O conceito de “regime de historicidade” de François Hartog pretende ser
uma “ferramenta heurística”, de acordo com suas palavras, para compreender “não o tempo, todos os tempos ou a totalidade do tempo, mas principalmente os momentos de crise do tempo, aqui e lá, quando vêm justamente perder sua evidência as articulações do passado, do presente e do futuro” (p. 37), ou seja, é um conceito construído pelo historiador, que não deve ser visto de maneira mecânica, e não coincide necessariamente com as épocas, aproximando-o mais do “tipo-ideal” de Max Weber. Dessa forma, e de maneira bastante resumida, correndo o risco de simplificar e trair o pensamento do autor, Hartog faz uma longa distinção em seu livro Regimes de historicidade: presentismo e as experiências do tempo (original: 2003/ publicação no Brasil: 2013) entre dois regimes de historicidade, o antigo e o moderno, que não só contrastam entre si, mas também do atual regime de historicidade presentista que nos interessa mais de perto. O antigo (que prevaleceu da Antiguidade até o Renascimento) seria aquele da história como “mestra da vida” no qual o passado por ter passado era um exemplo e criava uma relação de autoridade com o presente e para a plenitude do presente em uma espécie de continuum temporal. O moderno regime de historicidade (a partir da Revolução Francesa até meados do século XX) rompe com essa ideia de restituição antiga por meio do passado no presente (continuidade), pois o apelo ao passado se articulava agora com a abertura para o futuro (mudança), isto é, a ideia de que o passado se separa do presente com vistas ao futuro devido a uma certa consciência de sua mudança temporal (consciência histórica). E, por sua vez, o “regime de historicidade presentista”: Historiador da história, entendida como uma forma da história intelectual, eu pouco a pouco fiz minha a constatação de Michel de Certeau, que lembrava, no final dos anos 1980, que “sem dúvida, a objetivação do passado, há três séculos, tinha feito do tempo o impensado de uma disciplina, que não cessava de utilizá-lo como instrumento taxinômico”. O tempo tornou-se tão habitual para o historiador, que ele o naturalizou ou instrumentalizou. Ele é impensado, não porque seria impensável, mas porque não o pensamos ou, mais simplesmente, não se pensa nele. Historiador atento ao meu tempo, eu, assim como muitos outros, observei o crescimento rápido da categoria do presente até que se impôs a evidência de um presente onipresente. É o que nomeio aqui “presentismo”. (...) Por exemplo, no quadro da história profissional francesa, a aparição de uma história se reivindicando, a partir dos anos 1980, como “história do tempo presente” acompanhou este movimento. Às demandas múltiplas da história contemporânea ou muito contemporânea, a profissão foi solicitada, algumas vezes intimada a responder. Presente em diferentes frentes, esta história se achou posta sob os projetores da atualidade judiciária, quando os processos crimes contra a humanidade, que tem pôr característica primeira de se haver com a temporalidade inédita do imprescritível (HARTOG, 2006, 262).
Em um regime de historicidade presentista percebe-se não apenas
ascensão de histórias do tempo presente, mas também do imperativo de uma onda memorialista em que nada deve ser esquecido, do “dever da memória” e, por extensão, do patrimônio, seu alter ego. O problema reside que em tais histórias, memórias e patrimônios o presente se torna um horizonte absoluto de explicação mesmo quando recorre ao passado ou se mostre preocupado com o futuro. O que traria, para o autor, sérias repercussões sobre a memória nos dias de hoje:
“Nossa” memória não é mais aquela, ela agora só é “História,
vestígio, triagem”. Preocupada em fazer memória de tudo, ela é apaixonadamente arquivística, contribuindo a essa cotidiana historicização do presente, já observada. Inteiramente psicologizada, a memória se tornou um assunto privado, que produz uma nova economia da “identidade do eu”. “Pertence a mim [doravante] a atividade de lembrar-me e sou eu que lembro”. Assim, “ser judeu é lembrar-se de ser, mas essa lembrança irrecusável, uma vez interiorizada, exige pouco a pouco dedicação integral. Memória de quê? No limite, memória da memória.” Enfim, essa memória opera a partir da relação com o passado na qual sobrepuja a descontinuidade. O passado não está mais “no mesmo plano”. Por consequência fomos “de uma história que se procurava na continuidade de uma memória a uma memória que se projeta na descontinuidade de uma história”. Tal como se define hoje em dia, a memória “não é mais o que se deve reter do passado para preparar o futuro que se quer; ela é o que faz com que o presente seja presente de si mesmo”. Ela é um instrumento presentista (HARTOG, 2013: 162-163, o grifo é meu). Nessa perspectiva, é tentador tomar como verdadeiro que o ensino de história teria acompanhado esses grandes “tipos-ideais” que constituem os “regimes de historicidade” e suas relações com a memória e de que hoje viveríamos o advento do presentismo no ensino de história tal como verificado na historiografia acadêmica por meio das histórias do tempo presente, do imediato, das histórias das memórias, das relações entre história e patrimônio e, mais recentemente no Brasil, entre a história e sua divulgação para públicos mais amplos (a História pública). No entanto, ao estudarmos as relações da memória no ensino na história outros efeitos, igualmente duráveis, próprios e diversos parecem resistir a essas “histórias do atual” e aos modismos da “teoria da história sobre o atual” e que, para o bem e para o mal, incidem na formação de nossos professores de história.
2. As finalidades do ensino de história no passado e a memória
Para tanto, me parece necessário retomar algumas pesquisas que tratam
das finalidades diversas que o ensino de história adquiriu no passado tanto antes quanto durante o seu processo de se tornar uma “disciplina escolar”, para tentar compreender até que ponto a relação entre memória e o ensino de história se aproxima e se distancia desses regimes de historicidade e como entender as permanências e as mudanças da memória no ensino da história em nossa contemporaneidade. De acordo com pesquisa de Annie Bruter (2005) a história nos colégios do Antigo Regime era ensinada de modo “não-disciplinar” dentro de uma concepção humanista e integradora da retórica antiga conciliando finalidades de prática de domínio da linguagem, cognitiva de aquisição de conhecimentos e religiosa de acesso à ciência e a virtude. O ensino era o da imitação de textos-modelos (“lições-modelo”) que visavam o domínio das línguas antigas (latim) e das técnicas (retórica e filologia). Ao explicar os textos antigos recorria-se a várias ordens de conhecimentos (gramaticais, filológicos, geográficos, históricos e até mesmo botânicos, zoológicos e mineralógicos) e a capacidade de ressaltar máximas e sentenças que deveriam enriquecer o discurso do orador. O objetivo era que formar o homem de bem que sabe falar. A finalidade retórica do conhecimento não significava que o ensino humanístico não transmitisse conhecimentos, mas eles não eram estudados por eles mesmos e não eram expostos sistematicamente (a não ser em caráter recreativo em momentos de erudição), mas a medida da leitura dos textos e em função dos conteúdos a serem explicados:
É assim que conhecimentos que dizem respeito, para nós, à história –
o desenrolar de certos acontecimentos, a descrição das instituições ou dos costumes de uma certa época – podiam ser apresentados no momento da explicação de uma poesia ou de uma obra de oratória de Cicero... Inversamente, a leitura dos historiadores antigos, que faziam parte dos programas das classes oportunizavam não tanto o estudo dos acontecimentos mas os procedimentos de escrita próprios ao historiador: mais que a própria história tratava-se conforme as finalidades gerais – as do ensino das humanidades, de aprender como escrever (BRUTER, 2005, p. 13).
Os conhecimentos necessários para compreensão das obras históricas
eram os geográficos para se ter ideia do teatro das operações e o desenrolar dos combates escritos. A cronologia era apenas um acessório de estudo, pois seu domínio era um campo “preciso” (uma “ciência” muito nova) para ser exposto em sala de aula e exigia um vasto conhecimento filológico. Já os materiais utilizados em tal ensino são advindos dos textos antigos, pois seu conteúdo é basicamente histórico, isto é, palavras, fatos, pensamentos da Antiguidade, mas que não são ordenados em função de uma cronologia, mas do grau de dificuldade linguística. Os alunos dos colégios do Antigo Regime francês tinham até um conhecimento mais profundo que alunos e mesmo professores atuais de história, porém, era um conhecimento desordenado e lacunar, não só por ignorarem o que hoje designamos de Idade Média, mas da própria época em que viviam. A história para os regentes dos colégios humanistas não era um conjunto de conhecimentos fundada como produto de uma metodologia, pois não designava um campo particular do saber, pois todo o saber da época vinha do passado como história, mas um ramo da retórica e definido por um modo específico de escrita, o modo narrativo. Portanto, não se tratava de “ensinar história”, mas de ensinar a arte de escrever. Nos parece, portanto, que a história antes de se tornar uma disciplina escolar e quando atendia a essa finalidade retórica do conhecimento se aproximava mais da concepção antiga da história como “mestra da vida”, no entanto, dentro de um contexto de transição da aprendizagem baseada no passado como auto instrutivo para e no presente ao “método instrucional de ensino” baseado na memorização de conteúdos. O historiador inglês dos currículos David Hamilton em um artigo provocativo intitulado “O revivescimento da aprendizagem?” publicado na revista Educação & Sociedade de abril de 2002, traça em linhas gerais essa alteração importante ocorrida no século XVI que ele denomina de o “aparecimento da escola moderna”:
O surgimento das palavras programa [(aprox.)1500] e currículo [1573]
assinalava a reorganização pedagógica de corpora existente de doutrina aprovada, ao passo que a atenção dada aos catecismos [(aprox.) 1540] e à didática [1613] refletiria a reorganização dessas inovações assumia-se que uma doutrina podia ser suavemente transmitida pelos ouvidos, olhos, mentes, corpos e almas dos alunos. Na sua forma mais simples, essa transformação do século XVI marcou uma transição da atenção pública da aprendizagem para a instrução. Antes da fundação de São Paulo, por exemplo, os escritos educativos europeus focalizavam o que e como as crianças deveriam aprender, enquanto, pouco depois, esses escritos davam muito mais atenção ao que e como se deveria ensinar às crianças (HAMILTON, 2002 p. 189).
Essa “viragem ou guinada instrucional” (da aprendizagem para a
instrução) a que se refere Hamilton está nos “princípios da escolarização moderna” e marcou a entrada de um método de ensino baseado na memorização na forma “catecismos” (respostas formais para questões formais) de maneira fácil e em um período mais curto de tempo de modo a cumprir o que estava disposto nos currículos, pois se tratava agora de instruir muito alunos. Portanto, o nascimento do método instrucional de memorização de conteúdos no século XVI também combinou-se com mudanças de concepções que ocorreram no século XVII quando, paradoxalmente, o ensino das humanidades clássicas eclodia com força: vitória da fidelidade monárquica põe fim às guerras de religião; o triunfo do absolutismo e paroquialização da vida mundana provocam interesse pela história nacional por meio da história das dinastias e de suas cortes; importância das práticas como critério de ortodoxia confessional acentua os fins moralizadores da educação e o uso da narração histórica como modo de interiorizar as verdades e os valores do catecismo desde a infância; no plano cultural, o progresso da produção impressa faz circular os saberes por meio da leitura para um público mais amplo e o uso de uma literatura mais mundana, atraente e de fácil acesso do que o latim e o grego; além da diversidade e especialização dos gêneros literários. Todos esses fatores confluem ainda para outra mudança no plano científico que é a elaboração de uma linha do tempo única sobre o qual se ordenam os fatos até então dispersos. Os resumos de história em latim e em francês começam a vulgarizar a aquisição da “ciência” cronológica da Renascença. Desse modo, a utilização da linha do tempo confere aos estudos históricos um novo modo de apreender os fatos por ordem de sucessão cronológica e não mais por contiguidade temática ou geográfica. Não só fornece as datas, mas coloca em evidência as lacunas na exposição dos conhecimentos, incentiva a preenche-las e contribui para a transformar a noção tempo, dando uma visão linear, o que vai minando o respeito pelos historiadores da Antiguidade. Há uma relação mais natural e direta com o passado, isto é, mais próximo e acessível, contornando os obstáculos da aprendizagem das línguas antigas, por meio da literatura de vulgarização científica, projetos ou tratados de educação e da tradução de autores antigos. Portanto, assiste-se um enfraquecimento da finalidade retórica da histórica e um crescimento do alcance moralizante da leitura dos historiadores antigos para todos os alunos. Porém, uma nova pedagogia da história autônoma e que se deu fora da escola era ainda um ensino extremamente elitizado com uma finalidade política restrita apenas à aprendizagem dos príncipes e dos “Grandes” que deveriam fornecer modelos próximos aos deles do que aos dos heróis da Antiguidade sobre assuntos do reino por meio do presente ou do passado próximo. Assinala Bruter:
Uma nova pedagogia da história surge, assim, conjugando a
aprendizagem da cronologia com o curso dialogado no qual o aluno escuta e discute o relato dos acontecimentos, que deverão ser em seguida redigidos: tal é, ao menos, a pedagogia descrita pelos preceptores dos príncipes no fim do século XVII. Quantos aos primeiros “manuais escolares” de história, não provêm da educação principesca, mas das pensões aristocráticas onde se ministravam os cursos particulares de história pelos “chambristes”. (...). Compreendemos, vendo a história assim colocada como disciplina central da educação ao mesmo tempo subtraída ao comum dos mortais, o seu estatuto marginal, inacessível no último século do Antigo Regime. Era objeto de um ensino, sobre o qual encontramos vestígios através de resumos explicitamente destinados à juventude, de exercícios públicos, até mesmo de redações dos alunos. Mas excetuando as instituições inovadoras que foram as pensões particulares e as escolas militares, esse ensino não foi, em geral, integrado ao currículo escolar – a história continuava sendo um tipo de matéria facultativa sob a responsabilidade das famílias (BRUTER, 2005, p. 18).
Contudo, houve a invenção de uma pedagogia da história, com métodos
e materiais específicos no século XVII, mas essa invenção se fez fora do âmbito escolar e no espaço flexível da educação principesca ou do pensionato aristocrático, independente da leitura dos autores antigos, e a partir de uma apresentação contínua dos acontecimentos. Não há uma escala evolutiva que deu “origem” ao ensino de história atual, muito embora exista uma longa duração dos processos de criação e de um funcionamento de uma disciplina, em nosso caso, a constituição da história como uma matéria “ensinável”. O modo como a memória e o ensino se relacionaram nesse período não permite simplesmente enquadrá-lo em um regime de historicidade antigo na medida a concepção de história como “mestra da vida” ao se tornar ensinável também começava a conviver numa perspectiva de metodização do ensino que criava uma ideia de temporalização de conteúdos a serem ensinados em sequência (currículo), de forma memorizada (didática) e, no caso da história, valendo-se cada vez mais de textos reprodutíveis (impressos), vulgarizados (traduzidos), que tratavam de histórias dinásticas e valendo-se da cronologia. Esses seriam os aspectos que constituíram os “métodos [que ainda não eram] tradicionais” do ensino de história e que ganhariam uma nova tradução no século XIX com a criação dos Estados Nacionais e das disciplinas escolares (CHERVEL, 1988). No artigo de Arlette Medeiros Gasparello (2011), o conceito de “disciplina escolar” de história já pode ser utilizado para o seu objeto de estudo. Mostra em seu artigo a criação de uma “pedagogia da história” no final do século XIX e que se beneficiou dos intelectuais da história acadêmica e também foram professores na escola secundária, no caso, Charles Langlois e Charles-Victor Seignobos, pois se dedicaram a escrever sobre a metodologia do ensino de história e a produção de livros didáticos que, inclusive, tiveram influência nas obras didáticas de João Ribeiro e Jonathas Serrano no Brasil. A pergunta central da autora parte da constituição de uma pedagogia histórica no final século XIX e início do XX e sua relação entre a história dos intelectuais, a circulação de saberes e sua sociabilidade relacionado à história dos materiais e dos livros didáticos. Não pensa os intelectuais como “gerais” como se determinassem abstratamente o saber, mas como intelectuais específicos que atuam na sociedade. A autora evita a dicotomia entre a pesquisa histórica e o seu ensino a partir das relações entre os intelectuais da história e sua atividade docente, mostrando que historicamente participaram de maneira antropológica na constituição desses saberes. Não elimina a diferença entre conhecimento histórico acadêmico e conhecimento histórico escolar, mas pensa nas suas relações e imbricações. As fontes disponíveis são manejadas de modo a mostrar que os intelectuais da escola metódica se preocuparam com o seu ensino ao passo que os manuais escolares no Brasil se beneficiaram das preocupações com o ensino dos historiadores da escola metódica. Aqui é importante ressaltar que os livros didáticos se tornaram uma realidade na França e no Brasil desde o século XIX. As finalidades do ensino de história presente nessas produções didáticas aparecem como uma educação social, o que indicia para o surgimento de uma pedagogia própria à disciplina escolar de história, além de uma metodologia e de uma seleção de conteúdos adequados aos alunos. A história metódica representou uma ruptura com o chamado “ensino tradicional”, pois Langlois e Seignobos no seu apêndice da Introdução aos Estudos históricos (de 1898) intitulado O ensino secundário da história na França (1896) já criticavam o ensino de um grande número de fatos, a história reduzida à oralidade do professor, livros escolares apenas com quadros cronológicos, reunião de datas e nomes próprios resumindo-se na história de guerras, tratados, reformas e revoluções. Os autores propunham nesse apêndice escrito de maneira reflexiva uma organização geral baseado nas finalidades em relação à cultura do aluno; na escolha dos assuntos a partir da proporcionalidade entre conteúdos de história nacional, de outros países e histórias especiais; na ordem sobre os critérios de seleção dos conteúdos e sua sequência adequada à aprendizagem histórica; e, por fim, os procedimentos de ensino, isto é, ensinar tudo ou fazer o aluno pesquisar, como fazer usos das gravuras, como fazer compreender os acontecimentos, costumes e suas condições, etc. Propunham assim um ensino racional a partir da renovação dos materiais e métodos e não apenas de uma teoria da pedagogia histórica. Formularam tais princípios baseados em sua experiência docente. A finalidade não era mais o ensino moral tampouco o patriotismo, mas a história como instrumento da cultura social e política por meio de uma pedagogia ativa. Portanto, o professor deveria primeiro refletir sobre qual ação educativa poderia ter a seleção de um conteúdo e depois verificar os meios necessários à compreensão do aluno. A renovação dos métodos de ensino vinha acompanhada das finalidades sociais da educação. Contudo, não era mais possível ensinar a história sem três vetores básicos: o quê, o como e o para quê ensinar. Ou seja, na íntima relação entre a história e a pedagogia, pois a educação social proposta por esses professores/intelectuais possibilitou o movimento em direção a uma educação voltada à cidadania. Embora os autores/professores/intelectuais da escola metódica pudessem ser vistos dentro desse moderno regime de historicidade, isto é, com uma plena consciência temporal de distinção entre presente e o passado e da história como um singular coletivo com vistas ao futuro, principalmente relacionadas aqui com as finalidades sociais da educação, não nos parece que o método instrucional tenha desaparecido no ensino de história europeu tampouco brasileiro do século XIX até atualidade para dar lugar aos métodos ativos de ensino que supostamente trouxeram um “revivescimento da aprendizagem”, repetindo aqui o título irônico do artigo de David Hamilton. Se, de fato, Langlois e Seignobos podem nos surpreender pela atualidade de suas preocupações com a história ensinada, nos surpreende ainda mais que suas ideias e práticas, mesmo tendo circulado na Europa, e no Brasil até meados dos anos 1960, não alterarem o quadro do ensino de história em grande parte das escolas de ensino primário e secundário baseados nos “catecismos” e que hoje são renovados pelos “testes de múltipla escolha” (BITTENCOURT, 2018).
3. Que presente, que memória e qual ensino de história?
Contudo, não quero contrariar o já sabido, isto é, que o ensino de história não tenha passado por inovações em suas práticas, metodologias e propostas curriculares mais críticas e na ampliação de suas pesquisas, sobretudo a partir dos anos 1980 no Brasil (BITTENCOURT, 2011). Ainda que muitas dessas propostas encontrassem um lastro histórico como na pesquisa realizada por Arlette Medeiros Gasparello (2008) e que práticas de ensino renovado tenham se verificado nos ginásios vocacionais e colégios de aplicação públicos nos anos 1960 (BERGAMIM, 2018), a permanência de uma concepção de método instrucional baseada na memorização de conteúdos parece ocultar as relações de poder das novas propostas de ensino e currículos baseadas na aprendizagem dos alunos. Fica parecendo que essas propostas ao empoderarem os alunos a “aprender a aprender”, e não no que o professor ensina, também não tivessem relacionados a determinados poderes – e sem qualquer compromisso com as disciplinas escolares e suas finalidades educativas –, pois, no dizer de David Hamilton:
(...) a sociedade de aprendizagem não passa de uma visão. Seus
pressupostos relativos à morte da escolaridade estão inscritos apenas nas palavras, imagens e afirmações dos fazedores de significados culturais – educadores, economistas, peritos em relações públicas, pesquisadores de mercado, escritores de discurso e políticos -, que reproduzem, reciclam e forma a opinião popular. Ora, essa visão é comercializada por órgãos que têm um alcance global e, sendo atraente, reconfortante e niveladora, ela é amplamente aceita. A linguagem da sociedade de aprendizagem projeto um sentido de redenção humana (...) [HAMILTON, 2002, p. 194].
O autor não está defendendo um retorno ao método instrucional de
ensino até porque, de fato, jamais deixou de estar presente em nossa sociedade, mas também nos alerta para o discurso de que esse “revivescimento da aprendizagem” (do aprender a aprender) também remonta aos primórdios da escolaridade moderna quando o propósito educativo era o de garantir a salvação de jovens, ainda que sua intenção fosse de ordem espiritual, mas que hoje se seculariza: “Os engenheiros de software, assim como os web designers, recorrem a uma gama cada vez maior de dispositivos para cativar a atenção e interação dos usuários da Internet. Eles são os pedagogos da aprendizagem em linha, tornaram-se os novos guardiões da ordem ‘sociodigital’. Obviamente, na medida em que um site na Web provoca as respostas desejadas, ele é um descendente digital direto do catecismo” (p. 195). Em que sentido, portanto, o ensino de história estaria nesse atual regime de historicidade proposto por François Hartog? Em que medida a memória no ensino de história deixou de ser aquela do método instrucional (de memorização de datas e fatos) e passou a incorporar esse discurso atual da sociedade de aprendizagem no qual “a memória se tornou um assunto privado, que produz uma nova economia da “identidade do eu” (HARTOG, p. 162)? Não estaríamos vivendo em uma espécie de “emparedamento” no ensino de história entre a “velha” memorização e o “novo” dever de memória que se anulam mutuamente?
4. Bibliografia:
BITTENCOURT, Circe. Abordagens históricas sobre a história escolar.
Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 36, n.1, jan./abr., 2011, p. 83-104.
__________________. História nas atuais propostas curriculares. In: Ensino de
História: fundamentos e métodos. 5ª edição revista e atualizada. São Paulo: Cortez, 2018, p. 76-120.
BERGAMIN, Fabíola Matte. Ensino de História e avaliação no ensino
secundário paulista no contexto das inovações educacionais (1957-1969). Tese de doutorado em Educação: História, Política e Sociedade. EHPS: PUC/SP, 2018.
BRUTER, Annie. Um exemplo de pesquisa sobre a história de uma disciplina
escolar: a História ensinada no século XVII. História da Educação. ASPHE/FaE/UFpel, Pelotas, n. 18, set. 2005, p. 07-21.
CHERVEL, André. História das Disciplinas Escolares: reflexões sobre um
campo de pesquisa. In: Teoria & Educação. Porto Alegre: Pannonica, n.02, 1990, pp. 177-229. GASPARELLO, Arlette Medeiros. Uma pedagogia histórica: caminhos para uma história da disciplina escolar Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 36, n. 1, jan./abr, 2011, p. 105-125.
HAMILTON, David. O revivescimento da aprendizagem? Educação &
Sociedade, ano XXIII, n. 78, abril/2002, p. 187-198.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do