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COMPANHIA DE JESUS

ONTEM, HOJE, AMANHÃ


Colecção MANRESA

Autoconhecimento e Discernimento Cristão


Domingos Terra, S.J.
Espiritualidade Inaciana – 1ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
Deus e o Homem segundo Santo Inácio – 2ª Semana de Estudos de Espirituali-
dade Inaciana
AA. VV.
Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana – 3ª Semana de Estudos de Espirituali-
dade Inaciana
AA.VV.
A Trindade na Espiritualidade Inaciana – 4ª Semana de Estudos de Espirituali-
dade Inaciana
AA.VV.
Exercícios Espirituais de Libertação Pessoal
José Alves Martins, S.J.
Ordenar a Vida – Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola
Dário Pedroso, S.J.
Manual do Peregrino – Caminhando com os Exercícios Espirituais de Inácio de
Loyola
António Vaz Pinto, S.I.
São Francisco Xavier – 450 Anos da sua morte (1552-2002) – 5ª Semana de
Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo – 6ª Semana de Estudos de Espiritua-
lidade Inaciana
AA.VV.
Companhia de Jesus – Ontem, Hoje, Amanhã – 7ª Semana de Estudos de Espi-
ritualidade Inaciana
AA.VV.
VII Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana

COMPANHIA DE JESUS
ONTEM, HOJE, AMANHÃ

Editorial A. O. – Braga
Capa: JoeFox. brand consultants

Paginação: Editorial A. O. – Braga

Impressão
e Acabamentos: Tipografia Tadinense – Braga

Depósito Legal nº

ISBN 978-972-39-0704-9

Outubro de 2008

Com todas as licenças necessárias

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SESSÃO DE ABERTURA
A. da Costa Silva, S.J.

Com uma saudação amiga de boas vindas, vamos iniciar a VII


Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana, encerrando desta
forma e neste Santuário de Fátima as celebrações dos 450 anos da
morte de Santo Inácio de Loyola e dos 500 anos do nascimento de
S. Francisco Xavier e do Beato Pedro Fabro.
Por caminhos e projectos pessoais, encontraram-se um dia em
Paris, no Colégio de Santa Bárbara, iniciando, sem o saberem, um
projecto comum que terminaria no nascimento da Companhia de
Jesus.
Vêm da «di-versidade» de mundos parciais para a «uni-ver-
sidade» (universo) do mundo cultural do tempo. Fabro traz o
mundo rural e bucólico da Saboia à procura do saber; Xavier traz
de Navarra a tradição académica do tio, o Doutor Navarro, em
busca da fama; Inácio traz o mundo dos ideais purificados por
uma experiência espiritual, em busca dos conhecimentos que lhe
permitam dedicar a vida à salvação das almas. Vêm os três do
particular para os horizontes do universal.
A celebração do jubileu dos três primeiros jesuítas conduz-nos
ao «Ontem» que a presente semana de estudos pretende aprofundar
no «hoje» e prolongá-lo no «amanhã». Daqui o tema «Companhia
de Jesus – Ontem, Hoje, Amanhã».
No seu ontem encontramos as marcas genéticas que nos permi-
tem perceber melhor não só a identidade da Companhia de Jesus,
mas também o «onde» ela se vive como corpo apostólico e o «para
quê» da sua existência histórica.
6 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Não foi fácil o nascimento da Companhia de Jesus como Inácio


e companheiros a desejaram, a julgar pelas forças empenhadas em
abortar a criança ainda a nascer. Basta lembrar as resistências à
sua aprovação em Roma e as hostilidades vindas de Espanha a que
se associa a França com o decreto da Sorbonne de 1549, decla-
rando-a «danosa em matéria de fé, perturbadora da paz da Igreja
(...), apta mais para destruir do que para edificar», ao ponto do
Papa Paulo IV lhe ter imposto o Ofício Divino como forma de a
reconduzir ao espírito e à vivência da vida religiosa do tempo, o
que faria dela, de facto, um aborto à nascença. Seria mais uma
ordem religiosa na Igreja, mas não a ordem nova para os tempos
novos, também eles a nascer.
Nascendo, como nasceu, na fronteira do mundo medieval che-
gado ao fim e o humanismo renascentista a impor-se, a Compa-
nhia de Jesus é vista como «subversiva e perigosa». Não lhe faltarão
tempestades no seu percurso histórico. Amada por uns, odiada por
outros, «morta» em 1773 pelo Breve «Dominus ac Redemptor» de
Clemente XIV para ser «ressuscitada» em 1814 por Pio VII, desta
vez pelo Breve «Solicitudo omnium Ecclesiarum», recomeçou, des-
de então, o seu caminho, sempre na crista da onda.

Não foi fácil o seu nascimento porque nasceu diferente. Nascen-


do sem a recitação pública do Ofício Divino, ausência de penitên-
cias corporais, de hábito como forma de vestir e de clausura (a sua
casa será o mundo e não o convento), está a ameaçar os pilares em
que assentava a vida religiosa do tempo, pelo menos na perspectiva
de Melchor Cano que não se cansará de a acusar disto mesmo,
enquanto o P. Nadal, por sua vez, não se cansará de repetir «Não
somos monges» sempre que via indícios de aproximação a práticas
mais próprias da vida monacal. A Companhia de Jesus nasce nou-
tro e para outro paradigma.
Sessão de Abertura 7

Nasce primeiro como «missão» em consequência do voto de


Montmartre, naquele memorável dia 15 de Agosto de 1534 em que
Inácio e companheiros se consagraram a Deus em pobreza e virgin-
dade, fazendo voto de se dedicarem à salvação das almas, e, só depois
como «corpo», cinco anos mais tarde, na Deliberação de 1539.
Sabemos da história deste voto e da chamada Cláusula Papal
nele incluída, que os acontecimentos transformaram no 4º Voto
de Obediência ao Papa acerca das Missões, a que Santo Inácio
chamará «nosso princípio e principal fundamento».
Os primeiros companheiros buscavam em Montmartre uma
missão particular em Jerusalém, Deus, porém, conduzi-los-ia à
missão universal da Igreja, a todo o mundo, entre fiéis e infiéis,
aonde o Papa os quisesse enviar. Dum grupo de amigos nasce um
corpo apostólico. Bobadilha, já com 80 anos de idade, aquando do
55º Aniversário do voto de Montmartre, em carta de 11 de Agosto
de 1589 ao Geral Cláudio Aquaviva, escreverá: «Recordo (...)
como nesse dia, festa da Gloriosa Senhora, nós, os primeiros Padres
da Companhia de Jesus, no monte dos Mártires, perto de Paris, fi-
zemos voto de peregrinar a Jerusalém e como a Divina Providência
(...) mudou este voto num melhor e mais proveitoso, no peregrinar
ao estado religioso».

A Companhia de Jesus nasce, pois, como um «Corpo para a


Missão». Entendamos, contudo, a sua novidade. Não nasce corpo
à busca duma missão, mas missão à busca dum corpo. Este é con-
sequência daquela, é por causa daquela. Como tal é «instrumento
e serviço». O seu modo de ser e proceder encontram aqui a sua
explicação.
Mas nasce, simultaneamente, em missão. Quando aprovada
a 27 de Setembro de 1540 por Paulo III, nas Letras Apostólicas
«Regimini militantis Ecclesiae», para só falar dos três primeiros
8 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

companheiros, já S. Francisco Xavier partira em missão a caminho


do Oriente, enquanto Pedro Fabro partia uma semana depois da
sua aprovação para os Colóquios entre católicos e protestantes na
Alemanha; Inácio ficará definitivamente em Roma a cuidar do
corpo e a levar a cabo a elaboração das constituições como missão
recebida dos companheiros. A Companhia de Jesus nasce como
corpo na dispersão. «Repartidos pela vinha do Senhor», escreverá
Inácio na 7ª parte das mesmas constituições.
O «Corpo para a Missão» assumirá, por isso, a estrutura con-
creta dum «Corpo na Dispersão».

Corpo e missão transformam-se desta forma em dois pólos de


permanente tensão na vida da Companhia de Jesus. A missão
exige-lhe dispersão enquanto o corpo exige coesão; a missão leva
sentido centrífugo, o corpo necessita sentido centrípeto. Santo
Inácio está consciente desta realidade ao escrever: «Quanto mais
difícil é a união dos membros desta congregação entre si e com a
cabeça, dada a dispersão pelas diversas partes do mundo entre fiéis
e infiéis, tanto mais necessário é procurar todos os meios para a
obter» (Const. 655). A citação é tirada do começo da 8ª parte das
Constituições cujo título é: «Meios de unir com a cabeça e entre si
aqueles que estão dispersos».
A 7ª parte das Constituições configura o corpo a partir dum
duplo princípio: o princípio da flexibilidade na sua adaptação «às
circunstâncias de pessoas, tempo e lugar» e o princípio da mobili-
dade estrutural para que possa «discorrer pelas diversas partes do
mundo». A Companhia de Jesus quer ser corpo para ser missão e
sabe que quanto mais corpo for, mais missão será. A «união dos
corações» da 8ª parte das Constituições aparece, pois, como con-
traponto à mobilidade estrutural da 7ª parte, introduzindo uma
especificidade na forma como este corpo é corpo. A coesão do corpo
Sessão de Abertura 9

não nasce da «unidade», na visão de Inácio (nunca usa a palavra


comunidade = unidade comum) mas da «comunhão» (= união co-
mum), ou seja, da «interior lei da caridade e amor que o Espírito
Santo escreve e imprime nos corações» (Proémio das Const. 134).
«Amigos no Senhor» será a expressão clássica da linguagem jesuíta.
União na dispersão. O que os une não é a geografia, mas o coração;
não é o estar juntos mas o estar unidos.

«Companhia de Jesus – Hoje e Amanhã». A Companhia de Jesus


conta, actualmente, com perto de 20.000 membros espalhados pelos
cinco continentes. Fiel ao legado recebido do seu Ontem, quer con-
tinuar «dispersa mas unida» como «Corpo para a Missão». Este é o
legado que deseja partilhar com os seus amigos aqui presentes.

No próximo Domingo, dia 3 de Dezembro, festa litúrgica de


S. Francisco Xavier, encerraremos simultaneamente a VII Sema-
na de Estudos de Espiritualidade Inaciana e as Celebrações do
jubileu dos três primeiros jesuítas com a Eucaristia a que presidirá
o P. Nuno da Silva Gonçalves, Provincial da Província Portu-
guesa da Companhia de Jesus. Terminaremos assim em acção de
graças.

Queria finalizar estas minhas palavras de abertura com um


sentimento agradecido a Inácio de Loiola pelo corpo apostólico que
hoje somos, a Pedro Fabro que ao morrer em Roma a caminho do
Concílio de Trento nos leva para dentro da Igreja e da sua proble-
mática, e a Francisco Xavier que às portas da China nos deixa com
o olhar no Futuro que está no Amanhã. Deus queira que saibamos
entrar nele.
INÁCIO DE LOIOLA E A COMPANHIA DE JESUS:
A COMPANHIA DE JESUS EM TEMPO
DE MUDANÇA
António Vaz Pinto, S.J.

Esclarecimento prévio

Este título é ambíguo: poderia querer significar a Compa-


nhia de Jesus, hoje, em tempo de mudança, mas a nota escrita
que me foi enviada pelos organizadores esclarece que se pre-
tende visar o ontem do nascimento da Companhia referente a
Santo Inácio, nos tempos de mudança que então se viviam…
Um segundo esclarecimento prévio parece-me conveniente:
como o próprio Santo Inácio repetidamente afirma nos seus es-
critos, o autor e fundador da Companhia é o próprio Jesus que
a quis fundar, através de Inácio de Loiola e dos seus primeiros
companheiros, o grupo inicial dos 7 de Paris, entre os quais
avultam Inácio, Pedro Fabro e Francisco, que neste encontro da
SEEI felizmente recordamos e celebramos. Vamos a isso…

1. Inácio de Loiola – O contexto familiar e pessoal

Quando em 1491, no País Basco, nasce o décimo terceiro


e último filho dos Senhores de Loiola, Iñigo, nada fazia prever
que iria ser santo e que, apesar da sua pequena estatura física,
viria a ser uma das maiores figuras da história da Igreja e até da
humanidade…
12 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Inácio – assim se passou, mais tarde, a chamar a si próprio,


por devoção ao grande Inácio de Antioquia e por ser um «nome»
mais universal – enraizado no seu tempo e no seu meio, brota de
uma família nobre, valente e por vezes violenta, localmente po-
derosa mas com ligações importantes de parentesco e amizade
com os grandes do mundo do seu tempo. Experiência de con-
tacto e de relação que mais tarde, embora não já com objectivos
de carreira e de «poder», virá também a ser preciosa…
Dizia alguém, a propósito dos nobres do «século do oiro»
espanhol: «homens com uma fé de apóstolos e os sete pecados
capitais»… Era o caso de Inácio de Loiola, já então com uma fé
inabalável, como mostram as circunstâncias do cerco de Pam-
plona, perigo de morte e convalescença na casa paterna, mas
orientado pelos interesses e valores de um nobre cavaleiro do
final da Idade Média, que ressoam fortemente na parábola do
Rei Temporal dos Exercícios Espirituais: lealdade, fidelidade,
honra, grandes ideais, coragem até ao fim…
O resto, como ele próprio dita ao seu secretário P. L. Gon-
çalves da Câmara, «até aos 26 anos de idade, foi homem dado
às vaidades do mundo e principalmente deleitava-se no exercí-
cio de armas com um grande e vão desejo de ganhar honra».
Tudo isto, primeiro em Loiola e arredores, mas sobretudo
em Arévalo, ao serviço de Juan Velásquez de Cuéllar, Con-
tador-mor (Ministro das Finanças) de Castela e membro do
Conselho Real de Fernando, o Católico. Mais tarde, serve o
seu parente António Manrique de Lara, duque de Nájera e
Vice-Rei de Navarra.
Foram pelo menos 11-13 anos de educação informal, de
contactos, de aventuras, conflitos e mulheres, de corte... Como
dizia o P. Polanco, seu confidente, «embora fosse aficionado à
fé, não vivia nada conforme a ela, nem se guardava de pecados,
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 13

antes era especialmente travesso em jogos e em coisas de mu-


lheres e em revoltas e coisas de armas».
Era este o nosso homem, baixo, corajoso, bom negociador,
activo e simultaneamente reflexivo, cheio de pecados, desejos e
sonhos que vai «aterrar» no cerco de Pamplona.
Em 1521, dá-se o «feliz desastre» de Pamplona: a sua co-
ragem e determinação, a sua capacidade de liderança não são
suficientes para salvar a praça de Pamplona, sitiada pelos ata-
cantes, entre os quais estavam presentes os irmãos de Francisco
de Xavier…
Derrota, graves ferimentos físicos, uma das pernas coxa para
sempre, perigo de morte. É levado aos ombros, em liteira, até
Loiola, a casa paterna, pelos inimigos… Belos tempos!…
Em Loiola, perigo de vida, perna estendida, imobilidade
forçada, convalescença longa.
Sonhos, recordações, tédio, o tempo que custa a passar, a
impressão de inutilidade… E então, para passar o tempo, por-
que não havia nada de melhor, a leitura difícil, depois ávida e
empenhada dos dois livros que constituíam a biblioteca daque-
la casa, nobre e rica: «a Vida de Cristo» e a «Vida dos Santos».
É a silenciosa revolução interior, o combate dos espíritos, as
angústias e hesitações, o «casulo», onde o verme vai ganhar asas...

a – De Loiola a Jerusalém – de cavaleiro a peregrino

Finalmente, a água do baptismo começa a florir, um novo


horizonte se rasga, uma nova paixão e um novo ideal surgem:
Jesus Cristo.
Jesus Cristo é agora o seu novo Senhor, o seu amor, sem
hesitações, sem medos, sem «meias-tintas», radicalmente. Co-
nhecê-Lo, amá-Lo, segui-Lo, é o novo sentido da sua vida.
14 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Neste momento de viragem, a que se segue a velada de ar-


mas em Montserrat, o envergar o traje de mendigo, Inácio de
Loiola é apenas o peregrino, só e a pé, em direcção a Jerusalém,
porque em Jerusalém viveu, morreu e ressuscitou Jesus Cristo.
Nada mais o ocupa ou preocupa: oração, penitência, austeri-
dade, seguimento de Jesus, um simples «eremita itinerante»…
Religioso convencional? Padre? Fundador de uma ordem reli-
giosa? Se o interrogássemos ao sair de Loiola ou mesmo depois
de Manresa – os nove meses que constituíram o seu Pentecos-
tes – provavelmente rir-se-ia de nós ou mal compreenderia a
pergunta…
Esse Deus que entra abruptamente na vida de Inácio, que Se
lhe revela como o único Absoluto feito homem e carne, com
um rosto e um nome, Jesus Cristo, uma vez descoberto e en-
contrado, marca-o para sempre. Concretizemos.
Quem é nesta altura Inácio de Loiola?
Depois da conversão de Loiola, da confissão geral, velada de
armas e mudança de traje em Montserrat e depois das profun-
das e dramáticas experiências interiores em Manresa, incluindo
a chamada «exímia ilustração», junto ao rio Cardoner, Inácio
de Loiola é já um outro homem.
Com jejuns e penitências corporais contínuas, sete horas
de oração, confissão e comunhão frequentes, pedindo esmola
para comer, tomando notas, num pequeno livro, das suas luzes
e experiências, ocupando-se ainda em «ajudar algumas almas
que ali o vinham procurar» (RP n. 26 ), Inácio de Loiola é já
um homem novo, pobre, apaixonado por Cristo e desejoso de
peregrinar a Jerusalém, muito longe ainda de saber qual será o
destino da peregrinação da sua vida…..
Estes inesperados meses na cova de Manresa, quase um ano,
com os seus três períodos, de paz e alegria, de lutas interiores e
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 15

escrúpulos e, finalmente, de extraordinárias iluminações e ilus-


trações, são o grande momento interior da sua vida, contendo
seminalmente quer os futuros Exercícios Espirituais, quer a
própria Companhia de Jesus…
Como ele próprio afirma, «neste tempo Deus tratava-o da
mesma maneira que um mestre-escola trata um menino, ensi-
nando-o» (RP. 28).
O cavaleiro que serve o Rei terreno, torna-se assim o pere-
grino que busca o Rei eterno…

b – De Jerusalém a Paris – de peregrino a estudante

Não cabe, nesta conferência, refazer em pormenor todo este


período de estudos e amadurecimento espiritual de Inácio de
Loiola. Relembremos apenas os tópicos essenciais:
Em 1523, chega a Jerusalém; em 1525, está de regresso a
Barcelona estudando «Gramática»; em 1526, parte para Alcalá,
estudar «Artes», donde sai para Salamanca, em princípio de
Julho; em meados de Setembro de 1527, sai de Salamanca e,
passando por Barcelona, dirige-se a Paris, onde entra em Feve-
reiro de 1528, para estudar latim, no Colégio de Montaigu.
Em Paris, em Setembro de 1529, muda-se para o Colégio de
Santa Bárbara, onde conhece e se torna amigo de Pedro Fabro
e Francisco de Javier.
Ao nível de estudos, em Paris, consegue o grau de bacharel
em Artes, em 1532, a licenciatura em 1533, é mestre em Artes,
em 1534.
No dia 15 de Agosto do mesmo ano de 1534, já com os
primeiros companheiros, faz os chamados «Votos de Mont-
martre».
16 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Mais do que este percurso exterior e académico, importa-nos


acompanhar o percurso interior. Que se passou, que se foi pas-
sando, na mente e no coração de Inácio de Loiola?
Profundamente tocado pela graça e transformado pelo Espí-
rito, impedido de permanecer na Terra Santa, o novo Inácio,
de costas voltadas para o passado, tem que viver e que deitar
contas à vida. Que vou fazer? Ou melhor, que quer Deus que
eu faça?
Confiante, disponível, aberto, querendo seguir e servir o
Senhor Jesus Cristo, Inácio não sabe ainda o que Deus quer de
si no futuro, mas já vai sabendo o que Deus quer dele no pre-
sente: o seguimento de Jesus e o «ajudar as almas», partilhando
com os outros a profunda e riquíssima experiência de Deus que
o próprio Deus lhe fez viver e que facilmente Inácio intui que
não era só para si…
Este longo período que vai desde Jerusalém, 1523, até aos
votos de Montmartre em 1534, 11 anos, é pois um período
tacteante, de maturação, polarizado no seguimento de Jesus,
em Igreja, e na ajuda ao próximo.
Os próprios estudos, empreendidos já com tanta idade, do-
lorosamente, não são para Inácio uma «carreira docente»; são
apenas e só um «instrumento», a conceptualização da sua pró-
pria experiência de encontro com Deus e a condição imposta
pela Igreja, para «poder ajudar as almas».
Neste longo tempo de estudo e de peregrinação, além dos
locais acima citados, esteve ainda na Flandres, na Inglaterra,
em Loiola, sua terra natal, não contando com as suas traves-
sias da Itália, na ida e vinda de Jerusalém – peregrinações estas
sempre «só e a pé» e sem dinheiro – neste longo tempo, dizia,
Inácio foi amadurecendo e Deus foi-o amadurecendo…
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 17

Importante também neste período e amadurecimento, fo-


ram as suspeitas, calúnias e perseguições que quase sempre o
acompanhavam. Calúnias e suspeitas das pessoas que saíam
prejudicadas pelas profundas mudanças que através de Inácio
se operavam; e, talvez mais graves e sérias, as desconfianças e
acusações surgidas no seio de uma Igreja desconfiada e receosa,
que tinha a Inquisição a funcionar e que naqueles que eram
piedosos e menos ortodoxos no seu viver, buscava a nova «sei-
ta» dos «alumbrados», os iluminados…
Na autobiografia e no seu estilo seco e despojado, Santo Iná-
cio conta-nos este lastro de difamações e perseguições, prisões
e julgamentos que o vai acompanhando e o vai fazendo mudar
de cidade – Alcalá – Salamanca – até aportar em Paris.
Experiência dolorosa mas purificadora, que o vai consolidan-
do na confiança em Deus e libertando de vanglória e de preocu-
pações do sucesso, experiência assumida e integrada que irá ser
um veio permanente na dinâmica dos Exercícios Espirituais.
Mas a sua vida não era só oração, estudo e peregrinações;
progressivamente, a outra vertente, a ajuda aos outros, apesar
da teologia não estar ainda terminada, vai-se consolidando e
aperfeiçoando. Na verdade, esta ajuda ao próximo, para lá do
testemunho pessoal que atraía e impressionava, vai-se concre-
tizando em três linhas principais, diferentes mas complemen-
tares: a conversa ou trato pessoal com os outros, a prática de
dar Exercícios Espirituais (EE), ainda rudimentares e em forma
incipiente, e, finalmente, a procura de amigos e companheiros
que o quisessem seguir no seguimento de Jesus.
Deixando de lado a conversa ou «trato de gentes» (em que
Inácio se vai tornando exímio, ele que nunca será grande pre-
gador…) os EE e a procura de companheiros merecem uma
especial referência.
18 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Dizem os principais biógrafos que Inácio começou a elaborar


e a escrever o futuro livro dos EE durante ou depois da expe-
riência de Manresa. Tem toda a lógica: é a grande experiência
espiritual da sua vida, ele tem o hábito de reflectir e de escrever e
as luzes que recebe, que vão da Trindade à Eucaristia, passando
pela Incarnação, não se podem perder… Por outro lado, quer a
sua experiência passada de vida mundana e de pecado, quer as
suas novas experiências depois da conversão, de despojamento,
oração, peregrinação, humilhações, confiança, etc., vão podendo
ser sistematizadas e integradas nessa proposta completa e integral
de peregrinação cristã que constitui os EE e que a partir dessa
objectivação pode ser oferecida, proposta aos outros… O livro
dos EE não foi nem podia ser um livro que ele tivesse escrito
num momento feliz de inspiração… Foi antes um livro que ele
foi escrevendo ao longo da sua vida, ensaiando, experimentando,
completando, desde o «esboço» inicial de Manresa, até à aprova-
ção final e papal, como documento oficialmente aprovado pela
Igreja, em 1547, já depois de aprovada a Companhia e na ponta
final da sua vida…
Este livrinho que se vai completando e estruturando, sem pres-
sas, torna-se o privilegiado instrumento para levar os outros até
Deus e simultaneamente para fazer companheiros, para construir
uma comunidade cristã, embora ainda informe, sem estrutura.
Falhadas, por vários motivos, as suas tentativas de constituir
uma pequena comunidade cristã, coesa, homogénea, estável,
em Alcalá e em Salamanca, é finalmente em Paris, com estu-
dantes universitários de várias nações e origens, que o milagre
acontece...
Primeiro Fabro, depois Javier, em breve mais 4, entre os quais
o nosso Simão Rodrigues, o núcleo original dos 7 fundadores da
Companhia, a que não tardam a juntar-se vários outros...
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 19

Por esta altura, em Paris, ainda não há Companhia de Jesus…


Mas está a nascer… Do grupo inicial, só Pedro Fabro era sacer-
dote. Todos estão a acabar os seus estudos. Quando terminarem,
o que irão fazer? Dispersar-se? Regressar cada um à sua terra ou
encetar novo caminho? Manter-se unidos?
O grupo já estava coeso e unido, a amizade em torno de
Inácio tinha-os tornado «amigos no Senhor». A decisão surge
clara para cada um: «ir a Veneza e a Jerusalém e ali gastar a
sua vida em proveito das almas; e se não conseguissem autori-
zação para permanecer em Jerusalém, voltariam para Roma e
apresentar-se-iam ao Vigário de Cristo para que os empregasse
onde considerasse que seria maior glória de Deus e proveito
das almas. Determinaram também que esperariam um ano a
embarcação em Veneza e que se naquele ano não saíssem naves
para levante, ficariam livres do voto de Jerusalém e se apresen-
tariam ao Papa» (R.P. 85). São as próprias palavras de Inácio,
na Autobiografia.
Tendo feito também, cada um, o voto de castidade e de po-
breza, fizeram este voto de irem para Jerusalém e, caso não fosse
possível, em alternativa, de se oferecerem ao Papa, como Vigário
de Cristo – é o chamado «Voto de Montmartre», feito com gran-
de consolação diante de Cristo sacramentado na missa celebrada
por Pedro Fabro, na Festa da Assunção de Nossa Senhora, a 15
de Agosto de 1534, na capela da Igreja de Montmartre.
Este grupo internacional de cristãos universitários, estu-
dantes de teologia e preparando-se para o sacerdócio, ainda
não é uma ordem religiosa: não está estruturado, nem tem
regra, não tem líder institucional, nem está reconhecido pela
Igreja. No entanto, o voto de Montmartre é um momento
chave na génese da Companhia, esta nova ordem que está a
nascer.
20 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

c – De Paris a Roma – de estudante a homem da Igreja

Jerusalém mostra-se inviável devido à ruptura entre Veneza e


os Turcos que impossibilita as viagens. Encontram-se em Vene-
za, onde Inácio, vindo da terra natal, já os espera. São ordenados
sacerdotes e antes de seguir para Roma, a alternativa prevista em
Montmartre, rezam e deliberam, durante 40 dias; dividem-se
depois por grupos, começam a pregar e decidem tomar o nome
de Companhia de Jesus, «visto que não tinham cabeça nenhuma
entre si, nem outro prepósito a não ser Jesus Cristo, a quem uni-
camente desejavam servir, parecendo-lhes que deveriam tomar o
nome daquele que tinham por cabeça» (FN I, 204).
Com esta decisão de permanecerem juntos, de tomarem
nome, de começarem a pregar, a fazer apostolado, e de se irem
oferecer ao Papa, nasceu, de facto, embora ainda não juridica-
mente, a Companhia de Jesus.
Finalmente, em finais de Outubro de 1537, a caminho de
Roma. E neste caminho, a cerca de 16 km de Roma, sentiu
Inácio «uma grande mudança na sua alma e viu claramente que
Deus Pai o punha com o seu Filho, parecendo-lhe ver Cristo
carregando com a cruz e junto a Ele o Pai eterno que Lhe di-
zia: quero que tomes a este por teu servidor. E Jesus mesmo o
tomava e lhe dizia: quero que tu Nos sirvas» (RP, 96). E ainda:
«Em Roma vos serei propício» (FN II, 133). É a famosa «visão
de la Storta», o grande «selo místico» confirmativo, recebido
por Inácio e transmitido aos companheiros.
Em Roma onde, como em Veneza, são de novo caluniados
e absolvidos, os companheiros saltam de casa em casa, até se
instalarem, finalmente, em 1541, numa casa perto de Santa
Maria da Estrada, continuando sempre a assistência a pobres a
doentes e a catequese e pregação pelas ruas e igrejas da cidade.
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 21

No período de Março a meados de Junho de 1539 delibe-


ram e expressamente decidem a formação de uma nova ordem
religiosa, ideia que encontra oposição de alguns responsáveis
eclesiais. Mas em Setembro, Paulo III aprova oralmente a fór-
mula do Instituto que o Cardeal Contarini lhe lê, mandando-o
expedir o breve correspondente e finalmente a 27 de Setembro
de 1540, já com Rodrigues e Javier enviados a caminho de
Lisboa e da Índia, é aprovada a Companhia de Jesus, pela Bula
«Regimini militantis Ecclesia», ainda com a limitação a 60 do
número de professos. Em 1550, Júlio III, o novo Papa, volta a
confirmar a Companhia.
Em 1541, começam os companheiros as reuniões para dis-
cutir e redactar, conforme a Bula, as Constituições da Com-
panhia de Jesus. Em 19 de Abril do mesmo ano, Santo Inácio
aceita, finalmente, o cargo de Prepósito Geral, para o qual tinha
sido eleito, por unanimidade. A 22 de Abril, os companheiros
presentes em Roma fazem a sua profissão solene, na Basílica de
S. Paulo extra-muros.
Está finalmente fundada, no espírito e no corpo, a Compa-
nhia de Jesus.
Com frequentes períodos de doença e de fortes dores, Inácio
governa a Companhia, como Geral, troca uma massa imensa
de correspondência com pessoas de dentro e fora da Compa-
nhia, e vai trabalhando, especialmente com a ajuda do seu se-
cretário Juan de Polanco, nas várias versões das Constituições,
que só depois da sua morte, na 1ª e 5ª Congregações Gerais,
são finalmente fechadas e aprovadas pela própria Companhia e
sancionadas pelo Papa.
Tendo tido a alegria de ver o livro dos EE oficialmente apro-
vado e louvado pela Igreja, em 1547, a 31 de Julho de 1556,
22 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Inácio de Loyola morre discretamente em Roma. Nessa data, já


havia mais de mil «companheiros de Jesus»…
Nesse mesmo ano de 1556 abdica no seu filho Filipe II, o
Imperador Carlos V.
Estes, a nosso ver, os principais acontecimentos deste fe-
cundo período. Mas, vamos ao seu significado, que é o mais
importante.
Em Paris, o conjunto internacional de estudantes universi-
tários que se vai reunindo à volta de Inácio, sobretudo através
do seu exemplo, das conversas, acompanhadas da prática cristã
mais óbvia e dos EE, torna-se um grupo cristão espontâneo,
liderado carismaticamente por Inácio, o mais velho e o mais
experiente, «em coisas do mundo e em coisas de Deus», uma
comunidade de jovens já então apaixonados por Jesus Cristo,
querendo-O seguir radicalmente – daí o «natural» voto de po-
breza e castidade – e querendo, cada um, dedicar a sua vida à
ajuda, concretamente, à salvação das almas.
Os tempos em que vivem, se conhecem e estudam, são difí-
ceis: Lutero e Calvino «estão no ar», a crise do Papado é indis-
cutível, a ameaça política e militar do Islão é real. Tudo isto se
vivia, se falava e discutia. Centrados em Paris, a mais luminosa
universidade da época, nada disto lhes era desconhecido ou
lhes passava ao lado…
Em termos eclesiais, a sua «opção prévia» estava feita ou
fez-se então: apesar dos escândalos e da crise, só há uma Igre-
ja, a que é regida pelo Papa de Roma, «o Vigário de Cristo».
Mas face a esta mesma Igreja que reconhecem e que, apesar
de todas as fraquezas humanas, respeitam, ao longo do tempo
de Paris eles não são mais do que um grupo ou comunidade
«informal» de jovens estudantes de teologia, apaixonados por
Cristo, vindos de vários países e origens, cheios de entusiasmo
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 23

e generosidade. Nem mais nem menos… É o fim dos estudos


e a consequente aproximação da eventual dispersão que os leva
ao voto de Montmartre, expressão da sua vontade de permane-
cerem unidos na vida e no apostolado.
E só a tentativa fracassada de partir e permanecer em Je-
rusalém é que os leva ao reencontro em Veneza e os obriga à
deliberação (1539) que vai desembocar na decisão de constituir
uma nova ordem religiosa. Até então, como já referi, não têm
nenhuma regra nem obediência, nem sequer a Inácio…
Assim, curiosamente, a obediência, que é o último «elemen-
to» a aparecer no seu comum percurso espiritual, obediência
antes de mais ao próprio «Vigário de Cristo», ao serviço do
qual se vão colocar, e obediência ao Prepósito Geral que pos-
teriormente hão-de eleger, vai-se tornar o «timbre» e a «pedra
de toque» dos membros da Companhia de Jesus, obediência
religiosa, é certo, mas radicada nas exigências de missão.
Este lugar de excelência da obediência na estrutura mental
do jesuíta e de toda a Companhia de Jesus é claramente vin-
cado na famosa «Carta da Obediência», escrita aos estudantes
jesuítas de Coimbra e na expressão por ele mesmo consagrada
onde afirma que «o especial voto de obediência ao Papa é o
princípio e fundamento de toda a Companhia de Jesus».
Longo percurso o percorrido por Inácio e os seus compa-
nheiros…
Nascidos na Igreja, vivendo nela, estudando e crescendo
nela, apesar das suas debilidades e fraquezas, é nela que querem
permanecer e lutar. Oferecem–se a Deus, na Igreja, através da
proposta de uma nova ordem religiosa que se põe ao serviço
do Vigário de Cristo para a missão. E o Vigário de Cristo, ao
aceitar a oferta, reconhecendo e oficializando a sua iniciativa,
sela definitivamente o seu percurso e a sua eclesialidade.
24 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

De facto, com os seus companheiros do grupo de Paris, Iná-


cio de Loiola, estudante, tornou-se homem da Igreja.
As consequências desta «história» concreta, conduzida por
Deus, far-se-ão sentir na história da Igreja, da Companhia e do
Mundo. É o que iremos considerar de seguida.

2 – O contexto histórico

Para lá do que já foi sendo dito de passagem, é de extrema


importância situar historicamente Inácio de Loiola e os seus
companheiros, pois a Companhia de Jesus não pode ser com-
preendida sem se compreender o contexto onde nasce, age e ao
qual reage.

a – Político-Social

Politicamente, na Península Ibérica, a unificação da Espa-


nha acabou de se fazer. Grande parte da juventude de Inácio
passa-se ainda no tempo de Fernando de Aragão que, com Isa-
bel de Castela, unificam a Espanha, expulsam os muçulmanos
do seu último reduto na Península (Granada) e se tornam os
«Reis Católicos». Tudo isto não acontece sem grandes tensões
sociais, «comuneros contra senhores», e «regionais», o centro
contra as «periferias», as várias «nacionalidades» de Espanha. O
episódio da feliz derrota de Pamplona, que iniciou a conversão
de Inácio, é aqui que se situa…
Em Portugal, sucedem-se os reis D. João II, D. Manuel
e D. João III, mas sobretudo a nação inteira envolve-se e
compromete-se na epopeia das conquistas (Ceuta, 1415),
(sobretudo das praças do Norte de África) e das descobertas:
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 25

Madeira, Açores, costa ocidental de África, cabo da Boa Espe-


rança, Índia (1498), Brasil (1500).
Dividido em dois, o Mundo Novo a descobrir e conquistar,
pelo Tratado de Tordesilhas (1494), sob a égide do Papa Ale-
xandre VI, Portugal e Espanha lançam-se à sua grande gesta
ultramarina, «dando novos mundos ao Mundo», a África, o
Oriente, a América do Sul e do Norte, na feliz expressão de
Camões, quebrando o isolamento político e militar da Euro-
pa e da Cristandade, ameaçadas pelo «Turco», no seu próprio
solo (Solimão, o magnífico, toma Belgrado em 1521 e em
1529 Viena de Áustria é cercada) e no seu mar mediterrâneo
(a decisiva batalha de Lepanto, ganha por D. João de Áustria,
bastardo de Carlos V e meio-irmão de Filipe II, só é travada em
1571).
No interior da própria Europa, a turbulência política e social
é enorme, no estertor de um mundo antigo, a Idade Média que
se convencionou terminar com a conquista pelos Turcos de
Constantinopla – Bizâncio, a capital do Império do Oriente,
em 1451, mas cujas ondas de agonia duraram um século….
Tempo de transição entre a Idade Média que morre e uma
nova época que surge, o Renascimento.
É o tempo por excelência de Carlos V e Filipe II, em Espa-
nha; de D. Manuel e D. João III, em Portugal, dos famosos
papas do Renascimento, em Roma.

b – Cultural

Se estes acontecimentos e personagens são importantes


para compreender a génese, a configuração e o crescimento da
Companhia de Jesus, mais importante ainda é a profunda mu-
tação cultural que acontece então.
26 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Um mundo cultural antigo, a Idade Média, vai morrendo,


mas outro, novo, o Renascimento, vai nascendo e crescendo,
afectando a mentalidade, os valores e o comportamento.
De modo necessariamente breve, como caracterizar este
complexo período chamado «Renascimento», que abriga den-
tro de si varias tendências e orientações?
Ao nível da mentalidade global, dá-se, sem dúvida, uma
viragem estrutural em relação à Idade Média, a passagem do
teocentrismo típico do mundo medieval para uma nova pers-
pectiva, o antropocentrismo, pois o homem e não já Deus pas-
sa a estar no centro «e a ser medida de todas as coisas». Daí que
naturalmente seja um período «humanista», mas não de um
humanismo qualquer: há como que uma rejeição da perspec-
tiva medieval, considerada bárbara e primitiva, para regressar
aos modelos artísticos, culturais e humanos do mundo clássico
– grego e latino – mitificados como expressão de uma «idade de
ouro», a seguir e a imitar. Por isso se chama a esta tentativa glo-
bal de passar por cima da Idade Média e de regressar ao mundo
clássico e ideal, re-nascimento.
Simultaneamente, a quase totalidade dos grandes humanis-
tas desse tempo, com escolas e tendências diversas, mantém-se
fiel à fé cristã e, até à crise de Lutero, mesmo à instituição ecle-
sial, procurando uma síntese muitas vezes difícil, entre o seu
humanismo «clássico» de raiz pagã e a sua tradição religiosa de
origem cristã.
Esta tentativa de regresso ao passado clássico não pode fazer-
-se sem a «cópia» dos modelos arquitectónicos e escultóricos da
Antiguidade, abundantes na Itália, a pátria do renascimento,
e o regresso aos autores, literatos e filósofos, gregos e latinos,
envolvendo um grande esforço de estudo, de regresso às fontes
e às origens, onde abunda a linguística e que abarca também
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 27

a procura das fontes do Cristianismo, buscando uma religião


cristã genuína, pura, sem estar anquilosada e sobrecarregada
pelo peso da tradição de quase um milénio e meio…
Todo este movimento cultural e de mentalidade acontece
e só pode acontecer então por se tratar de um período que
globalmente se pode caracterizar, no espaço europeu, como
de prosperidade económica, devido à iniciativa de Estados,
cidades e cidadãos, com fortalecimento da actividade indus-
trial e um forte aumento das trocas comerciais internas e com
o Oriente próximo, que as dificuldades políticas e estratégicas
não conseguiram asfixiar.
É essa mesma prosperidade económica que vai permitir
a multiplicação e crescimento das Universidades por toda a
Europa, os grandes centros do saber, que por sua vez permi-
tirão a multiplicação de letrados e humanistas e amanhã de
cientistas…
De facto, é também neste período, embora com inegáveis
raízes medievais, que, no campo do saber, correspondendo à vi-
ragem antropocêntrica, acima referida, a ciência, experimental
e exacta vai ocupando espaço, ao lado da filosofia e sobretudo
da teologia medievais…
Simultaneamente, o crescimento dos nacionalismos, o
surgir do Estado-Nação e a lenta mas inexorável passagem da
«respublica christiana» da Idade Média, arbitrada ainda pela
incontestada supremacia papal, para os estados modernos, não
podia deixar de trazer um acentuado enfraquecimento do po-
der político do papado e, indirectamente, se outras causas não
houvesse… do prestígio da própria Igreja Católica, sediada em
Roma.
É aqui que as descobertas e conquistas dos Portugueses e
Espanhóis, já fruto do desenvolvimento científico e técnico al-
28 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

cançado, mas a partir de agora seu poderoso acelerador, alteram


profundamente o mundo de então e operam uma das maiores
viragens da História: novas rotas, novas terras, novos produtos,
novos povos e culturas, aceleração das trocas comerciais, promo-
ção da ciência e da técnica e se isto fosse pouco... o quebrar, atra-
vés do Oceano Atlântico, da tenaz férrea do «Turco», que isolava
e ameaçava a Europa e a fazia diminuir nas suas fronteiras.
Religião, cultura, ciência, política e guerra estão a construir
um «novo mundo», onde vive a Igreja e a fé, onde nasce a
Companhia de Jesus.

c – Eclesial

De todos os contextos importantes para a compreensão da


génese da Companhia de Jesus, o contexto religioso e eclesial é,
sem dúvida, o mais importante.
Campeavam na Igreja a simonia e os benefícios eclesiásticos; o
povo, abandonado, estava ignorante; o clero era muitas vezes ve-
nal e corrupto, escandaloso e inculto. Mais grave ainda, muitos
dos principais responsáveis oficiais da Igreja, em muitos locais
da Cristandade, eram mais príncipes do que pastores e os pró-
prios bispos de Roma, os Papas, homens que se converteram ao
Renascimento, construíram um escandaloso contra-testemunho:
corrupção, riqueza e luxo, nepotismos e luta pelo poder, violên-
cia e interesses materiais, fazendo da Igreja uma potência política
que ombreava com as outras…
A Igreja – era opinião quase unânime – estava profunda-
mente necessitada de uma urgente e radical reforma. As condi-
ções mentais, geográficas, políticas e militares em que decorria
a sua vida tinham-se alterado radicalmente e sobretudo a sua
própria vida interna e cristã era, em muitos locais, calamitosa.
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 29

É o tempo dos grandes papas do Renascimento, muitos de-


les grandes humanistas e mecenas. E muitos deles até conscien-
tes da necessidade da reforma interna da Igreja, mas sem força
e coragem para a empreender…
E o «inevitável» aconteceu: um obscuro monge agostinho e
sacerdote, escandalizado com a venda das «Indulgências» pon-
tifícias e com o luxo e escândalo da corte pontifícia que tinha
testemunhado aquando de uma visita a Roma, prega à porta da
Catedral de Wittenberg, em 1517, as suas famosas «95 teses»,
dando início a um incêndio religioso e político cujas chamas
alastram por toda a Europa – a Reforma – por nós, católicos,
vulgarmente chamado o Protestantismo.
Não cabe aqui fazer a história da Reforma Protestante e da
Reforma Católica, chamada Contra-Reforma. Mas é de ter
presente que às teses de Lutero em 1517, seguem-se as prega-
ções de Zuínglio, na Suíça. Já em 1518, dá-se a cisão da Igreja
Anglicana, com Henrique VIII, que em 1531 – no termo de
uma sangrenta história – se proclama chefe da Igreja Anglica-
na. Em 1533, o francês João Calvino (que estudara em Paris,
no mesmo colégio de Santa Bárbara que Santo Inácio, Calvino
a sair, Inácio a entrar…) adere ao protestantismo e, fugido de
França, instala-se na Suíça.
As consequências políticas e religiosas destes «gestos» de
rebeldia e insubmissão, a recusa da autoridade eclesial e ponti-
fícia, a rejeição de muitas das instituições e tradições da Igreja,
são imensas – o Cisma do Ocidente.
Deixando de lado a Igreja Oriental, já separada de Roma
desde o séc. XI, com o cisma do Ocidente o mapa religioso
da Europa começa agora a ser completamente diferente: a
Inglaterra sai da órbita de Roma e mais tarde a Escócia, na
linha calvinista; os países Escandinavos seguem o seu próprio
30 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

caminho rumo ao protestantismo; os Países Baixos dividem-se


em católicos e protestantes, a própria França, sobretudo através
de João Calvino, ganha uma forte e significativa minoria pro-
testante – os huguenotes. A Europa central, Áustria, Hungria,
Boémia ficam divididas e na «corda bamba»… Na Alemanha,
por influxo de Lutero, apropriado pelos príncipes, apesar dos
esforços do Imperador Carlos V, mais de metade passa-se para
o protestantismo…
Na velha Igreja Católica romana, permanecem a Itália, a
Espanha, Portugal, a Áustria, a maioria da França e a minoria
da Alemanha.
Não vamos acompanhar de perto as consequências políticas
e militares desta grave crise religiosa, que marcaram dois sé-
culos de vida europeia, com guerras de religião, perseguições,
divisões, tentativas de domínio e de recuperação, matanças e
assassinatos… onde os interesses políticos e religiosos se en-
trelaçaram ambiguamente. Mas vamos sublinhar duas ou três
linhas que julgamos mais importantes para a compreensão do
nascimento e evolução da Companhia de Jesus.
A primeira linha a sublinhar é que os primeiros reformado-
res, e é bom lembrar Savonarola em Florença e João Huss na
Boémia, o próprio Henrique VIII no início e até Lutero na sua
primeira fase, mantiveram-se ainda como reformadores católi-
cos, quando muito «cismáticos», isto é, provocando a divisão,
pela sua oposição à autoridade da Igreja católica universal, de
Roma. Mas prolongando este dinamismo de revolta, foram pas-
sando do mero cisma à «heresia», isto é, à defesa de doutrinas in-
compatíveis com a doutrina da Igreja Católica. Foi a passagem
desta fronteira que consumou, até hoje, a ruptura e divisão.
Estas novas maneiras de olhar o Cristianismo, apelando
sempre para o Cristianismo primitivo, original, estão já perfei-
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 31

tamente delineadas em Calvino, com o seu famoso «Institutio


christianae religionis» (1536), onde são negados pontos essen-
ciais da doutrina católica tradicional, e na segunda fase de Lu-
tero. Este, sobretudo ao defender o «livre exame» das Sagradas
Escrituras, sem a mediação da autoridade eclesial – «Sola Scrip-
tura» – e a salvação por pura graça da fé, sem a colaboração
das «obras» – «Sola fide» – entra num caminho de divergência
doutrinal do qual já não há retorno….
O segundo sublinhado a fazer é que os grandes interve-
nientes neste processo, desde o Papa ao Imperador e aos Reis,
passando pelos próprios reformadores, foram ganhando cons-
ciência da gravidade daquilo que estava em jogo: a unidade ou
separação da Igreja, Corpo de Cristo. Assim se compreende
que até à consumação definitiva da ruptura, acontecida do
lado católico com o Concílio de Trento, nas suas várias sessões
(1545–1548; 1551–1552; 1562–1563) houve muitos e gran-
des esforços, individuais e colectivos, para salvar a unidade, ou
para tentar fazer a reunificação da Igreja dividida.
Terceiro sublinhado.
Foi neste período conturbado e turbulento, na política e na
religião, que nasceu a Companhia de Jesus e viveram os pri-
meiros companheiros, participantes activos na vida da Igreja e
intervenientes directos nas controvérsias religiosas do seu tem-
po, P. Fabro, N. Bobadilla, D. Laynez, Salmeron, C. Jay, etc.,
como legados ou teólogos do Papa, de Cardeais ou de Bispos.
É também este contexto de crise e confronto de vida eclesial
que nos permite entender as «Regras para sentir com a Igreja»
(EE 352-370) que depois das Regras de Discernimento de Es-
píritos, são, sem dúvida, o conjunto de regras mais importantes
dos EE, e que embora não citem nunca nem Calvino nem Lu-
tero, claramente estão pressupostos no texto…
32 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Neste conjunto, que bem se poderia chamar os «princípios


de combate do bom cristão», encontramos diferentes tipos de
regras, de importância muito desigual: «regras conjunturais» (2,
3, 4, 5, 6, 7, 8) que se limitam a louvar o que os reformadores
protestantes contestavam: confissão, comunhão, oração, horas
canónicas, vida religiosa, relíquias, indulgências, jejuns e abs-
tinências, ornamentos das Igrejas, preceitos, etc., contestando
a contestação; encontramos ainda o que podemos chamar «re-
gras prudenciais» (10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18) de maior
importância, normas de conduta em tempo de nevoeiro, onde
as grandes polémicas teológicas de então, sobretudo as doutri-
nas de Lutero e Calvino, estão no horizonte: conduta face aos
superiores, louvor dos concílios, doutores e teólogos antigos,
predestinação e liberdade, fé e obras, amor e temor, etc.
Finalmente, as regras mais importantes, as «regras estrutu-
rais» (1, 9, 13), talvez melhor ainda, estruturantes, donde todas
as outras brotam, sendo a partir delas que se compreendem e
justificam. Estas é que são o núcleo teológico, o fundamento
do «sentir com a Igreja».
Por elas, diz-nos Santo Inácio, «devemos… obedecer em
tudo à verdadeira esposa de Cristo, nosso Senhor, que é a nossa
Santa Mãe, a Igreja hierárquica» (EE 353-1ª Regra), «buscando
razões para defender os preceitos da Igreja e não para os criti-
car» (EE 361-9ª Regra). E ainda, «devendo, para em tudo acer-
tar, estar sempre dispostos a acreditar que o branco que eu vejo
é negro, se a Igreja hierárquica assim o determina, acreditando
que entre Cristo, nosso Senhor, esposo e a Igreja, sua esposa, é
o mesmo Espírito que nos governa e dirige para a salvação das
nossas almas. Porque é pelo mesmo Espírito e Senhor nosso,
que deu os dez mandamentos, que é regida e governada a nossa
santa Mãe Igreja» (EE 363-13ª Regra).
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 33

Nestas citações das «Regras para sentir com a Igreja», no-


tem-se três coisas essenciais: para Inácio e certamente para os
seus companheiros, a Companhia nascente, não há duas ou
mais Igrejas; e a única Igreja de Cristo, apesar de pecados e
infidelidades, é a Igreja hierárquica. Reformá-la, sim; dividi-la
ou separar-se dela, não.
Note-se ainda que para Inácio, que bem conhecia os males
e podres da Igreja do seu tempo, apesar de tudo, a Igreja não é
uma mera instituição social ou uma «madrasta»; é, sobretudo,
mãe. Por isso, a questão eclesial que é a questão religiosa cen-
tral do tempo de Inácio, é ultimamente uma questão de amor:
perante a Igreja de Cristo, pecadora, caída, suja, distancio-me e
separo-me ou aproximo-me e sirvo, no amor?
Finalmente, é de notar que para lá das múltiplas outras im-
portantes razões, a razão última da fidelidade à Igreja radica
na relação dela a Cristo, seu esposo que a fundou e ao Espírito
Santo que a governa e dirige para a salvação das nossas almas.
Esta, em breves palavras, a «teoria» de Inácio, expressa nos
EE e certamente partilhada pela sua «escola», os seus compa-
nheiros. Mas, não se pense que na sua vida pessoal a sua atitude
é «primitiva»: ele próprio, na «sua pele», sofreu as perseguições
da Inquisição; a tão moderna expressão «os nossos irmãos se-
parados», referindo-se aos protestantes, deve-se a Pedro Fabro;
Inácio empenha-se repetidamente pela oração e pelo envio dos
«melhores», no esforço de reunificação das Igrejas e até recorda
aos padres que envia que não se apresentem como «papistas».
Nas próprias regras não invectiva nem nomeia os adversários,
não chama «cismático» ou «herege» a ninguém… Simplesmen-
te, expõe a doutrina, procura fundamentá-la e propõe compor-
tamentos, de comunhão com a Igreja e de serviço, sem medos
nem ambiguidades…
34 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

3 – O Espírito Santo, Inácio de Loiola,


a Companhia e a Igreja

Continuidade e inovação

A Igreja, na sua história, na sua sucessão, na sua crise, por


um lado; um grupo internacional de estudantes e sacerdotes,
liderados por Inácio, por outro, como dois rios que se encon-
tram no fluir do tempo, convergem em Roma. Assim nasce a
Companhia de Jesus, com os intervenientes e através dos acon-
tecimentos que teremos suficientemente recordados, uma nova
ordem no teatro da história. Profundamente «tradicional», fiel
a Jesus Cristo, ao Evangelho, à Comunidade cristã e ao vigário
de Cristo, co-herdeira de 1500 anos de história. Manteve e de-
fendeu integralmente a fé e a doutrina, quis ser uma nova or-
dem no interior da vida eclesial, sacerdotal e assumiu os tradi-
cionais votos religiosos, de pobreza, castidade e obediência…
Neste sentido, a Companhia é claramente tributária da vida
da Igreja até então e da história das ordens religiosas anteriores,
mantendo e reforçando, até, a continuidade com o passado…
Mas, simultaneamente, porque as condições culturais, po-
líticas, eclesiais se transformaram profundamente e sobretudo
por fidelidade à própria história de Inácio e dos seus primeiros
companheiros, que o Espírito Santo neles foi escrevendo, no
corpo e no espírito, a Companhia é profundamente original e
inovadora. Vejamos.
A finalidade da Companhia é a mesma de Inácio a partir da
sua conversão e dos seus companheiros de Paris, a quem, atra-
vés dos EE, conseguiu transmitir a inspiração inicial, «ajudar
as almas», ou no dizer já elaborado da Fórmula do Instituto,
aprovada por Paulo III e inserida no Exame Geral aos candi-
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 35

datos: «o fim da Companhia é não só a salvação e perfeição


das almas próprias, com a graça de Deus, mas com a mesma
(graça) procurar intensamente a salvação e perfeição das almas
dos próximos» (Ex. Geral, 3). Foi esta finalidade que os con-
gregou ainda em Paris, que os levou ao voto de Montmarte e
que, como vimos, os conduziu até Roma para que o Vigário
de Cristo deles pudesse dispor. Esta centralidade da missão é
tão forte que conduziu ao 4º voto da Companhia professa, de
especial obediência ao Papa, acerca das missões, uma profunda
originalidade no panorama das ordens religiosas de então.
Mas as exigências da missão vão fazer brotar um verdadei-
ro novo estilo de vida religiosa. Repare-se nalguns elementos
significativos:
O noviciado, etapa inicial, ao contrário do que era comum,
passa de um ano para dois anos de duração; e durante estes dois
anos não se resume a oração, isolamento, leitura; pelo contrá-
rio, integram-no, como parte indispensável, os EE durante um
mês, a experiência de ajuda num hospital e a peregrinação a pé
e a pedir esmola, que pretende reproduzir, para os novos jesuí-
tas, a experiência profunda de Inácio e dos seus companheiros,
que viveram anos desta vida…
A formação intelectual deve ser longa, cuidada e sólida,
como eles a tiveram, sobretudo em Paris. Mas, para além da
tradicional filosofia e teologia, exigida aos sacerdotes das outras
ordens religiosas, uma nova etapa, tipicamente renascentista, é
inserida a seguir ao noviciado, o juniorado, o estudo das huma-
nidades clássicas.
Constituindo toda a longa formação num tempo de prova-
ção, tal como Inácio e os primeiros companheiros, a profissão
solene é realizada já depois da ordenação sacerdotal e depois
de um tempo de apostolado, correspondendo ao tempo do
36 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

norte de Itália e dos inícios de Roma, posterior à ordenação


em Veneza.
No «exterior», também as exigências da missão se fazem sen-
tir: nem coro e horas canónicas em comum; nem penitências
exteriores, nem hábito religioso próprio, para melhor acomo-
dação aos vários locais…
E também as exigências da missão modelam a estrutura
orgânica e de governo da Companhia: um modelo claramen-
te centralista-monárquico, onde a Congregação Geral detém
todo o poder legislativo, e o Propósito Geral todo o executivo;
Congregações Gerais deliberadamente sem prazo marcado de
reunião e Geral eleito com mandato vitalício.
De tudo isto, exterior, formação, orgânica, o que brotou?
Brotou, na feliz expressão de um jesuíta francês, um «corpo
para a missão».
Mas, poderá perguntar-se ainda, qual missão? Dentro da fi-
nalidade última já apontada – a salvação e perfeição dos próprios
e dos próximos – não há nem deve haver resposta «objectiva», a
Companhia deve fazer isto ou aquilo, ter esta ou aquela «obra».
A resposta é apenas um critério – o «mais» – dentro do possível,
o «mais», o melhor, o maior. Concretizando este critério, aqui-
lo que em cada momento, a juízo da Igreja e do Superior, for
julgado o maior serviço de Deus e dos homens, o serviço mais
universal, mais urgente, mais duradoiro, essa é a «obra», a mis-
são da Companhia.
Este é o segredo e a grande novidade da Companhia de
Jesus, a total disponibilidade e o contínuo discernimento do
«mais», o coração e a raiz da sua diversidade, maleabilidade e
fecundidade, no seu serviço a Deus e aos homens, na Igreja.
Compreende-se assim que mal acabada de nascer (Simão
Rodrigues e Francisco Xavier votaram por correspondência na
A Companhia de Jesus em tempo de mudança 37

eleição de Inácio, pela urgência da missão...), compreende-se


assim, dizia, que desde o seu início, a mesma espiritualidade
e a mesma orientação, o mesmo «mais» da missão, conduza
a direcções geográficas e políticas tão diversas: a Europa onde
acontecem os grandes conflitos, culturais, políticos e sobretudo
religiosos da época; e o «Mundo Novo» das descobertas, que
portugueses e espanhóis acabam de abrir, África, América,
Oriente.
Como Inácio e os seus companheiros, no seguimento de
Jesus Cristo pobre e humilde, na Igreja, buscar e encontrar
Deus em todas as realidades e deixar-se conduzir pelo Espírito
Santo, o Espírito do Pai e do Filho, como eles se deixaram
conduzir… Confiança, disponibilidade e discernimento é o
segredo de um passado glorioso e a semente de um futuro
sempre novo.

Fontes

– RP – Relato do Peregrino – El Peregrino. Autobiografia de San Ignacio de


Loyola. Col. Manresa. Mensagero. Sal Terrae.
– RI – Recuerdos Ignacianos. Memorial de Luís Gonçalves da Câmara. Col.
Manresa. Mensagero. Sal Terrae.
– FN – Fontes Narrativi, Roma 1943.
– P. M. Collins e M. A. Price, História do Cristianismo. Liv. Civilização
Ed., 2000.
– João Ameal, História da Europa, vol III. Ed. Verbo, 1983.
39

A FORMAÇÃO NA COMPANHIA DE JESUS


Mário Garcia, S.J.

A formação, o tempo desde a entrada no Noviciado até aos úl-


timos votos, começa e termina, na Companhia de Jesus, com os
Exercícios Espirituais completos. Está balizada por eles, não como
marcos de fronteira, mas como pórticos de entrada na vida, no
amor e na morte. A «repetição» inaciana não consiste, como sa-
bemos, numa espécie de encaixe ou justaposição. Trata-se de um
resumo filtrado pela oração, a reflexão, a experiência, que purifi-
ca, ilumina, une, os aspectos aparentemente divergentes da acção
de Deus na História. Encarar a formação como uma «repetição»
supõe aprofundar os elementos identificadores daquele «sinal»
que designa o «espírito» que flui de um determinado modo de
proceder. A formação – toda a formação – «imprime carácter». A
fo(ó)rma não é uma fo(ô)rma que se cola à pele, como um vesti-
do ou tatuagem. Formar não significa formatar ou formalizar. A
formação não uniformiza. Mas se a fo(ó)rma, de facto, forma, é
porque individua, define, disciplina, canaliza, orienta uma ener-
gia de vida. Trata-se, sempre, por conseguinte, de unificar dois
princípios complementares, um mais passivo outro mais activo,
um molde e uma alma, para conformar e não deformar a liber-
dade de uma pessoa concreta. Na Companhia de Jesus, o molde
e a alma da formação são os Exercícios Espirituais.
O que pretendo expor, brota do «modo e ordem» (EE 2) dos
Exercícios. A formação de um jesuíta obedece, realmente, ao
núcleo pedagógico e mistagógico de uma experiência espiritual
integradora, cuja eficácia se vai desentranhando em círculos
concêntricos de significação sempre cada vez mais universal.
40 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Como se processa, ao longo do tempo, a «repetição» de uma


determinada vocação à Companhia? Como se passa de um ena-
moramento teórico para a concretização prática da vontade?
De que modo o movimento contínuo do amor alcança fixar-se,
inabalável, no absoluto de Deus?
Santo Inácio, ao apresentar, nos Exercícios, os pontos para a
oração sobre o chamamento dos Apóstolos, afirma o seguinte:
«Três vezes parece que foram chamados S. Pedro e Santo André.
A primeira a um certo conhecimento de Jesus. (…) A segunda
a seguirem dalguma forma a Cristo (…). A terceira, a seguirem
para sempre a Cristo nosso Senhor» (EE 275). Na primeira eta-
pa, fala-se de Jesus; na segunda, de Cristo; na terceira, de Cristo
nosso Senhor. «Um certo conhecimento» dá lugar a uma certa
«forma» e, finalmente, a seguir sem condições, «para sempre».
Faz lembrar a sequência de verbos, conhecer, amar, imitar, tão
inaciana, que o Papa João Paulo II propõe na Carta Apostólica
À entrada do novo milénio: «O programa já existe: é o mesmo de
sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-
-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhe-
cer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele
transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste»
(nº 29).
A clássica tríplice partição da ascese cristã nas três vias (que
Santo Inácio chama vidas, EE 10): purgativa, iluminativa e
unitiva, poderia servir-nos de guia: o Noviciado constituiria
a figura de um complexo processo de purificação; os estudos e
sua prática pastoral corresponderiam à via iluminativa; a Ter-
ceira Provação, à via unitiva. É tentador ainda fazer o paralelo
entre a integração das valências fundamentais da formação na
Companhia: espiritual, apostólica, comunitária e intelectual-
-afectiva, e cada uma das quatro «semanas» dos Exercícios.
A formação na Companhia de Jesus 41

Todas estas perspectivas, no entanto, encontram-se unifi-


cadas na identificação com «o nosso sumo pontífice, modelo
e regra nossa, que é Cristo nosso Senhor» (EE 344), típica da
vocação apostólica. Os três momentos que Santo Inácio assi-
nala não são, rigorosamente, fases sucessivas, mas enfoques de
um amadurecimento progressivo, porque sempre cada vez mais
profundo. Tal como não podemos desligar cada uma destas
três propostas de diálogo: «Que buscais? – Mestre, onde moras?
– Vinde ver» (cf. Jo 1, 38-39), também não podemos separar o
conhecimento «interno» da pessoa de Jesus de uma certa «for-
ma» de O seguir, assimilando «para sempre» o seu modo de
proceder, colaborando, com muitos outros, na sua missão, na
Igreja, no mundo de hoje.

1. «Um certo conhecimento de Jesus»

Entrar numa Ordem religiosa equivale a dar um salto para


dentro de um tempo qualitativo. A «ruptura», o deixar tudo,
significa, positivamente, entregar-se a uma Tradição viva.
Quem chega ao Noviciado conhece, de maneira informe, o
que vai encontrar, e de maneira não-informe a quem e a quê
renuncia. A condição para alguém sentir desejo ou desejo de
desejo de se formar, é querer informar-se, enformar-se e con-
formar-se. E para que alguém seja formador, é necessário não
querer deformar, para, em diálogo, conseguir transformar.
A possibilidade, na educação, de gerar monstros, é real, não
fictícia. Se a responsabilidade primeira é a do Espírito Santo,
que «sopra onde quer» (Jo 3, 8), então, formador e formando
devem colocar-se na mesma escola de escuta e obediência à voz
do Espírito. Ainda aqui, os Exercícios nos ensinam a situar-nos
42 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

na procura da vontade de Deus, não só no que «se há de pres-


supor que todo o bom cristão deve estar mais pronto a salvar a
proposição do próximo que a condená-la» (EE 22), mas tam-
bém, deixando «agir o Criador imediatamente com a criatura,
e a criatura com o seu Criador e Senhor» (EE 15). É à luz e ao
calor do Espírito Santo que cada um deve aprender a ler a sua
história pessoal, o mundo, a Igreja, a comunidade, a Compa-
nhia, numa sintonia de amizade com Cristo: «tende entre vós
os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus» (Fil 2, 5).
Se qualquer pedagogia da vida religiosa, ajudada pelas ciências
humanas, não assentar nesta «pedra angular» da sintonia com
os sentimentos de Cristo, resultará vazia de conteúdo, embora
pareça exteriormente configurada.
Na Companhia de Jesus existem três «provações» ou tempos
fortes da formação. A 1ª equivale, podemos dizer, ao Princípio e
Fundamento: a abertura, a base e o timbre, a nota dominante. A
Casa do Noviciado não é constituída pelas paredes de um claus-
tro, mas por determinadas pedras vivas: a pessoa do Mestre, a do
«sócio» seu imediato colaborador, a comunidade formadora, o
grupo dos noviços, as Constituições, as regras, costumes, horá-
rios, silêncios, trabalhos e recreios. Tudo isto revela uma infor-
mação sumária, concreta, sobre «o nosso modo de proceder».
Vem depois a 2ª Provação que dura todo o resto do Novi-
ciado, o período dos estudos, normais e especiais, e da prática
pastoral que os acompanha, nomeadamente o Magistério (en-
tre a Filosofia e a Teologia) e os primeiros anos do presbiterado
ou da vida profissional, para os Irmãos. O sacerdócio explicita
uma vocação pessoal que se vai esclarecendo no serviço ecle-
sial e apostólico que dá razão do estudo e da actividade que
dele promana e para ele remete. O sacerdócio não aparece de
repente, mas cresce e consolida-se, no decurso da formação,
A formação na Companhia de Jesus 43

como um horizonte, que, na Companhia, a todos toca, Padres


e Irmãos, de maneira adaptada à vocação de cada um. A 2ª
Provação, demorada, «sem ter ânsia de passar adiante» (EE 76),
enforma o jesuíta, na Igreja e no corpo da Companhia. Equi-
vale, de facto, à 2ª, 3ª e 4ª semanas dos Exercícios. O mistério
pascal de Cristo, iluminado pelo estudo da Filosofia e da Teo-
logia, vivido inculturado no mundo, sentindo com a Igreja e na
Igreja, saboreado «internamente» (EE 2), consolida e conforta
a eleição de vida. «Todas as minhas intenções, acções e opera-
ções» deveriam estar agora «puramente ordenadas para serviço
e louvor de sua divina majestade» (EE 46).
Finalmente, a 3ª Provação, «escola do afecto» (Const. 516),
como é nomeada nas Constituições, representa a «Contemplação
para alcançar amor» (EE 230-237), a culminância da formação
e do itinerário espiritual dos Exercícios. O termo «afecto», e seus
derivados, afeição, afeiçoar-se e outros, é caro a Santo Inácio.
Bastaria citar, «ponderando com muito afecto» o primeiro
ponto da referida Contemplação (EE 234), onde aparece a ora-
ção, «Tomai, Senhor, e recebei», para compreendermos melhor
a Terceira Provação. O jesuíta, à maneira do discípulo depois
de realizar a obra-prima, recebe, do Mestre, que neste caso é
a Companhia universal, a licença que lhe permite ensinar em
qualquer parte do mundo. Incorporado num grupo apostólico,
de modo definitivo, torna-se, finalmente, adulto, «senhor de
si» (EE 216), «para que assim alcance maior equilíbrio e ordem
sobre a maneira de se haver e governar» (EE 214) em todas as
circunstâncias.
Até aqui nos conduziu «um certo conhecimento de Jesus». A
Companhia, na escola do seu Senhor, não pode propor outro
caminho a quem dela se aproxima e nela deseja entrar, senão
o convite do próprio Cristo: «Quem quiser acompanhar-me,
44 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

negue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias, e siga-Me»


(Lc 9, 23). Santo Inácio formula, a seu modo, a mesma regra,
ao afirmar, nos Exercícios: «Pense cada um que tanto aprovei-
tará em todas as coisas espirituais, quanto sair de seu próprio
amor, querer e interesse» (EE 189).

2. «Seguirem dalguma forma a Cristo»

Para além das indicações e de tudo o que se refere à ora-


ção, o livrinho dos Exercícios traz também, como sabemos,
outros documentos. Entre eles, os dois grupos de «regras para
de alguma maneira sentir e conhecer as várias moções que se
causam na alma» (EE 313), constituem um precioso conjunto
de grelhas de leitura para avaliar, segundo a vontade de Deus,
todas as realidades e precaver-se dos enganos com que pode-
mos desviar-nos do recto caminho. A riqueza destas regras, de
que agora não vamos propriamente falar, leva-nos a actualizar,
numa exigência de sempre maior progresso na direcção da
santidade, «o que mais nos conduz para o fim para que somos
criados» (EE 23). No que se refere à formação, poderíamos
explicitar que o jesuíta está formado quando consegue pôr
em prática, sempre e em todas as circunstâncias, os critérios
formulados nestas regras de discernimento. Saber distinguir a
consolação e a desolação, o sentido da prudência, da paciência
e da fortaleza, as aparências de bem, o modo como se pressen-
te, se sente, se vê e se ouve o agir do bom ou do mau «espírito»,
as suas intenções e consequências, para discernir a vontade de
Deus, encontra-se na base da vivência dos critérios evangélicos
que são as Bem-aventuranças, a forma de proceder do pró-
prio Cristo. O jesuíta, alicerçado nas regras de discernimento
A formação na Companhia de Jesus 45

das moções espirituais, pretende, como qualquer bom cristão


formado na escola dos Exercícios, seguir o caminho de Cristo,
obedecer à sua vontade, assinalando-se «em todo o serviço de
seu rei eterno e senhor universal» (EE 97).
Mas em que se distingue, realmente, o «nosso modo de pro-
ceder»?
Santo Inácio, na Parte IV das Constituições, ao recomendar
que os jesuítas sejam «virtuosos e doutos» (nº 308), e que «os
que vêm às universidades da Companhia para se instruir nas
letras, juntamente com elas, aprendam os bons costumes cris-
tãos» (nº 481), põe em acção a interior lei da caridade, une o
espiritual e o didáctico, assenta a formação intelectual numa
base de aplicação prática, na intenção recta, na ordem dos
estudos, nos métodos pedagógicos, nas disputas escolares, na
formação dos formadores e nos ministérios apostólicos. Toda
esta aparente dispersão está integrada numa finalidade sempre
presente, expressa, por exemplo, deste modo, ao princípio da
Parte II: «Para o fim que a Companhia tem em vista, que é o
serviço de Deus nosso Senhor no auxílio das almas, convém
conservar e multiplicar os operários que sejam idóneos e úteis
para levar adiante esta obra» (Const. 204). Santo Inácio não cai
no intelectualismo, porque o apostolado é, de facto, sempre, a
alma da intelectualidade.
Veja-se a conclusão, admirável, do capítulo VIII, «Forma-
ção dos escolásticos nos meios de ajudar o próximo», da Parte
IV das Constituições: «De modo geral, devem instruir-se sobre
a maneira como há-de proceder um membro da Companhia
que nas mais variadas regiões está em relação com pessoas tão
diferentes, prevendo as dificuldades que podem surgir e as van-
tagens que podem aproveitar-se para o maior serviço divino,
e utilizando os vários meios. Embora isto só o possa ensinar a
46 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

unção do Espírito Santo e a prudência comunicada por Deus


Nosso Senhor aos que confiam em sua divina Majestade, é
possível, ao menos, abrir o caminho com alguns conselhos,
que ajudem e disponham para o efeito que a graça divina há-de
produzir» (Const. 414).
O P. Pedro Arrupe, na conferência intitulada «O nosso
modo de proceder», proferida em Roma, no Curso organizado
pelo Centro Inaciano de Espiritualidade, em 10 de Janeiro de
1979, enumera os traços negativos e os traços positivos dos
elementos concretos que nos definem como jesuítas.
Que figuras põem a descoberto as moções do mau espírito?
A do jesuíta sistematicamente contestatário; a do profissiona-
lista que se deixa absorver excessivamente pelos aspectos secu-
lares da sua profissão; a do irresponsável, para o qual carecem
de significado eficaz noções como: ordem, horário, valor do
dinheiro, moderação, etc.; a do activista político, que é muito
diferente do apóstolo social; a do jesuíta tendenciosamente
tradicionalista que exalta, e disso faz bandeira, os símbolos ou
realidades exteriores de épocas precedentes.
E quais são os traços positivos do nosso modo de proceder,
que configuram a forma dinâmica, isto é, o espírito e a letra, de
um verdadeiro jesuíta? «Umas tantas atitudes» que, como diz
o P. Arrupe, «hoje precisam de ser especialmente purificadas e
reactivadas»: o amor a Cristo pessoa que unifica os elementos
dialécticos da irradiação apostólica: oração e acção; empenho
na perfeição própria e alheia; recurso aos elementos sobre-
naturais e humanos; pluralismo e unidade; esforço pessoal e
dependência total de Deus; meios eficazes e pobreza; inserção e
universalidade. «Viver esse intenso amor a Cristo-pessoa, aspi-
rar a um sensus Christi que nos faça ser, apresentar-nos e actuar
à sua imitação, é o primeiro e fundamental traço do nosso modo
A formação na Companhia de Jesus 47

de proceder. Para a consecução deste ideal, Santo Inácio acode


à Mãe para que o ponha com seu Filho» (Jesuítas para os nossos
tempos, A.I./A.O., Braga, 1981, p. 169).
Os outros traços, que deste brotam, «como do sol descem
os raios, da fonte as águas» (EE 237), são os seguintes: dis-
ponibilidade, gratuidade, universalidade, sentido de corpo,
sensibilidade para o humano e solidariedade com o homem
concreto, rigor e qualidade, amor à Igreja, sentido da «mínima
Companhia», sentido do discernimento e delicadeza no que
concerne à castidade. «Daqui resulta que, tanto na primeira
formação dos nossos jovens, como na formação contínua de
todos, o manter e avivar o sensus Societatis seja um objectivo
determinante para a manutenção em plena forma jesuítica e
em capacidade de resposta aos desafios do nosso tempo. Este
sensus Societatis não poderá conseguir-se nem manter-se sem
um autêntico sensus Christi» (Ibid., p. 175).
A Congregação Geral XXXIV retomou, em 1995, no De-
creto 26, «Características do nosso modo de proceder», esta
conferência do P. Arrupe e configurou de novo o modo de ser
dos jesuítas nestes elementos: profundo amor pessoal a Jesus
Cristo; contemplativos na acção; um corpo apostólico na Igre-
ja; em solidariedade com os mais necessitados; companheiris-
mo com outros; chamados a um ministério instruído; homens
enviados, sempre disponíveis para novas missões; sempre em
busca do Magis.
A forma que a Companhia pretende gravar (insignare) no
coração de cada jesuíta em formação, repete, inacianamente, a
figura do seu santo Fundador. Ninguém como o P. Jerónimo
Nadal expressou melhor essa intenção ao afirmar lapidarmen-
te: «A forma da Companhia está na vida de Santo Inácio».
«Deus pô-lo como um exemplo vivo do nosso modo de proce-
48 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

der» (cit. no início do Decreto 26, Congregação Geral XXXIV.


Documentos, ed. port., Roma/Lisboa, 1995, p. 332).
São Paulo escrevia aos cristãos de Corinto: «Sede meus imi-
tadores, como eu o sou de Cristo» (1 Cor 11, 1). Cor Pauli, cor
Christi, diziam os Antigos. Santo Inácio pinta o retrato ideal
do jesuíta quando, no capítulo II da Parte IX das Constitui-
ções, traça o perfil do Geral. Vale a pena destacar a cor básica
deste quadro: «Grande união e familiaridade com Deus Nosso
Senhor, na oração e em toda a sua actividade» (Const., 723),
e o traço dominante: «Nele deve resplandecer especialmente
a caridade para com o próximo, e em particular para com a
Companhia, assim como a verdadeira humildade, que o tor-
nem amável, tanto a Deus como aos homens» (Const., 725).
Oxalá o coração do jesuíta seja sempre assim, como o coração
de Inácio: Cor iesuitae, cor Ignatii!

3. «Seguirem para sempre a Cristo nosso Senhor»

Chegados aqui, que nos resta senão «o muito servir a Deus


nosso Senhor por puro amor» (EE 370), quando «querer servir
a Deus, que é o fim» (EE 169), se apresenta diante de nós como
um caminho «para chegar à perfeição (para venir en perfección)»
(EE 135)? A schola affectus não se aplica só ao tempo da Ter-
ceira Provação, à conclusão da formação que o P. Arrupe cha-
mava «primeira»; traduz, igualmente, a exercitação contínua
do amor configurado na disciplina da vida religiosa (parece ser
este o sentido da palavra schola na Regra de S. Bento). A frase
de Santo Agostinho: serva formam et forma servabit te, insere-se
também nesse contexto. Utilizamo-la para aprofundar melhor
o estádio definitivo da formação: «seguir para sempre a Cristo
A formação na Companhia de Jesus 49

Nosso Senhor». Não vou dilucidar em que sentido Santo Agos-


tinho emprega a palavra forma. Cito-o de cor. A sua fórmula
adapta-se, porém, à maravilha, para falarmos da finalidade da
formação. Estamos formados? Então, é porque somos capazes
de viver da formação: «conserva a formação e a formação te
conservará a ti».
A maturidade humana, como sabemos, não corresponde a
uma idade cronológica, mas ao sinal identificativo de um pro-
jecto de vida pessoalmente assumido e partilhado com outros
em espírito de corpo. A incorporação é um ponto de partida,
não de chegada. A incorporação não tem fim, porque corres-
ponde ao trabalho do amor que «se deve pôr mais nas obras
que nas palavras» (EE 230) e «consiste na comunicação recí-
proca» (EE 231). Exactamente porque o affectus incorpora a
forma, e a forma é o amor de Cristo nosso Senhor vivido na
Companhia, em Igreja, para «ajudar as almas», para o serviço
do próximo e o bem mais universal. Por conseguinte, conser-
var a forma não significa mantê-la inalterável, mas traduzi-la
na linguagem inculturada da missão apostólica, a mesma
missão de Cristo, na Igreja, no corpo da Companhia, para
salvação do mundo. A obediência ao carisma da Companhia
resulta, assim, da liberdade, pessoal e comunitária, madura,
que aprofunda, em corpo, sempre e cada vez mais, um espí-
rito encarnado, uma forma figurada, um exercício espiritual
contínuo na dinâmica sacramental da História do Deus-con-
nosco. Deixar-se afectar, em toda a parte, pela Companhia de
Jesus, é estar continuamente a nascer, descobrir a novidade
do amor numa disciplina livremente assumida que configura,
identifica e promove todos e cada um dos jesuítas. A schola
affectus é a forma incorporada que nos conserva unidos, «para
sempre», à pessoa de Jesus. Esta é a finalidade da formação,
50 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

de toda a formação, primeira e segunda, na Companhia de


Jesus.
Mas, em concreto, quê?
O Decreto introdutório, «Unidos com Cristo na missão»,
promulgado pela Congregação Geral XXXIV, «convida toda
a Companhia a ler e rezar a renovação do nosso direito e a
reorientação actualizada da nossa missão (…) à luz das duas
imagens inacianas de peregrinação e trabalho» (ed. cit., p. 33).
A primeira destas imagens traz-nos à memória a docilidade per-
manente de Inácio ao Espírito Santo; a segunda, a colaboração
activa, o companheirismo, o espírito de corpo. Formar homens
«amigos no Senhor» capazes de partilhar com todos a mesma
missão, a missão de Cristo, é a finalidade prática da formação
na Companhia de Jesus. O Decreto 26, o último da Congre-
gação Geral XXXIV, sintetiza, desta forma, o ideal do nosso
modo de proceder: «uma consagração incondicional à missão,
livre de todo o interesse mundano e livres para todos» (ed. cit.,
p. 338). Eis a intensidade e a intencionalidade da formação: que
os jesuítas, como os Apóstolos, estejam aptos e disponíveis para
«seguirem para sempre a Cristo Nosso Senhor». A pessoa de
Jesus, cativante dos dois discípulos de João Baptista, tornou-se,
finalmente, a forma de vida deles, o anélito e o bater ritmado do
seu coração, «por compasso» (EE 259), como no terceiro modo
de orar.
Na carta sobre a Eucaristia que o P. Geral Kolvenbach nos
escreveu, datada de 15 de Fevereiro de 2006, fala-se da «respi-
ração da comunidade» como sendo a Igreja que celebra a Eu-
caristia, e da Companhia como «um corpo de oração, e muito
especialmente de oração eucarística». Os votos que os jesuítas
pronunciam super hostiam, representam um último traço do
nosso modo de proceder: «É o Senhor quem, ao dar-Se, recebe
A formação na Companhia de Jesus 51

o desejo daquele que está “pronto e diligente para cumprir a


sua santíssima vontade” (EE 91) como servidor da missão de
Cristo. É na comunhão eucarística “que o mesmo Criador e
Senhor se comunica à alma a Ele devotada, abraçando-a no seu
amor e louvor e dispondo-a a seguir pelo caminho em que me-
lhor o pode servir no futuro” (EE 15). Este encontro de Jesus
no pão e no vinho eucarísticos conduz-nos à comunhão com o
projecto do mesmo Deus, com o mistério pascal, e de uma ma-
neira pessoal, “Ele e eu”. Por esta “sinergia” eucarística, por este
encontro com o Ressuscitado, o companheiro que partilha este
pão é enviado ao mundo para anunciar, por palavra e por obra,
que “ressuscitou verdadeiramente”. É vivendo existencialmen-
te a “memória” eucarística que a Companhia é, nas palavras de
Francisco Xavier, “companhia de amor”» (12.01.1549).
Citei o P. Geral. Passo ao nosso tema. A eficácia da forma-
ção na Companhia, não poderia equacionar-se nos mesmos
termos? Parece-me que sim. Estamos situados no coração da
Igreja, no centro da missão de Cristo, no pólo irradiador do
Evangelho da salvação. É a nossa razão de ser: pregar em pobre-
za, à maneira dos Apóstolos.

Conclusão

Quando nos encontramos, cara a cara, com o mistério da


vocação, quase podemos tocar, numa espécie de assombro, na
liberdade absoluta de Deus. Só a Ele, de facto, pertence «entrar,
sair, fazer moção na alma, trazendo-a toda em amor da sua
divina Majestade» (EE 330). Santo Inácio sentia-se, nas mãos
de Deus, como uma criança, e recomendou aos jesuítas que se
comportassem com a mesma docilidade, obedecendo como se
52 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

fossem um pequeno crucifixo ou um bordão nas mãos de um


velho, praticando a castidade com a prontidão e a generosidade
própria dos anjos e amando a pobreza como mãe. Escreveu, no
proémio das Constituições, que a Suprema Sabedoria e Bondade
de Deus é que rege «esta mínima Companhia de Jesus» e que
«a interior lei da caridade e amor, que o Espírito Santo escreve
e imprime nos corações» ajuda mais, para a manter, governar e
adiantar em seu santo serviço, do que qualquer «exterior cons-
tituição». Contudo, «a suave disposição da divina Providência
pede a cooperação das suas criaturas» e, por isso, «parece-nos
necessário escreverem-se Constituições que ajudem para me-
lhor proceder» (Const., 134).
Talvez a «forma» perfeita seja, de facto, a união convergente
da «interior lei» e da «exterior constituição». O que deixamos
dito sobre a formação só pretendeu sublinhar esta síntese, abrir
o horizonte da compreensão da vida na Companhia de Jesus
para um crescimento permanente em fidelidade criativa, «para
alcançar amor». Quando Santo Inácio recomenda, por exem-
plo, no segundo exercício da Primeira Semana, que o exerci-
tante faça «o processo dos pecados» (EE 56), inculca nele um
sentido judicial, e não só indagativo. A meditação aparece, no
entanto, já inserida num verdadeiro discernimento de espíri-
tos. A progressão dos verbos para aí nos encaminha: ponderar,
observar e considerar conduzem ao ambiente escatológico do
ponto quinto, que não pretende despertar o temor mas uma
«exclamação admirativa com acrescido afecto» (EE 60) que nos
introduz no «colóquio sobre a misericórdia» (61). O sentido ju-
dicativo torna-se expressão do amor de Deus e da minha acção
de graças, «como até agora sempre tem tido de mim tanta pie-
dade e misericórdia» (EE 71). Está aqui, em núcleo, o método
pedagógico inaciano «para em tudo amar e servir a Deus, nosso
A formação na Companhia de Jesus 53

Senhor» (EE 363). Podemos ver, no texto da meditação dos pe-


cados pessoais, como em tantos outros, o caminho da formação
na Companhia: da informação enformativa da pessoa de Jesus,
passa-se, com Ele, por Ele e n’Ele, à conformação transformati-
va em Cristo nosso Senhor no exercício da sua mesma missão.
Ser jesuíta, parafraseando São Paulo, não é um título de
glória, mas um ministério que foi confiado a alguns cristãos,
Irmãos e Padres, como seu «modo de proceder», para que
possam, em corpo eclesial e apostólico, conduzir a todos para
Cristo. Ou, na expressão orante do Beato Pedro Fabro: «ir em
ajuda de muitos, para os consolar, os livrar das suas doenças, os
libertar e fortalecer, levar-lhes luz», como servidores da missão
de Cristo, de Cristo que socorre, salva, cura, liberta, enriquece
e fortifica.
A forma da Companhia é o modo como Santo Inácio seguiu
Jesus; é, em última análise, o próprio Jesus, «o nosso sumo pon-
tífice, modelo e regra nossa» (EE 344), que o Pai, no Espírito
Santo, nos convida a acompanhar: «Este é o meu Filho muito
amado. Escutai-O» (Lc 9, 35; Mc 9, 8; Mt 17, 5).
55

A INCORPORAÇÃO DOS LEIGOS


NA MISSÃO DA COMPANHIA DE JESUS
Teresa Messias

I Parte
Antecedentes históricos

Introdução

A participação de leigos nos trabalhos apostólicos da


Companhia de Jesus, pese embora ter hoje uma formulação,
uma vivência e um suporte conceptual renovados nas fontes
do Cristianismo e desenvolvidos à luz da Eclesiologia que se
estruturou a partir do Concílio Vaticano II, não é uma no-
vidade radical. Não é, por isso, uma novidade nascida deste
último concílio ecuménico, embora, como veremos, tenha
aí acontecido um novo impulso e um novo enquadramento
eclesial.
Ao tratar o tema da incorporação ou colaboração dos leigos
na missão da Companhia – título que de algum modo aparen-
ta trazer consigo uma novidade radical – é fundamental olhar
para o passado (até porque o título geral desta SEEI nos pro-
põe olhar o ontem, hoje e amanhã), para compreender e situar,
desde os dinamismos da origem, o papel e relação dos leigos e
da condição laical em geral com a experiência espiritual de Iná-
cio de Loiola, como leigo e como sacerdote religioso, e com o
carisma da Companhia de Jesus. É este percurso histórico que
tentaremos fazer numa primeira parte.
56 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

1. Inácio de Loiola e a condição laical

Íñigo Lopez de Loyola nasceu, segundo apuram os historia-


dores, no solar da família por volta de 1491. Segundo o hábito
da época, deverá ter sido baptizado pouco depois do seu nasci-
mento, em Azpeitia1. Apesar de ter recebido tonsura2 em crian-
ça, o seu próprio testemunho3 e os da época atestam o seu carác-
ter requintado, tempestuoso4 e pouco dado a práticas religiosas
até aos vinte e seis anos, altura em que é ferido em combate e
obrigado a voltar à casa paterna entre a vida e a morte5.

1
Cf. LETURIA, P., El Gentilhombre Íñigo López de Loyola en su patria
y en su siglo, Ediciones Labor, 1949, 45.
2
Cf. Ibidem, 95. Íñigo terá sido tonsurado ainda criança. A tonsura
era, nesta época, um rito eclesiástico com o qual se dava a pertença à
estrutura eclesiástica. Mediante o rito, o tonsurado passava, efectivamente,
a pertencer ao clero mas não no sentido que hoje damos à palavra, já
que não recebia o sacramento da ordem. Passava a ser, de certo modo,
um membro da instituição, sob o poder jurídico da hierarquia da Igreja
e dos seus tribunais e podia até receber um benefício eclesiástico (uma
espécie de salário) por parta da estrutura hierárquica. Mas esta condição
não implicava, por parte de quem a recebia, a decisão pela vida celibatária
nem pela futura recepção do sacramento da ordem. Cf. Ibidem, 47.
Cf. DIEGO, Luis de, «Ignacio de Loyola sacerdote: de ayer a hoy», in:
Manresa 63 (1991), 91.
3
«Era homem dado às vaidades do mundo […] com um grande desejo
de ganhar honra» (IGNACIO DE LOYOLA, Autobiografia in: Obras de
San Ignacio de Loyola, BAC, Madrid, 1997 6, [1], 100s.). Todas as citações
da Autobiografia serão feitas a partir desta edição, com a abreviatura Obras
Completas. Indicaremos entre [ ] o número do parágrafo original, seguido
do número de página da edição usada.
4
Cf. LETURIA, P., El Gentilhombre Íñigo López de Loyola en su patria
y en su siglo, Ediciones Labor, 1949, 85-97.
5
Obras Completas, [2], 101.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 57

Na vida de Inácio, a sua conversão aos trinta anos, durante


o longo período de convalescença no solar da família Loiola,
a que lhe obrigou a bala recebida na batalha de Pamplona en-
quanto estava ao serviço do Vice-Rei de Navarra, é certamente
um momento charneira, faz a separação entre dois períodos
distintos da sua vida.
A conversão de Íñigo não trouxe mudança formal no seu
estado religioso. O gentil-homem dos Loiola continuou leigo
como antes. Contudo, a sua vida irá testemunhar, pela trans-
formação interior, a grandeza da condição laical, já no século
XVI, quando a pessoa se entrega de coração rendido e livre à
experiência de ser amado, conduzido e modelado por Deus,
esse Deus que remete sempre à sua presença nos outros, nos
que convivem connosco e andam pelos mesmos caminhos e
encruzilhadas. É este percurso laical e as relações que manteve
com os leigos, antes de chegar a Roma e nos anos imediatamen-
te posteriores à aprovação da Companhia de Jesus por Paulo
III, que nos interessa explorar.

2. Manresa e Barcelona

É como leigo que Íñigo passa pelas profundas experiências


espirituais de Manresa, aprende a buscar orientação espiritual e
a dá-la. A sublime ilustração interior recebida nas margens do
rio Cardoner não o fechou num intimismo espiritual. Muito
pelo contrário, o que surpreende – muito mais quando visto à
distância de cinco séculos – é o dinamismo de saída e esque-
cimento de si, de gratuidade e serviço que movem este leigo a
usar todo o seu ser, sentir e saber para fazer bem às almas. Para
servir a Deus nos outros, sendo para eles um instrumento con-
58 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

creto e próximo da bondade do Senhor a quem serve e que o


cumula de tanta graça e bem.
Nesta intuição carismática tem origem o modo de ser e pro-
ceder dos futuros companheiros de Jesus e, ainda, a compreen-
são da missão a que são chamados. Mas não nos antecipemos.
Íñigo é, desde os tempos de Manresa, um leigo com acti-
vidade apostólica intensa. Busca a outros para pedir ajuda e
deixar-se ajudar (tanto espiritual como materialmente), está
atento às suas necessidades. Retribui com gratidão com todo o
bem que pode fazer da sua parte a quem bem lhe fez e a quem
não o fez, não sabe ou nem pode fazer. Este leigo sem estudos
eclesiásticos resolve pôr por escrito a sua experiência de Deus e
o que, nela, viu que lhe foi útil, com o fim de poder ser útil a
outros6. Passou por desolações intensas e por consolações ainda
maiores. Viu-se alvo de tentações e falsas consolações e apren-
deu a discernir as verdadeiras7. Deixou-se acompanhar por
Deus íntima e directamente e por Deus nos outros.8 O outro,

6
«Depois das suas sete horas de oração, ocupava-se em ajudar algumas
almas, que vinham ali buscá-lo, em coisas espirituais. […] Na mesma
Manresa, onde esteve quase um ano, depois que começou a ser consolado
por Deus e viu o fruto que fazia nas almas tratando-as, deixou aqueles
extremos que antes tinha; já cortava as unhas e os cabelos» (Ibidem,
[26.28], 117s).
7
Cf. Ibidem, [19-37] 113-122.
8
«Neste tempo conversava ainda algumas vezes com pessoas
espirituais, as quais tinham crédito e desejavam conversar com ele
[…]» (Ibidem, [21] 114). Também no período de Barcelona esta
atitude continuou: «Estando um dia ainda em Barcelona antes que se
embarcasse [para Jerusalém, via Itália] segundo o seu costume buscava
todas as pessoas espirituais, ainda que estivessem em ermidas da cidade,
para tratar com elas. Mas, nem em Barcelona nem em Manresa, por todo
o tempo que ali esteve, pode encontrar pessoas que tanto o ajudassem
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 59

clérigo ou leigo, homem ou mulher, será sempre para Íñigo


uma presença próxima do Senhor Jesus Cristo a quem serve e
para quem quer ser ajudado a orientar-se.9
Para os outros escreveu os Exercícios Espirituais (EE), pondo
por escrito aquilo que em si havia experimentado como proveito-
so, para que lhes pudessem servir de ajuda. A experiência de Deus
contida nos EE – obra que continuou a enriquecer com notas e
experiências pessoais durante mais de vinte anos – apresenta-se
como uma metodologia e um carisma. Não é por isso estranho
que se possa afirmar que «a inacianidade nasce como um caris-
ma laical, descoberto por um leigo e com uma metodologia – os
Exercícios – que foram concebidos desde esta perspectiva»10.

como ele desejava; somente em Manresa aquela mulher, de quem acima


está dito que lhe dissera que rogava a Deus para que lhe aparecesse Jesus
Cristo: só essa lhe parecia que entrava mais nas coisas espirituais» (Ibidem,
[37] 122). Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio
de Loyola», in: Manresa 66 (1994), 344.
9
Inácio não hesitou em ir conversar espiritualmente com uma piedosa
mulher, em Manresa, que tinha fama de santidade, recebendo dela
conselhos. «Havia em Manresa naquele tempo uma mulher de muitos
dias, e muito antiga também em ser serva de Deus, e conhecida por tal
em muitas partes de Espanha; tanto, que o Rei Católico a tinha chamado
uma vez para comunicar-lhe algumas coisas. Esta mulher, tratando um
dia com o novo soldado de Cristo, disse-lhe: – Oh! Rezo ao meu Senhor
Jesus Cristo que vos queira aparecer um dia. Mas ele, espantando-se disto,
tomando a coisa de modo grosseiro – Como me há-de aparecer a mim
Jesus Cristo?» (Obras Completas, [21] 114s.).
10
CABARRÚS, Carlos Rafael, «La espiritualidad ignaciana es laical.
Apuntes sobre “ignacianidad”», in: Diakonia 24 (2000), 19s. O mesmo autor
acrescenta: «Só passados muitos anos e muitas experiências, os companheiros
decidem constituir a Companhia de Jesus, onde se plasma a espiritualidade
inaciana quando esta se faz congregação religiosa. Mas a origem do carisma
inaciano é laical: em Manresa, em 1522, viveu Inácio a experiência espiritual
60 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

É a partir deste movimento de saída de si, em serviço e amor


a Deus, que começam a reunir-se ao seu redor outros leigos,
homens e mulheres. O que os atrai? A experiência de Deus que
sentem em Íñigo, certamente. Mas para além dela, parecem ser
atraídos pela capacidade deste homem levar outros a fazer a mes-
ma experiência, o seu trabalho muito concreto e de cariz social,
poderíamos dizer, partindo do acolhimento às situações de po-
breza e carência com que se ia deparando. A pobreza escolhida
de Íñigo, à imitação de Jesus pobre, expressão de uma confiança
oferecida a Deus e abertura a que os outros pudessem ser neces-
sários e úteis foi, sem dúvida, uma causa fundamental para o di-
namismo deste movimento de leigos que se lhe foram reunindo.
Pobreza de origem e consequências apostólicas e sociais.
Em Manresa reuniu-se em redor de Íñigo um grupo de
distintas senhoras que o ajudavam e mantinham conversações
espirituais. Esse grupo chegou a ser chamado, não sem uma
certa malícia11, as «Iñigas»12. Este é o primeiro grupo, do qual
mais forte […] e só em 1534, em Montmartre (Paris) faz votos religiosos;
quer dizer, durante mais de dez anos viveu a sua espiritualidade como leigo.
A Companhia de Jesus dá um modelo de como se faz corpo um carisma, mas
não o esgota, por princípio. O carisma inaciano pode ser vivido – e é vivido
– em pessoas e em instituições não jesuítas, com pleno direito» (Ibidem, 20).
11
Em carta a Íñigo, em 1524, uma deste grupo, Inês Pascual, mostra que
estava desanimada, entre outras coisas, pelo que alguns diziam das «Íñigas». Cf.
Obras Completas, Introdução à Carta a Inês Pascual, 717. Cf. MI, Epistolae I,
71-73. A sigla MI significa Monumenta Ignatiana, nome da série de volumes
pertencentes à colecção mais vasta com o título Monumenta Historica Societatis
Iesu (MHSI), publicada em Madrid (1903-1911) pelo Instituto Histórico da
Companhia de Jesus (IHSI), onde se encontram publicados em edição crítica
os documentos relativos às origens da Companhia de Jesus. A seguir à sigla
MI indica-se o título dado ao volume citado, seu número e a página.
12
Conhecem-se os nomes de algumas das senhoras que faziam parte
deste grupo: Inês Pascual, Ângela Amigant, Micaela Canyelles, Inês
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 61

há registo, que se juntou ao redor do futuro fundador da Com-


panhia de Jesus: um grupo de mulheres leigas.
Pela pobreza assumida em Cristo, Íñigo pode aceitar ajuda
e oferecer ajuda. Soube ser canal de graças espirituais e de bens
materiais. Foi despoletando todo um movimento de caridade
prática ao qual estava unido o ministério da palavra, em serviço
da fé. Já aqui, estrutura-se um perfil carismático: serviço da fé e
promoção da justiça.
Em Barcelona, quer durante o mês de espera pelo barco
que o haveria de levar a Itália para daí seguir para Jerusalém
quer, mais tarde, durante os dois anos de estudo que aí realizou
quando se viu expulso da Terra Santa contra a sua vontade,
surge também um grupo de mulheres leigas, da alta nobreza ca-
talã, que colaboram apostolicamente com o Peregrino13. Uma
dessas mulheres, Isabel Roser, na altura casada com Juan Roser,
haveria de protagonizar mais tarde, já viúva, acontecimentos
de grande impacto na história inicial e futura da Companhia
de Jesus. Mas no grupo de Barcelona não havia só mulheres.
Íñigo privava também com alguns homens leigos, um primeiro
intento de criar um grupo de companheiros «que fossem como

Calavera, Jerónima Calavera, Brianda Paguera. Cf. Obras Completas, 121;


Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola»,
in: Manresa 66 (1994), 344. Cf. MI Scripta Ignatii II, 360-365.
13
Nesse grupo conta-se Estefânia de Requesens, filha do Conde de
Palamós e descendente da mais antiga nobreza catalã. Por essa altura
estava prometida a Juan de Zúñiga y Avellana, grande comendador de
Castela. Através destes vínculos pode ver-se como a fama e as relações de
Íñigo com este grupo de leigas repercutiam sobre a nobreza de Espanha
e abriam contactos e possibilidades apostólicas mais vastas. Cf. GARCÍA
MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola», in: Manresa
66 (1994), 345.
62 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

umas trompetas de Jesus Cristo»14: Calixto de Sá, Lope de Cá-


ceres e Juan de Arteaga15.
Que relações tinha Íñigo com este grupo de pessoas? Basica-
mente o mesmo que desenvolveu em Manresa. Recebia apoio
material para os seus estudos, mantinha conversas sobre assun-
tos espirituais com algumas pessoas, orientando e deixando-se
orientar, aceitava a colaboração apostólica nas diversas obras a
que se dedicava ao serviço dos pobres e necessitados.

3. Alcalá de Henares e Salamanca: congregando um grupo


de leigos

Terminados os primeiros estudos de latim e humanidades,


o filho dos Loiola decide ir-se para Alcalá de Henares, a fim de
continuar a sua formação, começando estudos em artes liberais
ou filosofia. Juntamente com os estudos desenvolve-se a ver-
tente apostólica e o trato espiritual com um grupo variado de
pessoas. Íñigo faz-se acompanhar do manuscrito dos Exercícios
Espirituais. Continua a sua opção de pobreza, pedindo esmola,
travando conversas espirituais com quem o buscava.
Também aqui um grupo de mulheres se forma em redor do
Peregrino. Desta vez nãos serão senhoras da alta nobreza mas
mulheres de classe média e até algumas de comportamento algo
duvidoso16.

POLANCO, Sumario de las cosas más notables, in: MI Font. narr., I,


14

170s, notas 8, 9 e 10.


15
Haveriam de segui-lo para Alcalá e ao grupo se juntaria mais um:
Juan Reynalde. Cf. Obras Completas, [56] 134, nota 6.
16
Maria da Flor, Beatriz Ramírez, Isabel Sánchez, entre outras. As
fontes são as actas dos processos inquisitoriais movidos contra Íñigo em
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 63

Este leigo, vestido com burel grosseiro, rodeado de alguns


homens e várias mulheres, falando de assuntos religiosos sem
ter estudado teologia (e com afluência de muita gente17), orien-
tando na experiência de Deus homens e mulheres, dando os
Exercícios Espirituais a alguns, trabalhando para socorrer e
prover aos pobres, chamando a atenção pelo seu modo de vi-
ver e subsistir por meio de esmolas, não podia senão cair sob a
suspeita de ser alumbrado aos olhos da Inquisição e de alguns
rivais. Tanta originalidade, unida a alguma singularidade, aca-
ba mais uma vez por levá-lo ao cárcere, agora em Alcalá, donde
saiu ilibado. No entanto, recebeu como sentença a impossibi-
lidade de poder falar sobre coisas de fé enquanto não estudasse
mais quatro anos18. Pareceu a Íñigo que, com tal sentença, se
lhe fechava a porta para «aproveitar às almas», não por algum
motivo sério senão, apenas, porque não tinha estudado o su-
ficiente, resolveu pedir conselho ao Bispo de Toledo sobre o
que fazer. Este basco é homem que pede conselho, que se deixa
conduzir, que não tem vergonha da sua dúvida ou incapaci-
dade para ver o caminho. E aqui está, também, muita da sua
grandeza de alma. A um homem assim, o Espírito Santo pode
conduzir. E, por meio do Bispo, o Senhor leva-o a decidir estu-
dar em Salamanca.
Aqui repete o mesmo modelo de vida anterior: vive com
companheiros, relaciona-se com benfeitoras e benfeitores que o
ajudam no auxílio aos pobres, tem conversas espirituais e dá os
seus Exercícios. Resultado: novo processo movido pela Inquisi-

Alcalá. Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de


Loyola», in: Manresa 66 (1994), 345.
17
Cf. Ibidem, [57] 135.
18
Cf. Ibidem, [62] .
64 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

ção, com passagem pela prisão e respectiva sentença favorável.


Mas com a sentença vem a proibição de, daí em diante, estarem
impedidos de definir o que era pecado mortal e pecado venial.
Tal impedimento convence rapidamente o leigo Íñigo a ir da
cidade. O motivo de tanta rapidez é este: sem condená-lo a coi-
sa alguma, ao impedirem-no de falar às pessoas sobre o que era
pecado mortal e venial, fechavam-lhe a boca, o que o impede
de ajudar os próximos nas coisas de Deus. Sem ajudar os outros
para Deus, Íñigo não consegue ver sentido para o seu trabalho,
não consegue ser nem viver. É também esta visão do serviço e
do amor a Deus que ele partilha com estes grupos de leigos e
leigas que o rodeiam.

4. A experiência de Paris

A vida em Paris abre uma nova e indelével página na ex-


periência laical de Íñigo. Só e a pé19, deixando para trás os
anteriores grupos de leigos e leigas que com ele colaboravam e
partilhavam ideais apostólicos – os companheiros de Alcalá não
o seguem20 – inicia-se nas margens do Sena uma nova aventura
de colaborações.
O facto de em Alcalá Íñigo ter sido preso por causa do desa-
parecimento de duas mulheres que frequentavam o seu círculo,

Cf. Ibidem, [73], 145.


19

Mais tarde, Polanco, ao referir-se aos intentos de Inácio para reunir


20

em torno a si um primeiro grupo de companheiros leigos, discípulos


de Cristo, por terras de Espanha, dirá: «esta sua companhia, como
parto primeiro (prematuro?) não prosperou nem conservou muito».
POLANCO, Summarium hispanum, in: MI Font. narr., I, n. 35, p. 171.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 65

acrescido de não falar francês, de aumentar muito o tempo


dedicado ao estudo e de a Universidade excluir a presença de
mulheres parece, em conjunto, explicar21 que Íñigo tenha redu-
zido as suas relações iniciais a homens que falavam castelhano.
Por outra parte, quer aproveitar nos estudos e para isso aceita
reduzir as suas actividades, o que também reduz os seus con-
tactos22. Continuará, contudo e apesar de tudo, fiel aos grandes
traços que marcam o seu estilo de vida laical e apostólica: dar
os Exercícios, manter conversas espirituais para fazer bem às al-
mas, pedir esmola como pobre e, desde essa situação, confiar-se
à providência de Deus, partilhar os seus projectos apostólicos
com aqueles que lhe saem ao caminho e «ganhar» para Deus,
para a sua maior glória e serviço. É com este estilo de vida, com
este «modo de proceder» que começará a ganhar forma e corpo
o grupo dos primeiros de Paris23, os primeiros companheiros
que vieram a fundar juntos a Companhia de Jesus.

21
Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de
Loyola», in: Manresa 66 (1994), 347; cf. SOTO, Wenceslao, «Ignacio de
Loyola y la mujer», in: Proyección 44 (1997), 306.
22
«Naquele tempo [em Paris] não o perseguiam como dantes. E a
este propósito, uma vez disse-lhe o doutor Frago que se maravilhava
de que andasse tão tranquilo, sem que ninguém o incomodasse. E ele
respondeu-lhe: – A causa é porque eu não falo com ninguém das coisas
de Deus; mas, terminado o curso, voltaremos ao mesmo de sempre»
(Obras Completas, [82] 155).
23
Título do óptimo artigo de José Garcia de Castro: «Los primeros de
París: amistad, carisma y pauta», in: Manresa 78 (2006), 253-275.
66 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A comunidade de Paris: que traços característicos?

A época de Paris (1528-1535) é das mais analisadas da


história da Companhia de Jesus. Para o tema em apreço in-
teressa-nos analisar as características do grupo que se formou:
quanto ao modo como ele foi constituído, o tipo de relações
estabelecidas, ideias e objectivos, estado de vida das pessoas que
o integram, motivações.
Em Paris forma-se um grupo de amigos todos leigos24 pri-
meiro, e depois com alguns sacerdotes, estudantes, marcados
não só pelo trato pessoal com Inácio (em Paris, Íñigo resolve
mudar o nome para Inácio) mas, sobretudo, pela experiência
de fazerem sob a sua orientação os Exercícios Espirituais de
mês e partilharem juntos o mesmo objectivo de vida: estudo e
serviço. Que rasgos os marcam, sobre os quais se estabelecem
estas vinculações pessoais que desembocam no compromisso
comum dos votos?

24
Pedro Fabro foi ordenado presbítero em 30 de Maio de 1534,
depois de ter feito, entre Janeiro e Fevereiro do mesmo ano, Exercícios
de mês com Inácio (cf. GARCÍA DE CASTRO, José, Pedro Fabro, la
cuarta dimensión: orar y vivir, Editorial Sal Terrae, Santander 2006, 133.)
Significa então que, desde a chegada de Íñigo a Paris em Fevereiro de
1528, haviam passado cerca de seis anos durante os quais se foi plasmando
a relação de amizade, camaradagem, serviço apostólico e estudo, sem que
nenhum deles fosse presbítero embora, sem dúvida, essa opção estivesse
presente como possibilidade de serviço a Deus e aos outros. Fabro é disso
a prova. Mas a opção pelo sacerdócio como ministério não pode, de
modo algum, absorver ou reduzir a componente laical dos anos de Paris.
Alguns dos primeiros companheiros de Paris que fizeram o voto de 1934
haviam recebido a tonsura (Inácio, Xavier e Bobadilla; ver GARCÍA DE
CASTRO, José, «Sacerdócio en ejercicio. Los primeros sacerdotes jesuitas»,
in: Manresa 74 [2002], 342ss.). Esse facto, tecnicamente, fazia deles
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 67

1. Atracção por uma personalidade singular que motiva para


Deus

Inácio exerceu uma atracção, não um fascínio, sobre os


companheiros. Atracção desenvolvida lentamente e fundada
na sua experiência espiritual e humana, nas lutas, consolações e
provações por que já havia passado. A vida peregrina de Inácio,
cheia de peripécias e bênçãos, deve ter sido, em si mesma, um
atractivo não pequeno. A liderança espiritual de Inácio vai sur-
gindo naturalmente, ao mesmo tempo que se desvela a sua ge-
nuína vontade em ajudar os outros a orientarem-se para Deus e
a sua capacidade de discernimento25. O nobre basco é homem
de ideais, levado pelo desejo de se deixar conduzir segundo o
projecto de Deus. Tem horizontes apostólicos rasgados: a ida a
Jerusalém está-lhe marcada na alma. É desde aí que ele que ser
enviado por Jesus a trabalhar com Ele no mundo.

clérigos. Mas naquela época, como se disse, esse rito significava sobretudo
uma certa dignidade e o direito a um benefício pecuniário. Não implicava
de si a opção discernida da futura ordenação presbiteral. A importância
destes anos de «comunidade laical» para o perfil apostólico do grupo fica
patente quando se considera que, apenas dois meses e meio depois da
ordenação de Fabro, em 15 de Agosto de 1534, o grupo dos primeiros
fazia em comum os seus votos em Montmartre. E nos testemunhos que
temos desse voto e do seu contexto, reina um impressionante silêncio sobre
o tema do sacerdócio como decisão individual ou colectiva. Este silêncio
não significa que o desejo de se ordenarem esteja ausente. Simplesmente
não ganha protagonismo. Do que não há dúvidas é que queriam «gastar a
sua vida a ajudar as almas» (cf. Ibidem, 347-350).
25
Segundo Simão Rodrigues, Inácio «como a pessoa já mais
experimentada em trabalhos, sempre os outros companheiros o tiveram
como pai e guia em todas as coisas, e depois o elegeram por Geral» (MI
Font. narr., III, 10).
68 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Por outro lado, o filho dos Loiola tem a capacidade de


congregar gente em torno a si e ao seu estilo de vida. É simul-
taneamente acolhedor e dinamizador. Está interessado em ter
companheiros e esforça-se por isso. «Ganha-os para Deus» que
é como quem diz, recebe-os como dom e fruto do seu serviço ao
Senhor. Mas ganha-os com gratuidade, com genuína amizade
nascida da disponibilidade pobre de si. Mas ganha-os também
partilhando com eles as suas fraquezas: a ignorância, a fraqueza,
a pobreza e a doença. Inácio deixa-se ajudar nos estudos, não
esconde a sua necessidade material e de saúde, aceita o conselho
dos companheiros quando estes o aconselham a regressar à sua
terra natal por causa da saúde26.
Mais importante que a história passada do Peregrino, Inácio
surge em Paris com um projecto de vida assumido: viver em
pobreza, em castidade, em atitude de serviço (estudar para po-
der ajudar as almas), numa mística de seguimento apaixonado
de Jesus mas vivida no coração das preocupações quotidianas e
das tribulações dos seus irmãos, numa abertura criativa àquilo
que Deus lhe vai propondo ou sugerindo desde os aconteci-
mentos.

2. Experiência humana de camaradagem e partilha

As experiências de partilha e de amizade requerem condi-


ções. Antes de mais, tempo. Em Paris, Inácio permaneceu sete
anos. Neste espaço de tempo puderam desenvolver-se laços de
amizade. A amizade (como todos os processos humanos pro-
fundos) requer tempo. Necessita da mediação do quotidiano

26
Cf. Obras Completas, [85], 157.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 69

partilhado, da prova dos altos e baixos, da fidelidade repetida


em cada gesto de interesse e atenção, em cada pedido de per-
dão. A partilha do ambiente de trabalho, a universidade, os
professores, o esforço do estudo com os seus sucessos e revezes,
a ajuda mútua que se prestavam, partilhando os bens (chegan-
do alguns a partilhar habitação, estudo e a bolsa27) materiais e
aprendendo a conhecer, apreciar e integrar os temperamentos
dos companheiros, com os seus dons e limites.
Em Paris partilham-se descanso e actividade, perseguição e
provações, ideais e meios concretos para os levar à prática.

3. Uma forte experiência de Deus com traços comuns

Os Exercícios Espirituais são, sem qualquer dúvida, o berço


da «inacianidade» que se gera na comunidade de Paris. Eles
oferecem uma forma de olhar Deus e mundo. Permitem uma
proximidade vital à pessoa e à humanidade de Jesus que cria in-
timidade e compromisso. Enraízam na humildade através dum
conhecimento próprio do pecado e da infinita misericórdia de
Deus. Abrem para uma resposta de amor concreto, dada atra-
vés de um discernimento sério e comprometido com o mundo

27
Inácio e Fabro partilhavam não só o mesmo quarto (também com
Xavier), mas ainda «a mesma mesa e a mesma bolsa». Com o fruto das
peregrinações de Inácio à Flandres e a Londres, de onde trazia esmolas
com as quais podia subsistir em Paris, chegou a ajudar Fabro. Cf. MI
Fabri Monumenta, Mem. [8], 493. Cf. GARCÍA DE CASTRO, José,
«Los primeros de París: amistad, carisma y pauta», in: Manresa 78 (2006),
257s.
Laínez dirá que esse tempo se caracterizava por «termos especial amor
uns aos outros e ajudar-nos temporalmente no que podíamos» (Ibidem,
262s.).
70 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

tal como ele é, porque aí é o lugar onde Deus trabalha por Ele
e quer ser servido nos outros.
Cristo Crucificado e Ressuscitado é o centro dos Exercícios.
É Ele, servidor passivo e activo, carregado com a Cruz e glori-
ficador do Pai, a pessoa que congrega, aceita e envia em missão
pelo mundo. É este sacerdócio da cruz de Cristo que motiva
mais que tudo. Aqui está o modelo da disponibilidade à mis-
são, da pobreza evangélica, da retribuição amorosa e operosa
de si. Pelos Exercícios todos são introduzidos numa gramática
espiritual, numa mesma espiritualidade e nas suas implicações
práticas. Ganham um vocabulário comum, um modo específico
de relação com Deus (contemplação de Cristo e discernimento
desde o mundo interior e exterior), um meio para se deixarem
conduzir para aquilo que Deus há-de vir a querer de cada um
deles e do grupo como um corpo. Têm todos o mesmo desejo
e decisão: ajudar às almas.

4. Um oferecimento apostólico comum: o voto de Montmartre

A resultante do modo de ser e viver em comunidade de dis-


cípulos plasma a decisão de se entregarem a Deus através de um
voto comum a todos28. É a primeira deliberação do grupo com
consequências a longo prazo. As opiniões não são unânimes
logo de início mas chegarão a uma decisão comum. Nela está,
mesmo se ainda não têm disso consciência, a origem da futura
ordem religiosa que formarão. Tal decisão fundamenta-se no
seguimento radical de Jesus ao modo dos apóstolos, com o pro-
pósito de gastar a vida ao serviço de Deus e ajuda das almas.

28
Cf. MI Fontes narr., VII, 184.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 71

O voto, feito em 15 de Agosto de 1537 pelos sete primeiros,


tem um horizonte temporal, isto é, entra em aplicação depois
que tenham terminado os estudos em Paris. Ou seja, a matéria
do voto consta em que, acabados os estudos:

a) Irão em peregrinação a Jerusalém para aí se gastarem ao


serviço de Deus e das almas; este voto tem uma cláusula
condicional: caso não consigam passagem para Jerusa-
lém no espaço de um ano, irão oferecer-se ao Papa para
que este, conhecendo melhor que ninguém as necessi-
dades e urgências da Igreja, os envie para onde forem
mais necessários e o serviço de maior glória de Deus;

b) Viverão em pobreza; também este voto tem uma cláu-


sula: não obrigará em consciência enquanto não termi-
narem os estudos em Paris.

Surpreendentemente, as fontes não falam em nenhum voto


para se fazerem sacerdotes nem num voto de castidade29.

29
Sobre este silêncio textual relativo à opção do ministério ordenado
ver GARCÍA DE CASTRO, José, «Sacerdocio en ejercicio. Los primeros
sacerdotes jesuitas», in: Manresa 74 (2002), 347ss. Alguns autores
consideram que a opção pelo voto de castidade está implícita no voto de se
dedicarem ao serviço de Deus e da ajuda às almas e que a decisão comum
de se dedicarem ao serviço apostólico tem implícita, já aqui, uma decisão
pelo sacerdócio ordenado, precisamente em função do serviço (cf. Ibidem,
347; cf. O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero
– Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 50; cf. KOLVENBACH, Peter Hans,
«En el 450 aniversario de los votos de Montmartre», in: Selección de escritos
(1983-1990), Madrid 1992, 33; Cf. DIEGO, Luis de, «Ignacio de Loyola
sacerdote: de ayer a hoy», in: Manresa 63 [1991], 91).
72 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

O certo é que durante o tempo de Paris, até que partem para


Itália, nenhum deles – excepto Fabro – foi ordenado presbítero.
Será apenas depois de um encontro com Paulo III em Roma,
a quem vai um grupo pedir autorização para irem como pere-
grinos a Jerusalém que, juntamente com aprovação e a bênção
papal, recebem apoio económico e a autorização para serem (os
que podiam) ordenados presbíteros pelo Bispo que escolhe-
rem30. Em Veneza, ordenados pelas mãos do Bispo de Arbe em
24 Junho de 153731, assumem então como grupo a sua identi-
dade sacerdotal e fazem votos de castidade e pobreza32.
Paris é, podemos dizer, a experiência de entrega radical a
Cristo e à sua missão, uma disponibilidade comprometida com
o futuro para gastar a vida, no que for maior glória de Deus

O P. Luís Gonçalves da Câmara, ao descrever no seu memorial o


processo da deliberação de Paris, afirma que o modo concreto como o grupo
se haveria de entregar ao serviço de Deus não foi logo decidido, chegando
o grupo a concluir que haveriam de continuar esse discernimento diante
de Deus quando estivessem em Jerusalém. E se não chegassem aí, então
haveriam de pedir ao Papa que os aconselhasse e encomendasse sobre o
modo de concretizar a sua decisão de servir a Deus. E se o Papa aprovasse
este seu oferecimento, então lhe pediriam (para isto se poder melhor fazer)
licença para pregar e ministrar os santíssimos sacramentos da confissão e
comunhão por todo o mundo. Este texto pode, eventualmente, deixar em
aberto a questão sobre uma clara decisão tomada por todos a respeito da
ordenação sacerdotal. O mesmo afirma Polanco em Summarium hispanum,
in: MI, Font. narr. , VII, 185.
30
Cf. O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero
– Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 51; cf. HIRSCHFELD, José García,
«Origen de la comunidad en la Compañía de Jesús», in: Manresa 63
(1991), 404.
31
Cf. GARCÍA DE CASTRO, José, «Los primeros de París: amistad,
carisma y pauta», in: Manresa 78 (2006), 270.
32
Cf. Obras Completas, [93], 167.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 73

e sob o seu discernimento, uma opção comum de pobreza e


castidade vivida por um grupo composto maioritariamente por
leigos. Leigos que vislumbravam no seu horizonte, com grande
probabilidade, o ministério sacerdotal como meio de ajuda aos
outros.
Vendo por este prisma, pode-se dizer que não foi o Sacerdó-
cio ministerial que lhes conferiu as características profundas da
sua disponibilidade para a missão. Foi, antes, o oferecimento
incondicional de si mesmos a Jesus e à sua missão de bem-fazer
que os configurou e orientou, individualmente e como corpo,
para o exercício do ministério ordenado.

5. Itália: ordenações e a escolha do nome Companhia de


Jesus

O fim dos estudos trouxe um incremento na actividade


apostólica do grupo, juntamente com a ordenação presbiteral.
No Véneto, repartidos em pequenos grupos para preparar a sua
ordenação como sacerdotes ou já depois de ordenados, esperan-
do barco para Jerusalém, o grupo desenvolve um amplo leque
de actividades apostólicas, sobretudo em hospitais: faz limpezas,
ajuda os doentes e serve os pobres, prega a palavra de Deus,
ouve confissões e entabula conversas espirituais com os que se
lhe deparam, dá os EE, chegando a conseguir mais uns candida-
tos33. Vivem pobremente. Pedem esmola para se sustentar.
É neste momento que tomam uma decisão marcante: deci-
dem dar-se a si próprios um nome, uma forma de exteriorizar

33
Cf. HIRSCHFELD, José García, «Origen de la comunidad en la
Compañía de Jesús», in: Manresa 63 (1991), 402.
74 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

uma identidade própria que sentiam ser já parte da sua vida


de grupo. Já depois de ordenados, em Veneza, antes de se dis-
persarem em pequenos grupos pelo Véneto, decidem escolher
um nome para o grupo, pois já começam a ser conhecidos
por Iñigistas34. Daí o motivo para a deliberação sobre o nome.
Acabam por escolher Jesus como referência do grupo: a Com-
panhia será de Jesus. A primazia do grupo não tem nenhum
dos seus membros mas só Jesus é a Cabeça, o líder e o Chefe.
É Ele quem atrai e envia cada um.
A visão de La Storta – na qual Inácio se sente recebido ao ser-
viço do Pai e oferecido por Este ao serviço de Jesus que carrega
com a Cruz, recebida a certeza de que o Pai lhes será favorável
em Roma – será considerado por Inácio como uma confirmação
decisiva do nome «Jesus» para centro e Chefe do grupo35.

6. O termo companhia e a sua importância no séc. XVI

Ao contrário de algumas interpretações de carácter milita-


rista36, a expressão companhia era nesta altura bastante usada
para significar apenas a reunião de um grupo de pessoas, dan-
do-lhe um certo carácter institucional e público. Pode consi-
derar-se como sinónimo de confraria, irmandade, associação
ou congregação37.

Cf. ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús. Sentido histórico y ascético


34

de este nombre», in: Manresa 27 (1955), 51.


35
Cf. Ibidem, 48-51.
36
Cf. Ibidem, 45-48.
37
Cf. O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero
– Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 52.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 75

Por esta altura abundavam por toda a Europa e também em


Itália38 compagnie de toda a sorte, dedicadas aos mais variados
fins, instituídas com o fim de reunir esforços e meios com os
quais se pretendiam realizar determinados objectivos práticos,
assistenciais (sociais) ou espirituais. Tinham uma importante
repercussão na vida religiosa e social.
Apresentavam-se numa «variedade quase infinita de modelos
de piedade, nas “obras” que empreendiam para os seus próprios
membros e para outros, nas suas relações com as instituições
civis e eclesiásticas e na composição social e económica dos seus
membros»39.
O quadro que configura uma «companhia» é o de uma as-
sociação laical, com forte motivação religiosa, destinado a dar
apoio e ajuda mútua aos seus membros, permitindo uma maior
motivação e acção para o exterior do grupo, realizando e finan-
ciando actividades de carácter social ou religioso. A partir desta
realidade surgiram as Ordens Terceiras, relacionadas com os
Dominicanos e Franciscanos, que se enquadravam nesta reali-
dade das confrarias de leigos piedosos e desejosos de perfeição.
Vale a pena ler uma descrição da situação em Itália na época
em que o grupo de Paris resolve dar-se um nome:

«Quando Inácio e os seus companheiros chegaram pela pri-


meira vez a Itália deveram encontrar-se com o facto de que

38
O papel das Confrarias na Idade Média encontra-se tratado em ampla
bibliografia. Cf. Ibidem, 239, nota 151. J. Iturrioz afirma que nesta altura
«em quase todas as cidades de Itália havia uma ou várias Companhias»
(ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús. Sentido histórico y ascético de este
nombre», in: Manresa 27 [1955], 46).
39
O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero
– Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 240.
76 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

as confrarias eram uma realidade tão numerosa e bem esta-


belecida que, de um certo ponto de vista, às vezes pareciam
definir a Igreja italiana; de outro ponto de vista, pareciam
instituições cívicas ou municipais, com motivação religiosa;
distinções praticamente sem sentido no século XVI.
Contudo, olhem-se por onde se olhem, não eram sucursais
nem da Paróquia, nem do Município, mas sim entidades au-
tónomas no seu governo e nas suas decisões que trabalhavam
para o “bem comum” de modos muito bem definidos por
elas mesmas»40.

As companhias eram, portanto, associações laicais de pro-


funda raiz religiosa, destinadas a fazer bem aos outros, reco-
lhendo meios materiais e ajudas, com fins específicos. É neste
enquadramento que os primeiros companheiros de Inácio de-
cidem chamar-se «Companhia de Jesus».
Analisando o contexto histórico parece poder concluir-se
que, ao fazer tal escolha, o grupo se situava, na sua dinâmica
de vida e acção, mais próximo da realidade associativa reli-
giosa laical do que outra qualquer forma de associação. O
que certamente ainda não se entendiam era como Ordem
religiosa.
Para além de serem a matriz sobre a qual o grupo dos com-
panheiros se auto-identificou, as companhias tiveram ainda
um outro tipo de influência, com repercussões importantes,
no modo como os primeiros companheiros de Jesus serviam
Deus e as almas e concebiam a missão. Desde o princípio, os
Jesuítas estabeleceram relação com estas associações, chegan-

40
Ibidem, 241.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 77

do mesmo Inácio e alguns outros a filiarem-se nelas41. Com o


tempo, a tendência para a afiliação neste tipo de associações foi
abandonada, com receio de que a pertença a tais instituições
pudesse diminuir a disponibilidade apostólica que se requeria
dos membros da Companhia de Jesus42.
Mas para além de se associarem a Companhias já existentes
ou que surgiam nesses primeiros tempos, Inácio e os compa-
nheiros constituíram eles mesmos novas Companhias com o
fim de realizarem as obras apostólicas que entendiam ser servi-
ço de Deus. Faziam-no através da colaboração com leigos que
não só integravam os corpos dirigentes da associação como aju-
davam ombro a ombro na recolha de bens materiais, na difusão
das práticas de piedade e na realização das tarefas concretas de
ajuda social.

41
«Em 1540, Inácio promoveu por carta, na sua Azpeitia natal,
a Confraria do Santíssimo Sacramento, fundada em Roma pelo
Dominicano Tommaso Stella, apenas dois anos antes. En 1541, ele e
outros cinco jesuítas afiliaram-se a essa mesma Confraria na Igreja de Santa
Maria da Estrada, onde fica hoje o Gesú. Mais ou menos por esse tempo,
Inácio ingressou na Confraria do Espírito Santo, agregada ao hospital
do mesmo nome e pagou dinheiro suficiente para garantir a sua filiação
durante os seguintes vinte anos. […] Os Jesuítas não só colaboraram com
as Confrarias existentes de maneiras muito variadas, inclusive ajudando a
reformá-las, mas ainda se responsabilizaram directamente pela fundação
de muitas novas « (Cf. Ibidem, 241; 243).
42
Cf. Constituições da Companhia de Jesus, 651. É interessante a leitura
que faz John O’Malley desta mudança de atitude: «Esta política [de
dissuadir a que os Jesuítas se filiassem nas companhias] indicava também
que os Jesuítas acreditavam que os seculares eram capazes de dirigi-las
por si mesmos» (O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones
Mensajero – Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 242).
78 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Assim, surge entre muitas outras existentes à época43, a


Compagnia della Grazia, uma associação criada para apoiar e
manter a Casa de Santa Marta, uma obra apostólica destinada a
recolher e reorientar as mulheres que praticavam a prostituição
na cidade de Roma em meados do século XVI44. Em 1540, em
Parma, Pedro Fabro funda uma das primeiras associações de
que os Jesuítas se responsabilizaram, exclusiva para homens,
que admitia tanto sacerdotes como leigos e que tomou o nome
de Compagnia di Gesú, acabando por ser uma fonte de vocações
para a nova Ordem religiosa.45 Mas nem sempre as Congre-
gações fundadas eram exclusivas para homens ou senhoras ou
para uma classe sócio-profissional. Também as havia mistas e
abertas a um leque variado de proveniências, englobando no-
breza e gente simples do povo.
A ênfase dada aqui à realidade das companhias tem uma fi-
nalidade: mostrar como tanto o ser como o agir dos primeiros
companheiros sintoniza, no seu modo de estar, com a realidade
também laical do seu tempo. O estilo de actividade apostólica e

43
Inácio também iniciou a Compagnia dei SS XII Apostoli e os Jesuítas
fundaram bastantes outras. Cf. ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús.
Sentido histórico y ascético de este nombre», in: Manresa 27 (1955), 46.
44
Daqui haveriam de surgir as primeiras mulheres Jesuítas da história,
lideradas pela viúva catalã Isabel Roser. Apesar de ser uma experiência de
muito curta duração, as peripécias do processo – que começou por desejo
e ordem do Papa Paulo III, o qual deu ordem ao P. Inácio para receber
os votos religiosos dessas senhoras – deixaram em Inácio a convicção de
que a Companhia de Jesus nunca poderia no futuro ser obrigada a aceitar
mulheres com votos de obediência feitos ao Padre Geral.
45
E este não foi caso único: Silvestre Landini fará o mesmo criando uma
associação para estudantes, com o mesmo nome, em 1549. Cf. O’MALLEY,
John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero – Editorial Sal Terrae,
Bilbao 1993, 243.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 79

até organizativa dos inícios está, não só próxima mas aberta e em


relação de colaboração com todos, particularmente dos leigos.

7. Roma de 1540 e a colaboração com os leigos na missão


da Companhia de Jesus

Por alturas de 1543, poderia ser traçado o quadro seguinte,


sobre relações entre os Jesuítas e os leigos.
Inácio e os seus companheiros entendem claramente que a
sua missão apostólica não se reduz a administração de sacra-
mentos, embora também a inclua. Muito para além desta com-
ponente especificamente vinculada ao ministério sacerdotal, há
uma multiplicidade de tarefas apostólicas ligadas à moral e à
justiça social que se lhes apresentam como componente insepa-
rável do serviço a Deus. Há que cuidar das almas e dos corpos e
isso requer envolvimento em tarefas «temporais», em estruturas
da sociedade. A maior eficácia na missão pede uma estratégia
que recorre aos recursos da época: usar a tendência para for-
mar associações. Para garantir os recursos necessários criam-se
grupos, idoneamente reconhecidos pela Igreja, providos de um
número suficiente de benfeitores que colaboram com dinheiro,
com o prestígio pessoal e os seus contactos, com os seus bens,
casas, tempo e disponibilidade pessoal.
Confiam-se grandes responsabilidades a leigos e leigas46 das
mais variadas condições e proveniências. Estas últimas chegam

46
Cf. ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús. Sentido histórico y ascético
de este nombre», in: Manresa 27 (1955), 46; Cf. CHAUVIN, Charles, «La
maison Sainte-Marthe. Ignace et les prostituées de Rome», in: Christus 149
(1991), 120s.
80 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

a ser incumbidas por Inácio de dirigir obras apostólicas47. Es-


tamos, sem qualquer dúvida, numa experiência de colaboração
apostólica na missão da Companhia de Jesus48. Por sua vez,
estes leigos são acompanhados pelos Jesuítas, de quem recebem
apoio, conselho e amizade, têm acesso aos sacramentos, a ajuda
espiritual (incluindo os EE) e material. Fazem ainda juntos o
discernimento e avaliação dos trabalhos empreendidos. São
chamados e estimulados a um alto e radical seguimento de
Cristo a partir do estado e situação em que se encontram49.
Com as fundações de colégios jesuíticos veio a aplicação do
potencial deste tipo de associações ao mundo estudantil. Nesta
opção pastoral está a origem do que virão a ser as Congregações

47
É o caso de Isabel Roser e de Leonor Osório, esposa de Juan de
Vega, embaixador de Carlos V em Roma e do próprio Embaixador, entre
outras. Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de
Loyola», in: Manresa 66 (1994), 347.
O caso da Princesa Joana de Áustria, a única mulher que foi recebida
por Santo Inácio e morreu, efectivamente, com estatuto formal de Jesuíta
mas viveu como leiga, tem também contornos interessantes para o tema da
colaboração na missão, até pelo muito que ajudou a Companhia de Jesus
em momentos difíceis. Mas, até porque morreu como religiosa Jesuíta
embora vivesse no seu contexto, tal incursão sairia fora do âmbito deste
trabalho.
48
Cf. CHAUVIN, Charles, « La maison Sainte-Marthe. Ignace et les
prostituées de Rome», in: Christus 149 (1991), 120s.
49
«Para Inácio, não é tão decisiva a distinção de estados na Igreja
(distinção que certamente não ignora), quanto a preocupação por ajudar a
conseguir que nos distintos estados e variadíssimas situações em que cada
um se encontra (por eleição divina, claro) busque o maior serviço divino.
Isto implica sempre a atenção ao existencial, não partindo nunca de uma
concepção “essencialista” e “descendente”, mas antes “existencialista” e
“ascendente”. O mais decisivo é, uma vez feita a eleição de estado, ter a
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 81

Marianas, cuja origem remonta a 1563 (sete anos depois da


morte de Inácio), ao ambiente estudantil do Colégio Romano
e ao rasgo apostólico do jesuíta belga Jean Leunis. O traço mais
característico e que distinguia estas associações das outras onde
os jesuítas também se empenhavam era o uso específico dos
Exercícios Espirituais como matriz do processo espiritual do
grupo50.
Pode agora ver-se como o surgimento das Congregações
Marianas tem a sua origem numa atitude apostólica de abertu-
ra e colaboração entre Jesuítas e os leigos através de um dina-
mismo associativo capaz de delegar responsabilidades organi-
zativas que precede, no tempo e na capacidade de intervenção
social, aquele que viria a surgir com as Companhias fundadas
por Leunis. As Congregações Marianas, vistas por este prisma
histórico, não são a origem da atitude estruturada de colabo-
ração da Companhia de Jesus com os leigos. São, antes, uma
consequência.
É este contexto histórico que levou Howard J. Gray, S.J.,
a 1 de Julho 2001, ao discursar no dia da tomada de posse de

capacidade de ler desde a realidade de cada um e desde ela tratar de servir


ao Senhor. E, dentro desta perspectiva, descobre-nos elementos que ainda
hoje não se têm suficientemente em conta ao desenhar a figura do leigo
cristão. Além disso, dá-nos também recursos para uma mistagogia do
secular» (RAMBLA, José Maria, «Ignacio de Loyola y la vocación laical»,
in: Manresa 67 [1995], 12).
50
Em 1564, no Colégio Romano, sob orientação do Jesuíta belga Jean
Leunis, será formada uma congregação de estudantes, sob o patrocínio da
Virgem Maria. Rapidamente a experiência foi levada para outros colégios
dos Jesuítas. A Congregação do Colégio primário será, bastante depois (em
1584) considerada por Gregório XIII a primeira Congregação Mariana da
história e origem da actual CVX. Cf. Ibidem, 245ss.
82 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

John J. DeGioia como primeiro leigo Reitor da Universidade


Jesuíta de Georgetown, (Washington D.C.), nos duzentos e
doze anos da sua existência, a afirmar:

«Desde os primeiros inícios da Companhia de Jesus, os


leigos tiveram um papel muito importante na dinâmica de
crescimento da Companhia. A sua resposta e inspiração, a
sua dedicação e efectiva integração na missão, mostrou aos
Jesuítas o que estavam fazendo, quem eram e como podiam
agir. E é essa parceria que suporta o contexto da história que
nós identificamos como Companhia de Jesus. Nós não es-
tamos trazendo os leigos para dentro. Eles estiveram dentro
desde o princípio. O que estamos fazendo agora é reconhe-
cer, de um modo bastante mais profundo, que eles têm a
liderança nessa parceria»51.

*
Procurámos dar um quadro, sucinto e compacto, da exis-
tência de uma relação apostólica entre Jesuítas e Leigos que re-
monta à origem e ao carisma de Inácio. Iremos agora ver como
este impulso à mútua colaboração Jesuítas-Leigos se recuperou
no século XX e abriu a novas e criativas dimensões apostólicas
e de serviço à missão de Cristo.

GRAY, Howard J., Documento Lay-Jesuit Collaboration in Higher


51

Education: http://woodstock.georgetown.edu/publications/report/r-
fea68.htm)
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 83

II Parte
A mudança operada desde o Concílio Vaticano II

8. A Companhia de Jesus sob o efeito do Concílio


Vaticano II

Tendo percorrido, com algum pormenor, os primeiros anos


da Companhia de Jesus, podemos agora dar um salto cronoló-
gico desde o século XVI até ao século XX. Durante estes anos,
os leigos foram ganhando espaço de actividade na Igreja, em-
bora com altos e baixos. No início do século XX, ocorre uma
certa regressão do quadro que acabamos de traçar. O papel dos
leigos vai perder protagonismo dentro da Igreja. Esta mudança
permite compreender que o Papa Pio X (1903-1914) faça a
seguinte afirmação:

«A Igreja é por essência uma sociedade desigual compreen-


dendo duas categorias de pessoas; os pastores e o rebanho,
os que ocupam um lugar nos diferentes graus da hierarquia
e a multidão dos fiéis; e estas categorias são de tal modo dis-
tintas entre si, que, somente no corpo dos pastores, residem
o direito e a autoridade necessárias para promover e dirigir
todos os membros em direcção ao fim da sociedade. Quanto
à multidão, ela não tem outro direito senão o de se deixar
conduzir e, como rebanho dócil, seguir os seus pastores»52.

Influenciada, como é natural, pela crescente estratificação


eclesial e eclesiástica que aconteceu desde o Concílio de Tren-

52
Pio X, Encíclica Vehementer nos, ASS 39 (1906), 8-9.
84 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

to até ao início do Concílio Vaticano II em 1962, também a


Companhia de Jesus foi incorporando uma noção ou modelo
de missão algo vertical e hierárquica.
Apresentamos em seguida um esquema a que chamamos
Modelo 1. Ilustra uma certa compreensão teórica e prática da

Modelo 1

Jesus

Papa

CJ

Clero

Religiosos
Leigos

Não
cristãos

missão da Companhia de Jesus prévia a 1962. Note-se que o


esquema é vertical ou piramidal: a altura a que estão situados os
diferentes elementos eclesiais diz da sua importância e activida-
de. Repare-se ainda no sentido das setas: a missão é uma acção
que brota da Companhia de Jesus e é recebida passivamente
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 85

pelos demais. Os não-cristãos são um alvo de missão presente


no horizonte da Companhia.
Com a chegada dos anos 60 do século XX, a Companhia de
Jesus vai, tal como todas as outras instituições da Igreja, receber
influxos do Concílio Vaticano II e da visão que nele se plasma
sobre o lugar e a missão dos leigos da Igreja.
Tal visão sobre a vocação laical é uma das mudanças mais
significativas que o mundo e a comunidade católica vem assis-
tindo desde meados do século passado.
A renovada consciência da incorporação de todos os cristãos
ao Mistério Pascal de Jesus pelo Baptismo e da sua participa-
ção na condição real, sacerdotal e profética de Cristo, estão na
base de um novo modelo de Igreja: uma Igreja enraizada num
mistério trinitário de comunhão, onde cada um dos membros
faz parte de um povo, é co-responsável da vida e da missão, por
virtude dos carismas próprios. Uma tal compreensão da Igreja
tem consequências práticas relevantes.
Os leigos vêem ser-lhes reconhecida uma importância e
uma acção específica dentro do crescimento do corpo de
Cristo, no qual não são tidos por inferiores ou subordinados
aos estados de vida mas antes em íntima e recíproca colabo-
ração, no discernimento e na acção. Desta nova Eclesiologia
verão a luz noções como co-responsabilidade e sinodalidade,
duas das noções mais importantes e de maior impacto, tanto
na vida como na organização jurídica da Igreja53. Co-respon-

53
O Código de Direito Canónico de 1983 é uma consequência jurídica
da nova compreensão da Igreja nascida do Concílio Vaticano II. O direito
de associação dos fiéis, entre outros muitos cânones que se poderiam citar,
ilustra bem o novo estatuto dos leigos dentro da orgânica institucional.
86 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

sabilidade na vida e na missão da Igreja porque fundada na


comum participação da vida de Jesus Cristo, do seu mistério
e missão.
A renovada consciência de si e da sua missão que os leigos
receberam, como discípulos de Cristo ao serviço de Deus e do
mundo, trouxe um – para muitos inesperado – despontar de
associações, comunidades, movimentos eclesiais, de novas for-
mas de viver o mistério do baptizado no mundo. Uma dessas
novas formas, certamente suscitada pelo Espírito Santo, foi o
aparecimento, nos anos pós-conciliares, de grupos de leigos
que se foram sentindo chamados a partilhar a espiritualidade
e o carisma de associações (Ordens, Congregações, Associa-
ções de Fiéis, Sociedades de Vida Apostólica, etc.), de Vida
Religiosa, já reconhecidas e aprovadas pela Igreja. Sentiram-se
chamados a viver a espiritualidade que lhes é própria mas se-
gundo a sua situação e estado laicais. Quem conhece a história
da Igreja diria que isto não é grande novidade. A novidade é
o estatuto, reconhecido pelo próprio ensino magisterial, com
que o fazem, a partir da sua inserção no Mistério de Cristo e
da Igreja.

9. Os Leigos e a Companhia de Jesus: Congregações


Gerais 31 a 34

Também a Companhia de Jesus, por alturas do Concílio


Vaticano II, movida por um dinamismo criativo de renova-
ção nas suas fontes, redefiniu a sua missão apostólica e tomou
consciência de um chamamento feito por Deus aos leigos,
e por estes discernido, a participarem mais intimamente na
espiritualidade e na missão do Instituto. A Congregação
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 87

Geral [CG] 31, reunida precisamente no momento em que


decorriam as últimas sessões do Concílio Vaticano II54, tem
consciência de que os leigos irão, progressivamente, entrando
cada vez mais na actividade apostólica da Igreja55. Os seus
decretos apresentam várias indicações importantes no que
respeita à colaboração entre Jesuítas e não-Jesuítas na missão
da Companhia.
Antes de mais, afirma que «qual seja a natureza e qual o
carisma peculiar da nossa vocação se deduzirá sobretudo do
processo dinâmico com que se iniciou a história da Compa-
nhia» (d.1, n.1). Esta declaração dá peso ao estudo e análise da
relação com os leigos na origem e primeiros anos da instituição.
Contudo, o mais interessante de observar é a mudança mental
que se começa a operar. Para isso indica-se uma linha orienta-
dora no que respeita à selecção de ministérios: a colaboração e
cooperação no apostolado com os não-Jesuítas, religiosos(as),
sacerdotes e leigos(as)56.
São os decretos 33 e 34 desta CG que mais interessam ao
nosso tema. É dito que é preciso mudar de atitude interna dos

54
A CG 31 da Companhia de Jesus reuniu-se para a primeira sessão
de 24 de Maio a 15 Junho 1965 e para a segunda sessão de 8 Setembro
a 17 de Novembro de 1966. O Concílio Vaticano II foi oficialmente
encerrado a 8 de Dezembro de 1965.
55
Cf. CG 31, d.33, Introdução.
56
«Recomenda-se uma ampla e sincera colaboração com os leigos. Nas
obras da Companhia os seculares devem associar-se de algum modo à nossa
própria responsabilidade de animá-los, orientá-los e dirigi-los» (CG 31,
d.21, n.9); «A CG […] deseja uma maior colaboração com os leigos no
apostolado» (GC 31, d.23, n.8); «fomente-se entre nós a mútua cooperação
[…] também com os outros religiosos, com os sacerdotes diocesanos e com
os leigos […].»
88 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Jesuítas, a partir do ensino da Igreja57: reconhece-se que os


leigos têm uma parte própria na missão da Igreja (d.33, n.2).
Mas sobre a possibilidade de poderem participar na missão da
Companhia de Jesus como numa missão comum, não são feitas
afirmações explícitas.
Não há dúvida que o tema da colaboração com os leigos foi
um tema relevante nesta CG. A Companhia entende que pode
prestar vários serviços aos leigos, sobretudo o de formá-los para
a vida cristã e o apostolado. Deve ajudá-los no seu apostolado
(n. 6). E já se declara: «convém que fomentemos a colaboração
de seculares nas nossas obras apostólicas» (idem), dando-se a
responsabilidade na organização, gestão e até direcção das nos-
sas obras […] (idem) e «deve a Companhia examinar se devem
ser confiadas a seculares algumas obras começadas por nós para
assim conseguir o bem da Igreja» (idem).
Apresentamos em seguida uma nova figura, a que chama-
mos Modelo 2. Procura ilustrar o modo novo de conceber e
Modelo 2

Jesus
Não
cristãos
Clero

Religiosos
Papa CJ

Leigos

«O que o Concílio Vaticano II ensinou [sobre a índole dos leigos]


57

exige da nossa Companhia um novo exame da atitude para com os leigos e


o seu apostolado» (d.33, n.1).
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 89

realizar a missão da Companhia de Jesus neste contexto de


profunda renovação eclesial. Neste modelo já não sobressai
a verticalidade de posições. Pelo contrário, nota-se uma mu-
dança de posições, ficando os diversos agentes mais ao mesmo
nível, numa disposição mais circular, isto é, mais igualitária.
As setas que ilustram as relações estabelecidas pela Compa-
nhia de Jesus no exercício da sua missão são, agora, de duplo
sentido: admite-se um movimento de duplo sentido. A missão
da Companhia é, neste modelo, uma acção que implica um
dar e um receber apostólicos. É realizada com o contributo de
«co-actores».

9.1. Um modo especial de colaborar com a Companhia


de Jesus

É na CG 31 que surge pela primeira vez registo escrito


da existência de uma forma de colaboração dos leigos com a
Companhia de Jesus que se reveste de características especiais.
O último número do decreto reservado à relação com o laica-
do regista: «Entre nós e aqueles dos seculares que se fizeram
participantes de uma maneira mais íntima no nosso modo de
sentir e de actuar surge uma comunicação e consociação mais
estreita; sem perder nunca a justa liberdade apostólica saibam
os Jesuítas dar expressão à dita comunicação e consociação
guardando-lhes cuidadosa fidelidade, cultivando uma sincera
amizade e demonstrando-lhes da nossa parte fraterna hospita-
lidade» (CG 31, d.33, n.6).
Que quererá isto dizer na prática? Quem se fez participante
de «maneira mais íntima no modo de sentir e actuar»? O que
distingue esta «maior intimidade» das outras formas de rela-
ção com os leigos? Há um véu de silêncio que os decretos não
90 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

rasgam. Antes parecem deliberadamente colocar, talvez pela


novidade e complexidade da questão.
O decreto seguinte, d.34, dá mais algumas informações:
«Em algumas regiões há seculares desejosos de que a Compa-
nhia de Jesus os una a si com vínculos mais estreitos, em ordem
a realizar melhor a sua vocação laical na Igreja» (d.34).
Interessa-nos reter os factos: naquele ano de 1966 existiam
já várias pessoas58 espalhadas por várias regiões do mundo que
viviam experiências de maior colaboração apostólica com a
Companhia, movidas pelo desejo de qualquer coisa que não se
diz claramente o que é, nem se sabe como a vivem, de tal modo
é vaga a formulação. Sobressai porém a raiz dessa experiência:
desejam (um desejo discernido, supõe-se) que a Companhia
os una a si. Escrito assim, parece que movimento de atracção é
como que do exterior para o interior59. Com a prudência que
nestas coisas se impõe, a CG confia ao P. Geral o estudo de
como pode conseguir-se esta «vinculação e colaboração mais
estreita e íntima» (Idem). É a primeira vez que se fala em «vin-
culação» e o adjectivo «jurídica» não aparece.
Em que contexto surge este facto? Temos de ir às introdu-
ções dos decretos da Congregação e ao discurso que o Padre
Geral P. Arrupe proferiu à Congregação sobre a «Relação da

58
O texto da CG 31ª não acrescenta outros pormenores. Assim não
é possível, por esta fonte, saber se são homens ou mulheres, o seu estado
civil, se membros de comunidades de espiritualidade inaciana, assalariados
em obras da Companhia, etc.
59
A expressão «que os una a si» parece indicar que não está ainda
desenvolvida nesta época, pelo menos ao nível dos documentos, uma
consciência de reciprocidade neste tipo de união apostólica. Para isso
deveria também constar o desejo explícito da Companhia se unir a esses
leigos, como resposta recíproca ao movimento que surge do exterior.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 91

Companhia com o Laicado». Aí afirma que discursa movido pela


necessidade e actualidade do tema e porque este lhe «interessa
muito»60. É um discurso clarividente e que não perdeu, com
os anos, a sua acutilância na clareza de análise sobre a questão.
Afirma:
«É de suma importância o tema da nossa atitude para com
os seculares no apostolado da Companhia; mas talvez não fácil
de entender pela sua novidade e complexidade. Por outro lado
pode exercer um grande influxo na Companhia e na sua activi-
dade, já que abre novas portas às nossas obras e pode aconselhar
profundas transformações nas mesmas actividades apostólicas
ou nas estruturas tradicionais. […]. A solução para o problema
dos leigos, no que respeita à nossa atitude para com eles, pode
criar múltiplos problemas à nossa actividade. Mas devemos en-
frentá-los com audácia e encontrar-lhes solução, com o auxílio
divino»61.
Neste discurso o P. Arrupe introduz um aspecto-chave: a re-
lação do laicado com os Jesuítas não se joga apenas numa «pres-
tação de serviços avulso». A questão de fundo é a da integração
desta colaboração dos leigos nas estruturas da Companhia62.
Trata-se de discernir o caminho:

«Aqui está a questão: aos leigos que sob a nossa direcção


conceberam o ardente desejo de perfeição laical, deveremos
enviá-los a outra parte, isto é, aos institutos seculares para

60
ARRUPE, Pedro, «Discurso del P. General sobre “Relación de la
Compañía con el Laicado”», in: Congregación General XXXI. Documentos,
Editoral Hechos y dichos, Zaragoza 1966, 279.
61
Ibidem, 279s.
62
Cf. Ibidem, 280s.
92 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

que possam conseguir o seu ideal ou devemos prestar-lhes


nós mesmos a ajuda que pedem, ainda que introduzindo
novas formas?»63

A esta questão fulcral, a CG 31 respondeu encarregando o


Padre Geral de estudar como se poderia conseguir «esta vin-
culação e colaboração mais estável e íntima» (d.34), tendo em
conta as experiências existentes. Esta decisão será recuperada
pelos Jesuítas em 1995.
Procuremos agora clarificar o modelo de colaboração Jesu-
ítas-Leigos que parece desenhar-se destes documentos. Antes
de mais, há uma clara consciência do um novo fundamento
cristológico e eclesial para o protagonismo apostólico dos leigos
no mundo e na Igreja. Esse facto urge, obriga64 os Jesuítas a
esforçarem-se por reajustar, mudar, a sua atitude para com os
leigos.
Surpreende, contudo, que praticamente não utilize um
termo central – «missão» – para caracterizar o quadro da co-
laboração Jesuítas-Leigos. Não considera a partilha da missão
da Companhia nem a missão de Cristo65. Os termos usados

63
Ibidem, 281.
64
«A Companhia está obrigada por dever de serviço para com o
Laicado, e deve-o exercer segundo a mente do Concílio e dos Bispos»
(Ibidem, 279).
65
No conjunto formado pelos decretos 33 e 34 e pelo referido discurso
do P. Arrupe, usa-se em quatro situações o termo «missão»: 1) os leigos
têm parte própria na missão da Igreja; 2) os Jesuítas recebem ajuda dos
leigos para sentir mais vivamente a sua missão; 3) é preciso formar os leigos
para que eles possam cumprir a sua missão; 4) a fraternidade apostólica dos
Jesuítas com os Leigos está fundada na unidade da missão da Igreja.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 93

são, antes: «apostolado» ou «obras apostólicas». Mas enuncia-


-se um princípio eclesiológico fundamental: a fraternidade
apostólica dos Jesuítas com os Leigos está fundada na uni-
dade da missão da Igreja, o que pressupõe o Baptismo como
vínculo comum.
Que paradigma temos aqui? Parece subsistir ainda uma se-
paração de missões entre a Companhia e os leigos, se bem que
ambas estejam fundadas na missão da Igreja. Os leigos têm a
sua missão e a Companhia a sua. Os leigos desejam partici-
par mais intimamente nesse apostolado, da Companhia, no
«modo de sentir e actuar»66 com que os Jesuítas actuam no
mundo. Estão-se a colocar as bases mentais e teológicas para
uma partilha e comum laboração apostólica mais efectiva e
estruturada.
Procura-se rasgar caminhos pastorais a partir duma refle-
xão eclesiológica que estava ainda por fazer e amadurecer.
Nisto, como em tudo o mais, a vida antecipa-se à reflexão
teológica.

9.2. Da CG 31 à CG 34: mudanças profundas

A primeira coisa que chama a atenção quando se lêem os


documentos da CG 32 é o facto de, ao percorrer o índice te-
mático de todos os decretos, não se encontrar a palavra «leigo»
ou «colaboração»67. Não existe um decreto sobre a relação da
Companhia com os leigos. É um silêncio impressionante que

66
CG 31, d.33, n.7.
67
Os índices consultados são da edição COMPAÑÍA DE JESÚS,
Congregación General XXXII de la Compañía de Jesús, Editorial Razón y Fe,
Madrid 1975.
94 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

pode ter a sua explicação nas circunstâncias históricas que se vi-


veram durante esta congregação68. Contudo, a CG 32 elaborou
uma impressionante refontalização criativa acerca da missão da
Companhia, ligando intimamente fé e justiça, chegando a defi-
nir a missão do Corpo como luta, sob o estandarte da Cruz, no
serviço da fé do qual a promoção da justiça é parte integrante69.
Estar em missão é participar nessa luta70, qualquer que seja a
tarefa concreta na qual esta luta se possa concretizar.
A noção de missão está no centro da intuição carismática de
Inácio71, por isso o jesuíta é essencialmente um homem envia-
do a e com uma missão que realiza não sozinho mas «em com-
panhia», numa comunidade de amigos no Senhor – o Corpo
de Companhia universal – em comunhão. Missão que o jesuíta
realiza em amor, pobreza e em obediente humildade72.

A CG 32 ficou marcada por uma tensão profunda entre os Padres


68

congregados e o Papa Paulo VI a propósito da discussão da possível


extensão do 4º voto a todos os Jesuítas, incluindo o Irmãos. Este tema foi,
de facto, fulcral e a sua discussão terminou com uma ordem expressa do
Papa para que o assunto não fosse discutido. Recusava-se assim aos não
sacerdotes a profissão de quatro votos. Talvez tenha sido a importância
deste tema e o seu desenvolvimento a causa de uma certa saliência do
aspecto «sacerdotal» da Companhia de Jesus, com o respectivo silêncio
sobre a relação com os leigos.
69
CG 32, d.2, n.3 a n.9.
70
CG 32, d.2, n.3.
71
Decreto 2, n.13.
72
«Em humildade: sendo conscientes de que na Igreja e no mundo
há hoje muitas tarefas de grande valor e importância, que nós, como
sacerdotes e religiosos, inspirados por um carisma peculiar, não podemos
assumir. E inclusivamente naqueles trabalhos que podemos e devemos
tomar damo-nos conta de que devemos estar prontos a trabalhar com os
demais, com os cristãos, com os que têm outras crenças, com todos os
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 95

No decreto 4 sobre A nossa missão: ontem e hoje estão plas-


madas as linhas que centram todo o Corpo da Companhia na
missão: do olhar de Deus ao mundo nasce a missão de Cristo,
de onde nasce a missão comum dos cristãos, membros da Igreja
enviada a todos os homens73. Mas o grande critério jesuítico
de entrega à missão é a disponibilidade para serem enviados a
realizar tarefas concretas. É esta atitude de disponibilidade que
está na base do quarto voto ao Papa, sobre as missões.
A renovada compreensão que a Companhia de Jesus faz na
CG 32 da sua missão coloca as bases para o futuro enquadra-
mento (que irá ser dado pela CG 34) da relação de colaboração
com outros nessa mesma missão que é partilhada por todos os
cristãos.
A CG 33 também não acrescentou notas significativas ou
marcantes em relação à colaboração da Companhia com os
leigos. Em todo o decreto 1, praticamente o único, fala-se duas
vezes dos leigos. A última delas para reiterar ao Corpo universal
a ideia de que «de um modo especial devemos avançar numa
colaboração mais estreita com os leigos, reconhecendo e fo-
mentando a sua própria responsabilidade e vocação na Igreja e
no mundo. A experiência dos últimos anos ensina-nos o muito
que podemos contribuir […] e o muito que podemos receber
deles para fortalecer a nossa vocação e a nossa missão»74.
Pode ver-se o pouco que se avançou nos documentos pro-
duzidos pelas Congregações Gerais, entre 1966 e 1995, sobre

homens de boa vontade. Prontos a desempenhar um papel subordinado,


de apoio, anónimo. Prontos a aprender a servir, de aqueles mesmos a quem
servimos» (CG 32, d.2, n.29).
73
CG 32, d.4, n.13.
74
CG 33, d.1, n.47.
96 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

o tema da colaboração apostólica com os leigos. Quase como


se após a explosão de abertura gerada pelos documentos do
Concílio Vaticano II correspondesse um segundo movimento
de retraimento ou desconfiança. Contudo, a vida não parou. A
CG 34 irá abrir novos horizontes e introduzir um novo para-
digma na colaboração Jesuítas-Leigos.

10. A colaboração na missão na CG 34 e desde então


para cá

É na CG 34 que se dá uma mudança paradigmática, ao nível


dos documentos escritos, sobre o modo de conceber a missão
da Companhia de Jesus e o seu exercício na vida concreta.
O primeiro aspecto marcante seria este: a Companhia, mais
do que ter (com o respectivo possessivo implicado) uma mis-
são, serve uma missão: é servidora da missão de Cristo75. Serve
algo que não possui, de que não se pode apropriar, que antes
humildemente partilha com Cristo por pura graça do chama-
mento e do acolhimento do seu Senhor. É toda uma mudan-
ça radical. Dentro desta atitude, a própria existência de um
Decreto sobre a Colaboração com os leigos na missão (como
vimos, desde 1966 que não se fazia um decreto sobre a relação
com os leigos) destina-se a orientar o exercício da missão numa
«atitude de escuta e intercâmbio com os que serão companhei-
ros imprescindíveis no nosso serviço a Deus e à sua Igreja»76.
A missão da Companhia universal – o serviço da fé e promo-
ver a justiça que dela brota – recebida e partilhada é a missão

75
Cf. CG 34, d.1, n.1, n.3.
76
Cf. CG 34, d.1, n.1.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 97

da Igreja toda. Sendo um serviço ao Senhor Crucificado e Res-


suscitado e à sua missão, é complexa, mas única. Desde a sua
unicidade desdobra-se numa multiplicidade de ministérios77
ou formas78 que abrem a diversas dimensões de ser e fazer:
testemunho de vida, proclamação, conversão, inculturação,
criação de Igrejas locais, diálogo e promoção da justiça querida
por Deus79.
Faz parte integrante da missão e da sua credibilidade o modo
ou a atitude com que é realizada: ser feita em obediência, em
humildade e em pobreza, partilhando a vida dos pobres e sendo
capaz de realizar um acolhimento de Cristo sofredor e pobre
presente80. É a partir da atitude de partilha da única missão,
comum a todos, em atitude de recíproca colaboração a Cristo e
à Igreja, que se dá um novo enquadramento ao lugar e à parti-
cipação dos leigos (e dos religiosos, e dos Padres diocesanos) na
missão da Companhia81.

10.1. O Decreto 13 da CG 34 e as suas consequências

Como pano de fundo do decreto 13 sobre A colaboração


com os leigos na missão está toda uma teologia do laicado que,
entretanto, se foi desenvolvendo, apesar de se sentir ainda a
necessidade de uma maior reflexão eclesial sobre o tema.
Como linha principal deste documento encontra-se a certeza
de que os leigos têm, por direito e dever do seu estado e vocação,

77
Cf. CG 34, d.1, n.2.
78
Cf. CG 34, d.1, n.3.
79
Cf. Ibidem.
80
Cf. CG 34, d.2, n.7-13.
81
Cf. CG 34, d.13, n.3; d.26, n.15-17.
98 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

uma participação própria na missão de Cristo e da Igreja. Eles


são chamados por Jesus e têm uma missão a desempenhar que
ninguém pode realizar no seu lugar. A missão é intrínseca ao seu
ser e viver. O espaço e a actividade apostólica que desenvolvem
não são devidos, de raiz, nem à falta de vocações sacerdotais e
religiosas nem ao contexto cultural em que nos movemos. É
pela positiva – pelo seu valor missionário intrínseco – e não pela
negativa que os leigos se vão afirmando nas actividades apostó-
licas. Ao ganhar protagonismo apostólico, as leigas e leigos não
estão a «roubar» o lugar de ninguém nem estão a ocupar um
lugar indevido. A sua existência em atitude de serviço e o seu
labor apostólico, mesmo se vêm adjectivados como «missão dos
leigos», também, radicalmente, não lhes pertencem. É a missão
de Cristo, na qual participam, sob a orientação e o discernimen-
to da Igreja nas suas variadas instâncias.
A CG 34 tem na sua base a convicção profunda que o teste-
munho dos leigos no mundo, enquanto enviados por Cristo e
participantes da sua missão, é não só imparável como decisivo
para o futuro da Igreja82. Por isso, ao colocar-se ao serviço dos
leigos «na sua missão», na realidade, a Companhia de Jesus está
formulando, de modo criativo e inculturado, uma nova forma
de se colocar ao serviço de Cristo e, assim, de actualizar a sua
própria missão de servir a fé e promover a justiça. Os leigos já
não são vistos como adolescentes na fé83 mas sim como adultos

Cf. CG 34, d.13, n.1.


82

Expressão que foi usada por P. Arrupe na CG 31: «O laicado moderno


83

é como um adolescente: não é uma criança; mas também não é um


adulto; mas quer ser considerado e tratado como um adulto» (ARRUPE,
Pedro, «Discurso del P. General sobre “Relación de la Compañía con el
Laicado”», in: Congregación General XXXI. Documentos, Editoral Hechos y
dichos, Zaragoza 1966, 279).
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 99

e parceiros num labor comum pelo Reino ao serviço do mesmo


e único Senhor. Nesta reviravolta mental está grande parte das
causas porque ainda é difícil para muitos, Jesuítas e leigos, tra-
balhar como parceiros e ao mesmo nível.
Visto desde este posicionamento teológico, mais sentido faz
a abertura e a disponibilidade da Companhia a ser companhei-
ra de todos os que servem Cristo, cooperando com eles e abrin-
do-se à cooperação com eles dentro das suas obras apostólicas e
fora delas.

10.2. Um novo paradigma: cooperar numa missão comum

Trata-se de cooperar numa missão comum84. Comum não


porque seja o mesmo ser Jesuíta e ser religioso e/ou ser leigo.
Comum porque é una e complexa a missão de Cristo, desdo-
brável numa imensidade de dimensões e ministérios, com dife-
rentes modos de testemunhar o dom de Deus ao mundo.
A Companhia serve os leigos na sua missão e é servida por
estes na sua (da Companhia) missão, através da mútua dispo-
nibilidade para colocar em comum ser, saber e fazer, segundo a

84
No mesmo discurso de Howard J. Gray, citado anteriormente, faz-se
uma confidência interessante sobre a génese do Dec. 13 da CG 34. Afirma
que durante a produção do decreto, ao tentarem delinear o texto sobre a
participação laical, sentiam que lhe faltava qualquer coisa. Algo não batia
certo. E diz: «Nas conversas finais alguns diziam: nós estamos tratando
sobre o tema de os leigos nos ajudarem mas não é aí que está o futuro. É
se os leigos nos deixarão ou não a nós ajudá-los a eles. Essa é a Igreja do
futuro que, de muitos modos, tal como o documento delineia, será a Igreja
das leigas e dos leigos» (GRAY, Howard J., Lay-Jesuit Collaboration in
Higher Education: http://woodstock.georgetown.edu/publications/report/
r-fea68.htm).
100 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

identidade, o temperamento e a situação pessoal de cada uma


das partes. Ambas recebem, são enriquecidas, aprendem e são
necessárias para a realização mais plena, concreta e universal da
missão de Cristo.
É por isso que este movimento da colaboração é duplo: saída
desde as obras da Companhia para trabalhar em obras e asso-
ciações dirigidas pelos leigos85 mas também abertura à presença
de leigos em obras da Companhia e, sempre que oportuno e
necessário, em lugares de liderança86. Esta parceria na missão
implica a vivência da co-responsabilidade no discernimento
e orientação pastoral de obras e ministérios apostólicos. Isso
mesmo afirmou o P. Geral P. H. Kolvenbach, em 2004:

«Os Jesuítas precisam não só de ser amigos e companheiros


do Senhor e uns dos outros, precisamos de ser amigos e com-
panheiros dos nossos parceiros na missão. Esta reciprocidade
de presença pessoal é central para a nossa identidade de Je-
suítas. É a chave para cooperar uns com os outros na missão
que é requerida para o futuro»87.

Recolocada num quadro eclesiológico de co-responsabi-


lidade na missão comum de Cristo e da Igreja, toda uma
linguagem usada frequentemente surge agora necessitada de
uma nova compreensão. Os adjectivos possessivos, com que

Cf. CG 34, d.13, n.6, n.14-16.


85

Cf. CG 34, d.13, n.20.


86

87
Este discurso foi realizado no dia 7 de Outubro de 2004, na
Universidade de Creighton. KOLVENBACH, Peter Hans, «Cooperating
with each other in Mission: celebrating 125 years of Jesuit–Lay Partnership
in Omaha», in: CIS 107 (2004), 12.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 101

habitualmente os Jesuítas se referem aos seus trabalhos apos-


tólicos – à «nossa» missão e às «nossas» obras – têm, a esta luz,
uma outra amplitude e complexidade. É nesse sentido que o
P. Kolvenbach afirma ainda:

«Para que haja um parceria em igualdade, a questão deixa


de ser “Como podem as leigas e leigos assistir os Jesuítas nos
seus ministérios?” Uma nova questão surge: “Como podem
os Jesuítas servir as leigas e os leigos nos seus ministérios?”
Para que isso aconteça, os Jesuítas precisam de pensar na
“nossa” paróquia, “nosso” centro de retiros, ou na “nossa”
escola de um novo modo. É “nosso”, agora, referido a um
grupo mais vasto, porque é uma missão da qual todos nós
– Jesuítas e Leigos – somos co-responsáveis»88.

Esta mesma desapropriação tem de ser vivida e aprendida


pelos leigos. Os «seus» trabalhos apostólicos, a «sua» missão
laical é, em definitiva, também «nossa», é a missão de Cristo da
qual somos reciprocamente co-responsáveis numa comunhão
mútua, vivendo o envio desde as nossas identidades distintas89.
Como base para nova relação à missão está uma mudança
de paradigma mental. Há uma desapropriação do serviço pres-
tado, referindo-o a Cristo. Assim ele pode ser encarado como
algo não exclusivo, não pertença ou posse do servidor mas pode
ser vivido por todas as partes envolvidas como campo inclusivo.

88
Ibidem.
89
Cf. RAPER, Mark, Collaboration with Laity in Mission, Discussion
Paper for the Congregation of Provincials in Loyola, Spain, November
2005. O P. Raper, à época Provincial da Austrália, apresentou neste
documento de trabalho o estado da questão na sua província no que
respeita à colaboração Jesuítas–Leigos.
102 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

É um paradigma da inclusividade na missão, desde a distinção


dos agentes.
Tal inclusividade ajuda a compreender que se possa falar
da incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus.
Não porque os Leigos passem a fazer, formalmente ou insti-
tucionalmente, parte da instituição. Mas porque são incluídos
no Corpo Apostólico novo que é formado pela colaboração
na missão de Cristo. Neste sentido, há uma mútua e recí-
proca incorporação. O desenho legendado Modelo 3 procura
ilustrar o novo paradigma de missão desenvolvido a partir da
concepção do serviço co-responsável de todos à única missão
de Cristo.

Modelo 3 MISSÃO DE CRISTO

Religiosos

Não cristãos Clero


Incorporação
na missão
comum
PAPA
Não crentes

Institutos
Seculares
Leigos
Companhia
de Jesus
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 103

Pode, por isso, da parte da Companhia de Jesus, começan-


do a usar uma nova terminologia, ainda não muito divulgada
nem esclarecida90, falar-se do aparecimento de um novo sujeito
apostólico, em paralelo com uma nova relação à missão. Novo
sujeito porque já não são unicamente os Jesuítas os actores e
agentes da missão que Cristo lhes confia.
Essa missão é partilhada, realizada e avaliada em comum,
por um sujeito que é um grupo, uma comunidade que engloba
pessoas de todos os estados: Jesuítas, religiosas e religiosos, sa-
cerdotes diocesanos, leigos, não-cristãos e não-crentes91.
Contudo, uma colaboração ou missão comum implica que
cada pessoa colabore nela segundo um determinado perfil ou
grau. Há variados graus de envolvimento na missão. Esta va-
riedade de graus de colaboração – que não torna uns melhores
que outros mas antes é uma forma de responder a um chama-
mento do Senhor – ajuda a compreender o aparecimento de
um tipo especial de relação Jesuítas-Leigos: o vínculo jurídico
(ou associação jurídica) à missão ou a Associação.

90
As recomendações feitas pela Congregação de Procuradores
reunidos com o P. Geral Kolvenbach, em Loyola, em 2005, e tendo
em vista a próxima CG 35, no que respeita às relações Jesuítas-Leigos
pediram, entre outros aspectos, que se esclarecessem alguns aspectos
terminológicos (tais como «novo sujeito apostólico») e os diferentes tipos
de relações com os colaboradores. Cf. Carta do P. Geral aos Superiores
Maiores 2006/01.
91
Cf. IVERN, Francisco, «Al servicio de la vocación laical», in CIC 107
(2004), 22.
104 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

10.3. A situação particular: a união de leigos à Companhia


por um laço mais estreito

Dentro da colaboração Jesuítas-Leigos há ainda uma parti-


cipação com características próprias pelo grau de estabilidade
no compromisso a que ambas as partes se comprometem. É o
chamado Vínculo Jurídico ou Associação Jurídica com a Com-
panhia de Jesus.
É um apelo que tem vindo a ser sentido e discernido por
leigos já antes de 1966, como vimos. Trata-se de pessoas
leigas com grande heterogeneidade entre si (pelo estado de
vida, pela profissão, pela idade e formação, pelos interesses e
culturas de onde provêm). A ligação institucional provém de
um chamamento, discernido em conjunto com a Companhia
de Jesus, a uma entrega apostólica à missão de Cristo em
colaboração estruturada e assumida, com maior envolvimen-
to e estabilidade, do que a colaboração laical normalmente
envolve.
A característica principal desta opção apostólica é a de re-
querer uma verdadeira e efectiva disponibilidade para aceitar
ser enviado em missão, através de um diálogo e discernimento
com quem tem na Companhia de Jesus a tarefa de dar a missão.
Requer, por isso, a prestação real de um serviço, o assumir de
novas responsabilidades, o ser acompanhado no decorrer das
actividades, participar na avaliação e responder pelos resultados
em conjunto com a Companhia de Jesus.
Uma tal associação é adjectivada «jurídica» não porque te-
nha validade jurídica civil. Na verdade, o mais correcto será di-
zer que é uma associação apostólica de «tipo jurídico». O termo
jurídico faz contudo sentido, por um lado, porque o corpo le-
gislativo da Companhia de Jesus (as Normas Complementares)
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 105

acabaram por incorporar no número 31092, o reconhecimento


e a constituição formal de um especial «vínculo jurídico», es-
tritamente individual, de algumas pessoas para se alcançarem
finalidades apostólicas para ambas as partes93. Por outro lado,
procura expressar que o compromisso não é meramente oral
ou afectivo mas assumido de forma estável sob a forma de um
documento onde ambas as partes se comprometem de forma
estruturada e discernida, nessa parceria apostólica.
O carácter genérico desta declaração deixou uma grande
indefinição sobre o que é, deveria ser e como realizar, de facto,
a vinculação jurídica apostólica destes leigos e leigas. Para dar
alguma orientação e homogeneidade aos vários passos que cada
Província foi tendo de dar por si, ao sabor da Graça, o P. Geral
escreveu duas cartas aos Superiores Maiores da Companhia,
datadas de 1999 e 2003.
Nessas mesmas cartas são clarificados alguns aspectos que
podem ajudar a compreender melhor este compromisso. So-
bressaem os seguintes aspectos:

• Implica uma decisão estável, um compromisso estru-


turado e discernido em diálogo com os Superiores da

92
«A Companhia de Jesus considera como uma forma de colaboração
dos leigos na missão, entre outras possíveis, a constituição de um especial
“vínculo jurídico” pessoal de algumas pessoas leigas, estejam ou não
associadas entre si, que as una estreitamente com ela, em ordem a conseguir
determinadas finalidades apostólicas. Recomenda-se que, seguindo
as orientações dadas pela Congregação Geral, se façam experiências
neste sentido e que se avaliem no futuro» (Normas Complementares da
Companhia de Jesus, n. 310).
93
Cf. NC, 310.
106 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Companhia e requer uma disponibilidade real para


servir a missão de Cristo.
• Não é entrada no Corpo Institucional mas é um com-
promisso institucional. É estritamente individual.
• Não é vinculação a uma pessoa, a um trabalho específi-
co e único, a uma terra. É fruto de uma abnegação de si
que, por sua vez, é participação da Cruz de Jesus e está
na base da disponibilidade para o envio.
• Não é uma proximidade devocional à Companhia
de Jesus e, muito menos, a algum ou alguns dos seus
membros, comunidades ou obras. É uma entrega a um
trabalho específico, discernido e recebido pelas mesmas
vias de recepção de missão que tem qualquer Jesuíta.
É um trabalho concreto que requer formação prévia e
permanente, bem como avaliação regular.
• Destina-se a pessoas com certa maturidade (humana
e espiritual) e com um discernimento vocacional «tra-
balhado», de clara espiritualidade inaciana e marcadas
pelos EE como forma de olhar e ser olhadas por Deus e
o mundo.
• Abrange variados estados de vida: casados (o casal ou só
um cônjugue), solteiros, viúvos.
• Esta relação apostólica estruturada não implica nenhum
tipo de votos ou promessas devocionais ou quaisquer
outras formas de compromisso pessoal com Deus. Con-
tudo, existem pessoas em distintos países, que se sentiram
chamadas a viver esta disponibilidade apostólica junta-
mente com a profissão privada de votos ou conselhos
evangélicos. Ainda aqui, a variedade é grande. Fique cla-
ro, contudo, que não é a existência ou inexistência destes
votos que caracteriza a opção apostólica em causa.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 107

Por todas estas circunstâncias é uma opção pela pobreza de


Cristo e em pobreza: ausência de uma maior estruturação e clari-
ficação sobre o que a Companhia pretende dos leigos associados,
a indefinição e carácter experimental da situação, a consciência
das resistências e dificuldades internas e externas, etc.

11. Sucessos, dificuldade e desafios da co-responsabilidade


na missão

As últimas duas décadas, durante as quais a colaboração


Jesuítas-Leigos se tem intensificado, mostram como primeira
meta alcançada uma maior maturidade, de ambas as partes,
acerca da importância e identidade do serviço a Jesus e ao
mundo. Para além desta maturidade, os leigos receberam
formação específica (espiritual, humana e profissional) e a
possibilidade de uma dedicação efectiva (em muitos casos re-
alizadora) ao trabalho apostólico. Por sua parte a Companhia,
graças à capacidade de se colocar quer em atitude de serviço
aos leigos quer em atitude de acolhimento à sua disponibili-
dade, tem visto expandir o alcance, a qualidade e eficácia real
de muitas das suas obras próprias e de outras em que colabora
fora dos seus limites institucionais.
Creio, contudo, que o grande sucesso desta realidade nas-
cente reside na experiência mesma da comunhão com o outro,
o diferente: o outro que é leiga e leigo, que é Jesuíta novo ou
com mais idade, o outro que é religiosa ou religioso. Um dos
alcances notáveis deste novo modelo apostólico é, precisamen-
te, a desapropriação – difícil e lenta – do nosso próprio centro:
108 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

«sair do nosso próprio amor, querer e interesse»94. O serviço de


Deus ao mundo não se mede, não pode nunca ser apenas me-
dido, por critérios de eficácia desligados da avaliação do modo
como se opera. Não basta fazer, é preciso saber como fazer.
Nem todos os modos servem o Reino de Deus. O modo de agir
requerido nesta colaboração é a comunhão. A atitude de comu-
nhão, ela própria evangélica e apostólica, faz já presente uma
certa presença do Cristo que todos somos chamados a levar e
tornar próximo. É a comunhão que somos todos chamados a
anunciar. É a comunhão que nos salva. É ela que nos resgata. É
ela o futuro que nos espera quando Deus nos introduzir, como
Corpo Uno do Filho, na consolação eterna.
A partir deste critério de avaliação – a qualidade da comu-
nhão conseguida no exercício da missão – tem ainda mais sen-
tido olhar e agradecer o enriquecimento, humano, técnico, es-
trutural, de amizade e competência, que estas colaborações têm
suscitado um pouco por todo o mundo95. Os Jesuítas ganham
um maior estímulo no exercício da sua missão, ao mesmo tem-
po que ganham uma humildade prática ao ver a generosidade
de tantos leigos e leigas que dispõem de si e dos seus bens de
forma tão radical ou, ainda, apresentam uma formação e pre-
paração técnica ou profissional que supera a sua própria.
Quanto aos leigos, recebem por esta via uma real possibi-
lidade de enriquecimento (formativo, eclesial, comunitário),
a confiança e o reconhecimento da importância do seu com-

«Porque pense cada um que tanto aproveitará em todas as coisas


94

espirituais, quanto sair de seu próprio amor, querer e interesse» (EE, 189).
95
Cf.RAPER, Mark, Collaboration with Laity in Mission, Discussion
Paper for the Congregation of Provincials in Loyola, Spain, November
2005.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 109

promisso na missão de Cristo, partilham das riquezas da vida


apostólica das comunidades religiosas, a possibilidade de pôr
a render os seus talentos no lugar onde se sentem melhor pre-
parados e motivados. Fazem ainda – e isto é muito importante
– a experiência de serem considerados ao mesmo nível (dentro
da sua identidade própria e diferente), eclesial e apostolica-
mente falando, na relação com um Corpo sacerdotal, numa
Igreja hierárquica que tem muitos mais séculos e hábitos de
relegar os leigos para uma posição menor do que de os tratar
como parceiros.
Toda esta novidade tem, como tudo o que é humano, o seu
lado de dificuldades e tensão. Por parte da Companhia de Jesus
desde logo, onde confluem no mesmo espaço das Províncias e
Comunidades pessoas de todas as idades, formações e modos
de pensar, é inevitável que nem todos sejam tão favoráveis a
estas transformações. Depois, ainda, porque há uma tradição
dentro da Companhia de verdadeira qualidade, rigor e eficácias
pastorais. Como consequência, alguns Jesuítas (falo de atitu-
des gerais e nem sequer limitadas ao espaço português) estão
mais habituados e preparados para mandar e liderar do que
para colocar em comum, discernir em conjunto com outros
e aceitar que um trabalho de colaboração é geralmente mais
lento e sinuoso do que quando uma só pessoa decide tudo por
si. Deixar de ser líder para ajudar outros a sê-lo é uma mudança
exigente que, sabemo-lo todos, não vai sem a graça de Deus e
sem uma profunda abnegação pascal. Há também o medo, por
vezes inconsciente, de que as leigas e leigos venham «invadir»
a Companhia de Jesus, tirando trabalho e lugares de destaque
ou serviço aos que, afinal, são o Corpo Apostólico jesuítico,
juridicamente falando.
110 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Por outro lado, a partilha de uma missão comum exige uma


firmeza renovada na identidade de cada parceiro. Pode haver
o perigo de certo esbatimento das identidades em relação.
Torna-se necessária uma releitura da identidade Jesuíta e leiga
neste novo contexto. Com abertura para incorporar novas di-
mensões dessa identidade.
Acresce ainda que a colaboração na missão não é meramente
espiritual: implica espírito e corpo. O que significa que o es-
paço físico das casas, comunidades, cúrias, universidades, etc.,
passa a ser cada vez mais um espaço não exclusivo aos Jesuítas
mas também partilhado de algum modo com os seus parceiros.
Surgem as reuniões, os almoços, as viagens em conjunto e todas
estas coisas exigem estruturas, coordenação, etc., nem sempre
fáceis de realizar e coordenar.
Estas pessoas querem acompanhar activamente a missão da
Companhia e pedem para ser acompanhadas e integradas nos
processos de discernimento e avaliação dos trabalhos que rea-
lizam juntas. Todo este diálogo implica um exigente diálogo
de sensibilidades e disponibilidades materiais. Também a nível
económico, esta colaboração tem os seus custos. A colaboração
com leigos em algumas tarefas nem sempre poderá ser gratuita.
Contudo, as maiores dificuldades poderão situar-se, por
parte da Companhia, ao nível das necessárias mudanças nas
relações de domínio, liderança e poder a que muitos Jesuítas
estão habituados. Por parte dos leigos, as maiores dificuldades
poderão estar na falta de formação específica em algumas áreas
(nomeadamente teológicas), em insegurança em agir sem ser
sob a orientação pastoral e as respostas de fé dadas por outros
e sem ter as certezas todas para o caminho apostólico por onde
avançam.
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 111

Dentro destas dificuldades poderia contar-se também a falta


de objectivos claros daquilo que se pretende com algumas co-
laborações: por exemplo, no caso dos Leigos Associados juridi-
camente. O silêncio, quando prolongado, às vezes de ambas as
partes, poderá ser entendido como frieza, desinteresse ou um
certo mal-estar institucional. Também é verdade que há expe-
riências que não resultam por uma variedade de motivos. Esse
é um elemento integrante da vida em todas as suas dimensões
e há que prestar atenção a estes casos e avaliá-los com toda a
atenção.
Parece, no entanto, ser opinião das Províncias que se têm
aventurado a dar passos na colaboração com os Leigos na mis-
são96 que o resultado global é francamente positivo e as experiên-
cias positivas ultrapassam largamente as situações negativas.

12. Quadro final: Lava-pés e contemplação para alcançar


amor

Desde os primeiros momentos das origens do carisma ina-


ciano, o chamamento ao serviço de Cristo e com Ele é nota
marcante da Companhia de Jesus. Um serviço feito sob o sinal
da Cruz e da Consolação Pascal. O lava-pés de Jo 13, 1-17
dá-nos uma composição de lugar para situar todo o serviço
prestado com Jesus: dá-nos uma acção concreta a contemplar
e o modo como ela é realizada. Este momento do mistério da

96
Foi possível aceder a testemunhos de províncias tão distintas como
Brasil Central, Austrália, Castilla, Bética, Oregon, Grã-Bretanha, Portugal
que, no geral, fazem uma avaliação positiva da sua colaboração com leigos,
apesar de serem experiências relativamente recentes.
112 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

entrega de Jesus por nós oferece-nos um referente para toda a


vida cristã.
Creio que esta imagem é particularmente válida no tema
da colaboração Jesuítas-Leigos. Temos todos de voltar a este
mistério uma e outra vez. E, talvez, aceitar que é Ele quem
nos lava primeiro e que Ele está no outro: no Jesuíta como no
Leigo. Nos religiosos como nos Padres diocesanos. «Se eu não
te lavar, não terás parte comigo» (Jo 13, 9) – diz Jesus a Pedro.
É sempre difícil aceitar que os outros nos lavem. Mais difícil é
reconhecer neles a presença de Jesus. É este mistério que temos
de trazer para a nossa comunhão apostólica na missão comum.
Converter o olhar, o coração para poder oferecer o corpo que
somos e temos a Cristo, no outro. Sabendo que Ele nunca nos
irá tirar o lugar nem a vez de O servir.
Jesuítas e Leigas(os) e religiosas(os) e padres diocesanos,
aceitando ser servidos uns pelos outros, servindo uns aos ou-
tros, aceitando ver no outro Jesus realizar uma comunhão com
a qual serve Deus no mundo.
A mesma comunhão na missão pode ser enquadrada e
orientada para outro horizonte de leitura: a contemplação para
alcançar amor. É esta a proposta que nos é dada, no final dos
EE, a fim de a levarmos à vida em todos os momentos e activi-
dades da nossa existência.

«O amor deve-se pôr mais nas obras que nas palavras»; «con-
siste na comunicação recíproca, a saber, em dar e comunicar
a pessoa que ama à pessoa amada o que tem ou do que tem
ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é amada à pessoa que
ama; de maneira que, se um tem ciência, a dê ao que a não
tem, e do mesmo modo quanto a honras ou riquezas; e assim
em tudo reciprocamente, um ao outro» [EE 230, 231].
A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 113

E «considerar como Deus trabalha e opera por mim em to-


das as coisas criadas sobre a face da terra, isto é, procede à
semelhança de quem trabalhasse» [EE 236].

Colaborar na missão é também amar ao Senhor mais em


obras do que em palavras, na comunicação recíproca do que
temos e somos, podemos e fraquejamos, certos de que essa
comunhão produzirá algo novo mas belo. Colaborar na única
missão dando reciprocamente uns a outros, o que tem ao que
não tem. Partilhando êxitos e abundância, a falta e a carência.
Também isso é amor feito obra. E nessa obra contemplar como
Deus opera por nós, em todas as coisas criadas à face da terra.
Contemplar como Deus trabalhou para nos fazer chegar aqui.
E ousar levantar os olhos para o horizonte, para os trabalhos
que se avizinham. Sem medo. Porque a comunhão é sempre
criadora de vida.
115

A COMPANHIA DE JESUS
E O BINÓMIO FÉ-JUSTIÇA
Hermínio Rico, S.J.

«Fé e justiça», este slogan, ou, numa fórmula menos con-


densada, «o serviço da fé e a promoção da justiça», tornaram-se
expressões habituais, regulares, quase omnipresentes, no dis-
curso da Companhia de Jesus – e também sobre a Companhia
de Jesus – desde 1975, ano da Congregação Geral 32. Foi aqui,
no seu posteriormente famoso «Decreto IV», que se cunhou
esta expressão que, de imediato, deu muito que falar e, se ca-
lhar, ainda continua a dar.
Sobre ela se concentraram e polarizaram imediatamente a
maioria das valorizações da evolução e do estado da Compa-
nhia de Jesus, vindas tanto de dentro dela mesma, como de
fora, feitas por terceiros, mais ou menos interessados, mais ou
menos bem informados. Todos se focavam neste ponto emble-
mático da Companhia contemporânea, seja para o condenar,
seja para o enaltecer. Dum lado, opunham-se os que resistiam
ou rejeitavam este desenvolvimento, por o acharem algo peri-
goso, ideologicamente demasiado marcado, para lá dos limites
aceitáveis do apostolado duma ordem religiosa, etc. Do outro,
os que viam aí uma recuperação do carisma original, uma pro-
posta mais adequada para a vivência do Cristianismo, sugestiva
até para um novo posicionamento da Igreja nas sociedades e no
mundo.
É normal que obtivesse grande atenção dentro da Compa-
nhia, mas porquê esta notoriedade fora dela? Os Jesuítas não
foram os primeiros a falar desta temática, é importante que
116 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

se diga. Mas, como é frequente, acabaram por ser eles a dar


nas vistas e a chamar a atenção, sobretudo por causa da acção,
claramente inspirada nesta doutrina, que desenvolveram nos
anos 1970, na América Latina. O seu envolvimento directo
nos movimentos eclesiais e sociopolíticos ligados à produção da
teologia da libertação e à acção pastoral e de consciencialização
social inspirada por ela deram proeminência ao trabalho dos
Jesuítas junto dos pobres e às suas actividades em prol da jus-
tiça, sobretudo porque, dum modo geral, até aí, associava-se a
Companhia de Jesus com apostolados que serviam primordial-
mente as classes dominantes. O impacto mediático das opções
muito radicais de certos destes jesuítas (mesmo se rapidamente
ex-jesuítas) e o facto de alguns terem acabado mártires por cau-
sa do seu envolvimento nestas lutas ajudaram à descoberta e à
notoriedade deste Decreto IV.
Nesta exposição, pretende-se apresentar o que diz esse docu-
mento de 1975, com o recurso à leitura dos trechos mais signi-
ficativos dele. Tratar-se-á, em seguida, da análise da sua ligação
à inspiração original da Companhia de Jesus e aos antecedentes
desenvolvimentos teológicos na compreensão da missão social
da Igreja vindos do Vaticano II. Finalmente, considerar-se-ão
os desenvolvimentos propostos pelas Congregações Gerais 33 e
34 (sobretudo esta) sobre a doutrina do serviço da fé e da pro-
moção da justiça.

1. O Decreto IV da Congregação Geral 32

Como é óbvio, para perceber a Congregação Geral 32, im-


porta olhar a situação da Companhia de Jesus nessa altura, es-
pecialmente desde a Congregação anterior, a 31, que tinha tido
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 117

lugar em 1965-66, mesmo no final do Concílio Vaticano II. Os


dez anos a seguir foram marcados pelas tensões do pós-concílio:
aqueles que achavam que as coisas deviam acelerar e andar ain-
da mais para a frente começavam a sentir-se frustrados; os que
queriam abrandar ou travar o processo começavam a recuperar
poder de influência. Mais ainda, foi uma década de experiência
dramática e traumática na Companhia: uma queda abrupta
das vocações, um enorme número de jesuítas, sobretudo entre
os mais jovens, a deixar a vida religiosa. Chega-se a 1975 com
uma grande crise de identidade: «Quem somos nós? Para que
somos nós? Qual é a nossa razão de ser e a nossa missão no
mundo e na Igreja de hoje?» Estas perguntas sobre a identidade
e a missão da Companhia de Jesus eram as questões mais vivas
e foram lançadas à Congregação Geral. Os dois decretos mais
emblemáticos que dela saíram assumiram esses desafios: o De-
creto II, «O jesuíta hoje», e o Decreto IV, «A nossa missão nos
dias de hoje».
Se é claro o que deu origem às perguntas, importa também
indagar donde veio a inspiração para as respostas, sobretudo
naquilo que tiveram de mais inovador, inesperado, nomea-
damente a formulação da missão actual da Companhia em
termos do serviço da fé e da promoção da justiça.
Por detrás de todo este processo, há uma figura jesuíta muito
importante, o Padre Pedro Arrupe, eleito geral em 1965. O seu
papel pessoal é determinante. O seu biógrafo, Pedro Miguel
Lamet, considera este ponto da relação entre a fé e a justiça «a
grande opção», uma opção que ele foi maturando durante longo
tempo, e remete muito do impulso para este avanço da Com-
panhia à influência pessoal deste Geral, basco de origem como
Santo Inácio. Foi algo em que a sua experiência e o seu pensar
pessoais influenciaram decisivamente a Companhia toda.
118 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Em termos mais práticos, o influxo dos jesuítas que traba-


lhavam na América Latina nesta altura, muitos deles missio-
nários enviados das províncias espanholas, terá sido também
determinante.

A fórmula

O Decreto IV, à questão qual é a nossa missão nos dias de


hoje, responde concisamente:

A missão da Companhia de Jesus, hoje, é o serviço da fé, do


qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta
enquanto faz parte da reconciliação dos homens, exigida
pela reconciliação dos mesmos com Deus (2).

A formulação define a missão da Companhia hoje. É impor-


tante esta qualificação temporal. É uma resposta ao presente,
aos sinais dos tempos, à realidade do mundo como ela estava a
ser vista em 1975. Essa missão é definida como «serviço da fé,
do qual...». A missão é o serviço da fé como sempre foi, mas,
hoje, percebe-se como «uma exigência absoluta» desse serviço
da fé a promoção da justiça.
É preciso ainda ter em conta que o decreto não é sobre a jus-
tiça, ou sobre promoção da justiça. É sobre a missão dos Jesuítas
no mundo de hoje, sobre o modo como a tarefa de evangeliza-
ção que define a natureza e missão da Companhia, o anúncio de
Jesus Cristo, exige ser realizado no contexto actual. O resultado
é fruto de exercício de discernimento sobre a missão, feito pela
atenção aos sinais dos tempos, no confronto entre aquilo que
é o carisma da Companhia, o seu fim, a sua tradição, por um
lado, e as realidades presentes que os jesuítas espalhados por
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 119

todo o mundo enfrentavam. Neste exercício de discernimento


descobre-se, ilumina-se e torna-se incontornável este nexo fun-
damental entre fé e justiça:

Não há, por conseguinte, promoção propriamente cristã da


justiça integral sem um anúncio de Jesus Cristo e do misté-
rio da reconciliação que Ele levou a bom termo. É Cristo,
de facto, quem abre o caminho a esta libertação total e de-
finitiva, à qual o homem aspira no mais íntimo do seu ser.
Inversamente, não há verdadeiro anúncio de Cristo, não há
verdadeira proclamação do seu Evangelho, sem compromis-
so decidido de promover a justiça. (27)

Basicamente, o que percebem os Jesuítas nessa altura é que


não há verdadeiro anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, se
não se faz, ou não se procura fazer, algo pela promoção da jus-
tiça neste mundo em que se vive.
Donde vem este nexo indissociável? Agora, teologicamente
vamos procurar fundamentos. Esta interpenetração não é mais
do que um corolário da união entre o amor de Deus e o amor
do próximo, algo que está claríssimo no Novo Testamento,
pelo menos:

Não há conversão autêntica ao amor de Deus sem conver-


são ao amor dos homens e, consequentemente, às exigências
da justiça. A própria fidelidade à missão apostólica requer,
portanto, que proponhamos a salvação cristã integral, quer
dizer, que, em primeiro lugar, devemos introduzir os ho-
mens no amor do Pai e, por Ele, no amor do próximo e da
justiça. A evangelização é proclamação da fé que opera o
amor aos homens: não se pode realizar a sério sem promo-
ção da justiça. (28)
120 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A «fé que actua pelo amor», como diz a Carta aos Gálatas
(5, 6), não se pode anunciar a sério sem promoção da justiça,
ou então transforma-se em palavras vazias.
Fundamentação bíblica há muita mais. Basta lembrar a pa-
rábola do Bom Samaritano (Lucas, 10), a parábola do juízo fi-
nal em Mateus, 25, a 1ª Carta de S. João 4, 20 («aquele que não
ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem
não vê»), a Carta de S. Tiago, etc.

Serviço presbiteral da fé

E continua a ficar claro que a missão da Companhia de


Jesus é o serviço da fé, o anúncio de Jesus Cristo. Não se
trata de deixar a evangelização como fim primeiro da acção
da Companhia, da sua natureza, portanto da sua identidade
e missão. A missão da Companhia continua a ser espiritual,
«presbiteral», não uma missão de assistente social ou duma
ONG...

A missão da Companhia hoje é serviço presbiteral da fé,


quer dizer, tarefa apostólica destinada a ajudar os homens a
abrirem-se a Deus e a viverem segundo todas as dimensões e
exigências do Evangelho. (18)

No entanto, é claro que entre estas exigências do Evangelho


resplandece dum modo particular, nos tempos de hoje, a justi-
ça, o respeito e a promoção da dignidade humana.

Neste sentido, o serviço presbiteral da fé inclui, como parte


integrante, a promoção da justiça. (18)
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 121

Este qualificativo «presbiteral» chama a atenção para o facto


de os Jesuítas não deixarem, agora, de ser religiosos e padres,
para se transformarem em sociólogos, politólogos, activistas so-
ciais. É de dentro do seu serviço presbiteral ao Evangelho, daí,
dessa essência, da exigência que o anúncio da Boa Nova põe,
que a necessidade da promoção da justiça sai.
Portanto, se o serviço da fé continua a ser primordial, vê-se
agora mais claramente que a promoção da justiça dimana como
exigência absoluta desse anúncio do Evangelho, é particular-
mente indispensável nas condições do mundo de hoje.
Até porque – e aqui faz-se a ligação com outro aspecto im-
portante da definição da missão da Companhia, o mandato
transmitido por Paulo VI, na Congregação 31, de combater o
ateísmo – a injustiça, ou a indiferença perante a injustiça, cons-
titui um dos grandes obstáculos à fé. Duma dupla maneira:
muita gente encontra tropeço para acreditar ao confrontar-se
com as realidades do mal e da injustiça no mundo; e muita
outra gente põe em causa a credibilidade do anúncio cristão
precisamente pela falta de compromisso pela justiça, ou por
um pactuar pouco incomodado, pelo menos tácito, com estru-
turas de injustiça. Essa desilusão ou acusação promove ou, pelo
menos, ajuda a suportar o ateísmo. A insensibilidade para a in-
justiça é um dos grandes obstáculos à fé. Também o ateísmo se
alimenta da injustiça. Promover a justiça é selo de credibilidade
para o anúncio da fé.
Em termos que não estão no Decreto, o que está em causa é
tomar-se consciência que anunciar-se o Céu, só, e preparar as
pessoas para o Céu, só, não chega. É pouco credível. Ninguém
consegue, hoje em dia, ficar à espera apenas da outra vida. O
Céu, o Reino de Deus, não pode esperar, tem que se começar a
construir aqui, já. Temos que começar de imediato a promover
122 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

os valores que são próprios dessa experiência última que nos


está prometida. A promoção da justiça

é a condição da fecundidade de todas as nossas tarefas apos-


tólicas, em particular se queremos ser coerentes no combate
contra o ateísmo. (29)

Por isso,

A promoção da justiça é parte integrante da evangelização.


(30)

Também por uma questão de credibilidade. O anúncio evan-


gélico ganha força se o que se diz está também, ao mesmo tempo,
a ser posto em prática. Mais uma aplicação da frase mais ouvida
hoje aqui: «o amor consiste mais em obras do que em palavras».
No fundo, trata-se de entender a evangelização numa nova
luz, implicando necessariamente e sempre a luta pela justiça.
Não se pode anunciar com coerência e eficácia o Reino dos
céus sem empenhamento em construir o reino já na terra.

o anúncio evangélico (...) será melhor ouvido se for acompa-


nhado dum compromisso efectivo pela promoção da justiça
e pela antecipação do Reino que há-de vir. (41)

Esta é a grande constatação e a directiva de maior alcance


traduzida pelo Decreto IV.

Factor integrativo de todos os apostolados

Uma outra chamada de atenção. Não se trata de eleger


um novo campo de apostolado, ou sequer de dar prioridade
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 123

particular a um sector concreto da actividade apostólica da


Companhia de Jesus. O que este decreto faz é colocar toda
a missão da Companhia, todo e qualquer apostolado, toda e
qualquer tarefa realizada por jesuítas ou instituições da Com-
panhia de Jesus, sob esta obrigação intrínseca de promover a
justiça.

A promoção da justiça para nós não constitui somente um


campo apostólico como tantos outros, o do apostolado social;
deve ser uma preocupação de toda a nossa vida e constituir
uma dimensão de todas as nossas tarefas apostólicas. (47)

O Decreto 2 da mesma Congregação 32 diz isto ainda mais


claramente:

Mais, o serviço da fé e a promoção da justiça não podem ser


para nós simplesmente um ministério entre outros. Deve ser
o factor integrativo de todos os nossos ministérios; e não só
dos nossos ministérios mas da nossa vida interior como in-
divíduos, como comunidades, como fraternidade universal.
É isto que a nossa Congregação quer significar com uma
escolha básica. É a escolha que subjaz e determina todas as
outras escolhas que se vão incorporar nas suas declarações e
directivas. (9)

O serviço da fé e a promoção da justiça implicada por esse


serviço são algo constituinte, essencial, constitucional, de tudo
aquilo que é jesuíta, a começar em cada jesuíta e a terminar
nas instituições e na Companhia toda. Trata-se não de meras
opções apostólicas ao nível da acção, mas da descoberta de di-
mensões transversais a toda a missão da Companhia, presentes
necessariamente em todos os apostolados:
124 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A promoção da justiça, a apresentação da nossa fé e o enca-


minhamento para o encontro pessoal com Cristo constituem
(...) dimensões constantes de todo o nosso apostolado. (51)

É, assim, um foco comum para centrar a acção de todo o


jesuíta. Cada jesuíta deve viver o seu compromisso apostólico,
qualquer que seja a forma que ele assuma, faça o que estiver a
fazer, mas em tudo o que estiver a fazer,

tendo sempre diante dos olhos, como objectivo único e


constante, o serviço da fé e a promoção da justiça. (7)

Isto traz consigo uma exigência para toda a Companhia.


Não que todos se dediquem ao apostolado social, mas que to-
dos, em todos os sectores de apostolado, levem a sério a solida-
riedade com os pobres, opções de estilo de vida que aproximem
dos pobres e façam caminhar ao lado deles (ver 50). Não é só
para alguns, é para todos.

A solidariedade com os homens, que levam uma vida difícil


e estão, colectivamente, oprimidos, não pode ser assunto de
alguns jesuítas apenas. É solidariedade que deve marcar a
vida de todos, tanto no plano pessoal como no comunitário
e até institucional. Impor-se-ão mudanças nas nossas formas
e estilos de vida. (48)

Acção sobre as estruturas

O Decreto IV faz uma revisitação das Constituições, na sua


parte VII e, na medida em que caminha para uma maior con-
cretização, propõe uma clarificação dos tradicionais critérios
principais de discernimento da missão da Companhia, da esco-
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 125

lha de ministérios: a prioridade ao mais universal, à necessidade


maior. Fá-lo à maneira duma questão posta ao próprio pensar
de Inácio:

Para a maior glória de Deus e a salvação dos homens, queria


Inácio que os seus companheiros fossem para onde se espe-
rasse um bem mais universal e para onde vivessem aquelas
pessoas que, votadas ao abandono, se encontrassem em
maior necessidade. Mas onde se encontra hoje a necessidade
maior? Onde se encontra a esperança dum bem mais uni-
versal? (39)

Isto tanto em termos da evangelização, como em termos do


maior serviço às pessoas concretas. Como

as estruturas sociais (...) contribuem para moldar o mundo


e até o homem (...) a acção para transformar essas estrutu-
ras, em vista da libertação tanto espiritual como material do
homem, fica assim, para nós, estreitamente ligada à obra da
evangelização. (40)

Há uma nova sensibilidade, um olhar desperto para um tipo


de injustiça que não se combate só por virtudes individuais:

injustiça não só entre pessoas, mas também encarnada nas


instituições e estruturas sócio-económicas e políticas. (6)

É muito típico daqueles anos acreditar fortemente que tudo


se muda mudando primordialmente as estruturas sociopolíti-
cas, embora se abrissem já qualificações. Veremos como mais
tarde tudo é mais matizado.
126 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A acção sobre as estruturas é indispensável, mas não pode


tornar-se também unilateral por aí.

Num mundo em que hoje se conhece a força das estruturas


sociais, económicas e políticas, em que se conhecem também
os seus mecanismos e leis, nele não pode o serviço evangélico
deixar de exercer acção adequada sobre tais estruturas. (31)

Mas não chega:

Ao mesmo tempo, hoje como ontem, não basta – ainda que


seja muito necessário – trabalhar na promoção da justiça
e na libertação do homem só no plano social ou no plano
das estruturas. A injustiça deve ser atacada por nós nas suas
raízes, que estão no coração do homem. Precisamos portan-
to de trabalhar na mudança das atitudes e tendências, que
geram injustiça e alimentam estruturas de opressão. (32)

Concluindo esta parte, esta é a definição da missão da Com-


panhia, para hoje, dada pela Congregação Geral 32, no seu De-
creto IV. Mas é isto novo? Trata-se de uma invenção dos finais
do século XX. É uma nova Companhia, como alguns que não
se reviam nestas novas formulações a acusaram de ser, ao ponto
de terem tentado conservar separadamente a Companhia «ve-
lha», deixando esta «nova» seguir os seus caminhos sem eles?

2. Mais que novidade, regresso às fontes

Não é novo na Companhia. É dizer outra vez o mesmo,


numa forma que faz sentido e responde às condições de hoje.
Não é inflexão, mas aggiornamento: volta às fontes, à inspiração
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 127

original do carisma e do fim da Companhia, em conjunto com


uma atenção aguda às necessidades do nosso tempo. O próprio
decreto diz, logo no início, isso mesmo:

Foi sempre esta a missão da Companhia, embora em moda-


lidades diferentes; mas hoje reveste sentido novo e urgência
muito especial, devido às necessidades e aspirações dos ho-
mens do nosso tempo. A esta luz, queremos considerá-la com
um olhar novo. (3)

A prática apostólica dos primeiros jesuítas é disso prova. O


apostolado social esteve presente desde sempre, não em lingua-
gem de transformação das estruturas, o que seria anacrónico,
mas facilmente discernível em iniciativas concretas que toma-
ram. Fazendo apenas referência, sem desenvolver nem explicar,
por exemplo: a preocupação de reforma social dos costumes
que Inácio teve na sua visita a Loiola antes de seguir para Itália;
o que os primeiros jesuítas faziam no norte de Itália em 1538.
As obras de misericórdia (corporais também!) estiveram sempre
muito presentes no dia-a-dia apostólico da Companhia nascen-
te, até mesmo como mandato para aqueles que são enviados
como peritos teológicos para o Concílio de Trento...

Na Fórmula do Instituto

Os ministérios típicos da Companhia, como são definidos


pela Fórmula do Instituto [1550], agrupam-se em três áreas: o
ministério da palavra; os ministérios sacramentais, com espe-
cial ênfase na confissão; e, finalmente, as obras de caridade, as
obras de misericórdia espirituais e, sobretudo, corporais.
128 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

[A Companhia] foi instituída principalmente para a defesa


e a propagação da fé e o aperfeiçoamento das almas na vida
e na doutrina cristãs, por meio de pregações públicas, lições
e qualquer outro ministério da palavra de Deus, Exercícios
Espirituais, formação cristã das crianças e dos rudes, e Con-
fissões e administração dos outros Sacramentos, buscando
especialmente a consolação espiritual dos fiéis cristãos. Foi
ainda instituída para pacificar os desavindos, piedosamente
ajudar e servir os que se encontram presos nas cadeias e en-
fermos nos hospitais e exercitar as outras obras de caridade
conforme se julgar conveniente para a glória de Deus e o
bem universal. (FI 1)

As confrarias que os Jesuítas fundaram, a que aderiram ou


com quem trabalharam, naqueles primeiros anos antes e depois
da fundação da Companhia, todas elas tinham muito clara-
mente esta dinâmica: ajudar as pessoas a praticar as obras de
misericórdia temporais.
É claro que, então, não fazia sentido falar em «apostolado
social» ou em transformação das estruturas sociais e político-
-económicas. Isto é linguagem dum paradigma que só aparece
muito mais tarde, depois das revoluções. Naquela altura, a
mundividência das pessoas é que as coisas sempre tinham sido
assim e sempre seriam assim, e fazia-se o que se podia para ali-
viar a sorte dos mais desfavorecidos – as obras de misericórdia.
Transpondo a mesma atitude de compaixão e de serviço para
os conhecimentos e a mentalidade de hoje, aquilo que faz o
Decreto IV, obtemos o apelo à promoção da justiça.
Para continuar a preencher o encadeamento histórico, mos-
trando que o Decreto IV não é uma novidade extrínseca na
Companhia, bastaria pegar em exemplos como as Reduções na
América do Sul, os trabalhos de promoção humana nas missões
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 129

por todo o mundo, as escolas, a tradição de apostolado social


jesuíta...
Novidade existe apenas na aplicação. O que está sempre
presente, aquilo que dá continuidade, é este modo de proce-
der apostólico da Companhia, este discernimento apostólico
constante na busca, em cada tempo e em cada lugar, de qual
é o bem mais universal, qual é a maior necessidade. Foi essa,
aliás, a razão do Quarto Voto: porque o Papa teria melhor
conhecimento de toda a Igreja, poderia mais facilmente
perceber onde estava a maior necessidade e para aí enviar os
Jesuítas. É também esta visão, este olhar sobre o mundo, que
encontramos na contemplação da Encarnação dos Exercícios
Espirituais, e o mesmo é suscitado, alimentado e confirmado
na Meditação do Chamamento do Rei e na experiência místi-
ca de La Storta. Sempre o chamamento a colaborar na acção
de Deus no mundo, que vem, ao fim e ao cabo, desta posição
de partida que vê Deus a agir em tudo, presente e, mais do
que presente, trabalhando nas coisas, como o segundo e o
terceiro ponto da Contemplação para Alcançar Amor nos
dizem.

3. Antecedentes

Mas será que os Jesuítas inventaram toda esta doutrina e


linguagem do Decreto IV só por eles? Claro que não. Há ante-
cedentes e um contexto teológico e eclesial que permite que a
Congregação Geral 32, mais do que inventar, recolha, sistema-
tize e ponha em forma de programa de acção, com o colorido
específico da espiritualidade e do carisma apostólico jesuíta, a
exigência do trabalho pela justiça.
130 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

O impulso primeiro tem que ser procurado no Vaticano II,


como a Congregação Geral 34 virá a afirmar:

Respondendo ao Concílio Vaticano II, a Companhia ini-


ciou um processo de fé, ao comprometer-se na promoção da
justiça como parte integrante da sua missão. (Dec. 3, 1)

O Concílio, sobretudo com a Gaudium et Spes, faz uma


mudança fundamental na legitimação da missão social da Igre-
ja. Apesar do desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja,
desde Leão XIII, em 1891, com a Rerum Novarum, através das
encíclicas sociais que foram marcando paulatinamente o século
XX, só no Vaticano II houve um enquadramento eclesiológi-
co, em termos da natureza e da missão da Igreja, que deixou
de remeter a missão social, ou a dimensão social da missão da
Igreja, para a margem, apenas como uma extensão, um corolá-
rio ético, mas não como fazendo parte do núcleo essencial da
natureza da Igreja.
O Concílio, ao resolver os problemas pendentes, com mais
de 150 anos, da relação da Igreja com Mundo, tanto em ter-
mos políticos e doutrinais (o entendimento das relações Igreja-
-Estado, que a Dignitatis Humanae clarifica); como em termos
mais teológicos (o posicionamento da Igreja, sistematizado
pela Gaudium et Spes), posicionou a Igreja numa atitude aber-
ta, construtiva, optimista, colaborativa na sua relação com as
sociedades e o mundo.
Fica, assim, desimpedida uma visão diferente da presença da
Igreja no mundo e do seu papel na transformação deste mundo,
já aqui. A Igreja apresenta-se como parte interessada, compro-
metida na transformação do mundo. Com a Gaudium et Spes,
a defesa e promoção da dignidade da pessoa humana ganhou o
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 131

centro da eclesiologia, tornou-se a razão de ser da Igreja, mo-


vendo assim a missão social da periferia para o âmago da vida e
do trabalho da Igreja. É da defesa e da promoção da pessoa que
vem a missão social da Igreja, deixando de ser algo de segunda
ou terceira ordem, porque ancorada no âmago da missão evan-
gélica. Esbateu-se a divisão entre ganhar o Céu e transformar a
terra, entre a evangelização e a promoção humana e social.
O papel da Igreja na arena política, na promoção dos direi-
tos humanos e na protecção da dignidade humana tornou-se
central, desafiando-a no meio desta intervenção a manter a sua
identidade e carácter religiosos. A Igreja definiu para si mesma
um papel no mundo que é religioso na sua natureza e finali-
dade mas não deixa de ser politicamente significante nas suas
consequências (cf. Gaudium et Spes 40-42).
Daqui se abre o caminho para a teologia da libertação e a
teologia política dos anos 70. A Conferência de Medellin, em
1968, é um marco determinante, que, de alguma maneira,
inaugura de forma institucional a teologia da libertação. As
consequências doutrinais mais explícitas desta viragem teológi-
ca vêm a culminar em dois documentos resultantes dos sínodos
dos bispos da década de 70 (referidos no nº 22 do Decreto IV),
A Justiça no Mundo, de 1971 e a Evangelii Nuntiandi, de 1975.
Ficam algumas breves citações destes dois documentos, para
percebermos quanto o que o Decreto IV diz já estava aqui afir-
mado pela Igreja universal.
É impossível aceitar «que a obra da evangelização possa ou
deva negligenciar os problemas extremamente graves (…) no
que se refere à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à
paz no mundo. Se isso porventura acontecesse, seria ignorar
a doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo
que sofre ou se encontra em necessidade». (EN, 31)
132 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A acção pela justiça e a participação na transformação do


mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão cons-
titutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da
missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do géne-
ro humano de todas as situações de opressão. (JM, 6)

A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que


correm, que nos comprometamos com a libertação integral
da pessoa, já desde agora, na sua existência terrena. Se, efec-
tivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não
mostra a sua eficácia na acção pela justiça no mundo, muito
dificilmente ela será aceitável para as pessoas do nosso tem-
po. (JM, 36)

A Igreja não é a única responsável pela justiça no mundo;


cabe-lhe, no entanto, uma responsabilidade própria e espe-
cífica, que se identifica com a sua missão de testemunhar
diante do mundo a exigência de amor e de justiça contida na
mensagem evangélica. (JM, 35)

Sublinhe-se apenas que a acção pela justiça é afirmada «di-


mensão constitutiva da pregação do Evangelho», não opcional,
ou marginal. A construção da justiça terrena, já, neste mundo,
é um selo de garantia e marca de coerência quando se anuncia
a justiça que é mais do que terrena.

4. Desafios e dificuldades

O Decreto IV foi um documento revolucionário e inespera-


do até, talvez, para a maioria dos jesuítas. A Congregação Geral
tem consciência disso e antevê, no próprio decreto, desafios e
dificuldades.
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 133

Para muitos, certamente, ter-lhes-á aparecido como uma


mudança muito grande e radical, ao afirmar a

necessidade duma revisão dos nossos tradicionais métodos


apostólicos, das nossas atitudes e das nossas instituições, para
tudo adaptar às novas exigências da nossa época.(9)
Esta opção deve levar-nos a rever as nossas solidariedades e
preferências apostólicas. (47)

Tanto mais que isso exigiria vencer

resistências, temores e apatias, que impedem a compreensão


verdadeira dos problemas sociais, económicos e políticos.
(42)

E pediria, ao mesmo tempo, rigorosa análise social e política,


que requer estudos profundos e especializados (n. 44).

A Companhia foi aprofundando o novo caminho, habitu-


ando-se à linguagem, as oposições mais agudas venceram-se e
o Decreto IV foi sendo cada vez mais aceite e integrado nos
raciocínios e nas escolhas. Hoje é, dum modo geral, pacifica-
mente visto e aceite como a definição da nossa missão.
Do lado oposto, os perigos surgiam dos riscos de uma
atracção por um activismo social exagerado, uma unilateral
opção pelo trabalho com os pobres, recusando, por exemplo,
a continuidade das grandes instituições (colégios e universi-
dades, nomeadamente).
A Congregação não antecipava facilidades no caminho por
diante:

Com efeito não trabalharemos na promoção da justiça sem


que isso muito nos custe. Mas este trabalho tornará mais
134 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

significativo o anúncio do Evangelho e mais fácil o seu aco-


lhimento. (46)

Posteriormente, surgiram outras dificuldades levantadas ao


Decreto e às consequências da sua aplicação. Já mais de fora
da Companhia que de dentro dela. O ponto comum assenta-
va numa denúncia e recusa ideologicamente muito marcadas,
consubstanciadas, nas suas manifestações extremas, em acusa-
ções à Companhia de se ter vendido ao marxismo, apontando
jesuítas como comunistas, etc. Acusava-se a Companhia de
unilateralismo, de pôr em causa a sua missão espiritual de or-
dem religiosa em nome de um activismo social mais próprio da
acção política.
Outras reservas, mais de nível teórico, e mais de dentro da
Companhia, também se levantaram: sobre as possibilidades de
articulação entre o discurso teológico e catequético, por um
lado, e a análise político-social, por outro; sobre as relações en-
tre a espiritualidade e a sociologia e a política; sobre a ligação
teológica entre o serviço da fé e a promoção da justiça. Outro
tipo de debates questionava o significado do conceito de «justi-
ça»; justiça pode-se entender de muitas maneiras, que justiça é
que promove o Decreto IV?
Num contexto mais largo que a própria Companhia, aquilo
que, para abreviar e simplisticamente, podemos designar como
o «ataque à teologia da libertação», que teve lugar nos anos 80,
pôs em causa também algum do discurso e da acção referencia-
dos ao Decreto IV.
Na Companhia, tivemos a «crise Arrupe», de 1981. O P.
Arrupe pedia insistentemente permissão para convocar uma
Congregação Geral para renunciar ao seu cargo. O papa não
autorizou e, depois da doença súbita do P. Arrupe, interrom-
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 135

peu os processos ordinários do governo e nomeou um seu dele-


gado pessoal para liderar a Companhia. Em todo este processo,
naquilo que moveu as atitudes e as decisões, a maior parte,
senão todas as questões polémicas que envenenaram o relacio-
namento giravam à volta do empenhamento de muitos jesuítas
no trabalho pela promoção da justiça, sobretudo na América
Latina, com todos os relatórios altamente críticos que dessa
actividade chegavam a Roma e que contribuíram, unilateral-
mente, para fazer chegar o problema à dimensão que atingiu.
Mas, distanciando-nos um pouco de querelas historicamen-
te mais conjunturais, a grande dificuldade, daquele tempo e de
agora, e que se calhar continuará por muito tempo, o grande
desafio continua a ser uma conversão real e verdadeira da Com-
panhia de Jesus a este novo modo de ver, conversão que crie a
indiferença para agir coerentemente e nos faça ultrapassar de-
finitivamente qualquer rasto de insensibilidade perante aqueles
que sofrem injustiça.

5. Congregação Geral 33

Em 1983, teve lugar a CG 33, a Congregação que o Papa


João Paulo II finalmente, dois anos depois, autorizou que se
reunisse para eleger um novo Geral, retomando assim a ordem
normal do governo da Companhia. Em circunstâncias ainda
muito sensíveis, não iludindo a pressão que se sentia sobre a
Companhia, mas com total liberdade, os jesuítas congregados
reafirmaram e confirmaram plenamente o Decreto IV:

A Congregação confirma a missão da Companhia de Jesus


tal como se expressa nas CG 31 e 32, e particularmente
136 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

como se propõe nos decretos 2 e 4 desta última. Estes de-


cretos são a aplicação actual da Fórmula do Instituto e do
carisma do N. P. Santo Inácio e expressam a nossa missão
hoje com tal claridade que, no futuro, os devemos ter como
guia na selecção dos nossos trabalhos. (38)

Não ficam quaisquer dúvidas: a Companhia não recuou, em


1983, naquilo que tinha afirmado em 1975, no Decreto IV da
Congregação Geral 32.

6. Congregação Geral 34: nova definição da Missão

As coisas foram-se pacificando bastante e rapidamente, de-


pois de 1983. Até que chegamos a 1995, à Congregação Geral
34, que volta a assumir como uma das suas tarefas principais
«orientar a nossa missão para os tempos de hoje» (Dec. 1, 1).
Respondia, assim, aos pedidos que voltaram a ser feitos pelos
jesuítas de todo o mundo. A motivação continua a ser sempre
a mesma: «enfrentar os desafios e oportunidades do mundo de
hoje» (Dec. 1, 3).
A resposta vem em quatro decretos que constituem um
apartado, intitulado «A Nossa Missão».
Um primeiro decreto de enquadramento («2. Servidores
da Missão de Cristo»), que eu considero um dos documen-
tos mais importantes da Companhia recente, porque define
a missão da Companhia de Jesus e sobretudo reposiciona a
Companhia, ao descentrá-la, face à missão – missão que lhe
é dada, não criada por si, e que é sempre a missão de Jesus
Cristo, nunca pode ser apropriada; por isso, os Jesuítas defi-
nem-se como servidores da missão de Cristo. E, na parte final
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 137

deste decreto, pega novamente nesta questão da promoção da


justiça.
Depois, vêm mais três decretos, mais parcelares, mais foca-
dos: «3. A Nossa Missão e a Justiça»; «4. A Nossa Missão e a
Cultura»; «5. A Nossa Missão e o Diálogo Inter-religioso».
À primeira leitura, pode parecer que os jesuítas, então, deixa-
ram a justiça, ou, pelo menos, arranjaram-lhe Companhia. Dan-
tes era o serviço da fé e a promoção da justiça. Agora, é o serviço
da fé e a promoção da justiça, mais o diálogo com a cultura e o
diálogo inter-religioso. Justiça e cultura já estão ao mesmo nível,
o que abre a porta aos que se sentem menos atraídos pelo discur-
so sobre a justiça para se dedicarem apenas à cultura.
Mas isto não é verdade. Não é um recuo, não é uma vira-
gem. É um aprofundamento e ampliação do serviço da fé e
promoção da justiça.
Se, em 1975, a experiência marcante para a Companhia situa-
va-se na América Latina, na prática de um enorme envolvimento
com comunidades de base, num combate com estruturas extra-
ordinariamente injustas e extraordinariamente violentas. Era este
o contexto mais influente sobre a visão da Companhia sobre a
sua própria missão. Em 1995, há um novo contexto que começa
a tomar peso na acção da Companhia, o contexto asiático. Aqui,
o grande desafio para os jesuítas que lá vivem e trabalham é pre-
cisamente o encontro com culturas muito diferentes, mas muito
desenvolvidas, e com tradições religiosas muito fortes e muito
estabelecidas, no seio das quais o Cristianismo, e muito mais
o catolicismo e muito mais os jesuítas são ultra-minoritários.
Como é que isto se compagina com a missão da Companhia? E
esse desafio começa a ser sentido por toda a Companhia.
Os Jesuítas reunidos em Congregação Geral, ao olharem
para a missão da Companhia, têm que levar em conta esta
138 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

nova experiência, aquilo a que o seu ministério de promoção


da justiça, de promoção da dignidade humana, realizado em
muitos locais do mundo os está a desafiar: ao diálogo com as
outras culturas, ao diálogo inter-religioso.
Mas a mesma afirmação continua a ser feita. Não haja
dúvidas.

De acordo com o nosso carisma e a nossa tradição e com a


aprovação e o apoio dos Papas ao longo dos anos, a missão
actual da Companhia é o serviço da fé e a promoção, na so-
ciedade, daquela «justiça do Evangelho que é a encarnação
do amor e da misericórdia salvífica de Deus». (Dec. 2, 3)

A missão actual da Companhia – afirma-se mais uma vez,


sublinhe-se – é o serviço da fé e a promoção da justiça. Mas há
que integrar nesta missão novas dimensões, há que dar conta
daquilo que está a ser a experiência da Companhia. O objectivo
das novas formulações é a fundamentação da inseparabilidade
das diferentes dimensões da nossa missão. E se a «Justiça» apa-
rece qualificada, isso não é para a diminuir, mas para a distin-
guir de concepções ideológicas ou absolutizações reducionistas
do Evangelho.
Então, a Congregação Geral 34, neste seu segundo decre-
to, propõe uma definição algo complicada para sistematizar o
equilíbrio entre as várias dimensões da missão de evangelização
integral: proclamação da fé, promoção da justiça, diálogo com
as culturas e as religiões.

A «finalidade» da nossa missão recebida de Cristo, como se


apresenta na Fórmula do Instituto, é o serviço da fé...
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 139

Este é o objecto da missão da Companhia. O seu fim é a


evangelização, o anúncio do Reino de Jesus Cristo, a pregação
do Evangelho.

O «princípio integrador» da nossa missão é o vínculo insepa-


rável entre fé e promoção da justiça do Reino.

Há um princípio integrador, aquilo que está presente em


todos os apostolados, em todas as missões de cada jesuíta. Não
há anúncio da fé integral, fiel, sem preocupação pela justiça.

Nesta Congregação Geral queremos aprofundar e estender,


de forma explícita, a consciência que tem a Companhia
das dimensões integrais da nossa missão, que o decreto 4
da Congregação Geral 32 nos apontou e que agora estão a
amadurecer na nossa experiência e nos nossos ministérios.
Demo-nos conta de que, quando os nossos ministérios se
desempenham com mais fruto, estes elementos estão sempre
presentes. (Dec. 2, 14)

Alcança-se uma nova síntese, mais complexa porque mais


aprofundada e ampliada:

Assim, o fim da nossa missão (o serviço da fé) e o seu prin-


cípio integrador (a fé dirigida à justiça do Reino) estão di-
namicamente relacionados com a proclamação inculturada
do Evangelho e o diálogo com outras tradições religiosas,
como dimensões integrais da evangelização. O princípio in-
tegrador flui para essas dimensões que, como ramos de um
tronco comum, formam uma matriz dos traços integrais da
nossa única missão do serviço da fé e da promoção da justiça.
(Dec. 2, 15)
140 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Mais uma vez, chega-se aqui a partir da experiência, da lei-


tura da realidade concreta nos sítios onde a Companhia está a
viver e a trabalhar, tentando cumprir o Decreto IV.

Na nossa experiência desde a Congregação Geral 32, caímos


na conta de que o nosso serviço da fé, dirigido à justiça do
Reino de Deus, não pode prescindir dessas outras dimensões
de diálogo e presença dentro das culturas. (Dec. 2, 16)

E chega-se aqui percebendo que a exigência da justiça obri-


ga, nesses contextos, e na Companhia em geral, a alargar esta
perspectiva da promoção da justiça a outras dimensões.

A justiça pode florescer somente na transformação da cul-


tura, já que as raízes da injustiça estão incrustadas tanto nas
atitudes culturais como nas estruturas sócio-económicas.
(Dec. 2, 17)

Passa-se, assim, do binómio fé e justiça a uma matriz de


quatro por quatro.

Não pode haver um serviço da fé sem


promoção da justiça,
penetração das culturas,
abertura a outras experiências religiosas.

Isto é, o serviço da fé exige estas três outras coisas.

Não pode haver promoção da justiça sem


comunicar a fé,
transformar as culturas,
colaborar com outras tradições.
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 141

Se falha qualquer uma destas coisas, já não é a promoção da


justiça do Reino, da justiça do Evangelho, da justiça que é parte
integrante da missão da Companhia.

Não pode haver inculturação sem


comunicar a fé aos outros,
dialogar com outras tradições,
compromisso com a justiça.

Não pode haver diálogo religioso sem


partilhar a fé com outros,
avaliar as culturas,
compromisso pela justiça. (Dec. 2, 19)

Obtém-se, então, esta conclusão discernida, mais complexa:

À luz do decreto 4 e da nossa experiência actual, podemos


afirmar explicitamente que a nossa missão no serviço da fé e
da promoção da justiça se abre para incluir, como dimensões
integrais, a proclamação do Evangelho, o diálogo e a evange-
lização da cultura. (Dec. 2, 20)

E, portanto:

À luz destas reflexões, podemos agora dizer da nossa missão


actual, que a fé que busca a justiça, é, inseparavelmente, a fé
que se compromete no diálogo com outras tradições e a fé
que evangeliza as culturas. (Dec. 2, 21)

Na Congregação Geral 34, vai-se mais às raízes e às causas


morais e culturais da injustiça. Um outro ponto que aparece
mais sublinhado é a proximidade com os pobres.
142 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A nossa experiência diz-nos que a promoção da justiça surge


da nossa fé tornando-a ainda mais profunda. Por isso, ten-
tamos caminhar para uma maior integração da promoção
da justiça na nossa vida de fé, na companhia do pobre e de
tantos outros que vivem e trabalham pela vinda do Reino de
Deus. (Dec. 3, 3)

Assim como também se sublinha a preocupação de reforçar


a ligação à fé, porque

Por vezes separámos a acção em favor da justiça, da sua au-


têntica fonte: a fé. (Dec 3, 2)

A noção de justiça que nos guia está intimamente unida à


nossa fé. Tem as suas raízes na Sagrada Escritura, na tradição
da Igreja e na nossa herança inaciana. Transcende as noções
de justiça que procedem dos âmbitos da ideologia, da filoso-
fia ou de movimentos políticos particulares. Nenhuma delas
poderá ser uma expressão adequada da justiça do Reino pela
qual fomos chamados a lutar ao lado do nosso Companheiro
e Rei. (Dec. 3, 4)

7. Conclusão

Foi este, contado duma forma muito rápida, o percurso fei-


to pelo Companhia de Jesus, ao longo de mais de vinte anos,
tentando compreender melhor e formular mais claramente a
sua missão. Procurou-se lançar alguma luz sobre o que está por
trás e sustenta o conteúdo da fórmula «serviço da fé e promo-
ção da justiça».
É tempo agora, encerrando, para algumas conclusões e su-
blinhados.
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 143

Uma primeira nota. A questão aqui não é, primordialmen-


te, a questão da justiça, mas a questão do discernimento da
missão da Companhia de Jesus e como essa missão vai sendo
buscada e encontrada em cada tempo e em cada contexto.
O grande desafio, assim, é continuar permanentemente este
exercício. O desafio não é manter o resultado formulado em
1975 ou 1995. Trata-se de fazer crescer sempre esta disponi-
bilidade para responder contextualizadamente às necessidades
das pessoas, às maiores necessidades das pessoas, buscando
sempre e encontrando onde e como Deus está a trabalhar,
trabalha no mundo e colaborando com Ele aí, servindo aí,
encarnadamente, a missão de Cristo. Este é um desafio a que a
Companhia continua a tentar responder, escutando, acolhen-
do, para continuar a desenvolver e aprofundar a sua identida-
de, para ser capaz de dizer em cada tempo: «ser jesuíta hoje
é...». Ser jesuíta é sempre estar disposto a entregar a sua vida
ao serviço da missão da Companhia e esta missão é discernida
hoje confrontando o que é o carisma e a tradição jesuíta com
os desafios dos tempos e dos lugares onde a Companhia foi
enviada. Deste modo, a própria identidade da Companhia e
do jesuíta vão sendo desenvolvidas à medida que a missão vai
sendo encontrada e precisada.
Se não mantemos esta abertura, esta atitude de busca per-
manente, corremos o risco de «fé e justiça» vir a ficar apenas
um slogan vazio, a cristalização duma afirmação despojada da
paixão da actualidade. A missão da Companhia nunca pode ser
um slogan, tem que ser sempre uma resposta. E uma resposta
dá-se a uma pergunta ou a uma necessidade. A missão da Com-
panhia é uma resposta encarnada, não é um programa, criado
no geral abstracto, para depois se aplicar no concreto. O serviço
da fé e a promoção da justiça não é o projecto da Companhia
144 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

agora, mas a resposta que a Companhia se sente chamada a dar


às necessidades do nosso tempo.
A identidade jesuíta é, por isso, uma identidade responsável,
de resposta, em segundo tempo; primeiro somos solicitados
e, depois, respondemos. Uma identidade dada pela missão, a
Companhia é um corpo para a missão. É a missão que a define,
que a constitui como corpo e que determina a sua organização
para melhor servir essa missão. A Companhia deve funcionar
sempre em resposta, fresca, noiva, diariamente renovada, a
contextos! O seu estilo de vida, a escolha dos seus apostolados,
as prioridades que estabelece... são determinadas pela missão
que a Companhia percebe em cada circunstância.
Este modo de discernir a missão, de a procurar nas realidades
concretas, implica um compromisso com o mundo como ele
é e como está, não rompendo com ele, não o rejeitando, não
fugindo para mundos alternativos ou procurando refúgio em
enclaves protegidos ou condomínios fechados. Onde e como o
mundo é, aí é que se trabalha. A vocação da Companhia é, pre-
cisamente, ser a concretização duma espiritualidade encarnada,
segundo a visão da contemplação da encarnação dos Exercícios
Espirituais e segundo o movimento da encarnação de Jesus, que
se faz homem e vive connosco, partilha da nossa experiência. Vi-
vendo esta espiritualidade, a partir desse olhar sobre o mundo e
da integração nesse mundo, que nos encontramos com o Cristo
agente, que aí actua, e é aí que colaboramos na sua missão. Por
isso, a definição da missão da Companhia tem tudo a ver com a
nossa compreensão do mundo, com o modo como percebemos
o Reino de Deus e a missão de Jesus.
A resposta da Companhia é configurada sobretudo pelos
Exercícios Espirituais, como ferramenta primordial para o
discernimento, e também pelas Constituições e toda a sua
A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 145

tradição. Mas os Exercícios Espirituais não são exclusivos da


Companhia nem servem só para os jesuítas, são uma proposta
da Igreja e para a Igreja. Aqueles não-jesuítas que se sentem
identificados com o método, a linguagem e a espiritualidade
dos Exercícios poderão, provavelmente, sentir-se também mo-
vidos pelo mesmo olhar sobre o mundo e pela mesma atitude
face ao mundo. Caberá, depois, a cada um dar a sua resposta
pessoal, perceber onde está o chamamento, qual é a necessida-
de para eu responder. Quando cada um o fizer, e na medida em
que o fizer, encontra também a sua identidade, a partir da ins-
piração dos Exercícios Espirituais, e, junto com a Companhia
de Jesus, também pode dizer: «a minha missão hoje é...» isto ou
aquilo.
Não interessa copiar a missão dos Jesuítas, ir atrás deles só
porque certamente eles discerniram bem... O discernimento
só vale se for pessoal. O que importa mais neste processo todo
não é esta missão concreta assim formulada, mas a abertura e
o método, este modo de proceder que permite à Companhia
– esperemos! – continuar disponível para ir reformulando, re-
descobrindo, aprofundando, alargando a consciência da missão
a que é chamada em cada momento e em cada sítio e respon-
dendo a essa responsabilidade do melhor modo que é capaz.
147

PEDRO FABRO:
IGREJA E COMPANHIA DE JESUS
ENTRE REFORMA E CONTRA-REFORMA
D. Manuel Clemente

Um século, só por si, é questão de calendário. Os fundado-


res da Companhia não o fizeram por serem do «século XVI»,
mas porque respondiam a conjunturas e questionamentos que
se punham na altura: quase tudo vinha de trás e prolongou-se
adiante.
A Europa da altura vivia transformações «estruturais», anun-
ciadas nos últimos séculos medievais. Socialmente falando, a
re-urbanização progressiva e o incremento comercial, retoma-
dos desde o século XII. Mas também a grande perturbação
trazida pela Peste Negra (1348) e outras epidemias que afecta-
ram, não só a vida normal das populações, mas também as suas
expectativas quanto à sobrevivência, à convivência e ao futuro.
Eclesialmente, o Cisma do Ocidente (1378-1415) golpeou
profundamente o consenso europeu (centro-ocidental) sobre
a tutela do papado em relação à Cristandade, sem que tal se
resolvesse em benefício do Sacro-Império, mas sim dos Estados
modernos, então emergentes. Estes últimos, efectivamente,
recolheram para os respectivos soberanos as prerrogativas que
o antigo Direito Romano aplicara aos seus césares. Desde o
século XV, geralmente falando, será em torno de cada rei e
de cada Estado que a vida europeia girará, também por aqui
passando as distintas «reformas» eclesiais, seguindo em grande
parte a decisão dos seus governantes. Da Genebra de Calvino à
Inglaterra de Henrique VIII, passando pelos principados lute-
ranos da Alemanha ou pelos reis que permaneceram ligados a
148 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Roma, tudo ganhou conotação política, por mais religioso que


realmente fosse. Não foi certamente por acaso que Inácio e os
seus companheiros eram súbditos de soberanos católicos e com
estes colaboraram no fortalecimento ou restabelecimento do
tão ameaçado catolicismo da altura.
Mas não é isto obviamente o essencial, no desafio feito ao ca-
tolicismo pré-tridentino, nem da resposta protagonizada pelos
primeiros jesuítas. O repto era sobretudo íntimo e espiritual,
em todos aqueles que as referidas perturbações do final da Idade
Média realmente abalavam. À debilidade do centro institucio-
nal da Cristandade – o papado – correspondiam a inquietação
e a busca interiores de cada um e de cada comunidade eclesial e
religiosa estabelecida. Também não foi por acaso que Martinho
Lutero era frade agostinho e professor universitário de Teologia.
Bem antes dele, aliás, já a mística refluíra para a experiência pes-
soal e a devoção se centrara no «coração» crente e piedoso. Ao
mesmo tempo também, as serenas sínteses da grande escolástica
do século XIII perdiam consistência diante das primeiras divi-
sões entre a fé a razão, que a Modernidade alargaria mais e mais.
Ou seja, no começo do século XVI, já se desconfiava da apro-
ximação racional da verdade divina, como se punha em causa a
concretização eclesial da proposta evangélica.
Para mais, a agitação sócio-cultural do tempo aguçava
crises de sensibilidade e consciência em muitos espíritos. A
intensidade de comportamento e proposta dum homem como
Lutero, especialmente entre 1517 e 1520, é muito devedora
da sua luta íntima por conseguir alguma certeza de salvação,
entre a objectividade dos preceitos divinos, a incapacidade
sentida em cumpri-los e a ausência duma resposta realmente
apaziguadora. Lendo e relendo a Escritura, render-se-ia exclu-
sivamente à graça divina, que só por ela o justificaria, quase
Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 149

sem o seu próprio concurso. Consequentemente, uma valori-


zação tão exclusiva da graça, relativizaria o papel de qualquer
colaboração humana, ainda que fosse o da instituição eclesial
e dos seus actos sacramentais. Muito mais, se diminuídos por
concretizações dúbias, como acontecia na altura com alguma
pregação de indulgências, que quase ligava a libertação das
almas do purgatório à esmola oferecida para tal1.

1
Cf. CLEMENTE, Manuel – A Igreja no tempo. História breve da Igreja
Católica. Lisboa: Grifo, 2000, pp. 75-78: «Junte-se a descrença na capaci-
dade humana para a compreensão de Deus e para a colaboração na obra
da própria salvação; a relevância da Escritura, considerada como veículo
exclusivo para trazer, ao homem angustiado e pecador, a certeza da sua jus-
tificação por Deus […]; e a espiritualidade […] pouco ou nada eclesial, que
vimos expandir-se no final da Idade Média. Ter-nos-emos aproximado das
raízes da ruptura luterana, entre 1512 e 1520. Destas raízes brotaram as suas
três afirmações fundamentais. O homem só é justificado pela acção de Deus
em Jesus Cristo, mediante a adesão da fé; a Palavra de Deus é o único veículo
dessa mensagem salvífica; não há na Igreja outro sacerdócio que não seja o
do louvor comum dos fiéis […]. Estas três proposições foram entendidas
pela Igreja Católica como unilaterais. Certamente que é Deus quem justifica
o homem pecador, […] mas não é menos verdade que Deus, nem é total-
mente incompreensível, pois deixou nas criaturas a marca da sua grandeza,
nem dispensa o homem de participar na própria salvação: o mérito sobrena-
tural vem da graça, mas supõe a acção do homem. […] A Palavra foi escrita
pela Igreja, divinamente inspirada, e com o entendimento da Igreja. Teste-
munha uma fé que é comum, e, por isso, não pode ser captada, nem muito
menos interpretada, pela opção de cada qual; só o será no contexto eclesial
da Tradição. […] O sacerdócio comum dos fiéis resulta da santificação que
o sacerdócio de Cristo, também presente nos ministros ordenados, lhes
proporciona. […] Estas as principais respostas que a teologia e o magistério
católicos deram a Lutero – e, por semelhança, aos outros reformadores pro-
testantes no Concílio de Trento (1545-1563). Nos nossos dias, felizmente,
o diálogo ecuménico tem podido aproximar católicos e protestantes, mesmo
no ponto fundamental do entendimento da salvação (justificação)».
150 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Acontecia também – e pela primeira vez acontecia – que tais


casos individuais se podiam tornar rapidamente causas gerais,
pelo uso novo da imprensa. E pelo concurso do novo poder
político, acima referido, quando obtivesse a sua concordância
e interesse. Lembro isto, antes de mais, em relação às várias
reformas que cortaram com Roma; mas posso dizê-lo também
em relação à própria reforma que Roma promoveu, antes, du-
rante e depois do Concílio de Trento (1545-1563). Também
esta, como reforma católica, ou contra-reforma em relação às
protestantes, contou com os novos meios de transmissão do
pensamento, assim como contou com o concurso, mais ou me-
nos activo, dos governantes católicos2.

Atenda-se ao seguinte trecho de Bedouelle, resumindo o pensamento


2

dum notável historiador da Igreja: «Hubert Jedin (+ 1980) accepte les deux
vocables de Réforme catholique et de Contre-Réforme […]. La Reforme
catholique, comme Selbstbesinnung (reprise par l’Église catholique de ce
qu’elle est) comprenait pour lui plusieurs phases. La première trouve
ses racines à la fin du Moyen Age avec la devotio moderna et le retour à
l’observance des ordres religieux. À partir de 1540, c’est la préparation
plus rapprochée avec la fondation des Jésuites et l’affermissement du
dessein réformateur de la papauté. La troisième coïncide avec la réunion
du concile de Trente, et la quatrième, qui débute avec la mise en oeuvre
des décisions conciliaires, s’étend ensuite sur la longue durée. La Contre-
-Réforme est un phénomène d’autodéfense (Selbsbehauptung), qu’on peut
faire débuter dès 1520 avec les controverses contre Luther, puis la création
de l’Inquisition roainde en 1542 et le développement de l’Index des livres
prohibés» [BEDOUELLE. Guy – La Réforme du catholicisme (1480
–1620). Paris: Cerf, 2002, p. 17]. E à sugestiva síntese de Pierrard: «Ora, a
ideia de reforma, tão velha como a Igreja, tinha no século XV mergulhado
nas profundezas da sociedade cristã. Depois da ruptura entre católicos e
protestantes, a reforma foi prosseguida “nos dois lados da barricada por
um bom número de almas sinceras e pacíficas preocupadas em cumprir
a mensagem de Jesus Cristo […]” (A. Willaert). Por isso, verificou-se ao
Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 151

Mas, porque de reforma se tratava, também neste caso ca-


tólico, procurava, antes de mais, recuperar a fonte e a forma
autênticas da vida cristã, em termos pessoais e comunitários, não
subvalorizando estes últimos, ou seja, o concurso eclesial e sa-
cramental. Tal recuperação aconteceu muito principalmente em
homens e mulheres que redescobriram a vida cristã na autêntica
comunhão com Cristo, em termos de conversão e disponibili-
dade diante de Deus e da sua vontade. Reformadores católicos,
reformavam-se antes de mais a si mesmos, ainda que isso mesmo
os levasse a reformar a vida eclesial , ampliando a experiência e
a exercitação pessoal. Só que, sendo católicos, tal não os levava a
relativizar o ambiente de graça que encontravam na Igreja, suas
determinações e práticas. Muito pelo contrário, reavaliavam-nas
e promoveram-nas, para que melhor proporcionassem a si mes-
mos e a todos a autêntica convivência cristã e salvífica.
Foi certamente este o caso de Inácio e dos seus companhei-
ros, quer na exercitação espiritual, quer na fundação da Com-
panhia, quer na colaboração com os papas e o Concílio. Mas
também foi o seu caso na metodologia reformista e contra-re-
formista que seguiram, na Europa e fora dela. Para ilustrar o
que vai dito, bastarão três notas, como a incidência eclesial dos
Exercícios Espirituais, a vinculação eclesial da Companhia e a
aplicação dos primeiros jesuítas aos campos mais urgentes do
catolicismo de então, fosse a (re)fundamentação doutrinal, nos
colégios e na catequese, fossem as missões internas e externas.

mesmo tempo a “reforma católica”, enriquecimento de uma fonte desde


há muito alimentada, e a “contra-reforma”, recurso católico destinado a
colmatar as brechas feitas pelo protestantismo, quase mesmo para recon-
quistar as zonas submersas» (PIERRARD, Pierre – História da Igreja Cató-
lica. Lisboa: Planeta Editora, 1992, p. 211).
152 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Quanto à incidência eclesial dos Exercícios, basta adiantar


que Santo Inácio não quis «lutar» sozinho; o antigo soldado
de Pamplona formou uma milícia em torno de outra bandeira.
O exercício que o levou a isso, fê-lo por si e pela graça; mas
ofereceu-o a outros, que chegassem à mesma conclusão verda-
deiramente eclesial e militante. Os objectivos do novo combate
foram igualmente eclesiais, definidos pelo Sucessor de Pedro.
Entre os companheiros de Inácio, destacou-se Pedro Fabro
(Villaret, Sabóia, 1506 – Roma, 1546). Como ele próprio
conta no seu precioso Memorial, conheceu Inácio em Paris, no
Colégio de Santa Bárbara, em 1529. Ajudando-o nos estudos,
acabou por beneficiar muito mais, quando o fundador da Com-
panhia o ajudou espiritualmente a ele: «Acabou por ser meu
mestre em matéria espiritual, dando-me regra e método para
me elevar ao conhecimento da vontade divina» (Memorial, 8). E
nisto mesmo Fabro se tornaria excelente, avultando até à morte
como gentil e eficaz educador de almas3.
A sua vida é relativamente simples: criado numa Sabóia
rural e católica, segue estudos em Paris, no colégio de Santa
Bárbara; sacerdote e particularmente próximo de Santo Inácio
e S. Francisco Xavier é um dos primeiros jesuítas; a sua acti-
vidade apostólica incide, como se disse, no acompanhamento
espiritual de muita gente, de França à Itália, à Alemanha, à Bél-
gica, à Espanha e até ao nosso Portugal, com grande aceitação

Cf. CERTEAU, Michel de – Introduction. In FAVRE, Bienheureux


3

Pierre – Mémorial. Paris: Desclée de Brouwer, 2006, p. 74: «Il y a là toute


une propédeutique spirituelle où Favre excelle, car il a le charisme de
la direction spirituelle. […] Mais toutes ces “méthodes” se ramènent à
l’objet essentiel de cet apostolat, les Exercices. Provoquer une réforme dans
l’Église par une réforme personnelle dont les Exercices seront le moyen et
le fondement, voilà ce qu’est pour Favre “notre manière de procéder”».
Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 153

e repercussão. O seu Memorial dá-nos particularmente conta


duma sensibilidade «católica», naquele contexto onde reformas
díspares (protestantes e romanas) e atitudes de contra-reforma
se verificavam também. Alguns exemplos tirados do Memorial,
mostram bem o seu sentimento e atitude.
Fabro é, de facto, tão «católico», na compreensão sacramen-
tal da Igreja e da Tradição, que se torna difícil escolher nas suas
páginas um ou dois trechos apenas, para o ilustrar. Escolho a
seguinte, porque responde de modo particularmente sugestivo
a alguns motivos que tinham estado na origem da reacção de
Lutero. Fabro está em Espira, em Agosto de 1542, e abre-nos a
sua alma nas seguintes linhas:

«Nas primeiras vésperas da Assunção, alcancei muita de-


voção e grandes moções espirituais na catedral de Nossa
Senhora de Espira, onde estava: as cerimónias, as luzes, o
órgão, o canto, a magnificência das relíquias e da decoração,
tudo me inspirava uma devoção tão grande que não conse-
guiria explicar. Sob esta moção, bendizia o que tinha trazido
e acendido os castiçais, o que os tinha ordenado, o que tinha
deixado uma renda com essa intenção. O mesmo a respeito
do órgão, dos organistas e dos benfeitores; o mesmo ainda a
respeito da decoração que eu via pronta para o culto divino,
do coral, do canto e dos pequenos cantores; o mesmo a res-
peito das relíquias, dos que as tinham ido buscar ou que as
tinham adornado depois de as terem encontrado. Em suma,
era levado por essa moção espiritual a estimar mais a menor
dessas acções ou outras análogas, feitas com uma fé simples e
católica, do que mil medidas dessa fé ociosa tão preconizada
por aqueles cujos pensamentos estão pouco concordes com
os da Igreja hierárquica. Sentia também que Cristo Nosso
Senhor estava cheio de misericórdia e bondade para com
154 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

todos e cada um dos que trazem algo de seu ao seu culto ex-
terior, seja o trabalho das próprias mãos, seja a dádiva do seu
dinheiro, sejam as suas directivas, ou qualquer outra coisa»
(Memorial, 87)4.

O passo é a vários títulos muito interessante, para defi-


nir a posição de Fabro naquele contexto; até por acontecer em
Espira, lugar importante das controvérsias católico-luteranas5.
Uma questão de sensibilidade, certamente. Mas, ainda mais, a

Cf. o comentário de Michel de Certeau a este passo: «La fee ociosa,


4

foi sans les oeuvres. C’est là un thème de la polémique antiluthérienne;


Luther s’était pourtant refusé à ce que l’on conclue de la fides sola une
négation des oeuvres […]; mais il s’en prenait violemment aux chrétiens
obdurati ceremoniis, férus et enragés de cérémonies» (FAVRE – Mémorial,
p. 182, nota 4). Todas as citações do Memorial são traduzidas desta edi-
ção. Retenha-se também o que escreveu um dos historiadores católicos
que mais estudou a época e as ideias em causa: «Cependant ce serait une
injustice à l’égard de Luther et du protestantisme que d’en conclure que le
réformateur n’a accordé à aucune bonne oeuvre aucune valeur religieuse
et morale. […] La vraie foi doit d’elle-même conduire à la vraie vie
chrétienne. Mais ici commence la difficulté: la doctrine de la justification
par la foi seule semble bien faire de la morale un moyen accessoire de salut.
Luther a eu bien se plaindre qu’on faussât souvent sa doctrine et qu’on
ait fait une libération des contraintes morales, il n’en reste pas moins que,
quand on l’entend affirmer que la concupiscente est invincible, on peut se
demander quelle peut être l’utilité de nos efforts» (LORTZ, J. – Histoire
de l’Église des origines a nos jours. Paris: Payot, 1956, p. 220).
5
Cf. ibidem, pp. 208-209: «La formation d’Églises territoriales consacre
la rupture entre les deux credos. En 1526 a lieu la première diète de Spire,
où il est déclaré que chacun doit agir comme il se croit responsable devant
Dieu, la majesté impériale et l’Empire. […] Une nouvelle diète de Spire
[1529] annule la première: on interdit toute nouveauté. On permet le culte
catholique dans toutes les régions, d’uò protestation de cinq territoires et
de quatorze villes. (C’est de là que vient le nom de “protestants”)».
Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 155

compreensão e a experiência da realidade sacramental da Igreja


(em sentido amplo), onde os gestos valem, as atitudes exterio-
res contam, as ofertas significam e avalizam uma salvação, que
sendo essencialmente graça divina, não dispensa o concurso
humano, por comezinho que seja ou pareça. Fé em obras,
digamos, e por isso não «ociosa». Obras que não deixariam de
tocar o coração divino, por serem afinal, simples, generosas e
confiantes.
Em Outubro desse ano, Fabro está em Mogúncia. Numa
noite em que rezava, corriam-lhe no pensamento vários mo-
tivos de reconhecimento e acção de graças. Vejamos como se
reforça a convicção já testemunhada, podendo até admirar-nos
um elenco tão particularizado de realidades diversas, só aproxi-
máveis como expressão de um todo, de sensibilidade e convic-
ção já marcadamente católicas, sobretudo em contraste com a
protestante:

«Nesta revisão de tantos benefícios [divinos], mas também


de tantos pecados cometidos até ao presente, incluía os fru-
tos da terra, a paz do país, a fé católica, as igrejas, as imagens,
os ministros dos sacramentos e os próprios sacramentos, a
água benta, as relíquias dos santos, os lugares onde são re-
colhidos os ossos dos mortos; o facto de os habitantes terem
desde há muito tempo uma sucessão de príncipes que lhes
asseguraram a paz e a prosperidade; que tenham tido padres,
bispos e pregadores. Desejava-lhes bens ainda maiores: que
aprendam a conhecer todos estes dons; que aprendam a des-
cobrir o tesouro que possuem no seu Deus, em Cristo Jesus
incarnado, nascido, circunciso, morto, etc., na Virgem Ma-
ria, nos anjos e santos, nas coisas sagradas, nos mortos que
estão no purgatório, nas Escrituras, etc.» (Memorial, 147).
156 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Denota-se a prática dos Exercícios, com a aplicação detalhada


da mente e da devoção aos vários passos de vida de Cristo, alar-
gados também à vida da Igreja, militante, padecente e triunfan-
te, bem como às vicissitudes do mundo. Era com certeza o que
Fabro também induzia a fazer aos que instruía e acompanhava
espiritualmente. Uma fé mais comprovada, uma salvação mais
experimentada e, por isso mesmo, mais propensa à comprova-
ção pelas obras da fé ou da caridade. Visando com isto uma
certa totalidade de culto e de prática, em que nada realmente
sobrasse à graça e à vida, pessoal e colectiva.
Mas o que o definia absolutamente como cristão «católico»
era a certeza de que a graça divina se derrama no mundo através
de mil vidas e gestos, propriamente ministeriais, sacramentais,
eclesiais. Oiçamo-lo, pouco adiante:

«Com grandes luzes sobre os méritos de Jesus Cristo, apelava


à sua graça, pois foi por ela que para todos os homens […]
mereceu (com abundância além de qualquer expressão) todos
os bens […] para chegarmos à salvação […]. Mas ele quer
[…] que a distribuição a todos de todos estes bens não se faça
apenas por ele mesmo ou pelo Espírito Santo, mas por inter-
mediários que estabeleceu, que são diversos entre si e diversa-
mente repartidos segundo os homens» (Memorial, 149).

Neste ponto, tão necessária é a compreensão particular como


a geral das coisas. Porque Fabro insiste na graça conferida a cada
um para o cumprimento do seu próprio dever, imprescindível:

«Alguns (e isto aconteceu muitas vezes) inquietam-se em


procurar graças para cumprir obras universais, e ao mesmo
tempo negligenciam as tarefas particulares para as quais lhes
seria fácil encontrar a graça. Numerosos são os que sonham
Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 157

com coisas quase impossíveis, sem se preocuparem com “a


obra das próprias mãos”» (Memorial, 153).

Aqui encontramos já a regra essencial dos propósitos limita-


dos e adequados ao tempo e à condição de cada um, para, pou-
co a pouco, se chegar ao último fim. E nisto também encon-
tramos a modernidade de Fabro, insistindo na circunstância
pessoal, mesmo para que a graça vá permitindo a obra concreta
que cada um aceita e realiza, correspondendo à vontade divi-
na. Também em Lutero encontraríamos a densidade pessoal
da religião, como aconteceu tão dramaticamente no caminho
que trilhou e abriu, quase exclusivamente na fé. Mas no «ca-
tólico» Fabro, o caminho, sendo tão pessoal e particularizado,
encontrava nas obras – apostólicas as suas – a realização da fé e
igualmente o seu mérito, ganho de Cristo mas intrinsecamente
apropriado pelo crente.
Uma última alusão ao Memorial de Pedro Fabro, leva-nos ao
grande discernimento que, ainda antes do Concílio de Trento,
um católico particularmente lúcido já conseguia fazer sobre as
fronteiras mentais e espirituais que tragicamente se abriam na
altura. Não nos fixemos no tom apologético, mas na perspicá-
cia da análise, obviamente relativa:

«Notei então e senti de que modo alguns cristãos chegam a


separar-se da Igreja: começam por executar com frouxidão
crescente as obras e as práticas que respondem às diversas
graças e aos variados dons de Deus; assim são levados a julgar
negligenciável e sem valor tudo o que não reconhecem como
aquisição do seu próprio juízo. Procuram então razões para
a sua fé, a sua esperança, começando por duvidar de tudo;
esbanjam os dons difundidos pelo Espírito Santo, e perdem
a fé verdadeira, fundada na fé da Igreja e na comunhão dos
158 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

santos. E quando dissiparam tudo, querem estabelecer e pro-


curar eles mesmos uma fé que repouse sobre o seu próprio
juízo; procuram razões e examinam-nas, cada um por sua
conta; perscrutam as Escrituras e as suas interpretações, e de-
cidem do sentido a adoptar. E com tudo isso formam a sua fé
– ou antes as suas opiniões e erros» (Memorial, 218).

E assim, também por contraste, Pedro Fabro definia o


seu catolicismo, que ajudava a restabelecer na Igreja do seu
tempo: exercitando muito o seu discernimento, mas incluído
este na tradição eclesial mais vasta, sem nada perder do que a
experiência crente foi acrescentando, como teologia, devoção,
prática e magistério. Um exercício de realismo, pode dizer-se,
porque objectivava o seu próprio caminho no terreno sólido
da vida eclesial, sem se perder no subjectivismo já pressentido
na Europa quinhentista. E assim pôde servir também de com-
panheiro e guia para muitos que o procuraram então6. Diga-

Ainda que Fabro tivesse clara consciência das fraquezas do campo cató-
6

lico e insistisse na reforma interna. Cf. BERTRAND, Dominique – Pierre


Favre. In Ignace de Loyola, François Xavier, Pierre Favre. Namur: Fidélité,
2005, p. 80: «On le lit, ce que Favre retient dans sa fervante intention, c’est
non pas un simple retour au bercail des protestants, mais, à l’occasion du
schisme qui est en train de se perpétrer, il désire la reforme réelle de l’Église
dans ses ministères les plus largement humains et sociaux. On a là un des
traits constants de son diagnostic: c’est la faiblesse spirituelle et le manque
de charité vraie des catholiques qui font le lit de l’hérésie. C’est jusqu’à ces
deux points qu’il faut mener la réforme et donc prier pour le concile». De
facto, mais do que retomar um estádio anterior do Cristianismo europeu,
tratar-se-ia de o realizar finalmente. Assim o quereriam católicos e protes-
tantes: «L’hypothèse que nous voulons présenter ici à titre de direction
de recherche est alors la suivante: à la veille de la Réforme l’Occidental
Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 159

mos, para terminar, que na grande e nova geografia apostólica


que Inácio desenhava em Roma, Xavier foi o imenso desbra-
vador territorial e Fabro o muito lúcido definidor mental7.

moyen n’aurait été que superficiellement christianisé. Dans ces conditions


les deux Réformes, celle de Luther et celle de Rome, n’auraient été que
deux processus apparemment concurrents, mais finalement convergents
de christianisation des masses et de spiritualisation du sentiment religieux»
(DELUMEAU, Jean; COTTRET, Monique – Le Catholicisme entre
Luther et Voltaire. Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 329).
7
Cf. KOLVENBACH, Peter-Hans – Carta a todos os Superiores
Maiores. In Acolher o dom. Promover a missão. Nos Centenários de Inácio,
Fabro e Xavier. Lisboa: Província Portuguesa da Companhia de Jesus,
2005, p. 6: «Com efeito, sem os dotes de governo de Inácio e sem a garra
de um Francisco Xavier para levar por diante grandes empresas, Fabro
dedica-se ao acompanhamento espiritual de muitos que buscam a Deus,
pelo menos através desta trilogia de ministérios: confissões, conversas e
Exercícios».
161

SENTIR A IGREJA
Vasco Pinto de Magalhães, S.J.

ESQUEMA

Qual é a questão?

O «sentir» inaciano
. na espiritualidade de Inácio
. na sua história pessoal
. no contexto sócio-religioso da Reforma e do Humanismo
renascentista
. «dão-se Regras» para «sentir»
. uma pertença obediencial, em disponibilidade para a
missão
. a partir de Roma

Em Pedro Fabro (e Companheiros)


. a Igreja que está em toda a parte
. pensar globalmente, agir localmente
. adaptação/incarnação da vivência da fé em corpo
eclesial
. acolhimento e chamamento

O sentido de Família como paradigma


. como se adquire o sentido de pertença, o sentido de corpo
. à roda da mesa. Poder dizer «meu», «a minha casa»
. processos de identificação: o laço afectivo, o
conhecimento, a participação
162 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

. ser-se e sentir-se amado. As convicções fundantes e


fundamentais

Duas histórias
. uma pessoal
. outra bíblica: a casa do Pai

Sentir e assumir a pertença à Igreja no séc. XXI


. o paralelo com o tempo de Inácio
. a explosão das «espiritualidades» individuais, sem Igreja
. o laicismo (anticlerical) na cultura, na educação, nos
valores
. os crentes que oscilam entre o desencanto e os
movimentos de reforma elitista
. o apelo: uma linguagem, uma incarnação e participação
personalizadas

A Eucaristia como resposta que desafia e faz participar

. é à mesa da palavra e do pão que se refaz o corpo e a


identificação
. a Igreja faz a Eucaristia, a Eucaristia faz a Igreja
. bem-vindos à vossa casa! Lavem os pés! Recebam a bênção
para testemunhar!

Dão-se «Regras para se sentir Igreja», em discernimento e


missão, segundo o E.S.

. louvar tanto a viola como o órgão (depende!)


. louvar tanto as missas domésticas como o grande pontifi-
cal (conforme!)
Sentir a Igreja 163

TEXTO

SENTIR A IGREJA

Sentir a Igreja pressupõe a experiência agradecida de ter rece-


bido a fé de uma comunidade histórica, concreta e universal, real,
com nomes próprios, que para além das suas virtudes e defeitos
mantém o Evangelho vivo. E supõe que nos convertamos em su-
jeitos activos na comunidade, tomando a Igreja como um «nós».
«Sentir a Igreja» supõe ainda, primeiro, o «sentir com a Igreja» e,
depois, o «sentir em Igreja».

Qual é a questão?

A questão desdobra-se em duas: a da (nossa) identidade


cristã e a de como fazer despoletar o amor à Igreja. A primeira,
a questão da identidade, tem três vertentes, dependendo da
resposta que se dê às seguintes interrogações: Como se inte-
rioriza o sentido de pertença, sem perder a capacidade críti-
ca? Como se interioriza a co-responsabilidade de um modo
interpessoal? Como se interioriza uma obediência adulta? E
a questão complica-se, pois toda a identidade é fruto de uma
relação. Assim, da parte da mãe (da hierarquia): a Igreja mete-
-nos no seu regaço? Vai ao encontro dos crentes (todos) como
de filhos amados? Da parte do filho (dos fiéis): a Igreja aprecia
os valores e a história da estrutura e da autoridade? Deseja
participar?
A segunda questão, a do amor à Igreja, remete para âmbitos
ainda mais afectivos. Atrai-me e completa-me? Seduz e faz bem
164 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

a todos? A sua beleza, serviço e compreensão são credíveis como


libertação, começando pelos mais fracos e convidando-me a dar
de mim?
Eis, em termos humanos, o desafio.

O «sentir» inaciano

Começando pelo nosso primeiro paradigma, a experiência


e processo espiritual de Santo Inácio, o «sentir» tem uma co-
notação muito própria no seu vocabulário que aponta metas,
objectivos de identificação com Cristo e com a sua vontade na
Igreja. Alcançar a graça de sentir internamente ou do sentido
interno, eis o objectivo. Objectivo que é «trabalho» e é «dom»
que não busca experimentar sentimentos e emoções, mas in-
teriorizar convicções – é esse o nível! – que reestruturam a
vida e as opções. Trata-se de identificar e libertar os desejos
profundos que nos põem em comunhão com Deus e a sua
missão.
A história pessoal de Inácio, quer no seu percurso individual
desde a conversão, quer no ideal que comunicou aos seus com-
panheiros é um modelo certo para conduzir cada um no seu
«sentir» em ordem à missão, hoje. E o primeiro reparo é o de
ter em consideração o contexto sócio-religioso. O de Inácio era
o da Reforma protestante, por um lado. E por outro, o movi-
mento ascendente do Humanismo renascentista.
O segundo reparo é pedagógico. Embora, de si, «bastasse
a lei da caridade», mas da caridade discernida ou inteligente,
como diríamos hoje, é necessário «dar Regras», conhecendo a
natureza humana e os seus labirintos, para chegar ao tal «sen-
tir». Só assim essa experiência como decisão amadurecida se
Sentir a Igreja 165

tornará uma «pertença obediencial», em disponibilidade para a


missão que a Igreja venha a confiar à pessoa ou ao grupo.
Uma vez que este «sentire cum ecclesia» tem no horizonte
a missão e esta, em última análise, há-de vir de Deus, só nos
chega mediada pela comunidade enviada. Há-de incluir e en-
tender-se a partir de Roma, isto é, do vigário de Cristo.

Em Pedro Fabro (e Companheiros)

Este «sentir» foi parte integrante e estruturante das decisões


que levaram Inácio de Loiola e seus companheiros a entregar
a sua disponibilidade ao Papa, dando origem à Companhia de
Jesus. Este «cuidado» característico desta nova forma de vida
apostólica foi particularmente vivido por Pedro Fabro (a figu-
ra que hoje, neste colóquio, privilegiamos). Fabro, cumprindo
as missões que recebera, percorreu a Europa a pé, mas sempre
atento a cada caso, a cada terra, nas suas pregações e ajudas, em
discernimento personalizado. Os escritos do seu Diário Espiritu-
al revelam características essenciais desse «Sentir»: antes de mais,
viver consciente de que «a Igreja está em toda a parte» e, depois,
ter como atitude «pensar globalmente, agir localmente»!
Santo Inácio reconhecia e apreciava de tal modo as suas
qualidades de relação humana, discernimento e sentido de
Igreja que fez tudo para que ele integrasse o grupo que ia man-
dar ao Concílio de Trento. Apesar da sua pouca saúde e de não
ter o brilho teológico dos outros dois escolhidos como teólo-
gos do Papa, Laynez e Salmeron, fê-lo vir de Espanha, mesmo
que chegasse tarde. Nas suas «Instruções para os delegados a
Trento», Inácio escreveu, expressamente: «seja lento em falar,
ponderado e amoroso», sobretudo se vierem à colação defini-
166 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

ções ou temas, tratados em Concílio. Tenha todo o cuidado


«em sentir e conhecer os entendimentos, afectos e vontades
dos que falam, para melhor responder ou calar». Na discussão,
quando é possível, arguir a favor ou contra «não deixando nin-
guém descontente». Eis a arte, arte de «sentir em Igreja», eis o
retrato de Pedro Fabro. Santo Inácio conhece-o. A Instrução
tem três capítulos: 1) Para conversar. 2) Para ajudar as almas.
3) Para mais nos ajudarmos (in Recuerdos espirituales, n. 21 da
Colecção Manresa, pág. 98).
Tudo isto faz parte do inaciano «Modo de proceder» e está
explícito nas «Regras para sentir com a Igreja». Abrindo o Diário
de Fabro são imensos os exemplos. Certa vez, visitando a cidade
de Espira, Agosto de 1542, escreve: «em vésperas da Assunção
experimentei muita devoção… as cerimónias, as velas, os can-
tos, o órgão, as relíquias… tudo me dava uma devoção que não
sabia explicar. Louvava e bendizia. Tudo me levava a ter mais
em conta essas pequenas obras de uma fé católica e simples do
que os subidos graus da fé ociosa dos que subestimam a Igreja
jerárquica».
Por entre este zelo quase excessivo dos primeiros tempos e
próprio da época, passa uma linha perene de espiritualidade
marcada pelo sentido teológico da adaptação, da inculturação
(diríamos hoje), como incarnação da vivência da fé em corpo
eclesial, traduzida em gestos de acolhimento e chamamento.

O sentido de família como paradigma

O protótipo do «sentido de Igreja» e de «sentir-se Igreja»


continua a ser dado pela narrativa da vida da primeira comu-
nidade cristã, nos Actos dos Apóstolos, saída da certeza «compro-
Sentir a Igreja 167

vada» da Ressurreição. Mas ela representa mais uma utopia e


um horizonte que uma realidade quotidiana conseguida. Daí a
busca de um paradigma mais próximo.
«Como se adquire o sentido de pertença, o sentido de
corpo?»
«À roda da mesa», primeira resposta. Ou, no poder dizer
«meu», ou é «a minha (nossa) casa».
A primeira Regra para «sentir» a Igreja é falar dela em pri-
meira pessoa.
Os processos humanos de identificação, como sabemos, são
primeiramente afectivos. Não são as ideias que nos separam
(ou reúnem), mas os sentimentos que para além delas e por elas
nos envolvem. As identificações vão do laço afectivo ao conhe-
cimento e deste à participação.
São as experiências pré-conceptuais, como a de estar sen-
tado à mesa a repartir o pão, que me permitem sentir-me
em minha casa e que me vinculam. Tem razão Santo Inácio
quando diz que os Exercícios «são para ordenar afectos»; e
tem razão a teologia quando põe a Eucaristia como o «lugar»
teológico onde nasce (continuamente) a Igreja.
Daí também que a Evangelização não se possa resumir à
pregação, mas é esta acompanhada de todo o modo que leva o
outro a saber-se e a sentir-se amado.
Assim florescem as convicções fundantes e fundamentais de
se «estar e permanecer no sítio próprio».

Duas histórias

As histórias ajudam a aterrar, «incarnar». Duas breves histó-


rias, uma pessoal e real, e outra bíblica, já bem conhecida.
168 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A primeira: em certa família numerosa, o filho mais novo,


queixoso, quis falar com o pai. «Nesta casa todos mandam, me-
nos eu», disse. «O pai manda em todos, a mãe manda na casa,
a mana mais velha manda em nós, o mano a seguir manda no
quarto dele,… e assim por diante. Só eu não tenho em quem
mandar». «Está bem», disse o pai, pensativo, «vou ver o que
posso fazer». Nessa tarde, o pai chegou a casa trazendo uma
gaiola com o respectivo passarinho e chamou o Joãozinho.
«Pronto, neste mandas tu, tratas tu». Passados alguns dias, o
pai entra no quarto do miúdo e… que vê? Janela aberta, gaiola
vazia, e o João, entre atento e satisfeito, olhava o céu. «Então,
João, o passarinho?» «Mandei-o voar!»
… Haverá maior autoridade que gere comunhão e obediên-
cia do que aquela que liberta e faz voar?
A segunda história está no capítulo 15 de S. Lucas. Um pai
tinha dois filhos e o mais novo disse ao pai… Todos conhe-
cemos bem a parábola do Pai. Não a vou repetir, mas apenas
lembrar a questão que ela levanta: Afinal, quem está na casa do
Pai? Quem a sente como sua? O filho mais velho que estava,
mas não permanecia? O mais novo, que finalmente a desejava?
Como e quem nos faz «sentir na casa do Pai»?

Sentir e assumir a pertença à Igreja no séc. XXI

Sentir-se Igreja num mundo paradoxal e onde parece ter


desaparecido um horizonte comum de convergência, sem
«para quê», nem futuro, eis o desafio actual. Por um lado,
crescem em profusão as ditas «espiritualidades», individua-
listas, de conveniência e até sem Deus, substituindo a ideia
e o compromisso que faz a comunidade por grupos voláteis
Sentir a Igreja 169

de empatia emocional. Por outro lado, surgem, na tentativa


de enquadrar a sociedade, organizações radicalmente laicis-
tas, apostadas em demolir o passado «clerical», bem como
movimentos de opinião pró-liberalismo moral de consumo
individual.
Desafio à criatividade, à espiritualidade pessoal, ao renasci-
mento de um saudável e adulto sentido de corpo, renovado na
linguagem e no respeito.
Como primeira ajuda, reparemos nas muitas semelhanças
deste tempo com o de Santo Inácio. Também, então, se mul-
tiplicavam as espiritualidades e até as «religiões» despoletadas
pelo «livre exame» protestante. Hoje renasce o laicismo ateu,
então surgia a corrente do Humanismo desligado da Igreja. Há
diferenças, mas se, então, se encontrou o caminho, também
hoje se pode encontrar.
Então, multiplicavam-se as Igrejas; hoje, põe-se em causa
a própria ideia de Igreja: a sua imagem de contrapoder e de
ordem, sobretudo no campo moral, gera rancores e agressivida-
des, nem sempre subliminares, acompanhada, no pólo aposto,
de impulsos ultra-conservadores, também violentos.
E, contudo, sente-se um desejo – subjacente – de unidade e
de paz, de diálogo e cooperação na justiça, levados por diante,
de modo concreto e eficaz, por grupos de voluntariado, quando
é claro que as políticas tradicionais e até aqui endeusadas, não
são capazes de respostas credíveis. Pelo contrário, consomem-se
em lutas internas de poder.
De tudo isto resulta, também, como que uma outra via, o
desencanto pessimista que fala de «fins dos tempos» e toma
posições extremadas de desistência ou de terrorismo.
Por onde seguir? Como prosseguir, por entre estes fluxos de
«cisma emocional» que vão desde um vazio, como é hoje a cha-
170 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

mada «sociedade de espectáculo», até às «doentes ortodoxias»


restauracionistas?
Com olhos de ver, há sinais de esperança, de renascimento
da Igreja, Mãe e Mestra, corpo de salvados para salvar, em tor-
no da Eucaristia. Creio que passa por aí a luz que precisamos.
Está no ar o apelo que já não se pode calar a uma linguagem,
uma inculturação (incarnação e participação) personalizadas.
Está no ar o apelo a viver na inter-religiosidade.
Se a Igreja perde credibilidade social é, também, porque não
mostra suficientemente a sua capacidade de inclusão.

A Eucaristia como resposta que desafia e faz participar

A resposta proposta é a recuperação e renovação da vivência


da Eucaristia. Sem restauracionismos rituais saudosistas, mas
indo discernidamente ao encontro do futuro.
É à mesa da palavra e do pão que se refaz o corpo e a
identificação.
É à mesa, «no repartir do pão», que a família se encontra e
reencontra; é esse o mais antigo sinal de humanização, o «co-
mer juntos» como nenhum animal o faz; é nessa troca que a
amizade e a reconciliação acontece.
Só pode ser esta a saída da diluição e a entrada a sentir em
Igreja.
Já a teologia o afirma: «A Eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz
a Eucaristia».
Sentir a Igreja: bem-vindos à vossa casa! Lavemos os pés uns
aos outros… Recebam a bênção (o mandato e a força) para
testemunhar. Mandemos voar!
Sentir a Igreja 171

Este é o grande desafio que a Igreja enfrenta: mais que ce-


lebrar eucaristias, tornar-se eucarística. Isto é, a Igreja como
comunidade dos crentes que inclui a hierarquia, não acima,
mas por dentro, como seu esqueleto e guia inspirador, há-de
aparecer, em todo o seu viver, como gratuita e agradecida. Ou
seja, eucarística. Cabendo a todos, nesse «sentir», a responsabi-
lidade de a conservar e apresentar como mãe universal, inclu-
siva, como corpo de Cristo, espaço e relação de salvação: porto
de abrigo, casa da paz, da comunhão e da festa…

Guardem-se «Regras para sentir a Igreja», em discernimen-


to e missão, segundo o Espírito Santo

Para pôr em prática tudo o que fica dito, embora bastasse


«a lei do amor inteligente», segundo o Espírito, que nos faz
ser (e sentirmo-nos!) Igreja, a nossa condição de pecadores re-
conhece a necessidade de Regras e pedagogias para quem está
em construção. Assim o fez Santo Inácio. E começou, com
um sentido profundo de fidelidade à Tradição, por «mandar»,
insistentemente, que a primeira atitude fosse a de se alegrar e
ver o lado positivo de tudo. Isto é: louvar.
Com o mesmo espírito de fidelidade que é o de «dar fu-
turo e expressão actualizada» à riqueza recebida, também,
hoje, as Regras que têm a sabedoria de promover grandes
Princípios através da atenção às coisas pequenas, poderiam
começar assim:

. Louvar tanto a viola como o órgão, dependendo do bom


senso litúrgico!
172 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

. Louvar tanto as missas domésticas como os grandes pon-


tificais, conforme as situações de lugar e tempo, aferindo a
linguagem para uma nova evangelização!
. Louvar!...
173

PEDRO FABRO E O CARISMA


DA COMPANHIA DE JESUS
Luís Rocha e Melo, S.J.

Introdução

Toca-me falar, esta tarde, de Pedro Fabro, o menos conhe-


cido dos três que celebramos neste centenário, e do carisma
da Companhia de Jesus, o mais conhecido da maioria dos
presentes. Podemos ligar os dois temas sem dificuldade. O
carisma de fundador da Companhia foi dado por Deus a Iná-
cio de Loiola como único, exclusivo e intransmissível, tanto
quanto também Inácio é único e irrepetível; mas esse inclui
outro não menos importante: o da capacidade de comunicar a
outros o que ele mesmo viveu e experimentou, por dom e por
graça. O carisma de fundador transforma-se assim em carisma
fundacional, compartilhado a seguir por seis companheiros da
Sorbona e pouco depois por mais três. Pedro Fabro, rapaz pie-
doso e bem formado no seio de família profundamente cristã,
foi o seu primeiro companheiro de quarto, no colégio de Santa
Bárbara, no quartier latin de Paris, juntamente com Francisco
Xavier. Um acaso ou uma coincidência que, não só à distância
de cinco séculos, levantam uma questão pertinente: há acasos e
coincidências, ou nada acontece por acaso? Um vem de Xavier,
da Província de Navarra, outro de Villaret, uma aldeia per-
dida na Sabóia, em França, e outro de Loiola, no País Basco,
convencido de que, para «ajudar as almas», tinha de estudar e
que, depois de más experiências em Alcalá e Salamanca, decide
procurar a capital da cultura de então, Paris. Não se conheciam
174 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

de parte nenhuma. Também lá estava um português, Simão


Rodrigues, enviado pelo Rei D. João III. Acaso, coincidência?
Certamente que sim, mas com a assinatura divina, bem legível
poucos anos depois. Para responder à pergunta, no entanto,
de forma adequada, tínhamos de entrar no mistério de Deus
que não manipula os acontecimentos da história, mas deixa em
todos a sua assinatura. Está escondida, como todo o mistério.
É preciso lê-la e discerni-la, sem a pretensão de descodificar o
mistério: o Senhor nosso Deus transforma o acaso em desígnio
de amor, e o desígnio de amor transforma-se em acaso. Inácio e
os primeiros Companheiros insistiam que a criação da Compa-
nhia era obra de Jesus Cristo e não deles. Tinham toda a razão:
Ele, o Senhor, os juntou misteriosamente em Paris, sem que
fosse violada a história e a liberdade de cada um.
Já experiente nos caminhos de Deus, no discernimento e no
aconselhamento espiritual, Inácio não propôs logo a experiên-
cia dos Exercícios a Pedro Fabro, porque o encontrou enreda-
do em tremenda crise de escrúpulos. Não estava em condições
de enfrentar uma experiência tão forte como a de um mês na
solidão, face a face com o Criador e Senhor de todas as coisas.
Aguardou quatro anos, até que a crise estivesse resolvida, para
lhos propor. Dele diria mais tarde o próprio Inácio que, de
entre os companheiros, era Fabro quem melhor entendera os
Exercícios e quem melhor os dava a outros.

1. Carisma e instituição

Não é fácil, talvez seja impossível definir um carisma. É


dom de Deus particular, mas como dom que vem do alto, per-
tence ao âmbito do mistério e da linguagem inefável, aquela
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 175

que não é exprimível em palavras humanas. É mais fácil falar


do antes, nas origens, e do depois, ou dos efeitos que ficam.
Em si próprio, não podemos dizer muito mais do que isto: é
energia de santificação pessoal e grelha de leitura do Evange-
lho que lança a pessoa em missão. É uma óptica particular que
penetra o multifacetado mistério de Cristo através de um pon-
to específico ou de uma porta de entrada, que dará a quem o
vive um modo de ser e de estar em Igreja, ou um modo de pro-
ceder também específico. Não desvia quem o vive do essencial
do mistério; a porta de entrada permite, pelo contrário, a sua
compreensão mais profunda. Não esqueçamos que o carisma é
dom do Espírito Santo que tudo penetra até às profundidades
de Deus (1 Cor 2, 10). Tomado neste sentido, o carisma foi
dado por Deus a Inácio de Loiola.
Como o de todos os fundadores, é contagioso por dom de
Deus e por empatia saudável no contacto, na convivência, no
confronto. A tal ponto, no caso dos nossos primeiros com-
panheiros, que André Ravier começa o seu livro «Inácio de
Loiola funda a Companhia de Jesus» com estas palavras: «Um
título que teria feito Bobadilha rugir – e, como ele, os demais
Primi Patres1, embora com vozes menos fortes, mas igual-
mente firmes! Simão Rodrigues, com certeza; mas também o
humilde Fabro e até mesmo o amigo de Inácio, Xavier. Não
só: o próprio Inácio teria protestado». Duas razões os teriam
levado ao protesto: a primeira era o facto de a Companhia
ser obra de Jesus Cristo, como já disse, bem mais do que dos

1
«Os Primeiros Padres»: os primeiros seis companheiros de Inácio de
Loiola: Pedro Fabro, Francisco Xavier, Simão Rodrigues, Tiago Laynez,
Afonso Salmerón, Nicolau Bobadilla. Algum tempo depois, juntam-se ao
grupo Cláudio Jay, Pascual Broet e João Codure.
176 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

homens; a segunda provinha da história: todos se considera-


vam co-fundadores: juntos tinham feito, de facto, o voto de
Montmartre; todos se tinham oferecido ao Papa para os enviar
para onde fosse preciso e todos tinham resolvido, em 1539,
depois da famosa Deliberatio Patrum2, constituir-se em ordem
religiosa; todos também, finalmente, tinham eleito o primeiro
superior Geral, na pessoa de Inácio. A comprovar a tese da
co-fundação, acrescenta o mesmo autor que Inácio dava par-
ticular atenção, no governo da Companhia como Geral, aos
primeiros companheiros.
Embora sejam fortes os argumentos em seu favor, e tenha-
mos de aceitar a participação de todos os companheiros na
criação da Companhia, a tese não é sustentável na totalidade.
O carisma da Companhia veio de Deus que o infundiu em Iná-
cio. Não lho manifestou desde Loiola, Manresa ou Jerusalém,
mas estava lá desde a sua conversão. Os Exercícios, experiência
determinante da espiritualidade dos primeiros companheiros e
da nossa, nasceram em Manresa por inspiração de Deus, confir-
maram-se talvez na iluminação do Cardoner, e completaram-se
pela vida fora na pessoa de Inácio. Mesmo que a nova ordem
religiosa, aprovada em 1540, fosse obra de todos os compa-
nheiros, aquilo a que chamamos o carisma fundacional ou a
linha de rumo espiritual que dá forma a um estilo de vida evan-
gélico e a um modo de proceder particular pertence a Inácio. O

«A Deliberação dos Padres»: foi um discernimento comunitário fei-


2

to pelos dez companheiros, em oração, penitência e reuniões, que durou


cerca de três meses (de Março a 24 de Junho de 1539); chegaram, por
unanimidade, à conclusão que deviam permanecer juntos e fazer voto de
obediência a um deles. Era esse o objectivo da deliberatio. Aí nasce a Com-
panhia de Jesus, aprovada depois por Paulo III.
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 177

Senhor nosso Deus, pródigo nos seus dons, terá dado também
aos outros o dom de se identificarem com o carisma de Inácio
e de o compartilharem num estilo de vida próprio, na amizade
de uns pelos outros e na missão comum que todos assumiram.
Talvez possamos então concluir: a criação da Companhia de
Jesus e a sua institucionalização como ordem religiosa na Igreja
do século XVI é obra dos dez primeiros companheiros. Mas o
carisma fundacional é exclusivo de Inácio de Loiola.

Permitam-me que clarifique a noção de carisma, se for pos-


sível clarificar o dom de Deus que é, por natureza, inefável e
indizível. A palavra, usada por S. Paulo, vem de karis, que signi-
fica graça. Graça é dom de Deus. Continuando em S. Paulo, o
carisma é dom de Deus particular, dado a algum ou alguns, em
função do bem comum. «A cada um é dada a manifestação do
Espírito, para proveito comum» (1 Cor 12, 7). Assim sendo, de
particular, o carisma é universalizado ao ter em vista o bem da
Igreja, sinal do Reino de Deus. Não existe por si próprio nem
para si próprio, mas em função da salvação de todos. Visa a cari-
dade fraterna e nada vale sem ela, no dizer do mesmo S. Paulo no
capítulo 13 da carta citada. Concretiza-se no serviço dos irmãos.
Podem, infelizmente, corromper-se, se faltar o essencial. Um dos
sintomas de perda da sua energia aparece quando os que o vivem
se voltam sobre si e o tomam como fim para si mesmos.
«O vento sopra onde quer, não sabemos de onde ele vem
nem para onde vai», diz o Senhor a Nicodemos (Jo 3, 8). Na
admirável Providência de Deus, o Espírito age quando quer e
muito bem entende, para o maior bem dos fiéis e do mundo.
É, por isso, imprevisível, espontâneo e não está dependente
nem da vontade nem das estruturas feitas pelos homens. Não
pode ser manipulado; pode e deve ser acolhido em atitude de
178 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

reverência, acatamento, amor e acção de graças. Também a


Igreja é por essência carismática; basta ler com atenção os Actos
dos Apóstolos para conhecer o agente principal da sua expansão
no primeiro século. Os apóstolos vão atrás do Espírito Santo
e nunca à sua frente. Pouco a pouco, no entanto, um novo
dom é dado à Igreja, já previsto por Jesus Cristo ao constituir
a Pedro como Pastor do seu rebanho: o carisma, de facto, não
se perpetua no tempo, se não for apoiado pela instituição que
existe para sua protecção: para o conservar, o preservar de pos-
síveis desvios, para o discernir dos falsos carismas e dos falsos
profetas que sempre existiram, e o estimular caso perca o seu
vigor inicial.
O mesmo acontece na Companhia: a «deliberatio patrum»3
deu como resultado uma decisão unânime: para que não se
perdesse a unidade do corpo e, diríamos nós agora, para que
não se perdesse o carisma fundacional, era necessária a criação
de uma estrutura ou de uma instituição, e que todos se vincu-
lassem em obediência a um deles. O Espírito Santo iluminou
a mente de todos com um novo dom: o da institucionalização
do carisma, com a criação de uma nova ordem religiosa. Tendo
em conta o pensamento de S. Paulo que dá importância à Pre-
sidência, não vejo por que não entender a instituição também
como carisma. Há complementaridade indispensável e não
oposição entre carisma e instituição. É verdade que há sempre
tensão entre um e outro e pode acontecer, nalgum caso, que a
instituição abafe o carisma, a criatividade e a espontaneidade
que lhe são próprias. Pode ter acontecido isso à Companhia,
depois sobretudo da sua supressão e da sua restauração, que
surge 60 anos mais tarde, a 7 de Agosto de 1814, em plena

3
Cf. nota 2.
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 179

época jansenista. Os da antiga Companhia eram poucos e


de idade avançada. Os novos de então não podiam não estar
aculturados na mentalidade do seu tempo. De há 50 anos para
cá, penso que a Companhia vai retomando cada vez mais o
equilíbrio entre carisma e instituição, embora a perfeição não
seja deste mundo.

2. O carisma da Companhia

Qual será essa grelha de leitura que levou Inácio a ser o que
é e a comunicar aos outros o que ele próprio viveu? A resposta
não é fácil, mas arrisco um ponto de vista: é o próprio Cristo,
Rei e Senhor universal, cujo eixo fundamental de vida, à volta
do qual se movem todas as suas decisões e todos os seus passos,
é a vontade do Pai. «O meu alimento é fazer a vontade daquele
que Me enviou e consumar a sua obra» (Jo 4, 34). «Desci do
Céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele
que Me enviou» (Jo 6, 38). Na kenose de todo o seu ser divino,
o homem Jesus de Nazaré, unido ao Pai, com o qual é um só,
vive continuamente em atitude de escuta e de discernimento
dessa vontade. A sua liberdade é total para a seguir, a ponto de
dar a vida livremente (Jo 10, 18).
Acrescento, como parte integrante do carisma de Inácio,
a experiência dos sentidos espirituais na contemplação e, por
isso, na assimilação do mistério de Cristo. «Não é o muito
saber que farta e sacia a alma, mas o sentir e gostar as coisas
internamente» (EE 2). Quem saboreia as coisas por dentro,
mais facilmente se entusiasma pelo seguimento de seu Senhor.
E quanto mais se entusiasma, mais deseja conhecê-Lo inter-
namente para mais O amar e seguir. A contemplação inaciana
180 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

termina sempre com a «aplicação dos sentidos», que torna a


experiência de Cristo vivencial e desperta o apetite e o desejo de
estar com Ele, de ser como Ele, e de ser enviado em missão. É
o saborear contemplativo de um ponto ou de um todo, em que
a pessoa é convidada a repousar, para que a vida seja impregna-
da pela matéria contemplada. Como a gota de água que entra
numa esponja, o espírito de Jesus contemplado nos mistérios
da sua vida, morte e ressurreição, vai embebendo todos os po-
ros espirituais do contemplativo.

Inácio de Loiola, os primeiros companheiros e a Companhia


de Jesus são carisma dado por Deus à Igreja. Não é por acaso
que pertence à sua essência ser um corpo de homens em atitude
de serviço: «Todo aquele que pretender alistar-se sob a bandei-
ra da cruz, na nossa Companhia, que desejamos se assinale com
o nome de Jesus, para combater por Deus e servir somente ao
Senhor e à sua esposa, a Igreja, sob a direcção do Romano Pon-
tífice, Vigário de Cristo na terra, depois dos votos solenes de
pobreza, castidade e obediência, persuada-se que é membro da
Companhia» (Fórmula do Instituto de 1550, aprovada por Júlio
III). O quarto voto de obediência ao Papa que fazem todos os
professos da Companhia, não apenas vincula o companheiro
de Jesus à pessoa do Vigário de Cristo, como também simboli-
za toda a atitude espiritual de um corpo em missão, em Igreja,
ao seu serviço e ao serviço do Reino, onde e como o entender o
Vigário de Cristo na terra. As regras que nos deixou o fundador,
nos Exercícios Espirituais, sobre o sentir com a Igreja, tradu-
zem a sua espiritualidade eclesial. Foi assim que Xavier e Simão
Rodrigues partiram para Portugal e o primeiro para aquelas
terras a que chamavam Índias, e que Pedro Fabro percorreu
as terras da Alemanha, como teólogo católico, na tentativa de
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 181

procurar consensos com a reforma protestante, no Colóquio de


Worms e na Dieta de Ratisbona. Naturalmente, nessas viagens,
não se limitou a dialogar com os protestantes. Deu Exercícios a
muita gente, atendeu em direcção espiritual gente rica e gente
pobre, acudiu aos hospitais e socorreu os desamparados, como
é próprio também do carisma da Companhia.

2.1. Os exercícios espirituais

Pedro Fabro era especialista em dar os Exercícios. Aproveito


esse dado para dizer que o carisma de Inácio e o da Companhia
têm neles a sua raiz. Devemos procurá-lo, em primeiro lugar,
na própria pessoa de Inácio e no seu itinerário espiritual, desde
a conversão em Loiola, depois dos ferimentos em Pamplona,
até ao primeiro Geral da Companhia; a sua autobiografia e
o seu diário espiritual, as Constituições que deixou para este
corpo em missão, além dos milhares de cartas que chegaram
até nós, dão-nos a ideia da sua personalidade espiritual. Não é
possível, nesta conferência, abordar todos esses campos.
Gostava de me limitar aos Exercícios para ir à fonte. Quan-
do os aprovou, Paulo III deixou esta afirmação: Digitus Dei est
hic, «está aqui o dedo de Deus». Não podia não ser verdade, se
olharmos para os 466 anos de História da Companhia e para o
presente, onde os Exercícios continuam a ser dados com toda
a potência espiritual que contêm. Surgem de uma experiência
de Inácio, vivida por acção do Espírito Santo, ele que se con-
siderava, em Manresa, como menino conduzido pelo Mestre-
-escola, seu Senhor e seu Deus. Não são mais nem menos do
que um modo e uma ordem ou um método (EE 2), ou ainda
uma pedagogia que ajuda a levar o Evangelho para a vida. Su-
põem, por parte de quem os faz, «grande ânimo e liberalidade
182 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

para com seu Criador e Senhor, oferecendo-Lhe todo o seu


querer e liberdade» (EE 5), ou um grande desejo de amar e
servir a Jesus Cristo e ao seu Reino. Sem esse pressuposto, não
vale a pena fazê-los, embora esse desejo possa eventualmente
surgir depois de começados. Mas que haja ao menos desejo de
ter desejo.

2.2. Os efeitos que ficam

Também não é possível, neste contexto, descrever os


Exercícios, como fonte primeira do carisma de Inácio. Esse
trabalho foi feito, aliás, em sessões destas anteriores que estão
publicadas. Gostava de comunicar apenas, se for capaz, os
efeitos que ficam nas pessoas que os fazem, os assimilam e os
tomam como linha de rumo. Os Exercícios, a formação que a
Companhia nos transmite na sua longa experiência, a missão
que se assume em obediência e tudo o mais que faz parte da
vida de um jesuíta, deixam marcas bem definidas na pessoa
de cada um. Por outras palavras, criam identidade que, não
sendo nem melhor nem pior do que outras, é uma identidade
bem definida que se expressa, naturalmente, no que Santo
Inácio chamava «o nosso modo de proceder». Apesar disso, ou
talvez por isso e porque tocamos o inefável da acção de Deus
na pessoa humana e todo o mistério que a envolve, sinto-me
sempre atrapalhado para definir em termos claros e distintos a
identidade do carisma inaciano, no que ele tem de mais pro-
fundo. Ao darem rumo e sentido ao exercitante, convidado
desde o início a centrar o coração no essencial, ao proporem o
ordenamento da vida pondo no seu lugar as afeições desorde-
nadas; ao libertarem assim a liberdade de quem os faz para que
procure e encontre a vontade de Deus e tome decisões por ela,
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 183

os exercícios dão a quem os vive uma coluna vertebral direita,


sem escolioses, embora extremamente flexível. No essencial,
homem de carisma inaciano sabe o que quer e para onde vai,
mesmo que tenha imensas dúvidas pelo caminho.

3. O discernimento dos espíritos

A flexibilidade da coluna vertebral direita vem do discer-


nimento como atitude de vida e do humanismo que também
pertence ao carisma de Inácio de Loiola. A sua pessoa, em
primeiro lugar, o ambiente renascentista que absorveu em Pa-
ris, a maneira como Deus o conduziu no meio de tudo isso,
tornou-o humano, capaz de entender o ser humano e de ler os
acontecimentos a partir de dentro. O discernimento, como ele
o entende e de acordo com as regras que para isso nos legou,
não pode não ser humano. É sabedoria que vem do Alto, mas
que se instala no centro da alma para lhe dar a compreensão
das alegrias e dos sofrimentos dos outros seres humanos. O
discernimento inaciano é amoroso; inteligência e amor fun-
dem-se misteriosamente e criam, por acção do Espírito Santo,
uma corrente de sabedoria comparável à da Palavra de Deus,
eficaz e mais afiada do que espada de dois gumes: penetra até
à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas,
e discerne os sentimentos e intenções do coração (Heb 4, 12).
O discernimento leva à compaixão e à misericórdia, no seu
sentido etimológico: leva a sofrer com quem sofre (maneira
exclusiva de entender o sofrimento alheio), ou a ter coração
perante o miserável, que o mesmo é dizer, a meter-se na sua
pele e sentir o que ele sente. A inteligência da vida é a capaci-
dade de a ler por dentro, a própria e a alheia; mais do que as
184 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

ideias ou as estruturas, é o amor que tem um «dentro», imen-


samente inteligente para acolher e compreender, e encontrar
a palavra certa no momento certo para humanizar as situações
e os desafios que a vida oferece. Homem de discernimento vê
em profundidade, em primeiro lugar, as maravilhas de Deus
em si e nos outros que dele se aproximam e se abrem, e vê
também as suas deficiências, debilidades ou desvios com rea-
lismo, as próprias e as alheias, mas não para julgar e condenar
as pessoas e colocá-las na prateleira dos inúteis ou dos pecado-
res incorrigíveis; pelo contrário, olha para tudo com o olhar
com que Deus o olha, que é de acolhimento, compreensão e
misericórdia. O discernimento dos espíritos, enquanto dom
do Espírito Santo, enumerado por S. Paulo na primeira Carta
aos Coríntios (12, 19), envolve o homem todo até ao mais
profundo de si mesmo e dá-lhe um modo de ser e de estar no
mundo: como a Balaão, transforma-o «em homem de olhar
penetrante» (Nm, 24, 3.15), capaz de ver e de ajuizar, não
segundo os seus próprios critérios, mas segundo os critérios
de Deus.

3.1. A unidade interior

Aí nos levam os Exercícios, segundo o dom de Deus e a


maneira de ser de cada um, única e irrepetível. Neste sentido,
podemos falar do carisma da Companhia, no de cada jesuíta,
e no de cada pessoa que vive a espiritualidade inaciana como
leigo ou leiga. Usei há pouco uma metáfora para tentar des-
crever os efeitos que ficam na pessoa que vive os Exercícios
na missão concreta do dia-a-dia. Disse que o seu dinamismo
interno gera pessoas de coluna vertebral direita, mas flexível.
Gostava de acrescentar mais um dado para explicitar a metá-
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 185

fora: os exercícios, aparentemente divididos em quatro partes,


com um prólogo e um epílogo, são um todo, uno e indivisível,
como a túnica de Cristo, feita de uma só peça, sem costuras.
São ordem e método que trazem para a vida a história da sal-
vação ou o desígnio de Deus a respeito do homem que, reve-
lado e comunicado no tempo, introduz o ser humano, frágil e
limitado, no mundo de Deus. Ser homem de Exercícios não é
mais nem menos do que ser cristão. É-se cristão quando, por
desígnio do Pai e na energia do Espírito Santo, a pessoa se vai
tornando conforme à imagem de Cristo, ou reproduz a forma
Christi, como gostavam de afirmar os padres antigos. Assim o
diz também S. Paulo na Carta aos Romanos (8, 29). A unida-
de do humano e do divino, que se encontra em perfeição na
pessoa de Cristo, é transmitida ou comunicada a quem se dei-
xou alcançar por Ele, e deseja identificar-se cada vez mais, no
amor, com quem sabe que tanto o ama. A pessoa recebe, por
dom e por graça e em colaboração com ela, a própria unidade
do Verbo encarnado. A vida de Deus, eterna por definição, foi
derramada nos corações pelo Espírito Santo. O eterno, por sua
vez, é uno, sendo trino. Desse modo, a unidade de Deus vai
preencher, pouco a pouco, todos os espaços deste ser humano,
dividido, limitado, sujeito ao tempo e à dispersão. O homem
é então convidado a viver, no presente, uma centelha de vida
eterna, a plena unidade de Deus.
Na sua unidade e sinteticamente oferecidos em trinta dias,
os Exercícios são um percurso que representa a caminhada es-
piritual da pessoa, desde o seu baptismo até ao último instante
da vida, para desabrochar na plenitude do Reino. A unidade
de que falo, como parte integrante do percurso, vai emergindo
naturalmente e pouco a pouco, ao longo dos anos, na alma
fiel. É corolário existencial do dom de Deus que encontra
186 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

terreno fértil. A pessoa nem sabe como ela aparece e nada fez
de concreto que se possa apresentar como causa. Permite-lhe
estar presente, toda inteira onde está, sem pressa existencial
de passar adiante, como se o presente lhe não agradasse e
quisesse fugir dele. Pelo contrário, compreende então o gosto
pela vida. Está simultaneamente em si e fora de si, presente
ao outro, capaz de lhe abrir a interioridade e, reciprocamente,
de entrar na dele, se lhe for permitido. Dessa forma, unidade
e discernimento dão-se as mãos. Em ambos reside a liberda-
de dos filhos de Deus que compreende ser o sábado para o
homem e não o homem para o sábado (Mc 2, 27). Liberdade
também para estar em campos de fronteira e assumir os riscos
inerentes a quem vive para dar a vida.

3.2. O dom do conselho

Homem disperso e problematizado não está em condições


de ler o que se passa no centro da alma de quem o procura. Ho-
mem amadurecido na pedagogia dos Exercícios supera os pro-
blemas pessoais; as possíveis desolações espirituais vão sendo
progressivamente substituídas pela paz profunda que o Espírito
Santo infunde nos corações. Terá sofrimentos e contrariedades
que a vida lhe oferece, mas saberá enfrentá-las sem perder a
cabeça. No Horto das Oliveiras, houve angústia e pavor, mas
não descontrolo. Faço notar, neste contexto, que Santo Inácio
não fala em desolações espirituais nas regras do discernimento
de segunda semana. Distingue as consolações verdadeiras das
falsas e dá-nos critérios para as distinguir. Mas a partir de certo
ponto do caminho, não há, em princípio, desolações espirituais
propriamente ditas. Há dificuldades, certamente. Mas a robus-
tez da estrutura interior adquirida pelo exercitante acusa,
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 187

naturalmente, as dificuldades ou problemas que adiante


possam surgir, mas mais dificilmente entrará em crise
propriamente dita. Como as etapas da vida espiritual não são
compartimentos estanques e não costumam ser completamen-
te superadas nas seguintes, não é de forma alguma impossível
que apareça alguma desolação espiritual em fases adiantadas do
itinerário. Da mesma forma acontece ou pode acontecer que,
em altos níveis de união com Deus, seja a pessoa sujeita ainda
a tentações de primeira semana.
Homem não problematizado, na unidade do presente,
está preparado para ser conselheiro espiritual, acompanhante
espiritual, ou director espiritual, conforme os gostos na termi-
nologia. O discernimento dos espíritos é corolário dos dons
de Sabedoria e de Conselho. A primeira acção destes dons,
em ordem lógica, não necessariamente temporal, é a de des-
problematizar e unificar quem é chamado ao dom da direcção
espiritual. De facto, pessoa com problemas por resolver, mais
facilmente passa ao outro os seus problemas do que o ajuda
a libertar-se dos seus, para que possa discernir serenamente a
vontade de Deus e capacitar-se para a escolher. Também neste
ponto, não vamos esperar a perfeição da unidade interior e da
ausência de problemas, para dizer a alguém que já pode ser
director espiritual. Se assim fosse, ninguém podia ser conse-
lheiro de ninguém. Também não é definível o grau de ama-
durecimento espiritual, e de consequente liberdade interior, a
partir do qual se está apto para prestar a outros esse serviço.
Recomendemos, antes, a quem começa, que tenha consciência
da necessidade de prosseguir, com a graça de Deus, no cami-
nho de libertação pessoal e no fortalecimento/consolidação da
unidade interior.
188 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Um dos dons mais notáveis de Pedro Fabro foi precisamente


o dom do discernimento e conselho. Como já referi, atravessou
uma grave crise de escrúpulos que durou, tanto quanto sabe-
mos, pelo menos quatro anos. Inácio também passou por isso,
em Manresa, a ponto de pensar no suicídio, tal o sofrimento
a que foi sujeito. Essas crises, desse ou de outro género, fazem
parte do caminho espiritual de toda a gente. Deus permite-as,
dizemos nós porque nos falta sempre vocabulário apropriado
quando falamos de Deus. Permite-as ou pretende-as. Em lei-
tura de fé, não há acasos na vida, nem estados de alma que
passem despercebidos ao seu amor providente. O Senhor nosso
Deus serve-Se das crises, das fragilidades, das angústias com
um fim bem determinado: a purificação da alma; «para que
não façamos ninho em propriedade alheia, levantando o nosso
entendimento a alguma soberba ou vanglória», diz o livro dos
Exercícios (EE 322, 3ª causa). Pedro Fabro viveu quatro anos
em angústias, provocadas, assim o suspeito, por causas pura-
mente humanas. Talvez uma formação religiosa severa, dada
por seus pais com a melhor das intenções, ou uma catequese
pouco esclarecida, recebida em Villaret, na Sabóia, sua terra
natal, tenham dado origem a essa crise. Mas para Deus não há
acasos. O grande homem dos Exercícios e o grande director es-
piritual tinha de passar por essa crise, para que o seu coração se
centrasse e abandonasse exclusivamente nas mãos de Deus. O
seu temperamento amável, acolhedor e compreensivo, aliado
ao dom de simpatia com que o Senhor tinha adornado a sua
natureza, foi o espaço fecundo para a acção da graça. Essa sim-
patia e cordialidade atraíam naturalmente as pessoas. O dom
da Sabedoria e do discernimento que encarnavam nesse dom
natural e o «olhar penetrante» que daí resultava, liam a acção de
Deus e as componentes humanas na profundidade das almas.
Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 189

Tinha compreendido o percurso dos Exercícios e vivia-o no


quotidiano da sua acção apostólica. Por isso os dava tão bem e
com tantos frutos. Era homem de oração contínua na intensa
actividade que exerceu pela Europa fora.

3.3. Contemplativos na acção

A união com Deus no mistério de Cristo morto e ressuscitado


fazia parte do modo de ser e de proceder de Fabro. Viveu em alto
grau a unidade entre a acção e a contemplação e dele se poderia
dizer o que Nadal dizia de Inácio: era in actione contemplativus.
A unidade de que falámos acima, como manifestação do carisma
da Companhia, está presente na actividade mais intensa. A peda-
gogia dos Exercícios desemboca na contemplação para alcançar
amor, como rampa de lançamento para a vida: tudo é dom e
tudo vem do alto; Deus está presente e actuante em todas as cria-
turas e particularmente no homem em quem habita como num
templo. Não há dois andares, um por baixo e outro por cima.
Há uma nova criação: o homem divinizado, à imagem do Deus
humanizado, é um todo, presente no mundo como testemunha
da Aliança nova e eterna, estabelecida em Cristo. A intenção so-
brenatural, em que antigamente se insistia, já lá está na própria
forma Christi, como embrião que cresce. A intenção do apóstolo
é sempre sobrenatural, como em Cristo são sobrenaturais todas
as situações humanas que viveu, quer pregasse as bem-aven-
turanças, quer se sentasse à mesa com fariseus ou pecadores.
Homem dos Exercícios é homem de oração que se prolonga em
cada momento da sua vida e está, por isso, permanentemente re-
ferenciado à fonte. Encontra a Deus em todas as coisas e a todas
as coisas em Deus.
191

XAVIER AO ENCONTRO DO NOVO MUNDO


Francisco de Sales Baptista, S.J.

Introdução

O tema geral desta Semana de Estudos é «a Companhia de


Jesus ontem, hoje e amanhã». É dentro deste «ontem, hoje e
amanhã» que nos toca tratar, de modo especial, «Xavier ao en-
contro do novo Mundo», ou do novo no Mundo. Não tanto do
novo geográfico desse Novo Mundo, que outros se adiantavam a
descobrir antes dele, mas do novo humano, novo cultural e novo
religioso desses povos descobertos.
Não esqueçamos que ele era missionário. E, acima de tudo,
Núncio apostólico ou «embaixador» da Santa Sé para todos os
reinos descobertos e a descobrir no Oriente. Creio mesmo que
a melhor «chave de leitura» da acção missionária de Xavier é o
seu papel de Núncio, que nele se sobrepôs, logo de começo, às
suas responsabilidades de evangelizador. Não contava com esta
missão da Santa Sé. Foi uma surpresa para ele quando, nas vés-
peras da partida para a Índia, o Rei lhe entregou os documen-
tos pontifícios que o creditavam como embaixador da Igreja
junto de todos os reinos do Oriente já conhecidos e outros
que se viessem a descobrir1. É isso que explica, a meu ver, os
1
Cf. S. F. XAVIER, Obras completas, A.O., Braga 2006: Xavier-doc
121. (Citaremos sempre XAVIER-doc e o número do documento). Sobre
os quatro Breves pontifícios de nomeação e correspondentes encargos, cf.
SCHURHAMMER, Francisco Javier, su vida y su tiempo, v.I, pp. 931-934
e respectivas notas. Porque se esquece o seu papel de Núncio, é que se critica
a sua vasta mobilidade; e porque se esquece que era Núncio em relação com o
192 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

peculiares interesses das suas descobertas, a incessante mobilidade


da sua acção missionária e o apoio a estratégias apostólicas que ia
descobrindo em equipe com outros missionários.
Daí, as três partes em que vamos distribuir o nosso trabalho:

I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo


II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo
III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo

I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo

Provavelmente as suas descobertas do novo Mundo, no que


se refere ao Oriente, começaram já em Paris, no contacto com
Diogo Gouveia e os bolseiros portugueses do colégio de Santa
Bárbara2.
Depois, com os sonhos estranhos3, antes ainda de ter sido
designado – ele ou qualquer outro – para a Índia. Se não, como
se explicam sonhos com índios às costas, quando o horizonte
próximo dos seus projectos era apenas a Palestina? Ele mesmo,
ao embarcar em Lisboa, relaciona estes sonhos com a missão
para onde então partia.

Padroado real, é que se procura ocultar a sua preocupação de pedir creden-


ciais do Vice-Rei e do Bispo de todo o Oriente, para as missões em países
estrangeiros ainda não contactados por missionários (Japão e China).
2
Diogo de Gouveia teve, de facto, vários encargos de política ultra-
marina que o traziam várias vezes a Portugal (cf. SCHURHAMMER, ib.
p. 129 e nota 205).
3
Cf. SCHURHAMMER, ib. pp. 440; 504 e nota 92; 951. Estes indí-
cios fazem presumir que a designação de Xavier para a missão da Índia, à
última hora, não terá sido tão improvisada como parece. Inácio, como seu
confidente íntimo, devia saber algo destes sonhos.
Xavier ao encontro do novo mundo 193

A seguir aos sonhos começam as descobertas reais. É sobretu-


do na última etapa da viagem, a partir da ilha de Moçambique,
que se revelam os peculiares interesses missionários nas desco-
bertas de novas terras que ia conhecendo: em Melinde, o que o
encanta é a descoberta do primeiro padrão de sinais cristãos a
marcar naquelas paragens os descobrimentos portugueses4; em
Socotorá é a cristandade, abandonada mas promissora, que aí
contacta5; ao chegar a Goa é a cidade cheia de evocações cristãs,
em igrejas, ermidas, conventos e instituições eclesiais de toda a
espécie que ele visita logo à chegada e descreve, na primeira car-
ta, com todo o entusiasmo6: a Sé; o Paço do Bispo que preside
a todo o Padroado missionário do Oriente; o Colégio interna-
cional de S. Paulo fundado em 1541 para a formação de clero
indígena, catequistas e intérpretes para todas as línguas; as Ir-
mandades de leigos cristãos comprometidos em todas as obras

4
XAVIER-doc 15, n. 6: «Junto desta cidade (Melinde), ergueram os por-
tugueses uma cruz grande de pedra, dourada, muito formosa. De vê-la, Deus
Nosso Senhor sabe quanta consolação recebemos – conhecendo quão grande
é a virtude da cruz, vendo-a assim sozinha e com tanta vitória entre tanta
mouraria». Refere-se ao padrão aí erguido por Vasco da Gama em 1498.
O monumento actual é de época mais recente.
5
XAVIER-doc 15, n. 9-11. Já queria lá ficar: «Disse ao senhor Gover-
nador que me desse licença, que eu queria ficar ali, pois achava messe tão pre-
parada. Mas, porque a esta ilha vêm turcos, e não é habitada de portugueses,
para não me deixar em perigo de que me levassem preso os turcos, não quis o
senhor Governador que me ficasse naquela ilha de Socotorá» (ib. n. 10).
6
XAVIER-doc 15, nn. 5, 12, 13. «Chegamos à Índia, a Goa, que é uma
cidade toda de cristãos, coisa para ver. Há um mosteiro de muitos frades da
Ordem de S. Francisco e uma Sé muito honrada e de muitos cónegos e outras
muitas igrejas. Coisa é para dar muitas graças a Deus Nosso Senhor em ver que
o nome de Cristo tanto floresce em tão longínquas terras e entre tantos infiéis»
(ib. n. 5).
194 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

de Misericórdia; o clero local, etc.7 Não lhe atrai a atenção a


intensa actividade portuária de construção naval, de partida e
chegada de naus...
Passados meses é a partida para a costa da Pescaria8, a pri-
meira missão em terra estrangeira, com língua diferente, sujeita
a reis e guerras fora da influência portuguesa9; na costa de
Travancor são as primeiras experiências de negociações de paz
com reis estrangeiros10 e a surpresa das conversões em massa;
depois, as notícias do massacre duma cristandade noutra terra
estrangeira, que o levam a pedir em vão a intervenção militar
das autoridades portuguesas11.
É neste primeiro contacto com reinos estrangeiros, por um
lado, e a falta de apoio militar colonial, por outro, que Xavier
tem as primeiras desilusões do Império português no Oriente12.
Não percebia ainda, nessa altura, como perceberá mais tarde, a

Cf. XAVIER-doc 15, n. 12-13; 16, n. 1-4.


7

8
XAVIER-doc 15, n. 14. Leva consigo as primícias de clero nativo
formado no colégio internacional de S. Paulo: dois já diáconos e outro
seminarista maior apenas com ordens menores: «Agora me manda o senhor
Governador para uma terra, aonde todos me dizem que tenho a fazer muitos
cristãos. Levo comigo três daquela terra: dois são de epístola e evangelho (diá-
conos), sabem a língua portuguesa muito bem e, melhor, a sua natural; o outro
não tem senão ordens menores» (ib. 14). Cf. XAVIER-doc 19; 20; 21-45.
9
Cf. XAVIER-doc 23; 26-28; 30-43.
10
Cf. XAVIER-doc 44-45; 46, n. 9; 48, n. 2.
11
Cf. XAVIER-doc 46, n. 9 nota 3; 51, n. 1; 68, n. 3 nota 6; 48, n. 3-4;
61, n. 1-9.
12
É conhecida a longa desilusão por não conseguir castigo militar aos
perseguidores de Jaffna que fizeram o massacre da cristandade da ilha de
Manar (Cf. nota anterior). Foi essa desilusão, depois duma ronda inútil
pelas fortalezas a pedir protecção para os cristãos do Malabar, que o levou a
fazer uma pausa de discernimento no Santuário de S. Tomé de Meliapor.
Xavier ao encontro do novo mundo 195

política13, que era a de um Império marítimo e não territorial; de


um império comercial e não colonial; de um Império com for-
talezas e feitorias baseadas em tratados de amizade com os reinos
em que estavam situadas e não conquistadas (algo assim como
as actuais bases americanas espalhadas por várias nações). Con-
quistadas, eram só as consideradas estratégicas por Albuquerque
e os organizadores do Império: Goa, Ormuz e Malaca, além de
outras que se foram justificando posteriormente (Diu, etc.) e
alguns pequenos enclaves adquiridos por oferta doutros reinos
em troca de protecção naval (Baçaim, Macau, etc.). Mesmo Co-
chim, principal base naval do comércio entre Portugal e todo o
Oriente, era uma fortaleza negociada. A política estabelecida pe-
los primeiros Governadores da Índia, D. Francisco de Almeida e
Afonso de Albuquerque, era muito clara. Escrevia D. Francisco
de Almeida ao Rei por alturas de 1505:

«Acerca da fortaleza, lá em Coulão, quantas mais fortalezas


tiverdes, mais fraco será vosso poder: toda vossa força seja no
mar, porque se nelle nom formos poderosos – o que Nosso
Senhor defenda – tudo logo será contra nós e, se o Rey de
Cochim quisesse ser desleal, logo seria destroído, porque as
guerras passadas eram com bestas (no norte de Africa), agora
a temos com Venezeanos e Turcos do Soldão… Entenda-
mos com o que temos no mar, que são estes novos inimigos
– que espero na misericórdia de Deus que se lembrará de nós
– que tudo o mais é pouca coisa. Sabei certo que enquanto
no mar fordes poderoso, tereis a Índia por vossa; e se isto
nom tiverdes no mar, pouco vos prestará fortaleza na terra.

13
Percebera intuitivamente, logo de princípio, que era um Império
apoiado na força marítima (cf. XAVIER-doc 17, n. 6). Mas não conhecia
as bases políticas em que assentava.
196 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

E no lançar dos Mouros bem lhe achei o caminho, mas é


longa história que se fará quando Nosso Senhor quiser e for
servido»14.

Para amenizar estas primeiras desilusões de Xavier, começa-


ram-lhe a chegar então as notícias doutros reinos onde não havia
bases navais portuguesas, mas donde os comerciantes traziam já
primícias de conversões: Maldivas, Celebes, Molucas15... Preci-
samente nas Molucas ainda há-de ter outra desilusão: a falta de
apoio às suas grandes esperanças na substituição do rei local por
Jordão de Freitas16.
E quando mais tarde voltou a insistir na ocupação de Soco-
torá, para libertar dos mouros aquela cristandade oprimida17,
será precisamente o seu grande amigo Martim Afonso de Sousa
que aconselhará o Rei a não fazer tal.

Citado e comentado por SILVA REGO, História das Missões do Pa-


14

droado Português do Oriente, vol. I, pp. 47-49. Os portugueses, no Oriente,


distinguiam os Mouros adaptados à Índia e os Turcos, inimigos mais temí-
veis. Ver nesta obra a história de cada fortaleza e as negociações ou tratados
que estiveram na sua origem.
15
Cf. XAVIER-doc 48, n. 5; 50, n. 2-3; 52, n. 1; 54, n. 1; 55.
16
Cf. XAVIER-doc 55, n. 3; 56, n. 1. Nessa altura, as Molucas pode-
riam ter sido colonizadas por Jordão de Freitas e talvez chamadas as Joani-
nas de D. João III, antes das chamadas Filipinas de D. Filipe II. Mas não
era essa a política portuguesa no Oriente.
17
Cf. XAVIER-doc 73, n. 5-6 e notas; 79, n. 8. Sobre a história anterior
da ilha e a passagem de Xavier por lá, cf. SCHURHAMMER, ob. cit. II, pp.
145-167; sobre a resposta do Governador Martim Afonso de Sousa ao Rei,
cf. SCHURHAMMER, ob. cit. II, 686-687: «Se V.A. tivesse aqui perma-
nentes 15.000 ou 20.000 homens, poderia mandar estas coisas tão em absoluto.
Mas até para Embaixadores somos poucos». Vale a pena ler aí toda a carta.
Xavier ao encontro do novo mundo 197

É com estas desilusões que começa a perceber a política pre-


dominantemente negocial e diplomática do Império marítimo
português no Oriente e a descobrir que o Padroado missio-
nário português nesse espaço geográfico não é um Padroado
colonial (de ocupação), mas um Padroado internacional (de
negociação)18. Por isso começa a agir por credenciais de em-
baixador. Para o Japão19 e para a China20 é a primeira vez que
pede credenciais ao Governador da Índia e ao Bispo do Padro-
ado do Oriente e age claramente como Núncio apostólico. Já
não pede protecção militar, mas apoio diplomático em aliança
com os mercadores portugueses que vão ser os seus grandes
benfeitores e protectores no terreno. Com a experiência do
Japão vai descobrir até as vantagens deste tipo de império não
colonial e deste modo de Padroado missionário para além
fronteiras.
Em todas estas descobertas, como vemos, é o aspecto missio-
nário que o interessa: as portas que se abrem ou fecham à evan-

18
Cf. Bula de erecção da diocese de Goa em 1533, que estendia a sua
jurisdição eclesiástica «desde o Cabo da Boa Esperança, até à Índia inclusive
e desde a Índia até à China, com todos os lugares quer em terra firme quer de
ilhas das regiões descobertas e a descobrir…» (Clemente VII, cf. MHSI, Mon.
Ind. I, Introdução pp. 10-11). E para tirar dúvidas, Gregório XIII em 1579
declarou que estavam sob a jurisdição de dioceses do Padroado português
todas as terras «para Oriente, relacionadas com o Rei de Portugal, quer por
direito de domínio, quer de conquista (como lhe chamam), quer de comércio,
quer de navegação» (ib. p. 11).
19
Cf. SCHURHAMMER, ob. cit. IV, pp. 277-282; MHSI-Doc.Jap.
(1547-1557), doc. 41, n. 10; XAVIER-doc. 96, n. 16; 83, n. 3; 84, n. 2;
124, n. 1.
20
XAVIER-doc. 121; 122, n. 3; 125, n. 4; 136, n. 7; SCHURHAM-
MER, ob. cit. IV, pp. 721-727.
198 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

gelização, a geografia humana e religiosa dos novos mundos.


Não a geografia física nem as rotas comerciais21.

II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo

Antes de Xavier, já a expansão missionária tinha chegado,


não só às fortalezas e feitorias portuguesas desde Ormuz até às
Molucas, mas também extrapolado para territórios estrangeiros
desde Socotorá e Costa da Pescaria, Ceilão e Maldivas até às
Celebes22.
Depois de Xavier, porém, ganhou novo dinamismo, que foi
testemunhado quer no Oriente quer na Europa.
No Oriente, confessam os próprios Governadores e outros
responsáveis a força explosiva impressa à evangelização em re-
lação ao andamento anterior, devido sobretudo à mobilidade
dos Jesuítas23.

Só nas Molucas se detém a descrever aspectos físicos: vulcões, mare-


21

motos, fauna e flora (Xavier-doc 55, n. 11-16; 59, n. 4-6; interessam-lhe


mais as populações, costumes, meios de subsistência e, sobretudo, a aber-
tura à evangelização.
22
S. F. XAVIER, Obras completas, A.O., Braga, 2006: Introdução Ge-
ral (Mário Martins) e bibliografia aí citada.
23
«Frades encerrados serão eles muito bons, assim para si como para orna-
mento dos mosteiros; e serviço farão muito neles a Deus. Mas cá, servem mais
os da regra de Jesus Cristo para andarem pelas terras e pregarem e baptizarem»
(COSME ANES ao Rei 1547. Cf. MHSI-Mon.Ind. I, p. 220); «Por expe-
riência acho não haverem vindo a esta terra homens de mais fervor e de mais
cuidado e diligência para o caso da cristandade e conversão dos infiéis, que os
padres da Companhia de Jesus… Toda a Índia queria ver cheia de Apóstolos
(jesuítas), pelo que tenho dito. Porque se aí os houvera, já estivera povoado
deles Chaul e Cochim e as fortalezas, e feito muito grande fruto e no desejo de
V.A.; porque eles andam pelo Cabo de Comorim e nesta cidade e agora vão
Xavier ao encontro do novo mundo 199

Na Europa, espalha-se como nunca a ideia missionária, so-


bretudo a partir da correspondência de Xavier. As suas cartas
e as dos seus missionários eram lidas por toda a Europa com
tanto ou maior entusiasmo que as notícias das descobertas
geográficas e sociológicas24. Dá-se então uma onda de expe-
dições missionárias cada vez mais numerosas e qualificadas.
Foi certamente esta sedução missionária que levou a Igreja
a proclamar Xavier como Padroeiro de todas as Missões. De
facto, ele espalhou como poucos a causa missionária e ainda
actualmente se sente a sua chamativa influência vocacional.

III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo

Se a expansão missionária se deveu sobretudo à sua acção de


Núncio apostólico, a inovação missionária tem de ser atribuída
às equipes de missionários a trabalhar no terreno. O mérito de
Xavier foi ter-lhes deixado espaço de iniciativa (apesar das Ins-
quatro para Socotorá… São mui leves de armar para as coisas espirituais; não
são carregosos à cleresia, nem lhe tomam trintários nem missas, nem enterram
corpos de mortos, nem andam com as cruzes pelas casas levando os defuntos com
seu Venite» (BISPO ao Rei 1548, ib., pp. 329-330). «Particularizar suas
obras e fruto que fazem nas almas não me atrevo a escrevê-lo por pena, nem me
abastaria tempo para relatá-lo, segundo as minhas ocupações. Digo, por final,
que foram tochas acendidas nestas partes para alumiar tão escura noite que
nelas jazia» (BISPO ao Rei 1550, ib., vol. II, pp. 119-120); «Destes padres
apostólicos devem vir quantos puderem, que não ocupam lugar e aproveitam
muito. Frades, servem em suas casas e, fora, não tanto; e são maus de conten-
tar, que a despesa mui bem se emprega neles; lá vão, nestas naus, dez ou onze
franciscanos, não vindo nenhum; e, estes, mancebos, com licenças, e não ficam,
fazendo muita míngua» (COSME ANES ao Rei 1548, ib., p. 445).
24
Cf. MHSI-EX I, Introd. Gener., pp. 15-18; S. F. JAVIER, Cartas y
escritos, BAC, Madrid 1979: Introd. Gener., pp. 30-34; MHSI-Mon. Ind. I,
Introd. Gener., pp. 53-55.
200 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

truções que lhes dava), sabê-los ouvir (montando uma boa rede
de inter-comunicação entre eles e consigo) e apoiando as boas
experiências que iam fazendo (em línguas, costumes, inserção
social, sistemas de ensino, etc.).
Desse trabalho em equipe, a partir das bases e não pro-
priamente do trabalho individual de Xavier, foi nascendo um
método de inovação missionária que pouco a pouco se iria
esclarecendo – o método da adaptação missionária. Podemos
ver já nesse método os começos do diálogo inter-religioso,
inter-cultural e inter-social consumado nos documentos mais
recentes da Igreja para as Missões25. Começos apenas, é claro,
pois naqueles tempos ainda não se falava destes diálogos com
tanta clareza como agora!
Vejamos, portanto, as primeiras aportações desta múltipla
equipe missionária de Xavier:

1º para o diálogo inter-religioso: fé-religiões;


2º para o diálogo inter-social: fé-justiça;
3º para o diálogo inter-cultural: fé-cultura.

1º Aportações ao diálogo inter-religioso: fé-religiões

Comecemos por aqui, porque foi a partir deste que se foi


sentindo a necessidade de abrir caminho aos outros. Até para os
tratados políticos inter-sociais, anteriores à chegada de Xavier,
foi o inter-religioso que fez sentir a sua necessidade.

VATIC. II, Nostra Aetate; JOÃO PAULO II, Redemptoris missio;


25

Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso / Congregação para a


Evangelização dos Povos, Diálogo e anúncio (1991).
Xavier ao encontro do novo mundo 201

São conhecidos na nossa história os choques inter-religiosos


do Cristianismo na convivência com as outras religiões da Ín-
dia, ainda muito vivos à chegada de Xavier, quer em Goa, ter-
ritório nacional, quer na Pescaria e noutros territórios estran-
geiros. Em Goa, ia-se impondo o princípio europeu e universal
em voga cuius regio eius religio – «a cada região sua religião» –,
porque era território nacional; na Pescaria, território estrangei-
ro, já não se podia enveredar por esse caminho de não tolerar os
templos, ídolos e culto público das religiões locais. Xavier não
viu logo essa diferença e, por isso, é tão criticado. Mas os mis-
sionários que ele deixou no terreno foram descobrindo pouco a
pouco que era preciso conhecer mais a fundo as religiões locais,
dialogar com elas e, para isso, aprender a língua e linguagem
em que entender-se directamente. Foi o que levou a aprender
a língua, logo de princípio, o P. António Criminali26, cujo
martírio não lhe deu tempo para ir mais longe e, sobretudo, o
P. Henrique Henriques27, o primeiro a dominar bem a língua
tamil, a fazer a primeira gramática, a montar escola de línguas
da região e a dialogar a fundo com as religiões locais. Mérito
de Xavier foi ter apreciado o seu trabalho e ter-lhe dado todo o
apoio28. Graças ao domínio da língua conseguiu corrigir muitos
erros na transmissão da doutrina católica através de intérpretes
e de catecismos mal traduzidos e também compreender mais
a fundo as outras religiões por conversa directa com pessoas

26
Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, n. 3.
27
Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, nn. 13-16; doc. 85, n.
8-13. Escreve ele em 31. Out. 1548: «Naquele tempo abandonou-me o topaz
(intérprete)… Determinei então aprender a língua e assim, dia e noite, não
fazia outra coisa» (doc. 45, n. 13).
28
Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, n. 14-15; XAVIER-
doc 70, n. 12.
202 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

competentes29. Esta desconfiança de intérpretes vai servir de


lição no Japão. Aí Xavier, experimentando por si as más tradu-
ções de conceitos cristãos, já funda escola de língua logo desde
o princípio.

2º Aportações ao diálogo inter-social: fé-justiça

Com o diálogo inter-religioso está muito ligado o diálogo


inter-social fé-justiça. Viram-no logo os primeiros navegadores
ao tentar obter bases navais em território estrangeiro: Cochim,
Cananor, Chale, Cranganor, Coulão (cf. Silva Rego).
Já o próprio Vasco da Gama tem a primeira surpresa ao que-
rer comprar carne de vaca para os seus marinheiros. Logo que
soube que era animal sagrado, teve cuidado de ver que terreno
pisava30.
Mas foi sobretudo ao formarem-se pequenas comunidades
cristãs de portugueses e nativos à volta das fortalezas e outras
instituições das bases navais que viram a necessidade de estabe-
lecer tratados de convivência social entre cristãos e hindus. O

Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, n. 16.19-21; doc. 85,


29

n. 14; Mon.Ind II (1550-1553), doc. 40, n. 6; doc. 64, n. 6. «Henrique


Henriques foi o primeiro jesuíta a compreender dalgum modo as teorias
do hinduísmo, acolhendo simpaticamente em casa os yogis ou ascetas hin-
dus» (WICKI, Mon.Ind. I, Introd., p. 46; cf. doc. 85, n. 11 e 14). Esforço
semelhante começou-o a fazer o próprio Xavier no Japão e, depois, outros
missionários com experiência da Índia: Baltasar Gago, Fróis, Rodrigues
Tsuzu, etc. Sobre as primeiras tentativas de traduzir a doutrina cristã em
linguagem religiosa de outras línguas orientais (tamulica, malaia, japonesa)
cf. MHSI-EX II, Apêndices VII-IX, pp. 581-599.
30
Cf. SILVA REGO, História… I, p. 113.
Xavier ao encontro do novo mundo 203

sistema social de castas punha muitos problemas à igualdade de


trato cristão. Como se deviam portar os cristãos em território
estrangeiro, no trato e direitos das diversas castas? E, vice-versa,
estas, em território da base naval, como portar-se no trato e di-
reitos dos cristãos? E nos conflitos de direitos, a quem competia
fazer justiça? Estes e outros problemas deram origem a vários
tratados e «concordatas» exemplares31 que abriram caminho à
convivência respeitosa das diversas religiões e à possibilidade de
um diálogo social fé-justiça mais aprofundado. Os missionários
talvez não conhecessem esses tratados, mas conheciam a prática
e costumes por eles criados. Foi isso que facilitou os métodos
de adaptação missionária que se foram desenvolvendo depois.
Antes da adaptação missionária já tinha havido a adaptação
política e social.
Num sistema de castas tão enraizado na religião, mal ima-
ginamos a dificuldade da opção preferencial pelos pobres, da
ausência da acepção de pessoas nas assembleias litúrgicas de
que tanto fala S. Tiago, da reivindicação de direitos humanos e
justiça igual para todos, etc.
Também aqui, o P. Henrique Henriques conseguiu criar
uma convivência inter-social mais pacífica na Pescaria, com
a separação de jurisdições no religioso e social dos conflitos
locais, aproveitando-se da instituição oficial do «Pai dos cris-
tãos»32 para defender os seus direitos civis e a criação duma

31
Cf. Ibid, I, p. 354; 406-409.
32
Cf. XAVIER-doc 99, n. 20; SCHURHAMMER, Francisco Javier, su
vida y su tiempo, vol. II, p. 296; III, pp. 135 e 337. Sobre o cargo de «Pai
dos cristãos» ver DALGADO, Glossário Luso-Asiático, Coimbra 1919-21,
vol. II, 130-140. Eram uma espécie de Provedores de Justiça para defender
os direitos das pessoas contra as autoridades do Estado.
204 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

espécie de «pré-diáconos permanentes» leigos (com maiores


atribuições que catequistas) para presidir às comunidades sem
Padres33. A experiência destes pré-diáconos abrirá caminho aos
futuros dogicos (dôjuku) no Japão34.

3º Aportações ao diálogo inter-cultural: fé-cultura

Se foi o diálogo de convivência inter-religiosa que abriu ca-


minho ao diálogo de convivência inter-social, foi um e outro
que fizeram sentir a necessidade dum diálogo mais profundo de
convivência inter-cultural fé-cultura.
Só quando os missionários começaram a dialogar sem intér-
pretes com as outras religiões (na Índia e no Japão) e a distin-
guir a importância das castas na Índia e da jerarquia social no
Japão, é que perceberam a necessidade de ir às raízes culturais.
Cresceu então o diálogo inter-cultural. Caminho para isso
foi não só a elaboração de Gramáticas e a criação de escolas
elementares da língua, mas a elaboração de Vocabulários com
a colaboração de pessoas das duas línguas em questão. Este
processo ir-se-á aperfeiçoando desde o P. Henrique Henriques
na Índia até às equipes inter-linguistas promovidas mais tarde
no Japão. A importância do conhecimento da Gramática e
estrutura duma língua e da riqueza do seu Vocabulário é jus-

Cf. MHSI-Doc.Ind. I (1540-1549), doc. 33, n. 3, pp. 579-580


33

(doc. 85, n. 5); Mon.Ind.II (1550-1553), doc. 40, n. 2; doc. 64, n. 4;


doc. 88, n. 1; doc. 93, n. 3; doc. 94, n. 2.
34
Cf. MHSI-Doc.Jap. (1547-1557), Apêndice 3, pp. 750-752. Tam-
bém nisto, a Índia foi laboratório de experiência missionária para o Japão.
Xavier ao encontro do novo mundo 205

tamente realçada pelos historiadores da cultura35. Por exemplo


o Vocabulário da Língua Japónica (1603) do jesuíta Rodrigues
Tsuzu (o Intérprete), inclui umas 30.000 palavras e dá infor-
mações sobre os seus diversos usos em linguagem regional, em
linguagem baixa, em sentido religioso, literário e poético36.
Este missionário português, assim como o P. Fróis e o Irmão
Luís de Almeida (médico), dominavam perfeitamente não só
a língua mas a cultura do Japão. Foi com eles que trabalhou o
P. Valignano, quando chegou ao Japão, mais de 16 anos de-
pois deles. Fruto do contacto mais directo e profundo com as
outras religiões e sociedades foi o valor atribuído à prática das
boas maneiras e costumes na convivência civil e dos cerimoniais
próprios do trato com os religiosos das outras religiões. Foi este
interesse que levou o P. Barzeu e Henrique Henriques na Índia
a descobrir a importância das boas relações com os religiosos
jogues (Yogis) tão influentes nos crentes hindus e que levou, no
Japão, os missionários a prepararem com cristãos japoneses o
célebre «Cerimonial» de relações inter-culturais. Este Cerimo-
nial foi organizado pelo P. Valignano, a pedido dos próprios
cristãos japoneses mais responsáveis37.
35
Cf. CARNEIRO R. / MATOS T. (Ed.) O século cristão do Japão
– Actas do Colóquio Internacional comemorativo dos 450 anos de amizade
Portugal-Japão (1543-1993), Lisboa 1994: «A questão da língua na estra-
tégia da evangelização – as missões no Japão» (A. P. LABORINHO); «O
dicionário das três línguas» (M. L. C. BUESCU).
36
Ib. BUESCU, p. 444.
37
Ib. RADULET, «O “Cerimonial” do P. Alessandro Valignano –
encontro de culturas e missionação no Japão», p. 59. Sumário dos temas
tratados, p. 62. Passos para a sua elaboração: 1º as «Consultações» (Bungo
1580-1581) a pedido de vários nobres cristãos; 2º as «Risolutioni» redi-
gidas por Valignano (6. Jan. 1582); 3º os «Advertimentos e avisos acerca
dos costumes e catangues do Japão», enviados a Roma para aprovação do
206 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Também passou da Índia para o Japão a instituição de


clero nativo, à imitação do colégio internacional de S. Paulo
para sacerdotes de todas as línguas e do colégio franciscano
de Cranganor para vocações de cristãos de S. Tomé, ambos
fundados antes da chegada de Xavier. Foi pena que no Japão
não tivesse começado mais cedo o seminário de clero nativo.
Mas tinha de ser preparado por todo o trabalho inter-cultural
anterior.

Conclusão

Na descoberta missionária do novo Mundo, Xavier teve o


mérito de estar atento à sensibilidade religiosa dos diversos
povos e culturas de que ia tendo notícias e procurar levar lá a
presença da Igreja quanto antes.
Na expansão missionária, teve o mérito de acelerar o ritmo de
evangelização, dotando em breve tempo de missionários todos
os pontos estratégicos até às portas da China.
Na inovação missionária, teve o mérito de apoiar as primei-
ras aportações de outros ao diálogo inter-religioso, inter-social
e inter-cultural. Ele, pessoalmente, neste tríplice diálogo, como
vimos, não foi pioneiro mas animador de outros. O mesmo se
tem de dizer também de Valignano38.

P. Geral; 4º as «Segundas Consultações» (Katsusa, Agosto 1590) para aten-


der às observações feitas pelo P. Geral; 5º as «Terceiras Consultações» para
a redacção corrigida a reenviar a Roma «Adiciones del sumario de Japon»
(Nagasaki, Jan. 1592); 6º as «Regulae Provinciae Japoniae» definitivas.
38
Valignano encarregou Fróis de escrever a História do Japão em 1583,
mas não lhe achou interesse em a publicar (cf. O século cristão do Japão.
Xavier ao encontro do novo mundo 207

De facto, no diálogo pessoal inter-religioso (fé-religiões),


Xavier foi mais controversista à maneira da Contra-reforma, do
que ecuménico à maneira moderna39. Neste ponto, pouco o
influenciou o seu grande amigo Pedro Fabro que não acredi-
tava nada nos debates teológicos a que assistiu entre teólogos
católicos e luteranos. Dizia ele que muito desejava conversar
com os luteranos,

«não para meter-me a combater com eles in spiritu contra-


dictionis, nem para exasperar a nenhum, ou impedir doutra
maneira o fruto que se pretende com os convocados»40. O
que pretendia era, como diria mais tarde a Laínez: «cativá-
los para que nos amem e nos tenham em boa conta dentro
dos seus espíritos; isto se faz conversando com eles familiar-
mente em coisas que nos são comuns, a eles e a nós, evitando
qualquer controvérsia»41…

Xavier podia aproximar-se desta maneira de agir, pois


aconselhava tanto o «fazer-se amar». Mas preferia a con-

Actas: H. FELDMANN), «Os seus (de Fróis) interesses de observador são


mais empíricos e menos dogmáticos ou ideológicos» (pp. 72-73). Nem
também se interessou por publicar-lhe o célebre «Tratado em que se con-
têm… algumas contradições e diferenças de costumes entre a gente de Europa
e esta província de Japão» (1585) (cf. ib. RADULET, p. 57, nota 5).
39
As controvérsias entre Xavier e os monges budistas eram quase
como um torneio, para ver quem saía vencedor (cf. FELDMANN, ib.,
pp. 74-77).
40
MHSI-Fab-Mon. 48-49. Sobre o método e resultados dos debates
oficiais entre teólogos católicos e luteranos, cf. A. ALBUQUERQUE, En
el corazón de la Reforma, Mensajero, Bilbao 2006, pp. 43-58.
41
MHSI-Fab-Mon. 400.
208 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

trovérsia e pedir para o Japão missionários que fossem bons


dialéticos42…
No diálogo pessoal inter-social (fé-justiça), também não foi
pioneiro na negociação diplomática com as castas na Índia
nem no combate à escravatura. Aliás, a escravatura era geral em
todas as civilizações do seu tempo e não só na civilização cristã
ou colonial: por exemplo, o primeiro japonês convertido ofere-
ceu-lhe como prenda um escravo, o «Joane, meu filho» a quem
escreveu mais tarde essa bela carta de libertação e promoção
social43.
No diálogo pessoal inter-cultural é acusado de certos apoios à
destruição de ídolos e templos. Mas reparemos que no próprio
Japão a destruição de templos budistas e cristãos também era
frequente em guerras civis e perseguições.
Mas teve o mérito de descobrir, pouco a pouco, as vantagens
que lhe oferecia um tipo de Império predominantemente marí-
timo (mais comercial e negociador que conquistador, como era
o de Portugal no Oriente), e que lhe oferecia também um tipo
de Padroado missionário internacional e não colonial, para de-
senvolver estas experiências de adaptação missionária, que, no
interior da Índia, Japão e China, foram as primeiras aportações
à moderna missionologia de diálogo inter-religioso, inter-social e
inter-cultural. Prova de que descobriu as vantagens deste tipo
de Império e de Padroado internacional é que ele foi o pri-
meiro a avisar Espanha que não viesse para o Japão ou China

Basta ler as suas cartas sobre o Japão. Às vezes era tão frontal que
42

até os seus companheiros pensavam que andava a provocar o martírio (cf.


SCHURHAMMER, ob. cit. IV, p. 201)
43
XAVIER-doc 128. Cf. estrutura social do Japão em MHSI-Doc.Jap
(1547-1547), Introd., pp. 24-26.
Xavier ao encontro do novo mundo 209

com mentalidade colonial. A Espanha só tinha experiência de


padroado em colónias suas; nunca a teve em países estrangeiros
com os quais tivesse apenas relações diplomáticas e comerciais.
Por isso, quando o Padroado português passou para mãos de
Espanha, com a perda da independência em 1580, reacendeu-se
o receio que tivera Xavier. Daí que Valignano e os missionários
do Padroado português no Japão se opusessem à vinda de mis-
sionários do outro Padroado através da colónia espanhola das
Filipinas44.

44
Cf. O século cristão do Japão – Actas: J. P. OLIVEIRA E COSTA, «A
rivalidade luso-espanhola no Extremo Oriente e a querela missionológica
no Japão». O próprio Xavier já temia esta mentalidade colonialista de Es-
panha em relação ao Japão, quando mandou avisar o Imperador Carlos V
que os seus descobridores não viessem para estes lados com intenções de
conquistas: «Esta conta vos dou, irmão meu Mestre Simão, para que digais a
El-Rei nosso senhor e à Rainha que, por descargo de suas consciências, deviam
dar aviso ao Imperador (Carlos V) ou reis de Castela, que não mandasse mais
armadas por via da Nova Espanha a descobrir Ilhas Platáreas (Japão), porque
tantos quantos forem, todos se hão-de perder. Porque, ainda que no mar não
se perdessem, se tomassem as ilhas de Japão, é a gente de Japão tão belicosa
que, por muitos navios que viessem da Nova Espanha, a todos os tomariam; e
por outra via é tão estéril a terra de Japão de mantimentos que morreriam de
fome…» (XAVIER-doc 108, n. 3). O mesmo avisou Valignano em 1582
ao Governador das Filipinas (cf. Ib. nota 10).
210 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

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Xavier ao encontro do novo mundo 211

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213

A COMPANHIA DE JESUS, HOJE E AMANHÃ


Miguel de Almeida, S.J.

Introdução

Expor um tema como «A Companhia de Jesus, hoje e ama-


nhã» é, por si só, pretensioso. Apresentar dados históricos do
passado pode ser muito trabalhoso e interpretá-los pode ser
sempre arriscado. Mas, pelo menos, há elementos concretos
nos quais basear a investigação. Pelo contrário, falar do presen-
te é um enorme risco, pois os dados que possuímos, para além
de serem necessariamente escassos, estão todos em aberto. E do
futuro, que podemos afirmar com alguma certeza?
Esta será uma conferência confusa. Mas os tempos em que
vivemos são muito confusos e por isso agrada-me proporcio-
nar-vos uma certa confusão. É sempre mais interessante pro-
piciar que se reflicta nas confusões, do que dar respostas que
nunca serão definitivas.
A «Companhia de Jesus, hoje e amanhã»… O que é?
Como foi dito logo na primeira noite, o que constitui a
Companhia de Jesus como corpo é a missão. O corpo nasce
porque há uma missão. Não é um corpo à procura de uma mis-
são, mas surge primeiro uma missão que, depois, obriga a que o
grupo dos primeiros companheiros se constitua como corpo1.
De facto, a Companhia adquire a sua mais profunda identi-
dade, não a partir de dentro, mas a partir da missão que lhe é

1
Cf. a conferência de abertura desta SEEI, do P. António Costa e Silva,
nesta edição.
214 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

confiada pela Igreja. Foi assim com os primeiros companheiros


que, depois de frustrada a tentativa de irem à Terra Santa, se
apresentaram ao Papa Paulo III, que logo lhes foi conferindo
missões concretas, afirmando que Roma poderia ser a sua Jeru-
salém2. Esta missão, juntamente com a observação do mundo
concreto em que vivemos e suas necessidades, o discernimento
sobre a vontade de Deus para a Companhia e a busca do que
é mais universal, mais urgente e mais necessário (e, preferen-
cialmente, ir a lugares e trabalhos onde mais ninguém vai) têm
sido os critérios de actuação da Companhia de Jesus ao longo
da sua história. E, dado que a sua actuação/missão – como foi
dito – lhe dá a sua identidade mais profunda, estes têm sido
também os critérios de avaliação da fidelidade dos Jesuítas ao
que são chamados a ser.
Daí que a Companhia de Jesus foi ontem, é hoje e será
amanhã o que a missão exigir que ela seja. Esta é a melhor
maneira ser fiel à sua própria identidade: acolher e levar avante
a missão que lhe for confiada. Podemos, deste modo, falar de
uma Companhia responsável, no sentido em que responde às
necessidades do mundo3. Assim, a Companhia de Jesus envol-
verá sempre algo de indefinível, na medida em que dependerá
do que o mundo for e do que o mundo precisar. Ou não será a
verdadeira Ordem fundada por Inácio de Loiola e os primeiros
companheiros.
Afirma o Concílio Vaticano II que, em ordem a servir a hu-
manidade, é absolutamente «necessário conhecer e compreen-
der o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações,

Cf. John W. O’Malley, Os Primeiros Jesuítas. Trad. Domingos Ar-


2

mando Donida, S. Leopoldo, ed. Unisinos & EDUSC, 2004, p. 62.


3
Cf. conferência do P. Hermínio Rico nesta edição.
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 215

e o seu carácter tantas vezes dramático» (Gaudium et Spes, 4).


Assim, para abordar a temática que me foi proposta de forma
minimamente coerente, tentarei, antes de mais, caracterizar o
mundo em que vivemos. Conhecendo as pessoas – principal-
mente as gerações mais novas, que nos possibilitarão adquirir
mais dados para um futuro mais ou menos próximo –, o que
pensam, o que sentem, a perspectiva de vida que têm e a mun-
dividência actual, poderemos ao menos tocar a raia do que será
a Companhia de Jesus. Assim, iremos de fora (mundo) para
dentro (Companhia), do agir (que é muito diferente do simples
fazer) ao ser, dado que o nosso modo de proceder é o melhor
modo de conhecer quem somos.

Um mundo entre o hoje e o amanhã

A composição vendo o lugar

Primeiro ponto é ver as pessoas, umas e outras. E, primeiro, as


da face da terra, em tanta diversidade, assim em trajes como em
gestos: uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra,
uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos, uns nas-
cendo e outros morrendo, etc. [EE 106].

A contemplação da Encarnação que Santo Inácio nos


propõe nos Exercícios Espirituais [EE 101-109] é o pano de
fundo – e o desafio – desta reflexão. Um desafio a vermos este
mundo como Deus o vê e a encarnar nele como o Verbo en-
carna. À maneira de Deus, ver as pessoas, ouvir o que dizem,
observar o que fazem. E reflectir sobre tudo isto para tirar pro-
veito espiritual.
216 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Um mundo entre a Modernidade e a Pós-Modernidade

Seria muito ingénuo da minha parte ter qualquer pretensão


de definir ou sequer descrever globalmente a complexidade do
mundo em que vivemos. Pretendo aqui, apenas, oferecer algu-
mas luzes sobre o que me parece ser a realidade concreta – e o
modo como ela é vivida e experienciada – das gentes hodiernas.
Fala-se hoje, a cada passo, de Pós-Modernidade. Mas o
que significa, afinal, este palavrão? Muito se discute e muita
tinta corre por infindáveis quantidades de livros espalhados
por qualquer livrariazeca, opinando e disparando em todas as
direcções. Na realidade, parece que o único acordo a que os
autores têm chegado… é que não é possível haver acordo sobre
o que é a Pós-Modernidade. Paradoxalmente, este facto diz já
muito do que é a Pós-Modernidade. Característica fundamen-
tal da mente pós-moderna é o evitar (ignorar?) toda a definição
acabada acerca do que quer que seja.
Vivemos hoje uma época da longa transição entre a Mo-
dernidade e a Pós-Modernidade. Ao jeito de uma pincelada de
superfície, podemos atestar que a Modernidade corresponde a
um longo processo na história humana caracterizado pelo an-
tropocentrismo. Este antropocentrismo superava o teocentris-
mo próprio da Idade Média e o cosmocentrismo característico
da Antiguidade. «A proposição cartesiana “penso, logo existo”
explicitou que o pensar moderno, centrado no ser humano
livre… é condição da existência humana»4.

Paulo Sérgio Lopes Gonçalves, Por uma nova razão teológica. A teolo-
4

gia na Pós-Modernidade. S. Leopoldo, ed. Unisinos, 2005, p. 6.


A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 217

Saindo da Modernidade…

A grande característica que dá o tom à Modernidade é este


antropocentrismo em que o ser humano passa a estar no centro
de toda a realidade. Ele é a medida de todas as coisas. Deus
deixa de ser o recurso normal para explicar o inexplicável. A
religião, que oferecia uma visão global da realidade, bem como
a definição dos valores e dos comportamentos correctos a nível
individual e social, dá lugar a uma concepção secular da vida,
muito mais plural e diversificada. A razão humana começa a
acreditar em si mesma e na sua capacidade de explicar a com-
plexidade da vida. O ser humano será feliz por si próprio. Em-
bora a religião faça parte da vida e tenha o seu lugar específico,
o “penso, logo existo” de Descartes é esse grito emblemático da
racionalidade e da razão humana acima de tudo. Inicia-se, en-
tão, a secularização.
É bem conhecida a resposta de Laplace a Napoleão I quan-
do este, admirando o sistema de mecânica celeste do grande
matemático e físico francês, lhe pareceu assaz estranho que
numa obra tão completa não se encontrasse um único lugar
específico para Deus em todo o sistema do universo. A tal
admirada estranheza, Laplace terá respondido: «Senhor, não
tenho qualquer necessidade de uma tal hipótese [a existência
de Deus]». O universo passara a ser explicável sem se recorrer
ao Deus misterioso de antigamente.
Este processo de secularização vai abrangendo as diferentes
esferas da vida humana que começam a gozar da sua própria
autonomia. A arte, a ciência, a política vão-se emancipando
e deixam de estar sob a alçada da autoridade religiosa. A arte
começa a deixar de ser exclusivamente uma arte sacra para ser
a arte da gente comum. A política ganha a sua autonomia e
218 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

começam a nascer os estados modernos como nós os conhe-


cemos hoje. Já não é o Papa que detém a autoridade última
sobre as nações, autoridade que se vai transferindo, de facto,
para os chefes de estado. Então, a secularização é este processo
que começa com o Humanismo Renascimental onde, por vezes
exageradamente, a pessoa humana vai realmente tomando o
lugar central, anteriormente reservado a Deus5.
Este boom da «descoberta» da razão humana é ilusoriamen-
te exacerbado pelo Iluminismo do século XVIII, que abre as
portas ao Positivismo do século XIX, que vem a desembocar,
desafortunadamente, nas duas Grandes Guerras Mundiais do
século XX. O ser humano todo-poderoso na sua razão era, afi-
nal, capaz de destruir o mundo e os seus semelhantes. A razão,
que prometera a tão esperada felicidade do género humano,
revelara-se enfim perigosa e objecto de grande desilusão. Os
grandes projectos racionais, as grandes instituições e a organi-
zação matemática do universo vieram a tornar-se matéria de
perene desconfiança.
Apesar desta enorme desconfiança, não podemos deixar de
observar em nós, já inseridos na Idade Pós-Moderna, algumas
das tendências próprias da Modernidade que teimam em resis-
tir na nossa mentalidade. De facto, das muitas características da
Modernidade que persistem hoje muito sublinhadas distingo
duas ou três existentes em nós, seja por estarem presentes pela
positiva, seja por reacção, dependendo da geração a que perten-
cemos e do ambiente em que vivemos.

Apesar de tantas vezes mal entendida, no fundo a secularização é a


5

ponte que permite à Igreja dialogar com o mundo, dialogar com a cultura,
dialogar com a arte, dialogar com a política. Secularização, bem entendida,
é o que o Concílio Vaticano II vem posteriormente afirmar, que as realida-
des temporais gozam da sua própria autonomia (cf. Gaudium et Spes, 36).
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 219

O primado da razão científica sobre qualquer outra área do


saber é uma destas características. Na prática, defendemos uma
omnipotência da razão experimental e da razão instrumental.
Honestamente, para nós a verdade não é a verdade objectiva? E
o que é a verdade objectiva? É aquela que é mensurável, em-
piricamente comprovável e cientificamente provada. A cada
esquina das nossas conversas é habitual ouvir-se diálogos do
tipo: «Como é que sabes que isso é assim? Está cientificamente
provado! Ah bom! Se é cientificamente provado, acredito». O
que não é cientificamente provado… até pode existir, mas há
que ser remetido ao foro privado ou mesmo à fantasia de cada
um. A existência de Deus e a possibilidade de relação com Ele?
Se faz bem, se ajuda a ser mais feliz… óptimo. Mas não tem o
peso da Verdade como o têm as verdades objectivas, cientifica-
mente provadas.
Outra característica é a ideologia do progresso baseado na
tecnologia. Basta observar a publicidade. O que nos é ofereci-
do, ou mesmo garantido, não é meramente a segurança de um
bom carro ou o conforto de uma moderna cozinha. Diante de
um eficaz anúncio publicitário, nós temos a certeza absoluta de
que, se adquirirmos o dito carro ou montarmos a referida cozi-
nha, estamos realmente mais perto da felicidade. Se comprar-
mos o telemóvel «do último grito» somos mais felizes! Somos
verdadeiramente mais felizes! E se não o possuirmos, somos
mais infelizes! A tecnologia parece, de facto, ter a chave da feli-
cidade. E todos nós acabamos por ser influenciados – cada um
na área dos seus próprios interesses – por esta ilusão: a ilusão de
que a tecnologia me dá a felicidade.
Outra tendência fruto da grande descoberta da Modernida-
de é o individualismo. A grande descoberta da Modernidade
foi a do sujeito individual, do indivíduo. O antropocentrismo
220 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

acima mencionado foi a grande viragem de perspectiva e de


leitura sobre o lugar do ser humano no universo. Esta viragem
proporcionou que as pessoas se tornassem de facto mais livres,
mais autónomas. Hoje, à partida, a pessoa humana pode esco-
lher muito mais facilmente o estilo de vida e o conjunto de va-
lores ao qual aderir. Mas, incrivelmente, esta valorização do in-
divíduo levou a um individualismo tal que as pessoas se sentem
anónimas no meio de uma multidão. Nunca se falou tanto de
solidão como se fala hoje. As pessoas vivem no meio de grandes
multidões, rodeadas de «amigos» em grandes palcos, mas vivem
sozinhas e sofrem o drama da solidão. Afinal, a descoberta – em
si boa – do sujeito, a valorização da pessoa individual levou a
um exagero exacerbado do individualismo que fecha a pessoa
em si mesma e a torna mais infeliz!

…Entrando na Pós-Modernidade

Toda esta situação conduz-nos a uma tentativa de resposta. A


Pós-Modernidade é essa tentativa de responder à Modernidade.
Já nos questionámos atrás: o que é realmente a Pós-Modernida-
de? E já vimos que definir é, por si só, uma atitude pré-Pós-Mo-
dernidade. Dar definições concretas da realidade faz parte do pa-
radigma da Modernidade. Na (nossa) era pós-moderna, não é a
definição concreta que importa, mas o contexto. Na realidade, o
que hoje é verdade ou é bem, amanhã poderá já não o ser tanto,
porque o contexto mudou. Competindo ao contexto definir o
que é a verdade e qual o bem agir, e sabendo que os contextos se
alteram no espaço e no tempo, está-se a ver que o que é verdade
para mim aqui e agora não o é necessariamente para ti (dado o
teu contexto ser diferente do meu), nem o será necessariamente
para mim amanhã ou noutro lugar.
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 221

Naturalmente que uma mentalidade assim, levará a um


fosso maior entre gerações. Mais ainda, a dificuldade de comu-
nicação e entendimento já não se verifica só de pais para filhos,
mas inclusivamente dos irmãos mais velhos para os irmãos mais
novos. Aqueles já têm dificuldade em entender estes.

«Que mal é que tem, mãe?»

O mundo em que vivemos é este que, a todo o momento,


procura pontes de entendimento mas que sente cada vez mais
que os alicerces dessas pontes se movem, dando a entender que
tais pontes vão ruir. Os mais velhos querem saber onde assen-
tam os pilares e quais são concretamente os valores que nos
guiam, ao passo que os mais novos parecem estar confortáveis
numa certa indefinição, vivendo cada momento com intensi-
dade. Contra o império da razão de outrora, o sentimento vai
assumindo e imperando sobre o campo das decisões. Já não é
tanto o pesar de cada pró e cada contra pela razão que me dá a
certeza da decisão a tomar. Em momentos de indecisão, o clic
do coração tem a última palavra.
Que mal é que tem? É uma pergunta que ouvimos a cada
esquina, principalmente dos filhos para os pais: «Que mal é
que tem, Mãe?» E a mãe – para quem o mal e o bem se dese-
nham bastante óbvios – continua a falar em termos de certo
ou errado. Ora, esta é uma linguagem completamente ultra-
passada. Hoje o importante não é propriamente o certo ou o
errado. Há bom e mau, há agradável e desagradável, há bonito
e feio. A experiência que hoje as pessoas mais novas vivem é
uma experiência vivida numa chave de interpretação muito
mais estética do que ética. É verdade que é uma estética muito
particular… Mas o realmente valorativo é o que me faz sentir
222 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

hoje bem. Com respeito, sim. Mas se me sinto bem, se me dá


paz, não pode haver mal. Qual mal é que tem? Não faz mal
nenhum!
Assistimos, então, à passagem de uma moral objectiva e
clara, que ditava regras comportamentais para todas as circuns-
tâncias e pessoas, a uma ética baseada em elementos estéticos.
O que realmente conta é o sentimento de bem-estar e de beleza
que os acontecimentos e as acções produzem. Tenta-se que o
quotidiano seja, acima de tudo, saboreado, desfrutado. Desde
o mais simples, como a roupa (cuidadosamente amarrotada ou
rasgada), o carro, o tempo livre, a música, o entretenimento
em geral… até ao mais profundo das relações humanas mais
íntimas ou à relação com Deus. Tenta-se que tudo tenha o selo
da beleza, da aventura, da emoção, da sensação agradável. Após
algum evento a pergunta chave é incontornavelmente: «Gostas-
te?». Este é o grande critério de avaliação para tudo. Até se pode
formular a questão em termos aparentemente éticos: «Correu
bem?»; «Foi bom?»… Mas por detrás deste bem ou bom não está
propriamente a questão ética do crescimento como pessoa, do
dar frutos ou não… Está sempre o conceito de gostar ou não.
Então, contra um conjunto de regras fixas e frias, abstractas e
puramente objectivas (i.e., centradas no objecto), reage-se com
o calor da emoção, com o pesar do contexto concreto em que
se vive e com o valor da experiência pessoal e subjectiva (i. e.,
centrada no sujeito) aos quais a regra se submete.
Apesar de encerrar muitos perigos, esta perspectiva de vida
traz consigo inúmeras características positivas que só têm que
ser bem aproveitadas e bem conduzidas por todos quantos se
preocupam com a formação das novas gerações. Mais ainda,
esta mentalidade questiona-nos nos nossos pressupostos que
tantas vezes se tornaram preconceitos. Obriga-nos a rever e
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 223

repensar as nossas certezas absolutas. Força-nos a buscar novas


respostas para questões que são eternas.
Em termos de vida de Igreja, esta alteração de perspectivas
torna-se evidente. Outrora era tudo muito claro: o que é peca-
do é pecado. Ponto final. Roma locuta causa finita. Se faltas à
missa ao domingo cometes pecado grave e não deves comun-
gar; se tens relações com a tua namorada, cometes um pecado
gravíssimo e deves confessar-te, arrependido, imediatamente.
Se não aceitas as regras do jogo, estás fora. Não percebes o
que é a Igreja e considera-te em perigo de condenação eterna.
Esta atitude provocou que se fizesse de Deus um conjunto de
regras. Se cumpres estás bem com Deus, se não cumpres estás
mal. Foi-se relegando a relação pessoal e íntima com Deus
para um plano menor (o tal plano do subjectivo), acentuando
a necessidade do cumprimento das leis. As leis deixaram de ser
as «muletas» para o Caminho, para irem assumindo o papel de
essencial. Naturalmente, Deus e o cumprimento das regras fo-
ram-se fundindo. O Cristianismo foi-se tornando, assim, para
muitos, um infantil e oco moralismo. Ora, Deus é muito maior
do que a minha consciência e o cumprir da lei. Para tanto, bas-
ta ler a Carta de S. Paulo aos Romanos. Deus é Alguém que me
convida a uma relação pessoal – e comunitária, obviamente.
O que as gerações actuais procuram é esta relação total com
Deus. Uma relação que implique a pessoa toda e não só a sua
mente. Por isso questionam, trazem a própria vida, tal como é
vivida, para a arena da esfera espiritual.
A nível moral, o argumento de autoridade deixou de ter va-
lor para as novas gerações. Argumentar o ter que ir à missa ao
domingo ou o não poder ter relações pré-matrimoniais com ex-
pressões como «é mal porque a Igreja/o Papa diz que é mal» ou
«é pecado porque está escrito e sempre foi mal» hoje não fun-
224 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

ciona. As pessoas precisam de entender o porquê da escolha de


determinados valores, estes têm que fazer sentido para as suas
vidas. A simples pergunta «qual é o mal?» posta por um filho a
um pai obriga-nos a irmos além da simples intuição de que há
mal, ou do que nos foi dito e ensinado na catequese. Para sa-
bermos responder a esta pergunta temos, também nós, que nos
perguntar: «qual é o mal?». A mero título de exemplo, sabemos
responder aos nossos filhos porque é que – se é que – é mal
faltar à missa ao domingo ou ter relações pré-matrimoniais? Se
em nós subsiste unicamente o referido argumento de autoridade
(porque a Igreja assim o ensina), então provavelmente isto quer
dizer que ainda não reflectimos o suficiente sobre o bem e o
mal e a questão pode ser um convite a desinstalarmo-nos6.
Se optarmos por nos mantermos onde estávamos, o resul-
tado está à vista. Falamos uma linguagem ininteligível para o
mundo, temos menos pontes de comunicação e afastamo-nos
progressivamente. Se a Igreja continua a falar deste modo – di-
zem os mais novos – nós não a percebemos, não nos traz nada
de relevante para a nossa vida, é cada vez mais desadequada
à nossa realidade, não precisamos dela. Vamos bater a outras
portas. E temos a proliferação de uma pseudo-espiritualidade
fácil, que repleta as estantes de qualquer livrariazita barata, a
colmatar as lacunas de comunicação da Igreja que não con-

Com isto, não quero menosprezar minimamente a autoridade do Ma-


6

gistério da Igreja em matéria de moral ou qualquer outra. Apenas afirmo


que as questões postas pelas gerações mais novas, às vezes superficialmente
contestatárias, acabam por ser um apelo a também nós irmos mais longe,
questionando e procurando perceber não só o que a Igreja diz, mas o
porquê dos seus ensinamentos. Não será isto «estar sempre pronto a dar a
razão da nossa esperança com suavidade e respeito» (1 Pd 3, 15)?
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 225

segue chegar às pessoas do nosso tempo. A atitude de a Igreja


querer chegar às pessoas não é, obviamente, uma operação de
marketing que visa um angariar de clientes para a sua empresa.
Trata-se de desejar profundamente dar de graça o que de graça
recebemos (cf. Mt 10, 8). Se sabemos que Cristo é a resposta
aos anseios mais profundos da pessoa humana, não podemos
ficar quietos à espera que venham ter connosco. Somos obriga-
dos a ir ao encontro das pessoas, tal como Jesus que percorria
todas as cidades e aldeias ensinando nas sinagogas e pregando o
Evangelho do Reino (cf. Mt 9, 35).

Elementos positivos da mentalidade Pós-Moderna

Como afirmado acima, é inegável que este modo de ver a


vida aporta muitos elementos positivos que seria ingénuo e
irresponsável menosprezar. Ao jeito de resumo deixo, em tópi-
cos, estes elementos que fui referindo:

i) recuperação do belo e do simbólico da vida;


ii) recusa de que o ser humano é, acima de tudo, um ser
produtivo. O trabalho é essencial, mas a vida é para
ser vivida, saboreada, fruída;
iii) desenvolvimento da sensibilidade humana (nomeada-
mente um despudor cada vez maior na exposição da
sensibilidade por parte dos homens);
iv) valorização do subjectivo/sujeito: rejeição do anoni-
mato e da obediência a regras abstractas «só porque
sim»;
v) busca de relações humanas realmente significativas;
vi) procura de uma vivência de fé mais autêntica, que faça
e dê sentido à vida concreta.
226 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Mas, como em tudo, também nesta atitude de vida existe


uma outra face da moeda que apresenta perigos graves e que,
também estes, não podem ser ignorados.

Perigos da mentalidade Pós-Moderna

Os perigos são, geralmente, fruto de uma degeneração, por


defeito ou por excesso, das características positivas. Assim, to-
das as facetas positivas desta nossa era transportam consigo o
perigo da sua própria corrupção:
– da autonomia do sujeito é fácil cair-se num subjecti-
vismo exacerbado;
– da diferenciação das várias dimensões da vida huma-
na (economia, arte, política, ciência, fé…) resvala-se
muito facilmente para uma fragmentação da vida;
– a consciência de uma maior tolerância para com o
diferente está a um passo da indiferença ao próximo;
– o tomar em verdadeira conta o contexto em que se
vive provoca o espontâneo absolutizar do momento
presente, tolhendo a capacidade de compromisso a
longo prazo;
– a recuperação do ser humano como ser afectivo (e não
só ser racional) leva facilmente a tomar as opções de
vida tendo por base unicamente o sentimento;
– a busca de uma fé mais autêntica que dê sentido à
minha vida e experiência pessoal conduz com fre-
quência a um intimismo e a uma privatização da vida
espiritual…

Todas estas dimensões constituem o dia-a-dia real da nossa


existência.
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 227

A fé deixa de ser alguma coisa de transversal à vida, mas


passa a ser algo de particular que uso só em determinadas cir-
cunstâncias da vida. É uma gaveta, entre muitas outras, que
abro e utilizo, fechado no meu quarto, um assunto privado só
entre mim e Deus. Em vez de a minha fé se manifestar quan-
do trabalho, quando me divirto, quando me relaciono com
os outros, isto é, na esfera pública-social da vida, ela torna-se
uma dimensão puramente interior que não tem – nem deve
ter – nenhuma manifestação pública, a não ser nos seus foros
próprios (igrejas, templos, etc.).
Se o acento deixa de estar na lei objectiva para estar no sujei-
to, o perigo é que o que eu vivo aqui e agora se torne absoluto.
Tudo gira em volta do eu e do meu contexto presente. Se só
o que é belo e agradável conta, eu faço a gestão da minha vida
com base no sentimento pessoal de fruição da vida. Ora, sendo
o sentimento enormemente oscilável, o melhor é investir tudo
e entregar-me totalmente neste momento, pois não sei o que
me reserva o dia de amanhã. A nível religioso, este facto mani-
festa-se na busca incessante de experiências sempre novas e di-
ferentes, emocionantes ou agradáveis. Um pouco de Budismo,
um bocadinho de New Age, um capítulo do Novo Testamento
e um cursozinho de meditação Zen. Comprometer-me com
uma religião ou instituição para toda a vida? Porquê? Para quê?
Da sua vida espiritual, cada um é que sabe o que o ajuda mais.
E, quanto a instituições… basta olhar à volta e ver como todas
as grandes instituições tradicionais faliram.
Esta atitude de fundo provoca uma vontade de tirar todo o
proveito do momento presente, das coisas ou das pessoas que,
aqui e agora, «possuo» (pragmatismo e consumismo). Mesmo
que isso signifique amanhã fazer o contrário ou defender os
valores opostos. Daí que a própria linguagem seja cada vez mais
228 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

superficial, rápida e hermética (basta pensar nas «conversas» por


sms ou chat), ininteligível para quem não pertence ao grupo7.
Esta é a fragmentação a que me referia. A pessoa deixa de ser
um todo para ser uma amálgama de dimensões que valem cada
uma por si, sem que haja necessariamente coerência entre elas.

A Companhia de Jesus: fiel ao passado e ao presente

Perante esta realidade, e inserida neste mundo, neste mundo


concreto que nos é dado, convivendo com estas definições que
nos fogem, como é que a Companhia pode ser o que é? Quem
é a Companhia de Jesus, o que é que ela é e como é que pode
agir? Como deve a Companhia de Jesus assumir a sua missão?

Para ilustrar esta característica da formação de novas linguagens a


7

todo o momento e da sua hermeticidade, basta referir que há uns tempos


ouvi uma expressão muito curiosa de uma ofensa de um rapaz a outro.
Tinham cerca de 12 anos e apanhei a conversa entre eles num estado já
muito avançado, ao ponto de um gritar para o outro: «És um tecla 3!»
Ao que, naturalmente, o outro se preparava para responder a esta ofensa
verbal em termos de igual ou maior violência, mas agora física. Não fosse
eu estar por perto e a coisa teria acabado mal. De facto, jamais eu chega-
ria ao ponto de ser tão ofensivo! Tecla 3!? Não se chama a ninguém, pois
não? O meu palavreado calão é grande, e é muito variado o meu espectro
adjectival… mas chamar «tecla 3» a alguém, não, isso não. Certamente,
toda a gente sabe do palavrão a que me refiro… Não?! Então proponho
que vão ao vosso telemóvel e que vejam as letras que encontram na tecla
com o nº 3. Se mesmo assim não for inteligível, então estão comple-
tamente out. Se alguém, por acaso, não tem telemóvel, não há mesmo
nada a fazer: «Pré-histórico, cota, já deu…». Como é possível viver sem
telemóvel? Comece a cavar a sua própria cova porque, verdadeiramente,
já não está vivo… pelo menos neste mundo!
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 229

Princípio e Fundamento

Penso que a primeira atitude de um jesuíta, para ser jesuíta,


é a atitude do Princípio e Fundamento: uma visão positiva do
mundo. Deus ama este mundo. O mundo é bom. A nossa épo-
ca é boa! Os nossos tempos são tão bons ou tão maus como os
tempos passados ou os tempos futuros. Ou melhor, são tempos
óptimos porque são tempos de Graça. Afirmar que lá para trás é
que era bom, fazer a apologia do «antigamente», é absolutamen-
te anticristão. O Espírito Santo que pairava sobre as águas na
Criação, que inspirou todos os Profetas, que estava no baptismo
de Jesus, que guiou os apóstolos e que tem conduzido a Igreja ao
longo dos séculos da história humana é o mesmo Espírito Santo
que está aqui. Toda a história é História de Salvação, estamos a
evoluir. O mundo não vai de mal a pior, mas de bem a melhor!
E não acreditar nisto, é ter a nossa fé tolhida. É, de alguma for-
ma, desconfiar da presença, da ternura e do poder de Deus. Não
é por acaso que a Bíblia começa num jardim, e acaba na Nova
Jerusalém, que é uma cidade. Trata-se de um processo de evolu-
ção. Somos convidados a uma visão optimista da vida. Se não a
temos, perdemos um valor essencial da vida: tentar ver o mundo
como Deus o vê. Os jesuítas são optimistas por natureza8.

8
Não resisto a contar mais uma pequena história. Quando estava nos
EUA, fui, com outros jesuítas, visitar as antigas missões da Califórnia.
Quando apreciávamos a «Missão de San José», onde um Franciscano nos
proporcionava uma visita guiada, cruzámo-nos com um artista que tinha
vindo de Nova Iorque. Era amigo pessoal do nosso guia Franciscano, o
qual nos apresentou naturalmente como um grupo de cinco Jesuítas. Para
nosso espanto, a reacção do dito artista foi hilariante! «Jesuítas??!! – excla-
mou ele – Não pode ser! Adoro Jesuítas!!!» Ficámos logo com o ego em
cima, claro!
230 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Não há propriamente bons nem maus momentos; cada novo


momento é uma nova Graça. A Companhia de Jesus, para ser
ela própria, ontem como hoje como amanhã, há-de manter o
que lhe é próprio: o discernimento aos sinais dos tempos e a
disponibilidade para mudar – ou não – segundo a vontade de
Deus. A resistência à mudança é fruto do medo do desconhe-
cido. E o medo é próprio de quem não confia nem discerne a
presença/vontade de Deus.

Fidelidade criativa

O que constitui a Companhia de Jesus é, antes de mais, a


fidelidade ao carisma Inaciano. Como Jesuítas, tentamos res-
peitar e seguir as grandes intuições de Santo Inácio. Natural-
mente, esta fidelidade não é o repetir hoje o que Santo Inácio
fez ou propôs fazer no séc. XVI. Esta não é a atitude da pessoa
fiel, mas do papagaio. Para se ser verdadeiramente fiel a Deus
e à Igreja como o foi o fundador da Companhia de Jesus, há
que conhecer internamente as suas intuições mais profundas
para poder agir hoje como ele agiria hoje (e não como ele agiu

«Mas porquê essa “adoração” toda pelos Jesuítas?» – perguntou o Fran-


ciscano, genuinamente curioso e sem qualquer mágoa ou ponta de inveja.
«É pá – justificou o artista Nova Iorquino – o jesuíta é aquele homem a
quem nos vamos confessar, convencidíssimos de que estamos atulhados
até ao pescoço em pecado mortal, pecado que nos conduziria directamente
ao inferno e… saímos da confissão completamente convencidos de que o
nosso pecado era, afinal, um acto da Graça de Deus!». É natural que ele
gostasse dos Jesuítas… Somos optimistas por natureza. Claro que convém
irmo-nos lembrando de que, quando há pecado, há mesmo pecado! E que
o pecado é mesmo mau. Mas também não nos esquecermos que, de facto,
Deus pode transformar tudo em Graça!
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 231

há quinhentos anos). Deste modo, o apelo de cada jesuíta e da


Companhia em geral é o de olhar para o mundo e ver onde e
como somos chamados a trabalhar pelo Reino (i.e, discernimen-
to) e ter disponibilidade para mudar, para mudar radicalmente
se for preciso.
Daqui a feliz expressão «fidelidade criativa», adoptada pelo
P. Peter-Hans Kolvenbach (Geral da Companhia de Jesus). O
Padre Geral pede-nos para sermos radicais na fidelidade às fon-
tes Inacianas e radicais na atenção ao mundo contemporâneo:
fiéis e criativos. Esta fidelidade criativa exprime-se na fidelidade
ao carisma Inaciano e às fontes jesuíticas, no revisitar a história
de Santo Inácio e ver como Deus o inspirou, no continuar a
ser fiéis aos Exercícios Espirituais e ao modo de proceder da
Companhia de Jesus… tudo isso juntamente com a criativida-
de discernida sobre a missão que nos é dada hoje pela Igreja e
pelas necessidades do mundo actual.
Acreditamos profundamente no diálogo com a cultura actual
e na colaboração com os leigos na transformação do mundo.
Cremos que o caminho do ecumenismo e do diálogo inter-re-
ligioso é um caminho sem retorno. Assumimos que o modo de
estar da Companhia de Jesus hoje, e que alicerça toda a sua mis-
são, é o serviço da fé e a promoção da justiça. Mas sabemos que,
como Jesuítas, não teremos nada a oferecer à cultura actual, que
não poderemos proporcionar um verdadeiro diálogo ecuménico
ou inter-religioso, ou que não seremos capazes de proporcionar
qualquer critério de justiça evangélica se não formos beber à
fonte do Evangelho como o fez Santo Inácio.
Santo Inácio, nas Constituições da Companhia de Jesus,
apresenta normas gerais mas depois, quanto ao modo de con-
cretizar a missão, é muito aberto, usando expressões como
«faça-se segundo o tempo e lugar onde os da Companhia de
232 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

Jesus se encontrarem». Mas, afinal, o que identifica a Compa-


nhia de Jesus? Como será a Companhia de Jesus hoje e amanhã
(que era o tema desta nossa conversa)? Na prática, como é que
viverá a Companhia de Jesus esta fidelidade criativa? A resposta
mais correcta é: não sabemos. (Muito pós-moderna esta respos-
ta) Porquê? Porque há um factor de peso que, em grande parte,
definirá a acção da Companhia e que não depende directamen-
te dela: a Companhia de Jesus, para ser fiel a si mesma, agirá
segundo as necessidades do mundo e do tempo em que viver,
porque, como já vimos, o que a define é a missão. Claro que, se
isto é verdade, também o é que há critérios e princípios que ca-
racterizam a Companhia e que não podem ser negligenciados.
A união com Cristo na oração e meditação do Evangelho, a
fidelidade ao carisma Inaciano e o discernimento nos tempos
actuais (criatividade) são as características que identificarão sem-
pre a Companhia de Jesus. Além disso, temos algumas intuições
e caminhos a percorrer. Porque, de facto, o mundo está-nos a
oferecer algumas mensagens se não mesmo pedidos ou gritos de
socorro! Se os perigos da nossa era, acima referidos, da fragmen-
tação da vida, do individualismo, da absolutização do momento
presente, da sobrevalorização do sujeito, se estes perigos estão
bem identificados, então parece ser possível traçar algum percur-
so ou alguns elementos que certamente (já fazem e) farão parte
da vida da Companhia, hoje e amanhã.

Algumas pistas para caminhar em direcção ao futuro

A Companhia de Jesus, para ser ela própria, tem que conti-


nuar a aceitar dialogar com a cultura. Dialogar seriamente com
o mundo exige humildade. Primeiro, humildade para reconhe-
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 233

cer que temos dons de Deus para oferecer ao mundo (a humil-


dade é a verdade, dizia Santa Teresa de Ávila). Sim, temos uma
tradição e uma história que nos possibilita possuir riquezas de
que o mundo necessita urgentemente. Não o reconhecer seria
falsa humildade. Depois, humildade para verdadeiramente re-
conhecer que temos muito a aprender e a receber do mundo.
Da atitude de fundo que me parece ser identificativa da
Companhia de Jesus hoje e amanhã apresento alguns traços
possíveis e prováveis.

i) Levar a sério e valorizar o subjectivo, o sujeito indi-


vidual. A regra objectiva continua a ter todo o valor,
mas o «sábado é para o homem» e não vice-versa. A
Companhia de Jesus, para ser a Companhia hoje e
continuar a sê-lo amanhã, há-de ser fiel à intuição de
Santo Inácio e dos Primeiros Companheiros. Para
eles era absolutamente essencial a relação pessoal, o
diálogo cara-a-cara, o levar cada um a confrontar-se,
o ajudar ao discernimento pessoal. Trata-se não só de
passar da lei geral ao caso particular, mas mais ainda,
de passar do caso à pessoa. Quando ajudamos alguém
no discernimento, não estamos a tratar de um caso,
mas estamos diante de uma pessoa concreta, com uma
história e uma vida pessoal irrepetíveis.
ii) Esta valorização do sujeito, levar-nos-á com mais ver-
dade a ter em conta que «as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo
dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também
as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias
dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no
234 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

seu coração» (Gaudium et Spes, 1). Deste modo a


Companhia há-de comprometer-se em estar atenta
também – e talvez especialmente – àqueles e àquelas
que, sentindo-se parte da Igreja, não se sentem em
casa na Igreja.
iii) Daqui brota a necessidade – e a coragem – de uma
nova relação com as instituições. As grandes insti-
tuições tiveram o seu papel, mas hoje é clara a sua
rejeição, seja pelo descrédito em que caíram, seja
principalmente pelo anonimato que provocam. É
grande o sentimento de solidão no meio da multidão
de uma igreja cheia de gente que não se conhece nem
tem o mínimo de relação. E é claro o afastamento a
que convida a inflexibilidade própria das grandes ins-
tituições que, para funcionarem, não podem ter em
conta as circunstâncias individuais. Contra esta frieza,
a Companhia irá certamente investir cada vez mais
em pequenas comunidades que proporcionem criar
laços afectivos. Comunidades onde as pessoas se sen-
tem identificadas, onde conhecem e são conhecidas,
onde se sentem acolhidas. Uma Igreja assim comba-
terá mais facilmente o sentimento de uma identidade
frágil e uma falta de auto-estima que assomam tantas
pessoas do nosso tempo. Uma Igreja assim será real-
mente uma Igreja-Mãe.
iv) A Companhia do presente e do futuro promoverá mo-
dos de celebração nos quais a vida das pessoas tenha
realmente lugar. A celebração litúrgica é a celebração
da vida. Não pode não existir uma relação entre vida e
liturgia; as celebrações não podem ser algo à parte que
funcionem como um parêntesis ou um escape à vida.
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 235

A noção generalizada de que Jesuítas e liturgia é uma


combinação que não funciona tem algo de verdade.
Mas também é verdade que alguma causa desta com-
binação supostamente frustrada está no facto de, em
geral, não nos identificarmos com uma liturgia que
«não diga nada às pessoas». Entre continuar a promo-
ver ritualismos ou exprimir-se de forma inadequada
e uma liturgia realmente renovada, os Jesuítas vão
caminhando às apalpadelas tentando, também nas ce-
lebrações, chegar às pessoas. A liturgia é a linguagem
do povo ou não é liturgia. Neste campo, há que ir ao
encontro da sensibilidade actual e recuperar o cuidado
estético dos espaços e das acções litúrgicas. Não ter
medo do sentimento, que tem todo o lugar… porque
pode ser uma porta de excelência para nos conduzir ao
sentido.
v) No mundo actual a Companhia não pode deixar de
investir na promoção dos leigos e do seu papel na
Igreja. A Congregação Geral (CG) 34 (dec. 13) é
clara em afirmar que a Companhia de Jesus é colabo-
radora dos leigos na missão (e não o contrário). Esta
colaboração é, segundo a CG, «ao mesmo tempo um
elemento constitutivo do nosso modo de proceder e
uma graça que pede renovação pessoal, comunitária
e institucional. Convida-nos a servir os leigos no
seu ministério, a buscar maneiras de participar com
eles na missão e a estar abertos a formas criativas de
cooperação futura. O Espírito chama-nos, enquanto
homens para e com os outros, a partilhar com os leigos
o que cremos, o que somos e o que temos, em atitude
de companheirismo criativo, para ajuda das almas e
236 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

maior glória de Deus» (CG 34, dec. 13, n. 26). Esta


colaboração há-de ter inúmeras concretizações, tais
como a formação de leigos para darem Exercícios Es-
pirituais, a sua preparação para assumirem a direcção
de obras da Companhia ou, mais genericamente, para
assumirem a liderança de cada vez mais comunidades
sem padre.
vi) Finalmente, a Companhia continuará a facilitar a re-
lação pessoal e íntima de cada um com Deus através
dos Exercícios Espirituais. Esta é a grande herança que
ela tem para oferecer à Igreja e à humanidade.

Conclusão

Enfim, a Companhia de Jesus, contra todos os profetas da


desgraça, continuará a acreditar e aceitar as pessoas como e pelo
que são. Acolhe as pessoas porque são pessoas… pelo que são,
pelo que sonham e desejam, pelo que esperam. E não pelo que
possuem, fazem ou produzem.
O jesuíta de amanhã será um homem frágil e pecador, com
grande experiência de pecado! Mas que faz a experiência do
amor de Deus Misericordioso na sua vida concreta. Pecador
perdoado e reconciliado com Deus, o jesuíta será um homem
de reconciliação. Será alguém que valoriza cada pessoa como é
porque Deus assim o faz com cada um. Mas não esconderá que
o amor é exigente e que quem ama também sofre.
De cabeção ou de camisa às flores, o jesuíta será um homem
de Igreja. Com espírito crítico até à medula, mas com um de-
sejo enorme de se sentir sempre e cada vez mais – e de levar os
outros a sentirem-se – Igreja. Por isso, acolhe de braços abertos,
A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 237

tentando imitar Jesus que de braços abertos morreu na cruz por


nós. Por isso também, será eternamente agradecido à Igreja por
ser sua Mãe, mas sente a necessidade de pedir perdão, em nome
da Igreja que ama, a todos quantos ainda se sentem excluídos
da casa do Pai.
Será um homem nunca satisfeito com o estabelecido, com o
conhecido, com o provado ou o já existente. Está-lhe no sangue
buscar sempre o para lá do que se vê. Aceita a vida, as dificul-
dades, as fronteiras, os medos, tentando sempre que não sejam
obstáculos ou pontos de paragem, mas desafios que apontam
para o Magis.
Pode ser cardeal na Cúria Romana ou trabalhar num circo;
pode assumir a postura de um monge hindu na Índia, ou de
um executivo em Nova Iorque. Mas terá sempre a sua vida em
nome do serviço da fé e da promoção da justiça, rasgando hori-
zontes e fazendo pontes entre as diferentes tradições e culturas.

O jesuíta possuirá sempre ao mesmo tempo alguma coisa


de louco e de uma enorme normalidade. A loucura é a própria
de um apaixonado por Jesus Cristo e que o levará a agir como
Santo Inácio de quem se dizia que era louco por Cristo. A nor-
malidade é própria de alguém que será um homem no meio
dos homens e mulheres do seu tempo e lugar.
Com o optimismo realista e com a esperança que lhe são
próprios, penso que a Companhia de Jesus poderá unir-se ao
Padre Pedro Arrupe numa das suas incisivas expressões, pouco
tempo antes de morrer:

Para o hoje: Ámen!


Para o amanhã: Aleluia!
HOMILIA DA EUCARISTIA DE ENCERRAMENTO
Nuno da Silva Gonçalves, S.J.

O tom das leituras dos últimos dias do ano litúrgico é muito


semelhante ao das leituras dos primeiros dias do novo ano litúr-
gico. Num caso e noutro, a palavra de Deus fala-nos de expec-
tativa, de espera e de vigilância porque a salvação está próxima.
A expectativa ou a espera fazem parte da nossa vida. É verda-
de que podemos ter sentimentos contrapostos quando pensamos
no futuro, com tudo o que implica de desconhecido: confiança
ou receio, esperança ou cepticismo, entusiasmo ou indiferença.
No entanto, o tempo de espera que iniciamos no 1º Domingo
de Advento não é uma espera qualquer; sobretudo não é uma
espera do desconhecido; bem pelo contrário, renovamos a
nossa atenção, aprofundamos o nosso desejo de encontrarmos
Aquele que já conhecemos, que continua actuante e que quer
estar cada vez mais actuante na vida de cada um e na vida do
mundo. Não fazemos de conta que o Senhor ainda não veio;
sabemo-lo já presente mas, ao mesmo tempo, nunca totalmente
acolhido, nunca totalmente caminho, verdade e vida de cada
um de nós.
Esta espera é, por isso, uma espera alicerçada na confiança.
E, bem vistas as coisas, a confiança é a única maneira cristã de
esperar. Uma confiança activa, que nos leva ao compromisso
e à acção. E que, por isso, nada tem a ver com ficar de braços
cruzados, no conformismo ou na resignação. Não nos limita-
mos a esperar passivamente o futuro mas, na medida das nossas
poucas forças, aceitamos a missão de o construir com os crité-
rios do Evangelho.
240 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

No Advento, não fazemos de conta que o Senhor ainda não


nasceu. Mas podemos treinar-nos e exercitar-nos para o reco-
nhecermos melhor. S. Paulo indica-nos um programa concre-
to e exigente: «crescer e abundar na caridade uns para com os
outros»; «progredir ainda mais». O Advento pode ser o tempo
para este mais, para esta caridade em crescimento superabun-
dante. Um tempo, diz-nos o Evangelho, para a vigilância e para
a oração; podíamos acrescentar, um tempo para a atenção às
situações e às pessoas em que Deus, no silêncio e na pequenez,
continua a encarnar. Um tempo propício, podíamos ainda
dizer, para a contemplação e para a acção.
Com esta Semana de Espiritualidade Inaciana e com a Eu-
caristia de hoje, encerramos o ano jubilar, tempo em que, de
maneira mais intensa, aprendemos com Sto. Inácio, S. Francis-
co Xavier e o Beato Pedro Fabro. Damos graças a Deus pelo
seu legado e pela forma festiva, inspiradora e profunda como os
celebrámos. Foi tudo XL; não apenas a impressionante cami-
nhada nocturna pelas ruas de Lisboa (a Noite XL), mas tantas
outras iniciativas: After Xav; peregrinações; encontros, confe-
rências; e inúmeras publicações. Ao longo deste «ano XL», re-
cordámos muitas vezes que Inácio, Xavier e Fabro eram amigos
no Senhor e que as distâncias não constituíam obstáculo para
que se sentissem corresponsáveis pela missão uns dos outros.
Nós Jesuítas, sobretudo nos dias de peregrinação a Xavier,
aprofundámos o nosso desejo de sermos mais fiéis a este mesmo
chamamento. Mas aprofundámos também a responsabilidade
e o desejo de partilharmos e vivermos com outros, na Igreja,
uma herança que não é só para nós. Esta possibilidade de par-
tilha e de comunhão na missão esteve bem patente ao longo
dos últimos quatro dias. É verdade que há, ainda, um longo
caminho a percorrer mas a partilha e a comunhão serão tanto
Homilia da Eucaristia de encerramento 241

mais reais e visíveis quanto mais todos nos sentirmos servidores


da missão de Cristo. É Ele o único protagonista que queremos
seguir e servir, Aquele que nos pode fazer «crescer e abundar na
caridade uns para com os outros», como amigos no Senhor que
todos somos chamados a ser.
ÍNDICE

Sessão de abertura – A. da Costa Silva, S.J. ...................................... 5

Inácio de Loiola e a Companhia de Jesus: A Companhia de Jesus


em tempo de mudança – António Vaz Pinto, S.J. ....................... 11

Esclarecimento prévio....................................................................... 11

1. Inácio de Loiola – O contexto familiar e pessoal........................ 11


a – De Loiola a Jerusalém – de cavaleiro a peregrino .................... 13
b – De Jerusalém a Paris – de peregrino a estudante ..................... 15
c – De Paris a Roma – de estudante a homem da Igreja ................ 20

2 – O contexto histórico................................................................. 24
a – Político-Social ...................................................................... 24
b – Cultural............................................................................... 25
c – Eclesial ................................................................................. 28

3 – O Espírito Santo, Inácio de Loiola, a Companhia e a Igreja ... 34


Continuidade e inovação ............................................................ 34

A formação na Companhia de Jesus – Mário Garcia, S.J. ............. 39

1. «Um certo conhecimento de Jesus» ........................................... 41


2. «Seguirem dalguma forma a Cristo» .......................................... 44
3. «Seguirem para sempre a Cristo nosso Senhor».......................... 48

Conclusão........................................................................................ 51
244 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus


– Teresa Messias ......................................................................... 55

I Parte – Antecedentes históricos

Introdução................................................................................... 55

1. Inácio de Loiola e a condição laical ......................................... 56


2. Manresa e Barcelona ............................................................... 57
3. Alcalá de Henares e Salamanca: congregando um grupo de leigos . 62
4. A experiência de Paris ............................................................. 64
A comunidade de Paris: que traços característicos?....................... 66
1. Atracção por uma personalidade singular que motiva para Deus 67
2. Experiência humana de camaradagem e partilha................. 68
3. Uma forte experiência de Deus com traços comuns ............... 69
4. Um oferecimento apostólico comum: o voto de Montmartre .. 70

5. Itália: ordenações e a escolha do nome Companhia de Jesus .... 73


6. O termo companhia e a sua importância no séc. XVI .............. 74
7. Roma de 1540 e a colaboração com os leigos na missão da Com-
panhia de Jesus ...................................................................... 79

II Parte – A mudança operada desde o Concílio Vaticano II

8. A Companhia de Jesus sob o efeito do Concílio Vaticano II .... 83


9. Os Leigos e a Companhia de Jesus: Congregações Gerais 31 a 34 . 86
9.1. Um modo especial de colaborar com a Companhia de Jesus.. 89
9.2. Da CG 31 à CG 34: mudanças profundas ......................... 93

10. A colaboração na missão na CG 34 e desde então para cá ..... 96


10.1. O Decreto 13 da CG 34 e as suas consequências ............... 97
10.2. Um novo paradigma: cooperar numa missão comum ......... 99
10.3. A situação particular: a união de leigos à Companhia por um
laço mais estreito ............................................................. 104

11. Sucessos, dificuldade e desafios da co-responsabilidade na missão 107


12. Quadro final: Lava-pés e contemplação para alcançar amor.... 111
Índice 245

A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça – Hermínio


Rico, S.J. ........................................................................................ 115

1. O Decreto IV da Congregação Geral 32..................................... 116


A fórmula .................................................................................. 118
Serviço presbiteral da fé............................................................... 120
Factor integrativo de todos os apostolados ..................................... 122
Acção sobre as estruturas.............................................................. 124

2. Mais que novidade, regresso às fontes......................................... 126


Na Fórmula do Instituto............................................................. 127

3. Antecedentes .............................................................................. 129


4. Desafios e dificuldades................................................................ 132
5. Congregação Geral 33 ................................................................ 135
6. Congregação Geral 34: nova definição da Missão ....................... 136
7. Conclusão .................................................................................. 142

Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus entre Reforma e Con-


tra-Reforma – D. Manuel Clemente ............................................. 147

Sentir a Igreja – Vasco Pinto de Magalhães, S.J. ........................... 161

Esquema ......................................................................................... 161


Texto .............................................................................................. 163

Qual é a questão? ...................................................................... 163


O «sentir» inaciano.................................................................... 164
Em Pedro Fabro (e Companheiros)........................................... 165
O sentido de família como paradigma ....................................... 166
Duas histórias ........................................................................... 167
Sentir e assumir a pertença à Igreja no séc. XXI......................... 168
246 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã

A Eucaristia como resposta que desafia e faz participar .............. 170


Guardem-se «Regras para sentir a Igreja», em discernimento e
missão, segundo o Espírito Santo .............................................. 171

Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus – Luís Rocha e


Melo, S.J. ....................................................................................... 173

Introdução ...................................................................................... 173

1. Carisma e instituição .................................................................. 174


2. O carisma da Companhia........................................................... 179
2.1. Os exercícios espirituais ........................................................ 181
2.2. Os efeitos que ficam ............................................................. 182

3. O discernimento dos espíritos .................................................... 183


3.1. A unidade interior............................................................... 184
3.2. O dom do conselho............................................................... 186
3.3. Contemplativos na acção...................................................... 189

Xavier ao encontro do novo mundo – Francisco de Sales


Baptista, S.J.................................................................................... 191

Introdução ...................................................................................... 191

I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo .................... 192


II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo............. 198
III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo ................ 199

1º Aportações ao diálogo inter-religioso: fé-religiões ....................... 200


2º Aportações ao diálogo inter-social: fé-justiça .............................. 202
3º Aportações ao diálogo inter-cultural: fé-cultura.......................... 204

Conclusão........................................................................................ 206

Bibliografia ..................................................................................... 210


Índice 247

A Companhia de Jesus, hoje e amanhã – Miguel de Almeida S. J. 213

Introdução ...................................................................................... 213

Um mundo entre o hoje e o amanhã .............................................. 215


A composição vendo o lugar......................................................... 215
Um mundo entre a Modernidade e a Pós-Modernidade ................ 216
Saindo da Modernidade….......................................................... 217
…Entrando na Pós-Modernidade ............................................... 220
«Que mal é que tem, mãe?»......................................................... 221
Elementos positivos da mentalidade Pós-Moderna......................... 225
Perigos da mentalidade Pós-Moderna .......................................... 226

A Companhia de Jesus: fiel ao passado e ao presente....................... 228


Princípio e Fundamento ............................................................. 229
Fidelidade criativa ..................................................................... 230

Algumas pistas para caminhar em direcção ao futuro...................... 232

Conclusão........................................................................................ 236

Homilia da Eucaristia de encerramento – Nuno da Silva


Gonçalves S.J. ................................................................................ 239

Índice ............................................................................................. 243

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