracia radical que designa de
interculturalidade crítica (Tubino, 2005).
As diferenças entre o interculturalismo funcional e o crítico, segundo o au-
tor, não são nominais, mas substantivas. No interculturalismo funcional, bus-
car-se-ia promover o diálogo e a tolerância sem tocar nas causas da assimetria
social e cultural vigentes. Por outro lado, no interculturalismo crítico, a bus-
ca de supressão dessas assimetrias daria a tônica à ação ético-política, pois se
considera que o diálogo intercultural autêntico é inviabilizado pela assimetria
social e pela discriminação cultural (Tubino, 2005). Assim, antes do diálogo,
haveria de se pensar nas condições sociais, econômicas, políticas e culturais
desse diálogo, a fim de que não se caia na ideologia de um diálogo descontex-
tualizado que possa favorecer somente aos interesses criados pela civilização
dominante. Daí a necessidade do uso de um discurso de crítica social que dê
visibilidade às causas do não diálogo, objetivo que nos acompanhou ao longo
do processo (Tubino, 2005).
Da opção pela interculturalidade crítica decorre a busca expressa através do
currículo da Licenciatura: a descolonização do saber acadêmico. Esse processo
ainda está em andamento e percebemos que será longo e doloroso para a Uni-
versidade, para a FAIND e para a própria Licenciatura Intercultural Indígena
Teko Arandu. Nossa percepção é que o currículo universitário é fruto de um
projeto histórico posto em movimento pelo Ocidente e que carrega em si as
marcas das formas coloniais de dominação, da colonialidade. Tais formas de
dominação incidem no ser, no poder e no saber.
O impacto desses estudos levou-nos a pensar na matriz curricular e nas prá-
ticas da Licenciatura Intercultural Indígena, mas também no status dos saberes
indígenas na relação com os saberes academizados. Não falamos em saberes
acadêmicos, tampouco em saberes universais, pois todos os saberes são locais.
Falamos em saberes academizados porque foram inseridos na academia por
conta de processos sociais e políticos que hierarquizaram os saberes, impondo,
numa relação de poder, a cientificidade a alguns e o degredo a outros. Tivemos
de pensar numa episteme de fronteira que desse conta de valorizar ambos os sa-
beres, resultando no esforço em desconstruir as certezas adquiridas pela equipe
98
durante a formação acadêmica indiferenciada, na problematização dos critérios
tomados para o estabelecimento dos conteúdos a serem trabalhados em cada
componente curricular do curso. Nesse sentido, debruçamo-nos sobre o papel
dos mestres tradicionais no cotidiano do curso, sobre a importância da pesquisa
e da intervenção socioeducacional tanto de docentes quanto de discentes, sobre
os conteúdos da escola básica indígena. Como critério de análise, adotamos as
avaliações feitas pelos acadêmicos, lideranças e professores indígenas acerca do
projeto étnico que lançam como horizonte de futuro e sua intenção de participa-
ção na sociedade nacional baseada na alteridade e na autonomia.
Outro aspecto sobre o qual nos debruçamos foram as políticas linguísticas.
Antes de tudo, buscamos entender o que são políticas linguísticas e de que for-
ma as nossas escolhas interfeririam no processo de valorização e fortalecimento
da língua indígena no Curso.
Conforme Calvet (1996), políticas linguísticas são um conjunto de escolhas
conscientes referentes às relações entre língua(s) e vida social. Nesse sentido,
percebemos que a opção feita, já na elaboração do primeiro PPC do Curso, ga-
rantia a língua Guarani como um dos eixos fundamentais para a articulação dos
conteúdos e das metodologias presentes na Licenciatura Intercultural Indígena
Teko Arandu. No entanto, a partir de uma análise do cotidiano do curso e dos
componentes nele oferecido, verificamos que ainda era possível aprimorar as
políticas existentes, inclusive, acrescentar outras. Para isso, buscamos compre-
ender também a situação sociolinguística das comunidades Guarani e Kaiowá
do cone sul de Mato Grosso do Sul. Verificamos que essas comunidades cons-
tituem uma população que, em sua grande parte, possui a língua Guarani como
língua materna, sendo apenas expostas à língua portuguesa no período de esco-
larização e no contato com não-indígenas dentro e fora das áreas reservadas, das
aldeias e dos acampamentos.
Cabe ressaltar que a opção por construir um projeto que favoreça o uso oral
e escrito e a reflexão linguística da língua materna dos acadêmicos guarani e
kaiowá é, na verdade, uma política de resistência, que visa à valorização e ao
fortalecimento de uma língua falada por um povo subalternizado e subjugado e
que ainda se encontra à mercê de um sistema ocidental de ensino homogeneiza-
dor e etnocentrista, que impõe como obrigação o aprendizado da língua portu-
99
guesa a qualquer custo, bem como o seu uso até mesmo em espaços nos quais,
há algum tempo, somente a língua indígena era funcional. Por isso, buscamos,
na reestruturação do PPC, rever o espaço ocupado pela língua portuguesa e o
espaço ocupado pela língua Guarani dentro do Curso.
Como nosso objetivo é formarmos professores bilíngues que irão atuar em
escolas indígenas, cujo modelo de educação em construção é também bilíngue,
apostamos na inserção de componentes no currículo do Curso que visem ao de-
senvolvimento de competências e habilidades comunicativas orais e escritas na
língua guarani e na língua portuguesa. Partindo desse pressuposto, ampliamos
o espaço da língua indígena na formação acadêmica proposta, com a possibi-
lidade de desenvolvimento e aprimoramento de práticas orais e escritas, com
momentos de reflexões linguísticas que permitirão compreender o funciona-
mento do sistema próprio de comunicação das comunidades atendidas. Criamos
também componentes curriculares que possibilitarão o aperfeiçoamento do uso
oral e escrito da língua portuguesa, compreendendo esta como segunda língua
que, portanto, exige métodos e materiais específicos para o seu ensino. Com
isso, acreditamos que será possível a produção e transmissão de conhecimento
nas duas línguas, adequando a formação à realidade das escolas indígenas gua-
rani e kaiowá.
Em nossas reflexões, percebemos também a falta de professores atuantes no
curso que tenham domínio da língua guarani. Por conta disso, e para dar supor-
te as políticas linguísticas adotadas, buscamos, então, ter professores falantes
da língua guarani na Licenciatura Intercultural Indígena, a fim de colocarmos
em prática as escolhas linguísticas que fizemos. Por hora, contamos com um
docente kaiowá no corpo efetivo do curso.
Outra conquista importante para a valorização da língua guarani é a pre-
sença de um técnico administrativo bilíngue com bom domínio da moda-
lidade oral da língua materna de nossos acadêmicos. Vale lembrar que as
práticas para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de habilidades co-
municativas na língua guarani e na língua portuguesa não estão reduzidas
a componentes curriculares específicos, mas perpassa por todo o processo
de ensino-aprendizagem pelo qual passam os acadêmicos, tanto no Bloco
Comum quanto no Bloco Específico.
100
Para além das políticas linguísticas acrescidas, vimos como extrema relevân-
cia a manutenção e o aprimoramento de outras já existentes, tais como:
(I) A permanência do Processo Seletivo específico e diferenciado para in-
gresso na Licenciatura, pois na seleção dos acadêmicos para fica nítida a valo-
rização da língua materna, tendo em vista que os candidatos devem saber ler e
escrever na língua indígena, bem como saber se expressar oralmente, demons-
trando domínio da língua de sua comunidade.
(II) O reconhecimento de uma língua kaiowá que apresenta diferenças não
apenas no nível lexical, mas também nos outros níveis que constituem uma
língua (fonético, fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático),
embora ainda tais evidências se coloquem apenas nas experiências dos próprios
falantes, tendo em vista a ausência de estudos comparativos específicos (até o
dado momento) para constatar as diferenças e as semelhanças entre as varieda-
des do Guarani e as variedades do Kaiowá.
(III) A proposta de registrar o que se desenvolve em sala de aula, em termos
de conteúdos e discussões, que é feito tanto em português quanto nas línguas
indígenas. Assim, damos condições para que haja o desenvolvimento da escrita
em ambas as línguas no gênero textual apropriado para a documentação de um
evento predominantemente oral, que é a própria aula expositiva.
(IV) O uso das línguas indígenas nos momentos de reuniões propostas pelos
acadêmicos para discutir os mais variados assuntos, bem como o uso que se faz
delas nas noites culturais promovidas pelos mesmos.
(V) A reza que inicia e encerra os trabalhos acadêmicos das etapas presen-
ciais é um ato que reforça não só as crenças religiosas tradicionais, mas põe em
relevo, para a compreensão dos rituais, o pleno domínio das línguas indígenas.
Outro aspecto que salientamos tem sido o investimento no entendimento do
que seja docência multidisciplinar. Na história da educação brasileira recente, a
docência multidisciplinar (unidocência) esteve ligada primordialmente à educação
infantil e aos anos iniciais do Ensino Fundamental. As Licenciaturas Intercultu-
rais, no entanto, desde as primeiras experiências, propõem a formação de docentes
multidisciplinares, tomando como campo de ação grandes áreas do conhecimento,
geralmente quatro, como é o caso da Licenciatura Intercultural Indígena Teko
Arandu: Ciências da Natureza, Matemática, Linguagens e Ciências Humanas.
101
Os desafios em formar professores para a docência multidisciplinar são de
três ordens:
(I) Interdisciplinar – tanto os docentes da Licenciatura quanto os docentes
em formação necessitam transitar em grandes áreas do conhecimento. Exce-
tuando-se a área da Matemática, destarte sua grande complexidade, as demais
habilitações contêm em si um conjunto de outras áreas. As Ciências Humanas,
para além da instrumentação antropológica, devem perpassar pela História, Ge-
ografia, Sociologia e Filosofia escolares; as Linguagens, pelas Línguas Indí-
genas, Língua Portuguesa, Artes e Educação Física escolares; as Ciências da
Natureza, pelas Ciências Biológicas, Química e Física escolares. Para atingir a
interdisciplinaridade se busca mecanismos coletivos de planejamento, execu-
ção, avaliação e replanejamento constantes, ainda em implementação e amadu-
recimento.
(II) De relação entre a realidade da escola básica indígena, a noção holística
indígena de conhecimento e a formação universitária – mesmo que o acadêmico
seja habilitado para dar conta de áreas do conhecimento menos fragmentada
que o convencional da escola brasileira, mais aproximada da noção holística
indígena de conhecimento e de interligação entre os fenômenos socioculturais,
ao sair do curso ele se depara com currículos escolares fragmentados nas es-
colas indígenas, fato que tem causado inúmeros constrangimentos aos nossos
egressos. O investimento que se está fazendo para minorar o problema é a for-
mação continuada dos gestores dos sistemas estadual e municipais, através de
cursos de formação continuada e de pós-graduação. Com isso, esperamos poder
interferir na constituição de novos currículos, menos disciplinares e mais inter-
disciplinares, para as escolas indígenas.
(III) De amplitude das áreas do conhecimento – ao mesmo tempo em que re-
conhecemos a possibilidade de desfragmentar os currículos escolares, tem-nos
acompanhado grande preocupação em realizar uma formação verticalizada no
âmbito das habilitações, mas também entre as diversas áreas do conhecimento
que compõem o curso. Enquanto aposta, ainda necessitamos de tempo para
poder avaliar melhor a qualidade dessa formação multidisciplinar, já que a tra-
dição da escola ocidental caminha justamente na direção oposta, com uma espe-
cialização cada vez mais refinada das áreas do conhecimento, embora propostas
102
do MEC indiquem novos desenhos curriculares menos fragmentados. Um dos
resultados do amadurecimento sobre esta questão é a proposta do Exame Na-
cional do Ensino Médio (ENEM) que já realiza a integração dos conhecimentos
em grandes áreas.
Com relação à metodologia da alternância, percebemos que, durante mui-
to tempo no curso, ela não era posta em discussão: a simples aceitação do
rótulo, estimulado pelo que previa o edital do PROLIND, somada às experi-
ências de outras Licenciaturas que se desenvolve nos cursos de formação de
professores indígenas por meio dessa metodologia, não permitia ver o quão
complexo é a implantação e a execução de um curso que funcione, de fato,
em alternância.
Numa busca de maiores esclarecimentos acerca desse modelo de formação,
verificamos que havia muito pouco de teorização sobre alternância em cursos
de formação de professores indígenas. Nossa alternativa, por isso, foi debruçar-
-nos em obras que tratavam da temática em outros cursos, especificamente, da
área da Educação do Campo. (Gimonet, 1999) Após uma série de seminários,
explorando as características fundamentais para que um curso se desenvolva por
meio da alternância, elaboramos uma proposta para a Licenciatura Intercultural
Indígena que, na prática, acontece da seguinte forma:
(I) Cada semestre possui a seguinte estrutura organizacional: Tempo Univer-
sidade > Tempo Comunidade > Tempo Universidade > Tempo Comunidade >
Tempo Comunidade.
(II) Por meio da semestralização do curso, foi possível pensar em Compo-
nentes Curriculares que tem início, desenvolvimento e fim no mesmo semestre
em que são ofertados. Assim, será possível pensar no movimento de idas e vin-
das que a alternância requer, seguindo a lógica de desenvolvimentos dos Com-
ponentes Curriculares que se iniciam no Tempo Universidade e se encerram no
último Tempo Comunidade.
(III) Em cada semestre do Curso, os alunos são matriculados em uma quanti-
dade de Componentes Curriculares predefinida na nova matriz curricular. Dessa
forma, é possível pensar em recortes e seleção de temas e conteúdos que no
período de um semestre podem ser desenvolvidos, usando os dois Tempos que
compõem a alternância nos movimentos que lhe são peculiares.
103
(IV) Os Componentes Curriculares são desenvolvidos ao longo do se-
mestre, com uma distribuição de carga-horária no Tempo Universidade e no
Tempo Comunidade, respeitando a porcentagem máxima de horas não-pre-
senciais permitida pela legislação que reza sobre cursos presenciais (infe-
lizmente, não existe legislação que oriente a realização de cursos na moda-
lidade da alternância).
(V) Para garantir o acompanhamento e a orientação das atividades de ensino,
pesquisa e extensão propostos para o semestre em curso, foi criado um Com-
ponente Curricular que se desenvolve exclusivamente no Tempo Comunidade.
Nele está previsto o desenvolvimento de um projeto de pesquisa-ação que se
constrói por meio da inter-relação dos Componentes Curriculares ofertados no
semestre, sendo de inteira responsabilidade do acadêmico o trabalho de leitura
da realidade; observações; coleta de dados; reflexões; análises; utilização de sa-
beres empíricos; questionamentos; a busca por respostas; elaboração de propos-
tas de intervenção; submeter à prova suas propostas; e realizar uma avaliação
do processo e do resultado; cabendo ao professor formador realizar orientações
em acompanhamentos que se fazem por meio de atendimentos pedagógicos
ocorridos nos meses em que os alunos não vão para a Universidade, ficando
cada um em suas respectivas comunidades.
(VI) O momento em que o professor se encontra nas comunidades em que
os acadêmicos vivem, é o momento de atendimento pedagógico que se carac-
teriza por ser um momento de aula; de recepção e orientação das atividades
em desenvolvimento; de conhecer ou aprofundar o conhecimento da realida-
de do alternante; de receber formação específica; de se perceber na docência
compartilhada; de aperfeiçoar as suas práticas enquanto formador inter, trans
e multidisciplinar.
(VII) Enfim, cada semestre possui dois Tempos Universidades que se
alternam com os Tempos Comunidades, num movimento de, no mínimo,
duas idas e vindas; possibilitando a realização de reflexões em torno do
projeto de alternância desenvolvido no semestre, bem como a socialização
dos resultados parciais da pesquisa na Universidade e dos resultados finais
no Tempo Comunidade.
104
Novos cursos para os povos indígenas
Por conta dos diagnósticos realizados nas Terras Indígenas do Mato Grosso
do Sul, conforme salientamos no início desse texto, a UFGD trabalha na elabo-
ração conjunta com as comunidades indígenas de Projetos Pedagógicos de três
cursos específicos que se somarão à Licenciatura Intercultural Indígena Teko
Arandu: um curso de Pedagogia Intercultural (a fim de formar alfabetizadores
nas línguas guarani e kaiowá), outro de Gestão Territorial e Sustentabilidade, e
outro em Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Indígena. Com isso, pretende-
-se investir em três aspectos da sustentabilidade indígena: no fortalecimento da
língua e cultura materna, na segurança alimentar, através da gestão do território
indígena, e no investimento em gestão e cuidado da saúde indígena. O primeiro
curso, por conta da política linguística adotada, será direcionado aos Guarani e
aos Kaiowá; e os demais, aos povos indígenas de forma ampla.
O que percebemos é que as comunidades indígenas devem ser tomadas pelo
poder público em sua complexidade, de forma holística, pois o auxílio que se
pode prestar a elas através de ações de formação, por exemplo, que não se de-
bruce sobre essa realidade, tende a ser bastante limitada do ponto de vista dos
resultados alcançados, e por isso pensamos que todos os cursos deverão dialo-
gar uns com os outros.
A fim de dar continuidade à formação dos indígenas e de comunidades do
campo já graduados, a FAIND solicita à CAPES, em 2014, via APCN, a aber-
tura de um Programa Interdisciplinar de Mestrado em Estudos Interculturais. O
Programa contará, inicialmente, com duas linhas de pesquisa – Educação Esco-
lar e Interculturalidade; Sustentabilidade e Interculturalidade. Planejamos abrir
uma terceira linha – Saúde e Interculturalidade – tão logo seja aberto o curso de
Saúde Coletiva. Para preparar a abertura do Programa de Mestrado, no âmbi-
to da elaboração dos projetos pedagógico dos três novos cursos de graduação,
estamos ofertando cursos de especialização em Educação Intercultural, e pla-
nejando a oferta, em 2015, de um curso de especialização em Saúde Indígena,
com ênfase em Saúde Mental. Para ganhar experiência visando a abertura do
curso de Gestão Territorial e sua verticalização na linha de pesquisa do Mestra-
do, estamos participando do Projeto Gestão Ambiental e Territorial das Terras
Indígenas (GATI) desenvolvido em cinco Terras Indígenas Guarani e Kaiowá.
105
Curso para as comunidades do campo
A UFGD, enquanto universidade recém-criada (foi desmembrada da UFMS
em 2006), possui atualmente 32 cursos de graduação, lotados em 11 unidades
acadêmicas, dentre elas a FAIND. Por ser uma universidade com forte apelo
regional, a maioria dos cursos que oferece respondem às demandas também
regionais. Uma das necessidades represadas é com relação às comunidades do
campo, que, como os povos indígenas, têm sido impactados por um modelo
econômico que prioriza, regionalmente, a agricultura e a pecuária desenvolvi-
das com alta tecnologia, principalmente através da monocultura da cana e da
soja e da criação de gado de corte. Para as comunidades do Campo, a FAIND
possui, inicialmente, um curso de formação de professores, a Licenciatura em
Educação do Campo, habilitação em Ciências da Natureza, enfatizando práticas
de agroecologia.
Como dito, a abertura desse curso foi uma demanda local que chegou à
UFGD. Antes dele, no entanto, a UFGD ofereceu o Curso de Licenciatura em
Ciências Sociais via financiamento do edital do Programa Nacional de Edu-
cação na Reforma Agrária (PRONERA), entre os anos de 2008 e 2012, o qual
atendeu a 56 pessoas de assentamento rurais. Além desse curso de graduação, a
UFGD ofereceu a especialização PROJOVEM Saberes da Terra, num convênio
com Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul, e o curso de
especialização “Estudos de Gênero e Interculturalidade”, atendendo pessoas de
assentamentos rurais, em parceria com o PRONERA/MDA/INCRA.
A população de Mato Grosso do Sul é constituída por diversos processos
migratórios, os quais geraram processos bastante diferenciados no tocante ao
acesso aos bens culturais e econômicos. As diferenças culturais têm sido utili-
zadas como ordenadoras do princípio de desigualdade social. Em termos de or-
ganização escolar, a invisibilidade dos Povos do Campo tem sido demonstrada
por uma formação padronizada a partir da perspectiva urbana. A expectativa,
com esse curso, é que as escolas do campo envolvam aspectos da vida cotidiana
e da construção dos sujeitos sociais no campo, cujo conhecimento se pretende
aprofundar, de modo sistemático, num trabalho coletivo interdisciplinar, en-
globando os complexos aspectos dos processos de desenvolvimento social ru-
106
ral, da produção ecológica, das relações de gênero, de geração e de etnias que
convivem no campo. O curso é oferecido, tal como a Licenciatura Intercultural
Indígena, na metodologia da alternância. Em julho de 2014 teremos o ingresso
da segunda turma de 120 acadêmicos.

Considerações finais
A experiência da UFGD no oferecimento de cursos específicos para os povos
indígenas e comunidades do campo é bastante recente e acompanha a Universi-
dade desde o seu desmembramento da UFMS. É sugestivo pensar que a Licen-
ciatura Intercultural Indígena iniciou no mesmo ano da criação da UFGD! Foi
através da experiência acumulada nesse curso que está sendo possível, seguindo
experiências da UFPA e da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), pensar
em modelos de cursos que se complementem na busca de construir, juntamente
com as comunidades indígenas e comunidades tradicionais, a sustentabilidade
sociocultural.
De forma geral, percebemos que a maioria dos cursos superiores específicos
para indígenas e populações do campo são cursos de formação de professores.
Destarte a ideia de que a educação escolar possa desempenhar grande peso na
construção da autonomia desses povos, seu poder de modificação das estrutu-
ras sociais, políticas, econômicas e culturais hegemônicas é bastante restrito,
seja porque nem sempre está voltada para projetos de desenvolvimento social
alternativo ao modelo dominante, seja porque seu poder transformativo não é
absoluto, necessitando estar conjugada a esforços de todas as dimensões e es-
truturas que compõem as sociedades. Esse é o motivo que nos tem levado a
pensar na criação de outros cursos superiores específicos para os indígenas e as
comunidades do campo, em outras áreas do conhecimento que não a educação,
uma vez que nem todos os indígenas e populações do campo podem e querem
ser professores em suas comunidades.
Ademais, as demandas que têm chegado à universidade estão relacionadas
à busca de formação nas mais diversas áreas do conhecimento, esperando-se,
porém, formações específicas e diferenciadas. Isso é indicativo de certo cansa-
ço com o paradigma de formação até então vigente. Talvez a criação de cursos
107
específicos, desenvolvidos sob outra lógica acadêmica que não a dominante,
seja sinal de que a universidade como um todo não quer transformar-se a fim de
receber as sempre excluídas populações do campo e indígenas, e, por isso, seja
necessário continuarmos pensando em outros tipos de curso para elas! No caso
da UFGD, em virtude dos processos históricos próprios pelos quais passaram,
optamos por oferecer cursos específicos para cada um desse conjunto de povos
e comunidades tradicionais.

Referências
Calvet, Jean-Louis. 1996. Les politiques Linguistiques. Col. Que sais-je? 3.075. Paris,
Presses Universitaires de France.
Gimonet, Jean-Claude. 1999. “Nascimento e desenvolvimento de um movimento
educativo: as Casas Familiares Rurais de Educação e Orientação” In Seminário In-
ternacional da Pedagogia da Alternância: Alternância e Desenvolvimento. Anais.
Salvador, UNEFAB, 39-48.
Tubino, Fidel. 2005. “La interculturalidad crítica como proyecto ético-político” In Encuen-
tro continental de educadores agustinos. Lima, enero: 24-28, Disponível em: <<http://
oala.villanova.edu/congresos/educacion/lima-ponen-02.html>>. Acesso 08.06.2012.

108
II. Pedagogias & Vivências Diferenciadas

109
Interculturalidade & Diversidade: possibilidades de trabalho pedagógico
em contextos indígenas e não indígenas

Rosani de Fátima Fernandes1

Para início de conversa...


As elaborações contidas no trabalho são parte das indagações, incertezas
e inquietações sobre questões quotidianas do trabalho pedagógico em escolas
indígenas e não indígenas sobre a temática da interculturalidade, que consti-
tuem também parte das reflexões que realizo em sendo indígena, educadora,
acadêmica e pesquisadora. É a partir desse lugar de fala que me posiciono, esta-
belecendo diálogos a partir da experiência na docência no ensino superior com
educadores não indígenas, especialmente dos trabalhos realizados nos cursos
de especialização a partir da diversidade cultural; na orientação e assessoria pe-
dagógica de escolas e organizações indígenas2 no esforço de construir propos-
tas educacionais adequadas às especificidades culturais, linguísticas, políticas,
econômicas e organizacionais indígenas. Atuando na formação continuada de
professores indígenas e não indígenas, em sendo Kaingang, entre meu povo e
entre outros povos Jê, tive (e tenho) a possibilidade de pensar a educação esco-
lar a partir do olhar dos maiores interessados: os povos indígenas.
A discussão sobre interculturalidade que realizo neste ensaio, mesmo que ini-
cial, em aberto e inconcluso, se faz a partir de dois enfoques: (1) das tentativas
de construção de diálogos interculturais em escolas indígenas, que faço refletindo
teoricamente as elaborações no contexto latino americano e brasileiro e tendo
como base a legislação concernente à temática existente hoje no Brasil; e (2) das
possibilidades e dificuldades de implementação da Lei nº. 11.6453, de 10 de mar-
ço de 2008, que estabelece “a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a
1
Kaingang, Pedagoga, Mestre em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito (PPGD) da Uni-
versidade Federal do Pará (UFPA), doutoranda em Antropologia Social no Programa de Pós Graduação
em Antropologia (PPGA∕UFPA). Contato: rosanifernandes2@hotmail.com.
2
Refiro-me às “organizações formais” que são aquelas organizadas juridicamente para reivindicar direi-
tos conforme define Luciano (2006).
3
Altera a Lei no. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no.10.639, de 09 de janeiro
de 2003.
110
obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas
escolas” (Brasil, 2008). As discussões realizadas no segundo tópico são fru-
to: (1) de diálogos estabelecidos a partir de minha participação∕intervenção e
militância como indígena educadora na tentativa de construção de educação
escolar indígena nas aldeias; (2) da atuação em cursos de graduação, extensão e
especialização para educadores não indígenas, sobre a temática da Diversidade
Cultural, em especial na docência da disciplina Antropologia da Educação em
instituições particulares de ensino no período de 2010 a 2012; e (3) da realiza-
ção de oficinas de produção de material didático com educadores não indígenas
atuando em escolas nas aldeias Kaingang4 e Kyikatêjê.5
Finalizo mostrando a importância do trabalho pedagógico intercultural nas es-
colas não indígenas para a construção de relações de respeito às diferenças cultu-
rais, para a valorização da diversidade, que deve ser tomada como princípio para
a construção de relações menos preconceituosas e menos desiguais. Afinal, tomar
a diversidade cultural como direito humano e como princípio indissociável da
efetivação de uma sociedade de fato plural é tarefa de todos e de todas.

Povos Indígenas e educação escolar: breve histórico


A educação escolar-assim como a garantia dos territórios e o acesso à saúde
– constitui pauta principal de discussão dos movimentos indígenas na América
4
Refiro-me ao trabalho desenvolvido no período de 1994 a 2004 na Terra Indígena (TI) Xapecó, em
especial às atividades realizadas na condição de coordenadora pedagógica da escola Vitorino Kondá. A
TI Xapecó está localizada no, hoje, município de Ipuaçu, na região Oeste de Santa Catarina, e possui po-
pulação de aproximadamente cinco mil pessoas. Os Kaingang são também conhecidos na literatura como
Guayanás e Coroados, mas se autodeterminam Kaingang ou Kanhgág, falantes da língua Kaingang, do
tronco linguístico Macro-Jê, estão entre os cinco povos indígenas mais numerosos no Brasil, com popu-
lação de mais de trinta mil pessoas, vivendo hoje nos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio
Grande do Sul. Fonte: Instituto Socioambiental (ISA). Disponível em: <<http://pib.socioambiental.org/
pt/povo/kaingang/286>>.
5
Os Kyikatêjê são também conhecidos como “Gaviões”, nominação atribuída pelos regionais, provavel-
mente pelo uso das penas da ave na confecção das flechas. Pertencem ao tronco linguístico Macro-Jê e
à família linguística Timbira. Se autodeterminam com relação às posições ocupadas tradicionalmente no
rio Tocantins, por isso “povo da montante, rio acima” onde Kyi é cabeça, Kate é dono e Jê é povo, em
oposição aos Parkatêjê (povo da jusante, do rio acima) e aos Akrãtikatêjê (povo da montanha), os três
povos vivem atualmente na TI Mãe Maria, localizada no município de Bom Jesus do Tocantins, na região
Sudeste do estado do Pará, que possui uma área de aproximadamente 60 mil hectares. Os Kyikatêjê estão
hoje em duas aldeias distintas: na Aldeia Kyikatêjê e na Aldeia Akrãkaprekti, esta última localizada na
antiga aldeia Ladeira Vermelha, para onde as lideranças tradicionais e a maioria dos membros do povo
retornou depois de cisão ocorrida em 2012. Para maiores informações consultar Beltrão (2004); sobre a
educação escolar Kyikatêjê, ver Fernandes (2010).

111
Latina hoje. Apesar do genocídio e etnocídio ocasionados pelas políticas, da
colonialistas eurocentristas, o continente sul americano concentra centenas de
povos indígenas e cerca de 500 línguas nativas distribuídas em diversos países,
dos quais, alguns contam com menos de cinco por cento de população indígena
em seus territórios, como o Brasil, a Venezuela, a Colômbia, o Paraguai e a
Argentina, enquanto outros como a Bolívia, o Peru, o Equador e a Guatemala6
possuem população de maioria indígena, o que representa grande diversidade
etnolinguística e cultural (López & Sichra, 2006). Dentre os países da Amé-
rica Latina que concentram maior diversidade ét-nica e linguística indígena,
está o Brasil, atualmente são mais de três centenas de povos e quase o mesmo
número de línguas indígenas que sobreviveram e se mantém graças às estraté-
gias coletivas de resistência e enfrentamento.7 Os números do censo do Insti-
tuto Brasileiro de Geografiae Estatística (IBGE), rea-lizado em 2010, mostram
que os indígenas vivendo hoje no Brasil somam cerca de 896 mil indivíduos,
sendo aproximadamente 517 mil em Terras Indígenas (TI) e 379 mil fora das
aldeias.5Os números são importantes porque mostram o crescimento demográfi-
code coletividades que estiveram próximos da extinção física e cultural, ocasio-
nadas principalmente pelas ações arbitrárias e racistas do Estado brasileiro que
considerou, durante cinco séculos, diferença cultural como inferioridade. Nesse
sentido, como parte das estratégias de Estado para a conquista dos territórios
e visando a integração dos povos indígenas à sociedade nacional, a Educação
Escolar Indígena (EEI) esteve, desde o período colonial até o adven-to da pro-
mulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88),
a serviço do ideário de “civilização” e submissão dos povos indígenas, o que
significavaa negação dos sistemas educacionais próprios para a legiti-mação do
“projeto civilizador”, com base assimilação e a homogeneização de povos cul-
turalmente diferenciados. A escola “para indígenas” nas aldeias tinha papel es-
6
López e Sichra (2006) explicam que no México, Guatemala, Peru e Bolívia os indígenas estão entre a
população mais pobre do país, também são os que concentram maior número de analfabetos.
7
Sobre o assunto ver Souza Filho (2006).
8
O número de indígenas vivendo fora das aldeias deve ser relativizado considerando que muitas pessoas
indígenas preferem não se autodeclarar como forma de, entre outras coisas, se proteger do preconceito,
da discriminação e de outras formas de violência que sofrem cotidianamente.
Na obra Índios e Castanheiros de Laraia & DaMatta (1967) chegaram a presumir a extinção do povo
Gavião, uma vez que eram menos de 20, as previsões não se concretizaram, os Gavião se reorganizaram
e resistiram, e somam hoje quase mil indivíduos.

112
tratégico, como mecanismo de controle, domesticação e docilização queles que
eram considerados “pagãos”, “bestiais”, “incultos” e “preguiçosos”, por meio
da imposição linguística e cultural, do controle dos espaços pelas atividades
educacionais e laborais, manuais e agrícolas, procurava-se conformar o nativo
ao projeto de nação que se pretendia consolidar (Oliveira & Freire, 2009).
Passados quase cinco séculos de políticas de “branqueamento cultural” e de
não reconhecimento da diversidade, o Estado brasileiro, por força das reivin-
dicações das organizações indígenas, reconhece os direitos coletivos indígenas
assegurando, via legislação específica, a possibilidade de continuidade das lín-
guas, das culturas, das crenças e das tradições (Souza Lima, 1995).
O grande marco da mudança de paradigma no tratamento da diversidade cul-
tural indígena foi o artigo 231 da CF/88: “[s]ão reconhecidos aos índios sua or-
ganização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Brasil, 1988).
No âmbito da legislação educacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional9 (LDB, Lei 9394∕96), especialmente nos artigos 78 e 79, assegura
às comunidades, por meio do regime de colaboração entre União, Estados e Mu-
nicípios, a oferta de EEI específica e diferenciada, bem como, o reconhecimento
dos sistemas educacionais próprios, das ciências, das memórias e das formas de
organização social e políticas próprias de cada povo.
A ratificação, mesmo que tardia, de documentos internacionais como a Con-
venção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das
Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI), reafirma o
dever do Estado brasileiro de respeitar a pluralidade cultural indígena, firmando
o compromisso de desenvolver políticas que promovam a valorização da diver-
sidade étnica, cultural e linguística.
O protagonismo dos movimentos indígenas10 foi fundamental para a mudan-
ça de paradigma do Estado brasileiro com relação ao modelo de educação es-
9
Disponível em: <<http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>>. Acesso em: 08/02/2015.
10
Tomo como referência o conceito de Luciano que define movimento indígena como sendo “... o con-
junto de estratégias e ações que as comunidades e as organizações indígenas desenvolvem em defesa de
seus direitos e interesses coletivos ... aquele que busca articular todas as diferentes ações e estratégias dos
povos indígenas, visando uma luta articulada nacional ou regional que envolve os direitos e os interesses
comuns diante de outros segmentos e interesses nacionais e regionais” (2006: 58-59).

113
colar nas aldeias. De lugar de assimilação, integração e negação das línguas e
das tradições, a escola passou a ser apropriada e resignificada como aliada dos
projetos étnicos indígenas, que têm a interculturalidade como um dos princípios
básicos, o que discutirei na sequência.

Interculturalidade: princípio norteador da EEI


A década de 1970 marcou o início da conquista da escola pelos mo-
vimentos indígenas, as discussões para redemocratização do país e o re-
conhecimento da pluralidade cultural, consolidada na CF/88 possibilita-
ram o repensar das políticas de educação escolar pelos povos indígenas.
Os movimentos de professores indígenas, juntamente com organizações
da sociedade civil, passaram a elaborar propostas educacionais voltadas
para a valorização e manutenção das línguas, culturas e tradições ten-
do como base o princípio da interculturalidade e do multilinguismo, ou
seja, a possibilidade de estabelecimento de diálogos equitativos com a
sociedade não indígena ao mesmo tempo em que trabalha as culturas e
línguas indígenas como parte fundamental e indissociável dos currículos
educacionais.
A luta dos movimentos indígenas pelo reconhecimento e efetivação
do direito a interculturalidade está imbricada à premissa de valorização
da diversidade cultural, pois parte do pressuposto da existência de cul-
turas diferentes e da necessidade de construção de diálogos respeitosos,
menos assimétricos e horizontais. Nesse sentido, a diversidade cultural,
entendida como valor e patrimônio da humanidade, é algo a ser reconhe-
cido, respeitado e celebrado assim como preconiza a Declaração Univer-
sal sobre a Diversidade Cultural de 2002, da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que no artigo
1º afirma:
“[a] cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se
manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos
e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de
criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a
diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da

114
humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes
e futuras” (UNESCO, 2002).
Conforme refere a Declaração, a diversidade cultural é imperativo inseparável
do respeito à dignidade humana e implica no reconhecimento incondicional dos
Direitos Humanos, especialmente das minorias étnicas historicamente massacra-
das pelas políticas coloniais. Entende também que os direitos culturais são ineren-
tes aos Direitos Humanos, dentre os quais, o direito à educação de qualidade, que
respeite e promova a valorização das línguas maternas e culturas.
A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expres-
sões Culturais (CPPDEC) de 2005, da UNESCO, também toma a diversidade
cultural como patrimônio comum da humanidade, devendo ser valorizada e
cultivada em benefício de todos. A Convenção tem, entre outros, os seguintes
objetivos relacionados à promoção da diversidade e da interculturalidade:
“- encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais
amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura
da paz;
- fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito
de construir pontes entre os povos;
- promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de
seu valor nos planos local, nacional e internacional” (UNESCO, 2005).

É no sentido de estabelecer diálogos com o mundo não indígena, servindo


como ponte para novos conhecimentos que a interculturalidade é parte da pro-
posta de educação escolar dos povos indígenas no Brasil. Para Ferreira (2001),
a escola indígena é apropriada pelas comunidades como parte do processo de
reflexão e elaboração cultural, cumprindo a função de mediação entre dois
mundos, assim como os xamãs que transitam em mundos, a escola, vista como
“fronteira”, possibilita o trânsito entre conhecimentos diferentes, como lugar de
mediação e tradução de mundos distintos. De acordo com Tassinari (2001), a es-
cola indígena na perspectiva intercultural é também “espaço de contato”, onde
conhecimentos advindos de tradições distintas podem ser apropriados, reelabo-
rados e reinventados. Luciano concebe a escola como possibilidade de caminho
para outros conhecimentos desejados pelos povos indígenas, mas também como
“instrumento de fortalecimento das culturas e das identidades indígenas”, como
lugar de construir cidadania pelo acesso aos bens materiais e imateriais do mun-
do moderno (Luciano, 2006: 126).
115
Collet (2006) chama atenção para o fato de muitas vezes as categorias “mul-
ticultural” e “intercultural” serem confundidas e esclarece que, a primeira refe-
re-se ao dado objetivo, ou seja, a constatação da coexistência de diversas cultu-
ras, mas sem atenção às trocas, podendo referir inclusive culturas que, em uma
mesma sociedade, coexistem separadamente. A interculturalidade pressupõe,
para além do reconhecimento da diferença cultural, a ênfase no contato, nas
trocas equitativas, no diálogo entre culturas, na interação, interlocução e “con-
fronto entre identidade e diferença” (Collet, 2006:123).
Com relação à percepção dos movimentos indígenas sobre o modelo de Edu-
cação Bilíngue e Intercultural, López e Sichra (2006) afirmam que é resposta às
exigências dos povos indígenas aos Estados, para a melhoria da qualidade de
vida, para a auto-afirmação e fortalecimento das identidades coletivas. A edu-
cação intercultural surge como demanda diferente da educação monocultural
oferecida historicamente pelo Estado, porque concebida como:
“... uma ferramenta na construção de uma cidadania sem exclusões, de uma cultura
democrática e de igualdade, que na prática permite e possibilita o exercício igualitário
da cidadania, o respeito ao direito das pessoas e à sua dignidade... é uma educação que
vai contra a intolerância, que é fonte de todo o conflito, incluindo o armado” (López &
Sichra, 2006: 136-137).

No bojo do reconhecimento da diferença cultural e linguística, e em contra-


posição aos modelos integracionistas e assimilacionistas, o Referencial Curri-
cular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI)11 de 1998, elaborado pelo
Ministério da Educação (MEC), é assumido como resposta às demandas indíge-
nas por educação intercultural:
“... deve reconhecer e manter a diversidade cultural e linguística; promover uma situ-
ação de comunicação entre experiências socioculturais, lingüísticas e históricas dife-
rentes, não considerando uma cultura superior à outra; estimular o entendimento e o
respeito entre seres humanos de identidades étnicas diferentes, ainda que se reconheça
que tais relações vêm ocorrendo historicamente em contextos de desigualdade social e
política” (RCNEI, 1998: 24).

Sobre Interculturalidade e escola indígena o RCNEI infere que:


“[o] diálogo respeitoso entre a realidade dos próprios alunos e os conhecimentos vin-
dos de diversas culturas humanas é a realização da interculturalidade, e a escola in-
dígena deve tornar possível essa relação entre a educação escolar e a própria vida em
11
Disponível em: <<http://www.ufpe.br/remdipe/images/documentos/edu_escolar/ml_07.pdf>>.
Acesso 08/02/2015.

116
sua dinâmica histórica. Agindo-se assim na escola, abre-se espaço para a identificação
de alguns dos problemas sociais mais prementes para aquela comunidade, quando são
construídas as opiniões, atitudes e procedimentos novos que deverão apoiar as soluções
possíveis de tais problemas” (RCNEI, 1998: 60. Grifos do autor).

Para Paladino e Almeida (2012), os conceitos de diversidade e interculturali-


dade fazem parte das demandas e pautas de reivindicação de alguns movimentos
sociais, sendo também apropriados como fundamento e princípio na elaboração
de políticas públicas para povos indígenas. Apesar da centralidade e importân-
cia da discussão, os documentos oficiais, e em especial o RCNEI, tratam super-
ficialmente conceitos como cultura, tradição, diversidade e interculturalidade
que não devem simplesmente promover o diálogo entre conhecimentos, mas
realizar a ruptura do conhecimento hegemônico moderno ocidental, trazendo à
discussão temáticas historicamente desconsideradas.
Sobre o direito de manter as próprias instituições e ter acesso às demais
elaborações não indígenas necessárias para o exercício da cidadania plena pelos
povos indígenas, o artigo 5º da DNUDPI afirma: “[o]s povos indígenas têm
o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas,
econômicas, sociais e culturais, mantendo ao mesmo tempo seu direito de parti-
cipar plenamente, caso o desejem, da vida política, econômica, social e cultural
do Estado” (ONU, 2008: 07).
Redefinida pelas comunidades e movimentos, a escola indígena,12 concebida
como “espaço de diálogo”, passa a ser lugar de discutir e produzir novos sabe-
res para auxiliar na formação de novas lideranças. Para além da constatação,
Luciano afirma que a escola indígena tem sido “o lugar em que se originaram
movimentos de resistência e de reivindicação de direitos sobre a terra contra a
discriminação e a falta de respeito” (2006:136).
Entendendo a escola indígena e a educação escolar como parte dos projetos socie-
tários e étnicos dos povos indígenas, a LDB (Lei 9394∕96) dispõe dois capítulos espe-
cíficos para tratar da EEI, reafirmando a oferta de educação bilíngue e intercultural:
“art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento
à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa,
para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes
objetivos:

12
Ver também Paula (1999).

117
1. proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias
históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e
ciências; 2. garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações,
conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indí-
genas e não-índias.
art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento
da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas inte-
grados de ensino e pesquisa.
§ 1º os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.
§ 2º os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educa-
ção, terão os seguintes objetivos:
1. fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indí-
gena;
2. manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação esco-
lar nas comunidades indígenas;
3. desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos cultu-
rais correspondentes às respectivas comunidades;
4. elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado.”
(Brasil, 1996)

Apesar de destinar apenas dois capítulos para tratar especificamente da EEI,


a LDB representa avanço significativo no reconhecimento da escola específica
e intercultural reivindicada pelos movimentos indígenas, assegurando a possi-
bilidade de construções pedagógicas que fortaleçam as línguas, as memórias
históricas, as ciências e conhecimentos próprios dos povos. Outro aspecto im-
portante da LDB é a possibilidade de elaboração de currículos e programas
específicos, respeitando as diferenças culturais inerentes aos povos indígenas.
Para Paladino & Almeida, o modelo de educação escolar indígena bilíngue e
intercultural é importante porque:
“... propõe um tratamento igualitário da diversidade, sem sobreposição da cultura do-
minante sobre outra subordinada. O avanço deste modelo está em tratar a diferença
como fator enriquecedor e não como um obstáculo. A educação intercultural é vista
como instrumento de “empoderamento” das minorias, das populações que estão a parte
da cultura hegemônica. A idéia seria que as minorias, valendo-se do domínio tanto dos
seus códigos específicos quanto dos códigos “ocidentais” poderiam lutar por seu espa-
ço na sociedade e na economia mundial” (Paladino & Almeida, 2012:17).

López & Sichra (2006) explicam que a interculturalidade somente será uma
proposta eficaz para a igualdade quando se efetivar a transformação das rela-
ções entre sociedades a partir de uma perspectiva de equidade, como recurso
para uma pedagogia diferenciada em sociedades pluriculturais e multilíngues,
nesse sentido:
118
“... a Educação Intercultural Bilíngue não pode ser entendida como um modelo rígi-
do, que tenha que ser aplicado de forma padronizada..., e sim como uma estratégia
educativa que deve ser adequada e diferenciada, em sua execução, às características
sociolingüísticas e socioculturais dos educandos e de suas comunidades” (Lopez &
Sichra, 2006: 110).
Por outro lado, os movimentos indígenas também constatam que apesar dos
significativos avanços legais e do aumento expressivo da demanda por educa-
ção escolar nas aldeias,13 o Estado brasileiro continua negligenciado, na prática,
o reconhecimento das especificidades educacionais indígenas. A criação da ca-
tegoria de escola indígena com normas e ordenamentos jurídicos e organizacio-
nais próprios anunciados na Resolução nº. 003∕99 do MEC continua sendo letra
morta, muitas escolas indígenas não são sequer regularizadas nos sistemas mu-
nicipais e estaduais de ensino, funcionando como anexas a escolas não indíge-
nas, sem acesso às linhas de financiamento e programas específicos destinados
às escolas e comunidades indígenas. A morosidade, a excessiva burocratização,
a falta de pessoal técnico especializado nas secretarias de educação aliados à
falta de vontade política e ao preconceito institucional têm sido barreira para a
consolidação das propostas educacionais indígenas.
Com relação aos níveis de ensino ofertados nas comunidades indígenas, a
situação do Brasil é muito próxima a dos demais países da América Latina que
possuem proposta de educação intercultural. Lopez & Sichra (2006) observam
que a maioria oferece apenas o nível primário de escolarização, o que representa
grande atraso na formação básica dos estudantes, que, por falta de opção fre-
quentam por vários anos a mesma série. A situação se agrava ainda mais quando
se trata do ensino secundário e superior, pois para acessar a segunda etapa da
educação básica e o ensino médio, muitos indígenas estudantes são obrigados à
saírem das comunidades e percorrer grandes distâncias para chegar às escolas,
ou ainda, a se estabelecerem nas cidades, em condições na maioria das vezes
precárias para concluir os estudos.
Silva (2001) informa que ainda há um grande descompasso entre as propos-
tas educacionais elaboradas pelos povos indígenas e a realidade da EEI no Bra-
sil, principalmente pelo não acolhimento das especificidades indígenas pelas se-

13
Para maiores informações referentes aos números de escolas e estudantes indígenas, bem como dados
relacionados a gestão das escolas ver a publicação: MEC (2007).

119
cretarias de educação, pela não regularização e não oficialização dos currículos
e calendários próprios das escolas.
Por outro lado, a não implementação de políticas que promovam a intercul-
turalidade a partir das escolas não indígenas tem se constituído outro entrave
para mudanças substanciais nas formas de percepção e relacionamento com a
diversidade cultural no Brasil, é o que discutiremos na sequência.

Interculturalidade e a Lei No. 11.645: possibilidades e dificuldades


A Lei nº. 11.645∕2008 constitui importante instrumento de combate ao pre-
conceito nas escolas e por extensão na sociedade brasileira, é resposta proposi-
tiva ao racismo reproduzido historicamente, inclusive no espaço escolar. Desde
o reconhecimento da condição pluriétnica do Estado brasileiro, via CF/88, as
pressões dos movimentos organizados da sociedade civil em prol dos Direitos
Humanos e Diferenciados cobram mecanismos efetivos para a mudança no tra-
tamento da diferença cultural.
O movimento pela criação de cotas14 no ensino superior, bem como a criação
de formas de acesso diferenciadas para indígenas e afrodescendentes nas univer-
sidades e institutos federais de ensino, foram importantes passos para a mudança
de paradigma, promovendo a inclusão da diversidade cultural, mesmo que tardia,
nas universidades e institutos tecnológicos. A criação de cotas em concursos pú-
blicos também tem sido objeto de ampla discussão no Legislativo brasileiro, com
algumas vitórias concretizadas nesse sentido, são discussões tensas e conflituosas
onde estão em jogo interesses divergentes, dentre os quais, o de manter os qua-
dros de exclusão e desigualdade que favorecem, sobretudo, os interessados na não
demarcação e diminuição de terras indígenas e de quilombos. Pela mesma razão,
a Lei nº. 11.645∕2008 esteve em discussão por longo período (de 2003 a 2008),
somente depois de cinco anos foi finalmente sancionada.
Se por um lado os avanços legais apontam mudanças importantes, por outro,
a falta de implementação destas políticas são motivo de preocupação. Trabalhan-
do em educação escolar indígena há quase duas décadas e militando em direitos
indígenas, especialmente no acesso à educação escolar específica e de qualidade,

Trata-se da Lei nº. 12.711/2012, que estabelece a obrigatoriedade da reserva de vagas para indígenas e
14

negros nas universidades e Institutos Federais. Fonte: LACED (2012).

120
junto ao meu povo e entre outros povos indígenas, tive a possibilidade de partici-
par de diversas reuniões de lideranças, professores e comunidades indígenas, cuja
pauta principal era a construção de educação específica e intercultural.15
Trabalhei durante oito anos na assessoria pedagógica da Associação Kyikatê-
jê, quando, a convite da organização indígena, coordenei as atividades de educa-
ção escolar na aldeia, que tinha como mote principal a realização de oficinas de
formação para professores não indígenas que atuavam na escola da comunidade
na tentativa de “prepará-los” para o trabalho com povos linguística e cultural-
mente diferenciados e para a produção de materiais didáticos específicos, que
era a principal demanda da comunidade.16
Quando ingressei no Mestrado em Direito, em 2007, na Universidade Fede-
ral do Pará (UFPA),17 sob a orientação da professora e antropóloga Jane Felipe
Beltrão, tive a possibilidade de participar de oficinas18 com parentes de outras
etnias que vivem no hoje estado do Pará, com o objetivo de construir a história
a partir das narrativas e memórias dos mesmos, tendo a possibilidade de ouvir
suas queixas com relação às escolas indígenas e não indígenas. Na atualidade,
como parte das atividades de pesquisa concernentes a feitura da tese de Dou-
torado em Antropologia,19 também realizado na UFPA, tenho dialogado com
lideranças do povo Tembé20 da Santa Maria do Pará e ouvido inúmeras recla-
15
Não é meu objetivo apresentar e discutir exaustivamente as experiências e as atividades relacionadas,
mas referir as principais contribuições que podem ser consideradas para o artigo em questão, consideran-
do o que me propus a desenvolver inicialmente.
16
Um dos trabalhos está publicado, ver: Fernandes, Mastop-Lima & Beltrão (2009).
17
No Programa de Pós Graduação em Direito (PPGD) que, via edital diferenciado, reservava duas vagas
para indígenas.
18
A primeira, denominada “História dos Povos Indígenas do Baixo Amazonas” realizada em Santarém,
em setembro de 2009 e a segunda “Construindo nossa historia, marcando nossa identidade”, realizada
no mesmo local em janeiro de 2010. Os relatos e reflexões acerca das oficinas estão em Beltrão (2012)
e Beltrão (2013).
19
O PPGA, por meio das políticas afirmativas, reserva duas vagas para pessoas pretas e duas vagas para
pessoas indígenas, sendo uma vaga para o mestrado e uma para o doutorado. A seleção, no caso dos
candidatos indígenas, inclui apresentação de documento de indicação por lideranças tradicional ou auto-
ridade política indígena, juntamente com a proposta de trabalho, pré-projeto para o Mestrado e projeto
de tese para o Doutorado e a defesa da proposta.
20
O nome Tembé ou Timbé que é sua variante foi provavelmente atribuído pelos regionais e tem como
tradução o termo pejorativo “nariz chato”. Os Tembé que vivem nas aldeias Jeju e Areal se autodetermi-
nam Tenetehara, e sofrem historicamente as pressões e ocupações do território tradicional pelos não in-
dígenas. Atualmente, vivem entre os regionais em área não demarcada e buscam por meio da Associação
Indígena Tembé de Santa Maria do Pará (AITESAMPA), fundada em 2003, para reafirmar a identidade
étnica e reaver parte do território de ocupação tradicional. Para maiores informações sobre a associação
e a luta dos Tembé de Santa Maria consultar: Fernandes et al. (2011). A fonte das informações sobre a
nominação Tembé é o site do Instituto Socioambiental.

121
mações sobre as muitas situações de preconceito e racismo que os Tembé estu-
dantes sofrem nas escolas não indígenas. As pinturas corporais e a cultura são
desprezadas e em muitos casos “demonizadas”, comparadas a “sujeira” pelos
professores que demonstram completo despreparo para o trabalho com povos
etnicamente diferenciados. Em uma das escolas frequentadas pelos Tembé de
Santa Maria, a presença de indígenas é “ignorada”, de forma que são também
invisíveis aos currículos e ao sistema municipal e estadual de educação.
No período de 2010 a 2012 tive a possibilidade de atuar na docência no ensino
superior em cursos de graduação e especialização, estabelecendo contatos com
educadores não indígenas das redes municipal, estadual e particular de ensino
do município de Marabá e arredores. Tendo como pano de fundo a temática da
diversidade cultural, desenvolvi diversas atividades no sentido de trabalhar a im-
portância da valorização da diversidade cultural no cotidiano das escolas, neste
caso, não indígenas. Com base na Lei nº. 11.645, desenvolvi atividades de leitura
de imagens relacionadas à diversidade cultural e produção de textos com objeti-
vo de analisar a percepção e os conhecimentos dos educadores sobre o assunto.
O que mais chamou atenção foi a precariedade na formação de educadores para
o trabalho com a diversidade cultural local, neste caso, no contexto do municí-
pio de Marabá, na região Sudeste do Pará. Numa destas ocasiões, em trabalho
de formação de professores realizei a atividade dois momentos, (1) leitura de
diversas imagens sobre diversidade cultural, antes do trabalho com as categorias
e leituras propostas para a aula; e (2) releitura das imagens ao final da disciplina
a partir das discussões e apropriações realizadas no decorrer do curso a partir
das categorias trabalhadas. A pergunta básica que orientava a elaboração dos
textos nos dois momentos era “quem sou eu?”. As elaborações iniciais foram,
de maneira geral, preconceituosas, dentre as imagens estavam as de indígenas
que vivem próximo ao município de Marabá e que convivem cotidianamente
com a população local por, pelo menos, duas razões: (1) pela proximidade da
aldeia, que fica a menos de 40 quilômetros do município; e (2) pela circulação
constante dos mesmos na cidade, nos supermercados, bancos, entre outros esta-
belecimentos, incluindo as escolas não indígenas que frequentam, pelo fato de
não terem todas as etapas de escolarização na comunidade.
122
Alguns professores em formação referiam que tiveram alunos indígenas nas
escolas que trabalhavam, mas nada sabiam informar sobre a etnia e cultura dos
mesmos. Informavam que, “de vez em quando os viam pintados de preto”. As
intervenções dos professores eram, na maioria, relacionadas ao fato de os indí-
genas “terem muito dinheiro”, “dirigirem carrões” ou ainda “portarem aparelhos
celulares sofisticados”, o que comumente é lido como “não são mais índios”.
Dentre as imagens trabalhadas estavam algumas de crianças negras e indíge-
nas, as leituras apontavam para a ideia de “vitimização”, “tristeza”, “pobreza” e
“violência”, em alguns poucos casos a análise referia o acesso a direitos, ou ainda
o racismo e a injustiça social como problema social e cultural. Quando questio-
nados sobre as razões do desconhecimento, associava-se a precariedade do mate-
rial didático trabalhado nas escolas ou ainda às muitas deficiências da formação
universitária. Sobre a Lei nº. 11.645 e o trabalho desenvolvido nas escolas para
sua implementação, a resposta foi recorrente: trabalha-se a temática do índio e
do negro (palavra quase impronunciável) estritamente nas datas comemorativas,
como informa a professora Maria,21 no “dia do índio” e no “dia da consciência ne-
gra”, tendo como referência as informações contidas nos manuais didáticos que,
resumidamente, apresentam as contribuições dos mesmos para à cultura nacional.
Com relação às contribuições dos diversos momentos elencados neste tó-
pico, é possível tecer algumas considerações: (1) no discurso das lideranças
e professores indígenas, a queixa é recorrente com relação ao despreparo dos
professores não indígenas para o trabalho com a temática indígena, seja em
escolas indígenas ou não indígenas; (2) no que se refere ao trabalho nas escolas
não indígenas com estudantes indígenas que frequentam escolas municipais e
estaduais fora das aldeias, as queixas informam preconceito e, em muitos ca-
sos, racismo institucional, o que ocasionam baixo rendimento, desistências e até
abandono escolar; (3) com relação a formação de professores para o trabalho
com a diversidade cultural, conforme preconiza a Lei nº. 11.645, constata-se
pouco empenho para a busca de informações e estabelecimento de diálogos com
as realidades e culturas locais, persistem os trabalhos com imagens e conteúdos
genéricos e descontextualizados das pessoas de “carne e osso” com as quais

21
Para este trabalho os nomes são fictícios para preservar a identidade das pessoas.

123
muitos dos educadores convivem quotidianamente; (4) a ideia de indígena
que ainda prevalece no imaginário dos educadores não foge muito da difundi-
da no senso comum hegemônico, de pessoas pintadas e adornadas que vivem
nas aldeias; imagens cristalizadas que não concebem as dinâmicas culturais,
nem os povos indígenas como partícipes da modernidade, sem que isto signi-
fique “perda de identidade”.22 Para além das datas comemorativas, a inclusão
da cultura indígena e negra precisa ser parte dos currículos de ensino, que
devem ser reelaborados com vistas a superação das práticas sociais racistas
e anti-indígenas, ainda vistos como “obstáculos para o progresso” e como
sinônimo de atraso. O tratamento das especificidades culturais deve possi-
bilitar a compreensão da cultura como teia de significados, conforme ensina
Geertz (2007). Para além das contribuições à formação do povo brasileiro, é
preciso contextualizar e historicizar as lutas, os massacres, as tentativas de
apagamentos das identidades e os processos violentos de invasão e ocupação
dos territórios indígenas.
Na Amazônia a situação é emblemática, considerando que o Estado brasi-
leiro continua expulsando indígenas das terras para dar lugar a hidrelétricas,
estradas, rodovias, entre inúmeros projetos desenvolvimentistas que desconsi-
deram os povos indígenas como sujeitos de direito, negando-lhes, inclusive, a
dignidade enquanto coletividades. Nesse sentido, é tarefa da escola problemati-
zar os enfrentamentos políticos e históricos, reelaborando assim as “verdades”
impostas pelos manuais didáticos a partir da leitura crítica do mundo sugerida
por Freire (2008).
Espejo defende que a escola deve promover uma “cidadania intercultural”
em consonância com a democracia pluralista, que tem a diversidade como prin-
cípio norteador, e prossegue:
“[u]na de las condiciones básicas de la educación intercultural es que todos los procesos educa-
tivos deben ser diseñados y elaborados conjuntamente con todos los agentes que participan del
proceso. Ello, sin embargo, no impide que el educador, individualmente, no se avoque a la tarea
de reflexionar sobre la función y naturaleza de la educación intercultural” (2012: 243).

22
Uma leitura básica e esclarecedora sobre o assunto é o livro de Roque de Barros Laraia (2006), Cul-
tura: um conceito antropológico.

124
Para Espejo (2012), a escola deve reconhecer e valorizar a especificida-
de e ser espaço de construção da cidadania, é no espaço escolar que estão
em jogo negociações em torno do exercício de poder, as políticas e práti-
cas educacionais devem corroborar no para que se coloque em prática a
função “transformadora” da educação, por meio da participação efetiva dos
agentes envolvidos, em todas as etapas. Conforme adverte Luciano (2006),
a construção da cidadania indígena implica na possibilidade dos povos in-
dígenas terem asseguradas e respeitadas as identidades étnicas, línguas e
culturas, ao mesmo tempo em que, seja também garantido o acesso pleno
aos bens tecnológicos e demais conhecimentos da sociedade não indígena.
Os movimentos indígenas discutem como as escolas indígenas podem cola-
borar nesse processo e apontam a importância de atuações qualificadas para
construção de propostas educacionais que ofereçam possíveis respostas para
os principais desafios enfrentados pelas comunidades: a defesa das terras,
a elaboração e efetividade de políticas de saúde e educação, entre outros.

Finalizando sem encerrar... questões em aberto


A interculturalidade como prática pedagógica necessária para o diálogo equi-
tativo entre culturas não pode escamotear as desigualdades, nem celebrar trocas
culturais ingênuas e desprovidas de significado sociais e culturais. Cabe aos
educadores, as instituições formadoras e a sociedade brasileira a superação das
relações desiguais, assimétricas e preconceituosas que marcaram historicamente
o tratamento da diferença cultural no Brasil. É preciso combater incansavelmen-
te o racismo que continua entranhado nas práticas educacionais quotidianas,
escolarizadas ou não e nas relações institucionais que continuam reproduzindo
a exclusão das pessoas que pertencem às minorias.23 Concordo com Paladino e
Almeida (2012) quando afirmam que a educação intercultural não deve ser alvo
apenas das minorias étnicas, indígenas e afrodescendentes, entre outras, mas
atingir a população nacional para novas formas de relacionamento, pautadas no
respeito à dignidade humana.
23
Para Seyferth (2012) não se trata de inferioridade numérica, mas sim a desigualdade de status, faz-se,
portanto, por antagonismo à maioria ou grupo dominante, cujos indicadores sociais apontam melhores
possibilidades de acesso educacional, político e econômico.

125
Iniciei o trabalho enfatizando o fato de estar em aberto e ser inconcluso, refe-
rindo às muitas indagações que ainda cercam a temática, tanto no que refere aos
educadores indígenas quanto não indígenas. Finalizo afirmando que a intercul-
turalidade é importante ferramenta para o trabalho educacional comprometido
com a justiça social, com a construção de relações menos preconceituosas e
para o combate ao racismo, mas precisa ser tomada como parte dos currículos
das escolas não indígenas, estar presente na formação inicial e continuada dos
educadores indígenas e não indígenas de forma que seja possível realizar dis-
cussões críticas e comprometidas com o papel da escola na sociedade brasileira
e especialmente em contextos amazônicos que concentram grande diversidade
étnica, cultural e linguística. De fato, não concluo apresentando respostas, mas
possibilidades de reflexão que podem apontar caminhos e, quem sabe, gerar
mudanças que dêem frutos para construção da igualdade na diversidade.

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128
Educação formal, mobilização política e mobilidade social:
notas sobre “lutas”, escolas e trajetórias

Paula Lacerda1

Perspectivas iniciais: pontos de partida, pontos de contato


Entre julho e agosto de 2012, acompanhei o curso de Licenciatura e Ba-
charelado em Etnodesenvolvimento, oferecido pela Universidade Federal do
Pará (UFPA) no campus universitário de Altamira. O objetivo da minha pesquisa
consistia em pensar processos sociais nos quais o “Estado”, por intermédio de
alguma de suas muitas instituições, colaborasse na formação de lideranças2. Este
objetivo principal teve como antecedente a pesquisa de doutorado realizada em
Altamira, iniciada em 2008, junto a lideranças de movimentos sociais como o
Comitê em Defesa da Vida da Criança Altamirense, o Movimento de Mulheres
Trabalhadoras de Altamira do Campo e da Cidade e o Movimento Xingu Vivo
para Sempre, entre outros coletivos políticos importantes3. O forte histórico de
mobilização social na região da Transamazônica, embora seja uma experiência
próxima para os habitantes dos vários municípios que a compõe, não alcança
a devida visibilidade em termos das representações que se produzem sobre a
região, seja no nível acadêmico ou fora dele. Acompanhando os apontamentos
de Oliveira (2008), é possível dizer que as representações sobre a Amazônia
continuam centradas em torno de “florestas”, “verdes” e “vazios demográficos”,
o que vem a justificar e legitimar, por sua vez, medidas autoritárias de cunho
político e econômico que são frequentemente referidas como “projetos de de-
senvolvimento” (Ferguson, 1994).
1
Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacio-
nal, Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora adjunta de Antropologia do Instituto de Ciên-
cias Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato: lacerdapaula@gmail.com.
2
A ideia de “Estado” aparecerá sempre entre aspas como forma de evidenciar a dimensão ficcional do
termo que, antes de expressar unicamente uma entidade abstrata (Abrams, 2006), é composta por indiví-
duos ocupantes de posições da burocracia da administração pública (Cf. Souza Lima, 2002; e, Teixeira
& Souza Lima, 2010).
3
A tese “O caso dos meninos emasculados: polícia, justiça e movimento social” foi defendida no Progra-
ma de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em março de 2012. No ano seguinte, fomos agraciados com o Prêmio Gilberto Velho de Tese, na
categoria Ciências Humanas e Sociais.

129
Tomar como objeto de reflexão os coletivos políticos que imprimem movimen-
to à(o)s ruas, estradas, aldeias, florestas e travessões da Amazônia, neste sentido,
configura-se como forma de valorizar e visibilizar a agência dos sujeitos a partir de
áreas tradicionalmente tomadas como cenário de intervenções. A maneira como os
sujeitos reivindicam, construindo o “Estado” como principal interlocutor, remonta
ao estímulo católico para a mobilização, tema que explorei em Lacerda (2013).
Contudo, embora a Igreja Católica, através das ações da Prelazia do Xingu e, mais
especificamente, das Comissões de Justiça e Paz (CJP), dos grupos de jovens e das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), siga pontuando a trajetória de homens e
mulheres que atuam nos diversos movimentos sociais, estes agora procuram outros
caminhos para a sua formação, dentre os quais a universidade desponta com grande
destaque. As lideranças junto às quais pesquisei não desejam aprender maneiras ou-
tras de mobilizar-se, mas desejam adquirir conhecimento que torne possível respal-
dar as ações que, historicamente, já realizam e pretendem continuar realizando. Nas
palavras de uma liderança, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragem
(MAB), “[f]echar estrada a gente já sabe como fechar muito bem. Fazer barricada a
gente aprendeu desde cedo. O que a gente precisa é conhecimento teórico que nos
permita falar de igual para igual com qualquer autoridade!”
Pesquisando os movimentos sociais da Transamazônica, consegui perceber
uma história de “luta” direcionada a forças poderosas: as “autoridades” que
travam uma relação assimétrica e hierárquica com a população; os “latifun-
diários”, respaldados por ações governamentais, que expulsam, escravizam e
dizimam indígenas, agricultores e quilombolas. Em todos estes casos, o “Esta-
do” é uma presença marcante: ele é referido como sendo diretamente responsá-
vel por sofrimentos e dificuldades - quando abandona políticas públicas recém
implantadas, por exemplo - ou referido como responsável em função de sua
omissão ou negligência - quando não investiga, não toma posição, deixando
que violações de direitos ocorram. O fato de os movimentos sociais utilizarem
a expressão “luta” para definir suas ações, ilustra muito bem o percurso que se
trilha: o sofrimento, a decepção e, ainda, a persistência, a força e a coragem
(Comerford, 1999).
O desejo de que seja possível estabelecer uma interação igualitária com as
autoridades indica o nível de tensão nestas relações que, em princípio, deveriam
130
ser dialógicas e colaborativas.4 De fato, as “autoridades” tendem a ser vistas
pelas lideranças como distantes, insensíveis e omissas, o que em grande medida
se deve à forma pela qual representantes de setores da administração pública
se apresentam publicamente, muitas vezes evidenciando a pouca importância
que atribuem à consulta e à participação popular, todos estes princípios não
apenas éticos, mas também constitucionais. No processo de implantação da Usi-
na Hidroelétrica de Belo Monte, por exemplo, o que foram apresentadas como
“audiências públicas”, na verdade, foram reuniões em que os representantes do
governo disponibilizaram, em materiais audiovisuais, o então projeto da obra. A
respeito das expectativas relacionadas ao envolvimento nas tomadas de decisão
do governo, é ilustrativa a frase escolhida para constar no folder do II Seminá-
rio Etnodesenvolvimento: Formação Universitária e Prática Profissional para
Povos e Comunidades Tradicionais, realizado em 2014. Os dizeres são: “Se
Houver Participação, Não Precisa de Consulta”.
O estudo sobre mobilização social na Amazônia é ilustrativo da relação entre
violação de direitos e ações políticas organizadas por parte da população, envol-
vidas em coletivos e associações de origem diversificada. Não proponho enten-
der as empreitadas dos movimentos sociais unicamente como respostas ou re-
ações a ações implementadas (mal implementadas, insuficiente implementadas
ou não implementadas) pelos governos. Embora o discurso de muitas lideranças
sobre o “início” de suas mobilizações efetivamente apresente como motivações
as violações de direitos básicos, como aqueles relativos à educação, à saúde e à
assistência social, à medida em que trilham os caminhos da “luta” as lideranças
passam a pleitear muito mais do que o básico, mesmo que ainda reste muito a
ser feito no plano da atenção primária. Assim, as falhas no atendimento básico
de saúde não impediram que as lideranças, sobretudo as mulheres, começassem
a pleitear um hospital de referência para toda a região.

4
Pesquisando o livro de tombos da delegacia de Altamira, notei que do universo de 691 inquéritos poli-
ciais que foram concluídos e remetidos à Justiça, 3% tratam-se de “crimes contra a administração públi-
ca”, entre os quais estão o desacato à autoridade (Art. 331) e a resistência à prisão (Art. 329). Consideran-
do que estes dados referem-se não aos crimes unicamente registrados, mas àqueles que cumpriram todas
as etapas da chamada “instrução policial”, chegando ao âmbito do Judiciário, creio que seja revelador
do nível de tensão entre funcionários públicos e população, particularmente integrantes de movimentos
sociais. Ver mais informações sobre estes dados em Lacerda (2012).

131
Apesar de os “caminhos da militância” serem duros e tortuosos, o que faz
com que as lideranças permaneçam nele? O que as motiva a incluírem em suas
rotinas já extenuantes um compromisso a mais, como um curso de formação
universitária, mesmo que para isso seja preciso passar por privações de ordem
material e emocional? O que as leva a sujeitarem-se aos perigos de uma Tran-
samazônica encharcada ou de uma Altamira que vê crescer a cada dia o número
de crimes e de acidentes de trânsito?
O presente artigo está dividido em duas partes, além das perspectivas finais. A
primeira delas apresenta fragmentos sobre o processo sócio-político por meio do
qual a educação se transforma em reivindicação capaz de unir diferentes movi-
mentos sociais, sindicatos, grupos de vizinhos, de jovens, de mães etc. Na segun-
da parte, buscarei explorar a potencialidade transformadora que estas lideranças
atribuem à educação, particularmente ao Ensino Superior. Estes apontamentos e
estas reflexões puderam ser feitos a partir de entrevistas realizadas com lideran-
ças engajadas em torno dos direitos das mulheres e das crianças em Altamira e
com lideranças de povos e comunidades tradicionais que passam por formação
universitária, além de observação em eventos, reuniões e, no caso das lideranças
que cursam a graduação, no acompanhamento do 5º Tempo Universidade5. Desta
maneira, este trabalho não seria possível sem a colaboração das lideranças que
comigo dividiram suas histórias de luta, com sofrimento e orgulho. Deixo aqui,
portanto, meu agradecimento especial a cada uma delas.

A luta pela educação na Amazônia: fragmentos de uma história ainda em


construção
Tradicionalmente, em diversas regiões da Amazônia as reivindicações
por educação são das mais antigas. No caso da Transamazônica, a “luta” por
uma educação de qualidade que alcançasse a todos nos remete diretamente à
história de colonização da região. Na década de 70, os programas governamen-
tais de colonização, tendo como objetivo explícito “povoar” a região, convoca-
vam nordestinos – especialmente os cearenses, então afetados por uma “grande
5
Inspirado pela Pedagogia da Alternância, o curso de Etnodesenvolvimento ocorre em duas modali-
dades, o “Tempo Universidade”, que é quando os alunos assistem aulas na universidade, e o “Tempo
Comunidade”, que é quando realizam pesquisas e recebem os professores nos locais onde vivem. O ano
letivo é composto por dois períodos em cada uma destas modalidades.

132
seca” (Ribeiro, 2002) – para migrarem para regiões da Amazônia, entre as quais
o sudoeste do Pará onde seria construída a rodovia Transamazônica, fruto dos
governos militares e suas pretensões megalomaníacas. Os migrantes foram atraí-
dos pela promessa de que “ganhariam terras” do governo e que seriam beneficia-
dos pela construção de escolas, hospitais, postos de venda de produtos agrícolas
e demais serviços. Em 1960, a população de Altamira era de 11.978 pessoas; em
1970 havia aumentado para 15.428 e, apenas um ano depois, alcançou os 23.211
habitantes (IBGE, apud Cardoso & Muller, 1977: 115).6
Deste modo, o projeto de colonização então vigente tinha o intuito de atrair não
trabalhadores solteiros, como outrora já havia sido feito (Seyferth, 1990), mas fa-
mílias inteiras, preferencialmente extensas e com experiência na lavoura. Muitas
crianças, em idade escolar, chegaram à região acompanhadas por seus pais. As
escolas, contudo, eram insuficientes e, em muitos locais, inexistentes. Seus pais,
sentindo-se enganados devido à realidade com a qual se deparavam, não aceita-
ram que seus filhos ficassem fora da escola. É por isso que muitas das escolas
foram construídas pelas próprias famílias e de modo bastante improvisado, como
resultado do esforço para que seus filhos e filhas não deixassem de estudar, como
revela a análise de Santos (2014).
A história dos homens e mulheres que há décadas atuam como lideranças não
pode ser contada senão em primeira pessoa. Eles e elas são personagens dessa
história, vista pelos próprios como uma história de desassistência e de “luta”. Se
hoje possuem alguma instrução, é porque não mediram esforços para tal. A análise
de Santos (2014), acima citada, é um exemplo desta experiência (ou “vivência”)
que se transforma em objeto de análise, de crítica e de reflexão em prol da solução,
6
Note-se que este dado faz apenas alusão ao quantitativo de pessoas que chegaram na região da Tran-
samazônica considerando-se, entre outros fatores, a dupla modalidade da colonização, qual seja a dita
“colonização dirigida”, que se refere à ação oficial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) de transporte e fixação de pessoas, e a chamada “colonização espontânea”, que se
refere à parte do processo migratório realizada pelas pessoas com seus próprios recursos, dissociadas,
portanto, de qualquer apoio do governo para o deslocamento e a fixação. Velho (1976) definiu quatro
fases da colonização na Amazônia, iniciada nos anos 70. A primeira delas, a “colonização dirigida”,
foi implantada através do INCRA nas regiões dos rios Xingu e Tapajós. Esta etapa foi sucedida pelas
“correntes espontâneas”, formadas por pessoas em busca de terra e que se deslocaram para regiões do
Maranhão e do Pará ou, em outra corrente, para Rondônia e Acre, o que foi possível – e em grande
medida estimulado – pelas rodovias existentes. Por fim, a última “corrente” seria composta por pessoas
que não tinham interesse ou possibilidade de trabalhar na terra, mas esperavam se assalariar em qualquer
atividade, preferencialmente nas fazendas de gado.

133
o que não pode ser feito sem conhecimento, seja o conhecimento adquirido nos
movimentos sociais, seja aquele adquirido nas escolas e na universidade.
A história que Antonia Martins (Toinha) conta sobre sua própria vida, para
falar da história da região, vai por este mesmo caminho. Toinha chegou na re-
gião do Pará em 1979, juntamente com seus pais e irmãos. Dez anos depois,
já casada, ela se muda para a região urbana de Altamira para que seu marido,
professor, pudesse dar continuidade à sua formação. Até então, Adelson tinha
estudado até a antiga 8a série, ou seja, tinha completado o Ensino Fundamental.
Ao lado do “regime multiseriado”, o baixo nível de escolaridade dos professo-
res, resultado direto da falta de investimento na educação e, em particular, do
estímulo à carreira, são marcas do ensino em muitas regiões da Amazônia. À
semelhança do marido de Toinha, Rosa Pessoa, coordenadora do Comitê em
Defesa da Vida da Criança Altamirense, trabalhava como professora na zona
rural do município desde os 15 anos. No início de suas atividades, ela tinha
podido estudar até o primeiro ciclo do Ensino Fundamental, ou seja, até a antiga
4a série primária. Ao longo dos anos, complementou sua formação – no regime
intervalar – e assim concluiu o Ensino Médio na modalidade magistério.
É neste cenário em que os problemas estruturais que comprometiam uma
educação de qualidade tornavam-se tema das atenções das lideranças, que passa-
vam então a engajar-se na “luta pela educação”. Através do apoio de movimen-
tos sociais na região – que, no início dos anos 80, eram formados basicamente
pelos sindicatos e pelos setores de base da Igreja Católica – são organizadas
mobilizações, caminhadas, passeatas e os professores organizam seu sindica-
to, com expressiva identificação com o Partido dos Trabalhadores (PT). Neste
momento, segundo as lembranças de Toinha, “tudo estava por fazer”, de modo
que era comum as lideranças engajarem-se ao mesmo tempo em várias “lutas”,
como aquela pela educação, pela saúde, pela continuidade do plano de coloni-
zação, pelo asfaltamento da Transamazônica etc. Data deste período a formação
do Movimento Pela Sobrevivência da Transamazônica (MPST), o coletivo po-
lítico que fomentava ações de reivindicações de direitos, assim abarcando um
amplo conjunto de “lutas”.
Os esforços empreendidos pela população organizada de Altamira sem dúvi-
da lograram êxitos. Professores contratados na modalidade de “temporários” ou
134
“substitutos” foram efetivados pelas prefeituras ou pelo estado; escolas foram
construídas; transporte para os alunos e professores foi providenciado inclusive
no meio rural. Contudo, em muitos lugares estas mudanças não chegaram e,
onde chegaram, ainda ocorreram de maneira incipiente e descontinuada. Muitas
escolas, ainda hoje permanecem em condições precárias, o que quer dizer que
condições mínimas como banheiro, energia elétrica e água potável não estão
disponíveis a milhares de crianças (Santos, 2014), o que tem impacto evidente
sobre as condições de ensino-aprendizagem a sobre a evasão.
Análise recente da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos
descreve o cenário de violação do direito à educação em várias regiões da Ama-
zônia. No caso do Pará, por exemplo,
“... somente entre os anos de 1995 e 2000 é que as sedes de todos os municípios pude-
ram contar com o Ensino Fundamental de 5a à 8a série e até os dias atuais nem todas as
vilas dispõem de escolas municipais que ofereçam de 5a a 9a séries, o que leva muitas
crianças a limitarem seus estudos até a 4a série somente” (Araújo, 2013: 29).

O problema da falta de escolas, como sabemos, não encerra todas as ques-


tões que malogram a qualidade do ensino na Amazônia. A sociodiversidade,
marca da região tanto quanto a comentada biodiversidade, não é contemplada
nos conteúdos escolares, a despeito do que prevê a legislação. As análises de
Guimarães e Souza (2014), elas próprias quilombolas e discentes do curso de
Etnodesenvolvimento, revelam o descumprimento sistemático da legislação a
respeito da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas
escolas de Salvaterra, Ilha do Marajó. No caso em análise, o descumprimento
da lei é ainda mais grave porque a escola está registrada no MEC como sendo
pertencente à comunidade quilombola.
No que se refere à educação diferenciada em seu segmento superior, apesar
de prevista como um direito desde a Constituição Federal de 1988, ela começou
a ser colocada em prática apenas em 2002, ao final do governo Fernando Hen-
rique Cardoso, com o programa Diversidade na Universidade e só plenamente
executada no primeiro governo Lula (Souza Lima & Hoffman, 2004). Ainda
assim, os programas e as políticas de acesso de indígenas ao curso superior
estavam modulados por dois eixos: a formação de professores através das Li-
cenciaturas Interculturais e, em escala mais reduzida, a capacitação em áreas
consideradas estratégicas, como Direito e Agronomia.
135
Em Altamira, o campus universitário da UFPA foi inaugurado em 1987 ofe-
recendo cursos de Letras, Pedagogia, Matemática, História e Geografia na mo-
dalidade intervalar, revelando o claro objetivo de atuar na formação de profes-
sores. Em 1992, estes mesmos cursos foram instalados na modalidade regular.
O acesso se dava, até o ano 2007, por meio do vestibular universal.7
Além das “lutas” dos movimentos sociais que resultaram na efetivação de
políticas públicas como a reserva de vagas, a implementação de cotas, ou mes-
mo a criação de um curso universitário voltado a povos e comunidades tradicio-
nais, como é o curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento,
destaque-se a ação política de alguns docentes da universidade expressa em
termos de reflexões acadêmicas sobre a diversidade e a educação como um
direito, a proposta de políticas afirmativas em diversos níveis da burocracia
universitária e, notadamente, no estímulo aos coletivos políticos a produzirem,
também, suas reivindicações. O curso que abriga os estudantes cujos relatos
passaremos agora a analisar, como veremos, foi resultado das reivindicações do
movimento indígena de Altamira e do conhecimento prévio que os professores
da universidade possuíam a respeito da sociodiversidade da região.
A estruturação de um curso universitário em torno de campos disciplina-
res variados como o direito, a antropologia, a arqueologia, a saúde coletiva,
a educação e a história compõe o conjunto de saberes capazes de contribuir
para os processos em que integrantes de povos e comunidades tradicionais
possam deter o controle sobre suas próprias terras, recursos, organização
social e cultura (Oliveira, Beltrão e Ribeiro, 2013: 112). Passaremos agora
a analisar os relatos dos alunos a respeito da formação universitária na qual
se engajaram.

7
As políticas afirmativas para ingresso e permanência de estudantes em cursos de graduação oferecidos
pela UFPA foram implantadas em 2007 e, nesta versão, estiveram voltadas especificamente para candi-
datos negros e oriundos do sistema público de ensino (Beltrão & Cunha, 2011). Dois anos mais tarde,
em 2009, foi implementado o programa de vagas reservadas para povos indígenas em todos os cursos
de graduação da UFPA. Esta iniciativa, ainda no âmbito da UFPA, foi precedida pela implementação de
cotas para pessoas com deficiência, negros e indígenas no Programa de Pós-Graduação em Direito da
própria universidade, o que foi feito em 2005, ou seja, quatro anos antes. Destaque-se que várias foram
as iniciativas de coletivos políticos (através de diversas gestões, além de reivindicações que se transfor-
maram em processos administrativos), notadamente dos indígenas, para a implementação de políticas
afirmativas na universidade (Beltrão & Cunha, 2011).

136
“Um curso que fale da nossa história”: relatos discentes sobre o curso de
Etnodesenvolvimento
Em 2010, ainda realizando trabalho de campo para o doutorado, acompanhei
o interesse de algumas lideranças de Altamira pelo edital, então recém aberto,
acerca do curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento, a ser
oferecido no campus de Altamira da Universidade Federal do Pará. Conforme
observava, o processo seletivo mobilizava muitas lideranças, embora não se
soubesse ao certo sobre o que trataria o curso. A oportunidade de “fazer uma
faculdade” era o que mais as animava, sobretudo porque, segundo o edital, o
processo seletivo diferenciado as dispensaria do “vestibular universal”.
O curso surge inicialmente como uma demanda do movimento indígena para
mitigar o grave problema do ensino nas aldeias indígenas. Contudo, durante o
processo de discussão, ele foi ampliado para receber integrantes de outros povos
e comunidades tradicionais, o que revela o conhecimento e o compromisso dos
seus idealizadores com a sociodiversidade, marca da região onde o curso está
sediado. Indígenas, agricultores, ribeirinhos, quilombolas, pescadores e extra-
tivistas teriam suas trajetórias marcadas por uma mesma privação e ela perpas-
saria suas identidades: a “luta pela terra”, para a qual a formação universitária
pode ser grande aliada.
No curso de Etnodesenvolvimento, as identidades são mais do que signos
que conferem sentido à vivência dos alunos, elas são atuantes nas dinâmicas que
se estabelecem dentro e fora da sala de aula. Como não são raras as ocasiões
do curso em que as identidades dos estudantes tornam-se critério para a forma-
ção de grupos para alguma atividade, não é difícil supor que algumas vezes as
identidades específicas se sobreponham à identidade de discente, ocasionando
conflitos. Conforme relato de um dos professores, a resistência dos indígenas
em aceitarem que o curso também se destinasse a agricultores foi uma das difi-
culdades enfrentadas na etapa de planejamento. Neste caso, os conflitos históri-
cos entre agricultores e indígenas, que não raramente chegavam ao assassinato e
à dizimação de integrantes dos dois lados do conflito, mostrava-se indelével na
memória daqueles indígenas que afirmavam a impossibilidade de compartilha-
rem com os agricultores uma mesma sala de aula (Oliveira, 2014: 305).

137
Por outro lado, a despeito das especificidades que particularizam, o compar-
tilhamento das experiências, sobretudo fruto das atividades que ocorreram em
sala de aula, permitiu que os próprios estudantes enxergassem pontos em co-
mum em suas trajetórias e, assim, atribuíssem significado às suas dificuldades,
às suas trajetórias e às suas “lutas”. Nélia, discente do curso e indígena da etnia
Xipaia, assim aborda este tema:
“quando a gente entrou aqui no Etno e a gente ia contar a vida da gente ... Ah, profes-
sora. Pra senhora ver, assim, eu achava que só eu um dia tinha comido farinha com
água, pirão de farinha, né? Eu achava assim que só eu tinha brincado com bonequinha
de sabugo, bonequinha de milho. E, de repente, as meninas do Marajó [quilombolas]
falaram que comeram pirão de água ... de farinha com água e peixe seco, peixe assado.
Falava ‘meu Deus, parece que é a minha vida que eles tão contando!’ Elas contaram
também da poranga... a senhora sabe o que é poranga? Pois a gente segurava aquela
poranga pro pai pescar à noite, ele ia flechar e aí ele levava a gente, levava nós os filho
tudinho: ‘Bora, bora pescar’. Porque onde a gente morava a gente saía na beira do rio
assim de pedral. Aquilo ali pra gente era tão bom, professora” (Entrevista com Fran-
cinélia de Paula, Altamira, 2012, inserções minhas).

É neste sentido que o Curso é visto pelos discentes como atento às suas ne-
cessidades. Um “curso voltado para nós” concordam os entrevistados Evaíde,
Josélia, Everaldo, Francinélia, Assenpção, Elianete e Elieide. Ou seja, agricul-
tores, indígena e quilombolas concordam a respeito de que o curso universitário
propicia mais do que o aprendizado de conteúdo acadêmico: ele fortalece suas
identidades e, desta maneira, fortalece também os movimentos sociais.
Ainda que nem todos os alunos que entrevistei tenham apresentado como
parte de seus projetos de futuro conseguir um emprego, todos sinalizaram para
o desejo de participar da gestão de suas comunidades, seja no manejo dos re-
cursos naturais, seja na participação na reivindicação ou implementação de
políticas públicas, notadamente as de educação. Josélia e Everaldo, em nossa
entrevista, salientaram o “peso” da nova identidade que passam a portar, no
momento em que aliam a identidade de agricultores à de estudantes da Univer-
sidade Federal do Pará e assim sentem-se mais fortes – porque “embasados” – e
dispostos para a “luta” que tão bem conhecem. É Josélia quem diz as palavras:
“é por isso que nós acreditamos que esse curso universitário nos fortalece também
enquanto movimento social. Porque os conhecimentos aumentam. Tu sai desse curso
capaz de debater com qualquer órgão, com qualquer setor que venha a intervir na sua
comunidade. É na base do conhecimento científico que a gente passa a dialogar, então
nosso argumento ganha muito mais peso. Eu percebi isso na prática recentemente,
138
quando a gente fechou a Transamazônica. A gente foi muito pressionado pela Polícia
Rodoviária Federal, eles chegavam e diziam pra gente ‘Olha, vocês tem que ir por aqui,
porque a lei manda’ e nós respondíamos ‘Não. A gente tem conhecimento de tudo isso
que você está dizendo aí!’ Aí eles se calavam, né? Porque nós tínhamos o embasamen-
to” (Entrevista com Josélia Amorim, Altamira, agosto de 2012).

Embora o “sonho” de querer ingressar na universidade já existisse previa-


mente à entrada no curso de Etnodesenvolvimento, embora o sonho da “conti-
nuidade dos estudos” tenha levado alguns deles a pagar faculdades privadas ou
a tentar vestibulares regulares, o curso que finalmente escolheram é visto como
uma oportunidade que permite aprofundar o conhecimento sobre si mesmos,
suas histórias, o passado, o presente e o futuro de suas comunidades. É por in-
termédio deste curso que os discentes consideram que será possível reescrever
suas histórias e as histórias de suas comunidades com suas próprias canetas,
longe dos estereótipos que afetam integrantes de povos e comunidades tradi-
cionais que insistem em associá-los a estigmas como “atraso”, “primitivismo” e
outros. O “estar na faculdade” concretiza sonhos de toda uma vida: é o sonho da
continuidade dos estudos, o de ter uma profissão, de ajudar suas comunidades,
de fortalecer seus movimentos sociais, de dar exemplo para os filhos e orgulho
para os pais. A emoção que quase sempre se converte em lágrimas durante a
narrativa dos alunos revela o significado que atribuem ao curso universitário e a
importância que destinam a ele em suas vidas.
As dificuldades para permanecerem no curso, contudo, não são poucas.
Os estudantes narraram dificuldades de muitas ordens: financeiras, afetivas e
acadêmicas, mas estas últimas, os estudantes afirmam estarem-nas superando
aos poucos, com a ajuda dos professores, dos colegas e com muita determina-
ção. Ter que escolher entre “um sabonete” ou a “apostila”, como me foi dito
por uma das entrevistadas, é parte da realidade daquelas que “insistem” em
estudar mesmo quando a subsistência é comprometida, ou quando tem que
deixar os filhos ainda pequenos chorando em casa, ou ainda quando tem que
acordar às quatro da manhã para deixar o almoço pronto antes de sair, pegar a
moto e dirigir nela, gastando combustível, até Altamira. No caso daqueles que
trabalham na agricultura, depois de todo o período em que passam na univer-
sidade, duas vezes por ano, é preciso fazer a roça toda novamente, pois aquela
anterior, privada de cuidados, já morreu.
139
Por outro lado, se hoje estes estudantes cursam o Ensino Superior é porque
investiram em sua educação não só agora, mas desde sempre. Infelizmente,
como vimos no tópico anterior, em muitas regiões da Amazônia, estudar é algo
que requer bastante esforço. Ivaíde Rodrigues dos Santos, agricultor e discente
do curso de Etnodesenvolvimento, conta um pouco sobre sua experiência edu-
cacional prévia à entrada na universidade:
“na localidade [zona rural de Uruará], fui o primeiro jovem a concluir o Ensino Fun-
damental na modalidade supletivo. Para concluí-lo foi necessário deslocar-me 70 km
até a cidade de Uruará (20 dos quais precisavam ser percorridos a pé) para realizar 72
provas distribuídas nas disciplinas (Matemática, História, Geografia, Ciências, Portu-
guês)” (Santos, 2014: 325; inserções minhas).

No caso de Josélia, entrevistada em agosto de 2012, suas memórias alcançam


o período em que era preciso “repetir de ano” várias vezes para permanecer na
escola, já que a educação oferecida na região se encerrava ao final da antiga 4a sé-
rie primária. Os professores, sensíveis às limitações do ensino nas comunidades,
não apenas permitiam que os alunos continuassem na escola, como também os
estimulavam a ajudar os colegas mais novos que dividiam a mesma sala de aula.
Embora, como vimos, a região da Transamazônica seja formada por migran-
tes vindos de várias regiões do país, com destaque para as regiões Nordeste e
Sul, além de indígenas de mais de dez etnias diferentes, quilombolas e ribeiri-
nhos, as escolas jamais estiveram preparadas para trabalhar com essa diversida-
de. Neste sentido, foi parte das lembranças dos universitários entrevistados, e
agora faz parte do conjunto de questões que eles pretendem modificar, a quase
absoluta desconexão entre conteúdos transmitidos em sala de aula e a realidade
que circundava esta mesma sala de aula. A exclusão social de alunos e alunas
que apresentam suas especialidades, em seus corpos, na sua fala e em seus com-
portamentos, não deixa de ser consequência, ainda que indireta, da omissão da
escola no fortalecimento das identidades. Vejamos como a manutenção de uma
identidade diferenciada pode tornar ainda mais custoso o processo educacional.
Nas palavras de Nélia:
“na escola nós éramos as indinhas, porque nós andávamos todas juntas, de mãos da-
das, porque nós tínhamos medo. Nosso cabelo era cortado reto na frente. A gente tinha
medo de tudo. Não é fácil vir para a cidade grande – porque Altamira para a gente
era uma cidade grande – tendo saído de um local onde a gente banhava nua no rio, de
onde a gente podia andar por qualquer lugar. Nós íamos no rio pegar um peixe e, de

140
repente, chegamos num local em que tínhamos que nos vestir, tinha que calçar uma
sandália, tinha que pentear o cabelo, tinha que dizer ‘não, senhor, sim, senhor!’ Foi uma
mudança muito radical. E a gente conseguiu passar por tudo isso porque lá em casa,
tanto os irmãos quanto as irmãs, nós somos muito determinados no que a gente quer. E
o sofrimento da minha mãe fez com que nós fôssemos seguindo e ficássemos na escola.
A gente sempre falava pra mãe: ‘a gente vai estudar porque não queremos passar por
isso’” (Entrevista com Nélia, Altamira, agosto de 2012).

Quando pensam sobre a educação, tema caro às suas trajetórias e às suas comu-
nidades, os docentes do curso de Etnodesenvolvimento não se resumem a apre-
sentar suas críticas, mas oferecem propostas e encaminhamentos. Neste sentido,
as reflexões de alguns dos alunos a respeito da educação em suas comunidades
criticam a falta de estrutura das escolas, o descompromisso de alguns dos seus
profissionais, o descumprimento da legislação em vigor, mas, sobretudo, revelam
a disposição para contribuir com o processo de transformação da escola em um
espaço de troca e intercâmbio de conhecimentos onde não apenas o professor seja
o detentor do saber, mas os alunos sintam-se também ouvidos e engajados, os
familiares sejam convidados a compartilhar suas histórias, os integrantes idosos
possam falar da construção social e histórica da comunidade etc (Guimarães &
Souza, 2014; Santos, 2014). Neste sentido, é impossível não notar que a proposta
dos alunos vai precisamente no sentido de levar para o ambiente educacional de
sua comunidade os mesmos princípios éticos, pedagógicos e políticos que nor-
teiam o curso universitário no qual eles são discentes, este curso que, “falando de
suas histórias”, fortalece suas identidades individuais e coletivas.

Mobilizações, mobilidades e modificações: perspectivas finais


Em fevereiro de 2014 retornei novamente a Altamira, por ocasião de um con-
vite para participar do II Seminário Etnodesenvolvimento: Formação Universi-
tária e Prática Profissional para Povos e Comunidades Tradicionais. O evento
esteve organizado em torno de quatro mesas, incorporando a participação de
representantes de movimentos sociais e de órgãos do governo, dos docentes
do curso e de outras universidades, e notadamente, dos próprios discentes, que
mais uma vez se organizaram em torno de suas “pertenças”, isto é, suas identi-
dade étnicas/coletivas para falarem em nome daqueles que representam.
Atualmente, aproxima-se a formatura dos alunos junto aos quais pesquisei dois
anos antes. Desta maneira, aquelas lideranças com as quais convivi em 2012, es-
141
tão prestes a se formar e já utilizam a categoria “Etnogestor” ou “Agentes de
Etnodesenvolvimento” para referir-se a eles mesmos, que então abandonarão
a identidade da qual tanto se orgulham de “estudantes universitários”. Estes
alunos que acompanhei em 2012, falaram perante não apenas aos próprios pa-
res, aos docentes e integrantes dos movimentos sociais e de órgãos do governo:
eles falaram também para os novos alunos que ingressaram em 2013 no mesmo
curso que eles. Alguns, em conversa informal, explicitaram o sentimento de
“responsabilidade” relativa a esta nova posição, a de “veteranos”.
A mesa “Nós estudantes, o que vivenciamos do Curso de Etnodesenvol-
vimento” foi então composta por discentes, das turmas de 2010 e 2013, que
representavam os coletivos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas,
movimento negro, agricultores familiares e Movimento dos Atingidos por Bar-
ragens. A fala de uma das integrantes, Elianete Guimarães, representando os
quilombolas, foi uma das mais comentadas desta mesa. O relato da discente é,
de fato, revelador do caminhar destes alunos, ou seja, do processo de mudanças
catalisadas pelo conhecimento adquirido na universidade que se reverte não
apenas em transformações individuais, como também, sociais. Neste sentido,
Elianete relata que sete dos dez estudantes quilombolas, antes mesmo de se
formarem, estão atuando em órgãos públicos do próprio município onde vivem.
As quatro estudantes que tinham formação prévia em magistério foram então
contratadas pela prefeitura e agora fazem parte da área que consideram como a
mais decisiva no que tange ao futuro das gerações, que é como compreendem
a educação.
Os dados que se produziram acerca do curso são ilustrativos. Deles consta
que o percentual de evasão dos alunos do Etnodesenvolvimento é em torno de
cinco vezes menor do que o dos estudantes universitários da universidade de
modo geral. Embora dados como estes expressem em números o esforço dos
docentes para a permanência de seus alunos no curso, a vitória dos discentes ao
ultrapassarem todas as dificuldades, estes dados indicam que, de fato, o curso
faz sentido para os alunos. Tendo-se em mente que alguns alunos submete-
ram-se ao processo seletivo não sabendo exatamente sobre o era o curso – Em
que sairiam formados? Quais os conteúdos que seriam abordados em sala de
aula? Conseguiriam acompanhar o ritmo de estudos? – é significativo que estes
142
estudantes tenham permanecido e o julguem não como um curso universitário
qualquer, mas um que os fortalece enquanto integrantes de povos e comunida-
des tradicionais, fortalecendo assim os movimentos sociais dos quais fazem parte.
Atualmente, os discentes revelam não apenas saber responder aos questionamentos
sobre o curso, como sabem qual a inserção no mercado de trabalho que podem e
querem ter.
Como o curso universitário que agora estão em vias de concluir era o sonho dis-
tante de ontem, muitos estudantes pensam em seguir ainda mais com seus estudos:
cursar um mestrado, cursar uma especialização ou uma pós-graduação são expressões
por mim ouvidas durante o Seminário, em fevereiro de 2014. Uma dessas estudantes,
Elianete, pensa em fazer mestrado na França, mas não qualquer mestrado: “um que
fale da minha história, que me ajude a falar sobre a minha história de verdade, em
qualquer lugar que eu vá. E que fale da história das pessoas que vivem ao meu redor”.

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144
Etnodesenvolvimento & Arqueologia: experiências de ensino,
pesquisa e extensão com povos e comunidades tradicionais da região
da Transamazônica e do Xingu

Eliane da Silva Sousa Faria1


Introdução
O objetivo do trabalho é relatar as experiências de ensino, pesquisa e ex-
tensão, ligadas à área de Arqueologia, vivenciadas na prática do Curso de Et-
nodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará (UFPA) com povos e co-
munidades tradicionais da região da Transamazônica e Xingu. As experiências
relatadas no texto foram vivenciadas em disciplinas de Arqueologia por mim
ministradas, em oficinas de extensão, projetos de pesquisa e em visitas monito-
radas ao Laboratório de Arqueologia Rio Xingu.
Considerando a prática, o trabalho pretende analisar o processo de intera-
ção de povos e comunidades tradicionais com seus patrimônios, em especial
o arqueológico, e a importância da troca de conhecimento entre os saberes
tradicionais e universitários para a valorização da cultura local, do presente e
do passado, e para produção de novos conhecimentos a respeito do patrimônio
local.
No primeiro tópico é abordado o que é o Curso de Etnodesenvolvimen-
to, nossa metodologia de trabalho e nossa relação com as comunidades de
origem dos discentes. Em seguida faço o relato dos projetos de extensão
relacionados a área de Arqueologia. Dos trabalhos mencionados, dois foram
concluídos e os outros dois estão em andamento. Também, relato as expe-
riências vivenciadas durante as aulas da disciplina Arqueologia e História
da Amazônia I e II, na qual foi discutido, entre outros temas, a visão de
povos e comunidades tradicionais acerca dos vestígios arqueológicos. Fi-
nalizo o texto com uma discussão acerca da descolonização da Arqueologia
e da relação entre arqueólogos e comunidades locais, a partir do projeto de
pesquisa que desenvolvo no Bairro Independente II, onde fica localizado o
sítio arqueológico Praia do Pepino e onde moram várias famílias das etnias
Xipaia e Kuruaya.
1
Arqueóloga, docente junto a Faculdade de Etnodiversidade no Campus de Altamira da UFPA, douto-
randa junto ao PPGA/UFPA. Contato: sousa.eliane@gmail.com.

145
O Curso de Etnodesenvolvimento e as práticas extensionistas
O Curso de Etnodesenvolvimento foi criado para atender a demanda de
povos e comunidades tradicionais e movimentos sociais. O objetivo do Cur-
so é formar profissionais aptos a trabalhar em suas comunidades de perten-
ça, intervindo nas instâncias internas e externas existentes junto ao grupo de
pertença, assim como no processo de elaboração de projetos de intervenção
que possam beneficiar suas comunidades. Atualmente, o Curso é formado
por estudantes das seguintes pertenças: indígenas, quilombolas, ribeirinhos,
agricultores familiares, pescadores extrativistas e movimento social (Movi-
mento Negro de Altamira e Movimento dos Atingidos por Barragens).
A metodologia de trabalho utilizada no Curso é baseada na Pedagogia
da Alternância, em que há o período do Tempo-Universidade, sempre em
regime intervalar (janeiro e fevereiro; julho e agosto), no qual os discentes
participam das disciplinas curriculares, e o período do Tempo-Comunidade,
no qual os discentes retornam aos grupos de pertença para realizar ativida-
des previamente planejadas de pesquisa, extensão e ensino, e que são moni-
toradas pelos docentes.
O percurso curricular estrutura as disciplinas a partir do eixo central da
Diversidade Cultural, dividido em sete núcleos de disciplinas: Sistemas de
Saúde; Educação; Direitos Humanos; Sociedade e Meio Ambiente; Desen-
volvimento e Sustentabilidade; Identidade, Nação e Território; Linguagens
Étnicas; Atividade Complementar. As aulas são interdisplinares e contam,
na maioria das vezes, com mais de um docente, de diferentes áreas do co-
nhecimento. A partir das realidades e das vivências dos discentes, são dis-
cutidos temas das disciplinas aliando o conhecimento tradicional ao conhe-
cimento científico.
O envolvimento das comunidades nas atividades do Curso se dá na forma
de projetos de extensão que consistem em oficinas de caráter interdiscipli-
nar, que tem como tema central a Arqueologia e sua relação com os patri-
mônios, a Diversidade e os Direitos Humanos. Para garantir o caráter inter-
disciplinar das atividades, todos os professores participam das atividades de
extensão, cada um contribuindo a partir de sua área de atuação.
146
Os projetos de extensão
Serão relatados os projetos de extensão relacionados à área de Arqueologia,
porém, os discentes de outras áreas do conhecimento, tais como Direitos Huma-
nos, Antropologia, Saúde e Educação também atuam em projetos de extensão.
Da criação do Curso até o momento formam realizados quatro projetos de ex-
tensão na área de Arqueologia, os quais contaram com a participação de todos
os discentes do Curso, assim como a participação de estudantes na condição de
bolsistas ou voluntários.

Arqueologia e educação patrimonial


O primeiro projeto foi realizado em 2011, a partir de uma parceria entre os
professores do Curso e o projeto “Arqueologia e Educação Patrimonial na BR
230”, coordenado pela arqueóloga Denise P. Schaan, do Programa de Pós-Gradu-
ação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA). O referi-
do projeto tinha por objetivo realizar atividades de escavação ao longo da rodovia
conhecida por Transamazônica. Concomitantemente as atividades de escavação
dos sítios arqueológicos, eram realizadas oficinas de Educação Patrimonial a par-
tir das temáticas: Arqueologia, Patrimônio, Diversidade e Direitos Humanos. As
oficinas eram ministradas por nós, professores do Curso, e por profissionais con-
vidados. Tinham por público alvo professores das escolas estaduais e municipais.
Além das oficinas, os participantes participavam de visitas monitoradas aos sítios
arqueológicos da região e podiam vivenciar, na prática, o trabalho do arqueólogo.
Para tanto, o referido projeto objetivava promover o diálogo com povos e co-
munidades tradicionais e a Universidade a partir de três linhas de ação que o com-
põem: a) Educação e Patrimônio; b) Educação e Direitos Humanos; e, c) Educa-
ção e Diversidade. Todas as linhas dialogando com a Arqueologia e se integrando
e interagindo com atividades de ensino e pesquisa ofertadas, necessárias para a
formação de profissional capaz de intervir na realidade e produzir estratégias para
superação de problemas, conforme o Projeto Pedagógico do Curso (PPC).
As oficinas de Arqueologia objetivavam refletir com professores e comu-
nidade em geral acerca das perspectivas e os desafios da preservação do patri-
147
mônio cultural do Brasil, assim como, discutir os conceitos de Arqueologia,
Patrimônio e Educação Patrimonial.
Nas oficinas de Arqueologia e Patrimônio eram discutidos: o que é Arqueo-
logia; o objeto de estudo da Arqueologia; para que serve a Arqueologia e quais
seus objetivos; quais os procedimentos de escavação arqueológicos; e, a pro-
fissão de arqueólogo. Também eram debatidos os conceitos de Patrimônio e
Educação Patrimonial, as leis de preservação do patrimônio; as perspectivas do
patrimônio em nosso país; patrimônio individual e patrimônio coletivo; patri-
mônio e diversidade; Patrimônio Arqueológico; Patrimônio Cultural Imaterial;
Memória e preservação; as perspectivas e impasses da educação patrimonial no
Brasil; o uso do patrimônio cultural no processo educacional.
No início da oficina cada um dos participantes era indagado a respeito do que
considerava patrimônio. As respostas obtidas, as quais diziam respeito a bens
individuais como: casa, família, estudos etc., possibilitavam a desconstrução
da ideia de patrimônio relacionada apenas a arquiteturas monumentais, como a
imagem do Cristo Redentor, as pirâmides do Egito e igrejas barrocas. A partir
das respostas era possível discutir patrimônio como algo significativo tanto in-
dividualmente (patrimônio individual) quanto coletivamente (patrimônio cole-
tivo), mostrando que sua visão como algo alheio contrasta com o empenho das
comunidades em preservar o que consideram seu patrimônio, ou seja, a cultura
local, a religiosidade, os saberes transmitidos por seus pais e avós.
De modo geral, a partir do que os participantes relatavam como sendo seu
patrimônio, foi possível discutir os conceitos de patrimônio individual e patri-
mônio coletivo, patrimônio material e patrimônio imaterial. Após uma abor-
dagem de patrimônio de forma mais geral direcionava-se a discussão para a
Arqueologia, procurando mostrar as particularidades desse tipo de patrimônio
na região Amazônica.
Os participantes eram indagados sobre o que era Arqueologia, qual seu ob-
jeto de estudo e quais seus objetivos. Nas respostas era possível verificar que a
visão que predominava era a ideia de Arqueologia como a ciência que estuda o
passado e, portanto, algo longe da realidade deles, e sem relação alguma com
suas vidas. Porém, quando perguntados se eles já haviam encontrado “potes de
barro de índio” e machados feitos de pedra, surgiram numerosos exemplos a
148
respeito desses vestígios arqueológicos. Os participantes expunham como e em
quais circunstâncias encontraram os vestígios, e as resignificações dadas a esses
artefatos. Os relatos possibilitavam mostrar que a Arqueologia não era algo dis-
tante da realidade deles, mas sim muito presente.
Dessa forma, o conceito de Arqueologia como o estudo de coisas “velhas”
foi substituído pela ideia de Arqueologia como a ciência que estuda as relações
sociais e as transformações nas sociedades, e que, de acordo com o arqueólogo
Pedro Paulo Funari (2003), estuda a totalidade material apropriada pelas socie-
dades humanas, como parte de uma cultura material e imaterial sem limitação
de caráter cronológico.
Em seguida, partindo da exposição de imagens de vários tipos de sítios ar-
queológicos, os participantes eram indagados a respeito de quais tipos de sítios
eles já haviam identificado em seu município. Para finalizar as oficinas era feita
a relação entre os conceitos de patrimônio e memoria, procurando mostrar a
ligação entre memória e identidade social, no âmbito das histórias de vida dos
participantes, identificando acontecimentos, personagens e lugares dos quais
essa memória se constitui.
Além das oficinas, o projeto proporcionou a criação do Laboratório de Arque-
ologia Rio Xingu no Campus Universitário de Altamira. A criação do laboratório
foi uma demanda dos povos e comunidades locais, assim como, dos moradores
da região da Transamazônica e Xingu de maneira geral, pois para esses povos era
importante que o material arqueológico se encontrasse na região e continuasse no
local para que tivessem acesso ao material arqueológico coletados.

Visitas monitoradas ao Laboratório de Arqueologia


Como uma consequência das atividades do projeto “Arqueologia e Educação
Patrimonial”, em 2012 começaram as atividades do projeto “Percursos, rotas e
caminhadas: a divulgação do patrimônio Arqueológico a partir da Educação”.
O trabalho, agora em seu terceiro ano de execução, tem por objetivo divulgar
o conhecimento arqueológico nas escolas estaduais, municipais e particulares da
cidade de Altamira, através da realização de visitas monitoradas ao Laboratório
de Arqueologia Rio Xingu, assim como orientar os professores na utilização da
temática Arqueologia e Pré-história em sala de aula enquanto tema transversal,
149
visando à divulgação, preservação e valorização do patrimônio arqueológico da
região da Transamazônica e Xingu, proporcionando o diálogo entre Universida-
de e as escolas do município. A ideia do projeto é tornar as ações educacionais
voltadas para o patrimônio cultural e arqueológico um processo contínuo e sis-
temático para atingir um maior número de estudantes e a comunidade em geral.
Desta forma, a continuação do projeto buscou empreender ações educativas,
e a instrumentalização dos professores para trabalhar a temática Arqueologia
e Patrimônio em sala de aula, discutindo com os alunos e comunidades lo-
cais a respeito da importância da Arqueologia regional, suscitando processos
de valoração e preservação desse patrimônio enquanto práticas de educação e
cidadania, assim como despertar o interesse dos estudantes, a partir do contato
com a cultura material encontrada nos sítios arqueológicos da região do Xingu
e Transamazônica em exposição no Laboratório, para que possam conhecer e
valorizar a história pré-colonial de sua região.
O trabalho tem como foco a interação entre as sociedades locais e seus patri-
mônios, com ênfase no patrimônio arqueológico, buscando um processo ativo
de troca de conhecimentos, entre a Universidade, estudantes e professores, para
a valorização da cultura local, do presente e do passado e produção de novos
conhecimentos a respeito do patrimônio local.
Parte-se do pressuposto de Maria de Lourdes Parreiras Horta et al. (1999),
de que a:
“Educação Patrimonial é um processo permanente e sistemático de trabalho educa-
cional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enri-
quecimento individual e coletivo. O conhecimento crítico e a apropriação consciente
por parte das comunidades e indivíduos do seu patrimônio são fatores indispensáveis
no processo de preservação sustentável desses bens, assim como o fortalecimento dos
sentimentos de identidade e cidadania” (1999: 01).

Dessa forma, acreditamos que não se pode conceber uma educação desasso-
ciada da ideia de cultura e patrimônio. Defendemos a ideia de que a metodologia
a ser empregada na Educação Patrimonial depende do contexto e da realidade
local. O processo de construção de uma postura crítica frente ao patrimônio e a
identificação com o mesmo não é construída com ações eventuais ou discursos
isolados. O processo de significação ou atribuição de valor sobre a produção
cultural de uma comunidade implica um trabalho contínuo e sistemático. Deve
150
ser levada em conta a importância da instrumentalização da comunidade em
geral e dos professores para a transformação da postura frente ao patrimônio.
Os projetos e ações precisam ser resultado de uma construção coletiva e par-
ticipativa. Não se trata de construir um projeto de instrumentalização para pro-
fessores, mas com os professores e a comunidade. Partindo dos pressupostos
acima mencionados, intentamos realizar com os professores e as comunidades
de Altamira ações educativas de caráter permanente, na divulgação, na valori-
zação e na preservação dos artefatos arqueológicos, escavados e coletados em
Altamira e municípios vizinhos, tais como: Anapú, Brasil Novo, Medicilândia,
os quais encontram-se em uma exposição permanente no Laboratório de Arque-
ologia Rio Xingu.
O Laboratório também abriga o material coletado no sítio arqueológico “Praia
do Pepino”, o qual encontra-se em processo de análise para gerar conhecimento
científico a respeito da ocupação pré-colonial da região da Transamazônica e
Xingu. Dessa maneira, os alunos em visita ao laboratório podem presenciar de
forma prática como é o trabalho de análise desenvolvido pelo arqueólogo em
laboratório, assim como receber informações a respeito da coleta do material
em campo. A preparação da visita é feita em etapas. Primeiramente, a equipe do
projeto entra em contato com as secretarias de educação do município para a di-
vulgação do projeto nas escolas, em seguida os professores interessados entram
em contato com os membros do projeto para agendar as visitas.
Porém, antes da visita propriamente dita, os professores são orientados de
como devem promover um diálogo entre o conteúdo programático que estão
ministrando em sala de aula e a discussão sobre Arqueologia e patrimônio que
presenciarão na visita ao Laboratório. Durante a visita são mostradas aos alunos
as etapas do trabalho do arqueólogo em campo e em laboratório. A importância
da cultura material está no entendimento das populações que habitaram a região
no passado e na preservação do patrimônio arqueológico para que as gerações
futuras possam conhecer a história dos povos indígenas que viveram na região
antes do processo de invasão do território brasileiro.
O projeto encontra-se em seu terceiro ano de atividade e continua a perseguir
a ideia de ser um processo permanente de acompanhamento aos professores
e alunos nas escolas a partir de oficinas e palestras sobre Arqueologia. Além
151
do público escolar, o Laboratório é aberto para povos indígenas, comunidades
tradicionais e comunidade geral, visando proporcionar o diálogo entre o saber
acadêmico e os saberes tradicionais e locais.
Os professores, participantes do projeto, em geral ministram as disciplinas
Educação Artística, História, Letras e Geografia. A escolaridade dos alunos va-
ria entre o sexto e nono ano.
Em relação às visitas, os estudantes sentem-se a vontade no ambiente do
laboratório, observando os artefatos arqueológicos em exposição onde é dis-
corrido sobre Arqueologia e ocupação pré-colonial de Altamira, assim como a
importância de preservação do patrimônio, da memória e das histórias locais.
As visitas têm por objetivo complementar o conteúdo programático estudado
nas aulas. De maneira geral, os estudantes se mostram bastante entusiasmados
em conhecer a história pré-colonial da região a partir dos artefatos arqueológi-
cos, fazendo muitas perguntas sobre o assunto, as mais frequentes são: foram
encontrados dinossauros nas escavações? Quais os instrumentos utilizados nas
escavações? Como são lavados e conservados os artefatos? Qual a idade dos
artefatos expostos no laboratório? Onde as peças são encontradas?
A partir dos questionamentos dos estudantes e visitantes são feitas as ex-
plicações a respeito das etapas do trabalho do arqueólogo, da diferença entre a
Arqueologia e as demais ciências, em especial a Paleontologia, e sobre a impor-
tância da preservação e valorização dos artefatos arqueológicos.
Nós, docentes e discentes do Curso, sentimo-nos muito gratificados em per-
ceber que o projeto está despertando o interesse das pessoas em conhecer a his-
tória pré-colonial da região a partir da Arqueologia. Acreditamos no pressupos-
to de Bezerra (2006) de que educação, cultura e patrimônio estão amalgamados.
Dessa forma, não se pode conceber uma educação desassociada da ideia de
cultura e patrimônio. Assim, reforçamos a importância da instrumentalização
da comunidade em geral e dos professores para a transformação da postura
frente ao patrimônio cultural e arqueológico, enfatizando a necessidade de en-
volver e responsabilizar a comunidade nas ações preservacionistas relacionadas
ao patrimônio local.
As visitas monitoradas, a partir do estímulo ao uso da temática Arqueologia
e Patrimônio em sala de aula, conseguiram despertar a atenção da comunidade
152
escolar para a importância da preservação e valorização do patrimônio arqueo-
lógico e para o conhecimento da história da região do Xingu e Transamazônica.

Arqueologia, Diversidade e Direitos Humanos na Transamazônica


O projeto “Arqueologia, Diversidade e Direitos Humanos na Tansamazôni-
ca”, executado em 2013, tinha por objetivo realizar atividades interdisciplinares
com professores das escolas estaduais e municipais de Medicilândia, para in-
centivar ações educacionais de preservação do patrimônio cultural e arqueoló-
gico, entendendo a diversidade e os direitos como patrimônios que precisam ser
valorizados.
A metodologia utilizada consistiu na realização de oficinas, com os profes-
sores da rede municipal de Medicilândia, a partir de uma perspectiva interdisci-
plinar, divididas em seis módulos, envolvendo as áreas de Arqueologia, Antro-
pologia, Direito e Educação.
As atividades do projeto foram divididas em três módulos: No primeiro mó-
dulo, intitulado “Arqueologia e Patrimônio”, foram discutidos os conceitos de
Arqueologia e Patrimônio, tendo por objetivo refletir com os professores e a
comunidade em geral acerca das perspectivas e os desafios da preservação do
Patrimônio Cultural do Brasil. No segundo módulo, os professores realizaram
uma visita monitorada a um sítio arqueológico da região da transamazônica; No
terceiro módulo realizou-se a oficina “Diversidade Cultural e Patrimônio”, a
qual tinha por objetivo discutir acerca da diversidade e sua relação com a edu-
cação ou o universo escolar, foco de nossas ações, com vistas à percepção das
diferenças existentes nesse espaço como fruto da diversidade que nos circunda,
No ultimo módulo, os professores participantes das oficinas elaboraram mate-
rial didático sobre o tema Patrimônio, discutindo a temática na perspectiva da
Arqueologia, Diversidade Cultural e dos Direitos.
Os professores se propuseram a trabalhar os seguintes temas em sala de aula
com seus alunos: a) “A cultura do povo Arara” - se propõe a trabalhar aspectos
da cultura do povo Arara, com atenção especial a atividade de pesca; b) Diver-
sidade cultural indígena dos artefatos encontrados nos sítios arqueológicos; c)
Povos do passado: cerâmica e lítico –discussão dos conhecimentos arqueológi-
cos, conceito de arqueologia, demonstração de objetos e produção de desenhos
153
sobre os mesmos; e, d) Desconstruindo os estereótipos e preconceitos dos livros
didáticos em relação aos povos indígenas.
A partir das atividades e do material produzido pelos participantes durante
as mesmas foi possível verificar uma mudança na maneira de perceber os povos
indígenas, pois no início das oficinas os professores participantes das oficinas
referiam-se aos povos indígenas de maneira genérica, sem considerar as espe-
cificidades de cada povo e sua diversidade cultural. As discussões também pro-
curaram desconstruir a visão preconceituosa construída acerca dos povos indí-
genas no Brasil que são ora entendidos como “bons selvagens”, “protetores da
natureza”, ora como “maus selvagens”, aqueles que “atravancam o progresso”
e são um “empecilho” para o “desenvolvimento”, apontando principalmente
para a necessidade de compreensão das culturas como específicas e dinâmicas.
Outra questão discutida foi sobre a inadequação da realização de trabalhos
nas escolas que reforçam o estereótipo do “índio genérico”, quase sempre tra-
tado de forma folclorizada, com atributos gerais que não consideram o fato dos
indígenas serem parte do presente, serem diferentes da sociedade nacional e
entre si e possuírem atributos que os identificam e os diferenciam entre si, com
histórias próprias e particulares de lutas e resistências. Enfatizou-se a necessi-
dade de conhecer e trabalhar a partir do indígena real.

Ensino de Arqueologia para povos e comunidades tradicionais


As experiências aqui relatadas foram vivenciadas nas disciplinas Arqueo-
logia e História da Amazônia I e II, por mim ministradas para a turma 2010,
primeira turma a ingressar no Curso de Etnodesenvolvimento.
As disciplinas de Arqueologia propõem a discussão das tendências atuais
da prática arqueológica, focando em alguns temas essenciais que envolvem a
relação das sociedades tradicionais com o Patrimônio Arqueológico, a gestão
do Patrimônio Arqueológico, Arqueologia e identidade cultural, arqueologia da
resistência escrava negra e arqueologia de quilombos, para que os discentes
possam, refletir acerca da realidade dos seus grupos de pertença e a relação das
comunidades com o patrimônio arqueológico.
Na disciplina Arqueologia e História da Amazônia I, formam discutidos, com
base na vivência dos alunos, o que é Arqueologia e qual a importância da cultura
154
material para a compreensão do modo de vida dos povos pretéritos e do presente.
A discussão de Silva (2002) a respeito da interpretação dos Asurini do Xingu
sobre os vestígios Arqueológicos encontrados no parque indígena Kuatinemu, foi
utilizada para que os discentes, divididos por grupos de pertença, relatassem as
histórias que conheciam acerca dos vestígios arqueológicos em suas comunidades
de origem. Os discentes relataram acerca dos artefatos líticos, “machadinhos de
pedra”, chamados pela população local de pedras de raio. Foi possível verificar
que em todas as comunidades a relação com os vestígios arqueológicos é muito
marcante. Os discentes expuseram que, em algumas comunidades, os “machadi-
nhos” deviam ser mantidos fora de casa, para não atrair raio. Já em outras comu-
nidades os mesmos tinham que ser guardados dentro de casa para afastar os raios.
Os discentes também relataram os muitos usos dados aos artefatos arqueo-
lógicos, entre eles a utilização como encosto de porta e peso de papel, no caso
dos artefatos líticos, das vasilhas cerâmicas utilizadas para guardar objetos de
higiene pessoal, tais como creme e escova dental, para por a galinha para “cho-
car” e como objetos decorativos.
Durante a disciplina, os discentes foram visitar o Laboratório de Arqueologia
e o sítio arqueológico “Fazenda Boa Sorte”. A partir de explicações e da esca-
vação simulada, puderam entender como é a prática do trabalho arqueológico.
Ao final da disciplina, os discentes teriam que ministrar uma aula, pensada para
as suas comunidades de origem, sobre a temática Arqueologia.
Nessa tarefa as equipes foram divididas por grupo de pertença. Os indígenas
escolheram o tema das “Panelas de barro indígenas da Praia do Pepino e as his-
tórias dos indígenas da região”. Os quilombolas escolheram como tema “A arte
Marajoara” e, a partir de aula de bordados, explicaram aos demais colegas os
desenhos encontrados na cerâmica marajoara e seus possíveis significados. Os
agricultores escolheram o tema “Cultura Material e a Transformação dos Obje-
tos ao Longo do Tempo”, para discutir como os objetos podem estar relaciona-
dos às suas identidades. As discentes pertencentes ao movimento negro deram
uma aula a respeito da história da escravidão e da cultura negra utilizando os
artefatos atribuídos aos negros escravizados.
Ao final da disciplina os discentes avaliaram que a Arqueologia está muito
presente em suas comunidades, não se tratando de algo distante e alheio às suas
155
realidades, assim como puderam entender a maneira que a disciplina pode con-
tribuir para garantir seus direitos, no que diz a garantia à defesa e valorização
de seus territórios e identidades.
A disciplina Arqueologia e História da Amazônia II foi uma continuação da
disciplina anterior. Os temas estudados foram: a) Arqueologia de Quilombos:
os quilombolas tomaram, como estudo de caso, as pesquisas arqueológicas no
quilombo de Palmares, o que possibilitou que percebessem que a Arqueologia,
por meio dos estudos dos artefatos, pode contribuir para novas interpretações
sobre as identidades culturais e relações humanas nos quilombos. Baseados no
texto de Funari & Carvalho (2005), os alunos discutiram a realidade de seus
quilombos e fizeram relatos da existência de artefatos relacionados à história da
escravidão, tais como engenhos, correntes, objetos utilizados para tortura etc;
b) Arqueologia e resistência negra: as discentes do movimento negro utilizaram
o texto de Funari & Schiavetto (2005) para debater acerca da história da escra-
vidão, cotidiano e relações sociais dos negros no Brasil, e relacionaram esse
conteúdo com as ações atuais dos negros para a garantia de seus direitos; c) O
patrimônio arqueológico e identidade étnica; O grupo formado por indígenas
discutiu as estratégias de utilização da cultura material para a garantia de terri-
tório e da luta pelo reconhecimento étnico; d) Terra preta arqueológica: tendo
por base os estudos arqueológicos de terra preta (Neves, 2006) os discentes dis-
cutiram acerca dos primórdios do desenvolvimento da agricultura na Amazônia
e as mudanças pelas quais a agricultura vem passando ao longo de milênios de
ocupação da região Amazônica.
Ao final da disciplina foi feito uma atividade de campo intitulada “Para saber
o que o público pensa sobre Arqueologia”. Utilizando a discussão do artigo da
pesquisadora Marília Cury (2006), os discentes deveriam entrevistar moradores
da cidade de Altamira. Os lugares visitados foram: a Feira do Produtor Rural,
o Bairro Independente II, local onde fica o sítio arqueológico Praia do Pepino e
famílias das etnias Xipaya e Kuruaya e casas de pescadores da Orla da cidade.
Antes de irem a campo os estudantes elaboraram um roteiro com as seguin-
tes perguntas: você sabe da existência de sítios na sua cidade? Sabe o que é um
arqueólogo? Sabe de alguma descoberta arqueológica recente? Você já encon-
trou caco de pote enterrado no chão? Ou as machadinhas de pedra? Quem fez
156
ou de onde vieram estas machadinhas ou estes cacos de pote? Você sabe alguma
história sobre este material? Existe indígena morando na cidade de Altamira?
Após o trabalho de campo, os discentes analisaram os dados das entrevistas
e apresentaram suas conclusões a respeito da pesquisa de campo. Os grupos, de
modo geral, chegaram à conclusão de que a Arqueologia está presente na vida
dos moradores de Altamira, não com esse nome, mas de outras maneiras, tais
como em seus quintais, no caso da terra preta arqueológica, em suas casas como
objetos decorativos ou objetos de estimação. Uma das pescadoras entrevistadas
guardava um machadinho de pedra em sua casa como um amuleto de sorte. A
presença da Arqueologia também é verificada nas histórias de pedra de raios e
de assombração, pois, uma das pessoas entrevistadas disse ter medo das “coisas
dos índios”.
Assim, as atividades relacionadas à área de Arqueologia foram muito produ-
tivas e contribuíram para a troca de conhecimento entre os saberes tradicionais
e científicos para a valorização da cultura local, do presente e do passado.

Arqueologia e povos e comunidades locais


Nesse tópico passarei a refletir sobre o contexto social da pesquisa arqueológi-
ca, tendo por estudo de caso o tema do meu projeto de pesquisa, executado pela
UFPA e como pesquisa de doutorado, realizada no âmbito do PPGA, cujo objetivo
é analisar a relação dos indígenas Xipaya e Kuruaya, moradores do Bairro Inde-
pendente II em Altamira-PA, com a cultura material encontrada no sítio arqueoló-
gico “Praia do Pepino”, local onde supostamente teria sido fundado o aldeamento
missionário Tavaquara, o qual teria dado origem à cidade de Altamira. Pretendo
analisar as estratégias indígenas de utilização do material arqueológico para a afir-
mação das identidades étnicas e busca por direito a territórios
Começo a reflexão discutindo a concepção de patrimônio. De acordo com
Ferreira, o patrimônio arqueológico representa a “institucionalização da cultura
material para fins políticos”, uma vez que este pode “servir aos diferentes gru-
pos sociais para criar e valorizar identidades culturais” (2008: 38). De acordo
com o referido autor, o patrimônio ou material arqueológico é manipulado com
o objetivo de vinculá-lo a identidade de uma nação e ao Estado, razão pela qual
o conceito de patrimônio está vinculado ao de nacionalismo, assim como, ao de
157
colonialismo, pois constantemente a cultura material arqueológica é manipula-
da para servir de símbolo de dominação de um Estado sobre vários países.
Bezerra critica o uso da categoria patrimônio, pois para ela, “patrimônio é
um conceito criado nos domínios do Estado-Nação e, como tal, constituí-se de
uma atribuição externa de identificação” (2012: 77). Assim, de acordo com a
autora, a ideia de patrimônio deve ser pensada de forma crítica, pois o conceito
é marcado por uma ênfase na materialidade e na duração no tempo, em con-
traste com as concepções dos povos e comunidades tradicionais, para os quais
os aspectos materiais e simbólicos dos artefatos não estão dissociados, sen-
do a concepção de patrimônio desses povos marcada pela memória e não pela
cronologia. Dessa forma, a autora ressalta a assimetria entre as perspectivas
de patrimônio e enfatiza que não deve haver um embate entre as concepções
científicas e nativas sobre os sítios arqueológicos, mas que as diferentes lógicas
devem ser consideradas em uma dimensão relacional, para que, de acordo com
Smith (2007), possamos conceber o patrimônio como um ponto de negociação.
Dessa forma, podemos pensar o patrimônio arqueológico como um poderoso
símbolo de conflito entre diversas vozes que reclamam a gestão e a legitimidade
das interpretações sobre o patrimônio. Entre estas vozes estão, além do Esta-
do que busca sua soberania, outras “dissonantes”, marginalizadas e silenciadas
que expressam as posições do pós-colonialismo. Entre as vozes marginalizadas
podemos citar os povos indígenas da Amazônia, e, no caso específico de minha
pesquisa, os Xipaya e Kuruaya, os quais, devido à dominação colonial, tiveram
grande parte de seus povos e de suas culturas dizimados.
Ao migrarem para a cidade de Altamira, tais povos foram marginalizados, in-
clusive pelas políticas públicas, representadas por órgãos como a Fundação Na-
cional do Índio (FUNAI) e Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), os quais
não reconheciam os direitos dos indígenas moradores da cidade, pois, segundo
uma visão primordialista de cultura, estes não seriam mais índios, haja vista não
morarem na aldeia e terem perdido traços “essenciais” de sua cultura, como lín-
gua, danças e crenças rituais. Ante tal contexto de marginalização social, os indí-
genas da cidade tiveram como alternativa organizar-se em associações para lutar
por seus direitos. Dessa forma, as associações representam a maneira encontrada
pelos indígenas da cidade para fazerem reivindicações perante o Estado.
158
Para Almeida (2008), a consciência da diferença étnica representa condição
para os povos indígenas estabelecerem relações associativas e afirmarem com-
promissos em torno de uma identidade coletiva. Nesse contexto, a manipulação
de símbolos torna-se um fator vital para alcançar metas políticas e consolidar
os movimentos sociais. Assim, percebo a utilização do imaginário e da cultura
material arqueológica relacionada à missão Tavaquara enquanto símbolo utili-
zado pelos movimentos sociais para afirmar suas identidades étnicas e seus di-
reitos territoriais frente aos órgãos do Estado. Dessa forma, a questão da missão
Tavaquara é uma forma dos movimentos sociais indígenas demostrarem que
os Xipaya e Kuruaya sempre habitaram no bairro Independente II e, portanto,
possuem o direito de ocuparem o local, assim como demonstra o pertencimento
étnico. Nessa perspectiva, de acordo com Glademir dos Santos,
“as comunidades não apenas se dão a conhecer pelos critérios étnicos, inventando sua
tradição, na relação com o passado, a partir dos quais os agentes escolhem critérios cul-
turais, antes adormecidos na memória coletiva atribuindo sentido ao presente” (2008:
71).
Assim, no interior das associações e pela utilização de símbolos de identi-
dade, Xipaya e Kuruaya encontram força para resistir às adversidades da vida
na cidade e lutar por seus direitos, pois, independente de uma real continuidade
histórica entre as populações indígenas atuais e as populações do passado, os
vestígios auxiliam na manutenção de sua identidade étnica (Silva, 2002).
Esse contexto de luta política vivenciada pelos Xipaya e Kuruaya da cidade
de Altamira é o que Gnecco & Hernandez (2008) denominam de processo de
descolonização indígena, e cabe a uma arqueologia reflexiva e comprometida
contribuir para processos como esse em um âmbito mais amplo de descoloni-
zação. Segundo os autores citados, ao negligenciar os significados dados pelos
indígenas à cultura material, e utilizando a cultura material enquanto uma his-
tória nacional, a Arqueologia contribuiu para a alienação de histórias nativas,
cortando os laços entre as sociedades indígenas e contemporâneas. Porém, os
movimentos sociais estão contestando e transformando a história contata do
ponto de vista do colonizador através da ressignificação dos registros materiais,
caso da cultura material relacionada à missão Tavaquara, pois o que antes era
um símbolo da colonização portuguesa por meio das missões religiosas, hoje é
utilizado como símbolo de resistência e identidade étnica e cultura dos Xipaya e
Kuruaya da cidade de Altamira.
159
Assim, a inclusão de outras vozes, de outras visões de mundo, fruto dos
interesses crescentes de atores sociais outrora marginalizados e dos materiais
arqueológicos, que até bem pouco tempo os arqueólogos detinham o mono-
pólio sobre sua interpretação, representa um processo de descolonização do
saber arqueológico. Nesse processo de descolonização da disciplina, o Código
de Ética da Austrália se apresenta muito a frente nessa discussão, uma vez que
“reconhece as abordagens indígenas para a interpretação do patrimônio cultural
e sua conservação” (Australian Archaeological Association, 2011). Contudo,
em alguns países, como o Brasil, essa discussão está apenas engatinhando e
precisa avançar muito no que diz respeito aos direitos dos povos indígenas em
relação ao seu patrimônio cultural.
Para Robrahn-González & Migliacio (2008), durante o “I Seminário In-
ternacional de Gestão do Patrimônio Arqueológico Pan-Americano”, realiza-
do no ano de 2007 pelo Instituto do Patrimônio História e Artístico Nacional
(IPHAN), em Manaus, o desenvolvimento de programas arqueológicos em ter-
ras indígenas tradicionais:
“[n]ecessita se dar dentro da perspectiva da arqueologia colaborativa, com base na
ação compartilhada e no envolvimento pluricultural, não assimétrico ou hierárquico
envolvendo equipes formadas por pesquisadores e representantes indígenas que serão
co-responsáveis pelo Programa como um todo, e abrangendo o conjunto de suas eta-
pas” (Robrahn-González & Migliacio, 2008:16).

Nessa perspectiva, é pertinente a discussão de Silva et al (2011), a respeito


da relevância social do trabalho do arqueólogo, e a necessidade de uma pesqui-
sa colaborativa entre arqueólogos e comunidades locais. Segundo a autora, o
arqueólogo precisa considerar que o passado possui várias interpretações, que
a sua concepção a respeito dos vestígios arqueológicos não é a única, pois os
vestígios têm sido utilizados como argumento político para a posse e manuten-
ção dos seus territórios em face da dificuldade por parte dos povos indígenas em
manter a seguridade dos territórios frente aos diferentes interesses econômicos.
Dessa forma, o passado deve ser construído a partir de muitas vozes e os arque-
ólogos não podem ter o monopólio das interpretações.
Nesse sentido, é possível perceber que o passado não está desassociado do
presente, e que são as inquietações e reivindicações atuais que nos levam aos
acontecimentos pretéritos. Dessa forma, nenhuma pesquisa arqueológica pode
160
ser concebida sem considerar o contexto social da pesquisa, mesmo um trabalho
não rotulado como de “Arqueologia Pública” não pode deixar de lado os con-
flitos e os vários atores sociais que clamam pela gestão e pelo direito de inter-
pretarem o passado de acordo com seus interesses e reivindicações. Concordo
com Green, Green & Neves (2003), na ideia de a Arqueologia Pública não ser
uma série de metas e atividades adicionais ao trabalho do arqueólogo, mas um
enfoque diferenciado na produção do conhecimento, o qual considera o conhe-
cimento nativo e o conhecimento arqueológico em suas dimensões relacionais,
em um processo de aprendizagem recíproca.

Considerações finais
Os relatos das atividades de ensino pesquisa e extensão, feitos no texto, ti-
nham como objetivo mostrar a importância de se considerar a visão de povos
e comunidades tradicionais e a respeito dos vestígios arqueológicos e das ricas
contribuições dos saberes tradicionais para as pesquisas, assim como a necessi-
dade de se promover o diálogo com os povos indígenas e demais comunidades
tradicionais e comunidade escolar da região da Transamazônica e Xingu.
As visitas monitoradas ao Laboratório de Arqueologia Rio Xingu e as ativi-
dades das oficinas de extensão despertaram a atenção da comunidade escolar
para a importância da preservação e valorização do Patrimônio Arqueológico
e para o conhecimento da história da região e diversidade cultural do Xingu e
Transamazônica.
A discussão a respeito da relação dos povos indígenas Xipaya e Kuruaya com
a cultura material Arqueológica foi realizado com o objetivo se fazer uma refle-
xão acerca do papel do arqueólogo, e demais pesquisadores, diante dos conflitos
ligados à cultura material arqueológica. Nesses casos, cabe ao arqueólogo posi-
cionar-se politicamente tendo em mente as diversas vozes presentes na disputa
pelo patrimônio arqueológico, e que povos e comunidades tradicionais estão to-
mando a direção de suas vidas e lutando pelo direito de contar suas histórias do
ponto de vista nativo. Assim, é preciso ter em mente que sua postura representa
apenas uma das ideologias presentes na disputa pelo patrimônio, e que, no caso
de povos e comunidades tradicionais, a tomada da gestão do seu patrimônio
representa um processo contínuo de descolonização da Arqueologia.
161
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queologia Colaborativa na Amazônia: terra Indígena Kuatinemu, Rio Xingu, Pará”
In Amazônica, v.3 (1), 32-59.

163
Diversidade & Educação:
o desafio à docência intercultural

William César Lopes Domingues1


Jane Felipe Beltrão2

Trabalhar “a diversidade na diversidade” e com pessoas de pertenças tam-


bém diversas exige competência que “... não se aprende na escola ...”3 como
ensina o refrão da canção! Situação que não é suprida de forma acadêmica, por
melhor que seja a graduação, o mestrado ou o doutorado, em Educação ou An-
tropologia, pois a geração de docentes que está em ação, não foi treinada para
isso, voltando à música, não tem o tema na cachola (cabeça)! Portanto, quais-
quer propostas diferenciadas, lidam com a necessidade de exercitar a criação e
de aprender fazendo.
Para “fazer fazendo” não vale improvisar, pois trabalhar com pessoas que
até então estavam excluídas do processo de educação superior, exige respeito,

1
Indígena da etnia Xakriabá, vive entre os Asuriní do Xingu desde o final da década de 1990. Docente do
Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento do Campus de Altamira da Universidade
Federal do Pará (UFPA). É presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI) de Altamira
e Coordenador Adjunto do Fórum de Presidentes de CONDISI. Contato: uwiraete@gmail.com.
2
Antropóloga e historiadora, docente associado à UFPA, Campus Belém. Pesquisadora do CNPq. Con-
tato: janebeltrao@gmail.com.
3
Letra de Haroldo Barbosa, na voz de Aracy de Almeida, chamada Não se aprende na escola: Dom Pedro
disse “fico”/ E ficou, que maravilha/ Mas quem ficou com Pedro/ Foi a Dona Domitília/ Não se trata de
invenção/ De quem não tem boa cachola [REFRÃO] Ai, ai/ Isso não se aprende na escola/ Ai, não/ Isso
não se aprende na escola/ Depois do casamento/ Todo mundo tem vergonha/ Papai, que está nervoso/
Põe a culpa na cegonha/ A cegonha leva a culpa/ Não reclama e não dá bola/ [REFRÃO] Napoleão I
sempre soube guerrear/ Mas foi com a Josefina/ Que aprendeu a manobrar/ Josefina tinha um jeito/ De
prendê-lo na gaiola [REFRÃO] Semente dá um broto/ Diz a história natural/ O broto dá uma encrenca/
Quase sempre desigual/ Se não sabe, então que guarde/ Esse conselho na cachola [REFRÃO]. Para escu-
tar e cantar junto: <<http://www.vagalume.com.br/aracy-de-almeida/nao-se-aprende-na-escola.html>>.
Sensibilidade, aqui, é tomada como quer Geertz (1998) ao trabalhar com sensibilidade jurídica, ou seja: são
noções sobre o que é exatamente a justiça – no nosso caso educação escolar – e sobre as maneiras como
ela deve ser exercida. São “... métodos e formas de conceber as situações de tomadas de decisão de modo
a que as leis estabelecidas possam ser aplicadas para solucioná-las...” (1998: 324. Grifos nossos). Criadas
considerando a maneira pela qual as instituições legais [educacionais] traduzem a linguagem da imagina-
ção para a linguagem da decisão – “ou seja, dadas as nossas crenças, como devemos agir; ou, dados os
nossos atos, em que devemos acreditar” – as sensibilidades jurídicas – pedagógicas, traduzem um conceito
de justiça [pedagogia] específico, um sentido de Direito [Educação] particular a cada cultura, variando
conforme o saber local. Portanto, segundo Geertz (1998), “... essas sensibilidades variam, e não só em
graus de definição; também no poder que exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas
de pensar e sentir...; ou nos seus estilos e conteúdos específicos. Diferem, e profundamente, nos meios que
utilizam – nos símbolos que empregam, nas estórias que contam, nas distinções que estabelecem – para
apresentar eventos judicialmente [pedagogicamente]” (1998: 261-262. Grifos nossos).

164
fundamentado em ação política que demanda “sensibilidade” para educação
diferenciada. Assim sendo, todos os detalhes requerem criação, adaptação e
compreendem desafios. Da concepção do curso, da forma de conduzir os en-
contros entre discentes e docentes e sobretudo da maneira de se apropriar dos
materiais didáticos disponíveis que podem dar suporte as ações, tanto durante
o tempo comunidade, quando os estudantes estão na Universidade, quanto no
tempo comunidade, quando agem enquanto cidadãos pertencentes à comunida-
de e de quem o coletivo exige comportamento de universitário(a), com todas as
conotações e implicações.
Trabalhar com etnoeducação implica em respeitar as diferenças; além de requer
enfrentar o desafio encontrar ou produzir materiais diferenciados para contemplar
os povos tradicionais com fórmulas, nas quais os estudantes se vejam e se encon-
trem como protagonistas, uma vez que a pauta primeira é a interculturalidade.
Para encontrar o caminho, o passo inicial pode ser “abrigar” concepções di-
versas e provocar o questionamento de nossos próprios valores para “aceitar”,
tolerar” e então respeitar os demais, o outro diferente e em relação de alteridade.
Considerando a proposta do livro, apresenta-se uma experiência vivenciada
no Curso de Etnodesenvolvimento sobre vida e concepções diversas de saúde e
doença.4

Saúde é vida?
Saúde não se constitui em fato isolado, portanto só pode ser conceituada
ou definida em seus próprios termos, dentro do contexto sociocultural, no qual
vivem os sujeitos que a definem desta ou daquela forma. A noção do que é ter
saúde e do que é estar doente varia de acordo com as amarras culturais que pren-
dem os sujeitos a teia de seus respectivos grupos de pertença. Para refletir sobre
o assunto, pense que a forma dos agentes sociais encararem a vida, a saúde, a
doença e a dor é diferente.
Há um ditado que diz: “a dor ensina a gemer” ou como diziam nossas avós:
“a dor em alguns é maior que em outros”. O que será que a sabedoria popular
4
O texto foi originalmente escrito a propósito da disciplina Antropologia da Saúde e da Doença ofereci-
da durante o quinto período do tempo universidade, pelos autores, aos discentes da turma 2010 do Curso
de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade do Campus
de Altamira da UFPA.

165
nos ensina? Pensando e usando da experiência, a dor é do tamanho que a nossa
trajetória de vida nos faz sentir. Se Maria é alguém calejada, a dor pode fazer
parte do “ofício de viver”, mas se José é bem novinho e, ainda, não experimen-
tou o mundo, a dor pode ser enorme. Portanto, ter ou não saúde, estar ou não
doente é uma experiência sociocultural.
Se para a maioria da sociedade ocidental a saúde pode ser considerada, a
partir da perspectiva dos determinantes sociais de saúde, como o resultado das
condições de vida, do acesso ao trabalho, à escola, à moradia e à alimentação,
para os vários grupos étnicos e raciais a saúde pode ser considerada como o
resultado de inúmeros outros fatores que não apenas os anteriormente citados;
ou podem ir para além destes.
Desde 1978, quando a Conferência de Alma Ata, reafirmou enfaticamente
que saúde é “... estado de completo bem estar físico, mental e social, e não
simplesmente a ausência de doença ou enfermidade ...” a compreensão do tema
vem sendo esgarçada, pois para além do conceito, há indicação que a saúde deve
ser entendida como: “... um direito humano fundamental, e que a consecução
do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial.”

Saúde entre povos etnicamente diferenciados


Entre os Asurini do Xingu, por exemplo, “ter saúde” vai muito além da au-
sência de doenças e da garantia de acesso a direitos sociais, como compreendida
universalmente, a saúde está intrinsecamente relacionada à vida social e às rea-
lizações culturais do grupo. Os Asurini percebem/admitem que há um princípio
vital yga – aquilo que faz o coração bater ou a força que move o coração sem ser
movida. O yga precisa ser constantemente fortalecido a partir da participação
nos complexos ritualísticos do grupo e da ingestão de muyga – fortificador do
yga, trazido do mundo espiritual pelos pajés, e este, também, é o nome dado
aos remédios oferecidos pelo Sistema Ocidental de Ação para Saúde (SOAS),
logo todo remédio não serve só para curar uma doença, é antes de tudo algo que
revitaliza o princípio move o corpo humano Asurini.
Os Asurini quando se tornam jovens ou como dizem os não-indígenas entram
na adolescência, precisam ter seus corpos escarificados com os dentes de cotia,
para que não se tornem maus, porque depois de participarem deste ritual passam a
166
ser considerados guerreiros e precisam derramar o seu sangue em propiciação
pelo sangue dos inimigos que poderá ser derramado. Se não forem escarificados
e deixarem de receber as insígnias tribais sobre a pele, eles adoecerão e logo
morrerão. Entre eles, quando se mata uma onça ou um inimigo, também, é ne-
cessário que se faça a escarificação para que o matador, agora identificado como
paciente possa ficar em paz pagando o sangue derramado com o seu próprio
sangue, apaziguando a consciência cósmica do grupo segundo a qual toda a vida
está interligada.
Entre os Arara da aldeia Laranjal, durante a realização do ritual do Ieipari as
mulheres que querem ter filhos se abraçam ao poste ritualístico chamado Ieipari
e pedem que ele lhes dê filhos, abraçam seus filhos pequenos ao poste para que
eles tenham saúde. O Ieipari, é um poste adornado de gente que representa o
ancestral mítico que faz a ligação entre o mundo físico e o espiritual e, segundo
os Arara, tem autoridade para lhes outorgar saúde ou doença, dão-lhe bebida,
comida, adornos e cantos, e ele lhes retribui com saúde e alegria.
Para os Asurini a criança que nasce só pode ser considerada como ser vivo a
partir do momento em que cai o seu cordão umbilical, os pais precisam amar-
rar as extremidades do corpo da criança para que sua alma não saia do corpo
e ela jamais possa tornar-se avaete (gente de verdade), que, aliás é o etnônimo
(nome, autodenominação) do grupo. Para seus vizinhos Arawete a criança só
pode ser considerada um ser vivo completo, a partir do momento em que come-
ça a comer o alimento tradicional e, posteriormente, a falar. Estas concepções
diferentes das ocidentais, em relação ao início da vida têm causado uma série de
problemas em relação às abordagens feitas sobre os Arawete. Nas sociedades,
anteriormente mencionadas, são os pais e não as mães que ficam de resguardo
e precisam observar uma série de restrições e interdições alimentares para que
seus filhos tenham saúde. Se uma pessoa é picada por cobra entre os Arawete
são os pajés que resolvem o caso saindo de seus corpos e indo ao mundo es-
piritual matar a cobra e retirar o seu veneno do espírito da pessoa picada e, ao
longo de suas existências, isto tem sido suficiente. Não há notícia de que alguém
tenha morrido de picada de cobra entre eles, mesmo habitando área com grande
incidência de serpentes venenosas.

167
Entre os Xakriabá o primogênito homem tem o cordão umbilical enterrado
na soleira da porta da cozinha e as orelhas furadas no beiral da porta para que
saiba que está irremediavelmente ligado à terra e que jamais se apartará dela,
além de garantir que terá sucesso em tudo o que plantar sobre terra de pertença.
Para os Trobrian estudados por Malinowski não são os homem que engravi-
dam as mulheres através de seu sêmen, o nascimento de um novo ser humano se
deve à alma ou espírito de um antepassado que se encarna dentro das mulheres.
Os Massai, no continente africano deixam que os abutres e as feras devo-
rem seus mortos, porque para eles enterrar os mortos afetaria a saúde da terra e
consequentemente os Massai e os outros povos que vivem ali. O ritual de dila-
ceração indica que mesmo sem vida, o massai que se foi, é solidário ao grupo
de pertença, pois preserva a saúde dos que ficam, pois não contamina a terra.
Recentemente, durante a realização de uma capacitação para conselheiros
distritais de saúde indígena no Conselho Distrital de Saúde Indígena de Alta-
mira (CONDISI/Altamira), os Xikrín do Bakajá expuseram, de forma teatral, a
relação intrínseca que sua saúde mantém com a disposição circular das aldeias
e a forma de organização social, demonstrando que o sujeito xikrín saudável é
aquele que corresponde, no sentido de observar, o papel social, que de antemão
a cultura determina, isto significa, entre outras coisas, que as crianças xikrín
precisam ter seus lábios perfurados a fim de deixar a oralidade fluir, uma vez
que ela é um princípios estruturantes dessa sociedade. Falar é importante! As-
sim, como a perfuração do lóbulo das orelhas, os torna conhecedores, pois per-
mite aprender e desenvolver o que lhes é dito sobre a tradição. Pode-se deduzir
que ter lábios e orelhas perfurados é condição para ser ou tornar-se Xikrín.
Os exemplos apresentados deixam entrever as concepções de conformação
social do corpo e da pessoa que torna-se humana e digna aos olhos do grupos,
quando segue os preceitos socioculturais. As noções de saúde e doença estão
associadas à concepção do corpo e a cosmovisão que lhes oferece consistência
e, também, coerência.
Portanto, se deduz que há muitas percepções sobre saúde e doença e todas
estão correlacionadas à vida. Há uma ciência do concreto, como quer Lévi-S-
traus (1970), mantida pelas sociedades tradicionais e, há uma ciência acadêmica
que se quer científica e se apresenta como hegemônica, desconhecendo os de-
168
mais sistemas de conhecimento correspondentes. Assim sendo, para cuidar da
vida, conservar a saúde e evitar a doença deve-se estar atento à diversidade e a
complexidade das concepções de acordo com as correlações aos conhecimentos
tradicionais ou ocidentais.

Questões problema
Após o “sobrevôo” de reconhecimento do terreno relativo as concep-
ções de diversos povos, deve-se refletir um pouco, para tanto duas questões
nortearam nosso trabalho em sala de aula: (1) há sociedade humana sem
concepções de saúde e doença? (2) Há alguma interação entre os sistemas
tradicionais de ação para a saúde (stas) e os sistemas ocidental de ação para
a saúde (soas)?
Não deixe de oferecer resposta às questões.
Se você leitor respondeu que há sociedades sem concepções de saúde e do-
ença, indique as razões. Pense conosco, como a sociedade identifica uma pessoa
sã, com saúde. Será que as pessoas com saúde agem da mesma forma que os
doentes?
Continuando nosso inventário de possibilidades. Como na sua comu-
nidade se sabe que alguém está sem saúde? Quem consegue dizer isso: o
doente? Os parentes do doente? Se é possível identificar a doença, que o
faz? A mãe do doente? E na falta da mãe? Onde e a quem se leva o doente?
Aos mais velhos, aos profissionais de saúde da comunidade? Quem são
eles? Como se dá a troca de informações entre os profissionais e o doente
e seus familiares?
Em grupo, tente responder as questões narrado como a sua comunidade pro-
cede quando há uma ou mais pessoas doentes? Há alguma diferença se é uma
criança, um jovem, um adulto ou uma pessoa mais velha.
Agora, apresente ao grupo a história vivida na sua comunidade. Quando o
“contador de histórias” estiver apresentando o fato, pense: que recursos foram
usados? Que sistema de ação a saúde foi usado: o tradicional ou o ocidental?
Um e outro? Só um deles?
Despois de identificar a história do doente e seu itinerário, tente trabalhar as
concepções de vida e saúde mantidas pela comunidade.
169
Ação e reação
Depois de alguma resistência os discentes protagonistas se assenhoriaram do
roteiro e começaram a narrar os eventos, assim eles se aperceberam da interação
entre os sistemas de saúde acionados e o acolhimento obtido em um e outro
sistema. O debate foi intenso e muito proveitoso.
Se entre os leitores há um(a) professor(a), quem sabe você experimenta o
texto em sala de aula e se apercebe da diferença entre dizer o que é saúde e ou-
vir o que seus protagonistas discentes pensam sobre o assunto. Selecione o que
é dito e identifique, saúde para alguém que vem de Açaí é ... Mas, para quem
vem de Bacaba é ... E prossiga pensando como abrigar as concepções no seu
quotidiano de trabalho.
Desafiamos você a ser um professor diferente. Esqueça a sala silenciosa,
pense que todos querem falar ao mesmo tempo e use da sua experiência para
romper com a educação que aprisiona e se pensa sábia ao dizer saúde é ... sem
ouvir os demais. Assim, você estará começando a praticar a interculturalidade,
pois esta é mudança de atitude e sobretudo escuta diferenciada e respeitosa.

Referências

Geertz, Clifford. 1998. “O saber local: fatos e leis em uma perspectiva compa-
rativa” In O saber local: novos ensaios de Antropologia interpretativa. Rio de
Janeiro, Vozes, 249-356.

Lévi-Strauss, Claude. 1970. O Pensamento Selvagem. Rio de Janeiro, Nacio-


nal/USP.

170
Educação superior diferenciada e reelaboração da diferença
entre indígenas na UFPA

Francilene de Aguiar Parente1

A diferença em curso
Há algum tempo, pelo menos desde a segunda metade do século XX, as
discussões na Antropologia são propostas no sentido de refletir as práticas do
antropólogo em campo e as teorias por ele utilizadas para a compreensão das
realidades investigadas. Dessa forma, tanto as situações de pesquisa propria-
mente ditas, quanto outras experiências de trabalho, como em sala de aula na
condição de docente ou em projetos extensionistas, têm sido objeto de análise
e debate acerca do papel do antropólogo e da Antropologia na seara política
de determinadas situações de investigação, envoltas em uma série de tensões e
conflitos sociais.
Como parte dessa seara, a sala de aula se apresenta como um destes espa-
ços, onde direta ou indiretamente impactamos, seja com a presença, a fala e/ou
os escritos; como pela escolha dos textos a serem discutidos numa disciplina;
como também na proposição de um tema para debate ou na forma como o mes-
mo é encaminhado.
Enfim, variadas possibilidades de encaminhar discussões que permitem lei-
turas diferentes acerca de determinada(s) situação(ões) oferecem o tom político
necessário quando se trabalha com a educação superior, especialmente quando
trata-se de uma turma de agentes sociais oriundos de povos indígenas, quilom-
bolas e tradicionais, como o caso que se traz à baila.2
A experiência como docente em um curso de nível superior e diferenciado
como o de Licenciaciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento, será utili-
zada para refletir sobre a maneira como as atividades propostas no decorrer do
Curso contribuíram para o processo de afirmação e reconhecimento étnico de
pertenças, antes esmaecidas. O Curso Etnodesenvolvimento se insere nas políti-
1
Docente de Antropologia do Curso de Etnodesenvolvimento vinculado à Faculdade de Etnodiversidade
do Campus de Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutoranda no Programa de Pós-Gra-
duação em Antropologia (PPGA) da UFPA. Contato: faparente@gmail.com.
2
À luz de Almeida, entende-se agentes sociais como “... sujeitos sociais com existência coletiva, incor-
porando pelo critério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentes...” (2008: 38).

171
cas afirmativas da Universidade Federal do Pará (UFPA) e é voltado aos povos
indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Para a presente discussão, analisam-se relatos escritos e depoimentos, de
pessoas indígenas, como emblemáticos, por tratar-se de grupo que se apresenta-
va, quando da entrada no Curso de Etnodesenvolvimento, como descendente de
povos indígenas em decorrência de expropriação territorial e espoliação cultu-
ral ocorridas ao longo dos processos de dominação, que resultaram na vivência
“fora” das aldeias, experimentando pretensa homogeneização cultural, fato que
produzia e produz, entre não-indígenas e mesmo entre indígenas, negação de
pertenças identitárias que, hoje, passados mais de quatro anos de Curso, voltam
a ser afirmadas como etnicamente diferenciadas e informam demandas de trata-
mento e garantia de direitos em curso.

Educação Diferenciada e Ensino Superior


O direito à educação escolar diferenciada é garantido na Constituição Fede-
ral do Brasil (CF) de 1988, à custa de muita luta dos movimentos indígenas,3
que há muito demandavam uma educação que não servisse ao controle político
e civilizatório de empreendimentos coloniais e pós-coloniais que utilizaram a
escola como espaço de dominação contra os povos indígenas, política hegemô-
nica e homogeneamente realizada em todo o território nacional.4
Segundo Luciano (2006), por meio da escola pensada nestes moldes, objeti-
vava-se a invasão das terras indígenas, a destruição de suas riquezas e a extin-
ção de suas culturas, o que contribuiu para o apagamento e o enfraquecimento
de muitos elementos culturais de diferentes povos indígenas, que passaram a
serem dados como extintos, como ocorrido com os povos Xipaya, Kuruaya e
Juruna, que vivem na área urbana do município de Altamira.

3
Compreende-se o movimento no plural por conta da pluralidade de formas e demandas com as quais os
povos indígenas se apresentam e falam em nome de seus coletivos étnicos (Luciano, 2006).
4
Silva (1999), Barroso-Hoffmann (2005), Luciano (2006) e Pacheco de Oliveira & Freire (2006) infor-
mam que apenas no período republicano a educação escolar indígena sofreu alguma modificação mais
enfática em seus objetivos civilizatórios. Entretanto, mesmo a partir deste momento as experiências
ainda carregam em si a perspectiva colonialista em relação à educação escolar indígena, talvez não mais
da mesma forma que antes, mas mantém o aspecto civilizacional na medida em que não se oferta uma
educação escolar como pensada pelos indígenas, ou seja, de forma diferenciada, respeitando os conhe-
cimentos, formas de transmissão e produção indígenas e não-indígenas.

172
Povos esses que vivem há muitos anos fora das aldeias indígenas,5 sofrem
com a homogeneização promovida pela vida na cidade, com forte reforço da
instituição escolar, não apenas pela inexistência de ações para a valorização
da diferença, como também pela reprodução de estereótipos que deturpam as
culturas indígenas e/ou reificam os indígenas associando-os à mata e à pure-
za selvagem, imagens que Souza Lima (1995) e Pacheco de Oliveira & Freire
(2006) vêm enfaticamente demonstrando como fazendo parte do lugar que foi
reservado aos indígenas na invenção do Brasil e que se perpetua por meio da
escola e dos livros didáticos, ainda hoje, conforme Grupioni (1996).
Muito embora as transformações operadas no âmbito da legislação no Brasil ainda
estejam em processo e tenham a Constituição de 1988 como marco na proposição da
educação diferenciada, na educação básica e superior, Luciano (2006) aponta que as
primeiras propostas de modelo de educação bilíngue datam dos anos 1950, por influ-
ência da Conferência da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (UNESCO) de 1951, mas não foram aceitas por técnicos do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI) por considerarem-na inadequadas à realidade brasileira e aos
propósitos de uma política dependente e dominadora, como se fazia à época.
Como visto, apesar da proposta de bilinguismo na educação escolar indígena não
ser tão nova quanto possa parecer, é apenas nos anos 70 e 80 que se tem as condi-
ções para efetivar a construção da autonomia e autodeterminação indígenas,6 tendo
a escola como emblema na luta por afirmação étnica. De acordo com Luciano, a
educação escolar indígena, portanto, refere-se “... à escola apropriada pelos povos
indígenas para reforçar seus projetos socioculturais e abrir caminhos para o acesso
a outros conhecimentos universais, a fim de contribuírem para responder às novas
demandas geradas a partir do contato com a sociedade global” (2006: 129).
5
Coudreau (1977), Patrício (2000) e Nogueira (2008) apontam que no século XVII indígenas Xipaya,
Kuruaya e Juruna viviam na aldeia denominada Tavaquarai, Tacuara ou Tauaquara, na ponta esquerda
de quem chega pela nascente do Rio Xingu. Com a política pombalina, a aldeia é extinta, mas os indíge-
nas continuam a residir no local. Com o crescimento da cidade de Altamira, o espaço é incorporado às
dimensões urbanas do município e passa a chamar-se bairro Independente, ainda hoje contando com a
presença indígena, que também foi se espraiando para outros bairros, como Aparecida, Sudam I, Açaizal,
dentre outros no perímetro urbano.
6
O que implica o exercício do direito de decidir como viver, de acordo com as regras e os costumes
dos diferentes povos, e serem reconhecidos e respeitados pelo Estado brasileiro como entidades socio-
culturais autônomas, sem, contudo, isentar o Estado e o governo de suas obrigações na salvaguarda da
cidadania indígena, pensada como dupla: indígena e brasileira, como propõe Gersem dos Santos Luciano
(2006), indígena da etnia Baniwa.

173
Assim, a educação é compreendida como instrumento para o fortalecimento de
culturas e identidades indígenas e conquista de cidadania, compreendida como o
direito de acesso aos bens e aos valores ditos modernos, sem desconsiderar a pro-
dução e a reprodução de vivências e valores dos coletivos etnicamente diferencia-
dos. Indígenas e não-indígenas, como Silva (1999), Souza Lima & Barroso-Ho-
ffmann (2002), Barroso-Hoffmann (2005), Luciano (2006) e Fernandes (2010),
desde fins dos anos 90, têm se dedicado a compreender diferentes experiências
nesse sentido, em vários lugares do Brasil, apresentando o protagonismo indígena
e a proposição de desenvolvimento diferenciado, com vistas ao rompimento das
diferentes formas de tutela e colonização, como ressalta Luciano (2009).
As escolas permitem observar as novas relações estabelecidas entre os po-
vos indígenas, o Estado e a sociedade civil, nas quais as demandas de grupos
diferenciados sejam respeitadas, como uma conquista desses povos e de toda a
sociedade, na medida em que garante na prática o direito que está assegurado
em nossa Carta Magna, enquanto sociedades e culturas autônomas.
A discussão sobre educação diferenciada é algo que tem de ser olhada de for-
ma extremamente relativa, pois seu contexto varia muito de lugar para lugar. Por
exemplo, a educação escolar indígena na região do Xingu, na linha que está sendo
discutida, ainda é algo bastante recente. Somente em dezembro do ano de 2013
houve a conclusão do curso da primeira turma de indígenas em formação de ma-
gistério, em contraposição à política afirmativa para o ensino superior em nível
de graduação para povos indígenas, iniciada em 2010 na UFPA,7 contrariando,
inclusive, o modelo nacional, no qual a formação de professores iniciou nos anos
90, logo após a promulgação da CF de 88, e desde então opera no sentido de lu-
tar pela garantia do direito ao ensino superior, com o objetivo de construir uma
educação escolar indígena que diga respeito “[...] aos processos de transmissão e
produção dos conhecimentos não-indígenas e indígenas por meio da escola, que é
uma instituição própria dos povos colonizadores” (Luciano, 2006: 129).
Apesar do fato de que no centro desses debates estão os indígenas que vivem
em aldeias, traz-se à discussão o caso de indígenas que vivem “fora” delas e que

7
Para maiores detalhes acerca da política de ação afirmativa na UFPA, consultar: Beltrão & Cunha
(2011) e Beltrão, Brito Filho & Maués (2013).

174
acessaram o ensino superior por meio das políticas de ação afirmativa da UFPA/
Campus de Altamira, para o Curso Etnodesenvolvimento, inseridos a partir de
seleção especial; verificando como estes se apresentaram ao processo seletivo
especial (PSE) e ao longo do Curso; e de que forma o Curso, voltado à formação
política de atores desses coletivos e comunidades tradicionais, possibilitou a
reelaboração e reafirmação étnica.

Educação, Ações Afirmativas e Etnodesenvolvimento


Como dito anteriormente, quando se fala em educação escolar indígena é
preciso enfatizar que se está refletindo sobre os indígenas que vivem em aldeias.
Entretanto, a experiência no Curso diferenciado permite observar que uma edu-
cação voltada aos anseios de coletivos que há muito tempo foram deixados à
margem ou que tiveram suas identidades étnicas apagadas pela instituição esco-
lar pode alargar as possibilidades de transformação operadas a partir da educa-
ção escolar diferenciada.
Trata-se especificamente do caso de indígenas que ingressaram na UFPA, via
ações afirmativas em 2010, para o Curso de Etnodesenvolvimento.8 A entrada
em uma universidade pública foi apontada por todos como um “sonho quase im-
possível”, por conta da “fraca” formação na escolarização básica para disputar
uma vaga no sistema universal de seleção, mas também porque quando ouviam
falar da universidade era sempre como um lugar para “os melhores”, o que, de
certa forma, não era pensado como um lugar para eles e os seus.9
O dado sugere a representação da universidade, pública em especial, no ima-
ginário social e dos coletivos étnicos, que não a veem como espaço público para
agentes indígenas e não se enxergam como público desta instituição escolar.
Muitos informaram que o momento da seleção, realizada no interior da UFPA,
marcou porque foi a primeira vez que adentraram a Instituição, mesmo morando
próximo ou transitando pelo entorno diariamente.

8
Segundo Barroso-Hoffmann (2005), as primeiras experiências de ações afirmativas propriamente ditas
envolvendo estudantes indígenas remontam ainda ao início da década de 1990, feitas por meio de convê-
nios entre a FUNAI e algumas universidades públicas e privadas, como a que permitiu o ingresso de um
grupo de estudantes indígenas na PUC-GO no começo dessa década.
9
Alguns discentes haviam sido aprovados em universidades privadas, porém não cursaram; outros cur-
saram por um tempo, mas sem dinheiro para custear as despesas acabaram desistindo do curso superior.

175
Ultrapassar os muros da universidade era, de certa maneira para as pessoas
indígenas, transpor a fronteira que marcava o lugar entre os de “dentro” e os de
“fora”, os que “podem” e os que “não podem”, os que “se inserem” e os que
“não se inserem”, principalmente por atribuírem o acesso à educação o papel
ímpar no mundo moderno, não só como produtora de conhecimento, mas como
lugar de poder e produção de poder, como a concebe Sousa Santos (2001).
Talvez por isso imaginar-se nela se apresentou como “sonho quase impossí-
vel” aos indígenas que se candidataram ao certame; na verdade, o “quase” só se
fez presente nas falas porque as mesmas foram feitas quando se encontravam
na condição de discentes da UFPA, momento em que o “sonho” tornou-se re-
alidade via ações afirmativas promovidas pela Instituição, garantindo o acesso
ao ensino superior.
É consenso entre eles, pelos motivos apontados acima, que estar na Univer-
sidade foi resultado das lutas políticas empreendidas pelos movimentos indí-
genas e sociais para a garantia do acesso à educação para os ditos “diferentes”
por meio de ações afirmativas. Dentre as possibilidades de cursos ofertadas, um
grupo de indígenas optou pelo curso diferenciado em Etnodesenvolvimento,
mesmo tendo muito poucas informações sobre o mesmo.10
A opção deveu-se, sobretudo, pelo fato de tratar-se de curso diferenciado e
voltado aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Nesse
sentido, é perceptível que, para além do acesso à universidade, pessoas desses
coletivos étnicos demandavam o acesso ao ensino superior acompanhado de
uma proposta de educação diferenciada, que respondesse às especificidades de
seus grupos, dentre eles os indígenas com quem se dialoga no presente trabalho.
Os indígenas informam que optam pelo Curso porque ele teria a “cara” de-
les, o que, em outras palavras, significa tratar de temas que dizem respeito aos
problemas que lhes afligem, com metodologia adequada aos tempos diferencia-

10
A Universidade disponibiliza para os indígenas, desde 2010, dois tipos de ação afirmativa: a reserva
de vagas – duas vagas são acrescidas em todos os cursos dos campi da instituição exclusivamente para
indígenas; e a oferta de cursos diferenciados, como Etnodesenvolvimento e Educação do Campo, na
modalidade turma especial, aberto à candidatura de outros coletivos étnicos. As duas ações são feitas
por meio de seleção diferenciada, que vem sofrendo críticas ao longo dos anos, especialmente a partir de
2013, por conta das transformações no modelo de ingresso, cada vez mais universalista, na medida em
que homogeneíza os coletivos e suas diferenças, e burocratizante, posto que uma adaptação das burocra-
cias do sistema universal e sem a participação dos interessados no processo.
176
dos de leitura e escrita, buscando conhecer suas realidades para o debate em sala
– espaço onde suas falas e reflexões são prioritárias nas discussões realizadas.
Enfim, não queriam apenas ter acesso à Universidade e sair com um título supe-
rior, mas que suas vivências fossem valorizadas como saberes a serem trabalha-
dos dentro e fora da sala de aula.
O Curso trabalha a partir do eixo da Diversidade Cultural, com discussões
assentadas em oito núcleos temáticos: Sistemas de Saúde; Educação; Direitos Hu-
manos; Sociedade e Meio Ambiente; Identidades, Nação e Território; Linguagens
Étnicas; Desenvolvimento e Sustentabilidade; e Atividades Complementares, com
o objetivo de possibilitar a formação de pessoas oriundas de povos indígenas, qui-
lombolas e comunidades tradicionais para “[…] gerenciar informações e contatos
com possibilidade de intervir socialmente a partir de auto-reflexão sistemática”,
de acordo com o Projeto Pedagógico do Curso (UFPA, 2010: 6).
O Curso é ofertado em regime de alternância, com momentos presenciais em
sala de aula, no Campus de Altamira, chamado Tempo Universidade (TU), nos
meses janeiro/fevereiro e julho/agosto, e momentos nas comunidades às quais
pertencem os discentes11 matriculados, Tempo Comunidade (TC), de março a
junho e setembro a dezembro.
As atividades desenvolvidas no Curso durante os TU e TC estão baseadas
no princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, tríade na
qual o ensino superior na UFPA se alicerça. Assim, seja em sala de aula ou em
outros espaços, os discentes do Curso são motivados, por meio de atividades
que permitem a articulação entre teoria e prática, a realizar atividades de pes-
quisa; socializar os conhecimentos aprendidos, tanto em sala de aula quanto
em suas comunidades; refletir sobre as consequências sociopolíticoculturais dos
métodos e ideias de suas comunidades em relação a outros agentes sociais pre-
sentes na situação de intervenção; propondo ações que articulem a diferença na
igualdade ou o respeito à diferença para a garantia de direitos frente aos demais
agentes, governamentais ou não, tendo por fim a autonomia de suas sociedades.
11
Opta-se por denominá-los discentes porque é com esse termo que eles também se identificam na Uni-
versidade, uma forma de imprimir o seu lugar no espaço universitário, muitas vezes percebido como um
não-lugar para estes sujeitos. Assim, quando se percebem “ameaçados” por quaisquer situações é muito
comum a lembrança que além de suas pertenças étnicas (como que marcando a resistência e a luta de
seus coletivos pela garantia do acesso ao ensino superior) são discentes da UFPA, portanto, falam como
acadêmicos, espaço legitimado do saber moderno, e exigem duplo reconhecimento.

177
Como observado, no Curso tem-se por objetivo instrumentalizar pessoas
oriundas de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais12 para
gerenciar informações e contatos, assim como executar as ações planejadas por
seus coletivos como parte dos projetos de futuro almejados pelas sociedades et-
nicamente diferenciadas. Nesse sentido, o Curso de Etnodesenvolvimento está
entrelaçado com a proposta de desenvolvimento diferenciado, pensada entre
os anos 70 e 80, como alternativa aos modelos impostos por países industria-
lizados, um “desenvolvimento que mantém o diferencial sociocultural de uma
sociedade, ou seja, sua etnicidade” (Azanha, 2002: 31. Itálicos do autor).
Etnodesenvolvimento é uma noção marcada no cenário internacional, segun-
do Ricardo Verdum (2006), por três acontecimentos: o Simpósio sobre Fricção
Interétnica na América Latina, realizado em Barbados em 1971; o Simpósio
Movimentos de Liberação Indígena na América Latina, também realizado em
Barbados em 1977; e a Reunión de Expertos sobre Etnodesarrollo y Etnocidio
em América Latina, evento realizado em San José da Costa Rica, em 1981,
pensado enquanto um “[...] direito dos povos indígenas e um dever dos estados
nacionais” (2006: 72).
Para Rodolfo Stavenhagen, a noção implica, por parte das etnias, tribais ou
não, deter “... o controle sobre suas próprias terras, seus recursos, sua organiza-
ção social e sua cultura, e é livre para negociar com o Estado o estabelecimento
de relações segundo seus interesses...” (1984: 57). Para isso, precisam se ade-
quar às ferramentas utilizadas pelo Estado e outros agentes, governamentais e
não governamentais, exigir seu direito à estruturação e gerência sobre os seus
territórios, com vistas à proposição de um desenvolvimento sem relação com
os indicadores de progresso, mas mantendo o diferencial sociocultural, como
apontado anteriormente (Stavenhagen, 1984).
Para os discentes do Curso, isso só foi possível por conta das ações afirma-
tivas, que possibilitaram a entrada destas pessoas na Universidade por meio de
processo seletivo diferenciado, contemplando grupos que há muito demanda-
vam a entrada no ensino superior. Mas, para além deste fator, é preciso não es-
quecer o valor simbólico das políticas de ação afirmativa, seja reserva de vagas
12
A referência a eles como pessoas remete à ideia de serem “pessoas de direito”, titulares concretos de
direitos e obrigações referentes à sua identidade étnica, e não “sujeitos de direito”, que, para Stephan
Kirste (2009), faz referência a sujeitos potencialmente titulares de direitos, mas que de fato não os gozam.

178
ou sistema de cotas raciais ou turma especial, seja pela promoção de leis que
criminalizam delitos racistas: é o reconhecimento por parte do Estado brasileiro
de dívida histórica para com os povos diferenciados, que foram relegados à pró-
pria “sorte” ao longo da História oficial brasileira (Luciano, 2006; Silva, 1999;
Barroso-Hoffmann, 2005).
É a educação escolar sendo ressignificada pelos grupos que dela foram ali-
jados ou subjugados em seus modos de vida, cultura e até mesmo fisicamente,
se pudermos esgarçar um pouco suas teias e pensar nas consequências diretas e
indiretas de suas ações em diferentes sociedades indígenas, por exemplo.
A ressignificação pode ser pensada em dois momentos: primeiro, pela per-
cepção de que a educação, outrora nociva a estes povos, hoje é compreendida
como ferramenta para a luta política frente à sociedade não-indígena para a con-
quista e garantia de direitos diferenciados, que se faz muito mais pela força da
escrita do que das armas, ou, pensando de outra forma, a escrita passou a fazer
as vezes de arma, tão poderosa que é no mundo dito moderno, letrado e imposi-
tivo; segundo, talvez decorrente do primeiro, mas também como uma forma de
resistência e controle à produção de mão de obra para o mercado de trabalho, os
movimentos indígenas têm lutado para que as coletividades (aldeias, comunida-
des, povos e organizações indígenas) desempenhem o papel de referência para a
identificação das pessoas para a submissão ao certame via ação afirmativa, o que
pode se dá, por exemplo, pela declaração emitida por autoridade étnica e/ou politi-
camente constituída, que indica a pessoa como representante da comunidade ao
PSE na UFPA. De alguma maneira, o documento resguarda à comunidade o po-
der de indicar seus representantes em consonância com as demandas coletivas e
planos de futuro, ponto positivo para não recair nas armadilhas do mundo mo-
derno e individualizado das universidades, como frisou Luciano (2006) e Silva
(1999), mas também pode ser algo negativo se não administrado coletivamente,
pois sujeito às vontades e interesses de quem está à frente das associações ou de
postos de poder nestes espaços.
Por mais que a discussão sobre etnodesenvolvimento tenha se voltado mais
especificamente para os povos indígenas, seu alcance é muito mais ampliado e,
por isso, o curso Etnodesenvolvimento foi ofertado a público diferenciado e di-
verso, constituído de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais
179
de modo geral, com o intuito de buscar a autonomia de seus povos por meio da
educação em etnodesenvolvimento, mas também que a educação em etnodesen-
volvimento possibilite a conquista da autonomia de seus povos, pois um e outro
estão imbrincados na luta por uma política desenvolvimentista diferenciada.
Por isso, e pelo contexto específico da educação básica entre os povos indí-
genas que vivem em aldeias na região do Xingu,13 tiveram acesso às primeiras
ofertas de vagas por ação afirmativa os indígenas que vivem nas áreas urbanas
do município de Altamira, num total de nove indígenas aprovados, sendo uma
Araweté, um Juruna, cinco Xipaya e duas Kuruaya, oito mulheres e um homem,
quase todos nascidos e criados na cidade, com experiências de vida diversas,
mas com algo em comum: o uso da categoria descendente para se apresentarem
indígenas.
Mais um desafio aos docentes, discentes e parceiros do Curso, para além do
fato de que é o único em nível de graduação no Brasil, voltado exclusivamente
a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais; reúne diferentes
pertenças étnicas e raciais em uma única turma; desenvolve atividades com a
metodologia da alternância; e é resultado da atuação política de movimentos
sociais e da UFPA. Para o presente momento, discute-se a questão da afirmação
étnica dos indígenas a partir da entrada no Curso, levando-se em consideração
que se as identidades são relacionais, situacionais e contrastivas, como aponta
Cardoso de Oliveira (1976), as discussões realizadas no Curso e a constituição
da turma contribuíram para a afirmação da etnicidade diferenciada.

Educação e produção da diferença


Oportunizar acesso a um curso diferenciado em Etnodesenvolvimento, ex-
clusivo às especificidades de povos indígenas, quilombolas e comunidades tra-
dicionais, sem precedentes em nível de graduação no Brasil, está sendo, ao
mesmo tempo, ousado e desafiador: (1) como dito anteriormente, Etnodesen-

13
Apenas em dezembro de 2013 houve a primeira turma, com 50 indígenas, formada pela Secretaria de
Estado de Educação (SEDUC) em ensino médio na região do Xingu. Eles concluíram o curso de magis-
tério indígena e atualmente encontram-se assumindo as escolas das aldeias das nove etnias que vivem na
região. Somente um deles, uma indígena Xipaya, que atualmente mora na área urbana de Altamira, mas
que vem da Terra Indígena Xipaya, conseguiu acessar, via política afirmativa, o curso de Educação do
Campo, que estava com inscrições abertas à época da finalização da formação.

180
volvimento era uma noção voltada aos indígenas que viviam em aldeias ou co-
munidades com o objetivo de uma proposta alternativa de desenvolvimento,
planejada e executada com os coletivos; (2) não havia referência de seu empre-
go no campo educacional em nível de graduação e para este público; (3) além
disso, está abrigado em um campus da UFPA no interior do estado e com as di-
ficuldades que os campi do interior têm com relação a uma universidade federal
em um estado com as dimensões do Pará.
A concretização do projeto só foi possível mediante a parceria entre profis-
sionais experientes e engajados com a efetivação da educação diferenciada e a
inclusão de coletivos étnicos vulnerabilizados, que enxergaram a possibilidade
de reunir em uma mesma turma pessoas de pertenças étnicas e raciais diferen-
ciadas, contrariando a opinião de alguns atores importantes no processo, inclu-
sive dos próprios movimentos indígenas e sociais, que não somente apoiaram a
proposta como participaram de sua construção e empreenderam lutas políticas
para assegurar o acesso à educação por meio de ação afirmativa, mostrando a
importância da garantia desta política para os povos indígenas e outros agentes
tradicionais acessarem a universidade e afirmarem sua condição diferenciada no
cenário nacional.14
As ações garantiram não apenas aos indígenas como a outros povos e co-
munidades tradicionais o direito básico à educação e possibilitou a constituição
de uma turma diversa em pertenças étnicas e que em muito contribuiu para as
transformações operadas ao longo desses quase quatro anos no Curso e nas afir-
mações étnicas em sala de aula e fora dela.
O primeiro encontro, à época, com discentes e calouros da UFPA foi ex-
tremamente interessante, pois ao mesmo tempo em que cada um se afirmava
de uma determinada pertença étnica, mesmo que como descendentes, como no
caso dos indígenas, alimentavam sobre os demais atores sociais os estereótipos
conhecidos da pretensa pureza. Foi emblemática a cena em que alguns indíge-
nas comentaram que os quilombolas não pareciam enquanto tais porque não
usavam as indumentárias “características” destes grupos.

14
Para maiores detalhes sobre as movimentações dos indígenas para garantir acesso à educação superior
na UFPA via ação afirmativa, consultar os artigos de Beltrão & Cunha (2011) e Beltrão, Brito Filho &
Maués (2013).

181
Independente da sequência da cena, a fala foi recorrente ao longo do curso,
seja em relação aos quilombolas ou aos indígenas, seja em relação aos agri-
cultores ou pescadora e ribeirinha; tanto entre eles mesmos, quanto por parte
de pessoas externas ao Curso, fato que demonstra a “força” dos estereótipos
que sustentam preconceitos e discriminações em relação aos povos indígenas,
quilombolas e comunidades tradicionais, especialmente se for levado em con-
sideração o espaço no qual estavam: a universidade, que não foi pensada lugar
de povos indígenas e comunidades tradicionais.
A reprodução dos estereótipos por parte dos mesmos informa, inclusive, o tipo
de relação estabelecida entre estas pessoas e a sociedade envolvente. Para melhor
compreensão, toma-se o caso dos indígenas. Segundo relatos obtidos oralmente,
a vivência na área urbana da cidade de Altamira sempre foi tomada pelos não-in-
dígenas como sinal de “perda” da identidade indígena. Sempre que se afirmavam
enquanto tal eram cerceados em seu direito de autodeclaração, porque não car-
regavam consigo os signos reificados como identificadores de etnicidade, como
a língua, a indumentária, a pintura corporal e a vida em aldeia. Independente da
trajetória de vida de cada pessoa ou do sexo, nos relatos denunciavam situações
de preconceito e discriminação em relação à etnicidade indígena.
À entrada na escola foi ainda mais enfática no sentido de negar tais identi-
dades pela não correspondência à imagem do “índio” que era apresentada nas
aulas, em geral relegadas ao dia comemorativo do índio, como se antes e após o
19 de abril o personagem singularizado nos livros didáticos sumisse da história
brasileira e das relações cotidianas.
Afirmar-se indígena nesse cenário estava envolto em chacotas por parte de
seus colegas de sala de aula, que duvidavam da veracidade da informação tendo
em vista não “parecerem fisicamente com indígenas”. O fato gerava uma série
de constrangimentos aos indígenas, com quem se dialoga no trabalho, que pas-
saram a silenciar sobre a condição étnica em espaços públicos, especialmente
na escola, porque, de acordo com Francinélia de Paula, indígena Xipaya, era
comum ouvir que “índio não precisa estudar não!”.
No entanto, em casa, em família, com os seus, o tema se quer era cogitado,
posto que a certeza do pertencimento era lembrada por meio das histórias con-
tadas pelo pai ou pela mãe (com exceção da indígena Araweté, os demais têm
182
pais de casamentos interétnicos) ou pelos avós, referidos como os mais velhos,
que guardavam a memória da vida em aldeia ou das fugas pelos conflitos intra
e interétnicos.
O conflito entre se identificarem indígena quando entre parentes e não se-
rem reconhecidos socialmente, acrescido das discriminações sofridas ao lon-
go das trajetórias escolares, por exemplo, produziu marcas, dentre elas a iden-
tificação como descendente e não como indígena, posto que se por meio da
aparência física ou cultura poderiam ter suas identidades étnicas negadas, o
sangue, biologicamente herdado de seus antepassados, parecia-lhes assegurar
a pertença étnica.
A entrada na Universidade, em um curso com a sua “cara”, como dito anterior-
mente, “que fala a língua da gente”, como referiu Francinélia de Paula, indígena
Xipaya, feito “com e para” eles (povos indígenas, quilombolas e comunidades
tradicionais), de alguma maneira, significava o reconhecimento de sua identidade
étnica não só por parte da sociedade, como do Estado brasileiro. Em parte sim,
porém a entrada na universidade tem de vir acompanhada de tratamento diferen-
ciado desses discentes na Instituição e da participação de seus coletivos no desen-
volvimento das atividades e das lutas, que são constantes, para que eles possam
utilizar-se do instrumental obtido para a garantia do direito à diferença, para a
efetivação da luta por reconhecimento a partir de outros critérios.
Partindo desse pressuposto, no Curso a alternância como proposta pedagógi-
ca e metodológica tem sido um dos principais aportes teóricos e práticos para o
desenvolvimento das atividades na Universidade e nas comunidades, na medida
em que possibilita mudanças de postura para o diálogo entre os conhecimentos
e saberes da Universidade e das comunidades, representadas pelas pessoas que
acessaram a política afirmativa, com vistas à construção de conhecimentos que
venham a contribuir sobremaneira na luta dos povos indígenas, quilombolas e
comunidades tradicionais para a autonomia de seus coletivos e que, por sua vez,
também promovem a transformação das práticas docentes (Cordeiro, Reis &
Hage, 2011).15
15
Para informações históricas mais detalhadas sobre a pedagogia/metodologia da alternância e seus
usos no Brasil, consultar: Ribeiro (2008); Teixeira, Bernartt & Trindade (2008); Cordeiro, Reis & Hage
(2011); e, Martins (2012).

183
Fala-se na mudança das pessoas em relação porque acredita-se que na in-
teração entre diferentes agentes e experiências, como proposta na pedagogia
da alternância, não somente os discentes transformem o seus olhares, porque
concretizar a proposta envolve muito mais que um fazer. É confiar naquilo que
está sendo proposto por conceber que o conhecimento não está encerrado na
razão científica; é respeitar os múltiplos tempos e saberes e, com isso, produzir
outros conhecimentos. Isso só é possível entre pessoas dispostas a mudar, a
fazer diferença.
É isso que os indígenas chamam “curso com sua cara”, porque na Universi-
dade leva-se em consideração seus aprendizados, histórias e memórias; além de
respeitar os tempos diferenciados mantidos por indígenas, agricultores, quilom-
bolas, ribeirinhas, pescadoras, negras, extrativistas; mulheres e homens; jovens,
adultos e/ou velhos/idosos; vivências que marcam experiências e saberes, que
precisam ser trabalhados em sala de aula e fora dela.
Muito embora a pedagogia da alternância tenha sido pensada e largamente
utilizada para o trabalho com povos do campo e que vivem no campo, tem se
mostrado excelente ferramenta para o trabalho na proposição da educação dife-
renciada em Etnodesenvolvimento, cujo currículo foi desenvolvido para possibi-
litar o diálogo sobre problemas que estão na “ordem do dia” para os etnicamente
diferenciados, como as discussões sobre Sistemas de Sáude; Educação; Direitos
Humanos; Sociedade e Meio Ambiente; Desenvolvimento e Sustentabilidades;
Identidades, Nação e Território; Linguagens Étnicas; e Atividades complementa-
res; com o objetivo de pensar desenvolvimento mais condizente com as deman-
das de seus coletivos, tal como ocorreu na proposição da pedagogia da alternância
com o fim de construir uma educação voltada aos tempos e conhecimentos dos
filhos de agricultores na França, com as Casas Familiares Rurais (CFRs) nos anos
30, e, nos anos 50, na Itália, com as Escolas Familiares Rurais (EFAs), segundo
Cordeiro, Reis e Hage (2011) e Ribeiro (2008), ou em outras experiências de
educação diferenciada em nível superior, voltadas exclusivamente para os agri-
cultores, como a Pedagogia da Terra, discutida por Martins (2012).
No Curso de Etnodesenvolvimento, o TU inicia-se com um diálogo aberto
sobre as vivências do TC. Nesse momento, os discentes oportunizam aos demais
colegas conhecer um pouco mais das suas comunidades e as experiências obti-
184
das na elaboração das atividades propostas na etapa anterior. É o momento da
socialização: espaço extremamente rico entre discentes, docentes, comunidade
acadêmica e coletivos em geral16 para a reflexão sobre os aprendizados obtidos
nos TU e TC. Também tem se mostrado importante porque permite a avaliação
do que foi feito para a melhoria da educação diferenciada que é ofertada.
Posteriormente, parte-se para as discussões realizadas nas disciplinas pen-
sadas para aquele módulo do TU, porque apesar dos avanços alcançados na
Universidade ainda não se conseguiu efetivar uma educação desapegada da
disciplinarização acadêmica. Por isso, estratégias são necessárias para fazer as
mudanças. Elas não se resumem, apenas, ao currículo voltado ao conhecimento
de áreas essenciais à elaboração de desenvolvimentos alternativos, mas também
sobre os conteúdos a serem trabalhados, como se discute e de que maneira é
encaminhada a discussão.
O desafio primeiro é pensar no perfil do profissional que estará atuando como
docente ou técnico no Curso, porque é essencial que sejam pessoas sensíveis e/
ou com alguma experiência no tema da educação diferenciada e com o desen-
volvimento de trabalhos com povos indígenas, quilombolas e/ou comunidades
tradicionais.
Os conteúdos são sempre pensados em relação a estas especificidades, com
o intuito de envolver os discentes à reflexão sobre o assunto a partir de suas
realidades e propondo quase sempre a posição ativa destas pessoas para a com-
preensão e a proposição de encaminhamentos e soluções aos ‘problemas’ que
trazem à tona.
Em sala, trabalha-se com uma quantidade menor de referências bibliográfi-
cas teóricas ao longo da semana de aula, que acrescida das diferentes vivências
trazidas para a discussão qualificam e muito o debate, além de valorizar outros
saberes que não estão nos currículos das disciplinas nas universidades, com
raras exceções.
Tem-se também oportunizado aos discentes bolsas de pesquisa e extensão.
Essas experiências têm se mostrado extremamente proveitosas ao olhar dos dis-
centes que têm conhecido grupos, socializado conhecimentos e ampliado a rede
de contatos de seus coletivos com outros que enfrentam problemas semelhantes.
16
O espaço, embora aberto à comunidade acadêmica e aos coletivos em geral, têm pouca participação
dos demais atores referidos.

185
Com isso, eles passam a perceber que as situações que lhes acomete não pode
ser essencializadas, porque grupos passam ou passaram por situações seme-
lhantes e elaboraram estratégias de resistência para lidar com o problema.
Os encontros promovidos em Altamira, na região da Transamazônica e em Be-
lém é outro espaço que o Curso possibilitou aos discentes. Transitar por estes es-
paços, compartilhar experiências e ouvir outras histórias foi apontado pelos indí-
genas como sendo momentos ímpares nesse processo de reafirmação identitária.
Destaca-se a semana do calouro indígena, promovida pela Associação dos
Estudantes Indígenas da UFPA (APYEUFPA), presidida por Edimar Antonio
Fernandes, Kaingang e doutorando da Instituição, ocorrida em Belém, no início
de 2012, na qual participaram dois indígenas. O encontro com indígenas de di-
ferentes povos foi o momento em que eles puderam se deparar de maneira mais
próxima com outros indígenas na condição de discentes, compartilhando as
agruras e sucessos que eles também viviam (o que, de certa forma, “igualava”
aldeados e não-aldeados como indígenas e discentes na Universidade), na dife-
rença de origens étnicas e formas de viver a etnicidade. Vieram de Belém cheios
de histórias, se enxergando de outra maneira como indígenas, e, como de praxe
entre estes coletivos, socializaram suas experiências com os demais indígenas.
Pelo exposto, o trabalho desenvolvido em sala de aula é extremamente im-
portante, mas não é possível compreender a educação sem pensar no espaço
da sala de aula como participativo e transformador; a educação não pode ser
enquadrada às paredes da instituição escolar ou a um currículo disciplinar fixo.
Uma educação alicerçada no princípio da interculturalidade, que, de acordo com
Liliane Chipaia, da etnia Xipaya, “... ajudou a me impor, me expressar como
indígena... O Curso dá suporte para atuar: fazer os documentos, falar, [saber]
a quem se dirigir, buscar a diferença, a especificidade, trabalhar em conjunto”.
Mas a afirmação étnica não se deu da mesma forma para todos. Para uns,
essa afirmação veio acompanhada pela oportunidade de entrada no mercado de
trabalho, nos anos finais do Curso, como pesquisadores indígenas em uma em-
presa terceirizada que trabalha com escavação arqueológica na região do Xingu
ou como docentes, em escolas do município, momento que Ekilene Cabral, da
etnia Kuruaya, sintetiza da seguinte forma: “fui reconhecida. Tô no lugar que eu
tô trabalhando por causa do Curso e da minha identidade... o Etno é importante
porque não é qualquer um que entra no Etno”.
186
Para outros, por sua vez, a entrada em um curso diferenciado numa univer-
sidade pública significou, por si só, o reconhecimento de sua etnicidade, mas
também a oportunidade de contar outras histórias, a versão destes indígenas
sobre a história contada oficialmente acerca de seus povos, legitimados também
pelo conhecimento acadêmico, científico e racional, porque “o Curso não só pra
gente”. Com a fala, Lenice Silva, indígena Kuruaya, está informando do papel
político destes discentes, pois representam seus povos na Universidade e falam
em nome deles também.
Oportunidade conquistada via ações afirmativas que garante a grupos etni-
camente vulnerabilizados o ensino superior e a reescrita de partes da história do
Brasil e dos povos indígenas, como no caso em análise, repercutindo ainda mais
nas próprias estratégias de resistência dos grupos, que hoje não se identifica e
não aceita a identificação de descendente indígena. São indígenas e requerem
direito diferenciado, porque para Lenice Silva, indígena da etnia Kuruaya, “...
ser indígena... é ter uma educação diferenciada, ter o direito dos outros”, direito
a dupla cidadania proposta por Luciano (2006).

“... É preciso contar as histórias...”17


Como pode ser observado, o acesso à educação via política de ação afirmati-
va não proporciona somente o acesso à escolarização a todos que garantem esse
direito, o que por si só é uma importante conquista, mas em se tratando de cur-
so diferenciado, pode ser muito mais que escolarização, pode ser um espaço de
afirmação das identidades e da construção permanente de autonomia e alterida-
des, como propõe a perspectiva do etnodesenvolvimento e Francinélia de Paula,
indígena Xipaya, “...hoje eu quero falar de mim... ser indígena é parte da minha
história... é preciso contar as histórias para os filhos...”.
A valorização das realidades sócio-históricas dos distintos povos indígenas,
quilombolas e tradicionais de maneira geral na universidade é também parte da
contribuição que as ações afirmativas podem trazer à universidade para se tornar
pluriversidade, assegurando a concretude do Brasil plural, conforme a CF 88 pro-
põe, na medida em que a universidade passa a ser pensada e vivida como espa-

17
Relato de Francinélia de Paula, indígena da etnia Xipaya.

187
ço de mudanças sociais como Wanderley (1985) a concebe, e não apenas como
perpetuadora e legitimadora da ordem social vigente, como a compreende Sousa
Santos (2001).
Por isso, faz-se necessário a permanente reflexão sobre as experiências de
educação diferenciada e o monitoramento das trajetórias dos que se submete-
ram às ações afirmativas como uma forma de responder às críticas de que elas
seriam discriminatórias em relação à população brasileira, sem reconhecer que
a discriminação pode ser positiva se efetuada para coletivos que tiveram seus
direitos essenciais negados pelo Estado brasileiro até então, como no caso dos
indígenas, mais especialmente os que se encontram vivendo em áreas urbanas
das cidades brasileiras, que ainda lutam pelo reconhecimento à autodeclaração,
mesmo que reconhecida como principal critério para definição de identidade
étnica por importantes instrumentos jurídicos internacionais, dos quais o Brasil
é signatário, tais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Tra-
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190
Estradas, florestas, sala de aula e outros espaços:
lugares de aprender e ensinar na Amazônia

Flávio Barros1

Aos agricultores familiares, pescadores, ribeirinhos, indígenas, represen-


tantes do movimento negro e quilombolas da primeira turma do Curso de
Etnodesenvolvimento da UFPA, que representam a diversidade étnica da
Amazônia e a quem devo as muitas aprendizagens, experiências e alegrias ...

Iniciando ...
É possível ensinar no interior da floresta? Caminhando pela estrada? Andando
por igarapés? Ensinar o quê nesses lugares? E aprender o quê nesses lugares? Esse
texto tem a finalidade de apresentar experiências protagonizadas no contexto dos
processos de ensino e aprendizagem no âmbito dos componentes curriculares do
Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento 2 da Universidade
Federal do Pará (UFPA), do Campus Universitário de Altamira. O referido curso
funciona no período intervalar, ou seja, nos meses de janeiro/fevereiro e julho/
agosto, num regime de Pedagogia da Alternância, compreendendo um Tempo
Universidade (TU), momento em que os alunos participam presencialmente das
disciplinas ministradas por docentes, e um Tempo Comunidade (TC), momento
destinado à realização de intervenções, diagnósticos e estudos. Estas ações do
TC são geralmente empreendidas em cada localidade de pertença dos graduan-
dos, sendo desenvolvidas nos meses subsequentes a cada TU, em estreita inte-
ração com as disciplinas trabalhadas. A relação entre teoria e prática é, portanto,
bastante valorizada no curso, permitindo aprendizado pertinente a partir de visão
dialógica. Cada componente curricular, assim, só é concluído após o retorno dos
educandos do TC, quando eles trazem os resultados de pesquisas e intervenções.
O curso se destina aos povos indígenas e populações tradicionais da
Amazônia, abrigando pescadores artesanais, ribeirinhos, agricultores fa-
miliares, quilombolas, indígenas de diferentes etnias, dentre outras cate-
gorias sociais, dos mais diferentes territórios do estado do Pará, como

1
Etnobiólogo, Doutor em Biologia pela Universidade de Lisboa. Professor da Universidade Federal do
Pará. Contato: flaviobb@ufpa.br.
2
Para maiores detalhes sobre o curso, consultar o Projeto Político Pedagógico (UFPA, 2009).

191
Transamazônica,3 Xingu e Arquipélago do Marajó. Com efeito, numa mes-
ma sala de aula foi possível observar uma constelação de saberes, cos-
mologias, religiosidades, costumes, modos de produção, territorialidades,
falares, pensares, histórias de vida, o que, num primeiro instante, gerou in-
certezas, questionamentos e inquietações para mim porque estaria enfren-
tando um desafio político-pedagógico nesse espaço de diversidade: o que
ensinar? Como ensinar? Para que ensinar? Decerto, alguns pressupostos
foram sendo paulatinamente postos a mesa a fim de iluminar o processo. O
primeiro deles dizia respeito ao princípio de uma educação emancipadora
e não bancária, educação esta protagonizada e amplamente disseminada
por Paulo Freire (1996). Não seria possível, nem aqui neste contexto, e
nem em qualquer outro, ensinar sem aprender a partir das experiências de
vida dos povos da Amazônia que agora estavam ocupando os bancos da
Universidade. O segundo, que não está dissociado do primeiro, se ancora
na ideia do que Boaventura de Sousa Santos (2010) denomina de Ecolo-
gia de Saberes, pensamento que enxerga profundamente a diversidade de
conhecimentos do mundo e possibilita a conexão desses conhecimentos,
de universos que historicamente andaram apartados, mas que podem cami-
nhar dialogando. Como bem afirma Santos:
“[a] utopia do interconhecimento é aprender outros conhecimentos sem esquecer os
próprios. É esta a tecnologia de prudência que subjaz à ecologia de saberes. Ela con-
vida a uma reflexão mais profunda sobre a diferença entre ciência como conhecimento
monopolista e a ciência como parte de uma ecologia de saberes” (2010: 56).

O exercício se assentou justamente na reflexão de imaginar a ciência como


parte de uma ecologia de saberes, frente à diversidade de conhecimentos que
emergia na sala de aula. Partindo dessa ideia-força, procurei refletir sobre o
potencial pedagógico que os espaços existentes fora do ambiente acadêmico
poderiam proporcionar aos aprendizados e ensinamentos dos alunos e também
meu, enquanto docente. Por isso, neste ensaio defendo a ideia da floresta, do
igarapé, da estrada e de outros espaços como lugares de aprender e ensinar,
numa pedagogia que pode ser chamada de transgressora.

3
Região do Pará que agrega os seguintes municípios: Altamira, Brasil Novo, Anapú, Pacajá, Medicilân-
dia, Senador José Porfírio, Uruará, Vitória do Xingu, Porto de Moz e Placas

192
Os Componentes Curriculares
A estrutura curricular do curso, de natureza interdisciplinar, é formada por
disciplinas que conversam entre si e refletem sobre as questões sociais, cultu-
rais, educacionais, ambientais e econômicas da Região Amazônica em conexão
com as problemáticas demandadas pelos atores sociais, estes representados pe-
los educandos do curso. Desse modo, as disciplinas por mim ministradas em
parceria com outros docentes navegavam entre as inquietações trazidas pelos
alunos para o interior da sala de aula e a problematização a partir das interações
entre os saberes locais e os saberes científicos. O Quadro 1 apresenta esses com-
ponentes curriculares e seus respectivos objetivos.

Quadro 1. Disciplinas ministradas durante o Curso de Etnodesenvolvimento


Componente Objetivos
curricular
Conhecimentos tra- a) Discutir a relação entre conhecimentos tradicionais e biodiver-
dicionais e biodiver- sidade; b) Problematizar o conceito de biodiversidade no contex-
sidade to da academia, das comunidades locais e da CDB; c) Analisar os
instrumentos (na perspectiva do direito) que abordam o tema dos
conhecimentos tradicionais e biodiversidade; d) Discutir a relação
entre conhecimentos tradicionais, economia global e biotecnologia;
e) Refletir sobre sociobiodiversidade e desenvolvimento local.
Eco- a) Refletir acerca do campo teórico da Ecologia Humana e as suas
Antropologia na interfaces com a Antropologia; b) Analisar as relações entre Ecolo-
Amazônia gia Humana, Antropologia e Arqueologia para os estudos realizados
na Amazônia; c) Analisar a importância da adaptação biocultural
para o fenômeno humano; d) Ressaltar a importância das reflexões
em torno das relações entre cultura e natureza no passado e na con-
temporaneidade; e) Discutir o crescente interesse em questões rela-
cionadas com a biodiversidade, comunidades tradicionais e a sua
participação em programas de planejamento e manutenção de ecos-
sistemas locais.
Proteção da a) Problematizar as diferentes noções de recursos naturais em di-
natureza e versos contextos socioculturais, econômicos e geográficos; b) Iden-
diversidade tificar e caracterizar os diferentes tipos de ecossistemas presentes
na Amazônia; c) Entender a história do movimento ambientalista
brasileiro; d) Entender os principais elementos da política nacional
de proteção da natureza com base no SNUC e na lei ambiental; e)
Compreender a relação entre Estado, grandes projetos de desenvol-
vimento e a proteção da natureza.
Etnoecologia a) Problematizar o campo da Etnoecologia no contexto da diversi-
dade sociocultural das comunidades tradicionais da Amazônia Pa-
raense; b) Discutir elementos fundamentais (teóricos e práticos) da
Etnoecologia; c) Discutir o campo da Etnoecologia no âmbito do
Etnodesenvolvimento Local e Regional; d) Refletir sobre as diferen-
tes formas de classificação dos elementos da natureza em contextos
locais e e) Discutir a relação entre biodiversidade, cultura, territo-
rialidade e trabalho.

193
Práticas a) Refletir sobre a educação no contexto das comunidades tradicio-
educacinais, nais, tendo como base o diálogo entre os diferentes saberes locais
saberes e das populações, as práticas culturais de transmissão de conhecimen-
etnoeducação. tos e a educação escolar; b) Problematizar a escola que se tem (seu
currículo, sua concepção de ensino e de desenvolvimento) e a escola
que se quer, ou seja, desenvolver um olhar crítico dos diferentes mo-
delos de escola/ensino que o poder público disponibiliza e questio-
nar se esses modelos têm dado conta de responder aos verdadeiros
anseios das comunidades e ainda, se esses modelos têm fortalecido
os sistemas culturais (as identidades) das populações tradicionais;
c) Pensar o desenvolvimento de práticas educativas a partir das di-
nâmicas socioculturais cotidianas das diferentes populações (cos-
mologias; etnoeducação; sistemas de transmissão do conhecimento;
etnobiologia; etnomatemática; etnoagronomia; etnofarmacologia;
organização social; economia local; rituais; etc.). Entenda-se aqui a
construção de recursos didático-pedagógicos; metodologias de en-
sino; novos formatos de avaliação; etc.

As dinâmicas (métodos) empregadas durante o TU consistiam da apresen-


tação dos conteúdos programáticos, seguida de ampla discussão, pois as mu-
danças sempre foram permitidas quando um ou outro conteúdo ou método não
pareciam adequados ao momento. A participação dos educandos, com inter-
venções, questões, socialização de casos, compartilhamentos de experiências
pessoais, igualmente se faziam presentes em sala de aula, pois esses momentos
acabavam por permitir também aprendizagens entre os educandos.
Estudos de diversos teóricos relacionados aos conteúdos trabalhados em sala
de aula, apresentação de seminários, produção textual, elaboração de relatórios,
temas geradores, aulas de campo, foram alguns dos principais métodos empre-
gados durante o TU. Para o TC geralmente era indicado um leque de questões
que tinham mais conectividade com os temas da disciplina específica, entre-
tanto, estas questões se somavam a outras das demais disciplinas ministradas
no semestre, pois os alunos desenvolviam suas atividades do TC de forma in-
tegrada, atendendo às demandas do conjunto de componentes curriculares. Du-
rante cada TC, os alunos contavam com o apoio e orientação de uma equipe de
professores da Universidade que visitava os estudantes em suas comunidades.
No campo da avaliação, os seminários com discussões foram o formato mais
utilizado, pois esse método avaliativo permitia sempre um debate amplo com
reflexões. Essa dinâmica incentivava o trabalho em grupo, ora por equipe de
pertença (indígenas, movimento negro, ribeirinhos, pescadores, quilombolas e
agricultores familiares), ora de forma a integrar diferentes representantes dos
194
grupos de pertença. Esses momentos eram riquíssimos, pois as experiências e
percepções, narrados em diferentes sotaques, interagiam. Os seminários propor-
cionavam, ainda, a expressão oral, mas, principalmente, permitiam-me perceber
como os educandos se apropriavam dos conteúdos e como se dava a associa-
ção destes com a realidade observada no campo. Nestes seminários um mundo
de possibilidades e talentos emergia em sala de aula. Poesia, música, teatro,
programa de rádio e maquetes se transformavam em expressões e maneiras de
apresentar os resultados de cada grupo. Nessas ocasiões, religiosidades, ciência,
empiria, arte e conflitos faziam parte da cena, demonstrando que outros forma-
tos de ensinar e aprender são possíveis na academia, pois a vida cotidiana dos
alunos, a maioria habitantes do espaço rural amazônico, acontece permeada por
outras lógicas, muitas vezes diferente das lógicas urbanas. Apesar de ter parti-
cipado de cinco disciplinas, neste ensaio irei socializar as experiências didáti-
co-pedagógicas de duas, Etnoecologia e Proteção da Natureza e Diversidade.

Primeira paragem: a estrada, a Transamazônica


Partimos de Altamira no dia 19 de julho de 2012, por volta das 5h, rumo ao
município de Medicilândia, com objetivo de desenvolver o trabalho de campo
da disciplina Etnoecologia.
Alguns pesquisadores costumam dividir a Amazônia em Amazônia das es-
tradas e Amazônia dos rios (Sayago et al., 2004). Apesar de a Transamazônica
estar situada na Bacia do Xingu, esta região específica, de modo geral, é enqua-
drada na classificação de Amazônia das estradas. Portanto, não podia falar de
trabalho de campo, de lugar de ensinar e aprender na Amazônia sem trazer esse
elemento. A Transamazônica tem uma história que se divide em dois períodos,
ou seja, antes e depois da colonização da década de 1970, quando o governo
brasileiro incentivou a vinda de migrantes das regiões Nordeste e Sul do Brasil
para ocupar um ambiente antes dominado por florestas habitadas por povos in-
dígenas.
Neste cenário foi possível discutir fatos marcantes da história da Amazônia,
como os processos de expropriação pelos quais os povos nativos passaram em
nome do modelo de desenvolvimento que se configurava na altura da coloniza-

195
ção. Para os povos do Marajó, conhecer esta outra parte do Pará, de gentes com
costumes e maneiras distintas de se relacionar com os recursos naturais, foi uma
experiência, em minha opinião, fantástica.
A precariedade da estrada perdurou desde a época de sua abertura até a che-
gada dos colonos e até o presente boa parte da população enfrenta os perigos
de uma rodovia de chão batido que, no verão, é impregnada de poeira que gera
cegueira aos condutores, e, no inverno, buracos e lamaçais. Além da rodovia
principal, existem as vicinais, em ambos os lados, com uma configuração que
lembra uma espinha de peixe. Com a construção da Hidroelétrica de Belo Mon-
te, partes da rodovia vêm sendo asfaltadas, não para atender a uma demanda da
sociedade local, mas motivada pelo grande empreendimento, o qual necessita
de infraestrutura para a sua consecução.
Nesse contexto, quando organizávamos as saídas de campo, a primeira
questão que vinha a tona era: como conseguir os meios materiais para rea-
lizar a atividade? Uma parte da aula era reservada para organizarmos data,
horário de saída e retorno, localidade a ser visitada, motorista, tipo de trans-
porte mais adequado (ônibus, micro-ônibus, kombi, pau de arara). Todos
esses meios de transporte são bem adaptados às condições da estrada. Em
muitas ocasiões, pela emergência da organização das saídas de campo, pois
o período de cada disciplina era de apenas uma semana, algumas vezes, nós,
professores, tivemos que arcar com as despesas de pagamento de motorista
e transporte, pois não havia tempo hábil para esperarmos a burocracia da
Universidade. Em todas as situações fomos bem sucedidos. Além das condi-
ções materiais, a parte pedagógica era devidamente pensada: o que pesqui-
sar, como, para que, como proceder em campo (aspectos éticos), questões
de segurança etc.
Caminhando pela estrada conhecemos gentes, lugares, casas, paisagens, iga-
rapés, cidades, comidas e histórias de vida. Em cada paragem, aumentava-se
a certeza de que a aposta foi correta e que todo o trabalho tinha valido a
pena. Sem contar na logística da alimentação, pois os alunos eram expertises
em organizar esta parte, e logo estava toda a comida pronta: peixe, farofa,
churrasco, sobremesa, água, refrigerante, suco, copos, talheres, pratos, tudo
196
impecavelmente organizado. E a viagem continua, com 37 alunos e dois pro-
fessores (eu e Eliane Sousa Faria), divididos em dois transportes, um pau de
arara e um micro-ônibus...

Segunda paragem: a floresta, a Comunidade Bom Jesus da Água Viva


Em sala de aula, tudo tinha sido articulado para realizarmos a pes-
quisa na Comunidade Bom Jesus da Água Viva, km 95 Norte, Projeto de
Assentamento Surubim, em Medicilândia/PA. Ao chegarmos à comu-
nidade, por volta das 8h, fomos recebidos pela família de Dona Delci e
Seu João com um farto café da manhã, composto de macaxeira cozida,
banana de duas variedades, café, leite e água. Em seguida a equipe foi di-
vidida em quatro grupos para visitarem quatro distintas famílias, que de-
veriam acolhê-los para que pudessem entrevistá-las e conhecer o sistema
de produção, bem como os demais aspectos dos estabelecimentos fami-
liares agrícolas. Cada grupo ficou responsável por construir seu roteiro
de entrevista, observando, principalmente, os objetivos da disciplina (ver
Quadro 1) de Etnoecologia, uma área do conhecimento pouco difundida
na Amazônia, apesar da diversidade biológica e cultural da região. De
acordo com o pensamento de Toledo e Barrera-Bassols, a Etnoecologia
se propõe a
“... estudar a integração do complexo kosmos-corpus-praxis (k-c-p) dentro dos proces-
sos de teorização, representação e produção nas diversas escalas espaço-temporais. Os
etnoecólogos precisam então interpretar os modelos do mundo natural que possuem os
produtores, famílias e comunidades com culturas tradicionais, com o fim de compreen-
der em toda sua complexidade as sabedorias locais” (2009: 41).

De acordo com esses autores, o kosmos é representado pelo sistema de cren-


ças, o corpus pelo conjunto de conhecimentos e a práxis pelas práticas produti-
vas. Após termos discutido esses elementos em sala de aula, o papel do campo
era fazer com que os alunos observassem na comunidade como esses compo-
nentes se revelavam. Assim, as entrevistas, observações e a vivência na comuni-
dade foram relevantes para os alunos identificarem na prática os pressupostos da
Etnoecologia, percebendo assim o papel da associação teoria-prática. A seguir
apresento alguns fragmentos dessa experiência de campo.
197
No lote de Dona Maria Trindade
Dona Maria Trindade é uma senhora com cerca de 55 anos que possui uma
relação harmoniosa com sua terra, onde tem plantação de açaí, abacate, abacaxi,
banana, cupuaçu, goiaba, mamão, taperebá, maracujá, coco, dentre outras fru-
tíferas. Quando visitamos seu lote, ela nos contou sua história de vida e como
foi sua trajetória até chegar à comunidade. Tendo ficado viúva há menos de um
ano, nos relatou sobre o desejo dos filhos de a levarem para a cidade, por causa
das facilidades de acesso a assistência médica. Contou que enquanto vida tiver
não pretende sair do seu lugar, pois a natureza existente na floresta a fazia bem.
Mostrou-nos com alegria e orgulho todas as riquezas existentes: a roça, o açai-
zal, uma fonte de água, seu criatório de peixes e a criação de galinhas. Quando
os alunos perguntaram sobre caça, pesca e cultivos, Dona Maria respondeu:
“[e]u tenho esse criatório de peixes, mas não é para comer. Esses peixes são meus
amigos, meus companheiros. Toda tarde venho pra cá conversar com eles, e eles con-
versam comigo, ficam pulando na beira, conhecem minha voz. Também gosto muito
de andar no meio do açaizal e conversar com os jacus.4 Quando eu estou triste e de-
pressiva eu venho pra cá conversar com eles. O que eu mais gosto aqui é dos animais.
Eu não autorizo ninguém a caçar aqui na minha terra porque os bichos são todos filhos
meus... fico muito alegre quando eu vejo os jacus nas árvores brincando, pulando de
galho em galho... é aquela alegria” (Dona Maria Trindade, agricultora familiar, entre-
vista realizada em 19/07/2012).

Com este convívio os alunos puderam refletir sobre temas como trabalho,
cosmologias, relação sociedade e natureza, agrobiodiversidade, plantas medici-
nais, conhecimentos tradicionais, sistemas de produção, dentre outros. A título
de exemplo, foi possível apreender, a partir dos relatos sobre os animais que
visitam o açaizal, o conceito de cosmos; a noção de corpus foi apreendida por
meio dos conhecimentos existentes acerca da dinâmica do açaí pelos agriculto-
res e, por último, a práxis, vivenciada por meio das práticas de manejo. A huma-
nização dos animais pôde ser problematizada à luz da teoria do perspectivismo
ameríndio (Viveiros de Castro, 2011). Este grupo era formado pelas seguintes
pessoas: Danilson Paiva, Ediléia Braulino, Ervelys Ramos, Francinélia de Pau-
la, Josilene Goltardi, Lindonaldo Bandeira, Liliane Chipaia, Luíza da Concei-
ção, Benilde dos Santos e Reginaldo Frutuoso.

4
Trata-se de uma ave típica da Amazônia.

198
No lote de Dona Delci
O grupo que pesquisou o lote de Dona Delci, além de construir um relatório
denso e rico em detalhes, apresentou alguns resultados em forma de desenhos
esquemáticos (croquis), os quais demonstraram a diversidade da agricultura fa-
miliar, traduzida pela variedade de usos do espaço para o extrativismo, a caça,
criação de animais domésticos (porco, galinha e pato), agricultura, criação de
animais para a segurança da família e auxílio à atividade cinegética (caso dos
cachorros), mas também as formas de lazer, organização social, dentre outros.
As Figuras 1 e 2, seguidas de um poema, representam a experiência do grupo
composto por Edileusa Costa, Maiane Gomes, Elieide Conceição, Elianete Sou-
sa, Terezinha Silva, Fernando Vaz, Gleise Leal, Maria Divina, Alineia da Silva
e Meire do Socorro.

Figura 01. Croqui da casa de Dona Delci e entorno

Desenho: Maria Divina, agricultora familiar e estudante do Curso de Etnodesenvolvimento

199
Figura 2: Casa de farinha e frutíferas no entorno, lote de Dona Delci

Desenho: Maria Divina, agricultora familiar e estudante do Curso de Etnodesenvolvimento

POEMA, por Maria Divina

Bom dia docentes e discentes Apresentamos nosso trabalho


Escutem o que vamos dizer Com todo nosso argumento
É sobre nosso relatório Se alguém não entender
Que iremos descrever Aponte seus questionamentos

Ao chegar naquele sítio A alegria daquela gente


Fiquei a admirar Vindo nos encontrar
Tanta beleza reunida Preparando um belo lanche
Em um mesmo lugar Com as frutas do lugar

Naquele rosto alegre Ao iniciar a entrevista


Que expressava contentamento Começamos a perguntar
E todos se abraçavam Dona Delci com toda paciência
Em forma de cumprimento Começou a nos explicar

Andando pelo quintal Cachorro, gato, galinha


Foi possível observar Tudo tinha naquele terreiro
A diversidade de animais O gado criado no pasto
Andando pelo pomar E o porco no chiqueiro

Chegando na farinheira Ficamos impressionados


Começou a observação Com o sistema de produção
Fomos logo reparando E a quantidade de alimentos
A prensa e o lampião Cultivados naquela região
Mandioca, inhame, café Na hora do almoço

200
Banana, cacau e mamão Foi feita uma oração
Arroz, macaxeira e milho Em agradecimento a Deus pela
Melancia, laranja e feijão deliciosa refeição
Todos esses produtos enriquecem Pois aqueles alimentos são frutos da
a alimentação da produção, todos estavam a vontade
até fizeram a repetição
Terminamos este trabalho
Com grande satisfação
Agradecendo a Deus
Que nos deu a proteção
E a todos os nossos colegas
Pela vossa atenção

Os desenhos e o poema são reveladores de uma diversidade biocultural e


social presente no interior da Floresta Amazônica, demonstrados pela forma
como os agricultores manejam a floresta para retirar dela os recursos para sua
reprodução física e social. O trabalho de campo permitiu que os estudantes ve-
rificassem que o campo (a floresta), no território da Transamazônica, é um lugar
de vida, de memória, de produção, de religiosidades e de trabalho. Outro aspec-
to relevante se relaciona a possibilidade de troca de experiências, pois os alunos
indígenas, os quilombolas do Marajó, os representantes do movimento negro, os
pescadores de Senador José Porfírio e mesmo os agricultores familiares de ou-
tros municípios da Transamazônica, puderam aprender como se dão as práticas
produtivas na comunidade foco do estudo, demonstrando, assim, que os povos
tradicionais se relacionam de diferentes maneiras com o seu território (Almeida,
2008; Little, 2002). Mas a vida na comunidade não é apenas marcada por aspec-
tos positivos. Com efeito, as pessoas também falaram de suas lutas cotidianas
por direitos, acesso a crédito, melhores condições de vida, educação e saúde.
A floresta, não como uma ideia de floresta intocada, mas como espaço de vida,
pôde, assim, ser visualizada como um lugar de ensinar e aprender na Amazônia,
ainda mais quando se trata de ensinar/aprender Etnoecologia.

Outras Paragens: a cidade de Altamira e o Projeto Belo Monte


“É muito triste ter que sair daqui do nosso lugar, eu tenho uma casa no Bairro São Do-
mingos, mas prefiro ficar aqui onde construí tudo o que tenho, as amizades, a convivên-
cia com o povo daqui, e conheço todos os meninos, tem violência, mas violência existe
em todo lugar, pois gente ruim tá espalhada pelo mundo inteiro, principalmente quando
fala nesse assunto de barragem. Agora sim, violência é isso que está acontecendo com
201
nós que vamos sair do nosso lugar, sem fazer nada com ninguém porque aqui é nossa vida
e nunca mais vai voltar a ser como antes, vai ser tudo destruído e isso é uma ambição
muito grande onde vai ser mais pessoas prejudicadas do que favorecidas. Quando toco
nesse assunto sinto que estou perdendo tudo que é meu...e as casas que vão dar pra nós
pode ser a melhor do mundo mas meu lugar é aqui, mas não sei se vai ter casa mesmo
porque nunca mais tocaram nesse assunto, vieram aqui, fizeram um cadastro e umas pro-
postas mas casa construída que é bom não tem ainda e parece que não vai demorar muito
para o projeto tirar nós daqui, e fico me perguntado: nós vai pra onde?” (Dona Josefa, 56
anos, moradora do Bairro Açaizal, Altamira/PA, entrevistada em 31/07/2013).

Nesta paragem, que se passa agora na cidade de Altamira, irei contar as


experiências da disciplina Proteção da natureza e diversidade, ministrada em
julho de 2013. Nesse contexto, escolhi a narrativa de Dona Josefa para abrir
o tópico, pois a indignação dessa cidadã altamirense pôde ser problemati-
zada em sala de aula a partir de um dos objetivos da disciplina, que era “[c]
ompreender a relação entre Estado, grandes projetos de desenvolvimento e a
proteção da natureza”.
Neste componente curricular a turma foi dividida em três grupos que teriam
como missão compreender como os moradores de bairros periféricos, as Orga-
nizações Não-Governamentais (ONG’s), os movimentos indígenas e os órgãos
públicos do Estado brasileiro se posicionavam frente ao Projeto Belo Monte,
com foco nos impactos socioambientais do empreendimento. Um grupo ficou
responsável por desenvolver a pesquisa com os moradores dos bairros Açaizal e
Invasão dos Padres, ambos na cidade de Altamira/PA, bairros estes que sofrerão
mais diretamente os impactos da construção; o segundo grupo se debruçou sobre
os órgãos públicos (Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Instituto Brasilei-
ro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, Empresa
de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMATER e Secretaria Municipal do
Meio Ambiente e Turismo – SEMAT) e o terceiro grupo investigou as ONG’s
(Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), Instituto Socioambiental (ISA) e
Associação Indígena Nativa Kuruaya de Altamira (INKURI)). Para a consecução
da pesquisa os membros dos grupos elaboraram roteiros de perguntas consoantes
ao tipo de ator a ser entrevistado, porém determinadas questões foram comuns
a todos os grupos; realizaram observações, registros fotográficos e executaram
entrevistas. A seguir socializo alguns resultados dessas três pesquisas, começando
pelos moradores atingidos dos bairros.
202
O povo do Açaizal e da Invasão dos Padres
Este grupo, composto por 13 pessoas, foi subdividido em duas equipes, uma
para trabalhar no Açaizal e outra na Invasão dos Padres. Os sujeitos sociais en-
trevistados foram pescadores, comerciantes, vigilantes, estudantes, aposentados e
donas de casa, pois o grupo teve o cuidado de escutar uma diversidade de atores
para se posicionar sobre o assunto Belo Monte. Os estudantes identificaram que
as opiniões dos entrevistados foram divididas, uns apontando aspectos positivos e
outros, negativos, acerca do empreendimento. Entre os que se posicionaram favo-
ráveis, destacaram a oferta de emprego, geração de renda, melhorias na educação
e saúde, melhores condições de moradia; ao passo que aqueles de posicionamento
contrário ao projeto, relataram como aspectos negativos a destruição dos recursos
naturais, aumento da violência, desaparecimento das praias, aumento do custo
de vida, prostituição, tráfico de drogas, acidentes no trânsito, escassez de peixes,
dentre outros problemas. Como mencionado, apesar de os moradores terem expli-
citado aspectos positivos da barragem, o número de aspectos negativos superou
consideravelmente. Quando o assunto foi o impacto sobre os recursos naturais,
alguns moradores falaram dos efeitos deletérios sobre o Rio Xingu e os recursos
pesqueiros, como destacou o pescador entrevistado:
“[e]stão entupindo os rios, o rio não seca mais, a pesca está péssima, na Volta Grande está
escasso de peixe porque estão detonando explosivo, está morrendo muito peixe. A ten-
dência é piorar cada vez mais a vida do pescador artesanal que depende do pescado para
sobreviver” (Sr. Francisco, pescador artesanal, morador do Bairro Invasão dos Padres,
entrevistado em 31/07/2013).
Muitos outros elementos, como a garantia de direitos constitucionais, por
exemplo, foram descritos no relatório elaborado pelo grupo a partir da pesqui-
sa de campo. As reflexões originadas dessa pesquisa foram muito importantes
porque fomentaram debate em sala de aula, quando os alunos puderam, à luz da
legislação ambiental brasileira, discutir sobre os direitos constitucionais e, de uma
leitura a partir do campo político, problematizar, por meio de diferentes ângulos,
o que representa a presença do projeto nesta parte da Amazônia e como tal empre-
endimento afetará os povos e comunidades tradicionais.

Os órgãos públicos
Este grupo foi dividido em duas equipes que se organizaram para entrevistar
os diferentes órgãos públicos presentes em Altamira. Apesar das tentativas, houve
203
instituições que recusaram participar da pesquisa, posição que foi devidamente
respeitada pelos alunos. As pessoas que aceitaram participar do estudo, con-
tudo, solicitaram sigilo de identidade. Os principais fatores que saltaram aos
olhos do grupo foram o fato de saber que há possibilidade, segundo disseram
os entrevistados, de a usina alagar boa parte da área urbana de Altamira, bem
como mais de 1000 imóveis rurais dos municípios de Altamira, Brasil Novo e
Vitória do Xingu. Se isso ocorrer, aproximadamente 30-40 mil pessoas seriam
desalojadas por conta da obra, além de afetar, de forma direta ou indireta, os
11 municípios da região, terras quilombolas, terras indígenas, unidades de con-
servação etc. Sobre o cumprimento das condicionantes, alguns entrevistados
disseram que não estão sendo cumpridas, e, por tal razão, a cidade estava em
situação de total precariedade em todos os setores, desde a saúde até seguran-
ça e educação, demonstrando claramente que o município de Altamira nunca
esteve preparado para receber tamanha população de migrantes e forasteiros.
A opinião do Instituto Socioambiental (ISA), socializada a seguir, traduz o que
representa o projeto para a região:
“[e]m relação aos impactos causados por Belo Monte, a instituição relata que são
muitos, como: roubo de madeira, conflito de pesca, impactos na saúde, educação, nos
campos social e cultural; mediante essa problemática a entidade se posiciona bastante
crítica e contra a construção de Belo Monte. Isso não é projeto para a Amazônia” (En-
trevista concedida por técnico do ISA, em 31/07/2014).

Os resultados colhidos em campo foram trabalhados em sala, com foco


no tema dos grandes projetos de desenvolvimento. Os alunos refletiram
sobre as diferentes concepções de desenvolvimento, sobre políticas neoli-
berais, capitalismo e natureza e, ainda, sobre as incongruências existentes
entre a legislação ambiental brasileira, os projetos ditos de interesse nacio-
nal e a garantia de direitos dos povos e comunidades tradicionais à luz da
constituição brasileira.

As ONG’s e o movimento indígena


O grupo seguiu a mesma metodologia dos demais, se dividindo para maxi-
mizar esforço e tempo. As ONG’s entrevistadas foram a FVPP, ISA e INKURI
que, por meio de seus representantes, falaram sobre sua concepção de con-
servação e uso de recursos naturais, tipo de trabalho que desenvolve junto à
204
comunidade e como se posiciona frente ao empreendimento. A seguir apresento
algumas questões-chave e as respectivas respostas das entidades.
Exemplo 1: “Qual sua concepção sobre conservação e uso dos recursos naturais?
1-FVPP: Tem planejamento estratégico de 10 anos, é a preservação do meio ambiente
visando os três elos: econômico, ecológico e social. Ela é articuladora e fomentadora
de processos de desenvolvimento regional. Ex.: Criação das Reservas Extrativistas e
outras áreas protegidas na região.
2- ISA: Desfrutar da natureza, dos recursos naturais não intactos com manejo e integra-
ção com o homem e sociedade.
3- INKURI: Já somos acostumados a morar na beira do rio, nosso povo habita há sécu-
los e o ambiente ainda continua preservado.”

Exemplo 2: “O empreendimento Belo Monte causa algum tipo de impacto nesta re-
gião? Quais?
1-FVPP: Sem dúvida, o impacto socioeconômico de Belo Monte é imensurável. Fica o
desastre ecológico, social e o não cumprimento das condicionantes.
2- ISA: Em relação aos impactos causados por Belo Monte, a instituição relata que
são muitos, como: roubo de madeira, conflito de pesca, impactos na saúde e educação;
mediante essa problemática a entidade se posiciona bastante crítica contra a construção
de Belo Monte, isso não é projeto para a Amazônia.
3- INKURI: Sem dúvida causa impacto para todos nós. Um dos principais problemas
é a questão do reassentamento das famílias. Outros que serão impactados diretamente
são os povos Xikrin, onde sua área vai ficar seca. Muita destruição como está aconte-
cendo no Rio Madeira. Estamos sendo impactados, vamos perder nossas praias e ilhas
e vai ficar a escassez de peixe.”

A equipe responsável pelas ONG’s e associação indígena enriqueceu o


debate a partir da apropriação das ações e iniciativas dessas instituições na
região da Transamazônica. Foi possível observar claramente que, apesar do
projeto estar sendo conduzido, existem grupos que ainda mantêm uma re-
sistência ou que participam do debate na tentativa de buscar meios que mi-
nimizem os impactos dessa política nacional de geração de energia a partir
de hidroelétricas.

Finalizando ...
As experiências narradas aqui tiveram a intenção de mostrar que outros luga-
res (fora da velha conhecida sala de aula), como a floresta, a roça, a estrada, as
comunidades de bairros, podem se constituir como lugares de aprender e ensinar
na Amazônia. A concepção de educação popular de Freire (1996) nos ensina que
estar com os homens em situação é uma das maneiras mais eficazes para com-
205
preendermos e aprendermos sobre a vida do outro. Foi o que tentamos fazer.
Ainda que o tempo fosse curto, os recursos parcos, nossas “pedagogias trans-
gressoras” foram capazes de nos auxiliar a compreender, na prática, o que os
teóricos queriam dizer quando falavam de ecologia de saberes (Santos, 2010),
territorialidades (Little, 2002; Almeida, 2008), kosmos/corpus/práxis (Toledo
& Barrera-Bassols, 2010), perspectivismo ameríndio e cosmologia (Viveiros de
Castro, 2011). Digo nossas pedagogias porque parti do princípio que o diálogo
também deveria acontecer na construção dos percursos didático-metodológicos
de cada disciplina junto com a turma.
Em sala de aula as culminâncias dos trabalhos de campo foram riquíssi-
mas de reflexões científicas, políticas, mas, sobretudo, de emoções, espírito de
equipe e, às vezes, tomadas de indignação, até porque haviam alunos atingidos
diretamente pelo Projeto Belo Monte por meio de deslocamentos compulsórios.
Outra reflexão se pauta no exercício do pensamento e da ação, pois entendemos
que o ensino contextualizado/pertinente, partindo de experiências vivas, pôde
proporcionar uma formação que, a meu ver, estivesse mais próxima da proposta
do Curso de Etnodesenvolvimento, uma vez que este visa formar profissionais
com capacidade para intervir em suas comunidades nos diferentes campos ati-
nentes à sociedade, como saúde, educação, direitos humanos, economia e meio
ambiente, em conexão com as questões de um mundo cada vez mais globaliza-
do. Além dessas práticas de vivências levadas a termo durante as disciplinas, é
fundamental destacar os estudos e pesquisas conduzidos durante o TC, quando
os alunos levaram questões relacionadas às disciplinas para serem aplicadas em
suas comunidades específicas. Foi aí que a experiência de campo durante o TU
serviu como uma espécie de prévia para que os educandos pudessem replicar
metodologias e práticas de pesquisa durante o TC. Por último, quero dizer sobre
a significativa contribuição do curso e dos estudantes para a ressignificação da
minha prática pedagógica, pois, infelizmente, o acesso dos povos e comunida-
des tradicionais à Universidade Federal do Pará, em particular os indígenas,
ainda é escasso.

206
Referências
Almeida, Alfredo Wagner Berno de. 2008. Terras de quilombos, terras indígenas,
“babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradi-
cionalmente ocupadas. Manaus, PGSCA-UFAM.
Freire, Paulo. 1996. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educa-
tiva. São Paulo, Paz e Terra.
Little, Paul Elliot. 2002. “Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: por uma
Antropologia da Territorialidade” In Série Antropologia-322, Brasília, UnB. Disponí-
vel em: <<http://vsites.unb.br/ics/dan/Serie322empdf.pdf>>. Acesso em: 21.04.2014.
Santos, Boaventura de Sousa. 2010. “Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia de saberes”. In Santos, Boaventura de Sousa & Meneses, Pau-
la (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo, Cortez, 31-83.
Sayago, Doris; Tourrand, Jean-François & Bursztyn, Marcel (orgs.). 2004. Amazônia:
cenas e cenários. Brasília, UnB.
Toledo, Victor Manuel & Barrera-Bassols, Narciso. 2010. “A etnoecologia: uma ci-
ência pós-normal que estuda as sabedorias tradicionais” In Desenvolvimento e Meio
Ambiente. (20), 31-45. Disponível em: <<ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/made/article/
download/ 14519/10948>>‎. Acesso em: 20.04.2014.
Viveiros de Castro, Eduardo. 2011. A inconstância da alma selvagem. São Paulo,
Cosac Naify.

207
III. Pedagogias & Interculturalidade

208
Ensino superior & povos indígenas:
um diálogo em construção?

Adir Casaro Nascimento1


Antonio H. Aguilera Urquiza2
Beatriz dos Santos Landa3

Primeiras aproximações
A partir da aprovação da Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012, pelo Governo
Federal, incluída no que chamamos de políticas públicas de ações afirmativas no
Brasil, a qual estabelece a obrigatoriedade da reserva de vagas nas Universidades e
Institutos Federais, combinando como critério de participação, a frequência à escola
pública com o critério de renda e recorte de cor (étnico). Trata-se de uma conquista
histórica digna de comemoração como um passo importante no processo de demo-
cratização do direito à educação superior no Brasil e na promoção da igualdade de
oportunidades para todos, a partir de suas especificidades culturais e socioeconômi-
cas. Mas, segundo Gersem Luciano Baniwa (2013) - antropólogo... a política de co-
tas, docente da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) – a política das cotas,
assim como todas as políticas de ações afirmativas, não pode ser considerada como
um fim em si mesmo e nem como uma solução única para todos os problemas de
desigualdade e exclusão educacional no país. É um ponto de partida para se pensar o
enfrentamento mais pragmático das desigualdades associadas à exclusão e discrimi-
nação racial, sociocultural, econômica e étnica. Neste sentido, o alcance da Lei de-
pende de ações e estratégias a serem adotadas pelo Ministério da Educação e pelas
Instituições Federais de Ensino. Em síntese, a Lei nº. 12.711/2012 determina que em
quatro anos (até 2016) as Universidades e os Institutos Federais de Educação devem
reservar 50% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas, com subcotas
para estudantes de baixa renda, pretos, pardos e indígenas. (Luciano, 2013:18)

1
Doutora em Educação Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação (PPGEDU) da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Contato: adir@ucdb.br.
2
Doutor em Antropologia (Universidade de Salamanca/Espanha). Professor da UFMS e da Pós-Gradu-
ação em Antropologia da UFGD; professor colaborador do PPGEDU/UCDB. Contato: hilarioaguilera@
gmail.com.
3
Doutora em Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pro-
fessora da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) e da Pós-Graduação em Antropologia
da UFGD. Contato: bialanda@uol.com.br.

209
Iniciamos este texto com esta reflexão, porque ela significa, de certo modo, que
a partir de agora, está garantida, pelo menos quantitativamente, a presença cada
vez mais constante de indígenas no Ensino Superior, o que não era uma realidade
comum antes de 2012. Inicialmente os indígenas que acessavam as universidades
o faziam por esforço próprio, sem nenhum apoio institucional e, enfrentando to-
das as formas de dificuldades, sendo a discriminação apenas uma delas.
Apenas em 2002, com a Lei Estadual nº. 2.589 (26/12/2002), a UEMS passa
a ser a primeira universidade do país a reservar vagas para indígenas (10%). A
partir de 2003 a entrada regular de indígenas no ensino superior, passa a ser uma
realidade efetiva no Estado de Mato Grosso do Sul. Neste contexto, em 2005
começa o Programa Rede de Saberes – permanência de indígenas no ensino
superior, com recursos da Fundação Ford e a intermediação do LACED/Museu
Nacional, através do Programa Trilhas do Conhecimento.
O Programa tem início efetivamente em 2005, inicialmente a partir de uma
parceria entre a UCDB e UEMS e, logo depois, com a UFGD e UFMS, com
o objetivo de dar apoio e suporte para a permanência de indígenas no ensino
superior, incentivando o exercício da interculturalidade, o diálogo de saberes e
a valorização dos vínculos com suas comunidades de origem, na região de Mato
Grosso do Sul, estado que na atualidade concentra a maior número de indígenas
nas universidades, calculados ao redor de 900 estudantes.

Povos indígenas, território e educação intercultural


No estado de Mato Grosso do Sul, vivem atualmente ao redor de dez povos
indígenas, cada um com suas particularidades históricas e culturais. No âmbito
deste trabalho, colocaremos ênfase na realidade dos Guarani (Kaiowá e Ñan-
deva) e Terena.
Os Guarani ou Kaiowá e Ñandeva constituem dois povos indígenas geral-
mente chamados de Guarani na literatura antropológica, mas que se identificam
e se percebem como etnias distintas em Mato Grosso do Sul e em outras partes
da região platina. No Paraguai os Kaiowá são conhecidos como Paĩ-Tavyterã e
os Guarani Ñandeva conhecidos como Xiripá ou Avá.
Do ponto de vista histórico, pode-se afirmar que a ocupação geopolítica da

210
região de fronteira seguida pela exploração econômica, levada a cabo como
política oficial do Estado Brasileiro após a guerra entre o Paraguai e a Tríplice
Aliança (1864-1870), culminou no cerceamento territorial dos povos indígenas
(Kaiowá e Guarani) no antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul.
Disso resultou no abalo da autonomia política, fragmentação das formas tradi-
cionais de organização social e na fragilidade econômica presente nas comuni-
dades atuais.
A Grande Guerra contribuiu para alterar o isolamento de parte importante da
atual região da Grande Dourados. Terminada a guerra, grande parte dos ex-com-
batentes, especialmente paraguaios, ficaram pela região, sendo que muitos, se-
gundo testemunho de informantes indígenas, empregaram-se como mão-de-o-
bra na Cia. Matte Larangeira, que se instala na região a partir da década de 1880,
para explorar os imensos ervais nativos nesta região, conforme figura abaixo.

Figura 1 – Ervais no sul de Mato Grosso do Sul

Este certamente foi o primeiro grande impacto sofrido pelos Kaiowá e Gua-
rani, tendo em vista que tanto a Grande Guerra, como a posterior exploração da
Cia. Matte Larangeiras foi, literalmente em cima do seu território, além do uso
de sua mão de obra no processo de extração da erva.
A situação do povo Terena não é muito diferente. O contato com o que cha-
mamos de sociedade nacional ocorre desde a primeira metade do século XVIII,
no movimento de busca pelo ouro na região de Cuiabá, e posteriores tentativas
211
de colonização do estado de Mato Grosso. A situação territorial do povo Terena
permanece quase inalterável e a relação com os colonos marcada pelo respeito
mútuo, até o momento da chamada Guerra do Paraguai. Assim como ocorreu
com o povo Guarani, com o fim da guerra, a situação muda drasticamente, com
a perda dos territórios tradicionais e o início das hostilidades. O século XX é
marcado pela expropriação dos territórios indígenas no estado, restando peque-
nos fragmentos, onde passam a viver em situação precária, dependendo cada
vez mais de políticas públicas que não incentivam a autonomia, ao contrário,
reforçam a dependência.

Figura 2 – Principais povos indígenas de Mato Grosso do Sul

O território é fundamental, pois os indígenas desenvolvem profunda relação


física, afetiva e simbólica com a terra, entendida aqui como território, espaço
próprio de constituição e vivência identitária. A partir deste contexto é que o
presente texto coloca em cena a alternativa política de demanda dos indígenas
pela educação formal e, em especial, pela educação superior. O fato dos po-
vos indígenas chegarem à universidade dando visibilidade à sua cultura, ao seu
modo de ser no mundo, provoca uma inquietação epistemológica, tensões que
desconstroem a noção de cultura como algo fixo e naturalizado e exige entender
que as populações indígenas se deslocam em diferentes espaços e nesse deslo-
camento as suas particularidades se reafirmam e as diferenças se apresentam
com suas presenças e significados.
212
Nesta direção, a demanda para o ensino superior tem se caracterizado como
novo elemento na luta por autonomia e construção de políticas de sustentabilidade
dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, na contemporaneidade. A universi-
dade passa a ser entendida, pelos indígenas, como um espaço a mais de diálogo in-
tercultural e negociação entre lógicas e formas distintas de entender o ser humano
e suas relações com a natureza. Dessa forma, chegar à universidade significa para
os indígenas apropriar-se de ferramentas que permitam protagonizar a reescrita de
suas histórias, até então não alcançada pelos cânones escolares/acadêmicos bem
como inverter o ponto de partida para a busca de alternativas de solução para os
problemas contemporâneos. Estas possibilidades são evidenciadas nos depoimen-
tos de estudantes ao longo de seu processo formativo, e que se complexificam a
partir da apropriação dos conhecimentos transmitidos pelas universidades e na
busca pela articulação com as demandas de cada comunidade: “obter conheci-
mentos para ajudar minha comunidade”, “conhecer os direitos diferenciados que
existem para os povos indígenas”, “cuidar da saúde a partir do jeito do índio”,
“aumentar a oferta e produção de alimento para a comunidade”, “contribuir para
a melhoria da educação na escola da aldeia”, representam um pouco das moti-
vações destas e destes jovens para a continuidade dos cursos no ensino superior,
cujo cotidiano é marcado por processos excludentes e pleno de demonstrações de
racismo, preconceito e discriminação velados ou explícitos em alguns casos.
Cresce, com isso, também, a preocupação com as condições que essas IES
têm para formar profissionais que atendam às demandas de suas comunida-
des. Qual o papel dos conhecimentos indígenas na formação desses indígenas?
Como as universidades poderiam potencializar o diálogo com esses outros co-
nhecimentos, historicamente subalternizados e delegados como não científicos?
Estes têm sido temas transversais que orientam as ações do Programa Rede de
Saberes que acompanha a maioria dos indígenas que ingressam nas universida-
des do Estado de Mato Grosso do Sul.

A Universidade e a presença de indígenas


Entendemos que as universidades não só podem deixar de ser espaços de re-
produção da exclusão e do preconceito contra os povos indígenas, mas, ao con-
trário, constituírem-se em espaços privilegiados para o diálogo e o encontro de
213
culturas. Sob o ponto de vista epistemológico e político seria assumir “as dife-
renças como constitutivas da democracia e [serem] capazes de construir novas
relações” (Candau, 2009: 9). Novas relações que poderiam ser traduzidas como
interculturalidade para todos. Neste sentido, o acesso ao ensino superior aos
indígenas pode servir como ferramenta para reorientar as tendências do Estado
brasileiro para o monoculturalismo homogeneizador visando, assim, incentivar
processos de autonomia regional e políticas de sustentabilidade.
Historicamente, os indígenas foram tidos como uma situação de povos “pas-
sageiros” ou “transitórios”, cujo destino era “insumir-se” ou integrar-se através
da negação de sua identificação étnica, objetivando, intencionalmente, a cons-
trução de um “brasileiro genérico”. Foram construídos, discursivamente, como
“seres inferiores”, frente a qual a única opção possível era impor o progresso,
como alternativa para atingirem “o estádio supremo do desenvolvimento, a ci-
vilização ocidental” (Sousa Santos, 2005: 28).
Tomados como seres desprovidos “de saber e cultura” (Sousa Santos, 2005:
29) e como “antecedentes” e companheiros indesejáveis, foram e são, ainda,
em muitos casos, vistos como sujeitos que demandam “processos de evangeli-
zação ou aculturação” (Sousa Santos, 2005: 26), ou, em outros termos, sujeitos
que devem integrar-se na mesma sociedade que usurpou seus territórios e suas
riquezas (Brand, 2002). Seus saberes foram “silenciados”, “desqualificados” e
“subalternizados” como manifestações de “superstição”, estáticos, exóticos, ou,
na melhor das hipóteses, como saberes práticos e locais (Sousa Santos, 2005).
Por isso, a anunciada integração se daria pela margem, sem questionar ou rom-
per o projeto de hegemonia monocultural dos estados nacionais.
Embora essa visão persista ainda hoje em parcelas importantes das nossas
elites, ela está, legalmente, superada pela Constituição de 1988, que garante aos
povos indígenas, além das terras de ocupação tradicional, o reconhecimento (e
respeito) de sua organização social, de seus costumes, línguas e crenças, assim
como o direito a seus “processos próprios de aprendizagem” (Lei nº. 9394/96).
Neste sentido, para Walsh, ter os saberes ancestrais também como referência,
“... alenta novos processos, práticas e estratégias de intervenção intelectual que pode-
riam incluir, entre outras, a revitalização, revalorização e aplicação dos saberes ances-
trais, não como algo ligado a uma localidade e temporalidade do passado, mas como
conhecimentos que têm contemporaneidade para criticamente ler o mundo e para com-
preender, (re) aprender e atuar no presente” (2009: 24).
214
Ao ampliar e fortalecer a presença dos acadêmicos indígenas em cada insti-
tuição universitária, estimulando a sua participação em todas as atividades aca-
dêmicas e de extensão desenvolvidas no âmbito das mesmas instituições, estes
projetos e ações abrem brechas importantes, especialmente na perspectiva do
diálogo de saberes, superando e indo além, inclusive, da limitada, embora so-
cialmente relevante perspectiva da inclusão, sinalizado pelas políticas de cotas.
A experiência do Programa Rede de Saberes em promover oficinas nas di-
ferentes áreas de conhecimento – ainda que seja importante questionar estas
classificações como normas rígidas que são assumidas e pouco problematizadas
– e nas quais o diálogo de saberes é efetivamente colocado em perspectiva in-
dígena, tem resultado em reflexões por parte dos jovens indígenas graduandos
que redescobrem os métodos próprios de aprender, fazer e ser que foram/são
vivenciados por seus povos no longo processo histórico nos quais estes conhe-
cimentos/saberes/fazeres foram subalternizados e inferiorizados. As avaliações
apontam que ao possibilitar reflexões a partir da vida destes jovens, que traz
elementos tradicionais articulados com os conhecimentos ocidentais, despertam
o reconhecimento de que é possível trazer estes saberes locais para as universi-
dades. Como exemplo, as verbalizações destacam “a valorização do papel dos
acadêmicos indígenas, em levar os conhecimentos para suas comunidades”, “o
fato da educação indígena não pretender fechar-se para outros saberes”, “que o
valor está no diálogo entre esses saberes”, “o fortalecimento do desejo de lutar
mais pelos direitos dos povos indígenas”, “que os conhecimentos que os sábios
da aldeia possuem sobre saúde está imerso de cultura que é partilhado pelos ha-
bitantes da aldeia”, entre outras falas que perpassam as formações diferenciadas
que estas e estes estudantes vem se apropriando na última década como uma das
alternativas para a conquista da autonomia.
Pode-se ressaltar, inclusive, como aspecto relevante para as aspirações dos
povos indígenas, o fortalecimento da presença de seus jovens nas Universidades
mediante políticas públicas adequadas – a articulação crescente entre as Univer-
sidades, os acadêmicos indígenas e as suas respectivas comunidades, por inter-
médio da participação direta de suas lideranças. Não se trata apenas de univer-
salização da escolarização genericamente para cumprimento do direito prescrito
pela legislação ou pelos acordos internacionais, mas, da formação de indígenas
215
qualificados e comprometidos com a defesa dos seus direitos, em especial com
a promoção da qualidade de vida das suas comunidades de origem, que inclui a
gestão dos territórios e o fortalecimento de suas organizações.

Os indígenas e a Pós-Graduação
Apresentaremos aqui a reflexão via experiência concreta de indígenas que
passaram pelo processo da graduação, amparados pelos programas de ações
afirmativas ou, sobretudo, pelas ações do Programa Rede de Saberes, como
vimos anteriormente. A demanda agora é por continuar este processo de for-
mação, acessando as possibilidades de pós-graduação, em especial na UCDB,
cuja Linha 03 da Educação4 tem uma tradição de acolher indígenas em suas
seleções. Na sequência, algo desta experiência.
A presença dos povos indígenas, notadamente no Programa de Pós-Gradu-
ação em Educação, e de nossa intenção de “aprender a ouvir as vozes dos que
vivem nas fronteiras étnico-culturais e da exclusão: um exercício cotidiano e
decolonial”, segundo Backes e Nascimento, tem nos instigado
“... recorrentemente a pensar sobre outros tempos e espaços, sobre o que significa
viver, sobre como é possível construir outras narrativas identitárias. Instigam-nos tam-
bém a pensar em como resistir, subverter, ressignificar práticas de colonização e de
subordinação” (2011: 26).
Questões estas que fazem parte do nosso dia-a-dia e que norteiam/desnor-
teiam as nossas leituras de mundo, as nossas ressignificações e reorientação de
nossa episteme, agora atravessadas por outras epistemes, trazidas por aqueles
que foram silenciados, subalternizados e, sobretudo, indicam o lugar que ocupa-
mos nesta relação tão tensa e ao mesmo tempo, tão enriquecedora. Uma relação
sempre aberta ao imprevisível, em uma interminável construção, desconstrução
e reconstrução de fronteiras. Relação, em condições diferentes, entre sujeitos
(nós, não-índios e eles, índios) profundamente marcados pelo legado eurocên-
trico colonizador e, ainda que vivamos na colonialidade e que, de certo modo, a
decolonialidade é um processo a ser vivido por ambos os lados.
4
No PPGEDU/UCDB, em especial na Linha de Pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena,
além dos alunos indígenas temos, também, alunos afro-descendentes, de movimentos populares e,
ainda, os que pesquisam a presença da interculturalidade na educação escolar. Neste texto, a nossa
atenção está centrada na presença dos alunos indígenas e na provocação que esta presença nos ins-
tiga a refletir sobre a possibilidade de construção de outras narrativas, de revisar nossas práticas e
linguagens.

216
Dentro deste contexto amplo de espaços e vivências, ensaiando a construção
de uma interculturalidade crítica (Walsh, 2012), e sempre resvalando, escorre-
gando no que também a autora chama de interculturalidade funcional e intercul-
turalidade relacional, destacamos aqui, de maneira mais pontual, as experiências
vividas com a presença dos acadêmicos indígenas no PPGEDU/UCDB, neste
possível “diálogo com as culturas ancestrais” que, a todo o momento, agonizam
os nossos discursos acadêmicos ainda muito sustentados pela modernidade, ao
mesmo tempo em que infiltram os seus saberes, mesmo que hibridizados, no
espaço considerado “sagrado” da academia.
A necessidade de articular a ciência ocidental com os conhecimentos an-
cestrais dos povos indígenas e grupos étnicos (Grümberg, 2005; Walsh, 2009)
envolve a prática de “tradução e negociação” (Bhabha, 1998), de diálogo iden-
titário (Hall, 1997) e intercultural (Candau, 2009; Silva, 2000), entre outros es-
tudiosos que envolvem colonialismo, colonialidade e lutas por descolonização.
Tendo este contexto como cenário, a questão de fundo é fazer emergir um de-
bate com novas configurações em torno da produção de conhecimento, outras
formas constituídas de saber e suas relações com os campos disciplinares insti-
tuídos pela e na modernidade.
A presença indígena nas IES tem provocado uma tensão no espaço acadê-
mico, no sentido de considerar o conhecimento a partir da diferença, de outras
lógicas epistemológicas que não a produzida pela cultura ocidental e imposta
como condição única de compreensão e concepção de mundo. Gera instabilida-
des de cunho epistemológico e metodológico que dão consistência aos desafios
de pensar relações tais como: culturas locais, culturas híbridas e globalização;
o território acadêmico com as diversas formas de produção de conhecimento;
a academia e a produção de conhecimento sobre as diferenças; a universidade
como espaço público requisitado pelos índios como garantia de sustentabilidade
étnica e de reelaboração de conhecimento a partir de lógicas de compreensão
de mundo, como âncoras para a produção de alternativas de sustentabilidade
econômica (Nascimento, 2006).
A linha de pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena, desde sua
criação em 2004 recebeu 15 acadêmicos indígenas, 10 concluíram e cinco em
andamento no curso (quatro mestrandos e um doutorando). Esses alunos indíge-
nas trazem, de certa maneira, outros saberes, saberes hibridizados, construídos
217
nos processos de negociação e/ou articulação, atravessados por outros marcos
epistemológicos e produzidos na esteira de um contínuo jogo de forças e, neste
sentido, o grande desafio sempre foi: como criar um ambiente de rigorosidade
acadêmica, capaz de subverter a “norma” estabelecida de “cientificidade”, de
hierarquização e assimetria entre os chamados conhecimentos universais (le-
gitimados como o certo e o bom para todos atingirem a civilidade moderna) e
os saberes outros (senso comum, populares, tradicionais, folclóricos, exóticos,
obscuros, inferiores e, em alguns casos satanizados )? Ou seja, como não res-
peitar os conhecimentos trazidos, apenas como ponto de partida, para depois
abandoná-los, ou seja, “acolhê-los”, capturá-los uma vez mais e afetá–los com
um “outro” discurso colonizador? Como abrir espaço, para os saberes/culturas
ancestrais e produzir legitimidade para estas culturas, legitimando-as para o
diálogo em condições iguais, apesar das suas diferenças. Onde estava/está a
diferença: no conteúdo, método, na forma, no uso...?
Construindo/desconstruindo fomos intensificando os nossos diálogos com
os indígenas mediados por autores como Bhabha, Brand, Stuart Hall, Canclini,
Gauthier, Fleuri, Walsh, Candau, Mignolo, Escobar, Fanon, Freire, Meliá, Qui-
jano, Boaventura Sousa Santos entre outros, bem como as reflexões de latino-a-
mericanos de ancestralidade indígena.
Neste campo de reflexões, as discussões giram em torno de: multi/intercul-
turalismo; homogeneização/monocultura; naturalização e desnaturalização das
relações sociais; espaços entre fronteiras culturais: entre lugares, terceiro espa-
ço, não polaridades, binarismos; diálogo entre saberes: a presença de epistemes
outras na construção do conhecimento; colonização, pós-colonização, colonia-
lidade, decolonialidade, descolonização; relações epistemológicas entre o norte
e o sul; a modernidade e a organização colonial do mundo; negociação, articu-
lação, hibridação, tradução, tradição; alteridade, “outridade”; subalternização,
ocultação, silenciamento; epistemologias e espiritualidade; as ciências sociais
e os estudos do outro: os meta relatos, a normatividade em contraposição ao
primitivo, arcaico, pré-modernos.
Neste contexto somos sempre surpreendidos por perguntas e/ou contesta-
ções às teorias, até então, nunca presentes em nossos estudos. Os textos, as
teorias em determinados momentos provocam certa irritação epistemológica
nos alunos indígenas que nos permitem evidenciar pelo menos duas situações:
218
1- apesar de todo projeto de colonização/subalternização/ocultação da plurali-
dade de saberes no processo histórico de produção da modernidade, os saberes,
quando permitidos se fazem presentes: e, 2 - como apontaram colegas do Pro-
grama relatando suas experiências de construção de um diálogo intercultural
com indígenas, “[é] preciso sempre colocar em xeque as teorias e ressignificá-
-las ... aprendemos que as teorias não devem ser vistas como inquestionáveis”
(Pavan et al. 2014: 169).

O indígena pesquisador e/ou o pesquisador indígena


No bojo destas questões teóricas colocadas, o Programa tem agora o índio
como pesquisador, não mais como o outro a ser conhecido, mas alguém que tem
que descentrar, estranhar a sua própria história, vivências e fazer a “antropolo-
gia de si mesmo”, a etnografia dele e de seu povo. Ele não é mais o informante
e nem o “objeto” a ser observado e descrito. É notável o fato de que todas as
dissertações e projetos de teses defendidas ou em andamento no PPGEDU estão
articulados com seu povo, com a sua comunidade. “Assim a gente vai ter mais
força para lutar pelo nosso povo”. Dialogando com a teoria da academia dizem
“lutar contra a subalternização que já aconteceu e que ainda acontece e poder
fazer a decolonização do saber, do poder e do ser”, parafraseando Walsh (2010).
Isto tem sido o grande desafio para construir este diálogo: subverter o olhar,
a escuta, a narrativa, a compreensão. Como permitir isto sem encarcerar em
nossos métodos, em nossa linguagem, em nossos textos? Como orientar sem en-
gessá-los em nossas prescrições, em nossas receitas? Como acreditar que eles,
os índios, vão fazer ciência, mas com outro olhar, com outra linguagem, com
outra lógica? Como fazer tudo isso sem perder a rigorosidade que a produção de
conhecimento exige? E mais, como colocar em conflito, conhecimentos produ-
zidos pelo outro autorizado e legitimado pela academia? Como dar validade aos
conhecimentos que vêm da inspiração, da intuição, da ancestralidade que ficam
arraigados na memória, no imaginário, por mais que ele tenha sido violentado,
que ainda esteja escondido e envergonhado? Como aprender e produzir com
eles, os indígenas
“... outras maneiras de ler, indagar e investigar, de olhar , saber , sentir , escutar e es-
tar que desafiam a razão única da modernidade ocidental, tensionam nossos próprios
marcos disciplinados de estudos e interpretação, e façam questionar desde e com ra-

219
cionalidades, conhecimentos, práticas e sistemas civilizatórios e de viver radicalmente
distintos” (Walsh, 2010: 222).
Como temos um espaço, de certa forma privilegiado, a linha de pesquisa
III, e como verbalizam os alunos: “dos índios , dos afro e dos amigos dos ín-
dios e dos afro” e os objetos de pesquisa são todos relacionados aos problemas
concretos de suas comunidades, temos feito um grande exercício de não nos
colocarmos no lugar deles e impor a pertinência dos autores e a nossa própria
pertinência de pensamento e dizer para eles quem são eles. Temos feito uma
vigilância epistemológica no sentido de escutar as suas diferenças e articular
a teoria com as suas diferenças. Re-teorizar a teoria ou até mesmo colocar em
crise aquela teoria que, em nossa leitura, daria conta da reconstrução “radical do
ser, do poder e do saber” (Candau, 2010: 24). Reconhecemos que tem um dado
de ancestralidade nas leituras que eles fazem que nós “filhos do ocidente” não
conseguimos perceber, pois somos capturados pelas armadilhas dos “conheci-
mentos universais” universalizados pelo poder de homogeneizar e esconder a
pluralidade que todo texto tem, que afeta o leitor a depender de sua identidade.
Por outro lado, sem perder a rigorosidade, como diz Eliel Benites, nos agrade-
cimentos de sua dissertação, a linha de pesquisa III:
“... em suas lições cotidianas de pensar e fazer reflexão, pautadas por uma postura
sempre muito rigorosa, lúcida e crítica, são fonte inesgotável de inspiração. Sem um
ambiente de intenso e elevado debate intelectual, essa pesquisa não teria frutificado, no
qual pude exercitar, com liberdade, minhas ideias” (2014: 3).

No esforço intencional de construir o diálogo com as culturas ancestrais


desde a academia, as ações desenvolvidas na UCDB, em suas mais diferentes
atividades têm feito o exercício, enquanto espaço ambivalente e fronteiriço,
de ouvir as vozes dos “ancestrais” (rezadores, os anciãos, lideranças políticas,
outros pesquisadores indígenas com mais experiência neste conflituoso e tenso
diálogo), bem como de priorizar a presença indígena nos projetos que tratem
da questão indígena, como é o caso de um dos Observatórios da Educação que
define suas bolsas prioritariamente para indígenas e contempla as ações de pes-
quisa e extensão nas comunidades indígenas e, também, do Grupo de Pesquisa
Educação e Interculturalidade/CNPq no qual todos os participantes, indígenas
ou não, têm como temática de pesquisa a questão indígena.
220
Na tentativa de subverter a cristalização, a normatividade da academia, te-
mos ousado, especificamente com relação às pesquisas de pós-graduação: per-
mitir o texto na língua indígena (com tradução); realizar as bancas de defesas
nas aldeias permitindo a apresentação do trabalho para a comunidade na língua
indígena e, a última experiência que tivemos e que nos afetou muito, foi a par-
ticipação de uma mestre tradicional, uma sábia da aldeia, como parte efetiva da
banca, fazendo as suas considerações na língua indígena (impressiona como se
transforma, se empodera quando passa a falar na língua) e avaliando junto aos
demais membros da banca.
Chegar à universidade significa apropriar-se de ferramentas que permitam
aos índios protagonizar a reescrita de suas histórias, uma outra história até então
não alcançada pelo cânones escolares/acadêmicos bem como inverter o ponto
de partida para a busca de alternativas de solução para os problemas contempo-
râneos (Nascimento et al., 2011). Como aponta Escobar (2005), “como transfor-
mar o conhecimento local em poder, e este conhecimento - poder em projetos e
programas concretos?” (2005: 133). Ou seja, como aprender a
“... articular saberes no sentido de conhecimentos acumulados, modos de produção
de conhecimentos, e modos de comunicação; sua forte vinculação com os entornos
sociais dos quais fazem parte; aprender precisamente as maneiras nas quais [práticas]
(as) interculturais conseguem articular pesquisa com docência, com extensão e com
vinculação com a comunidade?” (Mato, 2010: 4).

As experiências relatadas nestes últimos anos, a partir da presença de indíge-


nas no ensino superior, em especial, a experiência do Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação da UCDB (Linha 03), são tentativas de diálogo intercultural e
de buscar articular a pesquisa universitária com os saberes tradicionais, incluin-
do, sempre que possível, a presença como protagonista dos próprios indígenas,
pesquisando saberes de seu povo.

Considerações finais
A educação superior indígena é, certamente, um projeto social e político que
se insere numa perspectiva de construção e sedimentação da busca dos povos
indígenas por reconhecimento de sua especificidade cultural. No entanto, isso
só será possível se houver o devido respeito ao princípio da autonomia, previsto
na legislação, e uma busca constante por uma educação específica, de qualidade
221
e intercultural não só para as atuais, mas para as futuras gerações de crianças,
jovens e adultos indígenas.
As demandas dos povos indígenas por ensino superior refletem as contingên-
cias da experiência histórica vivida. Buscam, de um lado, através de uma maior
sistematização, fortalecer os seus conhecimentos tradicionais, sua história e lín-
gua e de outro, o necessário domínio dos assim denominados conhecimentos di-
tos científicos-acadêmicos considerados necessários para uma melhor inserção
no entorno regional e relevantes para o seu projeto de autonomia.
O risco é que as universidades, em seus projetos de ensino superior para os
povos indígenas, sigam passando ao largo dos processos mais amplos de busca
de autonomia das populações indígenas e centrem sua preocupação apenas em
permitir o acesso dos índios aos seus ambientes acadêmicos, o que é, certamen-
te, muito pouco.
Não se trata de questionar o direito dos povos indígenas ao ensino superior,
mas das universidades se perguntarem sobre o tipo de ensino que oferecem aos
povos indígenas. Entendemos que o desafio está posto, antes de qualquer coisa,
para as universidades, no sentido de repensar e construir novas concepções de
ensino que, superando a fragmentação e questionando o saber academicamente
sedimentado e hegemônico, que perpassa e está subjacente em nossas práticas
pedagógicas, possam permitir o “exercício constante da interculturalidade” em
todas as abordagens da realidade.
A Universidade, ao abrir espaço para o desafio de contribuir com a busca de
novos caminhos de sustentabilidade desses povos, deverá estar aberta, também,
para essa dimensão da diversidade de perspectivas de futuro, visualizadas pelas
populações indígenas.
Por isso, as propostas de ensino superior, a exemplo do ensino fundamental
e médio, devem caracterizar-se pela porosidade, permeabilidade e flexibilidade,
abrindo espaço, especialmente, para a pesquisa, exigência para que seja possí-
vel a interculturalidade e a “bricolagem”, permitindo aos alunos índios esse
constante ajustar (de) peças entre si díspares, reorganizando-as e dando-lhes
um sentido.
Terão as universidades engajadas em programas de acesso dos povos in-
dígenas ao ensino superior disposição e condições de transformar os espaços
222
acadêmicos em espaços de diálogo entre saberes, garantindo aos índios amplo
apoio para a pesquisa, propondo novas práticas dialógicas e deixando para trás
os resquícios de longos anos de regime tutelar que marcou a relação com os
povos indígenas?
A presença indígena nas universidades, como formadoras de atitudes inter-
culturais, parece ser o acontecimento emergente para que possamos tornar este
mundo mais traduzível, em meio às suas diferenças, contribuindo com as práti-
cas acadêmicas do compromisso de representar uma só identidade. O diálogo
com os povos indígenas, seus saberes e concepções de mundo, de sociedade e
economia, pode abrir inéditas possibilidades para as IES e para os próprios po-
vos indígenas no enfrentamento de velhos e novos problemas pós-coloniais, que
atingem a todos, índios e não-índios.

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224
Nos tempos da comunidade: interculturalidade pedagógica
nos quilombos de Salvaterra, Marajó (PA)

Rhuan Carlos dos Santos Lopes1


Eliane da Silva Sousa Faria2

Introdução
A estrutura curricular do Curso de Etnodesenvolvimento, da Universidade
Federal do Pará (UFPA), inclui atividades desenvolvidas nas comunidades ori-
ginárias dos discentes, chamadas Tempo-Comunidade, orientadas pelos docen-
tes. Nesses momentos, os discentes e agentes sociais são convidados a refletir
acerca de suas realidades, considerando o necessário diálogo entre os saberes lo-
cal e acadêmico. Surge do diálogo, nem sempre fácil, propostas de intervenção,
pensadas a partir dos próprios sujeitos de interesse: os comunitários. Conside-
rando a prática, o trabalho pretende analisar o processo de produção de conhe-
cimento situado na fronteira entre o ensino tradicional e o universitário, proble-
matizando a atuação de docentes e discentes durante o Tempo-Comunidade nos
quilombos de Salvaterra, no Arquipélago do Marajó (PA). Trata-se, portanto, de
refletir sobre as pedagogias de caráter intercultural e da Alternância que com-
põem a formação de bacharéis em Etnodesenvolvimento. Para tanto, utilizamos
as propostas de trabalho dos formandos, as notas de campo dos autores e, ainda,
os relatórios produzidos no âmbito do projeto de pesquisa Indígenas e quilom-
bolas mulheres em situação de violência: diversidade sociocultural, Direitos
Humanos e Políticas Públicas na Amazônia (Beltrão, 2012).
Ao refletir sobre a atuação de discentes e docentes, queremos debater os
desdobramentos do processo pedagógico que considera o confronto dos saberes
tradicional e científico, construídos no âmbito acadêmico e nos locais de origem
dos estudantes (Jesus, 2011). Trata-se de esforço para o estabelecimento de diá-
logos interculturais no processo educativo (Candau, 2008), tendo em vista os sa-
beres locais e as suas perspectivas epistemológicas construídas no bojo de suas
experiências concretas (Geertz, 1998; Lévi-Strauss 1997). Do mesmo modo, ao
1
Arqueólogo, doutorando junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), da Universi-
dade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Bolsista CAPES. Contato: rhuan.c.lopes@gmail.com.
2
Arqueóloga, docente junto a Faculdade de Etnodiversidade no Campus de Altamira da UFPA, doutoran-
da junto ao PPGA/UFPA. Contato: sousa.eliane@gmail.com.

225
transformarmos nossa atuação docente em campo etnográfico (Sarró & Lima,
2006), buscamos problematizar as dimensões política e ética relacionadas ao
nosso fazer profissional (Rios, 2005).
Considerando a necessidade de refletir na educação a pluralidade da Ama-
zônia (Corrêa & Hage, 2011), o trabalho dialoga também com as premissas
da Pedagogia da Alternância (Jesus, 2011), muito debatida no âmbito da edu-
cação básica. (Teixeira et al., 2008) Assim, a conjugação das experiências
formativas – formais e tradicionais – definidoras do método pedagógico da
alternância (Jesus, 2011), conjuga-se com as noções de interculturalidade na
educação, executada a partir da “negociação cultural, que enfrenta os confli-
tos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos sociocultu-
rais” (Candau, 2008: 52). Se voltarmos o olhar para as diretrizes da educação
quilombola – mesmo as direcionadas ao ensino escolar, podemos entender o
quão necessário é esta articulação que leve em conta a necessidade de atender
a especificidades desses grupos etnicamente diferenciados, notadamente no
que diz respeito à dinâmica de reprodução social, antes violentada pela edu-
cação formal (Fiabani, 2013).

Estrutura do Curso de Etnodesenvolvimento


O Curso de Etnodesenvolvimento foi pensado para atender as demandas de
qualificação profissional de povos e comunidades tradicionais. O objetivo do
curso é formar agentes de etnodesenvolvimento, para que possam trabalhar em
suas comunidades de origem intervindo em instâncias internas e externas e na
elaboração de projetos de intervenção que possa beneficiar toda a comunidade.
A estrutura curricular do Curso é baseada na Pedagogia da Alternância, em
que há o período do Tempo-Universidade, sempre em regime intervalar (janei-
ro e fevereiro; julho e agosto) em que os discentes participam das disciplinas
curriculares, e o período do Tempo-Comunidade, no qual os discentes retornam
aos grupos de pertença para realizar atividades previamente planejadas de pes-
quisa, extensão e ensino, e que são monitoradas pelos docentes. Neste artigo
falaremos mais detidamente do Tempo-Comunidade, e sua importância para
a formação profissional e política dos estudantes, assim como para a interação
entre a universidade e as comunidades tradicionais.
226
De acordo com o PPC do Curso de Etnodesenvolvimento (UFPA, 2008), a
metodologia empregada se baseia na ideia de que ensino, pesquisa e extensão
são indissociáveis. Assim, todas as atividades são pensadas levando em conta
essa indissociabilidade e no fato que essa deve ser pensada de maneira diferen-
ciada, baseada no princípio da multiculturalidade.
O percurso curricular estrutura as disciplinas a partir do eixo central da Di-
versidade Cultural, dividido em sete núcleos de disciplinas: Sistemas de Saúde;
Educação; Direitos Humanos; Sociedade e Meio Ambiente; Desenvolvimento e
Sustentabilidade; Identidade, Nação e Território; Linguagens Étnicas; Atividade
Complementar.
As atividades do Curso são todas pensadas a partir da realidade do aluno, de
forma a aliar os conhecimentos tradicionais com o conhecimento científico. O
Curso é formado por alunos das seguintes pertenças: indígenas, quilombolas, ri-
beirinhos, agricultores familiares rurais, pescadores, extrativistas e movimentos
sociais (Movimento Negro e Movimento dos Atingidos por Barragens).
No que diz respeito ao Tempo-Comunidade, é o momento no qual os dis-
centes retornam para as suas comunidades e nelas desenvolvem suas atividades
acadêmicas depois do semestre letivo na universidade, o Tempo-Universidade.
O Curso ocorre no regime intervalar, portanto, os alunos cursam as disciplinas
do percurso curricular nos meses de janeiro/fevereiro e julho/agosto. O Tempo-
-Comunidade é acompanhado por um docente do Curso, que vai até a comuni-
dade para orientar os discentes nas atividades, assim como conhecer a realidade
da comunidade do discente, o que possibilita pensar as aulas dos semestres pos-
teriores, tendo em mente a realidade do aluno.
Abaixo serão descritas as atividades realizadas nos Tempos-Comunidades,
em especial, os trabalhos realizados com os discentes da Ilha de Marajó da tur-
ma 2010, a primeira do curso.
No primeiro Tempo-Comunidade, após terem cursado o primeiro semestre
letivo, os alunos realizaram o diagnóstico de suas comunidades, a partir de um
formulário cujo objetivo era promover o censo dos seus lugares de origem. O
formulário continha perguntas relacionadas ao local e ao tempo de moradia, lo-
comoção, ao nível de escolaridade, renda familiar, alimentação, profissão, ativi-
dades culturais realizadas na comunidade, saúde, etc. O censo foi desenvolvido
227
para que os alunos pudessem pensar juntamente com os demais membros das
comunidades os futuros projetos de intervenção.
No segundo Tempo-Comunidade, os alunos entrevistaram profissionais da
educação, pais ou responsáveis e discentes das escolas de suas comunidades. A
proposta tinha por objetivo, a partir do tema gerador “Educação”, em conexão
com outros temas trabalhados no segundo semestre do Curso de Etnodesenvol-
vimento, como saúde, direitos humanos, meio ambiente, memória e patrimônio,
produzir um conjunto de dados de cunho qualitativo/quantitativo, revelando
assim um retrato parcial da realidade de cada comunidade, no que diz respeito
aos temas abordados acima. O conhecimento e apropriação dessa realidade ti-
nham como finalidade motivar os educandos a perceberem com olhar crítico os
principais problemas sociais das diversas localidades para pensar as diferentes
maneiras de intervir nas realidades, com vistas a transformá-las.
No terceiro Tempo-Comunidade, os discentes realizaram oficinas em suas
comunidades. O primeiro passo foi pensar em uma proposta de oficina que le-
vasse em consideração a realidade da comunidade com base no tema gerador
“Diversidade e Patrimônio”. Os temas escolhidos para as oficinas, pelos dis-
centes da Ilha de Marajó, foram: “O fortalecimento da Cultura do Boi-Bumbá
em Salvaterra”, “Carimbó, práticas culturais usos educacionais”, “A Semana
Santa no quilombo Pau Furado” e “Biodiversidade e conhecimentos tradicio-
nais”. Após a realização das oficinas os alunos deveriam escrever um relatório
contendo: a contextualização da comunidade e dos participantes; estratégias de
planejamento e mobilização; dificuldades encontradas e formas de superação,
assim como, relatar o percurso da oficina, incluindo falas e trabalhos dos parti-
cipantes e referencial teórico. Os discentes também deveriam indicar os ganhos
obtidos com o trabalho, para si e para a coletividade, e abordar, se possível, al-
guns indicativos de continuidade para o futuro das questões tratadas na oficina.
No quarto Tempo-Comunidade os discentes, a partir dos dados coletados por
eles nas pesquisas anteriores, escreveram artigos científicos. A proposta tinha
por objetivo promover o exercício da leitura e da escrita a partir dos dados,
relatórios e bibliografias do I, II e III Tempo-Universidade e Tempo-Comuni-
dade, em articulação com as disciplinas e referenciais teóricos do IV Tempo-
-Universidade, para possibilitar a elaboração de artigo acadêmico que aprimore
228
a habilidade dos discentes em realizar a articulação entre teoria (bibliografia
pertinente) e prática (dados empíricos, experiência individual e coletiva). Os
temas escolhidos pelos discentes quilombolas do Marajó foram: meio ambiente,
o uso de plantas medicinais, educação quilombola, memória e patrimônio, sane-
amento básico e educação Infantil.
No quinto Tempo-Comunidade, os discentes começaram a pensar os proje-
tos de intervenção que seriam seus Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC). A
primeira etapa foi a realização de uma reunião em suas comunidades na qual,
juntamente com todos os moradores, seria escolhido o tema de intervenção do
projeto. No tocante aos discentes quilombolas do Marajó, os temas escolhidos
estavam relacionados à saúde, cultura, conhecimentos tradicionais, educação,
alimentação e saneamento básico.
No sexto Tempo-Comunidade os discentes começaram a escrever seus pro-
jetos de intervenção. Nesse período os alunos deveriam escrever a introdução,
justificativas e os objetivos do projeto, com orientação dos monitores e docentes
do Curso de Etnodesenvolvimento. No sétimo Tempo-Comunidade à ideia foi
concluir a proposta de intervenção, incluindo a metodologia, cronograma, orça-
mento e referências bibliográficas. Durante a escrita do projeto de intervenção
os alunos estavam em constante diálogo com a comunidade para que o projeto
refletisse o que todos desejavam. No oitavo e último Tempo-Comunidade, ainda
por acontecer, os alunos devem apresentar os resultados das pesquisas realiza-
das durante o Curso para suas comunidades.
A metodologia utilizada possibilita que o discente realize a atividades de pes-
quisa, que resultará em seu TCC, ao longo de todos os semestres, não apenas no
final do Curso, fato que os tornam profissionais mais qualificados e sabedores
das realidades de suas comunidades.
O debate que efetuamos nesse artigo diz respeito ao processo do Tempo-Co-
munidade que descrevemos acima. Especificamente, o sexto e sétimo períodos
nas comunidades foram acompanhados pelos dois autores deste trabalho, sen-
do o primeiro convidado a participar no processo por conta de sua vinculação,
enquanto discente, ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Uni-
versidade Federal do Pará (PPGA/UFPA) e integrante do projeto de pesquisa
Indígenas e quilombolas mulheres em situação de violência: diversidade socio-
229
cultural, Direitos Humanos e Políticas Públicas na Amazônia (Beltrão, 2012).
A outra autora, além de pesquisadora do dito projeto, é docente do Curso de
Etnodesenvolvimento.

Contexto dos quilombos em questão


Os territórios quilombolas no Marajó possuem longa formação histórica, rela-
cionados com a dinâmica de ocupação colonial na região. Unidos, de maneira geral,
a partir de interesses comuns, inclusive no que diz respeito às práticas de resistência
caracterizadas pela fuga e formação de quilombos (Bezerra Neto, 2001; Gomes,
2005; Gomes & Queiroz 2003; Salles, 2004). As relações sociais pautadas na co-
letividade e, por conseguinte, em uma noção diferenciada de direitos, tornaram-se
marcas perenes desses grupos. Do mesmo modo, a organização política direcionada
à busca pelo reconhecimento de direitos foi se construindo historicamente desde os
tempos iniciais do tráfico negreiro, sendo que as comunidades quilombolas perma-
necem hoje como núcleos de resistência e enfrentamento político. A reprodução de
seus modos de vida característicos, por outro lado, é constantemente confrontada
com violências de outra ordem que a dos tempos de escravidão, mas em muito
herdeiras dela (Acevedo-Marín, 2008a). Cardoso et al. (2010) são elucidativos ao
mostrarem os enfrentamentos existentes entre fazendeiros e quilombolas no Ma-
rajó, especificamente os da comunidade Bairro Alto, em Salvaterra. Os latifúndios
pressionam as territorialidades quilombolas, tanto do ponto de vista físico, quanto
da perspectiva diferenciada de direitos de acesso à terra: os primeiros o vêem como
algo privado, enquanto os segundos como coletivo.
Contemporaneamente, há, somente no município de Salvaterra, número ex-
pressivo de comunidades auto-declaradas quilombolas. Apesar de não existir
definição consensual acerca da quantidade de quilombos, as instituições apon-
tam para 15 ou 21 comunidades (Lopes et al., 2014). Analisando os dados esta-
tísticos relativos ao Marajó Lopes et al. (2014), observam que não há registro de
marcadores étnicos, relativos aos quilombolas, nos dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, dentre as pessoas que se auto-de-
claram pretas ou pardas, é dedutível que o número abarque quilombolas. Do
mesmo modo, esses autores ressaltam que as informações estatísticas indicam
a restrição desses grupos ao acesso a serviços públicos essenciais, como coleta
230
de lixo, rede de esgoto e água, energia elétrica e iluminação pública, além da
educação formal em todos os níveis, o que está em consonância às análises si-
milares efetuadas em outros contextos brasileiros (Fiabani, 2013). De maneira
geral, essas ausências são indicadas também nos trabalhos de TCC dos discentes
da Faculdade de Etnodesenvolvimento, como mostraremos na sessão seguinte.

“Nossa realidade”: os projetos e orientações dos alunos


Às dez horas de uma manhã do primeiro dia de maio de 2013, a equipe de an-
tropólogos em formação, nos quais se inserem os dois autores desse texto, chegam
ao Porto do Camará, distrito de Salvaterra, ilha do Marajó (PA). Após desloca-
mento até a sede do município, seguimos para o quilombo de Pau Furado, onde
quilombolas alunos do Curso, juntamente com lideranças políticas e outros mo-
radores locais, aguardam o grupo de pesquisadores para início das atividades do
sexto Tempo-Comunidade, dessa vez acrescentadas por oficinas oferecidas pelos
integrantes do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio (doravante, GP
Cidade). Após o dia inteiro de palestras sobre diferentes temas, com participação
efetivas dos ouvintes, deslocamo-nos para hotel na cidade. Esse foi o primeiro dia,
na sequência de três, em que os dois professores(as)/orientadores(as) articularam,
juntamente com os quilombolas alunos/orientandos, a dinâmica do Tempo- Co-
munidade, deslocando-se em mais dois quilombos – Bairro Alto e Rosário – e
mesmo na sede de Salvaterra para as orientações. Os discentes, todavia, são oriun-
dos de várias comunidades, para além das citadas.
Especificamente as duas etapas do Tempo-Comunidade efetuadas no ano de
2013, seguimos roteiro, elaborado pela Faculdade de Etnodiversidade, para pro-
dução dos projetos de intervenção dos discentes, equiparados aos seus TCC. As
orientações foram divididas em dois grupos, um para cada professor(a)/orienta-
dor(a), somando nove. Ressaltamos, todavia, que essa escolha foi condicionada
pelos interesses dos alunos, inclusive pela afinidade diferenciada para com os
docentes.
As orientações individualizadas foram efetuadas nas casas dos discentes, em
locais públicos das comunidades ou no hotel onde ficaram hospedados os pro-
fessores, para o caso dos que estavam em Salvaterra. Notadamente, a ida dos
orientadores ao encontro dos alunos implica na inversão do tradicional modo
231
pedagógico do ensino universitário, no qual o orientando busca pelo docente,
de acordo com a “agenda” deste. Para além disso, essa mudança no paradigma
requer adequação às dinâmicas locais, mesmo quando nos referimos às orien-
tações no restaurante do hotel. Outros estudantes universitários da região, em
comparação com os discentes do Etnodesenvolvimento, vêem isso como vanta-
gem, posto que precisem se deslocar até os centros de ensino para dialogarem
com seus professores. Efetiva-se, desse modo, o exercício da Pedagogia da Al-
ternância, tendo em vista a conjugação de experiências formativas diferencia-
das, voltadas à formação profissional dos discentes (Teixeira et al., 2008).
Os alunos, nesse caso, são profissionais em diversos ramos da economia
local, principalmente a educacional. Por isso, os “horários de trabalho” não po-
dem ser molestados pela orientação. Soma-se a isso o contexto doméstico dos
alunos: quando orientados em suas casas, é necessário conviver com a rotina
doméstica, como a produção de refeições, cuidado com os filhos, atenção aos
parentes que passam no momento das atividades. Além disso, quando se faz
imperativa condução para receber orientação, o cuidado com os filhos e com os
afazeres de casa podem ter impedimentos (Fernandes et al., 2013).
Os projetos dos discentes foram pensados a partir das demandas das suas
respectivas comunidades, debatidas em reuniões. Cada um deles buscou elabo-
rar projetos que pudessem ser fruto de intervenção em seus locais de moradia,
tendo em vista o interesse em modificar a realidade vivida. Todavia, notamos
que essa concepção não poderia ser desenvolvida sem o necessário desenvolvi-
mento da capacidade de pesquisa acadêmica por parte dos alunos, o que é uma
das exigências do Curso de Etnodesenvolvimento.
Tendo isso em vista, as orientações foram conduzidas com o fito de adequar
as temáticas elencadas pelos discentes a um projeto de pesquisa/intervenção
que vise sistematizar a realidade por eles apresentada e vivida. Isso é necessário
para que, após a finalização dessas investigações, destinadas à produção de seus
trabalhos de conclusão de curso, os alunos possam utilizar esse conhecimento
para barganhar intervenções necessárias às comunidades, de acordo com suas
demandas. Por outro lado, esse exercício permite que eles desenvolvam auto-
nomia intelectual, no que diz respeito à produção de projetos científicos e de

232
intervenção. A formação, nesse caso, está diretamente implicada com a realida-
de do discente e, por conseguinte, com a qualificação técnica que viabilize sua
atuação política no que diz respeito, por exemplo, às alternativas de resistência
no seu território social (Jesus, 2011).
As temáticas dos trabalhos orientados foram as seguintes:
• Criação de horta comunitária para plantas medicinais. O projeto tem por
objetivo criar horta que salvaguarde as espécies vegetais utilizadas na medicina
tradicional do quilombo, além de “resgatar” exemplares não mais presentes na
comunidade (Barroso, 2013).
• Danças afrobrasileiras e a identidade quilombola. Pretende elaborar ofici-
nas de dança afro para “resgatar” a identidade quilombola (Santos, 2013).
• Roupas tradicionais do boi-bumbá. Propõe a confecção de roupas utilizadas
no boi-bumbá, no intuito de tornar novamente essa dança um festejo regular na
comunidade (Leal, 2013).
• A problemática do lixo. Trabalha a reciclagem do lixo na comunidade, bus-
cando mostrar que o lixo pode ser utilizado como uma estratégia de geração
de renda, assim como organizar a criação de uma associação de coleta seletiva
para estimular a seleção dos resíduos sólidos nas residências, a fim de vendê-los
posteriormente no mercado da reciclagem do estado (Maciel, 2013).
• O uso de plantas medicinais. Aborda o uso de plantas medicinais, buscando
problematizar a relação entre medicina ocidental e medicina tradicional (Pena,
2013).
• A importância do carimbó. Visa entender o valor atribuído ao carimbó pela
comunidade para a implantação de um grupo dessa dança para o fortalecimento
da identidade quilombola (Nascimento, 2013).
• A aplicação da Lei 10.639/2003 na escola local. A discente pretende criar
mecanismos de aplicação da referida lei na escola local, tendo em vista a recor-
rência de racismo no ambiente escolar e a não observação dos preceitos da Lei
na condução das atividades pedagógicas (Guimarães, 2013).
• Os usos da medicina tradicional. Investigação da relação entre medicina
tradicional e medicina ocidental para que possam ser feitas a reestruturação do
posto de saúde e a ampliação do quadro de funcionários da comunidade quilom-
bola de Rosário (Sousa, 2013).
233
• Criação de escola de música. Propõe a criação de uma escola de música que
contribua com a formação dos jovens do quilombo, retirando-os de situações
de risco social; tem como modelo a antiga escola de música que havia no local,
formadora de alguns moradores (Glória, 2013).
• O tratamento da água. Pretende investigar os principais problemas rela-
cionados a saneamento básico na comunidade e propor soluções adequadas à
realidade local (Conceição, 2013).
• Ao longo do ano de 2013, duas discentes mudaram seus projetos de pes-
quisa, propondo unificar suas ações na investigação das práticas ligadas à pes-
ca artesanal e às plantas medicinais em Bairro Alto. Todavia, as orientações
indicaram o foco na pesca, tendo em vista o tempo para elaboração do projeto
(Santos & Leal, 2013).
Como mencionamos anteriormente, as propostas dos projetos foram deba-
tidas com as comunidades, a partir de reuniões que tinham por objetivo esco-
lher o tema de pesquisa de acordo com os seus anseios. Foi possível observar,
durante as orientações, que nessas assembleias foram discutidos os problemas
existentes na comunidade, mas não as possíveis soluções, por isso, os alunos
sentiram dificuldade para propor um projeto de aplicação prática. Assim, foi su-
gerido pelos orientadores que os alunos deveriam investigar acerca do proble-
ma de pesquisa escolhido e a partir da pesquisa construir, junto à comunidade,
uma proposta de aplicação efetiva para o projeto. Todavia, no decurso de ofici-
nas oferecidas pelos integrantes do GP Cidade observamos que os comunitários
demandam pela ação interventiva dos formandos em Etnodesenvolvimento.
Eles são vistos, nesse sentido, como pessoas em processo de capacitação para o
exercício da mediação com o mundo exterior, quando se faz necessário receber
agentes públicos proponentes de ações de governo, ou ainda no imprescindível
ato de acesso aos órgãos públicos, privados ou outras organizações, para propor
medidas direcionadas aos quilombos.
É recorrente entre os comunitários a leitura de que os projetos que são exe-
cutados na comunidade (e não pela comunidade) vieram “de fora” e não foram
pensados por eles. (Fernandes et al., 2013; Lopes et al., 2014) Um dos exem-
plos mencionados, diz respeito à produção de abacaxi, fomentado pela Empresa
de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER). Segundo um dos qui-
234
lombolas, discente do Curso de Etnodesenvolvimento, o projeto não deu certo
porque abacaxi “não tem nada a ver” com a produção da comunidade. Segundo
ele, a falta de educação formal provoca passividade nas pessoas dos quilombos
da região: “as pessoas não conhecem muita coisa, acabam aceitando tudo o que
os outros oferecem”. Essa é uma das razões pelas quais é explicada a demora
na regularização do território quilombola, porque “o cara do INCRA [Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária] vem e ninguém tem condições de
entender as coisas que ele fala sobre a terra e nem nada do procedimento para a
demarcação” (Fernandes et al., 2013: 21). O problema maior, nesse sentido, é a
falta de conhecimento da “nossa realidade”, como dizem os quilombolas.
Desse modo, enquanto moradores locais envolvidos na dinâmica local e atu-
antes politicamente, os discentes apresentam vasto conhecimento sobre a rea-
lidade de suas comunidades. Porém, nos projetos não havia articulação deste
saber com o arcabouço desenvolvido no Curso de Etnodesenvolvimento. Isso
prejudicava a efetivação das investigações por parte deles, além de inviabilizar
as possibilidades de ações interventivas, como a proposição de políticas públi-
cas demandadas pelos próprios quilombolas.
No que diz respeito às temáticas elencadas para pesquisas, observamos a
relação entre as demandas das comunidades com o processo de vulnerabili-
zação ao qual estão submetidas. Para citar um caso elucidador, as questões
relativas à educação adequada à realidade local e, concomitantemente, ati-
nente à legislação que ampara o ensino diferenciado, não recebem a atenção
necessária por parte dos órgãos gestores locais. Tendo em vista o relato de
umas das discentes que propõem investigar essa questão, a formação dos
professores – incluindo os técnicos educacionais – não é adequada, o que
acarreta na dificuldade de implementação de ações efetivas de combate ao
racismo dentro do ambiente escolar. O material didático fornecido no âmbi-
to dos programas de governo, direcionados às questões etnicorraciais, não
são utilizados na escola do quilombo de origem desta discente; ao passo
disso, datas-símbolo do movimento negro ou a transversalidade curricular
atenta à formação política de sujeitos não-racistas, não são observados (Gui-
marães, 2013).
235
Sendo assim, a execução dos preceitos da Lei 10.639/2003 e seus desdobra-
mentos, resultado das lutas do movimento negro (Cavalleiro, 2006; Lopes et
al., 2011), não ocorre dentro da única instituição escolar que atende o público
do próprio quilombo. Na medida em que são negligenciados os princípios do
ensino pela diversidade, com ênfase às particularidades da educação quilom-
bola (Fiabani, 2013; Nunes, 2006), reproduzem-se discursos de violência co-
tidianamente, tendo em vista a negligência à dimensão danosa provocada pelo
racismo em suas vítimas (Lopes et al., 2011), além de permitir a banalização de
tais ações (Coelho, 2006; Guimarães, 2008; Acevedo-Marín, 2008b). Foi justa-
mente no ambiente escolar, em outro quilombo, que um professor não-quilom-
bola “corrigiu” a pronúncia do nome de uma de suas alunas. Após anos sendo
chamada a partir de dada sonoridade, a então discente foi advertida e, agora,
apesar de ter lamentado a situação de repreensão, apresenta-se de acordo com o
sotaque imposto pelo docente, a não ser quando está na comunidade (Fernandes
et al., 2013). Tem-se, desse modo, a consubstanciação de uma, dentre as múl-
tiplas, formas de violência aos quais os grupos etnicamente diferenciados têm
que lhe dar enquanto coletivos (Beltrão, 2012; Fernandes et al., 2013; Lopes
et al., 2014).

Conclusão
Em uma das etapas de campo do projeto de pesquisa “Indígenas e quilom-
bolas mulheres em situação de violência: diversidade sociocultural, Direitos
Humanos e Políticas Públicas na Amazônia”, também executada em três dos
quilombos de Salvaterra, foi notória a demanda dos quilombolas pelo ensino
superior. (Lopes et al., 2014) Em meio as rodas de conversa desenvolvidas no
âmbito do projeto, relativas ao Processo Seletivo Especial da UFPA, a presença
significativa de jovens alunos e seus pais, e suas falas, evidenciaram o desejo
de acesso a um meio possível de intervenção em suas comunidades, a partir dos
entendedores de seus próprios contextos locais.
Os alunos do Curso de Etnodesenvolvimento integraram essa demanda,
outrora “reprimida” pela falta de políticas afirmativas a eles direcionadas. Ao
debatermos, nesse artigo, a relação entre a realidade imediata desses discen-
tes, associadas à sua dinâmica de produção de conhecimento, colocamos em
236
destaque o processo empírico de execução da proposta de um Curso de cunho
diferenciado. A relação entre o saber local e o científico, todavia, não ocorre de
forma simples, como mostramos ao longo desse texto. Ao ocuparem seu lugar
na Universidade, os discentes, agem de maneira ativa no enfrentamento das
vicissitudes do processo e, ainda mais, na gerência de seus contextos diferen-
ciados.

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239
Indígenas, quilombolas e trabalhadoras rurais:
trajetórias no ensino superior

Mariah Torres Aleixo1

Biografias transformadas, trajetórias reformuladas


“Depois que eu comecei a vir estudar pra cá, agora eu não tenho mais medo
de enfrentar ele. Agora, não! Eu não fico só calada.”2 Foi o que Fátima, estu-
dante do curso de Licenciatura e bacharelado em Etnodesenvolvimento3 pro-
feriu, em tom incisivo, quando conversávamos acerca da violência contra as
mulheres e a Lei Maria da Penha. O ano era 2011 e eu havia ido a Universidade
Federal do Pará (UFPA), Campus de Altamira, para ministrar a oficina Marias e
Pen(h)as – violência não! para a primeira turma do referido Curso.
Na época, pesquisava sobre a possibilidade de aplicação da Lei nº. 11.340/06,
popularmente conhecida como Lei Maria da Penha,4 às mulheres indígenas,
tendo em vista que o referido diploma legal era silente quanto ao assunto, ao
mesmo tempo em que a Lei parecia não ter sido pensada fora dos limites das
cidades e das vivências de mulheres brancas e ocidentais, conforme problema-
tizaram Beltrão & Libardi (2008).
Durante a estadia, houve diálogo com as indígenas estudantes, mas também
com as demais, quilombolas e trabalhadoras rurais, que relataram “casos” de
violência contra a mulher5 em suas comunidades em meio a relatos pessoais e
opiniões sobre qual seria a melhor maneira de solucionar a violência, conside-
rada, por todas, problema que merece ser observado e solucionado por autori-
dades comunitárias e estatais.

1
Advogada, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará
(PPGD/UFPA). Contato: mariahaleixo@gmail.com.
2
Fátima, entrevistada por Mariah Torres Aleixo em 18 de agosto de 2011.
3
No artigo, farei referência às estudantes do curso de Etnodesenvolvimento de forma genérica, deixando
em sigilo os nomes reais das interlocutoras.
4
Instrumento jurídico destinado a prevenir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher no
Brasil.
5
Utilizo o termo violência contra mulher por ser amplamente conhecido e de senso comum, uma vez que
o objetivo deste artigo não é problematizar os diferentes significados que as expressões violência contra
mulher, violência de gênero, violência conjugal, violência doméstica e violência familiar engendram.
Sobre o assunto, consultar Gregori (2004).

240
Em outra oportunidade, em 2013, estive presente, durante alguns dias, na
etapa Tempo-Comunidade6 entre os quilombolas estudantes do Arquipélago
do Marajó. Já cursava o mestrado e estava dando prosseguimento às reflexões
acerca da violência contra a mulher entre povos e comunidades tradicionais,7
incluindo também a experiência de quilombolas mulheres, além das indígenas.
Porém, afora as conversas realizadas com as mulheres, houve a realização de
uma oficina denominada Quilombos, quilombolas e direitos, conforme acorda-
do com os estudantes, as demais lideranças e a direção da faculdade de Etnode-
senvolvimento.
Dos discursos colhidos em campo, por meio de entrevistas, observação e
relatórios de oficinas, emergiram questões que versavam não somente sobre a
violência. O estudo em nível superior via Curso de Etnodesenvolvimento, pro-
vocou mudanças nas vidas das indígenas, quilombolas e trabalhadoras rurais
estudantes, pois os depoimentos são permeados por menções a estas transfor-
mações. Compreendo que as biografias das protagonistas – as percepções de
si, da vida em comunidade e do futuro – foram modificadas, sobretudo porque,
pertencendo a grupos sociais subalternizados no país, imaginaram que não seria
possível serem discentes de uma universidade, como são agora. Tais transfor-
mações implicam/implicaram uma série de negociações com os familiares e as
etnias/comunidades de pertença, por isso, utilizo as reflexões de Bourdieu, para
quem as análises das histórias de vida
“... conduz à construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio
um devir, estando sujeito a incessantes transformações. Tentar compreender uma vida
como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vín-
culo que não a associação a um ‘sujeito’ cuja constância certamente não é senão aquela
do nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no
metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas en-

6
O curso de graduação em Etnodesenvolvimento funciona em regime de alternância, com momentos
em sala de aula, na UFPA, campus de Altamira, e momentos nas comunidades onde os estudantes resi-
dem. O Tempo-Universidade diz respeito ao período do curso em que os estudantes assistem às aulas
em Altamira e o Tempo-Comunidade é o período em que os estudantes retornam às comunidades para
realizar trabalhos referentes ao curso, que deverão ser apresentados no próximo Tempo-Universidade
e assim sucessivamente. Conferir no Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura e Bacharelado em
Etnodesenvolvimento (UFPA, 2008).
7
De acordo com o artigo 3º, inciso I do Decreto nº. 6.040 de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, povos e comunida-
des tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-
ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição.”
241
tre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se definem como colocações
e deslocamentos no espaço social ...” (2006:189-190. Grifos do autor).

Por isso, entendo que a trajetória das estudantes deva ser problematizada por
meio das experiências do “estudar” na Universidade: as dificuldades, benefícios
e desafios que o estudo em nível superior trouxe para suas vidas, inclusive no
círculo de relações interpessoais, visto que analisar trajetórias implica desven-
dar e descrever as posições e, nesse caso, principalmente, as tensões entre os
sujeitos.
O depoimento supracitado, com o qual inicio a discussão, mostra que fre-
quentar a Universidade causou mudança de postura da estudante na relação
conjugal, com a recusa em ficar calada quando da ocorrência de ofensa verbal.
De maneira geral, frequentar a Universidade possibilitou certo empoderamento
das estudantes, de modo que não é possível analisar e compreender suas traje-
tórias de forma satisfatória sem atentar para os deslocamentos provocados nas
posições de gênero.
Quando falo de gênero, entendo-o como uma categoria de análise que é
elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas
entre os sexos e uma forma primária de dar significado às relações de poder
(Scott, 1995: 86). Diz respeito às masculinidades e feminilidades hegemônicas
e não hegemônicas socialmente construídas e historicamente localizadas, a par-
tir da compreensão acerca das diferenças sexuais, que também é contextual. Os
deslocamentos de gênero experimentados pelas interlocutoras em suas relações
conjugais, bem como em sua vivência com outros membros da comunidade
de origem, desafiam papéis anteriormente assumidos, até então considerados
inquestionáveis, inclusive por elas.
Tais deslocamentos em relação aos papéis de gênero assumidos pelas estu-
dantes não devem ser lidos isoladamente. Explico-me: as diferenças de gênero,
em acordo com o que preconizam autoras como Scott (1995) e Brah (2006), de-
vem ser compreendidas em articulação com outras categorias como raça/etnia e
classe, visto que as diferenças de – e relações de poder que envolvem o – gênero
assumem nuances diversas em face das diferenças raciais, étnicas e de classe. A
assertiva é verdadeira, sobretudo quando se aborda as trajetórias de indígenas,
quilombolas e trabalhadoras rurais.
242
“Eu não tenho muita coisa, mas conhecimento eu tenho”
Em um dos primeiros contatos com as mulheres estudantes do curso de Etno-
desenvolvimento, as noções do que seria um conhecimento válido ou legítimo
foram reiteradamente suscitadas. Entendo, concordando com Silva (2006), que
o encontro promovido pelo trabalho de campo é um diálogo, em que ambos,
pesquisador e interlocutores, constroem representações uns dos outros, condi-
cionando, portanto, o teor e o desenrolar da conversa. Por isso, acredito que o
assunto tenha surgido, em parte, devido ao modo como fui vista pelas estudan-
tes: alguém da capital, que “sabe das leis” e que ministrou uma oficina, ou seja,
têm conhecimento!
Como o assunto era a violência, de maneira geral, as interlocutoras compreen-
dem que para as mulheres em situação de violência sanarem o problema é preciso
que elas descubram que os casos enfrentados por elas fogem a certo padrão de
normalidade. De acordo com o discurso das estudantes, tais mulheres (ou elas
mesmas, no caso das que revelaram sofrer violência) precisam primeiramente
descobrir que estão nessa situação e que as ações de seus companheiros são erra-
das e merecem ser combatidas. Essa descoberta acontece quando elas “adquirem
conhecimento”, para usar a expressão amplamente utilizada por muitas delas.
Esse conhecimento pode ser “adquirido”, segundo elas, por meio da militân-
cia política, como é o caso de muitas que se organizam tanto em movimentos
sociais mistos dos mais diversos matizes, quanto em movimentos de mulheres.
O outro modo de adquiri-lo é pelo estudo em nível superior no Curso de Etno-
desenvolvimento. Talvez por isso as estudantes afirmem que para as mulheres
que vivem em áreas urbanas é mais fácil e possível escapar dos contextos de
violência. Quando uma das estudantes afirma que “tá tudo lá” (na cidade), ratifi-
ca a ideia geral que elas possuem de que as mulheres citadinas têm mais acesso
ao conhecimento e, com isso, maiores possibilidades de dar cabo da violência.
Essa noção de que o conhecimento legítimo é o da academia – aquele que in-
clusive possibilitaria a superação das dificuldades – foi percebida em entrevistas
e situações, quando as estudantes ainda cursavam os períodos iniciais da Faculda-
de. Não há como afirmar que esta ideia deixou de circular entre elas, mas se não
deixou, ao que tudo indica, ela compete com a visão de que os conhecimentos
comunitários são importantes e merecem ser preservados e defendidos por elas.
243
Refiro-me à situação ocorrida durante o Tempo-Comunidade, em que duas
estudantes do Curso de Etnodesenvolvimento puseram-se a inquirir os pesqui-
sadores, perguntando quais eram nossas expectativas antes de chegar à comu-
nidade quilombola, explicando que se preocupavam bastante com a postura dos
acadêmicos em relação à comunidade. Dora, uma das estudantes assevera: “a
gente tem experiência que muitas das vezes as pessoas entram pra colher infor-
mação tua, só pra colher informação tua, não retornam.”8 Enquanto Lia pros-
segue dizendo: “isso é um fator que eu acho que depois que a gente começou a
estudar no curso do Etno [sic] a gente não quer que aconteça mais.”9
Muitas coisas podem ser discutidas sobre este ponto, sobretudo as questões
éticas e políticas nas quais muitas pesquisas empíricas esbarram. Porém, con-
sidero importante notar a mudança de status do conhecimento comunitário. Se
antes, no início do curso, as estudantes sequer elencavam suas vivências coti-
dianas ou tradicionais como conhecimento; agora compreendem que elas são
tão ou mais importantes que o conhecimento científico stricto sensu e, por isso,
merecem ser “protegidas” de quem queira delas se beneficiar indevidamente.
A ideia de que a cidade é um espaço de oportunidades, seja de emprego,
acesso a políticas públicas, seja de lazer e/ou fuga de situações de violência,
permanece. Algumas pensam até em sair de sua vila/aldeia/comunidade rumo
às cidades próximas ou mesmo à capital do estado depois que se formarem. Mas
aliado a isso, há, por parte das protagonistas, uma valorização de sua identida-
de, Elza, que é quilombola, afirma: “por mais que eu me mude pra onde for, eu
nunca vou fugir do que eu sou. Pra mim não vai mudar nada.”10
Assim, o depoimento de uma estudante, que numa das primeiras conver-
sas, disse, categoricamente: “eu não tenho muita coisa, mas conhecimento eu
tenho!”, pode ser mais densamente interpretado agora. Se antes, no início do
curso, a estudante afirmava isso porque, iniciando os estudos em nível superior
havia alcançado o conhecimento supostamente “válido” e “legítimo” porque
produzido na universidade e é dito científico, hoje ela poderia afirmar a mes-
8
Dora, entrevistada por Edimar Fernandes, Mariah Aleixo, Mônica Vieira e Rhuan Lopes em 03 de maio
de 2013.
9
Lia, entrevistada por Edimar Fernandes, Mariah Aleixo, Mônica Vieira e Rhuan Lopes em 03 de maio
de 2013.
10
Elza, entrevistada por Mariah Aleixo, em 02 de maio de 2013.

244
ma coisa porque, via Curso de Etnodesenvolvimento pôde compreender a igual
validade e importância dos diversos tipos de conhecimento. Importa considerar
também que a interlocutora disse esta frase ao seu marido, quando ele estava
reclamando do fato de ela estudar “fora”, isto é, em Altamira, durante a etapa
Tempo-Universidade do Curso. Quando as estudantes se reconhecem como al-
guém que “tem conhecimento”, isso gera empoderamento11 diante dos “outros”,
maridos/companheiros, instituições, pesquisadores e demais agentes sociais que
não são indígenas, quilombolas ou trabalhadores rurais.

Como a passagem pelo Curso reflete nas relações conjugais?


Cursar o Etnodesenvolvimento demanda dos estudantes – inclusive das in-
terlocutoras – que passem alguns meses durante o ano afastados de suas aldeias/
vilas/comunidades e estabeleçam domicílio temporário em Altamira, pois eles
provêm das mais diversas regiões do estado do Pará, tornando-se impraticável,
para a maioria, assistir às aulas e voltar para casa todos os dias.
Todas as estudantes com quem mantive algum contato reclamam que esta
“migração temporária” gera/gerou tensões entre elas e os maridos/companhei-
ros, devido aos ciúmes deles. Elas informam que os desentendimentos provo-
cados pelo ciúme em relação aos estudos existem há tempos, desde quando elas
cursavam o ensino médio (no caso das que já eram casadas desde essa época),
porque tinham que ir às cidades vizinhas para assistir as aulas ou porque, mes-
mo frequentando a escola da vila/comunidade/aldeia, precisavam afastar-se das
tarefas domésticas para estudar.
Dessa forma, dar início ao curso universitário, segundo elas, provocou ciúmes
nos maridos/companheiros, que não estavam acostumados com a ideia de suas es-
posas/companheiras estudarem. No caso das mulheres casadas há mais tempo, isso
reavivou tensões já existentes, da época em que elas cursavam outros níveis de ensi-
no. Se antes o deslocamento era temporário, de apenas algumas horas, ele passou a
durar meses, o que, nas palavras das estudantes, aumentou sobremaneira os ciúmes
dos parceiros e, com isso, a ocorrência de violência em relação às estudantes.
11
A categoria empoderamento, advinda do inglês “empowerment”, não possui acepção única. Aqui, uti-
lizo para indicar as práticas das indígenas, quilombolas e trabalhadoras rurais no sentido de aumento da
autonomia. Sobre o assunto, ver Gohn (2004).

245
Em outra ocasião, destaquei que o ciúme foi elencado por mulheres indíge-
nas e quilombolas, como a principal causa de ocorrência de violência (Aleixo
& Beltrão, 2013); estudos cujo enfoque não são as mulheres de pertenças ét-
nico-raciais e trabalhadoras rurais, como o de Schraiber et al (2005), também
demonstraram que os ciúmes são uma das principais justificativas dos homens
quando violentam suas parceiras. Segundo a autora, isso é expresso na frase
reiteradamente repetida por seus interlocutores: “ela me faz perder a cabeça.”
Com as estudantes do curso, ocorre algo semelhante: estudar provoca ciúmes
e estes justificam violências físicas e verbas das quais algumas se queixam. A
declaração de Mara confirma isso: “eu acho que isso aconteceu [a violência]
assim mais por causa de ciúme mesmo, porque antes eu só ficava em casa com
meus filhos, aí quando eu resolvi cuidar dos meus estudos, ele foi ficando com
mais ciúme.”12
É importante notar que essas tensões nas relações conjugais, geradoras de
violência, foram experimentadas tanto por indígenas, quanto por quilombolas
e trabalhadoras rurais estudantes do Curso de Etnodesenvolvimento, mesmo
que as situações individuais apresentem diferentes nuances em decorrência dos
contextos específicos. O que é comum, no entanto, é que “estudar fora” signifi-
cou não corresponder – ao menos, em parte – ao que os maridos/companheiros
esperavam delas, pois, de maneira quase uníssona, elas afirmam que eles gos-
tariam que elas ficassem em casa, cuidando dos filhos, de afazeres domésticos
e/ou da roça. Dessa forma, o ingresso no Curso não teve o condão somente de
interferir na trajetória educacional das protagonistas: talvez de maneira inespe-
rada, o ingresso no ensino superior tenha provocado deslocamentos nos papéis
de gênero construídos no âmbito da conjugalidade, modificando a rota das bio-
grafias individuais não somente do ponto de vista educacional.
Se tornar-se discente do Curso provocou ciúmes e reações violentas dos par-
ceiros, o empoderamento a que fiz referência no tópico anterior foi crucial para
que elas se mantivessem estudando. Conforme relata Elza:
“ele me põe da casa, ele disse que era pra eu escolher, ou o estudo ou a casa. Eu disse que ficava
com os dois. Ou não a casa, porque casa a gente arruma em qualquer parte e estudo, não! Eu
venho mesmo, de livre e espontânea vontade, não é da vontade dele, mas eu venho!”
12
Mara, entrevistada por Mariah Aleixo em 18 de agosto de 2011.

246
A mudança de postura delas em relação às vontades dos parceiros sem-
pre é frisada. Ao que parece, a experiência vivenciada no Curso de Etno-
desenvolvimento incentivou o exercício da autonomia das estudantes não
somente no sentindo de decidir os destinos, se vão continuar os estudos ou
não. A vivência implicou também a busca por condições financeiras me-
lhores, e assim muitas estudantes se empregaram em lugares próximos às
suas comunidades, outras se tornaram bolsistas da Universidade, conforme
aduz Mara:
“a raiva dele mais agora foi porque eu comecei a depender de mim, comecei a traba-
lhar. Porque ele queria todo tempo que eu fosse submissa a ele, e só ficar na mão dele
o tempo todo. Todo tempo ficasse precisando só dele, e agora não.”

Uma aluna do Curso contou que o marido era muito ciumento e que isso gerou
inúmeras situações de violência no cotidiano do casal. Diante disso, ela, que nesse
período já era estudante do Curso, separou-se dele temporariamente; quando rea-
taram, conta que não houve mais situações de violência e que ela inclusive age de
forma a não permitir que as ocorrências anteriores se repitam: “agora que a gente
voltou, quando ele começa com esses ciúmes eu já me saio.” Outra estudante
declara que as tensões geradoras de ciúme e violência do marido ainda existem,
mesmo que ela as enfrente, mas que planeja a separação assim que se formar.
As mudanças nas trajetórias educacionais das indígenas, quilombolas e tra-
balhadoras rurais provocaram deslocamentos nos papéis de gênero em âmbito
conjugal que, ao que parece, ainda estão em andamento. Tais mudanças não são
coerentes nem lineares e se apresentam de maneiras diversas, conforme o caso.
O que interessa, por ora, é compreender que se um dos objetivos do Curso era
o empoderamento dos grupos sociais subalternizados em relação ao restante da
sociedade nacional, ele acabou contribuindo para transformações nas relações
de poder mais primárias, como afirma Scott (1995). Este “efeito inesperado”
permite laçar outro olhar para o Curso de Etnodesenvolvimento enquanto ação
afirmativa de cariz multicultural.

Graduação em Etnodesenvolvimento e o multiculturalismo radical


Em seu Projeto Pedagógico Curricular (PPC), o Curso de Licenciatura e Ba-
charelado em Etnodesenvolvimento determina que o objetivo da proposta é:
247
“... preparar recursos humanos oriundos de povos indígenas e populações tradicio-
nais dotados de capacidade de gerenciar informações e contatos com possibilidade
de intervir socialmente a partir de autorreflexão sistemática. Profissionais capazes de
refletir no momento em que atuam, sobre as consequências sócio-político-culturais dos
métodos e ideias de que são portadores frente aos diversos agentes sociais presentes na
situação de intervenção” (UFPA, 2008: 06).

Dessa maneira, o curso direciona-se especialmente aos membros de coletivi-


dades colocadas em situação de vulnerabilidade diante da “unidade nacional”,
isto é, povos indígenas e comunidades tradicionais, a fim de capacitá-los para
que o diálogo intercultural ocorra com menores assimetrias. É por isso que o
multiculturalismo é um dos principais conceitos norteadores.
O uso do termo multiculturalismo é recente, remonta a década de 1960 do
século XX, momento de elaboração de políticas de diversidade cultural no Ca-
nadá, que conseguissem garantir a oficialidade dos diversos idiomas falados no
território daquele país. O conceito pode ser compreendido de diversas manei-
ras, no entanto, seu cerne tem a ver com a garantia da unidade na diversidade,
impele a pensar: como garantir a unidade cívica e ao mesmo tempo respeitar a
diversidade cultural? (Heywood, 2010: 95).
Como o termo é polissêmico, o PPC trata de detalhar de que tipo de multicul-
turalismo se está falando quando se implementa um curso de graduação como o
de Etnodesenvolvimento. Nesta passagem, é possível visualizar e compreender
qual a proposta multiculturalista do Projeto:
“[h]istoricamente, entre as diversas concepções de Multiculturalismo que prevalece-
ram, pode-se apontar a concepção conservadora com base na harmonia entre os gru-
pos. A essência dessa concepção perde de vista a diferença como um valor fundamental
para a existência do Multiculturalismo. Outra concepção é exatamente a concepção
que tenta articular os valores da igualdade e da diferença. Essa concepção permite o
diálogo entre as diversas culturas existentes numa sociedade, como o que se pretende
fazer a partir do curso de graduação em Etnodesenvolvimento” (2008: 04).

Numa primeira leitura, pode gerar estranheza denominar o multiculturalismo


que preconiza a harmonia entre os grupos, como conservador. Suponho que este
tipo de política multicultural esteja relacionado ao que pensa, por exemplo, o
filósofo Zarka (2013), para quem é preciso colocar as liberdades e os direitos
individuais acima de qualquer diferença de ordem cultural para preservar o re-
gime democrático. Para o autor, pode até ser possível garantir direitos coletivos
a grupos diferenciados, no entanto, se houver desconformidade entre os direitos
248
de grupo e os individuais, os últimos é que devem prevalecer. Nesse caso, a
harmonia é forjada, e os grupos permanecem submetidos à “cultura dominante”.
Porém, o multiculturalismo sob o qual o Curso de Etnodesenvolvimento está
fundamentado, propõe articular igualdade e diferença, o que significa dizer que
as diferentes práticas dos grupos merecem ser reconhecidas, valorizadas e per-
mitidas, para que não se subjugue uma cultura à outra. Nesse caso, estimar todos
os grupos componentes de uma sociedade multicultural significa estabelecer a
igualdade por meio da valorização das diferenças.
Nessa acepção de multiculturalismo ganha relevância a noção de reconheci-
mento e é Taylor (1994), filósofo canadense, quem se debruça sobre o assunto.
Para o autor, o reconhecimento das pessoas enquanto sujeito ocorre a partir da
uma identidade, adquirida, ou melhor, construída, por meio das relações que se
estabelecem com outros grupos e indivíduos. Uma política que pense o reco-
nhecimento da diferença, para o autor, deve, necessariamente, atentar para essa
relação, pois o reconhecimento (ou a falta dele) tece a identidade. Com isso, as
identidades não reconhecidas são subjugadas pelos grupos hegemônicos e não
são vistas pelos demais de maneira respeitosa e com consideração.
Dessa maneira, o Curso de Etnodesenvolvimento se constitui enquanto política
de valorização das diferenças não pela simples celebração da diversidade – isso
seria aderir ao multiculturalismo conservador – mas sim por meio de um progra-
ma educacional que possibilite aos grupos atuar de forma mais autônoma, tanto
para reivindicar políticas públicas de maneira contundente, quanto para elaborar
propostas de vivência autossustentáveis com maiores possiblidades de sucesso.
Como a discussão aqui gira em torno das experiências das estudantes da
graduação e os deslocamentos dos papéis de gênero constituídos no âmbito das
relações conjugais, cabe destacar que o PPC determinou que o Curso deve pro-
piciar a seguinte competência e habilidade aos estudantes:
“[a]rticular a problemática de gênero às práticas e valores sociais, culturais e políticos
de populações tradicionais e povos indígenas, procurando trabalhar o conceito de raça/
etnicidade juntamente com outros marcadores sociais de diferenciação, tais como ida-
de, classe social e sexualidade. Discutir questões relativas à: família, conjugalidade e
parentalidade; geração; identidades sexuais; noções de corpo e de pessoa. Traçar as se-
melhanças e especificidades destes grupos étnicos/raciais e tradicionais na construção
de conceitos como masculinidades e feminilidades em relação a outros setores sociais”
(UFPA, 2008:07).
249
As experiências das estudantes indígenas, quilombolas e trabalhadoras ru-
rais aqui discutidas revelam que, sobretudo as mulheres estudantes, adquiri-
ram essa habilidade e competência em sua estadia no Curso. Suas trajetórias
na graduação em Etnodesenvolvimento revelam as tensões internas dos grupos
diferenciados e põe em xeque até mesmo o multiculturalismo que se propõe a
abarcar – e valorizar – as diferenças.
A proposta do multiculturalismo radical de Lugones (2005) pode ser uma
alternativa mais adequada para pensar os contextos dessas estudantes, pois ela
atenta para a armadilha de conceber os grupos como uma célula homogênea,
a-histórica e sem contradições internas, como uma “monocultura”, para usar os
termos da autora. Esse pensamento também denuncia que se constroem redutos
de dominação mesmo em grupos diferenciados subalternizados. No caso em
análise, pode-se dizer que isso ocorre também entre povos indígenas e popula-
ções tradicionais, conforme indicam os discursos das interlocutoras.
Se no PPC do Curso houve a preocupação de incluir a discussão de gênero
aliada às questões de raça/etnia, classe e outros marcadores sociais da diferença,
há espaço para debruçar-se sobre as experiências e discursos das estudantes,
afim de que não se incentive a criação – ou a permanência – de certas hegemo-
nias. Enquanto isso, as assimetrias de poder, principalmente no interior das rela-
ções conjugais, conforme visto, continuam sendo questionadas pelas estudantes
que se formarão, num processo que marca suas trajetórias de forma indelével.

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lheres em situação de violência e o desafio de pensar gênero pela matriz ‘urbana’ e
‘ocidental’” In Anais o VII Congresso Internacional Ceisal - Memoria, Presente y
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pen(h)as: permanências e avanços” In Pinho, Ana Cláudia de Bastos & Gomes, Mar-
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250
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Gohn, Maria da Glória. 2004. “Empoderamento e participação da comunidade em po-
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Gregori, Maria Filomena. 2004. “Deslocamentos semânticos e hibridismos: sobre os
usos da noção de violência contra mulher” In Revista Brasileira de Ciências Crimi-
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líticas – do feminismo ao multiculturalismo. São Paulo. Ática, 95-115.
Lugones, María. 2005. “Multiculturalismo radical y feminismos de mujeres de co-
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tónoma Metropolitana – Iztapalapa. Disponível em: <<http://www.redalyc.org/pdf/
592/59202503.pdf>>. Acesso em: 12.01 2014.
Schraiber, Lilia Blima (Org.). 2005. Violência dói e não é direito. A violência contra
a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo. Editora UNESP.
Scott, Joan. 1995. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” In Educação e
Realidade, Porto Alegre, Vol. 20, 2, jul/dez. 71-99.
Silva, Vagner Gonçalves da. 2006. O antropólogo e sua magia. São Paulo, Editora
Universidade de São Paulo (Edusp).
Taylor, Charles. 1998. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento.
Lisboa, Instituto Piaget, 1998.
Universidade Federal do Pará (UFPA). Projeto Pedagógico do curso de Licenciatu-
ra e Bacharelado em Etnodesenvolvimento. Altamira: Universidade Federal do Pará,
2008.
Zarka, Yves Charles. 2013. Difícil tolerância – a coexistência de culturas em regimes
democráticos. São Leopoldo, Editora Unisinos.

251
Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas & Ensino Superior:
a experiência da Universidade Federal do Pará

Edimar Antonio Fernandes1


Jane Felipe Beltrão2
Assis da Costa Oliveira3

Para iniciar a discussão


As ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras estão inseridas
num contexto histórico de reivindicações políticas de grupos sociais, étnicos e
raciais que convergiram, na década de 1990 e, de forma mais intensa, no início
do Século XXI, para demandar e exigir postura pró ativa do Estado brasileiro na
busca pela reparação de injustiças históricas contra determinados segmentos da
população que produziram barreiras adicionais para o acesso às oportunidades
de qualificação educacionais em todos os níveis da educação, mas de maneira
mais aguda no âmbito universitário.
Apesar de recentes, pois iniciaram nas universidades públicas apenas em
2002,4 as políticas afirmativas no campo universitário não contavam com regu-
lamentação legal – as universidades eram autônomas para optar pela implanta-
ção de políticas de ação afirmativa – até 2012. Paladino & Almeida destacam
que “[a]s ações afirmativas no Brasil têm recebido diferentes ênfases e visado
determinados grupos segundo as características dos diversos governos e das
pressões dos movimentos sociais” (2012: 23). As discussões sobre a implanta-
ção das ações afirmativas sempre foram acirradas e, somente a partir de 2012,
com a aprovação da Lei nº. 12.711/2012 (chamada Lei de Cotas), é que as
1
Kaingang, Graduado em Administração de Empresas pela Universidade do Oeste de Santa Catarina
(UNOESC), mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade
Federal do Pará (UFPA), doutorando junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA)
e atual presidente da Associação dos Povos Indígenas Estudantes na Universidade Federal do Pará
(APYEUFPA). Contato: kaingang2013@gmail.com.
2
Antropóloga e historiadora, docente dos programas de pós-graduação em Antropologia e Direito da
Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) no Brasil. Contato: janebeltrao@gmail.com.
3
Professor de Direitos Humanos do Curso de Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade da
UFPA, Campus de Altamira. Mestre pelo PPGD da UFPA. Membro do Instituto de Pesquisa Direitos e
Movimentos Sociais (IPDMS). Advogado. Contato: assisdco@gmail.com.
4
Segundo Marques Santos (2007) e Bevilaqua (2005), o pioneirismo acadêmico esteve associado, ini-
cialmente, a algumas instituições estaduais dos estados da Bahia, Rio de Janeiro e Paraná que passaram
a adotar, entre 2002 e 2003, o sistema de cotas. Somente a partir de 2004 ocorre a adoção das cotas pelas
universidades federais de Brasília, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
252
universidades foram obrigadas a oferecer vagas para grupos historicamente vul-
nerabilizados.5
O ingresso dos povos indígenas e comunidades tradicionais no ensino supe-
rior é parte das constantes pressões e reivindicações, principalmente nas últi-
mas duas décadas, por meio de diversas formas de organização local, regional
e nacional, articuladas (ou não), que entendem as ações afirmativas como pos-
sibilidade de acesso a espaços políticos-institucionais historicamente negados
às minorias étnicas no Brasil. No que se refere aos povos indígenas, Paladino
e Almeida indicam que “[a]o longo desse período, a educação superior passou
a ocupar um lugar importante nas reivindicações do movimento indígena...”
(2012: 107). As autoras destacam ainda duas vertentes nas demandas dos mo-
vimentos indígenas, a primeira referente à formação de professores no ensino
superior e a segunda a necessidade de “formar quadros” para o próprio movi-
mento indígena com pessoas capacitadas, em diversas áreas de conhecimento,
para defender os direitos e interesses indígenas.
Nesse sentido, os grupos vulnerabilizados passam a se apropriar de conheci-
mentos acadêmicos como forma de fortalecer as lutas pela garantia e efetividade
de direitos, a educação em todos os níveis de ensino e em diversas áreas passa
a ser reivindicada como possibilidade de “empoderamento”6 com o objetivo de
superar as dificuldades existentes e estabelecendo novas formas de diálogo com
a sociedade.
Toma-se como ponto de partida as narrativas de indígenas e quilombolas ou-
vidas durante as atividades relativas à divulgação do Processo Seletivo Especial
(PSE) para povos indígenas e populações tradicionais nos últimos cinco anos.
Compreendendo: (1) as ações iniciais, em 2009, antes do primeiro PSE; (2) as
ações subsequentes junto a diversas comunidades; (3) a iniciativa do projeto
5
A Lei estabelece que as universidades devem reservar, “em cada concurso seletivo para ingresso nos
cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursa-
do integralmente o ensino médio em escolas públicas... destas, serão preenchidas, por curso e turno, por
autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas
na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” (Brasil, 2012).
6
Define-se “empoderamento” como relativo à ação política de pessoas e grupos que se fortalecem em
função da participação que, mesmo limitada, possibilita o esgarçamento e até o rompimento com as rela-
ções de opressão, discriminação e dominação social à qual são submetidos. Para uma discussão sobre os
usos e abusos da utilização da categoria, consultar: Kleba & Wendausen (2009).

253
denominado Caravana do Vestibular Indígena, em 2012, planejado e executado
pela Associação dos Povos Indígenas Estudantes na Universidade Federal do
Pará (APYEUFPA); e, (4) a mobilização para a seleção diferenciada para 2015.
As ações descritas se estendem a diversos pontos do território paraense – re-
giões/rios: Guamá, Xingu, Tapajós, Tocantins e arquipélago do Marajó – bem
como no estado do Mato Grosso do Sul, pois considera-se a origem da demanda
e dos estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPA). Compreender as
perspectivas das lideranças indígenas e quilombolas no que se refere ao ingres-
so, à permanência e ao sucesso no ensino superior, bem como ao retorno qua-
lificado às comunidades, é o objetivo do trabalho e, para tanto, procura-se: (1)
contextualizar a criação de vagas reservadas aos povos indígenas e quilombolas
na Universidade e como foi estruturado o PSE; (2) apresentar a recepção das
comunidades às vagas reservadas; e, (3) discutir as possibilidades e dificuldades
relacionadas ao ingresso, permanência e retorno às comunidades de pertença.

O contexto paraense
O Pará é um dos estados brasileiros com maior concentração de diversida-
de étnico-cultural/linguística. São povos indígenas, comunidades tradicionais e
movimentos sociais que revindicam educação escolar básica de qualidade para,
entre outras demandas, possibilitar melhores condições de permanência na uni-
versidade. No que tange às articulações dos povos indígenas, o movimento no
Estado há muito estabeleceu diálogo com as instituições públicas de ensino
superior no sentido de garantir políticas específicas para superar a desigualdade
histórica no acesso aos cursos de graduação e pós-graduação. Algumas das rei-
vindicações foram atendidas no âmbito das políticas afirmativas na UFPA e na
Universidade do Estado do Pará (UEPA).
O primeiro curso específico para povos indígenas e comunidades tradicionais
em nível de graduação foi a Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimen-
to, que teve início em 2010, no campus da UFPA em Altamira, região sudoeste
do Pará. No mesmo ano, os povos indígenas tiveram garantidas duas vagas em
todos os cursos de graduação em todos os campi da UFPA. Em 2012, a UEPA, em
parceria com a Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), deu início ao Curso
de Licenciatura Intercultural para Povos Indígenas, que atende apenas cinco et-
254
nias no Estado (Tembé, Gavião Parkatêjê, Gavião Kyikatêjê, Gavião Akrãtikatêjê
e Aikewara), sendo criado a partir da demanda dos povos Tembé e Gavião por
meio de ação no Tribunal Regional do Trabalho (TRT), da 8ª região. Também
no ano de 2012, os quilombolas garantiram a reserva de duas vagas em todos os
cursos da UFPA.7 Com relação à pós-graduação, desde 2004 o Programa de Pós-
-Graduação em Direito (PPGD) da UFPA implantou a política que reserva duas
vagas para indígenas nos cursos de mestrado e doutorado, sendo que somente em
2007 as vagas do mestrado foram ocupadas. O Programa de Pós-Graduação em
Antropologia (PPGA) oferece desde 2010 duas vagas para indígenas nos cursos
de mestrado e doutorado. A forma como os PSEs para povos indígenas e comuni-
dades quilombolas nos cursos de graduação da UFPA acontecem serão discutidos
e contextualizados na sequência do trabalho.8

Povos indígenas & Universidade Federal do Pará


A reserva de vagas na UFPA possibilitou o ingresso diferenciado no ensino su-
perior para os povos indígenas, sendo possível em decorrência da solicitação da As-
sociação dos Povos Indígenas do Tocantins (APITO),9 por intermédio do Programa
de Políticas Afirmativas para Povos Indígenas e Populações Tradicionais (PAPIT)
da UFPA, os quais apresentaram a demanda pela criação de vagas para povos indí-
genas na instituição.10 O primeiro PSE para Povos Indígenas foi realizado em 2010
e constitui seleção diferenciada regulamentada por edital específico executado pelo
Centro de Processos Seletivos (CEPS), juntamente com a Comissão Avaliadora que
é designada pela Pró-Reitoria de Ensino e Graduação (PROEG).
7
Como podemos observar a ações afirmativas que contemplam indígenas e quilombolas não podem ser
concebidas como mera concessão ou dádiva do Estado, foram resultado de reivindicação de lideranças e
organizações ligadas aos grupos interessados. É importante destacar, antes de mais nada, que a aprovação
das vagas reservadas para povos indígenas e quilombolas na UFPA aconteceram em momentos diferentes
para os dois grupos em decorrência das demandas, no caso dos povos indígenas, a aprovação das vagas
reservadas aconteceu em 2009, a partir da Resolução nº. 3.869/2009 do Conselho Superior de Ensino
Pesquisa e Extensão (CONSEPE). Enquanto, as vagas para quilombolas foram aprovadas em 2012, re-
sultado da Resolução nº. 4.309/2012, também aprovada pelo CONSEPE.
8
Para compreender melhor as Ações Afirmativas na UFPA, consultar: Beltrão & Cunha (2011).
9
Criada em 2000, com o objetivo de representar e articular políticas junto às comunidades indígenas, é
composta pelos povos Amanaé, Anambé, Aikewára, Atikun, Guarani, Kyikatêjê, Parkatêjê, Guajajara e
Xikrín, com sede em Marabá, na região sudeste do Pará.
10
O processo nº. 006344/2008 trata do encaminhamento da demanda da APITO para inclusão de indíge-
nas na UFPA. Disponível em <<http://www.abant.org.br/conteudo/001DOCUMENTOS/ beltrao_pare-
cer_CEG_UFPA.pdf>>. Acesso em: 23.03.2014.

255
Nos anos de 2010, 2011 e 2012, o PSE indígena contava com edital próprio
que diferia do edital universal, realizado a partir da seguinte estrutura: (1) realiza-
ção de uma prova de língua portuguesa sob forma de redação; e, (2) realização de
entrevista com os candidatos com análise de Histórico Escolar do Ensino Médio e
declaração de pertencimento étnico. As inscrições eram realizadas via internet no
site da instituição e o período para isso geralmente era maior que um mês, as ins-
crições somente eram homologadas via entrega de documentação ao CEPS, sendo
estás: Histórico Escolar do Ensino Médio, Boleto de Pagamento (isento de taxa)
e Declaração de pertencimento étnico, esta última podendo ser emitida por auto-
ridade indígena (lideranças tradicionais e políticas11), caciques, representantes de
organizações indígenas.12
Dos documentos entregues, o mais importante consiste na Declaração de per-
tencimento étnico, pois, segundo destaca Cunha (2013), tal documento é avaliado
cuidadosamente para identificar e evitar possíveis fraudes, com a imprescindível
participação de indígenas, a qual possibilita a identificação e validação dos candi-
datos e lideranças. A coordenação da comissão escolhida pela PROEG nos quatro
anos consecutivos não abriu mão da participação de indígenas na equipe de ava-
liação, ou seja, são indígenas avaliando indígenas, juntamente com antropólogos,
historiadores, pedagogos, juristas, entre outros. A ocupação do espaço para o mo-
vimento indígena é estratégica, haja vista representar a possibilidade de contribuir
ativamente nos procedimentos da seleção diferenciada, tornando-o mais adequado
às especificidades culturais indígenas, sobretudo quanto à inclusão da tradição oral
como mecanismo de avaliação via adoção de entrevistas e redações, além de ajudar
na proteção aos riscos de fraude.
11
A distinção entre lideranças políticas e lideranças tradicionais é explicada por Luciano, para quem: “[a]s
lideranças indígenas, denominadas de lideranças políticas ou ‘novas lideranças’, são aquelas que recebem ta-
refas específicas para atuar nas relações com a sociedade não-indígena, geralmente pessoas que não seguiram
os processos socioculturais próprios ou tradicionais para chegarem ao posto. São os dirigentes de associações
e de comunidades, os dirigentes políticos e os técnicos indígenas. Embora complementares, são diferentes
das ‘lideranças tradicionais’, como os caciques ou chefes de povos, clãs, fratrias ou sibs, tanto no processo
de escolha ou legitimidade, quanto nas funções que exercem. As ‘lideranças tradicionais’ têm o papel de
representar, coordenar, articular e defender os interesses dos sibs, dos clãs, das fratrias e do povo como uma
responsabilidade herdada dos pais a partir das dinâmicas sociais vigentes” (2006: 65).
12
Em 2010 CEPS registrou o total de 516 inscrições via internet, das quais, apenas 194 apresentaram docu-
mentação concernente ao edital (histórico escolar e documento de pertencimento étnico), dentre as razões
para o grande número de inscrições não homologadas estão: a realização de inscrições duplicadas, ou ainda,
triplicadas, talvez pela não familiaridade com o instrumento; inscrições com o objetivo de prejudicar ou
“testar” a validade do processo, com nomes fictícios e outros; outra possibilidade é o fato das escolas não
indígenas onde os mesmos estudam não disponibilizarem a documentação em tempo hábil à participação no
processo.

256
Quanto ao edital do PSE de 2014, houve proposição unilateral da PROEG
que alterava substancialmente o modelo adotado nos anos anteriores, o qual foi
aprovado pela Comissão de Processos Seletivos (COPERPS), porém sem qual-
quer participação indígena nas discussões para alteração do edital. As mudanças
produzidas resultaram no pior índice de ingresso de indígenas que a UFPA obteve,
depois da criação de política afirmativa para povos indígenas. Dentre os proble-
mas destacam-se os mais significativos: (1) unificação do edital, que deixou de
ser específico para povos indígenas, e passou a contemplar também quilombolas,
Curso de Etnodesenvolvimento e curso de Licenciatura em Educação no campo;
(2) foi incluído nas etapas do processo a realização de uma prova objetiva; (3) o
tempo para realização das inscrições via internet foi reduzido (apenas 17 dias)
deixando de considerar a realidade das aldeias indígenas e dos quilombos, assim
como as distâncias existentes; (4) a prova objetiva e a redação foram concentradas
numa mesma etapa da seleção, mas com aumento de apenas uma hora na duração
da etapa, passando de três horas de duração para quatro horas.
A política de reserva de vagas para indígenas na UFPA contou com o in-
gresso de 53 indígenas em 2010, em 2011 foram 49, em 2012 foram 24, em
2013 foram 19 e, em 2014, apenas oito indígenas foram classificados em todos
os campi da instituição, totalizando 153 indígenas aprovados para os cursos
oferecidos na UFPA em cinco anos de política afirmativa. A partir dos números
apresentados, é possível observar que a quantidade de indígenas que ingressa-
ram na instituição via seleção diferenciada tem reduzido gradativamente, com
queda expressiva em 2014. A seguir os dados referentes à Belém, campus em
que o acompanhamento é realizado, são apresentados.

Tabela 1. Acompanhamento indígenas Belém


CAMPUS DE BELÉM-GRADUAÇÃO
ANO INGRESSO DESISTÊNCIA CURSANDO CONCLUINTES CURSANDO
2010 23 13 9 1 39%
2011 16 08 08 0 50%
2012 10 03 07 0 70%
2013 9 0 9 0 100%
2014 6 0 6 0 100%
TOTAL 64 24 39 1

257
Os dados do campus de Belém são uma pequena amostra de como está à
situação dos indígenas estudantes na UFPA. Observa-se que os índices de de-
sistência são elevados nos anos de 2010, 2011 e 2012, acendendo a discussão
sobre a criação de uma política de permanência na Instituição por parte dos
próprios indígenas, assim como, sobre o apoio que as lideranças indígenas e
comunidades estão dando aos estudantes.
Dentre as principais dificuldades relatadas pelos indígenas que desistiram
estão: (1) a distância das aldeias, aliada à falta de estrutura básica de moradia
no local de estudos; (2) o valor da bolsa permanência ou o não recebimento da
mesma logo após o ingresso, o que não atende às necessidades básicas, uma
vez que a maioria depende exclusivamente do recurso para custear todas as
despesas, tais como: alimentação, moradia, transporte, aquisição de materiais,
entre outros; (3) dificuldades pedagógicas associadas, sobretudo, às condições
da educação escolar realizada nas aldeias, ou fora delas, uma vez que a maioria
das escolas nas aldeias oferece apenas a primeira etapa do ensino fundamen-
tal, obrigando-os a se deslocarem por grandes distâncias para cursar as demais
etapas, o que gera um processo de desistências e retomadas dos estudos que
acabam prolongando o tempo de permanência na educação básica por um pe-
ríodo maior do que habitual. Uma das consequências é o ingresso de indígenas
no ensino superior com idade mais avançada que os não indígenas e que já
possuem famílias constituídas, com a impossibilidade de mantê-las no local
de estudos, acabam desistindo dos cursos e retornando para suas comunidades.
Um arguto depoimento é revelador das dificuldades a respeito do ingresso, feito
por Rodrigo Ederehe Karajá:
“primeiro eu me decidi nesse né [Educação Física], mas ficou distante assim pra mim,
aí eu escolhi o curso que era Educação Física, mas também não tinha em Marabá, aí
ficou difícil também pra mim, ai eu tive que escolher mesmo, tive que decidi mesmo a
minha vida, tinha que deixar minha família, ai acabei decidindo, que a gente tem que
passar por dificuldade mesmo pra gente conseguir as coisa né, foi desse modo que eu
pensei e decidi, fazer Administração em Belém, mas se fosse Educação Física eu não
tinha vindo não pra Belém, tinha feito algum outro curso em Marabá, teve um que me
interessou, mas agora eu esqueci o nome, acho que é Agronomia, se caso não desse
certo aqui em Belém, ia escolher o curso em Marabá mesmo, mas acabei escolhendo
vim pra Belém mesmo, fazer o que eu gosto, porque muitas pessoas, tenho amigos
assim, até parentes mesmo que fizeram um curso que não gostavam e se arrependeram
de fazer por que não se identificava com ele” (2013).

258
Sobre as dificuldades pela distância da aldeia e da família, diz nosso interlocutor:

“quando eu soube do resultado, eu fiquei feliz, minha esposa também ficou


feliz, o pessoal também, meus amigos tudo ficaram feliz, minha família. Mais
difícil foi a decisão que eu tomei de deixar minha família e vir pra Belém, essa
foi a decisão mais difícil pra mim, fazer eles entender. Primeiro lugar minha
esposa ficou meio assim ... né, mas depois ela entendeu, ela me apoiou também,
minha família também apoiou, o pessoal também, a liderança da comunidade
festejou também né, por nós ... fiquei agradecido por isso também e mais feliz
também por saber que eles nos apoiavam na comunidade, sem o apoio da co-
munidade ficava difícil, porque vim pra cidade assim, é tudo novo pra gente, a
gente não sabe se a gente vai conseguir ficar mesmo né, a gente vem, mas fica
tipo assim, com o pé atrás né, a gente vem pra fazer o curso mas não sabe se vai
ficar. Aqui eu tive problemas com adaptação né, assim, ficar longe da família eu
saí de lá da aldeia, um ambiente diferente daqui né? Aí essa foi a dificuldade né,
porque eu não tava conseguindo me acostumar aqui, até hoje eu não consegui
me acostumar ainda na cidade, eu fico aqui só por causa do estudo mesmo, se
não fosse não ‘tava mais aqui não, eu aprendi a viver na cidade, mas não me
acostumei totalmente, sempre eu tenho essa saudade grande da minha aldeia,
vontade mesmo assim de voltar, quando eu vou não quero mais voltar, mas é o
jeito voltar” (2013).

Sentindo muita saudade e estando sem bolsa, prossegue:

“... não tinha lugar pra ficar, eu acabei ficando na casa de saúde aquela ali do pessoal, do
povo gavião, nós não tinha bolsa né quando nós viemos, nós não sabia como é que era a
bolsa aí nós ficamos nessa casa de saúde, onde ficam os doentes que vinham se tratar em
Belém e nós ficava lá junto com eles, ficava lotado mas nós ficávamos? assim mesmo,
dava um jeitinho lá, era muita gente, porque a casa não era muito grande também, tinha
seis quarto também, quando lotava a gente dormia na sala, tinha uma área também, tinha
vez que tinha que dormi na área, porque a prioridade era pros pacientes, os quartos era de-
les, aí quando tinha um quarto vago era ali que a gente ficava aí quando chegava pacientes
lotava tinha que dormir improvisado. Na reserva tem muita castanha e cupu né? Aí nesse
tempo eu tinha cortado muita castanha e muito cupu aí eu vendi e juntei esse dinheiro aí
deu pra passar quase um ano gastando esse dinheiro pra estudar né? Já que não tive bolsa,
até que eles abriram a bolsa permanência, me parece que demorou um ano pra receber
essa bolsa, porque, hoje, nós temos a bolsa permanência e a bolsa moradia, hoje nos sabe-
mos, mas antes nós não sabíamos, com o tempo a gente passando aqui a gente descobriu e
fizemos a inscrição, aí a gente conseguiu essa bolsa aí melhorou mais” (2013).

Na Universidade, as dificuldades se multiplicavam aos olhos do ingresso.


Diz ele em complementação ao que narrou:
“quando cheguei aqui não tive apoio da Universidade, aí nos tivemos uma conversa boa
com o diretor da faculdade, ele nos apoiou bastante, falou que estava de braços abertos
pra nos ajudar, aí ele acabou nos ajudando mesmo de maneira assim pra gente ficar mais
confiante aqui na Universidade, conversando com professores falando sobre nós indíge-
259
nas, teve uns professores que entenderam só que eles num tratavam a gente assim com
diferença, mas quando nós pedíamos eles nos ajudavam um pouco, esclarecendo alguma
coisa assim. As dificuldades foram grandes, mas assim, com a ajuda dos colegas assim,
dos brancos, eles me ajudaram um bocado também né? Assim pra fazê trabalho, aí logo
eu tive que fazê um curso também de internet, essas coisas também pra eu poder me
atualizar, também, porque senão eu não ia pode acompanhar. Eu fiz o curso em Ananin-
deua, lá perto da casa onde eu ficava ... na Universidade não ofereceram nada, um ano e
meio mais ou menos nunca ofereceram nada de curso pra mim, agora eu vejo que tem, só
que eu não sabia que tinha, ninguém me informava aí agora, hoje eu sei que tem. ... Das
outras coisas que eu precisava aprender como escrever, fazer resumo e outras coisas, a
Universidade não ofereceu nada pra mim não, quando eu cheguei aqui, só o diretor que
recebeu nós aqui de braços abertos, mas não mostrou se tinha alguma pessoa pra nos
ajudar assim nesses casos, agora eu tô sabendo que sempre tem que ter um professor que
ajuda assim quando tem dificuldade, me parece que é o monitor, aí eu não sabia ... tive
que me virar sozinho mesmo, perguntando pros colega o que tinha que fazer. ... Foi assim
o desamparo que eu vejo da universidade para o indígena né? Então tem ajuda pra dar
mas eles não mostram o caminho essa é a dificuldade ...”

Nos relatos dos indígenas que permanecem na instituição, podemos observar


que o discurso sobre as dificuldades em alcançar o ensino superior é presente
em quase todas as narrativas. Destacam também que as dificuldades continuam
existindo após o ingresso, mas o que é mais recorrente é que o acesso a univer-
sidade faz parte do projeto de vida individual e também de comunidade, e é a
oportunidade que contemplam para conquistar novos espaços e lutar pelo futuro
de suas comunidades e dos povos indígenas.

Ainda assim, os indígenas estudantes que ingressaram na UFPA se colocam


como agentes da mudança, pois estão em um novo ambiente e fazem parte do
processo de melhoria que a Universidade está passando, são suas iniciativas e
cobranças que irão garantir o sucesso das políticas afirmativas e de suas traje-
tórias acadêmicas, daí a importância de conceberem a categoria de “estudante”
como um agente político envolto em relações de poder no cotidiano universi-
tário e o “ser indígena na universidade” enquanto possibilidade de promover
movimentações político-organizacionais que fortaleçam as reivindicações por
políticas educacionais adequadas e a valorização da etnicidade nos espaços po-
lítico-acadêmicos universitários.
A APYEUFPA e o protagonismo indígena na UFPA
O processo de auto-organização dos indígenas estudantes na UFPA tem por
centralidade a criação da Associação dos Povos Indígenas Estudantes na Uni-
260
versidade Federal do Pará (APYEUFPA), criada no dia 1º de dezembro de 2011
e representando os interesses acadêmicos13 dos indígenas que estudam no cam-
pus da UFPA de Belém, atualmente representantes de 17 etnias. São elas: Anam-
bé, Apalaí, Baniwa, Baré, Guarani, Hexkariana, Jeripancó, Kaingang, Karajá,
Karipuna, Tapajós, Tembé, Tukano, Parkatêjê, Xerente, Xipaia e Wai Wai. Os
indígenas membros da APYEUFPA estão distribuídos nos seguintes cursos: Ad-
ministração, Biomedicina, Ciências Contábeis, Direito, Educação Física, Enfer-
magem, Engenharia da Computação, Engenharia Civil, Farmácia, Fisioterapia,
Medicina, Nutrição e Odontologia.
Dentre as principais atividades realizadas pela associação destacam-se a
recepção dos indígenas e a apresentação da instituição aos calouros, indican-
do os melhores caminhos a serem trilhados por eles no percurso acadêmico, o
fomento à união e interação entre os indígenas calouros e veteranos, além da
organização de momentos para realização de discussões envolvendo represen-
tantes de órgãos que tratam diretamente da temática indígena na instituição e
fora dela, como Ministério Público Federal (MPF), Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entre outros. A associação
atua como interlocutora das demandas dos indígenas estudantes na UFPA, es-
tabelecendo diálogos com as lideranças e comunidades indígenas no sentido de
viabilizar as reivindicações feitas na e pela base social, trata-se de experiência
integrada e importante na mobilização por direitos.
Os principais projetos desenvolvidos pela APYEUFPA foram a I e II Semana
do Calouro Indígena que aconteceram, respectivamente, nos anos de 2012 e
2013, em parceria com a Pró-Reitoria de Extensão (PROEX). Os eventos con-
taram com programações culturais, mesas de debates sobre temas relacionados
às ações afirmativas para povos indígenas, permanência, sucesso e retorno quali-
ficado às comunidades. Nos eventos houve a participação dos indígenas calouros,
lideranças indígenas convidadas, de docentes da instituição, procuradores da re-
13
A APYEUFPA tem como objetivos previstos em estatuto: (1) promover de maneira coordenada a or-
ganização social, cultural, econômico e política dos indígenas estudantes e organizações parceiras; (2)
fortalecer a autonomia dos indígenas estudantes e organizações parceiras; (3) estimular e promover ini-
ciativas que assegurem o respeito e a valorização da organização social, costumes, língua, tradições e
todas as demais formas de manifestação cultural dos indígenas estudantes e organizações parceiras; (4)
formular estratégias, parcerias de cooperação técnica e financeira com organizações nacionais e interna-
cionais objetivando a garantia e promoção dos direitos dos indígenas estudantes.

261
pública e acadêmicos de diversas instituições particulares e públicas. Durante o
evento, os indígenas estudantes relataram suas experiências acadêmicas indican-
do propostas de melhoria das políticas universitárias. Também foram convidados
técnicos da FUNAI, do CIMI e da UFPA para que pudessem expor o que vem
sendo realizado (ou não) nas esferas institucionais para garantir a permanência
dos indígenas na universidade.
A presença indígena na universidade (e também fora dela) vem sendo marcada
com a participação de membros da APYEUFPA em debates, seminários, mobi-
lizações, palestras, oficinas, entre outros relacionados aos povos indígenas. Um
dos projetos relacionados à presença indígena na instituição tratou-se de um ciclo
de oficinas sobre Práticas Corporais Indígenas e teve como principal objetivo
promover o reconhecimento e valorização da cultura indígena entre os alunos,
servidores e professores na UFPA, realizado a partir da iniciativa do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Cultura do Corpo, Educação, Arte e Lazer (LACOR), em
parceria com a associação, no ano de 2012. O projeto foi dividido em três etapas,
a primeira aconteceu em maio de 2012 e teve como foco oficinas relacionadas
à pintura corporal que expressaram a diversidade de povos indígenas existentes
no Brasil. A segunda e a terceira etapas aconteceram em novembro e dezembro
do mesmo ano e tiveram como foco a exposição de “jogos indígenas” das etnias
Tembé, Karajá, Gaviao-Parkatêjê e Kaingang, todas as oficinas foram ministra-
das pelos indígenas estudantes pertencentes.
A visibilidade do “ser indígena” nas atividades desenvolvidas na universida-
de contribui para ampliar as relações cotidianas de convivência entre indígenas
e não-indígenas no espaço acadêmico, fazendo-os afrontar os estereótipos dis-
criminatórios que persistem na instituição, ao mesmo tempo em que revela as
riquezas da diversidade cultural dos povos indígenas. Trata-se de proporcionar
oportunidades de intercâmbio de informações e experiências para que a cidadania
diferenciada dos indígenas estudantes possa ser melhor compreendida na UFPA
e consolide a pauta dos povos indígenas – e das políticas afirmativas que os abar-
cam – na agenda de debate acadêmico.
O percurso acadêmico na UFPA, além de proporcionar aos indígenas o apren-
dizado relacionado a conhecimentos não indígenas, também é a oportunidade de
conhecer a realidade de outros povos a partir das experiências dos próprios indí-
262
genas estudantes, neste contexto de interação diversas parcerias são estabeleci-
das gerando cooperação mútua entre integrantes da associação. As parcerias e os
diálogos estabelecidos por intermédio dos parentes são facilitadores e pode ser
considerada peça chave para o planejamento e execução do projeto considerado o
mais significativo nesses dois anos de funcionamento da APYEUFPA, trata-se do
projeto intitulado Caravana do Vestibular Indígena, a seguir analisado.

Caravana do Vestibular Indígena


A opção por fazer um curso de ensino superior, para maioria dos indígenas,
não é uma tarefa simples. A escolha não envolve apenas o candidato, envolve
também a família, as lideranças indígenas e muitas vezes toda a comunidade.
Não são poucos os casos em que a escolha do curso é motivada pela necessidade
de resolver algum problema existente na comunidade e, para isso, as lideranças
se reúnem e auxiliam o candidato na escolha.
Raimundo Tembé,14 professor e liderança da aldeia Frasqueira do povo Tembé,
no atual município de Santa Luzia do Pará, relata que é “importante também ter
médico, enfermeira, advogado formado para que possa voltar para nossa comu-
nidade e trabalhar em defesa de seu povo”. No relato do indígena, percebe-se a
importância dada para determinados cursos e a necessidade de retorno dessas pes-
soas para a comunidade tendo em vista a carência de profissionais nessas áreas.
Além da complexidade que pode existir na escolha da área de atuação do
futuro profissional indígena, outros fatores podem contribuir para dificultar ain-
da mais o ingresso do candidato. Os problemas vão desde a inexistência, nas
aldeias, de locais com internet disponível para o acesso das informações e para
realização das inscrições via internet, distância das sedes municipais, falta de
esclarecimento sobre a estruturação do PSE, desconhecimento sobre a realidade
vivida pelos estudantes na universidade, o que gera a insegurança para o can-
didato e para comunidade. Rodrigo Ederehe Karajá15, estudante de Adminis-
tração na UFPA, pertencente a etnia Karajá do estado do Tocantins, ao refletir
sobre os passos percorridos para chegar a universidade em 2010, e a forma
como soube do PSE para povos indígenas, lembra que

14
Acervo APYEUFPA, audiovisual Caravana do Vestibular Indígena, Aldeia Frasqueira, filmagem no
dia 12/10/2012.
15
Entrevista com Rodrigo Ederehe Karajá, realizada por Edimar Fernandes no dia 14.08.2013.

263
“[a] minha trajetória, assim da faculdade, eu fiquei sabendo assim pelos... pela lide-
rança né? da comunidade dos Gavião Kyikatêjê, lá onde eu morava. Foi numa reunião
que eles passavam para as pessoas e passaram para os professores também, aí eles
passaram para os professores e os professores tornaram a repassar pra nós na sala e nós
já tava terminando mais ou menos nosso ensino médio em 2009. [...] Os professores foi
os que nos ajudaram também naquela época, a nossa inscrição foi os professores que
fizeram, nossos próprios professores dava aula no ensino médio, aí nós conseguimos
passar.”

Para Izaque Txekewe Erayhe, estudante de Medicina, pertencente a etnia


Hexkaryana, no atual estado do Amazonas, as dificuldades foram ainda maiores:
sua aldeia fica a três dias de barco do município mais próximo e a única forma de
comunicação é via rádio. O indígena soube do processo seletivo por intermédio
de um amigo não indígena, o qual também o auxiliou na inscrição via internet. A
distância da aldeia, o fato de não ter domínio completo da língua portuguesa, assim
como de recursos tecnológicos dificultaram significativamente o ingresso do can-
didato.
Por isso, além da diminuição do número de indígenas que ingressaram na
UFPA no decorrer dos cinco PSE, conforme apresentado anteriormente, as nar-
rativas sobre as dificuldades enfrentadas pelos candidatos instigaram a APYEU-
FPA a elaborar, em 2012, o projeto intitulado Caravana do Vestibular Indígena.
Executado em aldeias na região nordeste e sudeste do estado do Pará, o pro-
jeto foi pensado a partir de conversas entre os próprios indígenas acadêmicos
que frequentavam alguns cursos de graduação e pós-graduação na UFPA. Os
indígenas tomaram suas próprias experiências como ponto de partida para esta-
belecer estratégias e minimizar os problemas enfrentados por aqueles que pre-
tendem ingressar no ensino superior. Além de compartilhar experiências, a pro-
posta consistia em dirimir dúvidas acerca dos cursos oferecidos na instituição e
possibilitar um entendimento acerca de todo o processo.
Assim, Almir Vital da Silva, do povo Tembé, estudante do curso de Enfermagem,
membro da equipe de indígenas universitários, ao falar na abertura da reunião em sua
própria aldeia, ressaltou a importância da educação para o futuro da comunidade:
“[a] educação hoje, ela está em primeiro lugar, sem educação não há conhecimento e
sem conhecimento não temos como lutar pelo que é nosso de direito, então a educação
ela é a base de tudo, antes eu achava que não era a educação, era a saúde, mas como é
que podemos lutar pela saúde, pelo nosso território se nós não temos conhecimento de
nosso direito? Então ela é a base de tudo e nós temos que buscar cada vez mais, e nós

264
viemos hoje aqui com esse objetivo né, de incentivar a comunidade, apesar das dificul-
dades, mas que nós possamos tá buscando esse conhecimento, pra somar essas forças.”

O principal objetivo do projeto foi divulgar o PSE para povos indígenas e orien-
tar os parentes nas aldeias, minimizando o desconhecimento e o distanciamento
entre o indígena e a universidade, procurando situar os candidatos e a comunidade
dos possíveis desafios enfrentados no ensino superior. O projeto consistiu em um
trabalho social idealizado e executado por indígenas, no qual, além de aproximar
a universidade dos candidatos, também proporcionou muitas informações para
a comunidade, pois contou com reuniões e conversas junto às lideranças tradi-
cionais e políticas, pais, professores, entre outros, que participaram ativamente
sanando as dúvidas e superando ideias pré-formuladas sobre a instituição.
Para o alcance do objetivo geral, foram estipulados alguns objetivos específi-
cos, são eles: (1) instruir os interessados sobre como localizar o edital e as infor-
mações necessárias para realização das inscrições no site da UFPA; (2) orientar
sobre as regras estabelecidas no edital diferenciado para povos indígenas; (3) ex-
por os desafios que são enfrentados tanto na universidade quanto fora dela, caso o
indígena seja aprovado.
Ao optar pelo ingresso no ensino superior, o indígena se depara com várias
opções de cursos que são oferecidos, chegando a ficar muitas vezes confuso diante
das opções de escolha. Antes de realizar a inscrição no PSE é necessário que o
candidato tenha as informações básicas relacionadas ao curso pretendido, verificar
quais são as habilidades e competências necessárias para atuar na futura profissão.
Purupramré Lima Gavião16, do povo Parkatêjê, aluna de Enfermagem, quando
fala sobre o assunto na abertura da reunião na aldeia Areal , destaca que “é com-
plicado né, a gente não conhece a faculdade, não conhece o curso, então tudo pra
gente é novo, tu pensa que vai fazer uma coisa e de repente é outra coisa”. Portan-
to, a proposta do projeto foi auxiliar os indígenas em suas escolhas, preparando-os
previamente para a estada na universidade para diminuir o desconhecimento rela-
cionado aos cursos oferecidos e, consequentemente, os índices de evasão.
O projeto foi dividido em cinco etapas, todas elas foram realizadas com a
participação ativa dos membros da APYEUFPA, algumas delas tiveram a parti-
cipação de alguns parceiros não indígenas, sendo executado na seguinte ordem:
• Etapa 1: realizou-se um levantamento na Universidade sobre os cursos
16
Acervo APYEUFPA, audiovisual Caravana do Vestibular Indígena, Aldeia Areal, 11.10.2012.

265
disponibilizados, as áreas nas quais os cursos estão inseridos, os respectivos
percursos curriculares e os campos de atuação; o levantamento foi realizado
em institutos, momento este em que foram solicitadas informações sobre as
principais características de cada curso oferecido. A partir do levantamento
foram elaborados manuais, cartilhas e materiais necessários para facilitar
o entendimento sobre os cursos e a Universidade, além da realização de
coletas de livros, cartilhas, panfletos, DVDs, e outros, em diversos setores
da universidade, que foram distribuídos nas aldeias.
• Etapa 2: treinamento e orientação dos membros envolvidos no projeto,
e apenas da APYEUFPA, por meio de discussões em grupos de trabalho
sobre o material levantado, momento em que foram organizadas e estrutu-
radas as reuniões e atividades desenvolvidas nas aldeias.
• Etapa 3: contato com as associações indígenas e as lideranças das aldeias
envolvidas para marcar as reuniões nos territórios étnicos.
• Etapa 4: etapa de trabalho de campo na qual a equipe – contendo 10 in-
dígenas – foi até as aldeias para divulgar o vestibular indígena, sobretudo
por meio de diversas reuniões, geralmente num local de fácil acesso para
as outras aldeias. As aldeias alvo do projeto são apresentadas no Quadro 1.
• Etapa 5: analise das atividades realizadas em campo, observando se os
objetivos foram alcançados adequadamente, e a formulação de novas pro-
postas para a universidade a partir das sugestões das lideranças.
A APYEUFPA contou com o apoio da Universidade por meio da PROEX, do
PAPIT e da PROEG que contribuíram significativamente, dando apoio financeiro
e orientações para o desenvolvimento das atividades. Nas aldeias, as associações
indígenas, as lideranças e os membros das comunidades se encarregaram de abri-
gar a equipe e oferecer as condições necessárias para o bom andamento das ati-
vidades. A parceria com as organizações indígenas se mantém até os dias de hoje
e as propostas e opiniões ouvidas durante a caravana serviram para que várias
melhorias pudessem acontecer.
O projeto Caravana do Vestibular Indígena aconteceu em dois momentos, o
primeiro na região nordeste do estado do Pará, e o segundo na região sudeste,
sempre desenvolvido aos finais de semana, ante o imperativo das atividades
acadêmicas do grupo e a disponibilidade das lideranças.
266
O primeiro momento abarcou as aldeias do povo Tembé que estão localizadas
em três municípios: Santa Maria do Pará, Santa Luzia do Pará e Tomé-Açu. Em
Santa Maria do Pará, o projeto envolveu duas aldeias (Jeju e Areal), a reunião
aconteceu na aldeia Areal, tendo como participantes as duas comunidades. Em
Santa Luzia do Pará, na Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG), três reuniões
foram realizadas, respectivamente, nas aldeias Frasqueira, São Pedro e Sede,
envolvendo também lideranças indígenas de outras aldeias. Em Tomé-Açu, ape-
nas uma reunião foi realizada, na aldeia Turé-Mariquita, mobilizando também
participantes das demais aldeias da terra indígena.
O segundo momento aconteceu na Reserva Indígena Mãe Maria (RIMM),
no município de Bom Jesus do Tocantins, onde residem os povos Kyikatêjê,
Parkatêjê e Akratikatêjê que se dividem em cinco aldeias. Duas reuniões foram
realizadas, uma na aldeia Parkatêjê, em local conhecido por eles como “Projeto
Negão”, e a segunda na aldeia Kyikatêjê. O quadro 1 mostra as aldeias envolvi-
das no projeto.
A equipe do projeto contou com a participação de alunos da graduação, da
pós-graduação, de colaboradores da APYEUFPA, de voluntários e representan-
tes da UFPA divididos de acordo com as atividades realizadas em cada etapa. A
equipe foi composta por 10 indígenas inicialmente, pertencentes às etnias: Baré,
Jeripancó, Kaingang, Karajá, Karipuna, Parkatêjê, Tembé e Xipaya, seleciona-
dos de acordo com o interesse individual e a disponibilidade de participação nas
datas previstas – quando algum dos participantes selecionado para a viagem não
estava disponível, era substituído por outro membro da APYEUFPA.

267
Considerando o interesse da comunidade Turé-Mariquita em apoiar o projeto
na primeira etapa, os universitários convidaram uma das lideranças indígenas da
aldeia, de nome Parate Tembé, para compor a equipe durante a segunda etapa que
aconteceria na RIMM. A proposta foi aceita pela comunidade e, algumas semanas
depois, Parate compôs o grupo contribuindo durante toda a segunda viagem.
Por outro lado, inicialmente estava previsto a participação de representantes
das pró-reitorias que apoiaram o projeto (PROEX e PROEG), pois considera-
-se importante a participação não indígena e, principalmente, de pessoas que
trabalham com políticas educacionais que interessam aos indígenas na UFPA,
na esperança de que a experiência nas aldeias contribuiria para a construção
de um olhar diferenciado das demandas dos povos indígenas. Porém, nas datas
previstas os convidados não estavam disponíveis. Portanto, foi priorizada a par-
ticipação do maior número de indígenas possível, considerando o protagonismo
na ação e a importância de indígenas estarem apresentando a universidade para
outros indígenas. Certamente, o diálogo é diferente quando envolve apenas in-
dígenas e essa diferença pode ser percebida na fala das lideranças:
“[e]ntão dá a entender pra nós, que é uma causa por amor a nossa raça, ao nosso povo,
nossa geração, porque não é fácil, quando eu vi ontem vocês chegarem aqui, andemo
tudo esse balão por aí, depois fizeram a comida e ainda dez horas ainda foram pro brejo
toma banho e agora cedo já de pé pra conversar e trazer essa informação, isso pra nós
é importante, dos 23 né? Eu sei que lá dentro tem 10 que tem amor pela sua causa, que
também se interessa por nós, que ta olhando pra nós” (Lúcio Tembé).17

268
Na fala de Lúcio Tembé, cacique da aldeia Turé-Mariquita, município de To-
mé-Açu, percebe-se que toda equipe estava sendo observada e avaliada pela co-
munidade, como em um teste. Isto porque, para as lideranças, não basta apenas
ter boas intenções, é necessário demonstrá-las por meio de atitudes concretas. E,
ao que se percebe, os indígenas universitários foram aprovados no teste.
A Caravana do Vestibular foi a possibilidade não apenas de falar sobre o
PSE, mas, principalmente, de ouvir as lideranças situadas na base social desses
povos, assim como as opiniões sobre o processo de seleção e a permanência no
ensino superior, as dificuldades enfrentadas por eles para inserir os membros da
comunidade na UFPA, as possibilidades de apoio e parcerias, as contribuições
esperadas por eles após a formação dos universitários. Sobre o assunto Parate
Tembé,18 ao intervir durante a reunião na aldeia Kyikatêjê, destaca que:
“... nós temos que se unir pra que nós consiga isso, esse objetivo maior pra nossas co-
munidades indígenas, pros nossos alunos, nós que somos alunos, que vamos entrar pra
lá, nós tem que pegar força, tem que trocar experiência um com o outro, ver o que é
que vai dar, quais as opiniões de cada aldeia de cada liderança, por que cada aldeia que
vão passando é uma opinião, então agora é a primeira caravana que foi passada né?”

Em cada aldeia a forma de abordagem e andamento das atividades aconteceu


de forma diferenciada. As atividades dependeram sempre da disponibilidade da
comunidade em receber e participar das reuniões, respeitando sempre as dinâ-
micas culturais diferenciadas. Logo na chegada as aldeias, antes da reunião prin-
cipal iniciar, a equipe se distribuía indo até as casas dos indígenas para informar
sobre a reunião e falar o motivo pelo qual estavam na aldeia, as visitas incluíram
as casas de lideranças, caciques, presidentes de associação, entre outros.
Para que não houvesse surpresas durante a caravana do vestibular, con-
tatos prévios foram realizados com as lideranças indígenas de cada uma
das aldeias, na qual os objetivos do projeto e da APYEUFPA foram expos-
tos. A recepção foi sempre calorosa e o fato dos membros da equipe do
projeto serem indígenas foi significativo para o estabelecimento de uma
relação de confiança, afinal, não representavam a Instituição, mas a Asso-
ciação indígena.

17
Acervo APYEUFPA, audiovisual Caravana do Vestibular Indígena, Aldeia Kyikatêjê, 15.10.2012.
18
Acervo APYEUFPA, audiovisual Caravana do Vestibular Indígena, Aldeia Kyikatêjê, 28.10.2012.

269
Em algumas aldeias foram realizadas palestras informativas mostrando a
realidade da Universidade e, em outras, foram feitas rodas de diálogo. Nas
reuniões se contou com a participação expressiva da comunidade, as dúvidas
que existiam ou que foram surgindo no decorrer das conversas foram dirimi-
das no diálogo. As lideranças deram muitas sugestões para a equipe, com o
objetivo de melhorar as condições do acesso e permanência na Universidade.
Os materiais elaborados e os impressos coletados na UFPA foram distribuídos
(editais, lista de cursos oferecidos, características gerais sobre cada curso,
entre outras informações), também foram exibidos alguns vídeos, fotos, do-
cumentários, ações e projetos realizados a partir da APYEUFPA, envolvendo
calouros e veteranos.
O projeto proporcionou aos indígenas estudantes da UFPA a possibilidade de
contribuir com os povos indígenas do estado do Pará, cumprindo com as expectati-
vas de lideranças e comunidades. Para o movimento indígena, a ação é o retorno do
“investimento” feito pelas lideranças ao indicar os candidatos ao ensino superior,
retorno que se faz, também, por meio de projetos, qualificação profissional, repasse
de informações, entre tantos outros aspectos esperados pelas comunidades.
As lideranças apoiaram a Caravana do Vestibular Indígena destacando a im-
portância em ter indígenas que, mesmo inseridos no ensino superior, continuam
assessorando as aldeias. Destacaram, ainda, que a iniciativa demonstra o inte-
resse dos estudantes e o comprometimento político, mostrando os bons cami-
nhos para as lideranças e comunidades. As palavras do cacique Lúcio Tembé
expressam bem o que está sendo dito: “[e]ntão isso que vocês, no meio dos
23, nós sabemos que tem um grupo lá, que tá preocupado com nós, com esses
jovens que estão aí precisando de um incentivo.”
Apesar do apoio das lideranças, o que se pode observar é a preocupação
relacionada à educação, à formação e à qualificação profissional de indígenas,
quando destacam que a educação tem que estar vinculada a tradição para que
os indígenas não esqueçam de onde são e para onde devem voltar quando for-
mados. Pepkrakte Jakukreikapiti Ronore Konxarti (Zeca Gavião),19 presidente
da Associação Indígena Kyikatêjê Amtati, quando fala sobre a importância do
respeito pelas lideranças tradicionais, destaca:
270
“[n]ão podemos esquecer que estamos representando a nossa comunidade, não ir contra
a comunidade, de forma alguma, porque quem somos nós para discutir com os caci-
ques? Com as lideranças? ... O objetivo maior é a autonomia, a gente só vai conseguir
a partir do momento que todos tiverem formados, sim, nós vamos ter essas pessoas dis-
poníveis pra falar por nós, para falar pelas lideranças, pelos caciques, por todo mundo,
tá na hora de começar a focar numa coisa maior, por isso que a gente entrou nessa luta.”

Lúcio Tembé, mesmo a quilômetros de distância do parente Zeca Gavião,


ressalta a importância de respeitar as lideranças e os conhecimentos tradicionais
e, com alguns trocadilhos, demonstra a preocupação: “[t]em o educado, tem o
estudado, tem gente que estuda pra ser educado, inteligente, ... agora, tem gente
que estuda pra ser mais burro, mais burro do que é, ignorante”. As palavras do
cacique demonstram a diferença que existe entre os que estudam e respeitam
os conhecimentos tradicionais, as lideranças e os mais velhos, estes seriam os
educados e inteligentes; em oposição àqueles que estudam e pensam que sabem
tudo, desconsiderando tudo que aprenderam na comunidade. Para ele, estes são
os burros e ignorantes.
As lideranças destacaram também que a existência de uma associação de
indígenas na Universidade, que represente e apoie os indígenas que estão na
graduação, pós-graduação e também aqueles que ainda pretendem entrar, é um
grande avanço e, por conta disso, sentem-se mais tranquilas sabendo que existe
outros parentes preocupados com o bem-estar e com a garantia de direitos dos
indígenas que saem de suas aldeias para estudar na UFPA:
“nós sabemos que tem um grupo lá que tá preocupado com nós, com esses jovens que
estão aí precisando de um incentivo, por que às vezes eu, eu ele aqui [se referindo ao
irmão], nós já temo nossos filhos, nós já temo nossos sobrinhos aí, mas tá faltando um
empurrão parente, então vocês tão trazendo isso” (Lúcio Tembé).

Muitas foram as cobranças feitas para a APYEUFPA, as lideranças pensam


que essa organização deveria atuar de forma mais ativa na preparação dos in-
dígenas para o ingresso na Universidade, isto se daria através de um curso com
aulas preparatórias a fim subsidiar o vestibular e diminuir as dificuldades após
o ingresso. Foi sugerida a criação de um banco de dados produzidos pelos pró-
prios indígenas para que os resultados sobre ingresso, permanência e desistência
sejam analisados, possibilitando identificar os motivos que levam à desistência,
a fim de elaborar estratégias para solução dos problemas encontrados.

19
Acervo APYEUFPA, audiovisual Caravana do Vestibular Indígena, Aldeia Kyikatêjê, 28.10.2012.

271
As lideranças também destacaram que os projetos feitos a partir da APYEU-
FPA devem ser pensados em parceria com as aldeias, pois seriam indígenas
trabalhando com indígenas, criando um sistema de parceria para proporcionar
melhores condições para o acesso, permanência, sucesso e retorno qualificado.
Caberia à APYEUFPA fazer o acompanhamento, auxiliando os indígenas na
elaboração de projetos aplicados diretamente nas comunidades, somando esfor-
ços e competências entre o conhecimento adquirido na educação universitária e
o conhecimento tradicional.
Para tanto, os conhecimentos aprendidos no curso devem ser utilizados para
solucionar os problemas enfrentados nas aldeias, o acompanhamento deve
acontecer de forma qualificada e nos intervalos do calendário acadêmico em
que o estudante retorna à sua comunidade e pode aproveitar o tempo para com-
preender e comparar o que aprendeu na universidade ao contextualizar com a
realidade existente em sua comunidade. Ou seja, a associação deve criar me-
todologias para monitorar e orientar esse indígena no sentido de fornecer sub-
sídios para realizar o trabalho acadêmico-profissional, e tais ações integradas
contribuiriam para uma formação qualificada do estudante, além de proporcio-
nar a aplicação de conhecimentos em sincronia com a cultura. Neste sentido,
Zeca Gavião ressalta:
“[e]u imaginaria, dentro desse projeto, poderia tá se criando uma equipe multidiscipli-
nar, que formaria uma câmara técnica de universitários, aonde poderia ser a referência
ou o suporte para outros que irão entrar ... Então dentro dessa metodologia, poderia tá
implantando um sistema nesse sentido, não adianta a gente criar uma organização in-
dígena, somente focado na bolsa de estudos, nós precisamos de informações mais ade-
quadas, agora quem é essa referência? Pra que comece a trabalhar com muito tempo.”

Observar-se que as lideranças cobraram da APYEUFPA uma atuação con-


junta, enfatizando que as ações não podem estar direcionadas, apenas, à perma-
nência no ensino superior, deve preocupar-se com a qualidade da formação do
indígena e manter-se relacionada aos problemas enfrentados pelas comunida-
des. Ao mesmo tempo, destacam que o papel da Associação seria o de indicar
os caminhos que devem ser percorridos pelo indígena universitário para que o
retorno qualificado à comunidade possa acontecer da melhor forma possível.
As lideranças sugeriram a criação de um momento (em forma de seminário)
para que todas as ações da universidade fossem discutidas e avaliadas, uma pro-

272
posta de discussão mais abrangente que envolva lideranças, indígenas univer-
sitários, representantes da Universidade e outros órgãos, para tratar de assuntos
relacionados à educação superior para povos indígenas, objetivando expor a
opinião das lideranças indígenas e elaborar propostas e soluções para os proble-
mas existentes.

Quilombolas de Salvaterra & PSE


A partir da experiência com os povos indígenas no que se refere à Caravana
do Vestibular Indígena, no período de 11 a 13 de fevereiro de 2014 foi colocado
em prática a proposta de divulgação sobre o PSE para quilombolas nas comuni-
dades de Bacabal, Bairro Alto e Pau Furado, localizadas no município de Salva-
terra, região do Arquipélago do Marajó, no estado do Pará.
A proposta vinha sendo pensada pelos integrantes do projeto Indígenas e
Quilombolas Mulheres em Situação de Violência: diversidade sociocultural,
direitos humanos e políticas públicas na Amazônia (Beltrão, 2012) em decor-
rência dos resultados obtidos na primeira viagem de campo aos quilombos, que
aconteceu no período de 01 a 04 de maio de 2013. Durante o tempo nos qui-
lombos, em 2013, reservou-se um breve momento para falar sobre o PSE e a
reserva de vagas para quilombolas, o que era para ser, apenas, um momento de
divulgação do processo seletivo diferenciado, revelou muitas dúvidas relacio-
nadas ao PSE.
Portanto, a falta de informações despertou o interesse do grupo de pesquisa
em aprofundar a questão junto às comunidades. No planejamento de campo para
a segunda viagem aos quilombos foram traçados os objetivos e os locais onde os
trabalhos de divulgação seriam desenvolvidos. A proximidade da equipe com os
membros dos quilombos acima mencionados e as dificuldades enfrentadas por
eles foram determinantes para definição dos locais onde as conversas poderiam
ser realizadas.
Para discutir o planejamento da viagem em Belém duas reuniões foram rea-
lizadas pelo grupo, nas quais foram discutidas as orientações essenciais ao an-
damento das atividades. Em decorrência da equipe formada para a viagem não
ser a mesma da Caravana do Vestibular Indígena, fez-se necessário a interação
dos novos membros com a realidade vivida pelas comunidades, e promover
273
a familiaridade com ações desenvolvidas por conta da primeira viagem. Para
isso, o relatório da viagem anterior foi disponibilizado para todos os membros
do grupo.
A equipe foi composta por cinco integrantes da graduação e da pós-gradu-
ação da UFPA, apenas uma pessoa indígena e uma negra integraram o grupo.
Durante os encontros de planejamento vários temas foram discutidos, incluindo
o período ideal para os trabalhos em campo. Diversos contatos com integrantes
das comunidades quilombolas foram realizados com antecedência para que a
melhor data para a equipe e para a comunidade fosse estabelecida, o principal
articulador e a pessoa que fez toda a mobilização da comunidade alertando para
nossa chegada, foi um dos professores da escola da comunidade de Pau Fura-
do, Alan de Jesus.
Em decorrência da ação junto as comunidades ter sido realizada no início do
ano, a equipe utilizou dados referentes ao edital do PSE de 2014, devido o edital
de 2015 ainda não ter sido lançado, no intuito de disponibilizar os principais
dados sobre o edital de forma acessível e didática. Assim, a equipe elaborou um
guia simplificado, baseado no Edital 2013-11 do PSE.
Os locais escolhidos para fazer as “rodas de conversa” foram propostos pe-
los membros da comunidade de Pau Furado Valéria Carneiro e Alan de Jesus,
os quais definiram a escola da comunidade do Bairro Alto e o Centro Comu-
nitário de Bacabal em decorrência do número de pessoas interessadas e pela
localização dos mesmos. Sendo assim, as “rodas de conversa” foram marcadas
para o dia 12 de fevereiro de 2014. No quilombo do Bairro Alto, contou-se
com pessoas oriundas da comunidade de Pau Furado. O dia que antecedeu as
“rodas de conversas” foi destinado a divulgação dos eventos, mesmo sob chuva
forte, alguns membros da equipe de pesquisa juntamente com integrantes da
comunidade se deslocaram pelos três quilombos mobilizando os interessados e
ajustando os detalhes para realização das conversas.
A reunião no Bairro Alto contou, com aproximadamente 30 participantes
pertencentes a duas comunidades, Bairro Alto e Pau Furado. Durante as con-
versas, muitas dúvidas relacionadas ao processo foram esclarecidas e os envol-
vidos demonstraram muito interesse. No quilombo Bacabal, a participação foi
menor devido a falta de energia no local, aproximadamente 13 pessoas, que
274
aguardaram no local mesmo após o atraso da equipe em decorrência do horário
de término da primeira reunião. A conversa foi realizada no Centro Comunitá-
rio com a iluminação dos faróis do carro da equipe, situação inusitada. Apesar
das dificuldades e contratempos, todos permaneceram até o final e também de-
monstraram interesse pelo PSE, obtendo informações que sanaram as dúvidas
existentes.
Um dos problemas identificados pela comunidade se refere a forma como a
UFPA procede na hora das inscrições dos candidatos. De acordo com os qui-
lombolas, a inscrição via internet é uma forma de exclusão das comunidades
quilombolas, pois nas comunidades não há internet e as inscrições acontecem,,
apenas dessa forma. Para eles, o critério demonstra o desinteresse da Universi-
dade em incluir a diversidade e o total desconhecimento das realidades especí-
ficas, que demandam tratamento diferenciados.
Durante as reuniões foram identificadas pessoas que fizeram o Exame Nacio-
nal do Ensino Médio (ENEM) e não foram aprovados, outras tentaram ingressar
na UFPA pelo PSE, mas pelas dificuldades impostas pelo processo não conse-
guiram garantir suas vagas. As dificuldades existentes nas provas do ENEM e
PSE foram muito questionadas, afinal, um processo que deveria ser inclusivo
tem sido pensado nos moldes do processo seletivo universal e cada vez mais têm
deixado os diferentes fora dos muros da Universidade.
Para os quilombolas as dificuldades são ainda maiores, pois tem que sair de
suas comunidades para estudar fora do lugar de pertença, o que gera a necessi-
dade de um local para morar durante o período de estudos, fato que produz sé-
rias dificuldades financeiras e emocionais para garantir a permanência. A Bolsa
Permanência específica para Quilombolas e Indígenas, coordenada pelo MEC,
assim como o Bolsa Auxílio Intervalar da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX),
carecem dos mesmos males institucionais: a demora em ser repassada aos es-
tudantes – para se ter uma ideia, a Bolsa Auxílio Intervalar do 3º período de
2014 só chegou às contas dos quilombolas estudantes do Curso de Etnodesen-
volvimento na última semana de agosto, ou seja, no final do período de estudo,
quando os discentes tinham contraído dívidas (e deixado de fazer outros investi-
mentos necessários) para tentar permanecer ao longo dos dois meses de aula do
período intervalar – e a disparidade entre os valores recebidos e os gastos neces-
275
sários para a manutenção na localidade de destino, isto porque ambos os órgãos
trabalham com um valor homogêneo20 de repasse por pessoa e desconsidera os
fatores locais e/ou regionais que podem afetar o custo de vida em determinados
territórios, especialmente aqueles afetados por implantação de grandes obras,
como é o caso de Altamira – local onde a UFPA, oferece o Curso de Licenciatu-
ra e Bacharelado em Etnodesenvolvimento – com a Usina Hidrelétrica de Belo
Monte.

Considerações finais
O ingresso no ensino superior foi uma vitória para os povos indígenas e co-
munidades tradicionais do estado do Pará e do Brasil, mas certamente para que
a política de inclusão promovida pela UFPA tenha sucesso é necessária uma
verdadeira inclusão política dos sujeitos diferenciados étnico-culturalmente, no
sentido de reconhecer o caráter político-jurídico de suas reivindicações por me-
lhores condições de acesso e permanência na instituição, de modo a tomá-las
como orientações para a estruturação das políticas afirmativas, em permanente
processo de avaliação, transparência e debate.
A construção de uma política étnica no campo acadêmico-administrativo da
universidade exige a internalização de preceitos básicos dos direitos étnicos de
povos e comunidades tradicionais, como o direito à autonomia e à participa-
ção. No caso da autonomia, reforça-se a importância da auto-organização dos
estudantes para tencionarem o reconhecimento identitário como fator de reor-
denação da estrutura universitária, assim como a primazia das lideranças e or-
ganizações representativas na promoção de ações sociais que exigem inovações
ou correções institucionais para melhor acolher seus membros na universidade.
No plano da participação, caberia estabelecer mecanismos de participação
permanente dos sujeitos e coletivos interessados para cooperarem no processo

20
Na atualidade, o edital do Bolsa Auxílio Intervalar define valores distintos para o fato do estudante
residir ou não no município sede do campus universitário. Se não residir, o valor pago, em cota única, é
de R$ 900,00; porém, se morar no município onde estuda, o valor cai para R$ 350,00 (UFPA, 2014). No
Bolsa Permanência do MEC, o valor geral – para estudantes que não são indígenas ou quilombolas – é
de R$ 400,00, mas informa que “[p]ara os estudantes indígenas e quilombolas, será garantido um
valor diferenciado, igual a pelo menos o dobro da bolsa paga aos demais estudantes, em razão de suas
especificidades com relação à organização social de suas comunidades, condição geográfica, costumes,
línguas, crenças e tradições, amparadas pela Constituição Federal” (Brasil, 2013), por período de até seis
meses, ou seja, seis bolsas.

276
de avaliação e valorização das políticas afirmativas, tal como a realização de
seminários21 com periodicidade anual, além de propor a criação de um conse-
lho consultivo dos povos indígenas e comunidades tradicionais alojado dentro
da estrutura dos conselhos superiores da instituição22, como o CONSEPE ou o
Conselho Universitário (CONSUN), e da proposição de departamento especí-
fico na estrutura administrativa para trabalhar o planejamento, a execução e a
fiscalização de políticas universitárias voltadas para a diversidade cultural, de
maneira articulada com os outros órgãos internos da instituição, e constituin-
do-se num local de referência para facilitar o direcionamento das demandas e
a agilização dos encaminhamentos necessários para atendimento às questões.
Certamente, o programa de ações afirmativas na UFPA traz resultados posi-
tivos, como pode ser observado a partir de indígenas e estudantes do Curso de
Etnodesenvolvimento que ingressaram por meio do PSE e encontram-se tra-
balhando em suas comunidades e, também, em outras comunidades congêne-
res. É evidente que os indígenas, que concluíram o mestrado no Programa de
Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFPA estão atuando com as questões
indígenas e contribuem para que os direitos conquistados sejam efetivados. E,
num futuro próximo, estima-se com boas perspectivas de atuação profissionais
os quilombolas provenientes da reserva de vagas, assim como os estudantes da
Licenciatura em Educação do Campo e os indígenas que realizam doutorado no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFPA.
Ainda assim, o balanço crítico dos nove anos de implantação das ações afir-
mativas na UFPA, iniciada no Programa de Pós-Graduação em Direito PPDG/
UFPA, demonstra que os ganhos institucionais estão ocorrendo a custas de mui-
ta mobilização e lutas sociais promovidas pelos povos indígenas e comunidades
tradicionais, em conjunto com parceiros internos e externos, o que revela que a
Instituição em si – em seus quadros gestores e membros estudantis, técnicos e
docentes – ainda se apresenta resistente para compreender e aceitar as mudanças
que se fazem imperiosas e urgentes.
21
O modelo de seminários é realizado, por exemplo, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)
e na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), para avaliar e orientar a proposição das políticas
afirmativas para povos indígenas que ingressam nas referidas instituições.
22
Proposta similar está em discussão na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com a estrutu-
ração de Conselho Consultivo ligado ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), que teria a
função de discutir e propor medidas, de caráter consultivo, para questões universitárias que afetem aos
povos indígenas e comunidades tradicionais.

277
Nada do que se relata enfraquece o ideal que se busca consolidar a existência
de Universidade plural e multiétnica. Apenas, sinaliza que o processo de des-
colonização da Instituição – assim como da sociedade e do Estado, de maneira
geral – está em curso, e continua reproduzindo a ideologia colonial sob argu-
mentos de meritocracia, objetividade e/ou uniformização dos procedimentos de
acesso e permanência de estudantes étnica e socialmente diferenciados. Contra
tais argumentos e a ideologia colonial, os protagonistas apontam e requerem
direitos constitucionais e internacionais garantidos aos povos indígenas e co-
munidades tradicionais, direitos que fundamentam a obrigação de mudanças
institucionais, ainda que as maiorias internas não aceitem ou compreendam.
Não se trata de uma situação transitória para melhor incluir os povos indígenas e
as comunidades, mas de uma nova cultura política universitária. Cabe destacar que
tornar o diálogo com os povos indígenas e as populações tradicionais, menos verti-
cal e mais dialógico e intercultural é o desafio maior da Universidade. No horizon-
te das “utopias possíveis” das políticas afirmativas compreende-se que os saberes
aportados pelas pessoas etnicamente diferenciadas gera a possibilidade – mesmo
que a longo prazo – de reordenação dos paradigmas científicos-acadêmicos produ-
zindo em conjunto novas formas de saber fazer. Descolonizar teorias e reterritoria-
lizar supostas “periferias” espaciais e epistemológicas é o imperativo.23
A vantagem das ações afirmativas é que a recepção de agentes sociais di-
versos na Universidade alarga as possibilidades do “futuro tornar-se próximo”,
pois se formam profissionais competentes o suficiente para realizar o chamado
“giro descolonial”24 que vem sendo exigido crescentemente pela cidadania di-
ferenciada dos grupos étnicos e que implica, no fundo, o repensar do próprio
papel da universidade na sociedade em relação aos povos indígenas e comuni-
dades tradicionais, com uma diferença estratégica, pensada em conjunto com os
protagonistas que acolhemos.

23
Registra-se especial agradecimento à Camille Gouvêia Castelo Branco Barata pelas sugestões referen-
tes à descolonização.
24
Sobre o assunto, consultar: Castro-Gómez, Santiago e Grosfoguel, Ramón (2007).
278
Referências
Beltrão, Jane Felipe. 2012. Indígenas e quilombolas mulheres em situação de violên-
cia: diversidade sociocultural, Direitos Humanos e Políticas Públicas na Amazônia
– Chamada MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA Nº. 32/2012, processo No. 405039/2012-3.
Inédito
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deral do Pará” In Espaço Ameríndio. Porto Alegre, v. 5, (3): 10-38. Disponível em:
<<http://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/21822/14464>>. Acesso em:
27.03. 2014.
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pos – Revista de Antropologia Social. Curitiba, PPGAS/UFPR, v. 5, (2): 181-185. Dis-
ponível em: <<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/view/1627>>.
Acesso em: 14.10.2008.
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www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>>. Acesso em:
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_____. 2013. Manual de gestão do Programa Bolsa Permanência. Brasília, MEC.
Disponível em: <<http://permanencia.mec.gov.br/docs/manual.pdf>>. Acesso em:
16.09.2014.
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flexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá:
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temporáneos y Pontifi cia Universidad Javeriana, Instituto Pensar. Disponível em:
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lecimento dos sujeitos nos espaços de participação social e democratização política”
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doi.org/10.1590/S0104-12902009000400016>>. Acesso em 27.10.2014.
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que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, Minis-
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279
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dade: uma análise das políticas públicas para educação escolar indígena no Brasil
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UFPA. 2014. Edital n°. 15/ 2014/PROEX – Bolsa Auxílio Intervalar. Disponível em:
<<http://proex.ufpa.br/sigaest/editais/AuxilioPermanenciaIntervalar.1e3Periodo-
de2015.pdf>>. Acesso em: 16.09.2014.

280
Entre dois mundos: demandas & respostas à educação superior
para/com povos e comunidades tradicionais

Raquel Lopes1

Considerações iniciais
Pensar hoje a questão da formação superior envolvendo povos e comunida-
des tradicionais requer pensar simultaneamente a questão da posse/manutenção
da terra e dos meios de produção e seu controle/gestão, inserindo essa questão
numa discussão mais ampla sobre a natureza da relação dessas comunidades
com a sociedade envolvente. Em outros termos, exige relacionar essa formação
ao que se pensa e espera desses segmentos no contexto mais amplo das relações
produtivas que predominam e conformam, hegemonicamente, o que se con-
vencionou chamar de “sociedade nacional”. Assim, os diferentes processos de
formação superior implementados precisam se equilibrar entre a necessidade de
aportar a esses segmentos instrumentos que lhes possibilitem relativa autono-
mia frente às forças “do mercado” (de modo que possam continuar sendo quem
e o que são) e o poder devastador de integrar, assimilar, uniformizar e padroni-
zar que marca as mais diferentes políticas existentes voltadas a essa formação.
É interessante observar como, nos discursos oficiais, a implementação do
“desenvolvimento” e o alcance do “progresso” estão condicionados à suposta
adaptação das pessoas a uma lógica externa, modernizadora e modernizante,
em que ocupa um lugar de destaque o fator alfabetização/educação/formação,
tomado como um dos principais indicadores desse progresso, como se houvesse
uma relação direta e automática de causa e consequência entre o fato de ter for-
mação e o poder de fomentar esse progresso ou de participar dele.
É, então, nessa perspectiva ambivalente que se situa a maioria das políticas
voltadas aos processos de formação em comunidades tradicionais: a falta de
formação vista como uma das principais origens de “graves problemas sociais”
e a promoção da formação como resposta quase mágica a tais “problemas”.

1
Linguista, docente junto a Faculdade de Etnodiversidade no Campus de Altamira da Universidade Fe-
deral do Pará (UFPA). Contato: ralopes@ufpa.br.

281
Na tentativa de questionar essa correlação, o presente artigo apresenta algu-
mas evidências pelas quais se pode verificar em que medida o acesso à educa-
ção superior por parte de povos e comunidades tradicionais pode se constituir
como condição fundamental para que essas populações possam participar da
Offentlichkeit2 (Harbemas, 1992), ou em termos mais usuais, para que possam
exercer a ‘cidadania’, em uma sociedade em que o conhecimento é produzido,
mobilizado e descartado em uma velocidade vertiginosa.
Nessa perspectiva, entendemos que cabe às Ciências Sociais, além de ques-
tionar o pressuposto da existência de uma relação de causa e efeito entre acesso
à formação superior e exercício da cidadania, como frequentemente se ouve
nos discursos oficiais, demonstrar como se dão as correlações aí pressupostas
e como elas se configuram para os diferentes coletivos de uma sociedade em
que as oportunidades de acesso à educação são desigualmente distribuídas, de
modo a se desnaturalizar a ideia da formação como fator essencial ao exercício
da cidadania, construindo marcos conceituais que de fato proporcionem uma
compreensão inteligente das diversas faces da realidade examinada, de forma
que o acesso ao conhecimento acadêmico venha a ser, ao lado de outras condi-
ções, um fator de fortalecimento de tais segmentos na Offentlichkeit, isto é, um
direito e não uma concessão por terem alcançado o lugar ‘iluminado’ do saber.
Isso traz de volta, necessariamente, a ambivalência entre a condição de su-
jeitos em formação e a sempre presente ameaça de assimilação/integração a um
padrão de comportamento que pode, em última instância, inverter os propósitos
que desencadearam a demanda inicial de formação.
Assim, examinaremos dados de uma experiência concreta de formação su-
perior em andamento em uma universidade pública da Amazônia focando, em
primeiro plano, os desafios vivenciados no cotidiano da vida acadêmica por
alunos e professores para efetivar os princípios de educação diferenciada por
entre as malhas de um sistema de gestão educacional extremamente burocrati-
zado, cujos meandros chegam a engessar em determinadas situações a imple-
mentação de muitas ações previstas para a efetivação da proposta pedagógica
da educação diferenciada.

2
Habermas (1992) atribui a essa expressão o sentido de esfera pública.

282
Uma experiência na contramão do sistema universitário
A proposição de processos de formação acadêmica para povos indígenas na
perspectiva do seu empoderamento, de modo que continuem a decidir com cada
vez mais acerto seus projetos de vida presentes e futuros, é uma temática que
historicamente marcou a relação da Universidade Federal do Pará/Campus de
Altamira com esses grupos no médio Xingu. Nessa direção, a possibilidade de
educação diferenciada em nível superior foi se desenhando por meio de um
esforço coletivo envolvendo professores pesquisadores desta Instituição Fede-
ral de Ensino Superior (IFES) e movimentos indígenas dessa região. Podemos
tomar o começo dos anos 2000 como um marco que, de certo modo, institucio-
naliza essa relação porque é nesse período que lideranças indígenas procuram o
Campus de Altamira e começam a demandar formalmente por apoio. Naquele
momento, a questão da educação escolar indígena aparecia como um dos pontos
principais no conjunto de inquietações colocado na pauta desse diálogo. Havia
uma compreensão muito clara por parte dos indígenas de que a formação na
“escola do branco” deveria aportar elementos de fortalecimento da luta política
desses povos; assim como havia clareza do modelo em que essa formação deve-
ria se ancorar para dar conta das expectativas criadas em torno dela.
Ao longo dos inúmeros debates que foram feitos nesse período, entre pactua-
ções temporárias e tensões permanentes, foi se esboçando a linha mestra a partir
da qual o tecido-base da proposta deveria se compor. E o matiz principal na
ocasião era a formação docente em nível superior chamada convencionalmente
de licenciatura intercultural. No meio do caminho, mediante as ponderações dos
próprios sujeitos dos movimentos indígenas e de importantes parceiros, deci-
diu-se por uma proposta de formação mais ampla que, além da habilitação para
a docência na educação escolar indígena, aportasse também uma contribuição
para a gestão do território na perspectiva do que se conhece na literatura socio-
lógica contemporânea como endo-desenvolvimento, desenvolvimento local ou
ainda etnodesenvolvimento: assim foi se configurando, tal qual o temos hoje, o
Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento.
Quando a proposta pedagógica deste Curso alcançou um nível de sistemati-
zação que permitiu sua submissão às instâncias pertinentes na UFPA, em 2009,
e mediante sua aprovação no âmbito interno desta IFES, com apoio do Progra-
283
ma de Políticas Afirmativas para Povos Indígenas e Populações Tradicionais
(PAPIT) e da Fundação FORD, não havia indígenas moradores das aldeias da
região com ensino médio completo – exigência legal para ingresso no ensino
superior; fato que levou a comissão responsável pela implementação do Curso
a reabrir o debate a respeito do perfil de aluno, alargando o espectro de poten-
ciais candidatos pertencentes a outros grupos considerados ‘tradicionais’. No-
vas rodadas de discussão com a sociedade local e representantes de diferentes
segmentos (indígenas citadinos, movimento negro, quilombolas, extrativistas,
pescadores, pequenos agricultores, entre outros) para construir possibilidades
de confluência entre diferentes interesses e perspectivas referentes à formação
superior em pauta. Não sem desgastes, chegamos a um arranjo pelo qual se de-
senhou um entendimento comum provisório, não necessariamente consensual,
de que a necessidade de implementar a proposta, por seu potencial agregador
e de empoderamento, era maior que as diferenças existentes entre os distintos
segmentos participantes do debate.
Deste modo, o Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvi-
mento se constitui numa política inclusão social da UFPA destinado a pessoas
oriundas de povos e comunidades tradicionais assim definidos a partir do crité-
rio da autodefinição e do reconhecimento pelo grupo de pertença, consideran-
do-se as definições de povos e comunidades tradicionais presentes nas norma-
tivas jurídicas nacionais e internacionais. Nestes termos, temos uma primeira
conceituação estabelecida com base na Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto nº. 6040/2007):
“Art. 3º, I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados
e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações
e práticas gerados e transmitidos pela tradição.”

No plano internacional, há marcos importantes a serem levados em conta,


a exemplo da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), referendada pelo Brasil via Decreto no. 5.051, de 19.04.2004, que em
seu artigo 1o, letras “a” e “b” reconhece o qualificativo “tradicional”
“a povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econô-
micas distingam-nos de outros segmentos da coletividade nacional, e estejam regidos,
total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação espe-
284
cial; a povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descende-
rem de populações que habitavam o país [no caso o Brasil] ou uma região geográfica
pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou estabelecimento das
atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as
suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas ou parte delas (Ma-
galhães, 2005: 43).

Temos, então, que povos e comunidades tradicionais podem ser caracteriza-


dos levando-se em conta “[a] imensa diversidade sociocultural do Brasil... e a
correspondente diversidade fundiária” (Little, 2004: 251); deste modo, podemos
sintetizar essa discussão mais terminológica dizendo que sob este qualificativo
são inclusos diferentes grupos humanos que podem ser identificados como: co-
munidades, povos, sociedades – coletivos em sentido geral, adjetiváveis como
nativos, autóctones, rurais, locais, que têm como marca diacrítica o uso coletivo
de um território identificado como locus específico de vida e de trabalho pelo
qual se organizam, lutam e buscam manter o controle em função de suas neces-
sidades, presentes e futuras, de reprodução física e social.
Feitas estas considerações, voltamos ao ponto de partida da presente discus-
são: as contribuições efetivas aportadas pelos processos de formação em nível
superior para que estes segmentos tradicionais consolidem suas estratégias de
luta política para serem quem são em condições menos sofríveis do que aquelas
que historicamente lhes foram impostas. Isso implica, necessariamente, uma
preparação para a disputa por certos papeis ou lugares sociais que são conquis-
tados por meio de ação política, do fazer político – aqui entendido de uma forma
relativamente elástica, mas de grande potencial explicativo, pelo menos para o
caso presente, na direção de fazer política apontada por Immanuel Wallerstein:
“[f]azer política é mudar as relações de poder numa direção mais favorável aos pró-
prios interesses, alterando a direção dos processos sociais. Para ter êxito, nesses casos,
é preciso encontrar as alavancas de mudança que permitam a maior vantagem ao menor
custo. Dada a estrutura do capitalismo histórico, as alavancas mais efetivas de ajuste
político têm sido as estruturas do Estado” (2001: 42).
Nessa perspectiva, e em se tratando dos alunos e professores do Curso de
Etnodesenvolvimento, o primeiro grande esforço de ajuste, a primeira “alavan-
ca de mudança” a ser acionada na esfera estatal mais próxima foi justamente
a estrutura universitária, cuja engrenagem alicerçada no paradigma iluminista
de saber genérico e universalizante dificultou desde o início a convivência no
285
ambiente acadêmico, levando-os a serem tratados como “estudantes de segunda
categoria”, especialmente em função do modelo de seleção pelo qual ingres-
saram na Universidade, tido por muitos como ilegítimo. Um segundo ajuste,
igualmente difícil, tem sido o enfrentamento da precipitada desqualificação da
formação expressa em frases do tipo: “esse curso forma pra ser o quê?”

Entre dois mundos


Esta seção é dedicada à reflexão sobre a ambivalência, que em alguns ca-
sos beira a esquizofrenia, característica de inúmeras experiências de formação
escolar/acadêmica que têm como sujeitos aprendizes originários de grupos his-
toricamente alijados da escola. Essas pessoas, via de regra, são marcadas por
traços negativos em suas trajetórias de vida (tendo-se como parâmetro de pólo
positivo a regularidade de estudos): alfabetização/escolarização tardia e irre-
gular; pouco contato com a cultura escrita canônica dominante na instituição
escolar; sentimento de rejeição/resistência à cultura escolar; pouca ou nenhuma
familiaridade com os processos e formas de avaliação predominantes nesse am-
biente; entre outros.
Para dar conta desse propósito, essa reflexão está dividida em dois momen-
tos: inicialmente, trago uma discussão mais teórica sobre a distância que marca
o antes e o depois da experiência formativa – que a torna ambivalente e é um
traço pan-genérico dessas situações, encontrável nos mais diversos lugares do
mundo; depois, tento conferir “carne e osso” à reflexão a partir de dados refe-
rentes à experiência vivenciada no Curso de Etnodesenvolvimento.
Como afirmei no início deste texto, a questão da formação superior para po-
vos e comunidades tradicionais precisa ser compreendida no contexto de uma
sociedade urbano-industrial, sem esquecer que, conforme alerta Wanderley “…
não se pode levar em conta os processos de urbanização e industrialização de
forma abstrata, dissociados das condições concretas, históricas, que, de fato,
os conformam” (2010: 82). Assim, um primeiro ponto que se apresenta está
relacionado aos lugares a serem ocupados por diferentes sujeitos sócio-históri-
cos nas hierarquias criadas pela civilização urbano-industrial, lugares esses que
são, em grande medida, determinados pela “capacidade” técnica de cada um.
Referindo-se à situação da classe trabalhadora inglesa no século XVIII, Bernard
Mandeville apud Thompson afirmou o seguinte:
286
“[p]ara que a sociedade seja feliz e o povo tranqüilo nas circunstâncias mais adversas, é
necessário que grande parte dele seja ignorante e pobre. O conhecimento não só amplia
como multiplica nossos desejos [...] Portanto, o bem-estar e a felicidade de todo o Es-
tado ou Reino requerem que o conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado
dentro dos limites de suas ocupações e jamais se estenda (em relação às coisas visíveis)
além daquilo que se relaciona com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou
qualquer outro camponês souber sobre o mundo e sobre o que é alheio ao seu trabalho
e emprego, menos será capaz de suportar as fadigas e as dificuldades de sua vida com
alegria e contentamento” (1998: 15).

É óbvio que, no estágio civilizatório em que nos encontramos e em nome


das opções ideológicas e políticas que assumimos como sendo as mais justas
e adequadas e que definem em mais alto grau os contornos da nossa própria
humanidade, essa afirmação parece absurda. Para o contexto histórico em
que foi proferida, no entanto, ela expressava um sentimento normal, visto
que àquela altura o lugar social dos camponeses (e dos pobres em geral) era
bem demarcado em termos educacionais.
Acontece que em nossos dias, e no contexto de uma sociedade que se diz
democrática e republicana, uma assertiva como essa, pelo menos em termos
de discurso, é inaceitável. Desse modo, e para não ferir nosso senso republi-
cano de justiça, entendemos que todos, inclusive os camponeses, indígenas,
quilombolas, pescadores, etc., devem ter acesso ao que consideramos ele-
mentar ao funcionamento da vida social em nossa civilização (urbano-indus-
trial), pois falta de formação básica é uma “vergonha”, um índice negativo
de desenvolvimento, uma “mancha”, enfim, algo que, como uma doença,
deve ser “erradicado”.
Mas, esse nosso sonho republicano da necessidade de universalização do
saber é sempre rondado pelo fantasma de um certo racismo de classe (Grignon
& Passeron, 1989) que nos acompanha no mais íntimo de nossas consciências
modernas e letradas e se manifesta quando desligamos o botão da consciência
da postura politicamente correta ou quando, fora dos espaços públicos onde atu-
amos profissionalmente, aproveitamos o descuido ou a cumplicidade do interlo-
cutor para revelar nosso mal-estar diante da presença, quase sempre incômoda,
de certos representantes legítimos das classes populares, seja por meio de co-
mentários irônicos ou “do discurso silencioso dos gestos, das pequenas decisões
cotidianas, para não dizer nada das grandes” (Grignon & Passeron, 1989: 32).
287
A passagem de Mandeville (apud Thompson, 1998), acima, traz de forma
muito nítida e, por isso, um pouco incômoda, uma daquelas pré-noções em
que se assenta a percepção que se foi construindo a respeito da legitimidade
do direito ou mesmo da necessidade de se educar/formar povos e comunida-
des tradicionais, em oposição à naturalidade com que se concebe a formação
de outros segmentos sociais, como se pode perceber pelo posicionamento do
autor – que parece, a nossos olhos de hoje, cínico, preconceituoso, etnocêntri-
co, quase absurdo. Porém, por mais que se queira negar a força desse pré-jul-
gamento em nossa própria maneira de pensar tal estado de coisas, é impres-
sionante como ele é atuante em nossa sócio-cosmologia. Ainda que em níveis
subterrâneos.
É como se, no fundo e apesar do esforço consciente para “universalizar”
o acesso ao “conhecimento”, houvesse um certo receio de que, uma vez ins-
truídos/formados, esses coletivos tradicionais perdessem sua “identidade” e
se descaracterizassem enquanto tal, pois que passariam a ser outra coisa –
conforme o preconceito de que sofisticação intelectual não condiz muito com
o que se imagina ser a “essência” de sua condição. Assombrados por essa
aflição, dividimo-nos entre a nobre ideia da universalização do conhecimento
escolar e o receio das consequências desse processo, que não podemos con-
trolar, uma vez que em nosso modelo de sociedade o acesso à escola é visto
como um mecanismo de mobilidade social ascendente, o que pode significar,
no caso de muitos integrantes de povos e comunidades tradicionais, uma pos-
sível saída em direção à cidade – fato que não é uma particularidade do Brasil.
Jack Goody, trabalhando entre grupos de agricultores na África, deparou-se
com algo semelhante:
“... em muitas regiões do continente, o resultado da introdução da escola é, ao menos
por um tempo, separar a população em duas metades, sendo uma em grande parte rural
e a outra urbana. Essa divisão pode nem sempre tomar a forma de uma separação física.
Mas, muitas pessoas educadas que trabalham no campo o fazem a contragosto, com os
olhos fixos na cidade e na vida que lá se leva, pois a instrução adquirida pela educação
escolar é o principal método para se promover, para ultrapassar o nível da agricultura
de subsistência; e de fato, não é apenas nesse aspecto que a agricultura é vista como
trazendo uma vida insatisfatória: o prestígio dos valores aprendidos na escola está
alhures, de preferência no meio urbano” (1994: 151).
288
Ainda que haja muitas diferenças entre as duas situações comparadas, não
deixa de ser surpreendente o fato de, em contextos tão específicos, um hábito
de pensamento ser tão fortemente marcado. Para compreender esse efeito tão
estendido da influência da cultura escolar precisamos descortinar suas origens,
porque não é suficiente constatar essa percepção sem problematizá-la, fazendo
aquelas análises de sobrevôo segundo as quais os povos e comunidades tradi-
cionais teriam uma visão estreita da realidade, ou que sua percepção da escola
é unilateral porque não conseguem fazer uma leitura “sociológica” da realidade
social, ou, pior ainda, que “com a globalização” eles não têm mais os mesmos
vínculos de antes com a terra/agricultura e por isso sua identidade está amea-
çada ou em crise (essa matriz de análise, típica de quem apenas plana sobre o
mundo rural e acha que faz pesquisa, infelizmente, não é muito rara).
Essa concepção de cultura escolar pode ser situada no começo do século
XIX, na sequência das experiências e das ideias da revolução francesa, quando
“... os progressos científicos e técnicos, os sucessos da revolução industrial, a
melhoria, pelo menos para as elites ocidentais, do conforto, do bem-estar e da
segurança, mas também os progressos do liberalismo, da alfabetização, da ins-
trução e da democracia” (Le Goff, 2003: 257), configuraram em definitivo um
padrão civilizatório em que a instrução (entenda-se aí a instrução tornada possí-
vel por meio da escola) passou a compor o conjunto dos critérios definidores de
humanidade/dignidade humana.
Não sendo possível à ideologia do progresso/desenvolvimento garantir tal
condição a todos, porque ela se sustenta exatamente na lógica da acumulação
por alguns que impede a democratização da renda aos muitos outros, foi se des-
locando o foco da discussão dos meios e sistemas de produção que, efetivamen-
te, são responsáveis pela criação, transformação e circulação de riqueza, para
os sistemas de representação, o simbólico. Inverteu-se, destarte, de tal forma a
situação, que os pobres, antes assim considerados porque não tinham riqueza (já
que esta fica concentrada nas mãos de poucos, conforme a lógica da acumulação
capitalista) passam a ser vistos como ignorantes, iletrados, analfabetos, e nessa
categoria passam a carregar todo o ônus de sua nova condição, cuja expressão
mais acabada, a ignorância, é convertida, de consequência da precariedade das
condições econômicas, em sua causa maior.
289
Desfocando a ênfase da esfera da produção e acumulação de riqueza para a
esfera da representação, do simbólico, transforma-se uma situação decorrente
de uma opção política e econômica, a distribuição desigual do acesso à rique-
za, em um problema social, não mais de natureza econômica, mas de caráter
progressivamente cultural: as desigualdades sociais, cujas consequências vão
permitir uma caracterização do problema no plano da cultura, pois “a dignida-
de pessoal [aquilo pelo que se define um ser humano], começam a passar pela
questão do saber e mais particularmente pelo saber ler” (Lahire, 2005: 56). Des-
sa forma, “a ‘ignorância’ é promovida à pior das injustiças, e os pobres não são
mais aqueles que conhecem a pobreza econômica, mas uma população definida
culturalmente por sua ignorância” (Lahire, 2005: 59).
Assim, o elemento cultural passa a compor a “essência do problema” a partir
do momento em que se transmuda o caráter da dignidade da pessoa humana
de traço inerente e inalienável à essa condição de patamar a ser alcançado pela
instrução, pelo saber; em outros termos, para ser verdadeiramente humano é
preciso saber, conhecer, sem isso é-se subumano, inferior, deficiente, atrasado.
A ideia de humanidade se reveste assim de uma roupagem cujas determina-
ções culturais, sociais e históricas são apagadas e transformadas em aspirações
ideais, de um ser humano genérico, abstrato, mas coincidentemente mais pró-
ximo do ideal de Homem forjado pelo Ocidente letrado e cristão do que do
ideal daqueles outros humanos para quem a cultura escolar/escrita não tem essa
importância nem essa função. Foi essa concepção de escola que herdamos do
Iluminismo...

Culturas dominantes versus aprendizagens subversivas


Mas estariam todas as diversas experiências de educação escolar diferencia-
da que tentamos implementar necessariamente contaminadas por esse “pecado
original”? Estariam os diferentes sujeitos aprendizes condenados a se tornarem
iguais pelo efeito da educação escolar? Seriam nossas ações de mediação peda-
gógica forçosamente assimilacionistas e padronizadoras?
As tensões internas vivenciadas ao longo de quatro anos no Curso de Etno-
desenvolvimento evidenciam que não. Pelo menos não necessariamente. Dos
45 alunos ingressantes em 2010, apenas dois desistiram; três solicitaram tran-
290
camento de matrícula; houve uma morte por acidente; portanto, 39 alunos con-
tinuam estudando com perspectiva de conclusão de curso ainda este ano – uma
estatística incomum em cursos de graduação na UFPA.
O grau de satisfação dos estudantes para com a formação vivenciada tam-
bém é digno de nota, o que não significa que não haja frustração, reclamações e
dissensão. Já foram vivenciados momentos de muita tensão, havendo inclusive
situações de conflito sem solução de resolução a curto prazo. Mas o que tem
fragilizado a experiência não são esses conflitos, é o racismo institucionaliza-
do na engrenagem da universidade (sobre os quais falaremos mais adiante). A
diversidade de trajetórias de vida, as diferentes expectativas relativas ao Curso,
assim como a pluralidade de formas de aprender têm apontado que, exatamente
por ser condicionada sócio-historicamente, a formação não atinge os diferentes
coletivos de maneira homogênea. Desse modo, compreendendo-se essa forma-
ção como práxis, não há como vê-la de forma neutra, não há usos atemporais e
associais do conhecimento, e mesmo quando – em função de uma certa tradição
– parece haver ou ter havido um processo de padronização de certo uso de um
saber que vem a se tornar dominante e o único socialmente rentável ou autoriza-
do, ainda assim, as pessoas podem reinventar essa forma de uso subvertendo-a
e fabricando
“ maneiras de fazer [que] constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapro-
priam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural (...) porque se
trata de operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráti-
cas e alteram seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre
os ‘detalhes’ do cotidiano (...) Esses modos de proceder e essas astúcias de consumido-
res compõem, no limite, a rede de uma antidisciplina” (De Certeau, 1994: 41).

É nesse entre-espaço, imprevisto, não autorizado e, de certo modo, subver-


sivo, que povos e comunidades tradicionais podem reinventar usos autóctones
para uma tecnologia que é, em um certo plano, um instrumento de dominação
cultural: a escrita, forjando – por suas maneiras específicas de fazer – uma outra
compreensão desta tecnologia, inscrevendo nela a diferença, subvertendo uma
lógica de assimilação e aculturação por meio de um processo de apropriação.
Nesse sentido, tomar a formação, ela mesma, como prática social, remete
a uma perspectiva bastante diferente daquela prevista e assumida pelos parâ-
metros escolares/acadêmicos, via de regra, orientados pela perspectiva de um
291
“modelo autônomo de letramento”, pois o que importa, para muito além da
mera aprendizagem, é o que as pessoas podem fazer com o que aprenderam e é
a isto que estou chamando de processo de apropriação. Podemos compreender
essa noção de apropriação como a formulou Roger Chartier:
“[a] apropriação, tal qual nós a entendemos, visa a uma história social dos usos e das
interpretações, remetidas às suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas
específicas que as constroem. Dar, assim, atenção às condições e aos processos que,
muito concretamente, fundamentam as operações de produção de sentido, é reconhe-
cer, contrariamente à antiga história intelectual, que nem as idéias nem as inteligências
são desencarnadas, e, contrariamente aos pensamentos universalistas, que as categorias
dadas como invariantes, quer sejam fenomenológicas ou filosóficas, devem ser pensa-
das na descontinuidade das trajetórias históricas (…). Essa noção assim reformulada,
que coloca o acento sobre a pluralidade dos usos e das compreensões, se distancia, em
primeiro lugar, do sentido que Michel Foucault dá ao conceito, tendo a “a apropriação
social dos discursos” como um dos principais procedimentos pelos quais os discursos
são assujeitados e confiscados pelas instituições ou pelos grupos que se atribuem seu
controle exclusivo. Ela se distancia igualmente do sentido que a hermenêutica lhe dá,
pensando-a como o momento em que a “aplicação” de uma configuração narrativa par-
ticular à situação do sujeito transforma, pela interpretação, a compreensão que ele tem
de si mesmo e do mundo, portanto sua experiência fenomenológica” (2003: 152-153).

A assunção dessa perspectiva de trabalho implica o deslocamento do foco da


análise dos “efeitos da formação”, supostamente universais, para as modalidades
específicas e diferenciadas de sua apropriação por sujeitos encarnados e social-
mente situados, pois o que importa é entender como esses coletivos se apropriam
do que estão aprendendo na Universidade em suas práticas sociais, isto é, fazen-
do-a sua, utilizando esse “capital” à sua maneira nos seus modos de vida. Esse
posicionamento deve, porém, ser tomado com certos cuidados, pois, como ad-
verte R. Chartier, se, por um lado “... a noção de apropriação utilizada como ins-
trumento de conhecimento permite romper com uma definição ilusória dos usos
populares da cultura escolar, pode, por outro, reintroduzir uma outra ilusão que
faria considerar esses usos como um sistema neutro de diferenças” (2003: 153).
Assim, é preciso ter cuidado para não romantizar as práticas populares/tradi-
cionais pois tomá-las como diferentes, mas equivalentes, é negligenciar o fato
de que, como mostrou Pierre Bourdieu (1996), bens simbólicos são objeto de
disputas sociais acirradas pelas quais se produzem hierarquizações, classifica-
ções, desclassificações e consagrações. O desafio da compreensão destas práti-
cas é situá-las “nesse espaço de afrontamentos das relações estabelecidas entre
dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os mecanismos de dominação sim-
292
bólica; de outro, as lógicas específicas aos empregos, usos, maneiras de fazer
seu o que é imposto” (Chartier, 2003: 153).

Um olhar de esperança: por que não?


Considerando o fato – por um lado óbvio, mas por outro bastante difícil de
ser assumido para além da mera retórica – de que somos um país plural, parti-
mos do pressuposto de que o conhecimento científico é uma ferramenta eficaz no
combate ao preconceito e à discriminação negativa que levam à exclusão (“a boa
ciência sana a má consciência”). Nessa perspectiva, entendemos que experiências
de formação superior, como o Curso de Etnodesenvolvimento, trazem elementos
importantes para pensar a complexa questão da oferta de educação diferenciada,
como ação afirmativa para o enfrentamento de desigualdades sociais que atingem
os “diferentes”, visando seu fortalecimento para que possam vir a se colocar em
condições menos assimétricas na luta por direitos que lhes foram historicamen-
te negados. Nesse caso, o diferencial da educação está relacionado não somente
à necessidade de diminuir a distância estrutural que separa esses segmentos do
acesso à educação formal, mas também – e sobretudo – à possibilidade concreta
de, uma vez incluídos no sistema escolar, reunirem condições para uma efetiva
apropriação daqueles elementos fundamentais para o seu empowerment (empode-
ramento) e, consequentemente, para a superação das condições sociais de vulne-
rabilidade que transformam diferença em desigualdade.
Em um contexto social fortemente marcado pela concentração de riqueza em
poucas mãos e pela consequente negação de direitos básicos aos “outros” – no
qual a educação escolar funciona como reforço e legitimação do establishment –
enraizou-se a noção de desigualdade como desdobramento natural da diferença
e passou-se a aceitar a negação da equidade como algo normal. Assim, a aná-
lise de experiências como esta aqui apresentada é um valioso instrumento para
desvelar essa aparente normalidade que legitima a desigualdade e a negação,
desnaturalizando essa ideologia pela demonstração do valor relativo de certas
prerrogativas meritocráticas e do caráter social e histórico de toda realização hu-
mana. Logo, uma primeira e substancial contribuição dessa reflexão diz respeito
à geração de conhecimento cientifico seguro para a problematização de ideolo-
gias que alimentam pré-noções e preconceitos que naturalizam a desigualdade
293
em geral e que a cristalizam no âmbito da educação, em especial – num movi-
mento circularmente vicioso de reforço do status quo.
Outra contribuição, de certo modo decorrente da primeira, diz respeito à
possibilidade de iluminar, a partir de dados oriundos de situações concretas
de educação diferenciada, a discussão mais ampla sobre a efetividade destas
iniciativas, apontando evidências que possam explicar contradições, lacunas,
inadequações e entraves aí perceptíveis, não para deslegitimá-las pela demons-
tração de seus ‘pontos fracos e negativos’, mas, e sobretudo, para possibilitar
seu redirecionamento visando o alcance de seus propósitos conforme o olhar
de seus protagonistas. Essa “radiografia” da experiência pode também trazer
elementos para consolidar os avanços conquistados pelas ações já realizadas
(Lopes, 2009; Meneses, 2010) e em curso potencializando seu alcance e permi-
tindo ampliar seu poder de transformação social pela evidenciação dos aspectos
positivos em direção à construção de outros paradigmas menos hegemonizantes
de educação, pois como nos exorta Sahlins: “… não basta assumir atitudes de
denúncia em relação à hegemonia. Os antropólogos sempre terão, além disso,
que dar testemunho da cultura” (1997: 64).
Em terceiro lugar, tem-se que a análise consubstanciada das experiências em
tela tem grande probabilidade de trazer elementos seguros para a construção de
indicadores de qualidade referentes à contribuição social das ações de educação
diferenciada, potencializando a avaliação institucional da própria universidade
como locus privilegiado de formação de pessoas e de produção de conhecimen-
to. Nesse movimento dialético, ganham os povos e comunidades tradicionais
que acessam o ensino formal, mas ganha, sobretudo, a escola e a universidade,
porque têm a oportunidade de se repensar por dentro e redirecionar sua própria
atuação capilarizando suas ações no seio da realidade em que estão inseridas,
enriquecendo-se, transformando-se e revigorando sua existência como institui-
ções plurais, multiétnicas e, apenas assim, efetivamente republicanas e demo-
cráticas.
Em quarto lugar, e, dada a importância do acesso às tecnologias na contem-
poraneidade em praticamente todas as esferas da vida social, particularmente
na educação, temos que experiências como esta apontam elementos úteis para
a compreensão do grau de apropriação de recursos tecnológicos por povos e
294
comunidades tradicionais, contribuindo assim para desmistificar a ideologia de
que a utilização de tais recursos seria uma ameaça à sua tradicionalidade ou um
fator de inautenticidade, como lembra Jolly:
“[s]e eles [os nativos] não fazem mais ‘isso’, então não são mais eles mesmos, ao passo
que, se os colonizadores não fazem mais o que faziam há duas décadas, trata-se de um
exemplo reconfortante do progresso ocidental. Em um caso, diversidade e mudança co-
notam inautenticidade; no outro, são o selo da verdadeira civilização ocidental” (1997:
68).

Pela análise crítica e pela localização histórica dessa concepção “moderni-


zante”, é possível relativizar o peso dessa ideologia e compreender outras for-
mas de vida e de produção cultural moldadas não necessariamente pela mesma
direção. As experiências de educação diferenciada investigadas podem, então,
demonstrar que existem outras possibilidades que não se deixam perceber pelas
macro-análises de analistas para quem as experiências como a estas são “isola-
das, incipientes, pouco representativas”; mas isso só se pode ver deixando-se o
plano do “sobrevôo” e descendo-se ao plano “da carne e do sangue”, olhando
“de baixo”, sentindo o cheiro e a densidade desses processos de reinvenção.
O descortinamento da dimensão superficial que se apresenta aos olhares in-
gênuos, ao examinar histórias de vida e trajetórias dos principais envolvidos
nessas experiências e o contexto sócio-histórico em que elas se dão, deverá
mostrar como a experiência coletiva de apropriação da formação superior por
povos e comunidades tradicionais aciona um conjunto de práticas sociais iné-
ditas que se constituem em evidência inconteste de uma contra-hegemonia, no
sentido de que essas pessoas, ao se apropriarem de uma nova ferramenta – asso-
ciada em diversos planos à urbanidade, ao progresso, ao desenvolvimento, en-
fim – parecem estar subvertendo o projeto modernizador de seus usos e funções,
revertendo os benefícios de seu usufruto em proveito da vida tradicional.
Evidências etnográficas podem apontar claramente contraposições dos mais
“fracos” (De Certeau, 1994), disputando os espaços de poder, produzindo for-
mas de estar no mundo não conformadas à força condicionadora e unidirecional
da cultura dominante. Se existe uma hegemonia, não só na escolha das normas
e decisões, mas também na sua circulação e prescrição, isso não significa, toda-
via, que não haja disputa, reação por parte de quem não tem essa força, como
indica Michel de Certeau:
295
“... a fraqueza em meios de informação, em bens financeiros e em ‘seguranças’ de todo
o tipo exige um acréscimo de astúcia, de sonho ou de senso de humor. Dispositivos
semelhantes, jogando com relações de força desiguais, não geram efeitos idênticos.
Daí a necessidade de diferenciar as ações que se efetuam no interior da rede de con-
sumidores pelo sistema dos produtos, e estabelecer distinções entre as margens de
manobra permitidas aos usuários pelas conjunturas nas quais exercem a sua ‘arte’. …
Como o direito (que é um modelo de cultura), a cultura articula conflitos e volta e meia
legitima, desloca ou controla a razão do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de
tensões, e muitas vezes de violências, a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos
de compatibilidade e compromissos mais ou menos temporários. As táticas do consu-
mo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma
politização das práticas cotidianas” (1994: 45).

Nessa perspectiva, assumimos o fato de que a experiência de educação di-


ferenciada examinada, embora possa não estar de saída minada por interesses
utilitaristas, sejam estes quais forem, precisa garantir aos envolvidos condições
de enfrentamento dos problemas vividos por suas comunidades de pertença;
é preciso que o aporte construído na e pela experiência na universidade seja
eficaz e ajude a produzir leituras diferentes da realidade, restituir à sociedade
os resultados alcançados – pois, como nos lembra Giddens, o que produzimos
na universidade, sobretudo na situação específica das Ciências Sociais, migra
para a sociedade e cria efeitos na vida das pessoas: “[o] conhecimento socioló-
gico espirala dentro e fora do universo da vida social, reconstituindo tanto este
universo como a si mesmo como uma parte integral deste processo” (Giddens,
1991: 24). Neste sentido, ao mesmo tempo em que o conhecimento científico
interpreta as relações sociais é também interpretado por aqueles que vivem tais
relações e isso tem consequências práticas consideráveis para a vida concreta
dos sujeitos envolvidos na experiência.

Considerações finais
Identificar o papel da formação superior para povos e comunidades tradicio-
nais nas novas dinâmicas sociais influenciadas pela introdução da “cultura es-
colar” em culturas predominantemente orais nos desafia a repensar a lógica da
cultura letrada que conforma nossos modos de pensar a educação e seus usos,
conferindo-lhes esse caráter de permanência e sacralidade. Também nos desafia
a questionar a legitimidade do padrão civilizatório que elegeu um modelo de
escola e a tradição decorrente de sua difusão como inevitáveis, abrindo espaço
296
para interpretações que podem evidenciar processos outros de apropriação não
previstos pela lógica da imposição.
Isso implica levar em consideração alguns parâmetros a partir dos quais
seja possível desenhar contornos dessa diversidade, observando-se o cuidado
para não tomar como dado exatamente o que se deseja explicar/entender. Nessa
perspectiva, a questão da formação superior se apresenta como um interessante
e vantajoso instrumento de reflexão, seja pelo amplo leque de possibilidades
analíticas que aventa, seja pelo caráter objetivo que recobre os fatos concretos
relacionados ao tema, pois há uma série de fenômenos sociais concretos a for-
necer ‘base empírica’ para consubstanciar a análise, aumentando-lhe o poder de
explicação/elucidação da realidade.
Na situação específica do Curso de Etnodesenvolvimento, chamamos aten-
ção para o fato de que, conforme aponta Navarro (2001), a definição do que
seja, exatamente, desenvolvimento rural varia no tempo conforme uma série
de fatores, mas todas as iniciativas ligadas a este conceito têm em comum o
discurso da melhoria da qualidade de vida (do bem-estar) das populações rurais/
tradicionais, diferenciando-se nas estratégias de operacionalização, na escolha
das prioridades e nos enfoques metodológicos. Pelo fato de essas diferenças
serem fundamentadas em leituras de realidade (interpretações) distintas, o que
aponta objetivos igualmente distintos, experiências de formação em uma área
como essa de Etnodesenvolvimento recobrem-se de importância estratégica,
pois permitem que os próprios sujeitos realizem as leituras que fundamentarão
os programas/projetos/políticas de desenvolvimento para os seus respectivos
coletivos de pertença a partir do seu olhar e de suas necessidades.
Sabemos que não existem necessidades sentidas universalmente da mesma
maneira. As diferentes formas que assumem são socialmente construídas, o que
significa dizer que cada época, cada configuração social específica, cria as suas
próprias necessidades, devendo, portanto, ter as condições de criar suas próprias
respostas. Se, como afirma Nancy Birdsall (1998), existem evidências empíri-
cas sobre a relação entre acesso à educação e desenvolvimento, que autorizam
a colocar a formação de capital humano e o amplo acesso à escola no mesmo
patamar estratégico da redistribuição de terras em países como o Brasil, é pre-
ciso situar a questão nos seus devidos termos, questionando a relação entre um
297
fator e outro e, a partir de dados concretos, dessacralizar a hegemonia da cultura
escolar como o fator de primeira grandeza nessa equação, para que ela possa,
junto com outras variáveis, cumprir sua função de formação para a autonomia e
para a autodeterminação dos diferentes coletivos que a buscam.

Referências
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Paulo, EDUSP.
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distinção e apropriação. Campinas, Mercado de Letras.
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Giddens, Anthony. 1991. As conseqüências da modernidade. São Paulo, Editora
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_____. 1994. Entre l’oralité et l’écriture. Paris, Presses Universitaires de France.
Grignon, Claude & Passeron, Jean-Claude. 1989. Le savant et le populaire. Misérabi-
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Magalhães, Edward Dias (org.). 2005. Legislação Indigenista e Normas Correlatas.
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casa familiar rural e as estratégias de reprodução social do campesinato na Transa-
mazônica (Pará-Amazônia). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará.
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Sahlins, Marshall. 1997. “O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por
que a cultura não é um “objeto” em via de extinção (parte 1)” In Mana 3 (1): 41-73.

298
Thompson, E. P. 1998. Costumes em comum:estudos sobre a cultura popular tradicio-
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Wanderley, Maria de Nazareth B. 2010. “O mundo rural no Brasil: acesso a bens e ser-
viços e processos de integração” In Delgado, Nelson Giordano (Coord.) Brasil rural em
debate. Brasília, CONDRAF/MDA.

299
IV. Ensaios Fotográficos

300
Educação no banco dos réus – o que os discentes do
Etnodesenvolvimento tem a dizer?

Paula Lacerda1

Em agosto de 2012, os discentes do curso de Etnodesenvolvimento realizaram um


júri simulado, como parte das atividades da disciplina Gestão Educacional e Etnoedu-
cação, conduzida pelos docentes Francisco Oliveira, Eliane Sousa Faria e Francilene
Parente. Na ocasião, os alunos se dividiram entre as equipes de “acusação”, “defesa”,
além de “testemunhas” e “juízes” que julgariam se a “educação”, tida como ré neste
júri simulado, seria inocentada ou culpada por não contribuir para o pleno desenvol-
vimento dos estudantes, por ser desigualmente distribuída no território nacional, por
não cumprir os princípios do pluralismo e por não respeitar as especificidades dos
educandos, entre muitas outras acusações que lhe foram imputadas.
Esta atividade mobilizou os discentes, para os quais a educação é um tema caro às
suas trajetórias, ações políticas e vivências universitárias. As primeiras fotos do ensaio
registram os preparativos para a ocasião do júri, no qual o auditório da universidade se
transformou, por algumas horas, em espaço de um ritual judiciário.
Foto 01. Preparativos para o júri simulado

1
Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Na-
cional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e professora adjunta de Antropologia do Instituto de
Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato: lacerdapaula@gmail.com.

301
Foto 02. Discentes posam para fotos durante os preparativos para o júri simulado

Foto 03. Roupas, penteados e maquiagem foram especialmente escolhidos para o evento

302
Seguindo a dinâmica judiciária, os juízes leram a denúncia da acusação e as
testemunhas, com as mãos estendidas, prestaram o compromisso legal de decla-
rarem a verdade.
Foto 04. A mesa dos juízes, vestidos à caráter

Foto 05. O solene momento do juramento

303
Enquanto o grupo organizado como “acusação” apontava inúmeros proble-
mas cotidianamente enfrentados por estudantes, suas famílias e a comunidade,
como a dificuldade de acesso à escola, a inexistência de um ensino público,
gratuito e de qualidade, entre outros; a “defesa” argumentava que todos estes
problemas eram decorrentes da má gestão de agentes da administração pública,
tais como prefeitos, governadores, diretores de escola etc. As fotos seguintes
registram alguns momentos do trabalho em equipe.

Foto 06. A bancada da acusação

Foto 07. A bancada da defesa

304
Alguns discentes ofereceram seus testemunhos no sentido de incriminar ou
absolver a educação.

Foto 08. Senhor Aurino responde perguntas da acusação

Foto 09. Elena responde perguntas da defesa

305
Um discente de cada equipe atuou como advogado, conduzindo as per-
guntas direcionadas às testemunhas. Ao final, os advogados apresentaram suas
alegações no sentido de convencer os jurados sobre a inocência ou culpa da ré,
a educação. As últimas fotos capturam a seriedade e o movimento dos discentes
na posição desempenhada.

Foto 10. Ivaíde como advogado de acusação

306
Foto 11. Liliane como advogada de defesa

307
Etnicidade & Universidade:
a presença de povos e comunidades tradicionais

Assis da Costa Oliveira1


Jane Felipe Beltrão2

No dia 5 de janeiro de 2011, os povos e comunidades tradicionais da Amazô-


nia escreveram um novo capítulo da História da Universidade Federal do Pará
(UFPA), vetusta instituição de quase 60 anos, ao adentrarem no Campus Uni-
versitário de Altamira para assistir o Seminário de Abertura do Curso de Etno-
desenvolvimento. Momento marcante, simbólico e afirmativamente político (ou
politicamente afirmativo), pois foi o primeiro movimento de ingressar no espa-
ço da Universidade, de perceber-se como estudante universitário diferenciado
étnica e racialmente, apoiados pelos respectivos grupos de pertença.

Foto 01. Os primeiros passos de Margarete e Fernando, quilombolas


estudantes, na UFPA

1
Professor de Direitos Humanos do Curso de Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade da
Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Altamira. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da UFPA. Secretário Nacional do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPD-
MS). Advogado. Contato: assisdco@gmail.com.
2
Antropóloga e historiadora, docente associado à Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus Be-
lém. Pesquisadora do CNPq. Contato: janebeltrao@gmail.com.

308
O Seminário de Abertura contou com a participação de docentes e parceiros
que contribuíram ativamente para a construção e a execução do Curso de Licen-
ciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento. Trata-se de um momento de
felicidade e de tensão, ao mesmo tempo. Fazer educação em um curso de gradu-
ação inédito no Brasil e para um público de estudantes diferenciados e oriundos
de pertenças diversas, perante antagonistas internos e externos à Universidade
que “torciam” pelo fracasso da ousada política afirmativa, colocava sob os “om-
bros” de docentes e discentes a responsabilidade de fazer o “caminho ao cami-
nhar”, de construir o novo experimentando as ações, aprendendo com os erros
e tendo a coragem de ser ousado! Os registros fotográficos a seguir apresentam
alguns momentos do Seminário de Abertura.

Foto 02. Professora Jane Beltão apresentando o Curso

309
Foto 03. Professora Zélia Amador na abertura do Seminário

Foto 04. Docentes e discentes à mesa de discussão no


Seminário de Abertura

310
Foto 05. Discentes da turma 2010 no Seminário de Abertura

Durante a primeira disciplina Nação e Nacionalidade, sob responsabilidade


de Assis da Costa Oliveira e Jane Felipe Beltrão – em conjunto com os docentes
Eliane da Silva Sousa Faria, Francilene de Aguiar Parente e Luiza Mastop-Lima
– os discentes foram instigados a problematizar a construção da ideia de nação a
partir da dinâmica no cenário do futebol, aproveitando a paixão dos brasileiros
em relação aos sobre os times de futebol. O comando era dividir-se em grupos
e trabalhar com a noção do “time de coração” para relatar porque o seu time de
futebol era o melhor dentre todos, usando como argumento quais as caracterís-
ticas que podiam justificar a qualidade da afirmação, títulos, grandes jogadores,
entre outras coisas. Aqueles que entre os discentes e docentes não tivesse um
time preferido deveriam permanecer “neutros”, integrando um grupo de jurados
que, ao final, deveriam “escolher”, ou melhor, deveriam serem convencidos a
torcer por um time, rendendo-se à paixão nacional . Os principais marcadores
que traziam a identificação do modo como se concebia a História e importância
de cada time eram anotadas no quadro para depois serem relacionadas à ideia de
nação e de nacionalidade, conforme se pode ver nas imagens abaixo que captu-
ram momentos de algumas das apaixonadas apresentações.

311
Foto 06. Discentes e docentes em ação. Ao fundo o quadro com
anotações para posterior problematização

Foto 07. O grupo de juradas

312
Em outra disciplina, História dos Direitos Humanos, ministrada por Assis da
Costa Oliveira, em 2011, trabalhou-se a compreensão e importância dos direitos
humanos a partir de peças teatrais embasadas no método do Teatro do Oprimi-
do. A atuação, o figurino e a postura revelam as marcas culturais e trajetórias
sociais e, assim se contou, de maneira fictícia, histórias de opressão e violência
vivenciadas ao longo dos anos de luta, sofrimento e conquistas. Abaixo, fotos
registram as apresentações, que procuram traduzir o significado da luta por di-
reitos entre povos e comunidades tradicionais.

Foto 08. Encenação de manifestação por direitos

Foto 09. “Assassinato” durante a manifestação

313
Foto 10. Juruna na Delegacia de Polícia

Foto 11. Klebson Salgado como Dom Erwin Krautler da Prelazia do


Xingu, registro do apoio à luta dos agricultores da região

314

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