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ORGANIZADORES
Profa. Dra. Rosio Fernández Baca Salcedo
Prof. Dr. Samir Hernandez Tenório Gomes
Prof. Dr. Vladimir Benincasa

CAPA E DIAGRAMAÇÃO FINAL


Prof. Dr. Samir Hernandes Tenório Gomes

CONSELHO CIENTÍFICO
Profa. Dra. Ana Rita Sá Carneiro Ribeiro (UFPE)
Eduardo Romero de Oliveira (FAAC – UNESP)
Evandro Fiorin (UFSC)
Evandro Ziggiatti Monteiro (UNICAMP)
Gustavo Garcia Manzato (FEB – UNESP)
Sidney Tamai (FAAC – UNESP)
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____________________________________________________________________

Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo: Novos Contextos e Desafios / Rosio Fernández Baca Salcedo -
Samir Hernandes Tenório Gomes - Vladimir Benincasa (organizadores) – São Paulo: Cultura Acadêmica,
2019.
p.250 – (v.5)

ISBN 978.85.7249.047-4

Inclui bibliografia

1. Arquitetura. 2. Urbanismo. 3. Paisagismo. I. Salcedo, Rosio Fernández Baca II. Gomes, Samir
Hernandes Tenório. III. Benincasa, Vladimir. V. Título

___________________________________________________________________________________
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Sumário

Apresentação 07

TEMÁTICA I: PATRIMÔNIO 10

Patrimonio precolonial en la relaboración de las identidades


nacionales latino-americanas 11
María Sabina Uribarren

Entre Pandeiros, tamborins, ritos e humor: Uma discussão entre o local


e o global e o patrimônio intangível 29
Fabiana Lopes da Cunha

O Real Theatro de São João em novas perspectivas: uma proposta de


reconstituição arquitetônica do edifício original de 1813 62
Paulo Roberto Masseran

Pertencimento, Uso e Espaço: o caso do Museu Histórico de Londrina


Samir Hernandes Tenório Gomes 84

Modelo de ficha de inventário do patrimônio arquitetônico ferroviário


necessários para o tombamento e projetos de intervenção 105
Rosio Fernández Baca Salcedo

Casas Rurais em Santana do Manhuaçu (MG): permanências


arquitetônicas do século XVIII 129
Ueslei Domingos Alves, Vladimir Benincasa
6

TEMÁTICA II: CIDADE 157

Cidades e Rio Tietê: transformações e intervenções 158


Norma Regina Truppel Constantino, Kawani Yuri Nishimura, Luana Ripke da Costa

Os espaços de manifestações artísticas no contexto urbano das cidades


contemporâneas 180
Alexandre Suárez de Oliveira

Fatores que interferem na caminhabilidade: proposta de um método


de identificação gráfica 200
Renata Cardoso Magagnin, Beatriz Silva Lima, Maria Solange Gurgel de Castro Fontes

O marco regulatório da Política Urbana no Brasil contemporâneo 222


Jefferson O. Goulart, Ana Carolina Bergamaschi do Val
7

Apresentação

O quinto volume de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo: patrimônios e cidade reúne


artigos de pesquisadores convidados de diferentes campos disciplinares das universidades
e dos pesquisadores do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
O presente livro está estruturado em dez capítulos subdivididos em duas temáticas:
patrimônio e cidade.
O primeiro capítulo, sobre o patrimônio arquitetônico, “Patrimonio precolonial en la
relaboración de las identidades nacionales latino-americanas”, de autoria de Sabina
Uribarren, apresenta as experiências de três países, Argentina, Brasil e México, com
relação a valorização e preservação do seu patrimonio arquitetônico precolonial durante
a primeira metade do século XX, mais específicamente antes e durante as gestões
pioneiras nacionais de preservação e as reflexões sobre o patrimônio nos días atuais
No segundo capítulo, “Entre Pandeiros, tamborins, ritos e humor: Uma discussão entre o
local e o global e o patrimônio intangível”, de autoria de Fabiana Lopes da Cunha discorre
sobre o patrimônio intangível e o samba carioca, além da percepção de alguns estudiosos
sobre o tema e a necessidade de se compreender a riqueza e relevância de nossa cultura,
principalmente a de matriz africana, associada aos rituais, música e humor e, de como
estas expressões culturais estiveram presentes na construção identitária do Brasil e na
transformação do samba em símbolo de identidade brasileira.
Ainda sobre o patrimônio arquitetônico, o terceiro capítulo, “O Real Theatro de São João
em novas perspectivas: uma proposta de reconstituição arquitetônica do edifício original
de 1813”, de autoria de Paulo Roberto Masseran, aborda o Real Theatro de São João do
Rio de Janeiro, no seu transcurso inicial desde sua inauguração até 1824 quando um
grande incendio destruiu todo o seu interior, recolhe a documentação remanescente
constituída por desenhos e ilustrações de viajantes estrangeiros, relatos e notícias,
documentos oficiais, projetos e plantas que permitam antever uma proposta de
reconstituição arquitetônica do edifício conforme seu estado original.
8

No âmbito do museu, o quarto capítulo “Pertencimento, Uso e Espaço: o caso do Museu


Histórico de Londrina”, de autoria de Samir Hernandes Tenório Gomes, apresenta um
estudo sobre o pertencimento, o uso e o espaço museológico, delimitando como objeto de
estudo o Museu Histórico na cidade de Londrina. Também, busca compreender de que
forma a avaliação desses ambientes pode ser um instrumento, ainda que preliminar, de
mudança de paradigma na formatação de projetos de museus para realização de suas
tarefas.
Com relação ao inventário, o quinto capítulo, “Modelo de ficha de inventário do
patrimônio arquitetônico ferroviário necessários para o tombamento e projetos de
intervenção”, de autoria de Rosio Fernández Baca Salcedo, apresenta a noção de
inventário que evolui através do pensamento sobre o patrimônio arquitetônico expressa
nas Cartas Patrimoniais; e desenvolve a proposta de uma ficha de inventário para o
patrimônio arquitetônico ferroviário com base nas cartas patrimoniais e nas fichas de
inventário formuladas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) e o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e
Turístico do estado de São Paulo (CONDEPHAAT).
Já com relação ao patrimônio arquitetônico rural, o sexto capítulo, “Casas Rurais em
Santana do Manhuaçu (MG): permanências arquitetônicas do século XVIII”, dos autores
Ueslei Domingos Alves e Vladimir Benincasa, trata da arquitetura e do cotidiano das
propriedades rurais abertas no início do século XX, no sudeste mineiro, na região do atual
município de Manhuaçu, cuja ocupação se deu durante a expansão das frentes pioneiras
por novas zonas cafeicultoras.
A temática da cidade, o sétimo capítulo “Cidades e Rio Tietê: transformações e
intervenções”, das autoras Norma Regina Truppel Constantino, Kawani Yuri Nishimura
e Luana Ripke da Costa, é o resultado de uma pesquisa sobre a relação do Tietê –
importante rio que cruza de leste para o oeste o Estado de São Paulo – com as cidades de
Sabino e Igaraçu do Tietê. Os procedimentos metodológicos compreenderam o
levantamento bibliográfico e fotográfico, entrevistas, percursos de observação ao longo
do rio e entorno próximo; pesquisa documental, incluindo legislação, planos e projetos e
sistematização dos dados coletados.
Sobre espaços artísticos na cidade, o oitavo capítulo “Os espaços de manifestações
artísticas no contexto urbano das cidades contemporâneas”, de autoria de Alexandre
Suárez de Oliveira, estuda os locais urbanos, onde se realizam manifestações artísticas,
locais com infraestrutura permanente ou efêmera, que atenda a várias temáticas artísticas,
tais como: música, teatro, performances. Foram investigados espaços destinados ao lazer
9

público na cidade de Bauru, são eles: o Sambódromo, o anfiteatro Vitória Régia e o coreto
da Praça Rui Barbosa.
No âmbito da caminhabilidade na cidade, o nono capítulo “Fatores que interferem na
caminhabilidade: proposta de um método de identificação”, dos autores Renata Cardoso
Magagnin, Beatriz Silva Lima, Maria Solange Gurgel de Castro Fontes, apresenta uma
proposta metodológica para identificação dos aspectos positivos e negativos associados a
caminhabilidade, por meio da utilização de indicadores de desempenho representados por
meio de pictogramas.
No campo das políticas urbanas, o décimo capítulo “O marco regulatório da Política
Urbana no Brasil contemporâneo”, dos autores Jefferson Goulart e Ana Carolina
Bergamaschi do Val, aborda o percurso institucional da Política Urbana no Brasil no
período contemporâneo: parte da trajetória do Movimento Nacional pela Reforma
Urbana, conquista status de referência na Constituição Federal de 1988 – cuja inovação
mais importante foi a inclusão do Capítulo da Política Urbana –, e é consolidado com a
aprovação da Lei federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).

Rosio Fernández Baca Salcedo


Samir Hernandes Tenório Gomes
Vladimir Benincasa
10

TEMÁTICA I: PATRIMÔNIO
11

Patrimonio precolonial en la relaboración de las


identidades nacionales latino-americanas
María Sabina Uribarren

RESUMO: En este trabajo presentamos las Pre-colonial heritage in the construction


experiencias de tres países, Argentina, Brasil y of Latin American national identities
México, en relación con la valorización y
preservación de su patrimonio arquitectónico ABSTRACT: In this paper we present the
precolonial durante la primera mitad del siglo XX, experiences of three countries, Argentina, Brazil
concretamente antes y durante las gestiones and Mexico, in relation to the valorization and
pioneras nacionales de preservación. Son preservation of their pre-colonial architectural
analizadas con más profundidad las acciones de la heritage during the first half of the twentieth
Comisión Nacional de Museos, Monumentos y century, specifically before and during the National
Lugares Históricos, de la Argentina, el Servicio del pioneering management of preservation. The
Patrimonio Histórico y Artístico Nacional del Brasil y actions of the Comisión Nacional de Museos,
el Instituto Nacional de Antropología e Historia de Monumentos y Lugares Históricos, of Argentina, the
México. Discutimos como las políticas llevadas a Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
cabo por los intelectuales y profesionales de esos of Brazil and the Instituto Nacional de Antropología
grupos colaboraron con la reelaboración de la e Historia of Mexico are analyzed more deeply. We
identidad de estos países dentro de un ideario de lo discuss how the policies developed by the
que debía ser la Nación para esos individuos. Dentro intellectuals and professionals of these groups
de esos contextos procuramos entender el lugar collaborated with the construction of the identity of
que ocupaba, o no, el patrimonio precolonial. these countries. Within these contexts we
Reflexionamos, finalmente, posibles acciones sobre discussed the play of the pre-colonial heritage in
ese patrimonio en los días actuales. that construction. We reflect, finally, how these
policies have consequences even today
Palavras-chave: Patrimonio Precolonial, Argentina, Keywords: Pre-colonial Heritage, Argentina, Brazil
Brasil, México México
12

1 INTRODUCCIÓN
Evocar América Latina implica recordar monumentos, lugares, costumbres, tradiciones,
tan ricos y diversos como ricas y diversas son las culturas de nuestro subcontinente. Estos
elementos se encuentran instalados en las vivencias diarias y en la memoria colectiva de
los latinoamericanos, habiendo sido establecidos como patrimonio cultural1 de los países
en que se localizan, siendo que algunos de ellos identifican a nuestras naciones ante el
mundo por haber sido definidos como Patrimonio de la Humanidad por la UNESCO2 .
Sin embargo, no debemos olvidar que el conjunto de elementos establecido como
patrimonio de una nación, de un pueblo, de un grupo, es producto de un proceso de
valorización de sectores que defienden el rescate de determinados valores con los cuales
se identifican y de los cuales el patrimonio podría entenderse como una prueba
contundente de su legitimidad.
Estos grupos y valores cambian en el transcurso del tiempo y así lo que era valioso para
algunos individuos, que consiguieron dar visibilidad e institucionalizar determinados
elementos como patrimonio, en un momento deja de serlo para otros en otra época.
Teniendo en cuenta esta perspectiva histórica, pretendemos presentar cómo bienes
precoloniales3 fueron considerado por diversos grupos y órganos que discutían acciones
sobre el patrimonio en tres países latino americanos (Argentina, Brasil, México)
principalmente durante la primera mitad del siglo XX, valorizándolo o ignorándolo en
función de identidades nacionales específicas que se pretendían construir.

1
Debemos considerar que el concepto de patrimonio se ha ampliado desde que su definición fue incorporada a los
proyectos de Estado en las primeras décadas del siglo XX. Si en un inicio de las prácticas preservacionistas nacionales
identificaba al patrimonio con un conjunto de objetos, monumentos que metafóricamente podían materializar una idea
de nación específica, hoy el patrimonio puede ser “ecológico, étnico, cultural, ético, vivo, inmaterial, histórico, artístico,
etc. Esa ampliación que se procesa mundialmente, puede ser comprendida como parte de una lógica objetivante, en que
cualquier aspecto de la vida humana pasa a ser entendido como objeto” (CHUVA, 2008, p. 44).
2
Consultar la lista de bienes definidos como patrimonio de la humanidad por la UNESCO en América Latina en
http://whc.unesco.org/en/list/
3
Al recortar nuestro trabajo para la consideración de “bienes precoloniales” nos referimos principalmente a las
arquitecturas, de culturas anteriores al establecimiento de las hispánica y portuguesa en América Latina. Sin embargo
haremos mención a sitios y objetos precoloniales americanos, ya que en el caso de Brasil, por ejemplo, las posturas
sobre el patrimonio precolonial por parte del SPHAN fueron tomadas, principalmente, en relación a colecciones de
objetos o a “sambaquis”, estructuras prehistóricas que no pueden considerarse arquitectura.
13

2 EL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO MONUMENTAL Y LA


CONSTRUCCIÓN DE UNA IDEA DE NACIÓN
Desde finales del siglo XIX, monumentos arqueológicos e históricos fueron reconocidos
y valorizados, a veces restaurados, como íconos de diversas identidades nacionales latino
americanas por grupos de varias filiaciones intelectuales e institucionales; no obstante, no
existió en un primer momento la hegemonía política necesaria para consolidar esas
acciones como políticas de Estado con alcance nacional. A finales de la década de 1930,
en algunos países latino-americanos las definiciones y acciones sobre lo que era
considerado patrimonio cultural comenzaron a ser centralizadas por órganos que actuaban
en nivel federal y desenvolvieron su acción a partir de una idea de Nación específica que
norteaba sus estrategias, proyectos y trabajos. En los casos de Argentina, Brasil y México
fueron la Comisión Nacional de Museos, Monumentos y Lugares Históricos (CN), el
Servicio del Patrimonio Histórico y Artístico Nacional (SPHAN) y el Instituto Nacional
de Antropología e Historia (INAH), respectivamente, los órganos que centralizaron estas
tareas. Cada uno de ellos escogió y protegió un patrimonio particular que, pretendía,
sirviese como matriz para relaboraciones de identidades nacionales homogéneas para sus
países. Mas, a pesar de los discursos totalizadores que pretendían presentar un patrimonio
valido para todos, no debe pasarnos desapercibido que, en realidad, lo escogido acababa
siendo representativo muchas vezes de una parcialidad de cada uno de esos países, aquella
que escogía, la cual consiguió naturalizar y tornar hegemónicas las representaciones de
nación que defendía4
En el caso de los bienes precoloniales, los mismos sufrieron parte del proceso de inclusión
o de exclusión dentro de la selección de lo que podía ser considerado como patrimonio
4
Rescatamos aquí las definiciones de Benedict Anderson, en relación a que la “Nación” es un artefacto culturalmente
“imaginado” producto de acciones, ideas y valores humanos que proyectan en esa construcción el deseo de una nación
específica, siendo que para Santos Gonçalves, la Nación como “comunidad imaginada” puede ser construida
discursivamente como una literatura, una lengua nacional, una raza, un folclore, una religión, un patrimonio cultural
(GONÇALVES, 2002, p.14). Este mismo autor sostiene que determinadas entidades socio-culturales, como Nación,
no son “coisas no mundo natural” mas a “materialização imaginária de realidades humanas nos termos de um discurso
teórico baseado no conceito de cultura” (HANDLER, 1984 apud GONÇALVES, 2002, p. 15), considerando posible
entender los patrimonios culturales como “alegorias mediante as quais idéias e valores classificados como ‘nacionais’
vêm a ser visualmente ilustrados na forma de objetos, coleções, monumentos, cidades históricas e estruturas similares”
(2002, p. 28). En relación a los valores atribuidos, Londres Fonseca estipula que la definición de patrimonio como
“riqueza moral de toda nação” (CHASTEL & BABELON, 1980 apud FONSECA, 2005, p. 59) surge de considerar su
definición dentro de un proyecto cultural más amplio, el de contribuir para la re-elaboración de la identidad nacional,
siendo que sus teóricos le atribuyen la capacidad de reforzar la noción de ciudadanía (por que se refieren a bienes que
serían propiedad de todos), y la de representar a la Nación (por objetivar esa entidad). Así el patrimonio se torna un
documento o prueba material de versiones de la historia nacional que los grupos dedicados a la preservación del
patrimonio defienden (FONSECA, 2005, p. 59).
14

por los grupos que lo definían. Si para el caso de México parece bastante clara la
recuperación del pasado indígena para identificar a la nación ya desde el gobierno de
Porfirio Díaz, viéndose esta situación ampliada a partir de 1939 con la gestión del INAH;
en el caso de Brasil desde el siglo XIX serían diversos museos los que promovieron la
“implantación de estructuras institucionales que contaron con investigaciones
arqueológicas o custodiaron colecciones precoloniales” (BRUNO, 2005, p. 243), siendo
que el SPHAN, creado en 1937, casi no contribuyó a la preservación de este tipo de bienes
en un primer momento (ibídem). Ya en la Argentina, a la acción pionera de algunos
estudiosos que se preocuparon en reconocer y preservar el patrimonio precolonial en las
dos primeras décadas del siglo XX, podemos oponer una casi completa indiferencia de la
CN, creada en 1938, con relación a este tipo de patrimonio, cuando no una fuerte
valorización de diversas acciones emprendidas para erradicar al indio del territorio
argentino, o en el mejor de los casos, integrarlo a la cultura colonizadora dominante.

2.1 Argentina
En el caso de la Argentina, frente a importantes acciones destinadas a valorizar el
patrimonio precolonial, realizadas a comienzos del siglo XX, encabezadas por estudiosos
vinculados a instituciones dedicadas a las Ciencias Naturales o por particulares
coleccionistas, debemos considerar la falta de valorización de ese patrimonio por parte de
la CN, cuando no el rescate por parte de esta de acciones destinadas a la erradicación de
las culturas indígenas de las regiones que se incorporaron al mapa nacional a finales del
siglo XIX.
Juan Ambrosetti y Salvador De Benedetti son reconocidos como pioneros en la
valorización del patrimonio precolonial argentino. El primero fundaría en 1905 el Museo
Etnográfico, y ya desde comienzo del siglo XX realizaría expediciones por el país, por
encargo del Museo de la Plata y del Instituto Geográfico Argentino, recolectando
muestras variadas: etnográficas, arqueológicas, junto a especímenes vegetales, animales
y minerales. Según Daniel Schavelzon, “La actividad de Ambrosetti pone en evidencia el
propósito formador de un muestrario completo, totalizador del pasado nacional, desde
ruinas a música, claro ejemplo del positivismo de su tiempo” (SCHAVELZON, 2008, p.
90)
A inicios del siglo XX comenzaban los trabajos de recuperación de lugares arqueológicos
como el Pucará de Tilcara, ruinas incas descubiertas por Ambrosetti y De Benedetti en
1908. Estos vestigios prehispánicos fueron encontrados durante la “IV Expedición
Arqueológica” organizada por estos estudiosos, y en 1910 se comenzaba su restauración.
15

El trabajo de anastilosis5 propuesto llevó a restaurar los muros incas no completamente,


apenas utilizando las piedras reconocidas como propias de la construcción original:
Los trabajos se iniciaron rehaciendo las murallas de la terraza más baja […] Para
levantar las paredes de los edificios y consolidar los cimientos en parte dislocados se
emplearon las mismas piedras que por su posición y tamaño era evidente que habían
pertenecido a las viejas e inmediatas construcciones (DE BENDETI, apud
SCHAVELZON, 2008, p. 99).
Mas, por cambios en las políticas que financiaban las excavaciones las mismas fueron
abandonadas y retomadas en 1929, por De Benedetti, siendo abandonadas nuevamente
tiempo después (SCHAVELZON, 2008, p. 51-53)
A pesar de estos antecedentes de intervención en la arquitectura precolonial argentina,
considerados como Schavelzon pioneros en América del Sur, ya que “ tenía pocos
precedentes en América Latina ya que las únicas obras importantes se habían realizado
en México […] y se estaba a un par de años de comenzar en Guatemala y Perú”
(SCHAVELZON, 1988-1999)) y de la sanción en 1913 de la Ley Nacional 9.080 para la
protección de ruinas arqueológicas y paleontológicas (que fue regulada en 1921 y
decretaba que los elementos arqueológicos y paleontológicos eran propiedad del Estado
Nacional, quedando los mismos bajo tutela del Museo Nacional de Historia Nacional y
del Museo Etnográfico de la Universidad de Buenos Aires), la CN, órgano formado
principalmente por historiadores, no tuvo la misma consideración en relación al
patrimonio precolonial argentino. De los más de 300 bienes declarados como patrimonio
durante la gestión de su primer presidente, Ricardo Levene (1938-1946), apenas tres
ruinas prehispánicas (Incahuasi-Catamarca, Tolombón e Incahuasi-Salta) fueron
protegidas por decreto y valorizadas por las culturas que representaban, que definía las
dos primeras como Monumentos y la tercera como Lugar Histórico 6 (URIBARREN,
2008, p. 82).
Al lado de esas pocas acciones emprendidas por la CN para la valorización positiva de
los sitios prehispánicos, esta institución si tomó medidas tendientes a valorizar elementos
vinculados al desalojo de los indios de los territorios argentinos o de la relación de los
mismos con padres católicos que debían convertirlos a la nueva religión.

5La anastilosis consiste en colocar en su exacto lugar únicamente piedras que se sabe de dónde han caído, con
meticulosa rigurosidad (SCHAVELZON, 1989-1990)
6 La CN dividía el patrimonio argentino en tres categorías: Monumentos, Lugares y Sepulcros Históricos.
16

Dentro del conjunto de monumentos y lugares históricos definidos como patrimonio por
la CN se destaca una serie que recuerda las expediciones militares realizadas con el
objetivo de extender la frontera interna del país y consolidar la soberanía del Estado
Nacional en territorios ocupados por diversos grupos indígenas. Estos, definidos como
“Lugares Históricos”, recordaban las campañas militares contra el indio a finales del siglo
XIX, realizadas principalmente en la Patagonia7, aunque también eran considerados
episodios de esas luchas desde la época de la colonia en otros lugares del país.
Los lugares definidos como patrimonio por la CN que estaban vinculados a estos
acontecimientos llegaron a ser 29, alcanzándose el auge de este tipo de declaratoria en el
año 19438 (URIBARREN, 2008, p. 96).
Los decretos referidos a estos lugares y monumentos narran la lucha entre indios y
ejército: “Fortín Guanacos: [...] lugar de frecuentes encuentros con los indios. La noche
del 19 al 20 de enero de 1861 fue atacado por indios moluchos que dieron muerte al Jefe
del Fortín […] con toda su guarnición” (DECRETO 8.729/43 apud URIBARREN, 2008,
p. 96). Y haciendo otra citación en el mismo sentido: “La expedición a la Pampa Central
a órdenes del teniente Coronel Clodomiro Villar, en el año 1882, chocó en este lugar con
un fuerte contingente de indígenas, trabándose en combate […]” (DECRETO 11.146/43
apud URIBARREN, 2008, p. 96).
Eran destacados en estos decretos el triunfo de las fuerzas del Estado Nacional y la
instalación de puestos militares en zonas de frontera, denominados vivac (por ejemplo,
los puestos de Luan Lauquen, Nainco, Trenque Lauquen, Pitral Lauquen, Pampa de los
Molinos, Fortín Primera División), de los cuales a veces no quedaban mayores vestigios
por haber sido construcciones temporarias o precarias.
Ya en relación con el vínculo establecido entre indios y religiosos, fueron definidos como
patrimonio varias misiones jesuíticas y lugares destinados a la catequización. En el caso
de Las Pardecitas, La Rioja, se definía como lugar histórico que debía ser protegido por
7En el siglo XIX hubo un interés internacional por esta parte del actual territorio argentino, compartido no apenas por
varias naciones europeas, mas también por Chile. Avanzado ese siglo, Argentina comenzó a preocuparse con sus
derechos de posesión en el territorio austral, no sólo por una cuestión de soberanía, sino también por causas económicas:
“el crecimiento económico del país exigía la incorporación de nuevas tierras [...] permitiendo el incremento de los
volúmenes de producción” (BANDIERI, 2000, p. 128).
8En el siglo XIX hubo un interés internacional por esta parte del actual territorio argentino, compartido no apenas por
varias naciones europeas, mas también por Chile. Avanzado ese siglo, Argentina comenzó a preocuparse con sus
derechos de posesión en el territorio austral, no sólo por una cuestión de soberanía, sino también por causas económicas:
“el crecimiento económico del país exigía la incorporación de nuevas tierras [...] permitiendo el incremento de los
volúmenes de producción” (BANDIERI, 2000, p. 128).
17

la CN por el hecho de que “ahí, San Francisco Solano cristianizó miles de indios en esta
ciudad. Fue un fortín español defensivo contra las incursiones de los [indios] del Gran
Alzamiento” (CNMMyLH, 1942, grifo nuestro) y en las Misiones Jesuíticas de Bariloche
y Nahuel Huapi, Neuquen, “en el siglo XVIII fueron fundadas y luego destruidas por los
indios en 1655 y 1663, quienes mataron al reverendo Padre Nicolás Mascardi, que
organizó a orillas del Lago Nahuel Huapi la primera reducción jesuítica de la Patagonia”
(CNMMyLH, 1943). Durante la década de 1940, trabajos y restauraciones arqueológicas
fueron realizados en Ranchillos provincia de Mendoza sin la participación de la CN.
Dirigidos por Carlos Rusconi y el “Museo de Ciencias Naturales Juan Moyano”, los
trabajos consistieron básicamente en limpieza y recolocación de piedras en los muros.
Las acciones, que no pueden considerarse anastilosis de forma estricta, ya que el propio
Rusconi esclarecía que “fueron adicionadas durante los trabajos de recomposición una o
varias hileras de piedras, esto es, las mismas que se hallaban al pie de los muros” (Rusconi
1962, apud SCHAVELZON, 1989-90), consistieron en recoger “las piedras caídas
colocándolas encima de las paredes para emparejar el conjunto hasta una altura promedio
de 1 m” (SCHAVELZON, 1989-90)
Podemos preguntarnos sobre el porque de la casi ausencia de acciones a favor del
patrimonio arquitectónico precolonial por parte de la CN. La acción de la comisión se dio
en la intersección de intereses defendidos por sus miembros, principalmente historiadores
provenientes de la “Academia Nacional de la Historia”, que tenían como preocupación la
educación patriótica del pueblo a través de la historia y la formación de una conciencia
nacional. Según el entender de la Comisión, estos objetivos podían ser conseguidos con
la definición de un patrimonio cultural que reconoció sobre todo monumentos de la época
de la colonia y fundamentalmente de la formación de la República. Y el indio, un ser que
luchaba y mataba pero que al final era muerto, se presentaba como el habitante original
de un territorio que se había constituido en nacional a través de su exterminio.
En un país donde la inmigración europea fue una fuerte constante desde el final del siglo
XIX, la acción de la CN se realizó en un contexto en el cual la mayoría de los habitantes
del país eran inmigrantes o sus hijos. Su primer presidente, Ricardo Levene, tenía como
preocupación “dar un carácter eminentemente patriótico a la enseñanza, con el objetivo
de transformar el ambiente de cosmopolitismo creciente” (FRANCO, apud
URIBARREN, 2008, p. 19). En su concepción, a la vez que la historia debía ser “maestra
de vida ”9, el patrimonio podía convertirse en maestro de historia: la historia defendida
9 Definición del orador romano Cícero para la función pedagógica de la historia (De oratore, 2, 9, 36).
18

por la CN que valorizaba la construcción de una Argentina de matriz principalmente


criolla, en la cual fueron desvalorizados sus orígenes indios.

2.2 Brasil
Museos brasileros ya contaban desde comienzos del siglo XX con colecciones
arqueológicas- organizadas en base a prospecciones de viajantes o naturalistas del sigo
XIX- y establecían espacios de enseñanza y producción científica sobre el asunto, “como
depósitos de objetos ordenados, actuando a partir de una perspectiva enciclopédica,
evolucionista y clasificatoria” (BRUNO, 2005, p. 243). Un indicador sobre la importancia
de la preservación del patrimonio precolonial para algunas instituciones, como el Museo
Nacional, fue el anteproyecto de ley del profesor de arqueología de dicho museo, Alberto
Childe10, de 1920, en el cual hacía referencia a la necesidad de proteger el “patrimonio
arqueológico prehistórico” (CHILDE, apud CHUVA, 2009, p. 155).
Otros grupos del Brasil también se preocupaban con la consideración y valorización de
los bienes precoloniales, así podemos considerar a los paulistas Paulo Duarte y Mario de
Andrade, siendo que el segundo, por pedido del ministro de educación Gustavo
Capanema, realizaría un anteproyecto de ley para la preservación del patrimonio en 1937.
Al analizar el abanico de cuestiones que Mario de Andrade pretendía abarcar con su
anteproyecto, Chuva concluye que el mismo intentaba contemplar la mayor diversidad y
pluralidad posible, siendo la identidad nacional una sumatoria de “‘Brasiles’ – una síntesis
de diferentes costumbres y formas de expresión” (CHUVA, 2008, p. 160), entre las que
se incluía la prehistoria.
Andrade proponía la creación de 8 categorías de patrimonio- arte arqueológica, arte
amerindia, arte popular, arte histórica, arte erudita nacional, arte erudita extranjera, artes
aplicadas nacionales, artes aplicadas extranjeras- determinando la inscripción de lo que
era considerado patrimonio en 4 libros de registro, que fueron denominados Livros de
Tombo, los cuales reunían bienes que guardaban criterios similares. Los libros fueron los
siguientes: Livro de Tombo Arqueológico, que reuniría arte arqueológica, arte amerindia
y arte popular, Livro de Tombo Histórico, que aglutinaría el arte de valor histórico, Livro
de Tombo de Belas Artes, que contemplaría arte erudita nacional y extranjera, Livro de
Tombo de Artes Aplicadas, que registraría artes aplicadas nacionales y extranjeras.

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Childe, conservador de antigüedades clásicas del Museo Nacional, estudió la colección egipcia del citado museo, fue
miembro del Consejo Consultivo del SPHAN.
19

Muchos de los elementos y orientaciones del anteproyecto de ley elaborado por Mario de
Andrade fueron incluidos en el decreto-ley n. 25 (que a partir de noviembre 1937
organizaba la protección del patrimonio histórico y artístico nacional y fijaba que su
responsabilidad quedaba bajo la órbita del SPHAN, servicio creado en enero del mismo
año por la ley n. 378). Dicho decreto establecía
[…] constituye el patrimonio histórico y artístico nacional, el conjunto de bienes
móviles e inmóviles existentes en el país y cuya conservación sea de interés público,
sea por su vinculación a hechos memorables de la historia del Brasil, sea por su
excepcional valor arqueológico o etnográfico, bibliográfico o artístico (DECRETO-LEY
25).
Sin embargo, poco fue realizado por el SPHAN en relación con la cultura precolonial en
el país durante sus primeros años de existencia. A pesar das intenciones amplias del
decreto ley 25 de 1937, en 1952, Rodrigo Melo Franco de Andrade reconocía:
[...] haja vantagem manifesta em que o patrimônio cultural representado por todos
aqueles valores diversos seja resguardado pelo mesmo sistema e sob uma
orientação coerente e uniforme, considerando que as coisas móveis e imóveis a
proteger compreendam não só os monumentos e obras de valor histórico e artístico,
mas também os de valor arqueológico, etnológico, bibliográfico e, ainda, os
monumentos naturais, os sítios e paisagens notáveis, verifica-se que tal acervo, para
ser preservado eficazmente, talvez reclame uma organização e um aparelhamento
mais complexos do que comportará uma única repartição federal (ANDRADE, 1952,
p. 66-67).
El director del SPHAN informaba en el mismo texto que la protección del patrimonio
arqueológico estaba bajo responsabilidad del Museo Nacional11.
Varios autores que analizan los bienes protegidos como patrimonio nacional por el
SPHAN durante el periodo en que Melo Franco de Andrade fue director, concluyen que
existió una selección dirigida a la protección, sobre todo, de monumentos y arquitecturas
coloniales y una ausencia casi total de bienes vinculados a otras etapas históricas
(CHUVA, 2010). De los casi 450 bienes inscriptos en los libros de “tombo” hasta marzo
11Heloisa Alberto Torres, formada con Roquete Pinto en el Museo Nacional, fue la directora del Museo Nacional entre
1937 y 1955, esta antropóloga incentivaría la renovación de los técnicos de la institución y promovería investigaciones
en áreas como la antropología, geología, paleontología, botánica y zoología, colocando especial énfasis en los estudios
etnológicos. El ante-proyecto de ley de Mario de Andrade suscitó críticas de la antropóloga, ya que en el mismo
Andreade habría propuesto el desmembramiento del Museo Nacional para la creación de un Museo Etnográfico
(ANDRADE, apud CHUVA, 2009, p. 163)
20

de 1950, apenas 7 bienes eran rescatados por sus valores arqueológicos (diversas
colecciones arqueológicas y un sambaquí)12, explicando Melo Franco de Andrade que
[...] torna-se imprescindível formular antes de transcrevê-la [a lista de bens], a
advertência importante de que a quase totalidade dos monumentos, jazidas e
coleções de peças de valor arqueológico não foi até agora tombada, nem ainda o
acervo de bens móveis de interesse histórico e artístico, nem mesmo certos
monumentos arquitetônicos de excepcional destaque no patrimônio tradicional do
país (ANDRADE, 1952, p. 108).
Así podemos pensar que a pesar de existir en el origen de creación del Servicio de
Patrimonio una intención amplia en relación a los bienes que el SPHAN debía proteger,
los límites de la acción proteccionista sobre el patrimonio precolonial ya estaban
predefinidos (bajo resguardo del Museo Nacional, con cuya directora Heloisa Alberto
Torres el SPHAN guardaba un excelente vínculo). La falta de acción del SPHAN en
relación con la preservación del patrimonio arqueológico vuelve a confirmarse en el
análisis del último capítulo de texto de su director para el Instituto Panamericano de
Geografía e Historia, “Planos de Consolidação, Conservação e Restauração de
Monumentos Históricos e Exploração de Jazidas Arqueológicas”. En el mismo, frente a
una detallada descripción de las tareas que serían realizadas por el SPHAN para
consolidar, reparar y restaurar los bienes muebles e inmuebles que habían sido
establecidos como patrimonio, Rodrigo Melo Franco de Andrade explicaba
[...] com referência aos trabalhos de exploração de jazidas de material arqueológico,
o serviço mais importante planejado para 1950 deverá ser a execução nos sambaquis
de Laguna, no Estado de Santa Catarina, a cargo de um dos naturalistas do Museu
Nacional. A despesa da exploração está estimada em Cr$ 12.000,00, devendo
ocorrer, como já se adiantou, à conta dos recursos consignados no orçamento
federal à Universidade do Brasil (Andrade, 1952, p. 150).
A pesar del reconocimiento por parte de Rodrigo Melo Franco de Andrade de las
limitaciones de la gestión del SPHAN y de la atribución de las responsabilidades del
Museo Nacional en relación con la arqueología, Bruno resalta las propias limitaciones
que las instituciones museísticas tenían en la época para realizar su trabajo: los proyectos
museológicos que fueron instaurados en el Brasil a partir de 1930 contemplaban sobre
todo la recuperación del patrimonio colonial, siendo que

12Sambaquí es un depósito realizado por el hombre al aire libre de conchas y otros materiales orgánicos que sufren un
proceso de fosilización en contacto con el água. Varias de estas formaciones pre-históricas se localizan en el litoral
brasilero.
21

[…] grandes instituciones museológicas estaban siendo confrontadas en todo el


mundo, definitivamente, por las especialidades científicas y por los desdoblamientos
de los museos en instituciones monográficas. En este movimiento, los vestigios
arqueológicos dejaron de hacer parte de las Ciencias Naturales y todavía no habían
conseguido establecer vínculos con objetos etnográficos (BRUNO, 2005, p. 244)
Así el patrimonio arqueológico Brasilero parecía estar en la época en una especie de
“limbo”, entre museos que al mismo tiempo que tenían a su cargo colecciones
precoloniales y vinculaban sus disciplinas a las ciencias naturales, estaban replanteando
sus alcances, y un SPHAN con intereses pautados por el grupo de arquitectos que
formaban su cuerpo técnico, notablemente, Lucio Costa, el cual ante los límites humanos
y operacionales de la institución, escogió consolidar las raíces de lo nacional
fundamentalmente en el barroco colonial brasilero y en su mayor exponente: el
arquitecto-escultor Aleijadinho.

2.3 México
En el caso de México, la historia de la preservación del patrimonio precolonial tiene como
marcos iniciales diversas acciones emprendidas por el gobierno de Porfirio Díaz13 que
posibilitaron la incorporación del pasado indígena a la cultura mexicana.
En 1885 el gobierno de Díaz creaba dentro del Ministerio de Instrucción Pública y Bellas
Artes el cargo de Inspector Conservador de Monumentos Arqueológicos de la República,
cuya responsabilidad era “la conservación de todos los monumentos y ruinas
arqueológicas e históricas de la República” (RUIZ, 1993, p. 172), siendo que también fue
durante esta presidencia que comenzaron los programas oficiales de excavaciones
arqueológicas (ibidem). Durante el Porfiriato la política para la conservación del
patrimonio se abocó en consolidar

[… ] la propiedad y uso por el Estado de los objetos y sitios arqueológicos


prehispánicos […] Se puede decir, en síntesis, que en este gobierno se definió y ubicó
la conservación de monumentos como una política cultural del Estado […] con un
hincapié especial en los de la época prehispánica. Se consumó así, con fines de
gobierno, la incorporación del pasado indígena a la cultura nacional y la protección

13Porfirio Díaz, militar y político mexicano que durante tres mandatos ocupó la presidencia de México (noviembre a
diciembre de 1876, febrero de 1877 a noviembre de 1880, dicembre de 1884 a diciembre de 1911), en 1911 fue
depuesto por Francisco Madero, uno de los líderes de la Revolución Mexicana.
22

de sus testimonios materiales, sus monumentos, se elevó al rango de ley (RUIZ, 1993,
p. 174).

Ya en el proyecto cultural posrevolucionario la identidad que se quería construir para


México tuvo bases más amplias. En este sentido, además del reconocimiento del
patrimonio prehispánico, se produjo la valorización de algunas manifestaciones de la
colonización española en este país que fueron definidas como patrimonio cultural dentro
de una política de gobierno que tenía como objetivo la unificación de México bajo la
imagen integradora del “mestizo”: “como el poseedor de la verdadera cultura nacional.
De aquí la necesidad de conservar nuestro pasado, tanto prehispánico como colonial, del
cual era exponente precisamente el mestizo” (GALVÁN apud RUIZ, p. 175).
Fue en enero de 1934 que se dictó por primera vez en México una ley que tendría, según
Nalda, “incuestionable aplicación federal” (1993, p. 129), la Ley sobre Protección y
Conservación de monumentos arqueológicos e históricos, poblaciones típicas y lugares
naturales, siendo que en 1939, bajo el gobierno de Lázaro Cárdenas era inaugurado el
Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH) que con el objetivo de
[…] investigar, conservar, difundir el patrimonio cultural de México, e iniciar un
estudio científico de los pueblos indígenas, […] pasaba a substituir el antiguo
Departamento de Monumentos de la Secretaría de Educación Pública, el cual tenía
hasta ese momento responsabilidades sobre el patrimonio cultural (INAH, 2013)
Augusto Urteaga considera que con la creación del INAH y de la organización del
Congreso Indigenista de Pátzcuaro , la antropología, la arqueología, la conservación y la
museología fueron integradas al Estado, y sus profesionales incorporados a diversas
dependencias de este, fueran académicas, técnicas o profesionales (URTEAGA, p. 407).
Continua explicando este autor que la antropología, asociada a la arqueología y a la
historia sería “el eje científico de una propuesta de política cultural fuertemente vinculada
a la identidad nacional, a la defensa de la soberanía cultural del país en el sentido más
amplio” (p. 408), siendo que para el gobierno de Cárdenas “era el momento de elaborar
un mito con retorno que permitiese resolver la nueva grandeza mexicana” (ibidem.) en la
cual el habitante de México, de fuerte raíces indígenas, era pieza fundamental. Para Ruiz,
Con tal institución (INAH) y el personal técnico especializado inicia […] la tarea de
rescate de las diversas culturas nacionales con el fin de asimilarlas en la construcción
de un presente. Este anhelo del proyecto cardenista daba esperanzas de un
acercamiento de los intelectuales a las expresiones de las diferentes etnias para
crear una sociedad nueva, nutrida en las tradiciones culturales regionales populares
(RUIZ, 1993, p. 196)
23

Como destacamos anteriormente, las excavaciones oficiales en sitios arqueológicos


comenzaron durante el gobierno de Porfirio Díaz, siendo que las exploraciones
sistemáticas y reconstrucciones arqueológicas de monumentos precoloniales en México
fueron realizadas por diversos grupos, mexicanos y extranjeros, entre estos la Fundación
Carnegie, desde comienzos del siglo XX.
Entre las figuras y trabajos destacados sobre arquitecturas precoloniales, no se puede dejar
de mencionar a Manuel Gamio, bajo cuya dirección se realizaron trabajos en Teotihuacán.
Gamio fue director del Departamento de Antropología perteneciente a la Secretaría de
Agricultura y Fomento, entre 1917 y 1924, y dentro de este organismo desarrolló un
proyecto arqueológico y antropológico que llevó al historiador Enrique Florescano a
considerarlo como
[…] fundador de la arqueología científica mesoamericana y diseñador de programas
institucionales que combinaron el interés científico por las poblaciones indígenas y
campesinas, con la decisión de mejorar su situación e integrarlas en la marcha del
desarrollo nacional” (FLORESCANO, 1993, p. 159)
Según Gabriela Lee Alardin en las excavaciones de Teotihuacán, que comenzaron en
1917,
[…] se procedió a la remoción de escombros para determinar los volúmenes a ambos
lados del eje principal de la pirámide, y se recurrió a la anastilosis, con la dificultad
que implicaba el uso de esta técnica en estructuras de mampostería y argamasa. Para
reconstruir los elementos faltantes se emplearon materiales de los escombros, y se
sustituyeron las losas rotas por otras de dimensiones iguales para apoyar los tableros
de acuerdo al proceso constructivo original (LEE, 2008)

Sucesores, discípulos de Gamio y jóvenes interesados en la arqueología, como José


Reygadas Vértiz, Miguel Angel Fernández, Ignacio Marquina y Alfonso Caso,
comenzarían en 1924 la restauración de Tenayuca, siendo que los descubrimientos
arqueológicos alcanzaron niveles definidos como “espectaculares” durante las
exploraciones realizadas durante la década de 1930, destacándose entre ellas las
realizadas por Caso en Monte Albán (NALDA, 1993, p. 129).
Entre las obras de restauración también podemos destacar las realizadas por Fernández a
partir de 1933 con la excavación y restauración de Uxmal, Acancéh, Tulum, Quintana
Roo y Palenque. Fernández, con educación formal de artista plástico, se formó en campo
junto a Manuel Gamio. Destaca Schavelzon
24

[…] debemos de recordar que fue él [Fernández] quien abrió Palenque al turismo y
al conocimiento general, ya que anteriormente —salvo Maudslay en 1890-91 y Frans
Blom en 1923—nadie había trabajado por liberar las ruinas de la capa de vegetación
que las cubría. Limpió la zona, descombró los edificios principales y procedió a
restaurar parte de la plataforma del palacio y la torre, a descubrir varias lápidas
labradas y restaurar el interior de los templos de la Cruz y la Cruz Foliada; restauró y
reconstruyó parte del Templo del Sol; levantó detallados planos y dibujos de los
ornamentos de estuco de cada uno de los edificios en que intervino. Cabe destacar
que en todos lo casos procedió a recolocar los dinteles con madera de chicozapote,
insistiendo en su importancia (SCHAVELZON, 1986, grifo nuestro)
El periodo que va de 1940 a 1972 puede considerarse como el gran “ciclo” de producción
del patrimonio y las políticas culturales en México (URTEAGA, 1983, p. 411), siendo
que para finales de la década de 1960 ya habían sido realizados la mayoría de los trabajos
de exploración y conservación de los principales monumentos del México precolombino.
Debemos destacar que el INAH no fue la única institución de carácter nacional abocada
a valorizar, conservar, estudiar y restaurar el patrimonio indígena de México en los años
de nuestro interés; a él se suman el Instituto Nacional de Bellas Artes, el Instituto
Nacional Indígena y la Universidad Nacional Autónoma de México. Algunas de estas
instituciones son más antiguas, otras se escindieron del INAH, como el Instituto Nacional
Indígena, todas buscaran en sus raíces, tanto indígenas como mestizas, los elementos
requeridos para definir una “cultura nacional”, no apenas como testimonio de un pasado,
mas con el objetivo de seguir produciendo y transmitiendo dicha cultura al futuro.

3 CONSIDERACIONES FINALES
Al retroceder históricamente nos es más fácil entender que la identificación de un
determinado conjunto de bienes, costumbres, etc. como patrimonio cultural de un país o
un grupo, no es ajena a campos de disputa en los que se colocan en juego aquello que es
valioso o no para unos o para otros, esto porque los elementos definidos como patrimonio
cultural actúan como soportes de sentido, son resignificados para servir de apoyo a
25

diversos proyectos culturales en los que se envuelve cuestiones de relaboración de la


identidad de dichas naciones o grupos. La historia nos muestra también que cuando la
preservación del patrimonio nacional comenzaba a instalarse dentro de las políticas de los
Estados Nacionales sudamericanos, con la acción de grupos institucionales diferentes, en
la tercera década del siglo XX, el valor atribuido a los bienes precoloniales no era un
consenso: en función de la matriz que quería ser rescatada para construir una idea de
nación y relaborar la identidad de la misma, ora podían ser integrados como elementos
constructores de la memoria, ora podían ser rechazados o simplemente olvidados.
En el caso de México su inclusión desde el siglo XIX en las políticas del Estado cardenista
y el reconocimiento temprano de su valor en lo cotidiano, por su presencia en la
producción de artesanías o por el valor que tiene para el turismo, permitió su
incorporación a sistemas socioeconómicos que facilitan su preservación y hacen que su
importancia sea reconocida.
Mas, ¿qué acontece en el caso de Argentina o Brasil, países en los cuales no existió ni un
patrimonio precolonial tan monumental como el mesoamericano ni una política fuerte y
clara desde un principio que permitiese su protección eficiente? También debemos
reconocer que al promover las figuras míticas de estos Países – aquellas en que se
proyectan las imágenes que dan forma a la identidad nacional – Brasil escogió un mulato
para representar la cultura que surgía, híbrida, para apropiarse y superar la cultura
colonizadora y Argentina presentaba al criollo, el hijo del europeo que nació en América,
como modelo para los grupos humanos extranjeros que estaban dando nueva
configuración al país. Los bienes precoloniales, indígenas, por este mismo proceso
muchas veces pasaron a ser entendidos en estos países como una especie de patrimonio
“remoto” en el tiempo y en el espacio, ajeno y por lo tanto objeto de menor preocupación
por parte de la población que no se identifica con él.
Si bien existen en estos países definiciones y legislaciones que elevan los monumentos,
objetos y sitios precoloniales, a la categoría de patrimonio, debemos considerar que en el
caso de los elementos de la cultura material un indicador de su real valorización continúa
siendo su preservación física, ¿cómo recordarlo si su materialidad no se preserva, ¿cómo
puede actuar como activador de la memoria, si se degrada, si deja de existir?
Especialistas sobre el asunto como Daniel Schavelzon, al analizar la situación del
patrimonio precolonial en la Argentina, ya en 1993 cuestionaba en relación con su
preservación:
Ahora podemos preguntarnos qué fue lo que fracasó. ¿Fue el proyecto de nación
que no tenía cabida para el tema?, ¿fue un problema cultural de ciertos grupos
26

sociales que detentaron el control de ella?, ¿fueron generaciones de profesionales


desinteresados por el futuro de su objeto de estudio?; ¿es un problema institucional,
político, social, educativo? Todos podemos adelantar respuestas y ya lo hemos
hecho una y mil veces, pero la cruda realidad sigue operando en forma implacable:
sin una política y acciones para preservar el legado arqueológico. Podría ser posible
en una Argentina como la nuestra una acción como la que ha decidido hace un
decenio el Instituto de Antropología e Historia de Guatemala: el país invierte sus
recursos en preservar y restaurar, no en excavar o aumentar conocimientos salvo
que estas acciones están unidas a las otras prioritarias. Puede ser un caso para
reflexionar (SCHAVELZON, 1993)
Intentamos responder a algunos de los cuestionamientos hechos por Schavelzon en las
páginas anteriores. Podemos agregar que consideramos fundamental la articulación del
patrimonio precolonial con cuestiones que preocupan a la población en su conjunto mayor
actualmente (cuestiones sociales, económicas, ambientales). Apenas la sociabilización de
ese patrimonio permitirá que el mismo deje de ser ajeno y si cotidiano, punto de partida
para valorizarlo realmente y reflexionar sobre el lugar que el mismo puede ocupar en
nuestro presente y futuro. En ese posible proceso de sociabilización, los Estados
Nacionales, responsables históricos de esos patrimonios precoloniales, por su carácter
eminentemente arqueológico, deben percibir que es fundamental la incorporación de
otros agentes. Municipios, estados provinciales, universidades, organizaciones no
gubernamentales son instancias de descentralización factibles y ya actuantes, que muchas
veces ocupan el lugar del Estado Nacional ausente. Con buenas intenciones, sin embargo,
precisan formación, orientación y criterios de gestión dentro de un sistema integrado que
tenga continuidad en el tiempo. Tenemos, entonces, un gran desafío: que los esfuerzos
en este sentido no sean un trabajo de Sísifo. En la coyuntura actual de nuestros países
sudamericanos, de idas, venidas, avanzos y retrocesos, de culturas indígenas, aun hoy
estigmatizadas, desprotegidas descaradamente o sobreprotegidas de una forma enyesada,
el esfuerzo para quebrar esa condena muchas veces parece inconmensurable.

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defendida em 2008 na FAU-USP.

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Entre Pandeiros, tamborins, ritos e humor: Uma


discussão entre o local e o global e o patrimônio
intangível
29

Fabiana Lopes da Cunha

RESUMO: Nosso objetivo é discutir sobre ABSTRACT: Our objective is to discuss the
patrimônio intangível e o samba carioca. Queremos intangible heritage and the carioca samba. We
ainda discorrer sobre a percepção de alguns want to continue discussing the perception of
estudiosos sobre o tema e a necessidade de se some researchers on the theme and o the need to
compreender a riqueza e relevância de nossa understand and express our culture, especially the
cultura, principalmente a de matriz africana, African matrix, associated with rituals, music and
associada aos rituais, música e humor e, de como humor, as these expressions store present in the
estas expressões culturais estiveram presentes na identity construction of Brazil and the
construção identitária do Brasil e na transformação transformation of the samba into a symbol of
do samba em símbolo de identidade brasileira. Essa Brazilian identity. This discussion seeks to show
discussão busca mostrar contextos históricos different historical contexts: the first, which deals
distintos: o primeiro, que trata sobre a necessidade with the need to construct symbols for the nation
de construção de símbolos para a nação e outro, and another, more current, which will be based on
mais atual, que se pautará na importância do the importance of the inventory and registration of
inventário e registro dos bens culturais de natureza cultural goods of an intangible or intangible nature.
imaterial ou intangível. Em ambos, o samba carioca In both, the Rio samba and all the representative
e toda a cultura representativa do mundo que o culture of the world that surrounds it, will be
cerca, estarão presentes , não apenas no Brasil, present, not only in Brazil, but in the world,
mas, no mundo, através da exportação de nossa through the export of our culture, exchanges and
cultura, de trocas e diálogos culturais pelo Atlântico. cultural dialogues across the Atlantic. Finally, our
Enfim, nosso intuito foi fazer uma discussão entre o intention was to make a discussion between local
local e o global e o patrimônio intangível, através do and global and intangible heritage, through the
samba carioca. samba of Rio.

Palavras-chave: Samba Carioca, Patrimônio Keywords: Samba Carioca, Intangible Heritage,


Intangível, Identidade Identity

É preciso começar a perder a memória, ainda que se trate de fragmentos desta, para
perceber que é esta memória que faz toda a nossa vida. Uma vida sem memória não
seria uma vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de exprimir-se não
seria uma inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação,
nosso sentimento. Sem ela, não somos nada. (BUÑUEL, 1982.p.11)
30

A citação de Buñuel, com a qual inicio o texto, denota a relevância de nossas memórias
como um patrimônio individual valioso. Sem elas, perdemos nossa identidade, nossas
histórias, nossas experiências. A discussão, o inventário e o registro dos patrimônios de
natureza imaterial ou intangível também estão muito vinculados à importância dessas
memórias individuais e coletivas, às práticas culturais cotidianas e à sua preservação
através do registro e práticas de salvaguarda desses bens.
Até alguns anos atrás, a imagem que prevalecia quando se ouvia a expressão “patrimônio
histórico e artístico” era a de um conjunto de monumentos antigos que deveriam ser
preservados, ou porque constituíam obras de artes excepcionais,
ou por terem sido palco de eventos marcantes, referidos em documentos e em
narrativas de historiadores. Entretanto, é forçoso reconhecer que essa imagem,
construída pela política de patrimônio conduzida pelo Estado por mais de 60 anos,
está longe de refletir a diversidade, assim como as tensões e os conflitos que
caracterizam a produção cultural no Brasil, sobretudo a atual, mas também a do
passado. (FONSECA,2003, p.56)
A definição de patrimônio, inserida em nossa constituição de 1988, apesar de
aparentemente neutra e inclusiva, obviamente não dispensava diretrizes políticas
explícitas sobre o que deveria ou não ser preservado (STAM,1993; PRENTICE,2001).
Será com o decreto 3.551/2000 que tem início, de fato, a trajetória que havia sido proposta
em parte por Mário de Andrade e Aloísio Magalhães em 1937 com a criação do SPHAN,
no entanto, contemplando também a inserção de
sociedades de folcloristas, os movimentos negros e de defesa dos direitos indígenas,
as reivindicações dos grupos de descendentes de imigrantes das mais variadas
procedências, enfim, os “excluídos” até então da “cena” do patrimônio cultural
brasileiro[…](FONSECA,2003, p.62)

Esse decreto foi resultado de várias discussões que começaram em 1997, durante o
Seminário Internacional de Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, onde
foi produzida a Carta de Fortaleza. Nesse documento consta a recomendação ao IPHAN
sobre a importância da realização de um inventário de bens nacionais e a integração das
informações produzidas por estes através do Sistema Nacional de Informações Culturais
(SNIC), além da criação de um grupo de trabalho pelo Ministério da Cultura (MinC) para
o desenvolvimento de estudos e a proposição de um instrumento legal: o Registro. No
ano seguinte foi criado o Grupo de Trabalho de Patrimônio Imaterial (GTPI) que propôs
o decreto supracitado que viabilizou a criação do registro de bens culturais de natureza
imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, o PNPI. Entre os anos de 2000
31

a 2004, o IPHAN testou uma metodologia do INRC (Inventário Nacional de Referências


Culturais) e aplicou no registro do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras e na Arte Kusiwa
dos índios Wajãpi (declarado também Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, em
2003).
Nesse mesmo período, o PNPI foi implantado, inaugurando o fomento às
experiências de inventário com o Projeto Celebrações e Saberes da Cultura
Popular, executado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
(CNFCP), incorporado ao Iphan em 2004. Dessa forma, ações de salvaguarda
mais estruturadas e sistemáticas passaram a ser implementada pelo Iphan, a
partir da criação do Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI), em 2004.1
Desde a implementação desses instrumentos, os 4 livros de registro (Saberes,
Celebrações, Formas de Expressão e Lugares), muitos inventários e registros foram feitos
em diferentes regiões do país, e podem ser consultados no site do IPHAN2.
A maior parte desses 46 registros possuem uma relação direta com a música e com a
oralidade dos grupos e comunidades envolvidas. Seguindo as ações do IPHAN, em São
Paulo, o CONDEPHAAT, iniciou em 2013, quando ainda éramos parte do conselho do
órgão, um grupo de trabalho, do qual fizemos parte, com o objetivo de discutir e elaborar
uma portaria sobre o tema. Essa foi publicada no diário oficial em 23 de abril de 20153.
Foram registrados até o momento, após esse documento, através dessa instituição, o
“Samba Paulista” e o “Virado à Paulista”4.
Após essa breve introdução sobre o tema e seus desdobramentos em instituições públicas
de preservação do patrimônio, queremos tratar do objetivo central de nosso trabalho que
é o de discutir sobre o samba carioca, suas matrizes culturais e sua difusão pelo mundo
através dos instrumentos, das práticas e saberes vinculados a esse gênero musical e à
maior festa vinculada a ele: o carnaval.
Após essa breve introdução sobre o tema e seus desdobramentos em instituições públicas
de preservação do patrimônio, queremos tratar do objetivo central de nosso trabalho que
1
Disponível em : http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/418. Acessado em 26/01/2019. Apesar do nomeação como
imaterial, atualmente há um consenso de que o termo que mais se aplica a esses bens é o de intangível. Utilizaremos
ambos nesse texto.
2
Disponível em : http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/418. Acessado em 26/01/2019.
3
Disponível em: http://condephaat.sp.gov.br/pedido-de-registro-de-patrimonio-imaterial/ Acessado em 28/01/2019
4 Disponível em: http://www.patrimonioimaterial.sp.gov.br/patrimonios-imateriais/ Acessado em: 28/01/2019
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é o de discutir sobre o samba carioca, suas matrizes culturais e sua difusão pelo mundo
através dos instrumentos, das práticas e saberes vinculados a esse gênero musical e à
maior festa vinculada a ele: o carnaval.

No mundo de Macunaíma...
-Uuuuum!...Exu! Nosso padre Exu!…
E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.
-Oh Oxalá!
-Va-mo sa-ra-vá!…
Era assim. Saudaram todos os santos da pagelança, o Boto Branco que dá os amores,
Xangô, Omulu, Iroco, Oxosse, a Boiúna Mãe feroz, Obatalá que dá força pra brincar
muito, todos esses santos e o çairê se acabou. Tia Ciata sentou na tripeça num canto
e toda aquela gente suando, médicos padeiros engenheiros rábulas polícias criadas
focas assassinos, Macunaíma, todos vieram botar as velas no chão rodeando a
tripeça. As velas jogaram no teto a sombra da mãe-de-santo imóvel. Já quase todos
tinham tirado algumas roupas e o respiro ficara chiado por causa do cheiro de
mistura budum coty pitium e o suor de todos. Então veio a vez de beber. E foi lá que
Macunaíma provou pela primeira vez o caxiri temível cujo nome é cachaça. Provou
estalando a língua feliz e deu uma grande gargalhada. (ANDRADE, 1982,p.76)
Mário de Andrade faz nessa obra uma longa meditação estética que tem segundo Souza,
dois pontos de referência constantes: “a análise do fenômeno musical e do processo
criador do populário”. (SOUZA,1979, p.11) A obra, escrita em 6 dias, em dezembro de
1926 e expandida em janeiro 1927, foi elaborada durante as férias do autor e construída
a partir de elementos de “tradição oral ou escrita, popular ou erudita, europeia ou
brasileira”. (Idem, p.10) O trecho que escolhi para introduzir essa parte do texto, nos
remete às vivências de Andrade nos terreiros de candomblé, mais especificamente, no da
famosa tia Ciata. É possível ler em trechos da obra a participação de intelectuais e
políticos brasileiros e de outros países nesse mesmo espaço, o do terreiro de tia Ciata,
local onde o primeiro samba teria sido composto e espaço hoje considerado patrimônio
cultural pelo Rio de Janeiro (a Pedra do Sal, onde se faziam despachos e onde a
comunidade baiana e vinculada à tia Ciata e Hilário Jovino frequentavam).
Se atentarmos para o material que serviu a Mário de Andrade na elaboração da
narrativa, veremos que ele testemunha a mesma mistura étnica da música popular,
apresentando uma grande variedade de elementos, provenientes de fontes as mais
diversas: aos traços indígenas retirados de Koch-Grünberg, Couto de Magalhães,
33

Barbosa Rodrigues, Capistrano de Abreu e outros, vemos se acrescentarem ao núcleo


central das narrativas e cerimônias de origem africana, evocações e canções de roda
ibéricas, tradições portuguesas, contos já tipicamente brasileiros etc. A esse material
já em si híbrido, juntam-se as peças mais heteróclitas: anedotas tradicionais da
História do Brasil; incidentes pitorescos presenciados pelo autor; episódios de sua
biografia pessoal; transcrições textuais dos etnógrafos, dos cronistas coloniais; frases
célebres de personalidades históricas ou eminentes; fatos de língua, como
modismos, locuções, fórmulas sintáticas; processos mnemônicos populares, como
associações de ideias e de imagens; ou de processos retóricos, como as enumerações
exaustivas- que segundo o próprio autor tinham a finalidade apenas poética de
realizar “sonoridades curiosas” ou “mesmo cômicas”.( Idem,p.16)
O que queremos tratar aqui, dentre outras coisas é, também, a percepção do autor sobre a
necessidade de se compreender a riqueza dessa cultura, principalmente a de matriz
africana associada aos rituais, música e humor e, de como essa ótica esteve associada na
construção identitária do Brasil e das ações de Andrade e de outros intelectuais na
construção da mesma, assim como esteve presente em outros países dentro desse mesmo
contexto histórico. Esse fenômeno denominado por Sevcenko e Vianna como negrophilie
(SEVCENKO,1992; VIANNA, 1995) , ou seja, a valorização da cultura africana em
diversos lugares do mundo, inclusive no Brasil por intelectuais que dialogavam
principalmente com a inteligentsia francesa, vai ser muito importante para a
transformação do samba no símbolo de identidade brasileira (CUNHA, 2004) e estará
presente nas discussões atuais sobre patrimônio imaterial ou intangível. (CUNHA,2013)
Para Abreu, esses marcos temporais musicais, vistos numa perspectiva mais ampla, como
Gilroy faz em seu Atlântico Negro, não se limita à nossa nação. Para ambos, esse olhar
diferenciado, para essas manifestações africanas, têm início em fins do século XIX e
início do XX em vários países no mundo e serão amplamente difundidos pela nascente
indústria cultural durante as décadas de vinte e trinta do século passado.
As músicas populares nos EUA, no multicultural Caribe e na Colômbia por exemplo,
emergem nessa mesma conjuntura e envolvem-se, de forma semelhante, com as
discussões intelectuais sobre o papel da presença africana nas respectivas
identidades nacionais e culturais. Jazz, rumba, calipso, porro e samba possuem ainda
muitos pontos de afinidade, pois, além da questão nacional, se entrelaçam com a
História e ação dos descendentes de escravos e africanos na diáspora, com as lutas
pela cidadania e visibilidade dos músicos negros no pós-abolição e com a emergência
da nascente indústria fonográfica, que tornou viável a ampla difusão de variados
gêneros musicais pelas Américas. (ABREU, 2010,p.92)
No entanto, será apenas entre as décadas de 1920 a 1940, que esses símbolos se afirmarão
como ícones de nação nas Américas, dentre eles o nosso samba. Por outro lado, com a
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globalização, criou-se um movimento que trouxe a necessidade de garantir que essas


tradições, mesmo que inventadas, ou recriadas, pudessem ser registradas e preservadas,
como símbolos singulares de suas comunidades, em “espaços de memórias”, através de
seus sons, vestuário, modos de fazer, expressões, festas e celebrações. Essas ações
também se devem a uma resposta à certa degradação do espaço urbano e pela dilaceração
das comunidades, por conta do desemprego, drogas, criminalidade, dentre outros
problemas, trazendo consigo a necessidade em
“sacralizar” alguns locais, ritos e práticas culturais, tais como o carnaval, e mais
especificamente, o samba, que atualmente traz consigo a denominação de “carioca”,
um esforço em destacar o gênero como importante símbolo identitário dos
moradores da cidade e estado do Rio de Janeiro e sua relevância histórica dentro da
construção de uma identidade para a nação. Isso tem ocorrido principalmente através
de políticas de valorização do patrimônio (tanto material quanto imaterial) associadas
a um processo de reurbanização e revitalização de algumas áreas da cidade que
possuem vínculo com a história desse gênero musical e dos festejos carnavalescos.
(CUNHA, 2013,p.202)
No Dossiê das Matrizes do Samba Carioca, é possível averiguar a seleção e relevância
de 3 gêneros de samba (partido alto, terreiro e enredo) para compor e registrar as matrizes
desse gênero musical. Há dentro desse documento referências à importância do
candomblé e dos rituais religiosos de matriz africana para as comunidades e a história e
tradições do mundo do samba.
Nós queremos ressaltar aqui a religiosidade e também o humor como imprescindíveis
para a sobrevivência desse gênero e dessas comunidades, assim como a exportação dessas
tradições para outros países.
Em 4 de fevereiro de 1893, André Rebouças publica no Cidade do Rio uma explicação
para o riso, o canto e a dança do “negro africano”:
É por isso que o negro africano ri, canta e dança sempre: olhando para o céu, vendo
sempre Jesus, a fé e a esperança dos infelizes e dos desgraçados, dos que têm fome
e sede de justiça, como Ele mesmo disse em sua frase de Super humana eloquência.
(apud ABREU, 2010, p.93)
A resposta de Rebouças, “em meio ao seu exílio e descoberta da África”, como destaca
Abreu, valorizava “além do canto, a importância do riso e da dança como expressões de
esperança e justiça.
Concordamos em grande parte com essa conclusão, com exceção para a questão religiosa,
posto que, as religiões de matriz africana foram e ainda são de extrema importância para
35

o cotidiano dos africanos e seus descendentes e também para o mundo do samba e do


carnaval. O humor e o riso serão também muito relevantes para esses grupos
sobreviverem e conseguirem espaços importantes de difusão de sua cultura dentro de toda
a nossa história (CUNHA,2008).
Música, dança, humor e religião se mesclavam de diferentes formas, em diferentes lugares
do Rio de Janeiro: os circos e as barracas de festas famosas, como a do Divino Espírito
Santo no Rio de Janeiro, Penha e da Glória eram, em fins do século XIX, espaços
importantes para o lazer, o divertimento, a música, a dança e o humor estariam,
posteriormente, estreitamente vinculados ao lançamento de sucessos musicais do carnaval
carioca. Nestes espaços atuavam, com destaque, os palhaços que faziam números
humorísticos através de piadas e canções. Foi num destes locais que despontou um dos
grandes intérpretes e compositor de lundus: Eduardo das Neves. Num momento em que
o carnaval ainda não tinha um ritmo próprio para os desfiles e bailes, dentre os vários
ritmos que embalariam essa festa também estaria esse gênero que consagrou o “palhaço
Dudu” (Eduardo das Neves) e, que passou a ser um grande sucesso das gravadoras do
início do século XX.
Segundo Martha Abreu, Eduardo das Neves teria nascido no bairro de São Cristóvão, no
Rio de Janeiro, em 1874 e, apesar de sua origem nebulosa, é possível através de seus
versos e histórias aproximá-lo do “mundo dos libertos e do passado escravista”.
(ABREU,2010,p.94) A abolição vai atrair para cidades como Salvador e Rio de Janeiro
um grande número de ex-escravos que vão buscar recompor suas vidas através de
associações ou irmandades religiosas (que já existiam antes da abolição), trazendo
consigo muito da experiência vivida na zona rural. Reunidos na qualidade de
trabalhadores livres dentro do ainda novo universo das cidades, esses migrantes do mundo
rural “tinham a tendência a agrupar-se em núcleos vizinhos segundo a origem regional:
pernambucanos, sergipanos, alagoanos e logo, em maior número, baianos”.
(TINHORÃO,1990,p.209)
Desses núcleos, o que ficou muito conhecido na história do samba foi o que vivia no
entorno e na casa da Tia Ciata. Humor, música, religião e festa eram elementos que
caminhavam juntos, como já indica o Macunaíma de Andrade, citado no início do nosso
texto:
Tenho algumas indicações que os futuros astros do samba nos anos 1920, como
Sinhô e João da Baiana, começaram, ainda bem jovens, a carreira artística com Dudu.
Sinhô acompanhou Eduardo das Neves portando a bandeira brasileira numa famosa
homenagem a Santos Dumont, em 1903. Eduardo das Neves teria gravado três
sambas atribuídos a Sinhô, inclusive sua última gravação, em 10 de abril de 1919, “Só
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por amizade”. José Barbosa da Silva, o “Sinhô”, também residia na Cidade Nova e
conviveu com os choros e atabaques das rodas de samba e candomblés da vizinhança
próxima à casa de Tia Ciata. João da Bahiana (1887-1974), por sua vez, em entrevista
ao Museu da Imagem do Som, declarou que havia trabalhado no circo de Dudu,
comandando os garotos que animavam as cenas de Eduardo das Neves. Quantos
outros futuros sambistas não teriam feito o mesmo? João da Bahiana era morador
das redondezas do porto, trabalhador da estiva e filho de Tia Perciliana, da famosa
confraria das Tias Baianas lideradas por Ciata. (ABREU,2010,p.95)
Além de Eduardo das Neves, Sinhô e João da Baiana, outros “palhaços-cantores” também
figuram entre os pioneiros na gravação de discos pela Casa Edison, tais como: Baiano,
Cadete, Catulo da Paixão Cearense e Benjamim de Oliveira. “Todos estes ou eram artistas
circenses ou já se apresentavam cantando nos espetáculos de circo, uns como palhaços-
cantores, outros nas pantomimas, tudo isso bem antes de gravar discos”.
Isto tudo leva a crer que, antes da virada do século XIX, os circenses e os palhaços
cantores tivessem cruzado com a maioria deles, fosse nos cafés, fosse nos palcos.
Mas também se cruzaram frequentando os mesmos espaços dos batuques e pagodes
das casas das mães de santo, na Cidade Nova, onde nasceram ou conviviam. Segundo
Maria Clementina Pereira Cunha, naquelas casas se “mesclavam o baile, o sarau, a
roda de samba, o candomblé, e por onde circulavam todas as esferas da sociedade
(do esnobe literato ao policial ou ao partideiro capoeirista da Saúde)”; entretanto, é
possível afirmar que muitos dos palhaços cantadores de circo que já exerciam a
profissão, ou que iria exercê-la, já estivessem presentes naqueles encontros. (SILVA
& MELLHO FILHO,2014, p.34)
Foi em um desses encontros, onde entoavam melodias já conhecidas do ritual religioso
com letras improvisadas para narrar, de forma muitas vezes cômica, fatos políticos e do
cotidiano, que surgiu o famoso Pelo Telefone. Trechos de “Rolinha”, música folclórica
(talvez parte desses rituais) entremeada com partes de outras canções (CUNHA, 2004;
SANDRONI,2001) serviriam de estímulo para entoar versos satirizando a proibição do
jogo da roleta pelo delegado de polícia da cidade do Rio de Janeiro.
Havia naqueles anos uma “febre” por motivos populares, principalmente os provenientes
do Nordeste , e a peça O Marroeiro, da qual a toada Rolinha fez parte, foi um grande
sucesso e muito cantada em todo o ano de 1916, nas ruas, teatros e cabarés, sob as mais
diferentes formas. Acreditamos que como o samba era em sua essência um gênero de
criação coletiva e recheada de improvisos, o refrão da toada Rolinha deve ter sido inserido
por estar muito presente no universo musical do Rio de Janeiro daquele ano. Mas ao ser
embutido junto com críticas às autoridades policiais e a referência do telefone, a
composição soaria duplamente paródica, pois se de um lado o chefe de polícia podia ser
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visto como chefe da folia, o telefone, objeto que simbolizava prestígio, status social e o
cosmopolitismo de uma nação moderna e civilizada, convivia na música — no refrão da
toada Rolinha — com o sertanejo, símbolo do regionalismo, do “não-civilizado” e, para
alguns, do eminentemente nacional.
A exaltação de canções populares (principalmente de cunho nordestino e sertanejo)
seriam muito valorizadas nas primeiras décadas do século XX e também seriam inseridas
nas discussões sobre o nacionalismo. Diferentemente dos países europeus, em que esta
busca trazia em seu bojo a "descoberta do povo" e da necessidade de manter vivas as
tradições culturais populares (que em fins do século XIX corriam o risco de desaparecer
com a crescente industrialização); a nossa necessidade era ainda a de consolidar no país
a imagem que se queria perpetuar enquanto nação e como deveríamos estruturar a
República nascente. Como a nossa identidade era ainda trôpega, a sociedade cria a sua
“representação paródica do brasileiro, que transitava entre as figuras do capadócio, do
carcamano ou do caipira”,(SALIBA,1998,p. 351) que posteriormente será amplamente
difundida pelo rádio.
No entanto, no momento da composição do Pelo Telefone, ainda não existia meios de
divulgação em massa, como o rádio e, a grande divulgação e sucesso dessa música vai ter
muita relação com seu ritmo: um samba mesclado com o maxixe, aliciante, sensual e
pulsional - como o próprio carnaval e que ia ao encontro do novo andamento da cidade,
garantindo assim, o sucesso da composição.
Esses “sambistas” usaram todos os elementos que acabariam por conquistar grande parte
dos carnavalescos: a crítica paródica sobre a polícia carioca (que na maior parte das vezes
agia de forma arbitrária com a população humilde); a apropriação de um objeto de fetiche
como o telefone; o refrão nordestino de sabor folclórico; o jogo e a polêmica sobre o
mesmo; e o ritmo “amaxixado” que nasceu também de uma “coreografia paródica de
formas musicais européias”. (Idem, 320) E não podemos deixar de ressaltar que o maxixe
(assim como o samba) — visto no início como indecoroso, condenado pela elite,
predominante em círculos mundanos variados e, por isso, perseguido pela polícia —
acabou se tornando a dança mais popular do Rio de Janeiro no início do século XX.
A consagração desse samba em 1917 na voz de Baiano, também acabou também por
instituir como um dos lugares do samba no Rio de Janeiro, a Pedra do Sal, local próximo
do reduto de baianos ligados à casa da Tia Ciata, no bairro da Saúde.
Ao analisarmos o depoimento de Donga e associando com outros elementos que
exporemos a seguir, o compositor reforça o “mito fundador” do samba, o “lugar” e a
forma de como o primeiro samba foi criado e, vai nos fornecendo elementos para
38

pensarmos sobre a relevância da casa da Tia Ciata e dos rituais religiosos na história do
samba e do carnaval do Rio de Janeiro.
Segundo Donga, apesar de um grupo de sambistas ligados à casa da Tia Ciata já estarem
insistindo com a Odeon para que fosse gravado um samba seria apenas em 1917, com a
campanha contra o jogo, lançada pelo jornalista Irineu Marinho que eles tiveram a
inspiração para compor a letra do samba. Irineu com sua equipe fingem estar jogando no
Largo da Carioca e, estampam a fotografia no jornal, com uma grande manchete alertando
que se jogava na rua livremente sem que a polícia tomasse providências. Diante desse
fato, ele afirma que pensou: “isso dá samba”. E continua: “escolhido um motivo
melódico folclórico dos muitos existentes, dei-lhe um desenvolvimento adequado
(SODRÉ,1998, p.73) e pedi ao repórter Mauro de Almeida que fizesse a letra”.(Idem,
p.73)
Ora, o que seria o motivo folclórico escolhido dentre os muitos existentes? Sabemos
que ao menos uma parte desse samba é inspirado em uma canção folclórica intitulada
Rolinha que já havia sido usada em uma peça de Catulo da Paixão Cearense. Essa canção
folclórica não seria uma música entoada em rituais religiosos? Não seria por isso que a
turma da casa da tia Ciata havia reclamado a autoria do samba? Afinal, se a melodia era
parte do ritual ela pertencia a todos os que dele participavam. Em nosso cancioneiro,
gravado por vários compositores, há pontos de umbanda, ou de candomblé de caboclo,
como Mário de Andrade se referia a tais rituais e, que muitas vezes não são anunciados
como tal e sim, como música ou motivo folclórico. Donga não estaria assim, iniciando
essa prática: a de utilizar a melodia de pontos de umbanda e/ou candomblé, modificando
o ritmo e a letra e gravando-os em disco?
Além disso, dar um “desenvolvimento adequado” ao samba seria, segundo Moura, alterar
o andamento regular do “samba de partido, incorporando a divisão característica do
maxixe, ritmo já conhecido mais generalizadamente e até internacionalmente, ao
contrário do partido, cantado apenas no meio negro”? (MOURA, 1983,p.80) O que
conjecturamos com essas informações é que, mudando o ritmo de partido alto para algo
mais próximo do maxixe, o samba se tornaria mais palatável para a sociedade da época.
Parece que a turma da tia Ciata, segundo um anúncio que saiu no Jornal do Brasil no dia
04 de fevereiro de 1917, às vésperas do carnaval, reafirma a autoria coletiva e o auxílio
no arranjo desse samba, que é chamado pelo grupo como tango:

Do “Grêmio Fala Gente” recebemos a seguinte nota: será cantado domingo, na Av.
Rio Branco, o verdadeiro tango “Pelo telefone”, dos inspirados carnavalescos, o
39

imortal João da Mata, o maestro Germano, a nossa velha amiguinha Ciata e o


inesquecível bom Hilário; arranjo exclusivamente pelo bom e querido pianista J. Silva
(Sinhô), dedicado ao bom e lembrado amigo Mauro, repórter da “Rua”, em 6 de
agosto de 1916, dando ele o nome de “Roceiro”:
Pelo telefone
A minha boa gente
Mandou avisar
Que o meu bom arranjo
Era oferecido
Para se cantar.
Ai, ai, ai,
Leve a mão na consciência, meu bem,
Ai, ai, ai,
Mas porque tanta presença,
Meu bem?
Ó que caradura
De dizer nas rodas
Que esse arranjo é teu
É do bom Hilário
E da velha Ciata
Que o Sinhô escreveu
Tomara que tu apanhes
Para não tornar a fazer isso
Escrever o que é dos outros
Sem olhar o compromisso. (Idem, 80-81)5

5
Grifo nosso
40

Na letra da canção ficam claras as críticas que o grupo faz ao sambista e, com uma
narrativa paródica da mesma, tentam desacreditar o compositor que desonrou "seu
compromisso" frente aos músicos que frequentavam a casa de Tia Ciata.
Imagino ainda o quanto essas comunidades se divertiram vendo os grupos que perseguiam
os candomblés, cantarem e dançarem nas ruas um ponto de candomblé de caboclo
modificado. No entanto, não temos, nesse momento, como comprovar inteiramente as
hipóteses apresentadas acima, mas acreditamos ser importante lançar essas questões.
Mas, cabe ressaltar aqui que Mário de Andrade vai nessa direção, ao grafar algumas
observações no disco Odeon, no. 10.084, na composição Dona Clara, também conhecida
como Não te quero mais, de Donga e João da Baiana. Em 1927 o literato e, estudioso da
música brasileira, vai organizar os dados que Pixinguinha lhe fornecera sobre a macumba
do Rio de Janeiro e, “as informações obtidas são transcritas em folhas destacadas de uma
caderneta de bolso e confrontadas com os versos de Dona Clara, ao analisar as cantorias
do culto”. (TONI,2004,p.27) A música de Donga, que como já sabemos era um
frequentador de terreiros, juntamente com as informações recolhidas de Pixinguinha vão
servir de inspiração para o capítulo “Macumba” de Macunaíma, onde também estarão
presentes tia Ciata, “o ogã Pixinguinha” que para acompanhar Exu, que chega naquela
noite “pelevaja batendo tabaque pra perceber os ritmos doidos do canto novo, canto livre,
de notas afobadas cheio de saltos difíceis, êxtase maluco baixinho tremendo de fúria.”
(ANDRADE,1982,p.78)
De qualquer forma, na literatura e na bibliografia sobre o samba carioca, a vinculação
deste gênero musical com o terreiro, o morro e a religião estarão sempre presentes. Mas,
se o samba “nasceu” na Saúde, foi nos morros que ele se consagrou.
Aliás, a discussão do morro como território mítico do samba teve início alguns anos
depois, na década de 1930, com o cronista carnavalesco Vagalume, em seu livro Na Roda
do Samba.
O livro de Guimarães delimitava um lugar social para o samba que fosse, ao mesmo
tempo, garantia de uma marca estética indelével: o "morro" surge como um
território mítico, lugar da "roda" onde se praticava o "verdadeiro" samba. As
afirmações de Francisco Guimarães tinham um alvo claro: a denúncia da indústria
fonográfica, que estaria matando o samba autêntico, ao usar e abusar do rótulo. A
imagem da "roda de samba" voltaria à cena musical em vários momentos da história
da música brasileira, sempre utilizada como imagem crítica à industrialização e à
individualização da criação e audição musicais. A "roda de samba" seria o lugar de
uma fala musical coletiva, "pura", "espontânea", onde a criatividade daquele grupo
social que estaria na origem do samba, era recolocada, quase como um rito de
origem.(NAPOLITANO & WASSERMAN, 2000, p. 170)
41

Os morros no Rio de Janeiro, como já assinalava o cronista, “são cheios de poesia e beleza
e cada um tem a sua história, mais ou menos empolgante, a sua lenda ou a sua fama”. O
Morro da Glória, por exemplo, teria desempenhado um papel importante no cenário
religioso e cultural da cidade. Em suas famosas festas em honra a Nossa Senhora da
Glória compareciam as academias e escolas de samba para renderem suas homenagens.
Cada uma levava uma novidade, um samba novo.
A música desempenhava um papel muito importante nestes espaços geográficos, porque
a roda de samba era a diversão da coletividade: “um baralho e um violão ou um
cavaquinho, uma harmônica, um pandeiro, um reco-reco, um chocalho, uma cuíca,
chegam para garantir a zona”. Segundo Vagalume, os “Catedráticos dos Morros” são
respeitados e se fazem respeitar, são ágeis nas pernas e, por isso, heróis na batucada, e
não fazem cerimônia para colocar o dedo no gatilho.
Nestes lugares, segundo o cronista, existem os que trabalham e vivem em condições de
penúria e os que não exercem nenhum tipo de atividade remunerada, mas levam “as vidas
folgadamente” confiantes em sua autoridade, provenientes da “valentia ou nas suas
habilidades na roda de samba”. Valentia e habilidades na roda de samba se misturam nas
batucadas que têm início aos sábados à noite e só terminam no domingo. Já “as noites de
segunda e sextas-feiras são geralmente destinadas aos segredos do fetichismo ou magia
negra, na solenidade do candomblé”. (GUIMARÃES, 1978, p.144)
Nos dois encontros (na roda de samba e no candomblé), a música desempenhava um papel
primordial para a coletividade dos morros, pois nela residia grande parte da sua identidade
cultural.
Na cultura negra, segundo Sodré, há uma vinculação entre música, danças, mitos, lendas
e objetos, vinculando essas formas de expressão ao sistema religioso, a forma musical é
de certa forma, um modo de significação integrador:
Um processo comunicacional onde o sentido é produzido em interação dinâmica com
outros sistemas semióticos- gestos, cores, passos, palavras, objetos, crenças, mitos.
Na técnica dessa forma musical, o ritmo ganha primeiro plano (daí a importância dos
instrumentos de percussão), tanto por motivos religiosos quanto possivelmente por
atestar uma espécie de posse do homem sobre o tempo: o tempo capturado é
duração, meio de afirmação da vida e de elaboração simbólica da morte, que não se
define apenas a partir da passagem irrecorrível do tempo. Cantar/dançar, entrar no
ritmo, é como ouvir os batimentos do próprio coração- é sentir a vida sem deixar de
nela reinscrever simbolicamente a morte.(SODRÉ, 1998,p.21)
42

Dessa forma roda de samba e religião era parte do cotidiano dos morros do Rio de Janeiro.
Seu “Xande”, do morro do Salgueiro, continua Vagalume, afirma que os rituais são muito
alegres. São festas imponentes, em que se come e dança no meio da maior alegria e do
maior entusiasmo, nas quais a religião e o samba estão intimamente relacionados. Outro
espaço muito importante para a difusão dessas canções e dos sambas, compostos nos
terreiros, nas casas de culto e/ou nos morros foram os circos. E, serão inicialmente os
palhaços, como já afirmamos anteriormente, os grandes mediadores desse gênero
musical, que vão gravar esses sambas e outros gêneros musicais e difundi-los através do
disco e de suas performances nos circos, festas e teatros da cidade do Rio de Janeiro no
início do século XX.
A música, aliada ao humor e à religião, será um instrumento extremamente importante
para os africanos e seus descendentes, para sua sobrevivência e segundo André Rebouças,
para a manutenção da “esperança e justiça final”. Ele ressaltava além do canto, a
relevância da dança e do riso. Segundo Abreu, há hoje uma procura e crescente interesse
dos especialistas pelos significados políticos do riso para os afrodescendentes durante a
escravidão e no pós-abolição.
Não são poucos os trabalhos acadêmicos que destacaram a presença de sátiras,
ironias e ridicularizações nas produções artísticas de afro-americanos nos Estados
Unidos e Caribe como um canal fundamental para a luta contra a opressão e
dominação racial.
Nos Estados Unidos [...] essa estratégia foi localizada em cantos de trabalho, contos
e em paródias sobre a própria condição dos escravos e negros, frente aos mulatos e
homens brancos. No Brasil, essas temáticas e possibilidades são encontradas nos
lundus, versos e contos recolhidos por folcloristas, entre o final do século XIX e
primeiras décadas do XX, em áreas de forte presença da população de descendentes
de africanos e escravos.(ABREU,2010,p.93)
Segundo Abreu, a obra de Eduardo das Neves, o crioulo e palhaço Dudu,, “pode ser vista
como mais uma evidência dessa articulação entre música, riso e ação política no Atlântico
Negro, agora também ao sul do Equador”.(Idem, p.93) Mas, encontramos esses elementos
não apenas de Eduardo das Neves, pois o humor, a sátira aliadas à música perpassa o
cancioneiro de muitos autores de lundu e posteriormente de samba nas primeiras décadas
do século XX.
Como já vimos o primeiro samba de sucesso teve uma letra que fazia uma paródia da
situação da autoridade policial e da proibição do jogo no Rio de Janeiro. Vários outros
vão nessa mesma direção e se articulariam cheios de humor com determinados tipos de
manifestações carnavalescas nas primeiras décadas do século XX. Quem são eles?,
43

samba composto e lançado por Sinhô no carnaval de 1918, obteria uma grande
repercussão. Esta seria a primeira produção musical divulgada amplamente através de um
bloco, organizada pelo compositor com flauta, cavaquinho, violão, violino, trombone,
pandeiro, reco-reco e ganzá. Cantarolando e tocando o samba Quem são eles? na Casa
Beethoven, encaixando a melodia nos versos pitorescos e cheios de humor, Sinhô fez com
que em pouco tempo os que ali compareciam para comprar partituras acabassem
conhecendo e cantando os versos de seu samba:
A Bahia é boa terra
ela lá e eu aqui, Iaiá.
Ai, ai, ai
Não era assim que o meu bem chorava
Não precisa pedir que eu vou dar
Dinheiro não tenho mas vou sambar
Carreiro olha a canga do boi
Carreiro olha a canga do boi
Toma cuidado que o luar já se foi
Ai! Olha a canga do boi!
Ai! Olha a canga do boi!6
Mas foi graças à pianista Cecília, colega de Sinhô na Casa Beethoven e mais tarde sua
companheira, que este samba, depois de muita insistência da intérprete, foi editado.
O samba, cantado pelo bloco com o mesmo título do samba que pertencia ao Clube dos
Fenianos, soou como desafio ao grupo de compositores adversos, chefiado por
Pixinguinha. Principalmente porque no texto do samba se falava novamente da Bahia de
forma provocativa e da briga política entre Rui Barbosa de um lado e J. J. Seabra. A
partir daí os desafios e insultos ao grupo do Pixinguinha serão uma constante, através de
referências veladas, diretas ou pelos títulos das canções. Sinhô que era carioca, iria
rivalizar musicalmente, durante toda a sua carreira, com as composições do grupo baiano.
Com a ampla divulgação feita pelo bloco feniano, Quem são Eles? alcança um grande
sucesso no carnaval de 1918, estendendo-se por grande parte do Brasil:

6
Sinhô, “Quem são eles?”, samba, 1918.
44

A música buliçosa e os versos misturando sertão com política agradariam em cheio e


seriam repetidos nos carnavais subsequentes das províncias, onde chegavam ainda
que retardados, levados por viajantes ou pelas chapas da Casa Édison, Rio de Janeiro.
Além dos gramofones que martelavam o samba, correu vários estados um filme
musicado — Carnaval cantado — que reproduzia sambinhas, cateretês e marchas de
sucesso na grande festa carioca de 1918: Quem são eles?, Vamo, Maruca, vamo, A
carta que te mandei, etc. Essas músicas eram geralmente transmitidas com o filme
nos cinemas, ou executadas ao piano, nas sessões infantis. A criançada e a juventude
presentes faziam coro ruidoso e mais se popularizavam as composições. (ALENCAR,
1985, p. 31)
Nesse período era muito comum nos carnavais o desfile pelas ruas dos carros de ideias,
de ranchos e cordões com temas que faziam referências a questões políticas ou cotidianas
que haviam sido alvo de sátiras e críticas durante todo o ano. E, os sambistas e
compositores utilizavam esse material que havia sido propagado pela imprensa e nas ruas
do Rio de Janeiro para ter sucesso garantido em suas canções que eram difundidas durante
o ano no teatro de revista, nas festividades religiosas e, posteriormente, nesses cortejos
carnavalescos.
Críticas paródicas sobre o cotidiano, a política e referências à religião serão temas
recorrentes nos sambas do período. Fala Meu Louro7, Vou me Benzer8, Cangerê9, Esta
nega que me dá10, Tatu subiu no Pau11, Já, já12, Miserê13são alguns exemplos desta
afirmação.
A prática de cantar as dores, as críticas, a política, através de versos bem humorados ou
de ritmos alegres e dançantes no carnaval e, também durante o ano, nas revistas e
festividades- religiosas ou não- será cada vez mais comum e se tornará um caminho para
que ocorra uma ascensão de negros no mundo musical no período pós-abolição.

7
Samba de Sinhô, 1920
8
Samba de Sinhô, 1920
9
Samba carnavalesco de Francisco A. Rocha, 1920
10
Samba de Caninha, 1921.
11
Samba à moda paulista de Eduardo Souto, 1923.
12
Samba de Sinhô, 1924
13
Samba de José Francisco de Freitas, 1924
45

Abreu aponta para a questão de que, essa comicidade e pretensa alegria, difundida através
de artistas que compunham ou interpretavam lundus e sambas pode “ ter sido uma eficaz
estratégia de luta dessa população no Brasil e forte indício de que o campo musical abria
possibilidades de escolha e expressão para os artistas que dialogavam com a realidade
social e política de seu tempo”.(ABREU,2010,p.93)
Se inicialmente o samba não era aceito pelas autoridades e nem bem visto por parte da
população (CUNHA,2004), isso foi sendo mudado no transcorrer das décadas de 1920 a
1940. Canções como o Pelo Telefone passam a traduzir os desejos, as diferentes realidades
e formas de expressão de parte da população e fazem sucesso nas festas populares, nas
gravadoras e posteriormente... no rádio. O grande sucesso desse samba mostra o universo
desses músicos e dos locais onde compunham e, dos elementos importantes utilizados
para seu sucesso: o improviso, o humor, a importância da criação coletiva e de
determinados “espaços” na história e consagração do samba, não apenas como gênero
musical, mas também como identidade de grupos, e posteriormente, da nação.(Idem) O
sucesso do samba Pelo Telefone também possibilitará a criação e/ou recriação de
identidade em torno do samba e do carnaval e de sua vinculação a certos espaços
citadinos, viabilizando criar inclusive alguns “mitos fundadores” e a "sacralização de
alguns espaços" dentro da história do carnaval e do samba , tais como a casa da Tia Ciata,
a Pedra do Sal, a Praça Onze, alguns bairros como o da Saúde, Gamboa, Estácio, Vila
Isabel, Pavuna, alguns morros, como o da Providência, Mangueira, São Carlos, dentre
outros. A relevância desses locais pode ser comprovada não apenas em bibliografia sobre
o assunto14 mas também, através do documento produzido pelo Centro Cultural
Cartola15, com o intuito de instituir as matrizes do samba carioca como patrimônio
imaterial da nação. (CUNHA,2013,pp.201-229)

14 MOURA.R.Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro.R.J., FUNARTE, 1983;SANDRONI, Carlos. Feitiço
Decente:Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933). R.J., Jorge Zahar Ed./Ed. UFRJ,2001; CUNHA,
Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e 1920. S.P., Cia. Das
Letras, 2001;EFEGÊ, J. Figuras do carnaval carioca. R.J., FUNARTE, 1982; CUNHA, Fabiana L. Da Marginalidade
ao Estrelato: O Samba Na Construção da Nacionalidade(1917-1945). SP: Annablume, 2004. Da mesma autora “As
matrizes do samba carioca e carnaval:algumas reflexões sobre patrimônio imaterial”. Patrimônio e Memória (UNESP).
, v.5, p.1 - 23, 2009. Com relação a livros de memorialistas e autores que foram de suma importância para a contribuição
da construção “mítica” desses espaços ver ALMIRANTE.No tempo de Noel Rosa. 2a. ed., R.J., Francisco Alves, 1977;
BARBOSA, O. Samba: Sua História, seus Poetas, seus Músicos e seus cantores.2ª ed., R.J., FUNARTE, 1978;
GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. 2a. ed. R. J., FUNARTE, 1978.
15 Dossiê Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba Enredo. Centro Cultural
Cartola/ IPHAN/MinC/ Fundação Palmares. 2006 Disponível em:
http://www.cnfcp.gov.br/pdf/Patrimonio_Imaterial/Dossie_Patrimonio_Imaterial/Dossie_Samba_RJ.pdf. Acessado em
23/05/2011
46

Esse documento busca associar as principais matrizes do samba carioca a certos espaços
e a construção identitária dos grupos. Desta forma, o samba de partido alto (uma das
matrizes desse gênero musical), teria como “lócus” de expressão e manifestação, a roda;
o samba de terreiro, que no início do século XX era produzido nos terreiros das casas
que seriam posteriormente transformados em quadras das escolas de samba e por fim, o
samba enredo, vinculado às escolas de samba. O documento discorre sobre essas
diferentes formas de expressão musical, sua relevância para determinados grupos e claro,
para a antiga capital federal e consequentemente, sua contribuição na construção das
“matrizes do samba carioca” e desse gênero musical como ícone de identidade nacional.
Nas diferentes “matrizes do samba carioca”, o lugar do samba é sempre ressaltado e,
alguns estilos de samba como o de roda e o chulado teriam em comum a roda. Seriam em
seu centro que se desenvolveria os dois estilos acima citados e, tendo como um dos
principais movimentos da coreografia dos dançadores, a “embigada”. Seria nela que se
desenvolveria o desafio dos “raiadores”, onde demonstrariam suas habilidades de
performance. O ritmo tocado deveria, portanto, possibilitar grande liberdade de expressão
aos dançarinos. Para Roberto Moura, um dos estudiosos que contribui para a construção
do documento submetido ao IPHAN, o fato da roda estar entre as matrizes do samba,
demonstra que ela antecede ao samba e também que os diferentes tipos de ritmo que
acabaram contribuindo para a gestação deste gênero musical (polca, maxixe, lundu,
habanera e o tango), seriam as raízes estéticas do samba, enquanto a roda teria sido a sua
origem física. Foi através dela que estes diferentes gêneros se fundiram para produzir o
samba. (MOURA, 2004,p.34) A fusão e a hibridez destas expressões culturais, musicais
e rítmicas ficam evidentes nos diferentes termos e designações utilizados para essas
danças, cultos, festas e ritmos. E estas expressões coreográficas teriam também
significados múltiplos e vínculos com a religiosidade de africanos e seus descendentes.
Durante grande parte do período colonial brasileiro, tais manifestações eram descritas
genericamente como batuques e mais tarde como sambas, e tais denominações podiam
ser usadas tanto para designar rituais religiosos como para se referir a cantos e danças
produzidos por negros e seus descendentes.
Vimos também que a crônica cotidiana fazia parte de nosso cancioneiro e mesmo as
tragédias eram entoadas em versos bem humorados para a indignação do literato João do
Rio que olhava a multidão, estarrecido, porque não vislumbrava nela nenhum traço de
dor ou pesar ao cantar versos sobre o naufrágio do Aquidabã ocorrido em 1906 :
Só a alma da turba consegue o prodígio de ligar o sofrimento e o gozo na mesma lei
de fatalidade, só o povo diverte-se não esquecendo as suas chagas, só a populaça
desta terra de sol encara sem pavor a morte nos sambas macabros do carnaval.
47

— Estás atristado pelos versos do “Beija-Flor”? Há uma porção de grupos que


comentam a catástrofe. Ainda há instantes passou a “Mina de Ouro”. Sabes qual é a
marcha dessa sociedade? Esta sandice tétrica:
Corremos, corremos
Povo brasileiro
Para salvar do “Aquidabã”
Os patriotas marinheiros.(CUNHA,2008,pp.92-93)

Como já observa Soihet, as imagens descritas por João do Rio se aproximam de Bakhtin,
quando este menciona que, na cultura popular, “a morte e a renovação seriam inseparáveis
do conjunto vital e incapazes de infundir temor”. (SOIHET,1998,p.79)
Assim, enquanto para João do Rio tais manifestações demonstravam uma total
indiferenciação entre morte e vida, que podem ser analisadas através de um viés
rabelaisiano, para outros, tais atitudes e atos procuravam denotar e propalar a
solidariedade do povo brasileiro ou uma forma diferente de encarar as mazelas da vida.
Denotam que, apesar de o momento ser de festa, o povo preocupava-se com a dor e o
sofrimento alheios, mesmo que tudo isso fosse entoado em forma de música ou de temas
para a confecção dos carros alegóricos ou de idéias, para diversão nos dias de Momo.
Ao observarmos a “comoção nacional” que ocorreu por conta da morte do Barão de Rio
Branco em pleno carnaval, concluímos que não importava quão grande era a tragédia,
fato ou notícia. Na verdade, tudo era motivo para se transformar em tema das máscaras,
fantasias, crônicas, versos, músicas e charges que alegravam o carnaval. No caso de 1912,
com a morte de nosso grande diplomata, apesar de as autoridades terem cancelado o
carnaval de fevereiro, transferindo-o para a semana santa, os foliões acabaram se
divertindo com os dois carnavais, o de fevereiro e o de abril. Desta forma, apesar das
tentativas oficiais em cancelar as festividades de Momo para dar maior solenidade ao
féretro do famoso Barão, o que acabou acontecendo foi que os foliões divertiram-se
duplamente naquele ano, daí a charge de Tony referir-se à genialidade do povo, e aos
versos de Telles de Meirelles, afirmando que esse se aproveitava das dores para
“encompridar o carnaval”.(CUNHA,2008,p.123-124)
Telles Meirelles, em seus versos, dá-nos uma ideia do carnaval que era desfrutado pelas
ruas e difundido pela imprensa: arlequins espantando a burguesia, mostrando que o Zé-
povinho apesar de suas amarguras, desfruta destes dias de folia, onde saltam pierrôs e
dominós que fazem troça, ao som de guizos. E que os Soteros, Serzedellos e, até mesmo,
48

Felintos ( figuras políticas e poderosas que eram alvos de críticas nesse contexto histórico)
podem ser vistos, nestes dias em que Momo é o “deus da troça”, com ar de ironia. E se,
afinal, a festa é tão prazerosa, por que não decretar que esta acontecesse todos os dias?
Tal envolvimento nos dias de festa é analisado por José Murilo de Carvalho, como sendo
uma faceta da população como “bilontra”, ou seja, “ malandra”, já que a mesma se
organiza em associações de caráter não-político e se mobiliza nas festas com as quais ela
se identifica (CARVALHO,1991)16, diferentemente da relação de certa apatia quanto a
fatos ou atos políticos, como as mobilizações dos clubes republicanos, partidos operários
ou os batalhões patrióticos que somente duravam enquanto existiam os problemas que os
tinham feito surgir.
A referência paródica a políticos era muito comum nas letras de canções do início do
século XX. Pinheiro Machado, Afonso Pena e Barão do Rio Branco, serão muito figuras
políticas muito citadas na imprensa do período, rendendo muitas charges e críticas no
período carnavalesco. E o cancioneiro relacionado ao carnaval fazia referências a certos
episódios políticos que ficariam famosos entre a população. Já em 1906, Eduardo das
Neves havia lançado uma composição com o título Pega na Chaleira, também conhecida
como Gargalhada, que apesar de não ter tido a repercussão da polca No Bico da Chaleira
de Juca Storoni, lançada poucos anos depois, denota que a expressão “pega na chaleira”
e sua conotação de bajulação já era usual pelas ruas do Rio de Janeiro:
Neste século de progresso
Nesta terra interesseira
Tem feito grande sucesso
O tal “pega na chaleira” 17
Mas seria em 1909, que todos cantariam e popularizariam o verbo”chaleirar” no carnaval.
No bico da Chaleira, de João José da Costa Júnior (cujo pseudônimo era Juca Storoni,
anagrama de seu nome), polca muito tocada no carnaval de 1909, acabaria inspirando
uma peça teatral elaborada por Raul Pederneiras e Ataliba Reis, bem como um filme com
o mesmo título e temática, produzido no mesmo ano pela Photo-Cinematographia
16 Aqui o autor se refere à famosa frase de Aristides Lobo sobre o fato do povo ter assistido “bestializado” à queda da
monarquia e ascensão do regime republicano.
17 Eduardo das Neves. Pega na Chaleira(1906).IN: DOCUMENTOS SONOROS - NOSSO SÉCULO. Diversos
Intérpretes (ver Participações Especiais) . Abril Cultural.Produtor: Elizabeth di Cropani/Maurício Quadrio/Vladimir
Sacchetta. 1980
49

Brasileira, por Labanca, Leal e Cia , com argumentos de Gastão Tojeiro. A música
utilizada seria a de Storoni.18
Aqui a canção refere-se ao caminho que levava à casa, que ficava no alto do Morro da
Graça, do senador Pinheiro Machado, um dos políticos mais influentes no início do
século. Como o senador era gaúcho e tomava muito chimarrão, “dizia-se na época, [que]
o pessoal que subia a ladeira da Graça disputava acirradamente o privilégio de segurar a
chaleira que supria de água quente o chimarrão do chefe”, a expressão “pega na chaleira”
ou “chaleirar” se tornaram sinônimos de bajular ou de bajulador. (SEVERIANO &
MELLO, 1997,p.29) A canção também mistura elementos musicais de outras canções
carnavalescas famosas, como a Ó abre Alas de Chiquinha Gonzaga e o Vem cá mulata,
de Bastos Tigre, este último, sócio de uma das sociedades carnavalescas mais famosas do
Rio de Janeiro do início do século XX, os Democráticos, também citado na letra da
composição.
O verbo “chaleir”ar se tornou famoso e popular, de modo que serviu de inspiração, no
ano seguinte, a um dos “carros” do préstito carnavalesco da Fon-Fon! intitulado Alegoria
Imortal, uma charge referindo-se à famosa e “imortal” expressão do “pega na chaleira”.
Mas, se tais expressões de humor e crítica eram partilhadas pela população e parte da
elite, esta ainda nas primeiras décadas do século XX, via com maus olhos certas
manifestações dessas camadas menos favorecidas da população tais como: a vadiagem, a
serenata , a boemia e o violão. Além da perseguição a estes comportamentos e
manifestações há uma política no Rio de Janeiro de eliminação de pensões e confeitarias
baratas e, juntamente com elas, sua clientela de boêmios e vadios.
A intolerância se estendia, ainda, para as formas de manifestação da cultura e
religiosidade popular:
A proibição das festas de Judas e do Bumba-meu-boi, os cerceamentos contra a festa
da Glória e o combate policial a todas as formas de religiosidade popular: líderes
messiânicos, curandeiros, feiticeiros etc...As exprobrações contra as barraquinhas de
São João no Rio vão de par, nas crônicas diárias, com os elogios aos cerceamentos à
festa da Penha em São Paulo. (SEVCENKO, 1989,p.33)
Certamente, tal intolerância também atingiria uma das maiores festas de caráter popular
da capital federal. Como já vimos, o carnaval que esta elite desejava, era o europeu, “com
18 João José da Costa Júnior( Juca Storoni). No Bico da Chaleira, polca, 1909. IN: ALMIRANTE - OS ÍDOLOS DO
RÁDIO - vol. XX. Intérprete:Almirante .Gravadora: Collector's Editora.1989. A canção de Storoni foi regravada
pela Banda da Casa Faulhaber e Cia (sem data), pela Banda Pryor (sem data), pela Banda do 52o de Caçadores (sem
data), por Almirante (no rádio, em 1946), por Monsueto e as Gatas (1972) e pela Banda do Canecão (1973).
50

arlequins, pierrôs e colombinas de emoções comedidas, daí o vitupério contra os cordões,


os batuques, as pastorinhas e as fantasias populares preferidas: de índio e de cobra
viva.”(Idem, p.33) Mas tal controle ficava cada vez mais difícil, pois na virada do século
XX
não parecia haver uma resposta definida sobre como lidar com aquela multiplicidade
e multiplicação da folia, que se estendia pelos bairros mais distantes e pelas classes
mais baixas, parecendo imitar e adaptar (ou desvirtuar, para outros) as lições
aprendidas das Grandes Sociedades. (CUNHA,2002,p.155)

O espaço festivo continuava a ser tomado pelos populares para desconsolo e desespero
de parte da elite carioca. A coluna “Diário das Ruas” da Fon-Fon! exibe esta preocupação
com certo humor e sarcasmo. No mesmo espaço onde brincavam conselheiros e
madames, saltavam e dançavam lavadeiras e arrumadeiras.(CUNHA,2008,p.231) A
ocupação dos espaços públicos, apesar da insistente intervenção das autoridades políticas
e de parte da elite, nem sempre obteve o resultado esperado. Entre a cidade ideal e a real
havia um longo caminho a percorrer.
Dessa forma, apesar das dificuldades enfrentadas para participar da folia, a população
pobre brincava muito durante os carnavais do início do século XX. Independentemente
do projeto pedagógico proposto por intelectuais e parte da elite, os cordões continuaram
a desfilar com seus estandartes protegidos por capoeiras vestidos de porta-machados e de
índios pelas principais ruas e avenidas da cidade . Com seus nomes estapafúrdios e
exóticos, entoando versos fáceis e ritmados, os quais associavam a melodia à agremiação
carnavalesca, incomodavam parte da elite carioca. Tais grupos continuavam a participar
teimosamente destes eventos, e por conta disso, ganhavam caricaturas e crônicas que
ficaram registradas nas principais revistas ilustradas e jornais do período.
O que percebemos com tudo isto é que, se de um lado a elite buscou civilizar o carnaval
e a população, através deste, juntamente com as mudanças e a regeneração da cidade, as
camadas populares não permitiram que tais modificações as excluíssem do espaço, que
sempre foi seu de excelência. Isto se torna claro ao relembrarmos que as habitações
populares possuíam espaços internos exíguos, portanto eram nas ruas e nos espaços
externos dos cortiços e habitações coletivas que as relações sociais se davam. (MARINS,
1998)
Desta forma, durante o carnaval ficava cada vez mais difícil controlar a multidão que
tomava conta das ruas. A cada ano as autoridades criavam novas formas de controle dos
foliões,
51

aproveitando-se da imagem de ameaça e violência a eles associada. No final do


período 1900-10 ela adquirira um grau elevado de aperfeiçoamento técnico no
controle do trânsito de veículos, do fluxo de pessoas, da observação da multidão.
Editais policiais estabeleciam regras detalhadas para circulação e estacionamento
dos bondes e veículos particulares- não apenas para manter o trânsito livre, mas
também tentar impedir que cordões se cruzassem em seus deslocamentos pela
cidade. O estabelecimento de mãos e contramãos para o fluxo de pedestres nas ruas
do velho centro foi uma das táticas empregadas para evitar esses encontros.
(CUNHA,2002,p.195-6)

Tais interditos não eram obedecidos, apesar de grandes contingentes de policiais serem
destacados para o policiamento das ruas centrais da cidade. Entre as instruções dadas pelo
chefe de polícia, em 1912, aos oficiais cabia a tarefa de

impedir o jogo do entrudo, coibir os mascarados, as vaias e os corre-corres e


também, expressamente, “evitar encontro de cordões carnavalescos e que os
mesmos promovam distúrbios; obrigando-os a obedecerem às ruas de subida e
descida, de acordo com o edital do Dr. Primeiro delegado
auxiliar”.(CUNHA,2002,p.196)

Se as ruas à priori era um privilégio dos homens, com a reforma, os novos hábitos
permitiriam gradualmente que as jovens e senhoras elegantes a ocupassem, ainda que de
forma acanhada e comportada. Mas os novos tempos incitavam o contato entre distintas
classes e gêneros, nos espaços públicos, dentro dos bondes, nos teatros, nos cafés, nos
novos espaços de lazer e também, claro, nos espaços festivos. Os sons e ritmos frenéticos
passam a adentrar nos lares das melhores famílias. O samba marca sua presença definitiva
nos carnavais, com o lançamento de Pelo telefone de Donga e Peru dos Pés Frios, em
1917.
As revistas começam a divulgar amplamente as músicas carnavalescas, e a Careta chega
mesmo a publicar não apenas as letras, mas também as partituras de sambas e
marchas.(CUNHA, 2004)
As mudanças se davam em todas as esferas da sociedade. Os últimos anos do século XIX
e as primeiras décadas do XX foram, assim, de grandes transformações em vários setores,
inclusive no carnaval, o que foi registrado também pelos literatos e caricaturistas do
período, que em geral possuíam múltiplas atividades como a de compositores,
teatrólogos, jornalistas, funcionários públicos, publicitários e, alguns, até mesmo, a de
52

figurinistas e atores. Sob uma nova ótica, o carnaval muda suas feições no decorrer de
tais anos, ora representado como rei, como diabo, como deus ou com doses de erotismo,
onde Colombina se renderia aos prazeres de Pierrôs e Arlequins.(CUNHA,2008)
Se por um lado, a Belle Époque tropical, produziu uma adaptação de expressões locais
mescladas às importadas, comprovando, segundo Antônio Herculano (LOPES,2000), a
capacidade urbana do Rio de Janeiro de assimilar o externo, por outro, a invenção do
carioca, e do brasileiro não foi obra apenas da prática das elites. O Rio de Janeiro, em fins
do século XIX e início do XX era o centro da vida política e cultural da nação e por conta
disso, exercia poderosa força de irradiação de modismos, gostos e práticas culturais pelos
diversos cantos do país, e a mobilidade de algumas das práticas vinculadas à expressão
musical e popular (como o circo, o teatro de revista, as apresentações de artistas
estrangeiros em palcos das distintas capitais do país, assim como a contratação de artistas
brasileiros para shows em outros países das Américas ou da Europa), possibilitou o
diálogo, as trocas culturais e a disseminação de determinados gostos, indumentárias,
ritmos etc . A integração, interação e a participação de africanos e seus descendentes,
assim como dos grupos menos favorecidos da população neste contexto e processo e
também os múltiplos diálogos culturais entre o local e o global propiciaram a criação e
recriação de ritos, festas e ritmos populares e também a construção de identidades- com
relação a bairros, certos espaços citadinos, favelas (“pedaços”), sociedades carnavalescas,
escolas de samba e claro, com a cidade e a nação.
Todos esses espaços foram de negociação e conflito e o humor e a crítica paródica foram
de fundamental importância para a sobrevivência e reelaboração dos sons e do carnaval.
Para Wisnik, se

Aparentemente, o ethos do samba nos seus começos, nas décadas de 20 e 30, seria
um anti-ethos: na malandragem, uma negação da moral do trabalho e da conduta
exemplar (efetuada através de uma farsa paródica em que o sujeito simula
ironicamente ter todas as perfeitas condições para o exercício da cidadania). Acresce
que essa negativa ética vem acompanhada de um elogia da orgia, da entrega ao
prazer da dança, do sexo e da bebida [...],. Mas o “orgulho em ser vadio” ( Wilson
Batista) corresponde também a uma ética oculta, uma vez que a afirmação do ócio é
para o negro a conquista de um intervalo mínimo entre a escravidão e a nova e
precária condição de mão-de-obra desqualificada e flutuante.(WISNIK,2004,p.205)
53

Foi se utilizando dessas estratégias que o samba se reinventou durante décadas, utilizando
as “frestas” para cantar melodias coletivas provenientes de terreiros, ou exaltando
veladamente a “malandragem” durante a política trabalhista de Vargas, como na música
É Negócio Casar.(CUNHA, 2004)
Se os sambas assumem um ethos cívico no nível das letras durante o Estado Novo e nos
sambas-enredo, esses reafirmam sua origem e sua identidade, nos gestos rítmicos e nas
pulsões sincopadas que “opõem um desmentido corporal ao tom hínico e à propaganda
trabalhista” (Idem, p.206) no caso do período Vargas e, no caso dos sambas enredos, se
utilizam de determinados timbres e ritmos que traduzem de qual lugar, a qual escola de
samba aquele grupo pertence.19
Essa estratégia, a da negociação, já era explicitada por Antonil:
“Uns chegam ao Brasil muito rudes e muito fechados e assim continuam por toda a
vida. Outros, em poucos anos saem ladinos e espertos, assim para aprenderem a
doutrina cristã, como para buscarem modo de passar a vida”. Estes, os “ladinos e
espertos”, é que construiriam o vigoroso edifício de sincretismos de que somos
herdeiros: o sincretismo religioso, linguístico, culinário, musical etc. de fato, como já
foi tantas vezes estudado, as culturas negras, isoladas na diáspora, nos limites da
pressão humana, tudo digerem e tudo transformam no objeto novo que será o
Brasil.(REIS & SILVA,1989,pp.13-4)

Serão essas estratégias e negociações que vão possibilitar que o samba, ritmo musical
vinculado a terreiros de candomblé, aos circos, às festas religiosas e morros, se transforme
no gênero musical de nossa maior festa, o carnaval, e acabe se transformando de música
perseguida e marginal em símbolo de brasilidade. Se tornou uma das expressões mais
relevantes de nosso patrimônio imaterial ou intangível e extrapolou suas comunidades e,
atualmente há vários grupos vinculados ao samba e ao carnaval em vários lugares do
mundo (países europeus, Japão, China, Canadá, dentre outros). Nosso pós-doutorado no
King´s College London teve como o principal objetivo a análise e relevância desse
gênero musical em Londres. Através de entrevistas, análise de documentos, jornais,
blogs, rede social, sites, escuta e análise de sambas-enredo buscamos compreender esse
fenômeno da cultura brasileira em Londres através da reconstrução da história de uma
escola de samba, a Paraíso School of Samba, de seus atores sociais, de sua comunidade,
19Dossiê Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba Enredo. Centro Cultural
Cartola/ IPHAN/MinC/ Fundação Palmares. 2006 Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossi-%20Matrizes%20do%20Samba.pdf
Acessado em 17/06/2016
54

de seus eventos para responder à questão de como o samba e o carnaval conectam pessoas
e os dois lados do Atlântico: o Brasil e o Reino Unido. Com nossa pesquisa buscamos
compreender através do fenômeno do multiculturalismo essas conexões, esses
laços identitários e tentar responder que tipos de “comunidade” esses indivíduos formam,
qual seu relacionamento com a sociedade britânica, quais as estratégias de sua integração
à essa sociedade, assim como, compreender os “elos de continuidade com seus locais de
origem” . E também quais outros laços são construídos através da música, da dança e da
festa. Mais especificamente, no Carnaval de Notting Hill. Ao vivenciarmos essa
experiência, concordamos com Arantes que a circulação de bens culturais
encontram-se entre os principais ingredientes das mudanças que ocorrem nos estilos
de vida e na formação de fronteiras simbólicas em todo planeta. Mas, é sempre útil
insistir que longe de simplesmente criar homogeneidade, o mercado global estimula
a geração e circulação de todo tipo de recursos capazes de produzir sentidos de lugar
e de diferença. (ARANTES, A.:2004,p.13)

“Sou um tupi tangendo um alaúde”...

Com essa frase célebre de Mário de Andrade, Gruzinski fala sobre suas reflexões de
História da Cultura em Algodoal, onde acordes de uma harpa “primitiva” ritmavam as
evoluções dos rapazes dançando capoeira na praia. Para o estudioso “a mistura estaria,
invariavelmente, sob o signo da ambiguidade e da ambivalência. Tais seriam as maldições
que pairariam sobre os mundos mesclados”. (GRUZINSKI, 2001, P. 26) Para o
estudioso, o “arquétipo do brasileiro e do latino-americano, dividido entre opções
antagônicas- o Brasil ou a Europa- , oscilando entre as culturas, mas pertencendo
simultaneamente a todas é demonstrado em Macunaíma do início ao fim, como um ser
dividido”. (Idem)
O desfecho de Macunaíma ilustra a impossibilidade de escapar às contradições e aos
dilemas da dupla vinculação. Nós, particularmente diríamos que não são apenas dois
mundos, duas vinculações...são várias! Em busca de uma esposa, o herói hesita entre os
dois mundos: escolhe, uma após outra, uma portuguesa e, depois uma índia, dona Sancha.
Mas sua escolha não resolve nada. Se, finalmente, é atraído pela nativa, é porque a mãe
da moça, Vei, a Sol, lhe dá a aparência de uma europeia. Macunaíma caiu na cilada
que Vei lhe armara. O equívoco do herói exprime a complexidade das situações que
nascem do confronto dos mundos.
55

Mas, olhando mais de perto, as decisões contraditórias de Macunaíma não se anulam. As


duas escolhas sucessivas, “as duas seqüências não deixam de formar um todo
perfeitamente orgânico dentro da estrutura do relato. Em Macunaíma, os elementos
antagônicos apresentam-se como “as duas faces de uma mesma moeda”. Impossível,
portanto, dissociá-los. Como os moradores de Algodoal, Macunaíma sente plenamente a
atração do universo ocidental. Pois faz parte desse universo, tanto quanto eles.
(Idem,p.27)
Mas, se tal fratura é sentida e pensada dentro do Brasil, como seria essa relação fora do
país? Como brasileiros que residem no exterior vivem, sentem, difundem tal cultura?
Algumas questões de Stuart Hall também nos estimularam a pensar sobre a experiência
de brasileiros no exterior, e mais especificamente, em Londres:
O que a experiência da diáspora causa a nossos modelos de identidade e patrimônio
cultural? Mais especificamente o imaterial ou intangível?
Como podemos conceber ou imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento, após a
diáspora? Como traduzimos e somos traduzidos em outro país, no caso, na Inglaterra,
mais especificamente, em Londres?
Já que a “identidade cultural”, segundo Hall, carrega consigo tantos traços de unidade
essencial, unicidade primordial, indivisibilidade e mesmice, como devemos “pensar” as
identidades inscritas nas relações de poder, construídas pela diferença e disjuntura?
(HALL, 2009, p.28)
Assim como os caribenhos, tratados por Hall, nossa história também é marcada por
rupturas: pela conquista, expropriação, escravidão, sistema de engenho e pela longa
dependência colonial. Nosso povo também tem raízes em diferentes lugares do mundo, o
que resulta em uma “crioulização” do tipo “transcultural”: é um “processo de ‘zona de
contato’ que invoca a copresença espacial e temporal dos sujeitos anteriormente isolados
por disjunturas geográficas e históricas [...] cujas trajetórias agora se cruzam, e tal lógica
e perspectiva é tão interessada em como o colonizado produz o colonizador quanto vice-
versa”. ( Idem, p.28-30)
A concepção binária de diferença em que se apoia o conceito fechado de diáspora está
pautada, segundo Hall sobre a “construção de uma fronteira de exclusão e depende da
construção de um “Outro” e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora”. Porém, as
configurações sincretizadas da identidade cultural caribenha, assim como a brasileira,
requerem a noção derridiana de différance:
56

uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras veladas


que não separam,finalmente, mas são também places de passage, e significados
que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem
começo nem fim. A diferença, sabemos, é essencial ao significado, e o significado é
crucial à cultura. Mas num movimento profundamente contraintuitivo, a linguística
moderna pós-saussariana insiste que o significado não pode ser fixado
definitivamente. Sempre há o “deslize: inevitável do significado na semiose aberta
de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser
dialogicamente reapropriado. A fantasia de um significado final continuada
assombrada pela “falta” ou “excesso”, mas nunca é apreensível na plenitude de
sua presença a a si mesma. (Idem, p.33)

E complementa com argumentos de Bakhtin e Volochinov:


A plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância(...) na
verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e
móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social(...) irá
infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-à objeto de estudo
dos filólogos. (Idem)

Nessa concepção, os polos binários do “sentido” e do “não sentido” são constantemente


arruinados pelo processo mais aberto e fluido do “fazer sentido na tradução” .
Kobena Mercer descreve essa lógica cultural como “estética dispórica”. Numa gama
inteira de formas culturais, há uma poderosa dinâmica sincrética que se apropria
criticamente de elementos dos códigos mestres das culturas dominantes e os “criouliza”,
desarticulando certos signos e rearticulando de outra forma seu significado
simbólico.( Idem, p.34) Utilizando-nos da leitura de Hall sobre a cultura caribenha,
entendemos que a cultura brasileira também é essencialmente impelida por uma
estética diaspórica porque, em termos antropológicos, suas culturas são
irremediavelmente “impuras”.
E, segundo Arantes,
Essas realidades locais que atravessam fronteiras étnicas e territoriais geram
intertextualidades , que devem absorver características de um mesmo código.

A produção cultural mundializada propicia, dessa forma, o enraizamento, no plano


local, de sentidos globais de lugar, sentidos que dialogam, deslocam e interagem
57

com as representações de identidade, memória e tradição, e com as práticas a elas


associadas. (2004,p.13)

Apesar de todas essas dificuldades apontadas por esse autores, assim como a festa
discutida por Arantes, o samba e o carnaval, ao menos em Londres, lugar onde realizamos
nossa pesquisa, o rito não perdeu seu sentido de tradição. Obviamente, há regras que têm
que ser discutidas com o governo local e a comunidade caribenha, que criou o Carnaval
de Notting Hill. “Novas regras e critérios” são negociados entre os “nativos” e os
“gringos”. Essas dependem do espaço onde o samba e o carnaval estão sendo executados.
Muitos europeus que participam da Paraíso School Of Samba veem ao Rio para aprender
e tocar nas baterias das escolas de samba. Aprendem o português através e por conta da
música, do ritmo, da festa. Aqui eles dialogam com as comunidades. Em Londres, são os
brasileiros que se unem aos ingleses, franceses, irlandeses e caribenhos para viabilizar a
manifestação musical e festiva. No entanto, fica evidente ao falar com os “estrangeiros”
que são amantes do samba e do carnaval, o reconhecimento do valor cultural dos saberes
e da prática dos mestres de bateria e dos membros da comunidade do samba no Brasil.
Dessa forma, do ponto de vista interno à cultura e à experiência social, como afirma
Arantes, “produto e processo são indissociáveis”.
Elas abrigam também os sentimentos, lembranças e sentidos que se formam nas
relações sociais envolvidas na produção e assim, o trabalho realimenta a vida e as
relações humanas. (ARANTES, A: 2004, p.17)

E, esse trabalho, produzido por gerações de praticantes

de determinada arte ou ofício é algo mais geral do que cada peça produzida ou
executada, do que cada celebração realizada. É conhecimento; é tecnologia; é
linguagem verbal, gráfica, cênica, coreográfica e musical; são visões de mundo
coletivas e difusas. Mas, em contrapartida, encontra-se em cada obra ou na
lembrança que se tem dela, o testemunho do que alguém é capaz de fazer. O produto
feito encerra a autoria individual e o fazer coletivo, a capacidade de repetir um gesto
e de modificá-lo, mantendo viva- mas nunca Idêntica- a tradição, já que nas frases
ditas, a linguagem se perpetua e constantemente se renova.

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61

O Real Theatro de São João em novas perspectivas: uma


proposta de reconstituição arquitetônica do edifício
original de 1813
Paulo Roberto Masseran

RESUMO: O Real Theatro de São João do Rio de Pre-colonial heritage in the construction
Janeiro foi o segundo teatro de grandes proporções of Latin American national identities The
edificado no Brasil e inaugurado em 1813, durante Real Theatro de São João in new
a permanência da corte de D. João VI na cidade,
tornada capital do império português. Antes dele já
perspectives: a proposal of architectural
se encontrava em funcionamento o Theatro São reconstruction of the original building of
João de Salvador desde 1809 sendo inaugurado em 1813
1812. Juntamente com o Theatro União de São Luís
do Maranhão, inaugurado em 1817, e em Lisboa o ABSTRACT: The Real Theatro de São João of Rio de
Real Theatro de São Carlos (1792) e no Porto, o Real Janeiro was the second theater of great proportions
Theatro de São João (1798), constituíram-se nos built in Brazil and inaugurated in 1813, during the
cinco grandes teatros públicos construídos em stay of the court of D. João VI in the city, became
honra e dignidade do Príncipe Regente D. João. Este capital of the Portuguese empire. Before him, the
trabalho aborda especificamente o Real Theatro de Theatro São João de Salvador was in operation since
São João do Rio de Janeiro, no seu transcurso inicial 1809 and inaugurated in 1812. Together with
desde sua inauguração até 1824 quando um grande Theatro União de São Luís do Maranhão,
incendio destruiu todo o seu interior, restando em inaugurated in 1817, in Lisbon the Real Theatro de
pé somente as paredes de alvenaria de pedras. O São Carlos (1792) and in Porto, the Real Theatro de
objetivo principal é recolher uma documentação São João (1798), were constituted in the five great
remanescente constituída por desenhos e public theaters built in honor and dignity of Prince
ilustrações de viajantes estrangeiros, relatos e Regent D. João. This work specifically addresses the
notícias, documentos oficiais, projetos e plantas Real Theater of São João do Rio de Janeiro, in its
que permitam antever uma proposta de initial course from its inauguration until 1824 when
62

reconstituição arquitetônica do edifício conforme a great fire destroyed all its interior, remaining only
seu estado original. Utilizando-se plataformas standing stones masonry walls. The main objective
informacionais elaborou-se a modelagem is to collect a remnant documentation consisting of
tridimensional virtual e o processamento de drawings and illustrations of foreign travelers,
imagens que auxiliam a visualização e a análise reports and news, official documents, projects and
morfológica desse teatro que foi o principal plans that allow us to foresee a proposal of
monumento civil edificado na nova capital do architectural reconstruction of the building
império português, além dos palácios reais. according to its original state. Using information
platforms, three-dimensional virtual modeling and
image processing were developed to assist
visualization and morphological analysis of this
theater, which was the main civil monument built in
the new capital of the Portuguese empire, in
addition to the royal palaces.
Palavras-chave: Real Theatro São João, arquitetura Keywords: Real Theatro São João, theatrical
teatral, história da arquitetura e do urbanismo architecture, history of architecture and urbanism
63

1 INTRODUÇÃO

Desde o início de um projeto de pesquisa em 2013, desenvolvido com o auxílio do CNPq,


denominado: “Theatros de D. João VI. Arquitetura, cidade e cultura do período joanino
no Brasil”, empreendeu-se à elaboração de um trabalho de reconstituição hipotética de
alguns teatros luso-brasileiros, dentre os quais o Real Theatro de São João do Rio de
Janeiro, o maior e principal teatro construído no Brasil durante a primeira metade do
século XIX. Assim, o presente capítulo versa sobre a elaboração de uma primeira versão
da reconstituição arquitetônica hipotética desse teatro, conforme suas características
originais apresentadas no seu primeiro período, isto é, aquele que se estende da sua
inauguração, em 12 de outubro de 1813, até o incêndio que destruiu completamente seu
interior, em 25 de março de 1824.
O primeiro teatro que existiu no mesmo espaço do Largo do Rossio, utilizado por onze
anos pela corte portuguesa e onde ocorreu, de fato, a aclamação da independência do
Brasil e a instauração do novo império, foi um grande teatro público à italiana edificado
conforme as prerrogativas formais e decorativas da arquitetura teatral que se produzia,
correntemente, no mundo ocidental. Era o segundo teatro de grande porte construído no
Brasil, mas criou-se e tornou-se o principal espaço de celebração da corte, na capital do
império português.
De forma evidente, presente nas poucas ilustrações e desenhos do teatro e seus entornos,
foi o principal monumento arquitetônico construído no Rio de Janeiro após a instalação
da corte portuguesa, que o fez seu salão de cerimônias e, sua localização, num dos pontos
extremos do amplo Largo do Rossio, contribuiu para conferir uma dignidade neoclássica
plena ao edifício do teatro, ou seja, um objeto arquitetural, de fachadas livres e voltado à
amplitude de um espaço aberto que o destacava perante o entorno e as demais construções
e que, por sua vez, prolongava-se também como espaço cerimonial onde a própria praça
assumia o caráter cênico. Constituição urbana que terá seus desdobramentos e extensões
até meados do século XX e será investigada por Evelyn Furquim Werneck Lima, em sua
tese (1997).
Falta, contudo, material gráfico e iconográfico que esclareça sobre a constituição interior
do teatro. Há muitos relatos publicados em epístolas, jornais e bibliografia de viagem
hodiernos, uma planta do prédio elaborada na segunda metade do século XIX, que
64

apresenta o teatro após várias reformas (LIMA, 2000, p.51), e uma foto interna da sala do
início do século XX (FON-FON, 1908), dos quais depreende-se uma certa compreensão
deste salão teatral e que formam o material base utilizado para a elaboração da presente
proposta de reconstituição arquitetônica. O trabalho consiste na modelagem
tridimensional virtual do edifício do teatro reconstituído em suas formas originais do
período de sua inauguração. Devido às fontes escassas sobre o interior, a modelagem mais
fiável é a volumetria e a fachada frontal, ou do corpo principal formado pelos acessos e
salas de apoio. As fachadas laterais e posteriores são, ainda, especulativas e baseadas
sumariamente nas aquarelas remanescentes. Os corpos posteriores do edifício onde
localizavam-se os camarins e salas de apoio apresentam informações contraditórias e,
desse modo, de difícil confirmação morfológica.
Metodologicamente, as técnicas associativas e comparativas entre as diversas
modalidades de fontes documentais, aliadas a uma interpretação hermenêutica permitem,
valiosamente, inserir a reconstituição arquitetônica de edifícios arruinados ou
desaparecidos como um instrumento eficaz de estudo e análise para a história da
arquitetura e do patrimônio cultural.
A primeira parte do trabalho discorre sobre as hipóteses conceituais e historiográficas
sobre o contexto da época e o estado atual dos estudos científicos sobre o tema. E a
segunda parte aborda o processo de elaboração da modelagem virtual e sua aplicação no
campo da história da arquitetura.

2 OS TEATROS DE D. JOÃO VI

Proclamou-se pois a independência Brasileira por S. M. o Imperador na cidade de


São Paulo a 7 de Setembro de 1822. Este fato memorável será sempre glorioso para
aquela cidade, e formará a mais notável das épocas do Brasil. Escusarei de tomar
grande canseira em pretender demonstrar o regozijo inexplicável do público, do
Imperador, e de seus criados e família, não foi sentido em ócio e descanso; muito
pelo contrário, o trabalho que ocorreu foi como se pode crer excessivo, sendo tantas
e tão diversas as providências que cumpria dar a crise extraordinária dos negócios
públicos. (SILVA, 1966, p.59-60)
Segundo Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, amigo e fiel escudeiro do príncipe D.
Pedro, durante a tarde deste dia, a Guarda de Honra de Sua Alteza, composta de cinco ou
seis cavaleiros, estava acampada em sítio fora da cidade, junto ao regato chamado
Ipiranga, aguardando o próprio Chalaça que investigava o ânimo dos cidadãos e preparava
a entrada da comitiva em São Paulo, quando a chegada de um mensageiro do Rio de
65

Janeiro trouxe notícias do acirramento e intransigência das Cortes de Lisboa que exigiam
o retorno imediato do príncipe a Portugal e uma série de restrições administrativas ao
Brasil. Insatisfeito, o príncipe teria confidenciado ao amigo sua decisão de proclamar
solenemente a independência em São Paulo. Seguiram à cidade e, recebidos festivamente
pela população eram aguardados pela elite paulista na Casa de Ópera do Largo do
Palácio1. Tudo leva a crer ter sido ali, no Pátio do Colégio e neste teatro, como existiam
tantos outros espalhados pelo Brasil e Portugal, que D. Pedro anunciara a efetiva
emancipação da nação brasileira. Aclamado em regozijo seguiu-se o espetáculo. Após
cinco dias, chegado ao Rio de Janeiro, no dia 15 de setembro, foi no Real Theatro de São
João recebido euforicamente pela recém-instaurada elite brasileira, autônoma e sob as
ordens do novo imperador.
Na seguinte noite (15) dignando-se S.A.R. e Sua Augusta Consorte honrar com as suas
Reais presenças o Theatro de S. João, apenas correu a cortina da Tribuna, soltaram
todos os espectadores os mais exaltados vivas, que dificilmente continham no
ansioso peito, e ajudando suas expressões com o ondear dos lenços, e com
universais palmas, era uníssono o alvoroço, geral o aplauso, e uma alegria tão fácil
de experimentar, como difícil de expressar, mostrava as bem fundadas esperanças
do Império Brasileiro no Seu Digno Herói, e Perpétuo Defensor. (O Espelho,
17/09/1822)
O episódio histórico da proclamação da independência do Brasil, já passado e repassado
por inúmeros cronistas e historiadores que, em sua maioria reproduz a compleição da cena
do brado "independência ou morte", solenizado em pintura de Pedro Américo, oblitera ou
desconsidera o real valor dos teatros como espaços de reunião e celebração pública no
contexto político representacional da monarquia absoluta portuguesa. Não foi no bucólico
riacho rodeado de tropas que o príncipe desvencilhou-se publicamente da autoridade da
metrópole, ou numa grande praça urbana e cercado por sua tropa, mas nos teatros – na
pequena e acanhada ópera de São Paulo, também preterida pela historiografia geral, e no
1 Conforme informações de Noronha Santos baseado em relatos da época. A Casa de Ópera de São Paulo teria sido
edificada por volta de 1770, junto à Casa de Fundição no Pátio do Colégio, ou Largo do Palácio do Governador, e foi
demolida em 1870. Segundo relatos, o teatro teria 22 camarotes largos em cada uma das três ordens, a considerar entre
plateia e camarotes uma capacidade de 400 a 500 pessoas, ou seja, algo muito semelhante à Casa de Ópera de
Sabará/MG, ainda existente. Um teatro que se assemelhava a tantos outros construídos na mesma época como o Teatro
da Rua dos Condes em Lisboa, o Teatro da Guarda no Porto, a Casa de Ópera de Ouro Preto, e a Casa de Ópera de
Manuel Luiz, no Rio de Janeiro que, com a chegada da Corte, em 1809, fora transformado na Ópera Real. Cf.
AMARAL, Antonio Barreto do. História dos velhos teatros de São Paulo (da Casa da Ópera a inauguração do Teatro
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construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
66

grande teatro público da corte, no Rio de Janeiro, ambos desaparecidos da cena urbana e
da memória política brasileira.
Entre a Casa de Ópera de São Paulo (1770?) e o Real Theatro de São João (1813), no Rio
de Janeiro, há um interlúdio que aguarda ainda, o seu profundo conhecimento. O
transcurso de um pequeno teatro público a um grande teatro real, de caráter público, que
acolheram importantes acontecimentos políticos, revela o crescimento da burguesia e sua
composição de forças com as aristocracias, rural e urbana, e a constituição de seu espaço
próprio nodal – um edifício apto a acomodar e resolver o problema das distinções
hierárquicas e suas representações. Edificado junto ao Palácio do Governo da Capitania
de São Paulo durante a governação de D. Luís António de Sousa Botelho Mourão, o 4.º
Morgado de Mateus (BELLOTTO, 1979), a Casa de Ópera exerceu uma dupla função
como teatro empresariado e teatro palaciano, ocupado que foi por companhias líricas e
dramáticas e pelos músicos e cantores locais, também integrantes de conjuntos musicais
das corporações religiosas. Espaço urbano nodal de sociabilidade das elites locais.
O Real Theatro de São João, por sua vez, surgiu com a transferência da corte, de Lisboa
ao Rio de Janeiro, em 1808. Inaugurado em 1813 foi o resultado de um processo em curso
no mundo português, de autoafirmação das burguesias, antecedido pelo Real Theatro de
São Carlos (1793), de Lisboa, e pelo Real Theatro de São João (1796), da Cidade do
Porto, gênese das congêneres casas surgidas no Brasil, o Theatro São João de Salvador
na Bahia (1812), que já encontrava-se em construção quando da chegada de D. João
àquela cidade, e o posterior Theatro União de São Luís do Maranhão (1817), assim
denominado em homenagem à elevação do Brasil à condição de Reino Unido.
Constituíram-se os cinco grandes teatros públicos do Império Português, no início do
século XIX, fruto da projeção política das elites locais e dos interesses de auto
representação2.
Antes da chegada ao Rio de Janeiro, a corte portuguesa de D. Maria I, sob as ordens do
Príncipe Regente D. João, que abandonara Lisboa antes da invasão das tropas francesas
de Napoleão Bonaparte, fez uma parada em Salvador. Neste mesmo ano de 1808, havia
se iniciado a construção de um novo teatro para a capital da Bahia, sendo inaugurado,
ainda inacabado, a 13 de maio de 1812, dia do aniversário do príncipe, recebendo o nome
de Theatro São João, seja em homenagem ao príncipe ou ao seu empreendedor, o Conde
2
O presente trabalho é decorrente do projeto de pesquisa denominado "Theatros de D. João VI. Arquitetura, cidade e
cultura do período joanino no Brasil", executado com auxílio do CNPq, pela Chamada Nº 43/2013 -
MCTI/CNPq/MEC/CAPES.
67

da Ponte, D. João de Saldanha da Gama e Melo Tôrres Guedes de Brito, governador da


Bahia falecido em 1809.
Muito embora faltasse a terceira ordem de camarotes e a entrada externa para as
galerias, só terminadas em 1829, com outros ornamentos da sala, como o anjo da
fama, esculpido por Manuel Inácio da Costa, e colocado sobre a tribuna oficial, e a
coroa imperial, assentada no arco de cena e trabalhada pelo entalhador Roque, a
sala de espetáculos fora toda decorada pelo pintor Manuel José de Souza Coutinho,
discípulo de José Joaquim da Rocha, que também pintou o primeiro pano de boca e
se desincumbira magistralmente, como cenógrafo, dos cenários de “A escocesa”,
peça encenada para o espetáculo inaugural. (RUY, 1959, p.34)
Esse teatro, o qual pode-se considerar o primeiro de grandes dimensões edificado no
Brasil, possuía plateia, um primeiro nível de frisas, dois níveis nobres de camarotes, e
galeria popular no nível superior. Situado junto à Praça da Quitanda, sua fachada era
bastante exígua e apresentava três pavimentos, além do térreo. Ainda externamente, e por
meio de uma cuidadosa implantação, conseguiu-se a liberação das três fachadas
permitindo-se assim, uma conformação mais unitária ao edifício, e um tratamento
volumétrico e estético mais apurado, insinuando um conjunto de caracteres próprios e
coerentes ao uso e à inserção no contexto urbano, do edifício para teatro.

3 O REAL THEATRO DE SÃO JOÃO, 1813

Na primeira década do século XIX, no Rio de Janeiro ainda resistia a “Casa da Ópera”,
edificada em 1776 por Manuel Luís Ferreira, e situada junto ao Palácio dos Vice-reis que,
com a chegada da corte, foi transformado em Palácio Real, o chamado Paço da Cidade.
Do mesmo modo, o velho “teatro de Manuel Luís”, como era popularmente chamado, ou
a Casa de Ópera Nova (em oposição ao velho Teatro do Padre Boaventura) foi reformado
e transformado em Teatro Real. Funcionou regularmente como teatro público, com três
ou quatro representações operísticas ou dramáticas por semana, além das récitas especiais
para o Príncipe Regente e sua corte. As boas companhias líricas e os excelentes
grupamentos musicais revezavam-se em suntuosas apresentações (CARDOSO, 2011),
mas o espaço do teatro quedava-se reduzido para o numeroso e aparatoso público.
Um decreto de 28 de maio de 1810, assinado pelo Príncipe Regente, recomendava que
nesta capital “[...] se erija um teatro decente e proporcionado à população e ao maior grau
de elevação e grandeza em que hoje se acha pela minha residência nela” (PRADO, 1993,
p.89-90). Foi então que o rico empresário, Fernando José de Almeida (CAVALCANTI,
2004b, pp.170-179), com a autorização real, deu início a uma campanha para a
68

arrecadação de fundos para a edificação do novo teatro. Criou um grupo de acionistas,


promoveu loterias, obteve isenção fiscal para todo o tipo de material necessário, e a 12 de
outubro de 1813, era inaugurado o Real Theatro de São João, em homenagem ao seu
incentivador, o Príncipe D. João.
O teatro se localizava numa das extremidades do Largo do Rossio (atual Praça
Tiradentes), onde hoje se encontra o Teatro João Caetano. Edifício de grandes proporções
possuía plateia bastante ampla e mais quatro níveis de camarotes, incluindo-se as frisas;
o camarote real ocupava o segundo nível, considerado o mais nobre, e situava-se em
frente ao palco. Deste teatro restaram apenas algumas gravuras externas, como uma
aquarela de Thomas Ender, e uma litografia de Théremin, além de alguns relatos dos
grandes espetáculos levados à cena, como o do francês, Jacquemont:
O público parecia aborrecer-se muito: no entanto a sala estava cheia e ela é bem
grande. O seu aspecto é o das salas da Itália: não há lustres mas lampiões colocados
em frente dos camarotes. As mulheres, ataviadas; os homens em trajes de
cerimônia, todos cobertos de condecorações, assumindo a partir dos quinze ou
dezesseis anos o ar desdenhoso e enfastiado dos dandys de Regent-Street. Creio que
todo mundo que o Rio chama de alta sociedade tem camarote reservado na Ópera.
O Imperador (D. Pedro I) é frequentador assíduo, porque as dançarinas e figurantes
são muito de seu gosto, sem prejuízo das senhoras respeitáveis. Durante o
espetáculo a praça fronteira ao teatro fica repleta de carruagens, nas quais vieram
de suas chácaras os espectadores dos camarotes. Desatrelam-se as mulas, que
mascam um pouco de capim empoeirado que brota aqui e ali no lugar. Os cocheiros
dormem por perto ou jogam entre si e bebem [...]. A praça durante a representação
parece um acampamento militar. Não há nela menos do que trezentos ou
quatrocentos carros e mil mulas e cavalos, além de algumas centenas de servidores
negros. Tudo isso é necessário ao prazer de duzentas ou trezentas famílias. Se ao
menos elas se divertissem!
A plateia da Ópera, no Rio, pareceu-me composta por essa classe burguesa
decididamente branca, formada de médicos, advogados, e dos que ocupam posições
secundárias e subalternas na administração pública. Procurei em vão pessoas de cor:
elas teriam o direito de comparecer mas provavelmente não seriam bem acolhidas.
(JACQUEMONT, 1841, p.57-58)
A plateia era, então, reservada aos profissionais liberais, funcionários públicos,
comerciantes e pessoas que atingiram certo grau de prestígio junto à corte. Os camarotes,
por sua vez, abrigavam a própria corte e dirigentes políticos. No quadro descrito acima,
percebemos a inexistência na Ópera, de galerias para acomodações populares, comuns
nas antigas Casas de Ópera e pelo visto, ao povo era reservado apenas o espetáculo social,
da entrada e saída do teatro, na praça contígua.
69

Conforme as palavras do francês Jacquemont, a conformação do edifício seguia os


princípios dos teatros italianos, e mais precisamente do Alla Scala de Milão.
Externamente notam-se as semelhanças entre ambos: arcada tripla na entrada, frontão
triangular e elementos de tradição clássica; fachadas liberadas nas quatro faces e inserção
urbana elaborada com certa intencionalidade em se constituir num objeto isolado dentro
de um contexto singelo ao seu redor. No interior, além das amplas dimensões, é notória a
falta de galerias populares, certamente por ser um teatro exclusivo das elites, e a estrutura
cênica capaz de abrigar as mirabolantes encenações das óperas rossinianas.
Para a inauguração do teatro, providenciou-se uma companhia lírica para a apresentação
da ópera “O juramento dos Numes” de tema mitológico, com libreto de Gastão Fausto da
Câmara Coutinho e música do maestro Bernardo José de Souza Queiroz, suntuosamente
encenada e com o teatro caprichosamente iluminado. Após a inauguração uma companhia
dramática portuguesa, da famosa atriz Mariana Torres, apresentou-se em temporada,
repetida anos mais tarde, dando início a uma frequência cada vez mais assídua de
companhias dramáticas ou líricas estrangeiras, em temporadas pela corte e algumas outras
cidades de importância no país. (CACCIAGLIA, 1986)
Durante a década de 1810, acompanhamos a gestação de uma movimentação cultural no
Rio de Janeiro, motivada e diretamente influenciada pela presença da corte portuguesa.
A visita constante de companhias líricas e dramáticas ao país gerou a permanência de
atores, cantores e músicos, e proporcionou a formação de incipientes grupos artísticos
locais dedicados a uma produção cultural em conformidade aos anseios da burguesia.
O gênero dramático abordado neste período resumia-se invariavelmente à tragédia de
temas clássicos e mitológicos, ou à tragédia de temas históricos, estruturada sobre bases
do teatro clássico francês, encenadas espetacularmente conforme o gosto estético do
século XVIII, ainda absoluto pelo menos até finais da década de 1820. Porém
decididamente, a influência do teatro português na vida cultural carioca, desse período,
foi determinante, tanto em relação à procedência das obras levadas à cena quanto aos
atores e autores. A tragédia, estruturada conforme os preceitos aristotélicos estabelecidos
por Boileau, fundada na verossimilhança de tempo, lugar e ação, ou seja, uma única ação
desenvolve-se num único espaço e em tempo real, ou quando muito se permitia o
desenvolvimento da ação no período de um dia, forneceu a base para a criação de muitas
obras do teatro português (PRADO, 1993). Outro gênero teatral bastante difundido era a
comédia; eram encenados os próprios textos franceses traduzidos ao português, ou obras
compostas por autores portugueses fundamentadas nos preceitos clássicos. Nas primeiras
décadas do século XIX, difundiu-se também, o recém-criado melodrama, uma espécie de
meio termo entre a tragédia e a comédia adotando, desde sua introdução em Portugal e
70

no Brasil, um tom político-popularesco, propiciando certa banalização do texto que se


afastou, cada vez mais, da erudição e tendeu, desse modo, à popularização do teatro.
Outra atividade artística que desenvolveu-se no Brasil do século XIX foi o gênero
operístico. Desde meados do século XVIII, a popularização das casas de ópera, ainda
mais estimuladas pelo decreto de D. José I de 1771, que foram edificadas em inúmeras
vilas e cidades pelos territórios brasileiros e, pesquisas recentes revelam uma profícua
produção teatral, musical e operística até nas mais remotas regiões do Brasil, como Goiás
e Mato Grosso. As casas de óperas eram teatros públicos polivalentes; serviam a
atividades diversas desde representações teatrais e musicais à reuniões políticas, bailes e
festas. A atividade musical era desempenhada por músicos e cantores formados no ofício
e que o praticavam profissional ou amadoristicamente3. Desse modo, a construção dos
grandes teatros nas principais cidades brasileiras, Salvador, Rio de Janeiro e São Luís do
Maranhão representou o culminar de um processo de introdução e proliferação da cultura
operísitica italiana que se desenrolava em Portugal desde os princípios dos setecentos. No
Real Theatro São João há notícias da representação de óperas do compositor italiano
Gioacchino Rossini, notadamente, após 1820. Foram apresentadas “La Cenerentola”,
“L’italiana in Algeri”, “Elisabetta Regina d’Inghilterra”, “Adelaide di Borgogna”,
“L’inganno felice”, certamente por companhias líricas italianas, portuguesas ou
brasileiras; de Mozart consta a apresentação de “Don Giovanni”, em 1821
(CACCIAGLIA, 1986)
Desde sua inauguração, o Real Theatro de São João se destacou no cenário artístico
nacional, como teatro oficial da corte no Brasil, e também por sediar diversos e
importantes acontecimentos da vida social e política da capital do país. Nesse teatro, D.
Pedro leu o decreto pelo qual D. João VI aprovava a Constituição elaborada em Portugal,
em 24 de fevereiro de 1821. Também foi lá que D. Pedro jurou fidelidade às bases da
Constituição Portuguesa, em 5 de junho do mesmo ano. Em 15 de setembro de 1822, ao
retornar de São Paulo, D. Pedro foi aclamado pelo povo, que irrompeu ao teatro, como o
novo soberano do país independente. E a 12 de outubro deste mesmo ano, foi no São João,
que D. Pedro recebeu o título de Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil,
fato relatado por um jornal local, da época:

3
O musicólogo inglês, radicado em Portugal, David Crammer, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa tem desenvolvido inúmeras pesquisas em arquivos brasileiros e europeus, juntamente
com uma equipe de pesquisadores portugueses e brasileiros que tem revelado muitas gratas novidades desse passado
obscuro das artes de cena luso-brasileiras, assim como, o musicólogo Paulo Castagna tem revelado inúmeras questões
relacionadas à música sacra do século XVIII, no Brasil, seus compositores, músicos e cantores e suas organizações e
estruturação.
71

Suas majestades imperiais com sua augusta filha foram ao teatro às 8 e meia, com
grande acompanhamento; não temos expressões com que descrever o alvoroço e
vivo entusiasmo que causou o aparecimento de suas majestades imperiais.
Repetiam-se os vivas, a que suas majestades imperiais prestavam a maior atenção,
agradecendo com repetidas inclinações de cabeça o público regozijo que eles
motivaram; recitaram-se inúmeros versos de diferentes qualidades mas todos
alusivos ao “Grande Objeto” e que foram mais ou menos aplaudidos conforme o
melhor ou mais inferior desempenho dos poetas e recitadores.
Dos camarotes apareceram três bandeiras de seda com as novas armas do
imperador do Brasil, sendo a primeira apresentada pelo excelentíssimo general das
Armas; se fora possível aumentava-se com esta vista o entusiasmo, porém já não era
possível porque tinha chegado ao extremo.
Durou este interessante espetáculo quase uma hora e sossegou para a orquestra dar
princípio à sinfonia; finda esta recitou-se um assaz bem feito “Elogio Dramático”
alusivo ao aniversário natalício de sua majestade, à Independência do Brasil e sua
elevação à categoria de Império; findo o “Elogio” cantaram de três camarotes
contíguos, da ordem nobre, vários cidadãos conspícuos um novo hino nacional, que
transcrevemos abaixo e cuja música foi composta pelo bem conhecido e insigne
compositor Marcos Portugal.
Seguiu-se a representação pela Companhia Portuguesa do drama em três atos
Independência da Escócia, traduzido livremente e acomodado ao atual sistema do
Império do Brasil... . (PRADO, 1993, p.100-101)
Ainda neste período, foram construídos alguns pequenos teatros no Rio de Janeiro, dos
quais nada resta além de algumas citações: em 1815 edificou-se um pequeno teatro ao
lado do São João; em 1820 consta ter-se edificado outro pequeno teatro projetado pelo
arquiteto francês Grandjean de Montigny; em 1824 foi inaugurado o chamado Theatro do
Plácido, localizado no Largo do Rossio próximo ao São João, mas este teatro continuou
a ser o maior e o principal objeto arquitetural da Capital portuguesa.
O projeto do teatro foi concebido pelo Coronel João Manoel da Silva, conceituado
engenheiro militar e nomeado por D. João como Inspetor do Real Corpo de Engenheiros
e Diretor do Arquivo Militar. O desenho assemelhava-o ao Real Theatro de São Carlos,
projetado pelo arquiteto José da Costa e Silva (1747-1819), Arquiteto das Obras Reais,
que mudara-se para o Rio de Janeiro em 1811, a serviço do Príncipe Regente e que,
possivelmente, contribuíra na reformulação do projeto do teatro que encontrava-se em
obras. Comportava aproximadamente 1200 espectadores distribuídos pela plateia, 30
frisas, 28 camarotes de primeira ordem, 28 camarotes de segunda ordem e 26 camarotes
e torrinha na terceira ordem (CACCIAGLIA, 1986, P.47), além da ampla tribuna real com
72

cortinados que funcionava como espelhamento do palco e seus panos de boca, quando a
cada récita de gala o rei e a real família eram aguardados em pé, cerimoniosamente, pelos
seus súditos, em ritualística abertura das cortinas.
...nos dias de gala comparecia toda a família real ao teatro, que se mostrava ornado
de sedas, de flores e iluminado com arandelas e lustres. Logo que se abriam as
cortinas encarnadas com franjas de ouro, que fechavam a tribuna, aparecia o
príncipe regente acompanhado de toda a sua família. Os camarotes, principalmente
os de segunda ordem, eram ocupados pelos fidalgos, que se apresentavam com
fardas encarnadas bordadas de ouro e cobertas de condecorações, e as damas com
altos toucados, onde resplandeciam pérolas e pedras preciosas. Cortinas de seda,
ramos, grinaldas de flores enfeitavam os camarotes [...] Havia dois panos, um talar e
outro de boca: aquele representava a entrada da família real na barra do Rio de
Janeiro, as embarcações e fortalezas a salvarem e grande quantidade de botes,
canoas e faluas. (MARINHO, 1904, p.20)
Em 1824, após a cerimônia de juramento à Constituição Imperial, pelo imperador D.
Pedro I, e a récita de gala daquela noite festiva, um incidente provocado por um ator, na
caixa cênica, desencadeou um incêndio de grandes proporções que arruinou todo o
interior do teatro, encerrando dramaticamente este seu primeiro período (LIMA, 2000).
Recuperado tornou à cena em 1826, entretanto longe da qualidade arquitetural do
primeiro teatro. Desse modo, o trabalho de modelagem virtual desenvolvido abarcou,
justamente, esta primeira fase de existência do edifício, aquela à qual serviu de palco
absoluto às representações políticas da corte e da burguesia luso-brasileira.

4 A MODELAGEM VIRTUAL

O trabalho de reconstituição arquitetônica do Real Theatro de São João do Rio de Janeiro


foi elaborado pelo coordenador da pesquisa utilizando o software denominado Sketch Up,
programa de modelagem eletrônica livremente disponível na rede, de fácil manuseio e
com recursos de apresentação e renderização que fazem do trabalho um meio rápido e
acessível de instrução pedagógica para a capacitação de operadores graduados nos cursos
de Design e Arquitetura e Urbanismo, com a participação de dois alunos da graduação
em Arquitetura e Urbanismo, em seus trabalhos de Iniciação Científica. O trabalho que
desenvolveu-se em parceria com o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, e com o Centro de Estudos em Sociologia e Estética Musical
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, está
inserido no contexto de investigação sobre as novas tecnologias digitais enquanto
fomento a novos instrumentos de auxílio aos estudos historiográficos.
73

A modelagem virtual foi elaborada tomando-se por base os elementos concretos


investigados, como a planta do edifício de 1889 que apresenta uma série de alterações em
relação à primeira fase do teatro, e as implantações urbanas pertencentes ao Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro, do século XIX e das primeiras décadas do século XX,
que indicam a disposição do edifício e sua relação com as edificações lindeiras e o antigo
Rossio, assim como, atestam as dimensões externas do teatro. Foram fundamentais as
aquarelas e desenhos elaborados por viajantes estrangeiros, mesmo considerando suas
imperfeições e desproporções, para identificar os elementos formativos e decorativos das
fachadas, a volumetria, a modenatura e os acessos originais. E por último, as descrições
do interior e exterior do teatro presentes nos relatos de estrangeiros e da imprensa
nortearam a definição de alguns detalhes compositivos arquiteturais, a iluminação, os
equipamentos e a estrutura cênica comportada pela caixa. Como num quebra-cabeça,
demonstrado em relatório específico, as peças esparsas e, algumas vezes, incongruentes
foram encaixando-se a dar forma ao teatro desaparecido.
De modo significativo, esta foi a primeira versão reconstitutiva elaborada sobre o Real
Theatro de São João, e apresenta atualmente uma série de pontos desalinhados que
encontram-se em processo de revisão e reelaboração, pois durante o andamento do
processo investigativo, novos elementos e informações substanciais foram agregadas ao
trabalho e estão a permitir, a partir de sua sistematização e análise, o estabelecimento de
novos argumentos que virão a sustentar uma nova hipótese restitutiva, com certeza menos
especulativa.
De qualquer modo, o corpo frontal do edifício revelou uma estrutura arquitetural muito
bem pensada e organizada conforme os parâmetros da arquitetura moderna
contemporânea, no estilo neoclássico. E um estilo comprometido com a arquitetura
praticada na capital do reino, Lisboa, pelos arquitetos Francisco Xavier Fabri (1761-
1817) e José da Costa e Silva (1747-1819) estimulados pelo Príncipe Regente, de
características neoclássicas, mas sem perder a essência dos traços portugueses. O
engenheiro militar João Manoel da Silva concebeu um edifício sóbrio e conseguiu
intermediar de modo harmonioso as escalas arquiteturais entre a sala de espetáculos do
teatro, bastante corpulenta, com as construções de dois e três pavimentos que definiam os
limites do Largo do Rossio. É o que se percebe pela modelagem realizada.
As ilustrações a seguir mostram a planta do teatro (figura 1) já reconstituída pelo autor a
partir de uma planta de 1889, pertencente ao acervo iconográfico do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. Destaca-se, além do corpo frontal onde localizavam-se os
acessos e salões de encontro, um corredor transversal de acesso lateral ao interior da sala
de espetáculos que seguia uma tipologia desenvolvida anteriormente no Theatro São João
74

da Cidade do Porto. A sala de espetáculos em forma de ferradura possuía quatro ordens


de camarotes, inclusive as frisas, e um imponente balcão principal destinado ao rei e à
real família. A caixa cênica era ampla e comportava as grandes encenações operísticas ali
apresentadas, e incluía espaços laterais de apoio para os artistas. Na sua totalidade o teatro
equivalia em dimensões ao Real Theatro de São Carlos, de Lisboa, elevado vinte anos
antes, e dotava a cidade do Rio de Janeiro, Capital do império português, de um grande
palco celebrativo da monarquia e da nova burguesia.

Figura 1. Planta do Real Theatro de São João (reconstituição elaborada pelo autor com base na planta do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro)

Importante referência iconográfica concentra-se nas aquarelas elaboradas pelos


estrangeiros, viajantes e artistas, que legaram as únicas imagens disponíveis desse
importante edifício desaparecido, notadamente a de Thomas Ender, de 1817 (figura 2).
Nela é possível observar a volumetria e modenatura do teatro, seu tratamento exterior e
as cantarias em pedra, e ainda as entradas laterais e anexos posteriores.
75

Figura 2. Real Theatro de São João pelas mãos de Thomas Ender, 1817 (CACCIAGLIA, 1986, capa)

Outra importante referência centra-se na fotografia (figura 3) publicada pela revista Fon-
Fon, em 1908, onde observa-se e atesta-se a estrutura básico do interior do teatro, definida
em quatro níveis de balcões e mantida após inúmeros incêndios. É evidente que o suporte
decorativo foi bastante danificado pelos fogos e a cena interna não permaneceu a mesma.
Tampouco a tribuna real em seus atributos originais.
76

Figura 3. Interior do Theatro São Pedro em foto de 1908 (Revista Fon-fon, Ano II, n° 12, de 27 de junho
de 1908)

A comparação e contraposição destas e outras informações angariadas durante a


investigação tornou possível a elaboração de uma primeira hipótese de reconstituição
arquitetônica do teatro. O resultado surpreende pela corporeidade do edifício perante o
meio urbano. Destaca-se enquanto estrutura arquitetural inserida no extremo de uma
ampla área livre onde incorporava uma nova relação de escala urbana plenamente
conforme às novas concepções artísticas da época, às formas neoclássicas e à decoração
Estilo Império. As ilustrações a seguir mostram algo deste resultado (figuras 4, 5, 6 e 7).
77

Figura 4. Foto de apresentação do trabalho de Reconstituição Arquitetônica do Real Theatro de São João
do Rio de Janeiro (acervo do autor)

Figura 5. Fachada principal com a arcada de acesso e varanda (acervo do autor)


78

Figura 6. Imagem renderizada da fachada principal da Reconstituição Arquitetônica do Real Theatro de


São João do Rio de Janeiro (acervo do autor)

Figura 7. Imagem renderizada da volumetria da Reconstituição Arquitetônica do Real Theatro de São


João do Rio de Janeiro (acervo do autor)
79

A realização deste trabalho de reconstituição arquitetural fundada em recursos técnicos


da realidade virtual e desenvolvido com critérios precisos de levantamento informacional
baseado em fontes críveis, ainda que necessite de alguns dados especulativos, resulta num
valioso instrumento de análise morfológico para o estudo da arquitetura pretérita e, neste
caso, desaparecida. Por meio dessa modelagem foi possível reconhecer o edifício do Real
Theatro de São João como a principal obra arquitetural civil empreendida por D. João VI
durante sua permanência na cidade do Rio de Janeiro, elevada à capital do império
português.

5 CONCLUSÕES

No quadro geral da história da arquitetura algumas tipologias funcionais como as igrejas


e a habitação burguesa se destacaram, desde a hegemonia do Movimento Moderno, pelo
grau de especialização e pela quantidade de estudos e pesquisas realizadas; outras, como
os mercados e edifícios para o comércio têm alcançado certa preponderância, desde os
últimos trinta anos, devido ao incremento do consumo contemporâneo. Já a história das
arquiteturas para o espetáculo, que abarcam dos teatros aos grandes estádios, têm crescido
timidamente no campo acadêmico especializado o que, de certo modo, não acompanha a
demanda atual para a criação de novos espaços. E o conhecimento histórico da arquitetura
é fundamental para se compreender os processos de transformação dos espaços
organizados para a vida humana no conjunto de relações estabelecidas enquanto pleito
social e cultural, do mesmo modo que ao aprofundar-se a história projetam-se questões e
problemas do tempo presente. Assim, escrever a história da arquitetura também significa
traçar as linhas daquilo que se entrevê como percurso do próprio campo da arquitetura.
É forçoso, então, tal aprofundamento historiográfico, e a compreensão ampla sobre a
construção de teatros no Brasil somente legitima-se quando sua problemática justapõe-se
ao contexto internacional ao qual está vinculada inerentemente. De algum modo, a grande
maioria dos trabalhos realizados nos últimos anos, sobre a história dos teatros ou da
arquitetura teatral, decorre de leituras individualizadas e restritas à envolvência local – da
cidade, do bairro – escusando-se ao estabelecimento de paralelos territoriais mais
dilatados. O resultado é, quase sempre, uma análise estereotipada onde o teatro é visto
como a empresa de uma elite local, de uso inconstante e efêmero, e palco para
apresentações de companhias e artistas itinerantes, sem prestígio ou raízes regionais.
Alguns procuram a verificação de um conjunto, regional ou nacional, mas acabam por
incorrer em arrolamentos de teatros, e a apontar as características e informações
específicas e técnicas, ou a desenvolver recortes puramente tipológicos e a descrever uma
80

almejada evolução dos tipos de arquiteturas teatrais. Poucos trabalhos4 se enfrentam a


uma análise sistêmica e a investigar a compreensão dos elos e vínculos entre os espaços,
as arquiteturas, os empreendedores, as causas, os artistas e as consequências de sua
criação e de seu desaparecimento.
Tal foi o objetivo deste trabalho de pesquisa sobre o Real Theatro de São João: aprofundar
o conhecimento sobre a problemática da arquitetura de teatros no Brasil remetendo-se a
suas origens portuguesas; ao local central e polo difusor da cultura operística do século
XVIII pelo mundo português; a entender os elos que amarram a edificação dos primeiros
teatros públicos e o apogeu e queda dos espaços privativos da corte, ou teatros régios, até
a edificação dos grandes teatros públicos portugueses, entendidos enquanto processo de
representações sociais, políticas e culturais, e como espaços das prefigurações artísticas
de seu tempo. É imperioso redimensionar culturalmente o lugar do teatro e de suas formas
artísticas, assim como as arquiteturas geradas para acolher e possibilitar sua ocorrência
no distante contexto das sociedades de corte, parafraseando Norbert Elias. Nesta
perspectiva, as novas tecnologias digitais se configuram como instrumentos eficazes na
dilação e interpretação de tais pressupostos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Mateus em São Paulo. São Paulo: IMESP, 1979.

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1822). Jundiaí: Paco Editorial, 2012.

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CACCIAGLIA, Mário. Pequena história do teatro no Brasil (quatro séculos de teatro no Brasil). São
Paulo: EDUSP, 1986.

CARDOSO, Lino de Almeida. O som social: música, poder e sociedade no Brasil (Rio de Janeiro,

4
Vale notar dois trabalhos: um organizado pela pesquisadora Evelyn Furquim Werneck Lima com artigos de
pesquisadores renomados a tratar dos assuntos correlatos à arquitetura de teatros, e outro, o estudo referencial do Prof.
Mário Vieira de Carvalho sobre o Teatro São Carlos de Lisboa em sua configuração como espaço legítimo ao
desenrolar-se de um sistema de representações. Cf. LIMA, Evelyn Furquim Werneck (org.). Arquitetura, Teatro e
Cultura: revisitando espaços, cidades e dramaturgos do século XVII. Rio de Janeiro: Contracapa/FAPERJ, 2012.
CARVALHO, Mário Vieira de. Pensar é morrer, ou o Teatro de São Carlos na mudança de sistemas
sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1992.
81

séculos XVIII e XIX). São Paulo: edição do autor, 2011.

CAVALCANTI, Nireu Oliveira. Arquitetos e Engenheiros: sonho de entidade desde 1798. Rio de
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82

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Nacional / INL, 1977.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela Bolsa de
Pesquisa no Exterior e ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) pelo financiamento da pesquisa.
83

Pertencimento, Uso e Espaço: o caso do Museu Histórico


de Londrina
Samir Hernandes Tenório Gomes

RESUMO: No Brasil, existem poucas pesquisas até o Sense Belonging, Use and Space: the case
momento que aprofundem as questões of the Londrina Historical Museum
relacionadas ao estudo das variantes projetuais,
analisando a percepção, o uso e as atitudes do ABSTRACT: In Brazil, there is little research until
indivíduo frente aos ambientes museológicos. now that deepen the questions related to the study
Nesse sentido, este texto apresenta um estudo of the variants of the project, analyzing the
sobre o pertencimento, o uso e o espaço perception, the evaluation and the attitudes of the
museológico, delimitando como objeto de estudo o individual in front of the museological
Museu Histórico na cidade de Londrina – PR. O environments. In this sense, this text presents a
trabalho busca compreender de que forma a study on the belonging, the use and the museum
avaliação desses ambientes pode ser um space, delimiting as object of study the Londrina
instrumento, ainda que preliminar, de mudança de Historical Museum. This work aims to understand
paradigma na formatação de projetos de museus how the evaluation of these environments can be
para realização de suas tarefas. Para isso, realizou- an instrument, even if preliminary, of a paradigm
se uma abordagem qualitativa que visou trabalhar shift in the formatting of museum projects to
os aspectos relativos à funcionalidade espacial, os accomplish their tasks. For this, a qualitative
conceitos de ocupação (tipos de uso), approach was carried out to study aspects related
especialmente avaliando os seguintes elementos to spatial functionality, occupancy concepts (types
funcionais: dimensionamentos mínimos, of use), especially evaluating the following
iluminação, flexibilidade, circulações, programa functional elements: minimal design, lighting,
arquitetônico, comunicação visual e ergonomia. Ao flexibility, circulations, architectural program, visual
final, a pesquisa pretende demonstrar não communication and ergonomics. In the end, the
perguntas ou respostas do problema, mas sim research aims to demonstrate no questions or
estruturar o debate acerca da construção de um answers to the problem, but rather to structure the
conjunto de indicativos no contexto da ação debate about the construction of a set of indicatives
interativa entre os ambientes museológicos e o in the context of the interactive action between the
pertencimento das pessoas. museological environments and the people's
belonging.
Palavras-chave: Pertencimento, Uso, Museu Keywords: Sense Belonging, Use, Londrina
Histórico de Londrina Historical Museum
84

1 INTRODUÇÃO

Estudos realizados de forma multidisciplinar pela psicologia ambiental e arquitetura


demonstram quanto a relação homem-espaço é fundamental na vida em sociedade. Eles
discutem o sentimento de afeto/desafeto, de prazer/desprazer, de
semelhança/dissemelhança, de aceitação/rejeição, que interferem na construção da
identidade humana. As investigações ligadas ao ambiente se preocupam com “[...] o
ambiente físico (natural e/ou construído) e o comportamento humano, ou seja, o ambiente
influencia o comportamento, e este por sua vez, também leva a uma mudança no
ambiente.” (MELO, 1991). Vale destacar que o termo ambiente é mais abrangente, pois
concebem-se espaços com vários elementos palpáveis e objetivos, mas o ambiente só se
constrói em uma ação subjetiva e pessoal tendo como base fatores culturais, psicológicos,
afetivos entre outros. Ou seja, o ambiente só terá validade se os atores envolvidos
puderem estruturar uma relação de intimidade, compreendendo oportunidades de trocas
de experiências em diversos níveis de interação.
Hoje mais do que nunca, a especialização dos projetos de museus tem sido capaz de
explorar importantes desdobramentos e conquistas nestes edifícios, a ponto de propor
uma nova forma de utilizar seus espaços sob a ótica da psicologia ambiental, percepção e
museologia. Uma das explicações mais coerentes sobre esse fato, diz respeito às
modificações dos ambientes museológicos, obrigando arquitetos a elaborarem novos
instrumentos de projetação e recorrerem à ajuda de outras disciplinas para a concretização
de novas propostas. Um dos exemplos é a aplicação dos estudos do espaço perceptivo,
bastante útil no planejamento arquitetônico dos edifícios de museus, na medida em que
tem fornecido subsídios concretos nas análises de uso, pertencimento, identidade e
ambiência. A metodologia propõe a leitura de espacializações presentes nos ambientes,
observando a presença de conflitos entre as formas de apropriação e os elementos
espaciais ausentes ou inadequados que afetam a apropriação do espaço. Nesse mesmo
caminho, destacam-se os projetos arquitetônicos que incorporam soluções baseadas no
uso de princípios lúdicos e perceptivos. Esse sistema interativo entre o usuário e o espaço
reforça a presença de elementos volumétrico-espaciais dinâmicos com o objetivo de afetar
diretamente os sentidos do tato, do olfato e da visão do usuário, lançando mão de novas
apropriações espaciais. Como exemplo disso, verifica-se a imposição de pés-direitos
variados, posicionamento de iluminação especial nos objetos expositivos, mobiliário
interativo e a utilização de materiais que alteram os sentidos humanos perceptivos.
Apesar dos esforços contínuos no entendimento das operações e dos ambientes de
museus, poucos exemplos têm se produzido na área da arquitetura que, efetivamente, do
85

ponto de vista projetual/metodológico, apontem estudos sobre o pertencimento,


psicologia e uso, a torná-los agradável, aprazível, confortável, adequado e funcional para
a realização de atividades. Do ponto de vista da qualidade dos projetos e modelos
direcionados à construção destes ambientes, não há no Brasil homogeneidade e nem
sistematização pelo qual deveria passar os espaços de museus, com estudos e análises
vinculados ao pertencimento e uso. A dificuldade de aplicação de avaliações nesses
edifícios, por parte dos agentes envolvidos no uso e manutenção de tais espaços tem
refletido essa situação, valorizando principalmente as etapas iniciais de planejamento
administrativo, esquecendo-se do projeto arquitetônico e da avaliação do ambiente
construído de museus.
Nesse sentido, esta pesquisa tem como objetivo apresentar um estudo sobre o
pertencimento, o uso e o espaço museológico, delimitando o Museu Histórico na cidade
de Londrina – PR. O trabalho busca compreender de que forma a avaliação dos ambientes
pode ser um instrumento, ainda que preliminar, de mudança de paradigma na formatação
de projetos de museus para realização de suas tarefas. Fora isso, a pesquisa pretende
demonstrar não perguntas ou respostas do problema, mas sim estruturar o debate acerca
da construção de um conjunto de indicativos no contexto da ação interativa entre os
ambientes museológicos e o pertencimento das pessoas.

2 REVISÃO TEÓRICA

2.1 A Importância dos Museus


O museu, ao longo de sua trajetória sempre esteve atrelado à memória e ao patrimônio
cultural no contexto da sociedade. Esse processo se deu em variados períodos históricos,
graças às ações de seleção de objetos e obras que buscavam preservar determinados
valores e conceitos e, em muitos casos, vinculados ao poder das classes dominantes.
Como nos apresenta Magaldi (2010, p. 102), o espaço do museu, além de garantir a guarda
de uma parcela material móvel da produção cultural da humanidade, dedica esforços no
estudo, na conservação, na documentação e na exibição de testemunhos dos homens e
evidencias do meio ambiente.
No estudo da importância dos museus, destaca-se a visão de vários autores na necessidade
da existência desses locais de memória e informação, entendidos como canais de
comunicação e polos de transferência de conhecimento. Smit (2000, p.130) os
denominam instituições disponibilizadores de cultura e informação; segundo dois autores
da área, Ricci (2004, p.85) e Bearman (1994, p.156), os locais de memória são
repositórios culturais, responsáveis pela preservação do patrimônio histórico e cultural,
86

valorizando qualquer tipo de vestígio do passado; finalmente, Rodrigues (2000, p. 144)


enfatiza que as instituições que tratam e disseminam a memória devem estar preparadas
para gerir de forma responsável os conteúdos informacionais, permitindo que seja
preservada e se torne instrumento de reflexão crítica, pois o acesso à memória deve ser
direito de todo cidadão. Nesse sentido, pode-se reafirmar que os museus participam
ativamente na construção coletiva da memória e representam peça-chave no
desenvolvimento cultural da sociedade humana.
Na definição do papel do museu na sociedade, Loureiro et al (2008) ressalta o caráter
estratégico de sua atuação, reafirmando que esses espaços são considerados peças-chave
na construção de narrativas significantes. Segundo o autor, o processo é desencadeado
graças ao uso da cultura material, dos lugares de acumulação e da construção de sínteses,
permitindo que os contextos sócios históricos e ideológicos da formação de seus acervos
sejam conectados e reabsorvidos no âmbito das relações humanas. Entretanto, esse
processo só torna real se os objetos conquistam novas disposições, propriedades e
atributos, reformatados segundo um sistema preestabelecido de representações e aptos a
organizar narrativas e conjuntos discursivos. Portanto, nessa vertente, é preciso entender
que a construção da memória social, da identidade e do pertencimento é ratificada no
contexto do museu e implementada nos espaços expositivos e nas coleções por meio das
práticas dos vários grupos sociais.

2.2 Mediação Cultural no Contexto do Museu


Compreendendo o museu como espaço público e abrangente, o conceito de mediação
cultural tem conquistado nos últimos anos, especial atenção nas práticas e políticas que
almejam aproximar os indivíduos à arte e à cultura (QUINTELA, 2011, p.63) No caso da
mediação cultural, Pereira (2015, p.19) define que essa interferência deve produzir uma
interface positiva entre dois entes distintos, o público e objeto cultural, permitindo no
final do processo a apropriação e a atribuição de significados. Sua missão é assumir uma
ação educativa, mediando práticas que auxiliem a compreender criticamente o
patrimônio. Mais que isso, a mediação cultural atua como um espaço de intermédio,
fomentando a divulgação dos artefatos culturais e apropriando os estoques
informacionais.
Clarificando a relação entre museu e mediação cultural, Bernard Darras (2004, p.74)
estabelece um contraponto na definição de sua atuação, propondo quatro identidades: a
mediação do objeto cultural, as representações, as crenças e os conhecimentos. O autor
ressalta que o processo é consolidado por meio da interação entre os vários agentes e
marcado por um espaço de negociação, valores e emoções. Demais autores como Pratt
87

(1991) e Clifford (1997) acreditam que essas identidades acabam construindo importante
ação dialógica no espaço do museu, marcada por uma intervenção cultural que objetiva
construir uma ponte de diálogo entre o mediador e os usuários. Por meio de uma
abordagem comunicativa, essa definição de mediação cultural explora as potencialidades
inerentes do processo como o uso de comunicação/apresentação de performances e/ou
linguagens artísticas e culturais, oferecendo possibilidades de conhecimento e contato in
loco de manifestações artísticas, e, ainda, o acesso a outras possibilidades de informação
cultural.
Especialmente no âmbito dos museus, o mediador desempenha papel fundamental como
o terceiro elemento que facilita as questões e as respostas relevantes aos usuários.
Analisando e qualificando a recepção dos produtos do museu, os mediadores dialogam
com o intuito de torná-los disponíveis os recursos informacionais, contribuindo com
novas produções de conhecimento e cultura. Sobre isso, Lamizet, (1998) declara:
Favorecer o encontro entre as obras e o público e trabalham, em parte ou
totalmente, ao contato deste público. Numa biblioteca, num museu, numa sala de
concerto ou numa galeria de arte, o mediador cultural trabalha sempre em
cooperação com uma equipe. Do seu sentido do contato e suas competências
pedagógicas depende o sucesso das ações que leva a cabo. (Lamizet, 1998. p.9).
No campo na mediação cultural, museus devem estar empenhados em resgatar ações
culturais, fortalecendo identidades culturais em diferentes formas de expressão artística
local, regional, nacional e internacional. Cabe lembrar ainda que, os espaços de museus
que incorporam a mediação cultural, geralmente priorizam ações extramuros,
promovendo uma gama de atividades culturais, no âmbito da informação e cultura, para
um grupo de usuários bem mais amplo e diversificado, tanto de comunidades locais
quanto em parcerias com outras instituições. Nesse sentido, Souza e Santos (2012) afirma
que está diversidade na mediação cultural, entretanto, não invalida o caráter tradicional
expositivo do museu, pois permite que profissionais da área de Ciência da Informação
façam a intermediação da cultura e do patrimônio, a fim de que seu conhecimento
profissional seja instrumento válido para seus usuários.

2.3 Mediação da Informação, Pertencimento e o Ambiente do Museu


Igualmente importantes são as questões relacionadas à mediação da informação,
pertencimento e ambiente museológico, especialmente na própria concepção dos projetos
destes espaços. Se o ambiente é restrito, apertado e pequeno, a percepção que se tem desse
local modifica os modos de uso e as formas de pertencimento e mediação da informação.
88

Sob a ótica da psicologia ambiental e da arquitetura, os cuidados projetuais no contexto


dos museus visam criar um espaço cenográfico interativo, em que o usuário não somente
“visite” os acervos e as atividades desenvolvidas, mas também participe dos ambientes,
envolvido em uma “aura” de mediação e pertencimento. Sob este aspecto, os ambientes
são apresentados como um código a ser apreendido pelo usuário, sempre deduzido pela
sua própria experiência psicológica e, consequentemente, construído a partir de um
espaço significante que, ao ser articulado com o seu significado, estabelece uma relação
de uso que lhe é própria. Esses espaços optam em oferecer espaços abertos, flexíveis e
fluídos, geralmente produzem ambientes que assumem francamente uma reciprocidade
de mediação positiva entre o usuário e o espaço. Destaca-se nestes casos, a adoção de um
modelo de partido arquitetônico pautado pelo binômio “espaço vivo-diversificado”,
expressão definida por Jacobs (2003) como aquela revestida de particularidades e
singularidades, pronto para estabelecer identidades e experiências íntimas e duradouras
entre pessoa-ambiente no dia-a-dia.
Internamente, nos ambientes de museus que procuram fortalecer a mediação e
pertencimento, os espaços são concebidos em planta livre ou de “não parede”, formatando
a possibilidade de transparência e flexibilidade em todo o contexto espacial. Os locais de
atendimento ao público e que engloba o fornecimento e a prestação de serviço de
informação, devem ser projetados em uma concepção flexível baseado no princípio de
que a fluidez do espaço e os elementos para o ambiente construído estão atrelados sempre
a um vocabulário projetual que garante o significado ora objetivo, ora subjetivo
(BORTOLIN & GOMES, 2017). Esses conceitos de fluidez são rebatidos na relação entre
o espaço interno e o externo, nas aberturas de janelas e nos panos de vidro presentes nos
edifícios. Além de fazer cumprir a função de iluminação e ventilação, este sistema permite
dar qualidade aos espaços destinados aos usuários/leitores e os eixos de ligação entre os
vários ambientes.
Ao buscar um conceito para o sentimento de pertença no âmbito desta pesquisa,
apropriou-se do pensamento de Freitas (2008, p.43), quando sumariza o pensamento de
Valle (2002) da seguinte forma:
[...] pode ser definido como os laços que prendem o sujeito ao modo de ser, aos
comportamentos e estilos de um grupo ou comunidade do qual se torne membro,
fazendo com que ele se sinta e aja como participante pleno, sobretudo no que diz
respeito aos papéis sociais, às normas e valores.

O sentimento de pertença pode ser flutuante, variando no decorrer da vida, por exemplo,
o sentimento de pertença não é o mesmo do início da carreira profissional comparado
89

com o seu final. Porém, deve ser discutido e vivido desde a mais tenra idade para que as
diferentes situações sociais, econômicas, raciais, culturais não intensifiquem “[...]
semelhanças e diferenças entre os indivíduos e produzem, ao mesmo tempo, sentimentos
de pertença a determinados grupos, bem como discriminações e exclusão de outros.”
(TAVARES, 2015, p.193).

As pesquisas têm provado que, os desajustes projetuais presentes em museus,


relacionados aos elementos funcionais e dimensionais interferem negativamente no
sentimento de pertencimento e uso do espaço. Essa percepção revela uma imagem
distorcida e negativa perante a comunidade local, entendendo que os museus não são a
extensão do usuário, nem parte de sua individualidade, escolhas e valores. Em muitos
casos, percebe-se que esses espaços não têm assumido o papel de locais de memória,
canais de comunicação e polos de transferência de conhecimento na área do patrimônio,
deixando de lado o pertencimento e a própria imagem positiva do edifício em relação ao
usuário. As soluções projetuais adotadas, em função das relações estabelecidas entre o
edifício e o usuário, desenvolvem-se a partir do “esquecimento” dos conceitos de
pertencimento, uso, acessibilidade e ambiência arquitetônica, acarretando consequências
diversas como a falta de manutenção dos espaços internos e externos, visão passiva em
relação aos acervos e uma postura pouco participativa nas atividades desenvolvidas.
Muitos destes problemas contribuem negativamente no uso e apropriação dos espaços e
na satisfação dos usuários. Vale lembrar que, se ajustado corretamente, o projeto
arquitetônico é capaz de estimular a utilização destes ambientes, transformando em locais
mais atrativos para seus usuários, colaborando para uma vinculação afetiva e de
pertencimento (GOMES, 2017).

3 OBJETO DA PESQUISA: O MUSEU HISTÓRICO DE LONDRINA

No ano de 1970, o Museu Histórico de Londrina inaugura suas atividades na antiga


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Londrina e, posteriormente, em 1974, o
espaço é incorporado à Universidade Estadual de Londrina, inserido no Centro de Letras
e Ciências Humanas. No processo de elaboração do acervo, professores e alunos
iniciaram junto à sociedade londrinense a coleta de objetos, peças e materiais documentais
vinculados à história da cidade. Inicialmente, no processo de constituição do acervo,
predominou a temática associada aos pioneiros da colonização, bem como os
desdobramentos da atuação da Companhia de Terras no Norte do Paraná.
90

Figura 1. Fachada principal do Museu Histórico de Londrina (Gomes, 2018)

Dentre as principais atividades desenvolvidas no museu, destacam-se as ações de resgate,


divulgação e preservação do patrimônio cultural de Londrina e região, com o objetivo
principal de clarificar a trajetória histórica no contexto da sociedade. O museu procura
dar suporte ao ensino, pesquisa e extensão, promovendo e incentivando a disposição de
atividades culturais, além de manter o contato com entidades e órgãos afins no setor
cultural e artístico. Vale lembrar ainda que, o Museu Histórico de Londrina têm
contribuído para o fortalecimento da identidade cultural pelo estímulo e a divulgação de
diferentes formas de expressão artística local e regional, nacional.
Em termos espaciais, o edifício contempla os seguintes espaços e atividades: (a) Galeria
Histórica, corresponde aos setores temáticos que apresentam os principais fatos
históricos e acontecimentos marcantes da cidade; (b) Setor de Exposição Permanente,
apresenta os temas da colonização e das transformações urbanas da cidade de Londrina,
com destaque para uma série de cenários; (c) Galeria de Exposições Temporárias,
contêm ambientes conectados, local que recebe uma série de mostras com temáticas
variadas; (d) Biblioteca, com atendimento aos usuários e acervo de documentos textuais,
mapas, plantas, microfilmes, periódicos, monografias, depoimentos; (e) Setor de
Imagem e Som, fotografias, slides, filmes, quadros, discos, fitas K-7 e Vídeo; (f) Setor
da Reserva Técnica, que armazena todo o acervo não exposto.
91

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa objetivou conhecer de que forma o pertencimento e o uso são praticados no


contexto dos funcionários e usuários do Museu Histórico de Londrina, investigando os
aspectos relativos à funcionalidade espacial, os conceitos de ocupação dos componentes
do layout (tipos de uso), especialmente avaliando os seguintes elementos funcionais:
dimensionamentos mínimos, iluminação, flexibilidade, circulações, programa
arquitetônico, comunicação visual e ergonomia. Para isso, realizou-se uma abordagem
qualitativa que visou trabalhar com os valores, hábitos, crenças, representações e opiniões
dos usuários, executando assim uma abordagem interpretativa na composição de um
contexto no qual se inseriu o fenômeno estudado (MINAYO, 2002). Ao final, o trabalho
procurou estruturar uma proposta acerca da construção de um conjunto de indicativos no
contexto da ação interativa entre os ambientes museológicos, o pertencimento das pessoas
e diretrizes projetuais.

4.1 Etapas Realizadas


No primeiro grupo de atividades, adotou-se a (1) Pesquisa de Campo como estratégia da
pesquisa (GIL, 2008). A proposta foi avaliar a situação do ambiente na realidade atual,
entendendo seus principais impactos no âmbito do pertencimento e uso. A Pesquisa de
Campo foi associada à necessidade de estabelecer um diálogo com a realidade a qual se
pretendia averiguar, possibilitando a constante interlocução de ideias e críticas no
processo de análise. Baseados nisso, Roméro & Ornstein (2003) recomendam para que
haja confiabilidade nos levantamentos é necessário obter o cadastro atualizado do edifício
em estudo e que contenha a divisão espacial na data do levantamento. Nesta fase,
identificou-se em linhas gerais, como os espaços se organizavam fisicamente, sob que
tipo de partido arquitetônico estava estruturado a edificação e sob que conceitos de
ocupação dos diversos componentes do layout (tipos de uso). Desta forma, o
procedimento de observação incluiu a análise dos interiores do edifício escolhido e, em
seguida, recolhimento de dados e informações mais detalhadas. Além disso, o contato
com usuários-chave teve a finalidade de ter uma percepção geral dos problemas mais
importantes ou os pontos mais positivos e negativos em relação ao ambiente construído.
Para a Pesquisa de Campo no Museu Histórico de Londrina foram utilizados outros
instrumentos de coletas de dados, como a Vistoria Técnica (Walkthrough)1 e a técnica ‘as
1Foram realizadas quatro (4) visitas exploratórias em cada edifício. Nas vistorias, o prédio foi percorrido em toda a sua
extensão, respeitando-se as restrições de acesso; durante todo o processo de visitas, houve o acompanhamento de
pessoal técnico.
92

built’2, cujo o objetivo foi realizar visitas exploratórias no edifício analisado, levando em
conta os aspectos dimensionais, funcionais e subjetivos (ORNSTEIN, 1997; PREISER,
1998; SANOFF, 2001; FEDERAL FACILITIES COUNCIL, 2001).
Na segunda etapa da pesquisa utilizou-se a (2) Entrevista Narrativa, tendo como
proposta estabelecer uma conversa amigável e interativa com os mediadores/funcionários
do museu, buscando levantar dados úteis na análise qualitativa. É um meio comumente
utilizado em pesquisa de campo e com ela o pesquisador busca obter informações na fala
dos atores (CRUZ NETO, 1998). Neste caso, pretendeu-se empregar uma conversa
franca e neutra para extrair da fala dos entrevistados uma determinada realidade
reveladora. Objetivo foi abrir caminho para o diálogo para, em seguida, perguntar sobre
a relação com usuários, as questões relacionadas ao pertencimento e uso, bem como
compreender de que forma os agentes mediadores percebem as questões espaciais do
museu, as disposições dos ambientes e a observação sensível no contexto dos usuários.
Para o processo das entrevistas foi estabelecido o procedimento comum de perguntar se
o entrevistado autorizava o uso do gravador para registro e, na sequência, a análise dos
dados gravados. Para esta pesquisa, foram escolhidos três mediadores no contexto do
museu, sendo o Mediador 1 (M1), arquivista da Área de Objetos, a Mediadora 2 (M2),
arquivista do Setor de Imagem e Som e a Mediadora 3 (M3), bibliotecária do Setor de
Biblioteca. Na formatação desta técnica da entrevista, utilizaram-se os preceitos definidos
por Lage (2001 citado por BELEI et al., 2008, p. 190). Outra técnica utilizada foi o uso
de (3) Grupos focais com usuários tendo o objetivo de reunir pessoas-chave que utilizam
os espaços, para provocar discussões e debates em torno dos aspectos positivos e
negativos em questão do uso e pertencimento. Para se executar a dinâmica dos grupos
focais, foi importante ter em mãos um roteiro básico de perguntas previamente
elaboradas. No total foram executados cinco grupos focais com um total de 55 pessoas.
A terceira etapa concentrou em (4) Analisar os Fatores Funcionais presentes nos
espaços do Museu Histórico de Londrina. Este recurso teve como foco as atualizações
cadastrais das plantas dos ambientes, no levantamento do mobiliário básico, além de
executar visitas exploratórias, visando a obter informações in loco das condições
espaciais e problemas técnico-construtivos visíveis a olho nu. Esses procedimentos foram
complementados com entrevistas com os arquitetos autores do projeto arquitetônico de
reforma do Museu Histórico de Londrina, envolvidos nas etapas de produção e uso do
edifício, no sentido de complementar as informações colhidas (BECHTEL, 1987;
2 O termo ‘as built’ na área da arquitetura designa ‘como construído’ tem a função de indicar as medidas reais
executadas na obra. As atividades se direcionam para a execução do completo levantamento de todos os ambientes do
edifício analisado, à época da pesquisa.
93

PREISER, 1988, 1989; ORNSTEIN & ROMÉRO, 1992; ORNSTEIN, 2003; PREISER;
VISCHER, 2005; VOORDT; WEGEN, 2005; ZEISEL, 2006; entre outros). Entendendo
melhor a abrangência destas análises relacionadas aos fatores físicos no processo de
avaliação dos ambientes selecionados, estes atuaram em dois níveis, conforme Ornstein
& Roméro (1992): na Macroescala, que analisa o edifício como um todo, na Microescala,
analisa os espaços de forma individual e equipamentos, que analisa mobiliário (fixos ou
móveis) e fatores de ergonomia. No estudo de caso proposto, o levantamento Macro
abrangeu os tópicos que são relacionados dentro de um contexto de visão geral da
edificação, ou seja, referenda não uma análise individual das partes, mas sim uma
perspectiva global de elementos que se inter-relacionam. Nessa visão, alguns elementos
são comuns e interferem em todo o conjunto do edifício, provocando em certas situações,
alterações positivas ou negativas no ambiente construído. Nessa fase da pesquisa, os
trabalhos foram direcionados para as análises e as avaliações das variáveis funcionais,
principalmente, nos elementos que apoiam as atividades dos usuários no âmbito do
pertencimento e o uso praticado no Museu Histórico de Londrina. Preiser (1998) reforça
que esta análise auxilia no entendimento dos fatores espaciais e técnicos que interferem
negativamente no sentimento de pertencimento e uso do lugar. Neste estudo de caso, os
fatores funcionais fixados foram os dimensionamentos mínimos, Iluminação, a
flexibilidade; as circulações; o programa arquitetônico; a comunicação visual e a
ergonomia.
Cumpridas as etapas descritas anteriormente, o próximo passo foi executar a (5)
Tabulação dos Dados e Análise, feita a partir da sistematização das informações
recolhidas. Especificamente para a análise dos dados, a pesquisa adotou uma Matriz de
Observação definida por Aires (2011) como aquela centrada em contextos de avaliações
vinculados à dimensão do pertencimento e uso. Quanto ao uso de Matriz de Observação,
Oliveira (2015) declara que tal ferramenta de análise não é uma novidade, sendo utilizada
já a alguns anos na área das Ciências Humanas. Dentre elas destacam-se Antúnez del
Cerro (2008); Berciano & Calaf (2013); Hage, Pereira & Zorzi (2012); Hein,1994; Pêgo
& Mouraz (2011); Reis (2010); Suárez & Maroto (2013). A utilização desta metodologia
almejou também a busca pela síntese e pela construção de uma comunicação mais fluída
entre os agentes envolvidos no processo de análise e encaminhamento de possíveis
conclusões.
94

5 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A pesquisa objetivou conhecer de que forma o pertencimento e o uso são praticados no


contexto dos funcionários e usuários do Museu.. A pesquisa demostrou que dar respostas
às novas perspectivas de estudo sobre o pertencimento, o uso e o espaço museológico,
engloba outros olhares das áreas da Ciência da Informação, Psicologia Ambiental e
Arquitetura, compreendendo a construção de análises do ambiente construído, além de
propor recomendações ligadas às questões funcionais e comportamentais dos projetos de
museus. Visto sob este aspecto, o estudo traçou um caminho pautado pela discussão do
pertencimento e o uso, sob o ponto de vista de seus principais conceitos e definições,
entendendo os significados da territorialidade e interferência no espaço arquitetônico.
Vale destacar também que, as estratégias da pesquisa procuraram estabelecer um estudo
prospectivo sobre a situação do estudo de caso, entendendo seus principais impactos no
âmbito do pertencimento e uso, além de fixar o conceito de conexão entre outras áreas do
conhecimento.
As análises e as avaliações efetuadas no Museu Histórico de Londrina quanto ao espaço,
pertencimento e uso, permitiram constatar duas realidades relevantes e distintas: a
primeira, os espaços da Biblioteca, as áreas de Exposição Permanente e Provisória, o
Setor de Imagem e Som e as Áreas Administrativas, do museu estão adequados, provando
que o desenho dos ambientes e os elementos do partido arquitetônico cooperam para que
o usuário se sinta pertencente às salas, e em constante motivação em se apropriar das
atividades exercidas nelas. Nas avaliações executadas, essas realidades estão presentes
como locais agradáveis, aprazíveis, confortáveis, funcionais e adequados para a
realização de visitas e pesquisas. Como apresentado anteriormente, as soluções projetuais
adotadas no museu, em função das relações estabelecidas entre o edifício e o usuário,
desenvolvem-se a partir de conceitos de pertencimento, uso, acessibilidade e ambiência
arquitetônica, acarretando consequências relevantes como a presença de espaços
coletivos e visão ativa em relação aos acervos. Visto sob o ponto de vista da mediação,
pertencimento e o ambiente, os espaços expressam um forte sentido de atração, se
comparado aos outros ambientes. Como exemplo disso, verifica-se a imposição de um
pé-direito elevado, o posicionamento de uma iluminação especial, um mobiliário
específico e a utilização de materiais que expressam acolhimento. Em decorrência desses
fatos, a característica na concepção arquitetônica dos ambientes destinados à função
museal e a ambiência espacial vem atrelada ao conceito de flexibilidade espacial,
principalmente, verificado pelo emprego do mobiliário específico e divisórias removíeis.
De certa forma, a própria relação entre pertencimento e usuário é reforçada na medida em
95

que coloca o usuário junto a uma atmosfera apropriada de apropriação, uso e transmissão
de conhecimento.
A segunda realidade encontrada, diz respeito aos elementos funcionais e dimensionais
que interferem negativamente no sentimento de pertencimento e uso do lugar no estudo
de caso. As avaliações confirmaram a necessidade de propiciar adequação e melhorias
espaciais, e assim, melhorar a apropriação e o uso do espaço confortavelmente. As
melhorias englobam a Reserva Técnica e o Setor Externo de Exposição do museu, com a
necessidade de intervenção moldada por um rigoroso equilíbrio entre o atendimento às
novas necessidades funcionais e o respeito aos valores do monumento, ressaltando
inclusive sua relação com o contexto cultural, social e urbano. No caso da Reserva
Técnica, o espaço necessitaria de um projeto adequado de iluminação, bem como,
aberturas que propiciem à entrada de luz natural, atendendo desta forma, às necessidades
de conforto visual e técnico. Neste caso, a proposta seria buscar responder de forma
integrada às práticas informacionais e educacionais, bem como às necessidades de uso e
valores de pertencimento no âmbito do Museu Histórico de Londrina. Nesse sentido, esta
segunda realidade encontrada provou que, os desajustes projetuais presentes na Reserva
Técnica, relacionados aos elementos funcionais e dimensionais interfere negativamente
no sentimento de pertencimento e uso do lugar. Mesmo apresentando restrições e
padronizações oferecidas, observa-se que é possível implementar experiências
significativas técnicas dos problemas relacionados ao pertencimento, relacionado a
mediação informacional neste ambiente.
No Setor Externo de Exposição do museu algumas das diculdades encontradas referem-
se à intrínseca relação entre o modelo espacial adotado e as atividades desenvolvidas. A
própria configuração arquitetônica do setor, projetado inicialmente para atender às
necessidades de um espaço com poucas demandas de usos e equipamentos ou sem os
sistemas de redes elétricas e iluminação requerida para dar suporte às atividades. Muitos
dos problemas enfrentados hoje estão relacionados à ineficiência no uso do espaço, por
exemplo, áreas reduzidas, a má distribuição e o pouco espaço de circulação demonstram
tanto o desequilibrio na organização dos tipos de uso quanto a dificuldade de prover o
acesso aos serviços. Em decorrência desse fato, a percepção do usuário no tocante aos
espaços que lhe são ofertados é extremamente prejudicada, reforçando idéia de que a
adoção de ambientes mais flúidos, flexíveis e espaçosos, poderiam representar uma das
principais prerrogativas a serem utilizadas. Com relação a isso, vários entrevistados
relataram a preferência que tem em destinar ao setor, projetos que garantem boas
condições ambientais para que os usuários desempenhem melhor suas atividades,
sentindo-se mais adaptados às condições espaciais. Conclui-se que é urgente a
96

averiguação da freqüência, da utilização e uso do espaço, com o objetivo de planejar um


possível aumento ou a proposta da construção de um novo setor.
Quanto à análise das questões espaciais e os programas culturais e educacionais
implementados e que contam com a participação efetiva de escolas e entidades da cidade
de Londrina, identifica-se que o museu necessita ajustar melhor a estrutura envolvida e
os recursos disponibilizados. Vale recordar que, mesmo diante de dificuldades inerentes
da escassez financeira, o museu é uma conexão relevante entre o estudante, o
conhecimento e o acervo, valorizando o diálogo na troca de experiências entre os
usuários, por meio do debate e da interação. Fora isso, foi possível constatar que os
mediadores estão preparados em adaptar o discurso ao perfil dos usuários, bem como
resolver problemas das instalações, deixando confortáveis os ambientes e sempre os
motivando para as visitas. Apesar disto, os mesmos reconhecem igualmente que
mudanças devem ser executadas para resolver problemas estruturais que afetam o rol de
programas culturais e educacionais como, por exemplo: (a) redirecionamento da estrutura
administrativa da universidade buscando atender as políticas culturais e educacionais do
museu; (b) resolver a falta de verba relacionada ao descaso do Estado no tocante ao
atendimento das necessidades; (c) restabelecer a autonomia do museu com o objetivo de
tomar decisões quanto às caraterísticas da programação; (d) reestruturar uma perspectiva
de avaliação por parte dos usuários com vistas à uma participação ativa; (e) propor um
novo projeto arquitetônico adaptando suas instalações às novas e constantes demandas
dos programas culturais.
Finalmente, os mecanismos digitais causaram profundo impacto no espaço do museu e,
de certa forma, a direção passou a observar com cuidado o que deveria ser feito para
adaptar suas instalações às novas e constantes demandas. Esse fato se deve,
principalmente, porque a direção geral da instituição compreendeu a necessidade urgente
de se estabelecerem a rede de informações digitais, políticas de inclusão digital e
modernos programas informacionais, não só aplicados aos acervos disponíveis e
mediadores, mas também em todos os setores das operações administrativas. Neste
sentido, o pertencimento e o uso do espaço no museu, aparado pelas novas tecnologias
começou a experimentar alguns desafios. O primeiro relaciona-se com a própria
configuração arquitetônica da edificação, projetada inicialmente para atender às
necessidades de um espaço com poucos equipamentos. O segundo desafio é que essas
instalações foram projetadas para serem utilizadas com padrões informáticos reduzidos,
sem grandes alterações. Além disso, os ambientes disponíveis são insuficientes para
abrigar os novos microcomputadores ou terminais necessários à automatização do
catálogo ou o oferecimento de serviços informacionais. Em vista disso, recomenda-se a
97

importância na estruturação de um novo conceito de ambiente do museu no âmbito das


tecnologias digitais, dotando-o de todas as facilidades mediadoras decorrentes da
implantação dos equipamentos de informática e dos sofisticados sistemas de comunicação
(local e à distância) e preocupando-se com a adequação do mobiliário destinado às novas
tecnologias informacionais e comunicacionais. Por exemplo, o museu poderia agregar
uma mediação maior, voltado especificamente ao atendimento do usuário, concernente às
atividades de consulta à base de dados do acervo, informações cadastrais e apoio às
informações acadêmicas, além de prestar serviços de comutação de livros, pesquisa
bibliográfica, pesquisa de material digitalizado (periódicos e e-books) e agendamentos
prévios dos espaços da biblioteca. Nesse sentido, o museu poderia caminhar então, para
transformar-se em um ponto de acesso facilitado por meio de seus mediadores, passando
a funcionar não só como um local de exposições, mas também com um local de eventos
culturais, prestação de serviços e acesso à rede de informação e pesquisa.

6 CONCLUSÕES

Em vista disso das experiências e as lições aprendidas durante todas essas análises não se
limitam somente ao caso analisado, mas podem servir como insumos para novas
pesquisas na área do pertencimento, uso e espaço museológico. Portanto, a partir dos
elementos apresentados anteriormente, é possível propor algumas direções sobre o tema
como:
 Muitos dos problemas enfrentados hoje na área de museus estão relacionados à
ineficiência no uso do espaço arquitetônico, reafirmando cada vez mais a
necessidade de se criarem diretrizes projetuais eficientes ligadas às questões
funcionais e comportamentais, a partir do conhecimento produzido desses
ambientes e com a participação direta dos usuários nas decisões, formatando
ambientes mais agradáveis e funcionais para realização de suas tarefas;
 No âmbito das avaliações dos ambientes museológicos é urgente a produção de
trabalhos destinados a investigar os aspectos relativos aos desajustes projetuais
presentes, elementos funcionais e dimensionais que interfere negativamente no
sentimento de pertencimento e uso do lugar. Essas pesquisas tem o objetivo de
estabelecer elementos de análises e recomendações, formatando um documento
de planejamento para futuros projetos;
 A operação de estudos pode aprofundar um plano de ação na busca do controle de
qualidade da construção desses edifícios e definir critérios mais precisos de
desempenho do ambiente construído, além de colaborar significativamente na
98

instrumentação necessária para realimentação no processo de produção e uso de


futuros ambientes de museus;
 A realização de pesquisas que possam verificar as funções mediadoras dos
espaços museológicos, por serem considerados espaços de encontro e de troca de
experiências entre os usuários, investigando de que maneira os museus têm
desempenhado seu papel de colaborador não só como um local de exposições,
mas também com um local de eventos culturais, prestação de serviços e
preservação da cultura e memória;
A análise do pertencimento e uso na pesquisa objetivou demonstrar não perguntas ou
respostas do problema, mas sim estruturar o debate acerca da construção de um conjunto
de indicativos no contexto da ação interativa entre os ambientes de museus e o
pertencimento das pessoas. No Brasil, existem poucas pesquisas até o momento que
aprofundem as questões relacionadas ao estudo das variantes projetuais, mediando a
percepção, a avaliação e as atitudes do indivíduo frente aos ambientes museológicos. A
realização de futuros estudos, a partir do conhecimento produzido desses ambientes e com
a participação direta dos usuários nas decisões, pode ser um instrumento, ainda que
preliminar, de mudança de paradigma na formatação de ambientes de museus mais
agradáveis e funcionais para realização de suas tarefas. Este processo de mudança, porém,
não exime a participação direta tanto de projetistas quanto de profissionais ligados à área
da Arquitetura, Ciência Informação e Psicologia Ambiental evidenciando ideias e
objetivos que se desejam alcançar e quais as noções que devem embasar o projeto de
ambientes de museus, os equipamentos e os serviços adequados desses edifícios.

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AGRADECIMENTOS

O autor agradece ao Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES), pelo financiamento da


pesquisa. Ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI/UEL) de Londrina, pelo
apoio na realização do trabalho.

AUTOR

Samir Hernandes Tenório Gomes: Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UEL -
Universidade Estadual de Londrina, mestrado em Ciência da Informação pela UNESP - Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela USP - Universidade
de São Paulo e Pós-Doutorado pela UEL. Atualmente é professor pela Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação UNESP de Bauru ministrando as disciplinas de Projeto Arquitetônico no LAUP ?
Laboratório de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo, Arquitetura de Interiores e Orientação em Trabalho
Final de Graduação. Atua no Núcleo de Pesquisa GA da UNESP e no Laboratório Americano de Paisajes
de la Producción de Sevilha, desenvolvendo trabalhos de cooperação com diversos pesquisadores
brasileiros e estrangeiros, e apoio da FAPESP e outros órgãos de fomento. Faz parte do CICOP/Brasil -
Centro Internacional para a Conservação do Patrimônio, atendendo diversas entidades públicas e privadas
na elaboração, implantação e gestão de projetos voltados ao patrimônio cultural, histórico, artístico,
arquitetônico e natural, além da criação de metodologias, estudos e pesquisas relacionadas.Tem experiência
nas seguintes áreas: Arquitetura de Bibliotecas, Metodologia do Projeto de Arquitetura e Urbanismo,
Avaliação Pós-Ocupação, Novas Tecnologias Informacionais e Arquitetura e Patrimônio Industrial
Ferroviário. Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/8590593192511279
103

Modelo de Ficha de Inventário do Patrimônio Ferroviário


Necessários para o Tombamento e Projetos de
Intervenção
104

Rosio Fernández Baca Salcedo

RESUMO: Diante da ameaça da degradação, Model of The Inventory of Trhe


descaracterização e destruição do patrimônio Architectural Heritage of Railway
arquitetônico ferroviário, pelas ações do tempo, da Necessary for The Tipping and
natureza e do homem, surge o inventário enquanto
instrumento técnico administrativo, fundamental
Intervention Projects
para documentar, registrar, e subsidiar o
tombamento, os projetos de restauração e ABSTRACT: In the face of the threat of
reabilitação do patrimônio, além da deliberação dos degradation, decharacterization and destruction of
projetos submetidos as Instituições de preservação the railway architectural heritage, by the actions of
do patrimônio cultural. Este texto apresenta a time, nature and man, the inventory emerges as an
noção de inventário evoluindo através do administrative technical instrument, fundamental
pensamento sobre o patrimônio arquitetônico for documenting, recording and subsidizing the
expresso nas Cartas Patrimoniais. Estabelece a tipping, restoration and rehabilitation projects of
proposta de uma ficha de inventário para o the patrimony, besides the deliberation of the
patrimônio arquitetônico ferroviário com base nas projects submitted to the Institutions of
cartas patrimoniais e nas fichas de inventário, preservation of the cultural patrimony. This text
formuladas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e presents the notion of inventory evolving through
Artístico Nacional (IPHAN) e o Conselho de Defesa the thinking about the architectural patrimony
do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e expressed in the Patrimonial Letters. It establishes
Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT). the proposal of an inventory form for the
architectural patrimony of the railroad, based on
the patrimonial letters and the inventory forms,
formulated by the National Historical and Artistic
Heritage Institute (IPHAN) and the Council for the
Defense of Historical, Artistic, Archaeological and
Tourist Patrimony of the State of São Paulo
(CONDEPHAAT).

Palavras-chave: inventário, patrimônio Keywords: inventory, railway architectural


arquitetônico ferroviário, tombamento heritage, protection
105

1 INTRODUÇÃO

Os tombamentos da arquitetura, dos espaços públicos, dos conjuntos históricos e urbanos


sem prévio inventário ou com precárias informações sobre o bem cultural podem levar a
configurar regulamentações gerais e induzir ao erro nas deliberações dos projetos de
106

intervenção quando submetidos a aprovação das instituições de preservação do


patrimônio cultural.

Diante disto, o inventário enquanto instrumento técnico administrativo auxiliando no


tombamento e nos projetos para a salvaguarda do patrimônio cultural, será ação de
responsabilidade das instituições de preservação do patrimônio, nas escalas internacional,
nacional, estadual e municipal. Portanto, o inventário deveria tornar-se ação prioritária
nos processos de tombamento. Neste contexto, cabe saber, qual seria a importância do
inventário e quais informações do bem são necessárias para constar em fichas de
inventário?

O inventário surge sendo instrumento para as ações de proteção, conservação,


preservação, restauração, reabilitação, valorização e gestão do patrimônio. Segundo
Trinmiño (1977), o inventário seria o registro de bens pertencentes a uma pessoa ou
comunidade realizado com ordem e distinção. Miranda (2008) todavia, ressalta o
inventário consistir:

na identificação e registro por meio de pesquisa e levantamento das características


e particularidades de determinado bem, adotando-se, para sua execução, critérios
técnicos objetivos e fundamentados de natureza histórica, artística, arquitetônica,
sociológica, paisagística e antropológica, entre outros (MIRANDA, 2008).
Os inventários correspondem às pesquisas realizadas nos arquivos, jornais, livros,
periódicos, “in situ” e são registrados em fichas onde constam a descrição do bem
cultural, as informações básicas que identificadoras do bem, sua importância histórica,
artística, arquitetônica e cultural; características físicas, estado de conservação e de
preservação, além do material iconográfico, entre outros.
Diante da vulnerabilidade das edificações sujeitas à ação do tempo, da própria Natureza,
especulação imobiliária e de reformas realizadas pelos proprietários podendo levar à sua
degradação, descaracterização e mesmo destruição. Diante da inexistência de bases
documentais e estudos evidenciando a importância do patrimônio imóvel o estudo
apresenta a proposta da “ficha de inventário” para o patrimônio arquitetônico ferroviário,
com base nas cartas patrimoniais e fichas de inventário formuladas pelos órgãos de
preservação do patrimônio cultural para melhor subsidiar os tombamentos e as
intervenções de restauração, reabilitação, entre outros.

2 INVENTÁRIO E AS CARTAS PATRIMONIAIS


107

Para conhecer quais informações do bem são necessárias para constar nas fichas de
inventário recorreremos às Cartas Patrimoniais.
A noção de inventário nasce juntamente com a do patrimônio, desde simples cadastro
para a classificação das edificações até a captura de suas características, tornando-se um
valioso instrumento para a salvaguarda do patrimônio (LUCKOW, 2010).
A abrangência das informações contidas nos inventários acompanha as recomendações
das Cartas Patrimoniais sobre a documentação, registro, inventário, contidas nos
conceitos e teorias sobre a salvaguarda do patrimônio arquitetônico, surgido ao longo do
tempo e levam a entender o patrimônio sendo expressão das manifestações arquitetônicas,
urbanas, sociais, econômicas, tecnológicas e culturais de uma formação social num
determinado período histórico.
A Carta de Atenas de 1931 (SOCIEDADE DAS NAÇÕES apud CURY, 2004, p. 17)
recomenda: “cada Estado ou as instituições criadas ou reconhecidamente competentes
para este trabalho, publique um inventário dos monumentos históricos1 nacionais,
acompanhado de fotografias e de informações” e, assim, caberia às instituições
administrativas públicas nas instâncias: federal, estadual e municipal a elaboração de
inventários. Com relação à documentação, a Carta de Veneza (ICOMOS, 1964, apud
CURY, 2004) expressa:
os trabalhos de conservação, de restauração e de escavação serão sempre
acompanhados pela elaboração de uma documentação precisa, sob a forma de
relatórios analíticos e críticos, ilustrados com desenhos e fotografias [...]. Essa
documentação será depositada nos arquivos de um órgão público e posta a
disposição dos pesquisadores (ICOMOS, 1964, apud CURY, 2004, p. 95).
Deste modo, a ficha de inventário do patrimônio arquitetônico deveria abranger as
intervenções realizadas no edifício: levantamentos métricos e fotográficos, documentos a
serem salvaguardados em arquivos públicos e subsidiando as pesquisas.
Na Recomendação sobre medidas destinadas a proibir e impedir a exportação e a
transferência de propriedade ilícita de bens culturais (UNESCO, 1964, apud CURY,
2004, p. 100) recomenda-se a cada Estado estabelecer e aplicar procedimentos para a
1 Monumento histórico “compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá
testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Entende-
se não só as grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido com o tempo, uma significação
cultural” (ICOMOS; 1964 apud IPHAN, 2004, p. 92).
108

identificação dos bens culturais2 existentes em seu território e estabelecer um inventário


nacional destes bens. A identificação dos bens culturais existentes no território poderá
ser realizada por valores: arquitetônicos, urbanos, históricos, arqueológicos, culturais.
A UNESCO, através da Recomendação sobre a conservação dos bens culturais
ameaçados pela execução de obras públicas ou privadas (UNESCO, 1968, apud CURY,
2004), ressalta:
deveriam ser mantidos inventários atualizados dos bens culturais importantes
protegidos por lei ou não. No caso de não existirem esses inventários, seria preciso
criá-los, cabendo a prioridade um levantamento minucioso e completo dos bens
culturais situados em locais em que as obras públicas ou privadas os ameacem
(UNESCO, 1968, apud CURY, 2004, p.126).
Considerando o bem cultural não ser estático e estar condicionado às ações do tempo, da
Natureza e intervenções realizadas pelo homem podendo alterar a sua estrutura física,
torna-se fundamental a atualização constante do bem cultural através da documentação
histórica, iconográfica e métrica, além do estado de conservação e grau de preservação.
Diante da ameaça aos bens culturais, sua descaracterização ou sua destruição, há
permanência da proteção legal, sendo o inventário o instrumento básico para sua
salvaguarda, fiscalização, incentivos fiscais e inclusão no Plano Diretor da Cidade, entre
outros.
O Compromisso de Brasília (1970 apud CURY, 2004, p. 139) expressa caber “às
universidades o entrosamento com bibliotecas e arquivos públicos nacionais, estaduais e
municipais, cabendo aos arquivos eclesiásticos e de instituições de alta cultura, no sentido
de incentivar a pesquisa quanto à melhor elucidação do passado e à avaliação de
inventários dos bem regionais cuja defesa se propaga”. As pesquisas sobre a identificação,
documentação e inventários do patrimônio cultural realizadas nas universidades já
contribuíram para a defesa da salvaguarda, análise e proposta de inventários. O
Compromisso de Salvador, “II Encontro de governadores para preservação do patrimônio
histórico, artístico, arqueológico e natural”, realizado no Brasil (MINISTERIO DE
EDUCAÇÃO E CULTURA, 1971 apud CURY, 2004, p.145), recomenda a “adoção de
convênios entre o IPHAN e as universidades, com o objetivo de proceder ao inventário
sistemático dos bens de valor cultural, inclusive dos arquivos notariais”.

2“São considerados bens culturais os bens móveis e imóveis de grande importância para o patrimônio cultural de cada
país, tais como as obras de arte e de arquitetura, os manuscritos, os livros e outros bens de interesse artístico, histórico
ou arqueológico, os documentos etnológicos, os espécimens-tipo da flora e da fauna, as coleções científicas de livros e
arquivos, incluídos os arquivos musicais” (UNESCO, 1964 apud CURY, 2004),.
109

Ainda com relação à documentação do edifício, a Carta do Restauro, de 1972, recomenda:


A realização do projeto para a restauração de uma obra arquitetônica deverá ser
precedida de um exaustivo estudo sobre o monumento, elaborado de diversos
pontos de vista (que estabelecem a análise de sua posição no contexto territorial ou
no tecido urbano, dos aspectos tipológicos, das elevações e qualidades formais, dos
sistemas e caracteres construtivos, etc.), relativos a obra original, assim como aos
eventuais acréscimos ou modificações. Parte integrante desse estudo serão
pesquisas bibliográficas, iconográficas e arquivísticas, etc., para obter todos os dados
históricos possíveis. O projeto se baseará em uma completa observação gráfica e
fotográfica, interpretada também sob o aspecto metrológico, dos traçados
reguladores e dos sistemas proporcionais e compreenderá um cuidadoso estudo
específico para a verificação das condições de estabilidade. (GOVERNO DA ITÁLIA,
1972 apud CURY, 2004).
Por este ponto de vista, há necessidade de um estudo minuciosos do edifício com relação
ao contexto territorial ou tecido urbano, aos aspectos tipológicos, formais e sistemas
construtivos, relativos à construção original e as intervenções posteriores (acréscimos,
ampliação, restauração, reabilitação). Ressalta-se, ainda, a importância da documentação
histórica do edifício baseada em pesquisas bibliográficas, iconográficas e arquivísticas.
Para a documentação metrológica, a representação gráfica torna-se um instrumento
valioso na representação das características físicas da edificação (SALCEDO et al.,
2004).
A Declaração de Amsterdã (CONSELHO DA EUROPA, 1975 apud CURY, 2004)
relaciona o inventário da gestão e ressalta:
é conveniente organizar o inventário das construções, dos conjuntos arquitetônicos
e dos sítios, o que compreende a delimitação das zonas periféricas de proteção. Seria
desejável que esses inventários fossem largamente difundidos, notadamente entre
as autoridades regionais e locais, assim como entre os responsáveis pelo
planejamento físico-territorial e pelo plano urbano como um todo, a fim de chamar
sua atenção para as construções e zonas dignas de serem protegidas. Tal inventário
fornecerá uma base realista para a conservação, no que diz respeito ao elemento
qualitativo fundamental para a gestão dos espaços (CONSELHO DA EUROPA, 1975
apud CURY, 2004, p. 203).
O inventário deveria subsidiar na laboração das áreas de proteção do patrimônio
arquitetônico contidas no Plano Diretor da cidade, desde a delimitação das zonas de
proteção recomendadas pela Organização do Estados Americanos (1967 apud CURY,
2004): zona de proteção rigorosa à de maior densidade monumental ou ambiental; zona
de proteção ou respeito, com maior tolerância; zona de proteção da paisagem urbana,
110

procurando integrá-la com a natureza circundante; além dos usos do solo permitidos e
compatíveis com as estruturas físicas e tipologias do patrimônio, gabaritos de altura,
ambiência, volumes, densidades, características das fachadas, entre outros, devendo fazer
parte das áreas de proteção do patrimônio arquitetônico e urbano (SALCEDO, 2009, p.
74).
A UNESCO, através da “Recomendação relativa à salvaguarda dos conjuntos históricos
e sua função na vida contemporânea” (1976 apud CURY, 2004), recomenda estabelecer-
se uma relação dos conjuntos históricos ou tradicionais e sua ambiência, para análise:
De todo o conjunto, inclusive de sua evolução espacial, que contivesse os dados
arqueológicos, históricos, arquitetônicos, técnicos e econômicos. Deveria ser
produzido um documento analítico destinado a determinar os imóveis ou os grupos
de imóveis a serem rigorosamente protegidos [...] deveria ser realizado, com a
mesma finalidade, um inventário dos espaços livres, públicos e privados, assim como
de sua vegetação. Além dessa investigação são necessários estudos pormenorizados
sobre as estruturas sociais, econômicas, culturais e técnicas, assim como do contexto
urbano ou regional mais amplo. Esses estudos deveriam abranger se possíveis, dados
demográficos e uma análise das atividades econômicas, sociais e culturais, os modos
de vida e as relações sociais, os problemas fundiários, a infra-estrutura urbana, o
estado do sistema viário, as redes de comunicação e as inter-relações recíprocas da
zona protegida com as zonas circundantes (UNESCO, 1976 apud CURY, 2004, p. 225-
226).
A partir desta recomendação, está ressaltada a importância do inventário dos espaços
livres públicos e privados. Também o inventário deveria conter, além dos outros aspectos
já mencionados, estudos sobre estruturas sociais, econômicas, culturais, os modos de
vida e suas relações sociais, a infraestrutura urbana, sistema viário e saneamento. O
Inventário subsidiaria na identificação de políticas, programas e projetos de salvaguarda
do patrimônio, pois uma ação de salvaguarda do patrimônio arquitetônico só será
possível se melhoramos a qualidade de vida dos usuários.
Também com relação aos espaços livres a Carta de Florença de 1981 (ICOMOS apud
CURY, 2004, p. 254) ressalta na composição arquitetural do jardim histórico estes
pontos:
 seu plano e os diferentes perfis do seu terreno;
 suas massas vegetais, suas essências, seus volumes, seu jogo
de cor, seus espaçamentos, suas alturas respectivas;
 seus elementos construídos ou decorativos;
111

 as águas moventes ou dormentes, reflexo do céu.


Além disto, a Cata destaca para a proteção dos jardins históricos sejam eles identificados
e inventariados, integrados aos planos de ocupação dos espaços urbanos e aos documentos
de planejamento territorial (ICOMOS, 1981 apud CURY, 2004, p. 257). Por sua vez, a
Carta de Petrópolis de 1987, constituída para a preservação e revitalização de centros
históricos, recomenda no Artigo 8:
No processo de preservação do SHU, o inventário como parte dos procedimentos de
análise e compreensão da realidade constitui-se na ferramenta básica para o
conhecimento básico do acervo cultural e natural. A realização do inventário com a
participação da comunidade proporciona não apenas a obtenção do conhecimento
e valor por ela atribuído ao patrimônio, mas, também, o fortalecimento dos seus
vínculos em relação ao patrimônio (CARTA DE PETRÓPOLIS, 1987 apud CURY, 2004,
p. 286).
O inventário para o Sítio Histórico Urbano (SHU)3 terá de abranger a identificação de seu
tecido urbano, arquitetura, espaços livres, mobiliário, paisagem natural, entre outros. A
identificação e posta em valor do patrimônio do SHU deverão ser realizadas com a
participação da comunidade para garantir sua preservação. Também o inventário teria de
ser entendido enquanto um dos instrumentos subsidiadores da proteção legal do SHU.

A Carta de Petrópolis de 1987 ressalta, no seu Artigo 9: “A proteção legal do SHU far-
se-á através de diferentes instrumentos: tombamento, inventário, normas urbanísticas,
isenções e incentivos, declaração de interesse cultural e desapropriação”. Quanto à
“Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular” 4(UNESCO, 1989,
3 Sítio Histórico Urbano é “o espaço que concentra testemunhos do fazer cultural da cidade em suas diversas
manifestações. (...) O SHU é parte integrante de um contexto amplo que comporta as paisagens natural e construída,
assim como a vivência de seus habitantes num espaço de valores produzidos no passado e no presente, em processo
dinâmico de transformação, devendo os novos espaços urbanos ser entendidos na sua dimensão de testemunhos
ambientais em formação” (CARTA DE PETRÓPOLIS, 1987 apud IPHAN, 2004, p.285)
4 A cultura tradicional e popular “é o conjunto de criaç4oes que emanam de uma comunidade cultural fundadas na
tradição expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade
enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas, os valores se transmitem oralmente, por imitação ou
de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a
112

apud CURY, 2004) ressalta aos Estados-membros o dever de pesquisar a cultura


tradicional e popular em nível nacional, regional e internacional com a finalidade de:
a) Elaborar um inventário nacional de instituições interessadas na cultura tradicional e
popular, com vistas a incluí-las nos registros regionais e mundiais de instituições
desta índole;
b) Criar sistemas de identificação e registro (cópia, indexação, transcrição) ou melhorar
os já existentes por meio de manuais, guias para recompilação, catálogos, modelo
etc., em vista da necessidade de coordenar os sistemas de classificação utilizados
pelas diversas instituições;
c) Estimular a criação de uma tipologia normatizada da cultura tradicional e popular
mediante a elaboração de: i) um esquema geral de classificação da cultura
tradicional e popular, para orientação em âmbito mundial, ii) um registro geral da
cultura tradicional e popular, iii) classificações regionais da cultura tradicional e
popular, especialmente mediante projetos piloto de caráter regional (UNESCO, 1989,
apud CURY, 2004, p.295).
Seria através desta recomendação envolvidas as formas de expressão da cultura, dentre
elas, os modos do fazer na arquitetura (tipologias, sistemas construtivos) devendo fazer
parte do inventário. Ainda sobre o inventário do patrimônio imaterial, a “Convenção para
a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial”5 (UNESCO, 2003 apus IPHAN, 2004)
expressa:
Para assegurar a identificação, com o fim de salvaguarda, cada Estado Parte
estabelecerá um ou mais inventários do patrimônio cultural imaterial
presente em seu território, em conformidade com seu próprio sistema de
salvaguarda do patrimônio. Os referidos inventários serão atualizados
regularmente (UNESCO, 2003 apud IPHAN, 2004, p. 378).

Esta recomendação reforça a importância do inventário do patrimônio cultural imaterial,


podendo ser realizadas através das pesquisas bibliográficas, arquivísticas, iconográficas,
mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes” (UNESCO, 1989 apud IPHAN; 2004, p.
294-295).
5Patrimônio cultural imaterial compreende “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto
com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns
casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural” (UNESCO, 2003 apud IPHAN,
2004, p. 373).
113

entrevistas, entre outras. Diante das constantes mudanças sociais, econômicas, espaciais,
tecnológicas, culturais, há necessidade de estar-se atualizando o modelo de inventário.
A Carta dos Jardins Históricos Brasileiros, realizado em Juiz de Fora, em 2010 (IPHAN,
2010) ressalta “Como forma de assegurar a defesa e salvaguarda, os jardins históricos
devem ser objeto de acautelamento legal sob a forma de registro, inventário e
tombamento”. Portanto, os jardins históricos para sua salvaguarda devem ser
inventariados.
Este estudo, tratando sobre o inventário do patrimônio arquitetônico ferroviário ou
patrimônio industrial, debate seu enquadramento neste contexto:
O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem
valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios
englobam edifícios e maquinarias, oficinas, fábricas, minas e locais de tratamento e
de refinação, entrepostos e armazém, centros de produção, transmissão e utilização
de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim
como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a
indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação (KÜHL, 2008, p. 51).
Por este ponto de vista, são considerados patrimônio arquitetônico ferroviário industrial
da Companhia de Estrada de Ferro Noroeste (EFNOB) em Bauru a estação, oficinas,
armazéns, escola, hospital, lazer, casa da superintendência, as vilas dos funcionários e a
vila dos engenheiros (SALCEDO, 2018).

3 O INVENTÁRIO NO BRASIL

Segundo Azevedo (1987 apud COELHO & VALVA, 2001, p. 29), as catalogações do
acervo brasileiro foram realizadas no período colonial. A noção de inventário ganhou
força na década de 1920, após o movimento liderado por intelectuais e políticos,
considerando o fato do inventário do patrimônio fosse feito pela identificação e registro
das manifestações culturais e a conservação dos monumentos mais significativos, sendo
um dos primeiros manifestantes o escritor Mário de Andrade.
Com a criação do Serviço do Patrimônio Artístico e Nacional (SPHAN), em 1936, sendo
Diretor Geral Melo Franco de Andrade, a noção de inventário foi uma das atividades mais
importantes e começou pelo registro dos bens tombados considerados de valor
excepcional, isto é, os monumentos arquitetônicos.
Desde a criação do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico, Nacional (IPHAN) até
1960, no Brasil foram valorizados os imóveis, objetos e sítios, por suas qualidades
114

arquitetônicas e artísticas, vinculados a fatos memoráveis e históricos. Depois de 1960,


foram concebidas novas formas de patrimônio resultando na concepção do patrimônio
cultural brasileiro presente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 2016).
Com tal disposição legislativa, o patrimônio cultural brasileiro está constituído não
apenas pelos bens materiais mas também pelos bens imateriais caracterizados pelas
formas de expressão da música, dança, modos de fazer, importantes componentes da
cultura a serem preservados. A partir desta definição do patrimônio cultural brasileiro, as
instituições de preservação do patrimônio, mais especificamente o IPHAN, elaboraram
algumas fichas de inventário para o patrimônio material e imaterial. Será, então, o
propósito deste ensaio remodelar a proposta da ficha de inventário do patrimônio
arquitetônico ferroviário consultamos as fichas de inventário propostas pelo IPHAN e
pelo Conselho de defesa do Patrimônio, Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do
Estado de São Paulo (CONDEPHAAT).
Ao consultar as fichas dos inventários dos patrimônios ferroviários de:
IPHAN/Ministério de Cultura6, IPHAN/Minas Gerais7, IPHAN/Superintendência
6
IPHAN/Ministério de Cultura. Ficha M306 – Patrimônio Ferroviário In:
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?retorno=detalheInstitucional&sigla=Institucional&id=14
900. Acesso em 09/09/2012.
7IPHAN/Superintendência de Minas Gerais. Ficha inventário patrimônio ferroviário M06 Ficha 02/09. Minas Gerais
baixaFcdAnexo.pdf – Adobe Reader. In
http://portal.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=D7D74C9C6C2D909CEA60FCD08EAEA2EC?id=2041.
Acesso em 09/09/2012.
115

Regional de Rio Grande do Sul8, IPHAN/Superintendência Regional de Maranhão9,


Instituto Estadual do Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro 10 e
CONDEPHAAT11, encontramos vários pontos comuns aos inventários, com dados
referentes à: localização do bem, tipo do bem de acordo com o uso original, ano de
construção, uso original, uso atual, linha/ramal, usuários/posse/concessão atual, nível de
preservação, estado geral de conservação, caracterização do bem (cobertura, paredes,
esquadrias, vedação, janelas e portas, piso, componente estrutural, fundação, imóvel faz
arte do conjunto ferroviário, linha/ramal em operação, possui bens móveis integrados ou
documentais, conjunto de bens móveis demanda levantamento em etapa posterior, existe
interesse local na utilização do bem?, possui vigilância?, nível de proteção existente para
o bem (municipal, estadual, federal, não há), foto do bem imóvel e planta de localização,
descrição sumário do edifício, descrição geral da área/terreno e preenchimento (entidade,
responsável e data).
O inventário do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura do Rio
de Janeiro aponta dados referentes às: informações históricas, informações
complementares (estado de conservação do bem, intervenções realizadas) e fontes.
Portanto, nestes inventários os dados para o patrimônio ferroviário são imprescindíveis,
não entanto, há, ainda, questões não desenvolvidas: infra-estrutura existente no edifício
(abastecimento de água, energia elétrica, gás, telecomunicações, pavimentação),
informações das estruturas sociais, econômicas e culturais dos usuários atuais, sendo
necessárias para se conhecer a qualidade de vida dos usuários e propor diretrizes de
salvaguarda atendendo-as suas reais expectativas, indo, assim, da simples preservação do
bem imóvel.

8IPHAN/11ª Superintendência Regional de Rio Grande do Sul. Inventário do Patrimônio Ferroviário de Rio Grande
do Sul. In:
http://portal.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=D7D74C9C6C2D909CEA60FCD08EAEA2EC?id=2053.
Acesso em 09/09/2012.
9 IPHAN/11ª Superintendência Regional de Maranhão Inventário do Patrimônio Ferroviário de Maranhão. In:
http://portal.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=7870C8E2F5A822D82CA76A9D669F426E?id=2157.
Acesso em 09/09/2012.
10INEPAC/Instituto Estadual do Patrimônio Cultural/secretaria do Estado de Cultura – RJ. Inventário de Identificação
de Bens Culturais Imóveis do Sistema Ferroviário. In:
http://www.inepac.rj.gov.br/modules/InventarioFerro/pdf/4_austin.pdf. Acesso em 09/09/2012.
11CONDEPHAAT. Inventário do Patrimônio Cultural Ferroviário do Estado de São Paulo. São Paulo:
CONDEPHAAT, 29/08/2012.
116

4 PROPOSTA DA FICHA DE INVENTÁRIO PARA O PATRIMÔNIO


ARQUITETÔNICO FERROVIÁRIO

Com base nos conceitos, nas abordagens sobre o inventário, nas recomendações das cartas
patrimoniais e nos conteúdos expressos nas fichas dos inventários acima mencionados foi
elaborada esta ficha de inventário, Bem Imóvel, Arquitetura Ferroviária, contendo três
etapas: 1) Identificação, 2) Caracterização e 3) Documentação iconográfica e histórica.
A primeira, a Identificação contém as informações básicas sobre o bem imóvel:
identificação, a localização, tipo do bem de acordo com o uso original, ano de construção,
uso original, uso atual, linha/ramal de operação, se o imóvel faz parte de conjunto
ferroviário, usuário/posse/concessão atual/, se o imóvel foi
tombado/instituição/processo, implantação do bem com relação à rua, bairro,
imagens/croquis das fachadas.
Quanto à segunda, a Caracterização contém as informações complementarias sobre o
bem imóvel: caracterização da construção (cobertura, paredes, esquadrias, piso,
componente estrutural, fundação), grau de preservação externa do bem (original,
modificado, totalmente modificado), grau de preservação interna do bem, estado de
conservação do bem (se as estruturas, pisos, portas, janelas, forros, revestimentos,
cobertura, outros, estão em bom, regular, péssimo estado), se o bem possui bens móveis,
integrados ou documentais (tipos de móveis, documentos); se existe interesse local na
utilização do bem (tipo de uso, nome do órgão/instituição interessada), proposta de
preservação do bem (histórico, artístico, urbanístico, arquitetônico, arqueológico,
cultural, outro), proposta de proteção do bem (integral, fachadas, volumetria), se o
conjunto de bens móveis demanda levantamento em etapa posterior, infra-estrutura
(redes de: água, esgoto, energia elétrica e telefonia) e se possui vigilância.
Já para a terceira, contém a Documentação Iconográfica e Histórica essencais visando
melhor conhecimento da edificação iconográfica/métrica do edifício original e atual
(implantação no lote ou terreno, plantas, cortes, fachadas), descrição histórica com datas
e fontes (cronologia: histórica, usos e proprietários); descrição da arquitetura com datas
e fontes do espacial, funcional e formal do imóvel; cronologia com datas e fontes das
técnicas construtivas; breve documentação histórica do bem, fontes e localização da base
disponível dos levantamentos arquitetônicos, fotografais e desenhos, fontes
bibliográficas e documentais e as informações da(o) responsável pelo preenchimento da
ficha de inventario: entidade, nome e data.
FICHA 01- BEM IMÓVEL - ARQUITETURA FERROVIÁRIA – IDENTIFICAÇÃO
117

1. IDENTIFICAÇÃO
1.1 Recorte territorial (Identificação da região estudada)

1.2 Recorte temático (Identificação do tema do estudo)

1.3 Identificação do Bem (denominação oficial / denominação popular / outras denominações)

2. LOCALIZAÇÃO DO BEM
Nome da
Empresa
2.1 Linha
2.2 Ramal
2.3 Sub-ramal
3. TIPO DE BEM DE ACORDO COM O USO ORIGINAL
3.1 Estação 3.2 Armazenamento 3.3 Manutenção 3.4 Outro (especificar):
3.5 Administrativo 3.6 Residencial 3.7 Superestrutura
4. ANO DE CONSTRUÇÃO 5. USO ORIGINAL 6. USO ATUAL

7. LINHA/RAMAL EM OPERAÇÃO? 8. O IMÓVEL FAZ PARTE DE CONJ. FERROVIÁRIO


Ativa Desativada Erradicad Sim Bem isolado
a
9. USUÁRIO / POSSE / CONCESSÃO ATUAL

10. O IMÓVEL FOI TOMBADO∕INSTITUIÇÃO∕PROCESSO

11. IMPLANTAÇÃO DO BEM COM RELAÇÃO À RUA, BAIRRO


118

12. IMAGENS/CROQUIS DAS FACHADAS


119

FICHA 02- BEM IMÓVEL - ARQUITETURA FERROVIÁRIA – CARACTERIZAÇÃO


13. CARACTERIZAÇÃO DO BEM (ESTRUTURA/MATERIAIS)
13.1 Cobertura 13.2 Paredes 13.3 Esquadrias, vedação, janelas e
portas
Cerâmica Alvenaria portante Alvenaria portante
Concreto armado Concreto armado Concreto armado
Madeira Madeira Madeira
Metálica Metálico(a) Metálico(a)
Vidro Pedra/rocha Vidro
Outro: Outro: Outro:
13.4 Piso 13.5 Componente estrutural 13.6 Fundação
Cerâmico(a) Alvenaria portante Alvenaria portante
Concreto Concreto armado Concreto armado
Pedra/ rocha Pedra/ rocha Pedra/ rocha
Metálico(a) Metálico(a) Metálico(a)
Madeira Madeira Madeira
Outro: Outro: Outro:
14. GRAU DE PRESERVAÇÃO EXTERNA DO BEM
Original Modificado Totalmente alterado
15. GRAU DE PRESERVAÇÃO INTERNA DO BEM
Original Modificado Totalmente alterado
16. ESTADO DE CONSERVAÇÃO DO BEM
16.1 Estrutura 16.2 Pisos 16.3 Portas
Bom Bom Bom
Regular Regular Regular
Péssimo Péssimo Péssimo
16.4 Janelas 16.5 Forros 16.6 Revestimentos
120

Bom Bom Bom


Regular Regular Regular
Péssimo Péssimo Péssimo
16.7 Cobertura 16.8 Outros especificar 1 6.9 Outros especificar
Bom Bom Bom
Regular Regular Regular
Péssimo Péssimo Péssimo
17. POSSUI BENS MÓVEIS, 18. EXISTE INTERESSE 19. PROPOSTA PARA PRESERVAÇÃO
INTEGRADOS OU DOCUMENTAIS? LOCAL NA UTILIZAÇÃO DO DO BEM
BEM?
Sim Não Sim Não Histórico
Artístico
17.1 Tipo? 18.1 Tipo de uso? Urbanístico
Objeto utilitário Arquitetônico
Material rodante Arqueológico
Documental Cultural
Artes visuais Outro especificar
Outro: estantes, mesas, 18.2 Nome do 20. PROPOSTA DE PROTEÇÃO DO BEM
carteiras escolares, cadeiras, órgão/instituição
poltronas, bancos. interessada.
21. O CONJUNTO DE BENS Integral
MÓVEIS DEMANDA Fachadas
LEVANTAMENTO EM ETAPA Volumetria
POSTERIOR?
Sim Não 18.3 Contato 22 INFRAESTRUTURA
local(nome/telefone)
23. POSSUI VIGILÂNCIA? Água Esgoto
121

Sim Não Rede elétrica Telefonia

FICHA 03- BEM IMÓVEL - ARQUITETURA FERROVIÁRIA -DOCUMENTAÇÃO ICONOGRÁFICA E


HISTÓRICA
24. FIGURAS∕EDIFÍCIO ORIGINAL
24.1 IMPLANTAÇÃO DO EDIFÍCIO NO LOTE OU ÁREA 24.2 PLANTA

24.3 CORTES 24.4 FACHADA

25. FIGURAS∕EDIFÍCIO ATUAL


25.1 IMPLANTAÇÃO DO EDIFÍCIO NO LOTE OU 25.2 PLANTAS
TERRENO

25.3 CORTES 25.4 FACHADA

26. BREVE DESCRIÇÃO ARQUITETÔNICA


26.1 História: cronologia histórica (datas e fatos, fontes), cronologia de usos (datas e usos, fontes) e
cronologia de proprietários (datas e proprietários, fontes).

26.2 Arquitetura: cronologia espacial, funcional e formal do imóvel (ano da intervenção, descrição e fontes).
122

26.3 Técnicas construtivas: materiais e acabamentos (cronologia da construção original e da intervenção).

27. DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA

28. LEVANTAMENTOS AQUITETÔNICOS EXISTENTES


28.1 Planta 28.2. Escala 28.3 Localização e base disponível 28.4 Data

29. OUTROS LEVANTAMENTOS∕BASE DE DADOS


29.1 Tipo (fotografia, desenho) 29.2 29.3 Autoria, localização e base 29.4 Data
Quantidade disponível

30. FONTES BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS


123

31. PREENCHIMENTO
31.1 Instituição 31.2 Data
31.3 Responsável

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O inventário nasce juntamente com a do patrimônio, passando de simples cadastro para a


classificação das edificações e a captura de suas características, desde a Carta de Atenas
de 1931 e posteriores cartas abordando desde sua identificação, as características, a
documentação histórica e iconográfica, tornando-se um valioso instrumento envolvendo
as ações de tombamento, projetos de intervenção e regulamentação específica no Plano
Diretor.
O inventário será necessário enquanto instrumento para o tombamento e na deliberação
sobre os projetos de intervenção, principalmente na restauração e reabilitação; além de
subsidiar a regulamentação sobre os usos, gabaritos, recuos, fachadas e acabamentos,
volumes, integrados nos sítios históricos, conjuntos históricos ou centros históricos,
ambiências, constantes no Plano Diretor.
A ficha de inventário proposta foi criada com base nas recomendações das Cartas
Patrimoniais e das Fichas de inventário propostas pelo IPHAN e CONDEPHAAT e
consta de tres etapas. A primeira, Identificação contém as informações básicas sobre o
bem imóvel. A segunda, a Caracterização, abrange as informações complementárias
sobre o bem imóvel: caracterização da construção, grau de preservação externa do bem,
grau de preservação interna do bem, estado de conservação do bem, se o bem possui bens
móveis, integrados ou documentais; se existe interesse local na utilização do bem,
proposta de preservação do bem, proposta de proteção do bem, se o conjunto de bens
móveis demanda levantamento em etapa posterior, infra-estrutura e se possui vigilância.
Quanto à terceira, há a Documentação iconográfica e histórica, necessárias para melhor
conhecimento da edificação iconográfica/métrica do edifício original e atual, descrição
histórica com datas e fontes; descrição da arquitetura com datas e fontes do espacial,
funcional e formal do imóvel; e cronologia com datas e fontes das técnicas construtivas;
breve documentação histórica do bem, fontes e localização da base disponível dos
levantamentos arquitetônicos, fotografais e desenhos, fontes bibliográficas e
documentais e as informações da(o) responsável pelo preenchimento da ficha de
inventario: entidade, nome e data.
124

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AUTOR

Rosio Fernández Baca Salcedo: Professora Assistente Doutora do Curso de Graduação em Arquitetura e
Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Pós doutorado na Universidade de
Barcelona, Espanha (2008-2009), Doutorado em Integração da América Latina pela Universidade de São
Paulo (2003), Mestrado em Geografia pela UNESP (1995) e Graduação em Arquitetura pela Universidad
Nacional San Antonio Abad de Cusco, Peru; Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura
e Urbanismo da UNESP (2013 a 2017). Desenvolve pesquisas junto ao Grupo de Arquitetura: Teoria e
Projeto (GA) nos temas: Centros Históricos, Habitação Social, Arquitetura dialógica, Patrimônio
arquitetônico e urbano. E-mail: rosio.fb.salcedo@unesp.br, Currículo lattes.cnpq.br/9657359692240283
127

Casas Rurais em Santana do Manhuaçu (MG):


permanências arquitetônicas do século XVIII
Ueslei Domingos Alves
Vladimir Benincasa

RESUMO: Trata da arquitetura e do cotidiano das Santana do Manhuaçu (MG) Country


propriedades rurais abertas no início do século XX, Houses: 18th century architectural
no sudeste mineiro, na região do atual município de traditions
Manhuaçu, cuja ocupação se deu durante a
expansão das frentes pioneiras por novas zonas
cafeicultoras. Levanta, por amostragem,
ABSTRACT: It refers to the architecture and daily
life of the rural estates opened in the early 20th
exemplares remanescentes e realiza pesquisa em
128

fontes primárias e entrevistas com moradores e century, in the southeast of Minas Gerais, in the
construtores, para compor um quadro desta region of the present municipality of Manhuaçu,
produção arquitetônica rural, estabelecendo whose occupation occurred during the expansion of
comparações com a arquitetura rural de outras the pioneer fronts by new coffee growing areas. By
regiões mineiras, verificando influências e means of sampling, he samples the remaining
permanências arquitetônicas do século XVIII, no specimens and performs research on primary
projetar e construir, de zonas auríferas mineiras, sources and interviews with residents and builders
principalmente da região de Mariana, de onde são to compose a picture of this rural architectural
originários seus primeiros povoadores. Percebe-se production, establishing comparisons with the rural
que, por seu relativo isolamento, técnicas architecture of other mining regions, verifying
construtivas tradicionais, além do uso de influences and architectural traditions of the 18th
ferramentas e a nomenclatura de vários century, in the design and build, of gold mining
componentes arquitetônicos foram mantidos na areas, mainly of the region of Mariana, from where
região, até a década de 1970, quando chega a they originate their first settlers. It can be noticed
energia elétrica e as estradas que a ligavam aos that, due to their relative isolation, traditional
grandes centros urbanos mineiros e capixabas constructive techniques, besides the use of tools
foram asfaltadas. A partir de então, ocorre uma and the nomenclature of several architectural
mudança no aspecto construtivo na região de components were maintained in the region, until
Manhuaçu, que passa a incorporar materiais the 1970's, when electric power arrived and the
industrializados e novas técnicas na construção, roads connecting it to the great cities of Minas
alterando o seu caráter vernáculo. Gerais and Espírito Santo were paved. From then
on, there is a change in the constructive aspect in
the Manhuaçu region, which incorporates
industrialized materials and new techniques in
construction, altering its vernacular character.
Palavras-chave: arquitetura rural mineira, Santana Keywords: rural architecture of Minas Gerais,
do Manhuaçu, permanências arquitetônicas Santana do Manhuaçu (MG), architectural
traditions
129

1 INTRODUÇÃO

O presente texto objetiva estudar a arquitetura, a compleição estrutural e o cotidiano no


meio rural do Município de Santana do Manhuaçu que envolve, também os distritos de
Santa Filomena e Santa Quitéria e o Povoado de São João do Capim. Analisa os modos
de construção utilizados no século XX, comparando-os com antigas técnicas de outras
regiões mineiras, ocupadas no século XVIII, verificando possíveis permanências do saber
fazer ao longo do tempo. A análise refere-se somente à construções do século XX, porém,
o método construtivo utilizado, bem como muitos dos costumes da população local,
remontam a séculos passados, muito resistiu devido ao relativo isolamento da região até
a década de 1970.
A pesquisa utilizou de visitas a propriedades rurais, onde foram efetuados levantamentos
métricos, com a elaboração de plantas e croquis de exemplares remanescentes;
levantamento das técnicas e materiais construtivos utilizados; levantamento fotográfico
para registro das edificações que compõem o conjunto arquitetônico e as relações com a
paisagem envoltória. Também foram realizadas entrevistas com antigos moradores - e a
possibilidade de ouvir as pessoas que as construíram e ainda vivem nestas casas, foi uma
importante fonte de dados; além de consultas a arquivos públicos e privados locais e de
cidades da região. Inexistem, até agora, referências a arquitetura rural da região de
130

Manhuaçu, somente foram encontradas aquelas relativas à história do seu povoamento.


A falta de conhecimento das novas gerações sobre essa história, a preservação desses
modos e formas de construir e viver, e o reconhecimento dessa arquitetura como algo de
valor a se preservar, foram os motivos que justificaram esse estudo.

2 A OCUPAÇÃO DAS TERRAS DO MANHUAÇU

A ocupação do sudeste mineiro se deu nas últimas décadas do século XIX quando, toda
a região que hoje compreende a zona rural de Santana do Manhuaçu, na Zona da Mata
Mineira, era ainda inteiramente coberta por Mata Atlântica, da qual restam apenas pontos
isolados em meio a plantações de café e pastagens de gado de leite.
Essa paisagem começa a alterar-se com a chegada dos primeiros povoadores, vindos do
centro leste de Minas, a maioria da região de Mariana que, seguindo a estrada de ferro,
chegaram a Manhuaçu e se espalharam por seus vales, ocupando-os principalmente com
lavouras de café e pastagens. Essas terras pertenciam ao Estado que as doava, com o
objetivo de povoar e desenvolver a região, a quem possuísse ou apresentasse condições
para trabalhá-las, em regime de “sesmaria”141. Segundo o Sr. José Bertolino Júlio, a forma
como as pessoas requeriam as terras se dava da seguinte maneira:
Muitos chegavam pelo Rio Manhuaçu, motivados pela exuberância da Mata
Atlântica ainda intocada e adentravam mata afora. Contando os passos, subiam e
desciam as montanhas e fechavam uma forma geométrica imaginária, fazia uma
estimativa das medidas, (normalmente tinham as medidas individuais das passadas,
palmos, pés) calculavam área em alqueires (alqueire mineiro: 48.400m2) e, então,
pediam ao Estado o direito sobre aquela determinada área em regime de “sesmaria”.
O Estado, como dono, enviava ao solicitante o direito de usufruto da área. Após o
pedido e a liberação por parte do Estado, começava o processo de derrubada das

1
Entrevista com o Sr. José Bertolino Júlio, com 100 anos (data nascimento: 15/05/1912), realizada em 2009, em Santa
Quitéria, distrito de Santana do Manhuaçu, MG. Nos tempos coloniais, o termo sesmaria era usado para definir uma
gleba de terras, que era entregue pela Coroa Portuguesa a sesmeiros, com o objetivo de que estes iniciassem seu cultivo,
com seu próprio capital, movimentando regiões desocupadas pelos portugueses economicamente, promovendo seu
povoamento, abertura de estradas, criação de núcleos urbanos, etc. Na região de Santana do Manhuaçu, no início do
século XX, sesmaria era um termo ainda usado popularmente, de forma a lembrar que essas terras pertenciam ao
Estado, que podia cedê-las a determinadas pessoas que as solicitassem para cultivo, até ser obtida a posse definitiva.
Assim como na época colonial, todas as benfeitorias eram feitas com recursos próprios. A distância da presença estatal
e as dificuldades de comunicação transformavam essas grandes áreas, segundo relato do Sr. Júlio, quase em pequenos
feudos, onde o desbravador era a única autoridade reconhecida: ali ele era o mandatário, controlando tudo o que
acontecia “na terra”, exercendo a função de juiz e de polícia, podendo agir de forma independente e arbitrária, muitas
vezes em proveito próprio. Todos os entrevistados autorizaram a publicação de seus nomes e as informações aqui
apresentadas.
131

matas. Mais tarde, era feito um requerimento para o pedido de posse definitiva da
área, com a edição da escritura. Esse processo de liberação nem sempre era
aguardado até o veredito, que na sua maioria era a favor, e logo começava a
derrubada.2
No início da ocupação, de 1900 a 1910, os “’sesmeiros” (na época e região, comumente
chamados de “senhores”3), traziam consigo outros trabalhadores para a derrubada das
matas e primeiros plantios, nas terras ainda virgens. Somente após alguns meses, quando
já efetuadas essas tarefas primeiras, vinham mulheres e crianças, tendo início a construção
das edificações mais perenes, para a qual utilizavam muito a madeira das matas ali
existentes.
O processo de retirada dos troncos em meio à floresta não era fácil. Os homens nunca
avançavam mais do que os “olhos podiam ver”4, e nem sozinhos: com medo de se
perderem dentro da mata, delimitavam uma área de trabalho. Estar sozinho poderia acabar
em acidentes fatais, que originavam várias lendas e “casos” como no trecho em que
LEMOS (1976, p. 59) cita: E conversa e conversa bastante, contando ‘causos’,
normalmente aqueles do ‘sertam’, envolvendo bugrada brava, feras e ouro escondido
nas grupiaras distantes.
Eles preparavam suas ferramentas (machado, foices, entre outras), as amolavam com
“pedras de amolar”5. Preparadas as ferramentas, usavam as foices para retirar o mato ao
2
Entrevista com o Sr. José Bertolino Júlio.

3
A palavra “senhor” era usada para designar o homem que possuía grandes porções de terras, a posse da mesma já
agregava ao possuidor o “respeito” e a “admiração” dos demais, quanto mais terras, mais importante era,
independentemente se eram ou não produtivas. Muito desse respeito era medo pelo que o “senhor” e seus capangas
pudessem fazer caso fossem contrariados. Segundo os entrevistados, era sempre “prudente”, na presença do “senhor”
deixar evidente o “respeito” e a submissão a sua pessoa.
4
O termo “os olhos podiam ver” era colocado para identificar um limite de atuação dos trabalhadores na derrubada da
mata. Como não houvesse um meio confiável de orientação quanto à localização, tomavam certos cuidados, não se
afastando um dos outros, nem prolongando a jornada para além do pôr do sol. A densa Mata Atlântica era traiçoeira,
perigosa tal qual um labirinto: seus vales apresentavam locais de difícil acesso e surpresas desagradáveis, como
despenhadeiros, cobras, onças, insetos venenosos...
5
O termo “pedras de amolar” é usado na região para designar as pedras de afiar, encontradas em cachoeiras, ou
corredeiras. Tinham que ser lisas, que não se desfragmentassem, para que não “cegassem” o corte de suas ferramentas.
Eram usadas de tamanhos variados: as pequenas eram levadas para o trabalho no bolso, para quando se fizessem
necessárias; as grandes eram fincadas ao chão, normalmente na frente da porta da cozinha das casas e perto de córregos,
uma vez que, no processo de afiar, se jogava água e areia na pedra e na ferramenta para se tirar o “margume” do mato
(seiva da planta cortada que gruda com passar do tempo na lâmina dificultando o corte) para facilitar o trabalho. Essa
132

redor do tronco das árvores, identificando a madeira e como seria seu corte e uso
posterior. Feito isso, segundo o Sr. Júlio, começava o corte das árvores:
Davam os piques de machado do lado que desejavam que fosse o tombo, sem
derrubá-las; assim faziam até o alto do morro, as árvores da parte mais alta eram
cortadas por inteiro e jogadas para baixo sobre as demais que haviam recebido o
“pique”, assim todas tinham o “tombo” programado para o lado imaginado de forma
desejada.6
Os “piques” eram feitos nas árvores de forma que, quando caíssem morro abaixo,
causassem o menor estrago na madeira, mas a maior clareira possível, que permitia
trabalhar com mais segurança e ajudava na queima final e no preparo da terra. Muitas
árvores, pelo seu tamanho, eram deixadas enraizadas, pois era impossível sua retirada
total: ainda hoje, podem ser vistos pelas pastagens vestígios dessas derrubadas primitivas.
Demoravam-se dias para o trabalho de corte e poda: devido à altura, construíam andaimes
no entorno das árvores, para a poda dos galhos e derrubada do tronco, em seguida,
começavam os trabalhos de corte em toras. Alguns troncos eram tão pesados que, mesmo
depois de torados eram deixados para trás, uma vez que o transporte era feito a arrasto ou
em carretão7. Aquelas retiradas eram usadas na construção de casas, currais, mangueiros,
tulhas, paióis, engenhos, varandas... Todo o necessário nas fazendas.
A chegada das famílias trabalhadoras deu origem a vários povoados (ou “cantos”, ou
“patrimônios”, como se diz no local): Santa Quitéria, São João do Capim, Santa Filomena,
distritos de Santana do Manhuaçu, que também cultivavam o café, assim como o milho,
arroz e feijão, que eram plantados, em meio ao cafezal.
Toda a comunicação entre essa região desbravada com a zona urbana de Manhuaçu se
fazia através de longas viagens a pé, a carro de boi, a cavalo ou por tropas de mulas.
Normalmente, viagens para a cidade tinham como objetivo trazer mantimentos não
produzidos ali: sal, ferramentas, pólvora, munições, tecidos eram as mercadorias mais
requisitadas pelos agricultores modestos (LEMOS, 1976, p.170).
Plantar e produzir o próprio alimento sempre foi importante na região: plantações de arroz
eram feitas nas encostas das montanhas; feijão e milho introduzidos entre os “becos”
localização atendia sempre a estes requisitos, pois o momento de se amolar a ferramenta se dava bem de manhãzinha,
antes da saída para o trabalho; ou, então, à tarde, após o trabalho.
6
Entrevista com Sr. José Bertolino Júlio.
7
Carro puxado por juntas de boi com um pranchão paralelo ao eixo onde era apoiado o “pé da árvore”. Era largamente
utilizado, quase que exclusivamente, para o transporte da madeira.
133

(fileiras) do cafezal; batatas eram plantadas nas “terras soltas” que resultavam da abertura
de estradas para passagem do carro de boi. No entanto, o cuidado com a terra era mínimo,
ela devia render o máximo possível, mas não eram usados, e nem mesmo se conheciam,
fertilizantes. Quem possuía curral, quando muito, adubava com esterco. Ao decair a
produção de café, as plantações eram substituídas por capim gordura, convertidas em
pastagens para o gado leiteiro. Outra área de “mata virgem” era, então, aberta para novos
cafezais e, com isso, estabelecia-se um círculo vicioso de corte e destruição da mata
original, substituída por plantações, que acabavam, mais tarde, tornando-se pastagens.
O custo de se aventurar no desbravamento de novas áreas era o isolamento e a vida
austera: não existia na região eletricidade ou qualquer coisa que dela necessitasse para se
mover; dinheiro praticamente não se usava; carro, somente de tração animal; nada de
linhas telefônicas, hospitais. As dificuldades eram imensas, e havia escassez de quase
tudo. Praticamente, só se podia contar com o que se produzia no local, o que acabou
refletindo na arquitetura da região.
As casas eram normalmente estruturadas em madeira com paredes barreadas8
(taipa de mão ou pau-a-pique, cobertas de sapê ou tabinha9), mais tarde, erguidas
com tijolo queimado; nesse caso as olarias eram criadas perto da construção e para
atendê-la. (As olarias) eram produzidas pelo próprio morador usando do
conhecimento dos mais velhos: consistia em um engenho onde em sua base havia
reservatório cercado de estacas onde giravam pás de madeira que amassavam o
barro como um bolo, ali poderia ser acrescentado palha de arroz, ou palha de milho
para a liga. A estrutura funcionava com um cavalo ou boi girando o engenho, depois
de amassado o barro, era colocado em formas e (os blocos) expostos à sombra e no
chão limpo, até ficarem secos para o assentamento. Alguns (blocos) ficavam
irregulares com as extremidades arrebitadas, em um período posterior eram

8 Nome usado na região para casas feitas com taipa de mão; pau-a-pique.
9 O termo “tabinhas” é referência ao tipo de material utilizado nesse período, que foi substituído por telhas de barro
para a cobertura das casas. Utilizavam a madeira pela abundância e qualidade da mesma, de boa durabilidade. Outra
questão pelo não uso das telhas capa e canal era a dificuldade de fabricá-las devido ao não domínio da técnica. As
tabuinhas eram feitas nessa região a partir da madeira da braúna, que era cortada, lascada, e lavrada pelo machado até
que formasse gomos de 30 a 35 centímetros de comprimento por 10 a 15 centímetros de largura, esses gomos eram
então fatiados em lâminas de dois a três centímetros de espessura, recebiam dois piques, em um dos lados longitudinais,
e então, era levantada a estrutura do telhado, feito de madeiras nativas que, em sua maioria, era ripado com retirada do
tronco do pé de palmito juçara, ali chamado de “içara”. As tabuinhas eram amarradas com arame que passava pelos
piques e era enrolado nas ripas, esse trabalho se dava do beiral à cumeeira.
134

queimados em fornos como os de carvão, e eram então tidos como tijolo cozido ou
queimado10.
Aqui, cabe citar um trecho de Menezes (1983, p. 219), que embora se referindo a séculos
passados, se aplica perfeitamente às construções da região, durante boa parte do século
XX:
Quanto ao processo construtivo, predominou as estruturas autônomas de madeira
(...). O telhado de madeira não possui tesouras em sua estrutura, suportado por
esteios que vinham apoiar-se no solo, estrategicamente distribuídos para
constituírem a estruturas das paredes de pau-a-pique (...).

A grande maioria das primeiras construções eram barreadas - mais tarde, algumas dessas
casas tiveram sua taipa substituída por tijolos (cru ou queimado), porém mantiveram
sempre a estrutura autônoma de madeira nativa. A cobertura primitiva era feita com lascas
de madeira, chamadas “tabinhas”. Muitas casas ainda são cobertas com essas tabuinhas
rudimentares feitas a machado, mas que funcionam muito bem, raramente apresentado
goteiras.
Quanto à execução dessa casa, tudo era feito de forma simples, mas exigindo esforço,
sabedoria e dedicação do construtor: o trabalho devia ser cuidadoso e bem feito. Dentre
os construtores, alguns se especializavam nos encaixes ou “caixas” na madeira, feitos
com cortes bastante precisos, que deviam ser finalizados sem frestas; outros, com mãos
habilidosas para “jogar o barro”11, davam o bom acabamento à taipa; e assim por diante.
Dessa forma, o trabalho exigia muitos homens, cada qual com sua tarefa, que a
desempenhavam segundo seu dom, habilidade ou disposição de meios.
Aos poucos, formaram-se pequenos agrupamentos de casas no entorno das sedes das
fazendas ou de uma capelinha - muitos dos “senhores” doavam terras a algum santo de
10Entrevista com o Senhor Jaci Alves de Freitas, 65 anos (nascido a 28/08/1946), realizada em 2009, em Santa Quitéria,
distrito de Santana do Manhuaçu, MG.
11
“Jogar o barro” – era a forma de trabalho utilizada para preenchimento das estruturas de pau-a-pique que originavam
as paredes. Na região de Manhuaçu, utilizavam-se muitas pessoas para esse trabalho, que tinha seu começo na
preparação do barro a ser empregado, a terra era afofada ou retirada de outro local e colocada o mais próximo da casa,
no seu entorno. Eram então agregados: areia, terra de formiga e fibras, como palha de arroz, e água. Essa mistura era
então pisoteada por juntas de boi, que giravam no entorno da casa até que a massa se tornasse homogênea. Homens se
encurvavam com os braços nas costas formando um recipiente onde era colocado o barro para transporte até o local de
aplicação nas paredes. A falta de instrumentos que facilitassem o trabalho fazia com que formas rústicas de trabalho
fossem recuperadas e de certa forma preservadas ou mantidas. Entrevista com o Senhor José Domingos Ramos, 61
anos, nascido em 28/08/1951, realizada em 2009, Comunidade do Divino, distrito de Santana do Manhuaçu, MG.
135

sua devoção, dando origem, por exemplo, a povoados como: Santa Quitéria, São João do
Capim, Santa Filomena, todos situados no município de Santana do Manhuaçu.
Com passar do tempo, novas clareiras na mata eram abertas e o senhor acumulava ainda
mais terra. Quando havia necessidade de mais mão de obra para o trabalho, era ofertada
uma casa pelo “senhor”, àqueles que se dispusessem a trabalhar para ele. Essas casas eram
chamadas de “tapera” e ficavam nos povoados. Os trabalhadores não detinham a posse,
moravam nesses casebres enquanto trabalhassem para o fazendeiro. Eram casas simples
e insalubres, sem esgoto ou água encanada, onde muitas vezes o ambiente era dividido
com animais (porcos e galinhas), criados para consumo da família.
Como forma de pagamento:
(...) alguns trabalhadores recebiam pelo seu dia de trabalho gordura de porco,
quartas de arroz, feixes de cana para a produção de garapa, usada para adoçar o café
ou outro alimento; ou mesmo quando a condição do senhor já era mais favorecida,
este fazia as compras dos principais mantimentos, em uma venda na cidade mais
próxima, e os entregava aos trabalhadores, cada qual a sua maneira, ao convir do
senhor, descontando deles em dias trabalhados ou a se trabalhar. 12
Outros senhores dividiam suas plantações com os trabalhadores: a terra ainda lhe
pertencia, mas todo o serviço, de plantio, capina, colheita cabia ao trabalhador, no fim
dividia-se a produção, que podia ser “a meia” (metade da produção) ou “a terça” (a terça
parte de tudo o que fora produzido ficava com dono da terra).
A ocupação rural dessa região, durante o século XX, produziu pequenas e médias
fazendas voltadas para a subsistência e para o plantio de café e a pecuária extensiva.
Nelas, a arquitetura reproduz, aparentemente, um tipo de saber passado de geração a
geração, desde os tempos coloniais: a estrutura de madeira, a taipa de mão, o uso do porão
alto e, praticamente, a mesma volumetria da arquitetura vernácula da região central de
Minas Gerais, de onde vieram os primeiros povoadores. A principal diferença é que, por
ser uma região mais carente de recursos, raramente essas casas são assobradadas, como
na região de Mariana, por exemplo. Mas elementos como o alpendre, com balaústres de
tábuas recortadas, também ali estão presentes.

3 A CASA MINEIRA EM SANTANA DO MANHUAÇU

12Entrevista realizada em 2009 com o Senhor Jaci Alves de Freitas, 66 anos, nascido em 28/08/1946, em Santa Quitéria,
distrito de Santana do Manhuaçu, MG.
136

Com a intenção de acrescentar informações ao que já sabemos da casa mineira, é


importante dizer que, nesta região, ela distingue das de outras regiões de Minas, não pela
riqueza de detalhes, mas pela singeleza e pelas permanências, avançado o século XX, de
técnicas construtivas de tempos passados. A casa aqui é quase um anacronismo, não só
em relação ao método utilizado em suas construções, mas também pelos modos de vida
e costumes que seus moradores mantiveram, quase inalterados, de outras gerações.
Na arquitetura rural produzida no sul e centro-sul mineiros nos séculos XVIII e XIX, se
conferia todo o peso da estrutura da casa aos esteios de madeira, mas acamados no
embasamento em alvenaria de pedra; quando possível um lado da construção era apoiado
em uma encosta, e como resultado do desnível surgia um porão, dando-lhe o aspecto
assobradado. Por sua vez, na região de Manhuaçu, no leste mineiro, se percebe a
manutenção de técnicas construtivas setecentistas, o que faz dessas construções, modelos
novos de técnicas antigas, porém com algumas peculiaridades. Vê-se ainda o feitio das
construções ainda com seus esteios de madeira recebendo toda a carga da estrutura, porém
não existe o embasamento de pedras. Elas erguem-se sobre os esteios, raramente são
assobradadas, e estão assentadas quase sempre no meio de um terreiro, isoladas.
Por assim ser, essa casa mineira tem em sua estrutura, mais que a manutenção de uma
arquitetura que nos remete aos portugueses, há também uma forma ingênua de
preservação de métodos, que pelo distanciamento dos acontecimentos do restante do país,
se manteve quase sem influências ou modismos.
A casa quase sempre apresenta planta retangular ou conformação em “L”, tendo aos
fundos, na parte perpendicular à fachada: a cozinha, a despensa, a varanda ou como os
mineiros se acostumaram a dizer, “alpendre da cozinha”, e também a “bica” (MARTINS,
1998, p. 34).
O local onde se pretendia construir era escolhido pela disponibilidade da água, que era
levada até o mais perto possível da sua cozinha; quase nunca dentro dela, caindo o dia
todo em um constante e manhoso rumorejar.
(...) a casa rural mineira vai localizar-se sempre próximo a um rio, riacho ou nascente
d’água. Isso associado à topografia acidentada de quase todo território mineiro, vai
quase que obrigatoriamente vincular essa edificação a uma paisagem de meia
encosta, em fundo de vales. (BENINCASA, 2003, p. 96).
A água vinha lá daqueles altos, cortando o chão pra lá, tinha as pessoas que sabiam
como trazer a água, às vezes a água era longe, descia pro mato abaixo fazendo
aquele rego (...) e quando chegava, assim, faltando uns cinquenta metros pra chegar
em casa, aí eles rachava aqueles palmito e fazia; cortava aqueles gancho e pondo
137

aquelas lasca de palmito por cima daquele “trem”, até que chegava no terreiro,
quando chegava no terreiro, (...) era a bica. (...). Água dentro de casa não, só tinha
retirado da casa uns dez metros ainda, só tinha correndo na bica “memo” 13.
Quanto às suas características físicas, a fazenda mineira nunca foi formada por apenas
uma construção isolada (BENINCASA, 2003, p. 94), havia sempre nos limites do terreiro
a tulha, onde se armazenava o café; e o paiol, onde se colocavam os mantimentos ou
cereais como arroz, feijão, milho. Às vezes, a tulha e o paiol eram acomodados em uma
única cobertura, em espaços separados.
Nas proximidades do terreiro também ficavam o galinheiro; o chiqueiro ou mangueiro; a
horta, o jardim e o pomar; o engenho de moer cana com a varanda cobrindo a tacha onde
se fervia a garapa até o “ponto da rapadura”, e as fornalhas onde se preparavam a
rapadura, o melado, o açúcar mascavo e, também, o doce em suas variadas receitas.
Quando possível, se a quantidade de água fosse generosa e a queda d’água favorecesse,
por ali perto também podia ser encontrado o moinho, onde se fazia do milho o fubá e,
deste, o angu preparado cozido no “fogão de lenha”.
A cozinha é o ponto central do dia-a-dia da casa mineira, que esteve sempre relacionado
ao “fogão de lenha”, feito de barro, que subsidiava o necessário para que a maioria das
tarefas diárias fosse cumprida pela dona de casa. Durante o dia, ela era o local de trabalho
da mulher e de seus afazeres domésticos; à noite, ao redor do fogão, era local de reunião
da família, onde se recriavam cenas do dia passado e afastava-se o frio e, quando havia,
podia-se ouvir um pouco de rádio. Era também na cozinha que a visita, quando “de
casa”14, era recebida: enquanto havia movimento e gente acordada, o fogão expelia
fumaça.
Essa cozinha, por vezes, correspondia à metade da casa, quando não mais. Quase sempre,
numa nítida influência da tradição indígena, ela se expandia para fora, expressando a
dificuldade da dona de casa em aceitar seu espaço em um ambiente fechado dentro do
“corpo” da casa. Nesses casos, a cozinha era instalada numa espécie de varanda: um
puxado com meia parede, uma despensa em um canto e, “assentado” ali próximo, o fogão
a lenha.
Prontamente, se percebe a força dessa área tida como de serviço, mas que é também de
recepção, de acolhimento das visitas. Cotidianamente, a cozinha é a entrada principal da
casa; a partir dela, as divisões das necessidades são claras, surgindo os cômodos
13 Trecho da entrevista com o Sr. Anésio Pereira dos Reis.
14 Pessoa íntima da família, a qual não necessitava de protocolos para a chegada, conhecido, parente alguém habitual.
138

destinados ao descanso noturno (quartos), a salinha e a sala - espaço que após a chegada
da televisão, recebeu destaque e maior importância.
A sala e a “salinha” eram, quase sempre, desprovidas de mobiliário. A salinha era um
espaço retangular de distribuição e acesso aos quartos, quase um espaço sobrado, mas que
não devia ser nem sala, nem cozinha: era a mediadora da casa; por vezes recebia um
armário onde se guardavam louças pouco usuais, documentos nas gavetas e, nas portas
maiores, alimentos não produzidos na fazenda, como “açúcar branco”, macarrão, etc. -
que requeriam um espaço reservado dos demais que iam para a despensa, até por serem
difíceis de comprar.
Depois, chega-se à sala, espaço maior, com bancos e, raras vezes, com sofás: na sala
também se recebia, porém, pessoas não conhecidas, ou de status de “maior agrado”. Ali
também podiam ser armazenados grãos, ao menos até que estes pudessem ser
acomodados na tulha, paiol ou jirau. Era nesse espaço, dentro de casa, que o feijão era
separado da fava, o arroz de sua “munha”15, o milho do restolho. Limpos, eram guardados
na “trava”16, ou levados ao paiol ou à tulha. A limpeza de cereais era feita pela própria
família, à noite, como “distração”, entre conversas, à luz de lamparina que, terminado o
serviço, era apagada, e todos pela força da escuridão e do cansaço, se apegavam ao sono
imposto pela noite.
É preciso dizer que, em média, durante o século XX, numa casa rural mineira residiam
de oito a dez pessoas, às vezes mais. Média que caiu a menos da metade, nos últimos anos
do século XX. Por isso havia muitos quartos, que nada guardavam além de uma cama e
um baú, espaço medido pelo necessário para se entrar, dormir e sair; o do casal um pouco
mais dimensionado. Eram repetidos quase sempre lado a lado para acomodar a família e
para receber visitas, principalmente aos fins de semana. Na funcionalidade do cômodo, o
quarto das filhas era sempre pensado de forma especial, com porta dando no quarto do
casal, sem outro acesso que não uma janela, também quase encostada à do quarto dos
pais: assim, garantia-se a tranquilidade do sono dos pais e a moral das filhas, mesmo
quando havia visitas aparentadas do sexo masculino em casa.
O alpendre, receptivo e ventilado, deixava a casa mais fresca, era o lugar onde se recebiam
as visitas inusitadas, não esperadas, que só depois eram levadas à sala. No alpendre fluíam
15Quando o cacho do arroz é retirado da lavoura, ele traz muitas folhas secas, que se desfazem em pequenos fragmentos
(ou “munha”) ao serem secos no jirau, sendo necessário abanar tudo o que foi colhido para sua retirada.
16
Trava é uma espécie de jirau feito de tábuas, instalado logo abaixo da estrutura do telhado, preso ao frechal e às
linhas (ou tensores) das tesouras.
139

os casos e assuntos rotineiros, mas também era lugar de onde se via tudo acontecer,
sempre voltado para onde se podia enxergar o que se movia próximo, na lavoura, no curral
e se observava a presença de estranhos, alertada pelo cão, a chegar ao terreiro. Fornecia
esconderijo às crianças que, ao ouvir os latidos, corriam para bisbilhotar por entre as
aberturas dos balaústres, cobertos de vergonha e cheios de travessuras. O alpendre
também estabelecia certa imponência à fachada da casa mineira, com seus balaústres de
madeira recortada, sempre no lado mais alto da casa, sua forma o expondo para fora das
paredes, como que um puxado da casa, dando a ela certo movimento.

4 O MODO DE VIDA RURAL: HÁBITOS E COSTUMES

Nos Sertões do Manhuaçu, homens e mulheres, de várias origens17, misturaram suas


raízes, seus hábitos. Vieram dar vida a casa luso-mineira, além do indígena e do
português, também o italiano e o africano. Todos deixaram sua contribuição no cotidiano
da culinária mineira, no trabalho braçal na lavoura, na forma das crianças brincarem no
terreiro, no hábito de cozinhar no fogão à lenha da varanda, no hábito de comer macarrão
com arroz e feijão, acompanhado de carne de porco ou de frango, misturado a angu com
verduras...
O português recém-chegado o que fez foi adaptar-se ao clima apelando para
improvisações e recursos já conhecidos no Reino, como o alpendre refrescante, cuja
sombra sempre amenizava a temperatura interna (LEMOS, 1976, p. 45).
O índio forneceu a cerâmica da cozinha. Forneceu a que possuía e passou a copiar
modelos vindos de Portugal. (...). Herança indígena o jirau: armação horizontal de
paus suspensa acima do chão (LEMOS, 1976, p. 39 e 40).
Dos africanos, a taipa feita com paus roliços, num gradeamento amarrado por cipós,
cantos, comidas. Dos italianos, o apreço pelo trabalho diário, também alguns hábitos
alimentares, a religiosidade... São tradições resultantes da mescla cultural brasileira, que
pelos seus acertos, se firmaram, permanecendo como costumes, não unicamente mineiros,
mas que nas Minas ganharam seu espaço e se mantiveram.

17 Além dos imigrantes europeus, a região de Santana do Manhuaçu também recebeu migrantes de outras regiões do
Brasil, que agregaram a essa região seus costumes. Foram principalmente, paulistas e fluminenses que, com as
dificuldades em seus Estados, se aventuraram nas terras de Minas Gerais, onde o valor das terras era inferior e havia
menos burocracia para a sua aquisição.
140

Na casa mineira do século XX, as tarefas ainda eram organizadas por gêneros (masculino
e feminino). E mesmo hoje, certo conservadorismo ainda persiste quanto às tarefas
desempenhadas por um ou por outro.
O homem trabalhava na lavoura, e trouxe da mata o conhecimento das madeiras, a relação
do tempo, o conhecimento do clima, o saber lidar com as plantações. Também descobriu
as ervas: muitos “raizeiros”18 que preparavam “garrafadas”19 passavam para as gerações
futuras os conhecimentos adquiridos no preparo de raízes, folhas, cascas e flores. Hábito
de poucos, costume de muitos, as ervas vieram para próximo da casa, agora cultivadas
pelas mulheres em suas hortas. Já a madeira lapidada pelo homem era, para ele, matéria
estrutural de quase tudo que se pretendia edificar ou construir, em busca de refúgio,
proteção e/ou transporte.
A água que fervia na trempe, com o fogo atiçado da lenha roliça queimando lentamente,
era levada ao coador situado na ombreira da janela da cozinha: a brisa do amanhecer
levava de volta para dentro o cheiro do café recém-coado. A ele somavam-se na mesa, o
biscoito de polvilho, a broa de fubá, o pão de queijo, o queijo branco e o “leite gordo”,
com nata amarelada.
A ideia da mesa farta foi assumida como, mais que costume, questão de honra pelos
mineiros, mas nem sempre isso foi possível. Nos primeiros anos de colonização das terras
do leste de Minas, a alimentação era moeda de troca daqueles que nada possuíam: por
uma porção ou medida de feijão, trabalhava-se o dia inteiro para ter o que comer no outro
dia. No meio rural, a tradição mineira foi lapidada aos poucos, do que e como fazer, na
medida em que a terra foi sendo “descoberta” e repartida.
Depois de comer, já preparado, o homem partia para a lavoura tendo em mente a
obrigação de manter a casa com o que fosse preciso.
A mulher iniciava seu trabalho de cuidar da casa e preparar alimentos. A casa foi
praticamente um espaço feminino, generosamente aberto à recepção de seus homens e
acolhimento dos filhos. Era ela também quem primeiro recebia a visita: quando só ela
estava em casa e a visita era alguém conhecido, essa pessoa era convidada a se aproximar
pela varanda da cozinha. Cozinha, varanda, engenho de açúcar, hortas, pomares,
18 Homens que conhecem raízes e ervas medicinais encontradas nas matas.

19
Remédios caseiros preparados com ervas medicinais.
141

chiqueiros e galinheiros, além dos moinhos, eram espaços de “lida”20 das mulheres, onde
preparavam tudo quanto se consumia: garapa, melado, rapadura, açúcar mascavo, fubá,
pães, broas, pamonha, curau, angu. Do leite, faziam doce, queijo, requeijão, manteiga. Do
porco, linguiças variadas, toucinho defumado, pururuca. Tudo seguia por etapas
tradicionalmente passadas de mãe para filha.
O terreiro e varanda traseira, que durante o dia eram palcos de trabalho, em algumas noites
transformavam-se para dar lugar a festas com pagode caipira, forró, animados ao sabor
das quitandas que revigoravam as forças dos “pés de valsa”. As festas eram organizadas
por várias famílias, em geral vizinhos ou parentes, por motivos variados: aniversário,
casamento, dia santo ou final de colheita; os “arrasta-pés” adentravam a madrugada.
Os costumes relativos à religião, quase sempre aparecem dentro da própria casa, como
oratórios, estampas com representações bíblicas, textos na fachada, ou mesmo nas festas
folclóricas, tudo representando a devoção das famílias. Uma senhora, que mora há mais
de 50 anos numa das fazendas de Manhuaçu, conta sobre a recepção que era feita aos
charoleiros e fulieiros21 que sempre passavam em sua casa:
Charola, folia, quantas de vez dormiu “charoleiro” na nossa casa, os “fulião” na nossa
casa, dormia tudo lá, comia, “diara” (diariamente) eles mandava pedir “cume” 22 aqui
em casa, eu podia ta sozinha, chegava recado aqui em casa. (...). Ah! O “fulião”
mandou falar que vem jantar aqui hoje! Ou vem almoçar amanhã, eu podia ta
sozinha, ia pro terreiro matar frango... Graças a Deus, nunca negamos a janta pra
“fulião” nem pra “charoleiro”.23
Outro costume passado e apreciado pela família era o bem receber a visita, fosse ela
conhecida ou não, por isso e também pela necessidade, tropeiros eram bem recebidos por
onde passavam, era-lhes permitido acampar e ali fazer suas trocas de mercadorias.
Durante muitos anos, o tropeiro foi o único meio de comunicação entre o sertão e a cidade.
O morador rural do leste mineiro, suprido em suas necessidades básicas, acabou por
isolar-se. Disso resultou um linguajar próprio, o jeito rápido, a forma resumida e
adjetivada de falar, que de hábito passou a regra. Conhece-se um mineiro dessas zonas
em poucas palavras ditas. Também se criou um jeito típico de lidar com estranhos: para
20 Termo “lida” tem o significado de “trabalho” para os mineiros.
21 Personagens da Folia de Reis, manifestação folclórica típica das zonas rurais brasileiras.
22 “Cume”: comida, o de comer.
23Trecho da entrevista com Dona Maria Antônia de Souza, 84 anos (ano de nascimento: 1929), realizada em
06/02/2013, em Santa Quitéria, distrito de Santana do Manhuaçu-MG.
142

as crianças, a vergonha fazia com que falassem rápido, de cabeça baixa, para que logo
pudessem se “libertar” das regras e ficar à vontade; para os adultos, a curiosidade de
conhecer, saber das novidades do mundo e a necessidade falar de seu cotidiano com
pessoas novas fazia dos casos contados, quase histórias sem fim, que só não eram maiores
do que aquela que estava prestes a vir.
O homem mineiro aqui descrito nunca foi de alterar seu cotidiano, de ampliar sua
geografia. As novas gerações seguiam os caminhos designados pelo chefe da família. Isso
repercute inclusive na produção agrária: apesar de conhecermos Minas pelo “leite fresco”,
a Zona da Mata Mineira se dividiu entre a lavoura de café e o leite, sendo o café uma das
atividades mais desenvolvidas da região até os dias atuais. A dedicação e o exemplo
exposto dentro de casa encorajavam o filho a seguir o pai em seu fadigado dia-a-dia.
Decidido por segui-lo, aprendia a acordar cedo, a como usar e preparar uma ferramenta
para o trabalho, amolando-a na “pedra de amolar” à beira do córrego d’água. A profissão
que o filho iria assumir quando chefe de sua própria família era quase hereditária, a
mesma que a do seu pai. O mesmo ocorria com as filhas, que pelas suas mães eram
preparadas para o casamento e a rotina de dona de casa.
Para tanto, a obediência era exigida, o que era dito pelos mais velhos tornava-se quase
que irrefutável. Sem alarde, murmuração ou recusa, o silêncio refletia o respeito e a
submissão; fazê-lo, uma obrigação cultivada com rigor em gerações.
Assim, hábitos de vida que, de exemplo em exemplo, eram deixados para as próximas
gerações, enraizaram no cotidiano e no modo de vida, e foram mantidos por muito tempo
graças ao distanciamento do que acontecia nas outras regiões. Muitos deles ainda se
mantêm vivos, mesmo com a melhoria das estradas e a com a chegada de meios de
comunicação atuais.

5 COMO SE MORA EM UMA CASA MINEIRA DE MANHUAÇU

A casa mineira do leste de Minas, até meados do século XX, foi edificada próximo à Mata
Atlântica, que revestia todo o entorno dos sítios, protegendo os “brotos” ou nascentes,
cuja água abastecia a bica, constantemente. Nos dias de inverno, pela manhã, essa água
gelada enche as mãos do homem que sai da casa e lava seu rosto, e enquanto o homem se
livra do sono da noite, a mulher trata de aguar sua horta, retirando dela o sereno, para que
as folhas das verduras não se queimem.
Da mesma bica, a mulher busca a água necessária para suas tarefas básicas. Logo depois
busca a lenha já cortada e guardada sob o telheiro, e, com o auxílio da palha de milho, ela
143

acende o fogo para aquecer a “água do café”. O café é passado no coador de pano,
próximo da janela. O sol nasce, a neblina se dissipa entre as árvores. O homem começa a
“tirar o leite”, tarefa que é sua responsabilidade antes da saída para a roça.
O leite é levado do curral para a varanda, onde a mulher o coloca para coalhar, e formar
a massa para o queijo. Enquanto isso, ela trata das “criações”, alimenta e solta galinhas e
porcos para pastar até a tarde, quando serão presos novamente. Depois, volta para dentro
e, com a massa no ponto, a espreme retirando dela o soro e moldando o queijo, que depois
é salgado e levado até a verga da janela da cozinha, onde fica a descansar num suporte de
tábuas levemente inclinadas, maturando e escorrendo o soro restante. O soro é dividido:
um pouco para o cão e, o restante, acrescentado de milho, é dado ao porco. O milho
“incha” no estômago, fazendo o animal engordar mais.
Agora o homem já amolou suas ferramentas e vai para a lavoura. A mulher se prepara
para usar a água que deixara no fogão de lenha para dar início ao almoço, o cardápio é
elaborado e preparado com gordura de porco - talhada e armazenada na lata; com a carne
seca no jirau, acima da trempe do fogão; com as verduras, legumes e ervas da sua horta.
Preparado o almoço, ele é cuidadosamente arranjado para ser levado ao “pé do eito” onde
o homem trabalha. Rapidamente, a mulher vai e volta para a casa, que deixou com as
janelas abertas para pegar o sol, porém com o portão da cozinha fechado, para que
nenhum animal entre.
Logo, inicia a fazer a quitanda, que deve estar pronta para levar lá na roça, quando for
meio dia. O café é importante estar bem quente, mesmo que o sol esteja “alto no céu”,
ninguém gosta de tomar café frio na roça! - diz Dona Maria Antônia de Souza. O farnel
agora é composto de bolo de fubá, biscoito de polvilho, broa, queijo: tudo preparado e a
tempo, ela torna a levar o alimento necessário ao “pé do eito”.
De volta, limpa e organiza a casa, pois, ao vencer da tarde, tem que fazer a tachada de
algum doce com fruta da estação, na fornalha, debaixo do telheiro externo, cozinhando
até que, pronto, é deixado a esfriar em uma travessa, ou espalhado em uma folha de
bananeira, que pelo avesso recebe o doce ainda quente para esfriar e depois ser picado e
servido como sobremesa.
Antes que o sol se ponha, a mulher reaviva o fogo, pois a hora do homem voltar da roça
está próxima. Quando ele chega, sua água quente é temperada com a fria da bica em uma
bacia, ele se lava, troca de roupa e aguarda que a janta fique pronta, e conversando com
a mulher, ouve e conta como foi o dia. As crianças que durante o dia, tiveram a rotina de
brincar no pomar, comer frutas verdes e sempre fazer algumas tarefas marcadas para cada
um, se lavam na bacia e aguardam a última refeição do dia. Durante a comida, a mulher
144

coloca no prato o que cada um deve comer - nada pode sobrar. Um ovo para dois, um
pedaço de carne também, comer quieto e calado, sinal de respeito.
Alguns hábitos novos foram mudados com a chegada da energia elétrica. A conversa na
banca do fogão deu lugar ao sentar-se à mesa para ouvir o rádio, músicas sertanejas, os
“modão” de viola. Tudo agora iluminado pelo único bico de luz da casa sem forro, situada
na cozinha, na altura do espigão.
A noite é também hora de trabalho, como debulhar o milho, socar no pilão a medida do
arroz do almoço do dia seguinte, moer o café, bater feijão, para que no amanhecer esteja
tudo mais fácil.
A casa desprovida de eletrônicos faz com que a conversa entre noite adentro: histórias de
assombração, lendas, enchem de curiosidade e medo àqueles que ainda não as entendem
por completo. Na sala, o sono chega. O silêncio da noite é entrecortado pelos sons dos
bichos noturnos. Na casa alta do chão, de tabuado irregular, qualquer movimento brusco
é ouvido dentro ou fora. Janelas são fechadas para aquecer o interior. Depois, o som ainda
reinante é o da água, que continua a cair no cocho lá na bica. Todos vão dormir. Às vezes,
o rádio ainda canta as modas caipiras e só é desligado pelo homem, quando este percebe
que todos já dormem. A noite fria faz com que o fogo se reduza a cinzas, a cerração desce
lentamente no terreiro, pois no terceiro cantar do galo todos hão de se levantar para o
novo dia.
No quarto, pequeno e estreito, uma janela, um baú em um canto para guardar os “trapos”,
uma cama simples e, sobre ela, um colchão de palha de milho, que precisa ser remexido
antes de se deitar para retirar a parte funda no centro. Quando preciso, uma cama de
solteiro é dividida pelos irmãos.
A história dessa casa é a história das pessoas que a habitam: se grande ou pequena, se
bonita ou feia, o que se sente em seu interior é o que realmente a faz especial. Enquanto
durou o relativo isolamento com o ambiente urbano, ela se manteve rústica, assim como
o modo de vida, rude e antiquado; a vida fatídica, mas tranquila; o dia calmo, mas
rigoroso. Nesse ambiente se preservou, enquanto pôde, o modo de ser mineiro, meio
envergonhado, mas sabedor de seus dons; humilde, porém conhecedor da vida.

6 A CONSTRUÇÃO DE UMA CASA RURAL NO SÉCULO XX NO LESTE


MINEIRO

Em Santana do Manhuaçu, uma grande parte das casas da área rural foi edificada com
estruturas de madeira nativa, cobertas por sapé, telhas de madeira ou de barro. Essas
145

últimas eram produzidas em olarias que funcionavam para atender a uma casa em
específico, logo depois, deixando de produzir. Nas paredes foram usadas técnicas de
vedação antigas, como a taipa de mão aplicada ao pau a pique; na implantação, o terreno
era modificado e nem sempre a casa se apoiava na encosta, como no partido tradicional
mineiro.
A casa era planejada pelo dono e edificada pelo carapina, tudo partia da conversa onde o
primeiro devia passar para o segundo o entendimento sobre o desejado. Nada de papel,
pranchas; apenas gestos, palavras e exemplos ilustravam o que seria edificado. Porém, ao
contrário do que se possa pensar, não há ausência de técnica na construção da casa no
Leste de Minas. Percebe-se ali o uso do cálculo intuitivo, mas encaixes e cortes feitos
com precisão, embora com técnicas rudimentares.
Além do patrimônio construído, há ainda poucos, mas entusiasmados construtores
remanescentes. Um deles é o Sr. Anésio, carapina que ajudou a construir várias casas na
região e, a partir do seu relato e de outras vivências, trataremos de como a casa começava
a ser edificada.
A origem e a forma como a água se apresenta no terreno é de suma importância, o terreno
era avaliado de acordo com a disponibilidade e quantidade de água, e se essa, por desnível
natural, teria condições de servir a casa, pois a gravidade era a única força possível de ser
usada24.
Depois de escolhido o local, eram abertos os canais ou “regos”, que conduziam a água da
nascente ao mais próximo possível da casa. Uma opção seria conduzir a água por outros
meios: em “canos de bambu”, unindo várias partes se canalizava a água até uma bica;
também poderia ser feita com partes de embaúba, madeira que possui gomos maiores,
com a possibilidade de que a tora fosse lascada ao meio formando dois canais. Ter água
em abundância era de extrema importância, além do abastecimento, poderia favorecer a
construção de um moinho ou monjolo, por exemplo. Construídos, estes serviam ao
proprietário e a outros, que pagavam pelo serviço trabalhando em sua roça. O bom
costume ensinava a servir a quem precisasse e nesse caso, água para a bica não era negada
nem ao vizinho.
Para se construir uma casa de madeira suspensa do chão eram necessárias pessoas que
entendessem dos entalhes de madeira, corte, montagem, enfim, fossem bons carapinas
(espécie de carpinteiros que faziam o trabalho mais bruto). Para isso, era preciso ter
24
Entrevista com o Sr. Anésio Pereira dos Reis, com 70 anos (data nascimento:1942), realizada em 08/02/2013, em
Santa Quitéria, distrito de Santana do Manhuaçu-MG.
146

alojamento, além de algo para trocar ou dinheiro para pagar, logo, quem não possuísse
terras dificilmente teria essa mão de obra, nem onde construir ou madeira para cortar.
Assim, a construção indicava status, boa situação e garantia o respeito dos demais.

Todo o trabalho era feito manualmente, sem máquinas. Havia situações em que o
fazendeiro ao falar como queria a sua casa, fazia os carapinas, “chamados” a construir,
desenhar no chão o esboço da casa. Assim se entendiam os problemas, o que seria preciso
para a construção, e os pormenores restantes seria entre eles discutido durante a
construção.
Os carapinas, após entenderem as dimensões, a forma e a posição da casa, partiam para a
mata, à procura da madeira necessária. Ao encontrar, davam no tronco um pique com o
machado, era o sinal para o corte da árvore que, então, era transportada por bois, a arrasto
ou de carretão, até o local onde seria preparada, o chamado “estaleiro”, ou canteiro de
obras. Quando armado na encosta, o estaleiro facilitava o colocar e retirar a madeira
lavrada com o uso do “gurpião” - serrote de dois lados.
Cada tronco apresentava uma especificidade de uso, dependendo da espécie, do formato
e do local onde crescera. Por exemplo, a madeira ideal para esteios, era a de solo
pedregoso e seco. Uma exceção era a braúna, que tinha boa madeira fossem as nascidas
em solos pedregosos e secos, ou solos profundos e úmidos. O uso também era definido
pela escolha de construção da casa, o tipo de solo (úmido ou seco) indicava quais seriam
as melhores opções de madeira.
Até que a madeira começasse a ser lavrada, nada era feito no terreno. Era preciso que
fosse retirada da mata toda a madeira necessária para se erguer e fazer o fechamento
(“tampar”) da casa - caso não houvesse a madeira necessária nas proximidades, a busca
seria maior e isso atrasaria todo o trabalho. As peças eram lavradas de maneira a
atenderem as primeiras necessidades dos carapinas, como por exemplo, para um esteio
ou manco, viga ou frechal, barrote ou tabuado, porta ou janela, cumeeira, “guieiro”
(rincão), caibro ou ripa. Separadas para estrutura ou móveis, e assim por diante. A
primeira parte da construção, o lavrar a madeira, era de responsabilidade dos carapinas.
Tendo a madeira preparada no estaleiro, se podia começar a trabalhar no terreno onde
seria erguida a nova casa. Para isso o dono contava com a ajuda de “companheiros” que
trabalhavam para ele “descampando” e nivelando o terreno a poder de enxadões ou
“itabiras”, e desse trabalho surgia um barranco, onde ficaria a casa e o terreiro ao seu
redor.
147

Com a madeira lavrada e o terreno preparado, carapinas, carpinteiros e proprietário davam


início à segunda etapa, o assentamento dos esteios, que tinham de estar aprumados. E
começava o feitio dos encaixes com ajuda de ferramentas como: enxó, formão, macete,
etc. Seguia-se a colocação dos mancos, das vigas e dos barrotes que, prontos, recebiam
as tabuas do assoalho.
Tendo a base pronta, os carapinas sediam aos carpinteiros (estes faziam um corte mais
apurado da madeira) o comando do serviço, e começava a terceira etapa, a cobertura.
Eram armados os frechais, já com os pontos (perfurações) para a estrutura do pau-a-pique;
portas e janelas eram posicionadas, seguindo certa simetria, “de distância em distância
tinha que ter uma janela”, disse o Sr. João Pedro15 em entrevista, dono de uma das casas
antigas que se encontra na região.
Após colocar a trama do pau-a-pique, feita de madeira roliça ou lascas de palmito ou
ainda bambu, tudo amarrado com cipó, dava-se início ao madeiramento do telhado:
assentavam-se cumeeira, espigão, terças, caibros e ripas, e então se procedia ao
telhamento. A telha, como já mencionado, também era feita de madeira, chamada de
tabinha. A “coberta”, termo que tem o mesmo sentido de telhado a região, era então
entregue, e a parte de responsabilidade dos carpinteiros e carapinas terminava.
O barreamento, a quarta etapa, era o ato de se jogar o barro na trama do pau-a-pique,
fazendo a vedação das paredes. Do entorno da casa era retirada a terra, cavada do
barranco. Desfaziam-se os torrões e jogava-se água, amassando a mistura com os pés. Às
vezes, dependendo da quantidade necessária de barro, colocavam para girar em torno da
casa juntas de bois ou cavalos para ajudar no maceiro, quando não, uma multidão de
pessoas oferecia o jitório16 e ajudavam na “empreitada” de barrear a casa. Barrear a casa
era uma empreitada difícil, muitas vezes deixada para ser feita no fim da semana, quando
vizinhos e conhecidos podiam ajudar na tarefa, pois sabiam que, quando precisassem,
todos fariam o mesmo.
O barreamento exigia o trabalho de carregadores e cortadores de barro: como não havia
vasilhames para o transporte do barro, este era colocado nas costas dos carregadores que
o levavam até o andaime em volta da casa onde estavam os cortadores de barro. Quando
lá chegavam, jogavam o barro na treliça do pau-a-pique, o cortador, com o braço,
15Entrevista com o Sr. João Pedro da Silva, com 71 anos (ano de nascimento: 1942), realizada em 10/02/2013, Córrego
Santo Agostinho, município de Santana do Manhuaçu-MG.
16Termo “jitório”, corruptela de ajutório, é utilizado para explicar o serviço prestado ao outro em troca de um mesmo
favor quando este precisar, normalmente muitas pessoas participavam. É uma espécie de mutirão.
148

arrematava o excesso de barro da parede, fazendo assim o “corte” do barro. Eram normais
as imperfeições e ondulações nas paredes, que depois de barreadas podiam receber uma
camada de terra com areia fina na tentativa de regularizá-la.
Após o barreamento, uma festa em comemoração era responsabilidade do dono, muito
esperada por todos que haviam trabalhado no “jitório”: ela marcava o fim da construção
para os ajudantes, mas ainda havia muito que fazer para o morador.
Começava aí a quinta etapa, o descanso, um longo período de espera onde a casa pronta
era deixada toda aberta para que o ar pudesse circular e fazer com que o barro secasse
mais rápido - mesmo assim a demora podia passar dos seis meses, dependendo da estação
do ano.
Seco o barro, a sexta etapa era a caiação. Alguns pintavam as paredes com várias demãos
de barro branco (tabatinga), retirado de algum buraco ali por perto. A tabatinga, dissolvida
em certa quantidade de água, tornava-se uma mistura viscosa que era aplicada à parede
com um pano. Em outras casas, passava-se “terra de formiga”17 também misturada à água
e dependendo da cor, vermelha ou amarela, era pintada toda a parede ou apenas um
barrado externo. Tinta para as madeiras de janelas e portas eram compradas na cidade e
usadas em tons de verde, azul, laranja e vermelho, as cores mais encontradas nas casas
existentes.
A casa quando de assoalho, alta do chão, simbolizava a importância e a riqueza: quanto
mais alta, maior era a importância de seu proprietário. Havia dificuldade para encontrar
pessoas que soubessem trabalhar com a madeira para uma casa muito alta18. Era preciso
contratar profissionais, que cobravam caro e não trabalhavam em sistema de mutirão...

17 Terra de cupinzeiro é a terra que a formiga retira dos túneis formando a entrada característica dos formigueiros, essa
terra tem a consistência e forma granulada bem pequena, era usada tanto para "curar feijão" para que não se carunchasse,
até para tingir a alvenaria das casas, ou dar liga na massa para a união dos tijolos.
18 Entrevista feita com o Sr. João Pedro da Silva, 71 anos, feita em 2012.
149

Figura 1. Sítio Reis, implantação: 1. Casa; 2. Engenho; 3. Paiol e Galinheiro; 4. Telheiro da Fornalha; 5.
Moinho; 6. Chiqueiro; 7. Mangueiro; 8. Horta; 9. Plantação; 10. Cafezal; 11. Pomar; 12. Córrego; 13.
Terreiro-Levantamento e desenho: U. A. Domingos
150

Figura 2. Sítio Souza, Distrito de Santa Quitéria, Santana do Manhuaçu, 1911. Foto: U. A. Domingos

Figura 3. Sítio Souza: planta da casa, com distribuição interna típica. Levantamento e desenho: U. A.
Domingos

Se na casa houvesse uma varanda de chão batido, de vez em quando era necessária a
aplicação de estrume de boi no chão, também misturado na água. Essa “massa” era
aplicada com uma “vassoura de mato”: após seca, criava-se uma camada esverdeada, que
impedia a criação de poeira e corrigia pequenos buracos ou fissuras. Aplicar essa mistura
deixava o ambiente mais “asseado”, fresco, e sem cheiro, segundo antigos moradores.
Nessas casas, a cozinha ficava na varanda de fora, onde o piso era de terra batida, e esse
era um dos motivos da água não chegar dentro de casa, mas na bica; e quando as condições
financeiras permitiam era assoalhada, mas havia também o medo de que a lenha do fogão
pudesse colocar fogo na casa, caso alguma brasa caísse no assoalho de madeira e não
fosse percebido, por isso esse tipo de piso era evitado na cozinha.
151

A casa descrita aqui não foi a única da região, há relatos de casas mais simples ainda,
edificadas até em maior proporção, só não resistiram ao tempo devido a sua precariedade,
cobertas com sapé, com pau-a-pique fincado no chão, mal barreadas. Essas sofriam com
a chuva, o terreno úmido e a falta de manutenção. Não possuíam escadas, alpendre ou
assoalho. Nelas, luz só a produzida pela gordura de porco. Há relatos de que animais,
como porco e galinha, eram criados na cozinha. São algumas características da casa que,
ao lado da de madeira, abrigou a maior parte dos mineiros nessa região durante o início
do século XX.
Para entender e valorizar a casa do leste mineiro é preciso, antes de tudo, entender e
valorizar o simples, e conhecer os costumes e as necessidades locais: entender a casa é
entender seu morador, e vice-versa.
Essa casa mineira é uma resposta à adaptação ao meio: abundante de matéria prima que
se encontrava ainda em matas virgens, porém carente de recursos econômicos e de
técnicas mais sofisticadas. É a casa de uma época em que as pessoas procuravam se
adaptar às necessidades de uma cultura em expansão, o café, sem deixar de lado aquilo
com que desde sempre esteve envolvido o mineiro, o trato com o gado. Nessa adaptação
ao novo e necessário modo de vida, soube extrair do imigrante e do índio aquilo que
poderia auxiliá-lo em sua “empreitada”, a casa se adaptou não a modismos, mas à
necessidade básica para a vivência desse mineiro, e seu proprietário também alterou sua
forma de construir, trabalhar e viver. Sua casa representava quem era, para si e para os
outros, e nela permaneceu a cordialidade, a humildade e o bom trato à visita. A casa, para
o mineiro, continuou sendo o lugar onde tudo surge, acontece e, bem ou mal, se resolve.
Construída a casa, o terreiro era a próxima etapa. Era então limpo e, diferentemente de
outras regiões de Minas, aqui a casa se estabelece no centro dele, e nas laterais são
organizadas as “varandas”, telheiros que recebiam as diversas funções do sítio. Essas
varandas eram telheiros, normalmente em duas águas onde ficavam: o engenho de
cachaça; a cobertura para a “tacha”, onde se produzia a rapadura; as fornalhas onde se
preparavam os doces; o curral; o paiol; a tulha; o chiqueiro; o galinheiro e, quando
possível, o moinho e/ou o monjolo, que eram equipamentos caros, e muito
excepcionalmente, uma pequena usina de energia elétrica à água ou à diesel, que fornecia
energia a somente a noite, e em horários programados.
152

Nas bordas do terreiro, ficavam a horta, o mangueiro19, o pomar; além de um espaço para
o plantio de gêneros para o consumo da família, como milho, mandioca, entre outros.
O motivo maior do terreiro era a secagem do café: ele justifica todo o arranjo das
construções, acomodadas nos cantos, com exceção da casa. Sempre aberto para o norte
ou o poente, no período de colheita era banhado pelo sol a maior parte do dia, sem
sombras. Foi o café que constituiu as fazendas e sítios no leste de Minas Gerais.
Anualmente, ele se transformava em dinheiro, quando vendido na cidade, que poderia ser
trocado pelos itens não produzidos no sítio, garantindo a sobrevivência básica.

7 CONCLUSÕES

Nos levantamentos e nas entrevistas, percebe-se que o modo de construir e viver pouco
se alterou até a década de 1970.
Com relação às edificações construídas antes dessa data, quase todas as casas foram
construídas em regime de mutirão, ou ajuda mútua entre vizinhos.
Todas foram construídas sobre esteios de madeira, erguidas do solo, originando porões
abertos ou fechados, onde são estocados lenha, ferramentas, servindo também de abrigos
para animais de pequeno porte, etc. Os usos são bastante variáveis. A estrutura autônoma
de madeira aparece sempre, variando a técnica de vedação: taipa de mão nas mais antigas,
tijolo nas mais recentes. Nas aberturas, raramente aparecem folhas envidraçadas. Quase
sempre possuem apenas os escuros.
A altura das casas variava de acordo com as posses do proprietário, as mais altas
necessitavam de mão de obra mais especializada, para o corte, transporte e todo o trabalho
de carpintaria (encaixes, etc.), sendo mais caras. As mais baixas, muitas vezes feitas com
madeira mal aparelhada, ou mesmo roliça, sem desbaste, tinham o custo de sua execução
(mão de obra) mais em conta.
Quanto à distribuição dos cômodos, há uma tipologia que se repete: a da cozinha aos
fundos, com varanda externa; uma faixa central que atravessa toda a extensão da casa,
dos fundos à frente, ocupada por salinha e sala, ladeada por um número variável de
dormitórios, com ou sem alpendre frontal (“varanda”).

19Espaço cercado de lascas de madeira onde se prendiam os porcos para engorda, com chão de terra e canal de água
de água corrente.
153

Pode-se concluir que essas casas são muito semelhantes, na volumetria e na aparência
externa, além do emprego das mesmas técnicas construtivas, àquelas encontradas em
exemplares de fazendas da região de Mariana, Ouro Preto e Barra Longa, de onde vieram
os primeiros povoadores.
Esse modo de construir e morar perdurou enquanto se manteve o relativo isolamento
dessas áreas rurais do leste mineiro, até a década de 1970. A partir da abertura de novas
estradas, algumas até asfaltadas, e da chegada do automóvel, a influência das construções
urbanas se fizeram sentir. A facilidade na obtenção de novos materiais construtivos foi
determinante nesse aspecto.
Esse trabalho teve o objetivo de documentar o que ainda resta desse tipo de arquitetura,
em que as permanências arquitetônicas de técnicas do século XVIII são muito claras. É
também um alerta, pois seu futuro é incerto, muito provavelmente poucas restarão em um
prazo de tempo muito curto, pois além do alto custo, pouco a pouco desaparece aquele
saber construir das pessoas que as construíram.
Em sua simplicidade e rusticidade, traduzem um modo de vida de um homem ainda muito
próximo da natureza. Num mundo que se afasta cada vez mais do convívio com a terra,
essa talvez seja a grande riqueza e lição dessas casas para o homem contemporâneo,
aproveitar o que a natureza tem a oferecer, mas respeitá-la.

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENINCASA, V. Velhas Fazendas: arquitetura e cotidiano nos campos de Araraquara 1830-1930. São
Carlos: EdUFSCar; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2003.

LAGE, P. R. A. ALMEIDA, D. P. Casa Rural Mineira: um guia de construção. Belo Horizonte, Palco
Editora, 2011.

LEMOS, C. A. C. Cozinhas, etc. São Paulo, Editora Perspectiva S A, 1976.

MARTINS, H. T. Sedes de Fazendas Mineiras. Campos das Vertentes, séculos XVII e XIX. Belo Horizonte,
BDMG Cultural, 1998.

MENEZES, I. P. Arquitetura Rural em Minas Gerais Século XVIII e Inícios do XIX. In: Barroco 12. Belo
Horizonte, 1983.

AGRADECIMENTOS
154

Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo
financiamento da pesquisa, através do processo 2012/17216-3.

AUTORES
Ueslei Domingos Alves: Arquiteto formado pela ASSER-Rio Claro, em 2013, professor do SENAC-Rio
Claro. Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/8620534663983546.
Vladimir Benincasa: Professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da UNESP-Bauru; vice-presidente do CICOP-Brasil; autor
do livro “Velhas Fazendas. Arquitetura e cotidiano nos Campos de Araraquara 1830-1930”, publicado pela
EdUFSCar/IMESP, em 2003. Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/7716721533438667.
155

TEMÁTICA II: CIDADE


156

Cidades e Rio Tietê: transformações e intervenções


Norma Regina Truppel Constantino
Kawani Yuri Nishimura
Luana Ripke da Costa

RESUMO: Na relação entre rios e cidades Cities and Tietê River: transformations
observam-se várias transformações na paisagem and interventions
ribeirinha, resultantes de intervenções que
combinam proteção, gestão e ordenamento do ABSTRACT: In the relation between rivers and
território. O presente estudo é o resultado de uma cities, there are several transformations in the
pesquisa sobre a relação do rio Tietê – importante riverfront resulting from interventions that
rio que cruza de leste para o oeste o Estado de São combine protection, management and territorial
Paulo – com as cidades de Sabino e Igaraçu do Tietê. planning. The current study is the result of a
Os procedimentos metodológicos compreenderam research regarding the relationship between Tietê
o levantamento bibliográfico e fotográfico, River - an important river that crosses the state of
entrevistas, percursos de observação ao longo do São Paulo from east to west - and the cities of
rio e entorno próximo; pesquisa documental, Sabino and Igaraçu do Tietê. The methodology
incluindo legislação, planos e projetos e adopted includes bibliographic and photographic
sistematização dos dados coletados. Estes researches, interviews, observation paths along the
procedimentos e a leitura da paisagem river and the edges; documental research, including
possibilitaram a elaboração de uma proposta legislation, plans and projects, and systematization
projetual paisagística em duas áreas ribeirinhas, of the data collected. These procedures and the
levando em conta a história do lugar, a questão reading of the landscape allowed the elaboration of
157

ambiental e os interesses da população e da a landscape architecture project in two riverfronts,


administração municipal. Nesse sentido, ao propor taking into account the history of the place, the
um projeto às margens do Rio Tietê pretende-se environmental question, and the interests of the
qualificar a cidade, proporcionando diferentes population and the municipal administration. In this
formas de fruição além de contribuir para a sense, proposing a project on the banks of the Tietê
formação da identidade do espaço urbano. River intends to qualify the city, providing different
forms to enjoy besides contributing to the identity
formation of the urban space.
Palavras-chave: rios urbanos, paisagem, espaços Keywords: urban rivers, landscape, urban open
livres urbanos spaces
158

1 INTRODUÇÃO

Ler a paisagem é extrair os modos de organização do espaço (BESSE, 2014). Nesse


sentido, o espaço urbano pode ser enfocado como variável dependente, sendo
determinado pelos condicionantes naturais e sociais do meio em que se realiza. E também
pode ser enfocado como variável independente, pois é capaz de determinar o modo de
vida e alterar o meio natural. Considerando estas questões, o objetivo principal do artigo
é apresentar como se processa nos dias atuais a relação de interferência entre as duas
variáveis: rio Tietê1 e cidade.
A paisagem é o território construído pelo homem, um lugar ou uma região na qual a história
dos homens é explicada e onde foram deixados traços, memórias de uma atividade produtiva,
sinais de infraestruturas, monumentos arquitetônicos ou espaços. Traços que não só
permanecem por muito tempo, mas que afetam e condicionam decisivamente os processos
de crescimento e de transformações das cidades, do território e da paisagem. Assunto (2011)
considera território como uma extensão mais ampla da superfície terrestre; ambiente como
o território marcado com características biológicas, históricas e culturais significativas; e
paisagem como a experiência viva no ambiente, sendo os dois primeiros de caráter mais
abstrato, enquanto o último seria o concreto, aquele que é habitado. Para Assunto (2011,
p.129), “a realidade que devemos estudar e sobre a qual, se necessário, devemos intervir é
sempre a paisagem”. Portanto, estudar a paisagem é entender o espaço em contato com o
homem.
Jean Marc Besse (2014), em seu texto “As cinco portas da paisagem”, apresenta diferentes
entradas (chaves de leitura) para a paisagem, que pode ser vista como uma representação
cultural; como um território produzido pelas sociedades na sua história; como um
1Este capítulo é um recorte das pesquisas de Iniciação Científica desenvolvidas por alunas de graduação em Arquitetura
e Urbanismo da FAAC-UNESP, orientadas pela Profa. Dra. Norma R.T. Constantino; uma versão inicial foi
apresentada no PLURIS 2018 - 8º CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO para o Planeamento Urbano, Regional,
Integrado e Sustentável, realizado em Coimbra-Portugal.
159

complexo sistêmico; como um espaço de experiências sensíveis; ou ainda um local ou um


contexto para o projeto. Nessa pesquisa, a organização do espaço é a leitura primordial
para estudar a paisagem. A paisagem é um espaço social; então, para compreendermos a
ocupação urbana ao longo do rio Tietê é preciso observar as formas espaciais e sua
diversidade, elementos estruturantes e as dinâmicas (para aprender sobre o projeto da
sociedade que o produziu), morfologias e fluxos, descontinuidades do espaço e
circulações (BESSE, 2014). No processo de construção e de transformação da paisagem
urbana, pode-se revelar e valorizar ainda mais os seus significados e atributos, tornando-
os visíveis.
Considerando a dimensão da objetividade prática da paisagem em sua parte material, e
sobretudo espacial, a paisagem se define como um território produzido e praticado pelas
sociedades levando em conta os fatores econômicos, políticos e culturais. Nesta perspectiva,
o valor paisagístico de um lugar não é considerado como essencialmente estético, mas
relacionado com a soma das experiências, dos hábitos, das práticas que um grupo humano
desenvolveu neste lugar (BESSE, 2014). Elemento da paisagem natural e da paisagem
urbana, o rio foi intensamente transformado, muitas vezes por falta de conhecimento, por
não ser visualizado ou pela incapacidade de compreendê-lo. No entanto, muitos lugares vêm
perdendo sua própria identidade. Os conflitos entre os processos fluviais e os processos de
urbanização têm sido de um modo geral, enfrentados através de drásticas alterações na
estrutura ambiental do rio.

1.1 Rio Tietê: reconhecendo a paisagem


O rio Tietê foi fundamental na geografia e na história de São Paulo, pois atravessa o
estado de leste a oeste, descendo das vertentes da serra e desaguando no rio Paraná. O rio
nasce na Serra do Mar, no Município de Salesópolis, distante 22 quilômetros do Oceano
Atlântico e em uma altitude de 1030 metros, e não segue em direção ao mar, mas avança
no sentido do interior de São Paulo.
Corta a capital, identificando-se com seu desenvolvimento, mas modificando-se
completamente pois “a poluição doméstica e industrial se incorpora às águas do rio e as
modifica. Elas se tornam negras, densas, mal-cheirosas, quase paradas, palco de um triste
espetáculo” (OHTAKE, 1991, p.19). Em razão das diversas transformações que a cidade
de São Paulo enfrentou ao longo do século XX, o rio que antes era marcado por meandros
foi sendo modificado radicalmente. Segundo Ohtake (1991), o caminho sinuoso do leito
do rio forma portos de areia e estes foram explorados para a produção de tijolos, assim,
essas áreas foram perdendo suas características curvas originais, ampliando as áreas
160

sujeitas às enchentes. Por volta da década de 1940, o rio foi retificado e perdeu cerca de
25 quilômetros de seu traçado original.
Até meados do século XIX o Oeste paulista era considerado nos mapas como “sertão
desconhecido habitado por indígenas”. Em função desse cenário de desconhecimento foi
criada a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo – CGG em 1886. A CGG
elaborou mapas, relatórios, artigos científicos e demais materiais que “foram
fundamentais na transformação da forma de representar; ver e utilizar as águas do sertão”
(CORRÊA & ALVIM, 1999, p.37). A partir disso, o poder público passou a ver os rios
tanto como forma de penetração em São Paulo como para o escoamento de café.
A forma como os rios eram vistos como via de comunicação perdurou até meados do
século XIX quando São Paulo começou a viver um intenso processo de industrialização
e modernização financiado pelo café, criando infraestrutura para expandir
economicamente. É nesse período que a implantação das ferrovias ganhou força e os
investimentos destinaram-se ao transporte terrestre. Nesse contexto, a ótica dos rios
modificou-se e estes passaram a ser vistos como fonte de geração de energia elétrica.
Mesmo com a crise de 1929, a agricultura paulista continuou expandindo. Segundo
Corrêa & Alvim (1999) o estabelecimento das indústrias destinadas ao processamento de
produtos primários no interior paulista foi gerador de grandes transformações na
economia. Destacou-se, nesse período, a expansão algodoeira com o surgimento das
primeiras indústrias têxteis produtoras de tecidos destinados às vestimentas e ao
ensacamento dos produtos agrícolas de exportação. Além disso, essas indústrias exigiam
a proximidade com os rios para o aproveitamento de quedas d’água, o que fez mudar a
relação que a população ribeirinha tinha com as águas, assim como a visualização dos
recursos hídricos como uma oportunidade de gerar recursos econômicos aos grandes
empresários.
A industrialização teve seu auge entre os anos 1956 e 1960. Nesse período, o
fornecimento de energia elétrica intensificou-se e diversas usinas geradoras e
distribuidoras de energia hidroelétrica foram criadas em São Paulo. Ao mesmo tempo, a
atividade petrolífera teve um grande crescimento, o que gerou um desenvolvimento da
indústria automobilística e construção de rodovias, ocasionando uma consequente
consolidação do transporte rodoviário.
Com a Revolução de 1964, houve um declínio do investimento industrial. Contudo, anos
depois foram realizadas reformas fiscais e financeiras, criando condições para a retomada
do crescimento econômico, sobretudo em áreas de energia elétrica. Com o intuito de
racionalizar o fornecimento de energia, a CESP – Companhia Energética de São Paulo
161

(antes Centrais Elétricas de São Paulo) foi responsável por centralizar diversas usinas
paulistas nesse período. Com isso, o Oeste Paulista foi ocupado pela presença de diversas
barragens, sobretudo no Rio Tietê, levando à descaracterização do rio, que resultou em
diversas alterações no meio ambiente. Com a construção das barragens (Figura 1), parte
da população teve que se deslocar de suas cidades, fazendo com que as relações entre as
pessoas e os rios fossem interrompidas. “Consequentemente desapareceu a cultura
relacionada à vivência do rio que, reduzida apenas à memória daqueles que o conheceram,
transformou-se em elemento de história oral para as futuras gerações.” (CORRÊA &
ALVIM, 1999, p.137).

Figura 1. Barramento do rio Tietê entre Barra Bonita e Igaraçu, 2017


A Lei Nº 7.633, de 30 de dezembro de 1991, também conhecida como Lei das Águas
Paulistas, estabelece normas de orientação à Política Estadual de Recursos Hídricos e ao
Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos objetivando assegurar o
controle e uso da água em padrões de qualidade satisfatórios em todo o território do
Estado de São Paulo. O Plano Estadual de Recursos Hídricos apresenta um diagnóstico a
respeito da situação atual dos recursos hídricos do estado de São Paulo. Esse diagnóstico
foi realizado de acordo com a estrutura da rede hidrográfica paulista que utilizou a bacia
hidrográfica como unidade físico-territorial de referência para o planejamento e
gerenciamento dos recursos hídricos.
162

Segundo o mapa das Unidades Hidrográficas de Gerenciamento de Recursos Hídricos do


Instituto Geográfico e Cartográfico, as cidades de Sales e Sabino encontram-se na unidade
de gestão UGRHI-16, que é a bacia do Tietê/Batalha; e as cidades de Pederneiras, Barra
Bonita, Igaraçu do Tietê e Ibitinga na UGRHI – 13 que é a bacia do Tietê/Jacaré.
Outro aspecto importante foi a criação da Hidrovia Tietê-Paraná, ligando os estados de
Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo com um total de 1.653 km
de vias fluviais navegáveis, “sendo 970 km de responsabilidade da administração da
Hidrovia do Paraná – AHRANA, e 683 km administrados pelo Departamento Hidroviário
subordinado à Secretaria Estadual de Transportes de São Paulo – DH-SEST.” (ANTAQ,
2011). A Hidrovia começou a ter utilização comercial em 1981 devido à crescente
necessidade de escoamento das produções de cana de açúcar, materiais de construção e
calcário. Ao longo da Hidrovia observam-se vinte pontes, dez eclusas e seis projetos de
terminais. As eclusas foram construídas juntamente com as barragens das Usinas
Hidrelétricas pois “assim, abastecem o estado de São Paulo de energia ao mesmo tempo
em que possibilitam a navegação, a irrigação de culturas agrícolas, o turismo fluvial, os
esportes náuticos e o lazer.” (ANTAQ, 2011). Apesar de conectar importantes centros do
país a Hidrovia Tietê-Paraná não possui atualmente conexão direta com o mar o que faz
com que o transporte seja realizado por outros meios além dos hidroviários.
Na Tabela 1 elencamos algumas potencialidades observadas na relação entre o rio e as
cidades, destacando a presença de planos diretores municipais e de turismo. Duas das
cidades (Igaraçu e Ibitinga) são estâncias turísticas e as outras duas (Sales e Sabino) são
consideradas de interesse turístico.

Tabela 1 - Potencialidades observadas na relação entre cidades e o Rio Tietê


Potencialidades Igaraçu Ibitinga Sales Sabino
Tietê
Plano Diretor
Municipal
Plano Diretor de
Turismo
Município de Interesse
Turístico
Estância Turística

Tratamento de Esgoto
163

Coleta de resíduos
sólidos
Projeto de
Recuperação da Orla
Visualização do rio
Tietê
Praia

O turismo foi o fator comum entre as cidades analisadas – enfim, uma esperança de que
o Tietê torne-se o ponto em comum entre os seus diferentes trechos paisagísticos ao longo
do seu percurso atravessando o Estado de São Paulo.
Para o presente capítulo foram escolhidas as cidades de Igaraçu do Tietê, Sales e Sabino,
analisando a história do lugar, a legislação e a paisagem ribeirinha. A análise embasou o
desenvolvimento de duas propostas paisagísticas para as cidades de Igaraçu e Sabino para
a requalificação da orla do rio Tietê.

1.2 Procedimentos metodológicos


A partir das chaves de leitura da paisagem (BESSE, 2014) - território produzido pela
sociedade ao longo da história e contexto para o projeto - e levando em consideração as
questões da memória, dados territoriais e a importância da água na paisagem, os
procedimentos metodológicos compreenderam o levantamento da bibliografia pertinente
ao tema e à história da formação das cidades de Sales, Sabino e Igaraçu do Tietê; a leitura
da paisagem, utilizando levantamento fotográfico e percursos de observação ao longo do
Rio Tietê nos centros urbanos, assim como de suas margens e entorno próximo; pesquisa
documental nos arquivos municipais, incluindo legislação, planos e projetos, além da
sistematização dos dados coletados e confecção de mapas e tabelas. Estes procedimentos
possibilitaram descrever a relação de interferência entre as duas variáveis: a cidade e o
rio. O espaço urbano pode ser enfocado como variável dependente, sendo determinado
pelos condicionantes naturais e sociais do meio em que se realiza. E também pode ser
enfocado como variável independente, pois é capaz de determinar o modo de vida e alterar
o meio natural. Nesse sentido, “entender a cidade através da lógica das referências da
paisagem, observando os espaços e elementos que a conformam, é também uma maneira
de legitimar um conceito de cidade mais baseado nas próprias diretrizes paisagísticas que
a estruturam” (SEGUÍ, 1996, p.61). Para isso foram observados alguns aspectos: a
questão das permanências na paisagem, a forma de ocupação do espaço urbano, a inserção
da paisagem fluvial nos Planos Diretores Participativos e outras legislações municipais e
164

as relações existentes entre os habitantes da cidade e o rio Tietê. A última etapa foi o
desenvolvimento do projeto paisagístico.

2 IGARAÇU DO TIETÊ E A RELAÇÃO COM O RIO

A cidade de Igaraçu do Tietê está localizada na margem esquerda do rio Tietê, em frente
à cidade de Barra Bonita. Possui área de 97.747 km² e população de 23.362 habitantes
(IBGE, 2010). A área urbana da cidade compreende atualmente 18% do total do
município, abrigando 99,42% de sua população. Seu relevo é suave e varia entre 520 a
430 metros de altitude sendo que a maior parte da malha urbana encontra-se nas cotas
mais elevadas entre 520 e 490 metros, sofrendo desníveis acentuados próximos aos
fundos de vale ali localizados.
A história de cidade possui um pouco mais de cem anos e é baseada em seis pontos: o
café, as pontes, as cerâmicas, a hidrelétrica, o lazer e o açúcar. No final do século XIX o
Coronel Joaquim Ribeiro, detentor do atual território de Igaraçu do Tietê, loteou parte de
suas terras em terreno próximo ao rio para doação, marcando então o primeiro
povoamento da região. O loteamento criado começou a ser ocupado por imigrantes que
trabalhavam nas fazendas de café da região, principalmente de Barra Bonita. Com o
tempo a demanda travessia de entre as duas cidades começou a crescer, sendo construída
em 1915 a ponte Campos Salles, elemento determinante da paisagem de Igaraçu. Por
volta de 1950 começam a ser instaladas na cidade novas cerâmicas, estando atualmente a
maior parte desativada, mas suas chaminés constituem-se pontos focais importantes.
Com a inauguração da Usina Hidrelétrica de Barra Bonita em 1963 e o consequente
barramento do rio, aliado à emancipação e formação oficial do município surgiram novos
usos em suas margens, criando-se assim uma praia fluvial e um parque, que valorizam a
paisagem do rio e permitem o acesso da população para o lazer, o que possibilitou que a
cidade se tornasse Estância Turística em 1994. As monoculturas cafeeiras que se
instalaram na cidade, formando um cinturão ao redor da malha urbana, dominam a
produção agrícola municipal até os dias de hoje, sendo um elemento bem presente na
paisagem da cidade.
Para a análise da paisagem ao longo do Tietê foram consideradas três áreas. A primeira
corresponde à região que possui maior infraestrutura. Nela está localizada a Praia
Municipal Maria de Abreu Sodré e um complexo de atividades de lazer a ela vinculadas
(Figura 3). A paisagem ali é atrativa devido à grande largura que o rio apresenta e aos
pontos focais ali presentes como a hidrelétrica e as pontes. O acesso ao rio acontece de
forma direta, sem impedimentos naturais ou construídos. A segunda área é constituída
165

por um extenso trecho ao longo do Tietê, afastado visualmente e fisicamente da população


da cidade devido à localização de uma avenida com pouca infraestrutura e terrenos
desocupados com vegetação densa que impede a visualização e a aproximação com o rio,
tornando a paisagem velada. A terceira e última área é marcada pela reaproximação da
população com o rio, que é atraída devido à presença do parque municipal Igaraçu Park
e a alguns restaurantes e pesqueiros localizados em suas margens. A partir da análise
desses três trechos foi possível notar que a população de Igaraçu ainda possui forte
vinculo com o rio voltado ao lazer.

2.1 Proposta projetual em Igaraçu do Tietê


A partir da pesquisa realizada sobre o território de Igaraçu do Tietê pautada em três pontos
chaves (memória, dados territoriais, água e paisagem) foi possível estabelecer um
diagnóstico amplo sobre a cidade. Nessa pesquisa foram gerados mapas que quando
sobrepostos uns com os outros permitiram o agrupamento das análises, base do trabalho
desenvolvido, possibilitando o entendimento do território não somente por aspectos
individuais, mas também pela interação entre eles, responsável por gerar a complexidade
urbana encontrada não somente em Igaraçu, mas em qualquer outra cidade. Esse
diagnóstico propiciou o entendimento de quais pontos necessitavam de intervenções
projetuais que visassem à fixação do vínculo entre rio e cidade.
Foi proposto então um projeto desenvolvido linearmente que se baseou em três escalas
de intervenção, no qual uma é resultado/consequência da anterior, de forma que ambas
complementam-se. Os primeiros resultados obtidos através do diagnóstico gerado foram
de que a cidade tem uma interação com suas fontes hídricas na zona urbana e que essa
interação funciona atualmente de forma efetiva somente em alguns trechos. A partir disso,
viu-se a necessidade de uma proposição em escala municipal que mudasse esse cenário.
Foram então detectados os elementos principais na cidade, pautados em três pontos -
continuidade, conectividade e multifuncionalidade - que levaram à proposição de um
plano com diretrizes para instalação de uma infraestrutura verde, levando em conta a
história do lugar e sua inserção na paisagem.
166

Figura 2. Diretrizes de infraestrutura verde proposta para Igaraçu do Tietê, 2018

A proposição dessa primeira escala de intervenção gerou uma questão: como a


infraestrutura verde (Figura 2) seria colocada em prática no município? Para tal foram
estabelecidas três diretrizes que podem levar à sua instalação: 1. conscientização da
população e do poder público; 2. atração turística para geração de recursos; 3. capacitação
da população local. A partir delas, foi necessário atuar em uma segunda escala e escolher
um local onde fossem praticadas estratégias sustentáveis para que a infraestrutura verde
fosse desenvolvida. Foi então escolhida a área de estudo do trabalho que se localiza no
trecho entre as duas maiores áreas de lazer local, ao lado da ponte Campos Salles - entrada
principal de Igaraçu – e às margens do rio Tietê.
Na área encontra-se a Cerâmica Santa Cruz (Figura 3) composta por doze galpões e cinco
chaminés. Os usos propostos no projeto estão voltados à sustentabilidade urbana (na parte
oeste) como área de reflorestamento e produção de mudas de espécies nativas, bicicletário
oficina e pomar; e direcionados à atração de turistas e contemplação (na parte leste) com
mirantes, marina, oficina de barcos, áreas pavimentadas para instalação de feiras e carros
de comida, cabanas hotel para acomodação de turistas e decks.
167

Figura 3. Implantação do projeto em Igaraçu do Tietê, 2018


A promoção da sustentabilidade nessa área poderá atuar como um protótipo no qual os
usuários que ali irão freqüentar, poderão ter um real contato com as novas tipologias
urbanas que vêm sendo apresentadas para promover cidades mais sustentáveis,
entendendo seu funcionamento e importância. Através da análise da topografia, dos
edifícios existentes, dos pontos de atratividade visual, da paisagem, das diretrizes de
infraestrutura verde, vegetação e áreas permeáveis existentes, buscou-se desenvolver um
projeto que interferisse pouco no terreno e preservasse as áreas já construídas (como o
edifício da cerâmica), gerando novos usos.
Foi escolhido como recorte e terceira escala de intervenção, o edifício onde foi proposto
o Espaço Cerâmica (Figura 4). Seus usos visam complementar aqueles presentes no
restante do complexo, tornando-se um espaço dinâmico, direcionado à pesquisa, ensino e
promoção de práticas sustentáveis com café, espaço para estudos particulares e em grupo,
exposições, horta comunitária, ateliês, auditório, sala de reuniões, loja de produtos
naturais e um centro de desenvolvimento de cidades verdes (um local para a educação
ambiental).
168

Figura 4. Perspectiva geral da intervenção na Cerâmica Santa Cruz, 2018

Como o edifício possui importante valor histórico e arquitetônico para a cidade, procurou-
se preservar suas características e elementos. As intervenções realizadas buscaram não
interferir, mas sim dialogar com as formas, cores e disposições dos galpões existentes.
Em relação aos materiais, foram utilizados tijolos cerâmicos como forma de inserir nos
novos volumes propostos o material que era produzido no local; revestimentos brancos
para que as cores do próprio edifício se sobressaiam no ambiente; e, por último, a madeira
para demarcar a circulação. O projeto procurou transformar o edifício existente em um
local autossustentável e, para isso, foram introduzidos painéis solares; armazenamento da
água de chuva; alagado construído e a horta orgânica. Os elementos foram inseridos no
local de forma que ficassem visíveis para os visitantes e que esses pudessem interagir e
entender seu processo.

3 SALES E SABINO E A RELAÇÃO COM O RIO TIETÊ

As cidades de Sales e de Sabino localizam-se na região central do Estado de São Paulo.


Sales tem área territorial de 308,555 km² e população de 5451 habitantes, já Sabino tem
área de 305,285 km² e população de 5217 habitantes (IBGE, 2010). Ambas pertencem à
Bacia Hidrográfica do Tietê/Batalha, sendo o Rio Tietê o destino para onde convergem
todos os rios e córregos dos Municípios. No caso de Sales, destacam-se, além do Rio
169

Tietê, quatro principais afluentes: Barra Mansa, Cubatão, Cervinho e Cervo Grande. Já
em Sabino, destaca-se o córrego do Esgotão.
O início da história de Sales é datado entre 1900 e 1914 quando as primeiras famílias se
instalaram na região que ainda era dominada pela mata virgem. Com a chegada dos novos
moradores, a mata foi sendo derrubada para implantação de fazendas. Em 1920, Ramillo
Sales, fundador da cidade, comprou uma propriedade localizada entre o córrego Cervinho
e o rio Cubatão e fez o traçado do povoado. Contudo, apesar da cidade ser
geograficamente marcada pelos cursos hídricos, estes encontram-se afastados da área
urbana.
O contato das pessoas com os rios é possível nas praias de água doce que se formaram
com a inundação da barragem do Rio Tietê na cidade de Promissão. Após a construção
da Usina Hidrelétrica de Promissão em 1975, o nível da água do Rio Tietê subiu, o que
condicionou seu alargamento e represamento. Até 1974, a dimensão do rio era de cerca
de 300 metros de largura e atualmente é de 3,5km. Com isso, três praias municipais foram
criadas em respectiva ordem cronológica: Praia do Cervinho, Praia do Torres (Figura 5)
e Praia do Richelieu

Figura 5. Praia do Torres, em Sales


170

A Praia do Cervinho foi a primeira praia criada em Sales. A largura do córrego era de
pequenas dimensões, contudo, após o represamento das águas do Rio Tietê, a Prefeitura
de Sales investiu em obras do alargamento do Cervinho, além da construção da
infraestrutura da praia. Atualmente, o córrego possui 8 km de extensão e 600 metros de
largura, sendo que a sua maior dimensão possibilitou o lazer nas águas, o que impulsionou
o turismo na região. Após a construção da Praia do Cervinho, a Prefeitura de Sales voltou-
se para a realização de obras nas margens do Rio Tietê. A Praia do Torres (Figura 5),
localizada a 12 km do centro da cidade, foi a segunda realizada pela prefeitura municipal.
Apesar de estar distante da área urbana, a praia é muito utilizada pelos salenses e pelos
turistas devido à proximidade do serviço de balsa conectando os municípios de Sales e
Sabino e por apresentar infraestrutura de lazer.
A última obra turística de Sales, a Praia do Richelieu, localiza-se cerca de 8 km da área
urbana. A praia está em fase de implantação, onde estão previstos 50 quiosques, área de
camping, minicampo, estacionamento, sanitários e um mirante para apreciar as águas do
Rio Tietê. Alguns quiosques, estacionamento e os sanitários já foram implantados.
Com a criação das praias, Sales foi se expandindo para a área próxima aos rios. Estes se
tornaram valorizados na cidade de modo que foram surgindo condomínios e loteamentos
residenciais de médio e alto padrão próximo aos rios. Atualmente, o Município conta ao
todo com 24 condomínios e loteamentos fechados ou abertos. Com a valorização
ribeirinha, o setor turístico tem se fortalecido muito, o que levou ao desenvolvimento
hoteleiro a beira do rio.
O Rio Tietê é o marco divisor entre os municípios de Sales e Sabino. Conectando as
cidades, há o serviço de balsa (Figura 6) que realiza a travessia no Rio Tietê. A primeira
balsa foi implantada em 1920 e era construída de madeira e movimentada pela corredeira
das águas do Tietê até 1974. Com o represamento das águas do rio em 1975, uma balsa
motorizada passou a realizar o referido trajeto e foi instalada no mesmo local.
171

Figura 6. Balsa no Tietê, entre Sales e Sabino, 2017

Tal travessia no Rio Tietê relaciona-se com a fundação de Sabino, visto que o início de
sua história foi marcado pelo registro de uma gleba de terras localizada à margem
esquerda do Rio Tietê que pertencia a Antonio Sabino, cuja família residia no Município
de Novo Horizonte, cidade vizinha a Sales, localizada à margem direita do Rio Tietê. Na
época, atravessar o rio de uma margem a outra para acessar a fazenda era um grande
obstáculo. Por essa razão, foi instalado um porto denominado Porto Santa Cruz para
facilitar a travessia.
O traçado inicial de Sabino foi próximo ao Córrego do Esgotão. Próximo a esse córrego
localizava-se a serraria e a olaria que foram de extrema importância para o
desenvolvimento da cidade, possibilitando a oferta de muitos empregos. Percebe-se que
desde o início da formação da cidade, a proximidade com as águas era presente.
Por conta dessa localização estratégica do núcleo urbano próximo ao córrego, a cidade
sofreu grandes impactos positivos e negativos ao longo dos anos. Com a construção da
Usina Hidrelétrica de Promissão e o consequente represamento das águas do Rio Tietê, a
largura do Córrego do Esgotão aumentou e a serraria, a olaria e as residências que estavam
implantadas próximas ao córrego sofreram com o alagamento ocasionado pela barragem.
Por sua vez, a nova largura do córrego impulsionou o lazer e o turismo em nas águas
atraindo pescadores e banhistas, o que levou a criação da Praia de Sabino que atualmente
é o principal ponto de lazer e de turismo do Município. Por localizar-se inserida no
172

perímetro urbano, tem fácil acesso aos moradores. Contudo, nos últimos anos nota-se um
problema de proliferação de algas nas águas do córrego, fazendo com que ocorra um
afastamento dos banhistas, levando inclusive a interdição da praia em alguns períodos. A
presença das algas ocorre em razão do esgoto lançando nos rios por outras cidades que
não realizam um tratamento adequado. Esse problema, além de afetar o turismo local,
ocasionou a morte dos peixes devido à falta de oxigênio do rio.
Além do Córrego do Esgotão, Sabino também estabelece relação com o Rio Tietê desde
o início de sua formação. Foi através do Tietê que se chegou à cidade e fez-se, nas
margens do rio, o Porto de Santa Cruz.A área onde se localiza a balsa, na entrada da
Sabino, fica a cerca de 4km do centro da cidade. Trata-se de um lugar onde se reúnem
pescadores, banhistas e usuários da balsa.
Com a pesquisa realizada, percebeu-se que, nas cidades de Sales e de Sabino, o Rio Tietê
é um elemento estruturador da cultura e da economia local. Nota-se na história de Sales
que a cidade não teve sua formação relacionada com o Rio Tietê. O perímetro urbano,
por localizar-se afastado dos rios, não apresentava forte relação com os cursos d’água, na
sua origem. Apesar disso, percebe-se que ao longo dos anos houve um desenvolvimento
econômico e turístico relacionado às águas dos rios Tietê e Cervinho devido à criação de
praias de água doce.
Diferente de Sales, Sabino teve sua formação relacionada mais diretamente com o Rio
Tietê, visto que houve a implantação de um porto para realizar a travessia no rio,
influenciando na consolidação da cidade. Além disso, a localização de Sabino nas
margens do Córrego do Esgotão possibilitou que os moradores tivessem uma
proximidade com a água, que foi intensificada ainda mais após a criação da Praia de
Sabino, impulsionando o turismo na cidade. Além disso, foi possível notar que ambas as
cidades apresentam forte relação com o Rio Tietê e dependem dele para o
desenvolvimento local. Desse modo, é extremamente importante a preservação de sua
paisagem, não só por motivos ambientais, como também para a manutenção da maior
fonte de renda das cidades, destacando atualmente o turismo.

3.1 Proposta Projetual em Sabino


Como resultado da pesquisa realizada, foi desenvolvido um projeto baseado nos conceitos
estudados sobre as relações entre os rios e as cidades de modo a aliá-los aos interesses
municipais de Sabino. A área de intervenção localiza-se na entrada do município, na
margem do Rio Tietê onde chega a balsa que realiza a conexão entre Sales e Sabino. A
escolha do local se deve ao fato da área remeter à travessia realizada no Rio Tietê no
173

início da formação da cidade, além de, atualmente, atrair pescadores, banhistas e usuários
da balsa. Contudo, há falta de infraestrutura para tais atividades, necessitando
requalificação. Além disso, a recente classificação de Sabino como Município de
Interesse Turístico possibilita a realização de investimentos no setor turístico.
Tal área fica a 3,5km do perímetro urbano de Sabino. Desse modo, para facilitar o acesso
das pessoas do centro à orla, propõe-se um ônibus que realize o trajeto nos dias de maior
fluxo de moradores e turistas para o local. Além disso, para qualificar e melhorar a
conexão viária entre as áreas são propostas calçadas, ciclovia, arborização e jardins de
chuva. Estas estratégias irão contribuir para o escoamento superficial da via, atuando na
qualidade visual e trazendo maior conforto térmico e mobilidade dos pedestres e dos
ciclistas.
O conceito norteador do projeto (Figura 7) foi a conexão entre as pessoas e a natureza
através da água. Como partido, elaborou-se uma infraestrutura náutica sobre as águas do
Rio Tietê. Visando proporcionar benefícios de lazer e de turismo para Sabino, o programa
de necessidades conta com: infraestrutura para a balsa; mirante; marina; remo e stand
uppaddle; ponto de pesca; praia; oficina de barcos; restaurante; quiosques; vestiários;
estacionamentos; bicicletário; bosque comestível; alagados construídos; horta; trilhas;
arborismo e reflorestamento com vegetação nativa.

Figura 7. Projeto de requalificação da orla em Sabino, 2018


Para organizar todo o programa, a proposta foi implantada parte no solo e parte na água.
Para interligar inseriu-se um grande pier de madeira que estrutura todo o complexo e
conecta a orla às atividades recreativas no rio. Os decks e todas as edificações existentes
174

foram propostos em madeira. Para compensar a madeira cortada para as construções, foi
proposto o reflorestamento na margem do rio além do plantio de um bosque de vegetação
nativa com a presença de trilhas e arborismo como forma de buscar a consciência sobre a
importância da vegetação compondo a paisagem.
Também foi proposto uma horta e um bosque comestível composto por espécies frutíferas
que além de produzir alimentos, contribui com o desenvolvimento da fauna. E, para
contribuir com o ciclo da água envolvido no projeto, os alagados construídos (bacias de
biorretenção) atuam como importante estratégia de gestão hídrica, uma vez que auxilia
no processo de tratamento de águas residuais e faz a restituição da água ao sistema natural.
O restaurante e o centro de remo e stand up paddle localizam-se nas edificações mais
distantes da orla e envoltas pelo rio. Dessa forma, a experiência das pessoas é cercada
pela água em todo o entorno. Foi projetada uma piscina de 50 metros com raias que
permitem o uso em treinamentos e competições. A marina é composta por espaços
destinados a diferentes dimensões de embarcações e é conectada ao terminal de balsa.
Entre a margem e o pier, o ponto de pesca e a praia fazem a transição e o diálogo entre
solo e água. O mirante permite a visualização de toda a extensão da implantação, e, em
conjunto com a topografia torna o complexo funcionando como um local de visão em
direção ao rio. Desse modo, a água torna-se a parte mais ativa do projeto e tem sua
importância na construção de uma paisagem urbana que valorize o rio e contribua para a
formação da memória e identidade local (Figura 8).
175

Figura 8. Implantação do projeto em Sabino, 2018

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A chave para reconhecer os valores da paisagem dos rios é a compreensão da diversidade


de suas características ao longo de suas margens, entre elas, a topografia e a vegetação.
Para o uso e bom aproveitamento do espaço, o acesso é essencial: para o rio, ao longo de
suas margens e através dele, além dos sistemas de circulação. Este acesso deve ser
estendido aos pontos de contato e às travessias.
Existe uma inadequação dos modelos de gestão urbana acarretando uma falta de
integração entre os dispositivos da legislação ambiental e urbanística.
Lendo a paisagem dos fundos de vale urbanos a partir dos modos de organização do
espaço e da história do lugar, constatamos que para os rios – uma permanência na
paisagem – possam ser valorizados pela população é necessário um trabalho de
conscientização e elaboração de projetos participativos que qualifiquem o lugar, mais do
que a simples aprovação de leis e regulamentos.
Entre os aspectos que foram analisados a partir dos resultados salientamos que as cidades
pesquisadas, com exceção de Barra Bonita, não inserem o rio na paisagem urbana. A
história do lugar foi perdida (pontes, ilha, olarias), principalmente devido à construção de
barragens no rio Tietê. O rio, apesar da degradação da paisagem, é visto como potencial
turístico e econômico; no entanto, poucas ações foram realizadas para um planejamento
sustentável. Como conclui Mello (2014, p.192), “a sustentabilidade ambiental urbana
depende da adequada abordagem dos espaços de contato entre terra e água”, ao mesmo
tempo em que a valorização dos rios urbanos pela população é condição essencial para
sua proteção.
O desenvolvimento de um projeto tendo a paisagem como contexto para a requalificação
da orla do rio Tietê em Igaraçu do Tietê e Sabino, buscou atender a uma demanda
levantada ao longo da pesquisa realizada, com o rio assumindo as funções utilitárias,
econômicas, sociais, estéticas e ambientais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTAQ. Agência Nacional de Transportes Aquaviários, Transporte de Cargas na Hidrovias Brasileiras
2010. Hidrovia do Paraná-Tietê. Biblioteca da ANTAQ [Online], Brasilia.
176

Disponível:http://www.antaq.gov.br/portal/pdf/Estatistica NavInterior/ Hidrovia Paraná Tiete.pdf.


[Acessado em outubro 2017].

ASSUNTO, R. Paisagem, ambiente, território: uma tentativa de clarificação conceitual. In: SERRÃO, A.
V. (org.). Filosofia da Paisagem: uma antologia. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa,
2011. p.126-129.

BESSE, J.M. O Gosto do Mundo: Exercícios de Paisagem. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.

COSTA, L.R. Cidades e Rios no Oeste Paulista. Rio Tietê e as cidades de Ibitinga e Igaraçu do Tietê.
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CORRÊA, D. S.; ALVIM, Z.M.F. A Água no olhar da História. São Paulo: Secretaria Estadual do Meio
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MELLO, S.S. Espaços urbanos em beira d´água: princípios de planejamento e intervenção. In:
SCHULT,S.I.M.; BOHN, N. (org.). As múltiplas dimensões das Áreas de Preservação Permanente.
Blumenau: Edifurb, 2014. p.165-195.

NISHIMURA, K.Y. Cidades e Rios no Oeste Paulista. Rio Tietê e as cidades de Sales e Sabino. Relatório
Final de Pesquisa de Iniciação Científica. Bauru: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
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OHTAKE, R. O livro do Rio Tietê. São Paulo: Estudio RO, 1991.

SEGUÍ, J. A paisagem projetada ou a força do lugar. In: Geometria, n.21, p.49-64, 1996. Disponivel em:
https://www.geometriadigital.com/wp-content/uploads/2015/12/El-paisaje-proyectado-o-la-fuerza-del-
lugar.pdf

AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) as bolsas de
Iniciação Científica concedidas, o que possibilitou o desenvolvimento da pesquisa sobre as cidades ao longo
do Rio Tietê e dois Trabalhos Finais de Graduação da FAAC-UNESP.
AUTORES
Norma Regina Truppel Constantino: Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São
Paulo (2005), sendo, atualmente, professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP-Bauru) no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Mestrado Acadêmico em
Arquitetura e Urbanismo. Mestre em Planejamento Urbano e Regional Assentamentos Humanos pela
UNESP-Bauru/SP (1994). Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná
177

(1979). Fundadora e coordenadora, desde 2016, do Grupo de Estudos Sobre a Paisagem, incorporado ao
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGARQ) da UNESP-Bauru/SP. Currículo
completo em http://lattes.cnpq.br/4056186394947507.
Kawani Yuri Nishimura: Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela FAAC-UNESP em 2018. Membro
do Núcleo de Pesquisa em Arquitetura e Habitação de Interesse Social - ArqHab durante 2014 e 2015.
Membro do S.I.T.U. (Sistemas Integrados Territoriais e Urbanos), onde desenvolve pesquisa com ênfase
em Rios Urbanos. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo – FAPESP no período 2016-17.
Luana Ripke da Costa: Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela FAAC-UNESP em 2018. Técnica em
Design de Interiores pela Escola Técnica Estadual Getúlio Vargas (ETEC-GV). Membro do Núcleo de
Pesquisa em Arquitetura e Habitação de Interesse Social - ArqHab durante 2014 e 2015. Membro do
S.I.T.U. (Sistemas Integrados Territoriais e Urbanos), onde desenvolve pesquisa com ênfase em Rios
Urbanos. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP no período 2016-17.

Os espaços de manifestações artísticas no contexto


urbano das cidades contemporâneas1
Alexandre Suárez de Oliveira

RESUMO: Estudo dos locais urbanos, onde se The spaces of artistic manifestations in
1
Artigo elaborado a partir do Relatório de Pesquisa, com o mesmo título, realizado no triênio 2014 – 2016
178

realizam manifestações artísticas, locais com the urban context of contemporary cities.
infraestrutura permanente ou efêmera, que atenda
a várias temáticas artísticas, tais como: música, ABSTRACT: Study of the urban places, where
teatro, performances etc. As praças, os parques, as artistic manifestations are realized, places with
ruas, de nossas cidades, são ocupadas permanent or ephemeral infrastructure, that
ocasionalmente por manifestações artísticas de attends to several artistic themes, such as: music,
diversas naturezas, apresentações circenses, theater, performances, etc. The squares, parks, and
apresentações de teatro de rua, quermesses, streets of our cities are occasionally occupied by
apresentações musicais, manifestações religiosas artistic manifestations of various natures, circus
que usam de recursos artísticos, festas populares presentations, street theater presentations,
etc. Diversos espaços podem ser transformados popular celebrations, musical performances,
para a realização desses eventos e outros tantos são religious demonstrations that use artistic resources,
criados para, de forma perene, atender às etc. Several spaces can be transformed for the
manifestações artísticas, alguns desses espaços são accomplishment of these events and many others
os sambódromos, as tendas circenses, as praças are created to perennially attend to the artistic
com anfiteatros etc. O estudo dos espaços perenes manifestations, some of these spaces are the
construídos para usos múltiplos como as arenas de sambódromos, the circus tents, the squares with
espetáculos, as praças destinadas a shows, os novos amphitheaters and so on. The study of the
edifícios teatrais etc. a fim de construir repertório perennial spaces constructed for multiple uses as
de soluções. Foram investigados espaços the arenas of spectacles, the places destined to
destinados ao lazer público na cidade de Bauru, são shows, the new theatrical buildings, etc. in order to
eles: o Sambódromo, o anfiteatro Vitória Régia e o build a repertoire of solutions. The spaces for public
coreto da Praça Rui Barbosa. leisure in the city of Bauru have been investigated.
They are: the Sambódromo, the Vitória Régia
amphitheater and the bandstand of Rui Barbosa
Square.
Palavras-chave: praça, lazer, teatro de rua Keywords: square, leisure, street theater
179

1 DELIMITAÇÃO DO CAMPO DE PESQUISA

Nas cidades contemporâneas realizam-se infindáveis eventos artísticos, os espaços


públicos são adaptados pelos realizadores de tais eventos, em alguns casos já existe
infraestrutura pré-definida para realização de eventos, tais como: coretos, anfiteatros,
tablados, gramados, grandes praças etc.
As cidades cada vez mais são, ou estão sendo retomada na sua dinâmica como local de
eventos, com espaços como a Cidade do Samba, Cidade Viva, valorizações dos centros
históricos etc. as Viradas Culturais promovem o acesso a todas as camadas sociais.
Quando inexistem condições pré-definidas para a realização desses eventos os espaços
são adaptados segundo cada especificidade de cada caso e cada lugar, sobre esses lugares
que são transformados Montaner (1999, p. 174) diz que: “Toda coletividade necessita de
lugares arquetípicos carregados de valores simbólicos; se a cidade não os oferece, os
grupos sociais os criam.”
Ainda que os espaços adaptados para a realização de eventos sejam singulares, alguns
180

grupos podem ser destacados por características comuns, são eles os teatros de rua, as
quermesses, as danças em espaços públicos, os shows musicais, as performances
individuais etc.
Cada espaço adaptado desses é um local de possível estudo para o entendimento das
relações espaciais, artísticas, arquitetônicas, essas reflexões desvendam as possibilidades
de realização de novos lugares, algum deles é nominado como “pós-moderno”, no
entanto, embora haja novidades na organização desses espaços, já Habermas (1992, p.
125) nos alerta sobre a falibilidade desse termo e da busca de novas respostas “Com esse
‘pós’ querem os protagonistas se desfazer de um passado; à atualidade não podem ainda
dar um novo nome, na medida em que não temos até agora nenhuma resposta”.
O Brasil construiu grandes complexos arquitetônicos destinados à realização de teatro, o
modelo, que foi importado da Europa na virada do século XX, foi o de “teatro à italiana”.
Nessa mesma época já havia novas proposições de lugares teatrais, tais como o
“Festspielhaus” de Richard Wagner, ou o “Teatro Total” de Walter Gropius. Quanto às
manifestações artísticas, ao longo do Século XX, muitos movimentos autointitulados
“Vanguardas” apresentaram novas relações entre a arte, a sociedade e os espaços
alternativos.
Os espetáculos realizados ao ar livre ganharam inovações tecnológicas e também
procuraram variações nas interações com a cidade e com a sociedade, inclusive com
grupos renegando as tecnologias surgidas e voltando à natureza da apresentação teatral.
Surgiram o “Performance Group”, os “Happening”, os “Teatros de Guerrilha”, a “Arte
Marginal”, os grupos “Underground” e outros. Nesse contexto Mantovani (1989, p. 73)
lembra que:
[...] em 1962 o Bread and Puppet, um grupo de protesto, apresenta Teatro Político.
Se apresentou na periferia, em praças e ruas. Participaram de passeatas e
manifestações, especialmente as que eram contra a Guerra do Vietnã.
A cidade contemporânea que abriga diversidade e multiplicidade de eventos artísticos
está sobreposta à outra, que necessita de uma ordem funcional para os transportes de
pessoas e mercadorias, que faz do zoneamento uma tentativa de organizar os usos
públicos, essa sobreposição faz com que conflitos de espaços existam, mas também há
uma somatória gerando uma superposição que é característica de nossas cidades; valendo-
se da pluralidade da cidade Montaner (1999, p. 169) constata que:
A essência das cidades não se encontra somente em fatores funcionais, produtivos
e tecnocráticos. Estas estão feitas de muitos diversos materiais, entre eles a
representação, os símbolos, a memória, os desenhos e os sonhos. É a superposição
181

contínua de muito diversos extratos o que estrutura toda a cidade, reino da


diversidade e da pluralidade, fenômeno que não se pode interpretar de maneira
unívoca
O interesse no estudo desses lugares leva à criação de um repertório de soluções espaciais,
tecnológicas, culturais, nos espaços urbanos, o conflito entre os diversos agentes sociais,
gera uma infinidade de lugares arquetípicos.
Quando Peixoto (1996, p. 308) analisa as cidades contemporâneas em função da atenção
de seus habitantes ele diz que:
A construção de situações, a modulação da cidade em função de práticas lúdicas e
oníricas, visa a um espaço existencial que possibilite a deriva e os encontros. Urbes
em perpétuo movimento – transportes contínuos e reconstruções permanentes –
engendrando uma nova realidade que só se materializa em acontecimentos. A
cidade é convertida num acampamento nômade, onde os habitantes estão em
trânsito constante, contra uma paisagem que muda de hora em hora. A arquitetura
deve fazer da vida um jogo de desejos.
Essas mudanças rápidas pedem novos espaços que sejam manipuláveis e que sejam
adaptados às expectativas de fruição no lazer do cidadão, os eventos artísticos são
atualizados constantemente e os espaços devem permitir essas mudanças.
A pluralidade gera soluções não só de ocupação e funcionalidade, mas também de
arquiteturas que têm explorado soluções plásticas bastante diversas.

2 OBJETIVOS

Nas cidades contemporâneas Objetivo geral: Estudar os espaços urbanos destinados ao


lazer para criação de repertório de soluções espaciais, levando em consideração os
equipamentos propostos para o uso projetado e as adaptações realizadas para o uso de
fato.
Objetivo específico: Analisar a situação de pós-uso de três equipamentos na cidade de
Bauru, a saber: o Sambódromo, o anfiteatro Vitória Régia e o coreto da Praça Rui
Barbosa. Entender os mecanismos de ação pública e a dinâmica de apropriação pela
população.

3 METODOLOGIA

A cidade de Bauru serviu de estudo de caso e possibilitou a experiência de documentação


182

em desenhos, fotografias, coleta de depoimentos e projetos realizados por este


pesquisador e em muitos casos pelos alunos, os estudos dos lugares de manifestações
artísticas, tanto de espaços perenes quanto de espaços adaptados para eventos efêmeros,
foram palco dos estudos e trabalhos desenvolvidos para a pesquisa.
As disciplinas oferecidas no período sempre que possível abordaram assuntos correlatos
aos estudos desenvolvidos na pesquisa. Fizeram parte dessa discussão: Desenho de
Observação; Laboratório de Arquitetura Urbanismo e Paisagismo IV; Projetos de
equipamentos destinados ao lazer em espaços públicos; Cenografia; Semana de
Arquitetura; Orientações de trabalhos TFG; Orientação de pesquisas de dicentes. As
Viagens Didáticas e de comparecimento em Congressos também serviram para visitar
áreas destinadas a espaços de lazer em lugares públicos. Durante o período foram
realizadas algumas viagens didáticas às cidades de Brasília, Belo Horizonte, Ouro Preto
e Rio de Janeiro. Também foram visitadas as cidades de Florianópolis e Rio Branco no
Acre em eventos de Congressos, nessas oportunidades foram observados espaços
destinados ao lazer em locais públicos das cidades.
Foram realizadas orientações de Trabalhos Finais de Graduação (TFG) que muitas vezes
tratavam de assuntos correlatos ao tema dessa pesquisa. Também houve a orientação de
uma Iniciação Científica que tratou de tema relacionado a intervenções em espaços
públicos.

4 ESTUDOS DE CASO

4.1 Praça Rui Barbosa

A Praça Rui Barbosa localiza-se no centro histórico da cidade de Bauru, no estado de São
Paulo, no quadrilátero das ruas Batista de Carvalho, rua Gustavo Maciel, rua Primeiro de
Agosto e rua Antônio Alves. A praça é lugar de encontro de pessoas no centro da cidade.
Na região existem vários comércios e serviços é local de descanso dos cidadãos em
variados horários do dia, existe na praça a presença de vendedores ambulantes, e de
pequenas tendas de comércios, a praça é em parte arborizada com grandes árvores que
propiciam bastante sombra. Os poucos bancos existentes ficam bastante ocupados durante
a maior parte do dia. Em frente à praça há uma igreja católica com concepção
arquitetônica modernista. A nave da igreja se prolonga pela praça com demarcações
diferenciada no piso e no lado oposto tem uma “pórtico” de concreto de concepção
plástica ruim resultado de uma das intervenções que foram realizadas na praça.
183

Figura 1. Localiazação da praça Rui Barbosa (Google Maps 13/04/2019)

Em um importante estudo sobre a evolução da praça a professora doutora da Unesp Emília


Falcão identifica alguns aspectos importantes sobre as diversas configurações do lugar e
dos usos que a praça teve ao longo de sua história (FALCÃO, 2016, p310):
A implantação do projeto original data de 1914, dentro da linha de paisagismo
romântico, ou numa definição mais genérica, do jardim inglês, composto por lago,
caminhos sinuosos, vegetação exótica arbustiva e arbórea. O desenho foi elaborado
pelo projetista paulistano Heitor de Andrada Campos e muito se assemelha à Praça
da República, aberta ao público em 1905 na cidade de São Paulo, revelando uma
transposição de ideias da capital para as pequenas aglomerações que iam surgindo
no interior do estado. [...] Em decorrência das características do projeto implantado,
o uso da praça deixava de ser de caráter religioso e passava a ser de contemplação,
de apreciação sobre o conjunto estruturado pelas formações vegetais de espécies
exóticas, pelos elementos em ferro fundido (como coreto e luminárias), pelo lago
[...] A nova praça criou a referência do centro para uma área que se expandia a partir
da estação ferroviária, afastada do aglomerado inicial que deu origem no caso de
Bauru, ao ‘Patrimônio’.
A existência de um coreto na praça demonstra mais do que uma necessidade de espaço
para apresentações artísticas, a sua existência está mais fundamentada num desejo de
demonstrar uma ideia de civilidade e refinamento. Quando o arquiteto Gustavo
Lanfranchi define a existência de edifícios teatrais como sendo “a importância do edifício
teatral como signo da cultura urbana ia além de seus limites físicos [...] determinando
184

importantes relações dos cidadãos com sua história, suas tradições e sua cultura.”
(LAMFRANCHI; SERRONI, 2012, p. 37). Lanfranchi diz que os teatros e, no nosso caso,
o coreto da praça são solidários quanto ao ideal que os cidadãos pretendem demonstrar e
lhe empresta o status social e cultural natural de seu desenvolvimento. Também pode-se
dizer que a existência do coreto só se justifica e se torna possível a partir da existência
desse contexto, a cidade e os cidadãos.
O coreto da Praça Rui Barbosa é desde sua origem, mais do que o resultado de uma
necessidade de criar um lugar de apresentação cultural, ele é um equipamento que procura
demonstrar a possibilidade de realização de tais eventos. Hoje em dia dificilmente
poderíamos defender a extinção dele, uma vez que ele está incorporado à imagem da
praça e da cidade servindo como elemento de memória afetiva da cidade e pouco importa
se nele se apresentam grupos musicais a sua existência está fundamentada nessa memória
e num ideal de civilidade.
O coreto tem estrutura de ferro fundido, cobertura em chapa metálica e estrutura de base
em alvenaria. A análise das imagens da praça demonstram que o local onde o coreto foi
colocado não foi alterado ao longo do tempo, ele localiza-se descolado do centro da praça
em direção à um de seus quadrantes, fica próximo da igreja, mas não fica em frente dela.
O localização da implantação do coreto demostra uma despreocupação de colocá-lo no
centro focal das perspectivas da praça e não relacioná-lo diretamente com a igreja, essa
implantação tira um pouco da importância dele como possível elemento principal da praça
e coloca-o como mais um dos elementos que compõem a praça, dentro do conjunto de
espelho d’água, arborização, banheiros públicos etc. Ao longo dessa pesquisa não foi
verificado um uso intenso e institucional do coreto como palco de apresentações artísticas.
185

Figura 2. Localiazação da praça Rui Barbosa (Google Maps 13/04/2019)

Quanto ao uso da praça, Emília Falcão nos relata as etapas que modificaram a sua
configuração (FALCÃO, 2016, 313):
Incorporada à vida da cidade, a praça é espaço de lazer, frequentada por famílias e
grupos de amigos. No entanto, denunciando o provincianismo da sociedade local,
nos anos de 1.930, pessoas negras eram proibidas de frequentá-la. A impunidade ao
preconceito racial e a inexistência de contestação, fazia com que as pessoas negras
só pudessem frequentar áreas fora dos seus limites. Na década de 1.950, são
percebidas mudanças na forma de apropriação da praça. Nesse período, o espaço
recebe a primeira reforma, adequando seu traçado ao aumento da intensidade de
circulação interna, ao mesmo tempo em que diminui seu uso como espaço de lazer.
[...] Nos 40 anos que separam a década de 1.950 a 1.990, quando foi implantado o
projeto de revitalização, as narrativas colhidas dizem respeito à deterioração do
local. O espaço passou a ser ponto de prostituição, com os banheiros públicos
utilizados para o consumo de drogas.
Atualmente a praça tem uso diversificado e várias populações convivem no mesmo
espaço, mas com lugares “zoneados”, ou seja, grupos iguais permanecem juntos em
determinada região e horário. Na hora do almoço há um aumento de cidadãos
trabalhadores das imediações que buscam nas sombras das árvores um momento de
relaxamento. Hoje em dia é significativa a presença de vendedores ambulantes em
pequenas barracas com produtos expostos.
Ainda sobre a precarização do uso da praça e das reformas que foram nela implementadas,
Emília Falcão diz (FALCÃO, 2016, p. 314):
A lógica que determina a dinâmica territorial é a ocupação de novas áreas, ocupação
essa orientada pelo mercado imobiliário e pela geração de novas formas de
valorização do capital. O centro se descola, pelo movimento de estabelecimentos
comerciais e de serviços (shoppings, escola de crianças, médicos, bufês,
restaurantes, dentistas, salões de beleza, clubes etc.) [...] O processo de segregação
espacial e a valorização de determinadas áreas induz a degradação de outras, que
são abandonadas. A história da Praça Rui Barbosa encaixa-se nesse contexto. A
praça, como muitas outras implantadas pelas cidades brasileiras, sofreu com as
transformações urbanas. O deslocamento do centro configura-se como fator
186

determinante para sua transformação. Dentro desse contexto amplo, uma parcela
da sociedade local, interessada em reverter esse processo, reivindicou a revitalização
do espaço. É significativo que as obras do primeiro e maior shopping center da cidade
tenham sido iniciadas nos últimos anos da década de 1980. Não parece mera
coincidência que a proposta de revitalização da praça tenha surgido nesse mesmo
período. (...) O poder público local, chamado a intervir, resolve pelo projeto de
revitalização, criando um calçadão e reformando totalmente a praça. O modelo
adotado é o do centro da cidade de Curitiba e o objetivo era de acabar a delinquência
e consequente degradação da praça
Em 2015 a praça sofreu nova reforma com a troca de revestimentos do piso e melhorias
nos sanitários. As reformas e adequações procura dar vida nova à praça, Sua concorrência
com novos espaços comerciais e a violências de nossos centros urbanos levam a tirar da
praça sua principal intenção inicial, que seria a de criar um local de lazer para a população.
As reformas realizadas na praça acabaram por deixar uma parte da praça sem arborização.
Nesses lugares, que tem pouca inclinação, o piso é revestido com mosaicos de pedras
portuguesa, placas de pedras Miracema e placas de ladrilho hidráulico. Nesses platôs,
acontecem o assentamento dos eventos itinerantes pois eles propiciam a versatilidade
necessária e adequada para as diversas realizações artísticas. Em geral, a Orquestra
Sinfônica Municipal, assim como a Banda Sinfônica Municipal, são as duas corporações
que se apresentam nesses eventos e o coreto nessas oportunidades se demonstra pequeno
para receber os grupos musicais. Nessas ocasiões o coreto acaba servindo de “camarote”
para uma visão privilegiada ou como cenário de fundo para a banda que toca à sua frente.

4.2 Parque Vitória Régia

O Parque Vitória Régia localiza-se na Avenida Nações Unidas, quadra 24, na cidade de
Bauru, no estado de São Paulo. Ele foi concebido pelo arquiteto Jurandyr Bueno Filho,
que após uma viagem em 1971 para a Grécia, tirou a ideia de um espaço ao ar livre,
inspirado na Ágora grega, foi projetado em 1976 e inaugurado e 1978 e deveria ser um
símbolo pra a cidade, segundo uma declaração de Jurandyr “Eu achava que Bauru não
tinha uma cara. Salvador tem o Elevador Lacerda, Rio de Janeiro tem o Cristo Redentor
e nós aqui no meio desse ‘cerradão’ paulista, eu achava que a cidade tinha de ter uma
identidade, relembra Jurandyr” (Enciclopédia Biográfica de Arquitetos Digital, acessada
em 10/04/2017).
O parque é hoje um dos cartões postais mais famosos da cidade e possui área de 42.810m²,
na qual 90% equivale ao solo permeável e os 10% restantes se referem a área
pavimentada. A construção do parque aconteceu junto com várias outras intervenções nas
187

imediações, tais como obras de contenção, de construção de vias expressas e de vias


locais, drenagem, canalização e condução de curso d’água em fundo de vale. Onde antes
era uma região de voçorocas foi dado um tratamento paisagístico.

Figura 3. Localiazação do Parque Vitóri Régia (Google Maps 13/04/2019)


No parque há um anfiteatro chamado Vitória Régia, que é constituído de concha acústica,
arquibancada e sanitários, com capacidade para duas mil pessoas. O projeto original do
parque previa a construção de outro teatro coberto, com concepção tradicional “à
italiana”. Esse segundo teatro seria construído de forma consecutiva ao anfiteatro, mas
em uma implantação anterior a ele e confrontado com uma rua lateral ao parque. Esse
teatro não chegou a ser projetado, mas sua localização estava prevista e no local hoje
existe um platô.
Na edição digital do jornal JCNET discutia-se o uso do parque que apresentava problemas
de conservação e de segurança foram ouvidas as opiniões dos gestores da prefeitura de
Bauru e foram confrontados coma opinião do professor doutor da Unesp Nilson
Ghirardello que entre outras considerações afirmou (GHIRARDELLO, in Jornal da
Cidade em 11/04/2010):
Se o parque impressiona por seus conceitos modernos, na questão da infraestrutura
deixa a desejar. O anfiteatro, por exemplo, é magnífico. A ideia do palco flutuante,
que lembra a flor vitória-régia, amparado por placas acústicas esculturais na parte
traseira, é incrível, enche os olhos de seus observadores. O problema é que, na
188

prática, se torna inviável reservar o local para eventos, já que o espaço é descoberto,
e as condições de tempo podem atrapalhar (...)
O secretário municipal de cultura na época o sr. Pedro Romualdo, também era crítico
quanto a funcionalidade de teatro (ROMUALDO, in Jornal da Cidade em 11/04/2010):
Existe uma dificuldade em chegar com equipamentos de som até o palco. Por conta
disso, muitas vezes optamos por fazer os shows em outras áreas do parque. Além do
que os banheiros não dão conta de atender o grande público que frequenta o local
em dias de eventos.

Figura 4. O Palco que tem formato elíptico e contornado por um espalho d’água, a ponte de acesso é
removível, mas durante essa pesquisa nunca foi visto o palco sem a ponte. Durante a pesquisa diversas
vezes os painéis acústicos foram pichados e repintados.. (Foto do autor, 2016)

4.2 Sambódromo
189

A Passarela Sambódromo Gilberto Duarte Carrijo, localiza-se na rua Fortunata Dala Ru


Vanuzini, 359, no bairro Geisel, na cidade de Bauru no estado de São Paulo. Foi o
segundo equipamento desse tipo construída em todo o país, ficando atrás apenas do
sambódromo carioca que foi inaugurado em 1984.

Figura 5. Localiazação do Sambódromo (Google Maps 13/04/2019)

O Sambódromo de Bauru conta com aproximadamente 700 metros de extensão e 7 metros


de largura, sendo cerca de 450 metros destinados à área de desfile, além das áreas de
concentração e dispersão, acolhe cerca de 20 mil pessoas, entre arquibancadas e
camarotes. A capacidade é estendida pelo fato dos desfiles serem livres, não havendo
pagamento de ingressos.
Foi inaugurado no final de 1990 pelo então prefeito Antônio Izzo Filho. A passarela do
samba de Bauru foi a segunda a ser construída no Brasil, antes mesmo do Anhembi em
São Paulo. Nele houve desfiles de carnaval, com competição entre escolas de samba do
ano 1991 a 2002. Ficou sem esses eventos durante os anos de 2003 a 2009, durante o
período que ficou desativado o sambódromo ficou abandonado e sem manutenção com
mato crescendo e com depredações. Em 2010 ele voltou a receber os desfiles
carnavalescos, com os blocos e algumas escolas de samba. E em 2011 retornaram os
desfiles competitivos que acontecem anualmente até os dias de hoje.
190

Figura 6. Desfile de escola de samba no sambódromo (Foto do autor 2014)

Bauru já fez história no estado, considerado um dos maiores carnavais de rua do interior
paulista. Os blocos e as escolas de samba bauruenses se preparam todos os anos para
realizar uma festa de qualidade a toda a população e cidades vizinhas. O carnaval em
Bauru tem como tradição desde os anos 1960 comemorar essa data em grande estilo, com
os blocos e escolas. Nessa época, os desfiles eram feitos na Avenida Rodrigues Alves.
Segundo a Reportagem da Tatiana Olivetto do jornal eletrônico “Repórter Unesp”
(OLIVETTO, in Repórter Unesp em 23/01/2016):
Mas foi em 1990 que o prefeito teve uma grande ideia, que resolveria os problemas
ambientais e traria investimentos no entretenimento. O secretário da cultura de
Bauru, Elson Reis, relembra: ‘Naquele ano já existia o sambódromo do Rio de Janeiro
e já se falava na construção do sambódromo de São Paulo’. Foi daí que surgiu a
191

inspiração. O secretário conta que, em 1990, o prefeito da época fez uma proposta
às escolas, de que não seria investido dinheiro na estrutura de arquibancada e não
haveria o repasse de verba destinado a elas. ‘Esse dinheiro economizado seria
investido na construção de um sambódromo’, diz Elson, que seria construído no
Geisel, dando um fim aos problemas erosivos. Esse ano foi o último a ter o carnaval
comemorado na Avenida Nações Unidas, que recebeu um desfile com uma estrutura
mínima, sem camarotes e arquibancadas montadas e feito na forma de blocão, ou
seja, cada escola formou uma ala com o material que tinha disponível. E em 1991 o
Sambódromo de Bauru foi oficialmente inaugurado, já com as competições entre as
escolas.
Os moradores reclamam de falta de luz e falta de segurança que os afugentam da
utilização do espaço e com degradações na passarela, com o desgaste no asfalto e
arquibancadas abandonadas tornam o espaço menos utilizável. Esses aspectosnegativos
fazem o Sambódromo perder o seu valor como espaço público destinado ao lazer na
cidade de Bauru.
Em visita no dia do evento, o carnaval em 2014, foi verificado que embora as instalações
sejam sumárias a presença da população é grande e entusiástica. Há uma divisão de
setores onde a arquibancada é franqueada à população e no lado oposto existem estruturas
de madeira com cobertura de fibrocimento onde o acesso é controlado e dedicado a
convidados, imprensa, políticos etc.
Existe uma instalação de banheiros com pouquíssimos vasos sanitários imundos e
depredados. No dia da visita foi visto vários sanitários químicos, destinados ao uso da
plateia e dos componentes das escolas de samba. Não haviam lixeiras no local o que
obrigou a população a jogar no chão qualquer material de descarte.

5 OS ESPAÇOS DESTINADOS AO LAZER EM NOSSAS CIDADES

As cidades hoje em dia têm na região central espaços destinados ao lazer e ao ócio, esses
equipamentos carregam em si um valor simbólico que transcende ao seu valor utilitário.
O reconhecimento de um determinado equipamento público, como um coreto por
exemplo, é muito importante para as pessoas como memória afetiva de e reconhecimento
de pertencimento de uma comunidade, esses equipamentos podem até estar ultrapassados
ou obsoletos, mas sua existência é exigida como matéria documental de um tempo
passado e de um ideal de sociedade.
As cidades brasileiras, hoje em dia, sofrem com problemas de segurança, essa insegurança
encontrada nos centros urbanos tem diversas causas e está associada a problemas crônicos
192

econômicos, tais como a concentração de renda por uma parte pequena da sociedade, a
percepção de que o estado não oferece as condições mínimas de civilidade, tais como
escolas em número adequado e de qualidade, um sistema de saúde que atenda de forma
digna às necessidades da população, um sistema de segurança desmilitarizado e que tenha
treinamento para tratar com a diversidade da população e outros problemas. Esses
problemas econômicos e de serviços provocam em parte da população um sentimento de
frustação e de abandono, uma parte da população não reconhece os equipamentos
públicos como parte de sua história e de reconhecimento de sua comunidade uma vez que
não se sente pertencente à ela, a depredação é um indicativo da falta de reconhecimento
de pertencimento e de parte de uma comunidade e de uma sociedade com ideais comuns.
As depredações acontecem de diversas formas, como a pichação desses equipamentos,
com o furto de partes desses equipamentos, com a destruição de partes desses
equipamentos.
A parte da sociedade que detém mais recursos financeiros e consegue se auto abastecer
de serviços públicos, tais como a compra de ensino em escolas particulares, com a
participação em convênios médicos particulares e com a contratação de serviços de
segurança particulares e seguros, essas pessoas não se aliam aos atos provocados pelo
vandalismo, mas elas têm medo dessas depredações e se retiraram no espaço público.
Essa estratégia de fuga do espaço público encontra equivalentes em outras sociedades
assim como indica Jan Gehl em seus livros que tratam da qualidade dos espaços públicos,
ele indica os shoppings como centros comerciais gigantes que se localizam (GEHL, 2002,
p. 13) :
[...] geralmente afastados do coração da cidade. Nos casos que os centros de
comércio foram estabelecidos dentro da cidade, eles se fecharam neles mesmos e
deixaram de ser parte da arena pública. Os negócios passaram a localizar-se em
enclaves interiores, dentro de um labirinto de passagens privadas com pequenas
praças, fontes, música ambiente e ar condicionado. Nesse processo, a ‘vida pública’
dos locais de comércio tornaram-se estritamente controladas, todas as atividades e
interações humanas passaram a ser reguladas por guardas de segurança. O comércio
retirou-se quase literalmente da arena pública e restringiu-se à esfera privada.
Esse processo de esvaziamento acontece em muitas cidades brasileiras, no caso de Bauru
existem alguns Shoppings Centers na cidade e existem muitos lugares depredados no
centro da cidade. As ruas de Bauru em sua maioria favorecem o deslocamento
individualizado com automóveis e a esse respeito Jan Gehl identifica os shopping centers
como sintoma do privilégio da trafego de carros (GEHL, 2002, p. 17) :
Nestes shopping centers é ainda possível caminhar do estacionamento até as lojas
193

e, no interior, pelos corredores do próprio centro. Como uma contrapartida aos


shopping centers e como estratégia de manutenção dos usos do centro da cidade,
várias cidades experimentaram novas formas de espaços para compras adaptados à
cultura do carro. Em algumas cidades, as lojas mudaram-se para ambientes fechados
em átrios e galerias de compras no próprio centro da cidade.
Esses Centros de compras resolvem em parte o problema de segurança da parte mais
abastada da sociedade, mas aumentam mais o sentimento de segregação da parte que não
tem acesso ao dinheiro necessário para frequentar esses ambientes, que enfim buscam a
realização do comércio tão somente. No ano de 2013 começaram a acontecer na cidade
de São Paulo os chamados “Rolezinhos” que foi um tipo de flash mob ou coordenação de
encontros simultâneos de centenas de pessoas em locais como praças, parques públicos e
shopping centers. Os encontros foram marcados pela internet, quase sempre por meio de
redes sociais como o Facebook. Os rolezinhos ganharam destaque no noticiário brasileiro
devido a supostos delitos cometidos por alguns participantes, como tumultos, furtos e
agressões. É logico que houve uma reação por parte dos shoppings para deter esses
encontros e não permitir que o problema de insegurança dos centros das cidades se
estendessem para esses empreendimentos privados. Mas ao combater esses encontros
aumentou anda mais a segregação que sofre a sociedade brasileira. Nesse ano de 2013 a
polícia militar de SP usou bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral, além de balas de
borracha contra um grupo de aproximadamente mil pessoas que se reuniram para um
rolezinho no shopping Itaquera, na zona leste da cidade.
As soluções para recuperar as nossas cidades podem contar com as propostas projetuais
dos arquitetos e outros profissionais assim como sempre foi feito.
A criação da praça Rui Barbosa buscava um lugar de encontro e convivência dos cidadãos
bauruenses, é verdade que ao logo de sua história houve um período de segregação racial,
que impossibilitou o uso da praça por parte da população, mas felizmente isso não existe
mais, entre os equipamentos que foram colocados na praça foi instalado um coreto para
que se pusesse ouvir músicas e permitir o congraçamento da sociedade.
Da mesma forma quando se propôs a criação de Parque Vitória Regia, também foi alocado
um equipamento de fruição artística, foi instalado nela um anfiteatro.
Já o Sambódromo é um espaço criado para ser ele todo destinado a fruição de música e
performances carnavalescas.
É sintomático que os três equipamentos estudados na cidade de Bauru estejam
depredados, sujos e pichados, pois eles têm muito pouco uso para o que foram projetados.
Ainda que existam problemas de adequação funcional de suas estruturas, eles deveriam
194

funcionar, pelo menos, como referencial da memória afetiva e de reconhecimento de


pertencimento de uma comunidade. Mas justamente esse possível pertencimento dos
equipamentos ao conjunto da sociedade é o que não existe por parte da população
desfavorecida. Pouco adiantará a arquitetura propor soluções espaciais se não houverem
mudanças urgentes na sociedade brasileira para diminuir a concentração de renda, e o
estado falimentar dos serviços oferecidos pelo governo à população.

6 CONCLUSÃO

Os espaços destinados ao lazer e ao ócio são lugares que podem e devem ser agradáveis,
permitir o descanso e fruição de eventos artísticos, permitir atividades de congraçamento,
diversão e interação entre as pessoas.
As reformas e adequações realizadas na praça Rui Barboza procuravam dar vida nova ao
lugar, a concorrência com novos espaços comerciais e a violências de nossos centros
urbanos levam a tirar da praça sua principal intenção projetiva inicial, que seria a de criar
um local de lazer para a população, nesse período houve evolução de outros meios de
manifestações artísticas e de informações a televisão evolui desde de sua criação em 1929
e ela privilegia a fruição em pequenos grupos ou individualmente, da mesma forma a
criação do Personal Computer, o PC, no início das anos 1980 e sua evolução até a criação
do smartphone no início da década e 1990 e a melhoria dos aparelhos no início do século
XXI levaram a uma individualização da fruição de eventos “artísticos” e a
individualização dessas experiências. Atualmente estão sendo criados meios de tornar
coletivo a experiências com esses aparelhos através da criação de grupos de
relacionamentos virtuais como o Facebook e o WhatsApp que possibilitam que grupos de
pessoas, definidos pelos usuários, e que permitem interagir e compartilhar impressões
sobre questões das universais às individuais. A permanência das pessoas nas praças tem
se tornado acidental, as redes wi-fi possibilitam que os usuários possam acessar seus
smartphones nas praças de tal forma que embora haja a presença de pessoas nas praças é
bastante pequena e interação entre essas pessoas, uma vez que a “interação” está se
manifestando de maneira virtual pelas redes sociais e os aparelhos smartphones.
Esse excesso de individualismo causado pelas mídias digitais, ainda que esteja ajudando
a causar um esvaziamento das praças, também pode ser o fator de ressurgimento desses
lugares, para Jan Gehl essas mudanças nas cidades são uma reação da individualização
das sociedades (GEHL, 2002, p. 20):
Em uma sociedade na qual cada vez mais a vida diária acontece na esfera privada –
em casas privadas, com computadores e carros privados, em espaços de trabalho
195

privados e em centros comerciais estritamente controlados e privatizados – existem


sinais claros que a cidade e os espaços urbanos receberam um novo e influente papel
como espaço e fórum públicos.
Jan Gehl diz que a individualização da fruição do lazer pode trazer a necessidade de um
lugar de encontro real entre as pessoas os equipamentos eletrônicos estão tentando criar
espaços de convivência virtual, mas os encontros reais ainda são insubstituíveis.
Nesse contexto a existência de um coreto na praça pouco importa como meio de fruição
coletiva de manifestação cultural. Os poucos momentos em que há apresentações na
praça, como festejos cívicos eu religiosos, como uma festa junina ou auto de Natal, o
coreto pode até ser usado, mas de forma desvirtuada.
Ainda que possa receber reações conservadoras e saudosistas, uma providência que
poderia ser revitalizante para o anfiteatro da Vitória Régia seria a reforma do palco,
eliminando as águas circundantes criando um grande pátio neutro com tubulações
elétricas embutidas, dessa forma propiciando a versatilidade que os eventos atuais
exigem, evitando a situação atual onde o teatro é subutilizado e ao lado dele, no gramado,
é montado um outro palco com tubos de aço. Se na cidade do Rio de Janeiro na parça
Mauá um viaduto foi demolido para criar uma espaço destinado ao lazer e ao ócio, é de
se imaginar que a reforma de parte do teatro seja de complicação bem menor, e nesse caso
ele já se encontra em uma lugar com infraestrutura para o lazer com arquibancadas e
sanitários que também deveriam ser melhorados, aumentados e modernizados, outra
providência possível também seria a fixação de cadeiras plásticas sobre a arquibancada,
assim como foram feitas nos novos estádios de futebol e repensar as possibilidades de
acessibilidade.
Ainda sobre as condições ideais de implantação de eventos espetaculares em espaços
públicos, podemos considerar também as orientações encontradas na tese de doutorado
deste autor, onde há a recomendação aos arquitetos de quê, ao projetarem praças,
lembrarem-se de que elas podem ser utilizadas para eventos ao ar livre, de forma que se
deve pensar em locais de acesso para a entrada e saída de caminhões de montagem e
desmontagem. Os pisos dessas praças devem prever a carga do peso desses caminhões
nas entradas e manobras de trabalho. Os bancos, bebedouros, luminárias, postes, entre
outros, não devem impedir a entrada desses veículos ou devem prever uma eventual e ágil
desmontagem. Devem-se prever pontos de ligação de telefonia fixa, luz, água e esgoto
para serem conectados aos eventos. As áreas verdes e árvores, quando houverem, devem
permitir o pisoteamento e evitar a obstrução da visibilidade de um evento.
Da mesma forma o Sambódromo poderia ser modernizado com a fixação de cadeiras
196

plásticas como as dos estádios de futebol e com a reforma dos sanitários.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bauru-SP. Paisagem e Ambiente, São Paulo, n. 22, p. 309-317, dec. 2006. ISSN 2359-5361. Disponível
em: <http://www.revistas.usp.br/paam/article/view/90718>. Acesso em: 11 apr. 2017.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2359-5361.v0i22p309-317.

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HABERMAS, Jürgen. Arquitetura moderna e pós-moderna. in: ARANTES, Otília & ARANTES, Paulo E.
Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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http://www.reporterunesp.jor.br/sambodromo-carnaval-bauru/

http://www.ebad.info/filho-jurandyr-bueno (Enciclopédia Biográfica de Arquitetos Digital)


197

Fatores que interferem na caminhabilidade: proposta de


um método de identificação gráfica
Renata Cardoso Magagnin
Beatriz Silva Lima
Maria Solange Gurgel de Castro Fontes

RESUMO: Esta pesquisa apresenta uma proposta Factors that interfere in walkability:
metodológica para identificação dos aspectos proposal of a graphic identification
positivos e negativos associados a caminhabilidade, method
por meio da utilização de indicadores de
desempenho representados por meio de
pictogramas. O método propõe a elaboração de
ABSTRACT: This research presents a
methodological proposal for the identification of
pictogramas para a representação gráfica de todos
the positive and negative aspects associated to
os elementos avaliados sobre a caminhabilidade,
walkability, using performance indicators
especificadas na proposta do ITDP (Instituto de
represented by means of pictograms. The method
Políticas de Transporte e Desenvolvimento), que
proposes that pictograms for the graphic
contempla categorias e indicadores de
representation of all walkability elements assessed
desempenho, a partir da utilização de uma planilha
on specified in the proposed ITDP (Institute for
de auditoria técnica. A validação do instrumento foi
Transportation and Development Policy), which
aplicada em um importante eixo viário estruturador
includes categories and performance indicators
da cidade de São Paulo (Avenida Liberdade e Rua
from the use of a spreadsheet technical audit. The
Vergueiro) e os resultados mostraram que o
instrument validation was applied to a major road
método proposto é eficaz para mensurar a
axis of the São Paulo (Avenida Liberdade and Rua
qualidade espacial de categorias e indicadores de
Vergueiro) and the results showed that the
caminhabilidade e de fácil identificação por
proposed method is effective for measuring the
pesquisadores e pelos gestores municipais. O
spatial quality of categories and indicators of
diferencial do método proposto é a forma de
walkability and easy identification by researchers
visualização dos aspectos que podem comprometer
198

positiva ou negativamente a caminhabilidade and municipal managers. The differential of the


(calçada, mobilidade, atração, segurança viária, proposed method is the way of visualizing the
segurança pública e ambiente), por meio do uso de aspects that can positively or negatively
pictogramas, que são representados por cores, que compromise the walkability (sidewalk, mobility,
indicam se a avaliação é ótima, boa, suficiente e attraction, road safety, public safety and
insuficiente. environment) using pictograms, which are
represented by colors, which indicate whether the
evaluation is optimal, good, sufficient and
insufficient.
Palavras-chave: caminhabilidade, pedestre, Keywords: walkability, pedestrian, technical audit,
auditoria técnica, pictogramas de caminhabilidade walkability pictograms
199

1 INTRODUÇÃO

O deslocamento a pé ou caminhada é o modo de transporte mais antigo de todas as


civilizações, pois possibilita a interação direta entre os seres humanos e com o entorno.
Por isso, constitui o único modo de transporte que permite essa influência mútua (KELLY
et al., 2011). Outro benefício associado à caminhada refere-se à melhoria na saúde do
usuário, a diminuição de congestionamentos na cidade, a promoção da conservação
ambiental, dentre outros fatores (GORI; NIGRO; PETRELLI, 2014; GUO; LOO, 2013).
No entanto, o aumento no número de pessoas que utilizarão a caminhada de modo efetivo
para seus deslocamentos diários só poderá ser efetivado, se a cidade proporcionar
infraestrutura adequada e oferecer aos pedestres condições de conforto e segurança
(SARKAR, 2003).
No Brasil, dados sobre os deslocamentos diários mostram que o modo de transporte a pé
representa 41% do total de viagens realizadas no ano (ANTP, 2018). Ao analisar estes
dados por porte de município, observa-se que em cidades de até 60.000 hab esse
deslocamento representa 40,5% dos deslocamentos, passando para 46% em municípios
entre 60.000 a 100.000 hab, 43% em municípios entre 100.000 a 250.000 hab, 42% em
municípios entre 250.000 a 1.000.000 hab e 36% em municípios acima de 1.000.000 hab,
como é o caso da cidade de São Paulo. Ainda de acordo com esse relatório, o número de
deslocamentos a pé em cidades acima de 1 milhão de habitantes é equivalente a
porcentagem de deslocamentos realizados por ônibus (municipal e metropolitano) e
trilhos, que representam respectivamente, 27% e 9% dos deslocamentos (ANTP, 2018).
A literatura nacional e internacional apresenta diversos métodos (quantitativos e
qualitativos) elaborados por pesquisadores da área de transporte e mobilidade sustentável
para avaliação do ambiente destinado a caminhada do pedestre. Algumas pesquisas
avaliam a caminhabilidade por meio de auditoria técnica (realizada a partir da definição
de indicadores e índices) e sob o enfoque dos usuários (técnicas de avaliação declarada
por meio da utilização de formulários e/ou questionários) (KELLY, et al., 2011; PIRES;
GEBARA; MAGAGNIN, 2016).
Sarkar (1995), Dixon (1996), Gallin (2001), Ewing, et al. (2006), DAY, et al. (2006), Hall
(2010), HCM (2010), TOD Index (2015), Asadi-Shekari; Moeinaddini; Shah (2016) e
ITDP (2013, 2016) avaliam a caminhabilidade por meio de avaliação técnica para
determinar o do nível de serviço, por meio de indicadores de desempenho e a definição
200

de um índice. Outros autores, como Bradshaw (1993), Khisty (1994) e Landis, et al.
(2001), utilizam indicadores de desempenho para avaliar a caminhabilidade sob o ponto
de vista dos pedestres (percepção do usuário). Enquanto que a metodologia desenvolvida
por de Mori e Tsukaguchi (1987), Ferreira e Sanches (2001) e Muraleetharan (2004)
avaliam a caminhabilidade a partir da percepção do usuário, por meio da aplicação de
vistoria técnica e definição de indicadores de desempenho.
De acordo com Pires; Gebara; Magagnin (2016) alguns desses métodos (MORI;
TSUKAGUCHI, 1987; BRADSHAW, 1993; KHISTY, 1994; LANDIS, et al., 2001;
EWING, et al., 2006; HCM, 2010) avaliam apenas o segmento de calçada e
desconsideram as intersecções (cruzamentos, travessias de pedestre). Outros métodos
(DIXON, 1996; GALLIN, 2001; FERREIRA; SANCHES, 2001; SARKAR, 2003; DAY,
et al., 2006; HALL, 2010; ASADI-SHEKARI; MOEINADDINI; ITDP, 2013, 2016)
avaliam os segmentos de calçadas e as intersecções.
Em síntese, todos esses métodos, embora tenham diferentes abordagens metodológicas,
possuem em comum a análise da caminhabilidade a partir da utilização de indicadores e
índices de desempenho para a avaliação da infraestrutura do pedestre. No entanto, os
resultados dessa avaliação nem sempre podem ser representados de forma gráfica, para a
compreensão de leigos. Nenhum desses métodos apresenta uma proposta gráfica para
facilitar a identificação dos aspectos positivos e negativos associados a caminhabilidade,
em segmentos de calçada e/ou intersecções, em um determinado contexto urbano.
Neste exposto, este estudo apresenta uma proposta metodológica que possibilita a
identificação dos aspectos positivos e negativos associados a caminhabilidade utilizando-
se indicadores de desempenho representados por meio de pictogramas. O método foi
validado em um estudo de caso de um importante eixo viário da cidade de São Paulo (SP).

2 METODOLOGIA

Este estudo teve como referência metodológica o Índice de Caminhabilidade (iCam) para
a análise da caminhabilidade, que foi desenvolvido pelo Instituto de Políticas de
Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil) em parceria com o Instituto Rio Patrimônio
da Humanidade (IRPH) e com a Pública Arquitetos (ITDP, 2013 e 2018).
O ITDP possui duas versões do iCam, a primeira ferramenta possuía 21 indicadores de
desempenho de mobilidade urbana e a segunda 15 indicadores, ambos agrupados em 6
categorias de análise. Para isso, foram utilizados os indicadores propostos na segunda
201

versão do iCam acrescentando-se o indicador “Rede Cicloviária”, pertencente a categoria


“Mobilidade”, da 1ª versão.
A análise da caminhabilidade da infraestrutura do pedestre foi realizada a partir do uso
de 16 indicadores agrupados em seis categorias: Calçada, Mobilidade, Atração,
Segurança viária, Segurança pública e Ambiente, que incorporam as diferentes dimensões
do caminhar (ITDP Brasil, 2018).
O método permite a utilização de três tipos de dados: 1°) Dados primários, coletados por
meio de pesquisa de campo; 2°) Dois dados secundários, obtidos em documentações,
fotografias e por programas de georreferenciamento, como o Google Earth e coletados
por meio de agências públicas (ITDP Brasil, 2018).
Nas etapas de coleta de dados e avaliação da caminhabilidade utiliza-se como referência
a divisão das calçadas em segmentos de calçada, que correspondem a unidade básica de
análise do índice. O segmento de calçada corresponde a um trecho da rua localizado entre
dois cruzamentos adjacentes, inclusive os não motorizados (considera apenas um lado da
calçada). Para alguns indicadores que necessitam de análise no plano vertical, foi inserida
uma unidade específica: face de quadra. Ela corresponde às fachadas compreendidas no
segmento de calçada.
Cada indicador, avaliado por segmento de calçada, recebe uma pontuação que varia de 0
(zero) a 3 (três), que pode ser representada graficamente por uma escala de quatro cores.
As tabelas 1 e 2 apresentam um exemplo da avaliação do indicador largura e a
representação da pontuação dos indicadores indicados pelo ITDP (2013, 2018),
respectivamente.
202

Tabela 1 - Exemplo de avaliação do indicador Largura, da Categoria: Calçada

Unidade de
Métrica Critérios de Avaliação e Pontuação
análise

3 – Largura mínima ≥ 2 m e comporta o fluxo de pedestres ou trata-


se de uma via exclusiva para pedestres (calçadão).
Largura da faixa de
2 – Largura mínima ≥ 1,5 m e comporta o fluxo de pedestres, ou é
circulação da calçada e Segmento
uma via compartilhada e comporta o fluxo de pedestres.
adequação ao fluxo de de calçada
1 – Largura mínima ≥ 1,5 m e não comporta o fluxo de pedestres,
pedestres existente.
ou é uma via compartilhada e não comporta o fluxo de pedestres.
0 – Largura mínima < 1,5 m.
Fonte: ITDP Brasil (2016, 2018)

Tabela 2 - Representação da pontuação dos indicadores

Pontuação 3 - ótimo

Pontuação 2 - bom

Pontuação 1 - suficiente

Pontuação 0 - insuficiente
Fonte: ITDP Brasil (2018)

O iCam possibilita a realização das pontuações e a respectiva representação dos


resultados graficamente: por indicador, por categoria e a pontuação final. O cálculo do
indicador é realizado pela adoção dos seguintes procedimentos:
i) Divisão da extensão de cada segmento pela soma das extensões de todos os
segmentos analisados, multiplicando-os por 100, para obter a proporção que cada
segmento representa no todo;
ii) Em cada segmento, a porcentagem calculada é multiplicada pela pontuação
do indicador. O valor final do indicador é obtido pela soma das pontuações ponderadas
de cada segmento, divididas por 100 (ITDP Brasil, 2018), equação 1.
203

Onde:
RI1 – resultado final de cada indicador
Pi1; Pi2; ... – pontuação ponderada do segmento de calçada para cada indicador
A pontuação de cada categoria por segmento de calçada é obtida pelo cálculo da média
aritmética da pontuação dos indicadores, que compõem uma mesma categoria, e divisão
desse resultado por 100, equação 2 (ITDP Brasil, 2018).

Onde:
RC1 – resultado final de cada categoria
Ci1; Ci2; ... – pontuação ponderada do segmento de calçada para cada categoria
Por fim, o cálculo do iCam é resultado da média aritmética simples da pontuação final de
cada categoria, equação 3.

Onde:
RI – resultado final do iCam
Rc1; Rc2; ... – resultado final de cada categoria
nc – número de categorias pertencentes ao iCam
A partir dos resultados do iCam, o ITDP Brasil (2018) define uma escala de pontuação e
o respectivo grau de prioridade das intervenções, tabela 3.
204

Tabela 3 - Pontuação definida pelo iCam para necessidade de intervenções


Pontuação 3 Pontuação 2 até 2,9 Pontuação 1 até 1,9 Pontuação 0 até 0,9
Insuficiente
Ótimo Bom Suficiente
Intervenção
Manutenção e Intervenção desejável, Intervenção prioritária,
prioritária, ação
aperfeiçoamento ação a médio prazo ação a curto prazo
imediata

Fonte: ITDP Brasil (2018)

Os resultados por indicador e por categoria, além do índice geral, indicam a situação da
caminhabilidade de cada trecho e a necessidade de intervenção para melhorar a
infraestrutura destinada ao pedestre do local.
A partir dos dados apresentados nas tabelas 2 e 3 definidos pelo ITDP (2013 e 2018),
observou-se que a representação gráfica dos indicadores por meio de mapas, pode ficar
confusa, pois os diferentes indicadores possuem uma mesma representação gráfica
(definida por escala de cores e dois tipos de linhas).
Neste estudo foi proposta uma continuidade do método desenvolvido por ITDP (2013 e
2018), para realizar a análise gráfica dos resultados. Assim, foi adotada a representação
das pontuações dos indicadores através de pictogramas (Tabela 4). Esta etapa da proposta
metodológica visa favorecer a visualização dos aspectos positivos e negativos associados
a caminhabilidade por pesquisadores e, sobretudo, pelos gestores públicos municipais.
205

Tabela 4 - Representação das pontuações dos Indicadores por pictogramas

Categ Indicador Pictograma


Pavimentação
Calçada

Largura

Dimensão da quadra
Mobilidade

Distância a pé ao
transporte

Rede cicloviária

Fachadas fisicamente
permeáveis

Fachadas visualmente
Atração

ativas

Uso público diurno e


noturno

Usos mistos
Segurança

Tipologia da rua
Viária

Travessias

Iluminação
Segurança
Pública

Fluxo de pedestres
diurno e noturno

Sombra e abrigo
Ambiente

Poluição sonora

Coleta de lixo e limpeza


206

2.1 Validação do instrumento


A validação do instrumento foi aplicada em um importante eixo viário da cidade de São
Paulo, composto pela Avenida da Liberdade e pela Rua Vergueiro, delimitado pela Praça
Dr. João Mendes e pela Avenida Bernardino de Campos (figura 1).

Figura 1. Objeto de estudo

O trecho viário formado pela Avenida da Liberdade e pela Rua Vergueiro ligam o centro
histórico de São Paulo à um dos principais centros financeiros, a Avenida Paulista. Em
um raio de 2 km, é possível encontrar diversos equipamentos institucionais e de serviços,
como hospitais, escolas e faculdades. A região abriga cerca de 15 hospitais, 6 instituições
de ensino superior, o Fórum João Mendes, o Tribunal de Justiça, o Palácio da Justiça de
São Paulo e o Centro Cultural de São Paulo. O comércio também é forte na região e muito
diversificado. Lojas de produtos orientais e restaurantes típicos japoneses, chineses e
coreanos dão vida ao Bairro da Liberdade, enquanto a região da Rua Vergueiro abriga
edifícios corporativos e comerciais e hotéis.
Em relação a mobilidade urbana, a área apresenta uma grande disponibilidade de
transporte público. Na Avenida da Liberdade e na Rua Vergueiro estão localizados quatro
estações da Linha 1 – Azul do metrô (Paraíso, Vergueiro, São Joaquim e Liberdade). Há
27 pontos de ônibus nesse trecho, implantados ao longo dos dois lados do eixo viário. Em
2014 foi implantado no canteiro central deste eixo viário uma ciclovia, que separa o
tráfego de veículos por meio de tachões reflexivos, conhecidos popularmente como
tartarugas.
207

Outro diferencial da área é a presença da Faixa Verde, implantada em 2015, que consiste
na extensão da calçada por meio da pintura na via de automóvel de uma faixa de 1,50
metros de largura. A faixa é separada da via por meio de sinalizadores e foi implantada
entre as estações de metrô São Joaquim e Liberdade.
A calçada da Rua Vergueiro possui em média 4,0 metros de largura, no entanto, alguns
mobiliários urbanos reduzem a passagem em alguns pontos. Enquanto que na Avenida da
Liberdade, as calçadas variam de largura e medem até 4,50 metros em alguns pontos,
porém, em geral, são mais estreitas do que as da Rua Vergueiro.
Em síntese, por esta região ser repleta de atividades culturais, comerciais e institucionais,
a Avenida da Liberdade e a Rua Vergueiro concentram um grande fluxo de pessoas. A
oferta de transporte público possibilita que parte do trajeto seja realizado a pé, aspecto
que evidencia o grande potencial de pedestrianização desta área.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os resultados são apresentados através da validação da implementação de pictogramas


para a análise da cainhabilidade a partir da utilização do método do ITDP (2013, 2018).
A primeira etapa consistiu na subdivisão do eixo viário em segmentos de calçada, como
determina o método. As faces de quadras foram numeradas de forma sequencial de 01 a
26, com a adoção do sentido bairro – centro para essa numeração. Os segmentos 4 e 15
foram subdivididos em A e B para avaliação, figura 2.

Figura 2. Numeração dos segmentos de calçada


208

Posteriormente, foi realizado o levantamento dos indicadores por categoria. Para esse
processo foram realizadas coletas de dados em campo, realizadas em dois períodos:
manhã, por volta das 10 h, e à noite, por volta das 21 h. Alguns dados foram coletados
por meio do software Google Earth, a partir da ferramenta Street view.
Os resultados foram compilados em uma planilha eletrônica, planejada para calcular
automaticamente a pontuação por indicador e por face de quadra, por categoria e por face
de quadra e geral - determinação do iCam da área. A tabela 5, apresenta as notas de todos
os indicadores e suas respectivas categorias, a codificação dos resultados por
pictogramas, bem como a nota final do iCam para o trecho analisado.

Tabela 5 - Resultados do iCam

Pontuação Pontuação Representação e avaliação da


Indicadores e Categorias
Máxima Final pontuação final

Pavimentação 3,00 1,74 1 - suficiente

Largura 3,00 1,74 1 - suficiente

Calçada 3,00 1,74 1 - suficiente

Dimensão das quadras 3,00 0,79 0 - insuficiente

Distância a pé ao transporte 3,00 3,00


3 - ótimo

Rede Cicloviária 3,00 2,00


2- bom

Mobilidade 3,00 1,90


1 - suficiente

Fachadas fisicamente permeáveis 3,00 2,43


2 - bom

Fachadas visualmente permeáveis 3,00 2,38 2 - bom

Uso público diurno e noturno 3,00 1,53 1 - suficiente


209

Pontuação Pontuação Representação e avaliação da


Indicadores e Categorias
Máxima Final pontuação final

Usos mistos 3,00 2,28


2 - bom

Atração 3,00 2,16


2 - bom

Tipologia da rua 3,00 1,00 1 - suficiente

Travessias 3,00 2,82


2 - bom

Segurança viária 3,00 1,91 1 - suficiente

Iluminação 3,00 1,75 1 - suficiente

Fluxo de pedestres diurno e noturno 3,00 1,89


1 - suficiente

Segurança pública 3,00 1,82 1 - suficiente

Sombra e abrigo 3,00 1,27 1 - suficiente

Poluição sonora 3,00 1,25 1 - suficiente

Coleta de lixo e limpeza 3,00 1,91 1 - suficiente

Ambiente 3,00 1,48


1 - suficiente

iCam 3,00 1,78 ---

Os dados da tabela 5 mostram que a área analisada é suficientemente favorável a


caminhabilidade, ou seja, na média da avaliação dos indicadores e das categorias da área
210

indicam a necessidade de Intervenções prioritárias, que podem ser realizadas através de


ações a curto prazo para melhorar a caminhabilidade da área. A representação gráfica dos
indicadores por pictograma facilita a identificação dos indicadores, cujo resultado indica
maior grau de comprometimento da caminhabilidade.
Ao analisar os dados por segmento de quadra mapeados graficamente (figuras 3 e 4),
observa-se que a elaboração de pictogramas facilita e identificação dos resultados das
cinco categorias por segmento de quadra.

Figura 3. Avaliação dos indicadores por categorias e por segmento


211

Figura 4. Detalhe da avaliação dos indicadores por categorias e por segmento de quadra da Rua
Vergueiro, sem escala

Na figura 5 é possível observar a avaliação dos indicadores da categoria calçada por


segmento. Quanto à pavimentação observa-se que dos 26 segmentos de quadras avaliados
apenas 3 foram avaliados como críticos, ou seja, necessitam de Intervenção prioritária e
ação imediata na troca de piso. Já a análise da largura das calçadas revelou que 06
segmentos foram avaliados como críticos. Apenas o segmento de quadra 22 foi
considerado crítico quanto ao pavimento e a largura da calçada (figura 5). A visualização
desses dois indicadores por pictogramas facilitou a identificação dos trechos que
necessitam de intervenções, que podem ser realizadas a curto, médio e longo prazos.
212

Figura 5. Avaliação dos indicadores da categoria calçada por segmento de quadra

A avaliação da categoria mobilidade (figura 6), mostra que: os indicadores rede


cicloviária e a oferta de transporte público apresentaram avaliações positivas; o indicador
dimensão das quadras foi, em sua maioria, avaliado como insuficiente (10 segmentos de
quadra); o indicador distância a pé ao transporte foi avaliado como ótimo em todos os
segmentos de calçada; o indicador rede cicloviária foi avaliado como bom em todos os
segmentos, pois apesar da presença de ciclovia em toda a extensão do objeto de estudo,
ela não oferece a segurança adequada aos usuários, principalmente nas intersecções
viárias.

Figura 6. Avaliação dos indicadores da categoria mobilidade por segmento de calçada de quadra
213

A categoria atração (figura 7) foi a que obteve a melhor pontuação. Na figura 6, observa-
se que todos os indicadores obtiveram boa avaliação em geral – suficiente a ótimo. O
segmento 19 foi o único que obteve pontuação insuficiente nos 04 indicadores, por se
tratar de uma quadra com apenas um terreno, que atualmente está sem utilização.

Figura 7. Avaliação dos indicadores da categoria atração por segmento de quadra

A análise da categoria segurança viária mostra que muitos segmentos obtiveram


avaliações semelhantes nos dois indicadores que compõem a categoria (figura 8). Em
relação ao indicador tipologia de rua todos os segmentos foram classificados como
suficientes (ícone em laranja). Já a avaliação das travessias, observa-se que a maioria dos
segmentos foram classificados como ótimos, com exceção dos segmentos 06, 21 e 22.
214

Figura 8. Avaliação dos indicadores da categoria segurança viária por segmento de quadra

A categoria segurança pública avaliada por meio dos indicadores iluminação e fluxo de
pedestres diurno e noturno indica que a área é parcialmente atendida nesse quesito. Em
relação a iluminação, a figura 9 mostra que dos 26 segmentos de quadras avaliados 42,3%
possuem ótima iluminação, mas a maioria das quadras a iluminação é classificada como
suficiente (61,5%), e merece atenção. Em relação ao indicador fluxo de pedestres diurno
e noturno a pontuação foi considerada insuficiente nos segmentos 05, 06, 07, 08 e 09,
devido ao intenso fluxo de pedestres em relação a largura da calçada nestes trechos (figura
9).

Figura 9. Avaliação dos indicadores da categoria segurança pública por segmento de quadra
215

Na figura 10, é possível observar que os únicos indicadores da categoria ambiente que
obtiveram avaliação insuficiente em algum segmento foram: sombra e abrigo e poluição
sonora. Quanto à coleta de lixo, a maioria dos segmentos se encontra dentro na avaliação
bom e suficiente.

Figura 10. Avaliação dos indicadores da categoria ambiente por segmento de quadra

Em síntese, a aplicação do instrumento de avaliação da caminhabilidade e sua


representação por meio de pictogramas demonstrou que o método proposto é eficiente na
identificação visual da qualidade da caminhabilidade em um eixo viário. O mapeamento
gráfico facilitou essa identificação das categoriais e indicadores, que receberam
avaliações positivas e/ou negativas em cada segmento de quadra. Portanto, torna-se uma
ferramenta eficaz na identificação dos elementos que merecem maior atenção dos
gestores públicos, e auxiliar futuras intervenções para aumentar a qualidade espacial e,
consequentemente, o número de deslocamentos a pé na área.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da qualidade dos diversos elementos que podem interferir na caminhabilidade


visa incentivar melhorias nessa infraestrutura a partir de ações conjuntas entre
proprietários, responsáveis pela manutenção das calçadas nas cidades e a administração
municipal. Para auxiliar esta questão, este capítulo apresenta um método de representação
gráfica da avaliação da qualidade espacial de categorias e indicadores de
216

caminhabilidade, que pode auxiliar especialistas, leigos e gestores públicos municipais


na visualização da avaliação de aspectos positivos e negativos associados a
caminhabilidade.
A validação do método, em um eixo viário na cidade de São Paulo (SP), mostrou que
apenas a categoria Atração recebeu pontuação positiva (bom – cor verde) na área como
um todo, mas ao observar essa mesma avaliação por segmento de quadra, pode-se ter uma
análise mais pontual desse item, como pode ser visto nas figuras 3 e 4.
No entanto, para a consolidação do método proposto, sugere-se a melhoria ou
readequação de alguns pictogramas para facilitar a leitura em grandes recortes espaciais
e sua aplicação em outros recortes urbanos.

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Congresso luso-brasileiro para o Planeamento Urbano, Regional, Integrado e Sustentável. Coimbra. p. 891-
903. 2018.

AUTORES
218

Renata Cardoso Magagnin: Professora Assistente Doutora do Curso de Graduação em Arquitetura e


Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação da UNESP. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e
Urbanismo da UNESP. Doutora em Engenharia de Transportes pela Universidade de São Paulo, Mestre em
Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos e graduada em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Desenvolve pesquisas junto ao NUPAC (Núcleo
de Pesquisa no ambiente construído) nas áreas de avaliação do espaço urbano e do edifício por meio de
estudos de mobilidade urbana, acessibilidade espacial, modos motorizados e não motorizados e análise
morfológica. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6470698041137310.
Beatriz Silva Lima: Graduação em Arquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação da UNESP. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/4218429104259148.
Maria Solange Gurgel de Castro Fontes: Professora Assistente Doutora da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), com pós doutorado na Universidade de Bath, Reino Unido
(2006-2007), doutorado em Ciências da Engenharia Ambiental, na Escola de Engenharia de São Carlos da
Universidade de São Paulo - EESC-USP (1998), Mestrado em Arquitetura e Urbanismo na EESC-USP
(1991) e Graduação em Arquitetura e Urbanismo na UFRN (1985). Ministra aulas nos Cursos de Graduação
(desde 1999) e Pós Graduação (a partir de agosto 2013) em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), da UNESP, em Bauru-SP. Desenvolve pesquisas junto ao
NUCAM (Núcleo de Conforto Ambiental) que visam a qualidade funcional, térmica e espacial do ambiente
construído (espaços externos, de transição e internos). Currículo completo em
http://lattes.cnpq.br/6410216019672649.
219

O marco regulatório da Política Urbana no Brasil


contemporâneo
Jefferson O. Goulart
Ana Carolina Bergamaschi do Val

RESUMO: Este capítulo aborda o percurso The regulatory framework of Urban


institucional da Política Urbana no Brasil no período Policy in contemporary Brazil
contemporâneo: parte da trajetória do Movimento
Nacional pela Reforma Urbana, conquista status de ABSTRACT: This chapter discusses the
referência na Constituição Federal de 1988 – cuja institutional course of Urban Policy in Brazil in the
inovação mais importante foi a inclusão do Capítulo contemporary period: it starts in the National
da Política Urbana –, e é consolidado com a Movement for Urban Reform's trajectory, it
aprovação da Lei federal nº 10.257/2001 (Estatuto achieved a status of reference in the Federal
da Cidade). Procedeu-se a um levantamento das Constitution of 1988 – whose most important
normas que regulam a ordenação urbana, innovation was the inclusion of the Urban Policy
compreendendo enunciados constitucionais e suas chapter –, and is consolidated with the approval of
modificações, até a legislação infraconstitucional, Federal Law 10,257/2001 (Statute of the City). A
de 1988 até 2016. Além da criação do Ministério das survey was made of the norms that regulate urban
Cidades como agência integradora de políticas planning, comprising constitutional statements and
urbanas, merecem registro normas estruturantes their modifications, including infra-constitutional
que instituíram os Sistemas Nacionais de Habitação legislation, from 1988 to 2016. In addition to the
de Interesse Social, de Saneamento Básico e de creation of the Ministry of Cities as an integrating
Resíduos Sólidos, além da Política Nacional de agency for urban policies, have instituted the
Mobilidade Urbana e do Programa de Aceleração do National System of Social Interest Housing, the
Crescimento, do Programa Minha Casa Minha Vida National Policy on Basic Sanitation, the National
e do Estatuto da Metrópole. Os avanços Solid Waste Policy and the National Urban Mobility
institucionais desse período são inegáveis, tanto na Policy, as well as the Growth Acceleration Program,
perspectiva de cidades mais justas, como na gestão the My Home My Life Program and the Metropolis
descentralizada e democrática. Tais avanços, Statute. The institutional advances of this period
contudo, se revelaram insuficientes para reverter a are undeniable, both from the perspective of fairer
lógica urbana imposta pelo capital financeiro e cities and decentralized and democratic
220

imobiliário, sob uma orientação de mercado que management. These advances, however, proved to
visa à acumulação e que produz segregação be insufficient to reverse the urban logic imposed
socioespacial. by financial and real estate capital, under a market
orientation aimed at accumulation and producing
socio-spatial segregation.
Palavras-chave: política urbana, Brasil, Keywords: urban policy, Brazil, urban planning.
planejamento urbano.

1 INTRODUÇÃO
221

O presente capítulo apresenta versão resumida e sintetiza os resultados de pesquisa sobre


o marco regulatório da Política Urbana no Brasil a partir da Constituição de 1988.201
Sinteticamente, pretendeu-se analisar as normas institucionais que redefiniram o papel do
Estado e dos diferentes níveis de governo na Política Urbana do país, adotando-se como
recorte cronológico de investigação o período que se inicia com a promulgação da
Constituição de 1988 e se estende até 2016. A escolha do ponto de partida e de seu marco
referencial é autoexplicativa: no capítulo inédito da Política Urbana da Carta Magna
(Arts. 182 e 183) estão resumidos os princípios inovadores da Política Urbana, a saber:
função social da cidade e da propriedade; acesso à terra urbanizada para os estratos sociais
historicamente marginalizados; e gestão democrática e participativa.
Metodologicamente, a pesquisa compreendeu revisão da literatura atinente e
levantamento empírico junto às fontes institucionais de pesquisa: sites e portais do
Executivo, Legislativo e Judiciário, respectivamente, Presidência da República
(Planalto), Câmara dos Deputados e Senado, e Supremo Tribunal Federal. A investigação
envolveu exaustiva catalogação das normas legais no âmbito da Política Urbana que se
seguiram à promulgação da Constituição de 1988: emendas constitucionais, medidas
provisórias, leis complementares e ordinárias. O material coletado foi catalogado,
fichado, organizado e classificado conforme critérios cronológicos, institucionais (origem
e natureza da norma) e de seu potencial impacto na regulação urbanística.
Face ao caráter interdisciplinar do enfoque, à complexidade e amplitude do escopo de
investigação, foram adotadas abordagens complementares de natureza urbanística,
política e jurídica, combinando métodos de pesquisa qualitativa e procedimentos
quantitativos (para mensurar o número de normas institucionais).
O texto está estruturado da seguinte forma: a segunda seção (“O percurso da Política
Urbana”) reconstitui a trajetória das lutas pela reforma urbana e destaca suas principais
conquistas institucionais; a terceira parte (“Alterações constitucionais”) cataloga as
mudanças específicas que se impuseram à Constituição; a quarta seção (“A Política
Urbana na legislação infraconstitucional”) faz um inventário das normas
hierarquicamente inferiores à Carta Magna (medidas provisórias, leis complementares e
leis ordinárias); no item “Normas Estruturantes da Política Urbana” são destacadas as
regras que compõem o núcleo duro do arcabouço legal; na seção derradeira
(“Considerações Finais”) são esboçadas as hipóteses interpretativas da investigação.

1
Versão integral disponível no Relatório da pesquisa “O marco regulatório da política urbana no Brasil: inventário de
normas e preceitos institucionais desde a Constituição de 1988” (Processo FAPESP nº 2016/11927-6).
222

Os avanços institucionais na Política Urbana ao longo de quase três décadas são


inegáveis, tanto no reconhecimento da função social da propriedade e da cidade quanto
na difusão de mecanismos que facilitem o acesso à terra urbanizada ou ainda na
instituição de mecanismos participativos nos processos decisórios das correspondentes
políticas públicas. Tais progressos, contudo, têm se revelado insuficientes para reverter o
legado do padrão de desenvolvimento urbano caracterizado pela primazia imposta por
agentes do capital financeiro e imobiliário e pela segregação socioespacial.

2 O PERCURSO DA POLÍTICA URBANA

As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por intensas transformações nas esferas
econômica, social e política do Brasil, as quais também culminaram em importantes
mudanças nas políticas de ordenação urbana. Trata-se de um período de transição, no qual
o regime autoritário cedeu espaço para o restabelecimento da democracia como regime
político e o antigo modelo nacional-desenvolvimentista entrou em colapso (SALLUM
JR., 1996).
Historicamente, a política habitacional reprodutora da lógica de mercado beneficiou as
classes média e alta (MARICATO, 1987), e assim os segmentos populares se viram
forçados a recorrer a alternativas através de ocupações de áreas públicas e privadas, não
raro na informalidade e na ilegalidade por meio da autoconstrução. Consequência desse
padrão foi a periferização das cidades, principalmente de capitais e grandes áreas
metropolitanas, com o aumento significativo de assentamentos irregulares e favelas
(ALCÁNTARA; DAMASCENA, 2014).
Nesse cenário, a mobilização popular, o ressurgimento da sociedade civil e a emergência
de movimentos de moradia2 foram contemporâneos da transição democrática, ratificando
a necessidade de mudanças político-institucionais, pois a substituição do regime militar
também exigia alterar as políticas urbana e habitacional. E é sob essa lógica que, no auge
das lutas pelo retorno da democracia, nos anos 1980, esses movimentos se articularam a
outras organizações da sociedade, como sindicatos, setores profissionais liberais,
professores e professores universitários e ONGs para assim ampliarem as lutas não apenas
por moradia, mas, em uma escala maior, pelo direito à cidade (ALCÁNTARA;
2
O movimento dos favelados, que existia desde 1940, em 1980 possuía mais de 8 mil colaboradores pelo país
(ALCÁNTARA; DAMASCENA, 2014); o Movimento de Moradia (MOM), que surgiu na década de 1960, no fim da
década de 1980 ampliou sua influência em escala nacional (ROSTOLDO, 2003); a Confederação Nacional das
Associações de Moradores (CONAM), fundada em 1982, organizou federações estaduais, entidades municipais e
associações comunitárias de bairro e até 2013 atuava em 23 estados (TONELLA, 2013).
223

DAMASCENA, 2014; ROLNIK et al.; 2012). A luta por uma cidade justa e igualitária
era indissociável da luta pela redemocratização política.
Ainda que o movimento das “Diretas já” tenha marcado as lutas sociais pelo fim do
regime militar, a transição democrática transcorreu por meio de eleições indiretas,
excluindo o ingrediente popular ao recusar a manifestação popular soberana. Assim, em
1985, Tancredo Neves foi escolhido presidente e, com sua morte, o vice José Sarney
assumiu a presidência e convocou um processo constituinte que contou com a participação
massiva de diversos movimentos sociais, ensejando um período de ampla contestação e
embates políticos em torno dos direitos do povo. A Constituinte – na verdade, um
Congresso com poderes constituintes tendo em vista a natureza de seu ato convocatório
– foi instalada em fevereiro de 1987 e concluiu seus trabalhos em outubro de 1988.
Novas articulações sociais foram criadas com o objetivo de incentivar a participação da
sociedade no processo constituinte. A demanda por participação popular na Constituinte
foi atendida através de emendas populares, as quais garantiram que grupos de eleitores
pudessem apresentar suas propostas (ROCHA, 2013), desde que “subscritas por 30 mil
cidadãos brasileiros e patrocinadas por três entidades da sociedade civil” (VERSIANI,
2010). Cerca de 12 milhões de assinaturas foram contabilizadas, num total de 122
emendas populares, contendo temas das mais variadas demandas da sociedade
(MICHILES, et al., 1989).
Nesse contexto, as articulações em torno da questão urbana e do direito à cidade
resultaram na proposta de uma emenda específica, a Emenda Popular pela Reforma
Urbana, que, por sua vez, fez brotar o Movimento Nacional pela Reforma Urbana
(ALCÁNTARA; DAMASCENA, 2014). Criado por setores progressistas da Igreja
Católica, lideranças populares, técnicos de assessoria aos movimentos urbanos,
intelectuais e associações de arquitetos, professores e pesquisadores universitários,
engenheiros e advogados, este movimento resgatou o debate sobre a produção e
apropriação do espaço urbano e a ruptura com a dinâmica estabelecida; sua plataforma era
sustentada em três pilares: a prevalência do interesse coletivo sobre o individual (a função
social da cidade e da propriedade urbana); o direito à cidade e à cidadania; e a gestão
democrática da cidade (SILVA; SILOTO DA SILVA, 2005).
Apresentada à Constituinte com 133.068 mil assinaturas (MICHILES et al., 1989), a
Emenda Popular da Reforma Urbana – patrocinada pela Federação Nacional dos
Engenheiros, Federação Nacional dos Arquitetos e Instituto de Arquitetos do Brasil –
continha os enunciados que viriam a forjar o Capítulo de Política Urbana da Constituição:
reconhecimento constitucional de princípios restritivos quanto à propriedade urbana;
224

regularização de assentamentos informais; direito social da moradia; autonomia dos


governos municipais; e aplicação da função social da propriedade e da cidade,
introduzindo a ideia de que o direito à moradia deve preceder o direito à propriedade
(ALCÁNTARA; DAMASCENA, 2014).
A “Constituição Cidadã” representou uma experiência de exercício da cidadania e prática
política participativa sem precedentes na história brasileira, considerada a mais avançada
das Cartas constitucionais. Nesse sentido, ao inserir o Capítulo da Política Urbana em seu
texto, através dos artigos 182 e 183, a Constituição legitimou os princípios da Emenda
Popular da Reforma Urbana, reconhecendo o direito à cidade na tentativa de reverter os
termos excludentes que marcaram a história do planejamento urbano no país (VILLAÇA,
2004).
Ainda que nem todas as propostas da Emenda tenham sido incorporadas ao texto
constitucional, os avanços foram inegáveis e representaram o marco inaugural da nova
Política Urbana. Contudo, tal ordenação jurídica não seria suficiente para contemplar os
anseios sociais pela reforma urbana (VERSIANI, 2010), uma vez que, com exceção do
artigo 183, os demais dispositivos foram quase todos remetidos para regulamentação
infraconstitucional, o que ratifica a centralidade da promulgação do Estatuto da Cidade
13 anos depois (GOULART, 2009).
E assim, em 2001, finalmente é instituída a Lei Federal 10.257, com o propósito de
regulamentar e normatizar os enunciados do capítulo da Política Urbana da Constituição.
O Estatuto da Cidade foi um marco jurídico inovador para a democratização das políticas
urbanas (ALCÁNTARA; DAMASCENA, 2014): delimitou os objetivos e o papel dos
municípios como executores da política de desenvolvimento urbano; instituiu uma gama
de instrumentos legais para que tais diretrizes fossem cumpridas, incidindo efetivamente
na regulação do solo de forma a privilegiar a dimensão social do desenvolvimento urbano
(GOULART, 2009). Tudo à base da participação popular, ingrediente decisivo para o
êxito desse novo arranjo. Enquanto a Constituição confere aos municípios a competência
para legislar sobre o desenvolvimento urbano, a fim de que se promova um justo
ordenamento territorial, o Estatuto da Cidade apresenta instrumentos de planejamento e
gestão democrática, materializando a cidadania preconizada em 1988 como a
possibilidade de se efetivar os enunciados da Reforma Urbana.
O Plano Diretor – inscrito na Constituição como exigência para municípios com mais de
20 mil habitantes, embora não constasse da emenda popular pela reforma urbana –, passa
a ser o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, instrumento
de regulação do uso do solo e efetividade da função social da cidade. Além deste, diversos
225

outros instrumentos constituem um catálogo de meios pelos quais os municípios podem


se munir de ferramentas para promover a justa distribuição da cidade, dos ônus e
benefícios decorrentes do processo de urbanização, recuperar a valorização do solo e
combater a especulação imobiliária.
Vale ressaltar, porém, que apesar desses notáveis avanços, limitações ainda existem e não
são poucas: nem todos os instrumentos são diretamente aplicáveis, requerendo
regulamentação posterior específica, o que significa falta de garantia de que tais
ferramentas sejam realmente aplicadas pelos municípios que os incluírem em seus Planos
Diretores. Nesse caso, o engajamento e a participação da sociedade civil nos espaços
institucionais se revelam mais do que necessários para que o Plano Diretor não tenha caráter
apenas litúrgico. Assim como ocorreu ao longo do processo constituinte e da História,
quando a sociedade civil assumiu seu papel protagonista e foi politicamente ativa, a
cidade tendeu a caminhar em direção a um desenvolvimento urbano mais democrático e
de maior inclinação à cidadania.

3 ALTERAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Como a pesquisa adotou critérios cronológicos e hierárquicos para a catalogação das normas
institucionais da Política Urbana, o ponto de partida foi a Constituição Federal e as alterações
às quais a mesma foi submetida. Desde a sua promulgação até o ano de 2016, a Constituição
passou por 95 alterações, viabilizadas por meio de Emendas Constitucionais.3
Tais Emendas incorporadas ao texto constitucional foram classificadas segundo suas
respectivas áreas de incidência normativa (Figura 1). Foi possível observar maior número de
alterações nas áreas de Trabalho e Previdência Social (12%), Judiciário (11%), Economia
(10%), Saúde e Segurança (9%) e Infraestrutura, Transporte e Comunicação (9%). Já as
mudanças relacionadas – direta ou indiretamente – aos municípios e à Política Urbana
representam 6% do montante, equivalente a 7 Emendas; portanto, a maioria não incide
específica e diretamente sobre o Capítulo da Política Urbana da Constituição.
De modo geral, prevalece uma inclinação a arranjos de natureza econômica. Ainda que apenas
sete incidam sobre a questão urbana de algum modo, quatro delas (Emendas Constitucionais
17, 55, 84 e 95) fazem menção a mudanças por meio de estratégias de caráter fiscal e
tributário, isto é, promovem ajustes econômicos. Essas duas esferas – urbana e econômica –
3Mudanças constitucionais exigem maioria qualificada para serem aprovadas (3/5 dos votos, ou seja, 308 votos na Câmara
dos Deputados e 49 no Senado Federal), mediante duas votações em cada uma das duas casas legislativas. Para uma análise
do processo de emendamento constitucional no Brasil, ver Couto e Arantes (2006).
226

convergem à medida que a reorganização da estrutura do Estado é processada através do


reordenamento de recursos de poder (capacidade decisória, distribuição do orçamento etc.).
Ademais, há imposição de normas mais rigorosas de equilíbrio fiscal, cuja restrição foi
acentuada por meio da Lei Complementar nº 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF), que tem amparo legal no capítulo II do Título VI da Constituição (Art. 163), a qual
tornou ainda mais rígido o estabelecimento de limites de gastos do poder público em nome
do equilíbrio fiscal.

Figura 1. Classificação Geral das Emendas Constitucionais (Elaboração própria)

Mesmo não se tratando de uma modificação constitucional, a LRF estabelece parâmetros


relativos ao gasto público a serem seguidos não só pela União, mas também por estados
e municípios (TESOURO NACIONAL). Para tentar controlar os gastos, a LRF os
condiciona à capacidade de arrecadação de tributos dos entes federativos. Seu objetivo é,
portanto, garantir a saúde financeira dos mesmos através de imposições fiscais, agindo de
forma decisiva e complementar às emendas constitucionais supracitadas.
Outra mudança digna de destaque é a Emenda Constitucional 26, também do ano 2000,
que incluiu o direito à moradia como um direito social fundamental, podendo ser
entendida como um marco legal paradigmático no contexto de luta dos movimentos
227

sociais pela reforma urbana. Trata-se, pois, de importante conquista dos movimentos
sociais: constitucionalizar esse direito representa uma preciosa garantia institucional,
mesmo que as políticas públicas de habitação social tenham se revelado insuficientes e/ou
erráticas.
Direitos sociais são conquistas cujo objetivo é garantir condições materiais elementares
para o pleno exercício da cidadania, como o direito à saúde, à educação e ao trabalho,
enunciados nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal. A partir de fevereiro de 2000,
essas condições fundamentais para o exercício de uma vida digna se estendem ao direito
à moradia, uma vez que a forma de morar é definidora da qualidade de vida de uma
pessoa, podendo muitas vezes excluí-la ou incorporá-la à condição de cidadã (RANGEL;
SILVA, 2009).
Fica evidente o quanto a participação da sociedade civil teve relevância nesse percurso,
ao longo da trajetória de conquistas desde a década de 1980. Ainda que, ao contrário da
inserção do capítulo de Política Urbana durante o processo constituinte, o processo
legislativo desta Emenda tenha origem congressual (e não popular), os movimentos
sociais ainda exerciam significativa capacidade de pressão política (ALCÁNTARA;
DAMASCENA, 2014). Ademais, muitos desses movimentos encontraram importantes
espaços institucionais para ecoar suas lutas, dentre os quais merecem destaque o Conselho
Nacional das Cidades e as Conferências Nacionais das Cidades.
Quanto aos impactos negativos das alterações constitucionais, a Emenda nº 95/2016 é um
notável exemplo ao congelar os orçamentos públicos por vinte anos, limitando os
investimentos em políticas sociais, cujas demandas se ampliam na mesma proporção em
que se aprofunda a crise econômica na qual o país está mergulhado. Por isso, foi nomeada
como a “PEC do fim do mundo”.
Em suma, embora as mudanças constitucionais não promovessem retrocessos diretos
quanto aos enunciados formais da Política Urbana, a predominância da agenda econômica
e a obstinação pelo ajuste fiscal desse período tenderam a limitar a implantação de
políticas públicas orientadas pelos ideais da reforma urbana.

4 A POLÍTICA URBANA NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

O levantamento infraconstitucional compreendeu três modalidades legais: Medidas


Provisórias, Leis Complementares e Leis Ordinárias. A classificação das mesmas, assim
como das Emendas Constitucionais, foi definida empiricamente, levando-se em conta sua
cronologia e as respectivas áreas de incidência normativa. O método de busca se orientou
228

a partir de algumas palavras-chave, tais como “município”, “urbano”, “interesse social”


e “habitação”; aplicadas na plataforma de consulta ao sítio do Palácio do Planalto
(Presidência da República) e nos portais do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.

4.1 Medidas Provisórias


Com força de lei e produzindo efeitos imediatos, a Medida Provisória (MP) é um
instrumento típico de sistemas de governo parlamentaristas nos quais o chefe de governo
é investido de autoridade legal para liderar ações governamentais e adotar medidas
legislativas.4 Na prática, a Medida Provisória confere ao governo o poder de alterar o
status quo de forma unilateral, criando enormes constrangimentos para o Poder
Legislativo eventualmente rejeitá-la. Em tais condições, o Poder Executivo não só se
fortalece como assume melhores condições para efetivamente dominar a agenda
legislativa: “o que o Executivo submete ao Legislativo é, em geral, aprovado. E, por
definição, as matérias só podem ser aprovadas se contam com o apoio da maioria. Para
evitar mal entendidos, cabe notar que a afirmação se estende às Medidas Provisórias.
Estas necessitam ser aprovadas pelo Congresso para que se tornem leis” (LIMONGI,
2006, p. 24). No período estudado (1988-2016), foram aproximadamente cinco mil
Medidas Provisórias submetidas ao Congresso Nacional para aprovação, dentre as quais
cerca de 1.400 convertidas em lei; sendo que 27 delas incidem sobre a Política Urbana
(Figura 2).
Dessas 27 MPs selecionadas, em parâmetros numéricos, se destacam as que tratam de
assuntos relacionados à política habitacional, as quais representam um total de 72% (21
normas). Desse montante, entretanto, há uma evidente diferença no viés de incidência
normativa, relacionada diretamente ao período político ao qual pertencem.5 Os anos 1990
4 A legislação brasileira importou este instrumento do modelo constitucional italiano, o qual foi proposto em um
momento em que o sistema de governo ainda não havia sido definido pelos constituintes, constatando-se, à época, forte
inclinação parlamentarista. No entanto, o sistema de governo adotado pela Constituição de 1988, e depois ratificado no
plesbicito de 1993, foi o presidencialismo. Não obstante, a Medida Provisória permaneceu na Carta constitucional,
substituindo outro instrumento do período do regime autoritário, o decreto-lei. Importante registrar que muitas das mais
importantes mudanças institucionais do país já no período democrático foram implantadas por meio de Medidas
Provisórias, tais como os planos econômicos que envolveram mudança de moeda (Plano Cruzado em 1986 e Plano
Real 1994), além da criação do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) em 2009. Sobre o debate quanto ao
sistema de governo, ver Rogério (2007); sobre a genealogia da Constituinte, ver Rocha (2013).
5 É importante esclarecer que ao longo da classificação dessas normas – sejam elas Medidas Provisórias, Leis
Complementares ou Ordinárias –, foi convencionado que algumas delas podem incidir em mais de uma área da política
urbana. Por isso, os percentuais e os números apresentados podem não corresponder a valores totais exatos. A MP
2.220/2001, por exemplo, foi classificada tanto como “Política Habitacional” quanto também como “Desenvolvimento
e Infraestrutura Urbana”, sendo assim, contabilizada em ambas as áreas de incidência normativa.
229

e início dos anos 2000 foram marcados pelos governos Collor (1990-1992), Itamar Franco
(1992-1994) e FHC (1995-2002), caracterizados por um período de grande instabilidade
política e econômica, com largas consequências negativas nas finanças públicas. Assim,
a estabilização monetária era o maior objetivo da política econômica e, devido ao seu
contexto de urgência, foi sendo traduzida em Medidas Provisórias de ajuste fiscal
(LOUREIRO, 2011), inclusive nas matérias de política habitacional.

Figura 2. Elaboração própria.

Com a ascensão do governo Lula, entre 2003 e 2010, passou a ser adotado um modelo de
inspiração desenvolvimentista que buscou impulsionar a economia através da
redistribuição de renda, difusão do consumo e indução do crescimento, defendendo o
aumento dos gastos públicos em políticas de habitação, saneamento e infraestrutura
(LOUREIRO, 2011). Nesse sentido, a política econômica (predominantemente definida
através de MPs) admitiu mais atenção à política habitacional, porém, com outro sentido,
qual seja, investimento em programas habitacionais e de desenvolvimento e infraestrutura
urbana. A criação do Ministério das Cidades sintetiza essa nova orientação; assim como
são os casos do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), ambos originários de Medidas Provisórias (MP
350/2007 e MP 387/2007, respectivamente). Essas MPs revelam a mencionada estratégia
que o Executivo adota para governar, mesmo quando o assunto não tem um caráter de
urgência claramente definido, mas também quando há um grande interesse social e
político.
Programas sociais da magnitude do PMCMV e do PAC certamente passariam por
diversos entraves até sua conversão em lei caso tivessem sua origem em projetos
230

legislativos ordinários, tanto pelos elevados investimentos necessários, quanto pelo seu
foco ser o atendimento à população pobre. A tramitação de uma matéria ordinária é lenta
no Congresso Nacional porque devem ser respeitados diversos ritos procedimentais. A
mudança de orientação entre governos pode ser confirmada pela constatação de que tanto
o PAC quanto o PMCMV sofreram elevados cortes entre o fim de 2016 e ao longo de
2017, já durante o governo do presidente Michel Temer.6
Tais políticas tiveram largo impacto socioeconômico e grande potencial transformador.
O PMCMV pode ser entendido como uma política pública que se inscreve na orientação
mais geral de redução da desigualdade social e do déficit habitacional através da ocupação
diferencial da terra, sendo responsável por melhorar indicadores socioeconômicos e
possibilitar que milhares de famílias pudessem ter uma moradia minimamente digna.7
O PAC, por sua vez, foi criado com o propósito de promover investimentos nas áreas de
energia, saneamento, transporte, recursos hídricos e habitação, e no início da sua vigência
já contava com dotação de R$ 600 bilhões. Tendo como objetivo investir em
infraestrutura, saneamento e habitação (estes últimos sendo mais beneficiados) para
possibilitar a dinamização da economia, o programa prometia também estimular os
setores produtivos e ainda trazer ganhos sociais para as regiões do país (TONELLA,
2013). Apesar do discurso desenvolvimentista, o Programa não atingiu todas as metas
previstas para cada uma de suas áreas (RODRIGUES, 2011).
Análises críticas dos governos Lula sustentam que essas gestões oscilaram entre políticas
sociais focalizadas e a adoção de medidas de ajuste fiscal (DRUCK e FILGEUIRAS,
2007), o que, de maneira geral, seria característico de todos os governos pós-
democratização. Ademais, políticas econômicas envolvem interesse fundamental do
Executivo, formuladas, em sua maioria, no bojo da burocracia do próprio Executivo,
protegidas pelo respaldo da presidência contra as pressões vindas do próprio Congresso
ou de demais atores sociais organizados. Tal crítica, contudo, não captura o essencial,
uma vez que sua orientação político-programática consistia em aliar estabilidade
econômica à democratização do acesso a bens e serviços públicos e na inclusão social.
6
A propósito, ver: Alexandro Martello, "Corte de gastos reduz orçamento do PAC ao menor valor em 8 anos", G1,
2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/corte-de-gastos-reduz-orcamento-do-pac-ao-menor-
valor-em-8-anos.ghtml>; e também: Ermínia Maricato, “Cortes do Minha Casa Minha Vida vão estimular precarização
da moradia”, Carta Capital, 2016; disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/revista/903/cortes-no-minha-casa-
minha-vida-vao-estimular-precarizacao-da-moradia>. Acessos em 8 out. 2017.
7
Os méritos do PMCMV, contudo, não devem obscurecer seus muitos problemas de natureza habitacional e
urbanística, e principalmente o fato de que foi um programa anticíclico criado para mitigar os efeitos da crise econômica
mundial que eclodiu em 2008-2009. Para uma leitura crítica, ver: Ferreira (2015) e Rolnik et al. (2015).
231

Fato é que esse conteúdo programático foi viabilizado através do aumento da renda real
das camadas inferiores da pirâmide social, assim como pela ampliação da cobertura aos
brasileiros situados abaixo da linha da pobreza (SALLUM JR.; GOULART, 2016).

4.2 Leis Complementares


Estas são normas hierarquicamente superiores às leis ordinárias e demais regulamentos
jurídicos, exercendo função de complementação à Constituição Federal inclusive para
regulamentá-la (CHEHAB, 2012). Podem ser propostas pelo Executivo (Presidência da
República), senadores, deputados, comissões do Congresso Nacional (Senado e Câmara
dos Deputados), ou ainda por cidadãos comuns por meio de iniciativa popular legislativa.
De outubro de 1988 até dezembro de 2016, das 99 leis complementares publicadas, 5
delas foram consideradas relevantes ao tema da pesquisa (Tabela 1).

Tabela 1 – Leis Complementares Referentes aos Municípios e à Questão Urbana [1988-2016]

NATUREZA
DATA INSTITUCI ORIGEM SÚMULA/EMENTA INCIDÊNCIA NORMATIVA
ONAL
6/7/1993 Lei PLP Dispõe sobre o Agiliza a reforma agrária e
Complementa 71/1989. procedimento contraditório regulamenta o Capítulo III da
r nº76 Autor: Dep. especial, de rito sumário, Constituição, estabelecendo
Federal para o processo de processo judicial de
Amaury desapropriação de imóvel desapropriação e especificando o
Muller rural, por interesse social, procedimento contraditório
(PDT/RS) para fins de reforma especial.
agrária.
232

23/12/1996 Lei PLP Altera a redação dos arts. As alterações dos artigos 5º, 6º,
Complementa 60/1995. 5º, 6º, 10 e 17 da Lei 10º e 17º da Lei Complementar
r nº88 Autor: Dep. Complementar nº 76/1993, nº76 tem o objetivo de agilizar o
Federal Jose que dispõe sobre o processo judicial de
Fritsch procedimento desapropriação, para fins de
(PT/SC) contraditório, de rito reforma agrária.
sumário, para
desapropriação de imóvel
rural, por interesse social,
para fins de reforma
agrária.
4/2/1998 Lei PLP Institui o Fundo de Terras e É criado o Fundo de Terras e da
Complementa 216/1998. da Reforma Agrária - Reforma Agrária - Banco da
r nº93 Autor: Banco da Terra - e dá outras Terra - com a finalidade de
Senador providências. financiar programas de
Esperidião reordenação fundiária e de
Amim assentamento rural.
(PPB/SC)
6/7/2001 Lei PLP Dispõe sobre o Fundo de Objetiva a universalização do
Complementa 177/2001. Combate e Erradicação da acesso a níveis dignos de
r nº111 - Lei Autor: Dep. Pobreza, na forma prevista subsistência, com recursos
do Fundo de Federal nos artigos 79, 80 e 81 do aplicados em ações
Combate e Jorge Bittar Ato das Disposições suplementares de nutrição,
Erradicação (PT/RJ) Transitórias. habitação, saúde, educação etc.;
da Pobreza direcionados a populações
urbanas ou rurais em condições
de vida desfavoráveis.
15/5/2014 Lei PLP Altera dispositivos da Lei Autoriza financiamento, por
Complementa 362/2006. Complementar nº 93, de 4 meio do Banco da Terra, ao
r nº145 Autor: Poder de fevereiro de 1998, que beneficiário de imóvel rural
Executivo institui o Fundo de Terras e objeto de partilha decorrente de
da Reforma Agrária - herança, permitindo
Banco da Terra. continuidade da propriedade para
membros da família.
Fonte: Elaboração própria.

Mesmo que a temática urbana não seja abordada de forma direta em alguns casos, tais
leis são relevantes porque sua aplicação incide na garantia de direitos sociais
fundamentais, em cujo rol a moradia e a vida digna se destacam nos enunciados
constitucionais. São normas que tratam de temas chaves como reforma agrária e
233

erradicação da pobreza, as quais indicam objetivos fortemente associados ao ideário da


reforma urbana, especialmente no que diz respeito à democratização do acesso à terra.
Nesse sentido, vale destacar especialmente a Lei Complementar nº 111/2001: esta norma
cria um fundo específico de responsabilidade dos estados destinado ao financiamento de
projetos e ações de habitação e saúde para famílias abaixo da linha da pobreza; garante e
materializa direitos sociais; e também incide de forma mais direcionada na Política
Urbana ao fomentar ações de interesse social voltadas para ampliar as possibilidades de
acesso à habitação social.

4.3 Legislação Ordinária


Leis ordinárias constituem os códigos jurídicos rotineiros que complementam as normas
constitucionais não regulamentadas pelas Leis Complementares ou pelos decretos
legislativos e resoluções. Assim como as Leis Complementares, um projeto de Lei
Ordinária pode ser proposto pela presidência da República, deputados, senadores,
Supremo Tribunal Federal, tribunais superiores e pela população por meio de iniciativa
popular legislativa (SENADO FEDERAL, 2017).
Enquanto pouco foi produzido em relação à Política Urbana no âmbito das leis
complementares, no caso das leis ordinárias houve uma produção quantitativa bem mais
expressiva, principalmente na área da habitação. Entretanto, das aproximadamente 5 mil
leis produzidas ao longo do período analisado, apenas 40 delas tratam mais diretamente
do tema pesquisado, as quais permanecem em vigência, representando menos de 1% das
leis ordinárias aprovadas.
Dessas 40 Leis Ordinárias catalogadas, há predominância das que abordam a questão
habitacional (25), fato que pode ser parcialmente justificado pela relação existente entre
estas e as MPs: por haver um número maior de MPs tratando sobre políticas habitacionais,
consequentemente haverá um número grande também de Leis Ordinárias tratando sobre
o mesmo tema, uma vez que todas as MPs levantadas foram convertidas em lei. Esses
números reiteram a observação já feita a respeito da “solução” encontrada pelo Executivo
para poder legislar através das Medidas Provisórias, sendo uma característica comum em
todos os períodos de governo, aparecendo recorrentemente ao longo desses 28 anos
analisados. Em suma, o Executivo legisla nas matérias mais importantes e faz largo uso
de MPs.
234

Voltando à questão habitacional, a partir dos governos Lula é dada maior atenção às
políticas sociais8. Exemplo: o Programa Especial de Habitação Popular (Lei 10.840/2004)
– cuja fonte de recursos era o Fundo de Desenvolvimento Social (Lei 8.677/1993) –
promove, por meio de mutirões, associações locais e cooperativas, o acesso à moradia
digna e adequada à população pobre através do financiamento, produção de unidades
habitacionais em lotes urbanizados e da requalificação urbana. Apesar do seu potencial
transformador, ao associar os direitos à moradia e à cidade, não teve tanto alcance quanto
o PMCMV (Lei 11.977/2009); na prática, este programa não logrou êxito no objetivo de
articular essas duas dimensões (direito à habitação e direito à cidade) de forma
satisfatória, pois reproduziu a lógica da segregação socioespacial que caracterizou o
processo de urbanização do país (FERREIRA, 2015; KOPPER, 2016).
No ano seguinte (2005) foram criados o Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social (SNHIS e FNHIS – Lei Federal 11.124/2005); uma vitória na luta por
moradia tanto pelo seu Projeto de Lei ter origem de iniciativa popular – uma exceção à
regra na produção legislativa, visto que dominada pelo Executivo –, como pelo fato dessa
lei ter possibilitado “condições legais e institucionais para a consolidação do setor
habitacional como política de Estado” (TONELLA, 2013).
Marco também importante é a Lei 11.888/2008 (Lei da Assistência Técnica), que
regulamentou os enunciados da Constituição9 e do Estatuto da Cidade quanto à moradia
digna e ao direito à assistência técnica e jurídica gratuita para a população com renda
inferior a 3 salários mínimos.
Outras Leis relativas às demais áreas de incidência também merecem destaque,
notadamente o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001): trata-se do marco regulatório mais
importante da Política Urbana por regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição,
introduzindo diretrizes e instrumentos regulatórios a fim de que essa política passasse a
ser pautada por parâmetros mais democráticos, universalistas e distributivos (TONELLA,
2013).
Em 2003 foi criado o Ministério das Cidades, que passou a tratar de forma integrada das
políticas urbanas, postura bastante inovadora para a época. A ideia de uma agência
centralizada voltada à questão urbana – inspirada no modelo institucional francês de
8A partir desse momento (2003), também há maior incidência de normas e políticas dedicadas às questões habitacional
e urbanística.
9A Emenda Constitucional nº 26 alterou a redação do art. 6º da Constituição, incluindo o direito à moradia digna como
um direito social fundamental.
235

nomenclatura homônima – havia sido proposta originalmente no “Projeto Moradia”,


anteprojeto de política urbana elaborado no Instituto Cidadania por profissionais,
acadêmicos e representantes de movimentos sociais ligados ao Partido dos
Trabalhadores.10
Quanto à questão ambiental, tem-se em 2007 a promulgação da Lei do Saneamento
Básico (Lei 11.445/2007), que estabelece diretrizes para o saneamento básico e reconhece
o direito ao acesso a esse serviço para toda a população brasileira. Tal iniciativa foi
coerente, pois a ideia de “moradia digna” e a função social da cidade já estavam previstas
na Constituição e no Estatuto da Cidade, e não dizem respeito apenas a unidades
habitacionais isoladas. O direito à cidade democrática também engloba o acesso ao
mínimo de qualidade de vida.
A Lei de Mobilidade Urbana (Lei 122.587/2012) trouxe consigo os objetivos de melhorar
a acessibilidade e a mobilidade de pessoas e cargas nas cidades através de instrumentos
que regulam a circulação em horários determinados, tarifas, espaços exclusivos para
transporte público e meios de transporte não motorizados. Esta norma é importante
porque influi diretamente sobre a regulação urbanística, buscando alterar a dinâmica do
cenário urbano, sendo a mobilidade uma das suas dimensões de exclusão, uma vez que
se locomover nas cidades sem um automóvel tem se tornado um ato de resistência.
Finalmente, em 2015, foi aprovado o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015) instituído
a fim de promover o planejamento, gestão e execução de funções públicas que sejam do
interesse comum entre as cidades integrantes de regiões metropolitanas, através de
diretrizes gerais estabelecidas e compartilhadas entre os municípios de suas respectivas
regiões metropolitanas.

5 NORMAS ESTRUTURANTES DA POLÍTICA URBANA

A pesquisa reconstituiu sinteticamente o percurso da Política Urbana de 1988 até 2016,


mediante exaustivo trabalho de levantamento, catalogação e análise de normas. Dentre
estas, algumas se destacam, caracterizando-se como estruturantes da Política Urbana e
intimamente relacionadas aos acontecimentos políticos e sociais de seus respectivos
períodos, assim como às escolhas políticas dos governos de turno.

10Este projeto, concluído em 2000, contou com a coordenação de Clara Ant, André de Souza, Ermínia Maricato,
Evaniza Rodrigues, Iara Bernardi, Lúcio Kowarick, Nabil Bonduki e Pedro Paulo Martoni Branco.
236

A década de 1980, marcada pela crise econômica e acompanhada pelo colapso do modelo
desenvolvimentista e do regime militar, também foi marcado por intensas lutas sociais
pela redemocratização, momento de retomada dos movimentos societários em favor da
reforma urbana. Foi nesse contexto que o processo constituinte (1986-1988) se deu,
caracterizado pela forte presença desses movimentos. O resultado dessa participação foi
reconhecido na Constituição, contendo, pela primeira vez na história, princípios
universalistas em relação a direitos sociais e civis. É firmado, então, um novo pacto social
entre Estado e sociedade, marcado pela democracia como sistema político e por diretrizes
distributivas, e também de forma inédita um capítulo dedicado à Política Urbana (artigos
182 e 183). Esse capítulo introduziu de maneira inovadora o conceito de função social da
propriedade e da cidade, assim como uma nova visão a respeito dos problemas urbanos e
algumas diretrizes para solucioná-los. Estabeleceu também a descentralização do poder,
atribuindo encargos para os três níveis de governo, com enfoque aos municípios, aos quais
cabe a execução das políticas públicas de planejamento urbano e territorial;
acompanhados dos Planos Diretores, que viriam a se tornar o principal (e obrigatório)
instrumento de regulação do solo urbano.
Os anos 2000, por sua vez, foram marcados pela Emenda Constitucional nº 26, que
reconheceu o direito à moradia como um direito social fundamental. Se já no texto
constitucional o tema da moradia ganhou destaque pelo reconhecimento da função social
da propriedade e do direito universal à moradia, após esta emenda o direito à moradia
eleva seu status na vida e dignidade humana ao mesmo patamar que a saúde e o trabalho.
A partir de então o conceito de moradia se expande para aspectos mais amplos além da
habitação: habitação como direito social fundamental associada à salubridade, transporte,
infraestrutura urbana, enfim, tudo que garante à pessoa humana o mínimo de dignidade.
Em 2001 foi instituído o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257), que regulamenta o
capítulo de Política Urbana da Constituição e traz instrumentos regulatórios inovadores
com o propósito de promover ordenação territorial mais justa, reforçando o cumprimento
da função social da propriedade, preceitos a serem aplicados através do Plano Diretor,
elaborado pelo poder local. Tais inovações são complementadas pela exigência da
participação popular, através da criação de conselhos, participação em conferências e
audiências públicas, emendas de iniciativa popular, democratização dos orçamentos
públicos, enfim, mecanismos destinados à gestão democrática.
A partir de 2003 há uma intensa produção normativa sobre a questão urbana. E isso ocorre
não por acaso: a mudança governamental se refletiu nas políticas públicas, e a agenda
fiscal e econômica deu lugar a uma nova orientação para a Política Urbana, a fim de
ocupar o vazio institucional do período anterior, com maior atenção para as políticas
237

públicas de habitação e desenvolvimento urbano. É criado, então, o Ministério das


Cidades (Lei Federal nº 10.683/2003), com o objetivo de articular uma nova política
nacional em torno dos problemas sociais relacionados à moradia, transporte e
saneamento; dando espaço, reconhecimento e visibilidade aos conflitos através da
abertura de espaços democráticos e participativos. No mesmo ano, foi convocada a
primeira Conferência Nacional das Cidades e a segunda, em 2005, para discussão e
formulação da nova Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, e tais conferências
nacionais precedidas por conferências municipais e estaduais.11 Da primeira Conferência
surgiu o Conselho Nacional das Cidades, importante espaço político de concertação entre
Estado e sociedade para formulação de políticas, estratégias, programas e ações.
No financiamento habitacional, o Ministério das Cidades propôs o Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social (SNHIS), juntamente com seu fundo e conselho gestor, a
fim de atender à população pobre e superar o modelo do regime militar, ciclo durante o
qual as classes média e alta se beneficiaram das políticas do BNH (MARICATO, 1987;
TONELLA, 2013). Na prática, porém, essa proposta não prosperou e foi superada pelo
PMCMV.
A Política Nacional de Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007) estabeleceu amplo rol
de diretrizes, objetivos e metas para a definição de programas, ações e estratégias de
investimento nesse setor, além de universalização do acesso e de prever a participação
popular em caráter consultivo.
Em 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei Federal nº 10.305/2010) emergiu
como alternativa para instituir diretrizes para a gestão de resíduos sólidos, visando à
redução e ao tratamento do volume produzido, como resposta à degradação ambiental e
à cultura do acúmulo e produção de lixo da nossa sociedade de consumo (IUME, 2015).
Em 2012, a Lei de Mobilidade Urbana (Lei Federal nº 12.587/2012) estabeleceu as
diretrizes de regulamentação e planejamento, visando a incentivar o deslocamento por
meios de transporte não motorizados e coletivos, além de desestimular o uso do transporte
individual particular.
Todas essas ações, aliadas ao direito à moradia, tentaram garantir o preceito da qualidade
de vida digna, para tornar as cidades mais justas, sustentáveis e democráticas. A agência
articuladora dessas políticas foi o Ministério das Cidades, criado precisamente com o
propósito de tratar de todas essas questões urbanas de forma integrada.

11 De 2003 a 2013 – em dez anos, portanto – foram realizadas 5 Conferências Nacionais das Cidades.
238

No segundo mandato de Lula, houve a criação do Programa de Aceleração do


Crescimento (PAC, Lei nº 11.578/2007) e do Programa Minha Casa Minha Vida
(PMCMV, Lei nº 11.977/2009). O PAC pretendeu centralizar o planejamento dos
projetos de infraestrutura, investindo em ações de desenvolvimento, aumento da
produtividade e promoção de Parcerias Público-Privadas (PPPs) para amenizar
desequilíbrios regionais e sociais; pretendia-se, ademais, impulsionar o crescimento
econômico nacional por meio de investimentos nas áreas de infraestrutura logística,
incentivos tributários e financeiros ao setor privado (JARDIM, 2015). Foram mais de R$
170 bilhões em infraestrutura social e urbana, divididos em projetos sociais, de
saneamento básico, habitação (mais especificamente o PMCMV, com cerca de R$ 100
bilhões), metrô e recursos hídricos (JARDIM, 2015).
O Programa Minha Casa Minha Vida recebeu cerca de 60% do investimento total do
PAC, revelando, não por acaso, a importância que a habitação recebeu nesse momento.
O PAC foi importante também para a geração de empregos nos municípios beneficiados
com suas obras, utilizando-se da mão de obra local, principalmente de membros de
famílias abaixo da linha da pobreza; também uma medida anticíclica para enfrentar a crise
econômica internacional, através da geração de empregos e renda, e ainda de habitações.
Até 2011, foram quase 238 mil casas entregues, das quais 92 mil delas foram para famílias
com renda até 3 salários mínimos; 139 mil unidades para famílias de 3 a 6 salários
mínimos; e outras 7 mil para aquelas entre 7 e 10 salários mínimos (JARDIM, 2015).
Durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014), o “PAC 2”, além dos eixos
de transporte, energia e infraestrutura, teve ênfase nos investimentos de programas
sociais, além da continuidade do PMCMV, que, nessa roupagem passou a receber 30%
dos recursos, traduzidos em mais de R$ 3 bilhões e mais de 667 mil famílias beneficiadas;
além de R$ 12,7 bilhões destinados à urbanização de assentamentos precários,
beneficiando mais de 500 mil famílias pelo país (BRASIL, 2014).
São números expressivos, pois não há precedente na história da habitação social no Brasil
de atendimento à população de renda mais baixa nessa escala; apesar disso, a lógica da
segregação socioespacial do PMCMV não se distinguiu daquela reproduzida pelos
programas implantados em períodos anteriores, pois as forças e interesses de mercado
continuaram sendo determinantes (LOUREIRO, 2011). O mérito foi dispor de vultosos
recursos subsidiados para habitação social, mas o PMCMV reproduziu a lógica da
segregação socioespacial ao estimular o assentamento das populações mais pobres nas
periferias. Ademais é um programa muito discutível do ponto de vista da qualidade
arquitetônica e ambiental, além de assegurar amplas garantias aos empreendedores
239

imobiliários, que, assim, têm autonomia para seleção de áreas para implantação de
projetos e não correm riscos (ROLNIK et al., 2015).
A Lei da Assistência Técnica (Lei nº 11.888/2008) foi importante no sentido de
reconhecer que o conceito de moradia digna vai além de “quatro paredes e um teto”;
ademais, regulamenta os enunciados da Constituição e do Estatuto da Cidade sobre o
direito das camadas pobres receberem atendimento profissional em projetos de
construção e reforma. O acesso à assistência técnica implica em pertencimento à cidade
legal e o reconhecimento da autoconstrução como alternativa de provisão habitacional,
mediante execução de projetos e serviços prestados por profissionais custeados com
recursos públicos (CAMACHO, 2016). Esta Lei estabelece também aspectos
participativos, permitindo que seus moradores sejam agentes ativos no projeto (que deve
observar especificidades de cada comunidade) e na execução, como nos casos dos
mutirões.
No segundo mandato de Dilma Rousseff, foi promulgado o Estatuto da Metrópole (Lei nº
13.089/2015), norma importante na ampliação das práticas do planejamento – casos de
grandes centros e aglomerações urbanas metropolitanas –, pois a dinâmica de
planejamento em escala regional estava institucionalmente defasada em relação à escala
local (FELDMAN, 2009).
A Figura 4 sintetiza o quadro das Normas Estruturantes da Política Urbana, indicando sua
cronologia, como e onde se inscrevem no arcabouço legislativo, origem político-
institucional da proposta e breve sinopse de seus enunciados. Parte dessas normas tem
origem no Legislativo, notadamente quanto a políticas públicas específicas (saneamento,
mobilidade urbana, resíduos sólidos), porém, aquelas de maior incidência (criação do
Ministério das Cidades, PAC, PMCMV) vêm do Executivo.12 Tal constatação indica que
o arranjo institucional herdado da Constituição confere amplos poderes ao Executivo e,
consequentemente, que a efetividade de políticas públicas depende de suas escolhas e
decisões (ARRETCHE, 2015).
Tabela 2 – Quadro Síntese das Normas Estruturantes da Política Urbana

FORMATO
ANO IDENTIFICAÇÃO ORIGEM SINOPSE
ORIGINAL

12
Ainda assim, é imperativo notar que, mesmo nos casos de normas emanadas do Congresso Nacional e lá sancionadas,
muitas delas foram originalmente propostas pelo Poder Executivo, situações que incluem as Políticas Nacionais de
Mobilidade Urbana, de Resíduos Sólidos e de Saneamento, todas gestadas no âmbito do Ministério das Cidades.
240

Legislativo Sintetiza os princípios da Politica


[Emenda de Urbana: função social da propriedade
1988 Constituição Art. 182 e 183
iniciativa
popular]
Proposta de Inclui o direito à moradia como um
Emenda
2000 Emenda à Legislativo direito social fundamental.
Constitucional nº 26
Constituição
MP 2200 Dispõe de instrumentos de concessão
Medida
2001 [atual Lei Federal nº Executivo de uso especial para assentamentos
Provisória
13.465/2017] urbanos e rurais
Estatuto da Cidade: regulamenta a CF
Projeto de Lei Federal nº
2001 Legislativo e institui mecanismos e instrumentos
Lei 10.257
para a reforma urbana
Reestrutura a organização da
Presidência da República, criando o
Medida Lei Federal nº Ministério das Cidades: tratar da
2003 Executivo
Provisória 10.683 questão da moradia, desenvolvimento
urbano, infraestrutura, saneamento e
transporte, de forma integrada.
Criação do Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social
(SNHIS): institui políticas e
Projeto de Lei Federal nº
2005 Executivo programas de investimento e subsídios
Lei 11.124
para viabilizar o acesso à terra
urbanizada e à habitação digna para a
população de baixa renda.
Lei do Saneamento Básico: estabelece
Projeto de Lei Federal nº diretrizes para o saneamento básico e
2007 Legislativo
Lei 11.445 reconhece o direito ao acesso a toda a
população brasileira a esse serviço.
Regulamenta o Decreto nº 6.025/2007,
que cria o Programa de Aceleração do
Medida Lei Federal nº Crescimento, com o objetivo de
2007 Executivo
Provisória 11.578 estimular o crescimento da economia
nacional através do investimento em
infraestrutura.
Lei da Assistência Técnica: estabelece
Projeto de Lei Federal nº assistência técnica e jurídica gratuitas
2008 Legislativo
Lei 11.888 para as famílias com renda abaixo de
3 salários mínimos.
Programa Minha Casa Minha Vida:
Medida Lei Federal nº tem a finalidade de criar mecanismos
2009 Executivo
Provisória 11.977 de incentivo à produção e aquisição de
novas unidades habitacionais por
241

famílias com renda de até 10 salários


mínimos.
Política Nacional de Resíduos
Sólidos: define uma nova forma de
tratamento e gerenciamento dos
Projeto de Lei Federal nº
2010 Legislativo resíduos sólidos gerados pelo país,
Lei 12.305
incentivando a reciclagem e
reaproveitamento, etc.; promovendo
uma cidade mais salubre.
Lei de Mobilidade Urbana: objetiva
melhorar a acessibilidade e a
mobilidade de pessoas e cargas nas
Projeto de Lei Federal nº
2012 Legislativo cidades através de instrumentos
Lei 12.587
regulatórios quanto à circulação,
tarifas e espaços exclusivos para
transporte público.
Estatuto da Metrópole: institui
Projeto de Lei Federal nº diretrizes, normas e instrumentos de
2015 Legislativo
Lei 13.089 desenvolvimento integrado para
municípios de regiões metropolitanas.
Fonte: elaboração própria.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No último período difundiu-se largamente a percepção de que a legislação urbanística


brasileira evoluiu tão positivamente que, inclusive, despertou a curiosidade e a atenção
de pesquisadores internacionais sobre muitos de seus registros, avanços e políticas.
Trocando em miúdos, é como se dissesse que não é por falta de leis que nosso
desenvolvimento urbano não avança. Os resultados da investigação aqui apresentados
parecem confirmar esse consenso, mas é preciso um pouco de cautela antes de firmar
convicções.
Com efeito, os avanços institucionais ao longo desses 28 anos são inegáveis. O
reconhecimento de que o direito de propriedade se subordina à sua função social não é de
pequena monta, ainda mais se este princípio é consagrado constitucionalmente. Assim
como é notável que uma legislação nacional de ordenação urbanística – no caso, o
Estatuto da Cidade – fixe instrumentos objetivos para coibir a especulação imobiliária,
promover o acesso à terra urbanizada e assegurar participação societária nos
correspondentes processos decisórios de formulação e implantação de políticas públicas.
Da mesma perspectiva, inscrever o direito à moradia como um direito fundamental na
242

Constituição e destinar recursos vultosos e inéditos à habitação de interesse social


constituem referências promissoras. Ademais, a criação de uma agência estatal unificada
de Política Urbana (Ministério das Cidades) e o estabelecimento de diretrizes inovadoras
de políticas para Mobilidade Urbana, Resíduos Sólidos e Saneamento, regulamentadas
em legislação nacional, representam um enorme salto rumo a padrões sustentáveis de
desenvolvimento urbano. O catálogo de conquistas e avanços é extenso, e é ocioso repeti-
lo.
Em síntese, em termos institucionais estritamente normativos, a Política Urbana no Brasil
evoluiu expressivamente desde a democratização. Não obstante, não há sinais de que
houve rupturas dignas de registro no modelo de desenvolvimento urbano do país. Nesse
sentido, talvez seja mais apropriado pensar nos obstáculos que se interpuseram aos
referidos avanços para melhor compreender o estado da arte da Política Urbana.
Em primeiro lugar, não se pode ignorar a dimensão político-institucional. O arranjo
herdado da Constituição confere amplos poderes ao Executivo, mas este carece de maioria
para obter governabilidade por meio de coalizões, modelo que a literatura batizou de
“presidencialismo de coalizão”. A trajetória recente evidencia que nem mesmo um
governo de centro-esquerda comprometido historicamente com a reforma urbana foi
capaz de alterar substantivamente os padrões da Política Urbana remanescente, e basta
lembrar apenas dois exemplos: a transferência do controle político do Ministério das
Cidades para grupos e partidos políticos conservadores (ROLNIK, 2009) e as
contradições do PMCMV que resultaram na manutenção da segregação socioespacial
(ROLNIK et al. 2015; FERREIRA, 2015).
Em segundo lugar, a despeito de a legislação conter diversos mecanismos e instrumentos
de gestão para induzir ou conter o adensamento urbano, não há nenhuma obrigatoriedade
para que tais ferramentas sejam utilizadas isolada e/ou articuladamente. Nesses termos,
por exemplo, os instrumentos jurídicos e urbanísticos do Estatuto da Cidade tornam-se
enunciados meramente litúrgicos, e sua adoção vira letra morta nos Planos Diretores, cuja
eficácia tem se revelado muitíssimo modesta (SANTOS; MONTANDON, 2011).
Em terceiro lugar, embora o arranjo institucional atribua aos municípios a competência
pela gestão do desenvolvimento urbano, a incidência das políticas decididas em níveis
superiores de governo modelam decisivamente as formas e padrões de produção do
espaço intraurbano. Bastaria tomar como exemplo os impactos urbanísticos, ambientais
e sociais de ações como programas habitacionais e de estímulo/isenção fiscal à indústria
automobilística. Ademais, há o recorrente problema do pacto federativo e da distribuição
assimétrica de competências e recursos entre os três níveis de governo.
243

Em quarto lugar, face à baixa regulação a que é submetida a propriedade da terra (além
de sua concentração) e à alta rentabilidade do mercado fundiário, a atividade imobiliária
tem se caracterizado pelo dinamismo e pela superprodução habitacional (OTERO, 2016).
Assim, a permissividade do poder público na regulação urbana possibilita a multiplicação
de diferentes expressões de empresariamento urbano (HARVEY, 2005), por meio do qual
se consuma a mercantilização da cidade com enormes prejuízos sociais (GOULART;
TERCI; OTERO, 2017; VAINER, 2000). Nesses termos, a Política Urbana vem sendo
tratada no âmbito do Estado brasileiro – tanto no plano federal quanto nos municípios –
como uma dimensão caudatária da economia vinculada às estratégias de indução
econômica e de reconversão produtiva. Esse status de subordinação resulta em ações e
políticas erráticas que, como observa Erminia Maricato, remete ao esquecimento do
“coração da reforma urbana”, a saber, a reforma fundiária (CIDADES REBELDES, 2013,
p. 23).
Com o retorno de forças conservadoras ao poder nas eleições de 2018, os avanços
consumados e aqueles ainda a serem conquistados ficaram ainda mais remotos, tornando
o futuro das cidades e do país incertos. A vigência da Emenda Constitucional nº 95, desde
2016, é a prova dessa incerteza: ao congelar os gastos públicos sob o discurso do
equilíbrio fiscal, põe-se em risco muitos dos avanços sociais até aqui conquistados.
Selado o rompimento do pacto social distributivo consagrado na Constituição, anuncia-
se uma aguda contradição, uma vez que tal retrocesso institucional compõe o marco
jurídico ao lado de todos os preceitos progressistas e inovadores que garantiram à
Constituição o título de “cidadã”.
Se até agora muito havia que ser percorrido em direção a cidades mais justas e igualitárias,
após as constantes investidas conservadoras, esse percurso agora se faz cada vez mais
obscuro. Em síntese, “tudo indica que nossas cidades viverão ideias e ações menos
redistributivas, mais conservadoras e talvez menos republicanas no futuro próximo. O
grau dessa reversão ao passado, entretanto, ainda depende dos desdobramentos das crises
atuais, da capacidade de implementação da nova agenda conservadora e dos
comportamentos dos demais atores políticos das cidades” (MARQUES, 2017, p. 47).
Os resultados eleitorais de 2018 desautorizam otimismo. E a anunciada extinção do
Ministério das Cidades, consumada no primeiro dia de 2019 pelo novo governo, apenas
corrobora essa tendência de retrocesso. Tempos de anacronismo, mas também tempos de
resistência.

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AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo financiamento da
pesquisa que deu origem ao presente trabalho (Processo FAPESP nº 2016/11927-6).

AUTORES
Jefferson O. Goulart: pós-doutorado em sociologia urbana pela Universidad Complutense de
Madrid, doutor em ciência política pela Universidade de São Pa ulo, professor do Departamento
de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UNESP,
pesquisador do Cedec e líder do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Urbano Contemporâneo,
Currículo completo em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4796359U8>;
Ana Carolina Bergamaschi do Val: discente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP), e -mail:
<anacbval@gmail.com>.
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