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Fato, trama e narrativa:


um diálogo entre o Jornalismo e a Historiografia

André Azevedo da Fonseca


Doutor em História (Unesp)
Professor adjunto no Departamento de Jornalismo da
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
E-mail: azevedodafonseca@gmail.com

Raul Hernando Osorio Vargas


Resumo: As discussões sobre a narrativa na História podem con-
tribuir para a problematização da narrativa jornalística? Quais Doutor em Comunicação (ECA-USP)
são as questões que inquietam os historiadores, e de que forma os Professor Assistente de Jornalismo da
comunicólogos podem contribuir na reflexão sobre os problemas Universidade de Antioquia (Medellín-Colômbia)
epistemológicos que envolvem a construção narrativa e a organi- E-mail: osoriova@gmail.com
zação da trama de fatos? Este artigo pretende cruzar referenciais
teóricos das duas áreas para verificar eventuais pontos de intersec-
ção interdisciplinar entre esses campos científicos, no que tange
Introdução
especificamente ao encadeamento textual das narrativas jornalís-
ticas e históricas. Para estabelecer a diferença entre o ofício
Palavras-chave: jornalismo, reportagem; história; historiografia; do historiador e o do matemático, Marc Blo-
narrativa.
ch criou a metáfora do “operário fresador e
Hecho, trama y narrativa: un diálogo entre el Periodismo y la do luthier”: ambos trabalham com milíme-
Historiografía
Resumen: ¿Las discusiones sobre la narrativa de la historia pue-
tros; mas enquanto o fresador se atém aos
den contribuir al cuestionamiento de la noticia en el periódico? instrumentos mecânicos de precisão, o lu-
¿Cuáles son los temas que más preocupan a los historiadores, y
cómo los comunicólogos pueden contribuir a la reflexión sobre
thier orienta-se, antes de tudo, pela sensibili-
los problemas epistemológicos que implican la construcción y dade do ouvido e dos dedos. Fatos humanos,
organización de la estructura narrativa de los hechos? En este ar- ensinou Bloch, são por essência fenômenos
tículo se busca cruzar referenciales teóricos de las dos áreas para
verificar si hay posibles puntos de intersección interdisciplinar muito delicados, e na maioria das vezes es-
entre estos campos científicos, en especial en relación al enca- capam à medida matemática. Para traduzi-
denamiento textual de las narrativas periodísticas e históricas.
Palabras clave: periodismo, reportaje, historia, historiografía, los cientificamente, portanto, é preciso uma
narrativa. “grande finesse de linguagem”; ou seja, um
Fact, plot and narrative: a dialogue between Journalism and His-
ajuste sensível do laço que une a percepção
toriography do historiador à narração da História. “Onde
Abstract: Can discussions about the narrative in History contribu- calcular é impossível, impõe- se sugerir”,
te to the problematization of the journalistic narrative? What are
the troubling questions for historians and in which manner can (Bloch, 2001) propôs o criador dos Annales.
communicologists help thinking about epistemological problems A História é, acima de qualquer coisa,
involving constructive narrative and the organization of the web
of facts? This article intends to cross theoretical references from uma narrativa de eventos, define Paul Vey-
both areas, aiming at the verification of eventual interdisciplinary ne. E como qualquer narrativa, ela seleciona,
“intersection points” between these scientific fields, specially re-
ferring to textual linkage of the journalistic and historic narrative.
simplifica, organiza, “faz com que um século
Keywords: journalism, reportage, history, historiography, narrative. caiba numa página”. A História não se cons-

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tituiu devido a algum jeito especial dos seres Em suma, apropriando- nos de uma fe-
humanos; ela tornou-se o que é porque es- liz metáfora de Paul Veyne, compreendemos
colheu um certo modo de conhecimento. É que a história não-factual foi “uma espécie
importante observar que esse modo é a pró- de telescópio que, mostrando no céu milhões
de estrelas além daquelas que os astrônomos
antigos conheciam”, nos fez compreender
Um corte de vida que que a organização do céu estrelado em uma
o historiador tomou, série de constelações é um procedimento de
segundo sua alta carga subjetiva.
conveniência, em Sabendo que, para evitar a dispersão de
singularidades e uma indiferenciação geral,
que os fatos têm seus
é necessário haver uma “escolha” em Histó-
laços objetivos e sua ria, é preciso também enfatizar, como ensina
importância relativa Paul Veyne, que os fatos não existem isolada-
mente: eles são inter-relacionados. O esforço
do trabalho historiográfico consiste exata-
mente em relacionar as causas e reencontrar
pria condição de organização do estudo, pois essa organicidade. Mas é preciso ficar claro
o campo geral da história “em carne e osso” que, se a opção pelo assunto é livre, dentro
é inteiramente indeterminado. E isso signi- daquele assunto escolhido os fatos e suas co-
fica que a História não possui, a priori, uma nexões são o que são, e nada poderá mudá-
articulação natural; é preciso que os historia- los. A verdade histórica não é relativa, nem
dores, em cada época, exerçam a liberdade de inacessível.
recortá- la ao seu modo.
Assim, o conceito de “trama”, segundo
Um conceito particularmente provocador
Veyne, refere-se justamente a esse tecido da
impôs novos problemas a esta questão: trata-se
História, a essa costura “muito humana e
da noção de “não- factual”. Veyne (1985) expli-
muito pouco ‘científica’ de causas materiais,
ca que o não- factual são todos os eventos ainda
de fins e acasos; de um corte de vida que o
não consagrados como tais; em outras palavras,
historiador tomou, segundo sua conveniên-
eventos cotidianos portadores de uma histori-
cia, em que os fatos têm seus laços objetivos
cidade da qual não temos plena consciência
e sua importância relativa”. Para Veyne, a
como tal. Se um acontecimento é conhecido
palavra “trama” tem a vantagem de lembrar
apenas mediante indícios, não podemos negar
que qualquer fato do dia-a-dia é, virtualmente, que o objeto de estudo do historiador é tão
indício de algum evento – “quer esteja catalo- humano quanto um drama ou um romance.
gado, quer durma, ainda, na floresta do não E assim como no jogo da escrita, essa trama
factual”. Assim, haja visto essa aparentemente não se organiza, necessariamente, em uma
inextricável realidade, a História-disciplina seqüência cronológica: ela pode passar de um
constituiu-se através de respostas afinadas a plano a outro, pode conter digressões e todos
indagações específicas; pois é impossível, ma- os demais recursos próprios da narrativa.
terialmente, fazer todas as perguntas possíveis. Em História, como no Teatro, é impos-
Com isso, concluímos que a História sempre sível mostrar tudo; não porque isso ocupa-
contém em seus ingredientes uma alta dose de ria muitas páginas, mas porque não existem
subjetividade, pois a opção por um assunto e partículas factuais completas de sentido, ou
a preferência por um determinado itinerário fato histórico elementar. É impossível des-
de pesquisa, levando-se em consideração uma crever uma totalidade, e toda descrição é ne-
série limitações objetivas, não deixa de ser uma cessariamente seletiva. Para usar a metáfora
livre escolha do pesquisador. de Veyne, o historiador nunca faz o levanta-

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mento do mapa factual; ele pode, no máxi- Já os “acontecimentos” não são coisas,
mo, “multiplicar as linhas que o atravessam”. objetos consistentes, substâncias: são um
O objeto de estudo nunca é a soma total de corte que realizamos livremente na realida-
todos os fe nômenos observáveis num dado de. Acontecimentos não apresentam uma
momento ou num lugar determinado, mas unidade natural. Tampouco podemos cor-
somente alguns aspectos escolhidos. Con- tá-los conforme suas articulações, pois eles
forme a questão que levantamos, a mesma não as possuem. O acontecimento, tal como
situação pode conter um certo número de o historiador escreverá, não é uma monta-
distintos objetos de estudo. gem das visões parciais de testemunhos dife-
O fato não é nada sem sua trama. E se um rentes: é uma escolha crítica daquilo que as
mesmo acontecimento pode ser disperso por testemunhas viram. O historiador distingue,
várias tramas, inversamente, dados perten- nas testemunhas e documentos, o aconteci-
centes a categorias heterogêneas – o social, mento tal como seu discernimento o esco-
o político, o religioso – também podem te- lheu. É por isso que um acontecimento ja-
cer-se em um mesmo acontecimento. Veyne mais coincide com a versão de seus atores e
menciona a teoria dos “fatos sociais totais”, testemunhas.
de Marcel Mauss, para argumentar que, na Finalmente, Veyne afirma que, já que
verdade, as categorias tradicionais de enqua- tudo é histórico, a história será o que nós
dramento da história sempre acabam por escolhermos; mesmo porque, admitir que a
mutilar a realidade. história é subjetiva não implica em afirmar
Uma trama não deve ser confundida com que seja arbitrária. “Restará que, tudo o que
determinismo, como se partículas de uma as substâncias homens fazem na rua, qual-
população reagissem com moléculas de in- quer que seja o modo considerado, é perfei-
vasores e realizassem qualquer síntese ine- tamente objetivo”.
xorável. Da mesma forma, Veyne argumenta
que não existe um “sentido da história”, ou História: construção e narrativa
seja, o curso dos acontecimentos não cami- Os historiadores Eric Hobsbawn (1998) e
nha em uma rota traçada. É o historiador Peter Burke (1992) observaram atualmente
quem escolhe o itinerário para descrever um um ressurgimento da “História narrativa”
campo factual, e todos os campos escolhidos, após um declínio da História do tipo ana-
em princípio, são válidos. No entanto, é pre- lítica, explicativa, “científica” e generali-
ciso observar que a configuração do terreno zante. Esse declínio é atribuído a uma certa
factual é real. Tomando dois historiadores o desilusão com os modelos essencialmente
mesmo caminho, ambos verão o terreno da econômico-deterministas de explicação que
mesma maneira “ou discutirão, muito obje- dominaram a historiografia no pós-guerra.
tivamente, qualquer incompatibilidade”. Além disso, a redução da intensidade do en-
Portanto, os historiadores narram tra- volvimento ideológico dos intelectuais e o
mas, que são tantas quantos forem os itine- relativo fracasso da “História quantitativa”
rários traçados livremente por eles, através em apresentar resultados parecem ter contri-
do campo factual bem objetivo. Nenhum buído para esse descrédito.
historiador descreve a totalidade desse cam- De fato, como explica Hobsbawn, os vin-
po, pois um caminho deve ser escolhido e te anos que se seguiram à Segunda Guerra
não pode passar por toda parte. Assim, o fato Mundial testemunharam um evidente des-
é constituído no cruzamento de itinerários prestígio da História Política, religiosa e das
possíveis. E mais: o mesmo fato, que pode ser “idéias” na construção da História. Conse-
a causa profunda de um itinerário dado, será qüentemente, ganharam relevo a História
incidente ou detalhe de um outro caminho. sócio-econômica e suas tentativas de produ-

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zir uma explicação coerente da mudança do imperadores”. Para Hobsbawn, essa “vasta
passado histórico em termos de “forças so- ampliação do campo” aumenta de fato a di-
ciais”. Peter Burke, em A escrita da História, ficuldade técnica de escrever História. Assim,
descreve o histórico dessa preferência pela como registrar com eficiência essas comple-
“análise das estruturas” em lugar da “narra- xidades? A resposta parece localizar-se nas
ção histórica”. Na verdade, como observou diferentes formas que os historiadores têm
Burke, a crítica à chamada “História dos experimentado para representar essa reali-
acontecimentos” (histoire événementielle) era dade – e entre elas, aquelas que recorrem a
um elemento importante do programa dos antigas técnicas da literatura e nos modernos
Annales, de Lucien Frebvre e Marc Bloch. recursos audiovisuais. “Naturalmente isso é
Mais tarde, Braudel igualmente defenderia muito mais do que um problema técnico de
que os historiadores deveriam considerar as apresentação, embora também o seja”, pon-
estruturas mais seriamente que os aconte- dera o historiador.
cimentos. Os eventos eram considerados “a Evidentemente, a questão não é ponto
superfície do oceano da história”, e a Histo- pacífico entre as correntes divergentes. Os
riografia tornou-se cada vez mais preocupa- historiadores estruturais argumentam que
da com problemas e estruturas. a narrativa tradicional não consegue captar
Porém, para Burke, tem havido sinais de os aspectos mais importantes do passado, e
que a narrativa histórica está realizando um que é naturalmente incapaz de conciliar a
retorno. Hobsbawn também não deixa de estrutura econômico-social à experiência
mencionar que historiadores marxistas, por e os modos de pensar das pessoas comuns.
exemplo, chegaram mesmo a escrever longos No caso da narrativa de acontecimentos po-
trabalhos sobre o “papel dos mitos das raí- líticos, parece aos críticos quase impossível
zes nacionais”. Ele declara não estar certo de evitar, na História narrativa, a ênfase nos
que isso representa a volta da “História nar- atos e decisões dos líderes. Segundo esses
rativa”, compreendida como “a ordenação críticos, o historiador narrativo é forçado a
cronológica do material em ‘um único rela- escolher entre omitir as entidades coletivas
to coerente, embora com subenredos’ e uma ou personificá-las – o que, para Huizinga, é
concentração ‘no homem e não nas circuns- uma figura de retórica que os historiadores
tâncias’”. No entanto, é certo que historiado- devem evitar, pois a personificação passaria
res parecem não mais opor-se com tamanha a sugerir um consenso onde na verdade exis-
ferocidade à anteriormente tão criticada tem grupos em conflito. No caso da História
“História factual” ou a “História biográfica”. militar em particular, a narrativa tradicional
Outros, como afirma Burke, chegam a defen- das batalhas costuma levar a conclusões er-
der expressamente que a função do historia- radas com seu “alto foco sobre a liderança”
dor é contar uma história. Para Paul Veyne, e sua “redução dos soldados a peões”. O pró-
por exemplo, a História é, acima de qualquer prio Burke aponta problemas de uma obra
coisa, “uma narrativa de eventos”. de Ryan sobre o “Dia D”, afirmando que o
Hobsbawn sugere que um dos motivos livro, apesar de transmitir bem o “sentimen-
dessa mudança seja o notável alargamento to” das batalhas, é deficiente porque as expe-
do campo da História nesses últimos vinte riências dos participantes parecem não ter
anos, caracterizado sobretudo pela crescente coerência.
influência da “história social”, que abrange Por outro lado, os defensores da narra-
em seu corpo de pesquisa desde “mudanças tiva observaram que a análise das estrutu-
no físico humano” até o “símbolo e o ritu- ras é estática e, portanto, em certo sentido,
al”, direcionando seus questionamentos para não-histórica. Além disso, acusam a História
a vida de todas as pessoas, “de mendigos a estrutural de ser demasiadamente reducio-

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nista e determinista. Assim, sem se estender literário. Para Burke, um dos principais sen-
na crítica da história estrutural, Burke pre- tidos de beber nas fontes literárias é a cons-
fere propor a superação do confronto entre ciência de que as velhas formas tornaram-se
narradores e analistas para sugerir a integra- inadequadas aos propósitos narrativos na
ção da narrativa à análise, relacionando mais complexa contemporaneidade.
intimamente os acontecimentos locais às
mudanças estruturais na sociedade. E o pri-
meiro ponto parte de uma crítica a ambos os Os defensores
lados, que defendem, cada um do seu ponto da narrativa
de vista, a suposição falsa de que distinguir observaram que a
“acontecimentos” de “estruturas” seja uma
análise das estruturas
questão fácil ou evidente por si mesmo. Para
acentuar a indistinção, Burke nota que ten- é estática e, portanto,
demos a utilizar o termo “acontecimento” de em certo sentido,
uma maneira muito vaga ao referirmo-nos não-histórica
não somente a eventos que duraram poucas
horas, mas igualmente a processos desenro-
lados durante vários anos.
Burke argumenta que a volta da narrati- Assim, Burke sugere que poderia ser
va na Historiografia contemporânea implica possível tornar os conflitos mais inteligíveis
em algumas particularidades. Mencionando seguindo-se o modelo dos romancistas que
a obra de Duby e Ladurie, por exemplo, ob- contam suas histórias partindo de mais de
serva que esses historiadores, ao movimenta- um ponto de vista. Cada vez mais, os his-
rem-se na direção da narrativa histórica, não toriadores percebem que o trabalho histo-
riográfico não é capaz de reproduzir “o que
focalizaram os acontecimentos particulares
realmente aconteceu”, mas necessariamente
por si sós mas, sobretudo, “pelo que reve-
representa esses acontecimentos através de
lam sobre a cultura em que ocorrem”. Mas,
um ponto de vista. Assim, narradores históri-
além disso, um ponto importante de argu-
cos precisam encontrar um modo de se “tor-
mentação de Peter Burke a favor da narrati-
narem visíveis” em sua narrativa, advertindo
va assenta-se sobre a superação da noção de
o leitor que o historiador não é onisciente ou
“narrativa tradicional” pelos revolucionários
imparcial, e que outras interpretações, além
procedimentos da “narrativa moderna”.
daquelas apresentadas, são possíveis.
Um debate que ocorreu nos EUA nos
A narrativa literária ensina também que,
anos 1960 ocupou-se com seriedade do tipo se um modo específico pelo qual se dá o des-
de narrativa a ser escrita na História. Kra- fecho da história ajuda a condicionar a in-
cauer sugeriu que a ficção moderna, mais terpretação do leitor, pode ser valioso pro-
especialmente a “decomposição da conti- porcionar finais alternativos e tornar a obra
nuidade temporal” em Kafka, Joyce, Proust histórica mais “aberta”, no sentido de enco-
e Virginia Woolf oferece um desafio e uma rajar os leitores a chegarem às suas próprias
oportunidade aos narradores históricos. conclusões. Assim, um novo tipo de narra-
Hayden White, por sua vez, acusou a pro- tiva poderia corresponder às questões dos
fissão histórica de negligenciar as reflexões li- historiadores estruturais, ao mesmo tempo
terárias de sua própria época, “incluindo um em que apresentaria um melhor sentido do
sentido de descontinuidade entre os aconte- fluxo do tempo do que proporciona a escrita
cimentos no mundo e sua representação sob tradicional.
a forma narrativa”, e de continuar a viver no O antropólogo Clifford Geertz cunhou
século dezenove, a época áurea do “realismo” a expressão “descrição densa” para uma téc-

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nica que representaria a cultura do outro mas próprios, sobretudo os relacionados à


através de uma descrição precisa e concreta ligação entre micro-história e macro-histó-
de práticas ou acontecimentos particulares. ria, assim como as relações entre os detalhes
Burke propõe a reflexão sobre o problema locais às realidades gerais. Sahlins defende
de fazer uma narrativa densa o bastante mesmo que há um relacionamento dialéti-
co entre os acontecimentos e as estruturas.
Assim, visões retrospectivas, pontos de vis-
ta múltiplos, cortes narrativos, alternâncias,
Muitos romances intertextualidades e digressões entre cena e
importantes organi- história são técnicas literárias que podem
zam sua narrativa em ajudar os historiadores em seu ofício de re-
torno do impacto das velar o relacionamento entre acontecimen-
mudanças estruturais tos e as estruturas.
em uma determinada Hayden White apresenta o problema da
narrativa histórica através de uma perspecti-
sociedade
va eminentemente provocadora. White ques-
tiona: “Qual é o status epistemológico das
explicações históricas, quando comparadas a
para lidar não apenas com a seqüência dos outros tipos de explicações que poderiam ser
acontecimentos e intenções dos atores, mas oferecidos para esclarecer a matéria de que
também com as estruturas. Mais uma vez, a se ocupam comumente os historiadores?”.
inspiração da obra de ficção. Muitos roman- Em outras palavras: “Que autoridade po-
ces importantes organizam sua narrativa em dem os relatos históricos reivindicar como
torno do impacto das mudanças estruturais
contribuições a um conhecimento seguro da
em uma determinada sociedade vivenciada
realidade em geral e às ciências humanas em
através da experiência de alguns poucos per-
particular?”
sonagens. Assim, historiadores parecem ne-
White considera as narrativas históricas
cessitar de suas próprias “técnicas ficcionais”
como “ficções verbais” cujos conteúdos são
para suas “obras factuais”.
tanto “inventados quanto descobertos” e cujas
Burke aponta alguns caminhos. A “mi-
formas têm mais em comum com seus equi-
cro-narrativa” ou “micro-história” — a nar-
valentes na literatura do que com os seus
ração de uma história sobre pessoas comuns
correspondentes nas ciências. Assim, para
no lugar em que estão instaladas — tem ge-
rado relevantes trabalhos historiográficos, e White, quando o projeto de um historiador
alguns paradigmáticos, como os de Cipolla alcança certo nível de abrangência, ele se tor-
e Ginzburg. Burke pondera que a redução na mítico na forma e, assim, se aproxima do
na escala não densifica, em si, a narrativa. “A poético na estrutura. Mencionando Frye, ele
questão é que os historiadores sociais vol- refere-se inclusive a diferentes tipos de mi-
taram-se para a narrativa, como um meio tos operativos que seriam estruturadores das
de esclarecer as estruturas”, explica. Assim, narrativas históricas: “mitos românticos”,
essas micro- histórias podem ser encaradas baseados numa busca (ou peregrinação) de
como um “drama social”, no sentido em uma Cidade de Deus ou de uma sociedade
que os antropólogos utilizam o termo: “um sem classes, “mitos cômicos”; “mitos do pro-
acontecimento que revela conflitos latentes gresso mediante evolução ou revolução”;
e assim esclarece as estruturas sociais”. Evi- “mitos trágicos”, de declínio e queda; e final-
dentemente, é preciso ponderar que a mi- mente “mitos irônicos”, de recorrência ou de
cro- história não apresenta soluções para catástrofe casual. White conta que Frye con-
todos os problemas, além de gerar proble- cebe que as ficções consistem parcialmente

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em sublimados de estruturas míticas arque- experiências. O Jornalismo é uma forma de


típicas. “Estas estruturas foram deslocadas conhecimento e de mediação social que nos
para o interior de artefatos verbais de modo coloca em relação com as realidades e os se-
a servir de sentidos latentes deles.” res humanos no mundo atual. No presente,
Segundo Frye, o sentido fundamental de mas em um presente onde estão fortemente
todas as ficções, o seu conteúdo temático, ligados nosso passado e o possível futuro.
consiste nas “estruturas de enredo pré-gené- De acordo com a pesquisadora Cremilda
ricas”, da qual a história é uma exemplifica- Medina, podemos dizer que os métodos gi-
ção. E enxergamos o “ponto” de uma história ram em torno ao signo da relação que passa
quando lhe identificamos o “tema” (dianoia) obrigatoriamente por uma definição ética
que a transforma numa “parábola ou fábula (humanização do discurso da atualidade),
ilustrativa”. No entanto,White defende que pela construção de técnicas mediadoras (o
as histórias conseguem parte de seu efeito diálogo possível), iluminadas pela pesquisa
explicativo graças a uma operação que ele estética (dos códigos burocráticos aos códi-
chama de “urdidura de enredo”, ou seja, a gos criativos, reveladores). É que o signo da
codificação dos fatos contidos na crônica em relação é, antes de tudo, cultural. Para Medi-
forma de componentes de tipos específicos na, trata-se, portanto, da produção de senti-
de estruturas. dos perante os acontecimentos da realidade
Collingwood, prossegue White, dizia que que nos cerca. O jornalista tem diante de si
o historiador era sobretudo um contador de a responsabilidade autoral de criar, renovar
estórias. Ele afirmava que a sensibilidade his- ou simplesmente administrar os significa-
tórica se manifestava na capacidade de criar dos dessa realidade vocalizados ou não por
uma história plausível a partir de uma sele- fontes de informação. Como diz Jacques Le
ção de fatos que, na sua disposição não-pro- Goff a seus parceiros da História, diante do
cessada, carecia absolutamente de sentido. acontecimento (l´évènement ), o historiador
Assim, o historiador necessitaria do que cha- narra o fato histórico (le fait historique). Da
mou de “imaginação construtiva”, um meca-
mesma forma, a comunicação social aconte-
nismo que funcionaria mais ou menos como
ce no domínio da produção de sentidos.
a imaginação apriorística de Kant, quando
Mas o fato que em primeira instância
ele nos diz que, embora não possamos per-
se nos aparece como coisa ou ação feita ou
ceber simultaneamente ambos os lados do
aquilo que realmente existe, que é real, na
tampo de uma mesa, “podemos estar certos
verdade é um fenômeno passível de obser-
de que ela tem dois lados, já que tem um lado,
vação suscetível de descrição ou compreen-
porque o próprio conceito de um lado impli-
são e que se manifesta à consciência, tecido
ca pelo menos um outro.”
pelo qual o ser humano expressa sua relação
com mundo e, posteriormente, em relação
Os métodos das narrativas
aos chamados estados interiores, subjetivos,
Mas o pano de fundo de toda esta dis- criando a possibilidade de níveis mais altos
cussão sobre a História são as maneiras ou de integração ou de conhecimento. E o fato
formas como se chega ao tecido da narrativa; como acontecimento é aquilo que acontece,
ou seja: um problema de métodos. Pode- se que passa a ser realidade. Acontecer é um
dizer que o Jornalismo é a narrativa da con- devir ou transformação incessante e perma-
temporaneidade e especialmente a reporta- nente, é dizer, todos os tempos em um tempo
gem é a História da atualidade. Mas como simultâneo. Por isso a importância do verbo
se constrói essa História? Como se tece a reportar no Jornalismo.
trama dessa atualidade? As narrativas nos O verbo reportare [do latim] significa
colocam em contato com nossas próprias transmitir, descobrir, anunciar, trazer novas.

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Re [do latim] antepõe-se a verbos e designa procedimentos, técnicas de trabalho e pes-


movimento para trás, aí está o passado. Por- quisa social. Ela “aprofunda as causas, ex-
tar é carregar consigo. Aqui temos o presente plica os detalhes, analisa os fatos, reproduz
caminhando para o futuro. Repor é recolo- o ambiente” (Cabrera, 1982:5). Nela, estão
car, reconstituir. Assim, reportar é revolver presentes as observações, vivências, desco-
sobre si. O termo jornalístico repórter tem brimentos. Mistura com sabedoria a inda-
sua origem nos rapportisti de Veneza. O re- gação minuciosa, a pesquisa e a dimensão
pórter porte la parole (toma a palavra) para estética com todos os seus recursos narrati-
nos levar de volta. vos. Ela é uma síntese de múltiplas determi-
À portée de la voix (ao alcance da voz) nações para chegar à essência dos fatos. Por
uma palavra antiga, reportare, vira uma ex- tudo isso se converteu no gênero mestre do
pressão nova: news report em inglês, reporta- jornalismo no século 20. Esta forma de inda-
ge em italiano e francês, reportaje em espa- gação de contextos sociais e de escrita, que
nhol, reportagem em português. Porta letras, tem como características a imersão, a voz, a
porta-voz ou, ainda porta vida, o neologis- exatidão e o simbolismo, deve ser concebida
mo traz uma hermenêutica, porque ele mes- como uma narração detalhada de situações
mo é uma arte da interpretação e compreen- e conversas da vida cotidiana dos seres hu-
são; já não dos textos sagrados e da História, manos que habitam em um espaço e em um
porém da vida mesma. Para interpretar, pri- tempo. Ela parte do fato verídico, procuran-
meiro temos que compreender, e para isso, do as explicações mais sutis, empreendendo
precisamos mergulhar no Ser Humano. O uma viagem de retorno até encontrar uma
reportar encerra em si uma paixão: o desafio composição criativa com suas múltiplas vo-
de conhecer, descobrir e relatar, não só com zes. Como pesquisa, pode ser considerada
o cérebro, também com o coração, todos os “uma atividade lúdica que apanha diversas
sentidos, e nos múltiplos tempos e espaços. perspectivas em contraponto, exacerba dina-
Eis outra forma de reviver o acontecido e de micamente os contrastes e nos faz descobrir
fazer história. novas maneiras de ler ou de ver o já visto ou
O relato (narração e descrição) nasceu lido” (Ferrara, 1996:12).
com o Ser Humano... Sagas, lendas, tradi- Na década de 1960, a reportagem alcan-
ções, histórias, contos, são a quintessência çou grande ressonância, ao passar da sim-
dos povos e compõem a História do Mundo e ples notícia diária à amplitude por meio da
os variados saberes. As palavras estão conos- humanização, ao posicionamento do fato
co desde sempre: como gemido, grito, fonia imediato no seu contexto e à reconstituição
e voz. Elas, primeiro orais e depois escritas, histórica. Nesta época se experimentaram,
contam a saga da viagem, ficam e constroem de uma forma mais ampla, diversas manei-
a memória de mulheres e homens que não ras de fazer reportagem, e se começaram a
se conformam em perder a vida, tentando procurar as bases teóricas do chamado Jor-
converter o temporário em eterno. Em busca nalismo interpretativo, que na reportagem
de viver eternamente no túnel do tempo, via- tiveram grande aplicação: “A teoria da inter-
jamos da narração oral de Homero (apesar pretação, uma das abordagens da teoria do
de ter legado um testemunho escrito de sua conhecimento, é a fonte mais adequada para
época, como A Ilíada), passando pelo alfabe- dar mais solidez ao conceito de Jornalismo
to, a escrita à mão, a imprensa – e com ela a interpretativo. Mas ninguém se preocupou
notícia impressa –, até a reportagem, gênero em ligar a manifestação técnica à posição
jornalístico por excelência. conquistada pelo conhecimento. O estudo
Desde 1900, na reportagem concretizou- de Nietzsche, Freud e Marx é a base de uma
se uma redefinição da escrita jornalística, de teoria da interpretação que pode fundamen-

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tar os limites técnicos da atividade jornalísti- nais (Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Es-
ca” (Medina e Leandro, 1973:5). tado de S. Paulo, O Globo, Folha de S.Paulo
Os jornalistas desenvolveram as técnicas e O Jornal), tentando encontrar a reporta-
de captação do realismo, para fazer da nar- gem interpretativa. Os pesquisadores, depois
rativa da reportagem uma alternativa dife-
rente. Mas em essência que faz o repórter?
Apropriar-se do mundo e descobrir a rea- O repórter é um leitor,
lidade. O repórter é um leitor, um historia-
um historiador
dor da realidade: não a recebe consolidada
e explicada, não a recebe interpretada; a ele
da realidade: não a
cabe encontrá-la, e a encontra nos lugares recebe consolidada e
menos divulgados, muitas vezes nos mais explicada, não a recebe
esquivos. E encontrá-la é o mesmo que ex- interpretada; a ele
plicá-la, ambas funções correm paralelas, e cabe encontrá-la
elas a sua vez devem entroncar com as raízes
subjetivas. Busca-se o que se há de encontrar.
O mesmo que o historiador. Em nossa pers-
pectiva, podemos tranqüilamente dizer que de seu detido estudo, chegam à conclusão:
o repórter caminha também por esse rumo, “(...) a nova tendência, a de tecer o presen-
para encontrar a realidade nos lugares me- te além de descrevê-lo sucintamente, está se
nos divulgados. Esta semelhança, uma vez implantando no Jornalismo brasileiro. Co-
mais, nos mostra que em História e Jornalis- meçou com uma renovação tímida de con-
mo existem múltiplos diálogos; e, diga-se de teúdo. Aliou-se a uma série de circunstâncias
passagem, tanto nela como nele, o processo externas ao Jornalismo — a falta de tempo
do homem moderno como uma delas — e
de conhecimento “demanda um olhar lúcido
procurou uma linguagem mais apropriada”.
sobre fatos brutos. Um olhar generoso tam-
(Medina E Leandro, 1973:137).
bém, que respeita as coisas pelo que são, e
Hoje, na reportagem, estão presentes a
que tenta apreender qual pode ser sua lógica
Psicologia Social, a Filosofia, a Sociologia,
interna” (Maffesoli, 1996:10).
como também as técnicas narrativas trazidas
No fundo, a filosofia que corresponde à
da literatura, oferecendo ao repórter histo-
procura da realidade na reportagem, para
riador e ao leitor as ilimitadas possibilidades
fazer dela uma narrativa histórica e estética,
do gênero. Todos esses recursos se fundem
está vinculada ao reconhecimento do outro,
nas mãos do repórter para levar os ensaios
que pode acontecer através de mil manei- sociais por novos caminhos. No entanto, as
ras a partir do cotidiano, da atualidade, dos memórias e as lembranças nos levam das
contextos sociais e culturais, da história dos pontas dos dedos ao fundo do coração, para
fatos e do subjetivo do ser humano, porque ler a vida real em forma de história. Neste
este último também forma parte da vida real. olhar se faz a “narrativa da contemporanei-
Com tudo isso, se faz o tecido básico e o re- dade” (Medina, 1996:10) forma de conheci-
pórter elabora a reportagem. “Só a partir de mento com uma complexa lógica simbólica
uma Teoria do Conhecimento transdiscipli- que lê a vida como uma “viagem etnográfi-
nar e aí inserida a comunicação social e as ca”. Poder-se-ia afirmar que praticar a repor-
narrativas da contemporaneidade, como o tagem é como fazer a antropologia do pre-
Jornalismo, é que se visualizam noções em sente. Por isso, a reportagem dos nossos dias
processo de definição” (Medina, 1996: 211). deve procurar novos métodos para tornar
Na década de 1970, Cremilda Medina e as histórias mais próximas do cotidiano das
Paulo Roberto Leandro analisaram seis jor- pessoas, constituindo a linha de interpreta-

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ção que coloca em forma de diálogo as di- realidade, emoção e razão, além das fron-
versas vozes. teiras das disciplinas tradicionais e fazendo
A reportagem é a palavra viva, por isso história e reportagem estéticas. Pensando a
quando Tolstoi disse: “Pinte a sua aldeia e descontinuidade ou a raridade dos fatos hu-
será universal”, mostrou-nos o caminho da manos na diferença como condição de alte-
humanização para encontrar o geral no par- ridade. Aqui como na política, como propõe
ticular e retratar o cotidiano; só que o cha- Veyne: “É preciso desviar- se de ‘a’ política,
mado retrato não pode ser uma mera foto- para distinguir uma forma rara, um bibelô
grafia, deve antes ser um retrato brilhante e político de época cujos arabescos inespera-
original do momento histórico em que vi- dos constituem a chave do enigma” (Veyne,
vem as pessoas das que falamos, onde fluem 1995:149-181). E Maffesoli responde:
cultura e realidade sociais. Desse ponto de vista, emoções, paixões,
Assim a reportagem passa a simbolizar o sentimentos não seriam características
tempo personificado, a transitoriedade que secundárias da ordem política, mas, ao
cria e destrói. O repórter narra o mundo a contrário o substrato de um vitalismo ir-
partir dele, de seu olhar. As ações, os verbos, reprimível que, às vezes, assumiria a forma
do político. Ficando bem entendido que o
giram em torno do presente. A reportagem
primordial no caso é o sentimento de vida,
esbarra entre os anais e a história. No início, a sensação do viver. Isso obriga- nos a foca-
só pretendia fazer narração cronológica; com lizar nosso olhar sobre os sentidos consti-
o passar do tempo se faz relato histórico, em tutivos da vida humana, e lembrar que, na
texto jornalístico. sua simplicidade, esses são incontornáveis,
A reportagem, pela sua própria origem, e que determinam a matriz de toda a exis-
tência social. (Maffesoli, 1996:83 e 84).
está sempre ligada ao registro do passado,
seja um flagrante do presente, a reportagem Assim na crônica–reportagem devem
é sempre um repor dos tempos. O repórter estar presentes esses sentimentos do olhar
encontra nas coisas simples a essência do vi- subjetivo do mundo e a perspicácia que os
ver e, com seu ângulo de observação privi- repórteres lhe imprimam, convertendo a re-
legiado, faz a reportagem em que estão pre- portagem em uma expressão de novas ima-
sentes os moradores das “modernas” cidades. gens do contexto histórico-cultural, com um
É precisamente essa essência híbrida que faz olhar (sentido) muito pessoal; por isso, tal-
da reportagem uma “espécie” de narrativa vez o escritor cubano Alejo Carpentier tenha
livre, fora dos padrões e dos “gêneros maio- afirmado: “Mas que é a história da América
res”, permitindo o aparecimento de novas toda a não ser uma crônica do real maravilho-
formas de abordar o trabalho de captação e so?” (Carpentier, 1984:79).
recriação da realidade; e demonstrando du- O ser humano historiador deve voar para
rante todos estes anos sua importância e se u outro espaço, advertindo que não se trata
valor expressivo e estético. Já que a liberdade absolutamente de fugir para o sonho ou o
estilística tem a ver com o saber saborear o irracional. Precisa mudar de ponto de obser-
mundo não só para reproduzi-lo, também vação, precisa considerar o mundo sob outra
para explicá-lo, vivê-lo e recriá-lo. ótica, outra lógica, outros meios de conheci-
Para atingir este objetivo, o repórter mento e controle. Já que as imagens da leve-
deve mudar de olhar, superar preconceitos e za que buscou não deviam, em contato com
abrir-se ao mundo para levar com seu tex- a realidade presente e futura, dissolver-se
to uma pluralidade de visões. O ser humano como sonhos... Advertindo que no universo
continua escrevendo sua reportagem de vida, infinito da História devemos “deixar de odiar
seu diálogo com o mundo, entrecruzando o o presente. Eis algo difícil para nós que esta-
subjetivo e o objetivo, lendo e recriando a mos sempre à espreita desses diversos “mun-

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dos anteriores” que fazem as delícias das ções e seu contexto cultural — sempre uma
construções intelectuais” (Maffesoli, 1996:9). criação, uma imagem vital da arte, possível
Como foi exposto, a noção de repor- caminho para o estar no mundo e a busca de
tagem tem mudado muito no mundo. No si mesmo. Caminho que, como pluralidade,
início não tinha sobrenomes. Depois, como apresenta métodos e atos de lucidez, onde os
em todo processo, vieram os “casamentos” sentidos, a paixão e a inteligência vivem em
e as “misturas”, até fazer-se literatura não- uma alquimia perpétua.
ficcional ou literatura da realidade, como a Parafraseando: reportagem (poesia) “o
chama o jornalista norte- americano Gay Ta- que meu inconsciente me grita” (Mário de
lese. Agora, este plurigênero, que não é um Andrade); “a descoberta das coisas que eu
conceito fechado, sim uma noção aberta, nunca vi” (Oswald de Andrade); “a ida ao
complexa e multidisciplinar, se interessa pelo fundo do desconhecido para encontrar o
acontecimento e suas conexões, quer dizer, novo” (Baudelaire). (Lyra, 1986: 6).
seus antecedentes, suas múltiplas significa- (artigo recebido fev.2012/ aprovado mai.2012)

Referências

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