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DOI: 10.18468/estcien.2019v9n2.

p87-102 Ensaio

Bildung e método: notas sobre Hegel e Goethe


Bildung and method: notes about Hegel and Goethe

Rafael Marino1
1 Doutorando e Mestre em Ciência Política pela FFLCH/ Universidade de São Paulo, graduado em Ciências Sociais pela USP, Brasil.
E-mail: rafael.marino50@gmail.com http://lattes.cnpq.br/6940493917341785 http://orcid.org/0000-0002-2659-6434

RESUMO: neste artigo pretende-se trabalhar com alguns elementos do método em Hegel, mais
especificamente aqueles da sua Fenomenologia do espírito, e da literatura de Goethe, lançando mão,
principalmente, de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, com o fito de mostrar semelhanças im-
portantes entre a forma do romance goethiano e a forma filosófica do texto hegeliano. Para tal, pri-
vilegiaremos a relação de ambos os livros com a formação, ou bildung. Com este propósito abordare-
mos: i) uma pequena introdução sobre o tema; ii) uma breve revisão sobre o conceito de Bildung na
cultura alemã; iii) algumas notas sobre o romance de formação ou Bildunsgroman; iv) alguns pontos
sobre o método hegeliano e sua relação com a Bildung; v) considerações finais as quais retomam o
que fora sedimentado sobre o tema, aproximando Hegel e Goethe.
Palavras-chave: Filosofia alemã. Pensamento político e social alemão. Literatura alemã. Bildung
(formação). Dialética.

ABSTRACT: this paper aims to work on some elements of the method in Hegel, more specifically
from his book Phenonology of spirit, and the literature of Goethe, making use of, mainly, from Wilhelm
Meister’s Apprenticeship, whose purpose is to show important similarities between the form of the
Goethian novel and the philosophical form of the Hegelian text. In order to do so, we will privilege
the relationship of both books with formation orBildung. With this purpose we will address: i) a
short introduction on the subject; ii) a brief review on the concept of Bildung in german culture; iii)
some notes about the formation novel or Bildungsroman; iv) some points about the Hegelian method
and its relation to Bildung; v) final conclusions which resume what had been settled on the theme,
bringing Hegel and Goethe closer to each other.
Keywords: German philosophy. German political and social thought. German literature. Bildung
(formation). Dialectic.

1 INTRODUÇÃO passivo ao seu próprio conteúdo” (ADOR-


NO, 2013, p. 77)1. À diferença de um Descar-
Neste artigo pretendemos trabalhar com
alguns pontos do método em Hegel, mais es-
1
pecificamente em sua Fenomenologia do Espírito, Tal postura também dá notícias, mais de um século
depois, em uma realidade também atrasada dentro do
e da literatura goethiana, lançando mão, prin- Capitalismo, com Antônio Candido e Roberto Schwarz.
cipalmente, de Os anos de aprendizado de Wilhelm Este mesmo dizia que a força de intervenção do pro-
Meister, privilegiando as suas relações com a grama dialético depende de “que ele seja posto em
formação, ou, como ficou consagrado nas ciên- prática de fato, e não fique em fórmulas rituais”
cias humanas – humanismo como gostaria (SCHWARZ,2012, p. 130). Atraso alemão de que falava
Marx (2011, p. 145-159) e muito bem explorado por
Gadamer em seu livro Verdade e Método (GA- Paulo Eduardo Arantes (1996) em seu Ressentimento
DAMER, 2013)- a Bildung. da Dialética, que segundo Ruy Fausto seria “uma espé-
Há algumas dificuldades em se tratar do cie de história social da dialética ‘negativa’, e do seu
método especulativo do filósofo alemão, já desfecho, a dialética hegeliana, dialética positiva, que
que seria “capaz de pensar a partir da própria opera uma ‘negação da negação’. [...] A ‘dialética nega-
tiva’ - Arantes mostra, contra Adorno, que a noção se
coisa, de se entregar por assim dizer de modo encontra em Hegel -corresponderia às experiências da

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tes que expos, na segunda parte de seu Discur- potencial de desvelamento histórico, como o
so do método, quatro regras do método filosófi- conceito de formação ou Bildung. Conceito cuja
co (DESCARTES, 2009). Exposição que se tradição, segundo o filósofo, poderia elucidar
deu de modo ‘desencarnado’, algo que não o que se faz nas ciências humanas de maneira
seria comum em Hegel e sua filosofia não muito melhor do que a ideia de método da
muito afeita a definições.2 Além disso, existem ciência moderna (GADAMER, 2013, p. 54).
também os impasses de se lidar com a com- Gadamer diz que tal conceito se origina na
plexa literatura de Goethe e o livro supracita- “mística da Idade Média3, sobrevive na místi-
do, cuja consecução se dará com o apoio de ca do Barroco e sofre uma espiritualização
críticos e críticas imersos no tema. De todo com bases religiosas no ‘Messias’ de
modo, tentaremos lidar com essas tensões ao Klopstock, que abrange toda sua época, e,
longo do texto e expor alguns pontos da rela- finalmente, na determinação fundamental de
ção entre método, literatura e a Bildung. Herder, como ‘formação que eleva à humani-
dade’” (Ibid., p. 45). Já Wilma Maas afirma
2 SOBRE A PERGUNTA: O QUE que Bildung “remonta ao médio-alto-alemão
QUER DIZER BILDUNG? (bildunge, no alto alemão tardio bildunga). Seu
primeiro significado está atrelado a acepções
Gadamer, em seu livro Verdade e Método, diz visuais como ‘imagem’ (Bild), reprodução,
que alguns conceitos que o humanismo e as ‘representação da imagem (Abbild, Ebenbild,
ciências humanas tomariam como conceitos ‘imitação’, ‘reprodução’ (Nachahmung, Nachbil-
familiares guardam, na verdade, um grande dung)” (MAAS, 2000, p. 25-26). A autora afir-
ma que no decorrer do século XVIII há uma
sofistica, da dialética antiga, do ceticismo, da conversa- acentuação do primeiro significado de Bildung
ção ilustrada do século XVTII (principalmente na figura como ‘forma’, “sobretudo ‘formação’ (Gestal-
‘cínica’ do ‘sobrinho de Rameau’ de Diderot), da ironia tung), relacionada tanto à forma exterior, à
romântica e também ao radicalismo dos inícios do idea- conformação [...] como também à formação e
lismo alemão. Ela é lida em conexão com a emergência
desenvolvimento de características pessoais
da figura do letrado independente e ‘não orgânico’ -
em contraposição à do ‘clerc’ medieval [...] sobrede- como intelecto, bons costumes, comporta-
terminada pela marginalidade sui-generis a que era mento, através de influências exteriores”
condenado o intelectual em países atrasados como a (Ibid., p. 26).
2
Alemanha” (FAUSTO, 1997, p. 201). Ainda segundo Maas, a palavra em questão
A não ser na conversa que teve com Goethe, legada a
posteriormente ganhará um amplo leque de
nós, por Eckermann: “Hegel, por quem Goethe nutre
uma grande estima pessoal, embora alguns frutos bro- significados, sem perder funções semânticas
tados de sua filosofia não sejam de seu especial agrado, antes atribuídas aos primeiros, havendo, em
está aqui. Esta noite Goethe ofereceu um chá em sua meados do século XVIII, uma forte apropria-
homenagem, ao qual também esteve presente Zelter, ção deste conceito pelo discurso intelectual
que pretende partir ainda hoje. [...] Falou-se longamen-
alemão. Apropriação – e vinculação do con-
te a respeito de Hamman, e foi Hegel, sobretudo, quem
deteve a palavra e exprimiu sobre aquele extraordiná- ceito ao contexto da Aufklärung4 alemã – que
rio espírito bem fundadas opiniões, que não poderiam
3
ter surgido senão do mais sério e consciencioso estudo “Bildung (imaginatio) fazia parte do conjunto das qua-
do objeto. [...]. A seguir, a conversa voltou-se para a tro virtudes tradicionais, denominando a capacidade de
essência da dialética. [...] No fundo – disse Hegel -, ela representação interior e de autoinvestigação” (MAAS,
não é senão o espírito de contradição, regrado e meto- 2000, p 27).
4
dicamente educado, que habita qualquer ser humano, Aufklärung que teve a sua expressão canônica com
um dom que mostra toda a sua grandeza na distinção Immanuel Kant, para quem: “Esclarecimento é a saída
entre o verdadeiro e o falso” (ECKERMANN, 2016, p. do ser humano de sua menoridade, menoridade essa
627). na qual ele se inseriu por sua própria culpa. Menorida-

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tem seu testemunho mais claro no texto “So- da Idade Média. No mesmo compasso Ga-
bre a Pergunta: o que quer dizer esclarecer?” damer afirma que “a formação está estreita-
do filósofo Moses Mendelssohn, melhor evi- mente ligada ao conceito de cultura e designa,
denciado na seguinte passagem: antes de tudo, a maneira especificamente hu-
mana de aperfeiçoar suas aptidões e faculda-
As palavras esclarecimento, cultura (Kultur), forma- des” (GADAMER, 2013, p. 45). Nesse inte-
ção (Bildung), são ainda termos novos, recém-
chegados em nossa língua. Por ora, elas perten-
rim nos aproximamos de um dos sentidos do
cem apenas à linguagem livresca. A multidão termo Bildungque será caro ao romance de
praticamente não as compreende. [...] Enquanto formação (Bildungsroman): a concepção de pro-
isso, o uso linguístico, que parece querer estipu- cesso. Processo entendido como uma “suces-
lar uma diferença entre palavras de igual signifi- são de etapas, teleologicamente encadeadas,
cado, ainda não teve tempo de estabelecer os que compõe o aperfeiçoamento do indivíduo
limites para elas. Formação, cultura, esclareci-
mento são modificações da vida social; efeitos em direção à harmonia e ao conhecimento de
da diligência e dos esforços dos seres humanos si e do mundo” (MAAS, 2000, p. 27). O con-
por melhorar sua condição social. [...] Quanto ceito de formação passa então a dialogar com
mais a condição social de um povo for harmo- o que concebiam como Educação (Erziehung),
nizada com a determinação do homem, por um outro conceito de suma importância para
meio da arte e diligência, mais formação terá esse
povo. [...] A formação subdivide-se em cultura e
o Esclarecimento alemão e fundante do mun-
esclarecimento. A cultura parece mais orientada do burguês.
para o elemento prático [...]. O esclarecimento, O referido conceito de Educação virá no
ao contrário, parece se relacionar mais com a bojo de um movimento que iniciará a educa-
dimensão teórica (MELDELSSOHN, 2011, p. ção moderna, na qual “a natureza humana
15-16). passará a ser compreendida como passível de
mudança e aperfeiçoamento” (Ibid., p. 28).
Tal relato deixa clara a alta carga ideológica Veiculando um projeto pedagógico fortemen-
que o termo Bildung passaria a ter na Alema- te iluminista em suas obras educativas, como
nha, “vinculado essencialmente aos pilares de no livro Emílio ou Da educação de Jean-Jaques
sustentação do otimismo iluminista, como a Rousseau. É importante salientar que mesmo
crença na possibilidade de aperfeiçoamento com a proximidade, o termo educação é con-
pessoal e no trabalho em prol do bem co- cebido mais comumente como uma ação diri-
mum”. Conjuntamente, por meio dos autores gida, “com objetivos propedêuticos bastante
pietistas, o sentido do termo formação passa a definidos, ao passo que ‘formação’ (Bildung)
ser de construção do caráter do homem, tor- ‘pressupõe a atividade espontânea do indiví-
nando-se “predominante sobre o significado duo’, ocorrendo ao longo do processo de auto
de Bildung como configuração de aparência aperfeiçoamento” (Ibid.).
exterior” (MAAS, 2000, p. 27). Ocorrendo Antes de passar para o tópico sobre o Bil-
mesmo certo retorno às concepções místicas dungsroman, mais especificamente sobre Os anos
de aprendizado de Wilhem Meister, gostaria de
de é a incapacidade de se servir de seu próprio enten- inserir uma pequena consideração de Arantes
dimento sem a condução de outrem. É-se culpado por (1996). Quando o referido autor passa do ci-
tal menoridade, se a causa da mesma não se encontra clo francês da inteligência europeia para o
na falta de entendimento, mas na falta de resolução e
ciclo alemão, em seu livro Ressentimento da Dia-
de coragem para se servir de seu próprio entendimento
sem a condução de outrem. Sapere aude! Tenha a co- lética, diz passar também do radicalismo à ironia,
ragem de te servir de teu próprio entendimento! – este ligado de certa forma ao atraso alemão e sua
é, portanto, o lema do Esclarecimento” (KANT, 2011, p. trama. Trama que traz em seu bojo “os sofri-
23 – 24).

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mentos do jovem intelectual alemão”, com Um trecho que pode trazer certa luz sobre
Hegel mesmo, em sua introdução ao escrito a utilização constante do termo formação, pas-
sobre a Constituição da Alemanha, dirigindo-se sando mesmo a ser um termo chave para dar
“com clareza à bela alma infeliz da elite culti- maior inteligibilidade ao ciclo intelectual ale-
vada nacional, em particular à situação de mão.
‘morte permanente’ do homem de Reflexão
relegado ao pequeno ‘mundo interior’”, ges- 3 NOTAS SOBRE BILDUNSGRO-
tando uma espécie de “intelectual familiar cuja MAN: OS ANOS DE APRENDIZA-
sorte está atrelada ao destino funesto do país” DO DE WILHELM MEISTER
(ARANTES, 1996, p. 158). Funesto, pois
atrasado. E em um registro também ‘materia- Segundo as lições de Wilma Maas o ro-
lista’, não posso deixar de lembrar, à sombra mance de Goethe sobre Wilhelm Meister seria
de outro autor, que, talvez, “a grande revolu- um “exemplo paradigmático de uma série de
ção de Marx tenha sido mostrar que as cam- romances nos quais podem ser identificados
balhotas do Espirito não podem senão acom- os mesmos pressupostos que norteavam a
panhar as reviravoltas desencadeadas pelo literatura eminentemente educativa da Au-
movimento do capital [...]” (PATO, 2011, p. flärung” (MAAS, 2000, p. 29). Em tal romance
52). Nesse sentido, uma experiência intelectu-
al que possui uma forte relação com a grande Hegel uma Gestalt dela ausente, teria posto a nu, sem
importância atribuída ao conceito de Bildung querer, o nervo vivo da Dialética. Uma espécie de pres-
em tal país, como fica claro na seguinte passa- sentimento obscuro da presença do intelectual (sem-
pre oscilando entre mania e depressão) na própria es-
gem: sência da Dialética e que o livro Ressentimento da Dia-
lética pretende expor (Darstellen seria mais bonito) em
Já o dissemos, tornamos a insistir, antes de re- todas as suas complicadas mediações; pressentimento
tomar o assunto noutro capítulo: incluir o ‘idea- a ser explicado e levado às suas últimas consequências”
lismo’ – tanto na cultura quanto, em particular, (PRADO JR., 1996, p.11). Para Adorno o quadro do atra-
o dos filósofos clássicos – no rol das ilusões so – suas vantagens, talvez - e sua relação com a expe-
compensadoras, forjadas pela consciência infeliz riência intelectual hegeliana também não passou sem
do atraso nacional, evidentemente não o expli- menção em seus estudos sobre a dialética hegeliana -
ca. Em contrapartida tampouco o entendere- ou melhor, na formulação de um conceito novo de dia-
mos em sua justa medida se ignorarmos suas lética: “Apenas hoje, cento e cinquenta anos depois, o
origens intelectuais, isto é, se passarmos ao lar- mundo compreendido pelo sistema hegeliano é revela-
go do fato elementar de que a centralidade da do literalmente como sistema, nomeadamente de uma
‘ideia’ trai justamente a consagração compensa- sociedade radicalmente socializada, isso de modo dia-
tória do homem culto posto em evidência com bólico. Um dos méritos mais notáveis da empreitada de
zelo redobrado na circunstância adversa da de- Hegel é o fato de ela ter inferido, a partir do conceito,
fasagem histórica. Adversidade num certo sen- esse caráter sistemático da sociedade, muito antes que
tido vantajosa, quanto mitigada por pequenas ele pudesse impor-se no campo acessível à experiência
desforras, cuja soma culminava na entronização de Hegel, campo que era ainda este de uma Alemanha
social da Bildung, em proporções desconhecidas deveras atrasada no que se refere ao desenvolvimento
em países onde a generalização da forma mer- social” (ADORNO, 2013, p. 103). E também em outro
cadoria alcançara os ‘bens culturais’” (ARAN- trecho: “No período primevo do idealismo, quando na
TES, 1996, p. 175)5. Alemanha subdesenvolvida a sociedade civil ainda não
tinha de formado como um todo, a crítica ao particular
possuía outro tipo de dignidade. No campo teórico,
5
É importante lembrar que para Paulo Arantes a dialéti- idealismo significava a visão de que a soma dos saberes
ca teria seus nexos materiais, sendo ela mesma diga- particulares não constituía o todo, que o melhor do co-
mos que histórica, nas palavras de Bento Prado: “De nhecimento assim como do potencial humano escapa-
alguma maneira, Kojève atirou no que viu e acertou no va por entre as malhas da divisão do trabalho” (Ibid.,
que não viu: projetando arbitrariamente no livro de p.144).

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pode ser vista a mediação entre a busca indi- postos da literatura educativa do Esclareci-
vidual pelo aperfeiçoamento das qualidades mento alemão, veiculada, no livro, pela cha-
intrínsecas do homem para o bem comum, e a mada Sociedade da Torre. Contudo o protagonis-
sua realização efetiva. Ou como lembra Maz- ta do livro ultrapassa, “porém, a instância rela-
zari, a obra, dentro de sua riqueza infinda, tivamente limitada da concepção educativa da
teria dois princípios estruturantes: Sociedade da Torre, por meio de sua busca
pela formação universal” (Ibid., p. 31). Com
[...] o primeiro, que se manifesta nos cinco li- esse movimento vemos uma radicalização da
vros iniciais do romance (que compõe a ‘missão
teatral de Wilhelm Meister’), consiste no concei-
distinção entre as concepções de ‘formação’
to teleológico do desdobramento gradativo das (Bildung) – usada preferencialmente “quando
potencialidades do indivíduo, no sentido de sua intenção era designar um processo de
uma enteléquia humana, que o herói aspira moldagem, de cultivo, mas também de desen-
cumprir exclusivamente no mundo dos palcos volvimento e auto aperfeiçoamento das facul-
alemães. O segundo princípio assoma nos dois dades espirituais e intelectuais do homem, do
últimos livros, em seguida, e como contraponto,
ao complexo pietista das ‘Confissões de uma coração, do gosto” (VIERHAUS apud MA-
bela alma’, e aproxima-se de uma espécie de ‘te- AS, 2000, p.37) – e de educação (Erziehung) –
oria da socialização’, preconizando-se a necessi- como “um processo pedagógico que leva ao
dade de interação estreita entre o indivíduo e a desenvolvimento das faculdades racionais do
sociedade, ‘eu’ e o mundo – princípio que, visto indivíduo” (MAAS, 2000, p. 37).
de outra perspectiva, corresponde ao motivo de
reconciliação do indivíduo problemático com a
Continuando com o argumento, vemos que
realidade -, ou então, nos termos de Hegel, à o ‘nexo social’ do romance seria uma vontade
sua superação da discrepância entre a ‘poesia do burguesa de autoaperfeiçoamento, entretanto
coração’ e a ‘prosa adversa das relações sociais’” o primeiro entrave para tal processo que o
(MAZZARI, 2010, p. 108)6. nosso protagonista irá encontrar é, justamen-
te, a sua própria origem social e econômica.
Maas vê ainda que em tal romance há uma Meister mesmo lamenta a estreiteza de hori-
passagem importante, pois haveria a passagem zontes do destino burguês, contrapondo-o às
da cultura do “mérito transmitido, fundamen- possibilidades da aristocracia, destinada a
tado nos direitos de posse e herança, para a “uma formação pessoal e universalizante, isto
cultura do mérito pessoal adquirido, atributo é, de acordo com seus talentos e habilidades
do burguês em formação” (MAAS, 2000, p. natas, ao mesmo tempo que voltada para um
30). Nesse sentido poderíamos ver uma afini- repertório universal” (Ibid., p. 35)7. Como
dade do romance de Goethe com os pressu-
7
“Para dizer-te uma palavra: instruir-me a mim mesmo,
6
Lembrando o benfazejo trecho de Hegel: “De uma ma- tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e
neira inteiramente diferente se passam as coisas como minha intenção, desde a infância. Ainda conservo essa
o romance, a moderna epopeia burguesa. [...] O ro- disposição, com a diferença de que agora vislumbro
mance, no moderno sentido, pressupõe uma efetivida- com mais clareza os meios que me permitirão realizá-
de já ordenada para a prosa, sobre cujo terreno ele no- los. [...] Fosse eu um nobre e bem depressa estaria su-
vamente recupera em seu círculo de poesia – tanto que primida nossa desavença; mas, como nada mais sou do
diz respeito à vitalidade do acontecimento quanto no que um burguês, devo seguir um caminho próprio, e
que se refere aos indivíduos e seu destino -, até onde é espero que venhas a me compreender. Ignoro o que se
possível nesta pressuposição, seu direito perdido. Uma passa nos países estrangeiros, mas sei que na Alema-
das colisões mais apropriadas e mais comuns do ro- nha só a um nobre é possível uma certa formação ge-
mance é, por isso, o conflito entre a poesia do coração ral, e pessoal, se me permites dizer” (GOETHE, 2012, p.
e a prosa oposta das relações, bem como da contin- 284). E Maas argumenta ainda: “[...] Os sofrimentos do
gência de circunstâncias externas [...]” (HEGEL, 2004, p. jovem Werther, de 1774, encontra-se essa mesma ina-
137-138). dequação pessoal e profissional do protagonista ao

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registra na carta que manda para Werner dos - assentado na ‘atuação viva’ como queria
(GOETHE, 2012, p. 284 – 287), a qual seria, Herder, ou nas palavras de Wilhelm Von
para Mazzari: Humboldt: “O verdadeiro objetivo do ho-
mem é a formação mais elevada e mais ade-
[...] uma espécie de programa do ‘romance de quada de suas faculdades em um todo. A li-
formação’, uma vez que nela se formulam os
motivos fundamentais da Autonomia (formar-
berdade é condição imprescindível para essa
se a si mesmo), Totalidade (formação plena) e, formação” (HUMBOLDT apud MAAS, 2000,
ainda, Harmonia (a ‘inclinação’ irresistível’ por p. 38)8. Salvo engano, em sua Fenomenologia do
formação harmônica). A expansão plena e har- Espírito o aspecto formativo se faz presente,
moniosa das potencialidades do herói – artísti-
cas, intelectuais, mas também físicas (Wilhelm
confere grande importância à prática da 8
Como coloca o próprio Hegel, referindo ao romance de
esgrima) -, a realização efetiva de sua totalidade Goethe em questão: “Trata-se, pois, de fazer um furo
humana, são projetadas no futuro e sua existên- nesta ordem de coisas, modificar o mundo, melhorá-lo
cia apresenta-se assim como um ‘estar a cami- ou, a despeito dele, pelo menos recortar sobre a terra
nho’ rumo a uma maestria de vida, que Goethe um céu: procurar a moça, tal como ela deve ser, encon-
configura, todavia, menos como meta a ser al- trá-la e, então, ganha-la, conquistá-la e arrancá-la dos
cançada do que como direção ou referência a parentes perversos ou de outras relações nefastas. Mas
ser seguida (MAZZARI, 2010, p. 113). estas lutas no mundo moderno nada mais são do que
os anos de aprendizado, a educação de um indivíduo
A título de comparação, Auerbach nos traz, na efetividade presente, os quais alcançam, desse mo-
do, seu verdadeiro sentido. Pois o fim de tais anos de
do outro lado do Reno, um exemplo de for-
aprendizado consiste no fato de que o sujeito aprende
mação total e sua relação com a situação eco- com a experiência, que ele se forma [hineinbildet] com
nômica: seus desejos e opiniões nas relações subsistentes e na
racionalidade destas, se insere no encadeamento do
A situação social e econômica de Montaigne fa- mundo e adquire nele um ponto de vista adequado.
cilitou-lhe o formar-se e conservar-se por intei- Por mais que alguém também tenha combatido o
ro; o seu tempo, que ainda não tinha estabeleci- mundo, tenha sido empurrado para lá e para cá, por
do totalmente, para as camadas mais altas da fim ele encontra, contudo, na maior parte das vezes
sociedade, os seus deveres, a técnica e o ethos do sua moça e alguma posição, casa-se e também se torna
trabalho especializado, mas, muito pelo contrá- um filisteu do mesmo modo que os outros; [...]. Aqui
rio, esforçava-se, sob a impressão da antiga civi- vemos o mesmo caráter da aventura, apenas que este
lização oligárquica, na procura de uma forma- encontra seu significado correto e o fantástico deve
ção o mais ampla e humana possível, vinha ao experimentar nisso a correção necessária” (HEGEL,
encontro de suas necessidades (AUERBACH, 2014, p. 328-329). Ou mesmo Lukács: “A humanidade,
2013, p. 262). como escopo fundamental desse tipo de configuração,
requer um equilíbrio entre atividade e contemplação,
Voltando a Meister vemos que esse romance entre vontade de intervir no mundo e capacidade re-
ceptiva em relação a ele. Chamou-se essa forma de
coloca em circulação um conceito de forma-
romance de educação. Com acerto, pois a sua ação tem
ção mais elevado - uma formação universal, de ser um processo consciente, conduzido e direciona-
buscando sempre as possibilidades de desen- do por um determinado objetivo: o desenvolvimento
volver suas potencialidades para todos os la- de qualidades humanas que jamais floresceriam sem
uma tal intervenção ativa de homens e felizes acasos;
pois o que se alcança desse modo é algo por si próprio
mundo estreito da burguesia, que move Wilhelm Meis- edificante e encorajador aos demais, por si próprio um
ter para além do universo de origem. No Werther, obra meio de educação. A ação definida por esse objetivo
comumente conhecida apenas como uma história do tem algo da tranquilidade da segurança. Mas não se
amor trágico, a incapacidade de adaptação ao universo trata da tranquilidade apriorística de um mundo rema-
burguês e suas convenções radicalizava-se, levando ao tado; é a vontade de formação [bildung], consciente e
insucesso irrevogável, no plano pessoal e profissional” segura de seu fim, que cria a atmosfera dessa inofensi-
(MAAS, 2000, p. 36). vidade última” (LUKÁCS, 2009, p. 141-142).

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principalmente em dois momentos – que tem ca um verdadeiro medo de errar por parte do
lá sua imbricação -, a saber quando “desen- criticismo, um medo que na verdade se funda
volve a gênese de uma autoconsciência livre em algo ainda maior: o medo de que tudo que
‘em si e para si’ [...]” e quando mostra que “a tivesse conhecido seja falso, pois sujeito e ob-
essência do trabalho é formar a coisa, e não jeto haviam sido radicalmente separados. Em
deformá-la” (GADAMER, 2013, p.48). Algo outras palavras, um medo da verdade.
que exploraremos a seguir. Ao mesmo tempo em que rejeita Kant,
Hegel também deve rejeitar Fichte e Schelling,
4 ALGUNS PONTOS SOBRE MÉ- pois tanto aquele como este seriam também
TODO E FORMAÇÃO dogmáticos nas suas respectivas concepções
de filosofia e ciência. Mais especificamente no
Passaremos por alguns pontos da Fenomeno- ponto de partida de ambas, algo que tentare-
logia que julgamos serem importantes para a mos mostrar a partir dos seguintes trechos:
compreensão das colocações posteriores, uti-
lizando-nos principalmente da introdução de Suponha-se que a ciência seja um edifício; e que
tal livro. Para Hegel, quando criticamos e o fim principal desse edifício seja a firmeza. O
examinamos as possibilidades de conhecimen- fundamento é firme, e, tão logo ele esteja assen-
tado, o fim estaria alcançado. Mas como no me-
to, já conhecemos, algo que soaria um disparate ro alicerce não se pode morar nem, apenas com
para Kant, pois este dizia que o conhecimento ele, proteger-se, seja do assalto voluntário do
começaria depois de um exame das faculdades inimigo, seja contra os assaltos involuntários
do sujeito. Aquele julgava que a filosofia deste das condições atmosféricas, edificam-se então
não era suficientemente crítica, visto que ha- sobre ele paredes laterais, e sobre estas um teto.
via pressupostos que não tinham passado pelo Todas as partes do edifício são ajustadas com o
fundamento e umas com as outras, e com isso o
crivo da crítica, ou, pelo ‘tribunal da razão’. todo torna-se firme. Mas não se constrói um
Pressupostos como a distinção radical, toma- edifício firme para poder ajustar as partes: ajus-
da como um dado, entre sujeito e objeto. Um tam-se as partes para que o edifício se torne
dogmatismo que levaria ao não conhecimento firme; e ele é firme na medida em que todas as
da coisa mesma, mas apenas os seus efeitos suas partes repousam sobre um fundamento
firme. [...] O fundamento é firme, e não está
em relação ao sujeito. Nesse sentido, Hegel fundado em nenhum novo fundamento; está
pretende fazer com que a crítica se volte para sobre a terra firme (FICHTE, 1993, p. 17).
ela mesma, a fim de apartar a filosofia de
qualquer dogmatismo. Ou seja, radicalizando O primeiro passo para a filosofia e a condição
os princípios de Kant, não poderia aceitar a sem a qual nem sequer é possível entrar nela – é
a compreensão de que o absolutamente ideal é
sua letra. Pretendendo, com essa crítica radical também o absolutamente real, e de que, fora
a todo e qualquer pressuposto, um ceticismo disso, só há, em geral, realidade sensível e con-
consumado.9 O filósofo alemão ainda diagnosti- dicionada, mas nenhuma realidade absoluta in-
condicionada. Aquele para o qual o absoluta-
mente ideal ainda não se revelou como absolu-
9
Tal termo possui uma história interessante e com im- tamente real pode ser levado de diversas manei-
portantes reviravoltas, à maneira de sua real ascendên-
cia ‘niilista’ no cenário intelectual alemão, que poderia
ser melhor acompanhado via Arantes, em seu artigo Consinta o leitor uma alusão sumária a tal distinção, de
Nihilismusstreit, do qual tomaremos uma parte em- resto bem conhecida. Em poucas palavras: a filosofia –
prestada: “Trata-se de um niilismo por assim dizer fil- entendamos, o discurso especulativo – não se atém ao
trado pelo crivo do Conceito (cuja articulação entretan- resultado puramente negativo em que se detém o ceti-
to não é indiferente, pelo contrário, à constelação fixa- cismo, dimensão que entretanto conserva como a ‘al-
da por tal designação) que, como nome de ceticismo ma motora da progressão científica’” (ARANTES, 1996,
chegou, chega ao centro nevrálgico do idealismo. [...] p. 252).

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ras até esse ponto da compreensão, mas ela modo algum toma o todo como a condição
mesmo só pode ser aprovada indiretamente, inicial da filosofia12, que iria tanto contra o
não diretamente, pois é, pelo contrário, o fun-
damento e o princípio de toda demonstração
espírito dialético - alérgico a definições a prio-
(SCHELLING, 1993, P. 215). ri -, como seria um dogmatismo frente à
consciência natural. Dois aspectos que explo-
Em primeiro lugar, para o nosso autor, a rarei a seguir, começando com as lições de
crítica deve se dar de modo imanente, com um Müller e Adorno:
exame que “não é só um exame do saber, mas
também de seu padrão de medida.” (HEGEL, O que caracteriza o conhecimento dialético é,
primeiramente, que o verdadeiro (Hegel), o ra-
2012, p. 80).10Em que tomaríamos o objeto cional e concreto (Hegel, Marx), não são de
nele mesmo, sem uma violência externa – acesso imediato a qualquer tipo de intuição inte-
proposta pelos autores expostos anteriormen- lectual ou experiência direta, que intuiria ou to-
te -, no qual há a imputação de um padrão de maria o objeto no seu ser dado imediato, mas
medida exógeno à consciência natural. Outro que eles são o resultado de um movimento de
pensamento, do que Hegel chama de ‘trabalho
ponto que seria inaceitável para Hegel nos do conceito’, que expõe progressivamente, a
trechos acima é que há um conceito de todo partir das determinações mais simples e abstra-
estático, que nada tem a ver com o conceito tas do conteúdo, suas determinações cada vez
dialético. É preciso notar, com Adorno, que o mais ricas, complexas e intensas, até o ponto de
filósofo reconhece a primazia do todo sobre sua unidade, que não é uma unidade formal,
as partes finitas, “que são imperfeitas e, em mas uma unidade sintética de múltiplas deter-
minações (MÜLLER, 1982, p. 22-23)13.
confrontação com o todo, contraditórias”
(ADORNO, 2013, p. 78). Logo as partes não Adorno também chama a atenção para a
seriam tomadas autonomamente em relação peculiaridade da noção de verdade em Hegel,
ao todo, e sim que “o todo apenas se realiza digo peculiaridade já que comumente se atrela
por meio de suas partes, apenas como por a noção de verdade ao fato imediato14, tentan-
meio da separação, alienação, da reflexão [...]”
(Ibid., p. 74-75). Sendo assim poderíamos vis- através dos extremos e neles mesmo – esse é o aspecto
lumbrar um conceito de todo que “somente radical de Hegel, que é irreconciliável com todo mode-
existe de modo geral como a quintessência dos rantismo” (ADORNO, 2013, p.79).
momentos parciais, que sempre apontam para 12
“Temos de partir daquela ideia do absolutamente
além de si mesmos e se produzem uns a partir ideal; nós o determinamos como saber absoluto, abso-
luto ato-de-conhecimento. [...]Um saber absoluto é
dos outros [...]” ou seja, “[...] ele não existe apenas um saber tal que nele o subjetivo e o objetivo
como algo para além deles” (Ibid., p. 75). As- não são unificados como opostos, mas no qual o subje-
sim sendo, é de uma categoria de totalidade tivo inteiro e inversamente. Entendeu-se a identidade
nada harmônica de que se trata11. Ademais, de absoluta do subjetivo e do objetivo como princípio da
filosofia, em parte, apenas negativamente (como mera
não-diferença), em parte como mera vinculação de
10
É bom lembrar da advertência de Adorno, a fim de que dois opostos em si em um terceiro que, aqui, deveria
não se confunda crítica imanente com alguma espécie ser o Absoluto, e, em parte, ela ainda é entendida as-
de positivismo: “Hegel se curva em toda parte à essên- sim [...]. De modo geral, dever-se-ia, nessa designação
cia própria do objeto, em toda parte o objeto é reno- da Ideia suprema, não pressupor o subjetivo e o objeti-
vadamente imediato, mas mesmo essa subordinação à vo, mas antes indicar que ambos, como opostos ou vin-
disciplina da coisa exige o mais extremo esforço do culados, devem ser concebidos, justamente, apenas
conceito” (ADORNO, 2013, p. 78). naquela identidade” (SCHELLING, 1993, p. 217).
11 13
Seguindo raciocínio de Adorno sobre as mediação em Cf. (HEGEL, 2011, p. 49-62).
14
Hegel, pode-se ver esta “nunca significa, como a pintou Hegel a muito já insistia no contrário: “Aqui pode ser
o mais desastroso desentendimento desde Kierke- indicado, a partir do que foi dito, que não existe nada,
gaard, um meio entre os extremos, a mediação ocorre nem no céu, nem na natureza ou no espírito ou seja lá

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Bildung e método: notas sobre Hegel e Goethe 95
do, a qualquer custo, afastar o sujeito e a sub- Talvez nada diga mais da essência do pensa-
jetividade disto15. Segundo Adorno, para o mento dialético do que o fato da autoconsciên-
cia do momento subjetivo da verdade, a refle-
filósofo alemão a verdade não seria mera ade- xão da reflexão, deve reconciliar a injustiça que
quatio entre o objeto e o juízo, como também a subjetividade mutiladora causa à verdade ape-
não é um “predicado do pensamento subjeti- nas ao supor e ao colocar como verdade aquilo
vo, mas deve se elevar substancialmente para que nunca é inteiramente verdadeiro. Se a dialé-
além disso, precisamente como um ‘em si e tica idealista se volta contra o idealismo, ela o
para si’” (ADORNO, 2013, p. 113). Para He- faz por causa de seu próprio princípio, exata-
mente porque a tensão de sua exigência idealista
gel, o saber da verdade não é menos que o é ao mesmo tempo anti-idealista. Do ponto de
saber do absoluto, portanto vê de maneira vista do ser em-si da verdade, assim como do
crítica o criticismo kantiano que dividia radi- ponto de vista da atividade da consciência, a dia-
calmente o em si e a subjetividade. Seguindo lética é um processo: o processo é nomeadamente a pró-
Adorno, Hegel claramente se insurge contra o pria verdade (Ibid., p. 115)17.
que chama de ‘positivismo’, mas faz isso sem
cair num mero subjetivismo – “cuja preocu- Retomando o fio da meada, podemos en-
pação exagerada em saber se também a ver- tender a consciência natural como a represen-
dade seria suficientemente verdadeira culmina tação da maneira como o entendimento ope-
na supressão da própria verdade” (Ibid., ra, fixando-se constantemente em relações de
p.114) -, já que na ideia hegeliana da verdade, identidade – que mais tarde se mostrarão ‘fal-
“o momento subjetivo, aquele do relativismo, sas’. Nesse sentido, a colocação do absoluto18
é ultrapassado quando toma consciência de si mesmo. - vale lembrar que o absoluto hegeliano é re-
O pensamento está contido no verdadeiro, sultado - desde o começo não passaria de
embora não seja idêntico a ele” (Ibid., grifos uma ilusão para tal consciência, deve-se lem-
nossos). E aqui temos um momento em que
verdade e dialética16 imbricam-se: 17
É bem verdade que esse o movimento é desencadeado
pelo próprio sujeito pensante e nesse interim devemos
“exprimir o verdadeiro não como substância, mas tam-
bém, precisamente, como sujeito” (HEGEL,2012, p. 34).
18
onde for, que não contenha imediatamente a imediati- “O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a es-
cidade bem como a mediação, de modo que essas duas sência que se implementa através de seu desenvolvi-
determinações se mostrem inseparadas e inseparáveis mento. Sobre o absoluto, deve-se dizer que é essenci-
e aquela oposição como algo nulo” (HEGEL, 2011, p. almente resultado: que só no fim é o que é na verdade.
50). Sua natureza consiste justo nisso: em ser algo efetivo,
15
Adorno na mestra trilha de Hegel nos lembra que: “O em ser sujeito ou vir-a-ser-de-si-mesmo” (HEGEL, 2012,
pensamento que, em total oposição à filosofia da iden- 36). Aí está uma parte fundamental da crítica adornia-
tidade, é absolutamente desprovido de relação, o pen- na a dialética hegeliana, pois para Adorno: “[...] Hegel
samento que retira do objeto toda participação do su- escamoteou o momento crítico supremo, a crítica à to-
jeito, toda ‘ocupação’, todo antropomorfismo, é a talidade, a um infinito dado e conclusivo. Despotica-
consciência do esquizofrênico. Sua objetividade triunfa mente, ele então eliminou a barreira, aquilo que é irre-
num narcisismo patológico” (ADORNO, 2013, p. 119). dutível para a consciência, aquilo de que a filosofia
16
Hegel mesmo nos lembra: “Contra tal posição deve-se transcendental de Kant tira sua experiência mais pro-
afirmar que a verdade não é uma moeda cunhada, funda, e estipulou uma unidade do conhecimento sem
pronta para ser entregue e embolsada sem mais. Nem fissuras por meio de suas fissuras; o que tem algo de
há um falso, como tampouco há um mal. O mal e o fal- uma ilusão mítica. [...] A pretensão de saltar sobre o
so, na certa, não são malignos tanto como o demônio, particular por meio do todo se torna ilegítima, pois es-
pois deles se fazem sujeitos particulares (como aliás se todo não é propriamente, como que a famosa sen-
também do demônio). Como mal e falso, são apenas tença da Fenomenologia, o verdadeiro. A referência
universais; não obstante têm sua própria essencialida- afirmativa e assegurada desse todo, como se fosse pos-
de, um em contraste com o outro” (HEGEL, 2012, p. sível possuí-lo seguramente, é uma ficção” (ADORNO,
48). 2013, p.173).

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brar que em outro momento de sua obra He- to, é descoberto como algo que era em si so-
gel toma a Fenomenologia como a exposição - mente para ela. Tal era precisamente o resultado
da experiência: a negação do objeto precedente e o
uma longa exposição da ‘ascensão’ da consci- aparecimento de um novo objeto, que, por seu
ência fenomênica ao saber absoluto - da ciên- turno, dá origem a um novo saber (HYPPOLI-
cia da consciência, “que a consciência tem TE,2003, p. 39).
como resultado o conceito da ciência, isto é, o
saber puro” (HEGEL, 2011, p. 51). ‘Ascen- Eis aí a famigerada experiência20, essencial
são’19 - talvez o nome seja ruim, já que o de- à exposição fenomenológica. Poderíamos
senvolvimento hegeliano não seria nada linear, mesmo entender a dialética como uma experi-
sendo algo mais próximo de uma trajetória ência21, a não ser por uma questão de ‘coor-
espiralada, visto que a trajetória da consciência denadas’, como gostaria Habermas. Explico:
que ocorre por meio de negações determina- para tal autor as “dimensões do em si, para ela e
das, ‘superações’ e pela rememoração (final) – para nós designam o sistema de coordenadas
que se daria pela ‘passagem’ das diversas figu- no qual se desenrola a experiência da refle-
ras da consciência, que constantemente fazem xão” (HABERMAS, 2014, p. 47)22. Ou seja,
a experiência de sua inverdade (em que pese a na experiência a consciência vê desaparecer o
dialética entre verdade e inverdade já aponta- que para ela era tomado como o Verdadeiro e o
da anteriormente e a sua processualidade). em si, ao mesmo tempo que vê o objeto que
Segundo Hyppolite, cada consciência particu- aparece diante dela, como algo novo, um novo
lar, ou figura da consciência, que encontramos mundo. Já para consciência filosófica, ou para
no curso do desenvolvimento metodológico, nós, “tal objeto (Gegenstand) é engendrado; ela
possui uma estrutura própria, que é tanto ob- o vê nascer do movimento anterior [...] ao
jetiva, como subjetiva. O “Verdadeiro é um passo que esquece tal passado” (HYPPOLI-
mundo posto como sendo em si” (HYPPO- TE, 2003, p.40-41). Chegou-se aqui ao terreno
LITE, 2003, p. 39) e com esse Verdadeiro se da negação determinada23, pois há uma nega-
relaciona um saber, saber desse objeto como
em si. Nesse ínterim a consciência – disposta
ao desenvolvimento fenomenológico, como 20
“[...]deve-se dizer que nada é sabido que não esteja na
ao sofrimento e ao desespero que que lhes são experiência; - ou, como também se exprime a mesma
próprios – “põe a prova seu saber para torná- coisa – que não esteja presente como verdade sentida,
lo adequado aquilo que toma como sendo o como Eterno interiormente revelado, como o sagrado
em que se crê, ou quaisquer outras expressões que se-
verdadeiro”, contudo com a mudança de seu
jam empregadas. Com efeito, a experiência é exata-
saber, há também a mudança do objeto, já que mente isto: que o conteúdo – e ele é o espírito – seja
este era objeto de um certo saber. Com efeito: em si substância, e assim, objeto da consciência” (HE-
GEL, 2012, p.539).
[...] quando a consciência põe à prova o saber 21
“Esse movimento dialético que a consciência exercita
que tem de seu objeto, aquilo que tomava como em si mesma, tanto em seu saber como em seu objeto,
em-si, posto como se fosse o verdadeiro absolu- enquanto dele surge um novo objeto verdadeiro para a
consciência, é justamente o que se chama experiência.”
(HEGEL, 2012, p. 80).
19 22
A título de diferenciação, para Freud a consciência Ver também os seguintes parágrafos da Fenomenolo-
estaria sob o signo da conservação: “Façamos agora a gia: §83, §84 e §85 (HEGEL, 2012, p. 78-80).
23
fantástica suposição de que Roma não seja uma mora- “Separa-os portanto a distância que aparta a negação
da humana, mas uma entidade psíquica com um passa- determinada da simples negação abstrata, assim carac-
do igualmente longo e rico, na qual nada que veio a terizada pela fenomenologia: o ceticismo, desconhe-
existir chegou a perecer, na qual, juntamente com a cendo a natureza do impulso que comanda seu movi-
última fase do desenvolvimento, todas as anteriores mento, ‘vê sempre, no resultado, o puro-nada tão-
continuam a viver” (FREUD, 2010, p.23). somente, e abstrai do fato de que esse nada é, deter-

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Bildung e método: notas sobre Hegel e Goethe 97
ção da figura, mas não uma negação que leva gico que pode ser melhor acompanhado a
a um nada abstrato e absoluto e sim a um partir de outra obra do filósofo:
“nada daquilo que resulta: um resultado que
contém o que o saber anterior possui de ver- Superar [Aufheben] e o superado (o ideal) é um dos
conceitos mais importantes da filosofia, uma
dadeiro” (HEGEL, 2012, p. 81). Um passo determinação fundamental que pura e simples-
fundamental da exposição hegeliana e que mente retorna por todos os lados e cujo sentido
confere certa necessidade ao movimento da tem de ser apreendido de modo determinado e
consciência natural, caso contrário romper-se- ser particularmente distinguido do nada. – O
ia com o critério da imanência na fenomeno- que se supera, não se torna, por isso, nada. O
logia, já que a única maneira de justificar a nada é o imediato; algo superado, ao contrário, é
algo mediado, é o não existente, mas como resul-
relação entre as diversas figuras da consciência tado que partiu de um ser; ele tem, portanto, ain-
até o absoluto seria a existência prévia de um da em si a determinidade da qual procede. [...] O con-
saber absoluto.24 servar mesmo já implica em si o negativo, ao ser
Dessa pequena exposição vemos que há tomado de algo e sua imediaticidade e, assim, de
uma contenção do que existia de verdadeiro algo são tomados os efeitos exteriores de uma
existência aberta, a fim de conservá-lo. – Assim,
na figura anterior, já negada e posteriormente o superado é algo ao mesmo tempo conserva-
‘elevada’ – vislumbra-se aqui um processo do, que apenas perdeu sua imediaticidade, mas,
cumulativo, familiar a Bildung e a Meister. O as- por isso, não foi aniquilado. – As duas determi-
pecto metodológico de que se fala é o da nações indicadas do superar podem ser apresen-
Aufhebung - suprassunção no português -, no tadas, em termos lexicais, como dois significados
qual aquilo que era ‘imediato’ é colocado em dessa palavra. [...] Algo é apenas superado ao
entrar em unidade com o seu oposto; nessa de-
movimento, transformando-se em um mo- terminação mais precisa, como algo refletido,
mento, ou, em outras palavras aquilo que era algo pode ser apropriadamente chamado momen-
pressuposto passa a ser algo posto na exposi- to (HEGEL, 2011, p.98).
ção fenomenológica25. Um aspecto metodoló-
Seriam esses alguns dos aspectos metodo-
lógicos fundamentais da exposição fenomeno-
minadamente, o nada daquilo do qual ele procede’”
(ARANTES, 1996, p. 252).
lógica, cujo caminho - como já foi dito anteri-
24
De certa forma poderia se dizer que uma das críticas ormente – irá ‘desaguar’ no saber absoluto,
centrais de Habermas a exposição fenomenológica se- um saber que nada mais é do que: a rememora-
ria a existência de uma trapaça em relação ao critério ção de todas as etapas percorridas – entre o
da imanência: “Para a filosofia crítica, as coisas se apre- desespero e o sofrimento - pela consciência.
sentam de maneira diferente. Uma vez que o organon
gera o mundo no interior do qual a realidade pode apa-
Nas palavras de Hegel:
recer de maneira geral, ele se limita sempre a desven-
dar essa realidade sob as condições de seu funciona- Esse vir-a-ser apresenta um movimento lento e
mento, e não a encobri-la. [...] Porém, sem identificar um suceder-se de espíritos, um ao outro; uma
as condições do conhecimento possível, não podere- galeria de imagens, cada uma das quais, dotada
mos de modo algum falar, sob os pressupostos da filo- com a riqueza total do espírito, desfila com len-
sofia transcendental, de conhecimento em sentido ple- tidão justamente porque o Si tem de penetrar e
no. A crítica de Hegel não procede, portanto, de forma de dirigir toda essa riqueza de sua substância.
imanente; a objeção contra a teoria do conhecimento Enquanto sua perfeição consiste em saber per-
como organon já pressupõe o que esta, por sua vez,
coloca justamente em questão: a possibilidade do sa- 2010, p.139) . Algo já apontado por Adorno: “O princí-
ber absoluto” (HABERMAS, 2014, p.38-39). pio goethiano-mefistofélico de que tudo o que existe
25
Aqui vemos um motivo um tanto quanto mefistofélico merece perecer significa em Hegel que a destruição de
em Hegel – lembrando da famosa colocação em Faus- todo singular é determinada pela sua própria singulari-
to: “O Gênio sou que sempre nega!/E com razão; tudo zação, pela particularidade, a lei do todo [...]” (ADOR-
o que vem a ser /É digno só de perecer” (GOETHE, NO, 2013, p.164).

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feitamente o que ele é – sua substância – esse sa- cesso muito bem notado por Mazzari: “O
ber é então seu adentrar-se em si, no qual o espi- fato, contudo, de que [...] o herói mergulhe
rito abandona seu ser-aí e confia sua figura à
rememoração. [...] a re-memoraçãoos conservou; a
numa crise tão mais profunda mostra apenas
rememoração é o interior, e, de fato, a forma que o complexo processo formativo configu-
mais elevada da substância. Portanto, embora rado no romance se dá de maneira descontínua,
esse espírito recomece desde o princípio sua marcada tanto por avanços como por recuos e
formação, parece partir somente de si, ao mes- revezes” (MAZZARI, 2012, p. 20). Um epi-
mo tempo é de um nível mais alto que sódio emblemático do processo cumulativo de
[re]começa. [...] O reino-dos-espíritos, que desse
modo se forma no ser-aí, constitui uma suces- Meister é o abandono do teatro, quando faz a
são na qual um espírito sucedeu a um outro, e experiência de sua inverdade como meio que
cada um assumiu de seu antecessor o reino do lhe propiciaria uma formação total, novamen-
mundo. Sua meta é a revelação da profundeza, e te ficamos à sombra de Mazzari:
essa é o conceito absoluto. [...] A meta – o saber ab-
soluto, ou o espírito que se sabe como espírito Na medida em que avança a sua compreensão
– tem por seu caminho a rememoração dos es- das relações sociais e o processo de autoconsci-
píritos como são neles mesmos, e como desem- ência, o jovem herói vai também se distancian-
penham a organização de seu reino (HEGEL, do do teatro. O ponto de viragem ocorre para-
2012, p. 544-545). doxalmente no Livro V, quando sua carreira
atinge, com a encenação do Hamlet, o ápice.
Ou como diz Habermas: Torna-se-lhe claro, após brilhante performance,
que o teatro por si só não é capaz de oferecer-
[...] a gênese, que parte da consciência natural, lhe respostas em sua busca, pois se subordina a
precisa ser reconstruída até chegar ao ponto de um complexo que envolve ampla gama de valo-
vista que o expectador fenomenológico adotara res humanistas. Wilhelm compreende ao mes-
provisoriamente; depois, a posição da crítica do mo tempo que o entusiasmo pelo palco sempre
conhecimento pode coincidir com a consciência esteve intrinsecamente relacionado à rejeição
de si constituída de uma consciência que se in- pelas formas de vida burguesa que lhe estavam
teirou de seu processo de formação, purifican- determinadas. Conscientiza-se de que em todos
do-se assim de elementos contingentes. O sujei- os papéis que representasse ele estaria, no fun-
to da certificação a ser operada pela crítica do do, representando a si mesmo, como diletante.
conhecimento não está como que pronto para o Desse modo, revela-se que a opção pelo teatro não foi se-
chamado da consciência que quer ir diretamente não um equívoco, mas ao mesmo tempo torna-se-lhe
ao exame; ele só é dado a si mesmo com o re- igualmente claro que este equívoco, representou uma eta-
sultado de uma autocertificação (HABERMAS, pa essencial em sua trajetória. Sofrendo Wilhelm todas
2014, p. 44-45). as consequências desse erro para depois, na etapa seguin-
te, superá-lo de maneira consciente, o desenvolvimen-
Com isso colocado voltamos ao Meister e to ruma à nova concepção de formação huma-
nista realiza um avanço objetivo e definitivo
seus anos de formação. Uma formação que ope- (Ibid., p. 17, grifos meus).
raria de maneira análoga à consciência natural
em direção ao saber absoluto, nos seus recuos Salta aos olhos as semelhanças da experiência
e reviravoltas – à maneira de uma espiral -, formativa de Meister e a experiência da inver-
além de seu sofrimento e desespero em rela- dade das figuras da consciência, trazidas à luz
ção a não verdade da posição anterior26. Pro- via Hyppolite. Para além disso há um proces-
so de rememoração, do nosso protagonista, das
26
Judith Butler mesmo considera a Fenomenologia um fases que foram experenciadas em sua incom-
romance de formação otimista. Nas suas palavras: “Af- pletude, mas que foram essenciais à formação
ter all, the Phenomenology of Spirit is a Bildungsroman,
an optimistic narrative of adventure and edification, a
pilgrimage of the spirit, and upon immediate scrutiny, it metaphysical case he wants to make” (BUTLER, 1999,
is unclear how Hegel’s narrative structure argues the p.17).

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Bildung e método: notas sobre Hegel e Goethe 99
total tão almejada pela personagem – veja-se a silogismo que se pode acompanhar com o
carta endereçada a Werner (GOETHE, 2012, seguinte esquema:
p. 284-287). Rememoração de todas as etapas,
ou melhor, de todas as figuras da consciência, (a) O senhor se relaciona com a natureza medi-
ante o trabalho do escravo. (b) Este está preso à
que representa o saber absoluto – como ex- natureza (é sua cadeia), transformando seu lado
posto anteriormente. áspero (a matéria prima) em utensílio e bens de
Há ainda um outro ponto sobre formação consumo, que o senhor consome sem esforço.
e método que resta mostrar - como diz Aran- (c) Por conseguinte, o senhor se relaciona con-
tes “se nos for permitido lançar mão da so- sigo mesmo mediante o escravo, pois dele de-
brecarga de sentido de termo Bildung, pedra de pende para consumir. (d) O senhor se relaciona
com a natureza mediante o escravo, pois o que
toque do edifício fenomenológico” (ARAN- ele consome é a natureza transformada pelo
TES, 1996, p. 253). Voltando a Gadamer, ve- trabalho escravo. Por sua vez, (e) o escravo se
mos que uma de suas lições é o fato de que a relaciona diretamente com a natureza bruta e a
“essência do trabalho é formar a coisa, e não transforma pelo trabalho. Mas como neste silo-
deformá-la” (GADAMER, 2013, p. 48). Nes- gismo ele foi subsumido no senhor, sua relação
com a natureza passa antes pela submissão ao
se ínterim do trabalho a consciência laboriosa senhor. (f) Isto quer dizer que o escravo é obri-
cultiva-se, ou – no dialeto dos espíritos cultos gado a trabalhar e que o produto do trabalho
em realidades atrasadas – forma-se. pertence ao senhor. Em outras palavras, o es-
Em meio a trama do livro de Hegel, depa- cravo depende do senhor também para consu-
ramo-nos com uma luta de vida ou morte – mir, só lhe sendo dado consumir o que o se-
na verdade esse último destino não pode se nhor permite, o suficiente para mantê-lo vivo.
Isto explica a definição de trabalho como desejo re-
concretizar, visto que, como será mostrado, primido e consumo retardado: o senhor, que está en-
só uma consciência ‘viva’ pode reconhecer a tre o escravo e a natureza, só lhe concede satis-
outra - por reconhecimento entre duas cons- fazer o desejo de consumo sob medida, retar-
ciências – paradoxalmente ensejada por um dando assim o desaparecimento do objeto, que
desejo egoísta27. Dessa luta temos como resul- pode então ser entesourado (Ibid., p.91).
tado: uma consciência que é escravizada por
uma consciência que passa a ser senhor, daí O senhor passa assim a realizar o puro des-
saltamos para a conhecida dialética do senhor frute da coisa sem trabalhar, “o seu desejo é a
e do escravo28, ou, mais especificamente, o pura negação do objeto, consumo imediato”
Silogismo da Dominação. Um silogismo que (Ibid., p. 95); já o escravo tem o seu desejo
consiste: “[...] no fato de o senhor colocar o reprimido tendo que adiar o consumo da coi-
escravo entre si e a natureza. O escravo é o sa: o “trabalho, ao contrário, é desejo refreado,
termo médio através do qual o senhor se rela- um desvanecer contido, ou seja, o trabalho for-
ciona com a natureza. Isto produz uma desi- ma” (HEGEL, 2012, p. 150). Mas é essa ser-
gualdade entre o trabalho e o gozo (Genuss) ou vidão mesma que levaria a liberdade, ou me-
uma ausência de simetria entre o produtor e o lhor, os “passos da libertação se consumam na
consumidor” (SANTOS, 1993, p. 90). Um disciplina do servir e no trabalho sobre a natu-
reza, que completam a experiência de sua for-
27
Cf. HEGEL (2012, p. 135 – 151) (2011, p.197-206).
mação” (SANTOS, 1993, p. 95). Do ponto de
28
“Nisso se sugere exatamente aquele tipo de astúcia, vista do reconhecimento, mais especificamen-
algo como uma grandiosa artimanha camponesa, por te na visão do senhor, dá-se um verdadeiro
tanto tempo ensinada, de se esconder sob os podero- impasse existencial – acompanhando Kojève:
sos e se apoiar em suas necessidades até que se possa
tomar deles o poder: a dialética do senhor e do escravo
da Fenomenologia deixa escapar esse segredo”
(ADORNO, 2013, p. 122).

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A relação entre senhor e escravo não é portanto tais: “o momento do medo29 e do serviço em
um reconhecimento propriamente dito. [...] O geral, assim como o momento da formação”. E
senhor não é o único a se considerar como se-
nhor. O escravo também o considera como tal.
nenhum deles pode se dar sem o outro, pois
Logo, o senhor é reconhecido em sua realidade sem a disciplina do serviço, o medo seria for-
e sua dignidade humanas. Mas esse reconheci- mal; sem a formação, o medo seria apenas
mento é unilateral, porque ele não reconhece a interior; sem medo, a consciência se desen-
realidade e a dignidade humanas. Logo, ele é re- volve em um sentido vão “finalmente, se não
conhecido por alguém que ele não reconhece. E estivesse exposta ao medo absoluto, a essência
nisso está a insuficiência – e o caráter trágico –
de sua situação. O senhor lutou e arriscou a vi- negativa permaneceria sempre algo exterior à
da pelo reconhecimento, mas só obteve um re- consciência. Em resumo, se faltasse um desses
conhecimento sem valor para si. Porque ele só elementos, a consciência servil não lograria
pode ficar satisfeito com o reconhecimento por dominar o poder universal e a essência objeti-
parte de quem ele reconhece como alguém dig- va em sua totalidade” (Ibid., p. 97). Ao tornar-
no de o reconhecer. A atitude do senhor é pois um
impasse existencial. De um lado, o senhor só é se-
se senhor da natureza pela via do trabalho,
nhor porque seu desejo buscou não uma coisa, forma-se, fazendo-se senhor de si mesmo; su-
mas um outro desejo, foi um desejo de reco- primindo, assim, aquela escravidão a que havia
nhecimento. De outro lado, como se tornou se- sido submetido.
nhor, como senhor deve desejar ser reconheci- Em suma, aquela pedra de toque para o
do; e só pode ser reconhecido como tal fazendo edifício fenomenológico - de que falava Aran-
do outro seu escravo. Mas o escravo é para ele
um animal ou uma coisa. Logo, ele é reconhecido tes -, apresenta-se aqui como um ‘episódio’
por uma coisa. Assim, no final das contas, seu de- fundamental da exposição hegeliana – ela
sejo busca uma coisa e não – como parecia no mesma uma espécie de formação, como haví-
início – um desejo (humano). O senhor se en- amos dito anteriormente -, imbricando-se.
ganou (KOJÈVE, 2014, p. 23). Um episódio sem o qual não chegaríamos ao
Espírito, visto que:
No desenvolvimento dessa relação o silo-
gismo da dominação se inverte e o senhor [...] a Odisséia da consciência servil se prolonga
passa a depender do escravo: na consciência estóica, que assinala, em linhas
gerais, o fim do mundo antigo. É sintomático
O senhor consome como animal, sem precisar que na consciência infeliz se unam o senhor, na
trabalhar [...], daí sua desumanidade, que se sa- figura do imperador Marco Aurélio, e o escravo,
tisfaz no apetite voraz [...]. O escravo se formou representado por Epitecto, ambos estóicos em
na disciplina e, ao transformar a natureza bruta, sua atitude de dependência diante do Destino.
ao desenvolver o domínio da coisa, se formou a Mas a formação do homem não termina com o
si mesmo, se educou. Pois não é possível transformar ceticismo nem com o puro conformismo; a
a natureza, sem se transformar, sem torna-se cultivado. consciência – de –si abre o caminho para o ca-
[...] A situação se inverteu, não pela revolta do
escravo que logra êxito ao se insurgir contra o 29
senhor, mas pela educação de si mesmo. [...] A “Ou seja, essa consciência servil sentiu medo não disto
ou daquilo, não durante este ou aquele momento, mas
pedagogia de Hegel é uma pedagogia do traba-
de toda a sua [própria] realidade-essencial. Porque ela
lho e da disciplina: a verdadeira transformação
sentiu a angústia da morte, do senhor absoluto. Nessa
do mundo está no trabalho e na educação pelo
angústia, a consciência servil foi interiormente dissolvi-
trabalho (SANTOS, 1993, p. 96, grifos meus).
da; toda ela estremeceu, e nela tudo o – que – é – fixo
– e – estável tremeu. Ora, esse movimento [dialético]
É no trabalho que a consciência escrava universal puro, essa liquefação absoluta de toda posi-
passa a encontrar a si mesma, não sendo mais ção-estável é a realidade-essencial simples-ou-indivisa
algo estranho a ela. Para tal encontro, Santos da consciência-de-si, a negatividade – negadora absolu-
lembra de dois momentos que são fundamen- ta, o Ser-para-si puro” (KOJÉVE, 2014, p. 25, grifos
meus).

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De posse do que até fora exposto, é possí-
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Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2009.
trando-se uma profunda solidariedade entre
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Bildung, método e forma literária. A formação
Goethe nos últimos anos de sua vida:
de Meister, bem como os caminhos difíceis da
1823-1832. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
consciência e suas figurações em direção ao
FAUSTO, R. Entre Adorno e Lukács (Dois
saber absoluto, operariam de modo homólo-
livros de Paulo Arantes). Lua Nova. São Pau-
go, em suas reviravoltas e recuos, além de seu
lo, v. 1, nº 47, p. 201-220, set.-dez.,1997.
desespero ou sofrimento frente à inverdade da https://doi.org/10.1590/S0102-64451997000300008
posição anteriormente tomada como a verda- FREUD, S. Obras Completas (vol.18). São
deira. Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Solidariedade a qual nos permitiria indagar FICHTE, J. G. Sobre o conceito da doutrina-
– tendo em vista alguns fragmentos já deixa- da-ciência ou da assim chamada filosofia. In:
dos ao longo do artigo, em rodapés, por TORRES FILHO, R. R. Os Pensado-
exemplo – se, ao fim e ao cabo, a formação res(col.), vol. XXVI. São Paulo: Abril Cultu-
histórica e social alemã dotada de seu atraso ral, 1973, p. 15-39.
relativo frente à sociedade francesa (ARAN- GADAMER, H.-G. Verdade e Método I:
TES, 1996; LUKÁCS, 1959), por exemplo, traços fundamentais de uma hermenêutica
não teria deixado de ser apenas fundo dessas filosófica. 8ª edição. Petrópolis, RJ; Bragança
reflexões e passasse a ser figura? Em outras Paulista, SP: Vozes; Editora Universitárias São
palavras, o atraso alemão com os nossos auto- Francisco, 2013.
res não teria deixado, para falar com Schwarz GOETHE, J. W. V. Fausto: uma tragédia –
(2012, p. 129-157), de ser mero dado externo Primeira parte. 6ª edição. São Paulo: Editora
e se tornado mola propulsora do pensamento 34, 2010.
de ambos (ARANTES, 2004, p.271-273)? Por GOETHE, J. W. V. Os anos de aprendiza-
hora fecharemos apenas com estas perguntas, do de Wilhelm Meister. 2ª edição. São Pau-
até porque desdobrar o que será aqui coloca- lo: Editora 34, 2012.
do nos levaria a outro projeto de pesquisa e a HABERMAS, J. Conhecimento e interesse.
constituição de um novo artigo, ou melhor, São Paulo: Editora Unesp, 2014.
uma série de novos textos. HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica: (ex-
certos). São Paulo: Barcarolla, 2011.
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Bildungsroman na história da literatura. São Commons Attribution License, which permits unrestricted
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the original work is properly cited.
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Artigo recebido em 05 de abril de 2019.
MARX, K. O capital: crítica da economia Avaliado em 11 de outubro de 2019.
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