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Uma coletânea de histórias da Guerra

sob o título: STALINGRADO - A Ponte para a Morte

Autor: Paul Baumgartl


ÍNDICE
A Ponte

Batismo de Fogo

Insubordinação

Dor de Garganta

A Picada de Abelha

O Tanque de Guerra

Noite Feliz

O Herói

Cercados
Stalingrado
O Autor

Como surgiram estas histórias . . . .

Coincidências existem . . .
Em meados de junho de 1995, encontrei, em um sebo em São Paulo, um
livro de bolso americano sobre a Segunda Guerra Mundial – Copyright 1945 by
Henry Steele Commager.
O livro, portanto, fora publicado meio século antes, quando a tinta da
assinatura do Coronel Geral Jodl ainda estava fresquinha na declaração de
capitulação.
Paguei um dólar pelo velho livro e comecei a ler as 570 páginas de letras
pequeninas. Valeu a pena.
Nele, um soldado alemão relata que ele e seu colega odiaram tanto os
russos que, em uma ponte que levava à Rússia, em 22 de junho de 1941
assassinaram friamente e sem aviso o sentinela russo com quem, no dia anterior,
ainda mantiveram um contato amigável.
Pois há anos também relato a meus filhos e netos o que presenciei na
ponte sobre o Rio San em Jaroslaw nesta mesma data. A minha versão que, a
despeito dos enfeites corresponde totalmente à verdade, é tão diferente da versão
do livro de bolso, que não parece tratar-se da mesma guerra.
O que importa é a correlação pessoa-guerra. Para alguns de nós, a
guerra surgiu repentinamente como uma catástrofe natural, arrancando-os de
suas profissões, seus estudos. Estas pessoas têm uma postura diferente do que o
oficial de carreira para quem finalmente chegou a hora de trabalhar
“honestamente”.
Não se pode mudar a sua própria relação pessoa-guerra. Não é num
vilarejo nos Bosques de Viena que se aprende a odiar os russos.
Eu pergunto: “De onde eu tiraria o ódio?” Nos primeiros vinte anos da
minha vida, ninguém me dissera que os russos eram maus ou detestáveis.
Encontrei o primeiro russo da minha vida na ponte sobre o Rio San. Ele não
parecia bom, nem mau – parecia ser um de nós.
Assim, decidi escrever sobre a história deste encontro – e sobre muitas
outras histórias de guerra em que não há ódio ou fanatismo, porque estes
sentimentos não existiam na minha relação pessoa-guerra.
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A PONTE . . .
A construção de uma ponte sobre um rio ou precipício é um instinto natural do Homo sapiens. É como transformar uma clava
em uma arma, ou utilizar o tronco de uma árvore como rolo para transportar cargas pesadas.
Dependendo de sua capacidade de sustentação, de sua envergadura e dos conceitos estéticos de seus construtores, as pontes
são de viga, de arcos ou em treliça. As pontes sempre foram expressão convincente do pensamento engenhoso e da criatividade
arquitetônica. Existem pontes da Idade Média que se integram à paisagem e a complementam como se fizessem parte da criação divina,
e pontes modernas de tirar o fôlego tal qual um foguete de Saturno.
Há 56 anos, a ponte sobre o Rio San, em Jaroslaw, não era uma dessas pontes. Não sei dizer como está esta ponte agora, ou
se sequer ainda existe. Em 1941, era uma ponte de madeira – uma simples “estrutura de suporte”. Duas fortes vigas longitudinais bem
apoiadas em ambas as margens, e imponentes pranchões transversais – grossos como troncos de árvore. Uma boa ponte. Não era uma
ponte de emergência, mas tampouco uma ponte que duraria eternamente. Não havia informação alguma sobre a sua capacidade de
sustentação. Ela parecia suportar o peso de um pequeno caminhão de carga.
De uma balaustrada à outra não cabiam mais de dois carros. Ao contrário de outras pontes de madeira, a ponte não balança
quando um homem a atravessa – nem mesmo calçando botas pesadas e dando firmes passos de soldado. Mesmo assim, escuta-se o
ritmo abafado dos passos, porque a pista não tem calçamento. É a ressonância das tábuas de madeira transversais cruas e talvez
parcialmente soltas que, com o seu constante tap-tap, interrompe o silêncio do calmo anoitecer do princípio de verão polonês.
Há dois homens na ponte. Eles dão vinte passos a partir da margem, aproximando-se até ficarem um de frente ao outro. E
então dão uma meia-volta e retornam novamente, repetindo este ritual até a troca da guarda.
O que vem da margem oeste veste botas de boca larga – “Knobelbecher”[1] – com calças camufladas felpudas de vincos
impecáveis e simétricos nos lados externos das pernas esquerda e direita nelas enfiadas. A túnica camuflada, igualmente cinza, porém
um pouco mais clara e abotoada até o pescoço, está presa na cintura por uma correia de cintura de couro com fivela reluzente. Na parte
dianteira, a correia é puxada para baixo por quatro cartucheiras pesadas. Elas contêm munição para o fuzil Mauser calibre 7,92 mm,
conhecido pelo soldado por “fuzil 98 K”, cuja boca aponta para trás e para cima do seu ombro direito. A alça do fuzil que passa por cima
do ombro é constantemente mantida na tensão adequada pelo cotovelo direito dobrado. Na altura do quadril há, ainda, uma baioneta
enfiada na correia de cintura, uma arma de combate próximo conhecida por este nome desde a Primeira Guerra Mundial. A túnica
camuflada tem quatro bolsos grandes nas quais poder-se-ia guardar muitas coisas, se não houvesse a ordem de que os bolsos não devem
“se abaular”. Nos dois bolsos inferiores, o soldado tem alguns maços de cigarro e, no bolso superior esquerdo, uma caneta-tinteiro – bem
escondida – e algumas cartas. É o seu escritório ambulante. Sobre a cabeça do soldado, há um capacete de aço preso por uma “alça de
queixo”. O soldado está trajando um “uniforme com capacete de aço e correia de cintura”, conforme determinação do Deutsche
Heeresdienstvorschrift – HDV[2] para o serviço de sentinela.
No soldado vindo da margem leste, o uniforme cor de ocre e marrom já revela que ele não integra o mesmo exército. O corte
do uniforme e o equipamento do russo também diferem dos do alemão. Nas pernas, a calça felpuda do uniforme está envolta por
polainas de tecido da mesma cor. A túnica camuflada do russo não tem bolsos visíveis, nem distintivos. Na cintura, ela é amarrada por
uma correia de couro com um fecho comum na frente no lugar da fivela. Na parte anterior da correia, estão penduradas duas granadas
manuais que lembram pequenos abacaxis. Sua arma, pendurada diagonalmente sobre as costas com a boca virada para baixo e para
esquerda, é uma submetralhadora PPSh calibre 7,62 mm, cujo tambor de munição comporta em torno de oitenta tiros. Por cima do
ombro esquerdo há uma sacola de pão pendurada diagonalmente até o quadril direito, com costuras que revelam divisórias internas. A
sacola de pão do russo não contém pão igual ao que conhecemos. Nada de cereais transformados em um alimento saboroso e aromático
através de elaborados processos tecnológicos, mas os próprios cereais macerados e prensados em forma de bloco. „Kasha“ – um
alimento antigo de alto teor nutritivo e pouco sabor. Em um outro compartimento da sacola de pão, o russo guardou o seu „tabaco
Machorka“ e algumas folhas de jornal. Na cabeça, ele veste um chapéu de pelúcia com protetores de orelha presos acima da cabeça.
Os dois soldados vêm de mundos diferentes. A ponte, com menos de quarenta passos de comprimento, não apenas transpõe o
rio, como também o abismo entre contrastes políticos, éticos e culturais. A cor de terra do russo remete à idéia do soldado bem
camuflado, fundido com a natureza – primitivo, porém perigoso; por outro lado, o cinzento, cor de aço com sua arma de alta precisão
reluzente e a roupa de couro lustrosa caracteriza o soldado instruído e de alta formação tecnológica. O Alemão parece tecnicamente
superior ao Russo; contudo é sabido que, para cada soldado alemão, existem três russos.
Apesar de todos os contrastes, os dois não têm raiva um do outro. Em primeiro lugar porque o Império Alemão assinara um
pacto de não-agressão com a União Soviética já dois anos antes, o que os tornava uma espécie de aliados; em segundo lugar, porque a
presença de ambos ali, por mais diferentes que sejam, deve-se à mesma sina: foram arrancados de seus caminhos por forças maiores
para ficar de sentinela aqui, na fronteira russo-alemã.
Era junho de 1941. Jaroslaw, um pacífico vilarejo rural na cabeceira do Rio San, fora escolhido pelo quartel-mestre da
centésima divisão de caçadores das forças armadas alemãs como alojamento temporário para a Companhia de Estado-Maior. À época,
eu tinha 21 anos, era cabo das forças armadas alemãs e motociclista mensageiro no Estado-Maior da Centésima Divisão. Nas carreatas,
a tarefa do motociclista mensageiro é circundar a caravana com a motocicleta como um cão ladrando, mantendo-a unida e “informando”
a parte traseira de ocorrências na parte dianteira, ou vice-versa, ou ainda enviar notícias entre partes das tropas sem contato via rádio ou
telefone.
O nosso esquadrão de motos, composto de nove motociclistas e um “capitão do esquadrão” – um sargento chamado Dankert
– havia montado „acampamento“ em uma pequena floresta de ginjeiras às margens do Rio San. Que bom que a época das ginjas já
havia acabado – elas teriam exaurido as nossas vísceras.
Havíamos partido havia quarenta dias de Bad Ischl, na região do Salzkammergut. Antes de partirmos, ganhamos novas
máquinas, NSU 250, OSL, uma moto de 250 cilindradas com dez cavalos e meio de potência a 5000 rotações por minuto, quatro marchas
e embreagem nos pés. As máquinas deixavam-nos com o ego de um avião de caça. Apenas o sargento Dankert dirigia uma BMW-R35
com quatorze cavalos de força e eixo cardã. Nós o invejávamos muito por esta máquina.
O nosso „vilarejo de barracas” – eram, de fato, barracas em que dormíamos – não ficava distante das margens do vilarejo, e
isto era bom porque, ao final do dia, os bares de Jaroslaw atraíam os soldados como imãs com o seu calor. Meio-cegos da fumaça e
surdos do barulho, ficavam sentados ou de pé com as suas cervejas e olhavam cheios de desejo para as deliciosas garçonetes polonesas,
que respondiam até às brincadeiras mais grosseiras com um simpático sorriso.
A vida aqui em Jaroslaw era, na realidade, demasiado boa. Um soldado experiente certamente teria ficado desconfiado. As
exigências de disciplina eram mínimas; a tolerância, enorme. Quando ignorávamos o toque de recolher, os policiais de campo faziam vista
grossa. Eu, pessoalmente, não pressenti nada de mau. Faltava-me experiência. A tarefa do esquadrão de motociclistas do quartel era
manter os aposentos e as máquinas em ordem. Fora isso, não havia o que fazer. Não era de se estranhar que o sargento também
escalasse os motociclistas para o serviço de sentinela.
No dia 21 de junho de 1941, eu estava escalado para o serviço de sentinela. Troca de sentinelas às 16h; às 16:05h eu estava na
ponte. Era a primeira vez que eu ficava de sentinela. Ao encontrar o russo no meio da ponte, olhamo-nos, curiosos. Ele provavelmente
tinha a minha idade – talvez até um pouco menos. Acho que sequer tinha pêlos no rosto. Sua pele era clara, e seus olhos, azuis – nem
um pouco eslavo. Não era tártaro, tampouco quirguiz – parecia-se conosco. Que bom que aqui não havia guerra; acredito que não teria
conseguido atirar nele! Depois de fitarmo-nos longamente, demos meia-volta para, então, repetir a brincadeira.
Ficar de sentinela é tremendamente tedioso. Comecei a equiparar o ritmo dos meus passos aos dele. A tentativa em si já era
uma distração. O som da nossa marcha compassada era como o de um homem, porém duas vezes mais alto. Quando o russo saía do
ritmo, eu lançava-lhe um olhar repreensivo, mas penso que ele não sabia o que eu esperava dele.
Em uma de minhas voltas, cheguei novamente ao meio da ponte; e então o russo disse em voz baixa: “Zigaret”. Fiquei
surpreso quando ele falou comigo. Apesar desta palavra internacional ter o mesmo significado em todos os lugares, olhei para ele com ar
de incompreensão – e então ele imitou, com a mão, o movimento de fumar. Eu já sabia o que ele queria! Apenas hesitei por ter a
sensação de que dar-lhe um cigarro certamente seria incorreto e, caso alguém estivesse nos observando, seria repreendido severamente.
Resumindo: nós trocamos cigarros. Eu lhe dei um Juno e, em troca, ganhei um punhado de migalhas marrons que lembrava
vime picado e que ele chamou algumas vezes de “Machorka” ao me entregar. Cheirei-o – nada mal! Decidi enrolar um cigarro com isto
após a troca de guarda.
Às 19h o “meu russo” foi rendido. O seu sucessor era mais velho, tinha uma cara emburrada e olhos pretos fulminantes.
Decidi não fazer negócios com ele. Passei o resto do tempo até a troca de guarda me perguntando como dois russos poderiam ser tão
diferentes um do outro. Qual deles seria mesmo o real – o “verdadeiro” russo? Era o emburrado, de olhar fulminante, com o qual eu
pouco simpatizei – ou era o ingênuo, de olhos azuis, que me despertava sentimentos fraternais?
Dois modelos não bastam para uma estatística! Portanto a dúvida de qual dos dois tipos seria o mais comum na Rússia ficou
em aberto. Tranqüilizei-me com o fato de que conosco também não era tão diferente. Por um lado, o sargento, um tipo de olhar
penetrante, brutal, de quem ninguém gostava e, em contrapartida, o comandante da companhia que, com o seu jeito caloroso e
comunicativo, era bem-visto por todos. Questionei-me se existia algo como uma “simpatia por um clã” e, caso sim, se ela se basearia em
critérios ou preconceitos?
A minha excursão para as Ciências Sociais foi subitamente interrompida às 20h pela troca da guarda.
Mais tarde, de farda leve, com o chapéu de montanha dos caçadores no lugar do capacete de aço, e a correia de cintura vazia,
passeei de volta ao rio, em cujas margens eu gostava de fumar o meu cigarro porque o silêncio e a concentração nos meus pensamentos
quebravam agradavelmente a minha rotina de soldado. Desta vez, enrolei um cigarro com o tabaco do russo. Não foi tão fácil enrolar o
cigarro. A Machorka era composta de migalhas, e não de fibras compridas como as do nosso tabaco de cigarro. Ao invés de colocadas,
as migalhas são derramadas na calha de papel aberta em cima e presa pelo polegar e o indicador. Como as migalhas de Machorka não
seguram ou apóiam umas às outras, o tabaco ameaça cair para fora de ambas as pontas do cigarro. Uma vez aceso, as migalhas como
que se fundem, e pode-se começar a fumar tranqüilamente.
Escurecera. Além do suave borbulhar do rio e do monótono tap-tap dos soldados na ponte, ouvia-se pouco. Fiquei observando
os anéis de fumaça do meu cigarro de Machorka. Era saboroso – aliás, muito saboroso. O suave aroma me lembrava um bom tabaco
de cachimbo; picante ou defumado. Pensei: então é isto que eles fumam do lado de lá! Olhei para o outro lado; mal se via a margem.
Aqui começava a Rússia e, longe, muito longe, no Mar de Bhering, era o seu fim! Meia volta em torno do globo. Que país! Não é de se
espantar que ali os exércitos não chegavam a lugar algum.
Agora ouvi o ruído do arranque de motores. Sentia frio. Curioso, caminhei de volta até a minha barraca. Percebi que o
esquadrão de motociclistas havia sido despertado da hibernação. O sargento Dankert veio ao meu encontro a largos passos e olhar
furioso: “Onde o Senhor esteve, meu Deus? Não pode ficar simplesmente andando por aí!” E então, bem mais alto: “Fique reto!” Fiquei
em posição de sentido. E então disse com voz áspera: “Vinte e duas horas, apresentação de veículo, faxina, encher o tanque, nível de
óleo, pressão dos pneus – agora ande, seu frouxo!” Com isto, dispensou-me.
Estes monólogos divertiam Dankert e não eram mal-intencionados. Afinal, os sargentos têm uma maneira particular de se
expressar.
Então era isso: apresentação de veículo e distribuição de munição pesada! E eu continuava não desconfiando de nada. Às três
horas da manhã, fui bruscamente acordado: são três e dez, disseram, uniforme militar, entrar em formação para recebimento de
comando. Ainda estava totalmente escuro. Tremendo no frio matutino, aguardamos de pé a ordem do dia. Agora até eu comecei a
desconfiar – viaturas de tanque cheio – munição pesada e essa hora. Será que nós...
E então chegou o comandante da companhia – rosto rosado e barba feita – uniforme recém-passado. Começou a ler, em voz
alta, a ordem do dia do Führer e comandante supremo. Entre outras coisas, disse: “A Moscou Bolchevista está prestes a atacar pelas
costas a Alemanha Nacional-Socialista em sua luta existencial. A Alemanha não está disposta a assistir a esta severa ameaça à sua
fronteira leste sem tomar uma atitude...”
Então era isso. Esta era a guerra! Inicialmente, não registrei a comunicação – como uma ferida recente que, nos primeiros
segundos, olhamos estarrecidos até a dor – e o sangue – chegarem. A excitação começou a dar-me um nó na garganta – mas sequer
cogitei que a minha vida nada mais valeria nas profundezas da Rússia.
“Dispersar!” Uns cabisbaixos, outros com olhar vazio e transfigurado; os veteranos, indiferentes e com as costas curvadas –
assim dispersaram-se silenciosamente os duzentos soldados, cada qual solitário com os seus pensamentos, medos e esperanças.
Somente mais tarde compreendi que toda a tolerância, todas as concessões à disciplina normalmente severa, fatos que, em
Jaroslaw, nós havíamos atribuído ao coração mole do comandante da companhia, nada mais foram que uma derradeira refeição bem
disfarçada. Um conhecimento que, na “próxima vez”, caso esta existisse, me seria útil. No amanhecer do dia 22 de junho de 1941, eu
atravessei a ponte. Nenhum sentinela russo impediu-me o caminho. Um breve estremecer das vigas soltas – e então alcancei a outra
margem. Agora “o lado de lá” era a margem onde havíamos estado ontem, quando ainda não levávamos armas carregadas. Na ponte, o
velho mandamento “Não matar” se perdera. A arma, ainda ontem um tabuizado instrumento da violência, hoje é o nosso argumento
único.
Agora a viagem nos leva terra adentro através da planície fértil da Ucrânia. A vista é livre até o horizonte. Não há estradas!
Os nossos únicos guias são rastros de correntes de tanques e marcas de pneus. Os nossos olhares percorrem o horizonte
ininterruptamente – e se agora aparecerem tanques russos ali? Por outro lado, sabemos que há pouco perigo. Afinal não somos os
primeiros por aqui! Já passaram a divisão de reconhecimento, os destruidores de tanques, as unidades de aquartelamento, os cozinheiros!
Usamos capacetes de aço que devem nos proteger de quedas e tiros. Com as mãos em manoplas apoiadas sobre o volante e o
tronco levemente inclinado para frente, guiamos a máquina mais com transferência de peso – “guiando com os joelhos”, como dizem os
cavaleiros – do que com as mãos. Os fuzis Mauser trazemos atravessados nas costas, com as bocas viradas para o alto e a direita.
Frente à ameaça de contato com o inimigo, preferimos carregar a arma atravessada em frente ao peito; neste caso, a sua boca fica
virada para o alto e a esquerda, de modo que, quando necessário, agarramos o fuzil no fecho e imediatamente estamos prontos para
atirar. Após apenas alguns quilômetros, o uniforme, o rosto e os óculos estão entranhados de poeira. Prende-se um lenço à frente da
boca e do nariz. Abaixo de nós, ouvimos o ronco surdo do motor de quatro tempos, sobreposto pelas suaves batidas das válvulas e o
assobio do vento no capacete de aço. De vez em quando, um gemido sofrido da mola do garfo quando o caminho campo adentro fica
demasiado acidentado.
Uma cacofonia? Não, uma música que nos é familiar; uma sinfonia da força e da liberdade! Afinal, não fazemos idéia do que
ainda está por vir.

****

BATISMO DE FOGO . . . .
É preciso, antes de tudo, libertar-se da idéia de que herói é aquele que não tem medo, e que o medroso é um covarde. Isto
significaria simplificar demais uma questão complexa, banalizando-a. Claro, isto nos foi dito durante anos, entre as duas guerras. Tratava-
se de motivar o soldado amador: afinal, podia-se dizer a ele que estaria cumprindo um dever para com a pátria, ou protegendo-a.
Também se podia dizer que o inimigo é composto de um bando de monstros malvados que precisavam ser combatidos ou destruídos, ou .
. . ele pode ser condicionado, manipulando a sua consciência e modelando as suas opiniões de modo que ele fique com a consciência
pesada caso não abra corajosamente o peito aos tiros inimigos. Naturalmente, em uma pessoa condicionada desta maneira não mais se
poderia reconhecer se ela tem medo ou não – se ela enfrenta um perigo de maneira covarde ou corajosa, porque, afinal, todos são
obrigados a portar-se como se não tivessem medo.
Não que eu pretenda escrever sobre o medo aqui – Deus me livre – para isto eu li muito pouco a respeito. Mas eu passei
alguns anos em uma guerra assassina e adquiri o direito de ter opiniões sobre ela – sobre o próprio medo, o medo dos outros – o medo
vivido.
O medo e a coragem não são antagônicos. Afinal, de que adianta a coragem daquele que não tem medo? Talvez o corajoso
apenas seja estúpido demais para reconhecer o perigo – ou simplesmente falta-lhe um pouco de massa cefálica! É claro que, assim como
o organismo humano se adapta a novas situações, a consciência também o faz. Ela se torna insensível ao perigo. Após algumas semanas
no Front, o comportamento muda – o medo permanece. Ele é algo totalmente natural. É instintivo, definido pela genética –
provavelmente faça parte do instinto de sobrevivência; mas isto realmente não é de minha alçada.
Parece-me que existem duas formas básicas de medo, bastante diversas entre si! A simplificação é grosseira, mas não me
envergonho porque ela me ajuda a explicar o que quero dizer com isto: acredito que o perigo que conhecemos, que vemos à nossa frente
ou que podemos pressentir, evoca a primeira forma básica do medo, aquela que, de acordo com o seu temperamento, faz a pessoa
encarar o perigo com sangue frio, receio ou, quem sabe, pânico. Por outro lado, existe o outro medo – o medo do perigo que
simplesmente espreita em algum lugar, é inerente à situação, ao ambiente. O medo dos efeitos desconhecidos de perigos desconhecidos.
Não se é possível encarar um perigo latente, porém indefinido na consciência, com frieza – aliás, não se pode encará-lo de
forma alguma. Esta forma de medo pode se transformar em pesadelo, podendo levar a atitudes irracionais ou até estados de pânico – e a
pessoa nada pode fazer para impedir. Assim, acredito que todo soldado reservista – uma denominação diferente para amadores de
guerra – sinta esta segunda forma de medo antes do seu “batismo de fogo”, sendo que a sua predisposição e tendência ao pânico, por
sua vez, dependem da sua personalidade, mas também de sua profissão civil, se bem que eu acredito que a experiência de um corajoso
telhador em trocar as telhas da torre da igreja sob a constante ameaça de queda de nada lhe adiante em seu primeiro encontro com
baionetas plantadas à altura do abdome.
Todos nós sentíamos medo. A maioria não falava sobre isso. Também, de nada teria adiantado. Fomos todos doutrinados: não
demonstrar medo era sinal de masculinidade, heroísmo. Mas também era elegante, na moda. Qualquer outra postura exporia a pessoa a
uma reação de menosprezo, deboche ou desprezo. Contudo o tamanho do medo nem sempre correspondia à capacidade de escondê-lo.
Era perfeitamente possível a pessoa que menos demonstrava medo ser a mais medrosa – ou vice-versa.
Quando, em 22 de junho de 1941, cruzamos a ponte sobre o Rio San, em Jaroslaw, em direção a Moscou, a maioria de nós
nunca havia ouvido um tiro fora do campo de tiro. Estes eram os amadores para os quais o batismo de fogo ainda estava por vir. Não
quero dizer que os amadores eram maioria, isto seria exagero. A divisão, era a centésima divisão de caçadores, fora convocada no
inverno 40/41 em Bad Ischl, na região do Salzkammergut, e era composta de soldados profissionais prussianos, primeiros-oficiais,
oficiais e patentes inferiores. O resto, o que na primeira grande guerra fora chamado de “alimento de canhão” – eram austríacos de
todas as idades que, até pouco tempo atrás, haviam sido recrutas: iniciantes! No treinamento de recrutas, que leva algumas semanas,
durante as quais o serralheiro, o professor e o dono de restaurante, todos jogados no mesmo pote, seriam transformados em soldados
integrais, de vez em quando também há tiros. Não muitos, porque a munição precisa ser guardada para o Front – ali era será realmente
necessária. No estande de tiro, os recrutas ficam espalhados, com o fuzil empunhado, fecho aberto para que o sub-oficial possa ver se há
uma bala no cano de disparo. Aqui, nada pode acontecer. Aqui é preciso haver total segurança. Que absurdo seria se alguém se ferisse
aqui, em sua terra natal! E então o recruta recebe um único cartucho. Ele somente empurra para frente o fecho do fuzil 98 quando já
está mirando no soldado de cartolina. O tiro não acertou, o coice foi como uma patada de uma mula furiosa – o recruta esfrega o seu
ombro ferido, e o suboficial exclama: “Meio-soldado!”
Agora, após o cruzamento da ponte, as cartucheiras penduradas na correia de cintura estão cheias, o fuzil pendurado nas
costas está carregado – uma bala no cano – e ninguém está preocupado se poderíamos ferir a nós mesmos ou qualquer outra pessoa
com o fuzil.
Assim, trovejamos, com as armas carregadas sobre as nossas motocicletas, através da estepe ucraniana, porque somos o
esquadrão de motociclistas do General Sanne, o comandante da centésima divisão de caçadores. O capitão da nossa esquadra era o
intrépido sargento prussiano Dankert, que idolatramos não apenas por ele ter participado de toda a campanha contra a França, mas
simplesmente por ele ser um tipo que agrada às pessoas jovens, que procuram imitá-lo. Dos nove motociclistas do esquadrão, de
diferentes idades, a maioria era iniciante como eu – ninguém fazia a menor idéia do que estava por vir!
****
Ele era um rapaz tranqüilo. Não sei se sempre fora calado – apenas era difícil iniciar uma
conversa com ele. Costumava ausentar-se dos jogos de cartas – talvez não conhecesse o jogo?
Jogávamos Blackjack e fazíamos um estardalhaço, enquanto ele ficava sentado no chão, encostado
em uma parede e com o olhar distante. Não lia nada, e não sei se pensava em alguma coisa.
Provavelmente não era demasiado inteligente – afinal, uma pessoa inteligente deseja conversar! Ele
não parecia sentir necessidade. Agora, olhando para trás, por vezes tenho a impressão de que ele era
bem mais novo que todos nós, mas não tenho certeza. É vergonhoso, mas sequer lembro-me de seu
nome – mas também, na realidade estivemos juntos por muito pouco tempo.
Os mais velhos diziam que ele tinha medo – um medo desmesurado, indefinido, opressivo de
– nem ele sabia de que. Diziam que por este motivo ele também não queria falar com ninguém, pois
teria medo de que percebessem o seu medo em seus olhos e gestos. Nós jovens achávamos isto meio
idiota – afinal, o que ele poderia fazer contra o fato de ter sido colocado aqui com um fuzil nas
mãos? Nós também não tivemos mais sorte. Ele era um de nós nove motociclistas, e era um bom
motorista. Ele também cuidava melhor de sua máquina do que nós. Parecia querer ser um soldado ao
menos disciplinado. Durante uma semana não tivemos contato algum com os russos que recuavam à
nossa frente. Portanto, nenhum batismo de fogo. Durante este período, nós, jovens, menos experientes
na psicologia dos soldados, também percebemos o crescente pânico do rapaz que se tornou tão
opressivo a ponto de calar-lhe a voz, de ele não travar mais conversa alguma. Na cabeça do
“garoto”, a partir de agora o chamarei assim por falta de um nome melhor, não havia mais lugar para
banalidades; todas as células cerebrais haviam sido tomadas pelo pânico.
A jornada do motociclista no avanço sem contato com o inimigo pode ser resumida em
poucas palavras: normalmente, não se dirige à noite. À noite, a Companhia do Estado-Maior da qual
o esquadrão de motociclistas faz parte interrompe a viagem em algum lugar no trecho Jaroslaw-
Moscou. Eis o novo posto de comando da divisão. Muitas vezes, aproveita-se uma das pequenas
florestas de bétula comuns por aqui como cobertura/camuflagem, ou então o quartel-mestre também
leva em consideração construções como colcozes, escolas ou outros alojamentos de aparência
inofensiva. Por motivos de segurança, o posto de comando jamais fica ao lado de linhas de trem, às
margens de rios ou próximo a depósitos de material, armazéns e afins. Até mesmo nós novatos
sabemos que há, ainda, outros critérios, estratégicos e táticos, como posição do inimigo, das próprias
unidades vizinhas, ordem do dia, meta do dia, tarefas propostas à divisão. Em todo caso, o
responsável por isto era o general com o seu Estado-Maior.
As tarefas do motociclista eram outras, mas igualmente específicas. Assim como nós não
conseguiríamos cumprir as tarefas do general, este provavelmente não teria sido capaz de realizar
nenhuma de nossas manobras sem cair no ridículo.
Seguindo os apitos com os comandos da divisão, o motociclista chega ao posto de comando
da divisão. Digamos que este seja uma das pequenas florestas de bétulas, e digamos, ainda, que o
motociclista seja eu mesmo. Logo vejo onde estão as motocicletas. Ao lado delas, bagagens
amontoadas. Outra pessoa não encontraria nada ali, mas nós sabemos exatamente o que pertence a
cada um. Serpenteio por entre as árvores e estaciono a minha máquina. Agora tiro as manoplas. O
capacete de aço é tirado da cabeça – em seu lugar é colocado o chapéu de montanha, retiro os óculos
do rosto, a fuzil do ombro. Tudo está perdidamente empoeirado. Livro-me do sobretudo de borracha
que apenas nós motociclistas usamos e que deve nos proteger da poeira e da chuva – mas que
também evita, em caso de queda, que o uniforme seja danificado.
Agora seria bom poder se largar em algum lugar e fumar um cigarro. Mas não é possível.
Torno a montar a máquina e vou até o nosso veículo-oficina: encher o tanque, completar o óleo,
calibrar os pneus, lavar o filtro de ar. Em seguida, um rápido jato de ar comprimido sobre radiador –
quando há sujeira no meio, o motor esquenta! E então retorno e estaciono definitivamente a minha
máquina por esta noite. Agora poderia fumar o meu cigarro, mas o risco é grande demais. Se Dankert vir
o meu fuzil, com o qual sequer poderia mirar de tanta poeira. . . portanto ponho-me a limpar a arma.
Neste ínterim, todo o escalão chegou. Nos reunimos para fumar – apenas o garoto ficou de fora. Ele não fuma, e a fumaça
dos outros o incomoda – ao menos é o que diz. Um aroma sedutor do carro de suprimentos leva-nos a buscar os nossos pratos e
talheres. Hoje em dia somente a infantaria tem uma “Gulaschkanone”[3], contudo o nome confunde – ali não é preparado Gulasch[4]
algum. Há exceções em que disseram que o cozinheiro era de Viena e conseguira contrabandear páprica de algum lugar. No nosso caso, há
um caldeirão sobre a viatura-cozinha, e não se cozinha Gulasch porque não temos um cozinheiro vienense, e tampouco um comandante de
companhia vienense. Mas o que o nosso cozinheiro cozinha, verdade seja dita, em geral não deixa nada a dever a um Gulasch.

O caldeirão continua emanando o mesmo aroma, mas a comida ainda não estava pronta. Portanto fomos, primeiramente, receber a

ração diária: um pão de centeio, um pedaço de salsicha defumada, um pedaço de melaço de açúcar invertido embrulhado em papel,

um maço de Juno, um tablete de chocolate – e só. Alguns logo comiam o chocolate; outros, a salsicha. O garoto parecia não ter

fome – mas talvez também não quisesse estragar o seu apetite, assim como eu, que também não queria comer nada pelo mesmo

motivo. Gostaria de ter-lhe dito “Venha, sente-se conosco, conte-nos o que lhe aflige.” Contudo não tínhamos coragem de dirigir a

palavra a ele. O sargento Dankert preocupava-se menos que nós com o garoto. “Deixem-no em paz”, dizia, “também passamos por

isso na França. Ele precisa de um batismo de fogo, e então tudo se resolverá.”

Neste ínterim, a comida ficara pronta. Agora ficamos em uma longa fila, com o prato em uma mão e a colher na outra, até todos

retornarem com uma bela porção de uma aromática, saborosa e leve mistura de carne de porco, feijão, batata, legumes – e o que

mais havia lá dentro, só mesmo o próprio cozinheiro sabia – ao local de descanso ao lado das máquinas para saborear o recebido. Os

mais sortudos (ou quem conseguisse servir-se mais rapidamente) conseguiam um lugar sobre uma caixa de munições, os mais lentos,

no chão, onde antes haviam estendido uma lona de barraca.

Quando escureceu – escuridão total, sem a menor incidência de luz – e todos estavam satisfeitos, cada um se acomodou em algum

lugar na sua lona de barraca e adormeceu imediatamente. Às vezes eu tinha a impressão de me preocupar mais com o garoto do que

os outros. Eu ficava inquieto quando não sabia onde ele estava. Talvez também pensasse que ele quisesse desertar, correr para trás,

e que eu tivesse que impedi-lo de fazer isto. Nesta noite, não o vi. Também já estava escuro demais. Ao adormecer, ainda tentei

imaginar como me sentiria se a minha mente fosse dominada por tão terrível medo quando o do garoto – por sorte, não conseguia ter

esta sensação. E então adormeci. Aparentemente, de vez em quando o meu sono se superficializava, quando eu escutava o ronco de

um avião – que não me inquietava por conhecer a sua origem. Se soubesse que era o bombardeador noturno russo que, mais tarde,

aprendemos a temer como “A máquina de costura”, o meu descanso noturno teria sido abruptamente interrompido e eu teria ficado
acordado com o coração na mão. A máquina de costura teria cumprido a sua principal tarefa de acabar com os nossos nervos.

Nesta noite, a máquina de costura não teve sorte porque todos nós, ingênuos, pensávamos tratar-se dos aviões da aeronáutica que

vieram nos proteger.

****

O dia do batismo de fogo não começou bem. Às 4 horas da manhã senti a ponta da bota de Dankert em minhas costas. Dizem que os

soldados profissionais – não sei se é verdade –, uma vez despertos, estão imediata e totalmente prontos para combate, cheios de

disposição. Isto não se aplica ao amador. Sou testemunha disso. Enquanto Dankert, agora, ia de um homem a outro e acordava cada um

com um chute individualmente ajustado, fui o primeiro a sentir o inconfundível aroma meio penetrante, meio insosso, porém sempre

estimulante, do café do exército. Graças a ele também consegui, aos poucos, identificar todo o entorno. Sob suspiros, realizei a rotina

matinal: pegar café (juntamente com um gigantesco pedaço de bolo), lavar (havia uma lata de água com a qual podíamos encher a nossa

louça), botas, correia de cintura e chapéu de montanha, apresentação para a chamada matinal, emissão de comandos – a Companhia de

Estado-Maior da Centésima Divisão de Caçadores preparava-se para mudar o posto de comando do General Sanne. Para onde, talvez

sequer o general sabia.

Os novatos – Karl May teria nos chamado de “greenhorns” – também pressentem quando algo na rotina está diferente. Talvez até sintam antes dos “velhos
guerreiros”, cujos cérebros embrutecidos de soldado não conseguem perceber as pequenas e sutis diferenças. Para mim, tudo parecia muito óbvio. Algo estava
acontecendo: o comandante da companhia estava irritado e de poucas palavras, e o primeiro oficial do Estado-Maior, tenente-coronel Reutter, com o rosto
vermelho, gritava já há algum tempo ao telefone de campanha. Ninguém pode me enganar, já faz quase um ano que sou soldado e quase uma semana que estou
na Rússia! Não havia dúvida, a partida estava sendo demasiado apressada, sem planejamento – eram os russos. O que mais poderia ser?
Ao partirmos, o sol começou a aparecer no horizonte. Os minúsculos cristais das nuvens de poeira levantadas pelo comboio cintilavam na contraluz – a pista era
um emaranhado de marcas de pneus e correntes dos tanques de guerra em cuja superfície ainda se via o brilho do orvalho da noite; e nós íamos com os olhos
apertados ao encontro do sol, do leste, do destino de um novo dia de guerra. Eu estava ao lado do artilheiro Hollergschwandtner. “Artilheiro” era apenas um
apelido. Hollergschwandtner não operava canhões, apenas sua formação de recruta fora na artilharia. Estávamos atrás da Mercedes do tenente-coronel Reutter.
Na realidade, os motociclistas devem andar como arautos à frente das celebridades, mas existem, ainda, outros critérios como, por exemplo, quem deve engolir a
poeira de quem! À nossa frente, ou seja, atrás da Horch do general, estavam o suboficial Peterzeller e o garoto. Provavelmente Dankert ordenou que Peterzeller
andasse com o garoto porque ele, além de Dankert, era o único motociclista com experiência no Front. À frente do general estava um caminhão com bateria
antiaérea. Para que servia isto? Há dias todos as patentes nos asseguravam que as forças aéreas estavam dominando completamente o espaço aéreo por aqui.
Contudo a super-arma automática à nossa frente tinha algo de tranqüilizador, provavelmente também para o General Sanne.
Eles vieram diretamente do sol, como os Fokkers da esquadrilha Richthofen nos livros sobre guerras mundiais. Entretanto não eram Fokkers, mas Ratas,
máquinas de caça curtas e gordas, e sem dúvida integravam as forças aéreas russas. Eram três, e voavam baixo. O barulho era ensurdecedor, e parecia ser um
ataque em vôo baixo. O canhão antiaéreo sequer conseguiu lançar um tiro, de tão rápido que as máquinas se aproximaram. Neste ínterim, o comboio parara – e
então aconteceu algo totalmente surpreendente, algo inteiramente insano, algo que me fez suar frio: o garoto abandonou o lugar atrás do veículo do general e
deixou o comboio estepe adentro. Talvez pensasse que, dentro do comboio, a morte seria certa. Quando estava a aproximadamente trinta metros de distância do
comboio, ficou preso em uma profunda vala de terra.
Neste ínterim, o “ataque em vôo baixo” revelou ser um falso alarme; os Ratas estavam fugindo de uma esquadra de M esserschmitts que estava atrás deles. Os
Ratas não estavam preocupados em atirar, mas em tentar salvar a sua própria pele. Quando os M esserschmitts se aproximaram, o nosso canhão antiaéreo
finalmente começou a atirar, mas, graças a Deus, não acertou o alvo. E então o susto passou, mas o garoto estava em dificuldades. Não se abandona o lugar
atrás do veículo do general a não ser por uma razão convincente!
Como o comboio parara, e o tenente-coronel estava olhando para trás, fiz um gesto interrogador em direção ao carro, apontando com o polegar para o garoto.
Desta forma, dei a entender que gostaria de lhe ajudar. O oficial acenou a cabeça afirmativamente, e então também deixei o comboio e dirigi até o garoto. Este
ficara sentado até agora sobre a máquina, imóvel. Quando empinei a minha máquina ao seu lado, ele tirou os seus óculos, esfregou os olhos com a luva
empoeirada, mas não disse nada. Não disse nada porque estava tremendo e, quando alguém tenta esconder isto, atinge justamente o efeito oposto; a tremedeira
aumenta, se agrava, gera pânico – o pânico soma-se ao pânico, até a pobre e sofrida criatura ficar totalmente transtornada. Agora eu sabia qual era o seu ponto
fraco: eram os aviões! Eles chegavam inesperadamente, cuspindo fogo de todos os canos, do alto, para caçar e destruir a criatura totalmente indefesa. Eis como
devia sentir-se o coelho quando a sombra da águia despenhando escureceu o seu pequeno mundo pela primeira vez.
Esforcei-me. Foi preciso encenar um defeito na máquina do garoto para justificar a sua saída insana do comboio. Eu lhe disse: “Desça da máquina e ajude-me a
tirá-la do buraco.” O esforço físico lhe fez bem. Acalmou-se um pouco, mas não disse nada. E então eu retirei um grande pé-de-cabra e debrucei-me sobre a roda
traseira de sua máquina. E murmurei por entre os dentes, baixinho, para que, de maneira alguma, chegasse até os veículos: “Agora não há mais aviões. Os
M esserschmitts expulsaram todos eles. E a corrente da sua máquina saiu. Eu a colocarei de volta. Compreendeu?” Como ele não respondeu nada, rosnei
novamente, desta vez mais alto: “Compreendeu?” E então ele acenou com a cabeça. Agora fiz algumas manobras para enfatizar a veracidade da corrente caída,
guardei as minhas ferramentas, e então retornamos ao comboio. Ao passar por Peterzeller, disse-lhe: “A sua corrente caiu. Está tudo bem agora.” Era um gesto;
todos sabiam o que havia acontecido. Mas tomara que o general, não.
O inimigo estivera aí, mas fomos poupados do batismo de fogo. Agora seguíamos adiante em direção ao leste, ainda com os brancos e inocentes corações de
soldado, virgens e intocados pela guerra – até a hora da verdade chegar também para nós.

Para o descanso do almoço, entramos no pátio interno de uma fileira de casas que faziam parte de um colcoz abandonado.
Todos os veículos foram dirigidos para dentro deste pátio e cobertos por redes camufladas. Isto era novidade! Haveria mais aviões
russos por aqui? Olhei para o carro de suprimentos, que não tinha rede camuflada. Eu havia estacionado a minha máquina e estava
perambulando em torno do caldeirão com o meu prato e talheres.
Logo alguns fizeram como eu. Ficamos de pé, espalhados com os nossos pratos e talheres, mas a tampa do caldeirão ainda
estava bem atarraxada. Por ora, as nossas mentes estavam focadas na necessidade mais primitivas do Homo Sapiens: a alimentação!
No Estado-Maior do General Sanne, o trabalho já parecia um pouco mais complexo, porque a mesa de navegação do carro do Estado-
Maior estava rodeada de gente, como se podia ver pela porta traseira aberta. Alguns estavam de braços cruzados e cabisbaixos diante
do mapa. O 1a[5], com uma mão apoiada sobre a mesa de navegação, demonstrava posições e movimentos da tropa com a outra. Não
havia nada demais nisto por si só. Todos nós já conhecíamos o jargão: posição, mapa de posicionamento, discussão da situação,
avaliação da situação. É o que sempre acontece neste veículo, três vezes ao dia, por vezes ainda mais – mas não com as faces
vermelhas e uma pessoa gesticulando loucamente e falando sem parar ao telefone de campanha. Desde a nossa repentina partida pela
manhã, fiquei desconfiado de que algo estaria errado. Em algum lugar havia russos, isto estava claro. Talvez uma unidade dispersada –
mas este, graças a Deus, não era um problema nosso. Será que poderíamos mesmo ajudar o general?
Neste ínterim, a tampa do caldeirão subira e as nuvens aromáticas que emanavam de dentro dele acabaram com todas as boas
intenções de auxiliar o general em sua estratégia. Eu estava bem na frente. O garoto estava três posições atrás de mim. Ao olhar para
trás, tive a impressão de que ele olhava afobado para todos os lados, como se estivesse procurando uma rota de fuga caso chegassem os
russos. Mas talvez também fosse impressão. Eu tinha certeza de que muitas das coisas que concluíamos a respeito do garoto vinham da
nossa própria imaginação. Também não havia motivo algum para preocupação. A fazenda estava vazia, tínhamos vista livre até o
horizonte – e, além do mais, o general saberia o que fazer caso os russos viessem.
Estávamos sentados sobre caixas, pescando pedaços de salsicha em nosso ensopado. Não costumávamos conversar, tudo
acontecia em silêncio. Como de costume, o garoto sentou-se um pouco à parte. Olhei de través para ele. Excepcionalmente, estava
comendo bem – pelo visto, o medo, sozinho, não sacia!
Ouvi o ronco de longe. Talvez não tenha sido o primeiro a ouvi-lo, mas fui o primeiro a me levantar – continuei segurando o
prato e os talheres – e a olhar na direção do inconfundível ruído de aviões. O ronco dos motores de aviões não era nada de especial.
Quase sempre eram aviões das forças aéreas alemãs. Eles dominavam o espaço aéreo. Quando não estávamos dirigindo, acenávamos
com as mãos para o alto. Agora podia vê-los. Voavam alto – ou não, talvez a mil metros. Apesar da grande distância, já se podia ver
perfeitamente que eram seis caças-bombardeiros Messerschmitt das forças aéreas alemãs, Bf 110, máquinas esguias e ágeis – cada
uma delas com uma bomba esguia de talvez 300kg pendurada abaixo de sua barriga – voando exatamente em nossa direção, como se
quisessem fazer-nos uma visita. A minha competência no reconhecimento dos tipos de aviões era bem-conhecida. Depois de eu
identificar as máquinas, todos voltaram-se novamente para os seus pratos. Apenas o garoto não conseguia ser tão facilmente
tranqüilizado. Ele sempre considerava aviões perigosos, e acredito que o barulho o enlouquecia. Deixou o prato cair e correu – para fora
do pátio; lógico, em caso de um ataque de bomba, o alvo seriam as máquinas amontoadas aqui dentro. Entretanto não se tratava de um
ataque de bomba, afinal eram os nossos próprios aviões. Mas por que voavam exatamente em nossa direção? Queriam nos assustar?
Era uma brincadeira de mau gosto? Do canto do olho, ainda vi o 1a gritando como um louco no telefone de campanha, quando alguém
exclamou: „Bombas!“ Um olhar para o alto – não teria sido necessário – o suave apito era inconfundível, até mesmo para quem nunca o
ouvira antes. E então o apito transformou-se em um insuportável e assustador alarido, quando faltavam poucos metros para as bombas
das nossas próprias máquinas caírem e causarem uma desgraça aqui embaixo. O aparentemente impossível, incompreensível,
acontecera. As próprias forças aéreas estavam prestes a nos aplicar o devido batismo de fogo.
O estrondo ensurdecedor, claro e metálico, os fragmentos voando pelo ar, pedaços de madeira e feixes de feno do telhado do
trapiche, a pressão do ar que quase estourou os tímpanos, motocicletas derrubadas e vidros de carros trincados, e tudo que faz parte do
caos no campo alvo de um ataque a bomba, estava ali, e viera dos nossos próprios aviões. No pátio interno, não acertaram nada. Os
veículos estavam intactos, ninguém fora ferido. As bombas haviam caído do lado de fora das construções. Passado o primeiro susto, um
ódio imenso começou a tomar conta de nós. Estes imbecis voadores infinitamente idiotas, delinqüentes, incompetentes e cegos! Eles
poderiam ter matado todos nós. Deveriam ser mandados para o tribunal de guerra e enforcados. Duas vezes, se possível! Mas o general
lhes dirá poucas e boas. Ele estava pendurado num telefone, o 1a no outro. E nós esbravejamos com os punhos cerrados em direção aos
aviões: “Seus cachorros! Seus bandidos!” Contudo não nos ouviram mais.
Em meio a esta embriaguez de vingança e retaliação, a pergunta gélida invadiu a minha consciência como um balde de gelo:
“Onde está o garoto?” Ele saíra correndo do pátio interno – para o local em que as bombas caíram! Eu disse a Peterzeller: “Vem comigo
ver onde está o garoto? Ele correu lá para fora.”
Não encontramos o garoto. Nenhum sinal dele. Devem tê-lo acertado em cheio. Era evidente que ele não sofrera por muito
tempo; mas eu não queria nem pensar no que ele deve ter passado antes.
Na guerra moderna, a morte tem mil novas facetas. Não é mais o âmbito do camarada cuja vida se esvai em seus braços.
Não, é a morte no tanque de guerra em chamas, no avião que perfura o solo com sua queda – o submarino estourando como uma noz
trincada. O ataque de bombas que apaga o seu tão frágil corpo em frações de segundo, como se ele jamais tivesse existido!
Foi o meu batismo de fogo. O meu primeiro contato com a morte que, desta vez, fora misericordiosa. Mais tarde ainda pensei
várias vezes se o medo do garoto o levara à sua morte, mas jamais encontrei a verdadeira resposta.
Aliás, na mesma noite o coronel no comando da base aérea tomou uma garrafa de espumante com o nosso 1a. O coronel
assegurou ao nosso primeiro oficial do Estado-Maior o quanto lamentava o fato de seus aviões terem nos confundido com russos, mas
que talvez devêssemos identificar melhor os nossos veículos. Acredito que o 1a tenha respondido que o espumante das forças aéreas era
excelente e que estas coisas aconteciam. Era inevitável – quem mexe com fogo, pode se queimar.

****
INSUBORDINAÇÃO . . .
Hoje em dia, quem viaja para a Inglaterra, seja como turista ou como homem de negócios, já
na chegada fica sabendo com todas as letras que, se não tiver o privilégio da cidadania britânica, não
tem nada a dizer aqui. E num piscar de olhos a fila de passageiros se divide – o joio é separado do
trigo, como no Último Julgamento. Assim como, a partir daí, as filas dos escolhidos e dos
amaldiçoados se moverão em direção aos seus destinos – céu ou inferno, aqui o mundo também é
dividido em duas classes facilmente diferenciáveis. Esta arrogância demonstrada não se baseia em
posses coloniais ou poder aquisitivo, mas na capacidade de pronunciar e realçar o Inglês de modo
que americano algum consiga imitar. É o idioma do clã, um requisito imprescindível para a
identificação dos escolhidos.
A arrogância é a mãe da discriminação. Na convivência entre pessoas, as minorias de elite
procuram parecer algo melhor do que são. Seja benevolente-concedente, energicamente-mandante ou
arrogante-esnobe, a elite jamais deixa dúvidas de quem dita as ordens.
Sou cabo da Wehrmacht[6] alemã. Desde o tempo de recrutas, já escutávamos que cada um
de nós seria um “líder potencial”. Não conheci ninguém que chegara ao menos ao posto de tenente.
Como, também? O abismo entre o uniforme de tecido de baixa qualidade felpudo e o uniforme de
gala sob medida, entre os coturnos esgarçados e as botas de montar macias, maleáveis e feitas à mão
é simplesmente intransponível. O corpo de oficiais é a elite em nossa vida de soldados; não há o que
contestar, isto nos parece bem lógico. O que não é correto é a equiparação de soldados profissionais
e “convocados”. Ali estão o professor escolar, o agricultor e o mecânico diante de um sargento com
dez anos de experiência profissional. Em seis semanas, eles devem ser transformados em soldados
integrais. Impossível! É como se deixassem prestar o vestibular uma pessoa que estudou apenas três
meses, enquanto outros se prepararam durante doze anos para isto!
Mas não são apenas os conhecimentos técnicos que o “convocado” não consegue adquirir
neste curto período – é, também, a transfiguração do cérebro. O tempo de formação não é suficiente.
O cérebro militar trabalha de modo diferente do nosso. Para nós, o juramento de bandeira era uma
cerimônia e uma obrigação – ainda não sabíamos de que.
Não se pode misturar soldados profissionais e convocados. Para o soldado profissional, a
palavra “insubordinação” é um pesadelo – para os convocados, não! Este não se preocupa muito com
isto...
Era final de junho de 1941. Havíamos deixado Schmerinka, uma pequena cidade na linha
férrea Lemberg-Odessa, para o sul e já estávamos a meio caminho de Winniza, o nosso próximo
objetivo. Winniza fica atrás do Rio Bug, que ainda precisávamos cruzar. Por que eu, um simples
cabo, sabia exatamente onde estávamos? Muito simples! Nós motociclistas mensageiros tínhamos
mapas e também sabíamos lê-los. Havíamos aprendido isto; era parte da nossa formação básica. Eu e
o cabo Antos estávamos atrás do Mercedes de um virgula sete litros do 1a[7], pertencente a um certo
tenente-coronel Reutter que, cujas calças tinham listras vermelhas de general, identificando-o como
primeiro oficial do Estado-Maior da Divisão. Reutter era devidamente arrogante, mas não era
presunçoso. De vez em quando, conversava com nós motociclistas e ouvia os nossos relatos de
aventuras reais e imaginárias. Digamos assim: olhava-nos de cima com benevolência – acredito que,
de certa forma, nos invejava!
Por que andávamos atrás dele? É o sistema de transmissão de notícias. O 1a não tinha rádio,
nem telefone, no carro. Se, durante o trajeto, lhe parecesse importante transmitir uma notícia, ele
acenava para um de nós. Portanto, andávamos atrás de seu carro e engolíamos infinitas quantidades
da poeira levantada por ele. Quando era possível, andávamos fora da nuvem de poeira mas, em
geral, a pista era ruim demais ali, o risco de queda muito grande. Assim, preferíamos engolir poeira.
Nas pistas da Ucrânia havia apenas duas alternativas: com tempo bom, a terra preta e fértil do
silo da Europa se transforma em poeira; com chuva, ela se transforma em uma massa barrenta e
pegajosa que preenche o espaço entre os pneus e o pára-lama da motocicleta, podendo ser removido
apenas com a baioneta. Quando chove por mais tempo, tudo exceto os veículos com correntes fica
parado.
Neste dia de junho, fazia sol. Chegamos ao leito superior do Rio Bug ao sul (existem dois) e
o cruzamos em uma larga ponte de pontões construída por pioneiros. Aparentemente houvera tensão
por aqui há pouco tempo, porque as margens estavam cheias de crateras de bombas.
Após mais dez quilômetros, a Mercedes do 1a virou à direita para dentro de uma pequena
floresta de bétulas – possivelmente o novo posto de comando da divisão, ou simplesmente um pouso
de descanso. Logo encontrei o estacionamento dos motociclistas, estacionei a minha máquina, livrei-
me dos óculos e do capacete de aço e pendurei-os no guidom da minha máquina. Estava esgotado.
Havíamos viajado durante sete horas. O sargento Dankert aparentava ter chegado já há mais tempo.
Ele viajara atrás do general. Agora vinha em minha direção com seus passos largos. Eu sabia
exatamente o que ele queria. Era sempre o mesmo: nós, exaustos, querendo nada mais que deitar em
qualquer canto, e então eles vêm com as mesmas velhas histórias – limpar a máquina, gostaria de
saber para que? Antes de Dankert chegar, eu já disse: “Eu sei, eu sei, Senhor Sargento, limpar, encher
o tanque, nível de óleo, calibrar os pneus! Nada de novo.” Dankert olhou-me desconfiado, mas não
disse nada. Por fim acabei não me sentindo tão bem – talvez o meu comentário possa ter parecido
desrespeitoso. Mas era verdade: para onde o óleo do motor poderia ter escapado em sete horas? E
uma máquina empoeirada não funcionava tão bem quanto uma limpa? Apenas aborrecimentos, sempre
aborrecimentos!
Mesmo assim, pus-me a trabalhar – vagarosamente e sem ânimo. Dankert ficou me
observando. Na minha vida até então, eu fora um civil durante vinte anos, e soldado por apenas meio
ano. Sabia lidar com pais e professores, e sabia me virar com irmãos e amigos, mas não sabia o
suficiente sobre sargentos.
Quando Dankert se aproximou lentamente, eu já tinha uma série de respostas na ponta da
língua – nenhuma se adequava ao que Dankert acabou me dizendo: “Aproveitando o seu empenho,
Cabo, limpe também a minha máquina.” “Senhor Sargento”, respondi espontaneamente, “eu limpo a
minha máquina e o Senhor, a sua!” Eu era um herói; logo depois de ditas as palavras, arrependi-me –
mas era tarde! “Cabo”, disse ele com a voz áspera, “acompanhe-me até o comandante da companhia.
Irei denunciá-lo por insubordinação.”
Dankert andou a largos passos à minha frente. Ele media um metro e noventa, e eu mal
conseguia acompanhá-lo. Ele tinha o andar ondulante de um caubói e desprezava Knobelbecher[8].
Em todo o tempo que passamos juntos, ele usava botas de montar próprias, compradas por ele. O seu
passo era firme, e o seu objetivo, indubitavelmente, o carro de comando, um ônibus adaptado e
equipado como escritório em que trabalhava o comandante da companhia, Major Huttelmeier.
Uma “denúncia” por insubordinação – mesmo que se tratasse apenas de uma piada boba –
obrigatoriamente levava a pessoa ao tribunal de guerra. Sem perdão ou circunstâncias atenuantes! Eu
tinha certeza de que cada um destes casos era tido como exemplo – “para mostrar aos outros imbecis
o que era tolerável, e o que não!” Desde que havíamos atravessado a ponte, novos critérios entraram
em vigor acerca do bem e do mal. Covardia perante o inimigo, desmoralização da Wehrkraft[9],
insubordinação, deserção – estes eram os únicos atos realmente maus, os crimes capitais dos
soldados. As penas previstas eram condizentes: morte por tiro, prisão, ou, no melhor dos casos,
transferência para um “batalhão de punição” onde, com mínimas chances de sobrevivência, poder-se-
ia comprovar ser um “cara direito”.
Mas não é somente a pena – é também a humilhação, a expulsão da comunidade, por fim ser
considerado um amaldiçoado! A cada passo que eu tropeçava atrás do sargento, aumentava o terror
que tomava conta de minha consciência. Comecei a atingir o estágio do verdadeiro medo irracional e
exorbitante. Dankert sequer virou-se para trás. Continuou andando com a mesma determinação em
direção ao carro de comando. Mais tarde dei o azar de entrar no campo alvo das armas de artilharia
russas. Só mesmo um maluco para não sentir medo numa situação dessas – mas saltar para dentro da
primeira cratera aberta é uma saída! Enquanto se fuma um cigarro com os dedos trêmulos, as
histórias centenas de vezes repetidas sobre a “improbabilidade de dois acertos no mesmo local”
tomavam forma na consciência atormentada. O medo persiste – mas agora ele adquiriu um tamanho.
O tamanho do medo é inversamente proporcional ao tamanho da esperança.
Nunca mais senti tanto medo quanto ao andar atrás de Dankert em direção ao comandante da
companhia, nem mesmo em Stalingrado! Uma denúncia por insubordinação desencadeia uma série de
acontecimentos do qual não se pode mais escapar. A argumentação militar e política imobilizam o
bom senso. Enquanto o “moinho da destruição” moer, muitas vezes gostar-se-ia de gritar: “... mas não
foi esta a minha intenção! Jamais pensei em desacatar a autoridade, desmoralizar a Wehrkraft. Foi
uma brincadeira! Será que vocês não entendem isso?” E o moinho continua moendo, até a sua
destruição. Não há esperança, por isto o medo é exorbitante.
Um jovem rapaz – ele tem a vida inteira pela frente. Uma guerra, ele poderia sobreviver; mas
não o moinho do tribunal de guerra! Um tiro pela frente é glorioso, te leva ao hospital de campanha –
admirado e lamentado por amigos e enfermeiras – o tiro por trás, no pátio do quartel, trás difamação
e um túmulo sem nome. É o fim da linha. Sequer uma carta aos pais: “Pelo Führer, o povo e a
pátria!”
Os meus pensamentos obscuros foram bruscamente interrompidos quando quase tropecei
sobre Dankert. Ele havia parado diante do comandante da companhia e ficou em posição de sentido.
Apesar de todo o terror que agora me dominava, fiquei curioso por saber como o sargento
descreveria o meu crime capital. Eu estava atrás dele – até agora, ele não se voltara para trás nem
uma única vez – eu havia chegado no cadafalso! Dankert levou a mão ao chapéu – um gesto mais
informal, como os oficiais cumprimentam-se entre si – ou ainda soldados antigos do Front.
“Esquadrão de motociclistas devidamente acomodado; nenhuma ocorrência em excepcional durante a
viagem” foi tudo o que disse inicialmente. O sempre bem-humorado Major Huttelmeier disse
gentilmente: “À vontade, Dankert”, e então: “O que faz o cabo atrás do Senhor?” E então Dankert
virou-se para trás pela primeira vez. A expressão benevolente de sua face não condizia com o tom
ameaçador de sua voz. Ele rosnou: “O que está fazendo aqui, homem? Está procurando alguma
coisa?” Imediatamente levei a mão ao chapéu, fiquei em posição de sentido: “Não, Senhor
Sargento!” “Então dê o fora daqui!” Balançando a cabeça, Dankert virou-se novamente para o major
para receber as ordens das próximas tarefas do esquadrão de motociclistas.
Dankert não me denunciara. Apenas dera-me um belo susto. Dankert era um cara correto e um
bom camarada e superior. O fato de ele abrir mão do seu direito de denúncia deixou-me
profundamente aliviado – tirara-me dezenas de quilos dos ombros. Além do mais, mostrou-me com o
seu humor macabro onde acabam os direitos de um cabo e onde começam os de um sargento! A partir
de agora, eu faria de tudo por Dankert. Os nossos caminhos se separaram em novembro de 1942 nos
subúrbios de Stalingrado; até lá não tive oportunidade para tal.

EPÍLOGO
Para que um epílogo após um relato breve? Não se poderia ter incluído tudo que se tinha a
dizer na história? Não, não se poderia! Não havia nada a acrescentar ao acontecimento. Apenas
ocorreu uma situação muito tempo depois da qual participaram os mesmos atores: o Sargento
Dankert, o tribunal de guerra e eu. Neste sentido, o episódio tem relação com a presente história.
Ocorreu seis meses depois, em janeiro de 1942. Os EUA já haviam entrado na guerra, mas
isto não nos inquietava. Tínhamos outras preocupações. O primeiro inverno russo começara. Fazia
quarenta graus abaixo de zero, e não tínhamos equipamento de inverno! Ninguém nos ensinara como
lidar com uma situação dessas. Foi preciso ter criatividade e muita vontade de sobreviver!
O Estado-Maior da Centésima Divisão estava em Stalino, no alojamento de inverno. Não
havia muito que fazer para um motociclista: jogar cartas, ficar de sentinela, cuidar das ferramentas.
Nada de andar de motocicleta; era morte certa! Em casa, havia quem pensasse que tínhamos luvas
eletricamente aquecidas para andar de motocicleta. Dávamos graças a Deus quando tínhamos luvas.
Mas não pretendo desviar do assunto. No meio de uma partida de carteado – jogávamos “Blackjack”
– Dankert entrou e disse-me que eu deveria me apresentar urgentemente no escritório. Disse que não
sabia do que se tratava. “E passe um pente em seu cabelo, o Senhor está com uma aparência
horrível!”
Ao subir os três degraus da entrada posterior do carro de comando, eu estava nos trinques.
Correia de cintura brilhante e botas engraxadas e com o chapéu de montanha levemente inclinado
(Regulamento de Serviço do Exército: “O chapéu de montanha deve ser usado reto. Diferenças de
mais ou menos três graus não são consideradas irregulares”). O auxiliar de escritório apontou com o
polegar para a frente, onde estava sentado o comandante da companhia. Posicionei-me devidamente
diante dele e apresentei-me. “À vontade”, disse o Major Huttelmeier e então me explicou
rapidamente do que se tratava. “Iremos transferi-lo temporariamente para o cargo de auxiliar do
tribunal de guerra. O Sargento Dankert o recomendou para este serviço; ele acredita que o Senhor
seja indicado.” Fez uma pausa. “O tribunal de guerra”, disse, “é composto de três juízes; um juiz
profissional e dois juizes leigos, um deles com patente de oficial, e o outro, com a patente do
acusado. E há, ainda, um acusador e um defensor, ambos juristas profissionais.” Olhou-me
diretamente nos olhos. “O que me diz? A participação do colégio de juízes do tribunal de guerra é
voluntária!” Não me restava nada além de assegurar ao major a minha disponibilidade.
Então agora eu era auxiliar do assessor jurídico militar Helmer, um jurista profissional
grisalho no cargo de oficial, e seria chamado toda vez que um cabo estivesse diante de seus juízes.
Relatarei apenas a primeira audiência da qual participei. Estávamos sentados em uma sala de
aula – sem calefação. A cátedra elevada fazia as vezes de púlpito do juiz. O assessor jurídico militar
Helmer estava sentado no meio, o tenente-coronel Schneider à sua direita, eu à sua esquerda. O
acusado era um cabo – não me recordo de seu nome – mas também não vem ao caso. Era um velho
espadachim com experiência em combate, já lutara na França e tinha o peito repleto de
condecorações. Entre outros, tinha um Clasp de Combate Corpo a Corpo e uma Cruz de Ferro de
Primeira Classe. A primeira pergunta que nos vinha era: “Como esta pessoa foi parar aqui?” O
acusador acabou esclarecendo isto. O cabo estava em um posto avançado de um batalhão de
caçadores. O Clasp de Combate Corpo a Corpo e a Cruz de Ferro de Segunda Classe ainda eram da
França. A Cruz de Ferro de Primeira Classe ele adquirira aqui, no Front russo. Desde o dia 22 de
junho, ele sempre estivera à frente das tropas, rastejava permanentemente à frente do nosso posto
mais avançado para localizar o inimigo – fazer reconhecimento de sua força e armamento, e prestar
relatório; um modo exaustivo de se passar o dia. Desde o início da campanha, o cabo não tirara
férias, nem descansara de nenhuma outra forma.
A sua infração: há aproximadamente um mês, na posição de barragem no Rio Mius, o
condutor do cabo, um sargento, quisera mandar uma tropa de espionagem para frente, e sua escolha
caíra sobre o “nosso” cabo. Porque ele era o melhor. Ocorre que este retornara havia menos de uma
hora de uma aventura em que perdera dois soldados. Ele comentara a ordem do sargento da seguinte
maneira: “O Senhor acha que sou maluco! Vá o Senhor mesmo para frente.” E foi isso –
insubordinação, covardia diante do inimigo, desmoralização da Wehrkraft ...
Num discurso efusivo, o acusador descreveu a que ponto chegaríamos se todos aqui
desobedecessem a uma ordem e pudessem tomar decisões por conta própria. E que a missão da
patrulha de reconhecimento há pouco encerrada não seria motivo para um ato de insubordinação, e
que o comentário do cabo também visaria acusar o sargento de esquivar-se, algo totalmente sem
fundamento, visto que o sargento também era portador da Cruz de Ferro de Primeira Classe. Et
cetera…
O defensor pleiteou circunstâncias atenuantes, e solicitou que o tribunal não esquecesse o
passado heróico do cabo. De modo geral, uma tímida e pouco convincente tentativa de amenizar a
catástrofe que estava por vir para o cabo.
E então “o tribunal recolheu-se para deliberação”. O assessor jurídico militar Helmer
começou a “instruir” a nós, assessores. Eu arrisquei o argumento de confusão mental gerada por
sobrecarga emocional – insanidade. Da parte do meu colega, o cabo não encontrou muita ajuda.
Resumindo: foram concedidas circunstâncias atenuantes ao cabo. Todos nós três insistimos na pena
mínima: transferência para o batalhão de punição – para a maioria, o fim da linha!
O Sargento Dankert certa vez me mostrara “onde terminam os direitos de um cabo, e
começam os de um sargento”.

****

DOR DE GARGANTA . . .
Não se trata, aqui, dos “sintomas de garganta associados à dificuldade de deglutição que
podem ser oriundas de queimaduras por alimentos ou bebidas quentes” (Brockhaus[10]), tampouco
de difteria, angina ou amidalite. Trata-se de algo totalmente diferente.
O fenômeno psicológico ironicamente denominado “dor de garganta” pelos soldados
descreve o desejo intenso e doloroso, tendendo à obsessão, de receber uma condecoração por
bravura para pendurar no pescoço.
A expressão provém da Primeira Guerra Mundial, mais especificamente dos aviadores que,
com suas máquinas de caça de madeira e tecido “derrubavam” os seus adversários e, depois de
determinado número de aviões derrubados, recebiam a mais alta condecoração prussiana, o “Pour le
Merité”, o blauer Max[11]. A condecoração criada pelo “Velho Fritz[12]” em 1740 representava
para o aviador um tamanho ganho de prestígio que não causa surpresa ouvir que eles tentavam
qualquer forma de trapaceio para somar “aviões derrubados” (vitórias aéreas) que não eram de sua
própria autoria, ou ainda inventar aviões derrubados.
O “Pour le Merité” foi extinto em 1918. A nova Wehrmacht[13] alemã o substituiu pela Cruz
de Cavaleiro (Cruz de Ferro), que também ficava pendurado no pescoço. O objetivo é motivar o
soldado. Quem já ganhou a Cruz de Cavaleiro não deve descansar! Por isso, além da Cruz de
Cavaleiro, ainda foram criadas as folhas de carvalho, as espadas, os diamantes. Não era tão simples
assim livrar-se da dor de garganta. Não é de se espantar, também, que, com o avanço da tecnologia,
câmeras filmadoras passaram a ser embutidas nos caças para confirmar o acerto do alvo – ou a
trapaça.
Ao ler estas linhas, parece que apenas os aviadores sofreram de dor de garganta. De modo
algum! A doença era muito comum no exército e na marinha, e também não era apenas restrita ao
adorno de pescoço. Qualquer espécie Cruz de Ferro estimulava os atos heróicos – afinal eram os
estágios precursores do “adorno de pescoço”.

Por que relato tudo isto? Naquela época, eu estava na guerra fazia apenas quatro meses,
passara noites em claro exercendo minha função de mensageiro, dirigira quilômetros por terras de
ninguém, caíra à noite em uma trincheira anti-tanque e acabara perdendo a máquina. Agora dirigia a
terceira máquina, uma DKW RZ 350, mais veloz e mais forte que as minhas máquinas anteriores.
Vivia encardido de poeira e sentia-me muito heróico. E tinha dor de garganta, também queria levar
um troféu para casa. O meu peito estava vazio, nenhuma condecoração - como um recruta recém-
saído do quartel. Pensava: o que mais será preciso fazer para finalmente receber uma condecoração?
O desejo, a obsessão por uma condecoração tornavam-nos cada vez mais ousados! Começamos a
deixar-nos pressionar “voluntariamente” para missões arriscadas – uma doença perigosa – mas eu
fora acometido por ela.
Desde que atravessamos a ponte sobre o Rio San, em Jaroslaw, a Centésima Divisão cruzara
o oeste da Ucrânia, atravessara os rios Bug e Dnjepr e chegara à Bacia do Donez. A divisão
participara magistralmente da batalha de envolvimento próximo a Uman, ao sul de Kiew, durante a
qual 665.000 soldados e oficiais russos se renderam. O prestígio da divisão fora reconhecido – o
General Sanne fora promovido. E nós? Não havíamos ajudado? Onde estavam as medalhas?
Era início de outubro de 1941. Eu estava retornando de uma missão de comunicação até o
Qüinquagésimo Quarto Regimento de Caçadores, cujo Estado-Maior estava localizado a dez
quilômetros a nordeste do posto de comando da divisão. Depois de cuidar da minha máquina,
apresentei-me de volta ao Sargento Dankert. Ele me chamou para a sala de navegação. A sala de
navegação era o que havia de mais sagrado no Estado-Maior da Divisão, era um ônibus adaptado
com uma gigantesca mesa de navegação ao centro, e era onde o General Sanne e sua equipe discutiam
estratégia e tática.
O 1a[14], tenente-coronel Reutter, foi diretamente ao assunto: “Dê uma olhada aqui, Dankert.
Estamos aqui!” Pregou uma bandeirinha no mapa. “E ali estão os húngaros.” Outra bandeirinha. “São
aproximadamente vinte quilômetros para o sul. Neste trecho, não sabemos onde há russos, nem
quantos. Em todo caso, alguns de seus motociclistas precisam ir até lá. Não podemos passar a
estratégia dos aliados via rádio! E o seu pessoal não pode ser flagrado. É só.”
Dankert retornou ao estacionamento dos motociclistas, e eu atrás dele. Havia, provavelmente,
duas razões para ele me levar até o carro de navegação: primeiramente, ele me tinha como uma
espécie de intelectual, o que, entretanto, não poderia ser considerado algo positivo, porque “um
meio-soldado sempre será um meio-soldado, por mais inteligente que seja.” Além disso, ele
conhecia a minha dor de garganta, e talvez achasse que deveria fazer algo contra ela.
Dankert abriu o mapa no capô do Kübelwagen[15] que transportava a bagagem do esquadrão
de motociclistas. Todos estavam de pé à sua volta. Os suboficiais Peterzeller e Pichler, os cabos
Antos e Holzner e o artilheiro Hollergschwandtner, que não manejava canhões, mas também dirigia
uma motocicleta.
Com base no mapa, Dankert descreveu a situação, a tarefa e o provável decurso da missão.
“Aproximadamente 20 quilômetros ao sul”, começou, “está a testa da vanguarda do 2o exército aliado
húngaro do coronel geral Jany. Os húngaros foram enviados à nossa divisão como reforço para
operações de emboscada. As informações pertinentes à estratégia da aliança não podem ser
transmitidas via rádio para garantir o sigilo. O General Sanne ordenou que o esquadrão de
motociclistas envie esta mensagem.” Dankert fez uma pausa, inclinou-se sobre o mapa, todos nós com
ele. “Aqui está o nosso posto mais avançado”, apontou, “e mais ou menos aqui devem estar os
húngaros. A região que precisamos atravessar ainda não está livre do inimigo – ainda há russos.
Nesta estrada, aqui, poderemos encontrar veículos – mas certamente não serão os nossos. Este
vilarejo”, disse, colocando o seu dedo por cima, “não teremos como contornar, precisaremos
atravessar. E daqui faltarão apenas mais dois quilômetros até os húngaros.”
Dankert fez uma pausa. “Agora os Senhores sabem do que se trata. A missão partirá agora!
Voluntários?” Olhou para o grupo com ar interrogativo.
Quando apresentado corretamente, o chamado por “voluntários” nada mais é do que uma
espécie de coerção em que a responsabilidade é passada ao “voluntário”. Quem ousaria deixar a
mão embaixo? O risco de ser desprezado ou ridicularizado é grande demais. Não é de se espantar
que, à pergunta de Dankert, todas as mãos foram imediatamente lançadas para o alto. Não sei dizer
quantos verdadeiros “voluntários” havia entre eles; mas – juro – eu era um verdadeiro voluntário.
Em menos de meia hora, estávamos a caminho do último posto avançado alemão. Havia um
side-car sendo guiado pelo suboficial Pichler. Com ele, estavam dois cabos de esquadra da divisão
de reconhecimento. Carregavam rifles Schmeisser atravessados sobre o peito. Antos e eu estávamos
com motocicletas simples, um à frente e outro atrás do side-car. E só. Antos e eu estávamos armados
com fuzis, a tradicional arma do motociclista mensageiro.
O nosso armamento e equipamento não permitiam nenhuma forma de combate armado.
Precisávamos chegar o mais rapidamente possível ao alvo sem fazer barulho e sem sermos
encontrados. Era preciso empregar corretamente as táticas de surpresa, sigilo e rapidez. De fato, não
foi disparado nem um tiro em toda a missão – mas não quero me antecipar!
O último posto avançado alemão, quatro homens com uma metralhadora, estava bem
camuflado na beira da estrada que levava para o sul e em cujo final esperávamos encontrar os
aliados húngaros. Quando deixamos o posto para trás, eram onze e meia, e fazia sol. O posto ainda
não havia visto nenhum russo hoje. Mas nós sabíamos melhor. Se mais adiante tivesse um russo com
binóculos! Seria tão fácil reconhecer-nos. A essa altura, o nosso capacete de aço já era mal-visto em
todo o oeste russo e o nosso “cinza de campanha” era tudo, menos uma camuflagem. Em poucos
minutos, poderiam acabar conosco.
O que ainda não sabíamos, mas logo descobriríamos: estávamos passando pela tropas
recuadas, e não na região do Front! Nós e os tanques avançados húngaros havíamos nos embrenhado
para o Leste como numa guerra-relâmpago, distantes uns dos outros e, de início, não demos atenção
ao território entre nós. No trecho em que estávamos passando, jamais fora visto um Alemão, e
restava a dúvida se o mesmo seria tão logo reconhecido como tal.
A estrada estava vazia – nenhum veículo, nenhum ruído além do ronco monótono de nossos
motores. Os campos, ermos e abandonados. Não se via nenhuma casa, nenhum celeiro, uma alma
viva. A estrada pela qual passávamos perdia-se no horizonte marrom-amarelado. Teria sido
agradável passar por aqui em paz – pela manhã de outono russo. Mas estávamos em guerra!
Andávamos a trinta para não levantar muita poeira, que poderia ser vista de longe. Esta
estrada era como todas na Ucrânia: sem base, sem cascalho, sem valeta, sem sinalização.
Simplesmente terra batida. O cabo Antos ia à frente; em seguida, Pichler com o seu side-car e os
dois cabos de esquadra. E, por último, eu.
Após apenas doze minutos de viagem, a paz chegara ao fim. Havíamos percorrido
aproximadamente seis quilômetros quando o veículo apareceu no horizonte. Entre nós e o russo
deveriam haver uns quatro quilômetros. Caso ele também estivesse andando a trinta, chegaria em
quatro minutos! O que são quatro minutos? E o que faremos? Quem decidirá o que fazer?
O veículo revelou-se como caminhão em cuja caçamba aberta havia pessoas de pé que se
pareciam demais com soldados russos. As motocicletas à minha frente não alteraram a sua
velocidade – todos prosseguimos no mesmo ritmo. Parecia que os da frente sequer tinham notado o
russo. Contudo percebi que o cabo de esquadra no side-car estava com as duas pernas para fora para
poder saltar imediatamente. Agora o russo estava tão próximo que dava para identificar o rosto do
motorista. E então o side-car desacelerou – parou. O cabo de esquadra saltou, posicionou-se no meio
da pista e elevou o braço – como um policial rodoviário! Antes mesmo de o caminhão parar, senti a
adrenalina correr. Repentinamente compreendi o que eu deveria fazer – a única coisa possível, a
única coisa correta. Ali atrás, na caçamba, havia seis russos – sobretudos marrom-amarelados,
chapéus de pêlo com protetores de orelha dobrados para cima. Os seus fuzis estavam apoiados na
parte dianteira da caçamba. Era preciso intimidá-los antes que alcançassem os seus fuzis. Era o
momento-surpresa! Por ora, hesitavam e procuravam entender o que estava acontecendo. Eram
soldados das tropas recuadas – pessoas destinadas para determinado comando de trabalho. Mais
tarde, compreendi que jamais teríamos alcançado o mesmo feito com soldados do Front.
Neste ínterim, o cabo Antos contornara o caminhão e estacionara a sua máquina. Eu passei
pelo side-car e também estacionei a minha máquina.
Com o fuzil em punho apontando para os russos, gritei o mais alto que pude: “Ruckie Wärch!”
Acompanhando a ordem de “Mãos ao alto!”, o rosto de um homem disposto a tudo. Não senti
dificuldades – do outro lado do caminhão, Antos fizera exatamente a mesma coisa.
Neste ínterim, os dois cabos de esquadra ficaram de pé nos dois estribos com as suas armas
Schmeisser, colocando o motorista e o carona fora de combate.
Era um assalto de estrada amador – porque este artifício não nos fora ensinado em nosso
treinamento. Eu tinha um talento natural. Fiz gestos ameaçadores com o fuzil gritando repetidas vezes
“Dawei, Dawei”, até os russos descerem da caçamba sem os seus fuzis e, dominados pelo meu fuzil,
manterem as mãos nas cabeças. Neste ínterim, Antos subira na caçamba e jogara as armas dos russos
nos arbustos.
Havíamos capturado: um caminhão SIS de quatro cilindros com caçamba – e havíamos
prendido: seis soldados da infantaria e dois motoristas... e não tínhamos idéia do que fazer com eles!
Tínhamos que cumprir uma missão, e estávamos com pressa.
Em um filme-propaganda russo, teríamos acabado com todos os oito russos, e explodido o
caminhão. Mas não se tratava de um filme-propaganda russo e, portanto, o mais graduado entre nós,
suboficial Pichler, decidiu que o caminhão com os oito russos deveria ser levado ao posto de
comando da divisão por Antos e um dos dois cabos de esquadra. A NSU do cabo Antos seria
transportada na caçamba do caminhão.
Todo o episódio não passara de cinco minutos. Mas ele nos tirara do eixo – será que tomamos
a decisão correta? Não teria sido melhor diferente? Restavam apenas três de nós; e a nossa missão
continuava a mesma! Pichler tinha um fuzil e um zero-oito. O cabo de esquadra estava com o seu
Schmeisser, e eu, nada além de um fuzil. Quatro armas de fogo – três amadores – e mais quinze
quilômetros até os húngaros, caso os encontrássemos.
Quando o caminhão desapareceu em direção ao posto de comando da divisão, o suboficial
Pichler e eu seguimos viagem como se nada tivesse acontecido. Nós três retomamos a busca pelos
aliados húngaros para, conforme ordenado, entregar-lhes os documentos acondicionados no side-car.
O que me preocupava era o vilarejo que supostamente encontraríamos dez quilômetros à
nossa frente. Afinal, não podíamos simplesmente atravessar um vilarejo russo! Certamente haveria
civis na rua, crianças – quem sabe até soldados? Todos eles certamente começariam a gritar! Afinal,
estávamos inconfundíveis nos nossos trajes cinzas de campanha.
Estremeci. Vi bandos correndo atrás de nós – uma barricada? Um tanque? Deveríamos
contornar tais obstáculos, ou atravessar atirando? E os documentos?
Aos vinte e um anos, rapidamente tem-se pensamentos obscuros, se bem que – como no nosso
caso – eles são rendidos por um otimismo totalmente infundado. Após alguns quilômetros, as rugas
de preocupação se alisaram – a aventura tornou-se novamente tentadora. Agora eu dirigia atrás do
side-car.
A presença de pessoas mostrou-nos que estávamos perto do vilarejo: ali há uma no campo,
ali uma na estrada abrindo-nos o caminho. Olham para nós, perplexas. Antes de alcançarmos as
primeiras casas do vilarejo, um caminhão vem em nossa direção. É um caminhão com caçamba
fechada. Agora já temos prática! O cabo de esquadra o faz parar, dá um salto no estribo com o seu
fuzil. Eu desligo a minha máquina, vou para trás do veículo. A porta traseira está trancada por uma
trava. Pichler está ao meu lado com a zero-oito na mão. Eu estou com o fuzil em punho. Pichler solta
a trava e abre a porta bruscamente – dois russos ofuscados pela luz caem para fora. Haviam estado
encostados à porta.
Também, não havia mais lugar no veículo. Era um caminhão de suprimentos, aparentemente
destinado a um refeitório de oficiais. Estava repleto de chocolates, caviar, salame, charutos e
bebidas. Não imaginávamos que existiam estas coisas na Rússia! O nosso general ficaria satisfeito.
O General Sanne também não costumava beber água. Quantas vezes havíamos carregado as suas
caixas de Henkell[16] seco para lá e para cá!
Desta vez, não perdemos tempo. Os dois russos desarmados de volta para o caminhão, fechar
portas – e já para o posto de comando para a divisão.
Agora éramos apenas dois. Pichler, com os documentos no side-car, e eu atrás dele com a
minha DKW. Atravessamos o vilarejo. Civis olhavam-nos fixamente. Do lado direito, havia um
quartel com soldados treinando no pátio. Jamais conseguiríamos passar por ali! Inconscientemente
aceleramos – o máximo que as máquinas podiam. Em poucos minutos deixamos o vilarejo para trás –
ninguém atirou atrás de nós.
E então encontramos os húngaros, que trajavam uniformes marrom-amarelados e que,
inicialmente, achávamos serem russos – o último grande susto neste dia. Aqui, falava-se apenas
húngaro, e não havia nenhum intérprete. Contudo nos servimos de sua cozinha de campanha. E então
tentamos relatar aos húngaros a nossa viagem através de mímica e gestos, mas logo desistimos.
A missão chegara ao fim e, mais uma vez, escapamos por pouco. Nunca mais vi nada do
chocolate – mas, por fim, acabei recebendo a Cruz de Ferro.

****
A PICADA DE ABELHA . . .
O correio de campanha é uma instituição abençoada. A liderança do Wehrmacht[17] também
sabe disto. A correspondência levanta o ânimo da tropa, eleva o espírito de luta – como diz Dr.
Goebbels tão corretamente: manter o espírito de luta. E é verdade, quem é que não gosta de receber
correspondência de casa no Front? E, agora, o lar está distante, cada vez mais longe...
Mas tão importante quanto a correspondência que recebemos no Front é o que nós mesmos
escrevemos para casa – não a descrição de onde estamos ou do que estamos fazendo no momento,
Deus me livre – afinal, isto seria enquadrado no aviso “Atenção, o inimigo também está lendo”; não,
muitas vezes relatamos fatos do Front que nem mesmo o mais sensível dos censores acusaria. Fatos
alegres e contemplativos que, ao que por vezes parece, são capazes de colocar em segundo plano,
por um instante, até mesmo as seriíssimas realidades nacional-socialistas ou militares.
Nesta categoria enquadra-se, por exemplo, a história da picada de abelha à qual chegarei
mais adiante.
O correio de campanha não parece puro milagre apenas para mim. Somente aqui, no cenário
de guerra do Leste, a zona de redistribuição postal estende-se da costa do Mar Negro até os
manguezais finlandeses. Se, conforme nos relataram, houver cerca de 150 divisões por aqui, cada
uma com 100 números postais de campo, somam-se, apenas aqui no Leste, 15.000 diferentes
endereços. Não é de se espantar que o número postal de campo tenha cinco dígitos. E depois ainda
há o Front do Oeste, a Noruega, o Norte da África – por quanto tempo os cinco dígitos ainda serão
suficientes? Além disso, não são endereços como os de nossos lares, onde o carteiro pára, olha para
o número da casa e diz “Sim, é aqui”, e joga a carta na caixa de correio – não, não é assim. O
número postal de campo é um “endereço móvel”, ele é parte de uma tribo nômade da qual ninguém
sabe onde ela se encontra no momento – a não ser, talvez, o gerente da agência de correios, que
merece toda a nossa consideração por isso.
Vejamos, por exemplo, o meu caso: ontem cruzei o Rio Dnjepr próximo à cidade de
Krementschug. Hoje, estou a caminho de Poltawa, 120 km a leste. Amanhã e depois de amanhã
provavelmente estarei no Rio Donez, isto são mais 130 km – aqui se avança de rio em rio.
Uma interessante praça de guerra, este sul da Ucrânia. Os primeiros-oficiais certamente
coçaram a cabeça ao perceberem que o país é recortado em cinco faixas verticais separadas por rios.
Para ir do Oeste ao Leste, é preciso cruzar o Dnjester, o Bug, o Dnjepr, o Donez e o Don para
chegar ao Volga. Até mesmo nós amadores sabemos que o rio é um obstáculo de primeira categoria –
principalmente para combatentes de uma guerra-relâmpago.
Então voltemos ao meu caso. Hoje à noite estarei em Poltawa e escreverei uma carta.
Amanhã, o carro do correio de campanha a levará à estação de trem de Poltawa cinco sacos postais
nos quais constará o nosso número postal de campo como remetente, um deles com a minha carta. E
então a minha carta irá de Poltawa a Lemberg, passando por Kiev e Winniza. São 850 quilômetros.
Por que eu sei isto? Muito simples, tenho um mapa da Europa. Agora o “meu” saco postal tem apenas
mais dois colegas. Os outros dois, ele perdeu em Kiev. Agora, de Lemberg o meu saco postal passará
por Debrecen e Budapeste para chegar até Viena. São mais 820 quilômetros. No total, a minha carta
percorreu 1670 quilômetros, o que corresponde aos trechos Viena-Constantinopla ou Berlim-Nápoles
– uma viagem de um dia.
Agora a minha carta está no Correio Central de Viena, pronta para a redistribuição. É certo
que o correio de campanha é um instrumento psicológico porque ele motiva o soldado – mesmo
assim, o seu grau de prioridade é inferior ao da munição, do combustível ou do abastecimento.
Então, quando é que o meu pai realmente receberá a carta que estou levando ao posto de
correio de campanha em Poltawa hoje? Não é preciso muita adivinhação – nossa experiência nos diz
tudo – em duas semanas. Portanto, a carta percorre 835 km por semana, 119 km por dia, 5 km por
hora! Entregar a carta a pé seria mais cansativo, mas não demoraria muito mais que isso.
Ao olhar para as estrelas – não é necessário observar todo o universo –, olha-se para o
passado. Dizem que o Alpha Centaurus, o nosso vizinho cósmico mais próximo, fica a quatro anos-
luz de distância. Isto quer dizer que a imagem luminosa captada pelos meus olhos ao observar a
estrela tem quatro anos. Ninguém em nossa Terra tem como saber qual a aparência “atual” da estrela.
E o que pode acontecer em quatro anos? A estrela também pode ter deixado de existir. Talvez já não
haja mais nada ali onde eu acredito estar vendo alguma coisa?
É um pensamento macabro, mas não ocorre o mesmo conosco e o correio de campanha?
Quando um pai recebe uma carta de campanha enviada 14 dias antes, como saber se o filho neste
ínterim não foi vítima da guerra? 14 dias é um longo tempo. Como o filho, ao receber uma carta de
campanha de casa dizendo “Todos estão bem”, pode ter certeza de que realmente estão todos bem, se
a casa dos pais neste ínterim não foi destruída por um ataque aéreo? As cartas de campanha são
notícias do passado, assim como as imagens luminosas que as estrelas nos revelam, fadas Morgana,
ilusões de ótica!
Evidentemente, o mesmo também se aplica, em menor escala, a cada carta normal em tempos
de paz, mas não nos conscientizamos tanto disso quando o perigo não está tão onipresente, quando
não contamos com uma catástrofe a qualquer instante – e quando, por fim, em caso de emergência
também se tem a opção de dar um telefonema.
Um exemplo clássico para estes por vezes curiosos diálogos com o passado é a história da
picada de abelha, mas é preciso dizer de antemão que não se trata do Bienenstich, saborosa
sobremesa da culinária alemã que leva este nome, mas da picada, ou melhor, das picadas de
verdadeiras abelhas, mas logo, logo, falarei disto.
Para uns, a guerra é uma horrenda revelação da violência e do terror – para outros, o desafio,
a grande aventura de suas vidas; e para outros, ainda, para aqueles que mantêm o coração e os olhos
abertos, um fenômeno natural repleto de surpresas e novas descobertas sobre as pessoas e as coisas.
Montados em nossas motocicletas, saímos de Krementschug, onde os pioneiros haviam
construído uma ponte de pontões sobre o Rio Dnjepr, íamos exatamente em direção ao Leste para
Poltawa. Era meado de setembro de 1941. Os dias estavam claros e azuis, como em maio. De manhã
cedo, o orvalho brilhava na contraluz e, com sorte e no ângulo certo, via-se todas as cores do arco-
íris quando os raios de luz se refletiam nas gotas de orvalho. Já o anoitecer era repleto de
romantismo cor de violeta. Sentávamo-nos juntos e, conversando em voz baixa, entregávamo-nos às
saudades de casa, às quais se resume todo o sentimentalismo do soldado. A pista estava em bom
estado de conservação e uma leve brisa vinda do sul afastava a poeira antes que ela pudesse fixar-se
na boca, no nariz e nos olhos. Nada interrompia a ilusão de uma tranqüila viagem de motocicleta
através de uma paisagem que parecia ter sido um dia abençoada pelo Senhor.
Pois os terrores da guerra têm diferentes graduações. As nuvens negras por vezes se clareiam
– quem sabe um minúsculo raio de luz até consegue passar em algum lugar? Apenas é preciso que a
pessoa o veja e não se isole com preconceitos – principalmente aquele que não terá nenhuma
influência nos fluxo dos acontecimentos
O grupo de casas de fazenda no qual ingressamos para o almoço até pouco tempo atrás fora
um colcoz. Digo isso como se entendesse algo do assunto, o que não era o caso. Fato é que o sargento
Dankert, um homem culto, mais tarde explicou-nos esta questão das fazendas coletivas russas.
Aparentemente, elas surgiram em decorrência da fusão forçada das fazendas de médio e pequeno
porte e exploravam 95% da área de cultivo soviética. Havíamos entrado em uma dessas fazendas e
estacionamos as nossas máquinas. Era inviável ceder ao imenso desejo de deitar-se ao lado da
máquina e tirar uma soneca, ainda mais com o sargento andando para lá e para cá ininterruptamente.
Era preciso, antes de tudo, satisfazer a rotina. Encher o tanque, verificar o óleo, calibrar os pneus.
Em seguida, limpar a arma, receber alimento, ordem do dia. A viatura-cozinha prepara o almoço
durante a viagem e precisava estar imediatamente apta para a distribuição de comida – em todo caso,
logo todos estavam espalhados por ali com os seus pratos e talheres na mão, na maioria das vezes
com um cigarro na outra, dos que acabaram de ser distribuídos.
Para o soldado, a comida é tão importante quanto o sono. Nestas horas, ele mais se parece
com um vertebrado primitivo do que com o protótipo do ser bípede. Talvez seja a falta de
responsabilidade, o Viver-o-Momento. Talvez este comportamento de “Caçar-Comer-Dormir” dos
nômades seja totalmente normal e justificado para o soldado?
Finalmente a comida está pronta. Cresce a fila diante da viatura-cozinha. E logo passam por
mim os primeiros com os pratos cheios –dou uma espiada: ensopado de feijão – nada muito criativo.
E, de sobremesa, um pedaço de melaço enrolado em papel – o mesmo que ontem. Mais tarde, estou
sentado sobre uma caixa de munição dando colheradas no meu ensopado. Ao meu lado, está o cabo
Antos. Ele dirige uma motocicleta, assim como eu, e é fazendeiro, o que a sua aparência não esconde.
“O animal ainda irá se envenenar”, diz Antos agora, apontando para uma abelha sentada
sobre o seu pedaço de melaço – e aparentemente lambuzando-se com ele. Espantamos o inseto, mas
há vários deles, e estão ávidos pelo melaço. “Não é de se espantar, Antos”, digo. “É xarope de
açúcar, tingido e aromatizado para que tenha sabor de mel. É o alimento natural da abelha.” “Quem
ouve você falando duvida que você jamais tenha comido mel de verdade. Senão você não diria que
isto daqui tem sabor de mel.” Neste ínterim, eu também desembrulhara o meu pacote e imediatamente
recebera a visita de algumas abelhas gordas e bem-nutridas que eu tentava espantar.
“De onde vêm todas estas abelhas, Antos?”, perguntei. “Afinal, as abelhas vivem em
sociedade, em colméias. Deveríamos vê-las em algum lugar.”
Mais tarde, Antos e eu fomos procurar as colméias. Encontramo-las – não uma, mas três.
Eram cestos de palha presos a largas estacas a aproximadamente um metro e meio de altura em um
jardim abandonado. Os cestos de abelhas estavam envoltos pelos insetos, que zumbiam fortemente e
andavam, agitados, para todos os lados, principalmente em torno do buraco da entrada. Desacelerei o
meu passo, espantei os insetos que começavam a voar em torno da minha cabeça e sugeri a Antos,
que parara em frente aos cestos de abelhas, que voltasse. Disse a ele que não estaria interessado no
mel natural, que o melaço me bastava.
E então Antos explicou-me como retirar o mel sem o menor risco –estendeu-se, ainda,
longamente sobre a coragem civil e de todos os apicultores que sequer usavam uma máscara de
apicultor, uma espécie de capacete, mas que simplesmente levantam o cesto de abelhas para retirar
um favo apenas com o cachimbo aceso na boca, porque as abelhas não suportam fumaça de
cachimbo. Tudo isso dizia respeito a mim, e eu sequer perguntei-me por que ele, Antos, não retirou o
mel, já que sabia tão bem como proceder.

****
No dia seguinte, montamos quartel em Poltawa. O estado-maior da divisão ficava na escola
da pequena cidade, e eu, mais uma vez, tinha um teto firme sobre a cabeça. Neste dia, escrevi uma
carta de campanha aos meus pais, primeiro porque escrevia regularmente, mas também – e talvez
devesse reverter a ordem – porque tinha algo não muito comum para relatar que certamente não seria
censurado, ou seja, sobre o que eu poderia falar tranqüilamente. Antes de fechar a carta, reli tudo e,
ao imaginar como o meu pai receberia a notícia, sorri – até onde a situação permitia, como logo
veremos:
Domingo, 28 de setembro de 1941
Queridos Pais,
Tem feito os mais lindos dias de setembro que vocês podem imaginar. Está sempre quente e
ensolarado. Isto levanta os ânimos e a pessoa fica abusada e topa coisas que geralmente evitaria.
Comigo foi a mesma coisa, como vocês verão a seguir.
Vocês têm um vizinho, o Lehmgruber, que tinha uma espécie de apicultura amadora. Em todo
caso, lembro que ele tem colméias e, de vez em quando, trazia-nos um vidro de mel. Naturalmente é
muito simples ganhar o mel assim, pronto, no vidro, mas tentem retirar um favo de uma colméia para
extrair o mel. Posso dizer-lhes pela minha própria experiência que o caminho da colméia para o pote
de mel é um caminho repleto de espinhos. Talvez não para o Lehmgruber, que usa luvas e uma
máscara de apicultor. Mas a mim tentaram convencer que a fumaça de cachimbo espanta as abelhas –
o que é verdade – e que, portanto, não é preciso usar uma máscara de apicultor para retirar um favo
da colméia.
Pois então eu peguei o cachimbo do Hollergschwandtner, soprei nuvens de fumaça negra à
minha frente e segui o que me disseram. Logo tinha em minhas mãos um favo cheio de mel escuro
com algumas centenas de abelhas sentadas em cima. Tinha alguns ferrões no rosto. Fingi que não me
incomodava, mas as picadas doeram muito. Antos retirou-me os ferrões com os dedos, e consegui
sorrir. Sim, e havia mais um fator agravante com que ninguém contava: um dos ferrões estava na
minha têmpora direita, e esta picada havia sido particularmente dolorosa. Ao mostrar a mancha
vermelha de péssimo aspecto ao paramédico, este balançou a cabeça e disse: “Espero que você não
seja alérgico a veneno de abelha.”
Então ontem, talvez uma hora após as picadas, não senti mais nada. Mas hoje pela manhã, ao
tentar abrir os olhos, não consegui. Pensei estar ainda sonhando, mas não era o caso. Apalpei o meu
rosto, procurei os olhos, mas não os encontrei de imediato. Mais tarde, tentei abrir os olhos com os
dedos em frente a um espelho. E então eu o vi – o meu rosto.
Pareço um Buda. Uma cara de lua, redonda, dois olhos de fenda. Este não sou eu, é um
chinês, um mandarim – contudo sei que sou eu. Além disso, ainda estou com um eczema terrível em
toda a face. Pareço um chinês com sarampo. O paramédico está confiante – mas isto eles sempre
estão – e diz que, em poucos dias, o inchaço melhorará.
Vejam o que pode acontecer quando estamos “viajando”.
Espero que todos vocês estejam bem. Escrevam-me em breve. Fico sempre muito contente
quando recebo correspondência de vocês.
Paul

Sim, a carta foi para o trem ainda no mesmo dia. Ali iniciou o seu calvário. Quatorze dias
depois – eis o tempo de viagem esperado da carta – a divisão estava diante da metrópole Charkow,
às margens do Rio Donez, que, em breve, cairia em nossas mãos. Final de outubro, o nosso estado-
maior da divisão estava estabelecido em Charkow. A ofensiva parara um pouco, de modo que o
correio de campanha também podia avançar e distribuir cartas atrasadas. E então eu também recebi
uma carta de casa, e era uma resposta “imediata” à carta da picada de abelha que eu enviara há mais
de um mês pelo correio em Poltawa. Somente quando abri a carta lembrei-me novamente da picada
de abelha. Já havia esquecido deste episódio há tempos – tantas coisas ocorreram por aqui – mas,
para alguns indivíduos, o tempo passa mais rápido e, para outros, indescritivelmente devagar, e
jamais se saberá quem são os mais felizes!
Entre outras coisas, esta carta dizia:
Querido Paul, sentimos muito pelo fato de você aparentemente ter sido envenenado por uma
picada de abelha.
Nesta situação, evite tomar muito vento, o que certamente faria com que o inchaço demorasse
mais para diminuir. Outro conselho: evite tomar sol no rosto (talvez você devesse ficar apenas no
escuro).
Quanto ao eczema no rosto, faça lavagens com uma solução de água e Franzbranntwein[18].
Contudo não acredito que a sua doença seja perigosa, afinal o veneno de abelha é empregado,
inclusive, na medicina, penso que no tratamento de doenças reumáticas.
E por aí foi. Eram bons conselhos, mas eu não mais podia segui-los porque
Primeiro – o conselho chegou com um atraso de quatro semanas;
Segundo – como motociclista, só é possível evitar o vento quando nos aposentamos;
Terceiro – numa viagem de motocicleta rumo ao Leste só podemos evitar a radiação solar com
um guarda-sol;
Quarto – o paramédico diz que, se ele tivesse Franzbranntwein, o beberia ao invés de passar
no meu rosto.
Mas eram conselhos bem-intencionados, e é isso que importa.

****

O TANQUE DE GUERRA . . . .
O artilheiro Hollergschwandtner e eu não éramos do batalhão de tanques – Deus me livre – o
tanque de guerra é uma arma nobre, talvez algo como, antigamente, os dragões ou os ulanos, a elite
acostumada a olhar para o povo comum com ar de superior. Não, o nosso domínio era a motocicleta
– ainda assim, dirigimos um tanque de guerra de 15 toneladas!
Na moto, o meu companheiro e eu sentíamos-nos seguros – exceto no outono e na primavera,
quando a lama frustrava impiedosamente qualquer tentativa de avanço com a motocicleta. Ali,
passavam apenas veículos com correntes, ou seja, tanques de guerra. E, com isto, cheguei novamente
aos tanques de guerra.
Em outubro de 1941, Hollergschwandtner, a quem chamávamos apenas de “Holler”, e eu
andávamos na lama de outono atrás dos veículos do nosso estado-maior em direção a Charkow.
Após menos de uma hora, os motoristas e as máquinas estavam cobertos de lama, e os motores,
super-aquecidos. A continuação da viagem era deveras duvidosa. E então Hollergschwandtner e eu
pegamos um tanque de guerra russo de 15 toneladas na beira da estrada, jogamos as nossas máquinas
em cima e seguimos viagem com o tanque. Nisto, o meu companheiro tinha uma vantagem sobre mim:
ele era fazendeiro e motorista de trator.
“Pegamos um tanque de guerra russo” é uma expressão que requer maiores explicações, e
para isso preciso estender-me um pouco mais – espero não perder o fio da meada...
Posso imaginar que, para um oficial de blindados, um tanque de guerra, ou seja, um veículo a
prova de balas de trinta toneladas e um motor a diesel de centenas de cavalos e um canhão assassino
de 7,5 centímetros, seja apenas uma ferramenta de guerra comum. Nada mais que isso. Quando um
tanque de guerra é atingido, ele salta e pega um outro. Quando a esteira é rompida, a viatura-oficina é
chamada para trocá-la por uma nova. Não se trata do valor. O oficial de blindados não pergunta pelo
preço, pelos custos. Trata-se apenas da reposição, quando necessária. Isto se chama logística e não
tem nada a ver com dinheiro. Há, por exemplo, a munição. Nem quero falar disto. Quem detona mais
dinheiro “duro” é o melhor soldado. Na artilharia, o alto índice de tiros é um sinal de eficiência do
chefe da bateria.
Já o civil tem outros parâmetros. Para trocar a corrente de tração de sua bicicleta, que talvez
valha um milésimo da esteira, ele precisa esperar o próximo salário. A gasolina que o soldado gasta
para lavar a sua motocicleta é o suficiente para um civil dirigir um mês inteiro. Com a quantia de
dinheiro torrada por um bom chefe de bateria em um dia, o civil pode adquirir uma casa para viver
por toda a sua vida. E os grandes artilheiros navais? Cada tiro custa tanto quanto um carro novo.
Eu sei que não devemos fazer comparações deste tipo porque, afinal, na guerra trata-se de
algo totalmente diferente. Quando o inimigo invade o seu país, nenhum tiro é caro demais. É uma
situação sem alternativas. Já na guerra de conquista, o desperdício de um lado pode trazer lucro do
outro. Mas não se trata, aqui, de comparações. Trata-se, muito mais, de trazer à tona o incomparável
entre as noções de valor civis e militares. De outro modo, jamais se compreenderia o comportamento
dos mais novos calouros do desperdício, dos recém-transformados-em-soldados.
Compreendo que os exemplos pessoais não sejam bem-vindos na argumentação por levarem
em conta fatores subjetivos de maneira questionável. Contudo, como aqui se trata de ideais
totalmente pessoais, não há como impedir a subjetividade, portanto a exceção é justificável.
O veterinário do vilarejo dos Bosques de Viena em que eu moro tinha uma motocicleta, uma
PUCH 250 S4, uma excelente máquina esportiva da empresa nacional Steyr-Daimler-Puch AG. O
médico da cidade andava a pé, mas isto também fazia sentido, porque o Homo sapiens tem como ir
atrás de seu médico, já o gado precisa ser tratado em sua própria casa.
Naturalmente, havia alguns outros veículos, o carro dos correios, carros de aluguel e dois
tratores. Contudo recordo-me particularmente da motocicleta, porque podemos desejar ter uma
motocicleta, mas não um trator. A motocicleta fascinava-me. Um ano antes de ser convocado para a
Wehrmacht[19] alemã, uma motocicleta era algo tão inatingível quanto um navio a vapor oceânico –
a diferença de preço era irrisória. Muitas vezes fiquei parado diante da máquina –quando recém-
utilizada, emanava um inebriante aroma de gasolina e óleo quente que subia à cabeça como um
Schnaps[20].
Um ano depois – o meu sofrimento no pátio do quartel havia chegado ao fim – encontrava-me
com mais cinco outros recém-transformados-em-soldados no pátio do quartel da artilharia da cidade
de Wiener Neustadt. À nossa frente estavam seis motocicletas novas em folha de diferentes marcas, e
todas eram muito melhores que a máquina do veterinário. Nós seis havíamos apresentado-nos
voluntariamente para a formação de motociclista fuzileiro, e havíamos sido aceitos. Ninguém nos
perguntara se sabíamos lidar com uma motocicleta. No meu caso, a resposta teria sido negativa,
porque jamais tivera a oportunidade de sequer sentar em tal objeto de desejo, a não ser em meus
sonhos. Isto pouco importava ao sargento – e nem a mim.
A partir do momento em que o sargento berrou: “Às máquinas”, passei os meus dias na
motocicleta, no campo, em covas de areia, nas florestas – sempre com o ronco do motor quente
abaixo de mim, sempre guiando a pesada máquina sobre os obstáculos com movimentos vigorosos.
Eu amava estas máquinas, dirigi os mais diversos modelos e, com o tempo, comecei a realmente
dominá-las. Era algo como um talento meu.
Quando, em 22 de junho de 1941, entramos na União Soviética com a Operação Barbarrossa,
a motocicleta perdeu integralmente o seu valor comercial. Transformou-se em ferramenta de guerra.
Simplesmente estava sempre ali! Melhor ainda, o grupo de abastecimento garantia que estivesse. Sem
motocicleta, não tínhamos valor algum para o general. Onde ficaram os tempos em que fitávamos,
desejosos, uma motocicleta? Sim, os parâmetros haviam mudado. Uma motocicleta não valia nada
mais, nada menos que um bom canivete. E havia as máquinas de despojo, Nortons e Royal Enfields
inglesas – isto era algo para fanáticos por motocicletas. A Royal 500ccm era a melhor coisa de duas
rodas que poderia ser encontrada neste mundo – e era fácil de se adquirir; bastava pegá-la. É, estas
“pegadas”, isto era um segredo!
Ao cruzarmos a ponte sobre o Rio San, o respeitado e no dia-a-dia tão valorizado Homo
sapiens transformara-se em um Homo militaris para o qual se aplicavam novas e temporárias regras
de atitude. Quando o mandamento “Não mates” adquiriu uma nova interpretação seletiva, então isto
também se aplicava a: “Não cobiçarás os bens alheios”, porque este, assim como o amigo e o
inimigo, era dividido em duas categorias facilmente distinguíveis: bem público e despojo.
Uma motocicleta de despojo não era nada – era “despojo”. Podia-se pegar da mesma maneira
que se pegava os binóculos de um russo morto. Tal atitude não merecia nem repreensão, nem elogio.
Era simplesmente assim, quem lançava mão primeiro, em princípio era o proprietário seguinte.
Quem, após uma batalha de envolvimento, percorrer as pistas do cenário, provavelmente ficará
eternamente espantado com a quantidade de valioso material e esforço humano que é destruída aqui,
em plena luz do dia. O trabalho destrutivo é, digamos assim, rotina – e o que ontem era bem público,
agora é despojo.
Para o recém-transformado-em-soldado, a visão do que resta, silencioso e imóvel, às
margens da pista após uma batalha material é fascinante em sua macabra dimensão do desperdício e,
ao mesmo tempo, horripilante em sua brutal revelação de violência e morte. É uma cena
inesquecível, algo que uma pessoa comprometida com a vida civil burguesa jamais conseguirá olhar
com indiferença. Não sentir nada diante disto tudo significaria ter perdido qualquer medida, ter
deixado tudo para trás. A imagem da destruição que agora se revelava à luz do sol pareceria surreal
se as brisas de odores, testemunhas do incêndio e da decomposição, não nos trouxessem de volta à
inconfundível realidade.
Instintivamente desaceleramos, olhamos, incrédulos, para a direita, em seguida para a
esquerda. Até onde a vista alcança, destroços de guerra: carros, canhões, tanques de guerra. Armas,
quebradas e inteiras, pedaços de uniforme, utensílios de cozinha, máscaras de gás, caixas de
munição. E, ainda, granadas de mão russas – que parecem pequenos e perigosos abacaxis – morteiros
e metralhadoras refrigeradas a água... E defuntos de cavalos com barrigas inchadas, cujas pernas
apontam para o alto como pedaços de paus – eles apodrecem atrelados à carroça que deveriam estar
puxando. E pessoas, graças a Deus, poucas – nas batalhas de envolvimento, há mais presos do que
mortos – pessoas que ainda ontem respiravam – como nós, hoje...
Quem, aqui na Rússia e com uma arma na mão, pensa na morte, não vive mais ou menos que
aquele que não o faz. Apenas vive mais preocupado, infeliz. Mas a natureza é misericordiosa.
Raramente tais pensamentos tomam conta de uma pessoa jovem.
Parei a máquina na beira da pista, ao lado de um caminhão de pneus cortados. O caminhão é
de uma suja cor ocre e lembra os nossos carros da década de vinte. O capô do motor está aberto –
um motor de quatro cilindros, caixa de câmbio de três marchas, o mais primitivo que um veículo
pode ser. Ainda assim, para o desenvolvimento técnico deste carro, eram necessários engenheiros
bons e competentes. E designers, analistas de tensões, construtores. E químicos, metalúrgicos,
físicos, matemáticos – somente para colocar tudo no papel. E depois especialistas de produção e
metalúrgicos, especialistas em têmpera e ferreiros forjadores. E máquinas-operatrizes feitas por
outros engenheiros, trabalhadores e administradores – verdadeiros milagres da tecnologia. Eles
fresam e lixam os dentes das rodas dentadas no motor, lixam as cambotas e fazem dezenas de furos
simultâneos no bloco de cilindros. Centenas de trabalhadores estão envolvidos – e estes precisam ser
administrados, e o material, fornecido em tempo.
É, um carro destes não cai do céu. Custa tempo e dinheiro, e requer imensas quantidades de
intelecto humano e força humana. E os muitos soldados que passam pela sua carcaça não sabem
desenvolvê-lo e, tampouco, construí-lo – entretanto, não têm dificuldade para destruí-lo. Eu entendo
um pouco disto e o meu cérebro civilista recusa-se a constatar o quanto, aqui, se abusa da
genialidade humana.
É um caminhão ZIS[21] – fico hesitante diante dele. E então enfio a minha cabeça na cabine.
Um pedaço de cobertor endurecido pelo sangue ressecado, um sapato rasgado, um saco de pão –
limito-me à observação, não toco em nada. Aqui na cabine, também o mesmo cheiro. A gasolina e o
óleo queimado em nada podem mudar isto. O cheiro é igualmente terrível e angustiante. É o cheiro da
miséria e do desastre. Fixa-se na narina por dias. Um cheiro que não se esquece tão rapidamente – o
cheiro de um campo de batalha após a batalha.
A minha curiosidade está saciada – neste caminhão não há nada para se pegar. As nossas
tropas de combate já levaram tudo de útil. Já penso em retornar para a minha máquina quando o meu
olhar fica preso a uma bota que aparece por detrás do caminhão. Dou a volta em torno do veículo. A
bota pertence a um russo morto deitado, meio escondido atrás do caminhão. Por isso não foi visto até
agora – evidente, senão não estaria com a sua submetralhadora nas costas! Uma PPSh, calibre
7,62mm, tambor de munição com mais de 80 tiros. Uma boa submetralhadora, uma arma de
confiança. Nenhum soldado que passara por ali teria deixado-a para Ivan – afinal, ele não precisaria
mais dela.
Estou diante de uma tarefa: preciso pegar a arma para mim. Afinal, segundo a HDV[22], nós
motociclistas usamos apenas um fuzil. A PPSh multiplicaria o meu poder de fogo! Mas não é apenas
isto. Eu também quero ter a arma. Ela me fascina. Jamais segurara uma submetralhadora em minhas
mãos. Eu a desmontaria, passaria óleo, aprenderia a compreendê-la – havia munição suficiente para
isso – e usaria a submetralhadora na frente do peito durante as viagens, deixando o fuzil no caminhão
de carga atrás de mim.
Contudo havia um problema: o russo estava de barriga para baixo, com o rosto enfiado na
terra. A alça da PPSh estava atravessada por debaixo de seu peito, presa entre o tronco e o chão.
Como chegar à arma? Poderia virar o russo e puxar a submetralhadora por cima da cabeça – só de
pensar, fiquei arrepiado – ou poderia cortar a alça com o canivete. Mas como, neste caso, carregaria
a arma na motocicleta?
Inclinei-me em direção ao russo – o cheiro da decomposição tornou difícil a respiração –
peguei a submetralhadora em suas costas. Uma puxada forte – o russo virou-se ligeiramente, o rosto
surgiu por debaixo do capacete de aço amarelo-ocre. Não era um rosto de verdade – das órbitas,
saiam vermes. Larguei a submetralhadora, virei as costas para o Ivan, engoli seco algumas vezes.
Não vomitei. O que estava acontecendo comigo? Do que mais eu precisaria para finalmente
aprender a ter medo?
O desejo pela PPSh já não era mais tão urgente, mas ainda estava lá. Inclinei-me novamente
para baixo, tentei abrir uma das fivelas da alça, soltar a alça da submetralhadora; consegui. Peguei a
arma, puxei a alça por debaixo da barriga do Ivan. Estava com o estômago embrulhado, mas tinha
uma PPSh. Eu a pegara – simplesmente assim – sem pagar, sem assinar nada. Amanhã, se quisesse,
poderia jogá-la fora, passá-la adiante. Era despojo, e eu não devia satisfação alguma a ninguém.
Acabei desviando um pouco do assunto. Mas talvez agora o Homo sapiens consiga
compreender melhor o que o Homo militares entende sob “pegar” e que, quando se pode pegar uma
PPSh, isto também se aplica igualmente a um tanque de guerra de 15 toneladas; o tamanho não
importa.
Era final de outubro de 1941. O Rasputitza, o período de lama, se anunciara. A ofensiva
tornara-se mais lenta, a lama estava cada dia mais pegajosa. Andar na motocicleta transformou-se em
um tormento. Já havíamos desmontado os pára-lamas das nossas NSUs, o que facilitava a sua
manobra quando o motorista não se incomodava com o fato de se formarem grossas e pesadas crostas
de lama na parte dianteira do motor e nas suas costas, no entanto este se revelara ser o mal menor. Há
muito tempo já havíamos perdido de vista o carro do general – fora preciso parar inúmeras vezes
para livrar as máquinas da lama. Em uma destas pausas de limpeza, o tanque de guerra chamou-me a
atenção.
Eu estacionara a minha máquina – sem a menor intenção – como que em sua “sombra”. Agora
olhei para o meu companheiro. Acredito que tivemos a idéia ao mesmo tempo. Olhamos para cima,
em direção à torre de tiro – o tanque pesava mais de 15 toneladas, o orifício da boca do canhão
parecia ter uns 5 centímetros – enorme! Quebrei o silêncio: “Holler”, disse, “Você sabe andar de
trator. Acredita que consiga dar conta deste tanque?” Ele não respondeu nada, mas imediatamente
começou a escalar a esteira para chegar à torre. A tampa estava aberta – ele olhou para dentro. “O
que há aí dentro?”, perguntei. Holler não respondeu porque estava entrando no tanque. Na realidade,
não me interesso muito por estes caixões de aço – mas como veículo que pode nos transportar para
fora do Rasputitza? Por que não? O tanque parecia novo. A tripulação parece simplesmente tê-lo
abandonado. E então a cabeça de Holler voltou a aparecer. Sua cabeça e tronco projetavam-se para
fora da escotilha como se ele fosse um general de blindados na ofensiva. “E então?”, perguntei, e
Holler fez este inconfundível sinal da mão com o polegar para o alto, o que significava que, a partir
de agora, andaríamos no tanque. Fomos ambos suficientemente idiotas para não pensar sequer um
segundo no que aconteceria ao nos aproximarmos a todo vapor ao nosso quartel do Estado-Maior
com um tanque russo. O fascínio por aparelhos tecnológicos não deixava espaço para tais dúvidas.
“Holler” e eu éramos uma boa equipe. Eu tinha certeza de que ele conseguiria dirigir o
tanque. Mas havia outro problema que atrasou a nossa partida: antes de fugir, os russos haviam
rapidamente arrancado o interruptor de ignição e, provavelmente, levado consigo, porque, em seu
lugar, havia apenas cinco fios desencapados apontando para fora do painel. Já esta era uma
responsabilidade minha. Experimentei fio com fio – eram apenas cinco, uma simples questão de
combinatória – ou seja, um total de 10 possibilidades. Rapidamente teria passado por todas elas, mas
após poucas tentativas o motor já despertou para um ronco vital. Ficamos perplexos. Não
esperávamos por isto. Agora tínhamos um problema – o tanque decidira por nós. De certa forma,
devíamos esta ao tanque – uma besteira, mas acredito que simplesmente pensávamos assim!
Hollergschwandtner sentara-se no banco do motorista. Sentei-me ao lado dele e fiquei
curioso por saber o que ele faria em seguida. Holler parecia não ter dúvida alguma do que fazer.
Pegou as duas alavancas com as mãos e colocou os pés sobre os pedais. Um tranco, e o tanque
movimentou-se para frente. Tive a sensação de estar em outro planeta. Através da abertura de
observação, via a estrada diante de mim. Holler manteve o olhar firme à frente e estava preste a
acelerar bem, quando lembrei de algo. Sacudi a manga da camisa dele e gritei: “As nossas
máquinas?” Por pouco evitei, com uma força mental sobre-humana, que voltássemos sem as nossas
NSUs, o que poderia ter-nos levado ao tribunal de guerra.
Paramos o tanque – o motor continuou ligado – e saímos do veículo pela torre. Ao carregar as
motocicletas no tanque, Holler passou a ser novamente o homem mais importante da equipe, por ser
suficientemente forte para erguer uma das nossas NSUs até mesmo sozinho. Mesmo assim, fizemos
isto juntos.
Agora as nossas máquinas estavam deitadas na parte plana traseira do tanque, acima do
motor, e estávamos prontos para partir. Ao voltar para dentro do tanque através da torre, o meu olhar
ficou preso à tampa do canhão – estava fechada! O que isto significava? Perguntei ao Holler. Agora
estávamos ambos dentro da torre, ao lado da tampa do canhão. O canhão estaria carregado? Rodei a
manivela e a torre girou para a direita, em seguida para a esquerda. Interessante! E na tampa havia
um pedaço de corda pendurado – este provavelmente era o gatilho, assim como nos nossos obuses de
campanha.
O anjo da guarda do soldado amador deve estar sempre presente, e precisa entrar na mente de
seu protegido para conseguir cumprir a sua tarefa. Como alguém poderia imaginar que Holler, por
pura curiosidade, puxaria a corda do gatilho, que o canhão estaria carregado e que uma granada
mortal seria atirada para fora do cano do nosso canhão a uma velocidade supersônica e com um
barulho ensurdecedor? O anjo da guarda foi bastante eficiente, fazendo com que eu apontasse o cano
em direção à floresta, onde o projétil caiu nas primeiras árvores. Mais uma vez, saímos ilesos. O
fato de também não pensarmos sequer um segundo quanto combustível teria no veículo também podia
ser atribuído à nossa juventude. E o tiro, que deixara ambos pálidos, lembrou-nos, um pouco tarde,
que, a partir de agora, ao invés de lançar tiros, poderíamos facilmente receber tiros, e das nossas
próprias armas antitanques, caso alguém de longe pensasse sermos russos alijados.
Holler foi obrigado a tirar a sua camisa que mal podia ser chamada de branca, e agora usava
o casaco do uniforme diretamente sobre o corpo nu. Por que? Não porque sentia muito calor, mas
porque eu precisava da camisa como bandeira de rendição. Portanto, Holler ficou sentado embaixo,
dirigindo o tanque, enquanto eu olhava para fora da escotilha da torre, ao meu lado o fuzil com a
camisa amarrada, que eu imediatamente utilizaria caso alguém pensasse termos intenções inimigas.
Eu havia içado o canhão, de modo que o cano apontava para o alto como se eu quisesse acertar um
avião. Era um gesto de humildade, e eu esperava que fosse compreendida como tal.
Assim, agora andávamos, nem tanto atrasados, atrás da companhia de estado-maior, e
rapidamente a alcançamos porque os veículos estavam presos na lama em uma subida de uns cem
metros de extensão. Ao nos aproximarmos, agitei a bandeira da rendição, além de fazer bastante
barulho e gestos para evitar que os meus camaradas da artilharia antiaérea transformassem o veículo
recém-adquirido no nosso caixão de aço.
O alvoroço da companhia foi grande, além de outro fato para o qual eu inicialmente não
encontrei explicação: fomos recebidos como os salvadores de um navio naufragando. Agora o
sargento Dankert se aproximou – já pensei que ele brigaria conosco e nos tomaria o tanque –
contudo, apenas disse: “Já que estás aí com o trator, cabo, atrele-se diante do carro do general e
puxe-o para fora da lama.” E assim foi. Içamos o general encosta acima com o nosso tanque russo –
e, em seguida, todos os outros também, e quando o tanque simplesmente parou por falta de
combustível, metade da companhia veio correndo com os bidões na mão para fazer com que o
reboque salvador voltasse a funcionar.
Mais tarde, a viatura-oficina pintou símbolos de nobreza no tanque, principalmente na parte
dianteira, onde o seu aspecto era particularmente infame e agressivo. Apesar disto, era pura sorte
ninguém atirar em nós, uma vez que o tanque continuava com o brilho da cor amarelo-ocre do
exército russo.
Holler e eu dirigimos o tanque durante todo o período do Rasputitza até o início do inverno.
Tirávamos da lama tudo que levava rodas. Ao percebermos que os resgatados sempre procuravam
expressar grande gratidão, passamos a estender o nosso chapéu de montanha com a abertura para
cima, o que sempre foi imediatamente compreendido. Conseqüentemente, neste outono fumamos mais
cigarros do que nos faria bem.
Como livrar-nos novamente do tanque?
O rio não era largo, certamente também não era fundo, mas não tínhamos como estimar ou
adivinhar, porque estava congelado. Na realidade, não era um rio, era um riacho – um córrego sem
importância – algo assim não podia nos atrasar. A ponte era de madeira – era evidente que
chegaríamos até o meio e que, então, a estrutura de madeira podre cederia sob fortes rangidos – isto
significava, sem dúvida, três metros de queda livre. Qual camada de gelo resistiria? Ou seja, melhor
passarmos diretamente sobre o gelo.
Era início de dezembro de 1941, e fazia muito frio. Lá embaixo, onde o Holler ficava
sentado, ainda entravam algumas calorias do motor, mas ali, onde eu estava, na torre de tiro,
possivelmente fazia mais frio dentro do que fora. Era o nosso primeiro inverno russo, e até então não
havíamos recebido agasalho de inverno – talvez não recebemos nenhuma, nunca? Eu olhava para fora
do tanque e guiava Holler sobre o riacho congelado conforme planejado.
Qual seria a espessura do gelo? Havíamos ouvido inúmeras vezes que, no inverno, os russos
cruzavam o Rio Volga, congelado, com os seus tanques russos – por que deveríamos capitular diante
de um córrego como este? Assim, induzi Holler ao erro gritando para baixo: “Adiante”.
Caímos na água. A camada de gelo estava fina demais. Salvamos a própria pele, e nada mais.
Sequer a PSSh, que era todo o meu orgulho. E estávamos molhados, e isto a dez graus abaixo de
zero!
Na realidade, esta foi toda a história do tanque de guerra. Mas talvez não devêssemos
encerrar uma história sem tentar extrair dela uma lição. Porque é isto que chamamos de experiência,
quando uma pessoa relembra as suas vivências – como que “separando o joio do trigo” – e então
arquiva tudo em duas pastas: “a repetir” e “a evitar”, para utilizar mais para frente.
No que diz respeito a mim, logo percebi que, no tanque de guerra, era possível transportar
mais coisas que na motocicleta – e eu me transformei num colecionador. A facilidade de “pegar”
havia envenenado meus sentidos. Não pretendo enumerar todas as coisas que enfiei no tanque de
guerra, recolhidas com avidez. Armas, um par de binóculos e um teodolito – e, inacreditável – um
projetor de 16 milímetros que eu pegara em uma escola abandonada. Em cada minuto livre, eu
brincava com estes objetos até ter a sensação de que eles realmente me pertenceriam para sempre.
“O que vem facilmente, facilmente se vai” não é novidade alguma. Ainda assim, por vezes é
bom ser lembrado disto!

****

NOITE FELIZ . . .
Faz muito frio. Desde que escureceu, esfriou ainda mais. E não são sequer sete horas. Já deve estar fazendo mais de vinte
graus abaixo de zero. Durante a noite, facilmente cai para trinta. Não estou com a minha tropa, onde o quartel-mestre protege todos os
seus carneirinhos da friagem. Estou sozinho – uma espécie de “alijado”. Desde Charkow, estou atrás da minha companhia e, até agora,
não os alcancei.
No que tange as ordens, está tudo correto comigo. Recebi, do comandante da companhia, uma ordem de marcha por escrito
de Charkow até Stalino, que agora se chama Doneck. A ordem de marcha também tem um texto pré-impresso que diz que todas as
repartições devem “deixar a pessoa acima citada viajar livremente e, quando necessário, fornecer-lhe proteção e ajuda”. É inacreditável:
o mais difícil para um “alijado” no inverno é encontrar um teto sobre a cabeça com um pouco de calor. Em todos os lugares já há
pessoas abrigadas olhando-o desconfiado. Ah, se eu tivesse uma patente mais alta! Mas sou um cabo!
Também não é culpa minha não ter alcançado ainda a minha companhia. Estou encarregado de levar uma motocicleta, uma
pesada máquina solo, até Stalino. Não somente está extremamente frio – é impossível dirigir mais que meia hora sem arriscar danos
causados pelo frio. Não, há, ainda, a neve que transforma a direção em uma acrobacia de circo como dançar na corda bamba,
dificultando o avanço. Assim, ocorre que hoje, em 24 de dezembro de 1941, continuo perambulando sozinho na Bacia do Donez, ao invés
de estar sentado com a minha tropa em um alojamento quente e desfrutar das “distribuições especiais”: chocolate, cigarros extras, quem
sabe até um pedaço de salsicha defumada ou, ainda, geléia. Isto seria, digamos assim, equivalente a um presente de Natal. Estamos
acostumados a isto desde a infância – com ansiosa expectativa, alegria antecipada e tudo mais.
Contudo o Heeresdienstvorschrift[23] não prevê que os alijados recebam distribuições de Natal porque “a que ponto
chegaríamos; afinal, vem tudo contado para a própria tropa.” E foi isto que ouvi hoje do tesoureiro de uma companhia de destruidores de
tanque ao receber a minha ração do dia. Já não resta mais quase nada do que eu recebi. Um pedaço de pão de centeio que já congelou,
e uma cebola inteira que o ajudante de cozinha dos destruidores de tanque deu-me de presente. Gosto de cebola para acompanhar
sanduíche de presunto, mas, desta vez, não tinha nem presunto, apenas melaço. Portanto, ao que parece passarei o meu Natal com pão e
cebola. Ah, se eu pudesse descongelar o pão em algum lugar! A cebola está no meu bolso, onde ela não congela.
Não posso esperar que as pessoas de uma outra unidade me deixem participar de suas celebrações. Mas talvez esteja sendo
demasiado humilde. Talvez devesse infiltrar-me em algum lugar. Muitos fariam isso. E a distribuição de Natal? Não quero comer nada
que pertença a outra pessoa!
Quando viajamos sozinhos, alijados da tropa, sentimo-nos abandonados e perdidos. Nossa tropa substitui a família. O ser
humano é um animal que vive em grupo. Ao ser separado de uma família, une-se a outros companheiros com o mesmo destino. O
comandante da companhia transforma-se no pai – a autoridade – inatingível ou jovial, mas sempre severo e justo. E o sargento? Talvez
um opressor, como alguns irmãos mais velhos, mas que nunca abandona ninguém em situações difíceis. O alijado não tem mais ninguém
– ele começa a sentir compaixão consigo mesmo, um círculo vicioso que facilmente pode levar a pessoa a derramar lágrimas pela
própria infelicidade, que sequer é tão grave assim – e que certamente congelarão antes de conseguir escorrer por toda a bochecha.
E por falar em autocompaixão! Vindo do Norte, antes de escurecer eu parara em Krasno-Liman, um vilarejo na beira da linha
do trem que leva de Charkow a Taganrog. Até o destino da minha viagem, Stalino, ainda faltam 120 quilômetros, para os quais eu
precisaria de mais dois a três dias nestas condições meteorológicas. Eu parara aqui, primeiro porque vi, estacionadas em frente à estação
de trem, viaturas da Wehrmacht[24] integrantes de uma companhia de destruidores de tanque, segundo porque estava farto de andar a
vinte graus abaixo de zero e sob nevasca, e terceiro porque hoje é dia 24 de dezembro e, onde há pessoas, há calor, e no Natal devemos
estar com pessoas e sentir o calor.
Deixei a minha máquina em um galpão da estação sem aquecimento, onde me foi dito que eu também poderia dormir.
Encontrei o tesoureiro dentro da estação de trem e recebi dele um vale para uma ração do dia que, em seguida, fui pegar com o ajudante
de cozinha. Depois de uma bela porção de feijão com carne de porco do caldeirão esfumegante, o mundo já parecia um pouco melhor.
Pouco se sentia do clima de Natal aqui, neste refeitório improvisado – outrora sala de espera. Todos haviam levado a sua ração especial
de Natal para os aposentos. Às sete horas, disseram, o refeitório seria fechado; o ajudante de cozinha também teria direito a uma Festa
de Natal.
Sim, aposentos! Eu estava sem aposento. Depois de aquecer-me um pouco, saí da estação de trem e fui caminhar ao longo
das casas do vilarejo. Escurecera – das casas também não se via luz. Qualquer minúsculo foco de luz poderia atrair o tradicional avião
bombardeiro noturno dos russos, a “máquina de costura”. Neste ínterim, voltei a sentir muito frio. Principalmente nos dedos dos pés e das
mãos. Os primeiros, infelizmente, não podemos enfiar nos bolsos. Das orelhas, nem quero falar. Naturalmente tínhamos protetores de
orelha. Não é roupa de frio. Faz parte da do equipamento normal. Uma touca de tricô com um buraco na frente para o rosto. Quando
falo de orelhas congeladas, naturalmente quero dizer “apesar dos protetores de orelha”. Portanto, quando não as cobrimos com força
com as mãos e luvas, é a vez das orelhas. E, quando as cobrimos, é a vez dos dedos das mãos. O pior é o vento gelado. Preciso
proteger-me dele de alguma forma. A casa em que procurei proteção do vento era escura como as outras mas, através de suas paredes
e frestas, ouvia-se música e vozes. Atrás da casa, também havia um Kübelwagen [25] e um caminhão de comunicações. E eu estava
protegido do vento, com as mãos enfiadas no fundo dos bolsos, os ombros envergados de frio – e ouvi: “Aqui é o Großdeutscher
Rundfunk [26]. Daremos início à nossa programação de Natal.” E então, música festiva. Música natalina. Em seguida:
“Cumprimentamos os camaradas em todos os Fronts!”
As lágrimas correm – a autocompaixão me vence. Hoje ninguém neste mundo está tão sozinho quanto eu!
Retorno ao galpão onde está a minha motocicleta. O sentinela no portão mastiga um pedaço de chocolate. Ele enfia a mão no
bolso: “Quer um pedaço?” E retira uma barra de chocolate. “Não, obrigado”, digo, “já comi bastante chocolate hoje!”
No galpão, apesar de não aquecido, a temperatura é suportável; em torno do ponto de congelamento. Também há sacos de
feno. Pego um, jogo ao lado da minha maquina e retiro dois cobertores das bolsas da motocicleta. Agora me sento sobre o saco de feno,
e dou início à minha Festa de Natal.
O pão está congelado, mas consigo cortá-lo. Na tampa da panela, fatio a cebola aromática com o canivete afiado. Basta o
calor das mãos para tornar comestíveis as finas fatias de pão de munição. Resumindo, para quem gosta de cebola e pão de munição, não
podia ser melhor. Digo a mim mesmo “hoje certamente há muitas pessoas em situação pior que a minha!”. E lavo a minha alma, o que
todo mundo deveria fazer no Natal, estou feliz comigo mesmo e perdôo-me pelo momento de fraqueza em que, sem razão aparente, a
minha alma ameaçou desvirtuar-se.
O meu olhar volta-se para a máquina. Ela é todo o meu orgulho. Motor boxer de seiscentos centímetros cúbicos, 28 cavalos,
eixo-cardã, um garfo telescópico forte... Poderia-se dizer “E daí, uma BMW-R67; o que tem de especial nisso?”
Pois é exatamente isso! Há algo de especial, sim, porque a máquina não é uma BMW e a história de seu nascimento – se me
for permitido dizer isso – é o motivo pelo qual estou viajando sozinho aqui no vale do Donez. Enquanto mastigo o meu pão com cebola,
pensativo, a história pouco a pouco retorna à minha consciência. Como sempre, o simples fato de pensar nisso já levanta o meu ânimo.
Não é uma dessas histórias da Guerra, de violência e morte, mas, mesmo assim, o modo com que esta história se desenvolveu
só é possível na guerra. É a história da força criadora que, por menor que seja, cada um de nós carrega dentro de si, e da satisfação
perante uma obra concluída, por mais insignificante que possa parecer, que eleva a alma e não conhece lucro ou vantagem pessoal. É a
história de pessoas...
Foi no final de outubro. A “minha” divisão havia cruzado o Rio Dnjepr e passara por Belik e Poltawa até chegar aos portões
de Charkow, metrópole do Donez. Era a quinta maior cidade industrial da União Soviética e, até 1934, fora a capital da Ucrânia. A
tomada de Charkow fora concluída em 24 de outubro de 1941. A cidade não fora defendida pelas tropas de elite soviéticas, e os
complexos e instalações industriais haviam sido tranqüilamente desmontados e evacuados anteriormente. Ingressamos em uma cidade
pouco destruída, em uma cidade moderna, um lugar em que não havia apenas “babuschkas” com lenços de cabeça pretos, mas também
“meninas de verdade”. Muitas delas adoravam música (americana) “decadente” e também sabiam dançar. Os moradores estavam (ou
fingiam estar) contentes com a nossa chegada, e mostraram-se hospitaleiros e prestativos.
A crônica de guerra observará, mais adiante, que, no final das contas, Charkow também não fora melhor que as outras
cidades por nós conquistadas.
Aqui, cada um de nós motociclistas era o seu próprio quartel-mestre. Instalamo-nos em lares russos. Eu teria vivido como um
paxá na família que cuidava de mim (eram apenas mulheres), não tivesse o sargento Dankert me atiçado com a fábrica de motocicleta.
Dissera-me: “O pessoal de comunicações está falando de uma fábrica ao norte da cidade que produziu em série uma cópia autêntica da
nossa BMW – R67. Certamente foi tudo evacuado, mas quem sabe ainda encontramos algumas peças de reposição – ao que parece,
podem ser trocadas pelas nossas. Holzner e o Senhor e irão comigo.”
A fábrica era grande e moderna. Primeiramente, entramos em uma construção de dois andares que parece ter sido o galpão
de montagem. Tudo indicava que ali não havia mais nada para pegarmos. Do chão de cimento apontavam para o alto parafusos que
outrora fixaram máquinas e esteiras de montagem e, nas paredes, havia braçadeiras arrancadas das tubulações de ar comprimido e
vapor, entre outras – em suma, tudo que é necessário para uma linha de montagem moderna como essa. Até mesmo a iluminação fora
desmontada.
“A primeira vista” não havia mais nada ali. Contudo remexemos em todos os cantos e no porão, e acabamos achando uma
roda aqui, um quadro ali, parafusos, rolamentos de esferas – por fim, sobrara um pouco mais que “nada”.
O fato de, posteriormente, encontrarmos debaixo de uma escrivaninha esquecida no porão uma caixa com um bloco de motor
e engrenagem completo foi um acaso sem importância, mas que acabou desligando, ao menos em mim, a atividade cerebral denominada
“racional”, substituindo-a por um desejo beirando à obsessão de montar uma máquina inteira aqui. Disse a mim mesmo: “Se procurarmos
de verdade, certamente encontraremos todas as peças para apenas uma motocicleta, e o que não encontrarmos, poderemos
complementar com peças da nossa própria viatura-oficina, já que todas as peças parecem ser intercambiáveis.”
Se a idéia, cuja utilidade, hoje em dia, parece questionável, não tivesse sido aprovada pelos meus superiores, tudo certamente
teria ido por água abaixo e eu teria comido chocolate no Natal, igualmente a todos os outros.
Em torno do meio-dia, o sargento Dankert retornou à companhia de estado-maior e deixou Holzner e eu prosseguindo a
procura na fábrica. Antes de escurecer, havíamos juntado em um lugar tudo que era necessário para uma motocicleta, até o menor dos
parafusos. Retornamos ao estado-maior apenas à noite e, no dia seguinte bem cedo, pretendíamos estar de volta para nenhuma “pessoa
desautorizada” levar embora o nosso tesouro.
No estado-maior ainda recebemos, à noite, o sermão untuoso e paternal do comandante da companhia, que já havia sido
devidamente preparado por Dankert.
Quem entende de motocicletas, concordará com o que direi a seguir, e quem não, não se entediará porque serei
suficientemente breve e simples para que qualquer pessoa possa compreender.
O alicerce da motocicleta é o quadro, geralmente feito com canos de aço soldados, onde, no meio, são aparafusados o motor e
a caixa de câmbio. Atrás, o quadro é aberto para que a roda traseira possa ser encaixada juntamente com o freio e o pneu. Na parte
superior do quadro fica o tanque de combustível e, atrás deste, o assento do motorista (selim). O garfo, que sustenta a roda dianteira, fica
preso e gira em torno de um eixo (quase) vertical na parte frontal do quadro. A motocicleta é guiada através do guidão, inserido acima do
garfo. Agora o torque do motor precisa ser transmitido para a roda traseira. Em geral, eis a função de uma corrente, parecida com a da
bicicleta, ou ainda, como nas máquinas BMW e Zündapp, de um eixo de transmissão parecido com o eixo cardã do automóvel. Entre as
peças visíveis, ainda há os pára-lamas, as alavancas de comando e o farol.
Para o observador desinformado, esta é a listagem completa das peças de uma motocicleta, mas infelizmente ainda há muitas
coisas que não se vê e sem as quais jamais se conseguiria construir uma motocicleta com as peças listadas.
Na alvorada do dia seguinte, Holzner e eu estávamos diante da montanha de peças de motocicleta com duas bolsas de
motocicleta repletas de ferramentas. Lembrei-me do sábio dizer que profere que uma máquina é mais que a soma de seus componentes.
Isto daqui não era nada! Metade de um dia de procura nos cantos imundos de uma fábrica abandonada. Contudo, na minha mente
visualizei a máquina montada diante de mim – ouvi o seu ronco sonoro – vi-me, ligeiramente debruçado sobre o guidão largo, dirigindo
pelas estepes da Rússia – sobre uma máquina “feita a mão”!
Eis o desafio. Nenhum de nós jamais havia montado uma motocicleta inteira – mas tínhamos vinte e um anos! Com vinte e um
anos não se teme uma montanha de peças de motocicleta que talvez sequer combinem entre si.
Nem quero perder muito tempo relatando da fase de construção da máquina, exceto que demorou muito mais do que
imaginávamos, e que montamos um acampamento ao lado da máquina, onde à noite nos revezávamos para dormir com a arma na mão,
para que ninguém pudesse levá-la.
A cada dia surgiam novos problemas, e, ainda assim, eram sempre os mesmos: faltavam peças, ou as que tínhamos não se
encaixavam umas nas outras. Esquecemos das meninas que dançavam músicas “decadentes”, esquecemos do sonho do paxá –
estávamos obcecados pela tarefa que nos incumbimos, e sabíamos que não terminaríamos até a partida de Charkow.
No dia 10 de dezembro, a companhia de estado-maior da centésima divisão de caçadores levantou acampamento em
Charkow para montar acampamento em Stalino, que ficava a 300 quilômetros em direção sul e era o centro carvoeiro da bacia do
Donez.
A nossa máquina não estava pronta para dirigir – mas já estava sobre duas rodas. E qualquer um teria confundido-a com uma
BMW-R67. Antes da partida, Dankert ainda arrastou o comandante da companhia até a fábrica. Este admirou a nossa obra e disse-nos
para terminarmos a máquina com calma e depois segui-los. Encontraríamos indicações suficientes no caminho.
Contudo o sargento Dankert acabou decidindo levar Holzner e deixar-me sozinho com a máquina. No dia 16 de dezembro, fiz
o meu primeiro test-drive. No mesmo dia, o tempo virou. Nevasca e frio. Para os 180 quilômetros de Charkow até aqui, eu levara oito
dias. 22,5 quilômetros por dia! Em tese, um soldado da infantaria o faria tranqüilamente a pé – mas não faz. Morre congelado antes de
chegar.
O pão com cebola já acabou há tempo; acabei de fumar o segundo cigarro. Recosto-me até a cabeça pousar sobre a bolsa da
motocicleta, e estendo os cobertores sobre o meu corpo. Não sinto mais frio. A viagem ao passado valeu a pena; é uma bela lembrança.
E este Natal não foi dos piores! Foi um Natal pacífico, e não vejo violência em lugar algum.
Peguei no sono antes de conseguir desmascarar mais esta última ilusão.

***

O HERÓI . . .
Parado na beira da estrada ao lado da minha máquina no cavalete central, praguejo. O que me
resta fazer se nada acontece conforme desejado, e quando os elementos são mais fortes que nós
mesmos. O que chamei de estrada é a larga faixa enlameada cortada por profundos sulcos que se
estende até o horizonte. No fundo destes sulcos vejo o reflexo de poças d’água. A lama acabara
definitivamente com a minha motocicleta, uma DKW 350. O espaço entre a roda traseira e o pára-
lama estava totalmente preenchido por uma enlameada e pegajosa massa homogênea e quase seca que
eu enfrentava com a baioneta. Era a quarta vez neste dia. Poder-se-ia perguntar: “Por que você não
engata a primeira marcha na máquina sobre o cavalete e deixa a roda traseira girar até toda a lama
ser lançada para fora?” Pergunta idiota! Só mesmo alguém que nunca andou de moto na Rússia para
fazê-la. Para ser mais explícito: a roda traseira fundiu-se com o pára-lama para uma única peça! Nem
mesmo o mais forte dos motores giraria a roda. No pior dos casos, a corrente de transmissão se
romperia como um fio. Não, a massa precisa ser quebrada parte a parte com a baioneta. Isto requer
paciência. Mas não tenho pressa porque a caravana de aproximadamente cem metros de comprimento
que devo acompanhar também está parada. Estou parado ao lado dos veículos mais avançados; eles
apresentam problemas parecidos com o meu.
Aconteceu na bacia do Rio Donez, no começo de abril de 1942. Até final de março, o degelo
e vários dias de chuva transformaram as estradas e caminhos em desertos de lama intransponíveis. A
água do degelo na estrada batia nos joelhos. Os únicos meios de transporte utilizáveis eram veículos
com correntes e carroças. Neste ínterim, a lama aguada adquirira estrutura, e o período de degelo se
transformara no “período primaveril da lama”. A caravana encalhada à minha frente pertencia à
companhia de estado-maior da centésima divisão de caçadores, na qual eu era motociclista
mensageiro. O general tivera pressa de sair do alojamento de inverno em Stalino. Em algum lugar
havia fortes forças blindadas russas das quais era melhor esquivar-se – ao menos foi o que eu
concluí a partir de comentários do sargento Dankert.
O motivo do encalhamento da caravana era, como sempre, o primeiro veículo, um automóvel
do exército com carroceria padrão e tração nas quatro rodas. Apesar de ser off-road, o carro
derrapou e ficou atravessado na pista, impedindo que os veículos seguintes seguissem para frente ou
para trás. O Horch do general e a Mercedes do 1a[27] haviam sido carregados em um reboque, por
sua vez pendurado em um caminhão-reboque de esteiras. Os oficiais dirigiam veículos padrão off-
road. Atrás do 1a andava um carro do departamento de comunicação. Portanto, hoje tínhamos contato
via rádio, de modo que os motociclistas mensageiros, cujas máquinas simplesmente não foram feitas
para a lama, não faziam tanta falta. Também vi o 1a falar ao telefone de campanha. Certamente
tentava conseguir veículos com correntes para tirar o veículo da frente do caminho.
A caravana ficara presa em um local estrategicamente desfavorável para nós. Um pouco mais
à frente, a pista fazia uma curva para a esquerda e seguia adiante por cima de uma crista de
montanha, ao passo que o terreno diante de nós sofria uma ligeira queda para, dois quilômetros
depois, voltar a subir até a altura em que nos encontrávamos. A crista de montanha que víamos diante
de nós estava a uma distância linear de quatro a cinco quilômetros. Com binóculos, facilmente se
identificaria um homem. A olho nu, certamente um veículo. Lamentavelmente, no sentido inverso isto
funcionava ainda melhor: com um telescópio binocular, um russo escondido por detrás da crista da
montanha poderia identificar a marca do cigarro que fumávamos, e nós sequer teríamos como
esconder-nos dele. Era preocupante! Agora também vi o general ao telefone – e o 1c, que
provavelmente sabia mais do que todos nós juntos.
Agora ouvi um veículo de esteiras aproximar-se da parte traseira da caravana. Era um
caminhão-reboque da artilharia que havia desmontado o seu obus para poder ajudar na frente.
A detonação da granada cinqüenta metros à frente e à esquerda praticamente foi engolida pelo
ronco do caminhão-reboque. Mesmo assim, eu já estava deitado no chão antes mesmo de me
conscientizar do impacto. Não aprendemos isto, mas também não é preciso aprender. Quem tem
instinto, sobrevive – talvez. Ninguém em casa faz idéia do quanto uma pessoa pode se achatar. Como
as suas formas e curvas conseguem moldar-se para dentro das cavidades do terreno, como ela fica
cada vez mais achatada, até desejar nem estar mais ali. E como ela agradece a Deus por ter parado
no abraço protetor e molhado de uma poça de lama.
Foi o primeiro impacto – mas não o último. Seguiram-se vários estampidos claros e rasgantes
das granadas explosivas, acompanhados dos intermináveis e insuportáveis assobios dos inúmeros
cacos que voavam por cima de mim. Era o fim! Desprotegida, sem trincheiras-abrigo, a caravana, e
eu com ela, tornara-se alvo da artilharia soviética. Todos se lançaram para fora dos veículos e
procuraram proteção abaixo deles. E então um homem gritou – “Tanques de guerra!”
Ergui a cabeça pela primeira vez – e então os vi chegando. Lenta e majestosamente desceram
a encosta numa larga linha de frente. Cada vez mais deles surgiam por cima da crista. Ainda estavam
a quatro quilômetros de distância, mas era possível reconhecê-los – pelo seu tamanho! Eram T-34, e
atiravam a todo vapor enquanto rolavam continua e impiedosamente em nossa direção. Atiravam mal.
Os tiros espalhavam-se muito. A mira de seus canhões de cano longo de 7,5 cm não fora feita para o
ataque indireto. Se fossem obuses de campanha, em pouco tempo não teria sobrado nada da nossa
caravana.
A única coisa que ainda me preocupava milésimos de segundos depois era o maldito apito de
um impacto muito próximo. A detonação fora abafada, mas o solo ergueu-se debaixo de mim – e,
subitamente, não ouvi mais nada. No instante seguinte, choveu lama e terra – eu estava deitado no
ângulo morto de uma detonação de granada. A granada cavara um funil profundo a menos de três
metros à minha frente. Era a salvação! Assim como um animal acuado é grato por qualquer
esconderijo, ou o afogado se agarra a qualquer palha, ergui-me rapidamente e saltei, sem pensar,
para dentro da cratera cujo fundo já estava cheio d’água. Os cigarros estavam bons, mas os fósforos
ficaram molhados! Inacreditável o quanto um cigarro pode fazer falta.
Acalmei-me a ponto de, de certa forma, analisar a situação: a minha máquina não estivera no
ângulo morto, era perda total – sucata – nem mesmo as peças podiam ser reaproveitadas. A parte
traseira da caravana fora atingida em alguns pontos. Na frente, onde estavam os oficiais do estado-
maior, ainda estava tudo intacto. O General Sanne ficara sentado dentro de seu carro e estava
pendurado ao telefone com o rosto vermelho. O 1a estava de pé ao lado de seu veículo, olhando
através dos binóculos em direção aos tanques de guerra que rolavam encosta abaixo. Foi terrível.
Aqui o destino rolava inexorável e impiedosamente em nossa direção.
Desde que o T-34 surgira no Front do Leste, surgiram as lendas em torno dele – lendas sobre
a sua força de tiro, sua blindagem, e outras sobre as largas correntes que o tornavam mais ágil na
lama e na neve – e, principalmente, em torno da sua inatingibilidade. Diziam que as granadas do
nosso obus de campanha de 10,5 cm – no ataque direto – ricocheteavam tranqüilamente no tanque...
Os tanques rolavam em nossa direção como uma força da natureza – como as águas após o
rompimento de uma barragem. Nada do que tínhamos poderia deter ou ferir estes tanques. Nem a
metralhadora de quatro canos, nem a artilharia de 3,7 cm, nem mesmo os obuses de 10,5 cm no final
da caravana. Estaria mesmo tudo perdido? Os tanques provavelmente chegariam em quinze minutos e
esmigalhariam e dizimariam tudo debaixo de si.

Comecei a refletir: por que o 1a estava de pé ao lado do carro, com as pernas afastadas,
olhando através dos binóculos, e sequer se mexia quando uma granada era detonada – e eu estava
deitado em uma cratera de granada e mal conseguia conter a tremedeira? Ele não sentia medo? Ou
sua coragem era maior que o medo? Talvez também estivesse acostumado a situações como esta.
Carregava listras vermelhas de general nas calças e uma cruz de cavaleiro no pescoço! Devia ser
rotina profissional para ele, como a tempestade a que um marinheiro resiste com sangue frio.
E eu? Sentia medo? Sim, e muito! Isto era ruim, fazia de mim um covarde? Não! “De que te
adianta a coragem”, disse Dom Camillo a Peppone, “se você não sente medo?” Então por que eu não
peguei o meu fuzil, saltei para fora da cratera e me defendi? Não o fiz. Se tivesse feito, não estaria
contando esta história hoje. Eu entregara os pontos, passara a responsabilidade para pessoas mais
indicadas.
Contudo se, naquela ocasião, todos os outros também tivessem entregado os pontos, eu
tampouco estaria contando esta história.
Havíamos chegado ao ponto em que seria preciso acreditar em milagre? Não haveria maneira
alguma de nos opormos ao destino que rolava em nossa direção? As mitologias são repletas de
milagres realizados por deuses ou heróis.
Quando, há setecentos anos atrás, os mongóis cruzaram o mar em direção ao Japão, este não
tinha como se defender contra o inimigo mais forte. E então veio o milagre, uma tempestade, um
“vento divino”, kamikaze, que destruiu os inimigos do Japão. Durante muitos séculos, os japoneses
acreditaram no milagre quando a pátria estava em perigo.
Hoje em dia, não se acredita em milagres, a não ser quando se é o seu próprio realizador.
Tanto o mito quanto a canção épica provém dos primórdios de nossas culturas. Mas isto não significa
que devemos tirar o mérito dos heróis da atualidade. E esta é uma das razões de eu estar contando
esta história.
Enquanto no palco os acontecimentos convergem para o caos, nos bastidores os cérebros
frios procuram conter o caos. Eles não pensam: “Estamos perdidos”, mas: “Com posso atirar no T-
34?” A resposta é: com o oito virgula oito!
A superioridade substancial das novas armas tem vida curta. Há cabeças demais pensando em
como neutralizá-las. Pouco tempo depois do T-34 surgir no Front, descobriu-se que as granadas de
alta velocidade do canhão antiaéreo de 8,8 cm podiam perfurar a blindagem e tornar o veículo
inofensivo. Assim, o canhão antiaéreo transformou-se na tradicional arma antitanque. O canhão era
transportado por um caminhão-reboque de esteiras. Este veículo podia atingir velocidades de até
cinqüenta quilômetros por hora e era totalmente off-road.
O “milagre” anunciou-se quando, em meio ao caos de granadas detonando, à esquerda e à
direita da caravana passaram, vindos de trás, dois caminhões-reboque de esteiras com artilharia 8,8.
As correntes dos caminhões-reboque de esteiras lançavam longe grandes pedaços de lama. Trinta
metros à frente da caravana, os dois caminhões-reboque de esteiras giraram 180 graus e
posicionaram os canhões. Agora estes apontavam diretamente para a encosta oposta, onde os tanques
russos já haviam rolado metade do caminho montanha abaixo em direção ao vale.
Até agora, tudo isto era resultado do trabalho dos cérebros frios dos bastidores. Do general,
dos oficiais do estado-maior. Eles haviam colocado em posição de ataque a única arma eficiente
contra estes tanques.
Durante a sua passagem, fora possível ver a silhueta de um jovem oficial pendurado sobre o
estribo de um dos caminhões-reboque de esteiras. Antes mesmo de o veículo parar, o jovem rapaz
saltara. Agora estava parado entre os dois canhões, com as pernas afastadas e os binóculos diante
dos olhos, realejando coordenadas de direção. Um chapéu de campanha cobria o seu cabelo loiro. O
chamado de emergência provavelmente o surpreendera. Se tivesse perdido tempo procurando o seu
capacete de aço, a história também poderia ter tido outro fim.
O tenente parecia ter se fundido com o chão. Depois dos primeiros dois projéteis de
sinalização saírem dos canhões e se encontrarem atrás dos primeiros tanques, imediatamente rosnou
novas coordenadas. As duas granadas seguintes acertaram em cheio. Os primeiros dois tiros haviam
sido “tiros de orientação”, como os tiros lançados na altura do quadril pelo atirador de pistola com o
objetivo de acertar o As de Copas. Agora nada mais detinha o tenente. Minutos depois, ele havia
acertado em cheio meia dúzia dos colossos de aço. Ele era inacreditável – um atirador de elite com
dois canhões! Devia ter uma cruz de mira no cérebro – simplesmente não errava um tiro. Assisti ao
espetáculo boquiaberto.
Ninguém deve pensar que o tenente podia exercer a sua atividade de atirador de elite sem
interferências e com toda tranqüilidade! O rastro luminoso fornecia-lhe as coordenadas de direção
da mesma forma que o fazia para os russos. Os dois canhões estavam na mira dos tanques! E o
tenente continuava desprotegido, com os binóculos diante dos olhos, como antes do primeiro tiro,
rosnando coordenadas de direção. Acredito que sequer tenha se mexido. Era uma luta dos bons
nervos. Com cada tanque, travava uma luta no sentido de “Ou eu, ou você!”. Olho por olho.
O tenente era predestinado. Tinha a ousadia que Clausewitz descreve como “este nobre
impulso com que a alma humana se eleva sobre os mais ameaçadores dos perigos.”
O tenente venceu a guerra dos nervos. Os tanques pararam – viraram – e subiram de volta o
encosto, desapareceram por detrás da crista da montanha. O tenente atirou atrás deles. Quinze
tanques haviam ficado para trás no encosto – uma divisão de destruidores de tanques se encarregaria
deles.
O prejuízo da caravana foi grande, mas a catástrofe fora evitada. Todos suspiraram aliviados.
O general insistiu na continuação da viagem. Esta posição aqui era demasiado perigosa.
O “milagre” que nos salvara fora realizado pelo tenente. A sua ousadia, esta “verdadeira
força criativa” encontrara receio, tirando todo o peso da superioridade material dos russos.
O tenente, cujo nome jamais descobri, era a versão perfeita de um herói.
É comum dizerem que, nos dias de hoje, as guerras se transformaram no domínio dos
administradores e logísticos, e que a coragem pessoal, esta virtude cardeal do soldado, passou a ter
pouco valor.
Não posso concordar com isto.

***

CERCADOS . . .
O leve rangido do alto despertou-me. A intensidade variava conforme a máquina voava curvas, ganhava ou perdia altura. A
máquina procurava por algo – cada um de nós tinha a desagradável sensação de ser, ele próprio, o procurado. O ruído não era
assustador; não, era exaustivo! Uma verdadeira praga que nos roubava o sono. E que vinha todas as noites. Os russos pareciam ter
inúmeras destas máquinas, porque certamente não éramos os únicos honrados pela sua visita.
Ficávamos deitados com as cabeças encolhidas, aguardando.
Quando, à noite, a tosse rouca de um fumante inveterado repentinamente cessa e abre espaço para o silêncio absoluto, isto não
desfaz a atenção do ouvinte. Pelo contrário, a duplica! “Quando começará novamente?” O ruído dos motores emudeceu. Encolhemos
ainda mais as cabeças entre os ombros. Ali, uma explosão de bomba muito próxima. Como sempre, o russo desligara o motor ao
aproximar-se do alvo. Um suspiro – desta vez não fomos acertados! Agora o motor voltou a ranger – o russo procurava a próxima
vítima.
Precisávamos dormir, mas a máquina – chamávamos-na de “a máquina de costura”, e os russos, de “Kukurusnik” – ficava
pendurada todas as noites sobre os nossos leitos e jogava pequenas bombas sem mirar especificamente. Às vezes, vinha três vezes por
note. Não tínhamos como nos esconder, não sabíamos onde ela estava e para onde jogaria as suas bombas de cinqüenta quilos. Restava-
nos apenas ficar deitado com as cabeças encolhidas e a respiração paralisada, e aguardar.
Certa vez, um canhoneiro antiaéreo explicou-me que a “máquina de costura” era um biplano de 1928, um Polikarpow, PO-2,
e que o detestável rangido era causado por um motor radial de 110 cavalos que podia ser desligado e religado a qualquer momento
durante o vôo.
Parecia um fenômeno: uma “arma milagrosa” de 1928! Uma operação sem risco. Nenhuma grande e suntuosa obra-prima da
tecnologia cuja força explosiva e alcance estratégico daria manchetes; não, simplesmente uma velha “rezingona” que desgastava a nossa
moral e força de resistência como as contínuas gotas d’água da tortura chinesa. Basta perguntar qualquer soldado na Rússia, e ele
confirmará que, para os nervos, a “máquina de costura” é um peso maior que qualquer uma das temidas armas automáticas.
Esta noite, a “máquina de costura” veio duas vezes e, além de acabar com os nossos nervos, não causou nenhum outro
estrago.
Era maio de 1942. No percurso para Charkow-Tschugujew, havíamos ficado presos algumas vezes na lama primaveril. Neste
ínterim, o tempo e as condições das estradas haviam melhorado. Em contrapartida, havia boatos de que os russos, vindos do Leste,
tentariam reconquistar Charkow, o que já haviam tentado – sem êxito – em janeiro.
Próximo a Tschugujew, a pista não era das piores. Eu acompanhava a caravana à sua direita. O cabo Antos andava à
esquerda. A ponta era formada por três fuzileiros motociclistas, seguidos pelo sargento Dankert. Atrás dele, um caminhão-reboque de
esteiras com canhão gêmeo antiaéreo, e depois, os veículos dos oficiais do estado-maior, todos carros off-road, em seguida os
caminhões de comunicação, o veículo de navegação, a bateria do estado-maior e o trem: suprimentos, oficina, primeiros-socorros, casino
– uma longa caravana.
O 1a[28] chamou-me com um aceno de mão e entregou-me um envelope durante a viagem. Era para os destruidores de
tanques que andavam atrás dos obuses. A defesa antitanque deveria entrar à frente da viatura do estado-maior. Por que? Não havia
dúvida, algo estava acontecendo! Não estava gostando nem um pouco de toda a atmosfera da elite ali na frente. Estavam tensos!
Telefonavam sem parar. Haveria russos em algum lugar à frente? Talvez tanques? Será que o nosso general não sabia onde estavam os
russos? E se o general não sabia, então quem deveria saber?
Agora a estrada começou a descer suavemente. Avistei algumas casas no vale. Que diabos faríamos ali embaixo? No vale
não era sempre mais perigoso? Os caras-pálidas não foram sempre atraídos para dentro do cânion pelos índios para, ali, serem
destruídos? Por outro lado, começava a escurecer – à noite não podíamos seguir adiante de maneira alguma! Eu confiava bastante no
nosso 1a e tinha certeza de que o tenente-coronel Reutter não se deixaria atrair para uma cilada.
Ainda assim, sentimo-nos todos inseguros quando, por fim, montamos acampamento para a noite ali embaixo.
Quando então, à noite, chegou a máquina de costura, não me restavam mais dúvidas de que os russos sabiam muito bem onde
estávamos, o que, na direção oposta, não parecia ser o caso. Assim, não foi apenas a máquina de costura que me dilacerou os nervos.
Não, também sentia um leve arrepio só de pensar no que poderia se aproximar à nossa volta na escuridão.
Para descrever o cenário dos acontecimentos seguintes, é melhor começar pelo nosso acampamento: uma escola – ou mais –
um pequeno vilarejo escolar. Ou seja, diversas casas escolares, alojamentos de professores, residências, parques de lazer e jardins. O
complexo escolar provavelmente atendera diversas cidades próximas, ou então era uma espécie de colégio interno para os filhos do
partido de Charkow. Ao menos era a impressão que me dava. Em todo caso, havia construções suficientes para abrigar toda a
companhia de estado-maior.
Havíamos ingressado no vilarejo pelo Oeste. A estrada rochosa atravessava-o. À sua direita, ou seja, ao Sul, ficavam as casas.
Menos de vinte metros adiante havia uma floresta de bétulas subindo em direção Sul. Ao norte alcançavam a crista da colina que ficava
a menos de 300 metros de distância de nós, com uma diferença altimétrica de uns 50 metros.
Estrategicamente falando, a nossa posição era deveras desfavorável: estávamos embaixo – e quem está no alto, tem
vantagem. O nosso corpo de oficiais havia tomado todas as providências para tirar o melhor da situação: os obuses estavam na entrada e
na saída do vilarejo. A artilharia antitanque, os veículos de reconhecimento e a infantaria estavam estrategicamente distribuídos. O
general e seu estado-maior estavam alojados no segundo andar do prédio principal. Abaixo, nós motociclistas. Era sempre assim. Alguém
nos considerava os guarda-costas do general e, com isso, não fazia exatamente um favor ao velho Sanne. Éramos amadores, e é preciso
mais do que boa vontade para proteger efetivamente um homem.
Estava escuro – e fazia silêncio. Deitado, eu aguardava. Não era o tipo de silêncio que deixa a alma em paz. Não, era o
silêncio da tensão – o silêncio da respiração retida, o silêncio que antecede ao terror!
Uma detonação em frente à casa nos fez acordar de sobressalto. Os nossos obuses haviam lançado fogo. Quase
simultaneamente, o estouro de uma granada. Fomos atacados? E em quem os nossos obuses atiraram?
Ocorrera o seguinte: às 05:27 horas, repentinamente surgira um tanque russo, um T-34, da floresta de bétulas. O tanque estava
na mira do obus estacionado em frente ao prédio principal – 50 metros. Antes mesmo de o tanque girar o seu canhão para baixo e atirar,
o canhoneiro simplesmente mirara nele através do cano de seu obus. Agora projétil, carga de projeção e cartucho para dentro do cano e
– fogo! Um tiro direto, um tiro de mestre. Um décimo de segundo após o lançamento do tiro, o estouro da granada na torre do tanque.
Um grito de exaltação da equipe de tiro – o tanque está parado; sua torre, bloqueada. E a tripulação? A tampa da torre não se abre – o
tanque já era.
Agora o General Sanne sai da casa, atrás dele o 1a e o assistente. Eles andam em direção à equipe de tiro. O general exige
explicações do canhoneiro com relação ao tiro – o método nada ortodoxo de julgamento, o projétil, a carga de projeção. E então acena
para o seu assistente, recebe dele um estojo e prega a Cruz de Ferro de Segunda Classe no peito do atirador. Eis o que acontece quando
se salva a vida de um general.. Sem guerra de documentos, sem espera, sem cerimônias! Diretamente da escrivaninha para o peito do
herói. Mas, desta vez, foi honestamente merecido!
Pergunto-me: teriam todos, tamanha a exaltação, esquecido dos outros tanques? Ou não havia outros? Mas os russos não
saem para passear com apenas um tanque!
Enquanto especulo a respeito do risco do nosso flanco ao Sul, a desgraça chega rolando, repentinamente, por cima da crista da
colina ao Norte.
Atrás de mim, uma tempestuosa correria. O general desaparece no prédio com sua companhia. Dankert cutuca-me no ombro:
“Venha comigo!” Na entrada, está um tenente muito jovem dos destruidores de tanque que eu não conheço. Os motociclistas Pichler,
Holzner e eu somos outorgados a ele. Nossa missão é frear os russos no flanco norte até que a companhia de estado-maior possa ser
colocada em segurança ao Leste.
Ao olhar para a crista da colina ao norte, assustei-me enormemente. Da colina, desciam veículos com correntes de cor cáqui
rebocando obuses, e caminhões – diretamente em direção aos nossos alojamentos. Era uma bateria inteira de obuses. Fiquei inseguro: “É
isto que devemos deter?” Somente mais tarde veio-me a idéia de que esta unidade A estaria dispersada e, portanto, não teria como saber
da nossa presença no vale. Senão, teriam colocado os seus obuses em posição de tiro lá em cima, na crista. Mas não o fizeram. O seu
objetivo parecia ser o vale em que estávamos. As conseqüências de um encontro aqui embaixo eram inimagináveis.
Mas estas não eram perguntas às quais eu, pessoalmente, devia respostas. Por ora, eu corria atrás do tenente, que penetrou a
floresta de arbustos colina acima e procurava ganhar altura. Independentemente do que faríamos, era preciso agir logo porque os russos
avançavam lenta, mas continuamente – ao que parecia – em direção ao vale.
Nós quatro parecíamos mais do que insuficientemente armados. Tínhamos três fuzis Mauser – poder de fogo total de 25 tiros
por minuto (contra 800 de uma única metralhadora). E o que tinha o tenente? Uma Walther seis e trinta e cinco, uma arma como as que
as damas carregam na bolsa. Com ela, não se acerta sequer uma porteira a 10 metros de distância.
E daí? E se tivéssemos uma metralhadora? À nossa frente estava uma bateria A, isto corresponde à força de uma companhia
– portanto mais de cem homens! Se cada um deles tivesse uma PPSh, então o seu poder de fogo total seria de cem vezes quinhentos
tiros, ou seja, 50.000 tiros por minuto.
No que tange o poder de fogo, estávamos numa situação pior que Davi que, ao menos, tinha um estilingue. Qual seria o nosso
estilingue? O tenente teria alguma idéia? Por ora, avançávamos, despercebidos pelos russos, para o alto, e alcançamos a beira da floresta
de arbustos bastante ofegantes e com os olhos arregalados de medo ao olharmos, de cinqüenta metros de distância, para os russos que
vinham em nossa direção.
Éramos quatro, e o nosso poder de fogo era duzentas vezes menor que o do inimigo. Estaríamos perdidos? Não
conseguiríamos proteger o nosso general e encobrir a partida – a fuga – da nossa tropa? Será que não tínhamos mais vantagem alguma?
“Quando o fraco e pequeno chega a um ponto de aparente desprovimento de qualquer recurso, a última esperança é a astúcia.
A astúcia utiliza-se da surpresa que, quando bem empregada, semeia a confusão e quebra a coragem do inimigo.”
Como já diria Clausewitz!
Ao ver os russos aproximando-se de mim a cinqüenta metros de distância, eu não sabia nada de Clausewitz. Também não foi
filosofia de guerra, não, foi puro instinto que nos fez virar a trava de segurança simultaneamente e, com os fuzis na mira, cair sobre o
joelho esquerdo. Ninguém comandou “fogo” e, ainda assim, os nossos três tiros soaram como um único.
O motorista do caminhão-reboque dianteiro foi acertado – o veículo parou. A caravana inimiga estava parada. Aqui surgiu o
primeiro fio de esperança. Se agora conseguíssemos “unir a ousadia e a astúcia em maximização recíproca para um único golpe
desesperado...”
E então o tenente – cujo nome nunca descobri – fez algo que eu jamais teria feito, e o que deu a este encontro a virada
decisiva a nosso favor. Levantou-se rapidamente – ficou totalmente de pé, esticou a mão com a seis e trinta e cinco para o alto num
gesto ameaçador, deu um grito de guerra horripilante e correu para frente, em direção ao veículo parado. Nós três fizemos exatamente o
mesmo.
A surpresa foi bem sucedida; os russos suspeitaram de uma emboscada maciça na floresta de arbustos da qual havíamos
saído. O primeiro veículo permaneceu parado – não tinha como seguir adiante. A caravana atrás dele fez uma grande volta de 180 graus
e fugiu.
Mais tarde, soubemos que a unidade A russa topara com um dos nossos batalhões de caçadores ao Norte, e fora aprisionada.
O nosso tenente caçador de blindados não era louco! A outra alternativa teria sido a morte ou Gulag. Quem salta da janela de
uma casa em chamas não é louco, mesmo que esteja arriscando quebrar a perna.
Admiro plenamente a ousadia do tenente. Tiro-lhe o chapéu – mas ele também estava com uma boa equipe!

***

STALINGRADO . . .
A história da batalha por Stalingrado, que durou 210 dias e foi uma das mais encarniçadas e
sangrentas batalhas da história, foi descrita inúmeras vezes por pessoas que dela participaram e por
historiadores de guerra. O que não significa que não há nada a ser acrescentado, mas isto certamente
não é da minha alçada.
A história a seguir trata de uma pessoa que por um triz conseguiu fugir da armadilha já
fechada às margens do Rio Volga, escapando do terrível destino daqueles que permaneceram na
cilada. E, lamentavelmente, são poucas as pessoas que podem falar disto.
Quando, em 22 de junho de 1941, eu atravessei o Rio San em Jaroslaw, éramos vinte mil
homens. Eis a força de combate de uma divisão, a menor unidade de tropa independente com
comandante, estado-maior geral, reforço, suprimentos, hospital militar e tudo mais. Assim como
todas as outras divisões, a centésima divisão de caçadores da qual eu fazia parte como motociclista
mensageiro era um pequeno exército dentro do exército mas, ainda assim, era apenas a centésima
qüinquagésima parte do grande exército que, neste dia, atravessou a fronteira russo-alemã. Contudo
os outros pouco me importavam. No exército, transformamo-nos em patriotas locais; a centésima
éramos nós, somávamos vinte mil homens e ponto final!
Em setembro de 1941 atravessamos o Rio Dnjepr de oeste para leste na altura de
Krementschug e, em 15 de novembro de 1942, eu estava às margens do Rio Volga em Stalingrado.
Uma crônica dedicou duas linhas ao destino posterior da centésima divisão de caçadores de
novembro de 1942 a janeiro de 1943:
Luta por Stalingrado (altura 102)
Derrota na Bacia de Stalingrado
Eu não fui derrotado. 150 dias depois de avistar o Rio Volga pela primeira vez, encontrava-
me novamente na ponte de Rio Dnjepr ao fugir dos russos na direção oeste. Desta vez, cruzei-a em
Dnjepropetrowsk, do leste para oeste. Na margem oeste do Dnjepr, eu a vi novamente – após longa
viagem – a identificação da divisão da centésima: um pinheiro com um “S” enroscado, a alusão
cifrada ao General Sanne que, neste ínterim, fora preso pelos russos. A placa com a identificação da
divisão dizia, ainda: “Ponto de reunião da 100a divisão dos caçadores”. Aqui se reuniam os poucos
que haviam escapado da catástrofe, os que retornavam das férias, os que haviam recebido alta do
hospital militar. Era o ponto de encontro dos perdidos, dos lançados para fora de sua trajetória
militar.
Da centésima divisão de caçadores que, ao cruzar a fronteira russa dois anos antes somava
20.000 homens, encontrei apenas 200 no ponto de reunião! E da minha companhia, nem um único
sequer!
Os números já dizem tudo: duzentos de vinte mil...
Isto quer dizer que apenas um por cento sobreviveu – ou que, de cada cem homens, noventa e
nove partiram desta para uma melhor – ou que a chance de cada um de nós sobreviver era de uma
para cem?
Na realidade, é tudo a mesma coisa – uma coisa soa pior que a outra. Se continuarmos
especulando, também podemos dizer que a probabilidade de um jogador de roleta acertar o próximo
número é três vezes maior do que a nossa chance de sair dali com vida.
Os duzentos restantes haviam escapado de um terrível destino. Cada um tinha uma história
para contar. Como a bravura, a esperteza ou a grande sorte os poupou do destino, como um superior
benevolente lhe dera férias “no momento certo”. Outros, ainda, haviam recebido o
“Heimatschuss”[29] – apenas na perna, nada sério – tirando-os do percurso “no último instante”.
Ao ouvir estas histórias, por vezes senti vontade de também contar a minha, mas não o fiz.
Enquanto a história fosse apenas minha, bastava lembrar dela para levantar o meu ânimo e desenhar
um sorriso em meu rosto. Tinha certeza de que as outras pessoas não saberiam apreciar a beleza da
minha história.
Os acontecimentos que me levaram, passando por diversas etapas, à minoria de
sobreviventes de Stalingrado, estão relacionadas a questões pessoais, e não militares. Trata-se de
teimosia, vaidade, orgulho ferido e da boa vontade para a comunicação humana – a
Heeresdienstvorschrift[30] não era responsável por este setor de cunho emocional da alma do
soldado.
Contudo prefiro começar a contar a história desde o seu início: provavelmente foi em julho
de 1942. A ofensiva de verão ao sul do Front do Leste estava a todo vapor. A centésima divisão de
caçadores havia passado por Charkow e Tschugujew, cruzado o Rio Donez e alcançado a Estepe de
Don – rumo da marcha: a cidade de Kalatsch, às margens do Rio Don.
São pessoas que iniciam a guerra, e também são pessoas que, depois, agem nela como atores.
Até mesmo as armas e os ativos estratégicos são apenas o que os seus usuários fazem delas.
São sempre as pessoas – apenas pessoas!
Uma divisão é comandada por um general que, por sua vez, é auxiliado e orientado por um
estado-maior de oficiais – os oficiais do estado-maior. Há o primeiro oficial do estado-maior, o 1a,
responsável pela estratégia. O segundo, o 1b, é responsável pela logística; e o terceiro oficial do
estado-maior, o 1c, pelas comunicações. Enquanto os dois últimos executam as suas atividades
igualmente decisivas para a luta em silêncio nos bastidores, o 1a, o estrategista, fica exposto à
ribalta. Ele é o homem que prende as bandeirinhas no mapa, que leu Clausewitz e Moltke – ele é o
homem que domina a arte da guerra.
O 1a da centésima divisão de caçadores era o Tenente-Coronel Reutter. Durante os 588 dias
em que a divisão fez guerra na Rússia, Reutter esteve conosco, ou melhor, ao lado do General Sanne.
Ele era o Ludendorff do nosso general, e devidamente arrogante. Apesar disto, gostávamos dele.
Impressionava-nos. Era jovial, principalmente com nós, motociclistas. Foi o único homem com
listras vermelhas de general nas calças que, em toda a minha vida, falou comigo e interessou-se pelo
que eu fazia. Prestou atenção à minha história de travessia pelas terras inimigas ao encontro dos
húngaros aliados, sorrindo, provavelmente devido à minha pronúncia e modo de expressão austríaca.
Contudo eu não me iludia; o Tenente-Coronel Reutter não confraternizava com ninguém! Era a
nobreza prussiana contra a burguesia simples, a formação de oficiais e do estado-maior contra o
treinamento de três semanas de recrutas! São contrastes intransponíveis. Mas é possível interessar-se
pelo que o subalterno faz e realiza. Afinal, também dizemos ao nosso cachorro que acabou de trazer-
nos o jornal: “Bom garoto!”
Na hierarquia da divisão, Reutter era um homem poderoso – ele tinha, digamos assim, o
“dedo no gatilho” e um braço comprido. Só mesmo um louco para enfrentá-lo. Se me pedirem para
descrever Reutter – não há muito de que eu me recorde. Mas o pouco de que me lembro talvez
forneça um esboço de seu caráter. Era muito jovem para a sua patente. Acredito que não passava dos
trinta e cinco anos e, apesar da estatura magra, sua face era redonda, mais para suave – talvez até
com um toque feminino escondido. O seu cabelo castanho ondulado e sua altura, em torno de um
metro e setenta, não o classificavam como a super-raça endeusada pelos políticos. De modo geral,
era um homem de boa aparência. E vaidoso! O modo ostensivo com que vivia demonstrando as suas
listras de general não passava despercebido por ninguém. Apesar de eu, aos vinte e um anos, ainda
não ter muito conhecimento sobre as pessoas, o sorriso charmoso (não para nós!) de seus lábios
levemente salientes faziam-me acreditar que a) – ele fazia sucesso entre as mulheres e b) – ele era
um homem que sempre conseguia o que queria. As semanas seguintes, que eu passei mais próximo
dele, confirmaram-me isto.
Um cabo é apenas um pouco mais do que nada. Mas um cabo “recrutado” não pode se deixar
intimidar pelas patentes mais altas – ele continua sendo o que era antes do recrutamento, e voltará a
ser depois. Sua presença aqui é, por assim dizer, passageira. Independentemente de ser instruído pelo
sargento a descascar batatas ou limpar as latrinas, a sua individualidade deveria ser intangível. Os
soldados profissionais devem saber disto! A ordem para limpar as latrinas deve ser dada quando
necessária, e não para humilhar o outro. Bem, alguns cabos acabam fazendo isto mais vezes que
outros, mas eis as pequenas alegrias dos sargentos em sua rotina militar.
Pois o 1a havia cismado comigo. A sua intenção não era ruim. Ele apenas queria que eu
dirigisse o seu Mercedes para ele. Um motociclista mensageiro seria transformado em motorista da
chefia. Caso eu aceitasse, não poderia mais olhar nos olhos dos outros motociclistas; afinal, isto era
a mais pura traição! Mas um Mercedes é um Mercedes!
Por que o 1a havia escolhido justo a mim? Talvez ele pensasse que, depois das minhas
aventuras sobre a motocicleta, eu poderia ser útil como uma espécie de “híbrido” de motorista e
guarda-costas? Inicialmente, senti-me honrado, e confesso que o 1a deixou-me à vontade para decidir
se queria tornar-me o seu motorista, ou não. Resta a dúvida se o 1a teria aceito um “não” como
resposta. Em todo caso, eu disse “sim”.
Assim, nos dois meses que se seguiram eu dirigi um Mercedes conversível pintada de cinza e
amarelo com motor de 1,7 litros, e ao meu lado estava um homem com listras de general vermelhas
nas calças. Às vezes, o próprio Reutter dirigia o carro, comigo sentado ao seu lado, e, quando ele
queria, eu lhe contava histórias da minha vida de motociclista. Como motorista de carro, eu não era
nenhuma sumidade. Tinha intimidade com qualquer motocicleta, e conseguia dirigir um caminhão a
diesel Magirus cuja cabine só podia ser alcançada através de uma escada. Já com carros de luxo eu
não tinha experiência alguma; o Mercedes do 1a foi a minha primeira. Dei conta do recado mas,
inicialmente, não tinha noção da largura, da embreagem – é preciso tempo para acostumar-se. O 1a
não era o tipo de pessoa paciente e compreensiva; não, ele reclamava das marchas erradas que eu
engatava, dos buracos na estrada que eu não via, da velocidade com que eu dirigia. Mas também do
brilho das minhas botas, da gordura no meu chapéu de montanha!
Eu deveria ter imaginado isso antes concordar. Um motociclista não é um motorista da chefia.
Ao seu lado está o “chefe” que o observa, critica, ou o esculacha conforme a sua vontade. Logo
percebi que fizera uma troca ruim, e as saudades da vida “perdida” de motociclista começaram a
tomar conta de mim. A rotina diária de um motorista de chefia é: dirigir / esperar / cuidar-do-carro.
Tudo acontece na etapa – ou seja, nada de russos em lugar algum!
Fui motorista do 1a justamente durante um período em que o avanço da ofensiva era lento. O
o
6 exército do General Paulus, do qual fazíamos parte, ficara preso por mais de 18 dias, sem
combustível, no Estepe do Don. E os russos faziam resistência sem tréguas no Rio Don. Apesar do
nosso 14o corpo de tanques já ter alcançado o Rio Don na altura de Kalatsch no dia 25 de julho,
conseguimos forçar a travessia apenas no dia 23 de agosto.
A Leste do Rio Don estavam sendo travadas batalhas violentas. Já o 1a passeava – digamos
assim – por ali, comigo no volante. Fazia questão de não perder nada. Quanto mais lento o avanço,
mais eu precisava levá-lo para lá e para cá e, muitas vezes, esperá-lo metade da noite. E ainda me
criticava severamente se eu cochilasse durante a sua ausência.
Em pouco tempo, estava farto desta vida de motorista e, muitas vezes, pensei como dizer ao
1a que queria voltar para o esquadrão de motociclistas, sem aborrecê-lo. Mas, por outro lado, qual
seria o problema? Eu queria lutar contra os russos com o fuzil e a motocicleta, ao invés de ficar
dirigindo um carro de luxo na etapa. Não seria este um louvável desejo militar?
Eu sabia que não seria tão fácil; que certamente feriria o orgulho do 1a e que a sua reação era
imprevisível. Portanto adiei a conversa dia após dia. Depois de cruzarmos o Rio Don, eu falaria com
ele!
A travessia do Rio Don não foi fácil para as nossas forças armadas. No dia 16 de agosto,
pioneiros auxiliados por fortes unidades de tanques fizeram uma primeira tentativa de construir uma
ponte de pontões sobre o Rio Don. A tentativa falhou. No dia 21 de agosto, mais uma testa de ponte
foi destruída na margem leste e apenas no dia 23 a travessia conseguiu ser forçada.
O cinturão de defesa russo em torno de Stalingrado, que também incluía o arco do Rio Don,
foi rompido e, no dia 31 de agosto, a maior parte do território entre os rios Don e o Volga estava nas
mãos dos alemães. Na manhã do dia 25 de agosto, atravessei a ponte com o Tenente-Coronel Reutter
em seu Mercedes, e levei-o até o primeiro posto de comando provisório da divisão na margem leste
do Rio Don. Parecia-me que o estado-maior do general havia perdido boa parte do sangue-frio
profissional que tivera até agora. No território entre os rios Don e Volga, a guerra passou a revelar
uma nova cara – e os russos certamente não entregariam Stalingrado, a metrópole industrial às
margens do Rio Volga, de mão beijada.
O 1a também estava inquieto, irritado e de poucas palavras. Se eu lhe pedisse alguma coisa
agora, independentemente do que fosse, seria o pior momento. Decidi adiar a minha conversa com o
1a. Seis dias depois, a centésima divisão alcançou a periferia de Stalingrado – a partir dali, lutaria-
se por cada construção e por cada porão, olho por olho, dente por dente. O posto de comando da
divisão foi transferido primeiramente para Sowjetski, em seguida para Rogatschik. Aqui, o estado-
maior trabalhou dia e noite. Enquanto divisão de caçadores, integrávamos o grupo da “infantaria
leve”, ou seja, muito flexível e “pau para toda obra”. Nos mapas estratégicos, muitas vezes a nossa
bandeirinha mudava tanto e tão rápido de lugar, que o General Sanne não conseguia acompanhar com
o seu estado-maior.
Para o motorista do 1a, agora havia menos serviço ainda. O 1a não se locomovia – ele
trabalhava. Tampouco fui escalado para o serviço de sentinela, porque o motorista do 1a é tabu.
Portanto, em geral eu ficava sentado no Mercedes, aguardando. Era, como se dizia no jargão militar,
uma “vida mansa”. Um velho soldado profissional teria sabido valorizar esta posição
excepcionalmente “longe da mira”. Eu, não! Eu tinha vinte e um anos! Queria participar da dinâmica
da guerra – ainda não sabia como – mas precisava acabar com esta moleza. Decidi conversar com o
1a sobre a minha transferência de volta ao esquadrão de motociclistas.
Foi numa sexta-feira. Era o dia 25 de setembro de 1942. Menciono o dia da semana apesar de
não fazer a menor diferença porque, há muito tempo, havíamos apagado a expressão “feriado”. O 1a
estava de pé, sozinho, diante do veículo de navegação. Não era fácil encontrá-lo sozinho, então
pensei “é agora ou nunca”, e posicionei-me devidamente à sua frente, com a mão no chapéu.
Inicialmente o seu olha atravessou-me, pensativo. O homem estava preocupado. Não sabia onde
conseguir substituição para as catastróficas perdas mais à frente. Ao perceber a minha presença,
ergueu as sobrancelhas, irritado, e perguntou: “Pois não?”
Esqueci-me do discurso memorizado, sobre cumprimento do dever e heroísmo. O homem
estava no pior humor imaginável. Se eu desse azar, ele me rasgaria em pedaços. Contudo agora não
tinha mais volta. A minha exigência era atrevida, desrespeitosa, impertinente e despropositada!
Agora eu já nem sabia mais como apresentá-la. Improvisando, foi algo como: “Peço gentilmente que
o Senhor Tenente-Coronel aprove e ordene a minha transferência de volta ao esquadrão de
motociclistas.”
O 1a sequer olhou para mim. Tampouco disse: “À vontade!” Acredito que, para ele, bastava
por hoje. Virou-se, foi até o veículo de navegação e simplesmente deixou-me ali, parado. Ainda
permaneci durante algum tempo com a mão no chapéu. Uma sensação de vazio tomou conta do meu
estômago. E então eu abaixei a mão, fui embora. Não fora muito prudente – e eu poderia vir a pagar
caro por isso!
Na chamada matinal do dia seguinte, o sargento parou na minha frente e olhou-me, curioso –
como um animal raro. Talvez eu fosse um – quantas vezes se vê um cabo enfrentar um oficial do
estado-maior? O sargento Dankert puxou-me de lado e gritou: “Cara, como você pode ter sido tão
idiota?” Eu perguntei: “E o que acontecerá agora?” “Não sei”, respondeu ele, “mas ninguém poderá
lhe ajudar.” Senti-me imensamente desconfortável.
Por ora, nada aconteceu. Eu sequer fui atazanado pelo sargento. Talvez ele pretendesse fazer
algo “melhor” comigo?
No mapa estratégico, a bandeirinha da centésima divisão agora está na Trincheira dos
Tártaros, uma linha de defesa do século XIII que se estende desde a foz do Rio Zariza, no centro de
Stalingrado, até o Rio Don, na altura de Schischikin. Ao norte ficam o Aeroporto Stalingradski e a
linha do trem, e mais ao norte as colônias de trabalhadores dos complexos de indústria pesada.
No dia 27 de setembro, o primeiro oficial do estado-maior retira a bandeirinha do mapa,
confere as suas anotações e recoloca-a quatro quilômetros e meio mais ao norte, entre a fábrica de
artilharia e a colônia “Barricada Vermelha” pertencente a ela. Após sete dias de batalhas com
grandes perdas, a nova posição é alcançada. Estamos no dia 4 de outubro de 1942. Por enquanto, a
bandeirinha permanece em seu lugar.
E então uma unidade de artilharia também foi nomeada para proteger o posto de comando da
divisão: a “bateria do estado-maior” com quatro obuses de campanha leve FH 18/40, calibre 10,5
cm, um comandante de bateria, quatro equipes de artilheiros, frota de veículos, sargento e tudo mais.
Desde final de setembro, esta bateria do estado-maior fora anexada ao octogésimo terceiro regimento
de artilharia para substituir os canhões e equipes fora de combate. O 83o RA estava exatamente onde,
agora, encontrava-se afixada a bandeirinha da centésima divisão: oito quilômetros antes da fábrica
de artilharia “Barricada Vermelha”, uma das mais disputadas fortificações da área urbana de
Stalingrado.
Por que estou falando disto? Porque, no dia 10 de outubro, o sargento entregou-me uma ordem
de marcha para Stalingrado em que também constava o meu destacamento provisório (não
transferência) para a bateria do estado-maior. Eis a resposta que o 1a ficara me devendo em nossa
“conversa”.
A minha primeira reação fora um suspiro aliviado. Bem, não era isto que eu desejara? Ali à
frente certamente não carecia de dinâmica de guerra. Achei que o 1a fora até leal comigo. Ele
poderia ter deixado a sua raiva correr solta e simplesmente ordenar uma transferência disciplinar.
Mas eu fora apenas destacado – dentro do estado-maior. Não havia por que acusar o 1a – ele apenas
não queria mais me ver!
Não demorou muito para eu descobrir que o objetivo do meu destacamento não fora o de
melhorar a minha vida de soldado, muito pelo contrário!
No dia seguinte, um caminhão de suprimentos e correios da bateria de estado-maior levou-me
para frente, até o posto de comando da bateria, numa região pouco habitada do subúrbio. Oito
quilômetros adiante, em direção ao Rio Volga, ficava a fábrica “Barricada Vermelha”, que vinha
sendo bombardeada ininterruptamente pela nossa artilharia. As poucas ruínas de casas ofereciam
pouca proteção contra o fogo esporádico da artilharia russa. Alguns grupos de trabalho cavavam
trincheiras – o inverno estava por chegar, seriam necessários abrigos.
O sargento estava com um dos grupos de trabalho e olhou, curioso, em minha direção. Ao
apresentar-me, desajeitado, imediatamente percebi que o 1a não havia sido tão leal quanto eu
acreditara. A minha fama chegara antes de mim. Não que o sargento estivesse lambendo os beiços,
mas a sua fisionomia expressava alegre expectativa. Não é todo dia que se recebe uma vítima
sancionada “de cima”. Enquanto eu ainda estava diante dele, com a mão no capacete, uma granada
explodiu – nem longe, nem perto, mas suficientemente barulhenta. Em milésimos de segundos eu
estava deitado no chão. O sargento permanecera de pé. Inclinou-se em minha direção e
simpaticamente perguntou: “O Senhor está procurando alguma coisa?” E então percebi que aqui não
faltaria dinâmica de guerra!
Minutos depois, tinha uma pá em minhas mãos. A partir de agora, largaria a pá apenas para
dormir. Eintricheiramos-nos. De vez em quando, buscávamos madeira no centro da cidade para
estabilizar os abrigos. Começou a chover. À noite ficava gelado. Cada vez mais o nosso trabalho era
interrompido por explosões de granadas.
Não facilitei as coisas para o sargento. Eu cavava incessantemente. Apesar das amídalas
inflamadas, não pedia licença do trabalho. Tentei ser o mais discreto possível para que ele
esquecesse de mim. Tudo em vão! Quando o caminhão estava pronto, ele chamava por voluntários –
contudo não havia ninguém que se dispusesse a ir voluntariamente ao centro da cidade. E então ele
apontava o seu dedo gordo em minha direção e dizia: “O Senhor é um voluntário!”
Início de novembro, terminamos de nos entrincheirar definitivamente. E isto era bom porque
agora estávamos sendo quase que ininterruptamente bombardeados, e o inverno começava a dar os
seus sinais. No Rio Volga havia placas de gelo flutuantes, o vento estava ficando gelado, a terra
congelou. Quem não tivesse se entrincheirado até agora, havia perdido a sua oportunidade. Mesmo
assim, o sargento fazia diariamente a chamada matinal – muitas vezes, ficávamos ali apenas alguns
minutos, e logo precisávamos retornar novamente ao abrigo.
No dia 14 de novembr, começou o assalto à “Barricada Vermelha”, que duraria mais de dois
meses e daria início ao declínio da divisão. Eu não estaria com ela! Forças maiores haviam mudado
o meu rumo.
No mesmo dia quatorze de novembro, o sargento novamente exigiu voluntários. Não havia
nenhum. Vários rostos mal-humorados, cansados e amedrontados olhando para o chão. O sargento
estava com a corda toda. Com os olhos brilhando, apontou para mim e o artilheiro Traunmüller,
dizendo: “Aqui temos dois voluntários!”
No escritório, emitiram uma ordem de marcha para nós – tenho-a até hoje, depois de mais de
meio século. A ordem dizia que devíamos ir de Stalingrado para Tschernischewskaja, às margens do
Rio Tschir, e apresentar-nos a um determinado sargento Wenke. Eram mais de cento e cinqüenta
quilômetros para o Oeste, e tratava-se de uma frota de veículos à qual os russos, vindos do Norte,
haviam se aproximado até 50 km. Nossa função era dinamitar o depósito antes que ele caísse nas
mãos do adversário.
Somente a retrospectiva histórica revela que o nosso destacamento representara a anistia de
um condenado, e não, como previsto, o aceleramento de seu extermínio.
O motivo pelo qual os outros homens da bateria do estado-maior não foram igualmente
agraciados por esta salvação deve-se ao fato do soldado não gostar de abandonar a sua unidade,
porque o ser humano, ainda mais em ambiente hostil, sente-se mais seguro e acolhido em grupo, do
que sozinho. Por isto, a maioria das pessoas sentiu pena de Traunmüller e de mim, entretanto não
mais do que cinco dias. A partir daí, invejaram-nos. No dia 19 de novembro, os russos começaram a
cercar Stalingrado – Operação Urano.
No dia 23 de novembro, as forças armadas alemãs em Stalingrado estavam cercadas por sete
exércitos russos. Já o destino da nossa marcha ficava fora da Bacia de Stalingrado. Nós o
alcançamos por via aérea no dia 23 de novembro, juntamente com a tão longamente temida chegada
do inverno russo. 26 graus abaixo de zero; os rios Don e Volga congelaram, tempestades de neve
varreram a estepe do Don.
No dia 30 de novembro, havíamos cumprido a nossa missão – dinamitado o depósito de
veículos. A esta altura, os russos haviam alcançado a margem leste do rio Tschir – precisávamos cair
fora dali.
A minha pergunta ao sargento Wenke demonstra bem a síndrome grupal do soldado: “E agora,
como faço para voltar para Stalingrado?”
“Em Stalingrado”, disse ele, “não entra nem sai mais ninguém, seu lerdo! Onde esteve enfiado
nos últimos dias?”
Não havia mais caminho de volta. Havia apenas o caminho para o Oeste, para casa, onde
cheguei meses depois!

[1] N.T.: Espécie de coturno antigo


[2] N.T.: Comando Militar Alemão
[3] N.T.: Apelido alemão para “cozinha de campanha”, trad. lit. “canhão de Gulasch”.
[4] N.T.: Típico ensopado de carne austro-húngaro.
[5] N.T.: oficial mais graduado no destacamento
[6] N.T.: Conjunto de forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich e a Segunda Guerra Mundial.
[7] N.T.: oficial mais graduado no destacamento
[8] N.T.: Espécie de coturno antigo
[9] N.T.: Forças Armadas Alemãs
[10] N.T.: Enciclopédia alemã
[11] N.T.: = “Max Azul”: Apelido desta condecoração na 1 Guerra Mundial devido à sua cor azulada e à homenagem a Max
a

Immelmann.
[12] N.T.: Friedrich der Große. Frederico II, o Grande, Rei da Prússia (1712-1786)
[13] N.T.: Nome próprio das forças armadas nazistas
[14] N.T.: oficial mais graduado no destacamento
[15] N.T.: O Volkswagen Kübelwagen (carro balde/banheira) foi um veículo militar desenhado por Ferdinand Porsche e construído
pela Volkswagen durante a Segunda Guerra Mundial para uso pelas Forças Armadas da Alemanha Nazista
[16] N.T.: Espumante alemão
[17] N.T.: Conjunto de forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich e a Segunda Guerra Mundial.
[18] N.T.: Medicamento popular à base de álcool
[19] N.T.: Conjunto de forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich e a Segunda Guerra Mundial.
[20] N.T. : Schnaps = espécie de bebida destilada feita com as mais diversas frutas.
[21] N.T.: fábrica automobilística soviética
[22] N.T.: HDV = Heeresdienstvorschrift = Comando Militar Alemão
[23] N.T.: Comando Militar Alemão
[24] N.T.: Conjunto de forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich e a Segunda Guerra Mundial.
[25] N.T.: O Volkswagen Kübelwagen (carro balde/banheira) foi um veículo militar desenhado por Ferdinand Porsche e construído
pela Volkswagen durante a Segunda Guerra Mundial para uso pelas Forças Armadas da Alemanha Nazista
[26] N.T.: Rádio Nacional Alemã
[27] N.T.: oficial mais graduado no destacamento
[28] N.T.: oficial mais graduado no destacamento
[29] N.T.: Ferimento de misericórdia que levava o soldado para o hospital e para casa
[30] N.T.: Comando Militar Alemão

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