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A Letra e o Mito

Contribuições de Pau Brasil para a consagração


bandeirante nos anos de 1920*

Ana Lúcia Teixeira

Para Paulo fato, abordadas no desenrolar do poema, anuncia


uma postura de negação, ou supressão, de parte da
Pau Brasil tem início em um gesto de negação herança cultural brasileira que atravessaria o poema
da história do Brasil precedente à sua publicação. por completo.
Seu mote inicial, que, apesar de breve, é apresenta- Meu intuito é trazer à tona dessa trama poéti-
do já na primeira edição isolado em página inteira, ca uma dessas dimensões negadas no mote inicial
anuncia que sua publicação se dá “por ocasião da mas retomadas repetidas vezes no corpo do poema:
descoberta do Brasil” (Andrade, [1925]1 2003, p. a figura do bandeirante, tão cara aos setores mais
97). Obviamente, elementos próprios de um Brasil conservadores do período e surpreendentemente
anterior à “descoberta” oswaldiana serão costurados capaz de fazer emparelharem-se esses últimos e Pau
na trama desse longo e heterogêneo poema, inspi- Brasil, uma das expressões mais vanguardistas do
rador de uma invejável fortuna crítica. No entanto, modernismo paulista, embora ambos coloquem
esse gesto inicial, que nega dimensões a serem, de a questão de formas bastante diversas. Com isso
será possível inserir o poema no debate de época,
posicionando-o em um patamar de equivalência,
* Agradeço à Fapesp o financiamento da pesquisa de embora não de semelhança ou de homogeneida-
que este texto se origina.
de, com textos de naturezas diversas (sociológicos
e historiográficos) para fazer saltarem os diferentes
Artigo recebido em 30/01/2014 usos que as diversas perspectivas fizeram desse mito
Aprovado em 08/04/2014 ressurgido no início do século XX. No confronto
RBCS Vol. 29 n° 86 outubro/2014
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com a historiografia que evoca o bandeirante no O mote inicial do livro como que sugere tal
período e com o contexto que ela pretende expli- embocadura metodológica: possuindo a literatura
car, será possível perceber que, na pena oswaldia- o condão de “descobrir” o Brasil, ela aparece como
na, a retomada do bandeirante envolve a rasura da portadora de atributos que, em alguma medida, a
dimensão heterônoma implicada na recentemente autonomizam em relação ao seu contexto, possui-
extinta condição de colônia, a ser, evidentemente, dora que é da capacidade de transformá-lo, rein-
obliterada – o que, aliás, exigia que todo o país, ventá-lo, dele suprimir parte de sua história.
pela via da literatura, fosse descoberto com a pu- Como se sabe, Pau Brasil é composto por blocos
blicação de Pau Brasil – e, com ela, da participação de poemas, no geral curtos, que atualizam em uma
portuguesa em nossa herança cultural. linguagem muito moderna acontecimentos da his-
Para tal, proponho que se adote como perspec- tória brasileira. Nessa viagem exploratória, o poema
tiva metodológica a desmontagem da hierarquia en- apresenta um Brasil fragmentário, truncado e cheio
tre textos de naturezas diversas na consideração da de ambiguidades, um Brasil que em verdade se des-
possibilidade de que a literatura possa produzir co- cobre à medida que o leitor é transportado em uma
nhecimento e mesmo se inserir em um debate, por viagem cujo encerramento, de forma muito significa-
assim dizer, multidisciplinar, sem descuidar, no en- tiva, se dá em um cruzeiro que conduz o eu-lírico de
tanto, da especificidade da linguagem literária. Esse volta a São Paulo, como se esse fosse o lugar último
passo envolve assumir o texto não só como produto visado pela descoberta modernista da grande nação.
social, cuja compreensão se dá na sua necessária re- É nessa viagem, e compondo um projeto de des-
missão ao seu contexto, o que muitas vezes implica coberta literária do país, que a saga bandeirante será
nele dar legibilidade apenas ao que pelo contexto tematizada. A primeira menção à figura lendária se
se explica, mas também de entendê-lo como um dá no poema que traz no título o nome do grande
intérprete de seu contexto (Gaudez, 1997, p. 31; sertanista apresentado no bloco “História do Brasil”:
Leenhardt, 1998, p. 105), como dimensão que tem
algo a dizer sobre o cenário de sua produção a partir fernão dias paes
de especificidades de sua linguagem.
Não se trata, pois, de perscrutar as formas pelas carta
quais o contexto paulista dos anos de 1920, que não
será desconsiderado na análise, condiciona a leitura Partirei
de Pau Brasil, seja dando relevo às condições ma-
teriais que as poderiam determinar, seja ressaltando Com quarenta homens brancos afóra eu
as origens sociais e os interesses de seus atores, bus- E meu filho
cando simplesmente interpretá-lo à luz de dimen- E quatro tropas de mossos meus
sões que o condicionariam. Diversamente, a postura Gente escoteyra com polvora e chumbo
metodológica aqui assumida envolve considerar o
texto literário como uma dimensão social dotada Vossa Senhoria
de especificidades que o diferenciam desse contex- Deve considerar que este descobrimento
to, embora com ele esteja em permanente diálogo, É o de maior consideração
uma dimensão portadora de um papel mais ativo Em rasam de muyto rendimento
na interpretação sociológica, capaz de oferecer, ele E tambem esmeraldas
próprio, uma leitura significativa de seu contexto de [Andrade, (1925) 2003, p. 117.]
produção, o qual será aqui apresentado em duas di-
mensões: um contexto intelectual, em que se apreen ‑ Oswald de Andrade escolhe para essa em-
dem as diversas interpretações que nos anos de 1920 preitada uma das maiores figuras do bandeirismo
se fazem da figura do bandeirante, e o contexto so- paulista e, não por acaso, aquele entre os prin-
cial da capital paulista a que essa retomada busca cipais bandeirantes cuja família primeiro havia
fornecer legibilidade e explicação histórica. chegado à capitania de São Vicente e, portanto,
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pertencente já à segunda geração a nascer no que um momento posterior a partir de uma série de
viria a ser São Paulo.2 associações que estão no seio mesmo da figura do
O título do poema faz menção à carta de 21 bandeirante retomada no século XX:
de julho de 1674, enviada por Fernão Dias ao en-
tão secretário do Estado e Guerra, Bernardo Vieira prosperidade
Ravasco, irmão de Padre Vieira.3 Com esse artifício
poético, Oswald dá voz ao próprio Fernão Dias, O café é o ouro silencioso
que figura como o eu-lírico desse trecho, em um De que a geada orvalhada
traço tipicamente oswaldiano, presente também Arma torrefações ao sol
em Memórias sentimentais de João Miramar, Serafim Passarinhos assoviam de calor
Ponte Grande e outros textos, que é esse de compor Eis-nos chegados à grande terra
o texto a partir de uma multiplicidade de autorias. Dos cruzados agrícolas
Assim como a bandeira, também o poema é lidera- Que no tempo de Fernão Dias
do pelo sertanista, que então apresenta a conforma- E da escravidão
ção da expedição que conduzirá até a almejada des- Plantaram fazendas como sementes
coberta de esmeraldas na região das Minas Gerais, E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas
ressaltando, é claro, o grande potencial econômico Eis-nos diante dos campos atávicos
que uma tal descoberta acarretaria para a Coroa Cheios de galos e de reses
portuguesa, o que, certamente, fala mais sobre a Com porteiras e trilhos
Coroa do que sobre o sertanista. Usinas e igrejas
Aqui não há confronto com o jesuíta nem ma- Caçadas e frigoríficos
tança de índio. Bem ao contrário, esse poema apre- Eleições tribunais e colônias
senta os preparativos da expedição em uma ento- [Andrade, (1925) 2003, p. 131.]
nação harmônica e pouco heroica. Essa perspectiva
acentua-se quando se considera que, no conjunto Já no primeiro verso o poema explicita a que
do livro, esse poema se segue a outro, menor em universo se refere com o título: trata-se da pujança
tamanho mas adensador de significados, em que se econômica promovida pelo cultivo do café em ter-
mostra a atmosfera de concórdia com que o vilarejo ras que são de imediato associadas às conquistas das
vicentino convivia então com as vilas jesuíticas que bandeiras, aqui representadas pela figura do célebre
o cercavam, povoadas por índios amistosos e padres sertanista. A associação é reafirmada pela aproxima-
capazes de doutriná-los: ção entre o ouro, visado pelas expedições do século
XVIII, entre as quais figuram como as mais célebres
prosperidade de São Paulo aquelas lideradas por Fernão Dias, e o café, que no
século XIX viria preencher os campos paulistas e da-
Ao redor desta villa ria a essa terra a prosperidade a que se refere o título.
Estão quatro aldeias de gentio amigo A expressão “cruzados agrícolas” condensa a histó-
Que os padres da Companhia doutrinam rica associação, presente na historiografia da segun-
Fóra outro muito da metade do XIX e das primeiras décadas do XX
Que cada dia desce do sertão. responsável pela retomada do símbolo bandeirante,
[Andrade, (1925) 2003, p. 116.] entre a conquista territorial das expedições bandei-
rantes e o cultivo do café que daria a São Paulo a
Não só o termo “prosperidade” no título do dianteira econômica do país, então cultivado no
poema mas também a figura de Fernão Dias serão que o poema anuncia como “plantio de fazendas”,
retomados em um poema do bloco “São Marti- tal como se fossem sementes.
nho”, onde o sertanista já figura como uma ima- Essa São Paulo próspera aparece como resultado
gem recuperada do passado, capaz de cristalizar de um processo histórico cuja linha de continuidade
determinada atmosfera de época, rearticulada em permite a convivência de caçadas, mais primitivas,
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e frigoríficos, mais modernos, de usinas e igrejas, e reinóis pela exploração das minas, mas também
fazendas com porteiras e trilhos. Os elementos que uma tomada inequívoca de partido dos paulistas
caracterizam a prosperidade do moderno não ape- quando o eu-lírico considera traídos os paulistas
nas convivem com remanescentes do passado, mas que reivindicavam o monopólio da exploração por
resultam de elementos desse mesmo passado, em haverem primeiro alcançado as minas auríferas. O
que figura com centralidade o grande sertanista des- sertanista paulista aqui, se não é exatamente um
cobridor de ouro. herói, é uma espécie de detentor de privilégios de
Sua exaltação será retomada no poema que re- exploração advindos de sua habilidade exploradora.
cebe o nome da cidade mineira de Sabará, que inte- Como se sabe, é por parte do governo por-
gra o bloco “Roteiro das Minas”: tuguês e de exploradores oriundos de diferen-
tes regiões do Brasil que nasce a investida con-
sabará trária que culmina com a derrota dos paulistas
(Abud, 1985, pp. 35-36; Souza, 2000, p. 269).
Este córrego há trezentos anos O lamento da derrota paulista e a perda dos seus
Que atrai os faiscadores direitos exclusivos de exploração são tratados
Debaixo das serras no poema por sacrilégio, em um claro endosso
No fundo da bateia lavada da precedência do direito dos paulistas sobre a
O sol brilha como ouro exploração das minas e na outorga da pecha de
Outrora havia negros a cada metro de margem vilania aos reinóis oportunistas.
Para virar o rio metálico A retomada da figura do bandeirante na poesia
Que ia no dorso dos burros oswaldiana certamente não possui aquela tonalida-
E das caravelas de ufanista que pairava na atmosfera paulista no
Borba Gato período de sua escrita. A complexidade das propo-
Os paulistas traídos sições que essa poética modernista constrói excede
Sacrilégios em muito a simples tessitura de um herói incontes-
O vento te a ser enaltecido nos termos que ela mesma tão
[Andrade, (1925) 2003, p. 187.] veementemente criticava nos literatos que a prece-
deram, notadamente nos parnasianos. No entanto,
O poema é dedicado à temática da exploração o nacionalismo que atravessava diferentes esferas
de minérios em seu período áureo. Apresentada da vida cultural brasileira naquele momento – dos
como polo de atração daqueles que confiavam em movimentos literários às artes plásticas, da histo-
ali fazer riqueza, o riacho de Sabará conta uma his- riografia aos projetos políticos –, a valorização da
tória de exploração, não do ouro, que aparece aqui nação e a apresentação de projetos para a sua mo-
como elemento de sedução, mas da pretensa riqueza dernização, que surgem especialmente no cenário
nacional, que no dorso dos burros e à bordo das ca- paulista, fazem-se presentes também em Pau Brasil,
ravelas alcança a Europa. A miragem do ouro, que por vezes com a utilização dos mesmos símbolos.
não passa de imagem do sol refletida no fundo da Como já anunciado, é importante mencionar
bateia, alude a essa dimensão volátil do que foi a es- que nos anos de 1920 a historiografia trazia nova-
perança de se fazer riqueza em território americano, mente para o centro da cena paulista a figura do
usurpado pelo colonizador português. bandeirante. Nesse cenário, o bandeirante redesco-
O que vem redobrar o aspecto idílico da ativi- berto, a despeito da heterogeneidade que deriva da
dade mineradora nas linhas desse poema é, natural- multiplicidade de perspectivas que a ele recorrem,
mente, a referência a outro bandeirante, Manoel de se estabelece como uma espécie de eixo interpre-
Borba Gato (Leme, 1904, p. 454), genro de Fernão tativo da história colonial paulista. Abud (1985),
Dias Paes Leme. A Guerra dos Emboabas é clara- Queirós (1992), Glezer (1992), Monteiro (1994),
mente referida pelo verso “os paulistas traídos”, em Adduci (2000) e Ferreti (2008) estão de acordo so-
que se apresentam não só o conflito entre paulistas bre o lugar de origem dessa tradição: ela data do
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século XVIII e saiu da pena de Pedro Taques de nômica, mas também a locomotiva civilizacional
Almeida Paes Leme, que desenha a fisionomia do do Império, aquela cuja força motriz, para usar os
paulista como um herói militar na produção dos termos de Martim Francisco, arrastaria atrás de si
textos História da capitania de São Vicente, Notícias 22 vagões.
das minas de São Paulo e dos sertões da mesma ca- Segundo Adduci (2000), todos os seus adeptos,
pitania e sua grandiloquente Nobiliarquia paulista em algum momento, farão uma discussão sobre a
histórica e genealógica, e de Frei Gaspar da Madre nação, fazendo-a coincidir, de formas diferenciadas,
de Deus, que valorizaria a origem mameluca e a de- com uma certa ideia de paulistanidade. À exceção
terminação geográfica do tipo paulista na escrita de de Martim Francisco, todos eles recorreram a uma
suas Memórias para a história da capitania de São dimensão de tradição histórica para justificar uma
Vicente. A imagem plasmada pelos trabalhos de Pe- nacionalidade paulista, junto da qual mobilizaram
dro Taques e Frei Gaspar aparece, assim, reeditada argumentos ligados ao caráter da população local,
em um contexto que é capaz de produzir dividen- sua origem, sua etnia, seus limites geográficos, sua
dos políticos, o início do século XX, momento em coincidência de interesses.
que se recupera do século XVIII uma interpretação Por detrás desse projeto político ressurge o mito
linhagista dos sertanistas paulistas, emaranhada na bandeirante como figura capaz de exprimir todos
chamada “lenda áurea” que trará à vida uma místi- esses aspectos, sendo construído como sinônimo de
ca imbuída de heroísmo e altivez, por meio da qual “iniciativa, coragem, audácia, vigor, capacidade de
se vê no bandeirante a figura cujo esforço empurra conquista e elemento civilizatório” (Adduci, 2000,
para oeste os limites de influência da Coroa portu- p. 143), o que explicaria e justificaria a superiorida-
guesa em território americano. de paulista no conjunto das províncias que consti-
Essa lenda é uma resposta ao que se sedimen- tuíam o Império, muitas delas consideradas pelos
tou no século anterior por meio, sobretudo, dos adeptos de tais teorias como “filhas de São Paulo”,
registros dos jesuítas espanhóis, notadamente de caso de Minas Gerais e Paraná, territórios cuja ocu-
Antonio Ruiz de Montoya, Francisco Jarque e, pos- pação se deve à ação bandeirante.
teriormente, os jesuítas franceses Pierre François Certa mentalidade da supremacia e superiorida-
Xavier Charlevoix e Vaisette (Abud, 1985, p. 3), de paulistas não se dissiparia com a frustração do pro ‑
cujas reduções foram assaltadas e dizimadas pelos jeto separatista, enfraquecido com o advento da re-
sertanistas paulistas, registros que consolidaram o pública, que ressurgiria no início dos anos de 1930.
que se chamou de lenda negra (Glezer, 1992; Mon- Antes disso, no entanto, a figura do bandeirante volta
teiro, 1994; Souza, 2000). ao debate, então como elemento que ajudaria a ex-
Sua retomada ao final do século XIX é utilizada plicar o desenvolvimento econômico que São Paulo
em contexto político muito específico: no auge do presencia na entrada do século XX.
descontentamento dos paulistas, notadamente dos Será nas linhas da História geral das bandeiras
integrantes do Partido Republicano Paulista, res- paulistas, principal obra historiográfica de Affonso
sentidos da desproporção entre a contribuição eco- d’Escragnolle Taunay, constituída de onze volumes
nômica que São Paulo dava ao país e a diminuta publicados entre 1924 e 1950, que se consolidará
participação política que tinham em um governo a imagem do bandeirante como responsável direto
demasiado centralizado, a propaganda federativa al- pelo maior movimento expansionista da história
cançaria pretensões separatistas, que advinham pre- brasileira. Em perfeita consonância com seus tra-
cisamente de figuras da elite paulista localizada no balhos como editor da Nobiliarquia paulista, de
seio do partido. Seus porta-vozes utilizavam como Pedro Taques, e diretor do Museu Paulista, cuja
propaganda precisamente a figura do bandeirante, reordenação e “divisão em dois setores bem distin-
imagem que condensava as conquistas dos paulis- tos – um, dedicado à história brasileira e o outro
tas, seu brio e sua personalidade destemida, uma totalmente dedicado à história de São Paulo – foi
gente que desde sempre se mostrou independente, apenas uma metáfora que visava inocular a ideia
autônoma, destinada a ser não só a locomotiva eco- de que São Paulo foi o ‘berço da nacionalidade’”
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(Saliba, 2004, p. 570), essa perspectiva inevitavel- a matança de índios por parte dos sertanistas paulis-
mente atravessaria as milhares de páginas de sua tas. Sua apreciação da atividade bandeirante, eivada
história bandeirante. de preconceito racial, reconhece, no entanto, que é
Vale lembrar as estátuas dos dois maiores ícones do mameluco, tipo ambientado ao seu contexto, que
do bandeirismo paulista que ocupam o saguão de deveria vir o homem capaz de enfrentar os sertões,
entrada do Museu Paulista, em uma disposição or- porque esse era produto de uma miscigenação supe-
questrada por Affonso Taunay como diretor do Mu- rior, na qual o elemento indígena seria, com o tempo,
seu quando das comemorações do Centenário da diluído em um processo permanente de arianização.
Independência,4 disposição que, por sua orienta- A dizimação daqueles que o autor considera
ção, deveria dar destaque a povos inferiores, como os índios, não desonera a
grande atividade bandeirante que deu ao Brasil seu
[...] todos os grandes lances da História do contorno territorial mais amplo, e considera mes-
Brasil revestindo o edifício do Museu de uma mo que o que se convencionou tomar como bar-
feição de pantheon, empolgadora ao primei- barismo dos sertanistas paulistas era, de fato, um
ro contato da vista dos visitantes com as suas dado de época, que não lhes conferia nenhuma par-
pinturas e esculturas. [...] No Saguão, a fim ticularidade. O núcleo na análise feita por Taunay
de ocupar quatro painéis e oito locais para re- se localiza na expansão territorial, a despeito da des-
tratos, a concepção original homenageou as povoação indígena que promovia.
“primeiras manifestações de independência Por sua vez, Alfredo Ellis Jr. – autor de Alguns
do espírito nacional” – cena da Inconfidência paulistas dos séculos XVI e XVII: subsídios para a
Mineira, Guerra dos Emboabas, Guerra dos história de São Paulo, de 1922; Novas bandeiras
Mascates e Rebelião Mineira de 1720. [...] No e novos bandeirantes, também de 1922; O ban-
Saguão ficaram duas esculturas em mármore deirismo paulista e o recuo do meridiano: pesquisas
medindo cada uma delas três metros de altura nos documentos seiscentistas, de 1924; e sua obra
incluindo o pedestal, feitas por Luigi Brizzola- fundamental, publicada em 1926, Raça de gigan-
ra, estatuário italiano de renome. As duas está- tes, que em segunda edição recebe o nome de Os
tuas, no dizer de Taunay, resumiriam as fases primeiros troncos paulistas – está interessado em
do bandeirantismo: Antônio Raposo Tavares, o sedimentar uma concepção de raça paulista. Bus-
ciclo da busca da mão de obra indígena, seja no cando dar estatura científica ao seu estudo, Ellis
sertão, seja nos aldeamentos jesuíticos; e a de- Jr. utiliza recursos conceituais do evolucionismo
vassa e exploração do distante sertão. [...] Fer- e do determinismo geográfico, buscando “pro-
não Dias Paes Leme simboliza a fase seguinte, var que o cruzamento entre o branco ibérico e o
aquela do descobrimento do ouro e de pedras ameríndio, no planalto de São Paulo, teria gerado
preciosas, inaugurando-se o chamado “ciclo do uma sub-raça superior, que deu origem ‘às bases
ouro”, com o povoamento do sertão (Makino, causadoras da formidável superioridade do pau-
2002-2003, p. 172). lista’ (Ellis Jr., 1936, p.19)” (apud Abud, 1985,
p. 144). O bandeirante emerge dessa análise
Se esse autor, como afirma Katia Abud, seguiu a como prova de tal superioridade, que marcaria
pista indicada por Capistrano de Abreu, para quem ininterruptamente dos portugueses e dos mesti-
a historiografia brasileira, até aquele momento, ha- ços expedicionários do século XVII aos cafeicul-
via se dedicado demasiado ao litoral, deixando por tores do XIX. Bandeirante e paulista, nessa acep-
construir uma história do interior do território bra- ção, são tomados como sinônimos.
sileiro, assim como julgava necessário que se fizesse Em uma tônica bastante diversa, Paulo Prado
estudo mais minucioso sobre o seiscentismo paulis- publica Paulística em 1925. A meu ver, a imensa
ta, Taunay se distancia daquele na valoração da figura sedução que lhe causa a figura mítica do ances-
do bandeirante, já que foi o mesmo Capistrano de tral bandeirante não permite, tal como defende
Abreu um dos primeiros historiadores a denunciar Abud, que a análise dessa personagem seja con-
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siderada nos mesmos termos que as de Taunay e Se não se encontra o elemento racista na aná-
Ellis Jr. Prado aceita uma sugestão de Capistrano lise de Prado, o orgulho da raça paulista ecoa ine-
de Abreu, para quem a história colonial de São quivocamente de todas as suas páginas. O lustro
Paulo possuía certo desenho que envolve ascen- epopeico produzido por Taques, autor citado in-
são (expansão colonizadora do século XVII pelas contáveis vezes no capítulo “Bandeiras”, e por Frei
bandeiras de apresamento), clímax (conquista das Gaspar reluz aqui em uma linguagem moderna,
minas no século XVIII pelas bandeiras auríferas e limpa, do século. O bandeirante que por ela se de-
triunfo na luta contra os espanhóis), decadência lineia não é menos heroico, e a sedução que exerce
(despovoamento e perda dos territórios de Minas sobre seu autor é incontornável.
Gerais, Goiás e do sul na passagem do XVIII para Como resultado da concorrência de fatores das
o XIX, resultado da retomada da máquina políti- diversas ordens, o mito bandeirante é capaz de ver-
ca pelos governadores portugueses e da derrota na tebrar todo um projeto nacional que tem São Paulo
Guerra dos Emboabas) e regeneração (expansão como centro. Se, na concepção de Prado, a história
econômica do café nos séculos XIX e XX), den- do Brasil orbita em torno da história de São Pau-
tro da célebre curva senoide esquematizada já na lo, e essa, por sua vez, só se entende em razão do
abertura do livro. tipo humano que nessas terras se constituiu, cuja
A perspectiva histórica que aqui se exprime, expressão mais emblemática é o próprio bandeiran-
diversamente do que se vê em Ellis Jr. e mesmo em te, por essa perspectiva se compreende e se justifica
Martim Francisco, um dos idealizadores intelectuais a supremacia econômica de São Paulo no contexto
do movimento separatista de 1887, permite ao menos nacional dos anos de 1920, entendendo-a como
que se vislumbre um período de decadência em meio uma das expressões da história de conquistas dessa
ao que só se lê como triunfo na historiografia dese- raça heroica, de toda forma superior, inclusive em
nhada pelos outros dois. Por outro lado, a decadên- seus atributos físicos:
cia se dá precisamente na descentralização política da
gente paulista, deslocada pela ascensão dos governa- Do cruzamento do forte sangue português
dores portugueses, expressão acabada do “parasitismo quinhentista, dos franceses, castelhanos e fla-
do estado peninsular” (Berriel, 2000, p. 134). mengos com as cunhãs, o mamaluco surgiu
Também não encontramos aqui sinal da valori- perfeitamente aparelhado para o seu destino
zação da arianização presente tanto em Ellis quanto histórico. A montanha isoladora dos contá-
em Taunay. Bem ao contrário, a pura raça paulista gios decadentes do litoral; a atitude sempre
resulta da mescla do índio com o português, aqui re- sobressaltada de quem vivia na orla das imen-
conhecido por sua doçura na contraposição ao devas- sas matas virgens, sombrias e espessas; a con-
tador espanhol, antes mesmo que, como bem salienta vivência diária e íntima com o gentio da terra
Carlos Augusto Calil (2004, p. 12), o fizesse Gilberto de quem falava corretamente a língua; a feliz
Freyre. O paulista é, por definição, um mameluco: situação geográfica e topográfica, que o locava
à margem e nas proximidades de grandes rios,
[Fernão Dias] viveu nos tempos em que melhor descendo para o interior das terras; a aspereza
se afirmaram os fortes caracteres desse tipo so- fortificante de um clima de bruscas variações,
cial que as circunstâncias criaram na capitania em que às geadas das manhãs claríssimas su-
de São Vicente. Pertencia a antiga e poderosa cedem sóis abrasadores do meio-dia – todos
família, cujos ascendentes desde 1550 residiam esses fatores conjugados criaram um admirá-
na colônia. Apesar das numerosas justificações vel exemplar humano, belo como um animal
de sangue limpo e da mania nobiliárquica da castiço, e que só puderam realizar nessa per-
época, um longínquo cruzamento com indígena feição física os homens da Renascença italia-
dava-lhe sem dúvida esse cunho mamaluco que na, quando César Bórgia seduzia o gênio de
é a nota aristocrática do paulista puro (Prado, Maquiavel (Idem, p. 147).
[1925] 2004, pp.181-182).
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Ao lado da mística paulista que transparece so. Com base em ampla documentação, Monteiro
neste longo mas necessário trecho reproduzido de coloca em outro patamar a provocadora indagação
Paulística, sobressaem os elementos que darão subs- de Capistrano de Abreu, que tanto incômodo pro-
tância à precisa definição de paulista empreendida vocou em Paulo Prado:5 “compensará tais horrores
por Paulo Prado, que se delineia dentro de um es- a consideração de que por favor dos bandeirantes
quema geral de definição das raças, tal como ex- pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”
plicita Berriel: “no processo de formação das raças (Abreu apud Prado, [1925] 2004, p. 133). Em
atuam três fatores: primeiro, a adaptação dos indi- confronto direto com a historiografia do século
víduos imigrados às novas condições de vida que XVIII, heterogeneamente reeditada nos anos de
encontram; segundo, a transmissão dos característi- 1920 e 1930, John Monteiro dará visibilidade
cos individuais dos primeiros colonos aos seus des- ao aspecto periférico do impacto geopolítico da
cendentes, efetivada pela reprodução entre consan- atuação dos sertanistas, permitindo que se perceba a
guíneos; terceiro, a ação niveladora e compensadora centralidade da dimensão de escravização envol-
do cruzamento” (Berriel, 2000, pp. 134-135), que, vida nessas expedições de apresamento de índios
no caso da gestação da raça paulista, contou com o para abastecimento das atividades econômicas
papel decisivo da Serra do Mar, quase intransponí- agrícolas na capitania, salientando que
vel, na circunstância de isolamento que permitiria
a esse “experimento” humano se desenvolver quase [...] a maior parte das grandes expedições tinha
sem interferência posterior do colonizador. como objetivo as numerosas aldeias guarani no
Se a perspectiva de Paulo Prado se distancia da Guairá. [...] Tanto os povoadores do Paraguai
tônica de Ellis Jr. e de Taunay no que se refere à valo- quanto os portugueses de São Paulo disputa-
rização da miscigenação como elemento positivo na vam o acesso à mão de obra existente neste vas-
constituição da raça paulista, ela se aproxima no que to e vagamente definido território que separava
se refere ao legado fundamental deixado pelo ban- os extremos dos respectivos impérios ibéricos.
deirante na história colonial brasileira: o ganho ter- Entretanto, nenhum dos dois mostrava-se inte-
ritorial posto em evidência em análises díspares em ressado na ocupação efetiva do lugar, desejando
múltiplos aspectos, mas que igualmente consideram antes apenas fazer cativos guarani, ao mesmo
o empreendimento bandeirante não apenas em uma tempo que procuravam evitar contatos mais
perspectiva psicogenética do seu tipo humano, mas, intensos com outros grupos indígenas que vi-
fundamentalmente, em uma lógica geopolítica: viam nas regiões limítrofes, conhecidos por sua
belicosidade (Monteiro, 1994, pp. 68-69).
A essas qualidades guerreiras, que a metrópole
soube tão bem aproveitar, juntavam os paulis- Por sua vez, Antônio de Alcântara Machado ofe-
tas um forte incentivo que era o velho ódio ao rece à lendária figura do bandeirante uma perspec-
espanhol. Assim essas expedições de morte e tiva inteiramente diversa. Dando o primeiro passo
extermínio – de despovoamento, como diz Ca- para o que Sergio Milliet chamaria de “a importância
pistrano – vieram pelas suas conquistas corrigir da influência cultural na formação e no desenvolvi-
a linha divisória de Tordesilhas, e fazer recuar o mento do bandeirismo” (Milliet, 2006, p. 17), com
avanço castelhano que se insinuava pelos gran- a publicação de Vida e morte do bandeirante Alcân-
des rios do sertão meridional (Prado, [1925] tara Machado descerá ao chão da dura vida de to-
2004, p. 141). dos os dias enfrentada por esses homens no sertão
meridional no que foi sua única obra historiográfica.
É precisamente para desmontar essa perspecti- Para muito além de inventariar as vestimentas, o
va que John Manuel Monteiro, quando toda a his- mobiliário, os utensílios domésticos, de caça, rituais
toriografia bandeirante passa por uma revisão de de morte e de luto, o autor mobiliza esses elementos
fundo, apresenta, em Negros da terra, uma leitura na constituição de verdadeiros estilos de vida, dando
que se encaminha em sentido inteiramente diver- densidade a uma atmosfera cultural que, se não é no-
A Letra e o Mito  37

bre e aristocrática, é igualmente heroica em vista da Tavares. Da pobreza que fica por morte de Pas-
imensa assimetria posta entre a singeleza dos recursos coal Neto, o heroico devastador das missões re-
de que dispunham os vicentinos e o vulto das con- tira um par de meias (Machado, [1929] 2006,
quistas a que chegaram. pp. 262-264).
Se o autor, como quer Milliet, “tira dos docu-
mentos um bandeirante pobre e analfabeto, gros- Trinta anos mais tarde esse mito ainda rever-
seiro, de modos e haveres parcos, vivendo quase na beraria na historiografia de primeira ordem. Jai-
indigência, duro para consigo mesmo e com os se- me Cortesão, em conferência intitulada “A maior
melhantes, austero e primário, em luta permanente bandeira do maior bandeirante”, proferida na Fa-
contra dificuldades de toda espécie, amante apa- culdade de Filosofia, Ciências e Letras da Univer-
vorado do sertão, e por todas essas razões naturais sidade de São Paulo, e posteriormente publicada
sensatas, lógicas, capaz de arrancadas maravilhosas na Revista de História por ocasião de sua morte,
que não se lhe apresentavam como oportunidades apresenta uma leitura das bandeiras centrada na
de glória mas sim como soluções de inexorável dimensão política de consolidação e ampliação
urgência” (Idem, p. 17), a contribuição dada por da ocupação portuguesa em território america-
essa perspectiva à chamada mística paulista muda no, iniciando com as expedições de Fernão Dias e
de fisionomia mas não se dissipa. Antes, a não in- chegando às extraordinárias façanhas de Antonio
tencionalidade do gesto de bravura, destituído de Raposo Tavares. Ele argumenta que os empreendi-
pretensões de glória e produzido pelo desafio diário mentos dos bandeirantes são decorrência inequí-
à sobrevivência, confere a esse herói um acréscimo voca da necessidade política de ampliação do ter-
de modéstia e mesmo de ingenuidade que só faz ritório português até pelo menos o Rio da Prata,
engrandecê-lo. dimensão que, portanto, deve orientar a interpre-
Isso é demonstrado no trecho final do livro, tação histórica de sua atuação.
em que Machado descreve a cena de partilha dos Em inexcedível reconhecimento da grandeza
despojos do sertanista Pascoal Neto: desses bandeirantes, e lançando mão de uma das
mais assentadas figuras épicas de seu país, é a nada
O produto das peças e os bens que não acham menos do que aos Lusíadas que Cortesão compara
licitante, recebe-os o curador que para tal mis- o sertanista paulista:
ter foi elegido. Assim também, os negros vin-
dos em companhia do defunto e os novos que Para enaltecer seu esforço e bravura, alguns
lhe foram dados em partilha, para ilhá-los e historiadores brasileiros chamam a Raposo
dando Deus remédio levar para povoado. Tavares – homeríada. Seja-nos lícito fazer um
reparo. Dos heróis de Homero decorreram os
Responsabilidade formidável naquele ambien- horrores no Mediterrâneo, mar interior cuja
te carregado de incertezas. Por isso mesmo, o maior extensão não ultrapassa quatro mil e
curador protesta que tudo corra por conta e quinhentos quilômetros; e cujos perigos não
risco da viúva que foi do defunto, e herdeiros excediam o canto das sereias e o agitado mar
seus... para que em nenhum tempo, suceden- entre Cila e Caríbedes, no doméstico estrei-
do alguma cousa... lhe peçam conta. O capitão to de Messina. Se temos de comparar aque-
limita-se a ordenar que se tome o protesto, di- les bandeirantes a grandes navegantes há que
zendo desabria mão, remetendo tudo à justiça recorrer então aos descobridores, que afron-
de Sua Majestade. Os sufrágios religiosos e as tam os cabos das Tormentas, que dividem os
custas são pagos em fazenda. Terá o capelão Oceanos. Como Vasco da Gama no Indico,
uma arroba de cera pela missa. Terá o escrivão ou Fernão de Magalhães no Pacífico, Rapo-
um machado, umas armas velhas, ou coisa de so Tavares mediu a sua grandeza pelos dois
cinco arráteis de cera. Dos capitães só um re- maiores padrões da Natureza no seu gênero:
clama a paga de seu trabalho: Antonio Raposo os Andes e o Amazonas. Por mais a despropó-
38  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 86

sito que se tenha usado e abusado da palavra, uma imigrante na sua capital, tendo em vista que
acreditamos que a Raposo Tavares e aos seus é das fazendas de café do interior paulista que par-
companheiros cabe, sim, por justo título e di- te substantiva desse grupo se mudará na busca da
reito, o qualificativo mais épico, mais nobre, consolidação de estilos de vida mais cosmopolitas.
mais humano e mais brasileiro de Lusíadas Também ela é um elemento adventício na capital
(Cortesão, 1961, p. 27). em transformação.
O capital estrangeiro está presente de diversas
A despeito da multiplicidade de perspectivas formas, mas certamente as companhias mais em-
que surgem nos anos de 1920 e 1930, a figura do blemáticas são a São Paulo Light and Power Com-
bandeirante é recuperada de forma a estruturar a pany, empresa de capital canadense instalada em
história colonial brasileira em uma tônica quase São Paulo em 1899, e a City of São Paulo Impro-
inspiradora de projetos que se outorgam nada me- vements and Freehold Land Co., que desembarca
nos do que reconstruir ou “redescobrir” a nação. trazendo consigo ares europeizantes em um urba-
Ora, é correlato deste contexto intelectual, em nismo importado que desmata o que resta da Mata
que o mito bandeirante é reinvestido da força de Atlântica no cimo da mais alta colina da cidade:
explicação histórica dos séculos de dominação colo-
nial, um contexto sociopolítico em que os ares mo- Enquanto o inglês Barry Parker metamorfosea-
dernizadores, ressaltados por Carone (1969), Mor- va o Parque da Avenida, os franceses Bouvard e
se (1970), Love (1982), Sevcenko (1992 e 1998), Couchet redesenhavam a orla da colina central
Saes (2004), inspiravam um léxico de autoafirma- da cidade, apagando os últimos traços originais
ção respaldados sobretudo na dianteira econômica ao redor do santuário onde os jesuítas haviam
com que São Paulo despontava na cena nacional celebrado a sua fundação, transformando as
do período. Mas o mito bandeirante não se presta, vertentes do Anhangabaú e os pântanos do
como instrumento político, apenas à afirmação da Tietê num panorama cenográfico dos mais
primazia paulista em face da nação, mas apresenta elegantes, com toques finos de décor europeu
uma segregação interna ao contexto paulista, ope- ponteados de palmeiras e vastos tapetes grama-
rando ali como sintagma da superioridade de um dos, recortados de trilhas, passeios e canteiros
grupo específico. (Sevcenko, 1992, p. 115).
São Paulo vivia naquele momento uma fervilhan-
te transformação com o desembarque de diversos ele- O terceiro elemento estrangeiro salientado
mentos que lhe chegavam de fora. Interessa-me parti- por Saes é composto de um grupo de empresá-
cularmente aqui a análise feita por Flávio Saes (2004) rios estrangeiros entusiasmados com as possibi-
acerca do desenvolvimento econômico de São Paulo e lidades de investimento na capital paulista, gru-
os elementos que se engatam nesse processo: o capital po em que Francisco Matarazzo é acompanhado
cafeeiro, o capital externo e o empresário migrante. por Alexandre Siciliano, Rodolfo Crespi, Egídio
A transferência da atividade cafeeira do vale do Gamba, Giuseppe Puglisi Carbone, Nami Jafet,
Paraíba para o Oeste paulista e a substituição da entre outros.
mão de obra escrava pelo trabalho imigrante livre e Não se pode deixar de considerar a presença
assalariado confere a essa atividade uma racionali- maciça da mão de obra imigrante que não se dirigia
dade capitalista ainda inédita no cenário produtivo integralmente às fazendas de café, ou que a partir
brasileiro. Parte considerável da oligarquia cafeeira é dela retornam aos centros urbanos, notadamente
aquela que investirá nas atividades industriais pau- para São Paulo: “só o Estado de São Paulo recebeu,
listas (Costa, 2010, p. 262) e financiará as transfor- em pouco mais de um decênio, isto é, entre 1890
mações na fisionomia da cidade, que será conside- e 1901, cerca de setecentos mil colonos: italianos,
rada, portanto, a “capital do capital cafeeiro”6 (Saes, portugueses, espanhóis e austríacos, não contando
2004, p. 240). Ora, também a oligarquia cafeeira, os de outras nacionalidades” (Costa, 2010, p. 254).
como aponta Martins (2004), pode ser considerada A cidade vai assim ganhando uma multiplicidade
A Letra e o Mito  39

de elementos adventícios que nela se encontram, de tação, detém sobre ela direitos históricos. O mito
forma por vezes mais conflituosa, por vezes menos. aqui é recuperado para forjar um elã social onde
É com esse cruzamento dos elementos estran- havia um conjunto demasiado heterogêneo, e
geiros que estão em diálogo a historiografia de quase sempre adventício. Formulou-se um ele-
enaltecimento do mito bandeirante e os diferentes mento simbólico que desse enraizamento a um
projetos literários, entre os quais figura Pau Brasil. determinado “povo”, que assim adquire ares de
Assim, se é preciso ter em conta o que apontam Ka- nacionalidade, a nacionalidade paulista. No en-
tia Abud (1985), Maria Helena Capelato (1985), tanto, todas as vezes em que foi necessário afirmar
Maria Isaura (1992), Marly Motta (1992) e Danilo uma clivagem interna que justificasse a superiori-
Ferretti (2008) quanto à utilização política da figu- dade de parte dessa população, o mesmo símbolo
ra do sertanista em seu ressurgimento nos anos de veio em socorro de tais interesses.
1920 e 1930, à luz dessa perspectiva que dá des- No esforço teórico de apresentar os recursos
taque à grande presença do elemento externo no analíticos de uma sociologia estética, Bruno Pé-
vórtice transformador que vai se desenhando na ca- quignot toma da arte, como componente social,
pital paulista desde o final do XIX, é possível ainda seu atributo de questionamento: “ela é atividade
sugerir uma outra utilização desse mesmo símbolo: de questionamento, como a filosofia ou a ciência,
em um contexto em que os componentes das novas mas em um registro completamente diverso, ela
forças transformadoras são externos à cena paulis- é atividade de questionamento pela implementa-
tana, há que se forjar um elemento que garanta al- ção de um mundo cuja própria existência coloca
gum enraizamento. Um grupo social em especial, em questão os mundos que vieram até ela” (Pé-
sistematicamente representado na historiografia quignot, 1993, p. 207). À luz dessa perspectiva
que enaltece o bandeirante, tem de onde recuperá- teórica, e tendo delineado o contexto intelectual
-lo, e ao fazê-lo consolida o fator que justifica uma em que o mito bandeirante é reposto nos anos de
clivagem social interna. 1920 e 1930 e o contexto sociopolítico da capital
Atestando a antiguidade de um determinado paulista no qual se faz útil, é possível retomar a
tipo social nesse território, dele propondo interpre- pergunta inicial: qual é a leitura crítica apresenta-
tações que percorrem caminhos diversos, mas che- da por Pau Brasil ao reflorescimento da mitologia
gam quase sempre à afirmação de um tipo racial, bandeirante e a que ela se presta no conjunto de
único e específico do meio, heroico, altivo e, em suas proposições?
verdade, aquele a quem se devem as conquistas não Claramente, a leitura fornecida por Pau Brasil
só paulistas, mas também nacionais, não se dispõe não se emparelha com a perspectiva sobrecarregada
apenas de um argumento em favor da suprema- de preconceito racial proposta por Ellis Jr., nem à
cia do paulista no contexto político nacional, o narrativa monumentalizada de Taunay. Tampouco
que já está bastante bem assentado pelos intérpre- se mostra orgulhosa da raça, tal como se vê em Pau-
tes do período, mas também o forjamento de um lística, ou ainda, romântica e idílica como em Al-
símbolo que justifica o corte interno no contex- cântara Machado. Mais ainda se distancia do vezo
to da capital paulista. Dotado de uma dimensão autoritário incutido por Cassiano Ricardo em seu
também política, mas com objetivos diversos, o texto “O Estado Novo e seu sentido bandeirante”,
recurso à ancestralidade no uso da terra, tomada para quem a bandeira, que deveria servir de exem-
à força como aponta Monteiro (1994), dá a esse plo à configuração política do século XX, era um
grupo, também adventício na capital paulista,7 o microcosmos de Estado em formato republicano,
elemento pelo qual se explica seu pertencimento à liderada por um chefe forte e luminar capaz de en-
terra. Com isso ele se pode afirmar como seu úni- caminhar as massas para seu destino de grandeza
co e legítimo herdeiro porque composto, desde há (Ricardo, 1941).
séculos, de seus verdadeiros conquistadores. Ne- Não há em Pau Brasil vestígios da entona-
nhum outro grupo teria direito à sua posse e ex- ção epopeica da Nobiliarquia paulista de Pedro
ploração como esse que, nessa linha de argumen- Taques, que, aliás, não poderia ser mais avessa ao
40  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 86

estilo oswaldiano, considerado na ponta de lança Jorros de ironia dão outra dimensão a essa figu-
das transformações estéticas da fase dita heroica ra lendária que aqui não se captura nem pela lenda
do modernismo paulista (Fonseca, 2007; Campos, negra dos jesuítas espanhóis nem pela lenda áurea
2003 e 2004). Diversamente, é no estilo montado de Taques e Gaspar, que tanta tinta fez correr no
em ironia que Oswald apresentará uma perspectiva início do século passado.
curiosa de uma versão contemporânea da expedição Isso não significa, no entanto, que esse con-
bandeirante: junto poético que é Pau Brasil não apresente uma
interpretação histórica do Brasil em que o mito ban-
ideal bandeirante deirante não emerja como um de seus vórtices expli-
cativos, ressaltados em diferentes momentos de sua
Tome este automóvel história e que seja, portanto, capaz de atravessá-la
E vá ver o Jardim New-Garden diacronicamente, aparecendo como dimensão que
Depois volte à Rua da Boa Vista lhe confere alguma coerência histórica. Também nas
Compre o seu lote páginas de Pau Brasil paira, menos potente, certa-
Registre a escritura mente menos coerente, dotado de fissuras e confli-
Boa firme e valiosa tos próprios ao estilo modernista de Oswald, a velha
E more nesse bairro romântico imagem de Fernão Dias Paes Leme, que não chega a
Equivalente ao célebre ser exatamente uma imagem confrontadora daquela
Bois de Boulogne que o considerava, no mesmo momento, o maior
Prestações mensais de todos os sertanistas. O bandeirante também é
Sem juros fundamental para essa narrativa de descoberta do
[Andrade, (1925) 2003, p. 169.] Brasil, apresentando-se em convivência harmônica
com o gentio amigo e com o padre doutrinador que
Intriga o leitor a forma como o sertanista prea ‑ figuram em “prosperidade de São Paulo”; como ator
dor de índios, devastador de reduções jesuíticas, injustiçado pelos reinóis na Guerra dos Emboabas
cruel, rude e oportunista, descobridor de esmeral- que se lê em “sabará”; e ainda como empreendedor
das, conquistador de territórios, responsável pelo da cruzada agrícola em direção ao interior do conti-
desenho geográfico do país-continente, e o bon vi- nente a quem se deve o desenvolvimento econômi-
vant da capital paulista nos anos de 1920 são postos co de São Paulo nos anos de 1920 que se presencia
no mesmo patamar pelo título do poema, ao qual em “prosperidade”.
o leitor retorna após ler o último verso, curioso das Nesse sentido, o poema se insere no conjunto
implicações dessa associação. de obras que repõem o bandeirante no centro da
Os cavalos e as embarcações seiscentistas ce- história brasileira. Ele certamente se apresenta, por
dem espaço ao automóvel; a mata fechada que de- inesperado que possa parecer quando se considera
safia cotidianamente a sobrevivência é o painel de essa obra no conjunto de um projeto modernista
fundo substituído pela paisagem urbana do New- bastante inovador, como mais uma das contri-
-Garden; os obstáculos topográficos de difícil trans- buições que inflaram a figura do bandeirante tão
posição desaparecem em um cenário que permite preciosa aos setores mais conservadores da época.
um constante e inconsequente ir e vir. O conquista Mas o faz infligindo à mitologia bandeirante uma
da terra, resultado da sua tomada à força ao gentio clivagem. Se nas diversas perspectivas que retomam
bravio ou ao padre espanhol, não é sequer uma re- o bandeirante sua imagem é manejada fundamen-
miniscência onde se pode comprar em prestações talmente para explicar a psicogênese do tipo pau-
um lote de terra devidamente registrado em escri- lista que lhe teria permitido atravessar a história da
tura pública. A aridez que comove o leitor de Al- colonização com tamanha centralidade chegando a
cântara Machado é velharia soterrada sob o recém- se cogitar que a ele se deve o desenho mesmo do
-construído bairro romântico onde sopram brisas território brasileiro, de dimensões continentais, em
semelhantes aos do Bois de Boulogne. Pau Brasil ele permite uma articulação diversa: o
A Letra e o Mito  41

gesto decisivo de apagamento da herança lusitana rochedos de São Paulo


da cultura brasileira, e com ela da dimensão de he-
teronomia envolvida na condição de colônia de que Everest da Atlântida
seu passado recente lhe rememorava. Sua retoma- Vanguarda calcinada do Brasil
da não implica a reivindicação de uma supremacia Ponto geocêntrico eriçado
paulista, tampouco busca dar coesão social a um Contras as escarpas das ondas
conjunto heterogêneo em situações de conflito, in- Do Amazonas
clusive armado, como aconteceu nos momentos de Poleiro de Gago Coutinho.
arroubos separatistas, ou forjar o enraizamento so- [Andrade, (1925) 2003, p. 195, grifos meus.]
cial a uma grupo político em detrimento de outros
em um contexto de vertiginosa transformação, to- São Paulo aparece nesse poema em associação
das elas iniciativas bastante estranhas à tônica geral a um símbolo de grandeza, o Everest. Essa associa-
da poesia oswaldiana. ção é acompanhada de outra, que lhe é correlata:
A evocação do mito bandeirante lhe fornece a sátira do português, incontáveis vezes presente
instrumentos para uma empreitada muito mais pre- no livro, que aqui se apresenta na tematização da
ciosa: Pau Brasil empreende o forjamento de uma figura de Gago Coutinho, piloto lusitano que, ao
figura originária alternativa à do colonizador portu- lado de Sacadura Cabral, acabava de entrar para
guês, e com isso permite que este seja simplesmente a história como o primeiro aviador a atravessar
suprimido da história de um Brasil que se descobre o Atlântico Sul, em uma espécie de atualização da
em suas páginas. Precisamente na medida em que jornada do conquistador do século XVI. O poema
esse mito, apresentado quase como produto da ter- o compara a uma galinha, ave cujo voo não ultra-
ra, substitui um dos troncos da cultura brasileira, a passa um metro de altura, visto que apresenta o
herança lusitana, é que se constitui o gesto de apaga- Everest paulista como seu poleiro.
mento do próprio fenômeno da colonização.8 Esse gesto em alguma medida repõe o mote
Se o bandeirante, diversamente apropriado, inicial que sequestrara aos portugueses o gesto da
ganha tamanha envergadura em um momento de descoberta. Nesse sentido, os paulistas são consi-
forte valorização da nação, em que se multiplicam derados um povo “autodescoberto”. Como quem
projetos não só de desenvolvimento nacional, mas, separa o joio do trigo, essa trama diferencia he-
fundamentalmente no âmbito do modernismo, rança cultural e passado colonial, e na mitolo-
de criação da nação, a se plasmar em termos de gia que cerca os sertanistas, na sua maior parte
cultura, a figura do sertanista paulista resolve um portugueses ou descendentes imediatos deles,
problema fundamental: se, para construir uma es- prescinde de lidar com os constrangimentos de
tética genuinamente nacional, é necessário acessar reconhecer tal dimensão da história brasileira.
o passado na busca de uma substância cultural que Forma curiosa, mas bastante rentável aos proje-
lhe dê autenticidade, esse passado pode ser cindido tos nacionais, inclusive aos estéticos, de fabricar
de sua dimensão de heteronomia inalienável de sua o nosso esquecimento.
condição de colônia.
O amor a São Paulo, que atravessa suas pági-
nas, é declarado inequivocamente ao final do livro, Notas
quando da chegada da embarcação a Santos. Ali
o poema posiciona São Paulo, lugar da vanguar- 1 A data entre colchetes é a da primeira publicação do
da nacional, no epicentro do Brasil e como lugar livro. Fora dos colchetes está a data da edição utilizada
visado pela jornada de Pau Brasil. Toda a travessia neste artigo.
do poema, que percorre caminhos desbravados em 2 Segundo o célebre genealogista do século XIX Luís
parte pelos bandeirantes, passando por Minas Ge- Gonzaga da Silva Leme, Fernão Dias era filho de Pe-
rais, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, visa sua dro Dias Paes Leme (paulista, filho de Fernando Dias,
natural de Abrantes, Portugal, e de Lucrecia Leme,
chegada a São Paulo:
42  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 86

natural de São Paulo, que por sua vez era filha de 80 foi acionista da Companhia de Carris de Ferro
Pedro Leme, natural de São Vicente, onde deve ter de São Paulo (bondes a burro na capital). Impor-
nascido entre 1560 e 1570) e de Maria Leite paulista, tante acionista do banco do Comércio e Indústria
filha de Pachoal Leite Furtado, dos Açores, e Izabel de São Paulo (fundado em 1889), foi seu presidente
do Prado (Leme, 1904, p. 450). Antonio Raposo Ta- por mais de trinta anos. Durante o Encilhamento,
vares era português; Manuel Preto e Domingos Jorge fundou a Companhia Central Paulista que, finda a
Velho eram filhos de portugueses; e mesmo João Ra- euforia, foi transformada na Casa Prado Chaves &
malho, que, se não foi exatamente um bandeirante, Cia., importante comissária de café que, inclusive,
é frequentemente evocado para ilustrar o espírito de participou das transações do programa de defesa do
adoção das terras de Piratininga como seu novo solo café na Primeira República. Foi fundador e dirigente
natal, era português (Leme, 1904). da Vidraria Santa Marina, que fornecia garrafas para
3 Na carta, Fernão Dias comunica sua intenção de aten- cervejarias (em particular para a Antarctica), além de
der à solicitação que lhe chega por carta régia de dom outros tipos de vidros. Participou da formação dos
Afonso VI e comunica a composição da expedição frigoríficos de Santos e de Barretos junto com Ale-
(Barreiros, 1979, pp. 23-27). xandre Siciliano (da Companhia Mecânica e Impor-
tadora) e de Roberto Simonsen (entre 1910 e 1917).
4 As providências comemorativas endossam essa histó-
Além de manter participação em outras empresas
ria monumental protagonizada pelos paulistas. Nesse
(com as de energia de algumas localidades do inte-
âmbito foi prevista a construção dos quatro marcos
rior), Antonio Prado teve intensa atividade política.
comemorativos no Caminho do Mar: o Cruzeiro Qui-
Foi ministro no Império, parlamentar tanto no Im-
nhentista, Tropas e Circulação de Produtos, o Rancho
pério quanto na República e prefeito da Cidade de
da Maioridade e o Rancho de Paranapiacaba, “acen-
São Paulo entre 1899 e 1910. Estes dados não dei-
tuando a transposição da inóspita Serra do Mar como
xam qualquer dúvida sobre a natureza predominante
símbolo da intrepidez, da coragem, da sobranceria
dos negócios de Antonio Prado, embora o ponto de
e da altivez dos paulistas. [...] Os marcos cronológi-
partida de sua riqueza tivesse sido a fazenda de café”
cos desta espécie de narrativa visual, incrustrada em
(Saes, 2004, pp. 241-242).
um obstáculo natural, catalisavam todas as façanhas
paulistas num heroísmo de alcance nacional. Nesse 7 Isso sem considerar aqueles que não descendem dos
aspecto, o bandeirismo ofereceu, de fato, a primeira exploradores sertanistas, como é o caso dos Prado.
e mais epidérmica solução simbólica para o problema Quem o explicita é Katia Abud: “Quanto aos fa-
da lealdade dividida, que se devia, ao mesmo tempo, a zendeiros das famílias da elite, sua origem não ia, na
São Paulo e à nação brasileira” (Saliba, 2004, p. 574). maior parte das vezes, além da segunda metade do
século XVIII e, puxado o fio da meada da dinastia,
5 O próprio capítulo “Bandeiras”, de Paulística, pode
achava-se um tropeiro, um comerciante, um traficante
ser lido como uma tentativa de resposta a essa pergun-
de escravos que, enriquecidos pelos negócios, tinham
ta que, aliás, consta de seu parágrafo inicial.
aplicado suas rendas na propriedade fundiária. [...]
6 Antonio Prado é considerado por Saes o caso pa- Caso mais conhecido é a da origem da família Prado,
radigmático: “Antonio da Silva Prado (1840-1929) português que chegou a São Paulo logo no início do
talvez seja o caso exemplar de empresário associado século XVIII, como mais um que procurava sucesso
à noção de capital cafeeiro. Formado em Direito nas atividades mercantis que as condições peculiares
pela Faculdade do largo de São Francisco em 1861, da cidade propiciavam. Foram seus descendentes que
voltou-se, de início, à administração das proprieda- amealharam fortuna, um século depois da chegada do
des rurais da família. Junto com seu pai – Martinho primeiro Prado a São Paulo. Antonio da Silva Prado,
Prado – e seu irmão – Marinho Prado Júnior ou comerciante de gado e arrematante de impostos, amea ‑
Martinico Prado – foi proprietário de algumas das lhou com suas atividades mercantis um considerável
maiores fazendas de café de São Paulo, primeiro na cabedal que posteriormente transformou os Prado em
região de Limeira e depois de Ribeirão Preto. Porém, grandes proprietários de terra” (Abud, 1985, p.122).
dos anos 70 em diante seus interesses econômicos
8 Em minha tese de doutorado investiguei as relações en-
pendem claramente para as atividades urbanas. Par-
tre as perspectivas de modernidade implicadas nos mo-
ticipou, como acionista ou dirigente, de estradas de
dernismos brasileiro e português, perscrutando as razões
ferro de São Paulo como a Paulista e a Mogiana. Em
de sua mútua negação estabelecida em ambos os cená-
particular, foi presidente da Companhia Paulista de
rios culturais. Para mais detalhes, ver Teixeira (2009).
Estradas de Ferro por mais de vinte anos. Nos anos
A Letra e o Mito  43

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  157

A LETRA E O MITO: THE LETTER AND THE MYTH: LE MOT ET LE MYTHE: DES
CONTRIBUIÇÕES DE PAU CONTRIBUTIONS OF PAU CONTRIBUTIONS DE PAU
BRASIL PARA A CONSAGRAÇÃO BRASIL TO THE BANDEIRANTE BRASIL À LA CONSÉCRATION
BANDEIRANTE NOS ANOS DE 1920 CONSECRATION IN THE 1920’S BANDEIRANTE DANS LES
ANNÉES 1920

Ana Lúcia Teixeira Ana Lúcia Teixeira Ana Lúcia Teixeira

Palavras-chave: Pau Brasil; Oswald de An- Keywords: Pau Brasil; Oswald de Andrade; Mots-clés: Pau Brasil ; Oswald de Andrade;
drade; Modernismo paulista; Bandeirante. Sao Paulo’s modernism; Bandeirante. Modernisme pauliste; Bandeirante.

O objetivo deste artigo é perscrutar a The purpose of the article is to scrutinize Le but de cet article est d’examiner la
contribuição dada por Pau Brasil, de the contribution of Oswald de Andrade’s contribution apportée par Pau Brasil,
Oswald de Andrade, à mitologia bandei- book Pau Brasil to the mythology of the l’œuvre de Oswald de Andrade, à la
rante consolidada no período, ampliando bandeirante, which was consolidated in mythologie bandeirante consolidée au
o leque dos usos políticos que se fizeram the period, extending the range of politi- cours des années 1920 et qui a amplifié
dessa figura mitológica. Trata-se de inse- cal uses made about such mythological l’éventail des usages politiques qui ont
rir essa obra emblemática da fase heroica figure. In this sense, the article inserts été fait de cette représentation mytho-
do modernismo paulista, reconhecida- this emblematic work of the heroic phase logique. Il s’agit d’insérer cette œuvre
mente vanguardista e progressista, num of Paulista modernism – admittedly an emblématique de la phase héroïque du
debate cujo sentido geral era o de forne- avant-garde and progressive work – in modernisme pauliste, reconnue comme
cer uma explicação histórica para a dian- a debate whose general direction was to étant d’avant-garde et progressiste, dans
teira econômica de São Paulo e, com isso, provide an historical explanation for the un débat dont le but était de fournir une
justificar suas pretensões de supremacia economic strength of Sao Paulo, and thus explication historique à l’avancée écono-
política. No entanto, este artigo busca justify its claims to political supremacy. mique de São Paulo et de justifier, ainsi,
delimitar uma clivagem constituída por According to the author, however, Pau ses prétentions à la suprématie politique.
Pau Brasil no ideário bandeirante do Brasil represents a cleavage in the concep- Cet article tente, néanmoins, de définir
momento: distanciando-se da pretensão tions of the bandeirante, which she seeks un clivage constitué par Pau Brasil dans
de sobrepujar o restante da nação, num to delimit. For her, Pau Brasil distances l’idéal bandeirante de l’époque : en s’écar-
gesto de apagamento da herança cultural itself from any kind of claim to overcome tant d’une revendication de la supréma-
portuguesa Pau Brasil constrói a figura the rest of the nation. In a gesture in- tie politique de São Paulo, et dans un
do bandeirante para substituir o coloni- tended to erase the strength attributed to geste d’effacement de l’héritage culturel
zador nas origens culturais brasileiras. the Portuguese heritage, the book builds portugais, Pau Brasil construit le mythe
the figure of the bandeirante in order to du bandeirante pour remplacer le coloni-
replace the colonizer in the origins of the sateur dans les origines culturelles brési-
Brazilian cultural backgrounds. liennes.

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