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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.).

História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

A LEGENDA AUREA:
DATAÇÃO, EDIÇÕES, DESTINATÁRIOS E MODELO DE SANTIDADE
Carolina Coelho Fortes – UFF

Introdução
Em 2003, defendi minha dissertação de mestrado no Programa de Pós Graduação em
História Social da UFRJ. Nela me lancei à análise da Legenda Aurea a partir de uma
perspectiva de gênero, buscando delinear os perfis de santidade masculina e feminina
construídos por Jacopo de Varazze. Embora esta problemática fosse, então, original, o uso
da obra como objeto de atenção histórica não era inédito em terras brasileiras. Antes de
mim, dois historiadores já haviam dedicado sua atenção à compilação hagiográfica do
dominicano genovês: Hilário Franco Júnior e Néri de Barros Almeida. Enquanto Franco
Júnior dedicou um breve, mas elucidativo artigo, sobre os milagres punitivos dos santos da
Legenda Aurea, 1 Almeida pesquisou, em sua tese "A cristianização dos mortos. A
mensagem evangelizadora da ‘Legenda aurea’ de Jacopo de Varazze", 2 o papel da
hagiografia na pastoral dominicana na segunda metade do século XIII.
Até o final de 2003, Franco Júnior, com o auxílio de Almeida, lançariam a tradução
da obra para o português. Como o “I Seminário Internacional sobre Hagiografia Medieval”,
evento para o qual este texto foi escrito, teve também o intuito de celebrar os dez anos
dessa publicação, proponho discutir aqui alguns aspectos mais gerais da obra, que guiariam
sua análise então e, que, até hoje, devem pautar seus estudos: a data de sua redação, as
edições disponíveis na época, seu provável público-alvo e o perfil de santidade que esta
encerra.

Datação
Uma das questões que, há dez anos, mobilizava a historiografia acerca da Legenda
Aurea era a data de sua produção. Assim como obscura é a primeira fase da vida de seu

1
FRANCO JR., Hilário. “A Outra Face dos Santos. Os Milagres Punitivos na Legenda Aurea”. In: A Eva
Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: EDUSP, 1996.
2
ALMEIDA, Néri. A cristianização dos mortos. A mensagem evangelizadora de Jacopo de Varazze.
Tese de Doutorado. USP. 1998.

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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

compilador, obscura também era, há uma década, a data exata em que foi produzida a obra.
É consenso entre os historiadores, no entanto, que a obra foi escrita por volta de 1260. A
data defendida por Wyzema, 1255, é certamente equivocada. 3 Uma das evidências mais
fortes para tal afirmação pode ser encontrada no capítulo sobre Domingos, que se baseia em
duas fontes compiladas entre 1256 e 1260. É muito pouco provável que a vida de
Domingos tenha sido omitida no plano original da Legenda Aurea. Richardson acredita que
a obra fora escrita depois de 1250, pois na última parte do capítulo sobre Pelágio – que
daria o nome de História Lombárdica à toda a compilação – Jacopo menciona a morte de
Frederico II, e afirma que, na época em que escreve, o trono ainda está vago, sugerindo,
assim, que algum tempo passara desde sua vacância. O historiador sugere que, por outro
lado, a obra não pode ter sido escrita depois de 1265, já que atesta haver um manuscrito
datado desse ano. 4 Além disto, recorre ao capítulo sobre Pedro Mártir para fixar a data
limite da composição da obra em 1258, pois ali fica implícito que, da morte de Pedro Mártir
até o fim da redação, Milão permanecera livre de heresias, enquanto que em 1258 esta
cidade passava por uma onda heterodoxa tão forte que o inquisidor fora expulso não só do
convento dominicano como da cidade.5 Logo, Richardson acredita que o ano de 1255 como
data de finalização da Legenda pode não estar muito distante da data original. Argumenta,
ainda, sobre a grande quantidade de manuscritos seus produzidos no século XIII, o que
levaria a admitir a possibilidade de uma redação mais recuada no tempo.
Contudo, Reames nos lembra que há um manuscrito na coleção Salis Metz que
estampa a data 1273. 6 Esta data coincide com a última afirmação sobre a história da
Lombardia constitutiva da maior parte do capítulo sobre Pelágio;7 não foi senão depois de
1273 que outro pretendente ao trono seria reconhecido pelo papado. Não obstante, após ter
estudado os registros sobre a vida de Jacopo de Varazze, Monleone conclui que a Legenda
Aurea deve ter sido escrita durante a vida no claustro e, provavelmente, antes de 1267.8
Inclusive, encontra-se num manuscrito redigido entre os anos de 1267 e 1282, uma

3
WYZEMA, Teodor de. “Introduction”. La Légende dorée. Paris: Seuil, 1960. p. 18-19
4
RICHARDSON, Ernest. Materials for a Life of Jacobus da Varagine. Latin Writings. Op cit., p11.
5
Idem, p. 49.
6
Catalogue Générale des manuscrits des biblioteques publiques de France, Départements, 48, 1933.
7
LA, p. 803-822.
8
MONLEONE, Giovanni. Iacopo da Varagine e la sua Cronaca di Genova dalle origini al MCCXCVII.
Roma, 1941. V. 1, p. 101.

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anotação do próprio Jacopo, o que também evidencia a adição posterior de novos capítulos
ou partes, como afirma Maggioni.9 Já Ferrua estabelece o fim da compilação em 1263, mas
não chega a explicar porque. Bertini situa-a entre 1260 e 1263, apoiando-se no estudo de
Baumgartner sobre o capítulo dedicado a Francisco.10
Fixada, assim, a data da primeira redação da Legenda no início da década de 60 do
século XIII, devemos destacar a considerações de Maggioni, alegando que a obra passou
por várias revisões do próprio compilador, ou consentidas por ele, ao longo de sua vida.
Essas revisões mostram, de forma contundente, o caráter aberto da obra. Em primeiro lugar,
por ser uma compilação, o que significa que Jacopo não só se baseou, mas chegou a extrair,
literalmente, passagens inteiras de suas fontes. Em segundo lugar, à medida que a obra era
copiada, adicionavam-se vários outros capítulos.

Edições
Ter clareza sobre o processo de produção da Legenda Aurea contribuiu para uma
aproximação crítica da obra. Como concluí a pesquisa de mestrado antes do lançamento da
versão brasileira, baseei-me em duas versões diferentes da Legenda. Uma delas, a edição
mais respeitada até o início da pesquisa, serviu-me de apoio propriamente textual: a
tradução para o espanhol do texto editado por Graesse, em 1890. Segundo Seybolt, Graesse
fundamentou-se em uma das primeiras cópias da obra; provavelmente a sexta.11 Além da
datação incerta, outro problema também permeia a compilação: o da autoria. Até hoje se
questiona quais capítulos da edição de Graesse, de fato, foram escritos pelo dominicano
genovês. Reames acredita que não há razão para duvidar das suposições tradicionais que
corroboram ser a maioria, senão todos, os primeiros 182 capítulos na edição de Graesse
atribuídos a Jacopo de Varazze e que seu conteúdo não foi modificado drasticamente

9
MAGGIONI, Giovanni Paolo. Le Molte Legende Auree. Modificazioni Testuali e itinerari narrativi. In:
MORENZONI, Franco e FLEITH, Barbara, (ed.) De la sainteté à l’hagiographie : genèses et usages de la
Légende dorée (XIII-XVe siècles) Actes de Colloque de Genève, avril 1999. Genève : Droz, 2001. p. 15-38.
10
BAUMGARTNER Apud BERTINI, Ferruccio. Le Fonti Classiche in Iacopo. In: GUIDETTI, S.B.(org) Il
Paradiso e la Terra. Iacopo da Varazze e il suo tempo. Atti Del Convegno Internazionale. Varazze, 24-26
settembre, 1998. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 2001.
11
SEYBOLT, Robert. Fifteenth Century Editions of the Legenda Aurea. Speculum, 21, p.327-38, 1946.
Apud. REAMES, Sherry. Op. cit., p. 63.

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Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

depois que ele concluiu sua obra.12 O cerne da questão está na impossibilidade de se ter
certeza de que foi o próprio Jacopo, e não alguma fonte intermediária, que deu uma nova
direção à versão original de alguma legenda. Não se sabe, exatamente, a que fontes ele
recorreu, já que é pródigo em omiti-las.13 Essas omissões características podem decorrer da
sua dependência de um legendário resumido anterior. Segundo Reames, os dois legendários
anteriores com os quais a Legenda Aurea, presumivelmente, deveria ter bastante em
comum – os de Jean de Mailly e de Bartolomeu de Trento – na verdade, não se assemelham
tanto quanto se supõe. Para a maioria das vidas, Jacopo parece ter tido acesso a textos
completos. De fato, algumas passagens da Legenda Aurea não são resumidas, mas copiadas
textualmente das vidas originais, e seus sermões usam partes emprestadas das mesmas
fontes.14
Mesmo concordando com a opinião da maior parte dos estudiosos da Legenda de que
os primeiros 182 capítulos da edição de Graesse foram realmente compilados por Jacopo,
optamos por cotejar essa versão com o que, na época, era a recentíssima edição de
Maggioni,15 baseada num monumental estudo de dezenas de manuscritos contemporâneos
da Legenda. Nela busquei a confirmação de que as vidas com que trabalhei na dissertação,
ou seja, as vidas de santas e as de Domingos e Vicente, foram, de fato, escritas por Jacopo,
bem como o texto latino serviu como esteio para dirimir desconfianças pontuais quanto à
tradução espanhola.

Destinatários
Considero também de relevo fulcral para o estudo rigoroso dessa compilação, uma
reflexão informada sobre seus possíveis destinatários. Para o que e para quem foi escrito
esse conjunto de hagiografias? O sucesso da Legenda Aurea, segundo Franco Jr., deve-se

12
REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University
Press, 1985.., p. 69.
13
Sabemos, por exemplo, que Jacopo omitiu sistematicamente as citações de seus confrades contemporâneos
Tomás de Aquino, Vicente de Beauvais e Bartolomeu de Trento. FERRUA, Valério. Istanze e antitesi
dell´Ordo Praedicatorum nella vita e nell´opera di Iacopo da Varazze. In: GUIDETTI, S.B.(org) Il Paradiso e
la Terra. Iacopo da Varazze e il suo tempo. Atti Del Convegno Internazionale. Varazze, 24-26 settembre,
1998. Firenze: SISMEL/Galluzzo, 2001.p. 31-46.
14
REAMES, Sherry. Op. cit., p 70.
15
IACOPO DA VARAZZE. Legenda Aurea su CD-Rom. Testo latino dell´edizione critica a cura di
Giovanni Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999.

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ao equilíbrio de elementos de origem popular e erudita.16 Os elementos de origem popular


estão presentes graças ao objetivo pastoral das ordens mendicantes. A “mentalidade” do
século XIII, apesar desse ser um período de aceleradas transformações mantinha-se,
essencialmente, a mesma dos séculos precedentes, especialmente, em um texto marcado por
elementos arcaicos17 como a Legenda Aurea. A função dos santos era, através do exemplo
dos martírios e das virtudes, conquistar novos adeptos para a causa de Deus. Isso, em parte,
em reação aos movimentos heterodoxos que preocupavam os dominicanos. Assim, esses
tentavam reaver seu rebanho através de um discurso regulador. A origem da obra está
intimamente ligada ao movimento para a revisão da liturgia dominicana, que chegou ao fim
justamente na época em que a Legenda foi terminada.18
A questão do público alvo da obra é de vital importância para que possamos, entre
outras coisas, estabelecer suas funções, as pretensões de Jacopo ao redigir tais legendas
santorais. Autores como Richardson difundiram a ideia de que Jacopo fora um grande
popularizador do conhecimento eclesiástico, sendo crível que teria dedicado sua
compilação aos leigos. Porém, concordamos com Reames em sua afirmação de que, se nos
lançarmos a uma averiguação mais cuidadosa da obra, não poderíamos sustentar essa teoria.
Senão vejamos: a língua original da Legenda é o latim, língua incompreensível para a
maior parte dos leigos do século XIII, e até mesmo para muitos religiosos. Além disso, de
par com as inúmeras historietas, o compilador insere um material distintamente não voltado
para os leigos, como dissertações escolásticas sobre questões doutrinais; breves ensaios
sobre a história de elementos particulares da liturgia; notas críticas sobre os conflitos entre
uma fonte e outra, etc. Esse fato faz concluir que os leitores primeiros pretendidos por
Jacopo de Varazze eram membros do clero razoavelmente bem educados. Somente estes
poderiam apreciar, apropriadamente, todas as informações contidas na Legenda Aurea.
Assim, fazendo uso delas em sermões, estavam aptos a fornecer a lição adequada.
Ainda contestando aqueles estudiosos que apontaram a Legenda Aurea como sendo
dirigida exclusivamente à leitura para leigos, e afirmando-a, sobretudo, como uma fonte

16
FRANCO JR., Hilário. “A Outra Face dos Santos. Os Milagres Punitivos na Legenda Aurea”. In: A Eva
Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 221.
17
Idem, p. 222.
18
RICHARDSON, Ernest. Materials for a Life of Jacobus da Varagine. A Maker of the Italian Language.
Op.cit., p. 49.

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para clérigos, podemos dispor de mais alguns argumentos. Por exemplo, como nos lembra
19
Reames, nos prefácios dos legendários resumidos dos predecessores de Jacopo,
Bartolomeu de Trento e Jean de Mailly, afirmam dirigi-las para pregadores e padres de
paróquia que necessitem de material confiável para a edificação de sua audiência. A
Legenda Aurea, contudo, não possui nenhum prefácio que explique suas intenções. Além
disso, se nos fiarmos no momento pelo qual passava a Ordem dos Frades Pregadores na
época da finalização da Legenda, veremos que havia todo um movimento em relação à
produção e compilação de conhecimentos cristãos, com a finalidade de instruir seus
quadros, para que, ai sim, esses pudessem combater os inimigos de Deus, fossem esses
quem fossem.20
Portanto, podemos afirmar que esta compilação não foi pensada como um legendário
que via nos leigos seu público principal. A Legenda foi, acima de tudo, uma obra de
referência, na qual os clérigos pudessem encontrar vasto material útil para seus sermões. As
anedotas de Jacopo seriam, então, recontadas nas ocasiões que o clérigo que se utilizasse
delas achasse mais adequadas, adicionando as lições e remodelando os sentidos como
entendesse mais apropriado.
Ao comparar os sermões de Jacopo de Varazze e a Legenda Aurea, Reames 21
percebe que são aqueles construídos de forma mais rebuscada que a coletânea de
hagiografias. Conclui, então, que o autor visava dois grupos diferentes de ouvintes, ambos
compostos, majoritariamente, de leigos, tendo um, mais conhecimento e sofisticação
intelectual do que o outro. As histórias da Legenda Aurea parecem ter sido produzidas para
segmentos menos sofisticados, uma audiência bem diferente do clero que a educaria e dos
letrados educados visados por seu compilador. Além disso, Jacopo de Varazze enfatiza
mais os milagres na Legenda Aurea e as virtudes nos sermões. A concentração dos milagres
na compilação foi uma escolha deliberada, que reflete a audiência e a ocasião para as quais
o livro estava voltado. Desta forma, a utilização dos milagres parece indicar que o
dominicano os via, principalmente, como um veículo pelo qual os "simples" poderiam ser
persuadidos a aceitar as verdades da Igreja. Isso implica que cristãos instruídos como o

19
REAMES, Sherry. Op. cit., p. 86.
20
HINNEBUSCH, William. History of the Dominican Order. New York: s/ed, 1973. V. 2, p. 232.
21
REAMES, Sherry. Op. cit., p. 103-112.

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próprio compilador e o público leigo visado pelos seus sermões, não teriam muito a
aprender com a Legenda Aurea. Mas alguns poderiam usá-la para passar a terceiros os
ensinamentos da obra.
Apesar de ter entendimento de que os clérigos seriam os consumidores imediatos de
sua compilação, é muito provável que Jacopo tivesse plena consciência de que se
constituiriam de leigos o maior número de pessoas a consumirem a obra. Assim, ele chegou
o mais próximo que podia das necessidades dos simples crentes, em termos que eles
poderiam entender. E o resultado, se não foi “popular” na concepção justa da palavra, foi o
suficiente para merecer dúzias de traduções vernáculas para audiências que não podiam ler
latim. Além disso, parece óbvia a conclusão, a partir de centenas de manuscritos que
chegaram a até nossos dias da Legenda Aurea em latim, de que membros do clero da
Europa ocidental acharam o livro muito útil nos séculos XIV e XV. Afora seu viés
autoritário e puritano, a compilação de Jacopo de Varazze tinha as vantagens práticas de ser
compacto, convenientemente estruturado, com estilo geralmente simples e conciso, e cheio
de informações que poderiam ser úteis para um clérigo.
Porém, apesar de não ser uma obra voltada diretamente para leigos, há indício de que,
mesmo ainda no século XIII, a Legenda já era lida por estes.22 Num tempo em que até
mesmo as famílias mais letradas possuíam apenas uma pequena quantidade de livros, que
eram lidos à exaustão, e quando Bíblias vernáculas eram ainda, relativamente, raras o
conteúdo da Legenda Aurea deve ter exercido profunda influência na perspectiva religiosa
de muitos homens e mulheres leigos.
Acreditamos, assim, que Jacopo visava atingir dois públicos bastante distintos:
clérigos e leigos. Os clérigos – o público-alvo atingido de maneira mais direta – leriam ou
ouviriam a obra e a utilizariam, remodelando-a a partir de suas próprias prerrogativas, para
compor seus sermões. Os leigos comporiam o público secundário e final da Legenda, nos
sermões dirigidos a eles pelos frades pregadores, ou qualquer outro que tivesse acesso à
obra, ou ainda, para aqueles letrados que, nas leituras feitas em voz alta em um ambiente
privado, estariam escutando o material compilado e adaptado por Tiago.

22
RICHARDSON, E. Op.cit., p. 12.

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E qual seria a função da Legenda Aurea? É de se indagar se ela, como afirma a


maioria dos estudiosos da hagiografia medieval em relação à finalidade própria deste tipo
de literatura, realmente procura estabelecer modelos de conduta. Segundo Vauchez, 23 os
santos só passam a ser encarados como modelos universais a partir do questionamento das
rígidas hierarquias sociais no final da Idade Média. Vauchez defende que é no século XIII
que surge uma inflexão na hagiografia: os santos, de admiráveis, passam a ser imitáveis.
Contudo não se pode incluir a Legenda nessa inflexão, na medida em que consideramos os
leigos como público indireto, porém principal em relação ao número de ouvintes e à missão
dominicana. E, apoiando-nos nas observações de Cazelles, 24 que mostra existir relação
direta entre a origem leiga do público visado pelo hagiógrafo e a apresentação dos santos
como personagens distantes, inimitáveis portanto. Ela explica que o homem comum prefere
delegar aos santos a responsabilidade pela relação com o divino, desligando-se leigos assim
de qualquer sacrifício que possa levá-lo ao caminho árduo da conversão, e permanecendo
na esfera do profano, beneficiando-se da interseção de seu protetor celeste.25
Para Néri de Barros Almeida26 é difícil acreditar que Jacopo de Varazze quisesse que
seus ouvintes seguissem o modelo de renúncia sobre-humana à corporalidade, expresso em
grande parte das vidas da Legenda Aurea. Nesta coletânea hagiográfica, que conta com a
maioria de suas vidas dedicadas a mártires, o santo tem sua vida centrada na busca da morte.
Os sentidos são ignorados com as mais radicais práticas ascéticas. As legendas são claras
no caráter excepcional do santo, eles ultrapassavam todas os limites que a natureza reservou
aos seres humanos.

O caráter heróico dos gestos do santo mártir e asceta, por si só inviabiliza a sua
imitação, uma vez que possíveis apenas devido à condição excepcional do santo, no
geral predestinado desde seu nascimento para tais experiências-limte. Figuras
especiais, os santos não são modelos para a vida objetiva.27

23
VAUCHEZ, Andre. “O santo” In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989.
24
CAZELLES, B. Le Corps de sainteté. Op. cit.
25
Como já vimos no capítulo 1, item Discussão Historiográfica.
26
SOUZA, Néri de Almeida. Hagiografia e Cultura: Morte e Santidade na proposta evangelizadora da
Legenda Aurea de Tiago de Varazze, USP, 1997.
27
Idem. p 49-50.

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Logo, mesmo que fossem guardadas as devidas proporções, é difícil afirmar que a Legenda
Aurea estivesse voltada para o estabelecimento de modelos de conduta, mas sim para a
veneração. Enquanto a hagiografia tradicional, na maior parte das vezes, apresentava aos
simples leigos exemplos que eles poderiam imitar, a Legenda Aurea dizia quase
literalmente que poderiam só reverenciar e obedecer aos santos. Acreditamos que, no caso
dos relatos hagiográficos compilados por Jacopo, este não buscava estabelecer os santos
como modelos a ser seguidos, mas apenas como personagens didáticos, que pudessem
ensinar aos leitores ou ouvintes de sua obra quais eram os grandes méritos cristãos. Desta
forma, a mera ação de se jogar ao martírio, por exemplo, serviria para que os fiéis
entendessem a mensagem: a entrega completa a Deus será sempre recompensada.
Como já vimos, Jacopo de Varazze escreveu a Legenda antes de 1267, durante o
período em que ainda levava uma vida relativamente enclausurada e dedicada aos livros e,
provavelmente, bem antes de atingir os 40 anos. Quanto mais antiga for a data estabelecida
para a Legenda Aurea, mais fácil é explicar seus excessos de zelo como falhas de um
inexperiente seguidor de Domingos. A consistência com a qual ele trabalha suas ideias
favoritas, independente de valores humanos que sacrifica, sugere que ele estava
acostumado a ensinar teorias, e não aplicações práticas. Além disso, Jacopo não parece
levar em consideração outras perspectivas, outros sistemas de valores, além do
essencialmente monástico que ele celebra. Sua falta de empatia com os cristãos que tinham
que viver no mundo, e com as almas mais fracas que se preocupavam com bênçãos
mundanas, é clara na Legenda. Esta característica da obra de Jacopo torna-se mais
compreensível quando nos lembramos que ele não pode ter visto muito do mundo antes de
ter renunciado a ele, em 1244, com cerca de 14 anos. O estatuto cada vez mais militar da
Ordem nos anos seguintes foi severamente calculado para afastar um jovem convertido de
qualquer pensamento mais liberal.
Algumas passagens da obra nos mostram para que tipo de batalha a Legenda Aurea
foi projetada. É comum Jacopo se afastar da continuidade de sua narrativa para ir contra
erros doutrinais específicos associados aos hereges de seu tempo. Mas, na maior parte das
vezes, ele prefere fornecer munição para as batalhas políticas que perturbavam os
dominicanos e os governantes da Igreja. Os grandes descrentes denunciados em sua obra

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não eram hereges, mas católicos céticos ou descontentes, potenciais favorecedores da


heresia, que poderiam tolerar ou até aplaudir desafios à autoridade clerical. E a maior tática
aplicada por Jacopo é identificar a ordem que eles questionavam com a vontade de Deus,
como manifestada na vida dos santos. 28
Se Jacopo não confiava no tipo de persuasão sutil utilizada por seus predecessores, a
explicação que podemos entrever é de que ele acreditava que tal persuasão falhara. Contra a
situação enfrentada pelo Norte da Itália na época da compilação da Legenda, não é de se
surpreender que ele devesse usar artilharia pesada, armando os pregadores que usariam a
Legenda Aurea com uma polêmica mais ameaçadora do que era a característica da
hagiografia dominicana. É interessante notar a analogia entre o recurso do dominicano a
tais medidas e as razões para a coerção física que a Ordem havia incorporado na legenda
oficial de Domingos. Em ambos os casos, um afastamento tão grande da pregação
apostólica se justifica pela suposição de que aqueles que confrontavam os pregadores estão
além, não só do alcance da persuasão, mas, também, da misericórdia divina. Destarte,
mesmo quando se dirigia ao segmento laico superior Jacopo não estava preocupado em
fazer com que eles imitassem as virtudes dos santos, ou dar grande valor a seus milagres:
ele encorajava a todos os seus ouvintes e leitores a respeitar e obedecer às autoridades
eclesiásticas que estavam acima deles.
Em síntese, acreditamos, assim como Souza, que a obra de Jacopo de Varazze estava
imbuída de três funções: seria usada pelos religiosos nas leituras litúrgicas feitas em
mosteiros; como obra de edificação em leituras privadas e, em sua função mais importante,
dada a missão evangelizadora dos dominicanos, serviria para a orientação dos religiosos na
composição de seus sermões, atuando como fonte de consulta sobre a santidade. Assim, a
Legenda Aurea não foi compilada para prover a edificação e conforto para a cristandade em
geral, e sim para armar os pregadores para batalhas contra inimigos dos santos e de seus
patrocinadores.

Modelo de santidade

28
REAMES, Sherry. Op. cit., p. 194.

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Um quarto aspecto que considero ser fundamental para qualquer estudo sobre a
Legenda Aurea é a definição de seu ideal de santidade. Para tanto, é necessário traçarmos
uma tipologia de seus santos, quanto aos tipos de santidade. Dos 182 capítulos, 21 são
dedicados a festas. Contamos, então, com 161 capítulos que relatam a vida de santos,
individualmente ou em grupo. Em 95 vidas, a figura principal é a de mártires; 22 se
dedicam a apóstolos, bispos e papas que não se submeteram ao martírio; 24 tratam de
eremitas, monges e reclusos; e apenas 11 são sobre confessores que representam outras
condições de vida. Assim, podemos constatar, claramente, que o tipo de santidade
privilegiado por Jacopo de Varazze era o martírio.
Baseando-se principalmente em relatos recolhidos da Antiguidade Tardia e da Alta
Idade Média, a maioria das vidas trata de acontecimentos que teriam ocorrido entre os
séculos I e IV, o que leva a Legenda a valorizar a santidade martirológica. Embora as vidas
relativas aos séculos V-VII – época em que o tipo de santidade privilegiado era o ascetismo
– apareçam em menor número, impera nestas um perfil igualmente martirológico. Apenas
cinco vidas são de santos contemporâneos, dos séculos XII e XIII. Ainda aí, o martírio está
implícito em maior ou menos grau, principalmente, nas vidas de Pedro Mártir e Domingos.
Almeida acredita que o uso dessa “matéria antiga” possibilitaria a Jacopo tratar com
maior liberdade algumas questões de seu tempo, evitando os incômodos de uma abordagem
mais direta. Além disso, era possível encontrar na tradição pontos comuns, como a
resistência da heterodoxia e do paganismo. 29 Contudo, para além das conclusões de
Almeida, é necessário notar que as paixões ocuparam um espaço desproporcional nos
legendários da Idade Média Central30 se considerarmos que muitos séculos haviam passado
desde as últimas perseguições. A obra de Jacopo não é uma exceção, 31 já que dois terços

29
ALMEIDA, Néri. A cristianização dos mortos. A mensagem evangelizadora de Jacopo de Varazze.
Tese de Doutorado. USP. 1998. p. 24.
30
REAMES, Sherry. Op. cit., p. 98.
31
Como afirma Philippart, a produção hagiográfica da Baixa Idade Média foi caracterizada por um
tradicionalismo que se mede pela permanência, através de mil anos de história, de gêneros adaptados aos
primeiros séculos do período. Os best-sellers do século IX são os mesmos do século XIII: as paixões dos
mártires. Estas narrativas, épicas e fabulosas, continuaram a veicular uma representação antiga do santo, uma
moral e teologia em desacordo com as aspirações e as crenças renovadas. Porém, apesar de representarem,
ainda, um ideal antigo de santidade essas legendas foram capazes de repercutir no público da época através da
atualização feita pelos objetivos mendicantes da pregação para a salvação das almas. PHILIPPART, Guy. Les
Legendiers latins et autres manuscrits hagiographiques. Turnhout: Brepols, 1977. p. 47.

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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

dos santos lembrados por ele podem ser classificados como mártires. Em muitos casos sua
perseguição, brava resistência, morte, funeral e milagres constituem toda a narrativa.
As características arcaicas e o subseqüente sucesso da Legenda Aurea parecem estar
inseridos numa tendência mais ampla, que abrangia a Igreja no período. Como mostrou
Vauchez, o culto dos santos atingiu uma inflexão por volta de 1270. Nos 80 anos anteriores,
o papado respondera com simpatia incomum aos ideais e aspirações religiosas dos vários
braços da Igreja. Um grupo grande e diverso de novos santos havia sido canonizado.
Embora a maioria dessas canonizações refletisse a preferência tradicional por santos da
aristocracia ou mesmo de nascimento real, as origens relativamente modestas dos
mendicantes e de alguns poucos leigos afirmavam a possibilidade de que a perfeição cristã
podia nascer, também, nas camadas menos privilegiadas daquela sociedade. Significativa,
igualmente, é a quantidade de santos penitentes, antigos pecadores cuja conversão e
glorificação finais negavam a lição de que os santos são feitos, e não nascidos. Embora o
culto aos santos não tenha sido, propriamente, popularizado, todos os segmentos da Igreja
acreditaram ser relevantes o suficiente para contarem com patronos exclusivos e seus
próprios modelos de santidade. Na metade final do século XIII, entretanto, a política papal
a respeito das canonizações tornou-se muito mais restrita. Cultos locais de santos recentes
continuaram a florescer até o fim de Idade Média, mas sua maioria não conseguiu nenhum
reconhecimento oficial. Os ideais relativamente igualitários do fim do século XII e começo
do XIII foram rapidamente deixados para trás. Agora, eram vigentes definições de
santidade mais rigorosas que guardam muitas semelhanças com as definições da Legenda
Aurea.
Os novos santos da Idade Média Central e Baixa tendem a ser creditados com dons
cada vez mais espetaculares, fenômeno que Vauchez atribuí, pelo menos em parte, aos
critérios crescentemente mais rigorosos usados pelo papado.32 O que levou a Igreja baixo-
medieval a preferir uma definição da santidade tão idealizada e essencialmente monástica
às definições relativamente flexíveis e inclusivas que prevaleciam antes de 1270? A
hipótese principal oferecida por Vauchez é a de que tal mudança reflete a influência de uma
elite conservadora entre o clero que queria restringir e controlar o culto dos santos,

32
VAUCHEZ, Andre. La Santitá nel Medioevo. Bologna: Molino, 1989. p. 72.

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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

majoritariamente, por motivos de política eclesiástica. O influxo de novos santos foi visto
como uma ameaça ao status de cultos mais antigos e tradicionais, e também levantou o
espectro de uma Igreja fragmentada na qual toda pequena comunidade veneraria santos
diferentes. Vauchez sugere, entretanto, que a causa primeira da inquietação conservadora
foi o grau com que os novos cultos adotaram uma concepção democrática da Igreja ao
invés de uma hierárquica. Ele conclui que a política oficial de canonização depois de 1270
foi construída, em grande parte, para reverter essa tendência, estabelecendo uma
distinção clara entre a santidade iminente e distinta que merecia a honra especial e o tipo de
santidade que os membros comuns da Igreja poderiam esperar atingir. Os beneficiários
mais óbvios seriam os elementos bem educados do clero, e o grupo identificado como
menos sagrado incluía clérigos seculares ignorantes e indisciplinados e a vasta maioria dos
leigos.
Embora Vauchez mal mencione a Legenda Aurea, suas conclusões podem ser
estendidas à explicação da conformação da obra. Se a redefinição oficial da santidade na
Idade Média Central era a obra de clérigos politicamente conservadores, em uma tentativa
de reforçar a hierarquia tradicional da Igreja, estes clérigos não devem ter voltado sua
atenção somente para as credenciais dos novos santos. Ainda mais indispensável para seus
propósitos, seria o uso generalizado de um legendário como o de Jacopo de Varazze, que
assimilava dezenas de santos antigos ao mesmo padrão exclusivo e reforçava a mensagem
com propaganda poderosa em nome do papado, dos mendicantes, e da autoridade clerical
em geral.
Em paralelo à ênfase no martírio, Jacopo acentua a defesa contra os adversários,
característica também desse tipo de vida, mas que perpassa todos os gêneros de santidade
apresentados pela Legenda Aurea. As obras mais tradicionais nesse sentido, no entanto,
continuam sendo as paixões compostas algum tempo depois das grandes perseguições, para
celebrar o triunfo dos mártires. Essas paixões reconhecem somente dois níveis de valores,
ou duas alternativas, e o roteiro consiste em separar as personagens honradas, das más.
Aqueles que se opunham aos mártires tendiam a ser identificados como inimigos de Deus;
o papel principal do mártir é resistir a eles e derrotá-los; e alguns dos milagres que

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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

acompanham a luta servem para provar o favoritismo de Deus em relação aos mártires e
ridicularizar a cegueira de seus inimigos.33
Deste modo, na Legenda Aurea, muitas vezes, a Igreja é representada por mártires
que bravamente enfrentam governantes seculares, de prefeitos a imperadores, porque
servem a uma autoridade superior. Essas narrativas não fariam tanto sucesso justamente
porque se reconhecia uma conexão entre as versões de Jacopo e as batalhas da época, pelos
direitos da Igreja? Jacopo dá grande ênfase à ganância e à ambição que motivam os
perseguidores de santos. Além disso, o compilador minimiza o sofrimento dos mártires,
preferindo insistir nos eventos milagrosos que frustraram os esforços dos perseguidores de
quebrantar seus corpos e sua vontade. A idéia de uma luta contra os santos, que os
perseguidores não podem ganhar, nem sempre se faz de forma explícita. Mas, capítulo após
capítulo, Jacopo descreve o que se mostra como o ponto essencial: as punições que recaem
sobre os perseguidores, punições essas notadas tanto por Reames como por Franco Jr.
Geralmente, ao invés de manifestar a generosidade de Deus para com a humanidade em
geral, o santo da Legenda Aurea tem como motivo central vingar-se contra seus adversários.
Jacopo de Varazze abarrotava a Legenda Aurea de histórias sobre o poder que
defende o servo de Deus e humilha e destrói seus inimigos. A mensagem para os
contemporâneos de Jacopo é mais óbvia nos capítulos da Legenda Aurea cujos heróis são
prelados, exercendo a autoridade sagrada que constrangia imperadores e reis. A ênfase dada
pelo dominicano em tais lições não significa que a obra estava voltada diretamente para os
governantes do século XIII que combatiam o papado em várias frentes de batalhas. A
estratégia da Legenda Aurea era despertar a consciência cristã de seus consumidores, que
poderiam interferir nas ações de seus líderes e governantes. Jacopo privilegiou
sobremaneira os milagres não por que quisesse ceder ao gosto popular, mas por ser o
conhecimento sobre eles o melhor meio de persuadir seus ouvintes e leitores a dar as costas
para os hereges e, especialmente, os líderes seculares que competiam com a Igreja por sua
lealdade. Nesse contexto, a força emocional das legendas é clara. Aqueles que apóiam os

33
ALTMAN, Charles. Two types of Oppositionand the structure of latin saints Lives. Medievalia et
Humanistica, 6, p.1-11, 1975., p. 8.

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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

herdeiros dos santos são convidados a se regozijar, pois estão do lado que Deus favorece;
aqueles que se unem à oposição, tremam com a vingança que lhes aguarda.
Percebemos então, que a Legenda é veículo de propaganda política. Contudo, Jacopo
quer mostrar também a superioridade do sagrado ao secular, do caminho dos santos ao
caminho mundano. De um ponto de vista mais amplo, sua obra pode ser vista como um
esforço de reverter a corrente de modernização e secularização dos valores que já se tornara
evidentes nas cidades itálicas. Ele pretendia reconstruir nos leigos algo da antiga
estupefação com o sobrenatural. E as punições endereçadas aos oponentes dos santos têm
grande força emocional, uma vez que seu propósito seja entendido. 34
Além da evidência do martírio no perfil de santidade da Legenda – a identificação dos
santos com um tipo severo de justiça, e a importância dos confrontos – , podemos ainda
relacionar como ponto presente neste perfil a separação do santo da comunidade e a
insistência em seus privilégios e poderes, e não em sua habilidade de reformar ou curar os
fiéis.
O ideal de separação do mundo tem uma longa história. A tradição já estava viva na
Igreja antes do fim da Antiguidade, manifestando-se de forma mais intensa na vida dos
primeiros monges que se retiraram para o deserto com o objetivo de evitar a corrupção
propiciada pela sociedade secular. A idéia de que era imperativo que o religioso se
afastasse do mundo, literalmente, tornou-se mais disseminada durante a Idade Média; e
ainda era perceptível na época de Jacopo. Teoricamente, as novas ordens mendicantes do
século XIII afirmavam a possibilidade de santificação para cristãos que permanecessem no
mundo. Contudo, embora os mendicantes não se isolassem fisicamente, não devemos nos
esquecer de que, em seus primeiros anos, eles eram identificados por um ideal
compensador: uma quebra mais radical dos valores seculares que o próprio monasticismo
tinha alcançado. É assim que Jacopo reflete a doutrina da Ordem em sua compilação,
afastando os santos do mundo o mais possível, tal qual, embora no mundo, os frades
pregadores, viviam espiritualmente afastados do mundano.

34
Já se apontou que a ênfase no perfil martirológico da compilação não se deve a outro fator que não a
simples preponderância numérica de mártires no santoral cristão. Embora esse fato não possa, obviamente, ser
negado, defendemos que o grande número de mártires presentes na Legenda Aurea explica-se, sobretudo,
pelos argumentos debatidos acima.

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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

Caracterizando esse afastamento do século, a Legenda apresenta uma propaganda


extremada sobre a virgindade, incluindo legendas de ortodoxia questionável que condenam,
terminantemente, relações sexuais até dentro do casamento legal. Além disso, Jacopo de
Varazze, tanto em seus sermões,35 quanto na Legenda Aurea, faz menção à inferioridade do
sexo feminino. Que a mulher era inferior ao homem era evidente para os medievais,24 mas
Jacopo, repetidamente, se desloca de seu caminho para fazer valer essa condição. O
exemplo mais dramático está no capítulo sobre a Purificação da Virgem Maria, que dá
lugar a uma discussão longa e aparentemente gratuita sobre a razão pela qual Levítico,12
prescreve um período mais longo para a purificação do parto de menina do que de menino.
O período de purificação é identificado com a duração entre a concepção e a formação
completa do feto (40 dias para menino, e 80 para menina), a essa suposta diferença
biológica são dadas três explicações alegóricas que convergem para uma só: as mulheres
são mais pecadoras que os homens, e a preferência de Deus recai sobre os últimos.36
Se Jacopo, firmemente, coloca a mulher em seu lugar tradicional na parte inferior da
sociedade cristã, ele lembra, freqüentemente, que as posições de maior autoridade são
devidas aos homens da Igreja. Os santos participam de modo ativo na vida eclesiástica,
sejam como pastores, doutores da Igreja que encabeçam a apologia, ou fundadores. Não é
casualidade que a atividade na vida eclesiástica enquanto autoridade secular se reserve,
neste grupo de obras, aos homens. Na Legenda Aurea algumas santas aparecem esbanjando
sua caridade com os cristãos presos (Anastácia), ou com os pobres (Elizabeth); outras
mostram seus conhecimentos em controvérsias com os pagãos (Catarina), e a muito poucas
se atribuí a fundação de centros religiosos. O papel das santas parece consistir, em uma
primeira leitura, em preservar sua virgindade e dar testemunho de sua fé, aceitando o
martírio se preciso for.
Em suma, o modelo de santidade estabelecido por Jacopo privilegia o martírio, o
afastamento do mundo, o clero e os homens. Embora se possa argumentar que tal modelo é
bastante tradicional, o que levou muitos estudiosos a caracterizar a Legenda Aurea como
uma obra arcaica, que “não pertencia a seu tempo”, vimos que os elementos que compõem

35
REAMES, Sherry. Op. cit., p. 103.
36
Idem, p.157-8.

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FORTES, Carolina. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor. (Org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. 1ed.São Leopoldo: Oikos, 2014, v. , p. 30-46.

a santidade segundo Jacopo de Varazze estavam, obviamente, em total consonância com


seu contexto histórico. Muito embora não estivessem preocupados em estabelecer o perfil
santoral da obra, os estudos de Franco Júnior e Almeida foram de enorme valia como base
a partir da qual pudemos pensar a Legenda Aurea.
Defendemos que qualquer pesquisa de maior fôlego sobre a compilação hagiográfica
do dominicano genovês deva ser baseada em uma visão de todo sobre a obra, pois
acreditamos que esta permite deslindar elementos que uma leitura pontual pode esconder. O
perfil que estabelecemos aqui é, logicamente, produto de uma análise particular. Outros
podem ser construídos, pois devemos considerar que a produção historiográfica acerca
dessa obra tem sido crescente, sobretudo no Brasil, nos últimos dez anos. Certamente um
resultado da edição brasileira da obra, esse interesse renovado reforça nosso argumento. Por
ser um texto que aparenta simplicidade, dado principalmente à repetição de topoi próprios
do gênero hagiográfico, é comum encontrarmos nos trabalhos de jovens pesquisadores
afirmações generalizadoras apoiadas em vidas específicas. A Legenda Aurea, ao contrário,
é uma obra de densa complexidade, profunda intertextualidade que, antes de ser avaliada
por suas partes, precisa ser estudada em sua integralidade.

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