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E CULTURA
práticas de transformação
no mundo indígena
ORGANIZADORAS
Brasília 2010
ISBN 978-85-62539-17-6
CDD 39(81=082)
Apresentação 7
Edilene Coffaci de Lima e Marcela S. Coelho de Souza
CONHECIMENTO
3. O sabonete da discórdia: 63
uma controvérsia sobre conhecimentos tradicionais indígenas
José Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura
CULTURA
Os artigos
A divisão interna do volume e a ordem de apresentação dos textos guardam
certa arbitrariedade, e evidentemente ninguém imagina que se possa separar
simplesmente conhecimento, cultura e transformação. São justamente as práticas
que os imbricam. Da indissociabilidade entre os três termos é que redundam
os processos que são aqui explorados a partir de diferentes ângulos – disputas
em torno da autoria e autoridade de conhecimentos, da realização de rituais,
elaborações e trocas na veiculação de conhecimentos escolares e xamânicos, na
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instruem os processos, das negociações que tem lugar nas variadas instâncias do
órgão sobre o que se define como “conhecimento” e o que o faz “tradicional”,
ou o que se considera “patrimônio genético”, mostrando como estas categorias,
ainda que dependentes de convenções que remetem à lógica do Estado, acabam
por designar uma multiplicidade de objetos científicos e culturais continuamen-
te redefinidos no bojo das traduções que fazem cientistas, empresários e povos
indígenas e tradicionais.
Cultura é o título da segunda parte, na qual estão reunidos os artigos de
Marcela Coelho de Souza, Antonio Roberto Guerreiro Junior e Paulo Roberto
Nunes Ferreira. O artigo de Marcela Coelho de Souza tem início com uma fala
de uma liderança kïsêdjê, que se apresenta como uma crítica da objetificação
da cultura: “eu só queria que parassem de desmatar a terra e poluir o rio.
Da nossa cultura a gente mesmo pode cuidar”. A autora irá mostrar como os
Kïsêdjê, quando demandam projetos de revitalização cultural, fazem isso me-
nos como um esforço de permanecer o mesmo, e mais como uma tentativa para
permanentemente se diferenciarem: dos brancos, de outros grupos indígenas
– e não devemos esquecer que se está na região do Parque do Xingu – mas so-
bretudo de si próprios. Com os Kïsêdjê, a autora nos convida a refletir sobre a
vida de um conceito constitutivo do próprio empreendimento antropológico:
cultura. No segundo artigo, de Antonio Roberto Guerreiro Junior, o contexto
etnográfico é ainda o (alto) Xingu, mas a partir dos Kalapalo e a elaboração
dos rituais funerários, os Quarup. Interessa ao autor a análise da política en-
redada no ritual. Nos últimos anos não faltam brancos proeminentes interes-
sados em realizar seus rituais funerários, seus Quarup, e tais demandas têm
sido ativamente cobiçada pelos chefes nativos. Para que possam ser atendidas,
uma complexa engrenagem sociológica é posta em funcionamento e afeta não
apenas a política interétnica– os Kalapalo e os brancos –, mas também a polí-
tica intertribal, altoxinguana, e a intra-aldeã, os Kalapalo entre si. Seja como
for, tais efeitos não são facilmente destacáveis uns dos outros, e o autor irá nos
mostrar que nem devem sê-los. Encerrando esta parte, temos o artigo de Paulo
Roberto Nunes Ferreira, sobre os processos em curso para tratar da educação
escolar entre os Kaxinawá, de língua pano, localizados no Acre. Se em seus
primeiros anos a escola kaxi foi pensada como um instrumento necessário aos
índios para administrarem suas contas nos seringais ou para organizarem suas
próprias cooperativas, é atualmente vista como um meio indispensável para se
viver e atualizar a tradição. De uma perspectiva voltada ao exterior, a escola é
interiorizada – ou familiarizada, se preferirmos – pelos próprios agentes. Neste
percurso, os Kaxi assumem cada dia mais completamente a organização da
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próxima volta do parafuso. Tendo como objeto o pedido de registro do uso ritual
da Ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil (feito por alguns dos grupos
religiosos que a utilizam), a autora mostra como processos desse tipo necessa-
riamente acabam por deslocar os modos de fazer e conhecer dos sujeitos – foco
explicitado da política pública em questão (o programa do patrimônio imaterial)
– em função de um “objeto” que passa a ocupar o centro da cena: no caso, a bebe-
ragem. A estratégia da autora diante disso é desconfiar da ideia de que se trataria
de uma mesma coisa a cada vez significada diferentemente, sugerindo em lugar
disso pensá-la com um, ou talvez vários, agentes não-humanos, os quais defi-
nem, a cada vez, a outros e a si próprios por meio de suas variadas associações.
Referências
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Como veremos adiante, apenas nos últimos anos o kampô ganhou alguma
notoriedade. Contudo, em 1925, o padre espiritano Constantin Tastevin havia
registrado seu uso entre populações indígenas do alto Juruá:
O exército de batráquios é incontável. O mais digno de ser notado é
o campon dos Kachinaua. [...] Quando um indígena fica doente, se
torna magro, pálido e inchado; quando ele tem azar na caça é porque
ele tem no corpo um mau princípio que é preciso expulsar. De madru-
gada, antes da aurora, estando ainda de jejum, no doente e no azarado
produzem-se pequenas cicatrizes no braço ou no ventre com a ponta
de um tição vermelho, depois se vacinam com o “leite” de sapo, como
dizem. Logo são tomados de náuseas violentas e de diarréia; o mau
princípio deixa o seu corpo por todas as saídas: o doente volta a ser
grande e gordo e recobra as suas cores, o azarado encontra mais caça
do que pode trazer de volta; nenhum animal escapa da sua vista aguda,
o seu ouvido percebe os menores barulhos, e a sua arma não erra o alvo.
A vívida descrição do padre francês, elaborada a partir de aplicações a que
assistiu entre os índios Kulina, adianta que a secreção do kampô é usada, como
dito acima, primeiramente como um estimulante cinegético.
Voltando aos Katukina, a quantidade de aplicações que costumam fazer va-
ria bastante não só entre eles próprios, como entre eles e os demais grupos indí-
genas da região. Dos registros existentes sobre o uso do kampô, não há dúvidas
de que os Katukina são hoje, de fato, os seus maiores usuários (Souza 2002). Seus
vizinhos no rio Gregório, os Yawanawá, parecem ser os mais próximos de igualá-
-los na utilização da secreção (Pérez Gil 1999). Outros grupos indígenas, como
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A aplicação do kampô
Entre os Katukina, o uso em grandes quantidades do kampô é feito exclusi-
vamente pelos jovens; homens mais velhos, mulheres e crianças utilizam-no em
dosagens menores.
Independentemente da dosagem utilizada, as aplicações de kampô devem ser
feitas nas primeiras horas da manhã, ainda com o frescor da noite. Logo ao
acordar, após ter jejuado durante toda a noite, a pessoa que receberá a aplicação
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Os aplicadores de kampô
Como estimulante cinegético ou como antídoto antipreguiça, o kampô deve
ser aplicado por uma segunda pessoa, por alguém que não padeça do mal que
se quer debelar. Assim, não é qualquer homem que pode aplicar o kampô num
caçador empanemado, tem de ser um caçador bem-sucedido. Como se o caçador
trouxesse inscrito em seu próprio corpo a sua condição, a sua boa sorte, e pudesse
transferi-la para outros. Ni’i, filho de um rezador, sempre procurou Kene para “to-
mar kampô”, preterindo o seu próprio pai, um rezador experiente que, comenta-
-se, jamais tocou numa espingarda e, portanto, jamais matou qualquer bicho. Do
mesmo modo, uma mulher tida como trabalhadeira – que zela por sua casa e pelo
terreiro que a cerca, cuida bem dos filhos e sempre tem caiçuma para servir aos
visitantes, entre outras coisas – é quem deverá fazer a aplicação do emético numa
jovem “preguiçosa”. Existe a possibilidade de autoaplicação, mas é reservada ape-
nas às pessoas mais velhas. Para os Katukina, o kampô está situado em um sistema
maior, que vincula a eficácia da substância às qualidades morais do seu aplicador.
O elo que se estabelece entre aquele que aplica a substância do kampô, o
aplicador, e aquele que a recebe deve ser duradouro e o desejável é que seja
definitivo. Assim, de uma perspectiva masculina, um jovem rapaz quando vai
receber, como caçador, sua primeira aplicação de kampô deve escolher quem será
seu aplicador – como indicado acima, um homem que se destaca nesta atividade,
quase sempre de uma geração acima da sua. Caso a aplicação lhe traga boa sorte,
voltará a procurar o mesmo aplicador outras vezes, possivelmente por toda a
vida. Ainda que não haja uma formalização desta relação – entre aquele que apli-
ca o kampô e aquele que recebe a aplicação –, muitas vezes os homens me falaram
dela como se fosse definitiva. Ao contrário, caso a aplicação não traga a boa sorte
esperada, o jovem caçador continuará tentando encontrar o seu aplicador ideal,
aquele capaz de lhe transferir todas as qualidades cobiçadas para a prática da
caça. A escolha do aplicador ideal faz-se pelo teste empírico: o sucesso na caçada
logo após a aplicação é que vai indicar o futuro retorno ao mesmo aplicador.
Não é raro que um jovem caçador tenha mais de um aplicador de kampô a quem
recorrer de tempos em tempos.
Não há exatamente especialistas na aplicação da secreção do kampô entre os
Katukina. Do que foi exposto acima é evidente que os caçadores mais bem-su-
cedidos são os mais requisitados como aplicadores e acabam, de fato, sendo re-
conhecidos também como tal. De todo modo, o conhecimento acerca do kampô
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O Kampô hoje
O pouco segredo que se faz do kampô provavelmente explica a difusão de
seu uso entre os não-índios – entre os seringueiros ao longo do século passa-
do e entre a população urbana, nacionalmente, no início deste século.5 Nos
últimos anos, o uso do kampô ganhou as páginas de vários jornais e revistas
de circulação regional e nacional – sendo que outrora as informações sobre a
Phyllomedusa sp. estiveram restritas às publicações acadêmicas. Em 2001, uma
reportagem publicada numa revista editada pelo governo do Acre, a Outras
Palavras, detalhadamente descrevia seu uso entre os índios, particularmen-
te entre os Katukina, e seringueiros (Lopes 2001). Na sequência, em 2002,
o uso do kampô foi divulgado em um programa de reportagens de uma gran-
de emissora de televisão nacional. Em 2003, um renomado jornalista carioca
(Ventura 2003) publicou um livro sobre Chico Mendes (e sobre o Acre, 15
anos após a morte do líder-seringueiro) em que um dos capítulos sugestiva-
mente intitulava-se “O quente agora é o kambô”, no qual descrevia o uso da
secreção do sapo-verde na cidade de Rio Branco. Pode-se dizer que aquele foi
mesmo o ano do kampô, pois pelo menos treze matérias sobre ele foram publi-
cadas em jornais de circulação diária na capital do Acre.6 Em abril de 2004, o
uso crescente e indiscriminado do kampô para diversas finalidades, tido como
uma substância particularmente eficaz na cura de enfermidades para as quais
a medicina ocidental não tem tido sucesso em tratar, levou a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) a proibir a propaganda do kampô, que vinha
sendo feita principalmente a partir de um domínio eletrônico registrado na
internet. Em 2004 o kampô continuou a ser notícia nos jornais acreanos e em
outubro do mesmo ano foi a vez de uma revista de circulação nacional (Bezerra
2004) estampar em sua capa a foto de um kampô nas mãos de um índio katuki-
na. A matéria de capa trazia uma extensa descrição do uso tradicional e dos
efeitos da aplicação do kampô entre os índios, e denunciava a biopirataria na
Amazônia. Em abril de 2005, o kampô foi notícia em um dos maiores jornais
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do país (Lages 2005), mas o foco da matéria agora era outro: tratou-se do uso
crescente da secreção do sapo-verde em clínicas de terapias alternativas – fre-
quentadas, segundo a matéria, principalmente por estudantes, profissionais
liberais e artistas – da capital paulistana.
Com bastante frequência os Katukina apareciam como protagonistas destas
reportagens. Da Amazônia à maior metrópole brasileira, o kampô, junto com os
Katukina, ganhou fama nos primeiros anos do século XXI.
Antes disso, desde a década de 1940, um farmacologista italiano, Vittorio
Erspamer, liderava uma equipe de pesquisadores dedicados ao estudo de peles de
anfíbios e dos peptídeos que nelas se encontram. Em 1985, Erspamer publicou
um estudo sobre as peles das espécies de Phyllomedusa e concluiu que elas eram
abundantes em peptídeos, especialmente a pele da Phyllomedusa bicolor apresen-
tava uma elevada concentração de peptídeos ativos. A partir de 1989, multipli-
cam-se os estudos sobre esses peptídeos e aparecem as primeiras patentes.7
Voltando aos Katukina, em abril de 2003 – ano em que se publicaram pelo
menos 13 matérias sobre o kampô em jornais acreanos – os Katukina encaminha-
ram à então Ministra Marina Silva uma carta solicitando que o Ministério do
Meio Ambiente (MMA) coordenasse um estudo sobre o sapo-verde. A ministra
acolheu a solicitação e teve início no MMA a elaboração de um projeto de pes-
quisa envolvendo antropólogos, biólogos moleculares, médicos e herpetólogos,
entre outros profissionais. A expectativa, de índios e pesquisadores, era que tais
estudos pudessem contribuir para regulamentar o uso do kampô por não-índios
e, ao mesmo tempo, assegurar benefícios econômicos para seus usuários tradi-
cionais.8 Dado que outras populações indígenas também usam o kampô, o proje-
to demandado pelos Katukina ao MMA foi planejado para ser desenvolvido en-
tre eles próprios e entre os Yawanawá e Kaxinawá, abrangendo paulatinamente
outros detentores tradicionais dos conhecimentos sobre o sapo-verde.
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Como não poderia deixar de ser, tamanha divulgação das propriedades, be-
nefícios e vantagens, reais ou imaginárias, das aplicações do kampô entre os não-
-índios ricocheteou entre os Katukina. Agora havia brancos, muitos deles, inte-
ressados em experimentar, usar e comercializar o kampô.
No cenário regional, repercussões sociais e políticas desse protagonismo dos
Katukina no que diz respeito ao kampô aparecem e afetam as relações interét-
nicas e também as relações dos Katukina com membros de agências governa-
mentais e não governamentais. Em Rio Branco, em janeiro de 2005, não foram
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poucas as vezes que ouvi, de primeira ou segunda mão, que lideranças de outros
grupos indígenas estariam contrariadas com os Katukina pelo fato de estarem se
firmando, na região e nacionalmente, como os legítimos conhecedores do kampô.
Havia, inclusive, a desconfiança (e a previsível insatisfação) de que o MMA de-
senvolveria o projeto exclusivamente entre eles. Talvez não seja excessivo dizer
que furtivamente havia uma crítica ao “monopólio” do kampô pelos Katukina.
“Monopólio”, diga-se de passagem, que os Katukina não exercem, visto que o
primeiro a aplicar kampô em paulistanos foi um seringueiro, Francisco Gomes,
que viveu entre os Katukina na década de 1960, entre os quais aprendeu a fazer
uso da secreção da rã. Hoje um de seus filhos faz aplicações em Brasília, mas
diz ter clientes em várias capitais brasileiras.9 No mais, além dos Katukina, há
índios de outras etnias, também oriundas do Acre – como os Kaxinawá –, apli-
cando kampô em moradores da cidade de São Paulo.
O suposto monopólio katukina é ainda menos exercido no Acre, onde a co-
mercialização da aplicação de kampô tem envolvido menos os índios – que local-
mente parecem não ter tanto espaço para comercializar a aplicação da secreção –
e muito mais os brancos. Além disso, até onde pude saber, os adeptos de religiões
ayahuasqueiras, como é o caso do Santo Daime e da União do Vegetal, têm feito
amplo uso e divulgação do kampô – dentro e fora do Acre.
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mas dá uma ideia das transformações que o uso do kampô por não-índios aca-
bou promovendo. Em março de 2005, um katukina, filho do rezador mencio-
nado acima, apresentou uma palestra sobre o kampô no I Encontro Brasileiro
de Xamanismo, realizado na cidade de São Paulo. No mês de abril, proferiu a
mesma palestra em pelo menos quatro clínicas de terapias alternativas na capital
paulistana e também na capital mineira. Após as palestras eram feitas aplicações
nos interessados em conhecer o kampô. No material de divulgação das aplica-
ções de kampô em São Paulo, consta que a secreção do sapo-verde atua “sobre a
intuição, os sonhos, a terceira visão, o inconsciente e os bloqueios que impedem
o fluxo de energia vital”. O vocabulário usado sugere claramente que o kampô
passa por um processo de “xamanização” no meio urbano.
Entre os Katukina, ao contrário do que ocorre entre outros grupos de língua
pano que também usam a secreção do sapo-verde, como é o caso dos Yaminawa11,
os especialistas xamânicos não são mais habilitados do que outras pessoas a apli-
carem o kampô. Se eventualmente o aplicam, fazem-no muito mais por seus atri-
butos morais, como foi exposto acima, do que por quaisquer credenciais xamâni-
cas que ostentem. O exemplo das transformações recentes no uso da secreção da
Phyllomedusa fica ainda mais ilustrativo quando se sabe que o rezador que iria a
São Paulo fazer as aplicações é o mesmo homem, sobre o qual escrevi acima, que
nunca tomou kampô e, portanto, nunca frequentou a floresta em busca de caça.
Voluntária ou involuntariamente a valorização estrangeira do kampô acabou
promovendo alguns jovens katukina à condição de especialistas na aplicação da
secreção e xamanizando-a. Essas transformações recentes causam certa estra-
nheza aos Katukina, pois, em alguma medida, subvertem a forma tradicional de
aplicação. Primeiramente, porque o que chancela um homem a ser um aplicador
de kampô é seu desempenho como caçador, não como mero manipulador da se-
creção do sapo-verde. Igualmente, o que chancela uma mulher como aplicadora
é seu bom desempenho nas atividades que são próprias de seu gênero. A eleva-
ção de alguns rapazes ao posto de “especialistas em kampô” entre os brancos cria
zonas de atritos entre os próprios katukina, pois o kampô passou a ter “valor de
mercado”. Em segundo lugar, ainda da perspectiva nativa, causa estranheza que
entre os brancos as aplicações de kampô estejam sendo feitas sem o devido jejum
noturno e a qualquer hora. Em poucas palavras, de forma distanciada da prática
que tem culturalmente constituída.
À parte as incongruências e os descompassos entre a forma nativa e a forma
neoxamânica de uso da secreção do kampô, a demanda urbana do kampô tem en-
tre os Katukina outras repercussões, possivelmente tão surpreendentes quanto
as já descritas.
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Uma delas é que o uso do kampô, nos últimos anos, aumentou muitas vezes
não só entre os brancos, mas entre os próprios Katukina. Em minhas últimas
permanências em campo, muitas pessoas, jovens e adultos, exibiam em seus bra-
ços cicatrizes recentes das aplicações. Não que, em anos anteriores, o uso do
kampô estivesse em decadência, mas era feito com mais discrição e com maior
intervalo entre as aplicações. De certa forma, parece-me bastante possível que
a cobiça dos brancos pelo kampô, à parte os problemas político-econômicos que
encerra, elevou a autoestima dos Katukina. Agora eles exibem em seus corpos
as queimaduras, nas quais foi depositada a secreção do kampô, como quem exibe
parte de seu próprio conhecimento. A euforia chegou a ponto de um rapaz de
aproximadamente 35 anos, que nunca havia tomado o kampô (o único que co-
nheci), criar coragem e receber algumas aplicações do emético, apesar de seus
fortes efeitos colaterais. O rapaz foi o único que conheci que nunca caçou, e nem
pretende iniciar-se agora nesta atividade. Ele dispôs-se a receber o kampô para
experimentar o bem-estar que as pessoas relatam após a aplicação e que tem
tanto atraído os brancos. A curiosidade dos brancos acabou por despertar sua
própria curiosidade.
Não resta dúvida de que os Katukina elevaram o kampô à condição de “sinal
diacrítico” – um marcador vistoso da identidade do grupo. Mais que uma subs-
tância capaz de livrar homens e mulheres de condições negativas, como o azar
na caça ou indisposições e “fraquezas” diversas (entendidas como “preguiça”), o
kampô tem facilitado aos Katukina a afirmação positiva de sua identidade.
O aumento do uso do kampô entre os Katukina nos últimos anos torna-se
ainda mais surpreendente quando se sabe que coincide com a diminuição da
atividade de caça. Se kampô e caça sempre andaram juntos, como agora tomam
rumos distintos? Os primeiros anos deste século, nos quais o kampô ganhou
notoriedade nacional, coincidem com o início das obras de asfaltamento da BR-
364 no trecho que separa Rio Branco de Cruzeiro do Sul. A rodovia atravessa
por dezoito quilômetros, de leste a oeste, a TI do rio Campinas. Como escrito no
início, dos grupos indígenas da região, os Katukina foram seguramente o mais
impactados pela pavimentação da rodovia, que teve início no final da década de
1990, e viu decrescer vertiginosamente seu estoque de caça. Hoje os homens se
dispõem a receber aplicações de kampô para aliviarem indisposições diversas,
para se sentirem vigorosos, não necessariamente para se embrenharem na mata
à procura de caça. Foi preciso certa revisão das formas tradicionais do uso do
kampô para adequá-las às condições atuais. As aplicações do kampô persistem,
porém em menor número – agora, mais condizentes com suas atuais condições
ecológicas. Qualquer pessoa admite que nem trezentas aplicações de kampô faria,
nos dias de hoje, um homem ser bem-sucedido em suas expedições de caça como
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Notas
Apresenta-se aqui uma versão ligeiramente modificada do artigo publicado, sob o mesmo
título, na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, número 32, 2005, pp. 254-267. O título
pretende dar conta tanto das diferentes formas de falar e grafar o nome da Phyllomedusa sp. quanto
da diversidade dos usos que, contemporaneamente, se tem feito da sua secreção. A grafia como
kampu corresponde ao modo kaxinawá de designar as espécies de Phyllomedusa. Aos Katukina cor-
responde a grafia kampô, com acento tônico na última sílaba. Nenhum dos dois grupos tem ainda
padronizada sua grafia (um trabalho que os grupos indígenas começaram a fazer há pouco tempo
com o apoio da Comissão Pró-Índio do Acre), de modo que podem estar grafando diferentemente
um mesmo som. No que diz respeito à forma kambô, entendia-a, até pouco tempo atrás, como uma
tentativa de aportuguesamento da palavra katukina por parte dos brancos que agora estão usando
e divulgando a secreção do sapo-verde. Contudo, o antropólogo Terri Valle de Aquino (com. pes-
soal, 2005) ouviu de Raimundo Luiz (um velho yawanawá) que kambô seria a forma “antiga” como
os Katukina designavam as espécies de Phyllomedusa, a palavra inclusive consta de uma antiga
música katukina. Isso faz os fatos ainda mais interessantes, pois, neste caso, os brancos estariam
retomando a forma “arcaica” como os Katukina designavam o sapo-verde. Agradeço – evidente-
mente sem responsabilizá-los pelos erros e imperfeições – a Bia Labate e Terri Valle de Aquino a
leitura de uma versão anterior e a disponibilização de informações.
1
Iniciei minha pesquisa com os Katukina, das Terras Indígenas do rio Campinas e do rio
Gregório, no Acre, em 1991 e, desde então, passei diversas temporadas em campo.
2
Uma evidência deste consórcio entre o kampô e as cobras peçonhentas seria o fato de que,
ao contrário do que fazem com outros anfíbios, as cobras cospem o kampô, ao invés de engoli-lo.
3
Dada a fragilidade da legislação brasileira no que se refere à proteção dos conhecimentos
tradicionais – como analisam Azevedo e Moreira (2005) –, optei por omitir detalhes técnicos da
coleta da secreção do kampô. O que foi aqui registrado está amplamente difundido em outras
publicações.
4
Os Katukina mencionam ainda duas outras formas de uso do kampô. Uma delas incluía as-
pirar a secreção cristalizada. Trituravam-na e aspiravam, como se fosse rapé –, mas sem misturá-la
com tabaco. Os Katukina podiam também ingeri-la. Neste caso, o kampô era colocado dentro de
um recipiente com água e agitado. Ele expelia sua secreção dentro d’água. Então era retirado dali e
a secreção diluída em água era bebida. Atualmente, as duas formas de uso do kampô, que atendem
exclusivamente a fins cinegéticos, foram abandonadas. Velhos katukina ainda vivos dizem que
chegaram a cheirar a secreção do kampô, mas não a ingeriram. Esta última forma teria entrado em
decadência há mais tempo. Os Yawanawá também usavam cheirar e beber da secreção do kampô,
conforme Pérez Gil (1999: 93-4).
5
Para maiores informações sobre o início da difusão do uso do kampô em grandes centros
urbanos, ver Lopes (2000) e Lima e Labate (2008).
6
Agradeço ao antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias a gentileza de ter me cedido seu arqui-
vo sobre a presença do kampô na imprensa.
7
Este parágrafo resume de modo bastante breve os estudos farmacológicos feitos sobre as
propriedades das peles das espécies do gênero Phyllomedusa e reproduz as informações contidas
em Carneiro da Cunha (2005). Uma versão mais detalhada da história das pesquisas bioquímicas
sobre a Phyllomedusa bicolor pode ser encontrada em outro artigo da mesma autora, ver Carneiro
da Cunha (2009).
8
Faço referência aqui ao Projeto Kampô: integrando o uso tradicional da biodiversidade à pesquisa
científica e ao desenvolvimento tecnológico, organizado pelo Ministério do Meio Ambiente atendendo
à demanda de proteção de seus conhecimentos sobre a utilização do kampô encaminhada pelos
Katukina. A realização do referido projeto interrompeu-se entre 2007 e 2008, em virtude, entre
outras coisas, da falta de acordo com os cientistas. Sobre as repercussões do Projeto Kampô entre
os Katukina ver Martins (2006) e Lima (2009).
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TASTEVIN, Constantin. 1925. “Le fleuve Muru”. La Geographie., t. XLIII & XLIV:403-
422 & 14-35.
VENTURA, Zuenir. 2003. Chico Mendes. Crime e castigo. São Paulo, Companhia das Le-
tras.
33
Diego Soares
35
esse tema2, tem afetado mais ou menos a vida tanto dos pesquisadores como das
comunidades indígenas e tradicionais da Amazônia. Apesar do surgimento de
redes e grupos de pesquisa voltados para o entendimento dos efeitos da regula-
mentação na vida dos povos indígenas e as suas formas de agenciamento, exis-
tem poucos estudos etnográficos sobre os cientistas e as instituições governa-
mentais responsáveis pela tradução dos princípios da CDB e sua transformação
em legislações nacionais. Sabemos muito pouco sobre a prática dos pesquisado-
res que atuam nos países signatários da CDB (como o Brasil) e a forma como as
suas relações com as populações locais foram ou não afetadas3. Sabemos menos
ainda sobre como vem ocorrendo a concepção desses dois novos objetos jurídi-
co-governamentais –o “patrimônio genético” e os “conhecimentos tradicionais
associados” (CTA) – no cotidiano dos órgãos governamentais.
Neste ensaio, pretendo apresentar reflexõesinicias sobre uma etnografia re-
alizada no CGEN, no ano de 2008. Os eventos que antecederam a instituição do
CGEN já foram amplamente comentados na literatura especializada e não serão
objetos de discussão neste texto4. Da mesma forma, não pretendo avaliar ou dis-
cutir se esse órgão deveria ou não existir ou como ele deveria ser, mas apresentar
ao leitor uma descrição etnográfica do seu funcionamento e contribuir, desta
forma, para um melhor entendimento da maneira como os princípios da CDB
vêm sendo traduzidos e aplicados pelo governo brasileiro.
Este estudo etnográfico se insere em uma reflexão mais ampla sobre as
formas modernas de governamentalidade5. Pretendo descrever os elos media-
dores que permitem a transposição do mundo “lá fora” para o mundo interno
do Conselho, onde as diretrizes são concebidas e as autorizações concedidas.
Veremos aqui que essa transposição envolve um deslocamento de sentidos per-
meado por práticas de tradução que objetivam a realidade de forma a confor-
má-la à lógica da governamentalidade, transformando uma multiplicidade de
objetos – plantas, extratos, enzimas, saberes e práticas culturais – em objetos
jurídico-governamentais: o “patrimônio genético” e os “conhecimentos tra-
dicionais associados”. Nesse processo, como veremos, atuam diversos atores
humanos e não-humanos em um movimento de transformação/translação por
meio do qual a relação históricaentre pesquisadores brasileiros e comunidades
locais vê-se reescrita em documentos que circulam no CGEN. Esse movimento
permite que essa instituição possa agir à distância – da mesma forma que as
Centrais de Cálculo mencionadas por Latour (2000) – ao fornecer os elementos
necessários para a invenção jurídico-governamental da regulamentação e dos
objetos que estão sendo regulamentados.
Este ensaio foi escrito a partir da proposta de seguir as associações que nos le-
vam de uma localidadepara outras localidades,tempos eagências. Essa atividade
36
O Plenário do CGEN
Além de conceber as suas diretrizes, o CGEN precisa aplicá-las em casos
concretos que são analisados nas plenárias. Essas reuniões costumam ocorrer
uma vez por mês, na sede da instituição, em Brasília. Participam dessas reuniões
os membros do Conselho6, a equipe técnica do Departamento de Patrimônio
Genético e uma pequena plateia composta por pesquisadores, empresários e pes-
soas interessadas no tema. A nossa história tem início em uma dessas plenárias,
mais precisamente, em uma reunião realizada em 2008.
Entre os processos que estavam sendo avaliados nessa plenária, encontramos
o nosso fio de Ariadne: um pedido de autorização de acesso ao “Patrimônio
Genético” e ao “Conhecimento Tradicional Associado” para fins de bioprospecção
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38
***
perpassam todas essas redes (plantas, substâncias, enzimas etc.), elementos não-
-humanos que geralmente são percebidos como simples coadjuvantes. Ao anali-
sar essa cena, que retrata uma reunião do Conselho, percebemos a importância
dos textos e documentos na constituição do sujeito-conselheiro: esses materiais
fazem parte da performance burocráticaque os constituem enquanto sujeitos de
um determinado tipo. Da mesma forma que o homo-economicus existe de fato,
mas não como um agente não-histórico e, sim, como o resultado de um processo
de configuração8, podemos dizer que os atores governamentais não são entida-
des abstratas, mas subjetividades construídas em rede. Isso significa que com-
petênciaou capacidade são qualidades adquiridas por meio da incorporação de
plug-ins que nos permitem ver e ter uma opinião sobre determinado assunto9.
Sem os instrumentos de coleta, processamento, cálculo e inscrição das informa-
ções, os atores são incapazes de planejar e decidir sobre fenômenos que estão
distantes do lugar onde as suas decisões são tomadas e qualquer ação organizada
seria impossível (Callon 2002: 191). Um aspecto importante que caracteriza o
papel desempenhado pelos conselheiros e pelos documentos é que eles são, si-
multaneamente, apenas um elo numa rede mais ampla de coisas e pessoas, como
também a expressão da rede em ação, em um tempo-espaço determinado.
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Conselho (2001-2008). Essa história já havia sido repetida muitas vezes a ponto
de se tornar uma espécie de mito de origem da “regulamentação” e auxiliava-a a
traduzir em poucas palavras eventos que ocorreram antes e que, de certa forma,
explicavam a sua presença naquele congresso.
Assim que finalizou a sua fala, a funcionária teve que responder a uma série
de questionamentos sobre a validade da legislação e do próprio Conselho. Ao
mesmo tempo em que buscava defender o seu trabalho e a atuação dos seus
colegas do DPG, sabia, pessoalmente, das contradições existentes na legislação
e compreendia a recepção hostil doscientistas. Enquanto ouvia o relato de pes-
quisadores sobre situações absurdas vivenciadas por eles na relação com o que
chamavam “burocracia governamental”, a funcionária mal conseguia esperar o
momento de voltar para Brasília. Afinal, o que ela poderia fazer para responder
ou mudar a situação? No seu mundo, que também é o mundo do CGEN, os
técnicos deveriam atuar como técnicos, aplicando as diretrizes sem questioná-
-las. Por outro lado, esses personagens ocultos da máquina estatal continuavam
tendo que dar conta de demandas políticas, inquietações e divergências éticas
além de sua competência.
***
43
o “CTA” – para um público composto por pessoas que falam outras línguas e
vivem em mundos diferentes.
Assim, existem três pontos que eu gostaria de observar sobre os eventos
descritos nos parágrafos anteriores. O primeiro é que os documentos não são
os únicos instrumentos utilizados para objetivar eventos, coisas e pessoas. No
caso das oficinas de consulta pública que acompanhei, a peça de teatro aju-
dou os técnicos do DPG a expressar um evento fictício que, de certa forma,
representa uma espécie de mito de origem da regulamentação do acesso: a
biopirataria. Apesar de regras e diretrizes serem elaboradas para regulamentar
as situações de acesso, elas são concebidas tendo como referência situações
hipotéticas. A peça foi construída a partir de uma generalização do que seria a
dinâmica de produção e circulação de saberes nas comunidades, tendo como
referência um modelo tão abstrato quanto a noção de CTA. A questão é que o
processo governamental trabalha com a necessidade de produção de regras e
diretrizes universais, o que só é possível com a redução dessa complexidade a
partir de convenções usadas na construção de modelos gerais como cronolo-
gias e peças de teatro.
O segundo ponto que eu gostaria de chamar a atenção é a questão da lingua-
gem. Estamos diante de uma situação em que a diferença linguística se cons-
tituino principal obstáculo para a comunicação entre mundos tão distantes e
diferenciados. As categorias jurídicas utilizadas na elaboração das leis e dire-
trizes são de difícil entendimento tanto para os povos indígenas e tradicionais
como para os cientistas, o que nos remete, novamente, ao movimento duplo de
tradução das noções jurídicaspara as noções nativase vice-versa. Isso nos conduz
a uma abordagem ontológica dos fenômenos descritos tanto na legislação como
nos espaços-tempos em que os projetos estão sendo conduzidos.
O terceiro ponto que eu gostaria de expor é que estamos diante da emergência
de um novo contexto histórico com impacto tanto na vida dos cientistas como
na vida dos povos indígenas e tradicionais. Trata-se de um evento crítico(Das
1995)permeado pelo surgimento de novos coletivos e pela reformulação da for-
macomo a relação entre esses povos e os pesquisadores é pensada tanto pelos pri-
meiros como pelos últimos. Não podemos projetar a ideia de que a instituição de
formas de repartição de benefícios está ocorrendo em um espaço vazio e sem pre-
cedentes, pois isso implicaria desconsiderar a existência de práticas anteriores
de reciprocidade (negativa e positiva) entre pesquisadores e populações locais.
A questão, portanto, consiste em pensar como esse contexto permite uma refor-
mulação dessas práticas a partir de um processo de assimilação-transformação
de regimes de objetivação-subjetivação tanto dos povos indígenas e tradicionais
como dos pesquisadores. Este ensaio foi escrito a partir do pressuposto simétrico
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que a melhor forma de fazer isso é a partir de uma abordagem etnográfica tanto
dos sistemas nativos10 como das instituições responsáveis por conceber e aplicar
o novo marco regulatório.
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achou melhor se adaptar à nova legislação. A única solução era estudar toda
aquela documentação nas próximas semanas e tentar conduzir ele mesmo os
procedimentos burocráticos.
O pedido de autorização só foi enviado ao CGEN dois meses depois, após inú-
meras reformulações do pedido inicial, processo que ocorreu a partir de uma troca
de e-mails com o técnico responsável pela tramitação do “processo” no DPG. O
primeiro formulário enviado ao CGEN era referente à pesquisa científica e teve
que ser alterado para o formulário para atividades de bioprospecção. O Termo de
Anuência Prévia (TAP) também teve que ser refeito tendo em vista as diretrizes
da Resolução nº 06. E, para piorar ainda mais a situação, quando ele achava que já
estava tudo encaminhado, recebeu um comunicado do DPG avisando que ainda
faltavam três coisas importantes: as escrituras dos terrenos onde as coletas seriam
realizadas; os dois contratos de repartição de benefícios (um com a União e o ou-
tro com a comunidade provedora de CTA); e um laudo antropológico atestando
que a anuência prévia foi realizada conforme o que estabelece a legislação.
Com as novas requisições apresentadas pelo técnico do DPG, o pedido de
autorização do nosso pesquisador foi, aos poucos, transformando-se numa ver-
dadeira epopeia. O primeiro impasse é que as terras ocupadas pela comunidade
não eram escrituradas, algo muito comum na Amazônia. Apesar das pessoas
viverem lá há quase um século, a sua situação fundiária nunca foi regularizada.
Outro problema é que os únicos antropólogos existentes em um raio de mil qui-
lômetros eram aqueles que trabalhavam na própria instituição do pesquisador.
As diretrizes do CGEN eram claras sobre esse ponto: o laudo precisava ser reali-
zado por uma instituição independente. Por último, havia a questão dos contra-
tos, afinal, como estabelecer critérios de repartição de benefícios se as atividades
de bioprospecção ainda não haviam sido realizadas, pois a coleta das plantas só
poderia ocorrer após a autorização do Conselho. Todos esses obstáculos levaram
o professor a pedir mais 120 dias de prazo para o DPG.
Finalmente, após um mês de procura, o requerente conseguiu uma ONG
para realizar o laudo, mas ainda teve que negociar com o CNPq modificações no
orçamento enviado para essa instituição. O problema é que o edital não previa a
realização de laudos antropológicos e os recursos levaram algumas semanas para
serem liberados. Enquanto isso, o professor se dedicou à elaboração dos con-
tratos e tentou resolver o impasse das terras. Em agosto de 2007, o pesquisador
teve que pedir um novo prazo para o DPG, pois o Laudo indicou que a anuência
não foi realizada segundo as diretrizes do CGEN e uma nova expedição para a
comunidade teve que ser programada.
A epopeia do nosso pesquisador continuou por mais alguns meses. A situação
fundiária das terras onde as plantas seriam coletadas era completamente irregular
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A última cena descrita neste ensaio expressa de forma clara que todo pedido
de autorização envolve um movimento de “enquadramento” do real de maneira
a fazer com que se encaixe nos limites impostos pelos formulários, resoluções e
decretos emitidos pelo CGEN. Os chamados “usuários” do Conselho compõem
o seu pedido de autorização a partir de uma tradução da sua pesquisa a partir
dessas diretrizes, adaptando as suas intenções conforme as regras e os procedi-
mentos emitidos por esse órgão, da mesma forma que traduzem seus interesses
científicos para concorrer aos editais governamentais. Ao analisar a dinâmica
de funcionamento do CGEN, percebemos que esta instituição possui algumas
características que a tornam muito parecida com o que poderíamos entender
como um “laboratório governamental”, pois os objetos da regulamentação ainda
não se encontram estabilizados e os técnicos e conselheiros precisam conceber
e executar suas diretrizes simultaneamente. Por outro lado, tem características
que o tornam semelhante a uma instituição jurídica, tornando a capacidade de
transformação da suas diretrizes, a partir de casos exemplares, tão lenta e come-
dida quanto os tribunais de justiça.
Neste caso, por parte dos usuários, percebemos a emergência de táticas usadas
para formatar a multiplicidade do real de maneira a fazê-la cabernas diretrizes
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ser recombinados de forma a construir novos artefatos. Todos esses atores exer-
cem suas traduções e deliberações a partir do saber-fazer adquirido durante suas
trajetórias. Sem dúvida nenhuma, eles manipulam os artefatos que estão à sua
disposição de forma a explorar as brechas existentes na legislação. Mas precisam
fazer isso em associação com outros atores humanos e não-humanos e conforme
as convenções predominantes na sociedade brasileira, o que torna a sua agência
compósita e a sua ação coletiva.
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Notas
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15. Para ver outros contextos empíricos nas quais a relação entre atores humanos e documen-
tos é objeto de uma análise antropológica, ver Annelise Riles (1998), Yael Navaro-Yashin (2007) e
Mariza Peirano (2009).
16. Ver: Henderson, 1991; Harvey e Chrisman, 1998; Wilson e Herndl, 2007; Swan et al.,
2007; Meyer, 2009. Uma revisão bibliográfica completa dos diferentes usos da noção de “objeto-
-fronteira” pode ser encontrada em Trompette e Vinck (2009).
17. A noção de híbrido tem sua origem no latim – hibrida – e significa coisas que são hetero-
gêneas na sua origem e composição. O híbrido é uma unidade heterogênea, ou seja, composta por
partes que não se misturam. Sobre os diferentes usos que tem sido feito dessa noção na biologia e
nas ciências sociais, ver Stross (1999); na Actor-Network-Theory, ver Callon e Law (1995).
58
Referências
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José Pimenta
Guilherme Fagundes de Moura
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homens. Para dar prosseguimento à sua obra, Pawa outorgou poderes sobrena-
turais a seus filhos deixados na terra. Com tais poderes, esses demiurgos asha-
ninka, chamados genericamente tasorentsi, continuaram a obra do Deus-Criador,
dando ao mundo terrestre seu aspecto atual. Nos primórdios da Humanidade,
não existiam animais, nem árvores, foram os tasorentsi que transformaram alguns
ashaninka em animais, plantas, rios, lagos, montanhas e completaram a Criação.
Segundo o índio Shomõtse, Nawiriri era um desses tasorentsi, filhos de Pawa,
que transformou várias pessoas em vegetais e animais, entre elas, o murmuru.6
O mito conta que um dia, Nawiriri foi passear carregando seu netinho nas cos-
tas. Durante o passeio, alguns ashaninka se apresentavam com uma aparência
física fora do comum e atraíam a curiosidade da criança que perguntava ao avô:
“Txarini [vovô], o que é isso?”. O avô respondia às perguntas transformando es-
ses humanos em árvores ou animais conforme sua aparência física e justificava
essas transformações. Ao longo do passeio, Nawiriri e seu neto se depararam
com um ashaninka que, ao contrário dos outros, tinha uma profusa barba que
deixava crescer. Ao encontrar esse humano de aparência tão diferente, o menino
surpreso perguntou novamente ao avô o que era aquilo. Nawiriri questionou o
ashaninka barbudo sobre as razões pelas quais ele usava barba. Como resposta,
ouviu que era simplesmente por gosto pessoal. Nawiriri considerou que o uso da
barba não era um modo adequado para os Ashaninka e acrescentou que, a par-
tir daquele momento, transformaria eternamente aquele humano em murmuru
para servir os Ashaninka que passariam a fazer grande uso de seu novo corpo,
alimentando-se, por exemplo, de seu cérebro (coco).7
Assim, para os Ashaninka, o murmuru não é apenas um vegetal, mas um
de seus antepassados transformado nessa espécie de palmeira pelo tasorentsi
Nawiriri. Os espinhos do murmuru são a materialização da barba desse antigo
ashaninka, e o coco da palmeira é considerado seu cérebro. A espécie não é sem-
pre apreciada pelos índios. Dizem, por exemplo, que os espinhos do murmuru
são perigosos ou que pode ser uma verdadeira praga que invade os roçados ou
dificulta as saídas na floresta. No entanto, como antigo ashaninka, transforma-
do em vegetal para o bem dos humanos, o murmuru, como muitos animais e
vegetais, carrega um sentido especial para os índios. Foi criado para servir os
humanos e exige respeito e cuidados. Assim, os Ashaninka dizem que o murmu-
ru “possui espírito” e que deve ser tratado com respeito. Não temos informações
de prescrições relativas à coleta do murmuru, como existem, por exemplo, em
abundância, em relação à caça. No entanto, os Ashaninka do rio Amônia afir-
mam que se deve sempre evitar “estragar o murmuru” e coletá-lo de “forma
direita”, ou seja, sem exageros e aproveitando-o ao máximo.8
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loção contra a caspa, hidratante para a pele etc.12 O fruto maduro também é usa-
do para a confecção de colares.
Assim, além de usarem o murmuru para diferentes usos alimentares (larvas,
lagartos e coco), os Ashaninka do rio Amônia também conferem tradicional-
mente a seu óleo, obtido de diversas formas, uma série de propriedades com
finalidades cosméticas e medicinais. O óleo do murmuru é utilizado pelos índios
como um tipo de sabonete, inclusive, com propriedades medicinais: bom para a
pele e para os cabelos, capaz de cicatrizar feridas, combater a caspa etc. Algumas
das propriedades do murmuru foram comprovadas por análises laboratoriais
decorrentes de uma pesquisa realizada na Terra Indígena do Rio Amônia na
década de 1990. Essa pesquisa está na origem da controvérsia judicial em torno
do sabonete de murmuru.
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próprio Prof. Daniel Barrera-Arellano. Foi justamente esse pesquisador que as-
sinou os Laudos de Análise Físico-Química de Óleos Extraídos e Amêndoas e
Sementes, solicitados pelo Centro de Pesquisa Indígena (CPI) e elaborados pelo
Laboratório de Óleos e Gorduras (FEA/Unicamp), em 1994, ou seja, dois anos
após o início da pesquisa de Fábio Dias junto aos Ashaninka. Além disso, Fábio
Dias, assim como várias pessoas que trabalhavam para a Chemyunion, foram
alunos do Prof. Barrera-Arellano.26
A alegação da Natura, por sua vez, chama a atenção para a controvérsia dos
chamados “conhecimentos difusos” e a complexidade de definição jurídica do
“conhecimento tradicional.” Seu argumento de defesa se apoia nas nebulosi-
dades da legislação vigente no que tange aos conhecimentos simultaneamente
compartilhados por mais de uma comunidade ou de um povo indígena. Os ad-
vogados da empresa defendem que o murmuru não foi (e não é) coletado apenas
no território ashaninka, mas também em outras comunidades da região, de tal
forma que, ao indenizar os indígenas por um “conhecimento difuso”, abrir-se-
-iam brechas na jurisprudência para que outras comunidades (neste ou em ou-
tros casos) acionem o mesmo dispositivo jurídico. A empresa nega não apenas
ter alguma relação com os Ashaninka, como também qualquer envolvimento no
caso, uma vez que nunca esteve na terra indígena e que sua “descoberta cientí-
fica” teria se apoiado exclusivamente em estudos internos, realizados por pes-
quisadores da Natura Inovação e Tecnologia de Produtos LTDA, a partir da
literatura científica disponível. Como principal fonte de informação, a empresa
cita um artigo de Barrera-Arellano e Mambrin, publicado em 1997, sobre óleos
de várias espécies de palmeiras da Amazônia brasileira, entre elas e murmu-
ru. Além de condensar os resultados de obras e estudos anteriores, esse artigo
também informa a presença, em grande quantidade, de ácidos graxos saturados
na castanha de murmuru (Barrera-Arellano e Mambrin1997), o que compro-
varia sua ação emoliente. Segundo os advogados da Natura, essas informações
foram suficientes para subsidiar o processo criativo dos cientistas da empresa.
Coincidência ou não, como no caso da Chemyunion, encontramos novamente o
elo de ligação entre a Natura e os Ashaninka na pessoa do Prof. Barrera-Arellano
da Unicamp que analisou as amostras oriundas da Terra Indígena Kampa do rio
Amônia.
Assim, Fábio Dias e os outros réus afirmam recorrentemente que o uso
do murmuru na indústria cosmética não deve nada aos Ashaninka, sendo um
produto exclusivo de pesquisas laboratoriais, cujos principais resultados es-
tão disponíveis na literatura especializada. O livro de Celestino Pesce (1985)
é a referência básica. Originalmente publicado em 1941, essa obra apresenta
descrições botânicas, taxonômicas e físico-químicas de plantas com elevadas
84
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Considerações finais
Baseado na Medida Provisória de 2001, o MPF ressalta que não é somente
o acesso direto ao conhecimento tradicional que dá ensejo à partilha dos re-
sultados econômicos, mas também o acesso indireto. Dessa forma, conside-
ra que os resultados das análises laboratoriais realizadas pelo Laboratório de
Óleos da Unicamp, a pedido do CPI quando da realização da pesquisa junto aos
Ashaninka, serviram como base para as conclusões do Prof. Dr. Daniel Barrera-
Arellano e foram disponibilizados por ele e por Fábio Dias, e apropriados tam-
bém pela Chemyunion e pela Natura, sem o conhecimento e o consentimento
dos índios, contrariando contratos e acordos preestabelecidos.28
É importante frisar que os Ashaninka do rio Amônia não se opõem a parti-
lhar seus conhecimentos e também nunca reivindicaram possuir uma sabedo-
ria exclusiva sobre o murmuru e suas propriedades. Essa palmeira é usada por
populações ribeirinhas da Amazônia e, provavelmente, embora não tenhamos
informações a esse respeito, por outras populações indígenas da região. Assim, o
uso do murmuru é bastante disseminado e pode ser considerado um “conheci-
mento difuso”. As propriedades de seu óleo também foram registradas há mais
de meio século na literatura científica. No entanto, para os Ashaninka, existe
uma ligação direta entre a pesquisa realizada na primeira metade da década de
1990 na Terra Indígena Kampa do rio Amônia e o aproveitamento do óleo da
castanha de murmuru na indústria cosmética com a comercialização do contes-
tado sabonete.
Considerando que os índios foram os empreendedores da pesquisa, o MPF
também alega que, em termos jurídicos, a questão problemática do acesso inde-
vido aos conhecimentos tradicionais desse povo indígena, embora importante,
é somente uma das dimensões do litígio. Desconsiderando-se a problemática
do “conhecimento tradicional” e sua precária definição e regulamentação na
legislação, levando-se em consideração apenas o processo produtivo, a Lei nº
9.279/96, que regula os direitos relativos à propriedade industrial, já garantiria
por si só aos Ashaninka, como empreendedores, direito à titularidade das paten-
tes solicitadas pelas empresas. Ao lutar por seus direitos, os Ashaninka querem
que seja reconhecido seu protagonismo no processo criativo que iniciou com a
pesquisa que empreenderam em seu território e que usou seus conhecimentos
sobre o meio ambiente.
No momento em que redigimos este artigo, o imbróglio jurídico em torno do
sabonete de murmuru continuava. A audiência realizada no dia 17 de fevereiro
de 2009, na 3ª Vara da Justiça Federal no Acre, com a presença dos líderes da
Apiwtxa, dos advogados da Natura, da Chemyunion, e de Fábio Fernandes Dias,
86
terminou sem acordo entre as partes. O juiz chegou a propor que as contrapar-
tidas das empresas que requereram as patentes fossem transformadas em bens
materiais: barcos, motores fluviais etc. Os Ashaninka e o procurador recusaram
a proposta. Em seu depoimento, Moisés Piyãko reafirmou a posição da Apiwtxa
e procurou mostrar ao juiz que não estavam mendigando ou buscando uma sim-
ples indenização financeira, mas que se tratava de uma luta pela conquista e
pelo reconhecimento público de um direito legítimo e juridicamente embasado
(Schettino 2009).
Lembramos, ainda, que o murmuru não foi a única espécie pesquisada du-
rante a parceria Apiwtxa/CPI. Como vimos, essa pesquisa levantou informações e
catalogou dezenas de espécies vegetais com potencial econômico. Os Ashaninka
solicitaram que todos os dados sobre o mapeamento etnobotânico oriundos des-
sa pesquisa, que estão atualmente em posse do pesquisador Fábio Dias, também
sejam restituídos à comunidade indígena.
A luta dos Ashaninka do rio Amônia e a controvérsia gerada pela comercia-
lização do sabonete de murmuru não constituem um caso isolado. A afirmação
dos povos indígenas na cena política nacional e internacional nas duas últimas
décadas tem sido acompanhada por crescentes reivindicações dessas populações
contra o patenteamento de seus conhecimentos coletivos ou o uso indevido de
seu patrimônio genético. Embora seja um importante instrumento, a legisla-
ção atual baseada na Convenção sobre a Diversidade Biológica e na Medida
Provisória n° 2.186-16/2001 constitui uma proposta genérica e muitas vezes des-
conectada da complexa realidade social. Muitas questões ainda necessitam uma
reflexão mais aprofundada. Por exemplo, como definir a noção de “conhecimen-
to tradicional”? Como garantir direitos coletivos num regime jurídico baseado
na propriedade individual? Essas são apenas algumas das principais questões
desse complexo campo. Enquanto isso, a indústria de biotecnologia multiplica
suas pesquisas. A partir de informações mínimas obtidas junto às populações
indígenas ou tradicionais, a ciência ocidental estabelece linhas prospectivas di-
recionadas e obtém resultados exitosos, pois, nessas informações mínimas, mui-
tas vezes já se tem um dado fundamental que leva a resultados finais inéditos.
Assim, informações vindas de povos indígenas continuam levando a inventos
industriais e ao registro de patentes no sistema ocidental de propriedade intelec-
tual que desconhece a figura jurídica de “direitos coletivos”. Os índios perma-
necem excluídos dos frutos desse processo ou, na melhor das hipóteses, recebem
migalhas de lucros bilionários.
A controvérsia em torno do sabonete de murmuru é um dos vários exemplos
envolvendo acesso aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, uma
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problemática cada vez mais presente nas relações interétnicas no início do sé-
culo XXI (Ávila 2005). De modo crescente, a biotecnologia aparece como uma
nova fronteira de exploração que atinge esses povos, transformando seus co-
nhecimentos tradicionais e até seu patrimônio genético em mercadoria (Ramos
2006). Além do murmuru, outros casos tiveram repercussões na mídia nacional
nos últimos anos. Podemos citar rapidamente e sem pretensão à exaustividade
a utilização de amostras de sangue dos Yanomami e dos Karitiana de Rondônia
(Tierney 2000; Vander Velden 2004), o uso do kampô dos Katukina (Lima 2005;
Martins 2006) ou de plantas medicinais dos Krahô e Wapichana para o desen-
volvimento de produtos farmacológicos (Ávila 2004; 2006). Muitas vezes descri-
tos pela imprensa e pelos próprios índios como exemplos de biopirataria, muitos
desses casos apresentam grande complexidade antropológica e jurídica. Se a luta
contra a biopirataria constitui um dos raros campos em que os interesses indíge-
nas e nacionais convergem (Ramos 2006; Ávila 2005), a questão não diz apenas
respeito à cobiça estrangeira sobre a biodiversidade amazônica. O sabonete de
murmuru, por exemplo, é apresentado pelos Ashaninka e pelo MPF como um
caso de biopirataria envolvendo empresas e instituições públicas nacionais.
Privilegiando relatar a complexidade de um caso etnográfico, não nos cabe
proferir um juízo que depende de apreciação jurídica além do nosso alcance.
Buscamos simplesmente resgatar a história da produção e comercialização desse
sabonete, principalmente a partir da visão dos índios, apoiada pelo MPF, mas
também procurando apresentar as posições das empresas envolvidas. Contra as
tentativas purificadoras da ciência, essa história nos levou a mapear caminhos
sinuosos e relações embaralhadas que apontam para uma ligação, direta ou indi-
reta segundo os casos, entre os Ashaninka do Amônia e o sabonete de murmuru.
Qual é afinal o lugar desse povo indígena no processo inventivo que levou à pro-
dução do sabonete de murmuru? Estariam os Ashaninka condenados a desem-
penhar eternamente o papel de “informantes” de pesquisadores, vendo seus co-
nhecimentos apenas considerados como “matéria-prima” da ciência ocidental?
88
Notas
1
Os direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais passaram a ser resguardados
por dois artigos da CBD. O artigo 8j prevê a salvaguarda dos direitos de propriedade intelectual
coletiva indígena ou tradicional, com a aprovação da comunidade e com uma futura repartição
equitativa dos benefícios adquiridos com a comercialização de produtos derivados do conheci-
mento tradicional. Já o artigo 10c sensibiliza para que o incentivo à utilização costumeira dos
recursos biológicos se dê em coerência com as práticas tradicionais e culturais de cada povo (San-
tilli 2005).
2
Ver, por exemplo, Antunes (2002), Santilli (2005), Belfort (2006) e Carneiro da Cunha (2009).
3
Os Ashaninka integram o conjunto etnolinguístico dos Arawak subandinos e, em termos
populacionais, são um dos principais povos indígenas das terras baixas. A grande maioria vive na
Amazônia peruana. Os Ashaninka do rio Amônia habitam a Terra Indígena Kampa do rio Amônia
na região do Alto Juruá, Estado do Acre. Nesse território, vivem cerca de 450 pessoas, concentra-
das na aldeia Apiwtxa e nos seus arredores. A palavra apiwtxa pode ser traduzida para o português
como “todos juntos” ou “todos unidos” e também é o nome da associação indígena local.
4
Nesse quesito, além da própria peça jurídica da Justiça Federal (Processo nº
2007.30.00.0002117-3), também as notas técnicas e, sobretudo, o laudo pericial do analista em
antropologia Marco Paulo Schettino foram de fundamental importância para a confecção deste
trabalho.
5
As informações a seguir sobre o significado e usos do murmuru entre os Ashaninka do rio
Amônia são intencionalmente genéricas e incompletas. Os recentes envolvimentos da associação
Apiwtxa nas instâncias jurídicas solicitando, por exemplo, a quebra de patentes de produtos que
consideram oriundos de seus conhecimentos tradicionais fortaleceram o ethos reservado dos Asha-
ninka; um povo muito cauteloso para falar de aspectos relacionados ao xamanismo, à mitologia e
à medicina tradicional. O receio de disseminar seus conhecimentos se acentuou nos últimos anos
com o surgimento da real possibilidade de uma apropriação indevida do que eles consideram
parte de seu patrimônio cultural. Por outro lado, os Ashaninka também entenderam que a defesa
de seus direitos na Justiça passava, obrigatoriamente, pela necessidade de explicar e demonstrar
para os brancos as razões pelas quais eles consideram que o sabonete produzido à base de gordura
de murmuru é uma apropriação indevida de seus conhecimentos tradicionais. As informações que
retomamos aqui tornaram-se públicas com o Processo Judicial nº 2007.30.00.002117-3, atualmen-
te em tramitação na Justiça Federal.
6
O “mito do murmuru” foi recolhido pela primeira vez pelo antropólogo José Pimenta em
janeiro de 2007. Foi contado em língua ashaninka pelo índio Shomõtse, o morador mais idoso da
aldeia Apiwtxa que afirmou ter ouvido o relato de seu avô. Em maio de 2007, durante sua viagem
a campo para realização da perícia para o MPF, o antropólogo Marco Paulo Schettino recolheu
uma versão semelhante desse mito (Schettino 2007:32). Em ambas as ocasiões, a tradução para o
português foi feita por Moisés Piyãko.
7
A analogia com a barba deve-se às características próprias do tronco do murmuru que, dife-
rentemente de outras palmeiras, apresenta placas justapostas recobertas de longos espinhos pre-
tos. Os Ashaninka consideram o uso da barba um costume inadequado e socialmente reprovado.
Sinônimo de sujeira, de falta de cuidado, a pilosidade do rosto é também uma característica do
89
branco e se opõe, por exemplo, à beleza dos desenhos faciais indígenas feitos com urucum. Os ho-
mens ashaninka que possuem uma pilosidade maior arrancam sistematicamente os pelos do rosto.
8
A mesma ética rege a caça (Pimenta 2005).
9
O murmuru é apenas um exemplo da complexidade da concepção ashaninka do “meio am-
biente” e da riqueza dos conhecimentos nativos a ele associado. O livro de Lenaertz (2004) oferece
uma excelente ideia dessa complexidade e riqueza.
10
Essas larvas não são exclusivas do murmuru. Segundo os Ashaninka, o pachori, por exem-
plo, também é encontrado na casca da mandioca e no mamão.
11
Segundo Schettino (2007:38), que testemunhou o uso do tchouitz para esse fim, o método é
motivo de muita diversão quando usado em público.
12
O óleo também pode ser obtido pela mastigação da castanha do murmuru até se obter uma
pasta oleosa que será, em seguida, passada no corpo.
13
Sobre a trajetória dos Ashaninka no mercado de projetos sustentáveis, ver Pimenta (2005;
2007; 2010).
14
Além da parceria com a Apiwtxa, podemos mencionar, por exemplo, um projeto do CTI
com os Ashaninka e Kaxinawá do rio Breu para o manejo da caça.
15
A antropóloga Margarete Mendes defendeu sua dissertação de Mestrado em Antropologia
na Unicamp. Sua pesquisa etnográfica versa sobre o ritual do piyarentsi e constitui o primeiro
trabalho acadêmico realizado com os Ashaninka no Brasil (Mendes1991). Como antropóloga, no
final da década de 1980 e início da década de 1990, Mendes teve uma atuação muito importante na
defesa dos direitos dos Ashaninka do rio Amônia. Apesar de divergências posteriores em torno do
sabonete de murmuru, os índios nunca deixaram de reconhecer o valor do apoio da antropóloga,
principalmente, na luta pela demarcação de seu território, reconhecido pela Funai em 1992.
16
Além do projeto com os Ashaninka, o programa do CPI na região do Alto Juruá contava
com dois outros projetos: um de incentivo à produção de couro vegetal, desenvolvido com os ín-
dios Yawanawá do rio Gregório, Kaxinawá do rio Jordão e com os seringueiros da Reserva Extrati-
vista do Alto; o outro, de monitoramento da fauna implementado com os Ashaninka e Kaxinawá
do rio Breu.
17
Segundo os índios, inicialmente, pensou-se na instalação da fábrica no município de Mare-
chal Thaumaturgo, situado na boca do rio Amônia e mais próximo da terra indígena, mas a peque-
na cidade não oferecia infraestrutura adequada. O investimento financeiro foi essencialmente de
Fábio Dias. Não temos informações sobre a existência de aporte financeiro da antropóloga no em-
preendimento. A empresa foi oficialmente registrada com o nome Fábio F. Dias ME, tendo como
nome fantasia Tawaya sabonetes. Usaremos aqui esse nome fantasia por ser muito mais conhecido.
18
Essa foi a primeira e única vez que os Ashaninka venderam a castanha de murmuru para
Tawaya.
19
No sítio francês <http://www.amazon-vie.com/produits-murmuru.html>, por exemplo, o
sabonete de murmuru é vendido a € 5,50 e a versão líquida a € 4,85. (página acessada em 27 de
julho de 2010).
20
As informações sobre a Tawaya contidas nestes três últimos parágrafos resultam de pes-
quisas na internet, principalmente de um vídeo de propaganda da própria empresa que pode ser
consultado no sítio mencionado na nota anterior. Embora o sítio esteja em francês, o vídeo, de
um pouco mais de sete minutos, tem áudio em português e apresenta um pouco da história e da
atuação da empresa. Cabe frisar que, no decorrer do ano de 2010, o sítio da Tawaya deixou de apre-
sentar informações sobre a empresa. Após um longo período indisponível, o endereço http://www.
tawaya.com.br passou a informar a seus clientes e fornecedores que a Tawaya tinha encerrado suas
atividades de fabricação de sabonetes e óleos em 30 de abril de 2009 (página consultada em 5 de
dezembro de 2010). No entanto, a comercialização de sabonetes continuou. Além do sítio francês
acima mencionado, sabonetes de murmuru da Tawaya continuavam sendo vendidos, por exemplo,
na loja de Fábio F. Dias, no Mercado Municipal de Cruzeiro do Sul, no final de novembro de 2010,
ao preço de R$ 2,50 cada.
90
21
Essa estratégia política maior em defesa de um amplo programa de desenvolvimento re-
gional sustentável já estava presente na parceria entre o CPI e a Apiwtxa, cujo objetivo geral era,
a partir da pesquisa realizada na Terra Indígena Kampa do rio Amônia, ampliar seus resultados
para beneficiar outras populações da bacia do Juruá. Essa característica tem sido uma constante na
política interétnica da Apiwtxa nos últimos vinte anos. Os Ashaninka entendem que uma solução
duradora para garantir a sustentabilidade de seu território passa, obrigatoriamente, pela oferta de
alternativas econômicas sustentáveis para seus vizinhos (Pimenta 2007; 2010).
22
A existência desse documento permanece um mistério. A informação de um acordo escrito
regulamentando a repartição dos benefícios foi categoricamente refutada por Fábio Dias e Marga-
rete Mendes em entrevista ao antropólogo José Pimenta em 2000 e, posteriormente, em juizado.
Alegam que a Apiwtxa nunca teve nenhum tipo de direito legal sobre os benefícios da empresa.
Por sua vez, Moisés Piyãko garante ter assinado um documento que definia as modalidades da
criação da empresa, mas fornece informações imprecisas sobre os termos exatos desse documento,
o que não deve ser surpreendente considerando que o mesmo, principalmente na época, era pre-
cariamente alfabetizado e pouco familiarizado com a burocracia estatal.
23
Criado pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, o Fundo de Defesa de Direitos Difusos
(FDD) tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a
bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem
econômica e a outros interesses difusos e coletivos.
24
Os primeiros relatórios apontam o óleo de copaíba como um produto com potencial comer-
cial importante. No entanto, essa opção será rapidamente abandonada porque os Ashaninka não
conseguiram desenvolver um método capaz de extrair o óleo sem a derrubada das árvores.
25
Na realidade, a parceria efetiva entre a Apiwtxa e o CPI já estava concluída em dezembro de
1995. A etapa seguinte foi a criação da Tawaya, fundada em 31 de outubro de 2006.
26
Entre esses alunos, estão Márcio Polezel, um dos sócios da Chemyunion, e Cecília Noguei-
ra, Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa.
27
A revista Grasas y Aceites é uma publicação do Instituto da La Grasa de Sevilha – Espanha,
que desenvolve pesquisas na área de biotecnologia com plantas oleaginosas. Para mais informa-
ções, ver: http://grasasyaceites.revistas.csic.es/index.php/grasasyaceites e http://www.ig.csic.es/
pre.html.
28
Tanto a Chemyunion como a Natura também são acusadas de acessar o patrimônio bioló-
gico brasileiro sem autorização do órgão competente e sem o pagamento de qualquer quantia aos
titulares desse patrimônio (a coletividade difusa de cidadãos brasileiros).
91
Referências
92
MENDES, Margarete K.. 1991. Etnografia preliminar dos Ashaninka da Amazônia bra-
sileira. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Estadual de
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_________. 2005. ”Desenvolvimento Sustentável e Povos Indígenas: os paradoxos de
um exemplo amazônico”. Anuário Antropológico, 2002/2003:115-150.
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VANDER VELDEN, Felipe. 2004. Por onde o sangue circula: os Karitiana e a inter-
venção biomédica. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade
de Campinas.
93
Prólogo
Uma certa inquietação instalou-se entre os antropólogos quando nossos ditos
“informantes” começaram a usar a palavra “cultura” – fosse na forma de emprés-
timo, fosse utilizando-se de engenhosas traduções – quase tão frequentemente
quanto nós mesmos (talvez eles fossem virar antropólogos, se estes são definíveis
como pessoas que usam a palavra “cultura” com fé ou esperança, como sugeriu
Roy Wagner). Tínhamos então gasto algum tempo e esforço reconhecendo o ca-
ráter fluido, dinâmico, não-essencial, da cultura, combatendo sua “reificação”,
e o modo como os nativos estavam (estão) falando de “suas culturas” não apenas
como algo a que pertenciam, mas como uma coisa que pertencia a eles, parecia ir
contra todo aquele trabalho duro. E agora?
A questão não é, claro, quem está certo, antropólogo ou nativo, de outrora
ou mais (pós-)modernos. Manuela Carneiro da Cunha (2009) nos propõe um
meio de enfrentar o problema que pretende nos liberar desse infrutífero dilema:
refiro-me à distinção entre cultura com e sem aspas. Mas me parece que esta
distinção se presta a uma leitura que eu gostaria de evitar – nos levando, por
exemplo, a imaginar que em um texto como o que se segue eu poderia sempre
distinguir uma coisa da outra por meio dessa convenção. Pode ser, por outro
lado, que meu incômodo venha apenas de minha incompetência em fazê-lo –
mas vou apostar que dessa incompetência eu possa apreender a sutileza do que
nos vem dizer a autora.
O pretexto deste texto é um comentário kĩsêdjê1 que articula explicitamente
os temas da cultura e da terra, como objetos de direitos e/ou políticas por meio
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criação do Parque, para cujo interior foram atraídos por Claudio Villas-Boas
logo após o contato em 1959, transformou o quadro das relações oscilantes de
aliança e conflito que mantinham com os alto-xinguanos – sem obviamente eli-
minar sua ambivalência. Esse processo tem paralelos com o que experimenta-
ram outros povos vizinhos, igualmente rotulados “intrusivos” e/ou “marginais”
na literatura, como os Ikpeng (Txikão), Yudjá (Juruna), Kawaiete (Kayabi) e
Metyktire (Kayapó). A distinção entre os xinguanos e esses outros se expressa
hoje numa polarização entre os povos “do Alto” (gravitando em torno do anti-
go Posto Leonardo) e os “do Baixo e Médio” (gravitando em torno dos antigos
Postos Pavuru e Diauarum)2 que têm dimensões administrativas e políticas im-
portantes, refletindo-se em diferentes alianças e parcerias externas no que se
refere à assistência à saúde, educação, projetos socioambientais e etc., bem como
nas relações com o órgão indigenista. Essa polarização, entretanto, não confor-
ma blocos monolíticos: há fraturas internas e a fronteira entre “Alto” e “Médio-
Baixo” pode ser atravessada, sob um ou outro dos aspectos mencionados, por
esta ou aquela comunidade.
Essa polarização corresponde, de modo geral, a diferentes estilos de inte-
ração com os brancos, que se enraizam na história e no ethos de cada povo. De
um lado, os alto-xinguanos estenderam a esses sua típica política de “cooptação
ritual”, de envolvimento de potenciais inimigos em uma rede de trocas cerimo-
niais, apoiada na exuberância da cultura xinguana – de suas festas, de sua orna-
mentação corporal, de sua cultura material etc. A própria auto-apresentação dos
alto-xinguanos como povos pacíficos, que haviam substituído a guerra pelo ritu-
al intertribal, propiciou a construção, da qual também participaram os agentes
não-indígenas da criação do Parque (dos Villas-Boas aos antropólogos), de uma
imagem específica dessas sociedades que veio a circular ela própria como prova-
velmente o principal “bem simbólico” dasa trocas cerimoniais que caracterizam
as relações dos alto-xinguanos com os brancos – um exemplo eloquente sendo
o célebre Quarup (ver Guerreiro Jr, neste volume). As estratégias dos demais
povos acomodados no PIX, por outro lado, foram mais diferenciadas entre si,
ainda que tivessem todas de partir dessa carência básica: comparados aos alto-
-xinguanos, faltava-lhes decididamente, aos olhos dos brancos, cultura.
No caso dos Kĩsêdjê, a situação agravava-se na medida em que boa parte de
sua cultura – sobretudo aquela parte que se podia ver – era de origem alto-xin-
guana. Os primeiros observadores deixaram testemunhos pessimistas: Harald
Schultz (1961) descreve uma mistura de culturas (materiais) jê e xinguana;
Amadeu Lanna (1968:36) os viu como uma sociedade em ruínas. As influências
xinguanas estavam em toda parte: no plano da tecnologia, da cultura material,
da cozinha; na ornamentação corporal e na fabricação dos corpos; no repertório
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Nossa cultura
No primeiro fim de ano que passei entre os Kĩsêdjê (de 2006 para 2007),
Natal e Ano Novo foram comemorados como festas de branco: aparelho de som
montado na casa-dos-homens, toda iluminada e enfeitada com balões coloridos,
e um forró que durou até quase o amanhecer. Festas desse tipo eram feitas no
Rikô, aldeia no interior do PIX em que os Kĩsêdjê viveram até o ano de 2001,
quando começou a mudança para o Ngôjhwêrê (depois da homologação em 1998
da Terra Indígena Wawi); eram tradicionais também no Posto Diauarum, que
eles costumavam frequentar.
Quatro anos depois, no Natal de 2010, estava em andamento o Amtô Ngere,
a Festa do Rato, um ritual de nominação que consiste na cerimônia mais im-
portante para os Kĩsêdjê hoje (Seeger 2004[1987]). As preparações para o Amtô
incluem ensaios diários, no fim da tarde, entre outras atividades, relaciona-
das sobretudo à confecção das máscaras. Entremeadas a estas, os Kĩsêdjê dan-
çaram festas xinguanas, como a festa do Beija-flor (Djuntxi) e a das mulheres
(Yamuricumã); cantaram músicas próprias (do repertório do Kahran Ngere, um
ritual de iniciação caído em desuso); fizeram, algumas tardes, “brincadeira de
Kayapó”. Tudo isso às vezes se misturava: enquanto alguns cantavam o Djuntxi
(de casa em casa), outros ficavam no centro, ensaiando seus cantos individuais
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compreender que o foco dos esforços assim como dos receios indígenas não está
na oposição entre conservação e transformação, tradição e inovação: o risco não
é transformar-se, mas transformar-se completa e definitivamente – isto é, dar fim
à transformação.
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fora, mas chamar a atenção para o fato de que a cultura se enuncia, sempre, ime-
diatamente, entre o dentro e o fora. Isto tem relação com aquele paradoxo para
o qual nos chamou atenção Roy Wagner, e constitutivo da antropologia, criado
pelo esforço em “imaginar uma cultura para pessoas que não a concebem para si
mesmas” (Wagner 2010:62). Vimos que a este paradoxo hoje se soma ou sobre-
põe um segundo, gerado pelo fato de que todos parecem agora ocupados no exer-
cício de tal imaginação ¾ enfatizando muitas vezes as propriedades que para os
antropológos se tornaram anátema: fronteiras, permanência, pureza, fixidez…
A distinção proposta é um instrumento poderoso para enfrentar esse novo para-
doxo: contanto que não se a leia de um certo modo, a saber, como uma forma de
reprimi-lo, em lugar de habitá-lo.
O que estou querendo evitar é o uso da distinção para instalar o que poderí-
amos chamar uma espécie de “cordão de isolamento": tomar a “cultura” como
uma (mera) “retórica”, um fenômeno apenas da ordem da identificação étni-
ca, um diacrítico mais ou menos vazio de sentido que não afeta e tampouco é
lá muito afetado pela cultura “sem aspas”. Isso salvaria a noção “heraclitiana”
de cultura dos antropólogos das deformações “platônicas” (Carneiro da Cunha
2009[1994]:259) – a reificação, objetificação, etc. – a que seria submetida na are-
na interétnica. Poderíamos então empregar as aspas para falar dessa cultura ob-
jetificada quando aparece no discurso nativo, justificando o uso de ideia tão fora
de moda em termos dos desafios que eles enfrentam em tal arena. Enquanto isso,
ficaríamos autorizadas a continuar usando a cultura – literal, sem as aspas – para
teorizar sobre este outro objeto que sabemos independente de tais considera-
ções. Em outras palavras, estaríamos livres para continuar a usar cultura, sem
aspas, para levar adiante nossas próprias objetificações. Teríamos assim duas coisas
chamadas cultura: a primeira, algo que cresce lá no mundo, esperando pela co-
lheita antropológica; a outra, um efeito sobre o discurso (e cultura) nativos de
nossa própria (antiga) noção de cultura, um efeito que colocamos entre aspas
para evitar contaminar o conceito “científico”.
Não é nessa direção que nos aponta Carneiro da Cunha, que afinal está jus-
tamente se perguntando: “como é possível operar simultaneamente sob a égide
da ‘cultura’ e da cultura e quais são as consequências dessa situação problemá-
tica? O que acontece quando a “cultura” contamina e é contaminada por aquilo
de que fala, isto é, a cultura?” (2009:356). O que ela quer pensar é como “essas
ordens embutidas uma na outra se afetam mutuamente a ponto de não poderem ser
pensadas em separado” (:362 – ênfase minha); para o que ela nos chama atenção é
para a reflexividade não como tomada de consciência de algo que estava lá, mas
como produtora de “efeitos dinâmicos tanto sobre aquilo que ela reflete – cul-
tura, no caso – como sobre as próprias metacategorias, como ‘cultura’” (:363).
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inteligibilidade que não são indígenas… A evocação da cultura seria assim, sem-
pre, por definição “meta”, no sentido de mobilizar princípios de inteligibilidade
situados em um sistema “diferente”. A vida indígena supõe, é evidente, seus
próprios modos de objetificação e reflexividade, mas estes seriam provavelmen-
te melhor descritos por outros nomes, sendo muito distintos, em termos de seus
pressupostos fundamentais, daqueles que carrega consigo a noção de cultura, em
sua versão antropológica como nas várias versões em que é acionada em nossa
vida sociopolítica presente – baseiam-se em diferentes modos de criatividade,
diferentes maneiras de constituir objetos e sujeitos, que podem não depender da
articulação entre produção e identidade que informa nosso senso de cultura –
podem focalizar a predação e a alteridade (alteração), por exemplo.
Essa articulação – em sua íntima conexão com a questão dos “direitos inte-
lectuais” que suscita a reflexão de Carneiro da Cunha – foi recentemente suma-
rizada de maneira conveniente por James Leach (2004) na noção de um modo
de criatividade que ele batiza “apropriativo”. Este seria baseado em uma (re)
combinação de elementos retirados de muitas fontes, envolvendo uma inovação
cuja “origem” depende da abstração da vontade, da agência ou propósito em
relação à matéria física. Inovação e agência assim abstraídos compõem uma no-
ção de criatividade (moldada, em última instância, na criatividade divina) como
força transcendente situada em um intelecto separado do mundo. Nesse modo
de criatividade, os objetos criados que atestam a atividade do “intelecto” assim
como do “trabalho” humanos devem ser compreendidos como “propriedade” de
seus criadores, pois são como que suas próprias extensões. E é em termos desse
modo que, vista como criação coletiva, a cultura como conjunto ou acúmulo de
ideias, práticas e instituições, ou “símbolos e significados” etc. – uma generali-
zação da ideia de Cultura como refinamento e civilização (Wagner 2010:53ss)
que conserva, entretanto, a mesma separação fundante entre criador e criatura,
pessoas e coisas, sujeito (divindade ou intelecto) e objeto (natureza ou artefato) –
essa cultura pode então aparecer como algo que o coletivo que a criou “tem” – e
como um signo identitário.
Nesse registro, mesmo a cultura como “esquema coerente internalizado que
organiza a percepção e ação das pessoas e permite algum grau de comunicação
em grupos sociais”, que obviamente não se reduz (para os que vivem nela) a sis-
tema ou signo, acaba por aparecer exatamente como tal para os antropólogos (que
objetificam, inventam, nesses termos, a vida e a socialidade alheias). Wagner
mostrou como o etnógrafo, confrontado com o “choque cultural” da experiência
de campo, precisa assumir “que o nativo está fazendo o que ele está fazendo – a
saber, ‘cultura’. E assim, como um modo de entender os sujeitos que estuda, o
pesquisador é obrigado a inventar a cultura para eles, como algo plausível de ser
111
feita” (Wagner 2010:61). Ele chama atenção para o fato de que essa invenção é ao
mesmo tempo controlada pela ideia ou imagem de cultura sustentada pelo an-
tropólogo (a cultura como produção, refinamento ou mesmo civilização), e con-
siste em uma extensão dessa imagem que, todavia, continuamente, a relativiza.
É para tal relativização – operando seja sobre a objetificação em que consiste
a cultura “sem aspas” (inventada, neste sentido wagneriano, pelo antropólogo),
seja sobre os modos indígenas de reflexividade que se busca apreender por meio
deste conceito (isto é, sobre os modos de reflexividade que preferi não rotular
de cultura), seja ainda sobre a “cultura” objetificada indigenamente na arena
inter-étnica – que Carneiro da Cunha me parece estar apontando quando fala
do looping effect da reflexividade, mostrando como esta produz efeitos dinâmi-
cos tanto sobre aquilo sobre o que se reflete quanto sobre as metacategorias por
meio das quais se o faz. É nestes efeitos que, creio, ela está interessada. É para
chamar atenção para eles que ela escreve as aspas (não para purificar nossos usos
da palavra cultura). De modo que, se há algo que se possa chamar cultura “sem
aspas”, isto não é nada que estivesse ali antes do encontro entre o antropólogo
(por exemplo) e o nativo; trata-se (antes) de um efeito deste encontro (sobre o
antropólogo, por exemplo).
Uma vez que a reflexividade indígena pode tomar formas muito diferentes
daquela que chamamos cultura, e porque essas formas não podem não deixar
suas marcas sobre essa metacategoria “importada”, nunca podemos estar cer-
tos de saber de antemão o que os índios querem dizer quando dizem “cultura”.
Quando usam nossa palavra – ou alguma tradução engenhosa dela – eles estão
produzindo um objeto que significa sua relação conosco, mas trata-se ainda da
produção deles: o que eles devem estar fazendo – eles não têm alternativa – não
é objetificar sua cultura (sem aspas) por meio de nosso conceito, mas sua relação
conosco por meio dos conceitos deles – quero dizer, por meio de sua própria com-
preensão do que constitui criatividade, agência, subjetividade…
Os Kĩsêdjê traduzem cultura por anhingkratá, uma forma reflexiva do céle-
bre kukradjá kayapó.12 Usam frequentemente, mas nunca entre si, o vocábulo em
português cultura. Não estou certa de que, quando o fazem, estejam declarando a
intradutibilidade do termo (como sugere Carneiro da Cunha [2009:369]); creio
que sua intenção é precisamente inversa a da Igreja (peruana) quando proibia a
versão para as línguas nativas dos conceitos cristãos (:id.). Não se trata de garan-
tir que o registro não-indígena seja mantido: pelo contrário, creio que o que eles
estão fazendo é tornar mais difícil saber quem está ditando o sentido (:id.) do nosso
conceito quando pretende se aplicar à experiência deles.
É por isso, suspeito, que não há aspas no mundo que possam “resolver” as
contradições entre entendimentos indígenas e não-indígenas nas disputas sobre
112
113
114
Notas
115
116
Referências
BARSH, Russel L. 1999. “How do you patent a landscape? The perils of dichotomizing
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117
118
Os Kalapalo são um dos dez povos que vivem na região do Alto Xingu, um
complexo multiétnico e plurilíngue intensamente articulado por casamentos,
comércio e rituais (cf., por exemplo, Basso 1973; Franchetto 1986, 2000; Gregor
2001; Heckenberger & Franchetto 2001; Menezes Bastos 2001)����������������
. A ocupação na-
tiva da área remonta aos séculos VIII-IX d.C., mas o sistema tal como ficou
conhecido a partir dos primeiros relatos escritos sobre a região (Steinen 1940,
1942)������������������������������������������������������������������������
parece existir desde o século XVIII �����������������������������������
(Heckenberger 2005)����������������
. Os rituais re-
gionais são uma das mais importantes formas de socialidade que costuram este
complexo, sendo considerados pelos próprios índios como uma das principais
marcas da condição de “gente verdadeiramente xinguana” (ou simplesmente
“gente”; kuge, em kalapalo).
Pode-se pensar que estes rituais funcionam como uma verdadeira “língua
franca” da região, que viabiliza a comunicação entre povos que não necessaria-
mente se compreendem linguisticamente (Menezes Bastos 1983; Menget 1993),
e eles podem ser divididos em duas grandes categorias: as “festas para espíri-
tos” e as “festas para pessoas importantes”. As primeiras tendem a se restringir
ao grupo local,2 estão ligadas a processos de adoecimento e cura, ao xamanis-
mo, e variam razoavelmente de grupo a grupo ��������������������������������
(Barcelos Neto 2008)������������
. Já as fes-
tas para pessoas importantes são essencialmente regionais, exigem no mínimo
a participação de três grupos3 e gravitam em torno do ciclo de vida dos nobres.4
119
Especificamente estes eventos é que são os focos das relações pacíficas formali-
zadas entre os alto-xinguanos, e operam como momentos importantes de produ-
ção da socialidade: é só quando um nobre tem suas orelhas furadas que outros
meninos também podem passar pelo mesmo processo; somente na ocasião do
ritual mortuário (Quarup) de um nobre é que outros mortos podem ser “home-
nageados” (isto é, lembrados e terem suas almas definitivamente encaminhadas
para a aldeia dos mortos); é nestes eventos que jovens de ambos os sexos saem da
reclusão pubertária e se realizam casamentos; são nas lutas que ocorrem ao final
dos rituais que os kindoto (os mestres da luta esportiva xinguana, kindene) exi-
bem sua força e beleza, e quando alguns são apresentados como futuros chefes; é
nos rituais regionais que nomes se tornam “belos” (famosos, tuhutinhü), ganham
valor e boa parte da memória genealógica é produzida (Guerreiro Júnior 2010)
e articulada a uma história coletiva (Franchetto 1993, 2000). O ciclo de vida
de qualquer mulher ou homem alto-xinguano é indissociável do ciclo de vida
dos nobres, que criam, nos rituais regionais, as condições para que os processos
de fabricação de pessoas, tão centrais para os xinguanos e outros ameríndios
(Viveiros de Castro 1977; Seeger et al. 1979)���������������������������������
, se completem e recomecem – sem-
pre com a participação de estrangeiros.
De todos estes rituais, o Quarup5 (o grande rito pós-funerário realizado em
memória de chefes e nobres falecidos; egitsü, em kalapalo) foi e tem sido um
dos mais importantes meios de consolidaçãodo sistema interétnico pacífico6 da
região (sobretudo após a aproximação das aldeias no começo da década de 1960).
Marcado como uma exclusividade7 da nobreza e tendo como ápice a ritualização
da violência por meio dos confrontos de huka-huka8 (kindene), o Quarup é consi-
derado um marco mitológico da diferenciação dos alto-xinguanos em relação a
seus vizinhos belicosos e, junto com outros rituais regionais patrocinados pelos
nobres, a condição para a reprodução desta distinção, como bem colocado na cé-
lebre frase de um interlocutor de Thomas Gregor (1990:113): “nós não fazemos
guerra; nós temos festas para os chefes para as quais todas as aldeias vêm. Nós
cantamos, dançamos, trocamos e lutamos”.
Desde a intensificação do contato com a sociedade envolvente na década
de 1940, os rituais também se transformaram em uma espécie de língua franca
entre xinguanos e não-índios, pois se tornaram uma forma peculiar de relacio-
namento com os caraíba (expressão pan-xinguana para “não-indígena”; kagaiha,
em Kalapalo). Os irmãos Villas Boas rapidamente perceberam como as relações
pacíficas entre os grupos do Alto Xingu estavam ligadas à participação nos ritu-
ais, e começaram a incentivar a sua expansão, sua realização em um espaço ima-
ginado pelos brancos como “neutro” (o Posto Leonardo)9 e a inclusão de grupos
que até então não faziam parte do complexo ritual, no intuito de consolidar o
120
regime de paz que viabilizaria a criação do PIX (Menezes Bastos 1992). Povos
belicosos que não participavam plenamente do complexo ritual xinguano passa-
ram a ser convidados para as festas, como os Kisêdjê10 e Ikpeng, na expectativa
de que a sua inclusão efetiva no sistema ritual suprimisse a possibilidade de
eventuais guerras. Os Trumai, que antes do contato aparentemente só participa-
vam do Jawari,11 durante certo tempo também passaram a frequentar o Quarup a
pedido dos Villas Boas, e o chefe Trumai, na época, chegou a ser um dos cantores
do Quarup de Leonardo Villas Boas, realizado em meados dos anos 1960.
Foi neste contexto que o ritual mortuário dos nobres, a festa que idealmente
reúne o maior número possível de aldeias, foi tomando proporções que talvez
nunca tenha tido antes do contato.12 Quando as aldeias eram ainda mais distan-
tes, a pax xinguana não garantia viagens livres de ataques de inimigos, o desloca-
mento era longo e penoso, e um Quarup dificilmente reunia – segundo contam
os Kalapalo – mais do que duas ou três aldeias convidadas. Com a aproximação
das aldeias e a criação do PIX nos anos 1960, a situação mudou muito, e convi-
dar todas as aldeias alto-xinguanas se tornou indispensável (pois deixar de fazer
um convite é considerado muito pouco polido). Este evento também se tornou
uma grande ocasião para receber jornalistas, políticos, fotógrafos, pesquisadores
e personalidades variadas, que naquela época passaram a divulgar uma imagem
do PIX intimamente ligada à imagem dos povos do Alto Xingu (deixando de
lado a imagem dos povos mais “guerreiros” do Parque e, inclusive, amenizando
a relevância da violência desencadeada entre os próprios alto-xinguanos pelas
acusações de feitiçaria). Os rituais começaram a funcionar como um meio de
atrair a atenção da sociedade nacional e personalidades internacionais para o
Parque e seus habitantes, que passaram por um complexo processo, pelo qual
esses últimos, com sua refinada estética ritual e o pacifismo correlato, foram
transformados no “cartão postal” da indianidade brasileira e meio de promoção
de um novo modelo de indigenismo no Brasil.13
Os não-índios foram rapidamente incorporados à lógica dos rituais da no-
breza, e o Quarup se tornou um evento bastante propício para a reafirmação de
antigas alianças com os caraíbas, nos quais não-índios importantes para a his-
tória do PIX receberam, após a sua morte, a mesma homenagem que a própria
nobreza xinguana (como foi o caso de Leonardo, Cláudio e Orlando Villas Boas,
e do sertanista Apoena Meireles). Mas estes eventos apresentaram, desde então,
outra possibilidade, que vem sendo fartamente explorada: a de continuamente
atrair atenção sobre os povos do PIX e criar novas alianças com os kagaiha. O
caso do Quarup realizado para o jornalista e empresário Roberto Marinho pelos
Kamayurá em conjunto com os Yawalapíti, em 2004, é um excelente exemplo.
Segundo Sapaim, um importante xamã kamayurá que vive entre os Yawalapíti,
121
os espíritos teriam lhe pedido em sonho que fizessem uma homenagem a Roberto
Marinho (falecido em 2003), ao que o atual chefe kamayurá, Kotóki, e o “cacique
geral do Xingu”14, Aritana Yawalapíti, acederam, afirmando que a Rede Globo
havia sido fundamental para que os índios do Xingu pudessem ser nacional e in-
ternacionalmente conhecidos (Funai
�����������������������������������������������
2004)�����������������������������������
. Foi uma ocasião marcada pela pre-
sença de inúmeras autoridades, dentre elas o então Ministro da Justiça Márcio
Thomaz Bastos, que firmou compromissos de cooperação entre o governo Lula
e os povos do Alto Xingu, amplamente divulgados pela mídia (cf., por exemplo,
O Globo, 2004). Seja para reconhecer os grandes aliados, seja para atrair pessoas
importantes e criar novas alianças, em diversos momentos o Quarup já mostrou
e continua mostrando que tem o potencial de funcionar como meio de comuni-
cação e relacionamento pacífico não só entre os alto-xinguanos, mas também en-
tre eles e os não-índios. Neste processo, o que era para cada povo egitsü, kaumai,
torïp, foi se tornando, paulatinamente, Quarup: uma dobradiça entre o mundo
dos brancos e a política (ritual) indígena.
Estes processos de atração dos brancos pelos rituais, criando momentos de
negociação e possibilidades de construção de alianças, têm sido uma importante
fonte de recursos para os Kalapalo.15 Por meio de seus convidados eles obtêm
pagamentos em dinheiro, negociam presentes caros (já conseguiram um cami-
nhão, dois motores de popa, geradores e placas solares, por exemplo), apoio das
prefeituras regionais para projetos de agricultura e transporte, e criam as con-
dições para que os brancos que frequentam suas festas se sintam à vontade para
voltar à aldeia quando quiserem: seja para passear, fazer suas pesquisas, fotogra-
far, filmar etc. Mas os brancos sempre precisam ser levados à aldeia em momen-
tos nos quais as atividades coletivas estão aceleradas: deve haver sempre alguém
responsável por “trazer os kagaiha” (um chefe, idealmente, responsável pelos
convites) para as festividades organizadas por um dono (oto), um patrocinador
(que no caso do Quarup é sempre um chefe ou nobre). De qualquer maneira, a
relação destes agentes com o coletivo e com os não-índios e seus recursos pode
ser uma grande fonte de complicações, pois a política local é largamente marca-
da por disputas entre os chefes, que quando patrocinam rituais regionais sempre
almejam realizar grandes eventos que lhe renderão fama e – conceito muito im-
portante para pensar a chefia xinguana – “beleza”.
Nos últimos anos os Kalapalo andaram às voltas com a possibilidade de reali-
zar um Quarup em homenagem ao falecido presidente Tancredo Neves, trazendo
à tona questões relativas à política imbricada no sistema ritual. Aparentemente,
parentes do ex-presidente teriam pedido esta homenagem aos Kalapalo já há
algum tempo, em 2006.16 Naquele ano, aconteceu um Quarup na aldeia kalapalo
Aiha,17 mas parece que, por falta de tempo e pelo fato de uma emissora de TV
122
123
124
Quarup para ele; qual não foi sua surpresa ao saberem que os Matipu haviam ido
aos Yawalapíti e reclamado o corpo (pois a avó materna do morto era Matipu).
Os Kalapalo ficaram muito incomodados com o acontecido, e consideraram isso
uma grande ofensa.
Os moradores de Aiha estavam absolutamente inconformados com a reali-
zação de uma festa de tal magnitude em uma aldeia considerada “periférica”.
Realizando um Quarup de forma autônoma, o chefe em ascensão não só dava
um passo importante para legitimar sua posição como afirmava a total indepen-
dência ritual de sua aldeia – e Aiha às vezes é considerada como a “mãe” das
demais, que são pensadas como seus “ramos de mandioca”, evidenciando certa
tendência à hierarquização das relações regionais. Ela também é chamada de iho,
palavra que significa “poste onde se amarra uma rede”, “chefe”, “protetor”, e as
relações entre aldeias de um mesmo povo são sempre descritas tomando uma
delas como iho, “aldeia principal”.
Ainda que em grande medida toda aldeia seja autônoma, elas dependem
umas das outras para os rituais, e a situação kalapalo atual evidencia como um
sistema de aldeias “satélites” é latente (uma situação possivelmente mais co-
mum no passado)19. Permitir que outra aldeia realizasse um ritual de tamanha
grandeza seria reconhecer sua total autonomia ritual em relação à Aiha – o que
atualiza uma tensão entre duas grandes parentelas que vemos desde a etnogra-
fia de Basso (1973), já que a aldeia em questão resulta da saída de parte de uma
destas parentelas. Ser autônoma é deixar de depender de Aiha para se lembrar
de seus mortos, um processo fundamental para a reprodução da socialidade re-
gional, o que do ponto de vista dos chefes de Aiha é uma grande ascensão dos
descendentes de um antigo chefe cujos parentes foram acusados de feitiçaria –
que de focos de acusações passam a grandes chefes legítimos em disputa com a
aldeia “mãe” por convidados indígenas e não-indígenas.
Muitos dos argumentos contrários à festa evocados em público pelos mo-
radores de Aiha se referiam à distância daquela aldeia, que poderia dificultar
ou impedir a viagem dos convidados indígenas, ao seu tamanho (é uma aldeia
pequena, que em 2007 não tinha 100 pessoas, contra quase 300 em Aiha), e à sua
“falta de beleza” (do ponto de vista de alguns). Mas, em particular, não foram
poucas as vezes que ouvi queixas de jovens ou lideranças mais velhas de Aiha
sobre os chefes da outra aldeia não quererem dividir “seus caraíbas” com Aiha.
Com isso as pessoas queriam dizer que Aiha não receberia os dividendos da
relação com estas pessoas: compra de artesanato, presentes e pagamentos pela
estadia na aldeia, alianças para possíveis projetos, ajuda no patrocínio de festas
no futuro. As pessoas em geral afirmavam veementemente que não iriam, de
forma alguma, comparecer ao ritual – o que constitui uma grande desfeita, e o
125
chefe principal de Aiha deu início a uma verdadeira campanha para convencer
os chefes de outros povos a não irem na festa caso ela não fosse feita em Aiha.
Ao mesmo tempo, o chefe de uma aldeia criada recentemente participou du-
plamente da disputa, se posicionando contra Aiha (de onde havia sido expulso)
e a favor do “primeiro cacique” da aldeia que enfrentava problemas (seu primo
cruzado e aliado político). Ele se posicionou contra Aiha a fim de levar seus
aliados caraíbas exclusivamente para a outra aldeia, no intuito de não “dividi-
-los” com Aiha e contribuir para o prestígio de seu primo. Como ele mesmo me
disse, em certa ocasião, “Eu não vou levar meus amigos lá pro Kalapalo [leia-se
Aiha] não. Eu consegui tudo pra eles, professor, antropólogo, caminhão, trator,
barco, motor, mas eles não gostaram, não sei porque. Eles me expulsaram. Tem
que fazer o Quarup lá na aldeia do meu primo”. Um jovem de Aiha me disse algo
no mesmo sentido: “Aquele homem não quer que a festa seja no Kalapalo. Ele
quer fazer a festa naquela aldeia porque ele só quer levar os amigos dele pra lá”.
O local de realização do ritual e os aliados não-índios que o acompanha-
riam se tornaram grande objeto de disputa, envolvendo o faccionalismo entre
os chefes, as possibilidades de distribuição de aliados e seus recursos e o pres-
tígio regional das aldeias. As possibilidades de aliança com autoridades e seus
benefícios potenciais (tanto materiais quanto políticos e simbólicos) coloca-
ram em jogo a hierarquia entre os chefes da aldeia anfitriã e entre as próprias
aldeias, revelando que por trás do ritual, que muitas vezes pode ser lido na cha-
ve da “exaltação dos sentimentos coletivos”, há complexas redes de alianças e
conflitos (Harrison 1992).
126
Como o seu dono dos brancos havia se tornado dono de muitos apapaatai e
estava mediando as relações com a loja, ele patrocinou um enorme ritual do qual
participaram mais de 30 apapaatai (um evento consideravelmente raro), cujas
máscaras foram vendidas à Funai. Tendo se tornado dono de tantos espíritos,
isto fez com que várias pessoas se mobilizassem para plantar roças e fazer obje-
tos para (ele e) seus apapaatai, e o patrocínio deste grande ritual lhe rendeu um
prestígio enorme e uma rápida ascensão ao “primeiro lugar” da chefia wauja.
O seu caso é exemplar para pensarmos possíveis entradas dos brancos na eco-
nomia de prestígio alto-xinguana, pois a condição de chefe daquele homem foi
ampliada por sua incorporação de apapaataie dos kagaiha, que ao mesmo tempo
viabilizaram o patrocínio de um grande ritual, renderam um bom dinheiro à
aldeia e fizeram do dono dos brancos um grande chefe. Assim como os itseke
e seus rituais “enobrecem” seus donos, como bem mostra Barcelos Neto, algo
semelhante pode acontecer com os kagaiha e seus objetos – que são eles mesmos
uma variedade de itseke.
Há elementos tanto na mitologia quanto no discurso cotidiano que enfati-
zam essa condição dos kagaiha. Em suas primeiras aparições, eles eram vistos
exatamente como itseke, já que o que faziam era tido como um análogo dos rap-
tos de almas e doenças causadas por estes seres: quando os kagaiha apareciam
era para sequestrar e matar, e algumas pessoas desaparecidas que se acreditava
terem se tornado itseke hoje são vistas como vítimas dos sequestros dos kagaiha.
Na história de Saganafa, um jovem Kalapalo roubado pelos kagaiha (segundo se
pode especular, por uma bandeira de Antônio Pires de Campos em meados do
século XVIII)21, o Avô-dos-Brancos é descrito como um itseke canibal e um as-
sassino cruel que produz objetos de metal a partir de sangue coagulado. Em uma
versão do mito de origem da humanidade xinguana, o ancestral dos brancos
nasce de uma irmã da mãe dos gêmeos Sol e Lua, que engravidou de uma flecha,
e é ele mesmo um itseke assim como seus primos paralelos: este é Kagahina, ou
Carabina, o matador.
Por sua violência típica, a capacidade de transformar sangue coagulado em
metal originada de seus ancestrais e seu duplo potencial destrutivo-criativo,
diz-se que os kagaiha são pessoas dotadas de itseketu, o mesmo conjunto de
capacidades de agressão e transformação/criação que caracteriza os seres não-
-humanos. Há cerca de um ano, um homem nahukuá que se tornou xamã tem
como seus itseke auxiliares o Facão, a Espingarda, a Lima, o Anzol, entre ou-
tros.22 Atualmente, com a progressiva aquisição de tecnologia pelos índios, os
Kalapalo têm afirmando constantemente esta identidade dos kagaiha e seus ob-
jetos com os itseke, para eles claramente manifesta nas curiosas capacidades dos
computadores, MP10 Players, softwares de edição de vídeo. Assim, mesmo sendo
127
visivelmente gente, kuge23, os kagaiha não deixam de ser itseke – o que não é pro-
blema algum para o pensamento kalapalo, já que os itseke também são, do ponto
de vista deles mesmos, gente.
O problema desta situação é que, como os Kalapalo inevitavelmente veem
os kagaiha como gente, criam-se os mesmos problemas de quando um humano
encontra um itseke: o humano tende a transformar-se em espírito. Este processo
não só deve ser interrompido pelo xamanismo como deve ser revertido, através
da familiarização do itseke por meio de um ritual patrocinado pelo ex-doente,
o que também é uma forma de “humanização” do ser perigoso. Pois agora é o
itseke que se torna “um pouquinho gente”, comendo, bebendo, dançando e se
alegrando com(o) os humanos, e passa a ser considerado “filho” do ex-doente,
ao mesmo tempo dono do itseke e seu ritual.24 Na relação com os itseke-kagaiha,
os Kalapalo tanto correm o risco de “virar brancos”, como de fato temem estar
virando,25 quanto os brancos podem ser “amansados” e familiarizados pelos ín-
dios, assim como eles fazem com os itseke. Análogos dos itseke, os kagaiha tam-
bém precisam ser “cuidados”, “familiarizados”, e por isso precisam de um dono.
No Alto Xingu praticamente se institucionalizou a existência de certos che-
fes cujo papel é “cuidar dos brancos”. Geralmente são homens que têm ascen-
dência nobre para utilizarem o título de “chefe”, mas que normalmente não são
os primogênitos dos grandes anetaõ, ou herdaram a chefia pela via materna26
e, eventualmente, nunca foram preparados27 para este cargo. Entretanto, estas
pessoas apresentam o diferencial de falarem um português acima da média dos
mais velhos (dos quais alguns sequer entendem português) e terem experiên-
cias mais duradouras de relacionamentos com os brancos, seja trabalhando para
eles em fazendas, na cidade ou tendo feito boas relações em viagens, encontros
com autoridades em eventos, reuniões etc. Estes chefes dedicam boa parte de
suas vidas a criar e manter relações com não-índios e a trazê-las para a aldeia,
procurando tornar coletivamente valiosas suas relações com os kagaiha, que po-
dem render ao grupo aliados políticos e fontes de recursos materiais sob a forma
de dinheiro, objetos valiosos e suporte fora da aldeia. Fazer viagens frequentes
às cidades, conversar com conhecidos ou pessoas potencialmente interessan-
tes, oferecer presentes, hospitalidade, fazer grandes amigos, trazer estes amigos
para a aldeia e, finalmente, procurar contrapartidas para o grupo (como pessoas
dispostas a assessorar projetos, dar aulas na escola indígena, se comprometer a
comprar grandes quantidades de “artesanato”, ou então pagar em dinheiro pela
estadia), é o seu trabalho.
Desde a chegada dos irmãos Villas Boas à região, agentes desse tipo têm
sido intencionalmente preparados, por índios e brancos, para desempenharem
papéis de mediação. Veja-se, por exemplo, a política de Orlando Villas Boas, que
128
levava filhos jovens de chefes importantes para passarem temporadas junto a ele
(dentro e fora do Parque) aprendendo a entender os costumes dos brancos, seus
interesses e formas de negociar. Enquanto os primogênitos dos grandes chefes
continuaram sendo preparados por estes para aprenderem os conhecimentos
que são suas prerrogativas e assumirem suas responsabilidades rituais, seus fi-
lhos mais novos foram progressivamente ocupando o papel de mediadores com
o mundo caraíba, o que também passou a lhes render prestígio e novas possibili-
dades de inserção na economia política local.
Esta figura do “dono dos brancos” é importantíssima para os Kalapalo de
Aiha, pois foi por meio dele que fizeram a maioria das alianças que mantêm atu-
almente e os contatos por meio dos quais obtiveram a maior parte do dinheiro
que entrou na conta de sua associação (Associação Aulukumã) nos últimos anos.
Em um momento no qual algumas associações de outros povos do Alto Xingu
estão desenvolvendo projetos com os quais têm conseguido suprir uma série
de necessidades, os Kalapalo de Aiha têm mantido uma política de obtenção
de recursos muito centrada na figura do kagaiha oto e seus aliados pessoais. De
fato, A.28, o chefe que até o final de 2007 desempenhava este papel fora também
o escolhido para presidir a Associação Aulukumã, o que em parte fez com que
as atividades desta associação ficassem muito atreladas às atividades deste chefe.
A associação passou a funcionar mais como uma espécie de conta conjunta da
aldeia cuja renda vinha exclusivamente dos contatos pessoais deste homem, o
que lhe valeu uma trajetória ambígua marcada pela aquisição de muito prestígio
seguida de um período de fortes desconfianças, que levaram à sua expulsão em
meio a um crescente clima de feitiçaria.
Muitas pessoas eram levadas por A. à aldeia, e para manter sua rede de re-
lações ele fazia frequentemente um percurso entre Aiha e várias cidades brasi-
leiras: Canarana, Cuiabá, Brasília, Uberlândia, São Carlos, São Paulo, Salvador,
Fortaleza. O circuito era sempre o mesmo, e tinha como objetivo, praticamente
todas as vezes, apenas fazer visitas aos seus “amigos”29 – para que os Kalapalo
pudessem receber os kagaiha na aldeia era preciso que eles também pudessem
ser recebidos na cidade, e A. mantinha esta rede de visitas ativa o tempo todo,
sem a qual não lhe parecia possível exercer sua função de “cuidar do branco”.
Este processo começou a criar vários problemas em Aiha, primeiro com W.,
o dono da aldeia (ete oto). A. mantinha boas relações de troca com seus amigos
kagaiha, que frequentemente lhe davam presentes, dinheiro, passagens de ôni-
bus – o que ele retribuía com convites para passarem temporadas em Aiha. Mas,
chegando lá, estes amigos geralmente ficavam hospedados na casa do dono da al-
deia, que esperava presentes caros também para si, o que nem sempre acontecia,
já que estas pessoas já estavam dedicando presentes a A. Muitos dos presentes
129
que estes visitantes levavam “para a comunidade” eram então apropriados por W.,
que como dono da aldeia se sentida no direito de receber presentes dos visitantes.
A. ganhou muito prestígio por todos os kagaiha que ele conseguiu (que com-
pravam artesanato, organizavam excursões para a cidade, pagavam pela estadia,
por fotos, apresentações), o que deixava W. muito incomodado e era o foco das
conversas sobre as diferenças entre estes dois chefes.
A situação ficou mais complicada quando começaram a correr rumores
de que o dinheiro da associação estaria acabando por causa das viagens de A.
Algumas pessoas argumentavam que ele estaria fazendo estas viagens em pro-
veito próprio, que estava se beneficiando sozinho da rede de amigos que ele
mantinha ativa com dinheiro da associação.Ele, entretanto, se explicava dizendo
que este era o trabalho dele, que ele não poderia ir à cidade atrás de amigos ou em
reuniões sem usar o barco da aldeia, o motor, a gasolina. E queixavam-se justa-
mente disso: que parecia que ele tinha se tornado o dono do barco. A. acabou
sendo expulso de Aiha no final de 2007.
Enquanto circulavam os rumores de que A. estava se aproveitando da pre-
sidência da associação para ficar viajando, outro homem (M.) vinha se prepa-
rando para se tornar anetü (especificamente, um kagaiha oto) e havia um curioso
“clima de feitiçaria” em Aiha mesmo sem ninguém estar doente ou ter morrido
(toda noite alguém ouvia apitos de feiticeiros, via vultos atrás das casas ou na
região da lagoa, trancava as portas e os homens saiam armados à noite para
fazer “rondas” – um clima que eu só vi novamente em 2009, quando uma acu-
sação de fato estava em curso). No final de 2007, depois que A. foi expulso, M.
começou a tentar percorrer exatamente o mesmo circuito de cidades que seu
predecessor, no intuito de manter as relações com os aliados de Aiha. É impos-
sível dizer se a expulsão de A. tem ou não algo a ver com o clima de feitiçaria
que se desenvolvia num crescendo, pois os Kalapalo o expulsaram alegando que
estava se aproveitando da associação. Mas é significativo que os rumores so-
bre enriquecimento e falta de generosidade tenham sido acompanhados de um
clima de feitiçaria iminente, pois a ganância e o egoísmo são justamente duas
das principais características de um feiticeiro. No ano seguinte, não houve ne-
nhuma acusação de feitiçaria dentro de Aiha, mas é curioso que um enorme
clima de feitiçaria e os rumores sobre A. tenham aparecido juntos e 2007 tenha
terminado com sua expulsão.
A noção de “cuidar”, junto com a forma pela qual os Kalapalo se referem a
“seus caraíba” é importante para entender os conflitos em jogo. Os não-índios
com os quais eles mantêm alianças mais ou menos duradouras são chamados de
“Kalapalo kagaihagü”, sendo –gü um sufixo de posse (Franchetto
���������������������������
1986)����������
, signifi-
cando, literalmente, “caraíba dos Kalapalo”. Poderíamos nos perguntar: seriam
130
131
***
132
O dono argumentava que estas coisas eram devidas a ele porque seriam pa-
gamento por todo o peixe pescado e pelo mingau preparado para a festa, sem os quais
o egitsü não teria acontecido (e, logo, não haveria filmagem, nem “amigos” dis-
postos a pagar por um ritual pobre).O chefe principal argumentou, junto com
outros homens, que o que ele dizia não fazia sentido, pois o peixe e o mingau que
ele fornecera já haviam sido pagos: com dança e música, e, portanto, o pagamento
pelo egitsü deveria ser revertido em favor “da comunidade”. Por causa desta situ-
ação o rapaz se envolveu em um conflito com o chefe principal, que era absolu-
tamente contrário a essa apropriação do pagamento, e isso determinou que ele e
sua família saíssem de Aiha. De fato, ele já estava planejando se mudar para uma
nova aldeia desde antes do egitsü, em função de conflitos envolvendo ele e sua
parentela próxima – e certamente estes recursos seriam úteis para ele. Mas o que
importa aqui não são as possíveis motivações do dono do egitsü, e sim a lingua-
gem na qual os seus interesses foram traduzidos e considerados: seus interesses
assumiram a forma de exigência de pagamento por seu trabalho como dono do
ritual. Isto é, que o pagamento da equipe de TV fosse “para a comunidade” não
era de modo algum uma coisa óbvia, pois pareceu a este homem possível exigir
que de fato o pagamento era devido a ele. E não só argumentou como em parte
a própria aldeia concordou, pois, mesmo negando a concessão do caminhão e
da carreta, optaram por tirar da conta da associação parte do dinheiro que havia
sobrado e dar a ele como pagamento, indicando claramente que havia alguma
legitimidade na sua exigência.
A reação do chefe principal talvez possa ser pensada de duas maneiras. À
primeira vista, poder-se-ia pensar que o dono da aldeia invocou o conceito de
“comunidade” porque estaria se referindo exatamente a uma ideia de “coleti-
vo igualitário”, a qual por alguma razão defenderia. Contudo, isso significaria
supor que o chefe estaria preterindo o modo nativo de coletivização em favor
de um “modelo exógeno” de coletivo (oriundo de certo imaginário a respeito
dos povos indígenas amplamente difundido em meios indigenistas). Na fala do
chefe, o que vemos é, de fato, tal discurso. Mas não estaria também sua posição
de chefe principal, dono da aldeia, ameaçada por um jovem chefe que reclama-
va para si todos os pagamentos feitos aos Kalapalo? Quando este jovem exigia
estes pagamentos, ele estava tentando ocupar o lugar do grupo: os pagamentos
foram feitos aos Kalapalo em sentido abstrato, mas dado que aquele coletivo
só existia no ritual por causa de sua ação como chefe patrocinador, foi possível
para ele usar, com alguma legitimidade, um argumento do gênero “os Kalapalo
sou eu”. Como ficaria o chefe principal nesta condição? Reduzido à posição de
“ajudante”, “companheiro” ou “camarada”, o que certamente lhe pareceu ab-
surdo. Exigindo que o pagamento fosse revertido para “a comunidade”, o chefe
133
Assimetria e coletivização
Segundo Simon Harrison (1992:236), os rituais, suas condições de execução
e o desempenho de certos papéis são sempre elaborados tendo em vista relações
que existem fora do contexto ritual. Modificar um papel no ritual, ou incluir
novos participantes, criar novas relações, serão sempre objetos de disputa pelas
categorias de agentes que fazem os rituais, mas cujas relações estão referenciadas
em outros contextos. Ou, na formulação de Tambiah (1985), o que este autor
chama de inner frame do ritual, seu esquema simbólico de execução, é uma reuti-
lização de elementos situados no outer frame, seu contexto de significação e para
onde sua eficácia é dirigida. Se levarmos a sério que é preciso pensar os rituais
como eventos cujas funções simbólicas e pragmáticas são indissociáveis, que ao
mesmo tempo se fundamentam e repercutem fora do ritual, somos levados a
pensar que a inclusão dos kagaiha em certos rituais como espectadores (e, num
certo sentido, como consumidores/devedores) também pode ser uma forma de
incluí-los na política local que é simultaneamente pressuposta e (contra)produ-
zida nos rituais.
Pelos casos discutidos acima, vemos que não há uma situação “dual” com-
posta pela interação dos kagaiha com “o ritual”, imaginado como um objeto pas-
sível de ser simplesmente visto, mas uma incorporação dos não-índios e seus
recursos nos esquemas internos de organização do ritual, indissociáveis da eco-
nomia política de prestígio alto-xinguana. Não há uma separação entre o ritual
e aqueles que (supostamente) “apenas o assistem”, pois estes são trazidos para
dentro de sua lógica e são postos a serviço das máquinas de produção indígenas:
produção de grandes chefes e produção de coletivos. Tendo isto em conta, vê-se
que não se trata simplesmente de produzir “festas bonitas para o branco ver”,
isto é, produzir uma objetivação (estética) da socialidade indígena sem efeitos
sobre os índios ou os brancos. Não seria possível imaginar semelhante movi-
mento no mundo ameríndio, nem em lugar algum. Aqui, agora, como em outros
lugares e tempos (Gell 1998), toda objetificação é ao mesmo tempo índice e causa
de relações entre sujeitos ����������������������������������������������������
(Lagrou 2007; Barcelos Neto 2008:34)����������������
: toda objetifi-
cação exibe, de alguma maneira, as relações que a produziram enquanto cria ou
134
afeta outras relações (pois só se objetifica algo a fim de exibi-lo ou oferecê-lo para
alguém cujas relações se deseja afetar).
Entre os Kalapalo, os donos de rituais e os nobres (e, no caso dos rituais
regionais, estas duas categorias se sobrepõem – seus donos sempre são nobres)
são centrais tanto para os processos de produzir coletivos como sujeitos (isto é,
coletivos-sujeitos da perspectiva de outros xinguanos que participam dos rituais
como convidados), quanto de produzir rituais como “cultura” (ou rituais como
um certo tipo de objeto de consumo para os brancos). Mais do que a objetivação
temporária de uma ideia abstrata de “cultura indígena”, os rituais alto-xingua-
nos podem aparecer como uma forma de estender aos não-índios os modos kala-
palo de se relacionar com o estrangeiro e, ao mesmo tempo, de produzir pessoas
e coletivos tipicamente xinguanos por meio destas relações – mas não sem suas
repercussões no sistema nativo. É impossível separar os rituais regionais da po-
lítica, seja no sentido de “política nativa”, seja no sentido de “política cultural”
– no contexto da preparação, execução e exibição do ritual, as duas são insepará-
veis. Os não-índios podem entrar fundo no sistema de pagamentos dos rituais,
como no caso do reality show, ou mais indiretamente no exercício da função de
“dono dos brancos”, ou até mesmo colocando em jogo a relação centro-periferia
no sistema regional. Em qualquer um desses casos, os não-índios se tornaram
parte do duplo processo de produção de coletivos e, sua condição e contraparti-
da, de produção de nobres, homens eminentes, “caciques grandes”.
135
Notas
1
Expressão em karib alto-xinguano para não-índios de outros países.
2
Algumas, às vezes, podem ter fases interaldeias.
3
Este me parece um ponto importante, mas que, por alguma razão, não é desenvolvido nas
etnografias disponíveis. Os rituais regionais (à exceção do uluki, a festa de trocas) constroem uma
relação de oposição e competição entre pelo menos dois coletivos: um coletivo de anfitriões oposto
a um coletivo (ou mais) de convidados (hagito). Contudo, o coletivo dos anfitriões é sempre consti-
tuído pelo principal povo anfitrião (o grupo dos patrocinadores da festa) mais no mínimo um povo
aliado (e no máximo dois). O ritual xinguano apresenta um curioso exemplo de como uma relação
a dois é sempre um caso particular de relação a três (cf. Lévi-Strauss 2003), cuja análise deve ter
algum rendimento para a compreensão dos processos de coletivização em jogo, além de instigar a
comparação dos fatos xinguanos com alguns que foram o centro das discussões sobre dualismo e
ritual no Brasil Central (Maybury-Lewis 1979).
4
No Alto Xingu, há uma categoria de pessoas que podem herdar o título de chefe (anetü) ou
chefa (itankgo). Apenas alguns dentre os que têm ascendência para isto recebem efetivamente esse
título, mas como os demais também são pensados como pessoas diferenciadas (“pessoas bonitas”),
utilizo o termo “nobres” para me referir a todos.
5
O termo Quarup é a transformação para o português da palavra kamayurá kwaryp, tornada
famosa no contexto do contato. Quando me referir a este ritual da forma como é realizado pelos
Kalapalo, utilizarei egitsü, reservando Quarup para designar a forma genérica assumida por este
ritual no contato com os não-índios.
6
É importante notar que o “pacifismo alto-xinguano” não exclui tensões e conflitos, sendo o
tempo todo posto em cheque pelas acusações de feitiçaria, que geram cisões, expulsões e, às vezes,
execuções (mais frequentes no passado, tendo sido reduzidas por influência da administração do
PIX).
7
Não chefes também podem ser homenageados no Quarup junto com o(s) morto(s)
principal(is) (sempre nobres), mas eles não são o foco da cerimônia nem são considerados seus
“donos”.
8
Este nome foi dado pelos não-índios à luta em função do barulho da respiração dos lutado-
res. O som é uma imitação do esturro da onça.
9
Pólo administrativo da região sul do PIX e centro de atendimento à saúde indígena. Como o
Posto não pertence a nenhum grupo, os brancos o imaginam como um lugar politicamente neutro.
Contudo, o espaço do Posto foi sendo paulatinamente controlado por pessoas e grupos específicos,
em função de suas relações de proximidade geográfica e política com o Posto e os irmãos Villas
Boas (ver Viveiros de Castro 1977 para uma descrição da relação dos Yawalapíti com o Posto Le-
onardo, por exemplo). Hoje, este é um espaço considerado extremamente perigoso pelos índios,
um lugar cheio de feitiços (cf. Novo 2008, 2009), e que, como tudo no Alto Xingu, também tem
seus “donos”, com os quais é preciso negociar. Há notícias de várias festas realizadas no Posto, e
os Kalapalo dizem que só começaram a convidar alguns povos (como os Aweti, por exemplo) para
seus rituais após a aproximação das aldeias e a realização de festas maiores. Contudo, uma festa
que nunca deve ter acontecido no Posto é o próprio Quarup.
10
Pelo menos desde a segunda metade do século XIX, os Kisêdjê costumavam participar de
alguns rituais regionais, como o jogo de dardos (jawari). Essa participação sempre foi, entretanto,
algo intermitente (comunicação pessoal de Marcela Coelho de Souza).
11
O jogo de dardos entre primos cruzados, também realizado em homenagem a um nobre
falecido. Ele é mais conhecido como Jawari, seu nome kamayurá, e entre os kalapalo esta festa leva
o mesmo nome das flechas especiais utilizadas na competição, hagaka. Os Trumai são tradicional-
mente considerados como os responsáveis por sua introdução no Alto Xingu.
12
A menos, claro, que ele já fosse realizado no “período galáctico” (entre 1250-1650 d.C, cf.
136
Heckenberger 2005:71, 124-133) da ocupação do Alto Xingu, quando várias aldeias gravitavam
em torno de aldeias maiores e ritualmente mais importantes (ou mesmo de lugares sagrados/cen-
tros rituais não habitados, como parece ter sido o caso do sítio kuikuro Heulugihütü [:90-93]).
13
De fato, um modelo de indigenismo bastante particular, que nunca se tornou, efetivamente,
modelo para outros povos e regiões.
14
Desde muito jovem Aritana foi preparado por seu pai e por Orlando Villas Boas para se
tornar o principal intermediário entre os povos do Alto Xingu (que ele representaria como uma
única “sociedade”) e o mundo dos brancos. Ele de fato assumiu esta posição e por isso é chamado
de “cacique geral”, mas isto não implica que ele tenha qualquer autoridade sobre outras aldeias
ou prerrogativas sobre outros chefes, não tendo nada a ver com um “paramount chief ” ou algo
do gênero.
15
Um povo de língua karib do Alto Xingu, com os quais trabalho desde 2005 e atualmente re-
alizo minha pesquisa de doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade de Brasília (Guerreiro Júnior 2010).
16
Isto foi o que me disse um homem kalapalo que estava em Brasília mediando as relações
com os interessados, que também não me deu nomes. Certamente de seu ponto de vista só um
parente poderia desejar a homenagem, mas quem efetivamente estava programando a festa eu não
saberia dizer – só imaginar.
17
A maior aldeia Kalapalo, considerada por muitos como sendo a “principal” (isto é, a aldeia
para a qual deveriam se dirigir os mensageiros de outros povos e onde todos os rituais regionais
deveriam ser realizados – o que acaba não acontecendo na prática).
18
Ainda, um dos homens responsáveis por mediar as negociações com a família do homenage-
ado estava diretamente interessado na possibilidade de obter ajuda dos parentes do ex-presidente
para o processo de demarcação do território de um antigo grupo karib próximo dos Kalapalo, os
Angaguhütü (os Naruvüte ou Anaravuto da literatura).
19
As pesquisas etnoarqueológicas de Heckenberger (2005:68-112) sugerem que no período
de 1250 – 1700 d.C. encontravam-se no Alto Xingu grandes aldeias e centros rituais em torno dos
quais se organizavam, no geral segundo os pontos cardeais, aldeias menores, ligadas entre si e aos
centros por grandes estradas. Este momento da história xinguana foi chamado de “período ga-
láctico”, referência à tendência de hierarquização das relações entre centros político-rituais mais
importantes e “grupos satélites”.
20
Os Kalapalo, por sua vez, parecem fazê-las sem muita parcimônia.
21
Esta é uma história complexa. Pires de Campos não esteve nem no Culuene, nem no Sete
de Setembro (território tradicional dos Kalapalo), mas no rio das Mortes. Contudo, talvez os an-
cestrais dos Kalapalo tenham passado por aquela região, pois há uma coincidência impressionante
entre a narrativa kalapalo e a história documental. Os Kalapalo dizem que seriam atacados por um
homem chamado Pai-Pegü, acompanhado de índios; Pires de Campos contava com a companhia
de índios Bororo que o chamavam de Paí-Pero (Franchetto 1998:345).
22
Que seus espíritos auxiliares sejam quase todos ferramentas perigosas também não deve ser
à toa, mas esta seria outra discussão.
23
Utilizado aqui no seu sentido mais abrangente, pois no limite todo ser com forma humana
é kuge.
24
Barcelos Neto afirma que entre os Wauja uma coisa é ser dono de um apapaatai e outra coisa
é ser dono da festa para aquele espírito específico. Não encontrei semelhante distinção entre os
Kalapalo, entre os quais o patrocínio de um ritual é indispensável para que o ex-doente assuma a
condição de dono de itseke.
25
Esta é uma preocupação explícita de muitos velhos e jovens, que frequentemente incide
sobre o corpo (a redução dos períodos de reclusão, os novos cortes de cabelo, o uso de roupas e
acessórios industrializados) e os conhecimentos e práticas rituais. É sobre estes dois pontos tam-
bém que incidem as formas de resistência, por meio das quais os jovens vêm progressivamente
137
138
Referências
139
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luta pela emancipação dos índios, criação das organizações não gover-
namentais de apoio aos índios (...). Foi assim, o apoio das cooperativas.
Os primeiros cursos eram basicamente do Jordão e do Humaitá e vi-
nham também alguns de outras áreas. Isso é porque eles queriam não
só ser professores, mas também ajudar na contabilidade das coopera-
tivas. Então de certa forma o movimento de educação indígena estava
ligado a esse movimento político das cooperativas. (Entrevista, 2008)
As cooperativas, alternativa política e econômica, continuariam aviando os
fregueses, entretanto, não mais por meio dos barracões, entreposto de endivida-
mento do seringueiro (indígena ou branco). Elas seriam administradas e geren-
ciadas pelos índios. Este relato serve-nos para informar que as escolas indígenas
no Acre nascem com o intuito de prover os índios de conhecimentos em língua
portuguesa e matemática, para que eles gerenciassem autonomamente suas co-
operativas, então recém-criadas. Não obstante, tal como revelou Terri Aquino,
fazer cálculos matemáticos e ler em língua portuguesa teriam um alto valor polí-
tico frente ao contato com os brancos, donos ou ex-donos de seringais.
As cooperativas foram o ato seminal para a elaboração da primeira forma de
indigenismo pró-índio no Acre. O apoio da CPI/AC à demarcação das terras in-
dígenas e a posterior invenção da educação escolar indígena são a consequência
da criação das cooperativas.
As principais formas de atuação deste indigenismo cristalizaram-se e carac-
terizaram-se por: i) reuniões com os índios nas aldeias; ii) assessoria de profis-
sionais não indígenas, especialmente do centro-sul do Brasil, aos professores
índios em cada uma de suas respectivas escolas; iii) reunião dos indígenas na
cidade para assistirem a cursos de formação de professores; iv) reunião para
discussão de temas referentes às políticas públicas; v) apoio à criação, ao fortale-
cimento de organizações indígenas e a financiamentos de pequenas atividades.
O “comunitarismo” nascido com a luta pela terra e liberdade para os índios
em face aos sistemas de exploração fundiários e de recursos naturais desenhados
no Acre, seja com o seringal ou com a agropecuária, desloca-se para a educação
escolar. Desde seu advento no Acre em 1983, até a segunda metade da década
de 1990, pode-se afirmar que as escolas nas aldeias detinham uma grande pre-
ocupação: ensinar língua portuguesa e matemática, que é efeito do período em
que os indígenas foram cativos dos patrões seringalistas. Todavia, na década de
1990, sobretudo, a partir da segunda metade e, especialmente estimulado por
indigenistas da educação escolar filiados a CPI/AC, que já em 1992, incorporou
a valorização cultural como “tema de formação”, apresentou a cultura enquanto
elemento integrante do currículo escolar.
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nova para nós huni kuĩ. Mas, nem tanto por isso vamos embaralhar a
nossa cabeça. Para isso se movimentar tem uma forma que precisamos
refletir sobre o caso
Escrevi que concordava com ele e acrescentei: “eu concordo com você, mas
como será esse movimento?”
Iskubu: portanto, é como estou falando, tem jeito para se trabalhar
entre homens e mulheres, só que temos que organizar essa ideia.
Partindo deste ponto, do “jeito de trabalhar entre homens e mulheres”, per-
guntei: “Mas vejamos, você não é uma aĩbukeneya,15 certo? Se você não é uma
aĩbukeneya, como é que você vai ensinar as meninas a fazer o kene?” “Positivo”,
respondeu Iskubu, que seguiu: “sobre isso vejo que estamos começando a traçar
essa política de organização do aprendizado fora e dentro da escola.”
Pedi para que ele explicasse que política seria esta à qual fazia referência, mas
antes o indaguei: “No começo da escola o nawã kene era só dos homens. Hoje as
mulheres estão querendo esse nawã kene. Antes o kene kuĩ era só das mulheres,
mas hoje os homens estão querendo esse kene kuĩ, como é que isso fica, em ter-
mos de conhecimento?”
Iskubu: São essas coisas que eu mencionei da política, exatamente
dessa organização. Precisamos trabalhar isso forte na comunidade e
entender essa nossa identidade real para que com isso consigamos for-
tificar cada vez mais essa nossa realidade que um dia éramos e que
queremos chegar no tempo atual.
Iskubu: Isso são coisas que nós huni kuĩ temos que pensar profundo e
refletir bem.
Este professor trouxe à tona novos elementos que remetem ao contato com
os brancos e à produção de conhecimento. Ele estabeleceu limites para a incur-
são do indigenista branco da educação escolar, pois afirma que há coisas cujos
próprios huni kuĩ deverão pensar e refletir profundamente. Esta passagem difere
exponencialmente do relato colhido por Weber (2004:69), junto a um professor
Kaxinawá do rio Humaitá, no qual o indigenismo pensou antes dele acerca da
revitalização cultural:
Na CPI, através da CPI que a gente ‘tá aprendendo a cantar mariri que
isso é uma força que toda vida nós somos donos, mas não interessava
150
nisso, né. A gente viu que além de ser nosso valor, através disso a gen-
te tem um conhecimento e começa a pensar, né que isto é verdade
mesmo, né (...). Então isso foi uma coisa muito importante que a CPI
‘tá trazendo desde o começo. Começou a pensar antes de nós, pensou
antes de nós pensar (...). (Professor Ceará)
Iskubu manteve-se firme em sua perspectiva: “na reta do como fazer isso
cabe a nós mesmos começar a discutir sobre e ir definindo. É claro, isso com
força da aliança dos movimentos indígenas e indigenista.” E prosseguiu:
Entendo que você é uma pessoa que “está sempre de pé” tentando nos
ajudar também. Você pode e deve participar dessa discussão, assim
como nós estamos trabalhando até hoje. Como você sabe o HuniKuĩ
é um dos povos que são mais “cultural”, portanto a gente não se es-
queceu da nossa vivência, só e apenas outros conhecimento tem nos
interferido na maneira de nossa realidade do dia a dia. Mas falo: conti-
nuamos praticando os nossos conhecimentos, aqueles que ainda estão
recuperando aqui e que não foram esquecidos.
Não obstante, ele nos diz que a inserção indígena conquistada, representada
aqui pela atuação como indigenistas marca uma mudança radical desenhada não
apenas pela escolha em “ficar ou não de pé” com um Outro, porém, é o estabe-
lecimento de percursos autônomos, pois “na reta do como fazer”, caberá a eles a
discussão, bem como a definição deste caminho. Estabelecer limites para inser-
ção do indigenismo dos brancos não significa excluir as possibilidades de inter-
locução, mas exercer suas capacidades interativas, cujo contato gira em torno da
troca (McCallum 2002:393). “Ficar de pé”, neste caso, é a articulação de campos
de agenciamento e novas alianças. Aqui se fundam intercursos relacionais.
Para compreendermos com a devida consequência o tema da incorporação
de indígenas nos quadros de técnicos da SEE, Bendito Ferreira, ex-técnico e
atual professor e liderança geral da terra indígena Praia do Carapanã, no rio
Tarauacá nos disse:
Bem, para nós, olhando como um HuniKuĩ, foi um pouco assim, como
se tivéssemos avançado um pouco nessa questão da educação. Pensar
como um técnico, como a SEE fala ou pensar como um assessor como
a CPI fala, para mim, para os povos indígenas, para quem estava as-
sumindo essa responsabilidade foi mais um trabalho para a comuni-
dade, mas para a própria comunidade assumir essa responsabilidade.
Olhar com os seus próprios olhos. (...) Hoje a gente traça essa política
junto com a SEE, junto com a CPI, junto com as organizações ou que
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Olha, Paulo, eu acho que a resposta é assim. Esse desenho nós chama-
mos de dami. Mas, esse desenho que nós tiramos foto, nós chamamos
de dami yuxĩ. Entendeu? Já pegou a imagem do desenho, porque é yuxĩ,
como o filme das pessoas, ou seja, você já tirou da imagem da pessoa e
pode chamar de Mĩ yuxĩ. Agora o dami que é o desenho,[mas] você não
pode chamar o filme das pessoas de dami.
José Mateus retomou a fala de Tadeu, parecendo buscar um caminho alterna-
tivo de explicitação ao nosso debate:
Isso sempre foi assim, mas ninguém fala muito isso. Isso você só ouve
mais dos velhos e das velhas. Os mais jovens falam fotorã. E nessa
escola, eu pensei mais foi no contato da comunidade com a escola.
E a gente com isso já quer mostrar um exemplo, um produto de um
trabalho da escola diferenciada. Através desse desenho, envolve tudo.
Traz professor, traz a ciência e traz a relação da natureza com os huma-
nos. A ciência aqui é tudo! Os velhos é a ciência, a jiboia é a ciência, a
156
Professor Napoleão Bardales, adquirindo ayahuasca na aldeia Novo Lugar, para le-
var à oficina pedagógica que ocorreria na aldeia Nova Fronteira. Rio Purus, 2010.
Aldeia Nova Fronteira, rio Purus. Preparação de alunos da escola para um katxana-
wa. Oficina pedagógica, 2010.
escola é a ciência, o kene é uma ciência. Então é por isso que eu falei, é
o ponto em que você vai aprender e fazer.
Trazer à tona um debate sobre conhecimento, gênero e escola que visuali-
zasse a geografia das agências e os saberes de homens e mulheres kaxinawás,
defronte as escolas que se proliferam nas terras indígenas, necessitaria mais que
uma refinada paráfrase. Não se tratava de uma nova leitura dos escritos, mas de
uma nova audição sobre a fala dos índios. Outros dados necessariamente de-
veriam ser escutados pelo antropólogo. Tratar o kene kuĩ (desenho) enquanto
um domínio privilegiadamente feminino não seria uma novidade. Escrever que
esse tipo de desenho desvela questões acerca da identidade, tanto quanto da
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Considerações finais
As escolas, atualizadas em novos cenários, distanciaram-se dos objetivos
de administrar cooperativas ou livrar-se do julgo de patrões seringalistas. José
Benedito Ferreira, José Mateus Itsairu, Vitor Pereira, Iskubu, Tadeu Mateus
ou mesmo Norberto Sales, um dos mais experientes professores indígenas do
Acre, além da docência ou lideranças de seus povos, atuaram intensamente na
construção do que parece ser uma resposta indelével de um novo momento.
Hoje suas intenções aliam-se ao movimento pró-cultura descrito por Weber
(2004), antropóloga e indigenista que tratou do processo de escolarização entre
os Kaxinawá do rio Humaitá. Um de seus argumentos mais interessantes para
este artigo, é que a “escola própria” serve aos Kaxinawá como espaço para rea-
prender a tradição. Esta conclusão poderia ser estendida a diversos outros rios
ocupados por esse povo.
A questão final não se refere à escola entre os Kaxinawá enquanto um veículo
privilegiado de aprendizagem sobre o exterior. Este não é mais o caso. A pergun-
ta deste artigo versou acerca de relações de gênero no espaço em que se aprende-
rá acerca do desenho, embebido até o momento, pela noção de conhecimentos
da cultura ou da tradição. Ao passo que o desenho se torna algo a ser ensinado
na escola e, este é um conhecimento emanado privilegiadamente do corpo femi-
nino, sendo a mulher, a representante da porção mais interior da aldeia, inserir
o desenho enquanto um conteúdo curricular poderia criar uma nova economia
e política para a transmissão deste conhecimento.20 Considerar esses desenhos
como a linguagem estruturante da vida Kaxinawá (Lagrou 2007:537), bem como
marcas da distintividade destes em face de outros índios do Acre e dos bran-
cos, fornece-nos a interpretação de que eles conformam não apenas a verdadeira
mulher, mas a verdadeira pessoa. As linhas de transmissão deste conhecimen-
to, que se transversaliza ao converter-se em conteúdo escolar, espalham-se para
além das mãos femininas, pois tanto estarão em corpos masculinos, bem como
159
160
1
Nos últimos sete anos atuei como indigenista da educação escolar entre os Kaxinawá,
vinculado à Coordenação de Educação Escolar Indígena (CEEI) da Secretaria de Educação
do Acre (SEE/AC). Visitei todas as terras indígenas deste povo. Participei junto com eles de
oficinas pedagógicas para construção das propostas das escolas de suas aldeias. No PPGAS/
UFPR, em 2010, defendi a dissertação de mestrado intitulada “Na ‘remenda do céu com a
terra’: escolas diferenciadas não são Huni Kuĩ”, sob orientação da professora Laura Pérez Gil.
2
Consiste nas propostas de formação escolar do aluno de uma dada escola indígena ou de
várias escolas de uma mesma terra indígena.
3
Eles se autodenominam Huni Kuĩ (gente verdadeira), falam uma língua que se chama
hãtxa kuĩ (língua verdadeira), da família linguística pano e ocupam no Acre as margens dos
rios Murú, Humaitá, Tarauacá, Jordão, Juruá, Breu e Envira, além das margens da rodovia
BR-364. No Brasil, são aproximadamente 5.800, sendo que no Peru, à montante, seguindo
pelo rio Purus, encontraremos mais 1.400 pessoas.
4
Ver McCallum 2001:48.
5
Uma delicada etnografia acerca dos Kaxinawá do rio Humaitá e a escola, em 2004, inti-
tulada Escola Kaxi História, cultura e aprendizado escolar entre os Kaxinawá do rio Humaitá
(Acre), apontou que esta já não seria uma instituição “alienígena”, estrangeira ou de branco
na aldeia. Ela nos leva a compreender, sem inflexão, que a escola está inserida no cotidiano
Kaxinawá, pois “é parte integrante do cotidiano da aldeia e a sua frequência é percebida quase
como obrigatória para as crianças e os jovens.” (Weber, 2004:99).
6
Tal subvisualização refere-se ao fato de não ser o gênero o tema central das pesquisas,
mesmo que este não seja de todo ausente. Todavia, Weber (2004, 2006), Lagrou (1991, 1998,
2002, 2007), Kensinger (1995) e Deshayes & Keifenheim (2003) abordaram esta questão que,
embora não fosse o fulcro de suas análises, renderam à antropologia e à etnologia junto aos
Kaxinawá, importantes debates. Cecilia McCallum (2010) é quem nos chama atenção para
este dado.
7
Utilizar a preposição “da” em vez de “na”, para o título desta sessão, busca informar ao
leitor que há variadas práticas indigenistas ou formas de atendimentos para estas populações
indígenas. Poderíamos abordar estas práticas do atendimento a saúde, à demarcação de terras,
à autossustentação dos povos indígenas ou à escola. Todavia, estes atendimentos apresentam
distinções tais, que seria inadequado agrupá-los como subáreas de uma política indigenista.
Isto, tal como se percebe, apesar de grandes esforços não foi consolidado no Acre, onde no
âmbito governamental, quatro áreas apresentam ações indigenistas: educação, saúde, assis-
tência agroflorestal e cultura. Há, de fato, inúmeras ações de setores governamentais e não
governamentais de caráter pró-indígena, que visam autonomia e respeito à diversidade étnica.
No entanto, considerar que existam ações sistemicamente articuladas e integradas no aten-
dimento às populações indígenas é algo a se alcançar. Portanto, o Indigenismo da Educação
Escolar é um dos variados indigenismos que convivem no Acre, e não uma categoria deste
tipo de atendimento.
8
“O modelo coletivo do conhecimento, promovido por jovens líderes afinados com o
ideário comunitarista do indigenismo acreano, não conseguiu englobar outro modelo, com
linhas próprias de transmissão e gestão de saberes singulares, que não se dão a qualquer um
nem de qualquer jeito. Como pôr à disposição de todos um conhecimento adquirido, a tanto
custo, através dos processos seletivos de iniciação xamânica?” (Calavia et al., 2006:22 ) Este
argumento é producente para o contexto em questão, pois tal “igualitarismo” inicialmente se
dá com a criação de cooperativas indígenas, se estende e configura os argumentos centrais de
uma oficina em educação escolar, na qual a todos é possível saber, opinar e construir sentido
acerca dos temas tratados, independente do gênero, idade, nome ou metade matrimonial a
qual pertencem os participantes.
9
O período no qual se desenha o indigenismo comunitarista é pós-correrias, em contex-
tos em que os Kaxinawá já se encontravam integrados às atividades do seringal, mesmo que
em um momento de crise deste sistema, entre as décadas de 1970 e 1980.
10
O aviamento no seringal consistia na venda antecipada de mercadorias variadas, desde
itens manufaturados até alimentícios, ao seringueiro (freguês) para que este efetuasse a qui-
tação de seus débitos com a futura produção de borracha. Todavia, os fregueses, analfabetos
em sua ampla maioria, eram imobilizados no seringal em face dos cômputos de sua produção,
que segundo cálculos do seringalista em regra eram inferiores aos valores devidos. Este, claro
é um caso extremo de imobilização de mão de obra, no entanto, a trajetória Kaxinawá diante
do seringal apresenta um matiz. O início da empresa extrativista no Acre é marcado por “cor-
rerias” contra os índios. Movimentos expedicionários de matança indígena promovida por
caucheiros peruanos ou seringalistas brasileiros. Iglesias (2008:239), no entanto apresenta-
-nos um exemplo etnográfico no qual os Kaxinawá, num mesmo período histórico e num
mesmo rio, assumem diante de seus interlocutores brancos, uma dupla posição: “No alto rio
Envira, região onde à época o caucho era o principal produto explorado e a arregimentação
de peruanos era iniciativa comum para a composição de freguesias pouco duradouras, alguns
patrões passaram a vislumbrar a mão de obra dos indígenas como alternativa para desenvolver
atividades agrícolas e complementares à produção gomífera. A maioria dos patrões, contudo,
ainda concebia os índios como obstáculo a ser removido de suas propriedades e das cercanias,
de forma a garantir a ‘segurança’ de seus trabalhadores e a viabilizar a produção de caucho”.
11
Registre-se que, de acordo com a CPI/AC, na década de 1980 existiram cursos que du-
ravam três meses.
12
Uma variação deste tipo de assessoria ocorre em 2005, quando a CPI/AC, a SEE/CEI
e a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), protagonista do evento, reali-
zaram uma oficina de sensibilização acerca da Educação Escolar Indígena, ocorrida na Terra
Indígena Praia do Carapanã. Seu objetivo foi esclarecer à aldeia, tanto quanto aos professores
indígenas, o que seria e como poderia se efetuar a educação escolar indígena.
13
Estas traduções foram fornecidas por professores do rio Breu, a saber: Raimundo Adal-
to Paulo (Tuĩ), Floriano Kaxinawá Viana (Tene), Remilde Henrique Kaxinawá (Shane), Odair
Sales Sereno (Busẽ), Edigar da Silva Sereno (Siã), João Carlos da Silva Júnior (Iskubu)
14
A tradução mais corrente entre os Kaxinawá é “nosso batismo”. Lagrou (2007:503)
argumenta que: “o ritual se torna uma síntese eloquente da ontologia Kaxinawá.” Anos antes,
em 1998, a mesma autora recolhe uma explicação nativa producente para este artigo, pois
enfatiza a autonomia intelectual da pessoa a ser batizada. “Batiza-se uma criança”, explica
Edivaldo, “porque ela já tem seus próprios pensamentos” (Lagrou 1998:264).
15
Literalmente, traduz-se por “mulher que tem os desenhos”. A expressão revela que tal
mulher detém os conhecimentos das técnicas para elaborar e reproduzir os desenhos verda-
deiros (kene kuĩ) sejam estes aplicados em superfícies de objetos ou em pessoas, tramados na
cestaria, na tecelagem ou nas pulseiras de miçangas.
16
Com isto, afirma-se apenas o quão potente os índios transformaram sua atuação no in-
terior do estado. Não obstante, é preciso constatar o fato de que a CPI/AC contribui significa-
tivamente com os povos indígenas acreanos, no sentido de fomentar processos de autonomia,
iniciados com a criação das cooperativas. Ratifica-se, entretanto, a capacidade indígena de
criar contextos de trocas e fundação de novas alianças.
17
Sobre a trilogia da percepção Kaxinawá, ver Lagrou 2007:85.
18
Lagrou (2007:285) “Ao ingerir este cipó os humanos adquirem a capacidade para visitar
esta realidade oculta, um mundo de imagens yuxin oposto ao mundo terrestre dos corpos.
Ayahuasca produz imagens móveis e uma pulsação constante de formas, um mundo de pura
potencialidade de alteridade e alteração. Estas imagens do ‘outro-mundo’ são caracterizadas
pela presença do desenho cobrindo os corpos, utensílios e casas dos yuxibu do céu, da água e
da floresta.”
19
O primeiro curso de formação de professores indígenas no Acre foi realizado pela Co-
missão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) reunindo no ano de 1983 um conjunto de professores de
três famílias linguísticas, a saber: pano, arawa e aruak. Este formato perdura, tanto na CPI/
AC, quanto na CEEI nos últimos 27 anos, variando apenas com a criação de espaços específi-
cos para os módulos que abordam as línguas indígenas. Até o momento, foram realizadas 27
etapas de cursos de formação orientadas pela CPI/AC e dez etapas pela Secretaria de Educa-
ção. Ao reivindicar um curso específico, os Kaxinawá abalam este formato indigenista.
20
Ver McCallum 2001:41-63. A autora tratará de questões acerca da construção do gênero
na infância entre os Kaxinawá, dos espaços de exercício das agências masculinas e femininas,
de aprendizagem e socialidade. Seu argumento central é que há na divisão entre os gêneros,
espaços nos quais as habilidades e capacidades masculinas ou femininas ocorrem, por excelên-
162
cia. Todavia, a mesma autora (2010:87-104), nove anos mais tarde, tratará dados etnográficos
de fins da década de 1980 colhidos no Acre, junto aos Kaxinawá do rio Jordão e rio Purus,
para refletir sobre a relação das mulheres, frente à escola e à aquisição da escrita ocidental.
163
Referências
164
165
O contexto
Embora morem numa pequena aldeia que, raramente, supera os 100 habi-
tantes, o universo social dos Yaminawa1 (Pano) estabelecidos no Mapuya é am-
plo e diverso, não apenas em termos sociocosmológicos – como acontece em
outras sociedades ameríndias, o cosmo yaminawa é povoado por uma diversi-
dade de seres –, mas também em termos sociopolíticos. A região geográfica pela
qual transitam abrange a área oriental do sistema hidrográfico formado pelos
rios Urubamba e Ucayali, estando limitada no extremo norte pela cidade de
Pucallpa e no extremo Sul por Sepahua. Contudo, mesmo que eventualmente
viajem até essas cidades, o centro que tem maior importância na configuração
do mundo social Yaminawa é Atalaya, que fica a meio caminho entre ambas,
justamente na confluência dos rios Urubamba e Ucayali. No território próximo
de Atalaya, existem Comunidades Nativas (CN)2 demarcadas em benefício de
grupos Ashaninka, Piro, e Amahuaca. Os dois primeiros pertencem à família
linguística Arawaken quanto o terceiro é um grupo pano, da mesma forma que
os Yaminawa. A essas categorias étnicas se juntam outras à medida que se sobe
o Urubamba ou descemos o Ucayali. No rumo de Pucallpa, a primeira metade
do caminho é território Ashaninka, mas à medida que se progride aumenta, até
se tornar dominante, o número de comunidades Shipibo-Conibo; na direção
de Sepahua, prevalecem, principalmente, as etnias arawak – Yine, Manchineri
e Ashaninka –, embora estejam também presentes, de forma menos numerosa,
os Amahuaca e algumas famílias yaminawa procedentes do Purus e atualmente
muito associadas, por meio da convivência e dos casamentos, aosYora.
169
170
viracochas etc., para mencionar algumas, são todas elas categorias usadas pelos
Yaminawa para se referir a diferentes tipos de pessoa que fazem parte desse mar-
co social amplo. Quando me refiro à sociedade regional estou fazendo alusão a
esse sistema social complexo e heterogêneo.
Os contextos de interação dos Yaminawa com essa sociedade regional são
variados e se referem aos mais diversos aspectos de suas vidas: a economia, os
casamentos, a língua, os objetos, a alimentação. Os Yaminawa demonstram uma
atitude ambígua em relação a esse mundo no qual foram inseridos a partir da
ocorrência do contato permanente,3 oscilando entre o fascínio e uma crítica de
caráter moral a determinados aspectos que, segundo eles, o caracterizam. Mesmo
que a noção de “mestiço” constitua um dos elementos centrais desse marco so-
cial, as fronteiras entre as diferentes categorias que conformam a sociedade re-
gional ucayalina são concebidas por parte dos Yaminawa de uma forma menos
rígida do que pode parecer ou do que nós mesmos podemos pensar. A distinção
entre o indígena e o não indígena, ou melhor, a associação entre o não indígena
e a civilização não é tão direta como aparenta ser à primeira vista. Muitos dos
elementos que foram incorporados nesse contexto, e que os Yaminawa associam
explicitamente ao processo “civilizatório”, foram adotados de outros povos in-
dígenas e pouco têm a ver com os “brancos”: a prática de consumir grandes
quantidades de caiçuma em contextos festivos; o cultivo extensivo da mandioca;
o uso de canoas como principal meio de deslocamento; a prática de fiar algodão
para tecer redes; o uso das plantas piri-piri.4 Não vou me estender sobre esses
pontos que tratei em detalhe em outros trabalhos (Pérez Gil 2009).
Xamanismo regional
É neste contexto marcado pelo hibridismo, pela labilidade das fronteiras,
um tanto ilusórias, entre o indígena e o não indígena, que devem ser entendidas
as práticas e teorias yaminawa ligadas a qualquer processo de doença e cura. Isto
é assim porque opera, como pano de fundo, um sistema xamânico abrangente,
ele mesmo produto de um hibridismo histórico que teve nas missões católicas
dos séculos passados seu primeiro crisol (Gow 1994:156, 2001).Como nota Gow,
apesar da heterogeneidade cultural dessa região amazônica, a prática xamânica
revela-se de uma uniformidade notável. Contradizendo a perspectiva segundo
a qual o xamanismo baseado no consumo de ayahuasca é próprio das tradições
indígenas e estaria ligado diretamente e sem solução de continuidade ao perí-
odo pré-colombiano, Gow – num esforço por entender as afirmações dos Piro
e Ashaninka de que as formas contemporâneas de uso da ayahuasca vieram das
cidades rio abaixo – sustenta que essas práticas, que hoje podem se encontrar
171
não apenas entre indígenas, mas também entre a população mestiça, se desen-
volveram em contextos urbanos. Segundo o autor, os sistemas rituais de cura
baseados no uso de ayahuasca seriam, antes, produto dos processos coloniais,
tendo como marcos principais, em primeira instância, as missões onde diversos
grupos indígenas foram coagidos a se agrupar e a conviver, e em segundo lugar,
o boom da borracha.
Considero a proposta de Gow não apenas instigante, mas também plausível.
Alguns dados que coletei entre os Yaminawa parecem aludir à coexistência de
duas matrizes xamânicas, cada uma das quais estaria caracterizada, entre outras
coisas, pela associação de um conjunto distintivo de elementos: a onça, o tabaco,
as práticas de sucção, o poder xamânico materializado em objetos que entram
e saem dos corpos, de um lado; a sucuri, a ayahuasca, o canto como elemento
central da prática ritual, de outro. Embora seja arriscado fazer, a esse respeito,
qualquer afirmação, algumas informações indicam que a primeira dessas matri-
zes seria mais antiga e que a ela se sobrepôs a segunda (Pérez Gil 2006). Esse tipo
de informação não apenas é convergente com a análise de Gow – no sentido de
que o uso ritual da ayahuasca, tal e como se dá hoje, pode ter uma origem mais
híbrida e recente do que se pensa –, mas, além disso, nos vacina contra a tentação
de caracterizar o “tradicional” como “estático”.
De qualquer forma, e sem querer me embrenhar em discussões sobre ori-
gens, a proposta de Gow nos interessa aqui para refletir sobre aquilo que cha-
mo de xamanismo regional. Sendo ciente de que se trata de um conceito pro-
blemático – e ainda “em desenvolvimento” –, com ele me refiro ao sistema
presente na região do baixo Urubamba e alto Ucayali, constituído por uma
série de ideias e práticas que têm certo grau de homogeneidade. São partilha-
dos conceitos como ícaro, daño ou brujo5; várias categorias de doenças; usos de
determinados tipos de plantas, como as já mencionadas piri-piri, entre outras
coisas. Se caracteriza também pela circulação de saberes, poderes, práticas, pa-
cientes, curadores etc. que gera um complexo sistema de redes de intercâmbio
em vários âmbitos.6
Em função de seu contato permanente com a sociedade envolvente ter acon-
tecido apenas em data recente, os Yaminawa se mantiveram à margem – relati-
vamente, pelo menos – do desenvolvimento desse xamanismo regional ao longo
dos séculos passados. Hoje ele constitui, entretanto, um de seus principais ca-
nais de interação com o universo sociológico e cosmológico no qual se encon-
tram inseridos. De fato, o que orienta este trabalho é a ideia de que o xamanismo
regional se tornou um ponto de referência e de interlocução privilegiada na in-
teração dos Yaminawa com a sociedade envolvente.
172
173
174
– Olha, amigo, com isso aí é que queriam te matar, quase te mata, por pouco
não entrou no teu olho, estava faltando apenas um quarto para teu olho arreben-
tar. Agora, você não vai comer anta, porquinho, jundiá, jaboti. Você vai comer
apenas piaba, mingau de banana e mandioca.
Depois de um mês, seu próprio “dono” – o dono da cura, aquele que a reali-
zou e quem, portanto, orienta todas as ações do paciente em relação a ela – o con-
vidou para tomar caiçuma. O convite para tomar caiçuma é um teste: a caiçuma,
enquanto bebida alcoólica, aguça os sintomas do paciente, por isso, no início da
narrativa, ele não a aceitou. Manate tomou caiçuma sob a orientação do curador
e não sentiu nada estranho. Após dois meses, o curandeiro o assoprou novamen-
te para ver como estava. Tomou ayahuasca e tirou chumbo do seu corpo:
– Teus próprios parentes te fizeram feitiço.
Segundo Xamoko, sua mãe viu o chumbo bem desenhado. A referência ao
desenho do chumbo remete de um lado ao fato de ser um objeto patogênico, e de
outro a ser um objeto de origem yaminawa.
Finalmente, o curandeiro deu por finalizado o tratamento. Manate esta-
va curado, e já podia tomar qualquer uma das substâncias que afetam a cabe-
ça (ayahuasca, tabaco, álcool) e cujo consumo a doença tinha inviabilizado.
O curandeiro afirmou ainda que tinha sido o primo de Manate o propiciador
do feitiço. Ao saber disso, o irmão de Manate queria se vingar, mas o próprio
Manate o desencorajou, dizendo que aquele homem já tinha morrido e que ele
não era uma pessoa ruim para andar fazendo feitiço aos parentes do seu agressor.
O significado sociológico dessa narrativa apenas pode ser plenamente com-
preendido levando em conta algumas das características do sistema xamânico
yaminawa. Em primeiro lugar, e, contrariamente ao que é descrito nas etnogra-
fias sobre outras sociedades ameríndias, as acusações de agressões xamânicas
se dão dentro do próprio grupo, ou seja, entre pessoas que têm alguma relação
de parentesco, em ocasiões próximas. Esta circunstância se torna ainda mais
dramática se considerarmos que os grupos yaminawa são relativamente peque-
nos: o conjunto das famílias que reconhecem laços de parentesco entre si e que
conformam o grupo sociologicamente significativo raramente supera 500 pes-
soas, que, ainda, se encontram espalhadas em aldeias ou grupos habitacionais
distantes. Em ocasiões, as acusações podem ser dirigidas a indivíduos que não
são yaminawa, mas, nesses casos, proporcionalmente menos frequentes, exis-
te uma relação de parentesco por afinidade: homens – embora o xamanismo
não seja exclusivo do gênero masculino, são principalmente os homens que o
praticam – que se casaram com mulheres yaminawa podem se tornar alvos das
acusações, especialmente se lhes é reconhecida potência xamânica significativa.
De qualquer forma, a tendência endógena11 das agressões xamânicas se reflete
175
no fato de que, mesmo estando as acusações dirigidas a pessoas de fora, elas per-
tencem sempre a grupos que, da mesma forma que os Yaminawa, fazem parte do
conjunto denominado por Townsley de Pano do Sudeste e que configuram um
complexo social e cultural amplo marcado por uma dinâmica sociopolítica de
fissão e fusão, apresentando uma notável homogeneidade cultural e linguística
(Townsley, 1994:244). Além disso, em todos os casos que me foram narrados em
que o acusado era alguém de fora, existia algum tipo de relação entre vítima e
agressor que foi construída no passado, ou seja, a relação tinha uma história de
longa data.
O caráter interno das acusações está diretamente ligado às razões que expli-
cam, conforme a perspectiva nativa, as agressões xamânicas: segundo a maior
parte das narrativas sobre esse tipo de agressões que coletei entre os Yaminawa,
o ato foi motivado por uma conduta mesquinha por parte da vítima, ou seja, por
uma atitude que nega e desqualifica a relação entre parentes. É importante con-
siderar ademais que a prática xamânica não é, e era menos ainda algumas déca-
das atrás, exclusiva de especialistas; a iniciação aos conhecimentos e atividades
xamânicas fazia parte do processo de se tornar adulto, de forma que era empre-
endida pelos jovens de forma geral, embora nem todos atingissem o mesmo grau
de saber e potência. Nesse sentido, qualquer um podia ser, potencialmente, um
agressor, embora as suspeitas recaíssem naqueles a quem se atribuía mais poder.
Outra característica que remete à natureza interna dos processos de agressão/
acusação é a forma de identificação do culpável. Esta não se dá através da inges-
tão de substâncias xamânicas – embora essa possibilidade não seja negada –, se-
não que é a própria vítima quem, no momento de morrer e estando acordado, vê
com clareza (“clarito”), afirmam os Yaminawa, o agressor no momento em que
coletava os refugos usados para efetuar a agressão. Essa forma de identificação
apenas é viável num sistema em que agressor e agredido se conhecem pessoal-
mente, ou seja, onde a distância social entre eles é curta. De fato, no caso que
nos ocupa, o agressor procura ocultar o rosto ou pegar os refugos de costas para
evitar ser identificado posteriormente. É como se fosse feita uma foto instantâ-
nea no ato que evidencia claramente sua culpabilidade. Finalmente, existe outro
aspecto desse sistema xamânico que vale a pena destacar.
Os Yaminawa afirmam rotundamente que apenas a pessoa que realizou a
agressão, seu “dono”, pode revertê-la. Outra pessoa diferente pode realizar uma
cura, mas apenas conseguiria adiar o falecimento da vítima, e não desfazer o fei-
tiço. Esta lógica, acerca da qual os Yaminawa são categóricos e que se reflete de
forma sistemática nas suas narrativas sobre casos de doenças ou mortes causadas
por feitiçaria, apenas faz sentido num sistema endógeno: a) agressores e agre-
didos não apenas se conhecem, senão que, ainda, estão ligados por relações de
176
Lá, antes, alguém me fez mal em Breu. Do meu próprio grupo (mis pai-
sanos). Não me disse o nome de ninguém. “Do teu grupo, com certeza
tua família, quem foi que te fez isso?”. Eu vi o xubu desse tamanho, pe-
quenininho, eu o vi bem pintadinho. Mas ainda falta tirar um pouco.
177
“Lá, você vai adoecer de novo”. Eu vim aqui de novo, quase morro,
aquele dia que eu te pedi remédios. Eu não podia caminhar. Eu me
assustei. Por isso, eu tenho que voltar.
178
179
180
Notas
Uma versão preliminar do presente texto foi apresentada no Painel coordenado por Esther Jean
Langdon e Maria Manuel Quintela no IV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia.
Agradeço a Jean Langdon por seus comentários, que aproveitei para revisar o texto e apresentá-lo
novamente em um dos encontros organizados no marco do projeto PROCAD DAN/UNB–DEAN/
UFPR. Agradeço também aos participantes desse encontro por seus comentários, e a Marcela Coe-
lho de Souza pela leitura cuidadosa do texto e por suas sugestões.
1
Os dados nos quais se baseia o presente texto são fruto do trabalho de campo desenvolvido,
junto com Miguel Carid Naveira, em várias etapas entre 2000 e 2001, e posteriormente em 2003,
principalmente na aldeia yaminawa de Raya, localizada na cabeceira do rio Mapuya (Departamento
de Ucayali, Amazônia peruana). Ver Pérez Gil 2006 e Carid Naveira 2007.
2
Comunidad Nativa (CN) é a figura jurídica, instaurada pela Ley de Comunidades Nativas de
1974, que designa os territórios demarcados pelo governo peruano a favor das populações indígenas
e que corresponde, grosso modo, ao conceito de Terra Indígena no Brasil. Sobre a legislação e o pro-
cesso de demarcação de CNs na Amazônia peruana, ver Gray 1998.
3
Embora houvesse tentativas de estabelecer contato permanente em vários momentos ao longo
do século XX, tanto por parte dos Yaminawa como por parte de brancos e mestiços, elas foram infru-
tíferas, de forma que os Yaminawa se mantiveram desconectados da sociedade regional até o início
da década de 1960 (Pérez Gil 2009).
4
Esse termo se refere a um conjunto de plantas da família Cyperaceae amplamente utilizadas por
mestiços e vários grupos indígenas da Amazônia peruana e equatoriana para finalidades de tipo tera-
pêutico, preventivo, afrodisíaco e propiciatório, principalmente (Tournon, Caúper Pinedo e Urquia
Odicio 1998)����������������������������������������������������������������������������������
. Embora sejam usadas de forma generalizada tanto por grupos mestiços quanto indí-
genas, os Yaminawa associam os piri-piri aos Ashaninka, dado que, segundo explicam, eles foram os
primeiros a lhes ensinar seu uso.
5
Trata-se de termos usados de forma generalizada na Amazônia peruana. Os ícaros são rezas
cantadas usadas por xamãs e curandeiros; daño é uma categoria usada para se referir às doenças
causadas por feitiçaria; por sua vez, brujo é um termo usado para denominar pessoas de grande poder
xamânico, e que poderia se traduzir por “xamã” ou “pajé”.
6
Entre os autores que têm tratado aspectos daquilo que chamo xamanismo regional, podemos
citar Luna (1986, 1992) e Chaumeil (1988a, 1988b, 2000).
7
Cutipado é um termo de origem quíchua que designa certos tipos de doenças ou mal-estares
atribuídos ao ataque do espírito de algum animal, árvore ou objeto. Diferentemente, o malo-aire é
causado pelo espírito de um morto. Em ambos os casos, tratam-se de doenças que afligem, princi-
palmente, as crianças.
8
Disa é uma categoria que se refere a um conjunto muito amplo de plantas medicinais usadas
tradicional e corriqueiramente entre os Yaminawa e que, por algumas especificidades (lugar onde
são coletadas, formas de aplicação, linhas de transmissão de conhecimento, dietas exigidas) se dife-
renciam de outras categorias de plantas medicinais, incorporadas especialmente a partir do contato,
como são, por exemplo, os piri-piri. Sobre as diferentes categorias de plantas usadas em contextos de
agressão e de cura, ver (Carid Naveira & Pérez Gil 2002)
9
O Sheshea é um afluente do meio Ucayali cuja cabeceira converge com a do Huacapistea, onde
estava situada a aldeia de Paititi na época. As quatro comunidades estabelecidas no Sheshea são
Ashaninka, e existe provavelmente um tráfego entre as aldeias Ashaninka desse rio e as do Huaca-
pistea.
10
Termo quíchua que faz referência aos “brancos”.
11
Cabe destacar que, entre os Yaminawa, predomina de forma muito marcada uma endogamia
matrimonial: a preferência é por casar com alguém de dentro do grupo ou de algum grupo cultural
e linguisticamente próximo. Paralelamente, a atividade guerreira, que tinha no rapto de mulheres
uma das suas principais motivações, ocorria apenas com grupos próximos em termos culturais e lin-
guísticos. Não registramos, por exemplo, nenhum caso de uma mulher raptada que não fosse falante
de línguas pano muito similares ao yaminawa.
181
Referências
ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres. Représentation de la mala-
die, système rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Ama-
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ninguém as anuncia para alguém com quem não pretenda beber junto. A chi-
cha, assim, não roda a aldeia senão quando é levada à casa dos velhos que têm
dificuldades para andar. Uma casa com um cocho cheio de chicha fermentada é
mesmo um ponto “fixo” de referência, uma espécie de centro, e são as pessoas
que devem se deslocar até ele. O ponto de referência se mantém pelo menos até
que a chicha acabe, quando é a vez de outro tornar-se saliente neste sentido.
As chichadas oferecidas como pagamento de trabalho coletivo ou numa festa
comemorativa são promovidas seja por homens, seja por mulheres, no primeiro
caso; e pelo grupo doméstico como um todo, sem a divisão por gênero, no se-
gundo. Assim, na organização do trabalho, se este envolverá só homens (como
derrubada de mata, colocação de telhado, limpeza dos caminhos e terreiros) diz-
-se que a chicha é dos homens, se é um trabalho que envolva as mulheres (mais
comumente limpeza de roça e plantação de manivas) diz-se que a chicha é das
mulheres. Neste último caso, é a dona da chicha que irá à casa das outras mulhe-
res para convidá-las. Tanto homens quanto mulheres, sejam eles jovens recém-
-casados ou pessoas mais “maduras” (aqueles que já são avós ou bisavós, mas
que não são tão velhos que não trabalhem mais) podem organizar um trabalho
coletivo. Desta forma, há uma grande circulação da função de organizador e
trabalhador, produtor e consumidor, em que a chicha aparece como uma espécie
de dádiva por meio da qual as pessoas se comunicam e se encontram, cada vez
ocupando uma posição diferente. Fica claro, porém, que nesta circulação por
assim dizer simétrica da função de organizador, são os homens mais velhos os
que tendem a desempenhar mais facilmente esta função. Quanto mais filhas sol-
teiras um homem tiver para auxiliar sua esposa na preparação da bebida, quanto
mais genros ou filhos com quem possa contar para o trabalho ele puder reunir,
mais apto estará a ocupar tal posição, pois um cocho de chicha sempre cheio tem
o poder de reunir muitas pessoas para o trabalho.
O desenrolar das duas ocasiões em que se bebe chicha com muitas pessoas,
como pagamento de trabalho coletivo ou numa festa comemorativa, têm elemen-
tos comuns e outros díspares. Seja numa festa, seja numa chichada para trabalho
de homens ou mulheres, é a elas que normalmente cabe o serviço da chicha, e da
preparação e distribuição de alimentos. Enquanto numa festa não pode faltar a
dança, as chichadas feitas por conta do trabalho não necessariamente evoluem
para isso. Na ocasião de trabalho, é comum que as pessoas cheguem bem cedo,
tomem um pouco da chicha e sigam o organizador até o local do trabalho, onde
ele dará as instruções. Voltam normalmente antes de o sol estar a pino, e pros-
seguem bebendo chicha pela tarde e, às vezes, à noite. As festas se iniciam um
pouco mais tarde, quase sempre no crepúsculo, e o ideal é que prossigam noite
adentro, até quase o amanhecer.
187
Nas duas ocasiões, é oferecida comida pelo grupo doméstico onde a chicha
foi produzida. No primeiro caso, entretanto, só come quem trabalhou; no segun-
do, a todos os convidados é oferecido o alimento. Por sua vez, quando o alimento
é visto como pagamento de um trabalho, o mais comum é que se ofereça pei-
xe (pescado pelo(s) filho(s) homens daqueles que organizaram, mas moqueado
pelas mulheres da casa), acompanhado de macaxeira cozida. Nesta ocasião, os
trabalhadores se servem, comem com as mãos todos de um mesmo prato, dei-
xado ao chão (normalmente no centro onde estão reunidos). Se não há trabalho
envolvido, somente as velhas e as mulheres com filhos bastante pequenos eu
vi comerem nestas ocasiões, enquanto as outras permanecem unicamente be-
bendo chicha. Se é um trabalho organizado pelas mulheres, ocasião mais rara,
a situação se inverte. Mas mesmo assim homens com filhos pequenos não se
alimentam.
Na ocasião da festa, o ideal é que se tenha carne de porco, ou tracajá/zé prego,
ou tartaruga (carne de boi também, mas isso só se a ocasião for muito especial,
como no fim do ano), e seja acompanhada por arroz ou macarrão. As pessoas são
servidas em pratos e talheres individuais pelas mulheres do grupo doméstico
que está oferecendo a festa. Elas devem cuidar para que a quantidade de comi-
da dê para todos, para que os convidados bebam a sua chicha em fartos goles,
fiquem assim satisfeitos e não “saiam por aí falando mal”. Nessas festas, as pes-
soas aparecem com suas melhores roupas, os homens vestem suas camisas e as
mulheres a saia e a blusa mais nova que tiverem.
Depois que são convidados, o que normalmente é feito pelo marido ou por
um filho homem daquela que coordenou a produção de chicha na sua casa, os
casais vão juntos com seus filhos pequenos à casa onde está sendo oferecida a
bebida. Chegado ao terreiro da casa, onde de praxe se bebe chicha, invariavel-
mente deve-se proferir um cumprimento, o que depende da hora do dia: diz-
-se “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Imediatamente o casal se separa:
a esposa junta-se às outras mulheres e o esposo aos outros homens já presen-
tes. Ninguém se senta antes que o dono da chicha lhe dirija a palavra, e esta
de fato é a sua primeira frase para aqueles que chegaram: “senta, fulano!”. Se
não lhe for oferecida uma cuiada de chicha logo depois, este é certamente um
bom motivo, talvez o principal, para que não permaneça no local. Oferecida a
primeira cuiada, continua-se a beber: outro bom motivo para permanecer no
local até que o cocho tenha “secado”. Assim que isso acontece, deve-se pro-
ceder imediatamente à saída, uma regra de etiqueta muitas vezes apontada a
mim e que parece ter o objetivo de evitar brigas. Enquanto se toma chicha
estão todos alegres e risonhos, quando não se tem mais a bebida este estado
de ânimo pode imediatamente se inverter. Na saída, normalmente feita pelo
188
casal, cada um dirige-se ao(s) dono(s) da casa dizendo “já vou”, ao que este
responde “está bom”. Vai-se para outro local onde se está oferecendo chicha – e
todos sabem onde – ou, caso se esteja bêbado demais, segue-se direto para sua
própria casa.3 Durante as chichadas, as pessoas comumente se dispõem/sentam
em círculo. O cocho ou os galões que armazenam a chicha não ficam ao centro,
mas encostados numa parede ou algo que o valha, interceptando este círculo e
não raramente dividindo-o em uma parte feminina e outra masculina. A distri-
buição, a partir dos recipientes, é feita pelos donos da casa ou por seus filhos,
mais comumente as filhas mulheres, mas pode acontecer que um filho homem
também sirva os convidados. Reserva-se uma cuia (ou caneca) para pegar a chi-
cha no cocho e depois despejá-la na outra que será entregue. É incomum que
alguém peça abertamente para ser servido; as pessoas chegam, sentam (depois
de instados a fazê-lo) e esperam a primeira cuiada.
Em cada rodada, ou assim que o “cocho é aberto”, aquele que está encarrega-
do de servir os demais deve primeiro servir-se de uma cuiada para depois passar
a servir os outros presentes. Em grandes chichadas, é comum que a dona da casa
entregue uma cabaça grande4 e duas cuias para os velhos que ali estão. Esses
velhos, então, servem aqueles que estão ao seu redor, observando a etiqueta de
se servirem primeiro para depois servirem os outros. Aquele que está servindo a
chicha observa a disposição daqueles que estão sentados e os serve um em segui-
da do outro, até que a embriaguez vá subindo de nível e uma ordem não se faça
mais necessária. Na primeira cuiada, a quantidade de chicha servida é sempre
maior e é de bom tom que se tome num gole só. A etiqueta não estará completa
se depois desse belo gole não se franzir o cenho soltando uma espécie de grito,
numa demonstração de que a chicha está boa, quer dizer, azeda, ou seja, embria-
gante. É bonito que se faça isso depois de beber a primeira cuiada num gole só,
mas fica feio se o movimento de secar a cuia de uma vez se repetir em demasia.
Deve-se saber beber.
Seguindo com o manual de etiquetas, é necessário dizer que de maneira al-
guma se recusa uma cuiada oferecida. Caso não se queira beber vai-se embora
ou nem se comparece ao local. “Secar o cocho”, ou seja, beber toda a quantidade
de chicha disponível parece ser uma obrigação moral para os que ali estão. E
isso implica, não raramente, beber coletivamente (20 ou 30 pessoas) mais de
300 litros de cerveja de macaxeira (nas festas maiores que ocorriam no Chapéu
de Palha essa quantidade podia dobrar). Aqueles já embriagados ou de “barriga
muito cheia”, mas que desejam continuar a beber, normalmente induzem o vô-
mito para que consigam prosseguir em sua empresa. Não é comum que se vomi-
te no mesmo local onde as pessoas estão bebendo, por certo é mais adequado que
se faça isso um pouco mais afastado. Franz Caspar (1953) já registrara o vômito
189
coletivo entre os Tupari nas ocasiões de suas festas regadas à bebida fermentada.
Nas festas em que participei, raramente pude presenciar mais de dois homens
vomitando um ao lado do outro, mas quando isso aconteceu percebi que se tinha
reservado um local específico para tal, mais ou menos longe dos olhos daqueles
que estavam se divertindo na festa.
Enquanto numa festa não pode faltar a dança (ao som frenético dos forrós da
região Norte do Brasil, entrecortados pelo som compassado das músicas maku-
rap, entoadas por velhos bêbados), as chichadas feitas por conta do trabalho não
necessariamente evoluem para isso. O momento da dança é aquele onde a efusi-
vidade é maior. Dança-se ao molde regional, em casal, e à mulher cabe esperar
que o homem venha tirá-la para dançar. Jamais se recusa o pedido de dança de
um homem, pois seria uma afronta demasiado séria e motivo de tristeza para
aquele que teve seu pedido rejeitado. Ainda que marido e esposa dancem even-
tualmente juntos, a graça maior está na troca dos casais.
Da fala inicial um pouco recatada e talvez até tímida, não sobrou nada.
Depois de muita dança observam-se as jovens mães com seus filhos no colo qua-
se caindo, o olhar perdido. Mulheres podem estar com o olhar marejado, lem-
brando de seus parentes mortos, sentindo saudades. Outros falam demasiado
alto, e riem, riem, riem. As velhas também gritam com seus netos, ou dão muita
risada com suas cunhadas. Os velhos ao chão, deitados, dormindo. Também as
crianças dançam em meio aos casais. Já não existe mais ordem na disposição das
pessoas e na distribuição da chicha e o cocho é visitado por quem quer beber.
Formam-se grupinhos ao redor do terreiro central, cada um conversando coisas
diferentes, ou simplesmente bebendo e olhando os outros dançarem. As mulhe-
res já saem muito mais juntas para atender a necessidade de urinar. Os jovens
vêm e vão, se escondem no escuro para namorar.
Neste estágio, é difícil que alguém chame a atenção de outros por alguma coi-
sa. Não existe mais uma conversa “pública”, nem uma atuação “pública”. Cada
um está compenetrado em dançar e beber, beber e dançar. Ou lembrar sozinho
de alguém distante. “Nicole está bêbada?” Era invariavelmente o modo como
as pessoas se aproximavam de mim. Ou, pelo reverso, “estou muito bêbada(o),
Nicole”. Assim se começa a “conversar” neste estágio da festa. Uma ou duas per-
guntas posteriores, risadas e, caso esteja um ouvido disponível, longas lamenta-
ções ou causos. Embriagado, um homem lamentava-se pela morte do filho e me
contava que seu pai, falecido xamã, queria “levá-lo” (para o céu), mas acabou
levando seu irmão, falecido há não muito tempo. Era embriagado também que
ele me contava ter medo de morrer logo, pois achava que era isso o que iria acon-
tecer. Também esse foi o tema da primeira conversa que eu tive com sua esposa:
entre cuiadas de chicha ela me contou que seu filho morrera há pouco. Não raro,
190
nas chichadas, uma de minhas interlocutoras vinha me dizer sobre seu desejo
de ir embora comigo, pois a morte de seu filho, que estava pra “completar ano”,
ainda a deixava demasiado triste. Ela não aguentava lavar roupa no mesmo porto
em que ele tinha falecido, era “assim estar vendo ele”. Outras meninas também
manifestavam sua vontade de se distanciar dali, vinham me perguntar se acaso
eu não poderia levá-las para minha cidade. Uma recém-viúva, depois que soube
que meu pai era separado de minha mãe, perguntou-me se eu não poderia levá-
-la comigo, pois assim ela poderia casar com ele. Disse-me que quer mesmo um
marido eré (branco), pois ela não gosta de comer a mesma coisa todo dia. “Eu
gosto de tudo variado. Eu quero um marido eré. Eu gosto mesmo é de comer
mortadela!”
***
191
192
que o novo casal construa sua casa contiguamente à casa do pai do marido.
Na sociabilidade doméstica (caracterizada pela partilha de alimentos, carinho
e cuidados entre parentes de casas diversas e contíguas), os homens não con-
vivem com seus genros/sogros ou cunhados. Ao mesmo tempo, supõem-se a
afinidade de mesmo sexo para o ponto de vista feminino (o que é acionado
pelas mulheres na produção da bebida fermentada, onde a sogra/mãe orienta
os trabalhos de sua nora e filha). Os homens de mesmo grupo habitam casas
contíguas e as mulheres estão em contiguidade com mulheres de outros grupos.
Assim, mesmo com a proximidade das casas é possível visualizar “setores re-
sidenciais” distinguidos pela composição grupal/étnica. A separação das tribos
é concebida como um movimento primordial, empreendido sobre a terra pela
primeira humanidade, depois que a morte passou a existir. A multiplicidade
de povos/coletivos (“subgrupos”) encobertos pelos etnônimos, assim como a
possibilidade de enunciação desses, é produzida por distinções (linguísticas e
territoriais) concebidas como primordiais. Tais distinções são ancoradas nas
narrativas de estrutura mitológica que versam sobre o começo dos tempos. O
registro mitológico Wajuru, com temas bastante similares aos compartilhados
por diversos povos vizinhos, aciona e suporta tais diferenças: depois que os
humanos, descobertos pelos irmãos demiurgos, saíram de debaixo da terra, dois
eventos, que podem ou não serem descritos conjuntamente por um narrador,
marcam as descontinuidades sociológicas. O primeiro, quando todos estavam
sentados, o irmão mais novo, aquele mais teimoso, começou a falar diversas
línguas e foi ensinando a cada um uma língua diferente, inclusive a língua dos
brancos – localizados no início dos tempos. Passou-se então uma grande con-
fusão e desentendimento entre eles. O segundo evento deu-se depois que este
irmão (o mais novo) pensou na morte e ela começou a existir. A emergência
da morte marca o momento em que as pessoas começam a andar sobre a terra,
orientadas pelos irmãos descobridores. A partir daí cada grupo ficou em um
determinado lugar, todos se territorializaram. Desde então essas pessoas não
mais se misturaram, formaram tribos.
Os movimentos primordiais marcam uma distância que é lembrada como
aquela que existia nos tempos da maloca. Neste tempo, diz-se, as tribos se visi-
tavam para tomar chicha, quando tinham a oportunidade de ver seus parentes
outros. Ao passo que hoje estão eles todos misturados. Lembram ainda que na ma-
loca todas as mulheres faziam a chicha juntas. Assim, como as visitas se davam
entre malocas, era a chicha produzida pela totalidade das mulheres do local o
que fazia a mediação entre os assentamentos. No contexto atual, a chicha é pro-
duzida nas casas, e são as pessoas das outras casas que se deslocam até a casa de
alguém, o que já é a antecipação de uma distância (sociológica) a ser percorrida.
193
Para isso, porém, é necessário que antes o homem da casa rode a aldeia convi-
dando seus parentes para tal.
São eles então que se deslocam de uma casa para outra, que são concebidas
como local dos homens, cujos filhos são do mesmo grupo que ele. Nesse desloca-
mento, porém, eles irão até os outros homens, convidando-os. Usam principal-
mente se apoiar nas relações de parentesco outras (tal como se fazia no tempo da
maloca), aquelas estabelecidas por intermédio de sua mãe ou de uma ascendente
feminina. Chamarão seus manos, forma de tratamento que é, sobretudo, utiliza-
da entre irmãos classificatórios de grupos distintos6 e que tem, na chichada, o
principal palco para se manifestarem. Passemos então aos modos de socialidade
(in)vertidos pela bebida fermentada.
Riso e embriaguez
É, pois, na socialidade encenada nas chichadas que o mundo apresenta seus
semitons, seus matizes e suas colorações, desfazendo ou suspendendo certas li-
nhas discretas próprias à socialidade doméstica. Por meio da chicha diferentes
pessoas entram em comunicação, os domínios horizontalizam-se, “afinizam-se”.
Regados pela cerveja, os intervalos, como que embriagados, são colocados sob
suspeita, sejam aqueles engendrados pelas conexões de sangue, sejam os próprios
intervalos de definição do humano. De um lado, se nos perguntarmos “do que é
feita a chicha?” seremos conduzidos a noções de humanidade e personitude que
se estendem para além da divisão ontológica moderna entre natureza e cultura
enquanto domínios estanques e incomunicáveis. Isto porque a macaxeira é fruto
de uma série de transformações a partir do corpo de um ser mitológico. Assim,
reciprocamente, plantar maniva pode ser traduzido como “enterrar gente”, afir-
mações que somente podem ser “ditas” se acompanhadas de uma boa risada.7
Antecipações que pretendo descrever.
***
194
e pelo modo de recrutamento agnático dos povos, aos homens cabe um domínio
organizado primordialmente sobre um eixo vertical. Enquanto que às mulheres,
por se espalharem, “como as raízes de batatas”, são os pontos de comunicação
num plano horizontal, sem solução de continuidade, mas fluindo entre os seg-
mentos territoriais. Elas apresentam uma geometria variável, diversa daquela
composta pelos homens, que tendem a se aglutinar, condensando as linhas de
composição.
Regadas pela chicha fermentada, estas categorizações próprias ao campo do-
méstico sofrem certa desestabilização. Nas chichadas, às mulheres cabe clari-
ficar as condições da existência masculina: é por meio delas que os homens se
comunicam, seja pelo parentesco uterino, os parentes outros (manos), seja pelas
relações de afinidade de mesmo sexo. É somente nas chichadas que este paren-
tesco outro (uterino) emerge como a dobradiça capaz de comunicar os diferentes
povos, mas tão somente para remoldá-los. Lembro-me de um dia em que meu
anfitrião havia se preparado para ir caçar, mas não pôde recusar o convite de seu
mano, um homem Djeoromitxi muito mais velho que ele, cuja esposa durante
a chichada lembrava a todo o tempo serem eles manos entre si. Assim também
são esses manos que bebem próximos um do outro, estão de fato juntos numa
chichada. É também por meio da socialidade proporcionada pela cerveja que a
afinidade masculina de mesmo sexo tem o seu lugar. Foram nestas ocasiões que
vi os homens se relacionando publicamente com seus afins, referindo-se a eles
como sogros ou cunhados (em português).
Ao passo que as relações consanguíneas de mesmo sexo, do ponto de vista
feminino, caem numa espécie de limbo, podendo ser reclassificadas segundo
relações de afinidade engendradas seja por Ego ou por uma descendente sua: na
chichada, o parentesco consanguíneo pode ser abordado pela afinidade de mes-
mo sexo do ponto de vista feminino, embora o contrário não aconteça.
É também nas chichadas, pelo encontro com os parentes próprios com quem
não convivem na socialidade doméstica, que elas têm a possibilidade de expres-
sar suas relações agnáticas de uma maneira respeitosa. Diferentemente das re-
lações de afinidade que são expressas quase sempre em português, seja por mu-
lheres ou por homens, nestes casos, as mulheres costumam se utilizar do termo
de parentesco na língua materna. Ao mesmo tempo, uma mulher tem a possibi-
lidade de brincar (zombar, se a categoria etária permitir) com um consanguíneo
agnático seu, pertencente, portanto, ao mesmo grupo que ela. Tal brincadeira
pode mesmo extrapolar qualquer limite respeitoso. Numa chichada, uma mu-
lher Wajuru “brincava” com um homem de seu mesmo grupo étnico, dizendo
que “ele era onça, sovinava sua comida, comendo sozinho. Comia muito, gostava
de cabeça de porco e por isso estava gordo demais!” Ele escutava em silêncio as
195
provocações de sua filha classificatória (que, no entanto, era já avó, assim como
ele), realçadas pelas risadas de todos os presentes. Estaria ela tratando seu con-
sanguíneo agnático como um virá (cônjuge preferencial)?8 Mas até que ponto
essa intrusão da afinidade na consanguinidade pode ser levada a cabo sem que a
outra parte se machuque?
Existem modos particularmente bons de comportamento nestas ocasiões.
Não recusar as cuiadas é bastante importante, mas saber beber, ficar bêbado sem
que com isso se “aperreie” os outros, é um dos modos perseguidos de boa socia-
bilidade. Da mesma forma, dançar é “brincar”. A brincadeira (entre conversas
e danças) é mesmo o modo relacional das chichadas, seja porque é ali que os
virás/oguaikup (companheiros) têm a oportunidade de expressar sua proximida-
de, suas relações, seja porque as atitudes entre certos parentes encontram neste
contexto uma espécie de relaxamento.
As metáforas sexuais abundam nos contextos das chichadas e são parte das
brincadeiras que podem ocorrer entre certos parentes. Isto porque, julgo, são
principalmente as relações de afinidade de sexo oposto que estão em jogo numa
chichada: “Não é você irmão do meu marido? Não é você meu marido?” Gritava
uma mulher a um cunhado seu (irmão classificatório de seu marido), enquanto
tentava arrastar o bêbado para dançar com ela. A brincadeira que envolve a dan-
ça com troca de casais talvez performe as possibilidades anteriormente abertas,
mas que não foram atualizadas e “excluídas” pela afinidade efetiva. Foi tam-
bém numa chichada que pude ouvir apreciações públicas sobre a distintividade
Wajuru vindas de uma mulher Tupari cujo marido é Wajuru (ao contrário da-
quelas somente “segredadas” para mim quando estávamos sozinhas). Depois de
ouvir um homem Wajuru dizendo que estava cansado de sua mulher e que iria
colocá-la para fora de casa, ela afirmava em alto e bom som que o pensamento de
Wajuru é mesmo aquele que diz que “o dono da casa é o homem”, que a casa é do
homem e não da mulher. Depois das risadas de todos, aquele se calou.
Na casa de seu sogro, Jemanoi Djeoromitxi, Albertina Wajuru dizia em voz
alta para Quati Wajuru que sua esposa, por não ter o marido em casa, teria “co-
mido uma cobra e por isso estava grávida”. Quati havia passado um longo perío-
do trabalhando na Bolívia e no mesmo dia em que voltou sua esposa fora picada
no caminho do porto. Às risadas de todos os presentes, Quati respondia fazendo
brincadeiras com Albertina de igual teor sexual. Eu estranhei este tipo de brin-
cadeira entre os dois, pois, em linha agnática, os genitores de ambos (Neruirí e
Casimiro) são considerados irmãos e isso os transforma em irmãos classificató-
rios. Na casa do pai de Albertina, nunca vi igual tratamento entre os dois, na
verdade, nunca os vi dirigindo-se a palavra. Ao passo que as irmãs de Albertina
não casadas tratam Quati por mano, observando o respeito e comedimento que
196
197
da casa tivesse ofendido duramente o velho, exatamente seu sogro. Também foi
numa chichada a única vez que ouvi alguém chamar a outro de panema. Um ho-
mem Wajuru se referia ao marido da filha de sua sobrinha (BDDH) que também
é seu sobrinho (FBDS), tratando-o como se fosse seu virá.
A brincadeira exige uma habilidade social e impõe ela mesma seus limites.
Do contrário, fica difícil que essas relações não causem angústia ou raiva, numa
parte ou na outra. Isso porque, se essa habilidade no encontro não for bem me-
dida pode ser que acabe por acarretar a tristeza dos parentes dos outros: quando
se está bêbado, “no poder” da chicha, afins podem não só se encontrar, mas
levar suas rivalidades às ultimas consequências. As inimizades suscitadas pelo
“poder” da chicha, se podem, algumas vezes, ser esquecidas, por certo também
podem se avivar
A chicha propõe tanto caminhos de convivência quanto de evitação, constrói
e destrói, no mesmo golpe, relações e pessoas. A quantidade discreta (as tribos de
antigamente, ou os povos atuais) pressupostos pela “decisão” em linha paterna,
sofre uma interferência daquela linha materna invisível, porque “se espalha”,
verte entre uma cuiada e outra. Não menos que os intervalos da natureza e da
cultura, um se entrosando no outro. São nas chichadas que os intervalos da co-
munidade humana são postos sob suspeita.9 Assim como bebem os vivos, nou-
tros lugares (no céu ou debaixo d’água) bebem também os mortos, bebem outros,
humanos, pois isto o atesta sua predileção pela chicha. Foi numa chichada em
que comíamos a carne de um boi que acabara de ser abatido que uma mulher me
chamou a atenção para o sentimento de luto das vacas que nos olhavam ininter-
ruptamente. Estavam tristes por seu parente morto, choravam a mãe, os irmãos,
o pai daquele que acabara de morrer. Não foi senão durante uma chichada para
trabalho que eu pude ouvir, em contraste com a pouca verbalização que impera
sobre os alimentos vindos da mata ou do rio, que os homens iriam comer suas
primas assadinhas, se referindo à piranha moqueada que lhes era oferecida pela
dona da casa. É porque se está bebendo que se pode referir ao pai classificatório
por onça, assim como chamar um peixe por prima.
***
“É preciso”, diz Sztutman (2008) sobre o desafio de viver num mundo ani-
mado onde experimentar a perspectiva de Outrem pode ser tornar algo irrever-
sível, “aplicar modelos de reversibilidade para evitar o irreversível absoluto, a
descontinuidade absoluta imposta pelo tempo” (Sztutman 2008: 243). Não seria
isso que nas chichadas as pessoas estão fazendo? “Saindo de si”, experimentan-
do a convivência com outros, diferentes. Mas cujo encontro também traz em si
198
riscos que, de toda maneira, devem ser controlados, para não serem levados a um
paroxismo irreversível. Não é senão experimentando outras perspectivas rela-
cionais, vendo nos parentes animais, nos animais os parentes, no consanguíneo
um afim, que está se aplicando a reversibilidade, desfazendo aquela descontinui-
dade absoluta.
Os efeitos embriagantes da chicha elucidam o vislumbre de mundos outros,
diferentes sistemas semióticos e sua reversibilidade.10 Uma dupla articulação,
quiçá evocativa da desterritorialização de termos heterogêneos colocados numa
nova relação (comunicação), aquela que Wagner (1978) propõe para a metáfora
The non-conventional relation introduces a new symbolization
simultaneously with a “new” referent into one expression, and the
symbolization and its referent are identical. We might say that a me-
taphor or other tropic usage assimilates symbol and referent into one
expression, that a metaphor is a symbol that stands for itself- it is
self-contained. Thus the symbolic effect of tropic usage in two ways:
it assimilates that which it “symbolizes” within a distinct, unitary ex-
pression (collapsing the distinction between symbol and symbolized),
and it differentiates that expression from other expressions (rather
than articulating it with them). (Wagner 1978:25)
O riso característico da embriaguez “diz” o que não poderia ser dito de
outra forma, como um modo de (re)conhecimento sobre o mundo e suas múl-
tiplas possibilidades de enunciação. Signo do acesso a outras perspectivas, sem
que se caia nestas indefinidamente. Um “estar lá” que antecipa a volta imediata
ao “estar aqui”, assegurando este “lugar” ao qual voltar. É o riso, penso, que
coloca esta possibilidade: espécie de vislumbre, mecanismo que permite acessar
outros códigos comunicativos sem que se perca de vista a diferença entre eles,
quer dizer, o próprio fato deste acesso.
A brincadeira e o riso situam-se num plano metacomunicativo que, como
diz Bateson sobre o anúncio “This is play”, estabelece a equalização e ao mesmo
tempo discrimina a mensagem e os objetos os quais ela denota: “These actions
in which we now engage do not denote what those actions for which they stand
would denote” (Bateson 2000: 180). O objeto do discurso metacomunicativo
seria então a relação (relationship) entre os falantes, capazes de reconhecer que os
signos veiculados por eles mesmos e por outros indivíduos são “apenas” signos.
Isto acarreta a natureza lábil da moldura (frame) estabelecida pela mensagem
“This is play” e o paradoxo presente nos signos veiculados nestes contextos:
“that the playful nip denotes de bite, but does note denote that which would
be denoted by the bite (Bateson 2000: 183). Num trecho do artigo “Style, Grace
199
and Information in Primitive Art”, no qual delineia uma análise da pintura ba-
linesa, Batenson (1999) amplia suas asserções sugerindo que
It is probably an error to think of dream, myth and art as being
about any one matter other than relationship [...] if the pictures are
only about sex or only about social organization, it would be trivial. It
is non trivial or profound precisely it is about sex and social organi-
zation and cremation and other things. In a word, it is only about re-
lationship and not about any identificable related. (Bateson 1999:151
– ênfase no original)
Tal caráter de simultaneidade desses “objetos” (sistemas de comunicação)
sobre os quais o autor mantém sua atenção, quero dizer, uma espécie de qualida-
de refratária à captura por um só referente, parece poder nos ajudar no entendi-
mento dos modos de socialidade despertos pela chicha e vislumbrados pelo riso.
Como diz Sztutman (2006:242) recorrendo a Georges Bataille, a propósito
da experiência do “sair de si”: “O êxtase é comunicação entre termos (esses ter-
mos não são necessariamente definíveis), e a comunicação possui um valor que
os termos não possuem: ela os aniquila – do mesmo modo, a luz de uma estrela
aniquila (lentamente) a própria estrela (Bataille 1961:50)”. E o riso, esse que
vislumbra os intervalos se entrosando um no outro, os antecipa e dispõem deles,
os obvia, no sentido proposto por Wagner:
For any nonarbitrary symbolization, any “motivation”, that is
not of a conventional symbolization character threatens to subvert
and supplant the conventional symbolization with a “nonarbitrari-
ness” of a much more piquant and individual variety. The “trope” or
“turning”, of the symbol from its conventional application directly
confutes or denies the latter. The conventional (or, in the case of a
well-worn trope, a conventional) sense “dies”, and is fragmented and
is “fragmented” or “differentiated” into something “new”. This con-
futation of the conventional is an effect of what is generally called
“metaphor”, and is germinal to what I shall call, in its broadest impli-
cations, obviation. (Wagner 1978:24 – ênfase no original)
Aniquilar referentes, deslocar modos de significação, rir. Não que se queira
excluir sua contraparte: a tristeza e o choro pelos parentes mortos. Antes é ne-
cessário entendê-los como momentos (eventos) de uma parábola desenhada pela
embriaguez. Afinal, se se está ali para beber e “brincar”, porque tão facilmente
pode-se cair em seu oposto? Não se vislumbra a reversibilidade sem que isso
envolva um perigo. Quanto mais a reversibilidade vislumbrada de tais estados
200
201
Notas
O trabalho de campo na T.I. Rio Guaporé foi realizado durante três meses, subsequentes a
outros dois meses em outros locais de Rondônia, com vistas à produção de dissertação de mestrado
intitulada “Do poder do sangue e da chicha: os Wajuru do Guaporé (Rondônia)”, sob orientação
de Edilene Coffaci de Lima, defendida em 2009 no PPGAS/UFPR (Soares-Pinto 2009). Na oca-
sião, foram enfocados a dinâmica social Wajuru e seus modos de organização social e parentesco.
Como um modo de visualização de tais relações, as chichadas se fizeram um ponto importante.
Em grande medida, a reflexão que agora apresento deriva de e replica aquela apresentada em mi-
nha dissertação, que se restringe às chichadas que pude acompanhar na aldeia Ricardo Franco e
nos sítios em seus arredores.
1
A mandioca-braba (chamada também de paxiubão), até onde sei, não é nem nunca foi utili-
zada para a produção de bebida. Seu uso, mais recente, se restringe à produção de farinha, quando
deve ser pubada, prensada e, depois, torrada.
2
A população geral na T.I. ultrapassa 600 pessoas, sendo os Makurap os mais numerosos,
seguidos pelos Djereoromitxi, Wajuru, Tupari, Canoé, Cujubim, Massacá e Arikapo, nesta ordem.
A T.I. Rio Guaporé é composta pela aldeia do Posto Ricardo Franco ou mais simplesmente “Pos-
to”; a Baía da Coca; a Baía das Onças; a Baía Rica e os locais “Mata Verde” e o “Bairro”. A aldeia
Ricardo Franco compreende o Posto Indígena, a escola, a enfermaria; nas suas cercanias imediatas
têm-se muitas casas chefiadas por homens de diversos grupos étnicos e, mais afastados, alguns “sí-
tios”, locais de assentamento de famílias extensas ou jovens casais. É ali também que se encontram
as pessoas que vêm das outras povoações da T.I., ou índios de outras localidades, principalmente
de Sagarana, além de representantes da Funai, do Cimi ou de quaisquer organizações indigenis-
tas. Na Baía da Coca estão algumas famílias chefiadas por homens Makurap e Tupari. A Baía das
Onças é reconhecidamente território Djeoromitxi, bem como a Baía Rica, local de uma só família
extensa. O Bairro e a Mata Verde são locais entre o Posto e a Baía da Coca, assim como a Baía Rica
se localiza entre o Posto e a Baía das Onças. O Bairro é local de uma família extensa Tupari e a
Mata Verde é local Makurap. Pelos caminhos de ligação entre assentamentos mais densos, caso em
que se pode chamá-los de “aldeia”, estão numerosos sítios ou moradas.
3
Devo notar minha inspiração na atenção às formas de saudações em Erikson 2009.
4
Calculo que tais cabaças tenham capacidade para dez litros ou mais, enquanto as cuias de-
vem servir aproximadamente um litro.
5
Concomitantemente ao incremento da exploração seringueira na região do médio Guaporé,
em 1930, foi criado pelo SPI, no baixo curso deste rio, o Posto Indígena de Atração Ricardo Fran-
co, que mais tarde veio se tornar a Área Indígena Rio Guaporé. A primeira demarcação desta área
data de 1935, e teve a aprovação do Marechal Rondon. Sua história não difere dos demais postos
do SPI, criado com o objetivo de “civilizar” os índios. A colônia agrícola teve seu “apogeu” na dé-
cada de 1940, quando os funcionários do SPI compulsoriamente transferiram para este Posto parte
dos povos dos afluentes do médio Guaporé, os rios Mequéns, Colorado, Corumbiara e afluentes
(Funai 1985).
6
O que aqui estou chamando de irmãos classificatórios se refere aos primos paralelos matri-
laterais ou a outras relações que não necessariamente estão ancoradas num substrato genealógico,
mas que dizem respeito à “história de relações” da ascendente feminina de Ego.
7
Surralés (2003:100 apud Lagrou 2006:61) sugere que “Lo que hace reír del humor no es
menudo outra cosa que constatar la posibilidad que tiene solo el humor para decir lo que seria
indecible de outra manera”.
8
Existe uma categoria preferencial para cônjuges, rotulada oguaikup em Wajuru, ou virá em
Djeoromitxi – este último é na verdade o termo (autorecíproco) que os Wajuru usam mais comu-
mente para se referir à relação. A categoria envolve, de um lado, a preferência para o casamento
e, de outro, a “amizade” entre pessoas de mesmo sexo: proximidade, ajuda mútua e pilhéria. Por
202
isso os virás são também chamados de amigos/companheiros. Quanto ocorre o casamento entre
pessoas nesta realção, isso cancela as atitudes entre cunhados efetivos, que passam a tratar-se com
reserva. Durante a pesquisa, encontrei o termo aplicado por Ego masculino a pessoas nas posições
de MBSC, FFZC, FZDC e MMBC. Para maiores detalhes, ver Soares-Pinto 2009.
9
Sztutman assinalou que “[s]ubstâncias que produzem alguma alteração – ‘a um só tempo na
consciência e no corpo’, pois esses domínios se constituem de modo imbricado no pensamento
ameríndio –, estão inseridas nos processos reflexivos de produção de sociabilidade e da socialidade
e, de modo mais amplo, do próprio lugar da humanidade” (2008:232).
10
Característica das conexões engendradas pelo cromatismo que Lévi-Strauss chama a aten-
ção: a redução ao mínimo dos intervalos entre a natureza e a cultura, ao mesmo tempo que acar-
reta o perigo do descontínuo máximo, “uma união da natureza e da cultura que determina sua
disjunção (Lévi-Strauss 2004: 321). Diz o autor, da análise dos mitos sobre o veneno de pesca, que
ele estende aos mitos sobre o arco-íris, que “passa-se livremente e sem obstáculos de um reino a
outro, em vez de existir um abismo entre os dois, misturam-se a ponto de um dos reinos evocar
imediatamente um termo correlativo no outro reino” (Lévi-Strauss 2004:316).
203
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WAGNER, Roy. 1978. Lethal speech: Daribi myth as simbolic obviation. London: Cornell
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204
Eduardo S. Nunes
205
brancos que acabou por gerar uma relação corporal entre as perspectivas indíge-
na e não-indígena, epitomizada pelo próprio corpo mestiço. Ancorado na etno-
grafia, espero ao final, estar apto a mostrar que o conhecimento que estes Karajá
lograram obter sobre os tori é uma experiência corporal.
***
206
passou por todas as aldeias e acabou se assentando junto à margem sul do cór-
rego Xibiu.6
Quando Kabitxa’na chegou à região, não havia ninguém por lá. Ele ergueu
um rancho e o casal ficou morando ali por um tempo até que, para sua surpresa,
começaram a chegar muitas famílias karajá e javaé que se instalaram junto a
eles, sob o comando de Kabitxa’na. A chefia da aldeia “foi passando de geração
em geração, [de acordo com o modo tradicional hereditário de transmissão,] que
de um para outro formou a maior aldeia de toda história do vale do Araguaia.
De Conceição do Araguaia [PA] até chegar aqui em Aruanã, a aldeia, aqui, diz
que foi a maior que já teve”.7 Tendo em vista esta época, alguns de seus parentes
da Ilha do Bananal se referem (ou o faziam, até duas ou três décadas atrás) aos
Karajá de Buridina como hãwahakỹ mahãdu, “o pessoal (mahãdu) da aldeia gran-
de (hãwahakỹ)”. Outro indício do grande tamanho da aldeia era a presença de
duas hetokrè,8 Casas de Aruanã, o centro da vida ritual do grupo.9
Buridina era uma aldeia muito próspera, um lugar muito bom para se viver.
Seus habitantes eram conhecidos como ibò(k)ò mahãdu, “o pessoal de cima/do
alto”,10 porque entre eles havia grandes “historiadores”,11 lutadores e hyri (xa-
mãs). “Agora, se tem historiador que difama, guerreiro que mata só por matar,
hyri que mata, aí é iraru mahãdu”. Os próprios iraru mahãdu, “pessoal de baixo”,
não gostam de ser assim chamados, pois o termo indica o distanciamento de um
ideal de comportamento e de conhecimento inỹ, humano.
Mas a década de 1940 guardava revezes para o destino da aldeia. Dois acon-
tecimentos alteraram radicalmente sua situação populacional: de uma grande e
ritualmente (super)ativa aldeia, ela ficaria resumida a uma única família, menos
de 10 pessoas. Primeiro, um assassinato iniciou um movimento de dispersão da
população. A vítima, Alfredo Ijahi’na, era muito respeitada. Dizia-se dele, en-
tretanto, que era perigoso feiticeiro. Tybiru, uma moça de aproximadamente 12
anos, morreu repentinamente. Seu pai e seu marido, convencidos de que a causa
da morte teria sido um feitiço de Ijahi´na, o assassinaram e fugiram.
Pouco tempo depois, a aldeia foi acometida por uma epidemia de sarampo.
Ali morava um Javaé, Warikina, poderoso hyri. A epidemia, acreditavam, havia
sido causada por feitiço seu. Ele próprio, entretanto, pegou sarampo, e ficou sob
os cuidados de Lídia Dikuria e Alice Koabiru, até ficar bom. Quando se curou,
disse que não se esqueceria dos cuidados que havia recebido e que era boa a
decisão que haviam tomado em não partir, de permanecer ali. Na aldeia grande,
disse, há muita briga, muita confusão. Depois partiu. Esse episódio intensifica
o movimento de dispersão iniciado com o assassinato. As pessoas voltaram para
suas aldeias de origem. Os Karajá se referem ao momento destes dois aconteci-
mentos como o “fim da aldeia”. Apenas um homem, Jacinto Ma(k)urehi – e sua
207
família, da qual as duas mulheres citadas acima faziam parte –, decide perma-
necer no local e reúne em torno de si, nas décadas subsequentes, dois irmãos e
uma sobrinha. É em torno deste núcleo de parentes que a aldeia se reestruturará
e crescerá até o ponto em que a encontramos hoje.
***
208
Luiz Bydè, por sua vez, não gostava da vida de aldeia. Ainda muito jovem
saiu para trabalhar na lida do gado em fazendas e cidades no interior de Goiás,
desaprendendo, assim, a falar o inỹrybè. Morou com sua primeira esposa no
Mata-Coral e só foi para Buridina já com certa idade, depois do fim de seu se-
gundo casamento e sob muita insistência dos irmãos. Casou-se novamente nesta
aldeia e teve seis filhos, que ainda hoje lá residem.
A década de 1960 marca o início da reestruturação da aldeia, com a reunião
deste núcleo de parentes que, embora ainda pequeno, constituiu a base sobre a
qual a população cresceu. Na década seguinte, um surto de turismo promoveu
uma grande expansão da malha urbana de Aruanã, que atravessou o córrego
Bandeirantes – antes esse era o limite físico entre cidade e aldeia –, crescendo na
direção norte. Como resultado deste processo, cerca de 10 anos depois a aldeia já
se encontrava, exceção feita ao lado do rio, circundada pela malha urbana e con-
finada em um pequeno lote. Na segunda metade da década de 1970, aconteceram
os primeiros casamentos com tori. É nesse período, portanto, que a situação de
Buridina começa a ganhar seus contornos atuais.
***
209
***
Mas porque Jacinto Ma(k)urehi optou por permanecer ali, mesmo com todas
as pressões que sofreram? Desde os dois acontecimentos na década de 1940 até o
início do processo de demarcação, em meados da década de 1980, estes indígenas
empreenderam uma firme resistência, tanto no sentido de ir contra a coação dos
regionais e da Funai, como no de ser uma postura ímpar mesmo entre os Karajá:
ao se defrontarem comfeitiçaria e morte, quase toda a população da grande al-
deia abriu mão daquele território e voltou para suas aldeias de origem. Aqui,
quero enfatizar que a permanência de Jacinto foi sim uma escolha.
Os episódios posteriores também parecem confirmar que tratava-se sim de
uma escolha. Ainda nas décadas de 1950 e 1960, Jacinto Ma(k)urehi é pressio-
nado pelo SPI para sair dali e mudar-se para junto de seus parentes na Ilha do
Bananal, mas insiste em permanecer. Com o processo de expansão da cidade na
década de 1970, a Funai continuou tentando transferir os indígenas, mas sempre
encontrou resistência ferrenha (cf. Portela 2006:162). Em 1976, o médico João
Paulo Botelho Vieira Filho visita a aldeia e registra que “os índios de Aruanã
externam o desejo de permanecer onde estão” (1976:152). A própria expansão
210
da cidade se constituiu também como uma pressão para que eles abandonassem
o local, quando passaram a ver-se progressivamente confinados pela malha ur-
bana, por uma cerca viva de moitas bambu e por uma grade. A ideia de viver
em um território delimitado por cercas é algo extremamente incômodo para os
Karajá, que gostam da “liberdade”, como dizem, de trânsito dos espaços abertos.
Jacinto previu o desfecho do processo de crescimento da cidade que ele via se
iniciar. “Tio Jacinto dizia assim: que a cidade estava crescendo e que daqui a um
pouco a gente ia estar cercado, igual a porco no chiqueiro”, disse sua sobrinha,
que confirma sua previsão dizendo que “o pior é que tudo o que ele dizia está
acontecendo!” (Cavalcanti-Schiel 2008:6) – e mesmo assim quis permanecer.
Além do mais, a área da cidade já estava toda loteada e o terreno onde a aldeia se
encontrava possuía um proprietário não-indígena.
No ano de 1982, a Funai empreendeu uma última tentativa de transferir a
população da aldeia, chegando um funcionário a oferecer uma quantia de di-
nheiro para um indígena, mas também encontrou resistência. Em 1986, a Funai
finalmente cedeu às pressões contrárias, que exigiam que o órgão fornecesse a
devida assistência à comunidade,13 e iniciou o processo de demarcação da Terra
Indígena Karajá de Aruanã (cf. Braga 2002).
Mas quais os motivos alegados para que Jacinto tenha permanecido em
Buridina? Porque, diante de tais pressões, os Karajá desta aldeia optaram por
permanecer em uma situação territorialmente extrema, adversa para a realiza-
ção de um ideal Karajá de uma ‘boa vida’? O que, neste lugar, despertava seu
interesse?
Uma das respostas que os Karajá me ofereceram para a primeira destas três
perguntas tem um sentido territorial, da relação que uma pessoa estabelece com
seu local de origem. “Ele [Ma(k)urehi] nasceu aqui, gostava daqui, para onde
ele poderia ir? Não ia se acostumar em outro lugar”, me disse uma senhora,
ou “aqui era o território”, como fraseou um homem. Mas tal explicação ainda
me parecia insuficiente: dentre as pessoas que foram embora quando a aldeia
“acabou”, muitas eram, assim como Jacinto Ma(k)urehi, originais dali. Porque,
então, apenas ele resolveu ficar?
Jacinto dizia que queria “a liberdade do menino não-índio para os netos”,
queria ter tranquilidade para criar as crianças. Aqui há um contraste com a vida
de “aldeia grande”, de que as maiores aldeias da Ilha do Bananal servem hoje
de modelo, marcada pela rigidez. A oposição, aqui, é sobretudo ritual. Quando
falam que na “aldeia grande é muito rígido”, estão se referindo ao conjunto
de restrições rituais que pesa sobre crianças e mulheres, que não podem cir-
cular irrestritamente pela aldeia, nem muito menos pelo mato, sob o risco de
variadas restrições/punições. Rodrigues, por exemplo, relata sobre o (k)òrera (k)
211
uni, o “corpo velho do jacaré-tinga”, que “quando anda pela aldeia, as mulheres
e crianças trancam-se assustadas dentro das casas, nas quais ele bate ameaça-
doramente, com uma grande vara, ao escutar alguma mulher ou criança falan-
do” (2008:870). Há outras entidades ainda mais perigosas, como o ilabi(k)èhekỹ.
Vejamos a descrição de Lima Filho (1994:101).
Havia um sentimento de medo e expectativa na aldeia. O Ilabiehekÿ
chegaria no final da noite. Seus gritos seriam ouvidos na madrugada.
(...) A aldeia se recolheu cedo, a noite avançava e todos tinham medo
do Ilabiehekÿ. A Casa Grande [hetohokỹ] estava completamente vazia.
(...) O Ilabiehekÿ é avô dos Worÿsÿ. (...) Perigoso, ele não pode ser visto
nem pelos homens. Os Karajá que o encaram são tidos como especiais,
e fazem parte do grupo dos homens Mahãdu Mahãdu. (...) Mas, mesmo
assim, jamais deverá olhar de frente a grande figura mascarada. Se o
fizer, Ilabiehekÿ comerá seu fígado e a morte é certa.
A preservação do “segredo ritual masculino”, vedado às mulheres e aos me-
ninos não iniciados, talvez seja a maior das restrições. Há uma narrativa mitoló-
gica sobre como a revelação deste segredo por parte de um menino em processo
de iniciação para sua mãe ocasiona a morte de uma aldeia inteira.14
Há ainda outra dimensão da vida em “aldeia grande” comumente ressaltada
como ruim: os conflitos e, sobretudo, a feitiçaria. Um dos motivos disto é, sem
dúvida, que nos pequenos agrupamentos familiares, como era Buridina nas dé-
cadas de 1950 e 1960, a proximidade dos laços de parentesco torna os conflitos
raros. Desentendimentos, brigas, acusações, agressões, feitiços e assassinatos,
são gradações de um anti-ideal de socialidade Karajá que aumenta com a dis-
tância (do parentesco). As aldeias maiores são conjugações de famílias e são elas,
usualmente, as unidades mínimas dos conflitos. A feitiçaria, por seu turno, pode
aparecer tanto no âmbito destes conflitos interfamiliares como em consequên-
cia do ritual. Lembro aqui que, como dito acima, o principal motivo que levou
tanto João Lawa(k)uri quanto Mário Arumani a se mudarem para/fixarem-se em
Buridina foi a morte de uma criança por feitiçaria.
“Aldeia grande” não se opõe a “aldeia pequena”, mas a pequenos assenta-
mentos familiares que não se caracterizam como “aldeias”.15 Buridina é um des-
ses pequenos assentamentos, não-aldeias. Uma mulher, por exemplo, me dizia
sobre seu irmão, que acabou mudando-se dali para a Ilha do Bananal: “meu
irmão gostava de ser índio. Ele queria viver em aldeia, mesmo. Aqui não servia
para ele”. É nesse sentido que devemos entender a afirmação que seus mora-
dores fazem de que “a aldeia acabou”, na década de 1940. Ela não se extinguiu
212
213
214
* **
Vimos aqui que os Karajá de Buridina optaram por permanecer junto à ci-
dade de Aruanã e por casar com seus moradores tori. Percorrendo estes eventos
e tentando desvendar as intenções e escolhas dos personagens dessa trama, fica
claro que no fundo desta história narrada está uma vontade de conhecer o mun-
do dos brancos, conhecimento esse que só pode ser obtido por vias da experiên-
cia, viver com e como os tori. É, com efeito, por via dessa experimentação de uma
vida outra, ou melhor, de uma perspectiva outra, que o conhecimento pode se dar.
Acredito que os Karajá tenham sido bem-sucedidos nessa empreitada e logo
a situação deixou de ser um experimento para se transformar propriamente na
vida deles. Mas isso não encerra a questão, pois, para tornar-se tori, eles não dei-
xaram de ser Karajá, nem nesses tempos antigos, aqui narrados, nem nos dias
de hoje. No que se segue, investiremos sobre o sentido desta duplicidade e da
relação que eles estabelecem entre ambos “os lados”, entre ser índio e ser branco,
215
Mestiçagem e mistura
A vida atual dos Karajá de Buridina é marcada por uma dualidade entre seu
próprio mundo e o dos tori. Porém, ao contrário do que supõem os estereótipos
e preconceitos, “virar branco” é apenas metade da questão, por assim dizer. Há
também as relações de parentesco, o inỹrybè, as comidas típicas, as disputas polí-
ticas características do grupo, xamanismo (ainda que sem xamãs reconhecidos),
práticas de resguardo, nominação, etc. Não se trata, assim, de escolher entre
essas duas perspectivas qual seria mais apropriada para descrever essa comuni-
dade. Nem, muito menos, de escrever uma “história do meio”, algo como uma
negação de seu estigma de aculturados por meio do reconhecimento de que seu
engajamento extremo no mundo dos brancos não lhes tira a condição de indí-
genas, pois sua tradição não estaria em contradição com a nossa “modernida-
de”. Não que isso não seja verdade. Pelo contrário, trabalhos como os de Sahlins
(1997a; 1997b), demonstram a fecundidade dessa abordagem para compreender-
mos situações como esta. O ponto é que ela resolve a questão para nós mesmos, i.e.,
desfaz contradições que antes existiam no nosso pensamento. Para o pensamento
indígena, porém, a questão parece se pôr em outros termos.
Acredito que, para os Karajá de Buridina, essas são duas histórias distintas e
legítimas, e não duas versões de uma única história. Há sempre a possibilidade
de contar ambas, mas nunca ao mesmo tempo. O meio (o mestiço, a mistura) não
é um entre dois, no sentido de um lugar intermediário entre os mundos indígena
e não-indígena. O meio não é um um, é um dois sem intervalo, no qual, em cada
momento, só se pode estar em um dos lados. O meio é ambos os lados, sem nun-
ca sê-los ao mesmo tempo. Não há um ponto de vista mestiço, misturado, pois o
meio é a possibilidade de ser ambos.
***
Na década de 1970, como dito acima, teve início a mestiçagem. Algumas dé-
cadas depois, podemos perceber que um dos resultados deste processo foi a ins-
tauração de um novo padrão de casamentos. Desde então, as uniões entre dois
indígenas é rara e, geralmente, fruto de particularidades das histórias pessoais:
o normal, poder-se-ia dizer, é casar com tori. Dessa forma, a grande maioria dos
atuais casamentos (77,8%) envolve um cônjuge não-indígena. Sendo, portanto,
216
a mestiçagem uma questão tão ampla e importante nesta aldeia, como os Karajá
conceitualizam este processo?
Há uma tríade conceitual indígena básica: puro, mestiço e tori. Índio(a) puro(a),
ou simplesmente puro, é a pessoa cujos dois genitores são indígenas (ou seja, pu-
ros). Os mestiços são os frutos das uniões destes com os tori, i. e, os não-índios.18
Esta é uma forma geral de classificação, mas que, estritamente, só abrange as
duas primeiras gerações – A, B, D, E, no Diagrama 1. O que acontece, então,
quando descemos neste diagrama? Como são classificados/pensados os netos,
bisnetos etc., deste primeiro casamento misturado? Os Karajá formulam tal ques-
tão a partir de dois principais idiomas: o da geração e o da distância.
217
218
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219
***
220
221
(Vilaça 1992:82). Com o banho, “o jam [do xamã] torna-se karawa [animal], e
com isso o processo de desaparecimento do corpo físico (doença-morte) é inter-
rompido; o agora xamã se torna um doente crônico, um wari’ com jam autôno-
mo, um homem-animal” (id. ibid.:83). “Tudo se passa como se o xamã tivesse
dois corpos: um humano, entre os Wari’, e outro animal, junto aos animais”
(id. ibid.:80). “Diz-se que o xamã jamu, ou seja, por meio de seu espírito, ele se
transformou e passou a ter um outro corpo” (Vilaça 2006:203).24
A relação dos Wari’ com os brancos se daria de maneira similar: assim como
o xamã não deixa de ser wari’, humano, quando ele jamu, i.e., quando sua “alma”
torna-se um corpo animal, o conhecimento e a experimentação do mundo dos
brancos constituem-se como um outro corpo-perspectiva possível, que não ex-
clui seu ponto de vista indígena. Nas palavras da autora:
Eu diria que os Wari’ querem continuar a ser Wari’ sendo brancos.
Em primeiro lugar, porque desejam as duas coisas ao mesmo tempo,
os dois pontos de vista. (...) Os Wari’, pelo que entendo, não querem
ser iguais aos brancos, mas mantê-los como inimigos, preservar a dife-
rença sem, no entanto, deixar de experimentá-la. Nesse sentido, vivem
hoje uma experiência análoga a de seus xamãs: têm dois corpos simul-
tâneos (id. ibid.:515).
Às conclusões as quais a autora chega, percebe-se logo, vão precisamente ao
encontro da descrição que faço aqui. Também para os Karajá de Buridina, a relação
entre seu próprio ponto de vista e o dos tori, mediada pelos casamentos misturados,
se constitui como uma questão corporal: a possibilidade de uma experiência du-
pla (o ser dois, poder acessar dois pontos de vista, como faz o xamã) corresponde
a uma duplicidade dos corpos. Não se trata, porém, de algo que é viabilizado por
um corpo duplo, mas de algo que o corpo duplo é: uma experiência dupla. Assim,
para os Karajá, segundo percebo, essa relação é o próprio corpo mestiço. Note-se que
quando falam dos sangues de uma pessoa mestiça, por exemplo, os Karajá não fa-
lam de um sangue misturado, como no caso Piro (Gow 1991), mas dos dois (três,
quatro...) sangues da pessoa. “Então nós temos quatro sangues misturados”, me
dizia uma senhora. Ou quando eu conversava com um homem sobre os possíveis
futuros filhos de uma jovem mestiça (cujo pai era mestiço de Karajá e Javaé) casada
com um índio Xerente, ele comentou que “a criança já vai ter, quer ver... quatro
sangues: Karajá, Javaé, tori e Xerente”. Uma perspectiva-corpo misturada não fun-
de os corpos-perspectivas que lhe dão origem: ela apenas os põe em relação. O
mestiço, a mistura, parece encarnar justamente essa relação. Não um um (um único
sangue), mas um dois sem intervalo (dois sangues em um mesmo corpo), onde só se
pode estar na relação de um dos lados, sob uma das perspectivas.
222
E se, como argumentei, essa relação (a mistura) não se restringe aos mestiços,
não havia motivos para supormos que, no que tange aos corpos, isto seria di-
ferente: os corpos puros são tão duplos quanto os corpos mestiços. A procriação
– o que diferencia, afinal, puros e mestiços – é apenas uma parte do processo de
construção de um corpo-pessoa propriamente indígena (humano). Nem mes-
mo a concepção é, como entre nós, aquele momento mágico que inaugura um
processo de desenvolvimento biológico autônomo. Entre os Karajá, como entre
muitíssimos outros grupos ameríndios, a formação do feto depende de contínu-
as relações sexuais: o desenvolvimento do corpo do filho depende do acúmulo
de sêmen paterno no útero,25 não é algo automático. Os corpos-pessoas não nas-
cem nem prontos, nem mesmo humanos: é necessário que se os construa, des-
de dentro da barriga (cf. Coelho de Souza 2004). E, importante, isso se faz por
diversos processos, que vão desde a alimentação e “técnicas corporais” (como
o uso de certos adornos, escarificações e aplicação de substâncias geralmente
vegetais) aos cuidados e carinhos dos parentes (cf. Gow 1997). Os “corpos aqui”,
em suma, “são feitos, não dados, e uma etnografia após a outra tem mostrado
como os corpos são construídos e transformados por meio do compartilhamento
de substâncias como os alimentos, as palavras e as doenças” (Gow 2003:66). Em
Buridina, todos estes processos são misturados, tanto para os índios puros quanto
para os mestiços. Já falamos, por exemplo, que se come tanto “comida de índio”
quanto “comida de tori”; que a maior parte das pessoas tem tanto parentes inỹ
quanto tori; que se tem dois nomes, um indígena e outro não. Para tudo, enfim,
há dois lados.
A mestiçagem é a linguagem privilegiada pelos Karajá de Buridina para falar
da mistura, justamente porque o corpo mestiço, contendo em si os dois sangues,
sem nunca misturá-los, encarna ele próprio o modelo da relação entre as pers-
pectivas: contendo ambos os pontos de vista em si, ele é a própria relação.
Conclusão
Depois de tudo o que foi dito acima, poderíamos nos perguntar: o que signi-
fica, para os Karajá de Buridina, conhecer os tori?
Certamente, estamos falando de uma filosofia guiada por um outro ideal de
conhecimento. Tendo em vista o xamanismo, Viveiros de Castro argumenta que,
para o pensamento ameríndio,“conhecer é personificar, tomar o ponto de vista
daquilo que deve ser conhecido – daquilo,ou antes, daquele; pois o conheci-
mento xamânico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente”
(2002:358). Se falamos, porém, de uma filosofia ou pensamento, esses conceitos
certamente não dão conta da forma do conhecimento indígena, pois aqui não se
223
trata de abstrair algo – uma atividade da (nossa) mente –, mas sim de experimen-
tar um ponto de vista – uma atividade do corpo (indígena).
Certa vez, por exemplo, o Cacique Raul me contou que passou sete ou oito
anos frequentando uma igreja evangélica e que, quando já estava quase se tor-
nando pastor, decidiu sair. Surpreso, perguntei porque, depois de tão longa data,
optou por abandonar a vida religiosa, ao que ele respondeu: “Não, eu entrei só
para conhecer, mesmo”. A experimentação das perspectivas alheias, percebe-se,
é algo que se leva muito a sério.
Se olhamos para a história de Buridina, vemos que, para conhecer os bran-
cos, os Karajá precisaram viver com e como eles. Assim, “virar branco”, longe
de ser um movimento contra-identitário, é uma prática de conhecimento. E se,
como disse acima, o pensamento ameríndio prescinde de uma divisão entre o
material e o imaterial, entre os atributos da alma e os atributos da matéria, o
lugar do conhecimento, como uma prática de acesso a perspectivas outras, é o
corpo. Depois de mais de trinta anos vivendo na cidade, casando-se com os tori
e tendo filhos com eles, esse conhecimento se inscreveu no corpo dos Karajá de
Buridima, ou melhor, se constituiu como um segundo corpo. A mistura, assim,
pode ser vista como a própria história desta aldeia, um corpo (duplo) que é o
conhecimento de si e de outrem, a possibilidade de ser ambos.
224
Notas
Em Motta (2004) encontramos diversas falas de moradores da cidade e de turistas que expli-
citam a imagem que eles fazem dos índios.
2
Inỹ é o termo de autodesignação dos Karajá, Javaé e Karajá do Norte (Xambioá); rybè signi-
fica “fala”, “língua”, “modo de falar”. Essa língua apresenta uma diferenciação da fala segundo o
sexo do falante, geralmente caracterizada pela inserção, na variante feminina, de uma consoante
(majoritariamente o “k”, mas também o “n” e o “tx”) onde há um encontro vocálico na fala mas-
culina (ou no caso de algumas palavras iniciadas com vogais). Os parênteses nas palavras grafadas
nesta língua representam a inserção da consoante na fala feminina.
3
“A reação normal de quase todos os Karajá, quando os julgam feiticeiros, é negar tal qualida-
de, alegando ser apenas curadores” (Fénelon Costa 1978:43).
4
Cf. Rodrigues (1993:150) e Donahue (1982:217) sobre as duas faces do xamã karajá.
5
Fala de Raul Hawa(k)a’ti, em Portela (2006:152).
6
Este córrego, juntamente com outro, Bandeirantes – situado pouco mais a montante, já
bem próximo da foz do rio Vermelho –, são hoje os limites sul e norte da Gleba I da T.I. Karajá
de Aruanã, que ainda conta com duas outras glebas. Para informações sobre as áreas e detalhes do
processo de demarcação, cf. Braga 2002.
7
Fala de Raul Hawa(k)a’ti, em Almeida (2007:23).
8
As informações sobre a quantidade de pessoas que esta aldeia chegou a aglutinar são contro-
versas, variando entre 300 (Pechincha & Silveira 1986:2), 800 ([Cavalcanti-]Schiel 2002:44) e mil
pessoas (Almeida 2007:23) – todas baseadas em relatos indígenas. A julgar tanto pelo comprimen-
to das fileiras de casas (segundo a memória indígena) quanto pela presença de duas casas rituais,
esta última estimativa parece mais provável. Se tomamos em comparação as maiores aldeias hoje
existentes, com populações variando entre 300 e 600 pessoas (cf. a tabela das populações das al-
deias atuais elaborada por Rodrigues 2008:168-170), nenhuma delas é grande o suficiente para
possuir duas destas casas. Nem mesmo na grande Canoanã, que chegou a reunir 800 pessoas, este
foi o caso.
9
A este respeito, cf., por exemplo, a descrição de Lima Filho (1994) do ritual Hetohokỹ.
10
Ibò(k)ò, o extremo do rio acima, é um termo de referência espacial (em contraposição à
iraru, o extremo do rio abaixo) mas que encerra um componente valorativo associado à tripartição
cósmica. Tudo o que está associado ao alto, ao extremo rio acima, ao leste, à luz e à cor branca e ao
biuwètyky (o céu, um patamar cósmico superior) é valorizado, em contraposição ao que está asso-
ciado ao oeste, ao baixo, ao extremo rio abaixo, à falta de luz e à cor negra e aos patamares cósmicos
inferiores (cf. Rodrigues 2008).
11
“Historiadores” são pessoas reconhecidas por serem grande conhecedoras da terminologia
de parentesco e das relações (de respeito, evitação, proximidade etc.) que ela implica, das genealo-
gias e de histórias de tempos antigos (narrativas míticas).
12
A literatura especializada concorda quanto à preferência pela endogamia de aldeia – cf.
Rodrigues (2008:738), Donahue (1982:145) e Lima Filho (1994:134).
13
Em Portela (2006:74), por exemplo, encontramos uma carta do então prefeito da cidade,
datada de 1975, relatando a situação da comunidade e cobrando atitudes do órgão.
14
Trata-se do episódio ocorrido no local hoje conhecido como inỹwèbohona (cf., p. ex., Eren-
reich 1948:81; Rodrigues 1993:273-274; Rodrigues 2008:578-579).
15
Em outros níveis de contraste, entretanto, como no caso de todos os assentamentos Karajá
e/ou Javaé estarem em consideração ou no caso de um (pequeno) assentamento específico ser o
foco da fala, a palavra “aldeia” serve como uma categoria abrangente. Assim, pode-se ouvir os
Karajá de Buridina se referir ao seu local de moradia como uma aldeia, assim como quando falam
das “aldeias Karajá”, também estão incluindo Buridina neste grupo.
225
16
A troca de olhares é um indicativo de desejo sexual.
17
Cf. outro registro semelhante em Portela (2006:206 – fala de Uberena).
18
Esclareço que os trabalhos de Cavalcanti-Schiel (2002 2008) já haviam registrado esta trico-
tomia classificatória básica e abordado alguns aspectos relativos à mestiçagem, e, assim, acabaram
por se constituir em um de meus pontos de apoio.
19
O Diagrama 1, advirta-se, não é genealógico: ele apenas sintetiza (com o engessamento
próprio deste tipo de representação), a lógica dos cálculos feitos pelos Karajá a partir de ambos os
idiomas, o da geração e o da distância.
20
Patrícia Rodrigues diz sobre os Javaé, que “não se acredita que o parentesco seja baseado no
compartilhar de um mesmo sangue”: reconhecem-se laços bilaterais de descendência pela “mistu-
ra do sêmen paterno [que forma o corpo da criança] e de influências menos visíveis das substâncias
maternas”, configurando uma consubstancialidade que não é uma consanguinidade (2008:521).
Quando os Karajá falam de sangue, porém, não parecem estar se referindo à substância-sangue.
Quando perguntei a algumas pessoas se a criança, quando nascia, trazia consigo tanto o sangue da
mãe quanto o do pai, recebi sempre uma negação como resposta. Assim, quando dizem, p. ex. que
“o sangue puxa”, estão se referindo a uma conexão entre os pais e a criança – os “laços bilaterais de
descendência” de que fala Rodrigues – cujo veículo não parece ser a substância do sangue. Eis aqui
uma dimensão da etnografia Karajá e Javaé que ainda merece ser mais explorada.
21
Em sua etnografia sobre os Yãnomãmi do Ocamo, na Venezuela, José Kelly (no prelo), fala
da relação destes indígenas com os brancos como uma “anti-mestiçagem”. Sua descrição guarda
enormes semelhanças com o que, seguindo os termos dos Karajá, chamo de mistura. Infelizmente,
porém, só tive a oportunidade de ler o trabalho do autor depois de ter escrito minha monografia
sobre Buridina.
22
Há, nesta aldeia, sobretudo por parte dos mais velhos, um discurso que associa a mistura à
“perda da cultura”, ou ao “fim da tradição”. Porém, como mostrei alhures (Nunes 2010), o pro-
blema não reside no fato da mistura, mas na forma específica que este processo vinha tomando em
Buridina, principalmente devido ao forte preconceito dos regionais e a pressão para deixarem o
território que ocupavam. A partir do início da demarcação das terras e, sobretudo, da implemen-
tação do Projeto de Educação e Cultura Maurehi, em 1994, cujo objetivo era justamente a reversão
deste quadro (cf. Pimentel da Silva 2009), esse panorama negativo vem se revertendo. Hoje, os
Karajá demonstram otimismo ao ver o interesse das crianças em aumentar seu conhecimento da
cultura karajá.
23
“É a cruz indígena”, artefato antropomorfo de madeira adornado que se coloca na cabeceira
do túmulo. Cf. Ehrenheich (1948:66-68).
24
Cf. o restante da descrição aqui resumida em Vilaça (1992:79-83; 2006:202-207).
25
Sobre o caso Karajá, cf. Donahue (1982:106) e Lima Filho (1994:132). Sobre os Javaé, cf.
Rodrigues (1993:50-51).
226
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228
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230
231
Como nos ensina Wagner (1981), os significados são função dos modos pelos
quais criamos e, por outro lado, experimentamos contextos, vindo a existir, por-
tanto, somente em suas mútuas relações. Não existem significados primários. As
operações de definir e de estender uma palavra ou um elemento simbólico são a
mesma operação, ou ainda: “todo uso de um elemento simbólico é uma extensão
inovadora de associações adquiridas por meio da integração convencional a ou-
tros contextos”5 (1981:39). Logo, os significados primários são definidos de acor-
do com a importância e prioridades determinadas social e simbolicamente, o que
leva o autor a afirmar que a definição primária é um compromisso ideológico.
Por que supor que a Ayahuasca é desde sempre (ou, em vocabulário wagne-
riano, primariamente) indígena? A continuidade entre origem indígena e uso
religioso não deve ser tomada como óbvia. Não estou questionando aqui a ciên-
cia indígena envolvida na invenção e preparo da bebida, nem o fato de serem os
índios os precursores de seu uso. É consenso que a disseminação da Ayahuasca
ocorreu a partir do contato das populações locais com povos indígenas que se
relacionam com o cipó, principalmente a partir do segundo fluxo de exploração
da borracha, durante as primeiras décadas do século XX. Não houve, contudo,
coalizão de interesses entre as religiões ayahuasqueiras e os povos indígenas que
também se utilizam da planta. A preocupação do órgão com o acesso ao conhe-
cimento tradicional produzido por índios é compreensível, pois o registro de
um bem cultural de origem ameríndia que exclua esses povos poderia eventu-
almente criar descontentamentos e futuras reivindicações. Não estou propondo
ignorar os interesses e entendimentos desses povos quanto à possível declaração
do uso ritual da bebida como patrimônio imaterial do Brasil, mas apenas ques-
tionar a tendência, nesse processo, a conceber a bebida como um objeto “lá no
mundo” (moderno, claro), independentemente de seus contextos de uso.
Ainda que não se faça nenhuma descrição das formas rituais de utilização da
beberagem, dos saberes envolvidos e da participação das pessoas na carta em que
se solicita o pedido de registro, o objeto de reivindicação, contudo, é explicita-
mente seu uso ritualizado, conforme expresso em trecho da solicitação: “reco-
nhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos como Patrimônio Imaterial
da Cultura Brasileira” (grifo meu). Apesar dessa lacuna no processo, existe uma
literatura considerável a respeito do uso ritual da Ayahuasca, que servirá aqui de
material para reflexão.
232
em que aparece, conforme pensado por Gell em Art and Agency(1998). Se acom-
panhamos o autor e pensamos a agência não enquanto intuição não mediada,
mas a partir da detecção de seus efeitos no ambiente causal, ficamos mais pre-
parados para traçar as movimentações em torno da Ayahuasca e para levar a
sério o que seus “consumidores” estão nos dizendo. Interessa-me percorrer os
caminhos da beberagem, buscando perceber como ela atua no campo da ação
social nos diferentes espaços em que circula. A bebida aparece, assim, ora como
um agente propriamente dito, causador ele mesmo de efeitos em sua vizinhança
(um “agente primário”, nos termos de Gell), ora enquanto índice – instrumento
da agência social de humanos e não-humanos.
Embora o interesse maior de Gell esteja focalizado nos objetos artísticos, sua
teoria antropológica acerca da mobilização de princípios estéticos no curso da
interação social pode ser facilmente estendida para contextos em que o foco não
esteja na estética, uma vez que o autor nos fornece um vocabulário para imagi-
nar um universo no qual tanto humanos quanto não-humanos podem deixar
impressas as marcas de sua ação, causando efeitos em sua vizinhança.6
Quando se trata de reunir humanos e não-humanos, também não podemos
deixar de nos referir ao pensamento de Latour (1988:35). Uma inspiração aqui é
a ideia latouriana de que não conhecemos de antemão os agentes envolvidos na
ação, ou nas palavras do autor: “nós não sabemos quem são os agentes que fazem
o mundo. Devemos começar com essa incerteza se pretendemos entender como,
pouco a pouco os agentes definem uns aos outros, intimando outros agentes e
atribuindo a eles intenções e estratégias” (1988: 35). As coisas só ganham exis-
tência a partir de testes de força o que soa muito similar à ideia de Gell de que
não se pode dizer que alguém/algo é um agente antes que aja como tal, ou seja,
que perturbe o ambiente causal de modo que a perturbação possa ser atribuída
à sua agência (1998: 20).
Os mundos que nos interessam aqui gravitam em torno de (outros) mundos
conhecidos por meio do uso da Ayahuasca.7 Os grupos e doutrinas religiosos
envolvidas no pedido de patrimonialização surgem em diferentes períodos do
século XX e têm em comum o fato de serem fruto do encontro de migrantes
nordestinos que foram trabalhar nos seringais da Amazônia ocidental com as
tradições locais, principalmente dos povos indígenas da região. É no meio de
um ambiente até então desconhecido e de um trabalho árduo que Irineu Serra
(1892-1971), Daniel Pereira de Mattos (1888-1958), ambos maranhenses, e José
Gabriel da Costa (1922-1971), baiano, conhecem a Ayahuasca e fundam, respec-
tivamente, o CICLU-Santo Daime por volta de 1930, a Barquinha em 1945 (am-
bos no Acre), e o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, mais conhecido
como União do Vegetal ou UDV em 1961 (em Rondônia).
233
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O mestre pode ser visto, portanto, como um porta-voz que expressa o que
o agente não-humano está dizendo (Latour 1988). Ele é o intérprete do invisí-
vel. Já no Santo Daime, parece que cada participante do ritual é porta-voz de si
mesmo, sendo capaz de interpretar a seu modo e a partir dos ensinamentos da
doutrina a experiência vivenciada com a ingestão do chá. É claro que essas ex-
periências são compartilhadas coletivamente, o que auxilia no trabalho de com-
preensão das intuições e mirações.
As diferenças na concepção da bebida também aparecem no interior de uma
mesma doutrina. Dentro do Santo Daime podemos ver a emergência de dois
contextos separados no tempo, a partir dos quais emergem dois objetos clara-
mente distintos. Segundo Oliveira (2007), o Santo Daime seria um aprimora-
mento da utilização ancestral da bebida, legada pela cultura inca. Antes de ser
doutrinada, a beberagem chamava-se Ayahuasca. Depois passa a ser designada
por Daime. Como diz um dos entrevistados pela autora: “antes era Ayahuasca.
Mas esse era o nome primitivo, ainda sem a doutrina. O nome doutrinado é
Daime”. E quem nomeia é a Rainha da Floresta, que faz de Mestre Irineu seu
porta-voz. Do rogativo formado pelo verbo dar e a partícula me, tem-se “dai-me,
dai-me força, dai-me luz, Daime, Santo Daime”. A tradução de Ayahuasca em
Daime se faz em associação com a cristianização da bebida, o que talvez explique
um silêncio quanto aos vinte anos em que Irineu viveu na floresta.14
Há poucas informações referentes à Barquinha, o que dificulta qualquer for-
mulação acerca da concepção dos adeptos sobre o Daime ingerido durante os
trabalhos. Segundo Araújo (2004: 545), a bebida é considerada uma substância
de poder e, para poder tomá-la, a pessoa precisa se mostrar digna dela, passando
por uma série de provas que, no entanto, não são descritas pelo autor. Ainda de
acordo com Araújo, “o enteógeno também é tido como um instrutor que ensina
os participantes dos rituais que o utilizam. Estes ensinamentos estão presentes
desde o momento em que Mestre Daniel resolveu formar a missão através do
Livro Azul” (Araújo 2004: 545). A beberagem para os adeptos da Barquinha pa-
rece aproximar-se das concepções de daimistas e vegetalistas, o que pode ser ex-
plicado pelo fato de Mestre Daniel ter iniciado-se nos trabalhos com Ayahuasca
com Mestre Irineu.
Percebemos assim que, para os adeptos do Santo Daime (e provavelmente
para os da Barquinha), o chá é um mestre que ensina diretamente seus discí-
pulos, os quais podem ser pensados como índices a partir dos quais a ação do
Daime pode ser “abduzida” (Gell 1998).15 Já para os freqüentadores da UDV, o
Hoasca é um instrumento de concentração mental que, em associação com a in-
tervenção do Mestre que conduz a sessão, “transmite as orientações doutrinárias
úteis à transformação individual”.16
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239
só pode ocorrer dentro de padrões que devem delimitar as diferentes linhas que
usam o chá e agrupá-las sob o valor de um mesmo objeto, tomado como único e
sinônimo do próprio ritual” (2009: 28). Para liberar, portanto, é preciso controlar
o significado o uso ritual, isto é, “traduzi[r] a deontologia do uso da Ayahuasca,
como forma de prevenir seu uso inadequado”, conforme explicita o relatório
final Grupo Multidisciplinar de Trabalho sobre a Ayahuasca (GMT-Ayahuasca)
do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) instituído em 2006,
com o objetivo de contribuir para a plena implementação do que até então havia
sido discutido e aprovado “sobre o uso religioso da Ayahuasca”.
Prevenir quanto ao uso inadequado (em outras palavras, não-tradicional,
não-religioso, não-ritual) corresponde, assim, a listar formas corretas e respon-
sáveis de utilização da Ayahuasca. Todo o esforço empreendido pelos órgãos li-
gados à temática das drogas visa, assim, a garantir o uso religioso da bebida.
É nesse sentido que comunidades tradicionais, comunidades ecléticas e até mesmo
comunidades originárias poderiam ser pensadas como um contexto único em opo-
sição ao “uso recreativo” da Ayahuasca. A bebida para essas comunidades é, gene-
ralizando, sacramento. Já para os não-religiosos, apresentar-se-ia, aos olhos de
religiosos e do Estado, como droga, substância ilícita.
Se o processo de legalização da Ayahuasca cria um objeto cultural “religio-
so”, que objeto pode surgir a partir do inventário sugerido pelo Iphan? Novos
significados, ou simplesmente significados diversos, estão em jogo no “campo
ritual ayahuasqueiro”. Esse é um fato importante quando nos deparamos com
a demanda pela patrimonialização. É possível incluir significados plurais em
compreensões institucionalizadas do que está “dentro” ou “fora” do reconheci-
mento do Estado?
240
Como diria Latour, “novos testes produzem um novo agente” (1988: 98). Assim,
em cada rede e contexto por onde a(s) Ayahuasca(s) transita(m), criam-se senti-
dos, sujeitos e objetos distintos.
As descrições apresentadas nos mostram como a bebida e seus usos têm uma
forma particular – ou, nos termos de Strathern em suas análises da troca na
Melanésia, uma forma apropriada para aparecer – diferente para membros das co-
munidades tradicionais da ayahuasca, indígenas ou pesquisadores. Enquanto para
o Santo Daime e para populações indígenas amazônicas, por exemplo, a planta é
um “mestre” que ensina, é dotada de intencionalidade, reflexão e características
altamente humanizadas, para a UDV a bebida é um objeto, um meio material de
se chegar a uma finalidade mental. Portanto, desde que se entenda que esse ob-
jeto é plural, que está se falando de Ayahuascas, a realização do inventário pode
ser um bom caminho para se mapear o uso ritual da bebida.
A ideia de se inventariar ou patrimonializar um bem não deixa de nos re-
meter às noções de invenção e objetificação da cultura conforme propostas por
Wagner (1981). Para se patrimonializar ou inventariar, é preciso pensar o uni-
verso de consumo da Ayahuasca como uma cultura, isto é, estender a ideia de
cultura para esse universo, ou como diria Wagner, metaforizar a vida em cultura
– descrever em termos desse conceito o que para alguns é simplesmente vida.
Como é possível descrever uso ritual da Ayahuasca em sua multiplicidade? No
processo da transferência de associações dos contextos de uso da bebida para
outro contexto (seja o do registro de bem cultural ou de inventário), é possível
que a invenção e particularidade dos usos manejados pelas diversas comunidades
não sejam pulverizadas ou reificadas?
A objetificação da Ayahuasca que os aparatos do Estado operam, seja por
meio dos possíveis estudos/políticas no âmbito do patrimônio ou da regulamen-
tação de seu uso religioso, dificilmente conseguiria escapar da lógica convencio-
nal operada por uma simbolismo coletivizante (Wagner), uma vez que é vocação
do Estado conceder ordem e integração racional ao vivido. Os efeitos disso so-
bre a lógica da objetificação diferenciante, ou seja, que especifica e concretiza o
mundo desenhando distinções radicais e delineando suas individualidades, que
me parece mais próxima daquela operante em pelo menos alguns dos contextos
de utilização da Ayahuasca, é difícil de prever. Seria preciso investigar casos
concretos de patrimonialização para recolocar a pergunta: será possível pensar
em um “regime jurídico suis generis” que não violente as diferenças, e o cons-
tante diferenciar, que constituem aquilo que pode ou não pode ser considerado
patrimônio da nação?
241
Notas
1
Os três troncos envolvidos na solicitação são: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal –
Alto Santo (CICLU- Santo Daime); Casa de Jesus – Fonte de Luz (Barquinha) e Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal – UDV. O CEFLURIS, uma linha do Santo Daime fundada pelo
Padrinho Sebastião Mota Melo, segundo o documento, não foi convidado a entrar na comissão
“por ter elementos complementares destoantes das demais doutrinas”.
2
O Decreto n° 3.351 prevê a possibilidade de abertura de novos Livros de Registro.
3
Essa câmara é composta por notáveis e tem entre outras funções fazer uma triagem dos pro-
cessos que devem seguir adiante.
4
No âmbito das políticas para o patrimônio imaterial, o inventário tem como objetivo a pro-
dução de conhecimento sobre as expressões culturais.
5
Todas as traduções dos textos referidos em língua original são minhas.
6
Creio que Gell aprovaria tal apropriação de sua teoria: “antropologia da arte, para reiterar, é
somente antropologia mesmo, exceto que ela lida com essas situações nas quais há um ‘índice de
agência’ que é normalmente um tipo de artefato” (1998: 66).
7
Diante da variedade de nomes (e até mesmo das folhas que se unem ao cipó no preparo da
bebida) pelo qual a Ayahuasca é conhecida entre os adeptos das diferentes doutrinas religiosas,
povos ameríndios e outros grupos que fazem uso da bebida, é preciso esclarecer que optei por esta
denominação para identificar a bebida composta pela Banisteropis caapi e pela folha da Psychotria
viridis por ser esse o nome que consta no processo do Iphan. Ayahuasca, do quéchua “cipó dos
deuses” ou “vinho das almas”, é certamente o nome mais popular da combinação do cipó com a
chacrona e pode até mesmo ser visto como porta-voz (Latour 1988) do yagé, shori, kamarampi, nixi
pae, daime, hoasca, e outros nomes que o preparado dessas plantas pode receber.
8
O CICLU é, portanto, a igreja fundadora do Santo Daime. Com a morte de Irineu (e após
rituais do Alto Santo já terem sido organizados na Colônia 5000), um de seus seguidores, Sebastião
Mota de Melo (1920-1990), sai do CICLU, funda o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Rai-
mundo Irineu Serra (CEFLURIS), introduz mudanças organizacionais e adiciona o sacramento
da Santa Maria (cannabis sativa). O CEFLURIS é uma linha mais expansionista do Santo Daime,
mantendo igreja em vários lugares do Brasil e no exterior. Podemos suspeitar que, pelo tom do
documento encaminhado ao Iphan, o CEFLURIS não se encontre entre as doutrinas que solici-
taram o pedido de patrimonialização devido ao sacramento da Santa Maria – “por ter elementos
complementares destoantes das demais doutrinas”, conforme se lê no documento. É importante,
todavia, frisar que nem todas as igrejas ligadas a esta linha fazem uso dessa planta de poder.
9
Sobre as concepções vegetalistas, ver Luna (2004). Segundo essa tradição, “algumas plantas
ou ‘vegetais’, possuidoras de espíritos sábios, teriam a faculdade de ‘ensinar’ às pessoas que os
procuram” (2004: 183). Elas seriam, assim, consideradas “mestras” ou “professoras” pelos mesti-
ços peruanos. Entre os seringueiros do Brasil, Franco e Conceição (2004: 219) encontraram uma
242
concepção parecida: “todos reconhecem que a bebida ‘é professora’ e a ciência está em saber com-
preender o que é, sob seu efeito, vivenciado”. Para as concepções ameríndias, ver adiante.
10
Entre alguns seguidores, existe a compreensão de que Mestre Irineu é o Daime.
11
Recomenda-se que nos três dias antes de tomar o Daime, a pessoa não consuma bebida al-
coólica, carne vermelha nem mantenha relações sexuais. Para que a energia possa ser conservada,
é recomendado também abster-se de tais práticas até três dias após a ingestão.
12
Refiro-me aqui a uma posição simbólica que pode ser auferida pelo tempo de pertencimento
à igreja e pelo lugar em que se senta ou se baila nas fileiras dispostas no salão. Antigamente, havia
uma hierarquia entre os fardados – iniciados na doutrina – que podia ser verificada nas insígnias
que constavam no uniforme. Ciente das intrigas e disputas que isso gerava entre os fiéis, Mestre
Irineu aboliu esse tipo de diferenciação.
13
No sítio da internet da UDV, lê-se que o chá é “um instrumento de concentração mental
dado o seu poder de favorecer estados ampliados de consciência benéficos ao desenvolvimento
moral e intelectual do ser humano”.
14
As transformações nominais não se restringem somente à bebida, mas a seus componentes.
Quando a bebida chamava-se Ayahuasca o cipó era designado Mariri e a folha, Chacrona ou Mes-
cla. “Foi a partir da evolução da compreensão do Sr. Irineu sobre a Ayahuasca e de suas vivências
culturais que se deu a elaboração dos novos nomes dos componentes da bebida. Então, a folha foi
rebatizada como Rainha, o cipó foi designado como Jagube e a bebida recebeu o nome de Daime”
(Oliveira 2007: 249-250).
15
A ação do Daime na pessoa pode ser abduzida a partir de transformações de comportamen-
to, sentimentos, aparência e até curas de doenças ou de dependência química.
16
Ver http://www.udv.org.br/Uma+doutrina+crista/A+sagrada+Uniao/52/, consultado em
13/07/2010.
17
Fabíola Cardoso, comunicação pessoal.
18
É claro que, assim como o contexto ligado às comunidades tradicionais se ramifica no uso
diferenciado que se dá nas três doutrinas, o contexto indígena também engloba os contextos par-
ticulares de uso de cada povo.
19
As mesmas comunidades lançaram em 1991 uma “Carta de Princípios para o Uso da Ayahuas-
ca” na qual definem “procedimentos éticos comuns em torno do chá, sem prejuízo à identidade e
às convicções de cada uma”. Ver http://mestreirineu.org/liberdade_carta.htm.
243
Referências
244
245
Diego Soares
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (2005) e doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasília.
Pesquisador associado desde 1999 ao Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACI)
da UFRGS, onde participou de diversas pesquisas na área de antropologia e direitos
humanos e desenvolveu a sua dissertação de mestrado sobre narrativa histórica e
reforma agrária. Atuou como consultor na Secretária Especial de Direitos Humanos
do governo federal e participou do Comitê de Avaliação de Processos do CGEN,
onde também realizou pesquisa etnográfica. Atualmente, finaliza tese de doutorado
na área de antropologia da ciência baseada em etnografia desenvolvida junto a povos
tradicionais e cientistas envolvidos em pesquisas na área de “acesso” à biodiversida-
de e aos conhecimentos tradicionais (Alto Rio Negro e Alto Amazonas).
249
José Pimenta
Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (2002) e pro-
fessor do Departamento de Antropologia da mesma universidade des-
de 2005. Atualmente, é coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da UnB e coordenador geral do PROCAD “Etnologia
Indígena e Indigenismo: Novos desafios teóricos e empíricos”. Desenvolve
pesquisa com os Ashaninka do Rio Amônia (Alto Juruá-Acre) desde 1999.
Autor, entre outros trabalhos, dos artigos “Povos indígenas e desenvol-
vimento sustentável: os paradoxos de um exemplo amazônico” (Anuário
Antropológico2004, 2005); “‘Viver em comunidade’: o processo de territoria-
lização dos Ashaninka do rio Amônia” (Anuário Antropológico2006, 2007);
e “Indigenismo e Ambientalismo na Amazônia ocidental: a propósito dos
Ashaninka do rio Amônia” (Revista de Antropologia,2007). É co-organizador
e co-autor do livro Faces da Indianidade (2009).
250
251
outros trabalhos, dos artigos “The future of the structural theory of kinship”
(no livro organizado por Boris Wieseman, The Cambridge Companino to Lévi-
Strauss, 2009), “Porque a identidade não pode durar: a troca entre Lévi-Strauss
e os índios” (na coletânea Lévi-Strauss: leituras brasileiras, organizada por Rubem
Caixeta de Queiroz e Renarde Freire Nobre, 2008), “As propriedades da cultura
no Brasil Central Indígena” (Revista do Patrimônio, 2005) e “A cultura invisível:
conhecimento indígena e patrimônio imaterial” (Anuário Antropológico 2009/I,
2010). É Pesquisadora 2 do CNPq.
252
21 de setembro de 2009
Departamento de Antropologia/UnB
Brasília
Mediador
José Antonio Vieira Pimenta (Departamento de Antropologia – UnB)
Realização
Equipe PROCAD UnB/UFPR:
“Etnologia Indígena e Indigenismo: Novos desafios teóricos e empíricos”
Laboratório de Indigenismo e Etnologia Indígena – LINDE (DAN/UnB)
Apoio
CAPES
255
27 de abril de 2010
Departamento de Antropologia/UFPR
Curitiba
Manhã
A controvérsia do murmuru. Notas sobre um conflito envolvendo conhecimentos
tradicionais indígenas
José Pimenta (Departamento de Antropologia – UnB)
Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um diálogo regional
Laura Pérez Gil (Departamento de Antropologia – UFPR)
A ‘cultura’, os especialistas e os especialistas em ‘cultura’: conhecimentos e políticas
Katukina/Pano
Paulo Roberto Homem de Góes (mestre em Antropologia, PPGAS/UFPR)
Debatedor
Miguel Carid Naveira (Departamento de Antropologia – UFPR)
Tarde
Da inalienabilidade do alheio: a quem pertencem as espirais kisêdjê?
Marcela Coelho de Souza (Departamento de Antropologia – UnB)
A ‘cultura’ vive em uma rã? Notas sobre as transformações do kampô katukina
Edilene Coffaci de Lima (Departamento de Antropologia – UFPR)
Novos destinos para velhos saberes. Uma teoria ye’kuana do conhecimento
Karenina Andrade (Departamento de Antropologia – UnB)
Debatedor
Miguel Carid Naveira (Departamento de Antropologia – UFPR)
Realização
Equipe PROCAD UnB/UFPR:
“Etnologia Indígena e Indigenismo: Novos desafios teóricos e empíricos”
Apoio
CAPES
257
FACES DA INDIANIDADE
259