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ENSAIOS E ESTUDOS PHILOSOPHIA ECRITICA POR TOBIAS BARRETTO DE MENEZES Lente cathedratico da FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE 2° eticgaa correcta ¢ augmentada bob, G de cbovrerrdoce te 16 Te. r PERNAMBUCO Eprtor - JOSE NOGUEIRA DE SOUZA | 1889 INDICE A sciencia da alma, ainda e sempre contestada. . II. Sobre um escriptu. de A. Herculano Til. Auerbach e Victor Hugo . . . IV. Socialismo em litteratura . V. Uma excursao de dilettante pelo dominio da sciencia biblica VI. Sobre David Strauss. . . VII. Miserias do imperio e sua ‘corte . VIII. O principe de Bismarck e o vis- conde do Rio-Branco TX. A ultima carta de Victor Hugo ao congresso de Genebra . : X. A Musa da felicidade. oe XI. As flores perante a industria. . © Pags. Sardeline So: PROLOGO Os Ensaios e Estudos de Philosophia e Critica foram publicados pela primeira vez em 1875. 0 livro ficou, marcando uma nova era para as lettras brazileiras; 0 seu auctor foi adiante, publi- cando depois os Menores e Loucos, os Estudos Allemées, os Ligeiros tragos de literatura comparada, as Quesiées Vigentes. Hoje apparecem novamente-os-Ensaios e Estudos, nio por vo- lupia de vaidade, inas como precioso documento do nosso de- sonvolvimento intellectual. Vera o leitor que o primeiro livro de Tobias Barretto nao é uma Allantida, que sumio-se com os annos como tantos livros, cuja instantaneidade de successo esta na razio directa do febril enthusiasm por elles provocado no momento, em que apparecem ; vera que os Ensaios e Estudos perduram como manifestagées de um espirito superior, que no do'ninio da critica nao se alimenta somente das faitas dos conlemporaneos, mas que sabe forgar as Portas do futuro, elevando-se a essas alturas do pensamento, onde respira-se sempre um tao delicioso perfume de vilalidade. Além dos estudos sobre A sciencia da alma, Um escripto de A. Herculano, Auerbach eV. Hugo, Socialismo em litteratura, Uma ercurséo de dileltante pelo dominio da sciencia biblica e A musa da Felicidade, os Ensaios contéem presentemente mais os seguintes artigos : Sobre David Strauss e A ultima carta de Victor Hugo ao oe congresso de Genebra, publicados em 1874 no Signal dos Tempos, Miserias do imperio e sua cérte e O principe de Bismark e 0 visconde do Rio-Branco, dados a luz em 1875, na Comarca da Escada, As flores perante a industria, edictado em 1883 pelo Industrial. Todos estes trabalhos apparenlemente sem ligagdo entre si, publicados em jornaes e revistas differentes, acham-se ligados uns aos outros, apesar da diversidade dos assumplos, pelas qua- lidades personalissimas do auctor, pela penetragdo do pensumento, pela franqueza brutal da critica, pelo encanto da forma impecca- yel e, sobretudo, por essa mechanica de espirito, que domina Lodos os seus trabalhos e faz com que Tobias Barretto no meio de todos os seus odios e sympathias, de todas as suas repugnancias e preferencias, ndo se parega senao comsigo mesmo. A segunda ediccio dos Ensaios e Estudos de Philosophia e Critica vai ser um precioso documento para a historia da nossa Jitteratura como medida do nosso desenvolvimento intellectual. « Um livro é, como ja disse alguem, mais do que a obra de um homem, é a leitura de muitos. » ARTHUR ORLANDO. 3 ENSAIOS E ESTUDOS DE PHILOSOPHIA E CRITICA I e A sciencia da alma, ainda e sempre con- testada. F’ visivel 0 torpor, e poderia dizer— a inanicao completa do velho espiritualismo cartesiano-catho- lico, Negal-o!?... S06 por effeito de fatua ligeireza, ou de céya rebeldia contra a soberana antoridade dos factos. As doutrinas de Cousin e Jouffroy estao exhaustas. As ultimas produccdes dos pensadores, filiados nessa escola, so de uma extrema e Jasti- mavel fraqueza. (1) Nao ha mistér de largo esforgo, nem de medir com a vista todo 0 horisonte do mundo philoso- phico, para por esta verdade 4 salvo de qualquer duvida. Basta por ora limitar-me 4 Franga, com alguns de seus philosophos, nos tempos derradei- ros. Diante de uma vasta litteratura, 0 que ha de mais difficil, é o trabalho da escolha. Eu abro casualmente o livro, abaixo mencio- nado, e leio n’elle um artigo interessante sobre o estado actual da psychologia, seu methodo e seus resultados; o que tudo somma ama defeza em re- gra dos direitos da alma humana. E.bem que nesse escripto nado se achem resumidas, christallisadas, todas as razdes e allegagdes habituaes, comtudo ee (1) La science de V Invisible... par Charles Levéque. —-2— elle ministra uma excellente occasiado, para tomar- se 0 pulso do systhema decahido. A mesma sinceridade que o caracterisa, equi- vale aum desnudamento do corpo cadaverico de pobres theorias, cuja terminagio se me antolba in- evitavel. Se ahi nem sempre deixa-se admirar 0 philosopho seguro em suas ideias, nunca desappa- rece o homem convencido, a intelligencia vivida e luminosa. Qualqver porém que seja a sympathia conquis- tada pelo talento do autur, eu nao vejo, — e sinto dizel-o, — nado vejo que a sua causa possa contar uma victoria de mais. Nao éa sciencia, 0 que falta ao notavel escriptor, — é simplesmente a razao. Quem negaria 4 Levéque as bellas qualidades de um grande e elevado espirito? Entretanto as suas armas se mostram impotentes ante a forga superior de uma sciencia mais desembaragada e livre dos prejuizos em voga. O espiritualismo ha de ainda, longo tempo, achar echo no fundo obscuro da ignorancia geral. Naoé menos exacto que a philosophia corre 0 risco de tornar-se uma cousa pouco séria eindigna de attencdo, se persiste em suscitar e resolver do mes mo modo as questoes do costume. I O autor do escripto que nos vae occupar, é um dos orgiios eminentes da philosophia franceza. Dis- cipulo de uma escola, que defende e representa as tradigdes cartesianas, Levéque esta convencido do triumpho completo desse systhema, E’ para vér 0 modo sobranceiro, por que elle se pronuncia. A crér-se em sua palavra, a doutrina espiritualista offerece todos os caracteres de forga e vivacidade: — tem resistido aos seus adversa- rios ; tem sido fecunda em produzir pensadores e obras importantes. Mas bem me quer parecer que o autor se paga —3— de uma illusio. Releva, antes de tudo, advertir que o espiritualismo francez deste seculo nio comegou resistindo, porém combatendo. O que interessa mostrar, nado é, se elle deixon de ceder o passo a qualquer adversario ; mas se de feito poude recha- cal-o do terreno ja occupado. "Em outros termos, e para exprimir tudo de uma vez, é sabido que Cousin dedicou esplendidas licgdes 4 refutagdc dos systhemas que se lhe oppu- nham. Sabe-seainda que todos os seus discipulos sempre pugnaram com igual empenho, em prél da mesma causa. Taes s40 os factos; 0 que provam elles? Quasi nada. O sensualismo deu-se por acabado? O materialismo convenceu se de ab- surdo, 6tomou silencioso a direccdo do olvido? Onde pois os titulos de gloria dessa philosophia, que se diz a salvadora do genero humano ? O que Levéqne chama fecundidade, bem se pa- deria chamar impertinencia. Em rigor, o espiri- tualismo nao 6 uma doutrina fecunda; — é6uma doutrina facil. Isto explica a sua abundancia e ri- queza de productos. Os pensadores e as obras que surgiram nos ultimos cincoenta annos, na patria de Descartes, sao de um alcance muito limitado. O numero é prodigioso; mas o fundo é quasi nullo e insignificante. Nao cessaram de gyrar no circulo estreito do senso commum, proclamado, parvamente, juiz ir- recursivo em materia philosophica. Tambem nao mne parece prova de vigor e uberdade, sanccionar os preconceitos correntes, em nome da logica, mal empregada, e da razdo, mal definida. __ Nao quero porém insinuar que se negue o me- tito real de certas paginas, unicas proveitosas, que sé encontram nos livros da celebre escola. Pelo contrario: se alguma cousa me peza, 60 vér-me obrigado no interesse da verdade, ou do que tenho bor tal, a ser severo com aquelles, em cujas obras pude haurir, pelo menos, a paixao deste genero d estudo. P » a Palxko deste g ° Il Quaes sdo presentemente os dados innegaveis da sciencia da alma? Eis ahi uma questéo sim- plissima, que sendo entretanto sériamente resolvi- da, poria 4 descoberto as pretencdes infundadas da escola espiritualista. Com effeito, é para admirar phenomeno tao es tranho: — desde Socrates até os nossus dias, a consciencia humana tem sido interpellada, e toda- via as snas respostas ainda nao enchem meia folha de verdades. Nao basta reconhecer e allegar a ex- istencia dos factos internos. Eu creio que ninguem os contesta, como taes. Elles fazem parte da vida ; — elles sao a vida mesma. Quem foi que ja sustentou que o homem nao sente, nao quer, nao pensa?... A questao acha-se longe e muito longe desse ponto. Levéque deu-se o trabalho de repetir. por sua vez, que a psychologia é possivel, porque ella oc- cupa-se de factos evidentes, posto que distinctos dos factos sensiveis. E’ um defeito habitual a todo espiritualista, o de julgar-se obrigado 4 nao discutir assumpto philosophico, sem uma introduceaéo de ideias muito valgares, que nao trazem luz para o debate. Ha indicios de que o nosso autor naio pegou o problema n’aquella altura, em que o collocaram as escolas critica e positiva. O methodo applicavel a qualquer sciencia, in- cumbida de estudar e explicar uma ordem de phe- nomenos, se resume em duas operagdes : — obser- var einduzir. Os factos da vidainterna podem ser observados, de um modo capaz de fornecer materia scientifica? Para os que affirmam, nao ha difficul- dade em provar que a consciencia nos da o conhe- cimento do mundo interior, da mesma forma que 98 sentidos nos franqueiam os dominios do mundo —5— externo. O que em ultima analyse quer dizer so- mente que a consciencia éa consciencia. Mas isto é pouco. Resta sempre a saber, se quando o homem se volve sobre si mesmo, para observar-se pensando, encontra realmente o que procura, Carrega-se de sombraoaspecto da cousa, desde que, no exercicio da observacao interna, nio é sé o testemunho da consciencia que se invoca, mas tambem o da me- moria. De ordinario, os psychologos @ieixam de lado o que diz respeito a esta faculdade, quando fallam do instrumento de suas analyses. Entre- tanto, 6 della que pertence a maior parte da em- preza psychologica. Eu me explico. Para melhor conseguil-o, vou suppor que pela primeira vez tento hoje entrar no fundo de minha vida intima. La chego; a quem medirijo? A consciencia me affirma que, nesta hora, eu medito para escrever; que sou eu mesmo que manejo uma penna; qne tenho sensagées, per- cepgodes de varios objectos ; que sinto-me vivendo, querendo, praticando um acto proprio... tudo isto agora, no correr de um rapido instante... E’ dizer ja muito; — mas nada importaria, se nao fosse o auxilio da memoria Por que meio saberia que sou capaz de sentir déres e prazeres de diversas ordens; e que tenho outras faculdades, nenhuma das quaes, presente- mente, se acha em exercicio? O senso intimo, em si mesmo, ésemelhante a um bello céo do sol-posto, olhado de repente: véem-se apenas umas quatre estrellas. Porém o numero augmenta, A propor¢aio que melhor se encara, e apés instantes fulguram aos milhdes. Tal é o espectaculo dos factos sub- Jectivos, qne a memoria traz Atona do lago interior. as ninguem poderia assegurar que ella os re- Voque inteiramente, com todos os seus primitivos Caracteres. Nao étudo. A exacta observacio dos phenomenos psychicos tem ainda de adverso uma outra circumstancia. O mister da memoria nado é —6— mais que repetir na consciencia a noc&o de qual- quer facto espiritual. Temos pois 0 acto simplesmente mnemonico, suscitando o acto de percepcao interna, relativo a um terceiro acto, que 60 phenomeno estudado. Sobram razdes para desconfiar-se deste pro- cesso de tres. graos. Dir-se-ha_talvez que se pode de novo recorrer a observacado immediata, reproduzindo o facto que se pretends estudar. [E’ este um dos mais cegos enganos, em que labora a psychologia espiritualista. Elia deixa-se influir demasiado pela futil pretencao de tambem se basear na experiencia; quando 6&6 isso justamente o que lhe falta, e sempre faltar-lhe- ha, para dar aos seus achados uma sanucedo va- liosa. A experiencia, -—~ todos sabem —, tem por fim verificar que 0s phenomenos existem, — sim ou nado —, taes 6 quaes nos apparecem. As sciencias physicas pédem a sea serviga os orgios dos senti- dos; sendu que ainda se Ihes achegam apparelhos especiaes. Desta vantagem nao goza a psychologia. Por mais que digam os descendentes de Des- cartes, a consciencia nao péde dar a ultima palavra sobre 0 que realmente se passa no fundo da vida moral. Nao affirmarei, com Augusto Comte. que a pos- teridade fara da psychologia um assumpto de co- media. O que nada teria de estranhavel ; — visto como, depois de Aristophanes, ja déra Moliére a prova de que tambem na scena se fustigam as t6- jices dos philosophos. Porém ha serios motivos de langar em davida a efficacia do meio empregado, para o homem co- nhecer-se de um modo objectivo e scientifico. EF’ facil ac physico, embebido no estudo do mundo corporeo, assegurar-se de uma lei, por forga de ex- perimentos que varrem Ihe do espirito a mais li- geira nuvem de hesitacdo. Elle tem ante os seus olhos diversas series de cousas; as quaes si0 0 -7— que sao, e se mostram desta ou d’aquella maneira, porque tal é a sua natureza, sem o menor concurso da vontade humana . A posicao do psychologo é differente. Collo- cando-se em face do — ew — nite solitario, nunca pode tomar a verdadeira attitude de um observa- dor. Arazioéclarae simples. Para que a alma fosse de certo um objecto de estudo, seria mister principiar por yél-a em seu estado natural, entre- gue a si propria, seguindo sémente a warcha tra- cada pelas leis de sua existencia. Mas isso fora im- possivel ; ¢ irrisorio, pretendel-o. Por quanto, nesse estado, unico em que aalma podéra objectivar-se, 0 que ha de mais saliente, é o eclipse mesmo do senso intimo, a quem, alias, se toma por orgao infallivel da observacao. Nem se julgue que o exemplo do sonho seria capaz de derramar aqui luz em contrariv. E’ certo que algumas vezes, durante esses phenomenos, ap- parece uma sombra de reflexdo, protestando sur- damente contra aquillo que cremos ver ou sentir. Isso porém serve apenas para attestar que, em taes occasides, nio ha somno perfeito. Quasi sempre, a consciencia cae no logro ; demonstrando em todo caso, que ella ndo passa além de si mesma, que ella 6 o seu proprio e unico objecto. Il Eu disse que a memoria intervém largamente na observacao psychologica. Importa accrescentar que a imaginacado n&éo 6 menos aquinhoada. Nao ha phenomeno mais vulgar, do que vér o Psychologo entrar, como elle diz, no fundo de seu ser, afim de buscar a base de todo o conhecimento humano. Neste intuito, é natural que elle simule duvidar de tudo, excepto o pensamento. Pelo menos © este o sentido do famoso, bem que esteril, cogito ergo sum. Tenhamos porém coragem para proclamal-o —s— desde ja: estas formulas vasias n&io aguentam uma analyse severa. E’ preciso dispersar os nevoeiros, que aindase accumtlam nas alturas culminantes da especulacio sincera e desinteressada. De minha parte, estou persuadido que o seculo nio chegaa escoar-se de todo, sem que, do seio mesmo da Franca, se leyante um protesto decisivo, absoluto, contra a pobre philosophia de Descartes e seu exa- gerado, immerecido renome. A duvida methodica, ensinada por este director do pensamento philosophico francez, 60 ponto de partida repizado da psychologia actual. Mas nao passa de um jogo de palavras, que poude fazer for- tuna, através de dous seculos, baldos de senso cri- tico. De certo, o que vem a ser uma duvida, acon- selhada ao homem, como regra de direcgio men- tal? Admira que os psychologos professos nao ti- vessem reparado, uma sé vez, no dislate do precei- to cartesiano. Nao duvida, quem quer, e somente porque o quer. Porém sé a vontade 6 capaz de praticar uma regra que se lhe impde. Diante desta anomalia, os resultados excentricos, burlescos, nao se fizeram esperar. Os philosophos, todos crentes como o geral dos homens, deviam imaginar estados e situagdes inexistentes. A’ forga de phantasiar combates e terremotos do mundo interior, ha exemplos de aca- bar-se por apresentar a pintura de uma alma espe- cial, que nao é irman da nossa alma, Ninguem, mais do que eu, rende homenagem ao talento de Jouffroy. Todavia, pio me eximo de dizel-o: — este grave pensador enganou-se a si proprio @ aos seus compatriotas, n’aqueila viva e tragica descripgao da perda de suas primeiras crengas. Raros serio os que nao saibam de cér esse pedago, uma das paginas mais lidas da litte- ratura contemporanea. Jouffroy nos falla de uma noite memoravel, na —-9-— qual se rompeu o véo que the occultava a sua in- credulidade. Como todos os hons poetas, 0 philo- sopho nao se esqueceu de fazer a natureza realgar ointeresse do drama psychico, pela_presenga de algum dos seus mais bellos objectos. Era alua meio velada de nuvens e acclarando, por intervallos, as vidracas frias da camara estreita e nua, onde o phi- josopho scismava. | « As horas da noite se escoavam, diz elle, e eu nao dava por isso; — com anciedade seguia o men pensamento, que, de leito em leito, descia para o fundo de minha consciencia, e dissipando uma apos outra, todas as illusdes que tinham-me até entdo roubado a vista detla, tornava as sinuosida- des interiores cada vez mais patentes e visiveis. » Busquemos nés agora a substancia disto. O pensamento do philosopho nao podia, como esta descripto, immergir no fundo da consciencia, sendo sob as formas determinadas, por que elle se manifesta. Um pensamento vago, indefinido, que nao 6 uma série de juizos ou raciocinios e argu- mentos em geral, ninguem admittiré que tenha forga de destruir qualquer ordem de crengcas. Quaes foram pois as razdes que, perante a con- sciencia de Jouffroy, derribaram naquella noite os prejuizos de sua educagao ? Porque meios cessou elle de crer nas respostas decisivas que a religiado dava 4s questées, pelas quaes 0 homem mais se deve interessar ? O psychologo romantico incumbio-se de susci- lar, para o futuro, no espirito de algum leitor, menos accommodavel, a urgencia destas perguntas. _ Foi elle quem nos disse que as convicgdes des- truidas pela razdo, sé podem ser levantadas por ella mesma. Ora, a razio tem os seus processos regulares de atacar 0 erro, e mostrar as partes fracas de uma doutrina: — chamam-se argumentos. Nao se ima- ina que uma crenga, uma opiniao, ha longo tempo alimentada, possa ser abatida pelos esforgos da F —10— razao, sendo mediante operacdes intellectuaes, capazes de convencer-nos da fraqueza de nossas ideias anteriores. Aqui esta porém o que parece extraordinario e provocador de justas observagdes. O philosopho, a quem approuve pintar tao vivamente a derrota do seu primitivo estado moral, nao nos deu a co- nhecer um sd, sequer, dos motIvos racionaes desse grande acontecimento. Elle affirma que a sua razao derrocou gs suas -conviccdes de outr’ora.. Quero crer que assim fosse; porém, — ainda uma vez — por que meios ? Esse pensar irresistivel, « de leito em leito se afundando na consciencia», deve significar um trabalho de raciocinio em rebater e afugentar pre- conceitos. De outro modo, seria uma expresso metaphorica e sem alcance; a qual, em tao grave assumpto, importaria um contrasenso. Adiante 0 philosopho assegura que a inflexivel corrente do seu pensamento era mais forte que todas as suas crencas e recordagdées. A despeito de tudo, 0 exame proseguia mais obstinado e mais severo, ao passo que Se approximava do seu termo, esé esharrou, ~ quando chegou dattingil-o. « Eu conheci entéo, accrescenta o escriptor, que no fundo de mim mesmo nada mais havia que estivesse de pé. » Mas porque niio guiz Jouffroy depor nos seus escriptos uma parte, ao menos, desse exame pode- roso qne acabon por extinguira sua fé? Como se admitte uma pesquiza de tal natureza sem um reforgo de ideias novas,que o philosopho oppuzesse as suas primeiras convicgdes ? Eu bem sei que de um dia para outro se péde perder uma crenga, independente de motivos claros e ostensivos. Nao & tambem menos certo que, nesses casos, ninguem nos vird dizer que a sua {é foi apagada pelo sOpro de sua razao. Eis tudo. Conclaamos: Jouffroy cedeu ao impulso de uma imaginagdo morbida e sombria. —u— Observando-se a si mesmo, ideialisou 0 estado de duvida que 0 cogito, ergo sum impode, mais ou menos, aos seas ingenucs segnidores. Deste modo ebegon a terse na conta de um sceptico perfeito, aquem sé restava o prazer de Jevantar de novo com os dados da razio o que ella propriamente havia derrubado. A verdade 6 que o philosopho nunca se achou de facto nesse estado merencorio e tenebroso. Tudo aquillo, eram raios de phantasiae colorindo tristemente a consciencia do psychalogo. Eu nao ponho em questao a sna sinceridade. O mais illu- dido, ou para fallar francez, o maior dupe da optica psychologica, foi Jouffroy mesmo. Porém julgo censuravel a leveza dos que transcrevem a todo proposito essa pagina litteraria, nao reparando bastante na inverosimilhanga da cousa. fntretanto era uma questio mui simples e natural: — se Jouffeoy perdeu a fé, meditando e descobrindo a fragilidade das stag bases, onde existem expendidas as razdes que deram nova di- reccao ao seu pensamento ? Ninguem ha que saiba dellas ; — e & isto o que parece-me digno de nota. Quando uma vez o bispo Dupanloup recitou aos sens fieis essa pagina, que embora Vacherot qualifique-a de immortal, nao sel-o-ha de certo mais do que o foram as melancolia sde René; — quando uma vez, repito, abrio.a diante dos seus fieis, para dizér-Ihes em tom de triumpho:— véde como sao amargos os fructos da philosophia ! — o vhetorico francez cahio tambem no maior dos des- acertos, Nao vio que a philosophia nada tem de com- mum com os devaneios romanticos de espiritos af- feetados da doenca moral de umaepocha! O grande prelado exultou em vio; ndo so esses og verda- deiros fruetos da philosophia : — ella nio 6 respon- Savel pelos sonhos e deliquios passageiros de uma escola litteraria, — 12 — IV Com o exemplo referido, eu quiz provar que a consciencia nio é sempre interprete fiel do mundo interior. Apparece uma ou oulra sombra imagina- ria, que vem alterar os resultados da observagao. Quanto 4 experiencia,que se diz poder ser feita dos phenomenos internos, 6 ainda effeito de am engano, pouco notado. Nao contesto que se possa repetir, em forma de experimento, 0 exercicio de certos factos ordinarios, como o juizc, o racioeinio e outras operacoes da intelligencia. Nao contesto que seja possivel executar um movimento organico, para assegurar-se do imperio da vontade. Mas isto 6 0 que se chama experiencia psycho- logica? Tanto valéra dar o nome de experimental a uma astronomia, exercida unicamente nos pe- quenos mundos de papel, com horisontes de latao, ou a uma botanica estudada em flores de céra. Eu observo, pela primeira vez, 0 encontro for- tuito de dous corpos. Sao, por exemplo, um acido euma base, que reanidos produzem am sal. Este facto me sorprende. Busco. vél-o mais attenta- mente ; — e combinando corpos da mesma natu- yeza, em proporgdes iguaes, obtenho sempre o mesmno resultado. Eis ahi a prova real da expe- riencia. : Variemos agora a hypothese. Pela primeira vez tambem sinto-me preso de um forte enthusias- mo, ou de uma cholera estranha. E’ um phenomeno que passa, — ficando apenas na memoria alguns vestigios raros, como plumas que uma aguia arre batada deixasse cahir com a sua sombra na super- ficie de um lago. Quero porém observar o facto mais de perto, e sujeital-o 4 forca probante da ex- periencia repetida. Podel-o-hei conseguir? Tal 6 o problema; — e firmal-o nestes termos, unicos razoaveis, é declaral o insoluvel. — 13 — Nem se diga que a psychologia ndo tem a seu cargo entrar em detalhes sobre pontos isolados, limitando-se ao estudo dos phenomenos geraes. Ninguem concebe uma sciencia, dita experimental, que ponha de lado, sob o pretexto de raridade, ne- gocios da sua alcada. . Nao seise a psychologia 6 bastante modesta para restringir-se 4 uma simples descrip¢cao das potencias do espirito ; e dado que 0 seja, creio que mesmo assim, nao attinge o seu desideratum. As faculdades até hoje e desde ha muito co- nhecidas terao exgotado as riquezas potenciaes da alma humana? Seria admiravel haver quem o af- firmasse. Porém como penetrar nesses thesouros occultos, entranhados no fundo da vilalidade orga- nica, por meio da consciencia ? Ja ia-me esquecendo que a philosophia espiri- tualista ndo admitte estas ideias. Para ella, sendo a alma uma substancia unida, mas separavel do corpo, a consciencia é capaz de observal-a em toda a sua plenitude e essenciaes elementos. Nada escapa ao vivo olhar interior, quando applicado com atten- cao e persistencia. E’ a crenca geral da celebre escola, Mas eu quizera que me dissessem, quaes sao as grandes e fecundas descobertas, devidas & tantos e téo pertinazes sondadores da alma... Abre-se qualquer dos mais novos tratados de psychologia, ¢ nelle encontra-se tudo aquillo que a consciencia do psychologo poude attestar-Ihe sobre as cousas do espirito. Mas... meu Deus, como sao poucas estas cousas! Por mais que m’o assegurem, nao posso ver em semelhantes quadros psychicos a exacla imagem de mim mesmo. Acho ahi apenas a analyse incompleta de um numero de pecas, as duaes, sendo juxtapostas, ndo fazem uma alma hu- na. Saber que temos quatro, ou cinco faculdades, nomeadas taes e taes,em cujos districtos unicos Se accommoda tudo 0 que somos, tudo o que pos- suimos de mais nobre, como homens,... oh |... — 4 seria um achado prodigioso, se nio fosse um pro- digio de illusao. Volvamos as vistas para 0 nosso autor. Segundo affirma Levéque, a psychologia tem indnzido leis e reconhecido causas, que sdo outras tantas verdades adquiridas. Sem duvida, 0 pbilosopho vér-se-hia embaragado para dar: nos uma provade tao estranha assergdo. Convém que se examine, quaes sio as leis e as causas indicadas pela sciencia do es- pirito. Seria singularmente burlesco attiibuir esse ca- racter ds faculdades que se diz existirem no homem. Nao cabe 4 psychologia a menor mengao de honra, por haver descoberto cousa alguma neste sentido. Féra da certeza de uma intelligencia e de uma vontade, sé ha lucta, ignorancia e controversia, quanto ao mais. No seio mesmo do espiritualismo, chegou-se a tirar do ser pensante a sensibilidade, para dal-a ao corpo. Ainda contesta-se a forga motriz, na qualidade de potencia psychica, distincta da faculdade de querer. Suppondo a sciencia da alma uma especie de contraparte da anatomia descriptiva, nenhuma lei pode haver senao no sentido de fazer-se extensivos a todos os espiritos os resultados de observagides individuaes. Mas foi a psychologia quem primeiro demons- trou qne todos os homens teem as mesmas pro- priedades constitutivas do que se chama — alma humana? E’ uma crenga vulgar, tio profunda, quanto velha. Nenhum psycholugo pode orguiharese de tel-a suscitado, nem ao menos fortalecido. Aqui tocamos em um ponto, merecedor de es- pecial attencdo. A pretendida sciencia deve ter uma historia de sua origem, de sua marcha e seus progressos. As grandes descobertas scientificas lembram sempre os grandes homens por quem > ellas foram feitas. Seria pois mais que muito apre- —b- ciavel, que se nos dissessem .os mysterios definiti- vamente revelados na ordem psychologica, e os nomes dos seus reveladores. a Nao é lao facil, como talvez se presume, indi- car os titulos de gloria attribuidos aos Platdes e aos Descartes, em virtude de quaesquer achados importantes do mundo — interior, que tenham, como taes, permanecido no cofre do saber humano. Nao se créa nma sciencia, — é preciso obser- var, — dando-lhe somente um methodo @ um ponto de partida; maxime, quando ambos desafiam e provocam a impugnagao. Previno assim que me tragam pela frente o aborrecido — Je pense, done je suis, insipida bagatella, com que a Franga, ha tanto tempo, tem gasto inutilmente a sua seiba philoso- phica. | | O espiritualismo parece nao possuir-se da im- portancia actual da questao, desde que, para re- solvel-a, ainda langa mao dos mais pobres argu- mentos. Nada aproveita allegar que « ha factos in- visiveis, intangiveis, fora do alcance do escalpello edo microscopio, mas, entretanto, reaes e observa- veis ». Nem tambem attinge-se o alvo, increpando os adversarios, por crerem somente no que se vé e no que se téca. i uma accusacado demasiado frivola, que deve ficaresquecida. A invisibilidade da alma pode ser - Para muitos uma boda razio contra a psychologia, nao 6 porém uma razio peremptoria, Accresce que seria hoje baldado vir apresental-a, quando exislem homens sizndos, que nao recuam de pensar diversamente. O padre Gratry, por exemplo, chegou 4 véra alma deile mesmo; e declarou-o com toda a Ihaneza de que dispde um theologo e um philoso- pho, addicionade 4 um christao fervoroso. (2) Acredite quem quizer ; — o certo é que nin- wo tion (2) Connaissance de me... t. 1, 228 @ seg. Troisiéme édi- —-16— guem deve se arrogar o direito de zombar da visdo psychica do illustre padre; attendendo que elle tem de seu lado o exemplo de santos, ou ainda melhor, o de santas, a quem foi tamanha graga per- mittida. Sé uma cousa nos resta: — é pedir ao grande oratoriano, ou 4 qualquer outro persona- gem, a indicagéo dos meios empregados para rea- lisar tao alta experiencia. Bem sei que nao é difficil apontal-os. A peni- tencia, a pyece, o jejum..., em uma palavra, a san- tificagdo voluntaria,... 6 tudo o que 9 negocio exige. Infelizmente, nio somos todos capazes de por em practica este duro noviciato da sciencia, comoaen- tendem o padre Gratry e consortes. Iremos sempre beber na fonte impura de uma philosophia mun- dana os principios direztores da nossa vida intelle- ctual. Vv Dizia eu que nao é por serem invisiveis e im- palpaveis, que os factos espirituaes estéo longe de uma verdadeira ordem methodica. De certo, seria iniquo attribuir aos adversarios da psychologia a leveza de se apoiarem n’uma razao tao fragil. O que fere a vista, na questao corrente, 6a inefficacia do processo. Que importa a realidade dos pheno- menos internos, se ella nado admitte uma observacao regular ? Na vida espiritual, o que ha de commum entre os homens, nao se pode inquicir e determinar, sem muito erro e muito engano inevitavel. Querer achar na consciencia do individuo o reflexo de todas as modalidades da especie, 6 uma pretengdo chime- rica. : A psychologia me parece condemnada, por sua natureza, 4 nao ter um voto, sequer, no grande conselho das sciencias. Basta advertir que ella é impotente para fornecer os mais simples dados de —W7W- visio. Ora, uma sciencia de factos natu- ume Umprevidente, | ose a oo apoio na rae a Temas qe pao tem sido assas ponderada, de um obstaculo sério e, se me nao engano, peliperavel- A psychologia empyrica, a despeito de todas as suas descripgdes e pinturas do mando subjectivo, ainda nada poude levantar que Seja trax ductivel em forma scientifica. A chamada racional, que faz as delicias dos intellectualistas, néo 6 menos esteril em materia de applicagao e previdencia. Parece-me cabivel aqui mencionar algumas ponderagées de um homem assignalado, nio menos pee safelassampta deve. uma eerta apparencia de resente assum y pravidade, que the SO aS notavel pen- sador. Quero fallar de Vacherot. sad Propondo.se refutar a opiniao dos adversarios da psychologia, elle abunda em assergoes e€ argu- mentos que seriam definitivos, se Deveune, um anno depois, nao viesse ainda demonstrar, por meiv de hima fraca defeza da phantastica sciencia, a nullidade radical de todas as defezas anteriores. « A alma hamana, diz aquelle nobre e vigoroso espirito, aalma humana se observa de duas ma- neiras : — na parte individual e na parte geral de seu ser. » Nao descubro uma razio para semelhante as- serto. A escola espiritualista 6 quem mesmo re- conhece a consciencia por unico orgdéo de obser- vagio interna. « Duas maneiras de observar-se! !...9 Ou isto quer dizer dois modos de consciencia, duas Consciencias; ou entao nada significa, 6uma phrase ouca € sem sentido. __. Vacherot devéra reparar que o duplo ponto de vista de uma parte individual e outra geral em cada homem é apenas ama abstracgao, ja imposta a (3) Essais de Philosophie Critique. F 3F, —18— pelo interesse da questao, quese ventila. Sem du- vida, 0 individuo traz na frente o scello da sua es- pecie, e deste modo apresenta, por assim dizer, duas faces observaveis. Mas ahimesmo é que re- side o germen do erro. Essas faces que vistas de fora, sio duas, se re- duzem 4 uma sé, vistas de dentro. O geral e o par- ticular, 0 individual e 0 especifico, tudo se unitica, porque tudo se mostra indistincto, sob o unico olhar da gonsciencia. « Quando nossa alma quer estudar uma dessas paixdes que enchem a historia de sua vida, é pre- ciso que ella espere um estado de calma e de liber- dade, se nao de inercia ou de indifferenca, que the permitta encarar socegadamente os factos cum- pridos. » E’ possivel que me illuda; mas noto nestas palavras um desproposito eminente. Esperar que o facto desapparega, para poder aprecial-o!... 60 cumulo da extravagancia. Tapto valera dizer que o melhor meio de contemplar os raios do sol. é fechar os olhos, ou aguardar as sombras da noite. Nao é tudo. Vacherot reconheceo grande papel da memoria na observacao dos factos accidentaes, que atravessam a vida humana, e nado formam o seu fundo. Sera preciso ainda advertir que, nesses casos, 0 observador nao deve descangar na segu- ranga dos resultados ?.... Uma paixiio que de mo- mento nos sorprende, e de momento se esviece, nenhum traco deixa na memoria, digno de ser ti- rado 4 limpo. Alembranca que nos fica de qualquer senti- mento passageiro, 6 tao insufticiente para fornecer materia observavel, quanto sél-o-hia a imagem de uma exquisita avesinha, que um naturalista, pela vez primeira, visse passar voando na sombria so- liddo das selvas. Vacherot nao esta longe de ad- mittir estas idéas, em relagdo aos phenomenos transitorios. Quando porém os actos, as paixdes, os sentimentos que a alma quer investigar, perten- t — 19 — cem ao fundo e essencia mesma de sua natureza, a cousa mnda dé aspecto. : . « Nao é mais a memoria que se incumbe de resuscital-os, porque a consciencia os leva con- stantemente ao olhar do observador. » Este modo de entender me parece lambem des- tituido de razio. Quaes sio estes phenomenos que formam a essencia da alma, e sao a todo o instante observados pela consciencia, independente da me- moria? Se existe no homem alguma paixdo que mereca o titulo de fundamental, é sem duvida o amor. Entretanto nao vejo que o senso intimo possa encaral-o, quando {he apraz, e tomar a me- dida de sua profandeza. Vacherot affirma queo philosopho nao se limita ao mister de analysar, como 0 romancista e 0 poeta, esta on aquella paixio do momento, escoltada de todos os incidentes e circumstancias pessoaes ; “porém o seu estudo se dirige de preferencia ao principio da paixao mesmo. «0 principio da paixao!!»— note-se bem! E qual sera, por exemplo, na psychologia espiri- tualista o principio do amor? Nao consta que ella ja 0 tivesse dilucidado ; excepto, se por tal se deve entender aquillo que se designa pelo vago nome de sensibilidade. Isto seria quasi irrisorio. Eilo: porque é queohomem ama? Porque tem afaculdade de amar. Nao basta. O amor éum sentimento; — porque 6 que o homem sente? Porque tem a faculdade de sentir! Havera quem tome ao serio semelhante tautologia, como outros tantos achados de causas e principios ? !... Eu julgo imperdoavel esta facilidade, que tem a psychologia, de prometter muito, para dar tio pou- co. Nao sei mesmo como ainda se possa insistir na ideia de uma sciencia de tal guiza: O espiritualis- mo, abundante de affirmagoées gratuitas, nado duvida assegurar por meio dos seus grandes orgios que a psychologia esta viva, e prosegue em sua marcha. « Tanto basta, diz um dos mais robustos, para — 29 — responder 4 objeccaio dos adversarios. A’ despeito das impugnacoes, a observacdo da natureza hu- mana se faz de ‘muitos modos, e se produz sob varias formas. As analyses dos philosophos, os retratos dos moralistas, as pinturas dos poetas, n&o sao contestados, quer em sua verdade intima, quer em seu alcance geral, quando traga-os a mao dos mestres. Anciava por chegar 4 este ponto. E’ um opti- mo estribilho dos defensores da doutrina que com- bato; relevaentrarna apreciagavo do seu exacto valor. Antes porém de tndo, devo observar que nado passa de um brinquedo de palavras, allegar pom- posamente as analyses dos philosophos, nao se apresentandoa minima prova da importancia dellas, O illustre pensador nao se esqueceu do seu Platao, além de outros nomeados; creio pois que ser-lhe- hia muito facil apontar os melhores pedacgos da philosophia grega, onde houvesse um exemplar de * analyse psychologica, ainda hoje podendo-nos servir de guia. E’ sensivel que o philosopho esteja tonge de ouvir-me. Quizera ter a audacia de intimal-o, para abrir-nos uma pagina, — en digo uma sé6—, de Platdo ou Aristoteles, na qual a sciencia da alma podesse contar verdades adquiridas, e nao mais impugnadas. Descartes mesmo, interrogado se- riamente, nado se mostraria menos esteril. Cousa notavel! O grande ascendente do es- piritualismo hodierno, sempre admirado, posto que puerilmente, por seus dignos filhos e successores, nao tira tanto esse renome da sua psychologia, quanto, sobretudo, do caracter de sua metaphysica. Ahi vae o segredo do facto: — a metaphysica é uma sorte de poesia carrancuda, que sabe revestir as mais frivolas bagatelas de um ar de seriedade, ssombrio e magestoso. Os homens que nos fallam gravemente do Es- paco e do Tempo, do Ser, da Causa, Ao Infinito, do Perfeito..., bem que sejam os primeiros em nao — 2— entender o que elles dizem, todavia tomam aos nossos olhos tna apparencia, uns toques de gran- deza, que é diffici! dissipar, Nao assim, porém, quando em nome do senso intimo fazem 0 inventario das riquezas do espirito. Neste caso, surgem os protestos, as negagdes deci- sivas ; e, 0 que assas admira, 6 ainda a consciencia o juiz, para quem se appella. . No que pertence aos moralistas, quero crer que Vacherot nao reflectio bastante sobre a natu- reza do testemunho, por elles prestado.® Os eseri- ptores desse genero sdo justamente os que menos se interessam pelas abstraccdes psychologicas. Elles copiam as fraquezas e miserias hamanas, nac escondidos no fundo do proprio — eu —, porém de peito abert A todas as provagdes, no meio da so- ciedade cheia de encantos e disparates. D’est’arte succede que nos sentimos melhor traduzidos em uma lauda de Montaigne ou Larochefoucauld, do que em todo um capitulo de Adolphe Garnier. Qual a razao ? E’ gue o moralista generalisa os dados da com- mum experiencia, e 0 psychologo induz, como lei caracteristica de todos, aquillo gue mal poude ob- servar em si mesmo. O merito do primeiro é tanto maior, quanto menos elle extrae da observacao de seu ser as cOres com que pinta a pobre humani- dade. Tampouco o moralista se preoccupa da sciencia do espicito, que para elle 6 um perigo e um defeito degenerar em psychologo. Assim podemos de certo embeber-nos na leitura de um Paschal; mas é indubitavel que a natureza humana se nos mostra em sens Pensamentos muito acima, ou muito abaixo do que realmente julgamol-a. Esta anomalia pro- vém de que Paschal nao observava os homens na variedade dos seus caracteres e das suas acgoes, borem o homem, isto é, um typo, segundo o con- cebia a sua razdo em lucta com sua fé. Ainda mais : — os moralistas divergem entre — 2 — sina estimacao do movel natural de nossos actos. Vale dizer que cada um interpreta, 4 seu sabor, os movimentos da alma, por isso mesino que ella. nao supporta uma analyse regular. A observagaéo do espirito, que se praticsa deste modo, resente-se de um vicio Capital: — a pueoccupagao de uma ideia favorila. Se assim nao fosse, inexplicavel seria a distancia que separa, por exemplo, um Vauvenar- goes de um Montaigne. Reconhego, eja o disse ~ que os moralistas trasladam mais exactamente. do que os psycholo- gos, as feicdes do objecto proposto aos seus estu- dos. Todavia é mister nao esquecer que a ordem de factos, sobre a qual se exerce a sua sagacidade, ainda nao tornou possivel a formagdo de uma sciencia. Maximas, apophthegmas, isto 6, simples gene- ralisacdes, mais ou menos plausiveis... eis tudo o que elles nos dio. Semelhantes resultados sao in- sufficientes para figurarem, como nogoes liquidas e decisivas, no que respeita ao dominio espiritual. Os poetas e romancistas, -~ é verdade, — fazem todos os dias analyses variadas de nossas paixdes. Dir-se-hia que, aos seas olhos, 0 coragdo nado sub- trae 0 minimo segredo, e a consciencia deixa vér os seus mais profundos recessos. Nés, porém, que admiramos esses golpes de pincel da mao dos mestres, e applaudimos, como cépias conformes ao original, todas essas descripgies do que se.passa na alma de qualquer personagem de romance, nao seremos, nés leitores, brinecos de algum engano ? Recordo-me aqui de um facto que entra muito bem no circulo de nosso assumpto. Certo pintor acabava de tracar na abébada de uma capella o triangulo symbolico. Eis que chega casualmente um @aquelles numerosos julgadores, cujo voto alias nada aproveita, e questiona o artista sobre a signi- ficacéo do seu trabatho. — O qne @isso?... per- gunta o curioso. — &’ 0 emblema da Trindade ; responde-lhe o pintor. — Ohl... tal, qual! tl... diz st — 83 — base o pobre homem, que mal se apercebe Cor ene biligade do seu juizo, e da tolice da sua ar eae — quem dil-o-hia? nés outros, criti- cos e amadores, praticamos alguma cousa de ana- Jogo, no modo de julgar os detalhes: psychologicos, em que se deticium os poetas da paixao, De feito, qual de nés nao tera batido palmas aos prilhantes quadros romanticos de pugnasinteriores, que jamais se deram em nossa alma, e gue prova- velmente nunca dar-se-hao? Basta apenas que o escriptor saiba de prompto embevecer-nos na duce admiragaéo d’aquellas phrases mysticas, ondnlosas, deslumbrantes, quae borbulham de oma pagina de Hugo, Dumas, Balzac, Sand, ou qualquer outro. D’est’arte, nao € raro vér esses coripheas, per- ante o leitor ingenuo, destrancarem a consciencia tenebrosa de um guande Jadrao, ou a de um grande assassino. Os que, por falta de experiencia, nao temos a justa nocdo do estado moral de taes crimi- nosos, nem por isso deixamos de exclamar : — que perfeita descripgao |... que analyse acabada de uma alma de bandido, ou de um coracdo devasso |... E’ uma leviandade. Quem nos attesta a semelhan- ca? Quem nos garante a exactiddo da pintura? Se nao se admitte que, em face desses paineis do mundo interno, 0 que nos impressiona, 6 ainda o ideial, a forga creadora do artista, o nosso enthu= siasmo nao tem sensu. Gostamos de assistir ao espectaculo sombrio de uma alma que se nos de- Screve, da mesma forma que admiramos as cores horriveis do Inferno do Dante. Km um e outro caso, nao ha copia, nem modelo & cotejar. Se ha quem julgne que os circulos allegoricos da Divina Comedia delineam realmente a habitagdo dos demonios, pode tambem achar que, por exem- plo, aquellas emogdes e ideias tamultuosas de Val- sean, diante da figura esplendida, tranquilla, ador- Mecida, do bispo Myriel, sao desenhadas ao vivo Sobre o original hamano. Causa-nos pasmo o qu’il mourdt do Horacio tragico; e Corneille nos parece um psychologo profando do intimo dos romanos, da mesina forma que no Paraizo de Milton se admira a lingnagem de Satan, como sendo o producto natura! de uma es- pecie de psychologia do diabo! Nao comprehendo como se possa qualificar de justas apreciagdes da natureza hamana pveticos in- ventos, sempre accommodados aos fins do escri- ptor. Seng duvida, na classe das « pinturas traca- das por mao de mestres » nao tera Vacherot dei- xado de comprehender uma das obras mais famo- sas e bem aventuradas do romantismo francez. Re- firo-me ao poema de René. Seria para estimar. que nos dissessem, onde estado os grandes factos revelados, ou av menos es- clarecidos, nesse celebre escripto, que tivessem alargado os horisontes dasciencia respectiva Muito ao envez do que se podera suppor, 0 genero de ele- gia, creado pelo autor, tem cahido em total descre- dito ; ea razio descende so de que a obra nao re- flecté seriamente face alguma do espirito hu- mano. FE” um producto de capricho, e de um capricho que chamarei psychologico, em virtude das paixdes que ahi se manifestam; —as quaes naéo s3o de todo vasadas nos moldes naturaes da sensibilidade commum, Nunea pade admiltir que René tivesse trazido para 0 coragdo uma ordem de emogdes, até entao desconhecidas, e assim julgalo uma excavagao mais funda, em materia de pesquiza interior, Se os sentimentos n elle expressos s4o de um caracter estranho e nunca visto, a geracio contemporanea tinha razao de illndir-se, pensando que a sua nas- cente era a grande alma de Chateaubriand ! Porém hoje nds estamos mais que muito edifi cados sobre este ponto. Seria admiravel que vies- semos ainda fazer mencdo de René, ou outro qual- quer fracto do mesmo pomar, como prova de obser- —~ 3B vacao psychologica, até nos reinos encantados do romance. Ainda mais. Qaem tiver actualmente o mini- mo vislumbre de critica litteraria, deve saber que, desde Humero até o maior poeta dos nossos dias, o que distingue as creacgdes do verdadeiro artista, éo caracteristico da impersonalidade. Certamente : — o que existe, por exemplo, de mais impessoal do que o theatro de Shakspeare ? Nao se encontra em toda essa vasta csllecgdo de bellezas um sé trago, que denuncie as opinides, as ideias, os sentimentos proprios do autor. Entre- tanto se diz qne ninguem ainda se mostrou tao co- nhecedor do coragado humano. Sado duas proposi- goes difficeis de harmonisar, para quem nao langa mao de novos principios. Por quanto, se os dramas de Shakspeare sio variados e perfeitos exemplares do homem, pelo seu lado mais serio, no seu fundo essencial, d’onde extrahio elle as palxdes que deu a tantos entes de feigdo e indole diversa?... Da fonte de si mesmo?! Seria exacto : — se tal fonte significa a imaginacao. Mas eu ocreio que os psychologos vao mais longe : — suppdem que a justeza no conhecimento dos affectos psychicus, 6 devida, em grande parte, & observagdo que 0 poeta exerce sobre seu intimo. Semelhante parecer é da ordem dos que basta enunciar, para refutar. Que se figure, se é possivel, oO dramaturgo psychologando, inquirindo-se a si mesmo, para bem avaliar o verdadeiro jogo das grandes paixdes ; — e, comtudo, sem que fique em Suas obras o mais ligeivo indicio do seu caracter, da sua maneira de sentir e pensar!!... Salta aos olhos o que esta ideia encerra de abstruso e dispa- ratado Nao é sé isto. Em Shakspeare nao se nos Mostra menos admiravel a creagao de Julietta, do qne ade Romeo; — uem cremos vér melhor o in- terior de Othello, do que o de Desdemona. Ao total, © Celebre poeta sae tambem victorioso da lucta sus- — %— tentada com este grande enigma quese chama 0 co- racio feminino. Tao de perto, e, por assim dizer, tao de dentro, parece comprehendel-o em todos os seus mysterios e infinitas profundezas. Sera isto porém um resultado da observagio e experiencia pessoal? Julgo que ninguem ousaria affirmai-o.. Nem é mesmo possivel recorrer a uma especie de intuicao psychologica, para explicar essa grande maravilha. Por maior que seja o es- forgo genial, nio pode transformar ou inverter a natureza das cousas. Ainda quando a sciencia da alma offerecesse actualmente mais seguras garan- tias de exactidao e validade, era forgoso reconhecer esta lacnna : — a.vida interna da mulher esta fora do alcance de nossas indagagées. E ella mesma € pouco apta para dar-nos, sem qualquer exageracao, ama historia verdadeira de sua subjectividade. Assim como o satellite da terra, combinande o seu com o andar do planeta, apre- senta-nos sempre o mesmo lado: — a mulher, sub- ordinada ao homem, deixa sempre ver umaea mesma face, aquella que é mais vulgar € menos lu- minosa. Se ha phenomenos e movimentos que parecam escapar aos nossos calculos e preceitos de aca- nhada philosophia, sao sem dnvida as curvataras caprichosas, os zig-zags mercurianos do espirito feminino. Devem ter a sua lei ; — eu creio, — mas essa lei nao foi ainda descoberta, nem sel-o-ha ja- mais. A mulher nao é 0 que disse uma vez Prond- hon: — adesesperagao do justo; porém ella ha de ser sempre a desesperagao do philosopho. Os que pos comprazemos em apoiar, nos ro- mances e nos dramas, a solugado do magno proble- ma, enganamo-nos de todo. Nao sabemos discernir o verosimil do verdadeiro, Tal 6 0 erro d’aquelles, gue julgam deponentes, a bem da psychologia, as excursdes dos poetas nos obscuros dominivs da possibilidade indefinida, em busca dos segredos mais reconditos do espirito. Universidade d>Brastila BiBlLiOTECA 817042 VI Um sé ponto quizera eu que me elucidassem, mas este é capital. Como admittir uma sciencia da alma, que nanca pde-nos em estado de saber, ja nao digo as causas, porém as simples relagdes dos factos ? Eu me explico. 0 astronomo sabe, e pode represgatar-se na imaginagdo a marcha regular dos phenomenos si- deraes. O medico sabe que, em presenca deste ou @aquelle symptoma, dase na economia um ou outro desarranjo; o qual tambem Ihe é possivel figurar pa propria mente. Nao assim o psychologo: elle gyraem uma esphera tenebrosa, em ama regiao de espectros e visdes inconsistentes. Existe mesmo uma ordem de factos subjectivos, quasi quotidia- nos, dos quaes a psychologia nao tira o menor par- tido. Ninguem ha que no livro da sua vida, nado tenha relido um capitulo mais largo, e dobrado uma pa- gina mais bella, d’onde ds vezes ainda trescala vago aroma de pallida saudade. E’ o capitulo do amor. Com effeito, quem de nés ja nao teve a graga de uma hora de delicias, em que primeiro o sereno volver de affectuoso olhar assegurou-nos a posse de uma ventura eterna?! Nao obstante, o que sa- bemos nés outros desses momentos supremos, que Se possa aferir pela medida do methodo psycholo- gico? © qne nos resta, na memoria e na conscien- cia, d aquelle estado de cego arroubo e quasi es- vaecimento, no qual nossa alma esmorece, como tocada por uma aza de anjo, ante a palpebra tre- mente de uns olhos que nos fitam ! ? de yes Poet: 5 em geral, arrogando-se 0 privilegio crosey Fionvisivel, sujeitam 4 uma analyse de mi- paixd E See aultiplos affectos, as mais profundas 0es de seus herdes e heroinas. Mas essa ana- — 8% — lyse, quesegundo 0 parecer de muitos, encerra the- souros de observacao interior, basta um peuco de altencao, para descobrir que nao passa de uma aberracao phantastica. A litteratura franceza que seguio-se & revolugio de Julho, 6um immenso armazem, onde se acham as melhores especiarias deste gosto. O autor de Pore Goriot, por exemplo, era mais que psychologo; era um grande physiologista, que andava sempre em dia com a dynamica mimosa do organismo fe- minino, cujos movimentos mais imperceptiveis elle sabia detalbar na figura dos seus personagens. Entre outras provas, nao revela inteiro conhe- cimento de uma alma de mae aquella creacgdo das Memoires de deux jeunes mariées, aquella. mulher singular, admiravel Renée, que tuerait volontiers son mari, s’il s’avisait de troubler le sommeil de son fils?! Ea descripcao minuciosa que da sua savante virginité se compraz em fazer essa ideial creatura, nao pode 4 descoberto a profandeza do autor, em uma especie de psychologia das mécas? !... Ante os olhos de Balzac, no qual tambem as vezes se divisa um predecessor de Buechner { 4), até os péros do rosto e os da fronte abrem passa- gem aos sentimentos interiores. Os corpos dos seus herdes sao lucidos, transparentes, pneumaticos, como dizia Origenes que devia ser a carne resusci- tada. O romancista lobriga, através de uma pelle alva e brilhante, 0 jogo das emocdes mais subtis. Eu creio que, 4 nao ser 0 derramamento mate- rialistico de Balzac, seus romances valeriam para (4) 0 autor ae Kraft und Sioff chama 0 homem einen wand elnden Ofen, eine sich selbst heizende Locomotive... ; qualilica 0 coragio de ein Pumpwerk... Em La Peau de Chagrin, lé-se cousa quasi identiea : — « La yolonté est une force maierielle semhla- ble a la vapeur, une masse fluide, dont ’homme dirige 4 son gré Jes projections. » Igualmente em Birotteau: « La peur est un phénoméne, comme “tous les accidens électriques. » — 29 — mo irrefragavcis documentos de magis- Vachon stigacdo peyehica. O metaphysico francez tem suas horas de lastimavel ingenuidade. Que bons lhe nao parecerao os detathes analy- ticos de G. Sand, cajas obras, na sua opiniao, sao theses philosophicas de alto prego I! 2 (5). Leone Leoni, Jacques, padre Sophronius, que foi judeu, jutherano, catholico, spinosista ; a princeza Quinti- lia Cavalcanti, que occupa-se de todas as artes, falla todas as linguas, sabe todas as philosopfwias, e co- nhecea politica melhor que os homens de Estado... — que typos bem ideiados e assés reveladores de factos naturaes, existentes em nossa alma!... — inatil fallar de Lelia, aquellafeitura anomala, da raca de Jnlius, na Lucinda de Schlegel, e irman mais velha da Wally de Gutzkow. Blasfemias e extravagancias formam o seu contetido, Allegar estas e outras producgées de poetas e romancistas, na qualidade de fragmentos psychologicos, 6 0 cu- mulo do desvario em tal materia. Nenhum espirito serio deve hoje recorrer a esse genero de prova, sob pena de passar por quasi um nescio, se nao tem um nome antorisado, ou por desponderado opinia- tico, se elle se chama Vacherot. Eu ja o disse : — o defeito capital da psycho- lJogia, como sciencia de observacao, é a falta ab- soluta de dados para se formarem exactas e pro- fundas previsdes O mundo physico, em seu vasto e intrincado arranjo, pode sempre causar admira- cao, ainda mesmo aos egspiritos mais cultos; — porém nao causa espanto. A ideia da ordem, que éum producto ulterior da intelligencia, faz succeder ao primitivo abalo, Suscitado pela natureza, o sentimento da harmonia eda razao das cousas. Entretanto essa ideia nao tem tido a mesma forga no mundo moral. O espe- Ctaculo dos homens, dando 4 ver, por palavras ou ee (5) La Religion, pag. 258, —30-— acgdes, algum novo recanto do seu coracdo, todos os dias nos assombra. Irrecusavel signal de inteira ignorancia, quanto 4 ordem que reina, e as leis que se executam nos dominios do espirito. Neste meio, o que tem feito a illusoria scien- cia? Apenas consagrar um sem numero de erros, e autorisar em seu nome os mais agros rigores, as violagdes mais crueis. Diariamente vemos a so- ciedade, baseada em um supposto conhecimento do homen? arrogar-se o poder de surprendel-o no retico de sua consciencia, afim de assistir 4 todas as evolugdes genesiacas do crime. E’ dest’arte que 0 direito penal decompoe o acto criminoso em ele- mentos successivos, partindo da intencéo. Mane- jando os chamados principios psychologicos, julga ter penetrado na essencia da criminalidade. In- numeras séo talvez as victimas cahidas, sob tao fatua pretencao dos legisladores e philosophos. Se ba uma razdo para explicar porque os cal- culos humanos tanto faiham, no que interessa as relagdes sociaes, é que as almas nunca chegam a& conhecer-se mutuamente, e a psychologia nao des- cobre uma sé das leis que determinam a formacado do individuo. (6) Nao cancgo de repetil-o: — a sciencia do —eu— implica contradicgdo. Abstrahido da pessoa, e do caracter que a constilue, 0 — ew — é cousa nen- huma; nada significa. Mas onde estio as indne- codes scientificas, feitas de modo que possam ga- (6) Estas ultimas ideias precisam de um esclarecimento. Achando um pouco arrojada a pretengio com que a psychologia julga poder acompanhar a génese do delicto nos sommbrios pene- uraes da consciencia, — donde nao raro resullam iniquas con- demnacées, — nem por isso estou de accordo com a theoria bur- lesca dos pschyatras e pathologos do crime, para quem os crimi- nosos em geral séo outros tantos doentes, cnja punigao é uma barbaridade. Semelhante doutrina, que tende o morrer pelo ri- diculo das suas exageracdes, nunca me teve, nem ter-me-ha jamais de seu lado, — sd — rantir nossos juizos, sobre a marcha normal da personalidade alheia? : a at . Eu disse -~ atheia; @ podéra dizer — propria ; Todos sabemos, por experiencia, que as mais das vezes, 0 que nos desarranja e nos perturba, no curso ordinario da vida, 6 a ignorancia de nés mesmos, da forga de nossas paixdes, ou da fraqueza de nossa vontade. Nao sei qual seja 0 psychologo capaz de medir com 0 olhar da veflexdo toda a ex- tensao de seu ser. Nao sei quem foi que desceu ao fando do abysmo, e voltou trazendo na bocca a palavra do enigma, Entretanto, jd 1a vao centenas sobre centenas de annos, depois que a sciencia da alma trata de constituir-se e organisar-se | Nao obstante, 6 ainda hoje insufficiente para fornecer ao homem uma nogdo menos amhigua de si mesmo. Taes sao por certo as minhas convicgdes, que me parecem baseadas nos factos. Com tudo isso, é aqui o momento de advertir que nao rejeito ab- solutamente os trabalhos de observacao subjectiva. Julgo applicavel 4 psychologia o que disse da economia politica um jurista francez: — ella nao é uma sciencia, mas apenas um estudo ; e eu diria por minha vez: — um entretenimento. N&o contesto se possa adquirir, por este meio, nogdes mais claras do papel e do jogo mutno das nossas faculdades. Esse exame de consciencia, a que Se entregam os psychologos professos, sem ser de utilidade geral, encerra talvez algumas vanta- gens pessoaes. Pelo menos, o habito da reflexao um obstaculo serio dos impetos apaixonados. Os mysticos servem de exemplo. Nao se leva ar flectir continuamente sobre a alma e sua _natu- reas sem acabar por cahir-se em uma especie de sensivers, moolencia, que neutralisa as suggestdes troy a duvide que um pensador, ao geito de Jouf- arg a tempo e disposicao bastante para engol- ‘em qualquer doce corrente do mundo exterior. are — 32 — Sem ironia, apresso-me em declaral-o :— 0 es- pectaculo de um homem-que empallidece de viver sempre atufado no antro escuro de seu proprio pensamento, respirando apenas por minutos o grande ar da vida commum, tem de certo alguma cousa de tocante. Nao @ uma vocagio, que me pa- rega invejavel : — 6 um nobre esforgo, que se péde admirar, juntando 4 admiragéo uma sincera pena de nao vél-o empregado em materia de mdr pro- veito. (7 )» VIL Aqui terminaria se me nao sentisse obrigado a revistar uma outra questao, discutida pelo autor mencionado no comego deste artigo, Questao de vida e morte para am certo espiritualismo aca- nhado, o qual diz nao poder subsistir, se lhe faltar o apoio de um principio immaterial, distincto e se- paravel do corpo. «E’ em ‘vaio que se reconhece, escreve Levé- que, factos invisiveis, e a possibilidade de obser- val-os e classifical-os ; — desde que taes factos sdo enviados a um sujeito material e composto, sé por isso tem-se cessado de ser espiritualista. Osim ou ondo 6 aqui da maior importancia, porque, se 0 principio pensante é material, composto, divisivel, ou, o que vem aser o mesmo, se nao existe alma, (7) Como eu ja o disse algures, Jouffroy foi uma especie de Werther, um suicida psychologico. O caracter romantico da sua philosophia se revela até no modo, por que elle comprehendia 2 poesia lyrica, isto 6, como a expressio das queixas da alma hu- mana diante do enigma do seu destino ; poesia que vibra com tao melancholica monotonia nas poesias de Byron, nos versos de Lamartine ( Mélanges, pag. 322). E? a theoria philosophica do romantisme, como o fizerain, além dos dous meucionados, Leo- pardi, Lenau, Pusckim, Lerimoutow e outros; é a Weltschmerz proclamada a unica fonte de verdadeira poesia lyrica. Um poeta da escola nao se exprimiria melhor. —3— a liberdade, 0 dever e Deus tornam-se phrases sem sentide 1... Que importa adignidade do homem eao caracter do philosopho, ser ou nao ser espiri- tualista, pela medida de Levéque e seus iguaes ? Estes francezes, discipulos e adherentes de Cousin, tem ideias que causam lastima. E exacto que, sem o arrimo de ama alma substancial, a liberdade como elles a define, 0 dever como elles o enten- dem, e Deus como elles o explicam, tude isto nao tem senso. . oo, Porém segue-se d’ahi que o espiritualismo, assim comprehendido, seja a unica philosophia, digna deste nome, e capaz de fortalecer o pensa- mento humano? Muito ao contrario, 0 que ha hoje de mais notavel, nestas regides, é o descredito dessa philosophia popular, nutrida de prejuizos e chimeras. Os seus adeptos nado se esquecem de .invocar, a todo instante, como prova de superiori- dade, a forga do numero, 0 argumento da maioria. Infelizmente para elles, — a verdade nao se mede por tio baixa bitéla, Nao é 0 testemunho dos velhos e das creangas, dos fracos e dos ignorantes, que péde ser adduzido, para destruir razdes de uma_ordem mais elevada. Quem déra que os espiritualistas,em muitos dos quaes se péde admirar um raro vigor de intelligen- Cla, comprehendessem melhor as difficuldades de Sua posigao!... Fora bom que elles penetrassem Mais no amago do assumpto, e nao trouxessem, ante argumentos de pezo, consideragdes triviaes. _ , Desvarte, quando se lhes diz que o espirito individual, separado do corpo, 6 uma das formas do ideial, sem realidade objectiva; ¢ tanto basta ve ra sentido aos mais nobres | impulsos do ° oketeinig. quando se Ihes diz que € inconcebivel ctivo Soe de uma funcgio, sem o orgao respe- nada‘é ened tal, o pensamento féra do cerebro, istir, elt nada vale, em uma palavra, nio pode ex- » elles erguem a mais féra gritaria contra a lou- 5 — 3% — cura, a immoralidade, e até a malvadeza dos seus adversarios ! O espiritualismo, — dizem,— nao se curva, nem se da por vencido diante destas audacias. 0 homem € um ser pensante; e o pensamento sé pode convir 4 um ente espiritual. O cerebro 6 uma condicéo, nao é uma causa. A alma se vé ese revé na consciencia; — ella tem a conviccao de nao ser um altributo da materia... E’ is®, pouco mais ou menos, o que todos os dias se repete, afim de sustentar-se velhas theorias esthetico-theologicas da escola semi-platonica e semi-catholica dos philosophos lettrados. Quadram aqui perfeitamente as seguintes palavras do Dr, Co- lenzo: — uma causa, assim defendida, nado 6 uma causa perdida?!! Por minha parte, nao vacillo em acceitar os resultados da lucta; nem tenho mais duvida sobre elles. Basta-me, entre outros, oexemplo de Le- véque, 0 qual ainda se arriscou 4 manejar as armas do costume, sem attender que ellas ja ndo aguentam uma pugna mais animada. E com que adversario!? O nosso autor parece vangforiar-se dg abrir largas fendas na logica vigorosa de Edmond Sche- rer, o critico elegante, einer der hoffnungsvollsten Geister, como uma vez disse delle o Dr. Dorner. E com esse escriptor de primeira grandeza, que 0 illustre metaphySico ousa avistar-se no intuito de tomar-lhe conlas de sua philosophia, no que diz respeito 4 alma individual }... Levéque reconhece que Scherer nao é mate- rialista, nem positivista; mas que tambem nao é espiritualista, pelo molde de Cousin e Jouffroy. Importa nio desprezar tamanhba concessao. Ha pois mma maneira de crér no espirito, isto 6, no ideial, nos altos destinos do homem, sem volver jamais os olhos para os idolos decrepitos das g° racdes passadas. FE, posto que Levéque mesmo tenha dito que sd se é espiritualista, sob a condigao de nao attribuir a um sujeito material os factos dé — 3 — sonci dou por assentado que se pode conscien ee emplo de ischerer, independente. dos ‘logmas € prejuizos da escola. / oe preciso encarar de frente a verdade, ainda uando ella venha transtornar 0s nossos planos e corrigit cruelmente as nossas esperangas. A phi- lusophia, — é tempo de proclamal-o — nao posstie menos que a religido uma mythologia adequada. Elevar ideias geraes ao summo grao de realidades concretas ; incarnar, dar um corpo exteyor a uma série de phantasmas racionaes, que cada qual figura & sen modo, é este ainda o mister da metaphysica hodierna. . Aquelles que philosopham, os interpretes pro- fessos da consciencia e da razio, nio séo em regra os mals estranhos ao dominio da credulidade valgar. Todos fallamos do nosso espirito, qual de uma cousa que subsiste por si. E’ uma crencga de longa data. Nos grandes orgaos da poesia moderna, sobretudo, a alma é descripta, como se descreve uma paisagem. Dir-se-hia que ella poe-se toda nila, ante os olhos do poeta, semelhante 4 cortezan grega, em casa do estatuario, para ser apreciada, em sua alvura esplendida, em suas inflexdes divi- nas. Os versos de Lamartine sio geralmente affecta- dos deste achaque psychomaniaco. E difficil de- cidir, quem mais oceapava o pensamento do poeta, quem se revestia de mais encanto, e provocava maior numero de apostrophes :— se a sua Elvira... gnome ahina ! Uma nao é menos etherea, menos mail a one aoutra, Para os que, nio sendo sempre onviny Osos em materia de provas, estao aves nom epostos a ver, até no gorgeio matinal das tributos 4 Reeytacdo cantada da natnreza e at- hos carmes qyindade, © descer pouco descobrir manancial 4 Lamartine e seus appendices um certeza do ron t a alma se fortalega na ideia e na Oespi seu destino superior. . Piritualismo tem sido omisso em mostrar — 36 — que a imaginagio nao penetra na sala de trabalho do entendimento. Facil entao seria sustentar que certas nogdes, nao encerrando’ a minima patticula de sonho e phantasia, devem merecer os nossos respeitos. A alma substancial, autonoma, inde. pendente do corpo, que se nos da por uma reali- dade, entrevista pelo senso intimo, através de todas as variacdes phenomenicas da vida, nado sera tam- bem um mytho, uma creagao analoga aos conceitos da poesia? Debaitle & que se oppde @ esta conjectura os suspiros da humanidade, sens anhélos infinitos, e nao sei que pressentimento de am mundo desco- nhecido. A questio reside toda abi mesmo. Nao se adianta um passo para a sua solugdo com oapoio dos nossos scismares e visdes de immortalidade. Em rigor, nao se acha bem dilucidado, se 0 espirito eré de facto ser immortal, ou somente deseja sel-o. Percebe-se de prompto que sé posso referir-me ao individuo. Quanto ao que se chama espirito humano em geral, esse é sempre vivo e sujeito 4 lei do eterno desenvolvimento. Mas nao é uma pessoa, nem mesmo uma consa certa e determinada. Elle tende 4 formar uma somma, quero dizer a somma de todos os termos possiveis de uma progressao ascendente, cujo primeiro termo deve comecay nos obscuros dominios da animalidade ; — eo ultimo, — quem sabe ?... perde-se de vista nos azulados abysmos da perfeic¢ao sem limites. Ainda mais: ~ 0 espirito humano pode ser considerado, como unidade ideial e totalidade real. No primeiro caso, sé existe subjectivamente ; — no segando, elle é, 40 mesmo tempo, um faclor e um producto. Em cada momento da historia, elle vale o resultado de todos os trabalhos e conquistas antericres. Em cada momento da historia, elle esta, por conseguinte, sempre armado de novas forgas, para invadir o futuro. . O espiritualismo phantastico e meio poetico ainda nado esqueceu as suas altas pretengdes. Causa — 37 — i r figura que ahi fazem philosophos espa tinpento de refutar escriptores come Free de proseguir devo aqui assignalar um facto, digno de ponderagao. A critica religiosa de ie Scherer é um _ nobre orgao, apresenta actual- hente este caracter subido: — ella vae sendo, ma- ximé entre os francezes, nao sémente uma escola de sciencia; como tambem a melher escola de es- tylo e de linguagem. , . @ S6 por si, ja isto seria muito, quando mesmo fosse tudo. Mas é certo que ha na brilhante pleiade dos criticos um fundo admiravel philosophia. Bem me parece, portanto, que Huet nao teve razdo, no juizo que emittio sobre a escola de Strasburgo, di- zendo nao encontrar em seus adeptos o vigor phi- losophico desejavel. (8) VII O que ha para mim de mais censuravel no mo- derno espiritualismo francez, é a falta de um certo senso, que bem se pode chamar 0 senso dos tempos. Frente 4 frente com luctadores novos, e que sabem combater por um modo novo, elles nao hesitam em recorrer aos argumentos rotineiros, cujo em- prego, nao basta dizer que é inefficaz, releva ac- crescentar que 6 perigoso e prejudicial. Porquanto esses velustos argumentos, ante olhos mais exerci- lados, deixam vér as suas fracas juncturas, e por ellas se embebe facilmente o ferro do dialectica inimiga. Admira a sem ceremonia, com que se julga ar difficuldades mui sérias, invecando o teste- ee cort 5 ext 8) La Révolution réligi n igieuse... pag. 30. Vé-se que me refiro * escola franceza, alli florescente, antes da guerra de 1870. — 8 — munho anachronico da philosophia cartesiana. assim que Levéque, em opposigado ads ideias de Scherer, nao duvida repetir o — Je pense, done je suis — e cré langar ao seu adversario uma barreira insuperavel! Vamos vér entretanto com que razdes 0 nosso espiritualista se suppoe victorioso. « O homem, diz o criticu atilado, néo é um corpo, nem um es pirito, nem a reunidio de um corpo e de um espirito. Nao se o pdde definir, porque sé se define pelo ge- nero e pela differenga, nem explical-o, porque toda explicagao consiste em reportar o facto particular a um facto mais geral, eo homem, sendo o termo mais elevado da mais alta série, ndo pdéde ser re- conduzido a um grupo superior. » (9) A este modo de expér e de explicar, Levéque chama « um processo logico de Aefinigdéo » Como se tal definigao nao se firmasse na observagdo dos factos!? Como se essa detinicao, sem alias dar-se por isso, nao resumisse 0 que o homem pdde offe- recer de real aos olhos da sciencia !? Levéque se engana. Suas respostas sao futeis ; — ellas nado descem ao fundo da questao. E’ falso que «qualquer que seja a série propria de um ente, se elle péde ser conhecido, possa por isso mesmo ser definido. » Esta proposigao, ainda que encer- rasse uma verdade em outros casos, tornava-se in- exacta, desde que se quizesse applical-a ao homem. Ff’ preciso que 0 espiritualismo tenha tambem uma logica sua, capaz de justificar tamanhos dis- parates. Mesmo admittindo, como verdade philo- sophica geral, que basta uma cousa ser conhecida, para poder ser definida, posta uma vez em duvida a applicacao desse principio 4 este ou aquelle ente, a pretendida verdade muda logo de caracter, e nao legitima argumento algum, porque ella é que pri- meiro carece de legitimagao. (9) Mélanges d'Hisloire réligieuse.... pag. 184. — 39 — se questiona, é justamente, se o on Bde set ‘deuinido, nao obstante poderem tot i beldos edescriptos alguns de seus mais ser Os redicados. A quem, como Scherer, da notaves diva solugdo, responder, como Levéque, vito aecat e cahir em grave paralogismo. | en brosigamos na analyse de outras razdes, exhi- pidas pelo nosso autor. Por exemplo: — « Nin- guem ainda provou a falsidade da equacao psycho- jogica, estabelecida por Descartes i yeu penso, Jogo eu sou—; a qual significa : — eu penso equi- vale a — ew sow pensante. » 0 philosopho 6 ingenuo em dar tamanha importancia 4 cousas tao frivolas. Ninguem ainda provou, ~ € verdade —, que fosse falsa a equacao referida. Porém o que ha de mais notavel, é que no se faz precisa semelhante prova. Entre esta proposigado — ew sow pensante, e esta outra — eu sou espirito, isto é, eu tenho uma alma substancial, distincta do corpo, ha um espago ainda nao atravessado pelas proprias aguias do es- piritualismo. Sé mostrando a identidade das duas proposigées, é que se poderia dar 0 cogito, ergo sum como o pértico indestructivel do templo da philo- sophia. Entretanto, contra a pretengao da senha carte- siana, o espirito real, separavel da materia,é sempre questao aberta. Nada importa, para resolvel-a, que o homem possa dizer-se um sujeito, uma cousa pensante. Este sujeito, esta cousa pensante, nado © um ser a parte, nao ; é o mesmo homem conside- rado na totalidade de suas funccdes intellectuaes, como elle é uma cousa sensiente, sob 0 ponto de Vista de suas funcodes sensitivas. Mas se é isto ao certo, o que nao admittem os homens da sciencia OPposta, busquemos entrar no fundo de seus racio- Ginios. Ea disse raciocinios ; era ~ palavreados — que devia dizer. Eis aqui: tem wom que tem consciencia de si mesma, sujeit 'S Consciencia de um sujeito. Demais, este ‘© possue a faculdade de se conhecer. Por ~~ conseguinte a elle compete ensinar-nos 0 que elle 6, e se suas faculdades sdo,ou nav, propriedades da materia. Consultada sobre este ponto, a alma res’ ponde que ella se vé tanto melhor, quanto menos ella serve-se dos seus cinco sentidos, que nao des- cobre em si cousa alguma de semelhante ds pro- priedades da materia, que ella se sente a mesma hontem, que ante hontem e em todos os tempos de sua vida; que finalmente ella 6 de tal modo uma, que de continuo estabelece a sua propria unidade substancidi, no meio da variedade infinita dos seus sentimentos ¢ dos seus actos. » E’ um pedago interessante, 0 que acabo de citar. Subterfugios involtns em banalidades; — nada mais. A existencia de uma alma, tendo con- sciencia de si mesma, como de um sujeito particu- lar, ndo é esta a questdo, que se debate? Com que direito pois o pbilosopho suppde assim tao liquide 0 que constitue o ponto principal da duvida? Me- lhor seria que se partisse de um principio incon- testada, e que o combate se desse em um terreno commum. Todos nés estamos de accordo em que o ho- mem tem consciencia de ser um sujeito pensante. Resta, porém, a saber, se essa consciencia é um grado superior da evolugao da materia, ou é propria e sémente propria de um ente unido ao corpo, e ao qual se dai o nome de alma. Quem vem desatar o né? No entender de Levéque e seus collegas, 6a mesma consciencia. « Incumbe sé ao sajeito pen- sante ensinar-nos o que elie é, e se suas faculdades sio, ou nao, propriedades da materia. » Contesso que mal posso resistir 4 indignacdo causada pela Jeitura de taes futilidades. E a isto 6 que se chama philosophia ?!... —M— IX Q nosso autor increpa O seu adversario, por ver dito que a consclencia, sendo um sentimento, haven negocio de vista ou de tacto, mas de perce- nae interia ; e assim, nada admira que ella tenha Pensciencia de si mesma, como de alguma cousa que differe do corpo. . « « Que significam, diz Levéque, estas palavras : — uma consciencia que tem consciencia de si? Jamais comprebenderemos que a consciencia exista noar,amaneira de entidade escolastica. Nosso adversario sabe muito bem o que diz, para ter que- rido dar 4 entender que ama pura abstraccdo seja dotada de consciencia, de sentimento, de vida, em uma palavra. » Nao vio o digno espiritualista que esta censura the cabia em maior escala?! Se ha uma philoso- phia, onde a consciencia tenha todos os caracteres de uma entidade, onde ella seja de continuo no- meada e invocada, 4 titulo de cousa real, auténoma, independente, é de certo o espiritualismo. Nao posso pois descobrir 0 motivo d’aquelle espanto. Sim; aconsciencia sé tem, sé pdéde ter consciencia de si mesma. Si ella 6 a faculdade que © homem possue, de conhecer-se internamente na parte superior das funcgdes mentaes, porque razao exerceria outro mistér? Porque ella nada affirma sobre as fancgdes inferiores da vida animal, inferir @ahi que existem no homem duas substancias, é 0 cumulo do illogismo e do desproposito. cons itite bem disse Scherer que, nado obstante a petmaneos darentit differente do corpo, todavia nao pode ubitavel, se a percepgao interna nao 6, Onoeea ser um attributo corporeo, Que responde estas vx autor ? Pouco mais do que nada. « ... Ou nao tem essdes de percepgao interna e consciencia Sentido, ou exprimem uma faculdade de OF —WQ— um certo ser, e neste ultimo caso a conclusao pre- cedente se reduz aos singulares termos seguintes ; - — o ente que tem consciencia, se sente differente do corpo ; comtudo bem poderia ser elle o corpo, do qual differe. » Ainda aqui o philosopho mostrou-se um pouco desorientado. Nao ha duvida que a percepgao in- terna é faculdade de um ser, mas este ser, — note- se bem —, 60 homem ; o qual se sente organisado e vivo, tefldo na mais alta regiao do funccionalismo vital esse poder supremo de conhecer-se directa- mente, Como sujeito pensante, Em outros termos, — etal é, se me nao engano, o que Scherer quiz dizer, — a consciencia & uma faculdade que se presta sémente aquillo, para que foi creada, isto 6, por ella da-se 0 conhecimento dos phenomenos mentaes ; e deste modo, tudo que esta fora de sua esphera, torna-se-lhe estranho, e como que de na- tureza diversa. Nao existe realmente analogia alguma entre os factcs de percepcdo interna e os que dizem res- peito ao corpo, observados pelos sentidos. Mas isto nada infirma, nem confirma. A questio fica em pé. O ser que pensa, e tem consciencia, é,um todo organico, onde se exercem innumeras fane- codes. O pensamento é uma dellas ;— a mais nobre, am sublime, por certo. Nao acho razao de ‘maior pasmo em julgar a materia organisada, de modo a produzir os pheno- menos intellectnaes, do que em vél-a dotada de outras capacidades. De ordinario, 0 que nos faz repellir essa doutrina, é um effeito de imaginagao grosseira. Quandu se falla na materia, occorre-nos de prompto uma série de objectos physicos, 0S mais rudes e baixos, que se possa imaginar. Esta mesa em que escrevo ; — esta penna que manejo; — aquella pedra em que tropecei ; — a poeira que levanto de meus pés... — tudo isto material ; — qaem podera admittir que 0 pensamento brotasse de semelhante argila ? ! —-3- Ninguem de certo. Porém nao fica ahi. Sim, teria 6 agnella pedra bruta; € a poeira gue ama do; — 6a lama em que piso ; — mas a ma- suspen nbem é aquella flor que se embala aos anhé- teria i noite, e, a trinta passos de mim, derrama Wesambiente perfumes deliciosos ; — a materia fambem éo rubro labio feminino, 0 seio alvo e pal- pitante, provocador de affectos e paixdes ; — sim, a materia tambem 6 _aquella estrella que brilha 3; — 60 sol que flammeja ; — & porque nagpdde ser ue pensa 2... a oe nsamento, — costuma-se dizer —, sé péde residir em um espirito. A razao desta sentenca? E’ o que nao se nos da 4 conhecer, de modo salis- factorio. Pelo contrario, todos os argumentos ad-~ versos sao frivolos, erroneos, incapazes de produzir o minimo abalo. : Evidentemente demonstrou-o Scherer ; e fora de esperar qne Levéque nao deixasse de lado, sem resposta, as consideracdes do eminente critico. As provas do espiritualismo, diz este, se podem quasi todas reduzir a uma sé: — a incompatibilidade ab- soluta da materia e do pensamento ; mas esta in- compatibilidade 6 precisamente o que esta em questao, de sorte que uma tal argumentagio con- stitue um circulo vicioso. (10 ) Que nova ordem de ideias oppoz-se a tao grave e decisivo juizo? Nem uma palavra. Se nao é que 0 philosopho entendeu dever guardar silencio, neste Ponto, pela impossibilidade da refutagao, dir-se-ha que a coasa pareceu-lhe demasiado fraca, para teeone asua resposta?... Pode ser; porém creio prevensaue melhor, demonstrando essa fraqueza, e rites me © assim, contra qualquer illusao, os espi- 8 menos reflectidos. debalde que ainda se rememoram os traba- Cousin e Jouffroy, como os que mais se em- —_—__ thos de (10) Mélanges... pag. 181, — 4h — penharam na sustentaciv da magna these espiri- tualista. Bem sabemos quanto suor de rethorica e! de eloquencia pingou da fronte do chefe do ecle. ctismo, para elevar ao grao de uma verdade resut. tante de observacao iinmediata a existencia da alma espiritual. Mas sera preciso dizer que o proprio estorco empregado demonstra, pelo menos, a difficuldade' da empreza, desmentindo claramente a pretendida immediagio?... Onde esto os fortes argumentos que tornaram impossivel qualquer duvida, e per- mittem aos novos psychologos fallar da immateria- lidade da alma, como facto indiscutivel, evidente 9} Nao é sem muita razdo que se lhes altribue o quererem impor-nos esta sua hypothese, a titulo de dogma. Que importa que, para proval-a, nao se recorra a deduccaio, porém se tenha o cnidado, como affirma o nosso autor, de excitar nos outros o sentimenlo da cousa, descrevendo com minu: ciosa exactidao os phenomenos, sob os quaes a alma invisivel apparece; ... que importa, dizemos nés, se taes descripgdes sao contestaveis e real, mente constestadas, pelo que trazem de exagerado| e de falso ? O espiritualismo francez é um systhema_artifi4 cial, um filho degenerado da theologia catholica. Assas temos andado no seu pizo, e ainda padece- mos de suas illusdes. E’ mister acabar com as re- ticencias e os circemloquios ridiculos. Antes de tudo, esobretudo, devemos ser sinceros. Nao $' altera ; ndo se torce impunemente a verdade; tard ou cedo, ella toma o ascendente; e a intelligencia, alliviada do peso dos prejuizos, como um gall tenro de arvore, onde pousava um abutre, procul a posicado que lhe é natural. Os philosophos-sacristaes, que se incumbe? de conservar bem accesas as vélas do altar, qa parecem revestidos de solaina e sobrepelliz, sé }he* faltandoa lonsura, para serem outros tantos padre pelo coragao, devem olharcom espanto para 0 lade — 45 — do futuro. Approxima-se de certo alguma cousa fe grave © profundamente extraordinario. Eo espirito humano, considerado em suas eminencias, ue langa ao desprezo o resto dos brinquedos de gua infancia. E’ a queda do ultimo véo que ainda nos occalta muita verdade santa, apenas presen- tida pelos raros eleitos da sciencia, cruelmente im- parcial como a natureza. Outubro de 1871. ° Yl. Sobre um escripto de A. Herculano (4) A noticia de haver reapparecido, na scena lit- teraria, o celebrado autor da Historia de Portugal, devia naturalmente fazer vibrar a fibra da geral cu- riosidade. _O inesperado da cousa, o arredamento no qual 0 digno escriptor, ha alguns annos, tem estado das lidas e afans da vida publica, orenome que 0 cir- cumda, e junto 4 isto, se nao a cima disto, a caren- . Cla de ideias frescas, a escassez, em que vivemos, de livros portuguezes, mais legiveis e menos im- peeeunos do que os do costume, sao circumstancias pazes deexplicar.o movimento causado pela nova Produceao do Sr. Herculano. que Capazes de explicar, e nao de justificar, foi o eu disse. Comprehendo a forga dos motivos eet (1) Opuscutos, Questées publicas 1873, — 4g — que possam influir sobre jovens litteratos e ama. dores, para de prompto acceaderem o thuribulos em honra de seu velho idolo. Ainda comprehendo que a nossa ignorancia do actual estado das ques. toes, como ellas se discutem, ou jase acham deci. didas na regiao dos espiritos cultos e elevados, nog dé um certo direito de pasmar e exagerar 0 merito daquillo que se nos diz ser producto de um homem competente. Nao gssim porém o desproposito, com que se cré pagar tributos de admiracav ao escriptor feste- jado, proclamando o seu escripto a ultima palavra que dizer se possa, neste ou naquelle assumpto ; bem como, — o que é peior, — julgando de ante- mao e 4 priori bellezas e primores de um livro, que nao se leu. E’ de feito o que entre nds acontece quasi sempre, com as obras recem-nascidas de au- tores portuguezes. Ainda os volumes estd@o na alfandega; 0 com- mercio bibliopolico ainda nado abrio a factura de sua nova mercadoria, e ja troam, por toda a parte, as bombas encomiasticas da obra gigantesca! Nao é que os parvos cultores e aproveitadores dos me- nores rebotalhos das lettras lusitanas tomem a peta de vir em publico dar conta de suas impressdes. Nenhum delles sente-se obrigado 4 pdr em relevo pelos meios regulares de uma critica séria, a gran- deza escriptorial dos seus predilectos. . E’ um negocio das ruas, dos cafés, das livrarias, onde os mocos belletristas mutuamente se inter- pellam, sobre a tal novidade litteraria, e lavram, como inspirados juizes, sem mais indagagio, a sen- tenga approbatoria de tudo que o livro encerra. Nao sei como se deva qualificar tamanha levian- dade; 0 certo 6 que ella muito contribue para > estado de miseria intellectual, que nos deprime- Eu ja o disse uma vez: — pelo qne toca av alto dominio das ideias, nés fazemos o que fazem 08 mendigos: sémente consumimos ; nada produ mos. E nao é uma grande prova desta indigencia — 49 — it, com que roemos qualquer pedago de o bon apret | por ventura nos atire a escassa com- pao velo, on rados portuguezes ? paisay des vexandre Verealano tem sobejas razdes a apertar-nos a mao, & confessar-se nosso amigo. para ni yutro escriptor do seu paiz goza_no Brazil Nevbun Opomeada ; -—nenhum outro se poderia dle ne especie de cullo, que aqui se lhe tributa. grbar ’ suas opinides, em qualquer ponto, sao ci- tadas como oraculos, ante os quaés | 6 forg@oso que nos inclinemos. As suas opinioes, disse en, e toda- via, sé tentasse agora mencionar alguma dellas, mais notavel pela profusdeza e originalidade, nao ser-me-hia facil descobril-a. Tanto é certo que o celebre escriptor nao é fecundo em grandes pensa- mentos, nao é um homem de sciencia, uina cabega moldada para as allasidéas, Quem pedisse aos seus admiradores uma prova do contrario, pél-os-hia cruelmente em sérios em-~ baragos. Com effeito, o Sr. Herculano nao se dis- tingne, entre os espiritos mediocres que abundam em Portugal, senao pelo talento de ostentar-se car- rancudo e imperioso, mesmo dizendo as cousas mais frivolas. Elle 6 sobretudu dotado de uma singular habi- lidade: — a de tomar posigdes e distancias ade- quadas ao realce de sua figura. As montanhas, vistas de loage, sio de um bonito azul celeste ; — nada faz presuppdr as asquerosidades, que ellas apresentam, quando de perto observadas. Este phenomeno repete-se igualmente na ordem moral. Ha homens que devem as suas apparencias de gowideza ao jogo da luz atravez da atmosphera, que chlane. “ Nesta classe esta inscripto o Sr. Her- um pola nsulando se e estendendo em torno de si compatiiot € orgulho, tem podido parecer aos seus gente ase ands outros brazileiros, pouco exi- S, 0 que de facto elle nao 6. conde. um ligeiro verniz de cultura européa, es- © escriptor ditoso todos os signaes da car- — 50 — coma portugueza. Sem aquella harmonia de facy}. dades, que constitue o homem de genio, elle se mostra cégo de todas as cem vistas do espirito. excepto uma sé: — a vista do passado, a intuigag dos velhos tempos. D’ahi a Simitagio e a estreiteza: — para elle nao existe 0 que nao entra no campo objectivo do seu telescopio. D’ahi o modo estrapho de preten. der podar a sciencia, reduzindo-a, quanto possivel, ao trond ermo da historia; e alnda esta, concen. trando a demasiado na historia da sua terra |! Ajuize-se do grao de forga mental, da facilidade de v6o, da largueza e clarividencia, que pode ter um escriptor assim predisposto, assim nutrido e enfesado, E’ debalde que o Sr. Herculano assiste aos grandes movimentos e mutagdes intellectuaes do nosso seculo ; a philosophia e a religiao, elle nao sabe em que pé se acham. Por mais que carregue o sobr olho e queira dar! mostras de serio pensador, sorprehende-se o de prompto a imitar o riso de Voltaire. Ele pertence ainda ao lado peior, e o mais vulgar, da escola deste mestre. E julga-se, com isso, muito adiantade|... Rir-se dos homens, escarnecer dos padres, des denhar o culto da Virgem, e outras galhardias da especie, tudo isto Ihe parece natural e permissivel. Mas, por exemplu, escrever uma sé phrase que viole os santos preceitos da lingua de Vasco Eannes de Azurara e Fernao Mendes; nao respeitar ett cheio as tradigdes idiomaticas do reino, é para elle o cumulo da barbaria, é uma cousa horrorosa, 10° supportavel. Que espirito acanhado! Que pertur bagao de vistas ! | we ~ O Sr. Herculano teve, ne meio da sua activ dade, uma ventura rarissima : — achar-se frente 4 frente, em lucta renhida, com um clero ignorante i o qual assim concorreu para dar-lhe todo 0 brilbo| erenome ulterior. Esta circumstancia, ladeada del outros motivos, nado menos poderosos, como 0 es —~s— 9 tempo, a falta abscluta de ambiente critico, lica perfeitamente a causa do phenomeno, Eé exp duvida um phenomeno digno de estudo a no- sem de que se lisongeiam certos homens, cujo mento em alguns pontos real, é todavia inferior ‘que distribue-se-lhes no quadro litterario. tado d merito. ao papel I Estas consideracdes que, muito Hf, se forma- ram em meu espirito, acabam de fortalecer-se com a leiturada nova obra doescriptor portuguez. O pu- blico bem sabe a que me refiro Ahi anda por varias maos um pequeno volume, onde se léem produc- goes de data e indole diversa. o. Nao se espere de mim, que tenha a paciencia de acompanhar o autor, artigo por artigo, linha por linha, na apreciacao do seu trabalho. Ainda bem que olivro é dos que se pode, como diz Taine, ati- rar para o lado, depois de vinte paginas; comegar pelo fim ou pelo meio, segundo apraz ao capricho do leitor. Assim, tenho por licito deixar intactos os de- mais pedacos, e occupar-me unicamente do ultimo: — A suppressio das conferencias do Casino. E’ uma longa carta, que dirigio o litterato a nao sei que personagein, e na qual trata de assumpto momen- toso. Nao 6 que eu julgue tal 0 pretendido attentado do governo portuguez contra a liberdade da palavra, nem 80 ponco o discurso proferids, ou que deixou de proferir-se em conferencia publica, sobre reli- giao. O que ahi ha de importante para mim, 6 a exhibicao das idéas do antor, em materia actual- mais: debatida, e que releva esclarecer cada vez o mining? orador, & quem tolheu-se a palavra,e questas to de entéo, escondem-se por detrazda Superior que o Sr. Herculano propoz-se — 52 — discutir em sua carta. Se com exito ou sem elle, 6 0 que seria facil demonstrar 4 leitores despreve, nidos, e que, para julgarem productos de tal ordem, tivessem mais perfeito criterio. Ante espiritos, porém, que Sse arrebanham em torno de qualquer autoridade, sem condigéo alguma, nao € tarefa pouco melindrosa. Entretanto apreciemos a substancia desta carta; — 0 que vem nella de realmente notavel ? Aqui ogcorre me um dito espirituoso. Fazia-se, em presenga de Lessing, a apologia de um livro, 00 qual havia muita verdade e muita novidade. « Nur Schade, acudio elle, dass das Wahre darin nicht neu, und das Neue nicht wahr ist... & pena somente que o que tem de verdadeiro, ndo seja novo, e 0 que tem de novo, nao seja verdadeiro. » Resposta igual poder-se-hia dar aos ingenuos encomiastas do escripto que mencionamos. Na sua advertencia prévia, o autor declara que a data de cada um dos opusculos contidos no volu- me é uni dos elementos indispensaveis, para estes serem julgados com justica e imparcialidade. Rasado ainda mais forte me sustenta, na preferencia que dei ao derradeiro. E’ de 1871; e como tal, deve melhor reflectir as feicdes do homem de hoje. Mas infelizmente, 4 julgar-se pelo fundo de todo o livro, nao ha progresso nem regresso. O.Sr. Herculano de ha dous annos é 0 mesmo de ha vinte e ha trinta. Ougamol-o mais de perto. O digno escriptor insurge-se contra 0 aclo offi- cial que supprimio as cunferencias, por lhe parecer peior que ama illegalidade, por Ihe parecer um des- proposito. Eis os motivos: «O que seria escutado, diz elle, e em grande parte esquecido, por cem ou du- zentos ouvintes, sera agora lido e meditado por milhares talvez de leitores. » Mal se pode comprimir o riso que provoca esta observagao. E’ incrivel que o Sr. Herculano co- nhega lao pouco o seu paiz e a sua gente, para — 53 — car-lhes o que lhes nao assenta. Mui i Ti . . assim @PPivna elle da sciencia dos rethoricos do alta 1déa for ino! . Cas eis nio via que os discursos desses mogos, odendo em reunides publicas alterar a ordem e 0 cego geral, desde que 86 se fizessem notorios por meio da imprensa, perderiam nove decimos do Valor intrinseco ? Sou de parecer que 0 governo portuguez revelousse, neste ponto, mais adiantado. O escriptor 6 em regra um homem @almo: _ o orador é em regra um homem de paixao. Nao é tudo. Os escriptos que nao saem de um profundo trabalho de reflexio e methodo scientifico, des- troem-se pur si mesmos, no podem conquistar ad- hesdes bem fortes e por ventura perigosas. Quem nos diz que as falladas conferencias nao eram deste quilate? A isso responde satisfactoria- mente, irrefultavelmente, o mo estado da cultura em Portugal, o almiscar dé pedantismo ignaro, 4 ressumbrar das poucas e estereis tentativas intelle- ctuaes, que a mocidade alli commette. A illustragao européa, maxime a sciencia alle- man, nao tem la um sé representante. Sim.—Por- tugal ndo tem um philosopho, nao tem um theo- logo, nao tem um critico investido das verdadeiras idéas e tendencias do mundo actual. Onde achou, pois, aquella meia duzia de jovens pretenciosos forga bastante e bastante consciencia para prose- guir ein seus commetimentos ? Renae” & mais do que ler algumas paginas de hehe depois ao Casino conferenciar sobre os sloriadores criticos de Jesus? !... Nao &@ mais do thai par a0 arsenal de Michelet algumas phrases nisme ns mcientes, mais retemperadas de voltairia- ligiao ‘do Pergnlarse em publico, atacando a re- cebidog ) uv, por meio de discursos mal con- taiz fost JHereulano nao quiz vér onde estava a al. Como todos os que teimam em ser Cat i holicos, fazendo selecedes ne corpo da doutrina ~— Bh confessional, n&o admittindo que na amphora do velho dogma se derrame vinho novo, elle se esforca por inculpar o governo de ndo sei quantos abusos* e desleixos, Entretanto, éevidente, para quem nao se deixa obceear pela poeira de caducas antigaalhas, e tam. pouco por idéas preconcebidas de extemporaneas reformas, @ evidente, repitc, que qualquer governo onde haja religido legalmente instituida, nao exor. bita em psocurar defendel-a. Pdde ser, com suas medidas de hygiene moral, anti politico, inconve- niente, porém sempre no terreno da legalidade. Continua o escriptor : . « Diz-me que se tomon por pretexto da sup- pressao das conferencias 0 desaggravo da religiao offendida. Erro deploravel. Idéa persegnida, idéa propagada: lei perpetua do mundo moral... » Enganava-me, quando suppunha que o autor nao era homem de render cuito ao palavready este- ril. « Idéa perseguida, idéa propagada .:.» duplo dislate. Primeiramente: — quando se podesse ainda hoje repetir, em tom de verdade incontesta- vel, essa frioleira, — vinha féra de proposito appli- cal-a ao caso vertente. Qual era a grande idéa, a idéa immortal e sobré vividoura a sua persegnicao, que os mogos do Ca- sino apostolavam? Ora... estal E nao faz ama certa impressao comica o sério, com que falla o velho historiador daquelle entretenimento de rapa- zes pouco escrupulosos ?... Depois : — onde é que esta positivado, como lei perpetua do mundo moral, que a idéa perseguida éidéa propagada ?... . Qne am espirito ligeiro, acostumado a nutrir-se de bagatellas, viesse-nos repetir por sua vez, este apophthegma decrepito e erroneo da inefficacia do martyrio, podia-se tolerar. Mas um homem que escreve historia e deve sabel-a; um homem para © qual as phrases consagradas nao podem ter valor & cima dos factos, dar-se ainda ao trabalho de aiteat — 6 — o cotharno, & proferir uma futilidade, 6 o que nao se descule psychologica e historica, esse dito, aim véga na bocca dos declamadores, tem m si tao somente algumas apparencias. O chris- pors mo, mal estudado, offerece-as no seu comeco. Mea pao é permittido deixar-se illadir por ellas. Mest de parte o milagre, que ninguem sisuda- mente invocara, como razao, O que seria feito da religiao christan, se lhe tivesse faltado @ apoio do prago imperial 2... . Sem Constantino, 0 sapgue dos martyres teria servido para afogar a nova idéa. Se o christianis- mo, como é costume dizer, subio ao _throno com esse soberano, todos sabem que Juliano fel-o descer ; e de um modo que seria decisivo para 0 futuro, se o illustre apdéstata reinasse por mais tempo, ou tivesse successores de igual forca. Em epochas menos remotas, 0 ferro e o fogo extinguiram heresias, que nao se propagaram. Francisco I queimou protestantes ; 0 que é a Franca de hoje ? Profundamente catholica. A perseguigao banioareforma. Se Luiz XIV, diz um autor com- petente, fora um principe tolerante, um quarto da populacdo provavelmente seria heretica. _ Onde estado pois us fundamentos da tal perpetua lei do mundo moral? Se a perseguigao da idéa do Casino vae gerar a propaganda, porque razdo a idéa catholica ¢ ultramontana, onde quer que tenha Sido perseguida e expulsa, tambem nao ha de geral-a? A lei éuma ea mesma para ambas. por Deste modo, _Seria fatalmente necessario que, conquisteese os jesuitas na Allemanha ainda re- a inter assem os postus perdidos. Dispensando : vencao de Deus, e sé por forga da lei citada, to 1X e sua gente rig a . 2 esperangas, (2) poderiam. conceber fundadas _—_— (2) Isto. er: 7 kam Is ‘a escripto uo tempo em que achamada Kulture 'pf mais renhida se travira ma patria de Bismark. — 356 — Por quanto, se nao é que para o digno eserj. ptor e seus irmaos em pensamento, os jesuitas nao tem uma idéa, ndo representam principio algun da ordem social e religiosa, — o que seria pdr-se fora de todos os limites do bom senso e da razao,— esta claro que, sendo perseguidos, devem adiante levantar-se mais robnstos e cheios de nova vida, E’ 0 qne exprime a deducgio logica, inevitavel, do pretendido axioma, pomposamente invocado pelo Sr. Herculano, e que alids nado passa de um reflexo do supra-naturalismo, da intuicdo milagreira do espirito catholico. E, pois que essa consequencia importa um facto, nao dar-Ihe-hei_ 0 nome de ab- surda; — mas tenho-a por phantastica, anachro- nica, impossivel. II O escriptor portnguez € singular em suas ap- prehensdes. Reconhece que os discursos do Ca- sino nao tinham bastante forga para derribar a re- ligido de S. Paulo e de S. Agostinho, de S. Bernardo ede S. Themaz, de Bossuet e de Pascal. Bem re- conhecido. Ha sémente uma cousa a esclarecer :— éque esse resultado nunca dar-se-hia, ndo por se tratar da religido de S. Paulo, mas por ter ella contra si os discursos do Casino. Eis a verdade. « O perigo, ainda diz elle, 0 perigo, nado abso- luto, mas relativo, esta n’outra parte. Aggredido pela frente, o catholicismo pdéde applicar a si, melhor que o protestantismo, 0 verso do bello hym- nario de Luthero : Ein’feste Burg ist unser Gott. Nao se toma a fortaleza divina; mas péde set minada e alluida por uma guarnicao desleal. este actualmente o grande perigo que a ameaga..-? -—57— eg me parecem muito appropriadas «9 Paras eda do estado mental du Sr. Her- & dat a Joe ryelacio as questdes religiosas do tempo. gulane ait o que elle chama aggredir o catholi- Com e so a frente, é menos adaptavel ds conferen- gas do. Casing, do ave 4 outros movimentos litte- i ualidade. Paris que as producgées de um David Strauss e Christiano Baur, com toda a immensa_cohorte cri- tiea, nao sejam aggressivas da velha Igreja? Sera que os grandes trabalhos da exegése bMlica nao vao directamente abalar os fandamentos da religiao de § Thomaz? E é certo que nada tem & temer desses ataques, tanto mais terriveis, quanto mais calmos e sinceros 2? | . | Digamol-o sem receio: — é mister que o Sr. Herculano, ou ignore absolulamente o que existe la pur cima, nos dominios superiores da sciencia contemporanea, pelo que téca 4 podridao intima, irremediavel do catholicismo; — ou seja um crente, no rigor do termo, um daquelles fana- ticos devotos, que sacddem a cabega e, como Joam de Wit, recitam o justum et tenacem propositi virum, 4 medida que se Ihes impde a tortura cruciante da evidencia dos factos. Sim, 6 preciso que elle se ache em uma destas Posigdes, para tornar concebivel e explicavel a sua contianga no poder immorredouro da religiao ca- tholica. A lembranga do verso de Luthero, que lhe approuve repetir-nos, mal disfarga o caracter ortho- doxo de todo aquelle periodo 6co e retumbante. there identicas palavras poderia, em vez de Lu- ° phraseaget, oO hume de algum santo, e acabar adversug oe 0 pelo — et porte inferi non prevalebunt escripto ou. Nao daria assim. de certo, ao seu Denser Oise de novidade, as apparencias de livre cautos do metic tanto se illudem os idolatras in- vance @ Pi eseriptor portuguez, porém seria mais Os incoherente. Quem nao duyida dos predicados sobrenatu- — 58 — raes, que adornam por excellencia 0 catholicismo quem nelle vé a fortaleza divina, inexpugnavel ¢ eterna, 6 para admirar que n’outros pontos se re.” vele tao aspero e severo. Nao lhe assenta seme. \hante rigidez; - ha uma desharmonia, ao mesmo tempo anti-scientifica e anli religiosa, que ja nag sda bem aos ouvidos da nossa epocha. As aggressdes de frente, 4 que se referio, sao mais fortes e mais serias, do que dao a induzir og discursog, de Casino Todavia, para elle, ou por desconhecel-o, ou por menosprezal.o, 0 perigo nao éesse. O mal vem do proprio seio da Igreja, do clero faccioso e sem conviccdes. E’ a vulgar can- tilena dos sonhadores de reformas para o irrefor- mavel; 60 grito de guerra que repetem os arautos do chamado velho cathulicismo ou neoprotestantismo : duas palavras que dizem a mesma cousa. Mas, antes de proseguir, importa ainda ponde- rar aquella expressdo fradesca, na qual bem se re- velam as curtas vistas do escriptor, dando ao ca- tholicismo o direito de applicar 4 si, « melhor que 0 protestantismo, » as citadas palavras de Luthero. Porque « melhor? » — se lhe pode perguntar; ea resposta nao seria muito prompta. ‘ Entrevé-se que 0 autor, pouco original, mode- lou suas idéas religiosas pela Historia das variagées, e, nao menos talvez, pelo livro arido, esteril, do padre Balmés. Esta por conseguinte horrivelmente atrazado. Donde quer que tenha recebido uma tal intuigéo, é manifesta a sua incompetencia para entrar nestes assumptos, de um modo vantajoso & digno da questao. Mal sabe que a solidez e o rigor preconisados da religiao de Bossuet sao justamente 0 que torna irremovivel o seu desmoronamento. Desde que 0 templo ameaga desabar, 6 impos- sivel sostel-o, porque a quéda estd deverminada pelos proprios attributos immanentes ao espirito que o anima. Incapaz de desenvolvimento, no sen- tido positivo, porque cedo e muito cedo deu-se por completo em sua organisagdo, o catholicismo § — 59 — senvolver-se no sentido negativo, isto é, entes e cada vez mais sensiveis os ger- morte que pousam-lhe no fundo, como mno fundo de todos os factos e apparicdes tinha 4 de tornar pat mens de elles jaze da ve abi, pois, o motivo da desordem que hoje . io da Igreja, e que a tem posto em domo de eno poder resistit as duras influencias da athmosphera do seculo, E? um estribilho antigo ¢ ja de poucey alcance, este continuo clamor contra o chefe ecclesiastico e os mais funccionarios da grande sociedade, como sendo a causa unica da derrota, da miseria e cor- rupcao que devoram as entranhas da bella esposa de Jesus. Entretanto, um olhar psychologico lan- cado com attengio no intimo do crente, maxime do eatholico, autorisa 4 se julgar que o phenomeno émuito natural,e ha de repetir-se em todas as phases criticas da historia religiosa. oo, De feito, quem admitte a idéa de um instituto divino em sua religiao ; quem acceita como irrefra- gavel o principio da santidade e immaculidade das doutrinas que professa, bem como o da perpetua duragdo da grei, A que pertence ; quem cré sincero em tudo isto, nao péde deixar de ir ao encontro dos factos com clamores e appellos daquella ordem. Se a Igreja é divina, se a Igreja 6 perduravel até o fim dos tempos, como explicar tantos vicios e achaques que a deturpam, que promettem derribal-a? Como justificar as largas brechas que se fazem paparea de S. Pedro, e pelas quaes ella mesma, Cortera ° Sr. Herculano, « se podesse perecer, » seculo (frande risco de nao completar o vigesimo ora exter existencia ? _Attribuir a qualquer causas estraniy poder de assim abalal-a ; procurar nao seria has e independentes do seu dominio, a porem duvida a origem miraculosa e o c . srarter transcendental da religiio de S. Paulo ? refagi ontestavelmente, Logo, é mister um certo io par. é © para as crengas estremecidas pelo choque — 60 — dos acontecimentos, e tambem algum subterfugio para salvar da annullagao total os preconceltos communs, tristemente batidos e postergados. D'ahi todo esse irromper de cholera contra os padres -— d’ahi todo o barulho levantado, em nome da neces. sidade, cada vez mais urgente, de oppor um dique a innundagio da seara divina pelo oceano de abu- sos e desatinos, que rebenta do seu proprio terreno, Se é certo que as portas do inferno nao podem prevalecer diante da Igreja, nao éigualmente exacto que ella deixe de poder ferir-se, eStragar-se, anni. quilar se a si mesma. Nao péde perecer por mio albeia ; mas esta impossibilidade nao abrange o suicidio. E’ portanto indispensavel que’ seja o clero quem receba toda a pancada desta logica dos crentes, que sabem intercalar as risadas de Voltaire nos solugos de Jeremias. Este modo de explicara propria derrota é ainda uma forma, um testemunho de orthodoxia. Mas salta aos olhos odesproposito, a inanidade completa das razdes insinuadas: « O clero de Pio IX é faccioso e sem conviccdes... » Occorre perguntar : — e por ventura andou mais avisado 0 de Clemente IV, Gui Folquey, 0 poeta provengal, que, subindo ao pontificado, julgou dever conceder cem dias de indulgencia 4 quem recitasse 0 seu poema dos Sete gozos de Maria? Eo de Clemente V, o simoniaco, foi menos immoral e cheio de mise- rias ? . Foi menos desconvicto e faccioso o clero, In- ferior e€ superior, de outros tantos vice-deuses, como Benedicto XII, o ebrio, Clemente VI, 0 im- pudente, de quem diz uma chronica da epocha: rapine et fornication estoit toute sa gloire?..- > Para que assim querer-se hoje concentrar a forga do mal no coracao da Igreja, quando elle existe no ambiente do espirito catholico, em forma de ten dencia e aspiragao geral, ou ja incorporado aos grandes feitos da sciencia moderna? — Fatal obce cacao | — 64 — I FE’ uma idéa exacta. em si e por si, que na actua! evolugaiv do catholicismo, os jesuitas for- como dizem os allemaes, 0 momento mobil, Ppomento agitador, das bewegende Moment. Mas esta idéa pode ser exagerada, e abrir campo 4 mui- tos etros e vistas falsas. 0 menos que @contece, 6 pao poder se mais enxergar, sendo planos jesui- ticos, em toda e qualquer acgao catholica, indivi- dual ou collectiva ; — _circumstancia que impossi- pilita o exame scientifico, objectivo dos factos no- yissimos. - . . . Se um tal modo de vér, estreito e parcial, nao tem sido evitado por espiritos de outro v6o, como éna Allemanha Wolfgang Menzel, a quem um es- criptor d’alli, (3) ainda ha pouco, fazia a critica desse vicio impregnado na ultima obra do notavel historiador, qual seria, em ponto semelhante, o destino preparado ao Sr. Herculano, pelo rancoroso eenvesgado do sen clhar contra tudo que pareca vir do clero 21 E’ certo que devia fatalmente cahir nos despropositos da phrase estolida e impensada. __ Vejam como elle lamenta que «0 orador do Ca- sino nao conhecesse melhor a doutrina ea tradicao verdadeiramente catholicas, porque havia de ser menos injusto com o catholicismo, embora nao fosse menos severo, on talvez o fosse ainda mais com 9s padres... ! verd 0 NOSSO autor conhece a doutrinae a tradigao verdadeiramente catholicas!?... E’ muito feliz! neste lastimar que ainda nao quizesse dar-nos, ‘ston en ido, algum fructo de suas locubragdes icas, e pornos em estado de melhor consi- —— = pag, hgaazin fur die Litteratur des Auslandes — 1873—n. 19 — 62 — derar a importancia do assumpto, como tambem de entender melhor o proprio Sr. Herculano. Mas eu me illudo : — este escriptor, posto que” velho e amestrado, segundo affirmam, no manejo da penna, ainda 6, e sempre serd, um tribatario submisso do palavreado imponente, que faz effeito, que deixa o teitor perplexo, quando nao de todo inclinado 4 dar Ihe razao. Ja houve quem dissesse de Chateaubriand, que elle nao era tanto um eseri- plor, comp era um magnifique fuiseur de phrases. Bem sei que seria cruel involver a ordinaria estatura do portuguez na chlamyde homerica do autor de René. Corria o risco de tropegar e cahir, embaracado nas largas dobras da purpura genial. Todavia, excepto 0 magnifique, aguella expres- sao se adapta ao nosso litterato. E quer se vér, entre outras, uma prova irrecusavel dessa mania de brunir banalidades, ou de esconder a pobreza das idéas, na capsula da phrase adocicada? Repa- re-se bem neste pedacinho : «Cuidando apportarem 4 praias ignotas, os publicistas mais de uma vez tem plantado padrées de descobrimento em regides onde, embora occul- tos pelos musgos e sargas, os padrdes da cruz estao plantados ha mais de mil e oitocentos annos. > Fosse isto expresso em termos claros e positi- vos ; nao tivesse o escriptor buscado encobrir as rugas do sen pensar, sob esta ponta de véo azul dourado, que ahi fica 4 tremular na imaginacao dos leitores, e o erro seria de uma hedionda grossura. Porém a cousa é mesmo feita para deslumbrar. Quando depois de quarenta linhas, todas tracadas na direccao do dislate ou da antigualha inaprovel- tavel, o leitor pouco instruido comega 4 arregalar os olhos, atira-se-Ihe em cima um punhado de fais cas, que o deixam por instantes meio cego e in capaz de reflectir. A victoria éinfallivel. | O espirito do publico iegente, no Brazil e em Portugal, ainda voa muito rasteiro. A maioria ab- soluta 6 dos que gostam de ira beira-mar, nao para — 6 — nsamento na profundezae magestade jo sémente para contemplar as do abysm0- mae oie, as Wnflexoes poeticas das vagas. bolhas dare nao tiram o seu chapéo a logica das Sao a d factos, mas se curvam diante da meta- ideas © %” vardam ancioscs 0 phraseado que vem hora. Brarulhento, escumoso, insinuante; — de lone resto a pancada da onda que os enton- one e gritam convencidos : — muito bem! Isto é ve éraciocinar ! . @ Permitta se-me aqui langar a seguinte nota. Ultimamente, um escriptor de Berlin, Heinrich Homberger, em artigo relativo as tres maiores nagoes da raga latina, disse com bastante senso :— «Nas margens do Arno e do Tibre, a _metaphora é um encanto, uma arte, uma delicia. No Ebro eno Sena, ella é um argumento... Die Metapher ist am Arno und Tiber eine Zier, eine Kunst, ein Genuss. Am Ebro und an der Seine ist sie ein Argument ». (4) Comprehende-se que a Italia viraé portanto 4 sera mais ajuizada. Nao é este porém o fim da minha mengao. Se ndo se presuppoe extensive a Portugal o que ahi se diz da Hespanha, seria iniquo ao Ebro e ao Sena addicionar o Tejo? E nao sé 0 pobre reino, de ce- rebro acanhado € am pouco rijo para as sérias me- ditagdes, mas tambem o seu appendice intellectual de aquem do mar, o triste imperio da America, Seria injusto abrangel-os todos na mesma cathego- rla da predileccdéo pela rhetorica ? Responda a jornalistica esteril dos dois paizes, onde as questdes sempnstas para o torneio phraseologico, tomam ein, pracag aa poeto oraratto, uma attitude tribuni- estadadas, © profuso dos manejos e posigdes Res, que ha immergir 0 pe pondam os seus parlamentos... oh l... eo © de elles responder? O que todos nés —_— (4) Dle Gegenwart — 1873 — ne 44 5 — pag. 162. — 64 — sabemos desses fécos de atrazo e entorpeciment publicos. E’ ainda o imperio da rhetorica, mag de rhetorica chatamente classica :— o lugar commun: eadeclamagdo. Respondam as conferencias. og discursos belletristicos da epocha, nos quaes sé se depara com as ninharias do fundo, e as douradurag da forma. Tal a verdade, francamente expressa. E, nao obstante possuirmos 0 mesm» séstrode palavreado que deturpa os nossos irmaos na lingna e civilisa, cao romanica, Ccomtudo nanca tivemos, nao temog umgrande orador comy Castellar, nem um pequeno, sequer, como Gambetta. , Neste sentido, que diremos do nosso litterato? Ainda 6 tempo de juntar mais alguns tragos 4 sua caracteristica. IV Indubitavelmente o Sr. Herculano tem todas as qualidades inherentes, ndo tanto 4 raga, como a cultura latina, um pouco oxidadas pela gelidez do clima social, em que reside. Rara vez se ha de en- contrar, em espiritos yue pensam, affirmada, com mais arrojo e menos talento, a inconsciencia de um mao estado scientifico. E’ debalde que elle se exaspéra contra os homens que dirigem o seu paiZ, ese esforga por fazer crét que nao é comprehen- dido, que alli nao se aprecia, poryue tambem nao se mede, ou nao se allinge 4 altura do seu pensa- mento. . Presuppondo-lhe a sinceridade, julgo-me obri- gado 4 denuncia!-o como victima de uma illusao- Elle esta precisamente ao nivel du senso portugue2; —éum antor que reflecte pelas duas ou tres unicas facetas do seu espirito, alguma cousa embacado% todos os estragose lacunas da nagao aque pertence Como foi pois que the incutiram, se 6 que 14° —-6— no proprio fundo da sua vaidade, a cruel a cao que o atormenta ? preten cousas do nosso seculo, para o qual estava Sao o glorioso mistér, posto que ainda nao reen chido de tudo comprehender e tudo perdoar. Pree nomenos ordinarios da vida intellectual de Sho Per povo semiculto, que se illustram por mo- qual sychologicos e sociaes. No estudo do seu aie aoivimento ena ponderagdo do meio em que elle vive, descobrem-se as razoes geneticas do en- gano, ao qual cedeu 0 velho escriptor. m se lhe pode, até um certo ponto, descalpar esse defeito. ‘Até um certo ponto, — disse eu; — porque nao acho razdo para perdoar-the a mania voluntaria de entregar-sé 4 no sei que nova especie de orgu- Iho litterario, pelo qual jalgon punir a indocilidade da sua gente, nada mais escrevendo, nada produ- zindo! Tambem nao comprehendo que Achilles, depois de retirar-se agastado, volte outra vez ao combate, se elle nio vem para mudar a sorte da peleja, se nao traz novas forcas e novas armas, ca- pazes de abater o inimigo. Recolhendo-se ao silencio, por um largo tempo, tinha o Sr. Herculano o indeslinavel dever de nao quebral-o jamais, sendo apadrinhado com alguma idéa fecunda e altamente meritoria, que nos viesse annunciar. Mas levar emmudecido um grande mor- talis evi spatium, — provavelmente lendo e estu- dando, pois nao se concebe que podesse desprezar os livros; e no dia em que se arrepende do pro- testo, em vez de outro presente mais interessante, tirar da algibeira um pobre livrinho de antigualhas Faatellas... 6 com effeito ama cousa extraordi- Sobe de quando se con Cutida, em o do. E> diff desgosto e m naario reserva ponto a estranheza do successo, sidera a dignidade da materia dis- bequeno escripto, 4 que me hei refe- cil resistir 4 um certo sentimento de enosprego, diante do modo anachro- oF, — 66 — nico.e um pouco sedigo, pelo qual © autor, entre nés celebre, se exprime sobre a Igreja de Roma, Catholico de lei, qual se suppoe, € NAG seguidoy’ do papa com os seus jesuitas, — distinegdo que me € incomprehensivel, — arremette violento contra as ultimas tendencias do romanismo reli. gioso. Como se ellas nao sejam rebentos naturaes da arvore secular, 4 cuja sombra quer permanecey: o pensador portuguez! Como se esse romanismo: nao exprigia uma phase evolucional da historia do catholicismo ! Como se Pio IX, que subio ao throng em uma epocha ainda cheia de intuicdes e aspira- codes romantlicas, nio seja, como tal, um romantico perfeilo, sonhando com a idade média, e buscando renovar o esplendor perdido da velha instituicadol.,, Singular, singularissima idéa é de certo a que agarrou-se ao cerebro destes homens, prelendidos conselheiros de reformas salutares para uma reli- gido, em cujo poder ja elles nao acreditam. Se fogem de dizel-o, s6 uma de duas cousas explica: essa anomalia : ou pouca sinceridade, ou a falta de: psychologia do proprio estado moral. Nao é sem muita razao que o sabio belga Freé-’ deric Laurent se insurge contra alguns philosophos e outros escriptores da actualidade, os quaes no seu entender, nav ousam pensar livremente, ou nio ousam dizer o que pensam. — « Ils traitent la réligion catholique avec une indulgence, que nous appellerons coupable, parcequ’elle donne des espe- rances aux partisans. du passé, et qu’elle retient: dans les chaines de la superstition les faibles et les: timides, toujours heureux de trouver un prétexte: pour couvrir leur lacheté. » (5) . E que diremos d’aquelles que, sustentando por. timbre o nome de catholicos, querem justificar a8) suas rebeldias, accusando a Igreja de perdida e desvairada nas mos do jesuitismo? Confesso que (5) E'tudes sur UHistoire de UHumanité... La réligion te VAvenir, ~ pag. 12. — 67 — 3 novos rotestantes causam-me a impressaio ester hos desalmados, que recusassem pedir a le a asua mie, sob o pretexto ficto de que ella bengae neita a memoria e as cinzas de seu pae. me sao sobremodo ingenuos os taes reformadores, ra quem existem dous catholicismos, um falso, mae Pi de Roma; — e outro verdadeiro, que 6 o aes. On!... santa naivelé! — Quem thes fara comprehender 0 disparate das suas pretengdes 7 0 Sr. Hercniano, de instincto on de @ndustria, pertence a moderna escola anti-romanista. E elle quem diz: — « O earacter fundamental do catho- licismo verdadeiro, do catholicismo que nos incnl- caram na infancia, era a immutabilidade, a perpe- tuidade ea universalidade dos seus dogmas e das suas doutrinas, na successio dos tempos; — ca- racter precisamente descripto no celebre Commo- nitorium de Vicente de Lerins. Nessa crenga, tio incomprehensivel seria a suppressdo de um dogma antigo, como a addigado de um dogma novo. Nao acha o leitor que estas palavras poem & descoberto uma soffrivel dése de insciencia e po- breza de ideias? Porventura, 0 catholicismo do Vaticano, 0 que existe actnalmente, considera os seus dogmas e as suas doutrinas menos immutaveis, menos universaes ? Tulga elle fazer a addicdio de um novo dogma, quando declara a immacnlidade da Conceicio de conten quando diz qne o papa & infallivel ? Pelo a aut ro, elle se apoia em textos sagrados e invoca oridade patristica. (6) Seé bem ou mal fir- (6) 0 padre Ki tort, tt Jeulgen, que foi o encarregado de arranjar itue pone intallibilidade, nao inventon por certo as palavras Delicio com um buen — Sabemos, que a esse padre, em com- No atrania domination” 9 padre Franzelin, foi dada a incumbencia le Kleutgan fot pr f bela commissio do concilio ; mas o trab\lho Parte da Gloria yeeeetido. | Note-se que, ainda wisto, a maior allemao. + Posto que dliversamente apreciada, pertence A um — 68 — mado o seu apello, nao incumbe aos fieis invest;. gar; e desde que assim praticam, desde que se ap rojam 4 pedir contas 4 Roma do seu procedimento levantem a bandeira de revolta ‘ Catholicos que nao acceitam a infallibilidade do pontifice romano, sio como os protestantes que nao créem.no caracter theopneustico das santas escripturas ; isto 6, trazem um titulo, do qual nao se mostram dignos, visto que arrancaram do espj- rilo a mais brilhante insignia da sua religiao. Protestantismo sem biblia, catholicismo sem papa, sao grimacias que delurpam a face do seculo: sio phenomenos que bem podem figurar ao lado de um christianismo sem Christo. Nossa epocha esta presenciando todas essas maravilhas. Quando se affirma, com o fim de combater as ultimas decisdes da Igreja, que o catholicismo ver- dadeiro nao permittia a addicdo de um dogma novo, exhibe-se um documento de ignorancia e nado pe quena. A dogmatica eatholica tem uma historia ; o que vale dizer que ella tem tido am desenvolvi- mento. Os dogmas que hoje se impdem 4 fé, nao se formularam todos de uma vez; nem tambem appareceram por capricho: — elles foram provo- cados pela necessidade dos tempos. Desde o primeiro concilio de Nicéa, em 325, até 0 quarto laterano, em 1215, 0 catholicismo tinha podido viver e dominar com os dados da sua historia e das suas tradicdes. Entretanto, Inno- cencio ITI fez consagrar-se 0 mysterio dos myste- rios, a franssubstanciacdo ; ajuntando deste modo um novo élo & dogmatica existente. Como é pols que se nos diz que antes de Pio IX, era_cousa 10° admissivel augmentar o contetido da fé? Sr. Ale xandre!!.., Vie Ainda que as palavras do theologo gaule?, r cente de Lerins, se prestassem ao sentido que the: deu, nado devia o nosso autor limitar-se & repetil: o como expressio de uma verdade geralmente “ ceita. Devia porém buscar saber os motivos @ * i ue dictaram esse modo de pensar. cirumstanciae te rmonia com os factos. ' ; am Bo torio que escrevendo no secuio V, o theo- E ha em mira ir de encontro as innovagdes ‘giosas do seu tempo. As suas vistas portanto relig vuxiliam para ajuizar-se do desenvolvimento nada ee do catholicismo. Causa riso a gravidade, que o Sr. Herculano declara que a religido da gua infancia era tal qual a descrevéra em poucas phrases, pa mil e quatrocentos annos, Nicente de Lerins ! . Mas ia-me esquecendo de pegar o escriptor em flagrante delicto de ignorancia historica. «Osym- polo salvo, diz elle, pelo concilio de Nicéa, e pelos esforcos de S. Athanasio, continuon até nés immu- tavel. » Isto éimproprio de um espirito culto. JA observei, contra essa ideia, que o dogma da trans- substanciacao, do qual alids nao falla o symbolo de Nicéa, appareceu no seculo XIII, sob 0 pontificado de Innocencio III. Posso ainda observar que a crenca no purgatorio, da qual tambem nao se occu- pou a theologia Nicena, e que 8. Agostinho tivera apenas por uma hypothese verosimil, veio 4 ser dogma muito posteriormente, no sexto seculo. (7) Ha melhor demonstracdo do erro que palpita naquelle asserto do autor portuguez? Nao fica ahi porém o seu atrazamento. Na falsa convicgao de que 0 catholicismo permaneceu immnutavel em sta dugmatica primitiva, até pouco tempo, elle entra no dominio do direito publico, e abre a Carta: apostate legislador que a religidio catholica, reine. ea, romana, continuaria 4 ser a religiao do tones ao disse que essa instituicdo seria uma east Hova, fluctuante, mudavel, conforme appron- Vesse aos jesuitas j rimint dogmas a Nocti ir supprimindo ou annexando ow inconsel tina catholica, mediante 0 assenso, Clente ou incredulo, co papa e do episco- OH Jogo tin a . ) Michel Nicolas, — Le Sgmibole des Apétres, — pag. 232. — 70 — pado 0 que continvia, nio é o que vem de noyo- 6 0 que existe no acto de continnar. » y Esta interpretagao é insigne de futilidade, Um lente de Goimbra, on a puldades do Brazil, nao se exprimiria com mais arrogancia em materia de biblicismo constitucional. O argumento tirado da significagao do verbo continuar, 6 pueril, @ nado ex. alta o talento dialectico de quem o emprega. Ainda é preciso lembrar ao Sr. Hereulano que 0 catholigismo, como tudo neste munilo, sem ex. ceptuar mesmo aquillo que se tinha em Conta de santo e divino, asta sujeito a lei do desenvolvi- mento?! Uma ideia que apossou-se de todas ag cabecas bem formadas! 2... O legislador portugnez nao podia dizer qnea | veligido catholica, apostolica, romana continuaria dser.a religido do reino, sem respeitar implicita- mente a lei do progresso ; — esta lei que se assi- gnala por modos diversos, provocando a vida ou a morte, a ascencio ona queda das cousas subordi- nadas 4 sna influencia. Nao podia articalar aquelle principio, no sentido de obstar a marcha da histo- ria, sob pena de cahir em grave erro. A historia tem dous momentos: o factum eo faciendum, 0 Werdende e 0 Gewordene. A fixidade do primeiro naioembaraga a mobilidade do segundo. Os espiritos illustrados sabem tomar nas azas 0 peso de ambos ; — nao assim as cabegas lacunosas, incompletas, que tudo observam sob um sé porto de vista. O catholicismo continou & ser a religido do reino, com todos os sens attributos, com todas as suas tendencias, ja manifestas ou ainda occultas. Era uma dellas a propensao para exagerar 0 sell principio ea forga de exageralo, chegar emfim? negacado de si mesmo. . Nao é aos jesuitas que cabe a gloria de fechat o cyclo catholico, supprimindo ou annexando dog: mas; — ella a ningnem pertence, porque © am facto natural, quero dizer, uma necessidade hist —-W— . 4bra o Sr. Herculano um pouco mais os olhos, rica. vie é uma estolidez atacar, por este modo, eve ia romana. Mas eis 0 que € espantoso : “ ere jesde a promulgacao da carta, Lem-se reali- sado gradualmente uma revolugao na igreja catho- | Com assombro da gente illustrada e sincera (2), 08 transformar em dogma uma superstic¢ao dos seculos de trevas, rendoso mealheiro de francis- canos, tinetura de pelagianismo, aproveitada hoje para aviary receilas na botica de S. Ignagjio, a im- maculada Conceigao de Maria, dogma que forgada- mente conduz, ov Aruina do christianismo pela pase, tornando inconcecivel a redempc¢ao, ou a dei- ficagao da malher,a mulher-Deus, a mulher redem- plora, recurso tremendo nas maos do jesuitismo, que lisongeando a paixao mais energica do sexo fragil, a vaidade, 0 converle em instramenlo seu para dilacerar e corromper a familia, e pela familia a sociedade. » Quasi paro de cangado em meio caminho; o periodo é horrivel. Valeo mesmo que um adagio musical de dez compassos yguaternarios, que se deva canlar de um sé folego. O germanista Daniel Sanders disse uma vez, e 4 propusito de um perio- do escripto por Adolpho Stahr, que sé vingar-se-hia do autor, condemnando-o 4 ler, elle mesmo, a sua enorine tirada. E” tambem o que merecia o Sr. Her- falano. E julgo dever perguntar aos seus discipu- balay eadores, se no acham aquella rama de listica Toe breve convincente da exemplar esti- sua Quanto ao fundo, ahi esta mais que patente a [roncisomnme ence. Aquelle vendoso mealheiro de aquella potion jae tinctura de pelagianismo ; escriptorial tae S- Ignacio, sio rasgos de gentileza Daravel, ene crepitagdes de um espirito incom- 40 chamado ments 4 observar que estes ataques doeno mente tanismo nao tem mais nem o pe- a novidade. Sao ideias que asse- Melham-ge a p . “M-Sé a roupa servida e fora do uso, da qual —-2~— somente os pobres e muito pobres se appropriam por esmola ou baratissima compra. > O Sr. Herculano apanhou a casaca velha do” defuncto Bordas-Dumoulin, e depois de passar-lhe a escova e pregar-Ihe botdes 4 portugneza, eil-g que sae 4 frente para combater a Immaculada Con. ceicdo, Ora!... por amor de Deus, arrede-se do caminho; — deixe-nos ir adiante. Isso qne quer dizer-nos sobre o penultimo dogina, tudo o que possa adguzir para justificar o seu espanto, ja foi dito e adduzido, ha 18 annos, pelo autor dos Essais sur la réforme catholique, de um modo vinte vezeg mais brilhante, — e todavia inutil. O que de certo nao se justifica, & a falta de co- herencia, quer dos sectarios, quer do chefe e pri- meiro pregador da ideia, pelo qual foi mesmo in- ventado o nome de marianismo. Repetlem a mulher. deus, a mulher redemptora, e entretanto admittem o homen deus, segunda pessoa da trindade, que morreu e resuscitou, Ndo acceitam a mulher-deus, mas adoram a divindade sob as especies de paoe vinho. Sera menos racional a Immaculada Conceicao de Maria, do que a transformagado operada pela magia do verbo sacerdotal, no sacrificio da missa ? Sea crenga aqui 6 indispensavel para a salvagio das almas, porque nao tambem alli? E’ uma exquisitice de mao gosto. Vv No que téca especialmente a infallihilidade, @ grande agitadora hodierna, — nao é menor a extta- vagancia dos catholicos que a combatem. Alem de ser um dogma, como yualqner outro, deve-se pon derar que nao foi uma estranha novidade, segund? quer parecer aos seus adversarios. No juizo que se forma de Pio IX, diz Bluntschl: —-B- pserva a distinccdo precisa entre o pro- ico e o proceder politico. Somente tee nao dquelle, é que se deuuma se Ol Peder ecclesiast em relagao & es modanca (8) a sua primeira encyclica de 9 de Beer de 1846, como a ouverture de uma opera Nove go seu desenvolvimento, ja annunciava a da idéa os que viriam assignalar o pontificado. serie de actos ¢! : vel tholici. 2 Nat ‘omo porton-se entao o velho catholicismo ? — Natus Coe Te ‘Acceitaram-se as premissas ; e agora se nretende negar as consequencias, que sahem logi- pamente dos principios admittidos ! "Estamos assistindo 4 um espectaculo! A ex- pr onaio émioha; 6 de Eduard von Hartmann: « Wohl selten war die Welt Zeuge eines wanderba- reren Schauspiels, als der gegenwartigen Bewegung der gebildeten Katholiken gegen die Unfehlbarkeit.» Ddllinger e seus consortes, Friedrich, Hanemberg e outros, nado podem escapar 4 censura dos espiri- tos livres e despreoccupados : — elles so pouco sinceros nessa lucta interna, que nao traz vantagem alguma, nem para a religido, nem para a sciencia. Convinha que livessem mais coragem, que fi- zessem valer em publico as suas conviegdes, taes quaes ellas se acham, radicalmente alteradas, em seu intimo; e nao, que pretendessem incutir o futil pretexto de reformas impossiveis. _, Dando conta do congresso velho-catholico, ha- mee em Colonia, 0 anno passado, e 4 respeito dos dees Dortadores da idéa, escreveu o presidente Diese Ma anten- Verein, que alli tambem estivera : issenchane sind den Bischdfen ohne Frage an rakter weit » an lebendigem Glauben und an Cha- veberiegen,.. a mane oridade na sciencia, pode-se ad mittir ; Se ao caracten ehensivel. Quanto porém a viva ',ndo 6 sem contestagao. Ao con- ee - '8) Die Cegenwart... 1812 — II, n, 24, pag. 4. 10 . NS trario, considero mais honroso, mais caracteristic, de uma fé vivace, 0 procedimento de um Scher ou de um Rauscher, do que o de um Déllinger, of de um Schulte. Aquelles estado com a logica, —'sio coherentes. A estes é que tudo falta, para Jastificay a sua altitude. O Dr. Schulte, de Praga, que ainda em 64, ha tao pouco tempo, es®revia para o Slaatswoerterbuch de Blantschli artigos ultramontanos sobre o papa ea Igrej@ catholica romana, vir agora, como pra. ticou-o no congresso referido, declarar que andava enganado !... é certamente uma cousa digna de re. . flexio. Admira que tao tarde fosse que viesse ag sabio professor alembranca de comparar a Alle- manha catholicacom a Allemanha protestante, e achar que esta se acha essencialmente melhor. Por mais que me esforce para apoderar-mne do sentido da revolugao projectada pelo neoprotestantismo dal: lingeriano, nao posso descobril-o. O Sr. Alexandre Herculano, de quem me ia es- quecendo por amor de outras figuras mais interes- santes, como que intimando o seu governo, dizo seguinte: « Na Allemanha, no paiz da forga e da vida moral, da sciencia e da consciencia, as auda- cias de Roma perturbam e concitam os animos, eo velho catholicismo arma-se para 0 combate. » - Esta junegao de seiencia e consciencia, motivada unicamente pelo gosto de_ uma phrase rythmica, involve uma falsidade. — E’ 0 paiz da sciencia, — sim; somente os tolos contestal-o-hao ; — mas igualmente nao 6 0 da consciencia. Sem referir-me ao mais, o proprio saber ainda alli se mostra incon- sciente do que elle vale e do que elle pode. A cultura alleman, asciencia alleman, come ella hoje nos espanta, s6 poude chegar ao conbecr mento de si mesma, 86 poude ter consciencla 0 seu destino e da sua alta significagio em homens, como Strauss, Uhlic, e raros outros. Se assim ne fosse, deixar-se hia actualmente de assistir a0 esp ctaculo, pouco edificante, de homens cultos, jeva _~BA- i POTEM seria justo ? Que diria & respeito o autor — 7% — tengao a eternidade ou a estabilidade das religide (10). Que juizo pois nao faria o illustre belag d um pretendido grande histuriador, ao qual ony dizer que a religiaio nado tem aperfeigoamento, é mutavel e eterna?! Entrego o Sr. Herculano ao julgamento austerg deste juiz competente, para quem os homens cultos que ainda se alimentam de umas migalhas de fé na eternidade do catholicismo, so verdadeiros sots ¢), cravate blanche. O portuguez é um delles. . En bem sei, quanto as phrases do Sr. Herculano agradaram, entre nds, aum certo liberalismo, que se delicia em medir forgas com os ultramontanos sobre os direitos da Igreja e dc Estado. Raros sio os que nao se julgam aptos para subirem 4 tribuna publica da imprensa, e dizerem o seu parecer a res- peito da questio. Infelizmente nada adiantam ; sao sempre as mesmas futilidades. Publicistas dilettantis, con- vidam-nos para ouvir as producgées originaes da sua musa; e eis que sdmente executam, na gaita de Tityro, magras variagGes sobre motivos de uma vulgar cantilena, decrepita e estragada. Nesta conjunctura, um escripto do celebre lit- terato, defendendo e sustentando as prerogativas do Estado, em relagao as pretencdes da Igrej devia nataralmente encontrar o maior apoio. Nao sei, porém, onde esta o grande interesse, que al- guem possa tirar, de por-se ao Jado de um ou de oulro dos dois combatentes. O autor de Nathan der Weise, que buscou alar- gar com a ideia de ampla liberdade o pensamento estreito da Igreja religtosa, tinha em mente escre ver um outro Nathan, para tambem impugnar os despropositos da Igreja politica, o Estado. vale a pena aqui citar um pedacinho do drama projé ctado, como lemol-o em Adolph Stabr. (41) isse im. (10) La Rétigion de UAvenir... pag. 22. (41) Weimar und Jena, Bertin, 1871. — Band II, 208. —Ti— Conversam dous individuos, A eB. — « Nao ° espanto, diz o primeiro, quando se usat + eve. Pa 16s temos mais frades do que sol- considera que ! 9 . dades “_. Queres dizer que ha mais soldados do rades. . que frade Nao |... ndo!... mais frades do que sol- dado — Causar espanto? Porque tambem nao jasmamos de que baja muito mais soRlados, do que frades? co Se o camponez vé a sua seara anniquilada por Jesmas e ratinhos, de que é que elle se espanta : de existirem mais lesmas do que ralos? Ou 6 de haver tantas lesmas e tantos ratos?- A. — Naéo comprehendo. B. — Porque nao queres comprehender. O que sio soldados ? A. — Os sollados so defensores do Estado. B. — Eos frades sao defensores da Igreja. A, — Vae-te d’ahi com a Lua Igreja. B. — Vae-te d’ahi com o teu Estado. A. — Estas sonhando? O Estado, o Estado | A felicidade que o Estado garante 4 cada um de seus membros nesta vida... __ B.— A bemaventuranea que a Igreja promette 4 todo homem no outro mundo... A. — Promette | B. — Pateta ! » “a ate’ soberbo ¢ magnifico de espirito ¢ ver- ade. Como Lessing, ha quasi um seculo, estava Mais adiantado que os liberaes de hoje! -- Deixe- Mol-os em paz. em Ter-me hia sido possivel, se o quizesse, criticar Mas atten y bas todo o volume do Sr. Herculano. na Earop, (a uma circumstancia: — nao estamos © critieg wy inero dizer, na Europa illustrada, onde com as Viste Panesumir 0 seu juizo, porque conta due 0 eseri S$ desprevenidas do leitor. Accresce pto mencionado foi um pretexto excel- — 7% — lente para dar sahida 4 certa ordem de ideias, qne sao ds minhas, no que respeita ds questdes da epo. cha. E por mais que ja tenha dito, nao me julaq dispensado de ainda entrar em uns ultimos detathes estimativos do escriptor, na sua totalidade litte. raria, Diz um jornalista de Berlin, que Victor Hugo produz presentemente a impressao de um velho tenor que perdeu a voz: a technica, a habilidade dos man@jos e attitudes scenicas, 6 a mesma: porém a guéla estragou se. > Sinto nao sei que desejo matigno de cotejar por este padrao 0 litterato de Lisboa. Verdade 6 que elle nunca teve boa garganta ; — mas pode compa- rar-se 4 um musico antigo que tocava garboso o sen violoncello, nas pequenas solemnidades da sua terra ; hoje porém, no meio de uma orchestra ju- venil, enthusiastica e ruidosa, @ apenas tolerado, uma vez que o nao obrignem a dizer algum sélo, porque entao o fiasco é infallivel. Quem quer que seja o futuro historiador da lit- teratura porlugueza, neste seculo, se for imparcial e consciente, ha de accusar a illegitimidade da as- censao e do supremo renome do Sr. Herculano. De feito, este escriptor que deve uma bda parte da sua auréola ao mao estado do seu paiz, pio deve menor quinhdo aos caprichos do destino, que nao se deixa comprehender nem explicar por méios re- gulares. A ignorancia do publico legente, por si 86, nao 6 sufficiente para dar inteira conta do pheno- meno. Aestrella da felicidade, mesmo através de uma certa nuvem que parece turvar a fronte do ho- mem, dilata-se, irradia-se até o fundo do seu pen- samento. ~ As vozes do tempo, no que téca as duas nagoes irmans, tem proclamado o Sr. Herculano um grande romancista, um grande historiador e, sobretudo, um grande estilista. . Eu deixo de lado o que respeita ao romance + limitando-me a observar que, nesse dominio mes Salers ta olhar mais penetrante e menos deslam- o dos pseudo criticos | porluguezes, ira veoprir, muita pobreza de imaginacao creadora, dese rta por uma nao-vulgar habilidade de execu- encobery porém nao quer dizer qne elle possna em oe scala todos os attributos da plastica poetica, arorma sempre bella’e harmoniosa, Nenhuma cousa 0 separa do epigonismo com- mum, salvo o dom particular, que ja nolei em prin- ci io. de saber franzir 0 sobr’olo e inp silencio ao auditorio. E’ este o grande segredo da sua in- fluencia e da sua autoridade. , Se o mister de escriptor publico 6 uma especie de magistratura social, 0 Sr. Herculano vem 4 ser win magistrado que nao da o menor despacho, sem primeiro vestir a tga talar, para infundir sabmissao erespeito. O tom de sua linguagem nunca 60 de um advogado que defende o direito desta ou da- quella idéa ; — porém sempre o de um juiz que de- cide, e nio admitte contestagao. mo, um prado que VI Tem-se deixado correr, como verdade intuitiva, que o digno autor 6 o modelo perfeito da estilistica Portugueza, — e creio yue elle mesmo é o mais convencido desta primazia Nao sei porém se se- melhante abusio tem forga de durar ainda longo lempo, ¢ resistir 4 uma analyse rigorosa. vel Uma cousa, pelo menos, me parece indubita- >» & OS proprios encomiastas nao poderdo negar: eo ge eulano éum escriptor parco de elegancia, Nos 3e bastante © prejudica, muitissimo desigual. entre o tea iptos ha uma desproporgao enorme doces ia é bome © que é mao, entre os periodos » Tegulares, affeigoados com arte, e 0s perio- ‘0 - s ae 8, oblongos, fatigantes. . uma pagina animada e gostosamente le- — so — givel, contam-se quarenta cheias de rudezas, que difficultam a viagem do leitor por terreno aridissi- mo e pedregoso, onde nao ha sequer uma gotta de de agua, que se possa beber. E d’aqui nao se de- duza que eu aprecio as larguezas, os desperdicios da imaginagao affectada e luxuosa. Opino contra- riamente. : Pouca impressao me causam espiritos levianos, que extremam a coquettice litteraria ao ponto de nado sahirem arua, qualquer que seja o motivo, sendo lod@s perfumados e uniformisados na grande gala da metaphora. O trajo domingueiro da phrase poetica, elles 0 estragam em diarios e inuteis pas- seios. Péde isto 4 outros parecer louvavel ;—quanto & mim, 6 uma extravagancta ridicula. Um bomem, como Peiletan, por exemplo, que nunca se pode a meza do jantar, mesmo o mais fru- gal e menos appetecivel, sem tomar a casaca e calgar as luvas, nao deixa de provocar algnma des- confianga do sen bom senso e do seu caracter. Ja sevéqueoSr. Herculanu ndo pertence a esta ca- thegoria. Se incorre em censura, 6 pelo extremo oppesto, quero dizer, pela escassez do colorido, pela auseucia daquellas qualidades, quedistinguem, entre nds, os mestres reconhecidos da estilistica franceza. Deste modo, se lhe falta a simplicidade natural e encantadora de um Thiers ; se lhe fallecem tam- bem as gragas austeras de um Guizot, muito menos coube-Ihe em partilha a poesia exhuberante de um Michelet. Eu desconhego qual seja oestilo typico. Ad- mitto com Scherer que ha lugar para todas as voca- codes e todos os estilos, sé tendo por limite o bom senso e 0 bom gosto, sem outras restricgdes, senao as que sao impostas pela razao e pelo interesse mesmo dos nossos guzos. Mas acho admiravel que se imponham como normas de lavor artistico as produccées de um escriptor, cujo pensamento é pouco rico e variado em seu fundo, e que trata de — i — occultar esta pobreza com singularidades ortho- graphicas e formulas archaizantes. Tenho como decisiva, contra as presumpcdes do Sr. Herculano e os applausos dos seus discipu- los, a seguinte observacao. Nas linguas cnltas de hoje, 0s melhores escriptores nao sao para o estran- geiro os mais difficeis de ler. E’ o contrario que se nota. Quem estuda um idioma estranho, — sirva de exemplo o allemao, ~- tendo 4 luctar, entge outros muitos, com 0 magno embarago provindo da copia de termos, admira-se de ver que 0 seu pequeno pe- culio de nogdes, adquirido nos exercicios e praticas grammaticaes, é quasi sufficiente para _traduzir uma pagina de Strauss, um pedago novellistico de Mugge,ou de Fanny Lewald, e, 0 que ainda mais ad- mira, até um Lied de Geibel. E sera pela razio de faltar 4 todos estes a qua- lidade de bons escriptores? Ninguem dil-o-hia. Mas agora imaginemos tambem um estrangeiro, um allemao mesmo, que pretenda aprender o por- tuguez. Depois de algum estudo, e de ja poder lér ‘no original, sem abrir muitas vezes o diccionario, os episodios mais interessantes dos Luziadas, eil-o que se encontra com 0 Eurico do Sr. Herculano, ou comasua Historia de Portugal. Nao 6 certo que esse estrangeiro tem de desesperar, diante das no- Vidades archaicas, das phrases mortas, resuscita- das, que esterilmente enriquecem a lingua do nosso autor? E 4 isto é que se chama escrever bem? Nao ha maior cegueira, E’ como historiador que oillustre litterato deve Ser, de preferencia, encarado. Ahi — dizem, — fundou elle a sua gloria. Os trabalhos anteriores se podem considerar como cane especie de gymnastica habilitadora dos mus- 08 que tinham de sopezar o montante de Affonso €nriques. Merece referir-se que o autor foi quem intro- MAF, — 8 — duzio em Portugal o romance historico, — este ge- nero decahido, ao qual entretanto muito deve a sciencia do moderno historiar. E’ sabido que A. Thierry, com a sua Historia da conquista da Inglaterra, nao sé em Franga, mas em toda a Europa, abrio caminho 4 um novo modo de escrever esta materia; assim como é notorio que afonte inspiradora do celebre francez outra nao foi, sende o Ivanhoe de W. Scott. Ora,g Sv. Herculano que tem a pretengio de ser em sua lerra 0 que foi e ainda é hoje reputado na Allemanha Leopoldo Ranke, chefe de escola, mestre insuperavel, teve a vantagem de ensaiar-se no romance e predispor-se dest’arte para ser um grande caracterista, um psychologo da alma na- cional, um vidente do passado, diante de quem os factos se reanimam, ¢ o enigma dos tempos deixa- se decifrar. Mas péde-se dizer que elle se assignala por estes predicades? De nenhum modo. Na apre- ciacéio dos meritos de um autor, 6 preciso separar o que elle deve 4 si proprio, 4 suas faculdades ge- niaes, daquillo que Jhe é dado pelo espirito da epo- cha e tendencias dominantes. O que ha, pois, de especialmente ngtavel na Historia de Portugal, que engrandeca e illumine, fora do commum, o vulto de seu autor? A expulsao do milagre? Seria curioso que neste seculo, e de- pois de tantos exemplos de indagagao liberrima, um escriptor leigo ainda nos viesse regalar com vi- sdes e apparigdes celestes | (412) Alem disto, julgo ser uma falta de coherencia banir, por um lado, o sobrenatural da tradicao, e por outro, conserva-io, no modo de encarar e (12) O milagre de Ourigne jA tinha sido expulso pelo alle- mao Gfeiariets Schafer, em sua Geschichte von Portugal bis swi Ausbruch der Revolution im Jahre 1820. Gotta — 1836 — 54 Sendo assim, o que resta para o Sr. Herculano ? — 8 — ehender a successao dos factos. Assim, nado compr Sn gant ve dace . . obstante o set intuito de arredar da historia o ele- mento theologico, o Sr. Hercnlano ainda é um velho pistoriador theologo. , , Lopes de Mendonga, que tinha em alto gréo o talento de escrever, porém nada mais sabia, do que aquillo que 6 bastante para ser em Portugal um ha- pil folhetinista, entrou, com a sua quota de pala- yreado, na formacdo do renome que cinge o nosso autor. Disse delle cousas brilhantes de exmgeragaio e desproposito, que podem actaalmente provocar 0 riso de leitores menos ingenuos. Aos olhos desse critico innocente, cujo ponto de vista lacunoso é ainda o que domina no Brazil, o patrio historiador tem todos os attributos neces- sarios ao mister. Entretanto, 6 para admirar que tao raros e quasi nullos, se manifestem na obra celebrada os distinctivos das grandes capacidades historicas do seculo. Debalde ahi buscar-se-hia alguma cousa de ana- logo e comparavel a caracteristica de Sylla, ou ade Cezar, em Mommsen; o que quer que, de longe ou de perto, seja semelhante ao retrato de Innocen- cio If, em Huter; ao de Luthero em Ranke; ao de Carnot, em Sybel. E tudo isto refere-se & ma- neira de escrever a historia; — que diriamos do modo de comprehendel-a, no qual esses autores empregam as largas intuicdes do seu talento, se- Cundadas pelo estudo de ontras sciencias ; — es- tudo que nao teve, que nao tem o Sr. Herecu- lano? plo 0 professor Juergen Bona Meyer, em um escri- che. a Newer Versuch einer Philosophie der Geschi- istoriea Se exprime: « O mister da escriptura historic diz Lazarus, é differente do da sciencia comtudo nos bode-se escrever bem historia, sem ‘esta concssuil-a. Aquella mantem se em relacado tanica’ On a arte do jardineiro em relagao a bo- logicas a otanista deve conhecer as leis physio- ° © mundo vegetal, ao passo que o jardi- — 4 neiro, sem esse conhecimento, pode exercer a sua arte com tacto de genio. Semelhantemente pode o escriptor de historia genialmente cumprir o mister artistico de narrar, nao obstante a falta de idéas scientificas ; — porém é sé por meio da nogao das leis, que a sua arte se eleva 4 altura de uma sciencia. » (43) Se esse exactissimo asserto carecesse ainda de uma prova, ninguem melhor dal-a-hia, do que o Sr. Hercalano. Elle 6 um simples jardineiro da his- toria, posto que, nao rara vez, destituido de tacto genial. Os portuguezes mostram ter immenso -orgulho do seu historiadur. Porque elles o consideram uma raridade litteraria, sem mais nem menos, jul- gam-se obrigados a altear 0 cothurno e engrossar as phrases laudativas, sempre que fallam no grande homem. Nao serei eu de certo quem negue-lhe 0 direito de adorarem submissos o seu actual prin- *cipe da penna, ao ponto de nao verem, acima delle, qualquer outra figura, nacional ou estrangeira, mais esplendida e mais admiravel. Quero crer que essa homenagem, um pouco radicada na ignorancia geral, nao deixa, todavia, de fazer alguma honra aos tributarios, bem que cégos e inconscientes. O que porém se me antolha, como um desproposito, é tomar-se o proprio fana- tismo por medida objectiva do merito de um autor compatriota, e dest’arte converter-se em uma das glorias de Portugal aquillo que é upenas gloria par- ticular do Sr. Herculano, se é que elle julga a pobre opiniio do seu paiz capaz de fortalecer e tranquillisar a consciencia de um escriptor. Nao basta aos sabios e litteratos, como se dé com os reis, a acclamagao, ainda unanime, de um povo, para assumirem a dignidade suprema. O di- (13 ) Historische Zeitschrift XU Jahrgang 2 Heft — 329. — 3 — yeito da repnblica das lettras 6 todo externo, inter- nacional, cosmopolitica, , Nao posso comprehender que o escriptor por- tuguez se tenha em alta conta scientifica, se faltam- jhe os fundamentos para um justo ¢ merecido or- ulho. OSr. Hercalano, qne nao é geralmente no- meado na Europa, que é mesmo desconhecido, ou entio, - 0 que parece-me peior, — pouco consi- derado pela parte mais culta da Allemanha, nao tem razoes bem fortes de ostentar-se ineperioso e gobranceiro. E’ difficil descobrir qual o sentido, que seus admiradores ligam ao conceitu de gloria litteraria de uma nagao OO renome do honrado historiador éum renome interno, e que nao passa além dos curtos e obscuros dominios da lingua portugueza. Ha uma especie de idolatria neste modo de endeu- sar um autor patrio, sobre quem nao se ha pronun- ciado em altima instancia o juizo estrangeiro, por meio dos seus mais competentes orgios. . A pretendida gloria de Portugal, na pessoa do Sr. Herculano, 6 um idolo fabricado pelos porta- guezes, os quaes veneram assim a obra de suas maos. Pode ser que exista de minha parte algum excesso de rigor, na ponderagao dos. reqnisitos, & meu vér, indispensaveis, para qualquer individuo, pelo que téca ds lettras, tornar-se de facto a gloria de um paiz. _ Como quer porém que seja,o certo 6 que a minha critica nfo esta sem base. Causa-me certa estranheza vér o autor portuguez, nao obstante o brilho extraordinario que o adorna em sua terra, de todo esquecido no mundo superior da sciencia Moderna, Parece-me singular e digno de nota, que auto- a allemaes, na epocha presente, e em artigos con- eaprados ao desenvolvimento historico de Portugal, th as suas diversas relacées, demonstrem nao co- cer os trabalhos do.Sr. Herculano, deixando de — 6 — mencional-os ao lado de outros, pertinentes ao as- sumpto. (14 ) Onde esta pois a nomeada européa, de aque tanto fallam os apologistas do illastre litterato ?... Nao fica ahi. Ainda ha bem ponco tempo, um sabio italiano compoz um livro notavel, que tem por titulo — La scienza della storia, e no qual o an- tor se occupa dos grandes historiadores, desde He- rodoto até os nossos dias. Especialmente, quanto ® (14) Vide Staatswoerterbuch de Bluntschli ; art. Portugal, por Schubert, tomo 8.9, 1864: art. Pombal por Beumgarten, idem: art. Inquisigdo por Dove, tomo5.°, 1860. Verdade é que ultimamente, em uma nova Revisla litleraria ingleza, New Quarterly Review, iniciada em Outubro deste anno, segundo publicou 0 Jornal do Commercio de Lisboa, sahio um Hi- songeiro artigo sobre o Sr Hereulano. Mas quer me parecer que © autor desse clogio no merece a consideracao de um critica im- parcial e julgaaor sincero. 0 louvor em demasia é um digno irmao da provu de mais: — desirée o que pretende construir. Dizer, como la se diz, que as quatidades dw historiador porluguez sio taes e tantas, que nao tinham-se encontrado em nenhum outro, depois de Gibbon, 60 cumulo do dislate. Antes de tudo, o crilico revela desconhecer a posicaéo que occupa o historiador inglez, como um dos patriarchas da sciencia historica moderna Os predicadys que o caracterisam sao superiores 4 sua epocha, porém ja esto aquem das exigencias do nosso tempo. Gibbon é do seculo passado; e todos sabemos, menos 0 autor do arligo, qual o progresso que tem a historia feito neste seculo. Se alguma cousa ha em Gibbon, qne possa ser cofimum ao Sr. Hercutano, é a intuigdo estreita e lacunosa, que um deve ao seu tempo, @ 0 outro, a falta de philosophia. Se em ambos alguma cousa brilha por sua ausencia, ude é de certo a rhetorica. Existe ainda no historiador inglez o singular defeito de uma pretenciosa artificialidade de estylo, que ja chocava os seus contemporaneos, como nol-o ensina Hermann Hettner ; — ... Und su diesen Man- geln tritt auch nicht selten eine anspruchsvolle Kunstlickkeit des Stits, tvelee selion die Zutgenossen verletsie. Neste ponto o portuguez 0 iguala. O escriptor da mencionada Revista foi infeliz em sua desco- berta. Quem tem coragem de affirmar que o Sr. Herculano ¢ talves no todo o primeiro historiador da presente epocha, nao ama a ver- dade, nem sabe respeitar a opiniao do seculo. Se nao 6 um elogio encommendado, 0 autor do tal artigo deve ser, ou muito caprichoso ou muito ignorante. ~ 37 — modernos, apreciando-os, segundo as vistas de aumeo modo de escrever e entender a histo- Marselli abre diversas cathegorias em que entram Cantu, Thiers, Gervinus, Mommsen, Macau- lay, Michelet, Laurent... oo Como se pode explicar que o sabio italiano passasse em silencio o sabio portuguez? a Nao se trala de um representante do espirito ermanico; — & um orgao do espirito latino, a quem, por sympathia de raga e de cultura a gran- deza do Sr. Herculano nao podéra ser extranha, se de feito ella existisse. A mencao que fiz de Marselli, impde-me o dever de nao calar o qne disse um escriptor 4 respeito do citado livro. (13) Nao deixando de notar certas jJacunas, cuja ausencia tornal-o-hia ainda mais in- teressante e merecedor de seria leitura, esse escri- ptor se exprime por um modo, que provoca a refle- xao e di logar 4 novas duvidas, mesmo em relacao ao nosso historiador. « Medida pela bitéla da sciencia italiana, — diz elle, — a obra é significativa ; considerada porém do ponto de vista da sciencia alleman, apenas se eleva 4 cima do mediocre... mit dem Masstabe ita- lienischer Wissenschaft ist das Werk ein bedeuten- des, vom Standpunkte der deutschen Wissenschaft aus letrachtet, erhebt es sich dageged kaum_ ueber das Mittelmaessige. » E’ claro que, na mente doescriptor, existe uma medida suprema, com que se determina a_impor- tancia absoluta de qualquer obra: é a scienciaalle- man. Nao basta que um escripto se recommende belo grande applauso que possa ter colhido em o Paiz d’onde elle é oriundo; faz-se mistér saber se esté ao nivel das idéas correntes, se pode ser con- aos cad ria, ee (15) A. Seartazzini; — Magazin fur die Litteratur des Aus« londes, — 4873 n, M1, pag. 005 i ON — 88 — frontado com as obras de igual forma e contetido filhas da Allemanha. , Sera preciso dizer que semelhante criterig - mata as pretencdes do Sr. Herculano? De feito, 6 impossivel consideral-o sobre outro ponto de vista, que nao o da sciencia moderna, qual vemol-a entre as maos dos maiores espiritos do seculo. Sobre ser elle o unico historiador pcrtuguez da actuali- dade, e nao haver no seu paiz uma bitdla scientifica, por onde,se 0 compare, accresce a circumstancia, muitissimo ponderave], de que o honrado escriptor mesmo julga se capaz de receber essa medida, e olha com sobranceria para as migalhas litterarias de sua terra. Ora, nao ha duvida que, assim estabelecido o juize da critica, o Sr. Herculano diminue_sensivel- mente de tamanho. As suas obras nao sao pheno- menos animados de alta sciencia e largas intuicdes, que tenham sahido ainda mais fortes, altivos e triumphantes, da juta pela vida, sustentada com outras apparigdes da especie. Em uma ilha isolada, cujos habitantes nunca tivessem visto, por toda a sua fauna, senio lebres e doninhas, o primeiro cervo que ahi se mostrasse, nao causaria espanto, como um enorme e ferocissi- mo animal? Eis a imagem do que se da no terreno da litteratura portugueza, com os livros do Sr. Her- culano. Podemos concluir. O digno escriptom mais nada tema dar-nos, Esta fechado o cyclo da sua missao, que alias nado deixou de ser proveitosa para asuagente. Ja é possiveel, sobre elle, um juizo definitivo. E como quer que sejulgue, deve ficar assentado, que o Sr. Herculano é um original. Mas ha originaes de duas formas ; uns que sao-no, por- ue querem, outros que o sao, porque devem sel-o. is primeiros so producto da arte, os segundos da natureza. Com aquelles, por mais serios que se mostrem, podemos sempre tomar a nossa parte de gracejo & — 9 — divertimento ; visto como, Ad i es seus esforgus para se apresentatom greed ooo a yeis, nado Conseguem occaltaro lado risivel da a sivel da mit sua singularidade Estes, puré . gi 7 . » porém. a par . cousa esdruxala e falsa, deixam vér ee (pita OS Si- naes da forga e natural fre ee u escura de uma vide mente original. O Sr. Herenlano pottenee aaah. a pri- meira classe. Julho e Dezembro de 1873. ° 42 F. 88 Auerbach e V. Hugo (1) A’ muitos dos meus leitores ha de afigurar-se um pouco estranha e caprichosa a junccéo destes dous nomes. Tanto tem de conhecido e justamente apreciado, entre nés, ogrande poeta francez, quanto & por todos ignorado, como quem se acha fora do circulo habitual.das nossas contemplagées, além do Nosso horisonte, o novellista allemao. Nao sei se posso dizel-o impune: — eu sou talvez o primeiro que aqui profere conscientemente —_——- Ta ‘1) Wieder unser -- Gedenkblactter zur Geschichte dieser “49e5 von Berthold Auerbach. — 1871. onome de Auerbach. {2) Esta prioridade, que tambem me cube, sobre outros escriptores alle. maes, desconhecidos e inexistentes até para os op. gaos mais autorisados uz litteratura brazileira, nag quero disputal-a, como cousa capaz de me elevar na opinido do paiz, e dar por conseguinte saboroso pasto 4 minha vaidade. Ao contrario me parece que, se ha nesta alle. gagao alguma vista de gloria, 6 somente a que con. siste em geclarar-me unico calpado, e precaver em tempo a responsabilidade atheia. Confesso pois o meu crime, que mais nav é, do que tratar sem res- peito as lettras patrias, considerando as em misero e pessimo estado, para dirigir o men espirito 4 regides superiores, posto que traga sempre, de volta, cada vez mais reforcada a conviccao da nossa nul- lidade. E’ istoem mim talvez j4 o resultado de uma doenga. Nao affirmo que a minha intuigdo seja nor- mal e estreme de gnalquer influencia morbida. Sinto nao poder prestar-me 4 observacdo do doutor Puschmann, 0 ousado psychiatra, para verificar se estou soffrendo de uma especie de ictericia intelle- ctual, que me faz dar & todas as cousas de minha terra um aspecto melancholico e, por assim dizer, a cér do anniquilamento, a pallidez da morte. Todavia nado se julgue que descreio da _possibi- lidade e efficacia de uma reaccao contra a tenden- cia que nos vae levando. Ou seja, porque afnda illu- de-me um resto de adolescencia credula e descui- dosa ;— ou seja, porque pressinto, nao obstante, 0 céo carregado, a proxima limpidez da athmosphera; — ocerto 6 que nao posso resignar-me 4 achar, (2) Assim me exprimindo, nao desconheco as doze linhas! que em seu Resumo de Historia litleraria the consagra o conego ‘inhciro ; as quaes de certo pouco adiantam, e deixam o leitor em completa tguorancia de qual seja realmente o merito do escriptor allemaio. E’ presumivel, pelo que diz, que o illustre conego nunca leu as producgées de Auerbach. —~ 93 — pom tudo o que € nosso, e sé porque 6 nosso; — nem comprimir, como mao e anti patriotico, co de- sejo de vér a mocidade conterranea, animada do espirito do tempo, deixar a 16ta batida, e seguir melhor caminho. Espero que, mais tarde, ahi che- yemos. Barratt tanto é para lastimar que ainda sejamos hoje, em materia litteraria, 0 que eramos, ha qua- renta annos, isto 6, uma nagao impotente, balda de iniciativa. sem a minima seiva de _prod@ctividade original. E bem que para mim a ideia de littera- turatenha mais extensao, do que é costume suppor, ni quero aqui referir-me 4 nossa vida espiritual, em sua totalidade ; mas somente ao districto da poesia, ao dominio da belletristica. Sob este unico pontu de vista mesmo, os factos dao testemunho de uma notavel pobreza, e tanto mais humilhante, quanto menos percebida, porque ella ndo penetrou na consciencia de tod6s, em forma de desgosto e de vergonha, ou outro senti- mento de igual forga reactivae instigadora. A pre- sumpcao geral, € que vamos em demanda de um porvir maravilhoso, e que o nivel da nossa intelli- gencia nao é inferior au das nagdes mais cultas da actualidade... Seria um curioso estudo a indagacao das causas que determinaram este modo singuler de procla- mar-se grande e fazer-se a propria apologia. A nin- guem € permittido ser comsigo mesmo mais indul- gente, do que o publico. Verdade, quanto aos in- dividuos, que persiste igualmente irrefragavel, quanto as nagdes. Ora, estas s6 podem ter, como Seu publico os estrangeiros, — que formam, se- Sundo uma expressio de Stael, a posteridade con- lemporanea, : nose preciso que elles se pronunciem acerca do bossa merito, e de uma maneira accorde, para que Conta oe Conforme 0 bom juizo, ter-nos em alta menos A importancia litteraria de um paiz, nao OS que a importancia commercial e politica, — 4% esta bastante ligada as suas relagdes internacionaes, S6 ha uma differenca: — é que a litteratara nao se presta 4 manejos diplomaticos de preitos calculados @ fingidas cortezias. (3 ) Em vao buscar-se-ha encobrir a miseria que nos acabrunha, colorindo a triste realidade com phrases ensopadas de exageracio e desproposito. Pode uma certa apparencia de grandeza encher ao longe as vistas do observador que nos olha, mas 4 medida qwe elle se approxima, dissipa-se a illusao, e tomamos feigdes bem triviaes. Duas causas, sobretudo, tem concorrido para embacar a nossa consciencia, ao ponto de suppor- nos muito grandes e muito celebres: 0 contacto de Portugal e a preponderancia absoluta do espi- rito francez. Nao tendo diante de nds um termo de comparagao mais natural, do que o velho reino, de quem somos dignos herdeiros, bitolamo-nos por elle, e sorrimos de contentes ;— miramo-nos nesse espelho e achamo-nos bonitos. Por outro lado, obedecendo, desde longa data, a direccao fatal das lettras francezas, chegamos ao estado lastimavel de nao admittir outras ideias, nao imaginar mesmo que existam, se nao as que im- portamos de Paris. E neste ponto, nada mais ca- racteristico do que o seguinte facto: — o eclypse da Franea, que foi visivel para todo o mando, inclu- sive os habitantes menos obcecados do astro ob- scurecido, nav.o foi para nés de igual maneiry | Taes sao as nossas relagdes de latitude e longi- tude, na esphera scientifica e litteraria, que a grande nagao, da qual sabemos admirar e imitar somente us defeitos, nao perdeu aos nossos olhos, (3) Temos um brilhante exemplo do pouco que aproveita & diplomacia nas leltras, em o conhecido livro do anstriaco Wolf 5 -- livro escripto sob as vistas e mediante a inspiracia do Sr. Gon- calves de Magalhies. 0 que nessa obra o autor ousou dizer da influencia benefica do imperador sobre a nossa litteratura, é sufli- cieute para caracterisal-a. — 5 ~ nem um sé instante, o esplendor de outr’ora ; con- tinuando 4 manter as suas pretengdes de mestra universal, com a sua glorieuse Révolution, la Révo- lution frangaise d jamais mémorable, com todo 0 seu thesouro de vicios insignes, multiplicados por uma yaidade sem limites. Depois da ultima guerra, e em face do novo movimento que ella deu 4 historia da humanidade, até o Japao sentio os effeitos da mutagao européa, esoube que a cultura alleman 6 hoje indispensavel em todos os lugares onde existam semerfes do fu- turo. O Brazil, eu creio que sé elle, — parece que nao sabe disso. Porquanto, ao passo que por outras partes, 0 germanismo se apossa de todas as cabe- cas avidas de luz, sob as formas grandiosas da sciencia e da critica vigentes, seu influxo ainda nao se fez aqui sentir; — ainda permanecemos em 0 antigo terreno de fatua presumpcao e surda igno- rancia. Como que para mostrar-nos reconhecidos e gratos, pelo que a Franga tem de seu, na formacao da meia cultura que possuimos, augmentando a nossa psychologia de certos sentimentos e aptitu- des, alias pouco aproveitaveis, nao queremos, nado deixamos que a Allemanha nos invada. _ Quem quer que pretendesse impugnar a exacti- do destes assertos, ver-se-hia embaracado, por nao poder dar provas em contrario. Além de ser ma- nifesta a tendencia anti-germanica do povo, é sobre- modo significativo 0 accordo em que, neste sentido, esté o governo com a chamada opiniao publica. ___ Dest’arte, ha pouco tempo, e jana phase histo- rica aberta pela guerra, tivemos uma reforma do e€nsino superior. Nao era de esperar, como cousa yarnral e@ adequada 4s_circumstancias, que 0 go- a 0 Se lembrasse de introduzir a lingua alleman mM 0 nosso systhema de instruccdo preparatoria ? Dio Tenho pejo de dizel-o, mas é verdade que isso Se 7passou-lhe pela mente. Continua-se a pensar, undo o molde francez,— como se nada houvesse — 96 — acontecido, como se entre o satellite e o seu pla- neta, por uma maravilha, nao se tivesse interposto “osol!— Nenhuma ideia, nenhuma aspiragao de procedencia diversa veivo ainda produzir qualquer novo successo, no districto litterario. Augmenta-se a gravidade desta anomalia, quando se pondera que o Rio de Janeiro, onde a alma nacional tem para funccionar os seus orgaos mais notaveis ;— na barba do imperador, supposto illustradissimo, que, andando pela Europa, devia ter preseritiado e sentido a transformagao do espi- rito geral,—é mesmo assim, guardada a proporeao, © ponto mais estranho ou mais hostil 4 cultura al- leman. Causa pena ainconsciencia, com que os escri- ptores fluminenses exhibem diariamente a sua ve- lthice, em relagdo 4s questdes do tempo. Nao fal- lando de politica, onde os mais adiantados conti- nuam aviver no periodo romantico do liberalismo francez, escutando, atravez de meio seculo, os ora- culos constitucionaes do autor de Adolphe, a intui- cao litteraria dominante é estreita e lacunosa. Alli impéra o que ha de menos allemAo, isto 6, a retho- rica, em toga a sua forga :— a produceao do effeito pela phrase. | As ultimas conquistas da critica germanica, nos diversos ramos do saber humano, sao alli de todo ignoradas. Gomoa Franga de Luiz XIV, se- gundo diz Buckle, nao contava seis pessoas, dadas ds lettras ou as sciencias, que soubessem a lingua ingleza, o Brazil bem pode mencionar esta outra semelhante gloria ; — 6 dubitavel que haja presen- temente no imperio seis individuos capazes de lavrar um parecer exacto e consciencioso, no que toca 4 vida espiritual da Allemanha. E a cérte 6 quem projecta maior sombra no campo da resis- tencia 4 qualquer invasdo do germanismo. Seria, porém, grave erro juigar que esta atti- tude tomada pela maioria dos belletristas, 6 um acto de clara consciencia, praticada com todo o ~— Wo sito ou demerito que elle encerra. i pent repos um pouco de candara pue- Nesse Pr’ velhos estio convencidos que além do rif, Mogos ste nao ha mais céo azn, nem astros de oo existem néyoas ; — e que a sciencia hus toda contida nos livros que elles mane- es por certu nado saio da melhor tem- — SI ouro, , _ mana esta jam 5-08 qua pera, digno de nota que 0 nosso francezismo. nao se epraiza na justa admiragao dos homen®eminen- tes que possue aquelle paiz. Sao escriptores e pen- sadores de ordem inferior, os que imperam a esta hora, como dez ou vinte annos atraz. Assim, al- guns litterafos que nunca leram Augusto Comte, e ignoram a data do seu nascimento eda sua morte ; que nado conhecem Littré , —~ que sio mesmo in- capazes de fazer a historia do desenvolvimento scientifico de um Guizot, — em contraposicao, sa- bem ao certo, quem € Feuillet, quem 6 Sardou, quem é Dumas filho, quem 6 Feydau. As obras destes sao devoradas com gula pelos intelligentes do dia ; — e escorre-lhes da hocca o mel dulcissimo. (4) Nao fica ahi. Na darwinica ., (4) 0 acaso da mnidio dos dois ultimos nomes ¢ feliz e@ apro- Yeilavel. Ernesto Feydau é o autor de um livro sobre a Allemanha, Co Bo qual se mai a insensatez do prezado romancista, de uma maneira espanti Entre os varios di adverso, & notabilissi a lesproposilos que affirma, a respeito do povo uma pintun Mo o seguinte : 1.° que os allemaes nao tem home tora, nem uma archilectura nacional ; 2.0 que nao tom 0 philoss ho nS a0 muito podem citar_o astronnmo, Kepler e hem com, ea eibnitz, os quaes d veras nao deshonram seu paiz, oqual, diz aint, qne pode passar entre os philosophos, e Holbein, umibotilt, in ee 1 em Augsburgo ; - e@ mais Guilherme de Botar que Holhe e ainda, o autor do Kosmos! Ova, deixando de 6 autor do Kowal Xlo a0 mundo em Basiléa, yuem nao sabe que Posto que cnn “08 cha ava-se Alexandre? Eisahi por conseguinte, hossos puin SSUMplo pequenino, uma prova do que yalem os —~ 7 () VAtlemague en 1871. — 9 — . lucta pela vida, entre a Franca e a Allemanha, o Brazil nao sabe, nem sequer pressente a grandeza dos resultados. O nosso ponto de vista 60 mesmo dos dias de Bérauger, que cantava em sua guitarra: Ne prenons dé nos voisins, ~ Que leurs femmes et leurs vins. Eis aqui mais um singularissimo exemplo. Quel nao fez timbre de repellir as ideias alle- mans, e trata de observar a sua evolugao, deve ter noticia do movimento enorme produzido por um jivro do doutor Strauss, — Der alte und der neue Glaube. O1a bem: ao passo que, entre nés, velhos 6 mocos, escriptores e lettrados, com todo 0 nosso infatuamento e pretengao de cultura, essa obra nao era apreciada, quasi ao mesmo tempo, o ridiculo Homme-femme de Dumas punha em agitacao mais de um espirito, sobretudo no Rio de Janeiro !... Para isto, nao ha resposta séria. O leitor deve ter comprehendido a necessidade que me forga a direccdes curvilineas, quando me occupo de assumptos, por qualquer modo, ligados ao que nos diz respeito. i Podemos agora entrar mais bem prepgrados no objecto deste artigo, O Dumas filho arrojou-se, ha pouco, a escrever um prefacio singular, em uma nova traduccao do Faust, feita por M. Bacharach. Disse horrores sobre Goethe e a Allemanha em geral, mostrando- so tambem, como o autor de Fanny, leviano e desponderado. Fallando das mulheres que, segundo seu pensar, se langam 10s bracos dos homens celebres, alm de chegarem & posteridade, embora deshonradas por elles, o bom Dumas se exprime deste modo: — Taes foram as Bettinas, as Brentanos, as Guicciolis... » E deixa-se assim prender em flagrante delicto de frivolidade, ou’ estolidez 11 A Bettina e a Brentano 6 uma mesma pessoa. Que juiz es- clarecido para uma traduceio do Faust ! Se isto é pouco, em re lagiio a maiores disparates que se lém nas 98 paginas do prolog® citado, nao deixa todavia de ser interessante e significativo, como demonstragio do nosso mav estado, quando julgamos que uu tal autor é digno de acatamento. ~—~ 9 — Il Berthold Auerbach € na Allemanha o orgao ais activo, sendo oO mais robusto da litteratura ms ular, Elle tem actualmente a idade de sessenta e dous annos. E’ natural de Wuertemberg, e pro- cede de um tronco israelita. . Qs seus primeiros estudos foram faitos com destino 4 theologia: — porém, sentindo que nao tinba vocagao para o mister, obedeceu a tendencia que lhe aconselhava outro caminho. oo Dirigindo-se a Tuebinge, alli tentou ao principio asciencia do direito; mas em seguida, entregou-se aos estudos philosophicos, nos quaes foi iniciado por David Strauss ; ouvindo mais tarde Schelling, em Munich, e Daub, em Heidelberg. Nao exerceu menor influencia sobre seu espirito o grande Schlos- ser. Elle frequentou as preleccdes historicas deste mestre. Por haver tomado parte, em 1835, naquella camaradagem conhecida pelo nome de Burschens- chaft, e que occupa uma pagina importante na mo- derna historia alleman, teve Auerbach de expiar, com alguns mezes de prisio, essa pequena impru- dencia. Depois de 38, viveu em varios lugares, demo- rando-se mais tempo em Francfort, Breslau e Dresde. Reside hoje em Berlin. (5) regres nado pretendo tracgar uma biographia em ching’ diccionarios de conversagao e outras ma- me ot semelhantes de sciencia universal poupam- 0 cacrtbalho de estender-me nos detalhes da vida as stag tor bem como na conta'exacta de todas obras. —_———. baci) Isto dizia-se em 1873; nove annos depois falleceu Auer- » — 100 — Basta-me dar a saber que 0 celebre israelita, além das producgdes do genero, em o qual desco: brio novas riquezas, tratou tambem de tm ptos, -tm ponco mais graves, que estao acima do nivel habitual da novellistica. Assim. é digno de mengao um livro interessante — "Das Judenthum und die neueste Litteratur, — cujo contetido é a demonstra. cao do muito que o jndaismo, por sua influencia e por seu concurso, tem prestado as lettras modernas, Ainda um outro que se intitula — Spinoza ; — ein historischer Roman, — pode & descoberto o vasto fundo philosophice do autor. Ahi descreve a lucta da razao contra as velhas superstigdes, 0 con- flicto da livre indagacgio com os prejuizos heredita- rios, com os ferrenhos apertos das _relacdes politi- cas, sociaes e religiosas. O retrato do philosopho é magistral, e contribue, nao ponco, para arredar as sombras, em que as brutaes maldicGes da igno- rancia poderam involver a figura de Spinoza. Entretanto é sobretudo como novellista que Auerbach se faz recommendavel. A Franga actual, que nao obstante as ameagas de uma bancarrota litteraria, ainda se acastella na proteccao de alguns espiritos creadores, nao tem, na especie, o que possa oppor ao poeta da Floresta Negra. (6) D’ahi talvez provenha para nés outros, externa e interna- mente vestidos 4 franceza, certa difficuldade de aprecial o e comprehendeLo. Segundo o titulo mesmo o indica, elle hanrio na vida rustica e popular dos conterrangos a essen- cia de suas narrativas. E’ verdade que |he prece- deram Immermann e Alberto Bitzius (Jeremias Gotthelf)}, mas foi sé por virtude das suas primei- ras Dorfgeschichten, que surgio um grande numero de escriptores, a tratar de iguaes assumplos e alar- gar esse dominio da litteratura. Schwarswaelder Dorfgeschichien... & 0 nome dado a di- ries de suas novellas. — 401 -— Nao é aqui o Ingar proprio de estabelecer com- aragdes entre Auerbach e os que tomaram, antes ou depois delle, amesma direcgdo. Bem que muito interessante, a consa seria um pouco sem proposito. Deixemol a de parte. | 0 assumpto capital de nosso entretenimento nao é mesmo uma apreciagao das pegas do volume referido, em sua totalidade; — é apenas a ligeira analyse de uma resposta do novellista ao poeta das Contemplagées sobre os negocios da guery. Como eu, sabe o leitor que V Hugo. durante o fatal periodo, julgou se com direito de escrever, em tom autoritario e tonitruoso, encyelicas pontificias ao povo allemao, ao rei Guilherme e 4 nao sei quem mais. Deve tambem saber que esses manifestos de um espirito estragado e meio enfermo provoca- ram na imprensa da Allemanha replicas e parodias humilhantes. Longe de mim a idéa de accusar os parodistas de lesa-magestade contra o principe da moderna poesia da raga latina; mas acho razoavel oque diz 4 tal respeito Julian Schmidt: — houve demasia ; — o velho poeta nao foi tratado com do- cura. (7) Tanto mais digno de aprego me parece o escri- pto de Auerbach, onde o serio mesmo da lingua- gem nao enfraquece, antes augmenta, a_impressao comica produzida pelo palavreado de Hugo, sem que, por outro lado, se Ihe possa descobrir um ceitil de menuscaho votado ao venerando visionario. Quero crer que melhor refutagio nao podiam en- Contrar, em termos graves e comedidos, as preten- 0es burlescas da vaidade franceza. Facilmente se deixa comprehender que nao bertengo 4 classe dos insensatos, de que falla Joh- ‘nes Scherr; — os quaes 4 todo transe,e 4 des- Peito de tudo, julgam sempre vér em Gambetta ee pag, Ghd Bilder aus dem ageistingen Leben unserer Zeit ~ 1871 5 — 102 — um homem de Estado, e em V. Hugo um prophe. ta. Nao obstante, é minha opiniado queo desvairadg poeta do Année terrible, — com tudas as suas extra. vagancias, e mesmo ppr causa dellas, presta-se mais 4 ser nm objecto de estudo, do que um motivo de divertimento, Como quer que se engrandeca ou se‘diminua a medida de seu merito, Y. Hugo encerra e constitue, aos meusgthos, um dos mais difficeis problemas psychologicos. Um homem de alta cultura, 4 quem nao tem faltado as mais duras experiencias da vida; — um espirito avezado as grandes luctas, que nao poucas ligdes ha recebido na escola do soffrimento; — sem embargo dos seus cabellos brancos, ainda permanecer, comonma creanga, na quadra das illu- sdes, em que se nao distingue a poesia da realidade, habitando um palacio de chimeras, d’onde pretende impor silencio ao mundo inteiro... com effeito, este phenomeno precisa de sonda scientifica, e deve ad- _ mittir alguma explicagao, mais adeqnada 4 impor- tancia do individuo e 4 propria dignidade do espi- vito humano. Que V. Hugo toma ao sério a sua rhetorica, as suas fortes imagens, como um idolatra o pedago de madeira, por elle mesmo aberto e afeigoado em guiza de divindade, 6 um facto indubitavel. O procedimento do poeta nao da logar, neste ponto, a duas opinides. Elle brinca com as pala- vras; — delicia-sé no jogo das antitheses ; — mas ha sinceridade em sua phraseolatria. ~ Disse elle uma vez: « Palermo tem o Etna, — Paris, o pensamento... Tres raios se contém no ideial : 0 verdadeiro, 0 grande, 0 bello. De Jérusalem radia a verdade, de Athenas a belleza, de Roma @ vandeza,.. Pariséa somma destas tres cidades, 9 ogarithmo de tres Civilisagdes, reduzidas 4 uma § (8) Die Gegenwart. — 1873 — n. 44 —~ pag. 279. — 103 — formula. Paris, a cidade da Tevelacao revoluciona- ria, 6a Jerusalém da humanidade. » Nao ha nisto um mero luxo de palavras sem yeflexdo, e portanto sem convicgao? Era uma in- juria assim julgal-o. OU poeta sente o que elle diz. Tres annos depois, na hora extrema das agonias da patria, eil-o que Corre ao meio do perigo, para tirar a prova d’aquella somma de ideiaes, que infe- lizmente sahio errada ; — eil-o que vda & proclamar e fazer valer, até Com sacrificio, com risco%e sangue e vida, a realidade da metaphora } Ainda aqui parece me acertada a opinido de Schmidt, que alias néo mostra ter ao poeta bas- tante synpathia. « Nao ¢ uma atella que, ao proclamar-se a republica, o anciado va pressuroso para a cidade querida, ameagada de um terrivel as- sedio. Em todo caso, elle é um outro homem, que nao o misero Girardin, o qual tendo por muito tempo, temeraria e cynicamente, insuflady a guerra, fugio covarde, logo que a cousa tornou-se séria. » No mesmo pé de reconhecimento e devido preito as innegaveis qualidades de Hugo, mantém- se 0 nosso autor em seu mencionado escripto. (9). Nao sao por isto menos rigorosos os juizos que elle febrime, quanto aos dislates chauvinisticos do velha rancez. A resposta do allemiio traz a data de 16 de Se- tembro de 1870. Napoledio estava preso ;— V. Hugo anes voltado @ Franga; mas nao «com a tiber- ey. lita Oucamos a linguagem drastica do nobre israe- «Eanio posso presuppor, comeca elle, que vi 9 7 i i ne tenhaes lido algamas palavras singelas que di- sl aos meus compatriotas, logo em principio da Presente lucta. ~~ ™ (9) Wieder . nog . den Pranzozen’ ier: pag. 150,— Antwort eines Deutschen an ~~ 104 — Tem sido sempre assim. Os allemaes nunea deixamos de tomar em alta consideragao 0 que diz respeito aos francezes ; — estes porém nao tem jamais querido conhecer a disposig¢éo de nosgo espirito, nem na paz, nem na guerra... » ~ E’ inquestionavel a justiga desta arguigao, Pondo de parte o que pertence a politica, salta aos olhos que, no dominio scientifico e litterario, og francezes, ou desdenhavam, ou ignoravam o verda- deiro estétlo de progresso da Allemanha. A philo- sophia mesma, pelo orgao do seu mais popular representante, além dos nomes de Kant, Fichte, Schelling e Hegel, nenhum outro mais sabia, nado obstante o grande numero de philosophos cuévos, ainda hoje, na maior parte, existentes, que alli entao ja se distinguiam. Victor Cousin, que se gloriava de ser em sua terra, o iniciador da philosophia kantesca, foi gaem aseu modo, mais concorreu para formar se de Kant esua escola uma idéa inadequada ¢ mesquinha. Em tempos mais proximos, mesmo no correr do derra- deiro decennio, Paulo Janet aventurou-se a dar-nos sobre o materialismo na Allemanha, uma obra ver- gonhosa, pela frivolidade e ignorancia que encerra. Nada porém existe de mais significativo, neste sentido, do que o livro de Guizot — Méditations sur Vétat actuel de la réligion chrétienne. Q autor parece desconhecer o que havia além do Rheno. A Franga é 0 centro do mundo philosophico. Os varius sys- themas qne elle examina, Como que, na sua mente, sé tem orgados e sectarios francezes. & influencia da critica germanica, n’aquella epocha (4866) ja, como vemol a, lao crescida e adiantada, elle simula ignorar que é um dos factores do movimento sujeilo a sua analyse. Seria engrandecer demasiado este quadro, allegar todos os dados que conspiram para por fora de duvida a assercao de Auerbach, quer em sua generalidade, quer limitada, como limitamol a, 20 districto litterario, Mas devo ainda estabelece? — 105 — um facto :— a lyrica alleman dos ultimos cincoenta annos, que conta muito mais de uma centena de oetas consideraveis, — rica de sentimento, pro- fandamente inspirada, nao era apercebida, no meio do torvellinho vertiginoso da sobre-humana vida parisiense. wos Nao admira que nés outros, brazileiros e por- tuguezes, unidos em um sé grupo de infimos disci- pulos da Franga, ainda nao saibamos, nem se quer us nomes dos melhores lyristas actuaes dm terra de Goathe, quando a maioria dos nossos mestres, desde a revolugao de Julho até pouco antes mesmo de romper a lucta fatal, quasi que limitou-se ao conhe- cimento de um unico: — Heinrich Heine. Este que teve a dita de morrer, sem passar pelo desgosto de testemunhar 0 cerco de Lutecia, e a victoria da sua gente, cousas inconcebiveis, dignas talvez de escarninho riso aos seus olhos de judeu_rancoroso ehomem pouco sizudo, é tambem, ao lado do autor do Faust, quem apenas merece algum respeito, Taes sa0 as novas idéas, tal é o novo criterio empregado pela Revue des deux mondes e os demais orgaos da sciencia e lettras francezas, para se retra- tarem dos antigos preitos as glorias allemans ! Nesse trabalho de desdizimento, Goethe e Heine sao utili- sados, por certas expressdes que se acham em seus escriptos, bem que agora deslocadas, todavia favo- raveis aos vencidos. Eis o motivo de se abrir uma excepcao para elles.” E’ tempo de voltar ao nosso objecto. « Appellaes para nés, falla Auerbach, como Sendo um povo de pensadores. Crédes sem duvida fe altamente nos lisongeaniys com semelhante ever. Vés vos enganaes. Nao 6 em vossa van- Bae que appellaes para o nosso pensamento. Ste destrée, antes de tudo, o poder da phrase. cont, ése Vossos compatriotas viraes de preferencia ra Napoledo o vosso despeito. tvra tereis porém saber, qual é o mais pernicioso “Tanno dos francezes? E’ a phrase. — 106 — Napoleio mesmo foi eleito, porque seu nome era uma phrase, e elle dominou por meio della...» , Para nao subscrever estas verdades, 6 preciso que se queira affectar um catonismo especifico, . pelo qual se tomao lado da causa vencida, somente com o fim de oppor-se aos deuses, que abracaram a causa vencedora. Infelizmente, nado é6séa Franca | quem deve a maior parte dos seus males a tyrannia ~ da phrase. Deseyvolveu-se 0 contagio assolador, e chegoustambem até nds. Povo, patria, liberdade ; — Brazil heroico, Brazil gigante, invencivel colosso d’ America... — outros tantos flatus vocis, que nos tem feito andar as tontas ; — outros tantos verbos mysticos, ba ldos de sentido, que sé entram no dis- curso na qualidade de interjeigdes, porque sao su- jeilos sem predicado, como o sujeito — Deus — ou 0 sujeito — Nada. Creio mesmo que, nesta phraseomania, vamos um passo adi ante do proprio paiz que nol-a inspirou. Pelo menos, a Franga teve, por muito tempo, quem a lisongeasse, quem lhe pozesse ante o rosto um falso espelho, que a transfigurava. Foi o mundo inteiro.... Mas nds, o que € que tivemos? Quem ja nos disse que eramos grandes e notaveis? Entretanto a cada instante, estamos clamando e gesticulando, para tornar sensivel a nossa perso- nalidade, como nacdo poderosa. [f’ irrisorio ! O palavreado nos esterilisa. As nossas luctas, mesmo as mais serias, sio todas logomachicas. Basta, por amor do exemplo, mentionar um facto da ordem politica. O liberalismo brazileiro, ha boa porcao de annos, tem gasto a sei¥a, tem colhido sem proveito, bastante poeira olympica, no empe- - nho de realisar um chiste, um bon mot de Thiers: > Le roi régne, il ne gouverne pas. O nosso homem do povo acredita cegamente nas palavras fortes do salmo 90, que sendo repetidas e trazidas ao pescogo com toda fé, isto 6, com toda aignorancia do seu sentido, podem salval-o de quaesquer perigos. — 107 — / Qs nossos estadistas néo depositam menos confianga nas palavras fortes do art. 98 da consti- tuigao, do qual depende, segundo a maneira de yesal 0, a felicidade do paiz, Assim, a phrase em politica, a phrase em religiao, a phrase em littera- tura;... eis abi a nossa perdigao. Quem nos curara de semelhante lepra? Continuemos: « Vés, Sr. V. Hugo, gritaes-nos que fagamos alto, porque Paris¥é a praga inviolavel da gevelacdo do espirito humano,.. Ja é em si um contrasenso encadeiar 0 espirito a um logar determinado. Qual- quer aldeia que tem sua escola, na qual sio ensi- nadas as leis do amor do proximo, nao é menos santae inviolavel do que Paris. A grandeza nao con- siste na accumulacaéio da forga, mas na pureza e profuudidade do pensamento. Perguntae 4 vés mesmo: — se tivessem triumphado as armas fran- cezas, como ter-se hia procedido? Os allemaes nao temos uma cidade que seja a concentragao do nosso espirito. Regosijamo-nos disso. Porém demos que aos soldados francezes victoriosos, 4 esses soldades civilisados, uma vez triumphantes, se ti- vesse bradado: -- esbarrae diante de Witemberg, a cidade de Luthero; — diante de Berlim, a cidade de Humboldt; — diante de Konigsberg, a cidade de Kant; — diante de Weimar, a cidade de Goethe, Schiller, Herder; diante de Brunswich, a cidade de Lessing... vés e vossos compstriotas tereis de certo achado esse brado bem ridiculo. » Que dirdo sobre isto $s fanaticos partidarios da revanche? Mas, eis aqui o que é soberho e bri- Ihante de exactidao e justiga. « Sr. Victor Hugo! Os francezes tem até hoje repellido de sia escola coactiva. _ © Oespirito mais alto, que dirige e determina a historia dos povos, faz agora pezar sobre a Franca 0 ensino obrigatorio. Ella deve aprender a cultivar seu Proprio ser, no aperfeigoamento de si mesma, © no amor a verdade, sem querer por debaixo de ~~? — 108 — tutella o seu visinho. Deve reconhecer que, ao lado della, ainda existem povus cultos, e que somente elles, em sua totalidade, constituem a grande ma. nifestacdo do espirito humano. » Mais 0 seguinte: — « Nés queriamos viver em paz com 0 povo francez Mas 0 demonio da vaidade, do desejo de dominar, de sobresahir 4. todos og outros, — o qual ainda presentemente vos esta ten. tando, — provocon a guerra, langou a morte e a desolacaig,em vosso *paiz, e no meio da victoria trouxe tambem a tristeza para nés, que perdemos milhares de ‘nossos irmaos, e vemos destruido 0° nosso trabalho pacifico, espiritual e material. » Aqui julgo apropriado langar uma lhigeira ob- servagio. A vaidade franceza, incontestavelmente, éculpada de muitos desatinos. Resta-nos entre- tanto o direito de indagar, se a culpa é toda sna, ou nella tambem tem parte os outros povos que, por tanto tempo, alimentaram essa vaidade, com os seus applausos, e até com a sua subserviencia. E’ evidente que quasi todos concorreram para leval- a ao estado de furioso orgulho, em que vemos hoje debater-se impotente a veneranda nacgao. Os pro- prios allemades prestaram do melhor e abriram largo campo as pretences exaggeradas dos seus inquie- tos visinhos. Ainda hoje, nao sei se pelo receio do chauvinis- mo, que tratam de esconjurar, ou se somente pelo gosto de se collocarem, com jos francezes, em esta- do de polaridade, praticando oO contrario do que elles praticam, os allemfes/naio dizem toda a ver- dade. E’ singular que parecam render culto a certos homens que de facto o ndo merecem, sé para nao incorrerem no labéu de adversarios injustos e ca- prichosos. Isto pode ser honroso; mas é inutil;— nao traz vantagem alguima, nem para uns, nem para outros. Dest’arte nao posso deixar de admirar-me. quando vejo um eseriptor, como Trauttwein von Belle, considerar o importuno Caro, — que ellé ( — 109 — esmo qualifica de theosopho,— ao lado dos padres m ary € Perraud, uma grandeza saliente entre os Gr pares eatholicos francezes da epocha hodier- na e preciso nao ter lido os escriptos philosophi- cos desse espirilo, yue se distingue, antes de tudo, gegundo nol-o informa Nerée Qnepat, por um joli coup de fourchette, para achar que Ihe é cabivel a honra outhorgada pelo eseriptor tedesco. Muitos reitos semelhantes se encontram a cada gasso 50s quaes de certu farn os-hiam duvidar da sinceridade dos que assim procedem, se nao vissemos que um motivo superiom de briosa imparcialidade, ainda que exaggerada, inspira.e preside a esse modo de obrar. Prestes & feixar a sua resposta, diz Auerbach: —« A vés como escriptor, seja me permittido ainda ponderar uma particularidade. A guerra, de vosso lado, 6 prosaica, esteril de cantos {liedios ). Sem fallar de alguns cynicos vaudevilles, vossos solda- dos nao tem um bymno. Ao principio quizeram entoar a Marseillaise; porém sentiram logo que ella se convertia em mentira e irrisio. De vosso lado nado poude surgir um desses canticos, porque Vos falta o impulso ethico. Com o nosso exercito, porém, no acampamento e em marcha, esté o genio do Lied, na disposigao, na confianca do bom direi- to, na cholera contra a iniquidade, e na intimidade da reconciliagao. Prestae attengdo 4 este signal: — vés deveis comprehendal-d. » Com effeito 6 para estranhar que nao tivesse a ote provocado no espirito da Franga aquellas cao de Poeticas, tau communs nas horas de agita- © um patriotismo profundo e@ consciencioso. union ts como menos venturosa, teve a contar amente o — Année térrible; este amalgama ee - vag polagezin fuer die Literatur der Auslandes— 1873 n. 36 — 110 —- cahético de rara luz e immensas trevas, ~ do qual disse 0 critico francez, Louis Ratisbonne:—« Entre todas as catastrophes deste terrivel auno, deve-se tambem numerar esta desgraga 3 no melo dos des; tinos da epocha horrorosa, tambem se deve incluir este livro. » A musica mais feliz, limitou-se ao gemebundo threno da Gallia, de Gounod. Sou incompetente para affirmar, ou negar, com fundamento, as qua- lidades dgssa producedo; mas acho-a, pelo que sinto, incapaz de operar o effeito esthetico visado por sen autor. Diz, entretanto, o Dr. Weideman «Uma eloquente prova. de quao profanda- inente a exaltagao patriotica abalara a alma allema, manifestousse nas creacdes poeticas e musicaes, que appareceram n’aquelles dias. E’ proprio dos allemaes expandir em Lieds e cantos tudo que toca ao intimo do coragao, como ja mostrou-se na guerra dos sete annos e na de 1813; ~—- assim tam- bem agora, o enthusiasmo patriotico exprimio-se em uma quantidade de poemas e melodias que nasceram das impressdes politicas predominantes na consciencia do povo,e fortemente reagiram sobre ella. » (11) E’ claro por conseguinte quea musa germanica avantajou-se 4 musa franceza. Todas as produc- cdes, que entdéo surgiram, nfo siio ao certo de um igual valor; — mas todas se distinguem por uma nobre moderacdo e nada menos encerram do que orgulho chawvinistico e i Bos Sobresae, neste sentido, o celebre Lied de Bodenstedt, segundo a musica de Jacobi: Hal! Franzozen, Franzozen, den Tag habt in Acht! (11) Der deutsch-fransoesische Krieg 1870-1871, pag. 2! — 1 — Nao sei se do que eu digo, podendo concluir aquillo em que nao penso, alguem se capacita que haja em mim um fanatismo cego, intolerante, ex- clusivo, em prol da Allemanha, e contra a sua he- roica, mas infeliz rival!... Seria um erro. Dezembro de 1873. , TV e } o Socialismo em litteratura Causa-me horror a ideia de uma lgquidagdo social; mas eu concebo e afago a ideia de uma ligut- dagéo litteravia. As Qoutrinas socialistas combatem o predominio do capital sobre o trabalho. Dizem hoje: —a propriedade é furto, — para dizerem amanhan talvez: — o furto 6 propriedade. « O so- cialismo é a lucta contra a lucta pela existencia », -~ JA disse alguem, que melhor o conhece: e eu faco numero entre os subscriptores dessa verdade. _ Oinstituto da Internacional é para mim a orga- nisagdo da loucura. Porém ideo alguma cousa de analogo, que alias nao ha mister de recorrer ao ferro e ao fogo; que alias nio se aparenta com a communa de Paris; uma especie de Internacional em litteratura, Nem soffre duvida que esta con- Cepcado 6 capaz de um largo desenvolvimento. Nos paizes atrazados e, —o que ainda é peior— Sem Consciencia do seu atrazo, — ao lado do capi- tal economico, mal adquirido e ocioso, que subjuga Pn tbalho do brago, avulta am outro, nado menos b Portuno, que faz frente e pde obstaculos ao tra- alho da cabega. app “Spiritos mediocres que tiveram a ventura de Parecer 4 hora propria, poderam facilmente con- 15 F. — Us — seguir uma reputagao intellectual, acima do sey merito e dos seus esforcos. De dia em dia augmen.- tando e capitalisando esse renome indebito, fructa do commercio com a ignorancia geral, chegaram emfim ao ponto de immobilisar, por assim dizer, na pessoa delles, todas as honras’ litterarias, ¢ tornal-as para outros de uma quasi impossivel acyuisigao. Ahi chegados, o seu trabalho é viver- de nada mais necessitam, porque a reputacio esta feita, e eftes entram 4 comer dos juros. Esta lingoagem, pedida ao mundo das relacies economicas, nao é pura allegoria. Ella exprime uma ordem real de factos similares, que sé por este modo se deixam comprehender. Como se entre nds o symbolo da intelligencia niio seja uma ave, d quem a natureza deu por me- nagem a infinitude dos céos, porém algum quadru- pede, que nio consente um outro vir beber na mesma fonte, nem dormir na mesma gruta, a gloria intellectual € territorio occupado. Ora bem: — nao haveria um meio de acabar com esta desordem? §’ a questio que trato de ventilar. Tmaginemos uma associacaio de espiritos cultos e independentes, unidos entre si pela attracgdo da luz commum, pelo unico principio da,justiga e da verdade... Imaginemos, sim, uma como organisagdo da critica, uma nova Internacional, repartida pelo mundo, tendo na §Hémanhaa sua séde. FE na Alle- manha, sem duvida, néo por causa de Karl Marxe Behel, mas por amor dos Lindau ou dos Frenzel, dos Zarncke ou dos Schmidt. Assim constituida, o fim da-sociedade seria passar em revista os titulos dos renomes litterarios, gue se inventam nos paizes — de cullura pouco adiantada. i Pois que em sciencia e em lettras nao ha direl- tos adquiridos ; pois que nao ha prescripgao para & critica, e a todo tempo se péde mostrar que é ruim aquillo que tem valido por bom, era facil instaural se o processo da liquidagdo. — di — ‘Todas as obras frivelas, que tem firmado a re- patacao de certos Vultos em Portugal e Brasil, seriam submettidas 4 prova de fogo da analyse im- arcial dos homens competentes. Os escriptos que se publicassem, deveriam logo enviar-se ao centro do movimento, para por-lhe o respectivo — placet— ouo respectivo — ndo presta, — A semelhbanca da congregacaio do indice, a nossa sociedade langaria tambem o sea anathema contra os livros que se mostrassem eivados, nao de heresias, gorém de ignorancias. o. Dest’arte, a face ao mundo inteiro, e sem abalos de ordem alguma, poriamos fogo no castello feudal de um Alexandre Herculanu ; deitariamos por terra a villa senhoril deum José de Alencar, lantos outros infatuados de uma nomeada toda local, que chamarei de primeira instancia, sempre dependente da decisio suprema. O merito, s6 o merito real, sem manejos diplo- maticos e ridiculas mystificagdes, havia de appare- cer e conquistar as homenagens publicas. Eu sei que esta minba ideia nado é de natureza 4 suscitar partidarios. O precosceito geral do alto grao de intelligencia e illustragao attribuido 4 uma centena de espiritos nossos, prohibe e pune até com odesdem antecipado qualquer tentamen, em sen- tido opposto. No Brasil se comprehende que mova-se questio Sobre a pessoa e sobre a utilidade de um imperante, # quem alids os reis dos outros Estados nao se de- “ignam de dar o nome de irmao. Mas é cousa quasi 'Nconcebivel que se conteste o predicado de publi- cunet um Zacarias, ou dum Pimenta Bueno, gue ‘ eseonnee os Bluntschli, os Gneist, os Mohl de todo didatan ecem; e rir-se-hiam por certo da sua can- litien ra ao lugar de representantes da sciencia po- 8 Xe Brasil se comprehende que o republicano, viedag crata social possam dizer: — Estado e so- © precisam ser abalados até as raizes ; — do — 16 — que temos, nada serve , — 6 mister que nos erga mos contra as tradigdes recebidas, que mudemog o curso da historia.— Porém nao se tolera que, critico_se arroje 4 por em duvida o talento ea jn, strucgao de alguns bemaventurados, aos quaes Su. mente a forga das circumstancias e 0 atrazo do Daiz fizeram conferir a honra de notabilidades. ° Nao se admitte que qualquer espirito emangj. pado dos prejuizos correntes tambern possa dizer : — carec@nos de reforma, no dominio das letras: acabemos com esta idolatria, com esta adoragio fe. tichica tributada 4 livros e autores brasileiros, que sao mesquinhos, que nada valem. Este modo de fallar 6 geralmente considerado um crime de leso-patriolismo. Dé provas, pelo menos, de pessimista austero e intolerante, quem nao canta em prosa e verso as quotidianas glo- rias da patria; quem nao vé em cada apparicao litteraria ou scientifica, no Brasil. um phenomeno & hombrear com os melhores da Europa. O typo, a incarnacao perfeita do brasileiro em regra, isto €, do brasileomaniaco, do chauvinista estolido e inconsciente, 6 um, como o bacharel Pessanha Povoa, que tem coragem de proclamar Carlos Gomes o archi-componista. e Pedro Ame- rico o archi-pintor do mundo actual}... (1) Tudo o que nao se dirige’ a glorificacéo das nossas miserias, é repellido como heterodoxo. Por minha parte, acceito cordialmente a irroga- cdo da pécha de pessimista. E’ um defeito, de que me lisongeio. O pessimismo sincero, o pessimismo convictu. 6 de uma influencia benefica sobre a vida. sobre a cabega e até sobre o coragaio do homem. (1) Bem quizera nao conspurcar esta pagina com a cilagi0 d misera brochurinha Heroes da arte do supramencionado Pessanht que escreveu e publicou-a em Lisboa; sendo dedicada ao allust ‘o Sr. Porto Alegre. Mas é preciso vencer a repugnancia, ¢ fal a nasse producto, que eu considero um symptoma pathologic® espirito brasileira. — UT Sem elle, nenhum jrogresso, nenhuma con- ane m elle, nenhum grande intuito, nenhuma agpiragao elevada. A ide1a pessimistica é uma ideia de primeira ordem, um principio dirigente da civi- ligacdo hodierna Abrago, neste ponto, a opiniao de Taubert. (2) . . E tenho para mim que do optimismo da nossa gente, ou da ausencia de ideial, — o que 6a mesma ecousa, ~ provém a maioria dos malesycom que Juctamos. . Quando o pessimista, como eu declaro sel-o, em seus somentos de contemplativo enlevo, sus- pita e diz, se elle prefere a sciencia: — quem me déra ser Strauss !...; ou entao, se a politica 60 seu alvo: — quem me déra ser Bismarck !... 0 optimis- ta, qual é geralmente todo o mogo brasileiro, chega apenas 4exclamar: ... oh! se eu fosse um juris- consulto como o doutor Braz Florentino !...; ah! se eu fosse um estadista, como o Visconde do Rio Branco Isto é horrivel ; porém é a verdade. Imagine-se que nobres commettimentos podem ter, que esperancgas podem despertar espiritos ras- teiros, que deste modo revelam nao possuirem, se- quer, o talento de desejar o alto, de aspirar 0 gran- dioso! D’ahi o nosso estacionamento, e a nossa invisibilidade para as espheras superiores. Disseram uma vez em Paris que o Brasil, por Causa da escravidao, devia ser condemnado 4 uma especie de bloqueio moral. O certo é que, desde o erco, a sorte o condemnon a um bloqueio intelle ctual. As principaes correntes da litteratura do seculo 19 passaram-Ihe muito longe. A Sciencia, a philosophia alleman, que vaio por ram a parte inundando € fecundando, nao chega- 0 sen conhecimento. Ainda hoje, 4 esta hora 1 : : mesina, elle vive e se alimenta da migalha franceza. ~ loda ‘ - Dpeajn on - ygra 2) Der Pessimismus und seine Gegner, Berlin 1873. . Oo" — M8 ~ Os homens que, por descuido, se tem tido entre nés na conta de illustrados, sio em regra inimigos decididos da cultura germanica: o que vale dizer que sao ignorantes, incapazes de produzir cousa qualquer, que possa aproveitar. Sou rigoroso; — demasiado, talvez. Ha mister destes rigores, Poderei andar errado nas minhas apreciacdes do estado intellectual da nossa terra:— nao o conteste. Mas é 0 caso de dizer com Jacob Grimm: — Man muss auch den Muth des Fehlens haben —.. deve-se ter a coragem do erro. Eu sinto- me com ella. Quem me dera, porém, que realmente houvesse erro da minha parte ! —- Na historia da vida espiritual do vigente seculo nés brilhamos pela ausencia; porem de um brilho triste, nao semelhante ao que Tacito, 0 creador da insigne expressao, attribuio 4 Bruto e Cassio, pre- cisamente porque nao se viam as suas effigies, ao lado de outras, nos funeraes de Junia. Ndo basta asseverar que nunea tivemos, — ainda hoje nao temos um sé homem, que escreva para o mundo culto, um homem, cuja cabega tenha maior ambito, do queo estreito horisonte da propria nacionalidade. « E’ um mesquinho ideial, — disse Schiller, — escrever somente para uma nagao; um: espirito philosophico acha esta limitagaio absolutamente in- supportavel... » Oideial do escriptor/brasileiro é quasi sempre um ideial brasileiro. ‘Ao Anuito, pode chegar o arrojo de algum mais ambicioso, 4 por em Portugal a sua mira, a fazer delle o alvo’ das suas conquistas. Um elogio, uma ligeira mengio do Cas- tilho, ou do Herculano, — estes dois fallidos litte- rarios, que ainda se julgam com credito para ga- rantir estranhas firmas, — 6 0 cumulo da gloria. Nao ba quem sinta a necessidade de olhar por cima dos muros da prisio, em que definhamos. Emparedados no prejuizo burlesco de valermos muito, de nao termos queinvejar as grandes nacoes, vivemos de todo alheios ao movimento geral da in- telligencia moderna, considerada em suas alturas. ~ 119 — Ese é verdade o que diz Ruediger, que cada jagao deve ter um merito permanente para com a " ymanidade, sob pena de ser arrastada pela cor= ante da historia, pois ellas sé se conservam, qaando roduzem desi mesmas, em qualquer das direcgdes da aclividade humana, alguma cousa de excellente, que possa valer como modelo, fora dos limiies na- cianaes (3) ; se tudo isto ¢ verdadeiro, ha motivos de receio pelo futuro do Brasil. , , Os patriotas in og/laat sem duvida a&sta serie de ponderagdes. Ku oglastimo ; e prosigo em minha franqueza, Ainda é6/tempo de arredar o mal que nos ameaga. Tomemos outro caminho. Quebre- mos as tagas em que atéhoje saboreamos as mephi- ticas docuras da civilisacao franceza ;—e volvamo- nos paraa Allemanha. No dominio das ideias, no que toca 4 necessidade de umareforma intellectual, é0 que nos pode salvar. A critica inexoravel, a critica aniquilante, deve ser a nossa palavra de ordem. No estado em que jazemos, assenta-nos de alto 4 baixo o que disse uma vez da sua terra Massimo d’Azeglio: Italia 6 fatta, ma gli [taliani non ancora son fatti. Tambem nésnioestamos feitos. Sem exaggeragio, sem pathos rhetorico: o espirito brasileiro, em mais de metade, plonge dans la brute. A candidatura do Brasil aos. f6ros de nacdio culta é um phenomeno morbido :—alguma cousa de Semelhante ao disparate dos loucos, que se julgam rels. Que cultura se concebe para um povo, cuja religido, cuja politica sio puramente mechanicas ? F que religido, e@ que politica pode haver em um paiz, onde a philosophia é nulla, onde a arte é nulla, onde a sciencla é nulla ?— Bis ahi tudo. Novembro de 1874. 3) Zeitschrift fuer Woelkerpsychologie... IIT, pag. 127. V Uma excursao de dilettante pelo dominio da sciencia biblica (4) De ordinario imagina-se 0 povo de Israel como um phenomeno estranho, como um corpo deslo- cado da massa total da hamanidade. Assim obede- cendo a uma forca particular, f6ra do alcance das forgas geraes, e tendo tido, — sé elle —, 0 direito de chamar se o escolhido, no meio de outros privi- ‘legios, teve tambem o privilegio da desgraga. E’ am modo, este, de pensar, que nao acceito nem combato. Ha nelle apprehensdes de crengas religiosas, cujos motivos intimos escapam a juris- diego da logica. (1) 1. Geschichte des Volkes Israel... von Ewald I—Urschrift und Uebersetzungen der Bibel.. von Dr. Abraham Geiger. Tl. Doctrines réligieuses des Juifs pendant les deux siécles antérieurs & ere chrétienne... par Michel Nicolas. 16F — 122 — O rancor outr’ora votado 4 veneranda gente israelita, e ainda mal extinclto em coragdes fanati- cos, é um rasgo de barbaria, que ha de sempre en- vergonhar a civilisagéo accidental. Por minha parte, confesso-me possuido de um sentimento di- verso. Sem pretender inquirir os principios e os fins, mas estudando os factos, simplesmente como taes, ereio poder erguer-me acitua dos prejuizos corren- tes. Na §ilta de outras razdes mais fortes, bastaria observar que a desdita impressa na fronte de um grande povo, nao é menos respeitavel, que a des- ventura escripta na fronte deum grande homem. O genio que em ambos elles tem a mesma divisa. deve attrahir para ambos o mesmo grdo desolemne sympathia. E’ pouco exacto gue os judeus, na idade média da sua historia, fossem avéssos a qualquer sorte de especulacdo. O que se chama periodo mosaico, isto é, o tempo decorrido desde Moysés até o capti- veiro de Babylonia, acobérta em sua sombra innu- meras questdes. Se as leis que dirigem o espirito humano, sao por toda a parte as mesmas, é natural que o povo de Israel deixasse occultas no fundo de seu passado riquezas que hoje apenas comecam a entrever-se. Nao sei se por forga da theoria que faz da raga aryannaa predilecta de Deus, em materia de intel- ligencia, os hebreus, na qualidade de semitas, foram tidos geralmente como incapazes de attingir um estado superior de cultura. E convém reco- nhecer que, até certo ponto, os! factos justificam esta vista incompleta. { Os annaes da vellia gente s&0 pobres de indica- gdes relativas ao puro dominio das ideias; nelles nado se encontram vivos signaes’de um profundo trabalho de reflexio. Mas & mesmo do modo, um pouco ligeiro, de apreciar esse phenomeno taro, que provém o erro e a injustic¢a, nu julgamento lit- terario da familia de Jacob. — 123 — Nao ignoro que é inutil procurar, nos tempos . anteriores & fandagao da monarchia, o rastro lnmi- noso de sério progresso mental. Deixo de parte o que toca i Moysés. Para envolvel-v no assumpto que nos occupa, seria mister uma previa discussao sobre essa nobre individualidade. Basta-me dar, como sabido, que’Moysés foi am revetador. D’onde er que viesse a sua inspiragao, a sua ideia diri- gente, o certo é qué ella sustenlon uma Jncta secn- lar com os habitos'do povo. E que seria feito da obra mosaica, setio proprio seio daquella grei semi-barbara nao surgissem outras cabecas igualmente elevadas? Eu creio na lei da seleccao natural do genio. Sem isso, ndo me parece explicavel, por meios humanos, o nascer e o crescer das religides. Foi sob 0 imperio desta lei fecunda, que poderam, depois de Moysés, appare- cer homens extraordinarios, capazes de secundal-o e proseguir na tarefa iniciada. Samuel é o maior e mais completo exemplo. Nao obstante o pegueno risco de provocar algu- ma contradiccdo, pode se dizer affoutamente que elle foi quem melhor comprehendeu o estado moral da familia israelita. O propheta do Sinai era um genio ideialista. Fundar uma nagao conquistadora e poderosa, sob o governo anico de Deus, sem outro principio de solidariedade, se nao a divina lei commum, era um problema quasi insoluvel. Uma leitura mais attenciosa da historia dos Juizes broduz a convicgao de quanto foram frustradas, neste sentido, as vistas do legislador. _ Israel, & verdade, por suas victorias, e mais ainda, por suas derrotas, tinha sabido provar que a theocracia mosaica era uma escola de herdes. Ha Notavel, todavia, que as tribus assentadas na terra de Canaam, nio formavam um corpo compacto. Sensivel naquelles tempos a falta de cohesdo e coma geter nacional. Como principio de unidade, Sa 9 forca assimiladora de elementos contrarios, Muel instituio a realeza humana. — 1% — Cumpre aqui nao esquecer um facto impor. tante. Sabe-se que a Biblia da testemunho da oppo. sicao do ultimo juiz 4 vontade do povo que lhe Pedia um rei. (1). Entretanto as cousas deveram passar. se de um modo diverso. O autor da narrativa, como em geral os escriptores de entéo, era um propheta um livre espirito da epocha dos reis. Em seu maj dissimulado rancor 4 monarchia, elle nao poude imprimir-Ihe mais profundo estygma, do que pin. tandoea repellida e execrada pela bocca do proprio vidente he tinha ungido o primeiro monarcha,. FE’ um phenomeno historico, digno de reflexaa: — 60 primelro eo mais solemne protesto da liber- dade contra o dominio regio, lavrado ha cerca de trinta seculos, no livro de um grande povo, Note-se ainda : — nao éeste o unico facto que demonstra, nas paginas sagradas, semelhantes sen- timentos de autores desconhecidos. Os cinco alti- mos capitulos do Livro dos Juizes offerecem uma prova irrecusavel. O escriptor mostra ter uma in- tengado directa de ferir a realeza. De outro modo nao se explica a insistencia nas seguintes phrases, que se léem mais de uma vez: « Naquelles tempos, nao havia rei em Israel, e cada um praticava o que Ihe parecia justo. » (2) De bom grado affirmaria que este narrador 60 mesmo da historia de Samuel, relativa 4 creacdo de um rei. Observo que os successos alli mencio- nados maculavam, sobretudo, a tribu de Benjamin. Ora, Saul era dessa tribu. Juntando a isto a bypo- these plausivel de ter o escriptor vivido, quando ja existiam os dois reinos, e pertencido ao do norte, a explicagao é verosimil. Concebe-se de prompto, que o autor anonymo podesse invectivar uma das tribus que foram fieis a dynastia de David, e que devia, além disto, pa- (1) Samuel — VIN, 4-22 ;— X, 18; — XII, 7-20. (2) Juizes XVM, 6; -~ XVIUL, 1; — XX, 24. ~ 155 — recer odiosa, por della ter sahido o primeiro sobe- rand. . i. ~ ~ Seja como for, 0 certo & que Samuel nao se oppoz aquella mudanga de forma governamental, Ao contrario, foi elle mesmo quem teve uma intui- pao mais larga do que sé era capaz de engrandecer © povo, em face dos oatros povos que buscavam comprimil-o. O propheta nao se enganou. Coma fundagao do novo governo, Israel adquirio a forca ne Ihe faltava. ° Pouco importa que Saul tivesse, depois, incor- rido no desagrado publico. A instituicao tinha sido efficaz, e o seu fim comecara & ser attingido. Esta epocha da historia de Israel, 6 sobremodo notavel, porque nella se levanta um phenomeno estupendo eunico em seu genero. Quero fallar da co-existen- cia dessas duas forgas que derramam, por seus comhates, na vida historica dos judeus, tao drama- tico interesse : — a realeza e 0 prophetismo. ir E’ sabido que, desde o tempo dos juizes, a parte incorruptivel, o que podera-se chamar o ele- mento divino da sdciedade hebréa, estava concen- tradaem um pequeno numero de espiritos auste- Tos. Recolhidos ao seio da solidao, elles surgiam as vezes, como larvas da consciencia religiosa, para virem abater ou animar as esperancas do povo. de Taes foram os primeiros prophetas. Entroua Senvolver-se esta forma de instituigao moral; e ros dias do ultimo jaiz, ja existi . a 0 jaiz, ja existia uma grande esco- la de videntes, Nae 8 forme tnprehende-se porintuigao que o velho re- corde con suscitando a realeza, devia estar de ac- que tude yes ideias dominantes. O que entao, mais tto para interessava ao prophetismo, era um cen- '@ onde gravitassem todas as tribus de Israel. — 1296 — Deste modo, se julgava poder melhor var 0 deposito sagrado da lei divina, ere uma forga capaz de repellir, pela gaerra, a cia deleteria das nagoes estrangeiras. Nao conhego nada de mais significative em § especie, do que a _lenda desse mo¢o israelita na Consey. ‘ANdO-se influen. sae atraz de umas burras desgarradas, e, em ‘ok dellas, encontra um reino que Ihe 6 dado, Nem posso deixar de capacitar-me que, na mente do escriptow, essas burras eram as tribus. 0 apologo 6 transparente. Ese podesse haver escrupulo em admittir a comparagéo, por baixa e pouco digna. bastaria oppor uni outro documento biblico. "Na canto popular da bengado de Jacob, Isachar é desi. gnado como um asno forte. (3) Poucos factos parecem mais desmentir as ideias vulgares sobre a natureza do prophetismo, do que as relacdes sabidas entre Saul e Samuel. Pensar que este fizera semelhante escolha, nio obstante a previsdo dos futuros desatinos regios, é tel-o por um homem mao: — e elle nao 0 foi. Por outro lado, ha quem julgue que elle esco- lhera um benjaminense, porque essa tribu era fraca, e assim podia firmar o seu predominio. Isto é medir pela bitola de hoje os homens de outr ora; éapplicar as pollegadas do nosso tempo estaturas que se mediam por covados. ; Alem disto, 6 inexacto que désse a tribo de Benjamin indicios de fraqueza. Ao contrario parece que ella era uma das mais aguerridas. « Benjami diz o poeta do canto de Jacob, é um lobo voraa igs manha comera a preza, e 4 tarde dividiraé os aes pojos. » O que nao pode softrer duvida, é qué > fim vidente fora o interesse da religido. Mas © vi nao esquecer: — a historia dos judeus on epe entre muitas outras, duas altas ligdes de (8) Genesis — XLIX, 14. — 127 — yiencia politica. Samuel julga achar em Saul o mais apto servidor de uma ideia santa; e passa elo desgosto de ver, ainda no seu inicio, a realeza provar que era um instramento fatal. Nao poucos annos depois, o silonita Ahias, a ‘pem do mosaismo, promove a rebelliao contra a casa de David ; e crendo encontrar no moco Jero- poam a capacidade precisa para o triampho com- leto da sua causa, fal-o rei de um novo estado ; o qual tornar-se-ha, contra as vistas do pr®pheta, o centro perigoso do culto anti jehovico ! Mal se pode actualmente definir o governo creado por Samuel. Nenhum outro dos povos an- tigos teve delle a minima nogdo. A palavra theo- cracia, que 6 toda grega, e de invengao posterior aos bellos tempos da lingua, nao traduz perfeita- mente acousa. Ora, uma forma de governo, que era unica em seu contetido, devia ao certo provar os maiores obstaculos na pratica da vida. O ponto de vista humano de sua instituigdo fora logo satis- feito; mas o alvo divino ficou ainda suspenso. como inattingivel, nas alturas do ideial. . Qualquer que seja o seu principio e maneira de existir, a realeza 6 sempre inclinada 4 concentrar em si todas as forgas do Estado. E’ certo que esse regimen produzira no circuto da communhao hebréa uma actividade espantosa. Ao passo que os dous Maiores poderes da nacgdo, por suas relagdes syner- gicas ou antagonicas, accendem uma nova vida nos dominios superiores, repercute nas ultimas cama- asum abalo moral tao profundo, que em pouco tempo Israel adyuire 0 que, durante seculos, nao fora-lhe possivel. Fallando de dous poderes, 6 superfluo advertir que me refiro ao prophetismo sempre de vigia ao ado da realeza. Mas ahi mesino é que reside o Principio eo segredo da lucta. Diante do governo sua ee estava o governo celeste, com todas as chi els santas, e tendo por orgaos os prophetas, J0 Verbo inflammado era um decreto do Altissimo. — 128 — Punha-se deste modo ordem con ° o combate era inevitavel. O prophetisme nae ae : renunciar, em face da realeza, o seu mister de Podia forga, até entao directora da consciencia po ae A vontade real, por outro lado, nao podia suelo se ao dominio d’aquelles tribunos, tanto mais ion riveis, quanto mais sinceros em suas Conviccdes * E’ facil de ajuizar que largas aberturas devia fazer no animo nacional o espectaculo Sombrio desta lu@ta prolongada. As violencias, nado para vez inflingidas aos homens de Deus, foram efficazes no sentido tao sémente de tornal-os ainda mais mais fortes e mais sublimes. Desdenhado, malquisto, repellido, espirito pro- phetico devia subir em demmanda de novos horison- tes. Repousa mesmo na essencia do phenomeno, que os videntes derrotados em suas pretencdes, imaginassem um rei-modelo, capaz de preencher as vistas de Jehovah. Tal o germen da ideia mes- sianica. A realeza hebréa tinha sido fecunda, desde o seu comeco, para o fim que se proposera. Mas im- porta advertir que a Biblia nos fornece dous modos diversos de comprehender o facto da eleigao régia. O primeiro 6 que a assembléa dos antigos pedira um rei para ser o juiz de Israel, visto que o pro- pheta estava velho, e seus filhos eram incapazes de substituil-o. (4) « cttnicdo O segundo é que oalvo final da nova instituich? fora salvar 0 povo da mao dos philisteus e ou we inimigos circumvisinhos (5) A ultima ligao Povada me nado sé a mais antiga, como a mais acommo & natureza das cousas. co vea teve Pode-se affirmar que a monarchia israclica um desenvolvimento mais precoce, do que vinha 4 sua estabilidade. Florescendo, 8 Samuel, VI, 5 — 6. 5) Idem, IX, 16 ~ 17, X, 1. \ — 129 — de Saul; — cheia de vida, ambiciosa de yeinado m David; jé nos dias de Salomao, ella gioria, fos os seus fructos. Comprehendem-se as dave “hesta ascendencia rapida. razoes ovo hebren sobrepujara no mundo real ver- ‘ras difficuldades da vida. Caminhando de dadeits em victoria, elle tinba aprendido a erguer vic oa entre as nagdes rivaes ; podia tambem le- ace gen espirito acima do mundo sensivel, e ad- ein uma porcao de conhecimentos e caPacidades ne fte nobre e generoso povo ficaria, sem motivo sufficiente, fora das leis geraes que regem as socie- dades humanas, se fosse certo que nenhuma cul- tura elevada distinguio aquellas epochas de forga_e orandeza nacional. Eu nao vejo porque, assim tao de prompto, se lavre uma sentenca que tem contra si documentos irrecusaveis, quando estudados com interesse de conhecer melhor a verdade. Nos seculos precedentes, todos os esforcos se tinham concentrado na propria conservagao, diante de inimigos poderosos. Nao é que, mesmo nesses tempos obscures, 0 pensamento deixasse de mani- festar-se em sua tendencia natural para uma expli- cacao das cousas. A historia da creacio (Genesis, I, 1 —TII, 4), posto que feita por um escriptor con- temporaneo de Salomao, (6) presuppde uma ordem de ideias que, muito havia, dominavam na esphera intellectual. owe orem desde que no goso de uma paz dura- ames é sob a direccio de um rei, nao affeito ds necessarig nite geral achou 0 attractivoe descango 0 seu 4 para reflectir sobre os factos grandiosos Nova irry esenvolvimento, era consequente uma entao exe da intelligencia. Aquella rivalidade, Scienciag gate com Os povos mais notaveis em outros, m artes, Phenicios, Egypcios, Sabaenses e » Muito deveu para isso concorrer. 6 ) Bwald Geschichte. I—pag. 135;—Ull, 982, 7 — 130 — Faltam-nos hoje os meios de descobrir se firmava a grande sabedoria de todos og filhogia” Oriente, a quem Salomao excedia (7). Comty to é impossivel desconhecer alguns signaes da inne” cia que tiveram no pensamento hebreu as relacse, exteriores. A historia do paraizo e de Adao ers (Genesis — II, 5 — II), 0 mytho dos gigantes aL 1 — 4), e mesmo o que diz respeito & confusao ‘Gag linguas (XI, 1—9), parece que eram provindas de fonte estwangeira. > ro TE A Biblia noticia que o filho de David houvera de Deus os thesouros de um saber prodigioso. (8) Todavia, d’ahi nfo é inferivel que elle fosse um caso excepcional, o unico sabio de sua nacio. O historiographo mesmo achon, entre os vultos contemporaneos, quatro notabilidades capazes de dar a medida da sciencia do mogo rei. « Salomio, diz elle, era mais sabio que Ethan Ezrahita, e Heman, e Chalcol e Dorda, filhos de Mahol. » (9) Para quem acceita os dados biblicos, historica- mente, objectivamente, e livre, portanto, da in- fluencia orthodoxa, o adulterino de Betsaba nao foi um phenomeno inexplicavel, pelos meios ordina- rios, Aquelle que estava, desde a infancia, desti- nado a occupar o throno paterno, era muito natu- ral que tivesse uma educacéo adequada. Mal se comprehende que 0 monarcha aventuroso, 4 quem a tradicao attribue tao elevados dotes, menospre sasse a instruccao de um filho predilecto. ieas E lé-se de feito no primeiro livro das Chron cm (XXVII, 32) que, além de outros empregados vi varios mistéres, Jonathan, tio de David, vara0 p , (7) 4 Reis, —1V, 30. (8) 4. Idem, IV, 29. (9) 4 Idem, LV, 31, — 131 — onselheiro, e bem assim Jahiel, filho de seu ni, estavam com os filhos do rei. Como bela: parece indubitavel que no tempo de e comeca a dominar em Israel uma tenden- Oy Hac quer (0 s ‘alomao, cia Hy prophetas que nao deixam de existir, mesmo gse periodo de paz e felicidade. nao sao ‘nda 0S pregadores publicos dos grandes princi- ain ‘ehovicos. Sdo homens de acgao e de caracter, pis aes orei conta sempre ouvir a vergade, co- aos rodores das cousas palacianas, e tomando parte tm seus movimentos. (10) . E’ mais que muito plausivel que, no meio de uma provocagao geral dos espiritos para o amanho das lettras, elles fossem os primeiros em abrir ca- minho e dar oexemplo. O que me fortalece nesta conjectura, é ver que a sua escola, tao numerosa e vivace, alguns annos depois desta epocha, mostra- se agora pouco animada, e quasi reduzida a um ou dous vultos notaveis. Que faziam no silencio esses homens maravilhosos? Como alimentavam a acti- vidade do seu pensamento ? Sem duvida, occupados em alguma cousa de mais serio e mais difficil do que o manejo do tym- pano eda cithara dos primeiros tempos. Escreviam, berscrutavam as tradigdes paternas; desciam mais no fundo da instituigdo mosaica, e tracavam o mete plano de uma historia nacional. Isto parece te Saaoavel, guando se attende que o reinado tande ae marca © apogeu da estrella hebréa, er- tino, es dos seculos e das decepgdes do des- forage 08 Nathan, os Addo, os Semeias, os Ahias, Por que Tertohraphos regios, a Biblia o diz. (11) nomes denne nao haveria ainda outros, cujos Conhecemos, mas cujas obras sao talvez —_—_ 10) Reis, 1, g 11) Reiss 1, 8, 11.—X1, 29, 30, @ seguintos. 2 Paral. ie 98, Sai te, SOS — 132 — esses mesmos livros, impropriam . ao legislador do Sinai? Dest’ arte, nae sen uma nova ideia, por cima do preconceito gy u'8ir ao povo judeu, bem como aos demaig sen Dega nobres qualidades do gosto e dedicacio ne BS, as especulativo ? Voltarei sobre este ponto. ® labor Nao 6 justo deixar de reconhecer em dous grandes meritos. Primeiramen quem deu a antiga religido uma séde m - templo de Jerusalém, dando tambem 20 Seen cin uma dig@idade e uma ordem legal. Depois : ainds foi elle quem despertou o desejo de uma Seiencia mais profunda e de uma arte mais elevada, Nao ésem fundamento que a tradicao ligou A memoria tudo que diz respeito ao vasto e immenso saber. A poesia sentenciosa, por elle cultivada continuou a desenvolver-se entre 0 povo, como at. testa o livro dos Proverbios. Em seu nome se apoiae vam philosophos e moralistas, (42) No vestibulo do templo, onde se reuniam os discipulos para ouvir a palavra de qualquer doutor, havia o portico chamado de Salomao. (13) E quem sabe?... talvez mais digno de memoria do que o portico em Athe- nas. Através de factos obscuros e mal discrimina- dos, transparece que, de longa data, os judeus en- cetaram a cultura scientifico mais adaptada aos nobres instinctos de sua raga, € ao seu caracter Na cional. 0 prophetismo foi todo cheio de inspiract entbusiasmo e cholera, em face da realeza corruph ou da nagado desvairada. Nem por isso deixon © ser tambem auxiliado por muito estudo ¢€ reflexae: em presenca do céo e no silencio do deserto. at Nao é crivel que esses grandes homer ideias tao elevadas, e trazendo sempre enamide: as maravilhas de Deus, a favor dos abraba! Vidos, em Salomao te: foi elle (12) Sapientia... VII, 17- 90, VII, 8. ye (13) Buang.a Johan’., X, 24, Ach. Apost. UU 1s esses homens, a quem ndo escapava o sentido dos acontecimentos; sim; nao 6 crivel que tudo isso devessem 4 unica exaltagao da fibra religiosa. Os prophetas foram mais do que fortes enthusiastas do mosaismo. Elles manejam os principios de uma theologia simples, é verdade, mas profunda e abra- zada. A ideia de uma allianga teita por Deus como povo, ou pelo povo com Deus, é a concepgao mais larga que se podia formar em assumplo_ seligioso. Se a Moysés cabe a honra de tel-a iniefkdo, nao pertence menos aos prophetas o merito subido de haverem-n’a gravado no coracao popular, a repeti- dos golpes de eloquencia e poesia mais que hu- mana. Pouco importaria aqui lembrar que tarde vie- ram as consequencias uteis da pregagao prophetica. A semente fora langada ; quando quer que germi- nasse, era Sempre uma obra do sementeiro. O abalo produzido pelo grito dos Nabis no seio das gera- goes; o circulo ondeante de sua voz sonéra conti- nuou a estender-se, em demanda do futuro, até vir quebrar-se na beira de um mundo desconhecido. IV _ Geralmente se acredita qne sé existe philoso- phia, onde ha uma cadéa de leis do pensamento, externamente formuladas ; e ainda mais, quando existe um certo numero de verdades, postas em ordem, reduzidas a systhema. Nao sei se este juizo é bem fundado. _ Ogermen da philosophia, ou, como outros di- Mam, a sua propria vida, 6 uma tentagao poderosa, inextinguivel, de entrar no conhecimento de todos Os objectos, proximos e remotos, humanos e divi- Nos. Onde quer pois que o enigma das cousas se agarre ao homem pensante ; onde quer que, para — 134 — decifral-o, nasca uma emulacao infatigavel entre og mais fortes espiritos de um povo ou de muitos povos ao mesmo tempo, ahi temos o berco de uma philosophia. Desde alta antiguidade, os mais nobres dos se. mitas chegaram a este grio de evolugaéo mental, quando ainda os gregos deviam romper, para attin- gil-o, seculos de trevas. Accresce que Israel, por meio de sua religido, tinha um motivo especial de reflectir sobre as relacdes universaes. Ja vimos gue o reifiado de Salomao fora a epocha mais apro- priada para dar ao espirito publico uma nova di- recgao ; elle abrira caminho ao genio commercial do povo. Tanto basta para comprehender-se a possibili- dade, sendo a necessidade, de uma importagao de ideias estrangeiras, mais polidas ou mais amplas, no gremio da gente hebréa. Os lagos de amisade, estabelecidos entre o sabio principe e os vultos contemporaneos, nao poderiam ser improficuos. A celebre visita da rainha de Sabé é um signal do fervor e aspiragio do tempo. Eu_ nao resisto 4 vontade de repetir aqui o grito de enthusiasmo que Ewald deixa escapar, quando aprecia, em _ sua alta significagdo historica, a viagem da rica soberana a cérte do rei philosopho : « O glueckliche Zeit wo maechtige Fuersten, mitten in ihren von heiliger Gottesruhe umfriedig- ten Laendern, so zu einander wallfahrten, so in Weisheit und, was noch mehr ist, im regen Suchen derselben, wetteifern koennen. » (14) Depois da scisio das tribus e da creagdo de um novo Estado, nao esbarrou por isso 0 movimento que comegara. Bem ao contrario, esse importante (14) Geschichte... II, 379. Aquelle was noch mehr ist... 6 di- gno de reflexao. Echo longinquo de um dos mais bellos pensa- mentos de Lessing, sé na Allemanha pode-se bem comprehendel-o. porque sé alli o espirito scientifico chega a deliciar-se mais em Procurar a verdade do que mesmo em possuil-a. — 135 — facto, 0 qual, para dizel-o de passagem, desmentea jnterpretacao orthodoxa de um texto genesiaco (XLIX, 10), parece ter sido util ao progresso das Jettras. Por quanto, € indubitavel que o reino do norte fora constituido sob os melhores auspicios. ’ Homens eminentes se pozeram 4 testa da revo- jucdo. Todas as esperancas da maioria se apoiaram no mogo rebelde que fizera frente 4 dynastia de David. Comprehende-se o ardor com qug 9 novo Estado devia trabalhar por vencer o seu tiva} em todas as provas de actividade. Nelle brilharam pro- phetas, sabios e escriptores. As artes ahi flores- ceram com tanto, e ainda mais vigor do que no velho tronco davidico. Nao era em vao que elle se gloriava de ser tambem um reino do verdadeiro Deus. Ewald é de opiniao que o cantico dos canticos, bem como alguns psalmos e varias outras pegas bi- blicas, sahiram do norte. (15) Os principios que desde antigas eras tinham sido annunciados pela lingua flammejante dos Amés e seus irmaos em Jehova, foram se apoderando, em ambos os reinos, da consciencia popular. O gosto da sabedoria, uma vez inoculado, nao poude mais desapparecer de todo. Verdade 6 que bem cedo o Estado das dez tribus succumbio ; porén ja tinha dado a sua parte de impulso e excitagdo, para enlarguecer o horisonte das ideias. O israelita allemio, Dr. Abraham Geiger, me parece pouco justo no modo de apreciar o valor historico de Samaria: « Das Reich Israel, diz elle, entbehrte des Mittelpunktes, der Idee, die es au- frecht zu erhalten faehig gewesen waere... » (16) Ora, esta ideia que 0 sabio autor contesta ao povo do norte, nao teria de feito existido? E, antes de tudo, qual era ella? Nenhuma outra, sendo o pro- 115) Geschichte... III, 449. (16) Ursehrift... pag. 20. — 136 — posito de evitar, pela separagao, todos os erros e defeitos da casa de David, qne se fizeram sensiveis, durante os ultimos annos de Salomio. E’ certo que os resultados néo corresponderam aos intuitos primitivos. Mas isto, creio eu, nao basta para antorisar o menospreco da fraccao des- tacada. Houve em quasi todos os reis de Israel vistas mais largas de progresso e engrandecimento, A admissao de estranhos cultos religiosos acarretou sem duvida muitos males ; porém foi uma prova de alto designio politico e franqueza liberal. Prosegue o escriptor mencionado: — « Unter schwachen Wuestlingen, die sich auf den Thron emporschwangen, unter Palasterevolutionen, die ohne Betheiligung des Volkes die Geschoepfe einer launenhaften und selbstsuechtigen Camarilla erho- ben und stuerzten, sich an das Ansland anlehnend, von ihm Huelfe erwartend, seine Sitten sich aneig- nend, ward es dessen Beute. » E’ resumir em um periodo de poucas, mas duras phrases, as luctas seculares que enchem a historia do reino de Israel. Ha excesso de rigor neste juizo. Os homens que alli se acharam 4 frente do governo, nao foram todos fracos libertinos, como os considera o illustre Rabbino da Synagoga de Breslau. £’ incrivel que desde Jeroboam até o captivo de Salmanazar sé houvesse reis indignos; quando alguns delles foram sagrados por prophetas, como Elias e Elizeu. A pedra de escandalo, bem sei, 6 a religido que elles nao guardaram, que antes deixaram corrom- per-se e desvairar-se. Entretanto, parece-me ad- missivel, mesmo por este lado, ajuizar melhor dos espiritos, que heroicamente, embora infelizmente, quizeram ampliar o circulo acanhado das ideias de sua gente ; e para isso, viram se obrigados a travar com os velhos principios, nao rara vez, tambem com os prejuizos, uma pugna gigantesca. Pondo de parte o sobrenatural, tenho para mim que o Estado das dez tribus, apezar da sua rapida — 137 — 50 foi um avan¢co da civilisagio judia. Pelo avolacae, sabido que elle entrelagou-se com povos . menos: ve em conhecimentos, @ nestas relagdes i ar muita riqueza intellectual que fal- irmao do sul. tava a0 set ao Ewald que, quanto mais penoso diz naquelle Estado o apoio do Jehovismo, mais completos foram os bellos fructos que tanto? mm desse arido terreno. Uma cousa & evi- browne 0 prophesismo engrandeceu-se cop a resis- tea opposta i politica de Israel. Sem Achab, tea mais, sem os manejos e planos energicos da tyra Jesahel, fora impossivel a apparicdo de um Elias. se tornou 0 estado fragmentario em que possnimos a lit- leratura biblica, difficulta penetrar-se com justeza no intimo da sua historia. Pegas de procedencia e data diversas, formam um todo syncretico, onde sé ha de cominum o estorco de um grande povo, pela Tealisagéo do seu ideial; onde sé ha uma forma do Pensamento, que é Deus, e para ella am contetido, wma essencia unica: Deus mesmo. E’ porém admiravel, como em torno desta ideia, due assemelha-se ao deserto, esterilmente immen- ta poderam se agrupar espiritos de cem (azas, na- de tate emoniacas, poetas, pensadores investidos Coane: caracteres da genialidade humana. erros, trader € nao dissimulo quantos prejuizos e maneins Jauonaes Continuam a grassar, sobre a 20 Brasil @ ver os meritos da Biblia. Pelo que toca tose atrazadye” dirige a maioria absoluta de incul- Protestante a éa mesquinha intuigao catholico- Deng, A @ escriptura inspirada, dictada por Parte que resta, posto que exigua, ainda 18 F. — 138 — se divide em duas cathegorias : a dos espiritos fv). volos, pouco escrupulosos em seu voltairianismo de mao quilate; e a dos romanticos ingenuos que acham poesia em cada pagina, em cada linha do sacro livro. ’ a velha intuic&éo reaccionaria de Chateau. briand e Genoude, que, muito ha, deixou de ter vigor na Europa culta ; e entrétanto constitne para nés oulros um signal de adiantamento! Mas em fim ha d@ chegar-nos tambem a luz que, ja de longa data, a Allemanha despede sobre o mundo, Quaesquer que sejam os resultados novissimos, a que tenha attingido a sciencia biblica, é incontes- tavel que hoje seria difficil e arriscado pdr-se diante da critica, para embargar-lhe os passos e disputar- Ihe uma s6 das suas conquistas. Entre estas, a menos dubia, a mais segura, talvez, 6 0 juizo quasi peremptorio da formagio syncretica, heterogenea dos livros sagrados das judeus. . Semelhantes ds ossadas dos mammouths e me- gaterios da epocha terciaria, os diversos fragmentos de autores ignotos deixam advinhar o gigantesco de sua primitiva estructura. Nem eu Sei se, nesta ma- teria, devem ser menos acceitaveis as ousadias da induccéo, do que em outras igualmente compli- cadas. Se é possivel a um Cavier dizer-nos a forma, as proporgées, a especie do animal estranho, cujos dentes se encontraram enterrados em leitos de gypso, porque nao pode unm Ewald, um de Wette, um Knobel, dar-nos 0 peso, a dimensio de uma ca- bega de propheta, do qual restam somente algumas phrases inflammadas, e indicar-nos com verosiml- Ihanca a estatura do monstro? F’ verdade que os trabalhos exegeticos dos tempos derradeiros nao sao ainda de todo accordes, tanto em questdes de critica, como em diversos pontos de interpretagdo. O estudo do Antigo Tes- tamento conta hoje uma vasta Jitteratura. Nomeat os escriptores que em grande numero se tem prée- — 19 — occupado dos problemas respectivos, seria suffi- ciente para fazer comprehender-se a posicado actual da sciencia. (17) . Deste modo, e pelo que respeita, por exemplo, aos documentos elohistas e jehovistas, sua relagao a Moysés, a composicao do Pentateuco, e em _parti- ealar do Deuteronomio, a authenticidade da segun- da parte de Isaias, e partes de Zacarias, como de Daniel, bem parece que a lide contintia. Mas isto nada importa para attenuar @s effeilus da co-operagao fecunda. ’ uma lucta intestina, e por assim dizer, entre familia ; a qual deve ter seu termo, e ao envez do que se pensa, traz comsigo avultados proventos. Como quer que, em ultima analyse, as duvidas se dissipem, a luz esta feita. Uma vez adquirida, a verdade néo se submette; nao se annullaa si mesma, para dar ganho de causa a nao sei que do- gmas inanes e putridas antigualhas. E’ um facto que asociedade se desenvolve: porém as leis desse desenvolvimentc nao estaio descobertas, 0 que importa dizer que a sciencia social existe ainda apenas como uma aspiracao, e, em taes candigées, nao tem, nao péde ter principios seus, principios proprios,;com os quaes possam conformar-se os direitos, quaesquer direitos do homem. Em outros termos, a sociologia nao se acha no caso de bitolar pelos seus dados, pelo enunciado dos seus problemas, os conceitos de outra qualquer sciencia. Nao se diga que a sciencia social é um genero, que abrange em si diversas especies, algumas das quaes ja tém attingido um grao de desenvolvimento capaz de conferir-Ihes 0 poder de adaptar aos seus os velhos conceitos scientificos ; e nao se diga, porque o mesmo exemplo da economia politica, que se considera muito adiantada, em vez de infir- mar, antes confirma o meu asserto. Com todos os seus progressos, reaes ou presu- midos, a economia politica ainda discute sobre as suas idéas fundamentaes. As nogdes de valor, capital, trabalho mesmo, nao se acham definitivamente assentadas. O grande phenomeno do movimento econo- mico, oudo desenvolvimento da rigueza, nao achow nem se quer ainda uma formnla, que o represente- A ligeireza desse movimento, que ao contrari0 do que se da no mundo physico, onde a ligeireza & igual a 2, éiguala™", constitue ainda uma massa Toren ? IX questéo ardente: esta forca, que serve de deno- minador da fraccao, € 0 capital, ou o trabalho? FE’ lis sub judice!... Quando fallo de sciencia social, s6 tenho em vista uma tal, que se baséa nos dados communs a todas as sciencias de observacao. Quanto, porém, a uma velha sciencia da socie- dade, a esse pedaco, repito, de metaphysica e my- thologia, que nado péde hoje fazer as delicias de es- piritos sérios, eu a considero féra do circnlo das minhas meditacdes. Ocelebre David Hume disse uma vez: « Quando entrardes em uma bibliotheca e pegardes de qual- quer livro, perguntai primeiro: este livro trata de numeros ? Se aisto vos respondereni negativamente, entao queimai o livro, porque nao péde conter senao ra- hulices e sophysticarias ». E’ 0 caso com a decrepila metaphysica social. Entretanto, e pondo termo 4 questao prelimi- nar, o que ahi fica dito a 1espeito da sociologia em- bryonaria, da sociologia em via de formagao, nao envolve a idéa de quea segunda parte da these seja incompativel com a primeira. Pelo contrario. Dados os principios da sciencia social, como eila existe, como ella se acha, é conformavel com esses principios a doutrina dos direitos naturaes e originarios do homem ? Quando mesmo taes principios nao sejam mais do que hypotheses, conforma-se com estas hypo- theses a referida dontrina? Kis o ponto elucidavel. A theoria dos direitos naturaes e originarios pertence a uma época ja um pouco distante de nds. A concepcao de um direito superior e anterior a sociedade, é uma extravagancia da razao humana, que nao péde mais justificar-se. O homem é um ser historico, o que vale dizer, que elle 6um ser que se desenvolve. X A idéa de um direito natural e originario do homem envolve a de um direito universal e per- manente, a de um direito, quero dizer, que nao estg sujeito a relatividades, nem no espaco, nem no tempo Um direito universal 6 um direito, que existe para todos os povos; um direito permanente 6 um direito immovel, isto 6, um direito qtte nao se des. envolve; mas de accordo com as nocdes correntes da propria sociologia, que se férma, tudo esta su- bordinado a lei do desenvolvimento, da qual nao escapa o direito mesmo. k’ concludente, portanto, que a theoria dog direitos naturaes nio se harmonisa com a sciencia social. « Um direito universal, diz R. von Thering ( Der Zweck im Recht }, um direito de todos os povos, esta no mesmo pé que uma receita aniver- sal, ma receita para todos os doentes ». A ethnologia nos mostra que as differenciagides que produzem as racas, trazem differencas nos costumes, nas leis, nas instituigdes dessas mesmas ragas, ea historia confirma essa assercao. A nniversalidade do direito 6 simplesmente uma phrase. | Mas objectar-se-me-ha;: — existem certos di- reitos. que se tém feito valer em todos os tempos ¢ em todos os lugares, até onde péde chegar a obser- vacao directa eindirecta: nado serao elles originarios, nao sao elles naturaes ? Nao hesito, mesmo assim, em responder nega- tivamente. . A expression direito natural valen por muito tempo, e ainda hoje vale como antithetica da ex pressio déreito positivo. Admittir um direito natoral é admittir qne a positividade nao 6 0 caracteristica de todo o direito. . Mas eu penso com George Meyer ( Das Studi des oeffentichen Rechts in Deustehland ) que, s@ ha rma verdade, digna de ser geralmente acneita 61 XI conhecida, é a da positividade de tcdo o qualquer direito. Desde que na idéa do direito entrou aidéa da lucta, desde gue o direito nos epparece, nao mais como um presente do céo, porém, como um resul- tado de combate, como uma _ conquista, cahio por terra a intuicao de um direito natural, Bem como as artes, bem como as sciencias, 0 direito &€ um producto da cultura humana; fora desta, em qualquer grao qne ella seja, nenhum dis reito, nenhuma disciplina das forgas sociaes. Os chamados direitos naturaes e originarios, como o direito 4 vida, 4 liberdade e poucos outros, nunca existiram fora da sociedade,; foi esta qaem os instituio e consagrou. . Parece absurdo, eu sei, exprimir-me assitn; mas nao'é tal. O direito que foi mui bem definido pelo illus- tre R. von Ihering como um complexo de condi- cdes existenciaes da sociedade, asseguradas por um poder publico, o direito, repito, nasceu no dia em que nasceu a mesma sociedade. FE’ uma velha illusdo esta queainda leva muitos espiritos a abandonarem os ensinos da experiencia, os testemunhes da historia, econtinuarem a sonbar com direitos preexistentes aos primeiros ensaios dle organisacao social. Uma das melhores provas de que a concepcio deum tal direito 6 simplesmente o resultado do espirito de uma épeca, nés achamol-a na conside- racdo seguinte: o direito natural dos tempos mo- dernos é inteiramente diverso do jus naturale dos romanos; quem nos ¢:dde garantir que para o fu- turo o conceito de nm direito natural nao sera tao differente do hodierno, quanto este é diverso do romano ? Fallemos ainda mais franco: o direito natural moderno com o seu dpriorismo, com suas preten- codes de filho unico da razio humana, 4 nma creacAo da Hollanda no secnlo XVIT. Xt Mas é digno de nota: o celebre Grotius, que abrio caminho a esse preconceito scientifico, alam de outros escriptos, consagrou tambem o sen Mare liberum 4 exposicao da nova idéa. Entretanto essa mesma obra, cheia de appellos a razaio, tem por sub-titulo as seguintes palavras, que dao a medida do grande conceito: Sive de jure, quod Batavis competit ad indiana commercia... Bom direito natural! Resumamos e concluamos. Qualquer que seja o estado da sciencia social, ou os seus principios sejam realmente taes, ou sé- mente presuppostes (le uma sciencia que se levanta. a verdade 6 que a doutrina dos direitos naturaes e originarios héo se conforma com aquelles princi- pios. E digo mais: a theoria de semelhantes direi- tos nao é sémente inharmonisavel com os referidos presuppostos, mas até succede que asua perma- nenciaé um obstaculo ao desenvolvimento da so- ciologia. Platio disse: nao ha sciencia do qne passa; a moderna theoria da evolugio inverten a proposica&o eredarguio ousada: sé ha sciencia do que passa, perque ahistoria sé se occupa do que passa, e todas as sciencias caminham para tornar-se preponde- rantemente historicas. \ Nao me é estranho que a these academica tem um modo, ja consagrado, de ser resolvida: porém, eu tenho tambem de respeitar as minhas proprias conviccées, Nao ha direitos naturaes e originarios. O que nés hoje chamamos direito é uma trans- formacao da forga, que limitou-se e contintia a li- mitar-se no interesse da sociedade. A idéa de di- reitos originarios arrasta, como associado logico, 2 de direitos derivados. S&o cathegorias, que ja nao tém importancia scientifica. Os direitos, como taes, quer como condicdes de existencia, quer como condicdes evolucionaes NIT da vida social, sio da mesma natureza, € s&0-no jus- tamente, porque sahem da mesma fonte; esta fonte é a sociedade. E seja-me permittido repetir agora o que ja tive oceasiaio de exprimir de outra vez: Em nome da religiao, disse o sublime gnosta, auctor do quarto evangelho: no principio eraa palavra ( i principio erat verbum ) ; em nome da poesia, disse Goethe: no principio era o acto ( im Amfang war die That }; em nome das sciencias naturaes, disse Carus Sterne: no principio era o carbono ( im Amfang war der Nohlenstoff ); em nome da philosophia, em nome da intuigdo monis- tica do mundo, quero eu dizer: no principio eraa for¢ga, e a forga estava junto ao homem, e 0 homem era a forga. Desta forga conservada e desenvolvida, é que tudo tem-se produzido, inclusive o proprio direito, que em ultima analyse nado ¢ um producto natural, mas um producto cultural, uma obra do homem mesmo. MENORES E LOUCOS EK’ bem sabido 0 methodo adoptado pelo nosso jegislador criminal. Definida e classificada a idéa gerai do delicto, expostas as exigenvias conceituaes do delinquente, e as stlas diversas cathegorias, o Codigo passa a mencionar todos aquelles que, ou por motivos de ordem politica, ou por thes faltar a base psychologica do crime, nao sao por elle con- siderados criminosos. A este dupio processo de inclusdo e exclusdo 6 consagrado o primeiro capitulo, composto de 13 artigos, que na sua apparente sim- plicidade, debaixo do espartilho de um laconismo exagerado, escondem materia sufficiente para lar- gos e longos tratados, sem fallar du muito que elles se prestam a erros e disparates na pratica forense. Isto, porém, nado constitueo meuassumpto. Que o Codigo esta muito aquem do que deve ser, na época actual,.a legislagdo penal de qualquer paiz, que toma parte no banquete da cultura moderna, ainda mesmo sendo, como somos, dos que ficaram para a segunda mesa; que o Codigo, em uma palavra, 6 lacunoso e incomplsto, para que mais repetil- 0 eaccentual-o? O que importa, sobretudo, se nao é de certo permanecer na crenca, pueril de que © Codigo Criminal brazileiro foi vecebido directa- mente das maos da nympha Egeria, ja nao é tam- bem tratar somente dé sublinhar-Ihe os innumeros defeitos, que comecgam a ser visiveis até aos olhos dos que pouco véem. I — Perdida como se acha, ao menos para mim a esperanca de uma reforma das nossas leis penaes. no sentido de dar-se-lhes uma _feigdo mais accom, modada ao estado da sciencia hodierna, 0 que con. vém fazer, porque é tambem o que resta, é tirar dog defeitos mesmos o melhor partido possivel, esty. dandoe-os e supprindo-os por meio das fontes regu- jares do direito. Notre estas fontes figuram os processos logi- cos, em cujo numero se acha a analogia. O velho prejuizo, que ja tive occasiao de combater (1), pelo qual se considera a analogia incabivel na applica- cao das leis criminaes, ainda tem infelizmente entre nés a cabega levantada. Mas ev sinto-me com forgas para esmagal-o, tao fraca se me afigura a base, em que elle se apoia. A analogia, segundo Feuerbach, que alias fora ao principio um adver- sario decidido da sua applicagao na esphera do direito criminal, nfio se distingue do proprio esp rito da lei, ou melhor, segundo me parece, pois entendo que o attribuls deve sempre ser mais claro yue o sujeito, o chamado espirite da lei, pondo de parte o elemento gnomico e mythologico inherente a todas as phrases creadas para deslumbrar os tolos, se reduz a um simples alargamento, por ex- tensao analogica, dos principios juridicos, em appa- rencia fixos e inexpansiveis. E’ um erro affirmar, como em geral se affirma, que o direito criminal sé admitte interpretagao restrictiva. Nao é@ facil descobrir a tazao deste preceito. Os que repetem-ne a todo proposito com o mesmo grao de confianea, com que se enuncia uma verdade mathematica, nado tem entretanto outro meio de justifical-o, Sendo repetir que assim &; porque (este porque faz mal aus nervos )... benign amplianda, odiosa restringenda! Ed’est'arte uma (1) Vide a dissertagdo sobre o mandato em materia criminal + Recife, 1882. -—-3— velha paremia, um anexim decripto, uma d’essas ligeiras inducgdes, precocemente elevadas 4 vathe- goria de normas de conducta, serve, entre nés, de fundamento indisculivel da doutrina criminalistica, em um dos seus pontos mais importantes... Isto sé se explica pela completa falta, que temos, de uma theoria scientifica das fontes do direito; lacuna esta, para cujo preenchimento ainda esforgar-me- bei por prestar a minha contribuicao, que sera tanto mais util, quanto é certo que nao terei a ousa- dia de escrever uma Ilias post Homerum. A nossa litteratara juridica, se de tal podemos fallar, nada possue neste sentido. Costuma-se allegar, como razio peremptoria, que a inverpretagao ainpliativa no direito criminal teria por consequencia por em perigo a liberdade do cidadao, entregue a mereé do capricho indivi- dual dos julgado Mas 6 0 éaso de dizer com Rossirt que a liberdade deve ser protegida por outro modo, que nio o simples respeito da lettra da lei; porquanto, onde a independencia e integri- dade dos jiaizes, a honra do soberano e da nagao nao sao garantias sufficientes de justica, a lei é um instramento na mao dos mais sabidos. A santidade do direite e de sua justa distribuicao nado pode ser posta em perigo por esta ou aquella doutrina dos juristas, (2) Ainda baseio-me, sobre este ponto, na opiniao de Puchta, para quem a sciencia tambem é uma fonte juridica. 3) Com effeito nao coiprehendo que valor poderia ter o estudo do direito, se os que a elle se consagram, fossem obrigados, como os doutores da lei da escola do rabino Schammai, a ser Somente exegélas, a nao sahir do texto, a executar simplesmente um trabalho de midrasch, como dizem. 0s judeus, isto é, de escrupulosa interpretagao lit- (2) Entwicklung der Grundsaetze des Strafrechts, pag. 32, (3) Vorlesungen — §1 — 4. ~N~ / SS —~4e— teral. Assim viriamos a ter, no uma scie doreito, mas uma sciencia da lei, que podia dar 0 pao porem, ao certo, ndo dava honra a ninguem, Assen. tar-the-hia em cheio o leider auch com que Goeth humilhou a theologia; e cada um de nds poderia, com mais razao do que Fausto, zombar do sen doy. torismo — heisse Doctor gar !... Estas consideragdes, que parecem.afastadas da materia, de que pretendo tratar, estao entretanto em intima relacdo com ella. Na analyse, que me propuz fazer, do art. 40 do nosso Codigo, tenho de abrir Jucta franca e decidida com o litteralismo esterile anachronicu. Ev disse — anachronico, — @ quasi que gsinto-me tentado a riscar a palavra. Porquanto o litteralismo juridico-penal, como nés o temos, ou, pelo menos, se nos insinta, 6 consa que nunca teve seu tempo. Entre os romanos mesmos, com todos os seus apurados conceitos de... juris rigor, subtilitas, severitas, stricta ratio, subtilis ratio, e no proprio terreno criminal, a lettra tinha pouca importancia, 0 espirito era tudo. Nao era sé em materia civil, que elles estabeleciam dis- tinceao entre... sententia legis e verba, sententia e scriptura ( Callistratc ); entre verborum figura e mens (Javoleno); entre verba e sententia edicti (Ulpiano); entre contextus verborum scripture e mens ( Modes- tino); entre verba legis e sententia ( Antonino ), ete. Tambem na esphera criminal prevaleciam estas antitheses. A par de muitos outros, ha um /ugar nos textos, que eleva isto acima de quatguer du- vida. A lei 131 § 1.° do Dig. de verborum significa tione (50, 16) diz: — poena non irrogatur, nisi gue quaque lege vel quo alio jure specialiter buic delicto imposita est. Qual era entao esse quo alio jure specialiter huic delicto imposita est. Qual era ent&o esse guo alio jure, que se punha ao lado da lei, para suppril-a? Tudo gue vicem legis optinel, e dest’arte vale como fonte de direito, por iss? tambem tudo aquillo que se forma por meio da in- neia do —5— terpretacdo dos juristas, cujo ponto de apoio, 6a analogia. Accresce uma circumstancia, que precisa ser bem ponderada. O principio do aguum et bonum, a equitas dos romanos, que a nossa equidade esta mui longe de traduzir, era mais racional do que sentimental; ndo era, como entre nés, um syno- nimo de compaixdo, que sé trata adogar o rigor da lei, mas um modo de interpretar, filo das novas em lucta com as velhas intuigdes, que estendia muitas vezes esse mesmo rigor aos Casos nao ex- pressos. (4) Porque razdo nao seguimos tao pro- ficuo exemplo? Com todo acerto diz Rossirt que, para desco- brir-se o direito adaptado a um caso particular, quando nos faltam a lei e 0 costume, ha dous cami- nhos a tomar: o eaminho formal, que 6 0 dos prin- cipios com as suas consequencias, 0 dos processos logicos em geral, e o caminho material, que é seguir aquillo que corresponde in concreto aos interesses mais salientes e mais dignos de salvaguardar-se. E’ sé assim comprehendida que a sciencia do (4) Moritz Voigt — Das jus naturale der Romer — 1 pag. 24 e seguintes. a tornar bem comprehensivel este ponto, cu me. permitto construir uma hypothese. Supponhamos que os romanos tivessem uma disposigao igual a do art. 16 § 2° do nosso Codigo, que considera aggravante a circumstancia de commetter-se o crime com veneno, incendio ou inundacéo. Dado um homierdio, por exemplo, em que o meio empregado nao fosse nenhum dos tres Mencionados, mas outro qualquer, ainda que differente, todavia de igual terribilidade e revelador do mesmo grao de malvadeza, uo passo que ene nés o facto seria julgady un homicidio simples, 0s romanos, ao contrario, levados pelo eguum et bonwm, applicar- the-hiam aquetla circumstancia. Nada de mais razoavel. Morrer por forga de uma materia expl . de um preparado nitroglyce- rico ou dynamitico, nio 6 de certo morrer ennenenada, nem incen- diado ; nev 1 inundado ; mas vem por isso deixa de ser uma morte horrivel, e_o seu executor um dos homicidas qualificadas pelo art. 192. Felizmente nao 6 facil que tenhamos de apreciar um Caso desta ordem. Os andlogophobos litteralistas, os escrupulosos sacerdotis juris, nado diriam a missa, por nao encontrarem na folkinka o nome do defuncto. Sb» —6— direito criminal me parece capaz de merecer alguma attencdo. Voltemos ao nosso assumpto. O art. 10 do Codigo encerra a questao, que elle tambem resolve a seu modo, da imputacdo crimi- nal. Geralmente a psychologia, de que se seryvem os legisladores penaes para Gelimitar 0 conceito do criminoso, 6 uma psychologia de pobre; e 0 nosso nao faz excepeao. Tres on quatro nocdes tradi- cionaes, que se recebem sem exame, como velha moeda, cujo peso e legitimidade ninguem se da ao trabalho de verificar,a isto se reduz toda a despeza philosophica do nosso Codigo. Nao sei se é um bem, ev um mal; nem eu pretendo elogial-o, ou censural-o, por tao pouco. Mas julgo cabivel repetir aquias palavras du celebre folhetinista austriaco, Daniel Spitzer: «nés vivemos em uma época de muita desconfianga: colloca-se contra a luz a nota de banco, antes de aceital-a, e introduz-se o galacto metro no leite, antes de bebel-o; estuda-se com todo cuidade uma Madonna de Holbein, que até hontem passou por verdadeira, ¢ chega-se a duvidar que 'S. Pedro tivesse estado em Roma ; os velhos deuses Imesmos devem de novo sujeitar-se a exame, e ai! jdelles, se tem de responder a um examinador inexo- yavel, como David Strauss. Ensinou-se-nos, em tudo, a perguntar: porque? e nao passa cousa al iguma, que nao tenha forga para justificar-se diante \desse — quem vem ld ? — proferido pela sciencia.» —’ certo que tao Jonge nao vao os meus eseru- pulos; mas nem por isso deixo de obedecer a ten- dencia da época: desconfio tambem de muitas estrellas, que sdo talvez fogos fatuos, e ponho em duvida a decantada sabedoria do nosso velho legis- lador criminal. A tres ou quatro nogdes tradicionaes, disse eu, que se reduzia toda a despeza philosophica do Co- digo; e é facil verifical-o. Além da vontade, que apparece como presupposto indispensavel do crime nas expressdes — accdo ow omissdo voluntaria do —T— art. 2.°§ 1.°, e no final do § 2.°, que caracterisa a tentativa; aici da md fé, exigida pelo art. 3.°, que ahi se da como uma allianga binaria de conhe- cimento do mal e intengdo de o praticar ; além du dis- cernemento, emfim, de que trata o art. 13, 0 Codigo nao conhece outros elementos, outros factores psy- chologicos que devam funecionar na genetica do delicto. O momento da liberdade, como se vé, foi posto de lado. Sé indirecta e negativamente, é que elle apparece na disposic¢ac do § 3.° do art. 10. Sob o ponto de vista philosophico, haveria ne! falta um merito subidg, se tivessemos razdo de crer que o legislador procedeu com toda a consciencia do grande passo que dava em deixar de parte, como prejudicado e sem valor apreciavel, 0 conceito da liberdade. : Mas é certo que isto nao lhe veio ao cerebro, nem se quer em sonho; e quando Ihe viesse, quando fosse mesmo um resultado de reflexado, tambem nao ha duvide que, sob o ponto de vista juridico, a qua-~ lidade se converteria em defeito. Realmente, neste terreno, no terreno empirico do direito, pouco importa que o homem seja livre, ou deixe de sél-o, segundo fabtilam, de um lado, os metaphysicos do espirite, e, de outro lado, os meta- physicos da materia. Para firmar a doutrina da 1 imputagao, o direito aceita a liberdade como um io postulado da ordem social; e isto Ihe é bastante. abe wv 1 A theoria da imputagao, ou psychologia criminal, oP como a denominam os juristas allemaes, apoia-se no facto empirico, indiscutivel, de que o homem normal, chegando a uma certa idade, legalmente estabelecida, tem adquirido a madureza e capaci- dade precisas, para conhecer o valor juridico de seus actos, edeterminar se livremente a pratical-os. Sao portanto condigdes fundamentaes denma accao criminosa imputavel as unicas seguintes : 1.° 0 co- nhecimento da illegalidade da accao querida ( liber- tas judicii ); 2.00 poder o agente, por si mesmo, | deliberar-se a pratical-a, quer commissiva, quer ( rs —s— omissivamente (libertas consilit). FE’ o que resulta do proprio conceito da imputagio. « Imputar, diz Zacharice, é julgar alguem auctor de um certo facto, isto é, julgal-o cansa de um certo effeito, segundo as leis da liberdade, » () Estas leis podem ser pa:a o philosopho as mesmas leis da natureza,— e eu nao eston ionge de crél-o, -— mas formam para o jurista e¢ para o legis. lador um dominio particular. JA se vé que o Codigo nado peccaria por excesso de clareza, se tivesse manejado com mais sciencia estas primeiras verdades do direito penal. O conhe- cimento do mal, de que falla o art. 3.°, satisfaz a exi- gencia da libertas judicii; mas o mesmo nao sue- cede com a intencdo de o praticar, que nao corres ponde exactamente a condicao da libertas consilii. Como phenomeno intellectual, como synonimo de designio, projecto ou intuito, a intengdo nao pre- suppde necessariamente a liberdade de escolha entre caminhos differentes. Como forma da von- tade, como desejo on proposito deliberado de obrar, tambem nao exclue a possibilidade da falta de livre arbitrio. Sobre este ponto, a lacuna do Codigo é incontestavel. Nao é isto, porém, 0 que mais temos a lastimar. O que me causa maior impressio de estranheza évér que o referido artigo tem aberto e continta a abrir caminho a muita interpretagdo grotesca. Os tribunaes, com os seus julgados, e o governo, com os seus avisos, (6m Mostrado mais de uma vez que as altas posigdes nao livram sempre da iolice, da ignorancia chata e irremediavel; tal 6 a forga dos dislates o¢casionados pelo modo de compre hender aquella dispesicdo do Codigo. . Elle diz: — « Nao haverd criminoso ou deliD- quente sem ma fé, isto é, sem conhecimento do mal e intengio de o praticar. » (5) Anfangsgriinde des philosophischen Criminalrechts § 31. —9— Aqui levanta-se uma primeira questaéo, que alias nunca foi suscitada, e 6a seguinte: — a erimi- nalidade sé chega, até onde chega a md fé? Uma e outra sao idéas, que se cobrem, que se ajustam em todos os pontos, como dous circnios, que tém igual diametro? Sim, ou nao. No caso negativo, o principio do Codigo é falso, ou pelo menos incom- pleto; no caso affirmativo, 6 o Godigo mesmo quem se incumbe de refutar a sta proposicaéo, ama vez que, na parte especial, trata de crimes, nos quaes amd fé nado acompanha todos os momentos da de- linquencia. O momento, por exemplo, do grave incommodo de satide on de inhabilitacdo de serviga por mais de trinta dias, que forma o coutetido do art, 205, nao suppde, sendo excepcional e rarissi- mamente, 0 conhecimento do mal e intengdo de o praticar; nio obstante, ha um augmento de cri- minalidade, que provoca e justifica o augmento da pena. : Nao ficamos ahi. Costuma-se dizer, e 6 hoje ponto assentado, que o art. 3.6 nao envolve questao de facto, mas de direito,e que a doutrina nelle exarada se acha reproduzida nos arts. 40 e 13. Nao ha, no genero, maior contrasenso. No art. 10 estac, por exemplo, comprehendidos os loucos, como livres de imputagdo criminal; a aprecidgado da lou- cura, em qualquer de suas formas e symptomas differentes, envolvera porventura o que se costuma chamar uma questdo de direito? Pergunto sé para rir-me, visto que nao ha quem hesite seriamente em contestal-o. Se, porém, me objectam que, nao obstante o art. 3.° encerrar mera doutrina, S40 to- davia as disposicdes do art. 10 que contém applica- Coes positivas, resta sempre a demonstrar, por que brocesso magico, — pois logico nao existe, -- uma questao de direito naquelle, sendo reproduzida neste face se converte de repente em uma questao de cto, . Além disto, importa ainda notar uma outra \hexactidao da theoria corrente. Se o art. 10 repro- — 10 — duz, como se diz, a doutrina do art. 3.° que exige, como condicdes de imputabilidade, o conhecimento do mal e a intencao de o praticar, é difficil de com- prehender a applicacao deste principio Aahypothese do § 3.° daquelle mesmo artigo. Por quanto os « violentados por forga ou por medo irresistiveis » tém conhecimento do mal que praticam mao grado seu, -— isto mesmo esta contido no proprio con- ceito da violencia. Nao existe, pois, em taes casos a presupposigéo de completa ausencia de md fé, segundo 0 Codigo definio-a; e éum erro, por con- seguinte, affirmar cathegoricamente, sem reserva e distincgao alguma, que o principio do art. 3.° se acha especificado nas hypotheses do art. 10. it v Jai uma vez defini o direito: — a disciplina aus forgas sociaes, 0 principio da selecgdo legal na neta} pela existencia. De accordo com a philosophia monistica e com os dados da sciencia moderna, posso ainda definil-o : o processo de adaplagado das acgdes bumanas dj ordem publica, ao bem-estar da communhao politica, ao desenvolvimento geral da sociedade. ' £’ estudada a luz destas idéas. que a pena tem or um sentido. Aimputagao criminal consiste justa-f mente na possibilidade de obrar conforme 0 direito, } isto 6, na possibilidade de adaptar livremente os | nossos actos ds exigencias da ordem social, cuja expressao 6 a lei. Eu considero o crime uma das mais claras manifestagdes do principio naturalis- , tico da hereditariedade, e como tal, quando mesmo. elle fosse o que os sentimentalistas liberalisantes pretendem que seja, quero dizer, um phenomeno morbido, um resultado de doenca, nada prohibia | que, tambem neste dominio, como em todos os outros da natureza, a adaptagdo procurasse elimi- har as irregularidades da heranga. Se por forca da Sselecgao natural ou artistica, alé as aves mudam 4 cor das plumas, e as flores a cor das petalas, por- que razao, em virtude do mesmo processo, no po- } deria o homem mudar a direcg&o da sua indole? 1 Emquanto, pois, os defensores da pathologia crimi- nal, em cujas obras a sociedade inteira apparece como umaimmensa casa de orates, em quanto esses — 12 — illustres — savantissimi doctores, medicine a a a ue ne professo. res, — como diria Moliére, nado descobricem o mej, nosocratico sufficiente para oppor barreira ao ‘de licto, a pena sera sempre uma necessidade. Mais tarde ver-se-ha nella, em nome de Darwin e de Haeckel, alguma cousa de semelhante 4 selecedo espartana, ou uma especie de selecgdo juridica, pela qualos membros corruptos vao sendo postos 4 parte do organismo social commum. Disto, felizmente, quero dizer, da necessidade da pena, estao ainda convencidos todos os legisla. {dores. A pequena dose de verdade, que ha nas } pretengd s dos pathologos do crime, nao chega gava desmanchar a impressio do que ellas tém de exagerado e erroneo. Qs actos do homem nao com- portam rye certo a_imputabilidade absoiuta que resulta doc ter intelligivel da liberdade, segundo a doutrina kantesca, justamente quali ficada por Schopenhauer de desazado pedantismo moral. Mas o direito néo exige, nem precisa exigir tanto. Bas- taThe somente a imputabili relati aunica possivel_ 108 V3 i ana. Dentro éstes limites, e ainda dando-se conta de todos os factores latentes, que determinam uma boa parte das acgdes do homem, resta sempre um largo ter- jreno, em que elle 6 responsavel por ellas. A idéa do eriminoso envolve a idéa le wm espl- rito que se acha no exercicio regalar das snas fanc- cdes, e tem, portanto, atravessado os qnatro segnin- tes momentos da evolugao individual : — 4.° a con- sciencia de si mesmo ;——2.9a consciencia do mundo externo; —3.° a consciencia do dever ; — 4.0 a con- sciercia do direito. O estado de irresponsabilidade por causa de uma passageira ou duradoura pertur bacao do espirito, na maioria dos casos, éum estado de perda das duas primeiras formas da consciencl@ ou da normalidade mental. Nao assim, porem, quanto 4 carencia de imputagao das. pessoas ae tenra idade, e em geral de todas aquellas que nao atlingiram um desenvolvimento sufficiente,; neste —~ 13 — caso, 6 que nao existe, ou pelo menos 0 que se questiona, se existe ou néo, 6 a consciencia do dever, e algumas vezes tambem a consciencia do direito. O nosso Codigo, no art. 10, n&o fez mais do que reconhecer uma velba verdade, consagrada pela historia em todos os periodos culluraes do direito enal. Commetteu, entretanto, além de outros, que serio apontados, um erro de methodo : — foi reunir em uma sé cathegoria diversas classes de sujeitos ieyesponsaveis, que nao se deivam reduzir a um denominador commum, isto 6, a ausencia do que eu chamei normalidade mental. Fm outros termos, o Codigo confundio a imputatio juri ou imputabi- litas, cuja falta caracterisa os Menores e os mente- caplos, com a imputatio facti, que nao se faz valer para com os mencionados nos §§ 3.° e 4.° do citado artigo. Mas vamos ao ponto central da nossa analyse. ‘ Diz o Codigo: « Tambem nao se julgarao crimino- Ng sos: § 1.° os menores de quatorze annos; § 2.° os loucos de todo o genero, salvo se tiverem lucidos ow intervallos, e nelles commetterem o crime; § 3.° os que commetterem crimes violentados por forca ou por medo irresistiveis; § 4.° os que commetterem crimes casnalmente, no exercicio ou pratica de qualquer acto licito, feito com a Lengao ordinaria.» Eis ahium modelo de simplicidade, que é pena nao seja tambem um modele de perfeigdo, Apre- ciemol-o detalhadamente. Os legisladores de quasi todos os paizes tém Sempre estabelecido uma época certa, depois da\ qual, e sé depois della, é que pode ter lugar a res- a ponsabilidade criminal. O nosso Codigo seguio ° exemplo da maioria dos povos cultos, ¢ fixou tambem a menoridade de quatorze annos, como razio peremptoria de escusa por qualquer acto delictuoso. Em termos technicos, 0 Codigo esta- | eleceu tambem, em favor de taes menores, a pre- Sumptio juris et de jure da sua immaturidade moral. os” —I4— E’, porém, para lastimar que, aproveitando- doutrina do art. 66 e seguin do Code Pénai © nosso legislador tivesse, no, art. 13, consagradg a singular theoria do discernemento, que pode absip caminho a muito abuso e dar lugar a mais de um vespectaculo doloroso. e A disposigao do nosso Codigo encontra, como oA” ,j4 disse, disposigdes similares nos Codigos de outras vy inagdes. Isto, porém, nao obsta que seja ainda hoje yy" zquestao aberta entre os criminalistas a vantagem ou a desvantegem da fixagao legal de uma época além a jda qual 6 que o homem comegaa ser criminalmente ie jresponsavel por suas acgdes. Entre os que estao w pelo lado desvantajoso, & digno de nota o que diz Friedreich: — « As individualidades psychicas sao em geral muito mais varia do que as individua- Sidades somaticas, e ndo deixam-se prender a uma norma determinada. Quem quer que pretenda julgar da madureza do-entendimento, da forga do livre arbitrio, segundo o numero dos annos de idade, illudir-se-ha constantemente... A experiencia diaria; nos ensina que o desenvolvimento psychico appa-) rece em um individuo mais cedo, em outro mais tarde. Pelo que a determinagao de uma idade igual para todos os individuos, quando 6 tao desigual o desenvolvimento de cada um, nao pode offerecer uma segura medida da culpabilidade e de grao da pena merecida. » (6) Consideradas in abstracto, estas razdes sao de peso; nas in concreto,com relacao a este ou aquelle paiz, diminuem muito de importancia. Porquanto os males, que sem duvida resultam de taxar-se, por meio da lei, uma especie de maioridade em materia criminal, sao altamente sobrepujados pelos que resultariam do facto de entregar-se ao criteria de espiritos ignorantes e caprichosos a delicada apre- ciagio da md fé pueril. Se da (©) System der gerichtlichen Psychologie, pag. 256 @ 257- — 15 — ; Em todo caso, antes correr orisco de ver passar / impune, por forga da lei, quando commetta algum ? crime, 0 gymnasiasta de treze annos, que ja fez os seus versinhos e sustenta 0 seu namorico, do que se expor ao perigo de ver juizes estupidos e malva- dos condemnarem tra creanca de dez annos, que tenha porventura feito wma arte, segundo a phrase de familia, e isso tao somente para dar pasto a uma vinganga. Eu sei que mais de um caso grave passa des- percebido, soba protecgao do §1.° do art. 10, assim como & certo que nao poucos maiores de quatorze annos sd0 privados dessa proteccao, quaddo elles se acham realmente em condicdes de merecel-a. Mas o remedio, em tal conjunctura, seria peior que a dognca. Para obviar aos sacrificios da justiga eda verdade, inherentes a tudo que é geral, Como sao todas as regras sociaes, inclusive a lei,eu nao duvi- daria admittir, neste terreno, a opiniao de Kilka. Elle propoe que, se um Estado compée-se de muitas provincias, differentes entre si, pelo grao de desenvolvimento e de cultura espirilual, seja tomado como base na determinacao da idade legal da impu- tabilitas, o ponto mais alto, isto é, aquelle que possa convir aos individuos de todas as provincias, por- que nao ha entado o perigo de punir-se, como crimi- noso, quem alias nao tenha, mesmo depois de pas- sada a menoridade da lei, attingido o discernimento preciso para firmar a imputacao. (7) Se existe um paiz, ao qual melhor se accom- mode a realisagao de semelhante idéa, é justamente 0 Brazil. As influencias mesologicas, climatericas € sociaes, variam com as grandes distancias, que separam, por exemplo, 0s sertdes do littoral; e di- versos tambem devem ser os resultados que taes influencias possam produzir no desenvolvimento Psychico dos individuos. E’ razoavel, por tanto, —_ (7) Archiv des Criminalrechts I Stk. pag. 122. -_ — 46 — notar no Codigo este defeito: 4 taxacao legal q, menoridade de quatorze annos para tornar irres ponsavel a todo e qualquer que, no territorio brag leiro, commetta am acto qualificado criminoso, ®) E isto sé por effeito de uma reminiscencia do direito civil, ou melhor do direito romano. Digo reminis. cencia do direito romano, porque das fontes prova- veis de inspiragao do nosso legislador criminal nenbuma outra Ihe poderia aconselhar uma tal disposicéo. O Code Pénal, é singulat e digno de reparo, o Code Pénal mesmo, que Ihe prestou bongs servigos, nado foi ouvido nesta parte. O art. 66 desse Codigo eleva a idade, aquem da qual nado existe imputacao, a dezeseis annos. Disposigiic esta muito mais salutar,e cuja importancia é apenas attenuada pela subtil distincedo estabelecida entre o menor que obrou sans discernement eo que obrou avee dis- cernement. Mas nao seria ag certo o nossa legis- Jador, quem pudesse, por esse lado, justificar-se de haver abandonado 0 Code Pénal. Porquanto gcon- ceito do discern , de_difficillima apreciacdo, elle 0 aceitou, ainda que Ihe conferindo, com muita infelicidade, um outro valor juridico. A idéa, porém, de poder o menor, que praticou um facto delictuoso, ser entregue 4 sua familia, como se lé no referido art. 66 do Code, o nosso legislador nao quiz admittir; e creio gue ninguem louval-o-ha por isso. co Como quer que seja,o certo é que, pelo direito criminal francez, um rapaz de quinze annos, que ja conhece todos os encantos da vida parisiense, que ja entra, com todo o conhecimento de causa, M4 gruta mystica e perfumosa, em que habita alguma deusa, que até ja sabe a fonte onde Diana se panha, e vai espreital-a ntia, nao obstante o perigo de set devorado pelos cies, caso commetta um homicidio, (8) O Brazil tem 8,337,218 kilometros quadrados ; menos gue toda a Europa somente: — 1,631,182. —17— gil est decidé qu’il a agi sans discernement, sera absol- vido ; podendo apenas ser, selon les circonstances, vemis a ses bavens ou conduit dans une maison de cor- ection... Ao passo que isto alli succede, entre nds, pelo contrario, um pobre matutinho da mesma jdade, cujo maior grao de educagao consiste em estender a mao e pedir a bengdo a todos os mais yelhos, principalmente ao vigario da freguezia e ao coronel dono das terras, onde seu pai cultivaa man- dioea, se porventura perpétra um crime de igual natureza, se por exemplo mata com a faquinha de tirar espinhos 0 mogo rico da casa grande, que elle encontrou beijando sua irma solteira, obre ou nao com discernimento, sera julgado como criminoso ! I FP’ verdade que alguns Codigos de outros pai- zes, posteriores ao ncsso Codigo, taxaram a idade it? legal abaixo mesmo de guatorze annos. Tambem é certo que com 0 nosso estao de accérdo os Codi- pe gos da Saxonia, Brunswick, Hamburgo e Zurich. Masé preciso attender para o estado cultural desses lugares, em relacao ao Brazil. A Ttalia mesma, em cuja ultima codificagao penal aquella idade princi- pia aos nove annos, étalvez, ceteris paribus, menos censuravel do que este vasto paiz sem gente. Pelo menos me parece que uen byiado, no qual se obriga a aprender, e onde homens como Casati, Coppino, de Sanctis, tem sido ministros da instraccao pr- blica, para promoverem a sua diffasdo, tem mais direito de exigir d2 um maior de nove annos uma certa consciencia de dever, que o faga recuar da pratica do crime, do que o Brazil, com o seu_pes- simo systema de ensino, pode exigil-a de qualquer maior de quatorze Ainda 6 verdade que o Strafgesetsbuch do [mpe- rio Allemao, presentemente a- obra mais perfeita no genero de codificagdes penaes, 0 que se explica, nao sé pela propria riqueza da sciencia allema, como tambem pelo muito que elle utilisou-se dos Codigos precedentes, ainda é verdade que esse Co- digo, no sen artigo ou paragrapho 55, consagra a immunidade criminal da puericia, até os doze annos somente, Mas isto, com maioria de razao, nao pode enfraquecer a critica merecida pelo nosso ae —~ 0 — legislador. Basta olhar para os dous paizes, que g acham separados por uma enorme distancia g ~ graphica, e todavia insignificante, em face da ‘yj tancia intellectual. : Além disto, 0 Strafgesetzbuch colloca se Thito adiante do nosso Codigo, dispondo que, quando 9 accusado tiver mais de doze, porém menos de de. zoito annos, sera relevado, se ao commetter 3 acto de que se trata, nao’ possuia 0 conhecimento pre- ciso da sua criminalidade. Como se vé, uma tal disposicado estende a possibilidade da falta de dig. cernimento além do marco fixado pela nossa lei penal. «Com este reconhecimento, diz Krafft-Ebing, actual professor de Psycbiatria na Universidade de Strasburgo, com este reconhecimento de um grao intermediario de imputabilidade entre a que falta ao menino ea completa do homem feito, a legisla- cao da conta de um importante facto agthropolo- gico. » (9) O nosso Codigo, entretanto, nao conhece este facto, e se nelle apparece alguma cousa de doso para os delinquentes, qne estao entre os qua- torze e os dezesele annos, esta compaixao nao exclue a possibilidade de ser, por exemplo, um rapaz de quinze janeiros condemnado a prisao perpeiva. Eun ja disse que, no presente assumplo, 0 nosso legislador acostara-se a uma reminiscencia do di- yeito romano. Isto 6 exacto; mas deve ser admit- tido cum grano salis. ~ Porquanto, se esse direito tivesse sidu a fonte, ndo precisava exclusiva, bas- tava preponderante, do Codigo brazileiro, em tal materia, 6 mui provavel que as disposigdes respec” tivas fossem mais largas e fecundas. . Entre os romanos, a puericia /infantia ] che- gava até os seleannos. Primitivamente e nos lem- pos dos juristas, de cujos escri iptos foram compila- das as Pandectas, considerava-se menino a lode (9) Grundziige der Criminalpsychologie, pag. 12- : — a e qualquer individuo, em quanto elle n&io podia fallar com uma certa ligacao de idéas. O imperador Arcadic acabor ~>m esta incerteza do velho direito, e determinou entao que a infantia ficasse nos limi- tes daqnella idade; determinagao que foi inantida pelos imperadores succedentes. No ponto de vista criminal os infantes tinham a seu favor a presup- posigao de lhes faltar o intellectus rei, e como taes nao podiam ser punidos. (L. 12 D. ad legem Corne- liam de siccariis ef veneficis, 48, 8; L. 23 D. de furtis, 47,2; L.5§2D. ad legem Aquiliam, 9,2). Quanto, porém, aos impuberes, Aquelles que estavam entre os sete e os quatorze, se eram homens, ou entre os sete e os doze annos, se eram mulheres, o direito romano dividia-os em duas cathegorias: —~ a dos infantic proximi e a dos pubertati prowimi. Aquelles podiam ser julgados, conforme os casos, somente culpa, nao doli capaces ; estes, ao contrario, no que tosavaaimputagao e a pena infligivel As suas accdes criminosas, eram médidos mais pela bitola juridica dos adultos do que pela das criangas. Esla differenga entre as duas cathegorias toi marcada por Averanius nos seguintes termos: «in- fantie proximus a proximo pubertati distinguitur non tam etate, quam ingenio, calliditate, malitia.... » b’ facil, pois, comprehender que, se o legislador patrio houvesse haurido com mais cuidado nas fon- tes romanas, oulros teriam sido os seus preceitos a respeito dos menores, pelo menos no que per- tence ao vago discernimento, de que trata o art. 13, e que é possivel, na falta de restcicgdo legal, ser descoberto pelo juiz até em ume crianga de cinco annos!... O que 0 Codigo aproveitou, foi somente o velho computo da idade exigida para comeco da verda- deira imputatio juris. Puro espirito de sequacidade, sem reflexao e sem criterio. E’ sé para sentir que 6 direito romano nos tenha sido transmittido, ja de todo desfolhado daquella grande parte ceremonial, que lhe dava uma feigao esthetica, e que fez Celso —~ 2 descobrir-lhe alguma cousa de artistico: — jus est ars boni et equi. Porquanto, a nao ser isso, teria. mos hoje, na scena juridica, muito espectaculy bello a apreciar. O presente assumpto, por exemplo, é provavel que ainda hoje fosse iHustrado por mais de um quadro interessantissimo. Iu me explico. Na pri- meira época evolucional do jus civile, que faco, de accérdo com o professor Guido Padelleti, esten- der-se até o 7.° seculo da fundagao da cidade, a lin- guagem do direito era grave e sizuda, como 0 pro- prio espirito do povo que a fallava. As idéas tam. bem tém, 4 semelhanca dos homens, 0 seu primi- tivo estado de nudez, Ellas alli appareciam inteira- mente despidas de qualquer roupagem conven. cional. Nada de coquetterie rhetorica, nada daquillo que Pott chama dissimulagdo, e que é um dos mo- mentos do desenvolvimento das linguas, no qual ellas escondem, por meio de euphonias e euphe- mismos, a rudeza do pensamento. Em taes condi- cdes nasceram e viveram por muito tempo as pala- vras pubes e impuber. Ellas que hoje se apresentam. com um certo ar de fidalguia, e, como 6 proprio de todos os fidalgos, um pouco esquecidas da sua ori- gem, eram ao principio expressdes metonymicas de um signal pela couse significada; exprimiam com toda a Ihaneza a ntia realidade de um facto, sujeito a observacao. Desvarte a simples historia natural das duas palavras seria bastante para deixar-nos entrever. através dos seculos, uma importante forma proces sual dos jus civile, que alias actaalmente ivia de encontro a todos os costumes e convencoes soclaes- Mas aqui a semasiologia ou theoria da significacae é auxiliada pela propria historia do direito. Realmente sabemos que entre as duas escolas adversas de Proculeianose Cassianas ou Sabinianos houve tambem disputa sobre o modo de julgat da madureza de espirito dos individuos. Os Cassianos exigiam, para determinar-se a maioridade, 08 518 — 3 — naes da madureza corporea, e achavam por isso imprescindivel a observacao ocular. Os outros, porém, enten?!..:: que hastave attingir a uma certa idade, fixada pela lei. Justiniano deu ganbo de causa a estes ultimos pela Const. 3 do Codigo, — Quando tutores... (5,60), (10) nos seguintes termos : «Indecoram observationem in examinanda marium pubertate resecantes, jubemus: quemadmodum femine post impletos duodecim annos omnimodo pubescere judicantur, ita et mares post excessam quatuordecim annorum puberes existimentur, in- dagatione corporis inhonesta cessante. » — Daqui resulta, 6 verdade, que ja no tempo de Justiniano a inspecedo da puberdade estava limitada ao sexo masculino; mas nada antorisa a crér que nunca as mocas romanas tivessem passado por um tal exame. O que se deve admittir, como mais provavel, é que muito antes de cessar a observagao da puberdade dos homens, cahio em desuso a da puberdade femi- nina. Em todo o caso, éaos juristas da escola de Labeo que se deve, ao menos em grande parte, semeihante alteracao. Nao posso deixar de abrir aqui um pouco de espaco 4 rhetorica, e bradar de punhos cerrados, na attitude da raiva: malditos Proculeianos, que déstes occasiao a estarmcs hoje privados das mais deslumbrandes scenas!... Ja houve quem dissesse que, se 0 nariz de Cleopatra fora um pouco menor, o mundo actual seria completamente diverso. Da mesma forma, se Justiniano tivesse tido uma dése maior de voluptuosidade, é bem provavel que ainda presentemente se nos offerecessem, na esphera da vida juridica, os mais soberbos quadros vivos. Por que nao? Se em muitos dominios do direito, conti- nuamos a nutrir-nos dos ossos cahidos da mesa 40) Ulpiano — fragm. tit. IX paragrapho ultimo. —w— imperial de Bysancio, nao vejo razao plausiy. a vey el, qual nao obedecessemos a lei do despota, quel ventura ainda hoje mandasse snjeitar 4 exaret 4 puberdade mulheril. ame Eu sei que, nesta hypothese, seria infattiy 1 e renhida uma grave qnestio preliminar: saber quem tinba mais competencia para a inspecgio Se os medicos, on os juristas. Havia de ser sem duvida um dos mais bellos combates, uma das mais bo- nitas formas da lucta pela existencia. Mas afinal era possivel uma conciliagao, partindo-se exactamente ao meio, distribnindo-se com toda a justica os pa- peis dos pretendentes: aos medicos, os filhos de Addo; aos juristas, as filhas de Eva. Abandonemos, porém, esta ordem de conside- ragdes, mesmo porque se referem a uma materia, que a imitagado dos carmina Saliorum, dos quaes disse Quintiliano que eram... via sacerdotibus suis satis intellecta, n&o esta ao alcance de todos; —sé os raros iniciados, os poucos que distoam da purezae seriedade do meio social em que vivemos, é que podem bem comprehendel-a. A sociedade hodierna ja nao aguenta a expresso de certas verdades; ea prova é que se alguem, por exemplo, querendo significar que uma bella menina principia a desplu mar-se de anjo e encarnar-se de mulher, disser poeti- camente que ella: « comeca a esconder os peque- nos seios tumidos, como se costumam encapotar os pomos maturescentes, para as aves nao helisca- rem» mais de um ouvido casto descobrira talvez nesta phrase uma licenga, que nao deve ser repetida em um saldo de gente fina. Purém, se em vez do poeta ligeiro, for o grave jurisconsulto, quem diga, em prosa juridica. que a menina ja é pubere, nao causara estranheza a ninguem. Entretanto, é certo que as palavras pubere e wr pubere, com os seus dous proximos derivados, segundo a significagado primitiva, e medidas pelo padraéo da moralidade moderna, sio altamente It; decentes. Nao ha nisto uma ridicula incoherencl@: — %B — Mas 6 0 effeito do inconsciente nas linguas, e nos aspiritos tambem. Passemos adiante. Suscita-se ainda, a proposito de menores, uma questio importante: por que razao 0 Codigo, deter- minando a idade, em que comega a imputacao cri- minal, nao estabeleceu differenga entre 0 homem eamulher? Que motivos de ordem noral ou poli- tica o levaram a igualar os dous sexos, sob o ponto de vista juridico-penal, quando elles sao tao des- iguaes na esphera do direito civil? £’ 0 que trato de elucidar. IV Quando se considera que as leis encurtam o diametro do circulo de actividade juridica das mu- Iheres, em relagéo 4 sua pessoa e a sua proprie- dade, que expressamente assignalam-nas como fra- cas e incapazes de consultar os seus proprios inte- resses, e desVarte, ou as mantém sob uma tutella permanente, ou instiluem para ellas, em virtude mesmo do dogma da sua fraqueza, certos beneficios ou isempgdes de direito; em summa, quando se atlende para a distincgao sexual, tao claramente accentuada nas relagdes juridico-civis, é natural presuppor que se tem reconhecido uma differenca fundada na organisagao physica e psychica dos mesmos sexos. Mas isto posto, é tambem o cumulo da inconsequencia e da injustiga nao reconhecer igual differenga no dominio juridico-penal, quando se trata de imputagao e de crime. O nosso Codigo foi fiel as tradicdes recebidas. A censura que se lhe deve fazer por isso, 6 verdade que nao se restringe 4 elle somente, estende-se a todos os Codigos modernos, que sio animados do mesmo espirito, que sao réos da mesma injustica, € para os quaes nao foi, ao certo, que Schiller escre- veu Os graciOsos versos : Ehret die Frauen ; sie flechten und weben Himmlische Rosen ins irdische Leben, — 2 ~ Porém o facto de achar-se 0 Codigo brazileirg em tao boa companhia, no que diz respeito 4 Posi. efo da mulher no direite criminal, nao diminue o valor da critica, que elle provoca. Se o mal de muitos, como diz o proverbio, consdlo é, o mesmo nado se da com 0 erro de muitos, que nao se trang. forma em verdade. Pelo contraric, & certo que ag grandezas extensivas proporcionam-se Com as inten. sivas em uma razio directa; quanto maior 6, pois a extensio que toma o erro, tanto mais fatal é a intensidade da sua influencia. Nao pretendo aqui entoar um hymno de louvor 4 bella metade do genero humano. Poste que em assumpto de poesia, em materia de preitos devidog aos encantos femininos, ainda nao tenha motivos para julgar-me uma especie de tenor emerito, com- tudo nao me esquego jue nem sempre é tempa de cantar; e eu quero poupar a garganta. Nao venho tambem aqui suscitar antigas disputes, por exem- plo, a velha questao patristica, que ainda no seculo XVIT occupou mais de uma cabega pensante, a questio de saber se a mulher tanibem era feita ad imagem e semelhanca de Deus. Nao preciso disto. Para desenvolver as minhas ponderacoes juridicas, basta-me, como postulado, que a mulher seja feita a imagem e semelhanca da Venus de Canova. Nao sou muito exigente. Fazendo minhas as palavras de Papiniano, que infelizmente podem ser repetidas por qualquer ju- rista da actualidade, cu direi: « In multisjuris nostri articulis deteriov est conditio faminarum quam mas- culorum.» Ou seja por effeito de uma incapacidade do espirito moderno de reagir contra os prejnizos dos velhos tempos, ow por forga de convicgoes assentadas a respeito da inferioridade fernintna, para o que aliis nao se descobrio até hoje uma razio superior a que foi dada por Ulpiano, isto © quia major dignitas est ia seau virili, razao que Nao faz honra ao senso logic do jarisconsulto romano, seja qual for o motivo, a verdadeé que 0 nosso pal’s — 29 — pem como todos os outros, quer cultos, quer semi- cultos, ainda conservam quasi no mesmo pé, em que a deixou a civilisagao antiga, a desiguatdade civil e politica da mulher em relagéo ao homem. Nao € aqui o lugar proprio de levantar novos rotestos contra esta anomalia, que se ha culmi- nado no absurdo de negar-se a mulher até o direito de instruir-se, e na qual, por conseguinte, a socie- dade moderna, em sua maioria, esta muito atras da igreja medieval. A igreja, pelo menos, procedeu com alguma coberencia. Nao admittinde quea mu- ther fosse além do cireulo da familia, attendeu tam- pem que todas nao podiam gozar does beneficios do casamento, e para obviar a um tal inconveniente, instituio o chamado noivado de Christo, creou a clausura, como um refugio e uma consolagao. A so- ciedade hodierna, porém, que por um lado zomba dos converitos, e por outro lado insiste em restrin- gir o papel feminino aos unicus mistéres da vida familiar, pois que todas, ainda hoje, nao recebem do destino a graga de serem esposas, e além disto se lhes contestla a capacidade de estudar, a sociedade hodierna acha-se em frente de uma terrive) questao. Como resolvel-a? Provavelmente instituindo uma ‘nova especie de noivado mystico e fazendo do pros- tibulo o subrogado do convento. Nao é assim? A mulher que na opiniao de todos os cavalhei- ros de um baile, ou de todos os convivas de um banguete, inclusive legisladores e juristas, pois esta incluséo nao vai de encontro ao principio das in- compatibilidades, a mulher, que na opiniao de todos estes, quando os sons de uma linda walsa convidam a dangar, ou o sabor dos licdres desafia a musa do brinde, 6 a princeza dos saloes e a estrella que mais brilha nas grandes solemnidades, volta a ser no dia Seguinte, na opiniao dos mesmos peritos, uma Crianga permanente, que nao pode ter completa autonomia, que nao deve ser abandonada a si mes- tha !... Que quer dizer isto? Como se explica e jus- Uifica esta falta de coherencia e sisudez? Ss — 30 — j t A sociedade é um sujeito, para o qual ha mnuit | que se procura um attributo. Ella nao 6, nem Se ° jamais o que Jesus queria que fosse : — era Al 3 oTta a Organi, cao do amor. Ainda nao é tambem, nem hades tao cédo o que Lorenz Stein e Hartraann pretendem que ella seja: — a organisagao do trabalho. Diante porém, de semelhantes factos, creio ter descoberts o verdadeiro predicado : — a sociedade 6 simples. mente a organisagao da hypocrisia. Mas deixemos isto. Repito que nao é aqni o lugar proprio de protestar de novo contra a anoma. lia da desigualdade civil e politica da mulher em relagio ao homem. Acceitando-a como um facto ainda que barbaro 6 merecedor de todas as incre. pagoes, limito-me a perguntar: se a mulher 6 natu- raimente fraca, se ella tem, como diz 0 rifao, com. pridos cabellos e curtas idéas, se ella se caracterisa por uma natural leviandade e falta de criterio; por que razao todas estas consideragdes no se esten- dem até os dominios do direito criminal ? Sea fragilidade do sexo 6 invocada como argu- mento decisivo, quando se trata de justificar todos os actos de tyrannia que a Jei permitte o homem exercer sobre a mulher, qual o motivo porque essa mesma fragilidade nao se faz valer, nem no que toca a imputabilidade, nem mesmo no que pertence a gradagao penal? Nao comprebendo. O legislador brazileiro nao tinha o dever de se mostrar mais adiantado que os outros, em ser 0 prl- meiro a dar o exemplo de largueza de vistas, attrl- buindo um valor juridico especial ao sexo feminino- Mas esta observagao nao quer dizer que 0 jnigue desculpavel pela falta commuam. A inconsequen tt ea injustica permanecem as mesmas. Verdade © que o Codigo, em algumas de suas disposicoes, 4 testemunho de uma certa galanteria, que 0 legis dor quiz fazer 40 bello sexo. Assim, por exemp! ti conferio-the o privilegio de nio andar com ealee ao pé, art. 45, outorgou Ihe até o direito de mn ser enforcada em estado de gravidez, art. 43; se”! — 3 — apenas para lamentar que o legislador se tivesse esquecido de que, em tal hypothese, a execucao sobrecarregava-se de uma extrema crueldade: — ade deixar am filho sem mai e de matar uta mai, que deixa um filho. Porém estas concessdes, quando mesmo eu as tomasse ao sério, nao chegariam para preencher a lacuna que deploro. O sexo feminino deve formar, por si sé, uma circumstancia ponderavel na apreciagado do crime. Ama fé criminosa pres o consci ii i; mas esta consciencia nunca se encontra nas mulhe- res no mesmo. grao em que se encontra nos homens, Ja tem sido mesmo por vezes indicado como um traco caracteristico da mulher o mostrar ella pouco interesse pelos negocios publicos; ao que aceresce que, por sua educagao, pela exclusdo de toda 6 qualquer ingerencia na politica, ella fem sido pro* hibida de chegar a um determinado conhecimento do direito. Que admira, pois, perguntava Hippel, um fanatico emancipacionista allemao do comeco do seculo, que admira, se em taes condigdes as mu- theres seguem a lei, como as freiras cantam 0 psal- terio, e se debaixo das mais sérias prescripcdes do Estado ellas descobrem sempre uma folia do ridi- culo, interpretandoa seu modo aquillo em que alias so exige cega obediencia ? E bem antes delle, Schau- mann ja tinha dito com um tal ou qual sarcasmo: «Conforme o rigoroso proverbio masculino— mulier taceat in ecclesia, — a mulher nao deve de modo algnm interessar-se pelos negocios da vida Civil, e todavia as suas acgdes publicas devem ser iulgadas Segundo as leis civis! » (41) b’ o desproposito mul- Uplicado pela iniquidade. Nao dissimulo, nem preciso dissimular que a mulher, a despeito mesmo da stia inerte funecdo honorifica de rainha de baile, ou de rainha consti- ee (11) Ideen zu einer Criminalpsychologie — 1772 — pag. 97. ST — 32 — tucional ¢ la Thiers, que reina somente, mag na, governa, tambem 6 sujeita a ac os de atavisnny. que transformam todas as suas gragas em outras lan. tas garras de ferocidade. Corruptio optimi pessimum Ha uma cousa peior do que ver o homem conver. ter-se em féra, 6 ver o anjo converter-se em diabo O feio moral feminino é sempre mais desagradave} do que o feio moral masculino. Do mesmo modo que a fealdade physica da mulher, denotando am certo desrespeito a regra natural da preponderan. cia de combinagdes carbonicas, que produz a gor- dura, a rigidez das carnes, e 0 arredondado des forinas femininas, nos causa impressdo mais agra, do que costuma causar-nos igual phepomeno ob- servado no homem, assim tambem a fealdade da alma. E até ds vezes succede que a fereza mascu- lina, a expressdo da séde de sangue, da ancia de matar, chega mesmot‘a attingir, como nos ledes, nos tigres e pantheras, uma especie de altura esthetica. Nao assim, pam, na mulher,em quem esse pheno- meno é sempre horrivel e baixamente repngnante. Tudo isto é verdade, mas tudo isto nada prova contra a doutrina que professo. Nem eu reclamo para o bello sexo o privilegio da impunidade. O que me parece reprovavel, é que as leis nao sejam do- minadas de um pensamento homogeneo no modo de julgar o desenvolvimento e a formacao do car ter feminino. Gom effeito, é uma verdade trifvia- lissima que a mulher affecta-se mais facilmente do que o seu cruel companheiro de peregrinagao ter- restre, que a gamma dos seus sentimentos, o te clado das suas emogoes, tem muitas oifavas acima do teclado commum das emogoes do homem. | Mas sendo assim, por que principio este facto nao é bem ponderado na balanga da justiga? })’ o que eu gur zera vér esclarecido de um modo satisfactorio. A estranheza que produz essa inconsequencla, é tanto mais justa, quanto é certo que nas fontes do direito romano encgntra-se, neste sentido, alguma cousa, de que pode\a orgulhar-se muito legislador — 33 — dos nossos tempos. Assim lé-se na L. 6 D. ad legem Juliam peculatus (48, 13). « Sacrilegii poenam de- bebit Proconsul pro qualitate persone, proque rei condicione, et temporis et atatis et sexus vel seve- rius, vel cletnentius statuere.» Os imperadores Arcadio e Honorio, pela cunst. 5 do Cod. ad legem Juliam magestatis (9,8) determinaram que os filhos dos criminosos de alla traigdo nada recebessem da heranga paterna; para as filhas, porém, se reser- vasse uma parte: «mitior enim circa eas debet esse sententia, quas pro infirmitate sexus minus ausuras esse conlidimus.» Como se vé, os Cesares romanos procederam com mais justica; nado trataram igual- mente a seres desiguaes. O que, porém, mais deve admirar, é que até o tao desacreditado direito cano- nico encerra idéas mais razoaveis a tal respeito. Nelle se lé, a proposito do homicidio, entre outras cousas, 0 seguinte: « plenius nosti, quod in exces- sibus singulorum non solum quantitas et qualitas delicti, sed etas, scientia, sewus, atque conditio de- linquentibus sunt attendends, (12) . Oppor-se-me-ha talvez que o Codigo brazileiro nao se mostrou de todo indifferente a esta ordem de consideragdes, pois que desprezou a taxa civil de doze annos, marcada para a puberdade femi- nina, e na fixagdo da menoridade irresponsavel comprehendeu indistinctamente ambos os sexos. Sempre foi um passo adiante, porém de nenhum alcance. Nao basta que a imputagdéo da mulher comece na mesma época, em que comece a do ho- mem ; é6mister espagar um pouco mais o seu ponto de partida. Subscrevo, neste sentido, a opinido de Spangenberg, Besserer, e outros criminalistas nota- veis. O celebre Carmignani chegou mesmo a exigir que, em questdes penaes, o sexo feminino, por si 86, equivalesse sempre 4 menoridade. (13) E o grande Sabio italiano nao era um galanteador. (42) Cap. 6. (Decretal V. 12) de homicidio. (18) Teoria delle leggi della sicuresza sociale, Vol. 2,° pag. 172. 3 Vv Insisto no meu argumento: a medida legal da capacidade feminina deve ser uma sé. O direito civil e o direito criminal nao sao, por assim dizer, duas faces do mesmo espelho, uma de augmentar, outra de diminuir, de modo que a mulher se veja, por esta, com cara de crianga, por aquella, com cara de homem. Ainda esto vivas as bellas palavras de Olympia de Gourges, que eu me permitto inverter erepetir: em quanto a mulher nao tiver, como o homem, o direito de subir 4 tribuna, ella nao deve ter igualmente com elle, nas mesmas proporcdes que elle, o direito de subir ao cadafalso. Nem pareca que estou querendo dar os pri- meiros lineamentos de uma codificagdo penal para a Ilha dos amores. Pode ser que 0 Jeitor me julgue um tanto romantico. As naturezas poeticas, que alias nao se caracterisam somente pelo talento de versificar, tem algama cousa de semethante aos meninos de ama: assim como estes fazem de todos os objectos objecto de comida, levando-os 4 bocea, da mesma forma ellas fazem de todos os assumptos assumpto de poesia, levando-os ao coragdo. Mas devo confessar, para prevenir qualquer engano a tal respeito, que ndo me entreguei ao presente tra- — — 3% — batho, de lyra na mao, ou com a fronte cingida de hera. O terreno, em yue piso, nio exige que eg me descalce ; nao é o terreno sagrado dos sonhos ¢ aspiragoes idéaes, porém o sdfaro e commum dag realidades positivas. E t&o pouco se entenda que, fallando de uma sé medida legal da capacidade feminina, eu reclame para a mulher aquillo que tambem nao existe para o homem, isto é, que a idade da imputagao crimi- nal coincida com a maioridade civil. Nao é isso. Talvez que a logica, mais despreoccupada e menos relativa que a justiga, possa chegar até ahi; porém nao vou com ella. Segundo a energica expressao de Georg Brandes, o illustre dinamarquez, a quem ja tive mais de uma veza honra de citar em publico, se a logica penetrasse no fundo de todos os erros e prejuizos, de que se nutre a sociedade, faria o mesmo servigo, que pudéra fazer um touro bravo, entrando em um armazem de vidros. Os carreteiros que se incumbissem de apanhar os cacus de cem mil verdades convencionaes. Nao quero applicar ao nosso codigo toda a extensio de semelhante me- dida. Mas acho que é difficil contestar seriamente a justeza destas consideragdes. A theoria da impu- tacio criminal assenta em dados psychologicos. Nés néo temos ainda, no dominio scientifico, am conjuncto de estudos e observagdes sobre o mundo interno feminino, ao qual se poderia dar o nome de gyneco-psychologia ou sciencia da alma da mulher em geral; e muito menos um outro systema de igual natureza, posto que de ambito mais restricto, que tambem poderia ter o seu nome technica e des- ignar-se como partheno-psychologia ou sciencia da alma das mogas. Maso pouco, muito pouco mesmo, que nos 6 dado conhecer das riquezas e maravilhas desse paiz encantado, inexploravel, que se chama a vida espiritual, a subjectividade feminina, autor sa-nos a induzir que alli as flores abrem cantando, as aves brilham como estrellas, e as estrellas dei- — 37 — xam-se colher como fléres. O que no homem é pas- sageiro e occasional, o predominio da paixdo, na mulher 6 perm::onte, constitue a sua propria es- sencia. A roupa de festa das grandes emogoes, dos sentimentos elevados, ella nio espera os momentos solemnes e dramaticos para vestil-a ; veste-a diaria- mente. O homem, quando ama, ainda tem tempo de trabalhar, ou de dar o seu passeio, ou de fumar o seu cigarro; nado assim, porém, a mulher, que, nesse estado, ndo tem tempo de pensar em outra cousa senao no seu amor. J& se vé que para individualidades psychicas tao distinctas, nem o grao de imputabilidade pode ser 0 mesmo, nem a mesma pode ser a tarifa da pena. A tal respeito existe até uma contradiccado chocante entre o homem cemo filho, ou como es- poso, ou como pai, sem fallar do homem como namorado, que nao tem voto nesta materia, e o homem como legislador. Com effeito, 6 para admirar: se uma mulher no intuito de salvar seu filho, que ella vé prestes a ser devorado por um carnivoro, expde-se loucamente aos dentes da féra, ninguem ha que nao renda preito a herocidade do amor materno, dessa paixao inde- finivel, que ja poude uma vez arrancar da bocca de uma ingleza, ao lér o conto biblico do sacrificio de Isach, estas palavras sublimes : Deus nao era capaz de dar tal ordem a uma mai. — Se entretanto a mesma mulher atira-se contra um homem, que ella vé maltratar a seu filho, e furiosa chega a matal-o, Ja nado se olha para uma heroina, porém para uma criminosa!... Mas ainda: — se a moga que aban- donando-se ao seu querido, arrastada pela omnipo- tencia do amor, é victima de uma infidelidade, de repente enlonquece ou morre de paixdo, todo o mundo concorda que a infeliz succumbio a furca do amor. Se,porém, ella tem a coragem de suicidar-se, ou de embeber o punhal no peito do infiel, a atti- tude do publico ja é outra: no primeiro caso, dimi- nue a compaixdo; no segundo, desapparece a om- ol VI Depois dos menores, 0 Codigo exclue da es- phera da criminalidade os loucos de todo genero, salvo se tiverem lucidos intervallos, e nelles commetterem o crime. Como se vé, esta disposigéo envolve uma regra geral, modificada por uma excepcao. A regra é justa e humana ; a excepcdo, porém, 6 que nao se impoe ao espirito com o mesmo grao de justica e humanidade. Mas a mesma expressao synthetica — lowcos de todo genero, comquanto simples e clara, larga e fe- cunda em sua simplicidade, nao 6 todavia bastante comprehensiva para abranger a totalidade nao sé dos que padecem de qualquer desarranjo no meca- nismo da consciencia, como tambem dos que dei- xaram de attingir, por algum vicio organico, o d envolvimento normal das funccgdes, ditas espi tuaes, sendo uns e cutros isemptos de imputacao juridica. Por mais que se estenda o conceito da loucura, por mais que se diminua e simplifique a sua comprehensao, a ponto mesmo de reduzil-o a uma quantidade negativa, 4 méra ausencia do seu contrario, como fez Regnault, para quem la folie west que Vabsence de la raison, — detinicdo legitima- Mente franceza, que alias tem tanto valor e é tado _#- | cheia de senso, como dizer, porventura, que a ye, Ihice nado é mais do que a ausencia da tmocidade. ou que a razao nao é mais do que a ausencia da oy? cura; — em uma palavra, por maiores esforcos que se faga para conferir ao Codigo a honra de ter gitg pouco © subentendido muito, nao _é possivel insere. ver no circulo da disposigao do § 2.9 do art. 10 todos os casos de perturbacao de espiritu, ou de anoma. lia mental, todos os affectos, desvarios e psychoses que devem juridicamente excluir a responsabilidade criminal. Aqui eu sei que se me atatha com dous argu- mentos, j4um pouco idosos,de que se costumalancar mao, para arredar ou pelo menos attenuar as cen- suras que 0 nssso legislador merece. Um 6 filho da consideragdo do tempo, em que o Codigo foi feito, eo outro se firma na especie de apophthegma, creado nao sei por quem, segundo o qual a lei nio deve nem pode ser casuistica. Este segundo ponto, ainda que tenha por si a autorisada opinido de todos os que inconscientemente o enunciam, nao deixa por isso de envolver um grosso erro. A ver- dade esta justamente na assergao contraria. Para provaL-o, basta lembrar que o mais completo sys- tema de direito, que conhecemos, é tambem aquelle em que o caracter casuwistico se mostra em mais alta escala. Refiro-me ao direito romano, que sem esse caracter, sem a riqueza dos detalhes e a variedade das hypotheses, nao teria jamais levado tio longe 0 seu vigor e a sua influencia, ae Quanto, porém, 4 consideragao do tempo, isto €, quanto 4 parte que deve ser feita ao estado de cul- tura do paiz, queera bem pouco lisongeiro na época da confecgao do Codigo, importa fazer uma obser- vagao. Reconheco que a critica tambem tem 0 seu systema de attenuantes; mas uma cousa é critical uma lei, e outra cousa criticar uma obra scientilica ou litteraria. Aqui permitte-se attender as diversas circumstancias, inclusive o tempo e o ambiente —~B- gocial, que podem tornar desculpaveis 08 erros e fraquezas dos escriptores Ali, porém, o negocio édifferente. Quando se trata de lei ou de direito, o criterio do seu valor nao é 0 da verdade, mas o criterio da conformidade ou nao conformidade ao fim quea lei se propoz. 0 direito éum regulador, nao do pensamento, porém das acgdes; nae se lhe deve portanto applicar a medida theorica do verda- deivo, Mas a medida pratica do conveniente. Esta distincgéo é de alguma importancia. Dizer de um simples producto intellectual, na sciencia ou nas lettras, que elle 6 bom em relacao ao seu tempo, tem um sentido razoavel, uma vez que por esse modo nao sé se exprime uma certa piedade para com o auctor, mas tambemse daa entender que de entao para ca houve progresso, sem que alias a obra em questao opponha o minino embarago 4 marcha das idéas. Em todo caso, a expressao envolve um elogio. Outro tanto, porém, ndo acontece no domi- ‘nio do direito. Uma lei, que ¢ boa para o seu tempo, é uma lei que jd passou seu tempo, que nao esta mais em condigdes de satisfazer as exigencias da socie- dade, e que por Gonseguinle deve ser melhorada. Reflectida ou irreflectidamente expresso, esse juizo encerra sempre uma censura. FE’ o que succede com o nosso Codigo. Nao estou muito de accdérdo que elle tenha sido bom para o tempo mesmo da sua promulgagdo; mas dado que assim fosse, isto ndo 6 uma razio peremptoria contra quem quer que hoje the note imperfeigdes e despropositos. Se é perdoavel a um escriptor bra- zileiro de 1830, mesmo porque actualmente ninguem mais o 1é, 0 acanhado das suas idéas, a estreiteza do seu horizonte, outro tanto nado pode dar-se com 0 legislador daquella época. Postergada e esque- cida a producgao litteraria, ndo é muito que se pro- cure salvar do nanfragio,ao menos o nomedoanctor, desculpando a sua ignorancia. Mas como esquecer a lei, fechar os olhos a todos os seus defeitos, e at- lender somente para o meio sociale o estado de —_ —h— cultura dos homens, que a fizeram, sea lei ¢ hoj tao viva, como nos primeiros dias da sua execugay, se a desculpa fundada no tempo, em que ella fo} feita. nao nos livra dos maos resultados das suas lacunas? Limito-me a perguntar, e néo me demorn em saber qual seja a resposta, pois que nenhuma pode ser dada, merecedora de attengao. Eu disse que o Codigo, tornando irresponsayeig os loucos de todo genero, com quanto usasse de uma expressdo concisamente larga, todavia nao daya entrada 4 totalidade dos phenomenos, que é de suppor quizesse incluir dentro dessa cathegoria. O conceito da loucura 6 realmente um conceito ge- nerico, divisivel em especies, que sio como frac- gdes, de que elle 6 0 denominador commum. Mas tambem, por sua vez, a loucura assume uma feicao especifica, em relacdo ao conceito superior da inea- pacidade psychologica de delinquir livremente, con- ceito, cujo valor excede a somma de todos vs loucos e menores de quatorze annos. E’ hoje verdade assentada que as condicoes de um acto livre sao varias e complicadas, bem como que podem facilmente apparecer perturbagdes dos mais altos processos espirituaes, poa meio de fac- tores organicos, internos e externos. QO caracter ea altura individual do livre arbitrio sic productos da organizagado cerebral originaria e das influencias exteriores, antagonicas ou synergicas, que affecta- ram essa organizagao. A pesquiza do effeito produ- zido por taes influencias sobre a liberdade do indi- viduo é um problema difficillimo, que pertence a0 vasto dominio da anthropologia judiciaria. | As condigdes da possibilidade de obrar livre- mente podem pois ser alteradas ou extinctas, além do que diz respeito 4 idade infantil, de qne ja trata- mos, pelos seguintes factos: 1.° as paralysagoes do desenvolvimento eas degeneragdes, que apparecem no cerebro, antes de chegar a sua plenitude mor- phologica /idiotia, sandice com impulsos perverse desvario moral innato); 2.° os estados morbidos, qu — 45 — depois de atlingido 0 desenvolvimento normal vém allerar 0S processos psychicos / perturbagées do es- pirito, doencas mentaes); 3.° os desarranjos passagei- ros da actividade psychica, em virtude de uma offensa, tambem passageira, das funccdes cerebraes somnambulismo, delirios febris, intowicagao alcoolica, psychoses transitorias ). Esta classificagao, que me € fornecida por Krafft-Ebing, e que me parece acceitavel, até onde chegam os dados da psychiatria vigente, esta bem longe, entretanto, de poder reduzir-se 4 idéa geral da loucura. Vit EF’ questao ainda indecisa, se os Cedigos penaes, quando tratam dos casos que excluem a criminali- dade, na parte relativa 4s doencas mentaes e per- turbacdes do espiritc, devem estabelecer um prin- cipio geral que se estenda a todas as hypotheses ou antes mencionar e enumerar todas as psychoses 6 estados anormaes, que destroem a base da impu- tabilidade. Sado diversas entre si as vistas dos escriptores. Klose foi um dos primeiros a opinar que, emquanto a terminologia scientifica das alienagdes permane- cesse incerta e vacillante, a questao unica proponi- vel ao perito, ao medico forense, devia ser, — se 0 individuo accnsado é capaz de imputagao. (14) Mit- termaier, porém, declarou-se contra a articulagao de uma these ou principio geral, exigindo nos Co- digos uma designacado das doengas, que suppri- meni, segundo o seu proprio modo de exprimir, a libertas judicti aut intellectus e a libertas consilit aut propositi. (15) Ao contrario, Toel é de parecer que 0 legislador assente a doutrina da imputagao sobre 0 principio da liberdade, e declare, em termos ge- raeés, nao serem responsaveis todos os individuos que perderam para sempre, ou que nao tinham na (14) Medicinische Zeitung — 1833 — Nr. 4. (15)EDisquisitio de alienationibus mentis quatenus ad jus crimi- nule spectant. Heiadelberg 1825. oo” época do acto questionado, a faculdade de deter. minar-se livremente, sem entrar na especificag§y, das molestias que annullam essa faculdade. (15 Grollmanns pretende que se empreguem expressoeg genericas de formas morbidas, sob as quaes possam ser subsumidas, independente de quaesquer deta. Ihes, as formas particulares da enfermidade psy. chica. (17) E como estes, muitos outros auctores cada um a seu modo, lem discutido e procurado -esolver a questao. Mas nao'cessou ainda a controversia. Os aucto. res citados pertencem a uma é6poca, j4 um pouco afastada, de pesquiza e fermentagao ou, como diria Stirling, de zymosis juridica; e todavia, importa notar os progressos innegaveis, de entao para ca realisados na cultura do direito, bem como nos estudos psy- chiatricos, ainda nio chegam para dar ao ponto controvertido uma solugao completa. Felizmente a questao nao é daquellas, que reclamam solngdes de tal natureza sob pena de perturbarem a marcha da sciencia respectiva. Nao ha duvida que, se todas as affecgdes mor- bidas, exclusivas da imputabilidade, tivessem uma rubrica legal, havia mais garantias contra a injusta condemnagao de alienados, tidos em conta de espi- ritos normaes, e ndo menos injusta absolvicdo de verdadeiros facinoras, tomados por insensatos. Mas isso sera possivel? Talvez que nao; e esta im- possibilidade, que se levanta em terreno commum aos juristas e aos medicos, provém menos do lado do direito do que do lado da medicina. A propost- cao pode causar uma certa estranheza, porém, nao deixa de ser veridica. Na falta de outras provas, bastaria lembrar o seguinte facto: ainda hcje os alienistas e psychiatras nao esto de accdrdo sobre o modo exacto de denominar as molestias mentaes, (16) Henke’s Zeitschrift — Heft pag. 352. (17) Neues Archiv des Criminalrecths — 9 Ba. pag. 207. — Q~ determinar o seu conceite e sujeital-as a uma clas- sificagao. Cada autor apresenta a sua maneira de yor, que pode ser mais ou menos aceitavel, mas nado édefinitiva. No emprego mesmo das palavras ja domina a maior diversidade. Assim por exemplo, os francezes sam das expressies vesanie, déraison, absence de la raison, maladie de Vesprit, aliénation mentale, folie, — para designar o que nés ordinaria- mente exprimimos por loucura, e os italianos por pazzia. Nao menos rico 60 vocabulario dos inglezes, para significer a mesma cousa: — mental derange- ment, mental alienation, mental disorder, insanity, lunacy, madness, craziness ou ecrazedness, frenzy, hallucination. K igualmente variada é entre os alle- maes a synonimia dadoudice: — Wahnsinn, Ver- ricktheit, Geistesuerwirrung, Geisteszerrittung, Geistes- krankheit, Verfinsterung der Psyche, Narrheit, Unsin- nigkeit, Gemithskrankheit, Irrsein, Irrsinnigkeit, Se- elenstorung, Psychische Deflexe, etc., etc. A lingua latina mesma nao 6 isempta desta abundancia de palavras, que, todas postas ao servigo de uma sé idéa, em vez de facilitu:, autes difficultam a sua comprehensaéo. Nella se encontram, gracas aos philosophos, aos juristas e sobretudo aos medicos latinisantes, os termos —insania, vesania, dementia, paranoia, ecphronia, desipientia, insipientia, etc. — como expressdes genericas dos casos de amenta- lidade. No meio, porém, de semelhante incerteza, a sciencia tem feito bem pouco para esclarecer e de- limitar o conceito, que ha mister de ser delimitado eesclarecido. A exuberancia de termos, que fazem © corteio de uma idéa, encerra alguma cousa de parecido com o guarda-roupa de um dandy. Assim como este, dentre seus vinte fracs, tem sempre um que mais lhe assenta, ou dentre as suas cincoen- las gravatas, sempre uma, que melhor Jhe fica, da mesma forma succede com o pensamento. A riqueza dos synonimos nao o inhibe de achar uma expres- Sao, que mais Ihe convenha. Mas isto mesmo ¢ 0 4 SO —5n0— que nao se da na questao, que nos occupa. A ser sincera, a sciencia deve confessar gue ainda nao chegou a indicar o termo mais appropriado ao con- ceito da alienacéo do espirito, e a formular uma definigao, que se adapte a todo o definido. Ja em 1818, apreciando este facto, dizia Nasse: « A tenta- tiva de curar os loucos pode ser, 4 vista da sua au- dacia, comparada com a torre de Babel, até porque, em ambas as emprezas, da-se completa confusao da lingua. » (18) E porventura estaremos hoje fora do alcance de tao justa critica? Tenho minhas du- vidas. O que ha presentemente de superior a defi- nicao de Chiarugi, para quem a Joucura era um delirio diuturno com offesa primitiva del’organo cere- brale e senza febre, on & de Combe, que dizia : — mental derangement is a disordered state of the func- tions of the brain, — ou 4 de Metzger, que conside- rava a insensatez ( Wahnsinn | aquelle estado mor- bido do corpo, em que a alma humana nao é capaz de applicar suas forgasa receber, guardar, construir ecomparar os conceitos, e no qual se acha destruida a harmonia dessas mesmas forgas? Respondam os entendidos. Entretanto ningaem dira que isto provenha de falta de cultivo da indebitamente chamada medicina legal. O numero dos psychiatras é legiao, e os tra- balhos respectivos constitnem uma rica litteratura, ja impossivel de apreciar em sua totalidade. Um escriptor hollandez dos uossos dias, F. Hartsen, disse que a psychiatria, do mesmo modo gue a chimica, na opiniao de Wurtz, podia chamar- se uma sciencia franceza, era creagao do grande Pinel. (49) Nao ha mister de refutar aqui nem um, nem outro disparate, que alias é, nao direi descul- pavel, mas explicavel pela natureza do publico a quem ambos os autores se dirigiam. Quem faz um ‘48) Zeitschrift fur psychische Aerzte 1 Heft. pag. 47. (19) Principes de psychologic —- Preface UL. livro, quer ter leitores,e em Franga corre perigo de nassar desapercebido aquelle que nao rende preito, or qual modo, ao chawvinismo nacional, ainda escrevendo as cousas mais bellas deste mundo. Com Warts antenderam-se logo alguns escriptores allemaes, inclusive E. von Hartmann, e puxaram- ihe magistralmente as orelhas. Qnanto ao tal senhor Hartsen, nao tenho competencia para tomar-lhe contas; porém, creio poder affirmar que se elle soubesse, bastava, quem foi Schaumann, se sou- besse que, bem antes que a lingua franceza, ja nio digo a lingua commum, mas a propria technologia medical, possuisse a palavra — psychiatrie, ~ ja existiam na Allemanha livros, jornaes e revistas de cavacter expressamente psychiatrico, nao teria tido acoragem de avancar aquella proposicdo. No do- minio de taes estudos, onde sem duvida a Franga tem representado um importante papel, pode ella hoje ao muito dispntar com a Inglaterra o terceiro lugar, por que o primeiro pertence a Allemanha, eo segundo 4 Italia. Como 6 facil, pois, de comprehender, os pro- gressos da psychiatria, cultivada por tantos espiri- tos superiores, principalmente na parte que desig- namos por psychologia criminal, sio incontestaveis. . Os autores modernos fizeram justica a Valenzi com a sua classificacéo de mais de 100, e a Plouc- quet com a sua de mais de 170 especies e subespe- cies de doudice, desprezando, como inutil, todo am montao de velhas phrases sem sentido. O conceito mesmo da sciencia, posto que livre de muito atavio Superfluo, tornou-se comtudo mais complexo, po- déra dizer, mais fecundo. Mas ja chegou-se a ponto de que o legislador possa receber do medico, em assumpto de alienacdo mental, os dictames da jus- liga e da verdade? E’ a questao, e ninguem, ao Sério, hesitaré em dar uma resposta negativa. Nesta conjunctura, é evidente que os Codigos penaes devem limitar-se a uma determinagao geral, © nao entrar nas especificagdes da loucura. O nosso, — 52 — por este lado, ainda que nao fosse o primeiro a pro. ceder assim,andou muito bem, e ¢ digno de louvor Porém, infelizmente, 0 merito que, nesse ponto se Ihe deve reconhecer, desce quasi até zérc, diante de uma outra consideragado. E’ que elle nao el vou-se a um principio supremo, a um principio tal que abranja todos os casos possiveis de irrespon. sabilidade por desarranjo na economia psychica Os loucos de todo o genero, a somma de todos elles, é sempre inferior ao total dos que sao irresponsa- veis em consequencia desse desarranjo, e dahi podem resultar, como de facto tém resultado, nao poucas injustigas no exercicio da penalidade, O legislador brazileiro, importa sempre lem- brar, regulou-se mais de uma vez pelas doutrinas do Code Pénal, mostrando comtudo uma certa von- tade de corrigil-o e weihoral-o a seu modo. Foi, porém, pela mér parte, infeliz nestes melhoramen- tos. Sem querer agora fazer-Ihe carga da singulari- dade, pela qual, depois de abandonar a divisao tri- chotomica do Code em crimes, delictos e contraven- cdes, 0 nossy legislador nao poude deixar de pagar tambem o seu tributo ao velho séstro das trichoto- mias, Com a sua classificagdio de crimes publicos, particulares e policiaes — classificagao que, alias, quanto as duas primeiras partes, vem quasi redu- zir-se a nada, em virtude da outra divisdo dos cri- mes em afiangaveis e inafiancaveis, —sem fazer carga disto, limito-me a dizer que a disposic&éo do nosso Codigo, relativa aos loucos, é ainda uma prova da infelicidade alludida. : O Codigo francez, em seu art. 64, determina que nao ha crime nem delicto, quando o accusado, était en démence au moment de laction. A palavra démence niio é certamente das mais bem escolhidas. A prova é que, ao passo que todos os commenta o res, fazendo do legislador alguma cousa de seme Thante a um mao pintor animalista, sob cnjos qe dros se deve escrever, por exemplo: — ésto oe cysne, para obviar o perigo de crer-se talvez q e- — 53 — éum gato ; — ao passo que os commentadores, re- pito, insistem em demonstrar que aquella expres sao foi empregsda de uma tnaneira geral, para indi- car uma alienagao de espirito de qualquer natureza que seja, ~— os alienistas franeezes nao estao de accérdo em reconhecer a extensdo que os juristas conferem aquella idéa. Assim um delles, e talvez o mais notavel, Esquirol, abalou a doutrina dos commentadores, estabelecendo uma nova concep- cao da démence, que segundo elle,... est une affec- tion cérébrale: ordinairement sans fidvre et chroni- caracterisée par Vaffaiblissement de la sensi- , de Vintelligence et de la volonté. Mas isto a parte, resta incontestavel que 0 Codigo francez ficou adiante do nosso, pela simples declaragao — au moment de Vaction, — que pode dar entrada a um grande numero de casos, atidis impossiveis de com- prehender-se no circulo da lowcura, camo oO nosso legislador concebeu-a, ainda susceptivel de inter- vallos lweidos, — 0 que envolve uma idéa falsa, on pelo menos muito dubitavel. Nao quero por este modo entoar um hymno ao art. 64 do Code Pénal, i semelhancga do gue the con- sagrou o Dr. Pereira, ancien interne de Bicétre et de la Salpétriére, qunalificando-o de uma disposition gé- néreuse, dietée par un haut sens philosophique. (20) Concebo na especie cousa mais generosa e muito mais philosophica. Porém creio que o nosso Co- digo nao devéra afastar-se do sea modelo, senao para tomar um melhor caminho; e foi o que nao se deu. Mais bem avisado andou, levando-se mesmo em conta a differenca do tempo, o Codigo italiano, cujo art, 59 repete a idéa do Code Pénal, mas am- plificando-a, nos segnintes termos — « Non éimpu- tabile di reato colui che, nel momento in cui com- (20) Aunules d’'Hygiéne publique. Avril 1845, pag. 399. Cilado ber Wilbrand — Lehrbuch der gerichilichen Psychologie, pag. 167. ON — BA — | mise il fatto, era in stato di follia o per causa non aveva la coscienza di delinquere ; ovvey vi fa costretto da una forza alla quale non pote resistere.» Vé-se yue onde o modelo foiabandonadg é porquese lhe deu mais largas proporcdes. > Fallei no Dr. Pereira, com quem nAo quiz for. mar um dueto de elogio ao art. 64 do Code Pénay Mas importa declarar que esse illustre medico nao pertencia 4 classe dos elogiastas insensatos, em cujo numero se acha, por exemplo, um Sr. Lanfrane de Panthou, procureur de la république & Nantes que nao posso resistir a tentagao de, ao menos de passagem, aqui apreciar. Este pequeno auctor de uns minimos Ltudes de législation comeparée, obra escripta com todo o estro patriotico de um franeez de lei, ea qual mandavaa sinceridade que se jun- tasse como sub-titulo: — Pour la plus grande édif- cation des chauvinistes, nio se cortenton com os louvores do costume, porém quiz mostrar que, ainda comparado com o que possa hoje haver dé melhor no genero, 0 art. 64d Code é de uma supe- rioridade incontestavel. Naturalmente a compara- gao devia cabir sobre o Codigo penalda Allemanha. Convem inteirar o leitor do que este Codigo encerra, no ponto em questao, para tornar bem Gomprehen- sivel o desproposito do Sr. Lanfranc. O art. 51 do Strafgesetzbuch do imp erio germa- nico diz: (21) « Nao existe crime, quando o agente, ao tempo do commettimento da acgio, se achava em um estado de inconsciencia ou de morbida des ordem da autividade espiritual, gue excluia o seU livre arbitrio. » O illustre procureur de la républigue, citando este artigo, que elle erradamente colloca sob 0 nu qualungye (21) Textual. — Eine strafbare Handlung ist nacht vorhander wenn der Thaeter sur Zeit der Begehung der Handluarg sich in nen Zustande von Kewusstlosigheit oder kranknafter Sto erung der Ge testhaetigkeit befand, durch welchen seine freie Wil€ens bestimmnn! augeschlossen war. —~ 55 — mero 54, nado aceita a opinido dos que o acham su- perior ao seu Correspondente no Code Pénal e mais nos Codigos da Balgica e de Genebra, dos quaes 0 primeiro reproduz, ne emprego da palavra — dé- mence, -- 0 exeinplar francez, e 6 segundo usa da expressao aliénation mentale. Essa opiniao lhe pa- rece um erro; quer proval-o e diz: — « Primeira- mente, os termos de deinencia e de alienacao men- tal correspondem a uma idéa bem definida e com- prehendem evidentemente todos os individuos que nado tém consciencia de seus actos. © estado que entéo se produz, recebe um nome juridico; e eu nao vejo a censura que a lei possa merecer por tél-o empregado. » (22) Sim, senhor; isto 6 o que se chama ser bom patriota! O jesuitismo exige dos crentes il sacrifisio dell’intelletto ; 0 patriotismo fran- cez exige cousa mais grave, 6 0 sacrificio do pejo. Nem posso comprebender que este Sr. Lantrane deixe de ser o primeiro a sentir o disparatado da sua lembrange. Mas nao ha remedio. Quando se trata da Allemanha, todo o bom francez é soldado, que deve servir 4 patria, e na falta de cartuchos, encher logo a patrona, até de asneiras. Eis ahi uma dellas. Com effeito, todo o mundo esta de accordo, inclusive francezes mesmos, que a disposicio do Codigo da Allemanha é muito mais ampla; que as expressdes Bewusstlosigkeil e krankhafle Storung der Geistesthatigkeit tem area maior que a démence tran- ceza. Mas Lanfranc nao esteve por isso. Dando como provado o que, quando muito, constitue a questao, isto 6, que a palavra demencia corresponda a uma idéa bom definida e comprehenda todos os individuos que nar tem cunsciencia dos seus actos, elle conciue, sem mais forma de processo, que o art, 64 do Code 6 superior ao 51.do Strafgesetzbuch ; isto simplesmente porque a Franca éa Francga ea (22) Etudes de législation comparée — 1878, pag. 236. — 56 — Allemanha é a Allemanha. Ponto. Para raziio, se esta é de tanto peso?. Mas Lanfranc tem muito espirito para nao ver ° que logo vem de encontro 4 sua assercao, i e come quem previne o ataque, elle pergun « Sera verdade que as leis, de que nds falldmog (franceza, belga e genebrense) tenham deixado fora de suas prescripcdes a este respeito uma quan. lidade de estados .intellectnaes, mais ou menos accidentaes, como 0 somnambulismo, a embriaguez absoluta, a epilepsia, que nao sao alienagao mental mas que perturbam a tai ponto as faculdedes do homem, que elle cessa de poder incorrer,em qual- quer responsabilidade? » A pergunta é séria, e eu agradeco a Lanfrane ter-me poupado o trabalho de levantar a questéo. Mas como responde elle? A res posta — sim — essa 6 digna de riso. Difficilmente cré-se que uma cabeca normal possa contentar-se com semelhante quia. Ville diz: «Nao é verdade (que as leis referidas tenham despercebido os esta- dos anomalos indicados), porque essas leis tiveram o cuidady de assimilar 4 alienagdo mental os casos, em que 0 agente é constrangido por umu forga, & que elle ndo poude resistir. Ura, & preciso nio desconhe- cer o alcance destas expressdes, que covrespondem perfeitamente, segundo a nossa opiniao, a idéa des- envolvida no fiat do texto allemao citado. » . Segundo a sua opinido, — vd que seja. Mas isto nao salva do erro. © alcance que o grande procu- reur de la république pede que nao se desconheca, é justamente o que todos desconhecem, salvo con- vencaéio em contrario. Na idéa de inconsciencia on de morbida perturbagio da actividade espiritual et tram necessariamente as idéas menos extensas de somnambulismo, epilepsia, etc. Mas no corceito da forga, a que o agente ndo poude resistir, ninguem dira sériamente que ellas entrem com o mesmo grao de justeza e evidencia. Que o somnambalo nao tem consciencia dos seus actos, durante 0 accesse du mal, que o somnambulo 6 um doente, e de wma que melhor Ssim, — 57 — doenga que perturba as faculdades do espirito, ne- nhuma duvida. Que elle, porém, praticando um crime, céda ao impulso de uma forga irresistivel, éo0 que nao se diz, nem se concebe, sem alterar o valor das idéas. No somnambuio o que ha de irre- sistivel € o facto mesmo do somnambulismo. Por mais que elle se esforce em contrario, nao pode resistir ao accommettimento da nevrose ou psychose, ou como melhor nome tenha em medicina, isto é, nado pode deixar de somnambular. Imagine- mos uma somnambula, a figura de Amina, por exemplo, na bella opera de Bellini, uma linda mocga honesta e recatada, que no rigor do seu recato pre- ferisse Morrer a que lhe vissem entrar sosinha, e a deshoras, no aposento de um homem. Até onde chega, nao obstante tudas as precaugdes, o facto repetido della erguér-se dormindo a uma certa hora da noute, tomar a roupa, abrir a porta da alcova, travar de uma vela, accendél-a e seguir o caminho da sua morbida peregrinagao, até ahi concedo de barato que se falle de uma forga, a que ella nao podia resistir. Mas se nessa occasido acontece que va parar na camara de um homem, no aposento de um hospede, isto 6, que pratique um acto, contra o qual, no estado de sande, ella insurgir-se-hia com toda a sinceridade de um cvragao innocente, appli- car a este caso a idéa da forga irresistivel 6 uma cousa que nao tem senso. Elevado um facto de tal natureza 4 cathegoria de um crime, — 0 que escusa a bella somnambula, éo seu estado de inconscien- cia ou ajleragao morbosa da sua actividade espiri- tual. A allegagao de forga irresistivel sé pode vir como um pis aller, na falta de uma disposicao mais clara e determinada. Ja se vé que 0 argumento de Lanfrane deixou 6 Code indefeso. Mas elle ainda affirma que tanto oO art. 61 do Codigo francez é superior ao seu paral- lelo do Codigo allemao, que este teve necessidade de estabelecer um outro artigo (0 art. 52) relativo aos que commettem crime, violentados physica ou —_ — 58 — moralmente! Sé um Lanfranc é capaz de seme. Ihante disparate. O merito do Codigo allemao esta, mesmo em ter separado, como factos mui distine. tos, os casos de falta de libertas judicii, como dirig Mittermaier, dos de falta de libertas consilii, em ter edictado para aquelles uma disposigao tao larga, que comprehanderegularmentesomnambulos, ebrios, epilepticos, etc., postos em conflicto com as leis penaes, sem precisar langar mao do expediente da forga irresistivel. Entretanto, 0 Sv. de Panthoy entende ser preferivel 0 artigo do Code, unde tudo se acha confundido, e aquillo qué nao couber no eirculo da démence, que é limitado, encaixa-se a todo custo no circulo da force & laquelle il va pu resister, queé mais limitadoainda ! Estes criticos francezes!... Mas importa confes: Se no ponto que nos occupa, o Code Pénal é visivelmente inferior ao Co- digo allemao, nao ha duvida que o nosso é, por sua vez, inferior 20 Code Pénal. V0 Entre os dous extremos: ou enumerar todas as molestias mentaes, que tornam o doente criminal- mente irrespdnsavel, on estabelecer um principio geral, que comprehenda a totalidade dellas, a esco- tha nao deve ser duvidosa, ao menos no estado actual da sciencia psychiatrica; o ultimo é preferi- vel. O nosso Cedigo, ja eu o disse, posto que se- guindo alheios vestigios, andou bem neste ponto. Mas 0 seu principio nao tem a extensao desejada ; ea nao ser que se pretenda, a forga de martello, fazer entrar pelos péros do § 2.° do art. 10 uma por- gao de casos, que elle nao comporta, ou recorrer a um expediente igual ao de Lanfranc, para embutil-os no §3.°, — é justo reconhecer que o Codigo é defei- tuoso e precisa de uma reforma. Importa, porém, nao confundir esta minha opi- nido com a que, porventura, visasse collocar 0 legis- lador criminal na contingencia de estar sempre 4 escuta dos oraculos da medicina, nas questées de imputabilidade, para ir, de accérdo com elles, alte- rando as disposicdes legaes. E ha medicos, com effeito, que nao se acham 4 muita distancia de uma tal pretencao. Mas eu estou bem longe de dar-lhes razao e jurar em tudo pelas suas palavras. As relacdes da medicina com a sciencia do di- reito ja tem sido por vezes objecto de disputa. Kant Mesmo nao dedignou-se de estudar o assumpto, e bem que a sua opiniao nao seja totalmente acceita- vel, nem por isso 6 menos merecedora de mengao .

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