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Copyright

© 2019 Cássia Carducci


Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos
descritos são produtos de imaginação do autor. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

O CÉU ACIMA DO CÉU
Cássia Carducci

Revisão: Rebecca Pessoa
Capa: NS Capas
Diagramação Digital: NS Capas

Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa
obra, através de quaisquer meios – tangível ou intangível – sem o consentimento
da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Edição Digital ǀ Criado no Brasil
Prólogo – Sophia
Prólogo – Alexandre
Capítulo 1 – Voltando para casa
Capítulo 2 – Duas vidas
Capítulo 3 – As aparências enganam
Capítulo 4 – Saudade é o amor que fica
Capítulo 5 – Nada é tão mau quanto parece
Capítulo 6 – Quando se perde tudo, o que resta?
Capítulo 7 – Sobre anjos
Capítulo 8 – Autoflagelo
Capítulo 9 – Um anjo veio me falar
Capítulo 10 – Quem mais nega é quem mais mente
Capítulo 11 – Cura necessária
Capítulo 12 – Vulnerável
Capítulo 13 – Um lugar feliz
Capítulo 14 - Sentimentos inválidos
Capítulo 15 – Abraçando o céu
Capítulo 16 – Infinito particular
Capítulo 17 – Flores em vida
Capítulo 18 – Uma visita inesperada
Capítulo 19 – Cicatrizes invisíveis
Capítulo 20 – Decisões difíceis
Capítulo 21 – O passado é o remetente
Capítulo 22 – O mais puro amor do mundo
Capítulo 23 – O amor está em tudo
Capítulo 24 – Minhas verdades
Capítulo 25 – Sentir é melhor que saber
Capítulo 26 – Então…
Capítulo 27 – Insônia
Capítulo 28 – Falsa inocência
Capítulo 29 – Boa noite, anjo
Capítulo 30 – Algumas verdades
Capítulo 31 – Resiliência
Capítulo 32 – Como eu te vejo
Capítulo 33 – Do nosso próprio jeito
Capítulo 34 – Aconteça o que acontecer, desfrute
Capítulo 35 – Cada uma tem seu lugar
Capítulo 36 – A cura para todos os males
Capítulo 37 – Completa, finalmente
Capítulo 38 – Nosso jeito de fazer amor
Capítulo 39 – Um lugar que seja meu
Capítulo 40 – Inesperado, mas nem tanto
Capítulo 41 – Meu refúgio
Capítulo 42 – Erros Justificáveis
Capítulo 43 – Abrindo os olhos
Capítulo 44 – Sempre inteiro, nunca pela metade
Capítulo 45 – O que eu preciso
Capítulo 46 – O amor é a única coisa que importa
Capítulo 47 – A falta que ela me faz
Capítulo 48 – Para todo recomeço, há antes um fim
Capítulo 49 – Uma nova perspectiva
Capítulo 50 – Somos feitos de erros e acertos
Capítulo 51 – Sobre recomeçar
Capítulo 52 – Totalidade
Capítulo 53 – O céu é testemunha
Capítulo 54 – Sua luz
Capítulo 55 – Sim, para sempre
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a Autora
“Para todos aqueles que têm coragem de
recomeçar”
“Qual é o peso da culpa que eu carrego nos
braços?
Me entorta as costas e dá um cansaço.
A maldade do tempo fez eu me afastar de
você…”
- À noite – Tiê
Alexandre é um piloto de avião que ama o que faz. Aos 28 anos, bem-
sucedido e bonito, não tem olhos para ninguém que não seja sua esposa, Júlia;
por mais que ele adore o céu, ela é o seu motivo para amar ainda mais a terra
firme. Dessa união nasce Lilith, uma garotinha que se mostra mais inteligente e
evoluída a cada dia que passa. Após uma tragédia, Alexandre vê sua vida
desabar, e ao se dar conta de que está sozinho no mundo com a pequena Lilith
nos braços, ele não vê alternativa a não ser recomeçar.
Mas será que isso é possível?
Sophia está presa a uma cadeira de rodas desde os dezessete anos. Quando
Lilith pede que a moça seja sua babá, ela terá que enfrentar muitos desafios para
cumprir essa tarefa, inclusive, e principalmente, esconder o que sente pelo pai da
garotinha. Como lidar com a culpa, o medo e o preconceito? Como amar alguém
que aparentemente nunca esquecerá seu único amor?
Um romance sobre superação, diferenças e espiritualidade. Venha descobrir
em "O céu acima do céu" que muitas vezes é possível voar sem tirar os pés do
chão.

No livro, algumas cenas podem ser interpretadas como quiserem: como sendo
algo espiritual ou apenas como a imaginação de uma criança. Não há nada de
errado em ver de uma forma ou de outra. Eu apenas quero contar a história, e
quero contá-la da forma mais delicada possível.

Lilith tem a língua presa. Basicamente, ela tem dificuldade em falar palavras
com R, então sua fala errada se deve a isso, não à sua idade. Não irei colocar
todas as palavras escritas de forma errada, porque seria cansativo para ler, mas às
vezes, ela soltará uma ou outra no meio da frase para vocês lembrarem que ela
não fala tudo certinho, ok?
PRÓLOGO
7 anos antes
Sophia
— Você quer uma cerveja? — Rodrigo se abaixou até a altura da
espreguiçadeira onde eu estava tomando sol. Abri lentamente os olhos para me
acostumar com a claridade que vinha diretamente em meu rosto. Meu biquíni
azul claro combinava perfeitamente com o tom que minha pele estava
adquirindo depois de algumas horinhas de sol, e eu simplesmente adorava isso.
— Não, você sabe que eu não bebo — sorri e meu namorado fez um bico,
antes de deslizar seus dedos por minha coxa, me fazendo arrepiar. Ainda não
havíamos chegado lá, mas eu havia resolvido que seria naquela noite. Depois de
quase um ano de namoro, Rodrigo merecia que déssemos esse passo. Era meu
presente de aniversário; um presente onde os dois sairiam ganhando.
— É meu aniversário, amor… — Ele fez bico e seus olhos ganharam uma cor
mais viva, o que fez meu corpo inteiro se acender. Eu conhecia aquele olhar. —
Eu só quero te deixar mais relaxada. Estou ansioso para essa noite.
Mordi o lábio. Apesar da minha óbvia timidez, com Rodrigo era diferente.
Com ele, tudo era diferente.
— Eu também — confessei em um sussurro —, mas eu não preciso de
cerveja. Meu amor por você basta para que tudo saia perfeito — eu disse,
completamente apaixonada.
Ele ergue o canto da boca em um sorriso quase imoral de tão lindo.
— Linda! — Ele disse antes de abaixar o rosto e beijar minha boca com
carinho. Senti levemente o gosto de álcool em sua língua, mas não disse nada,
era o seu aniversário, sua maioridade. Ele estava ansioso por aquele dia e por
tudo o que ele lhe traria, e Rodrigo não tinha o hábito de beber. Ele só estava
festejando.
É claro que eu esperava que ele parasse um pouco antes da noite chegar.
Queria que ele estivesse completamente consciente na hora que o nosso
momento acontecesse, na nossa primeira vez, e eu sabia que ele estaria. Ele
havia prometido, e meu namorado nunca quebrava suas promessas.
— Vai jogar com os meninos — eu apontei o campo de areia do outro lado,
onde os nossos amigos jogavam futevôlei. — Daqui a pouco vou entrar para
tomar um banho, e você também. — Ele concordou, animado com minha
promessa velada, e me deu mais um beijo antes de se afastar. — E para de beber!
[…]
Já passava das quatro da tarde quando eu finalmente me levantei da
espreguiçadeira. Minha intenção era dar mais um mergulho antes de entrar,
comer alguma coisa e tomar um banho. Estávamos reunidos numa chácara, mas
Rodrigo havia reservado um quarto apenas para nós dois, com um banheiro e
muita privacidade. Ele sabia que precisaríamos, mesmo tendo a noção de todas
as piadas que enfrentaríamos no dia seguinte, quando acordássemos juntos.
Dobrei minha canga e parei ao lado da piscina, procurando por ele. Sem
esperar, senti suas mãos agarrando minha cintura por trás, e eu ri. Com avidez,
ele me virou de frente para ele, me encarando. Seus olhos estavam pesados
quando me olharam e eu sabia que era o efeito do álcool misturado com o
desejo. Rodrigo havia parado de beber como havia me prometido, mas o álcool
havia feito efeito rápido demais e eu já não tinha tanta certeza sobre nossa noite.
Queria que fosse memorável para nós dois, mas principalmente para mim, afinal,
eu iria entregar minha virgindade à ele. Mas eu sabia que com ele naquelas
condições, isso seria impossível.
Ele me abraçou forte e senti seu corpo esquentar junto ao meu. Eu sempre me
sentia assim em relação à ele. Bom, na verdade, nem sempre.
Rodrigo chegou em um excelente momento da minha vida, quando um
incômodo sentimento que me atormentava há anos parecia ainda mais forte.
Mais precisamente desde os meus quatorze anos, quando eu comecei a me sentir
mulher.
Eu achava que estava apaixonada por Alexandre, o filho mais velho dos
patrões da minha mãe. Apesar de ser muito amiga de André, o mais novo, era
Alexandre quem fazia o meu coração bater mais rápido; ele parecia um sonho
impossível para mim. Além de estar totalmente fora da minha realidade em
muitos sentidos, ele também era dez anos mais velho, e me enxergava como uma
criança.
No ano passado, o que já era difícil se tornou praticamente impossível:
Alexandre começou a namorar Júlia, uma moça tão linda e gentil que tornava
impossível sentir qualquer coisa negativa em relação a ela.
A mim, bom, só me restava admirá-los em silêncio.
Graças a Deus conheci Rodrigo no mesmo ano. Ele foi a cura para o meu
coração tão precocemente partido, e, pela primeira vez, Alexandre deixou de ser
meu pensamento constante.
Voltei à realidade com um beijo em meu pescoço, e seus olhos me encararam
em um azul profundo cheio de intenções.
— Será que já podemos entrar? — Ele falou com a voz rouca, e, por um
segundo, tentei imaginar como seria quando ele sussurrasse em meu ouvido
enquanto estivesse dentro de mim, me fazendo finalmente sua. Só o pensamento
me fazia tremer.
— Só mais um mergulho — eu disse, e ele assentiu com delicadeza. Porém,
antes que eu conseguisse processar o que estava acontecendo, Rodrigo me
empurrou com força para dentro da piscina.
É mais do que óbvio que ele tentou fazer uma brincadeira, me empurrando
logo para o mergulho que comentei, para que assim pudéssemos entrar e ficar
sozinhos. Mas ficou muito claro para mim que foi uma brincadeira sem graça,
pois quando as minhas costas encontraram a água eu mal consegui me manter
ligada. A dor foi intensa, excruciante; foi como se eu tivesse batido no concreto
puro.
Quando a água entrou em minha garganta, me fazendo tossir e bater os braços
em desespero, senti Rodrigo me segurar pela cintura e me puxar para cima. Para
mim, parecia que tudo havia acontecido em um mísero segundo, mas percebi,
pelo desespero de quem estava em volta, que a cena toda demorou muito mais
do que isso.
— Linda? Linda, você sabe nadar, o que aconteceu? — Rodrigo me
perguntou, em desespero, quando me colocou deitada na beira da piscina.
Abri os olhos desesperada, enquanto meu nariz e garganta ardiam pela água
que entrou. A dor ainda era muito forte, mas minha raiva era maior. Tentei erguer
o corpo. Eu queria xingá-lo; bater nele pela brincadeira idiota, por ter bebido
quando não era para ter feito isso, pelo menos não tanto.
Mas eu não consegui me mexer.
Eu simplesmente estava travada no lugar, como se estivesse presa ao chão.
Eu não conseguia me mexer.
— Rodrigo… — Eu balbuciei, consternada, enquanto tentava com todas as
minhas forças mudar de posição. Quando percebi que não importava o que
fizesse, simplesmente não conseguia, o desespero me tomou, por que eu comecei
a entender que a coisa havia sido muito mais grave do que eu imaginava. —
Rodrigo, chama alguém. Pelo amor de Deus, chama alguém! Eu não consigo me
mexer.
Fechei os olhos, orando sem parar. Rezando para que qualquer coisa que
tivesse acontecido comigo, fosse passageira. Mas quanto mais eu rezava, mais eu
entendia que o que quer que tivesse acontecido, mudaria minha vida para
sempre.
Quando a ambulância finalmente chegou, fui colocada na maca. Rodrigo não
tirou suas mãos de mim um segundo sequer, chorando desesperado.
— Eu estou aqui. Estou aqui, linda. Me perdoa. — Ele encostou a testa na
minha enquanto as lágrimas caíam, e suas palavras se repetiam em um looping
infinito, como se ele nem soubesse mais o que estava falando. — Era só uma
brincadeira. Me perdoa, meu amor. Eu estou aqui. Estou do seu lado, não vou
sair daqui.
Suas palavras nunca mais saíram da minha mente, porque, pela primeira vez,
meu namorado quebrou uma promessa.
PRÓLOGO
6 anos antes
Alexandre
— Alexandre, não! — Ela gritou, em uma tentativa frustrada de me fazer
parar, mas que não deu certo, pois quando ela riu, eu soube que estava gostando
tanto quanto eu. Girei mais uma vez com ela em meus braços, até ouvir algo que
me fez estacar na mesma hora.
"Grávidas vomitam com facilidade, seu bobo. Vai ser pior pra você."
Parei na mesma hora e delicadamente a coloquei no chão. Júlia sorriu e apoiou
suas duas pequenas mãos em meu peito. Eu amava aquela mulher. Cada mínimo
pedaço e cada sorriso. Cada curva e roupa, cada olhar e expressão. Nunca
haveria outra para mim. Jamais alguém tomaria seu lugar.
Assoprei uma mecha rebelde de seu cabelo curto e preto, fazendo a fechar os
olhos, levemente incomodada.
Depois que Júlia entrou em minha vida, nada era mais importante do que ela.
Um amor arrebatador como o que eu sentia era quase impossível de descrever. A
única coisa que eu sabia era que era bom demais: bom de sentir, bom de
compartilhar, bom de viver.
Júlia era o meu lugar.
— Me desculpa, meu amor — beijei o topo de sua cabeça. — Eu ainda não
me acostumei com isso de… você estar grávida. É novo para mim.
— Pra mim também, Alexandre, você sabe disso. Eu descobri há quatro dias.
Às vezes eu acho que é coisa da minha cabeça, de tão novo que isso é pra mim.
— Deveria ter me contado na hora. Me ligado. Mandado o papa atrás de mim,
sei lá! — Dou risada e aperto sua orelha levemente. — Eu queria estar com você
nesse momento.
— Ah, claro, eu ia te ligar enquanto você voava. Você estava do outro lado do
mundo, senhor “piloto-mais-requisitado-da-companhia”.
Dou risada com sua última frase. Ela tinha razão e adorava me provocar com
isso. Eu havia ganhado espaço na companhia em que trabalho e as viagens eram
cada vez mais constantes. Minhas horas de voo aumentavam consideravelmente
e, por consequência, meu salário também. Isso era bom, agora que eu teria uma
família.
Meu Deus, uma família! A palavra me acerta com força, e eu suspiro.
Eu sempre fui um cara diferente dos demais. Sempre fui caseiro, comportado,
cristão de um jeito não fanático. Bebia moderadamente, não fumava e balada
quase nunca me atraía. Preferia passar meu tempo estudando, pois sempre tive a
intenção de ter uma boa vida.
Fiz o exame para a academia de pilotos cedo, com a idade mínima, o que me
permitiu ter muitas horas de voo no currículo, mesmo com a minha pouca idade.
As condições da minha família eram boas, não posso negar. Vivíamos com
conforto, mas nunca fomos daqueles que podem esbanjar dinheiro, porém, isso
me deu a chance de estudar muito, e foi o que trouxe grande parte das minhas
conquistas.
Eu e meu irmão, André, seguimos a mesma profissão: nós dois éramos
apaixonados por aviões desde pequenos, o que fez com que meus pais perdessem
horas e horas nos levando ao aeroporto, apenas para observar o subir e descer
das aeronaves que tanto amávamos.
Depois de muita luta, estudo, noites insones e sonhos aparentemente
impossíveis, hoje somos contratados da Office Airlines, uma companhia aérea
completamente voltada para o transporte de funcionários das maiores empresas
do mundo. Sabe aquele povo grande: diretores, presidentes, gerentes?… Todos
eles viajavam conosco, e nosso serviço era reconhecido mundialmente.
Conheci Júlia no grupo de jovens da igreja que frequentávamos. Eu estava um
pouco afastado dos braços de Deus, mas no dia em que resolvi voltar, ela estava
lá, com um sorriso radiante e uma fé inabalável. Gostei dela desde o início, e
depois de uma linda amizade, nos tornamos um casal.
Nosso amor foi construído aos poucos, como eu acho que todo amor deve ser.
Tornamo-nos amigos primeiramente, nos conhecendo e nos descobrindo; depois
viramos namorados, e hoje, eu sei, seremos uma família completa, linda, da
forma como eu sempre quis e imaginei.
Sonhos podem ser reais. Aqui está o meu.
Eu sempre tive muitas garotas ao meu redor, e agora que eu era piloto e podia
viajar para diversos países, isso era cada vez mais comum. Eu podia ter mulheres
onde eu estivesse, se assim eu quisesse.
Mas essa é a questão: eu nunca quero.
Eu seria incapaz de trair Júlia, e por ser incapaz de traí-la, eu sabia, do fundo
do meu coração, que ela era a mulher para mim.
Eu não me assustei com o fato dela estar grávida, pelo contrário, eu me senti o
cara mais sortudo do mundo.
Seria o começo da nossa família.
Ciente disso, e ansioso por esse momento, ajoelhei-me diante de seu olhar
atônito, e tirei do meu bolso a pequena caixinha de veludo vermelho que toda
mulher espera ver um dia, abrindo-a e exibindo o anel da minha família. Aquele
anel havia sido passado de geração em geração, e agora era minha vez de colocá-
lo no dedo da mulher que eu amava mais do que a mim mesmo.
Ela era extremamente digna dele e toda a minha família concordava. Júlia era
a nora e cunhada querida, que todos amavam ter por perto sempre. Essas coisas
aumentavam a minha certeza de que ela era a pessoa certa para mim, em todos
os sentidos.
— Você aceita ser minha para sempre? — Pergunto diante de sua expressão
emocionada. Eu sabia que ela aceitaria, era o sonho dos dois ser apenas um.
— Claro que eu aceito, que pergunta! — Ela coloca as duas mãos na boca,
totalmente maravilhada. — Eu te amo, Alexandre. Te amo para sempre.
O que eu não sabia era que, muitas vezes, o para sempre dura muito pouco.
CAPÍTULO 1 – VOLTANDO PARA CASA
Dias atuais
Alexandre
— Papai — Lilith envolve seus bracinhos em volta do meu pescoço enquanto
voltamos para casa. — Para onde a mamãe foi?
Meu coração afunda dentro do meu peito e eu sinto um nó se formar em
minha garganta, como se mãos grandes e pesadas me enforcassem com força.
Era uma pergunta que nem mesmo eu conseguia responder, nem mesmo eu
conseguia entender. Para onde foi minha doce e amada Júlia? Se nem mesmo eu,
do alto de meus trinta e quatro anos bem vividos conseguia aceitar, como pedir
que minha pequena princesa de apenas seis anos entendesse?
— Meu amor… — Respiro fundo, buscando ar suficiente para falar aquela
frase de uma vez só. Eu queria falar tão rápido, mas tão rápido, que nem mesmo
eu pudesse ouvir. Queria realmente que fosse possível nunca mais ouvir aquela
verdade. — Ela foi morar com o papai do céu.
Seus olhinhos negros, idênticos ao de sua mãe, pousam sobre os meus em uma
expressão triste.
— Por que ela não me levou junto? Ela não me ama mais? — Ela esquadrinha
meu rosto, tocando minha pele com sua mãozinha pequena.
— Não, meu amor… Não é nada disso. É que o papai do céu escolheu a
mamãe, mas só ela, entende? E só pode ir para lá quem é escolhido… Ela teve
que ir. Lá do céu ela vai continuar cuidando de você, olhando por você e te
amando como sempre te amou.
Ela entorta sua cabecinha. Uma mania que também era de sua mãe, como se
assim elas fossem capazes de entender melhor o que ouviam.
— E você, papai? Ela vai cuidar de você também?
Sorrio com o entendimento simples de minha filha. Por mais que eu soubesse
que ela sofreria com a ausência da mãe, ela entenderia e aceitaria muito mais
fácil do que eu, já que meu coração estava tomado pela amargura.
Porque eu simplesmente não aceitava. Eu não podia aceitar.
Como continuar acreditando em Deus quando ele levou minha mulher de uma
forma tão trágica?
Talvez fosse só a dor falando mais alto, porque há menos de duas horas eu
havia enterrado metade da minha vida, mas eu, que sempre fora um cara cristão,
estava inconformado com a decisão d'Ele. Era como se Deus simplesmente
tivesse se afastado de mim, e uma grande sombra pairasse sobre tudo à minha
volta.
Júlia estava a caminho da escola de Lilith quando parou em um farol. Em
plena luz do dia, dois caras em uma moto a renderam, exigindo que ela saísse do
carro. Segundo testemunhas, ela se atrapalhou com o cinto porque estava
nervosa, mas eles não deram nem chance. Dois tiros na cabeça e eu nunca mais
veria a mulher que eu mais amei na vida.
Volto à atenção para o rostinho de minha filha que ainda espera por uma
resposta.
— Vai, meu amor, a mamãe vai cuidar de mim também, como sempre cuidou.
E adivinhe só, a vovó vai vir passar uns dias com a gente. Não é demais? —
Tento mudar o assunto, mesmo sabendo que isso é impossível.
— A vovó? — Sua boquinha rosada se abre em forma de "oh" e eu sorrio
fracamente. Somente a minha filha conseguiria despertar qualquer reação boa
em mim nesse momento.
Agora que sua mãe se fora, eu precisava ser pai, mãe, e tudo o mais que ela
necessitasse.
Eu seria tudo para ela.
— Sim, ela virá passar uns dias conosco. Vai ser bom para nós, não vai? Ela
vai poder cuidar de nós um pouquinho.
— Vai sim! — Ela balança a cabecinha, contente. Por um segundo, um mísero
segundo eu consigo ver algo de bom nisso tudo. Seria muito pior se Lilith
estivesse no carro quando tudo aconteceu. Seria muito pior ela ver a vida da mãe
sendo tirada. Ela poderia muito bem ter sido levada no carro, ou simplesmente
sido morta junto com a mãe. Eu não suportaria. Talvez ela tenha ficado aqui para
que eu pudesse ter um motivo para continuar vivendo.
Porque agora ela era meu único motivo. Nada mais me importava.
Estaciono o carro na frente da casa em que vivemos. Puxo o freio de mão e
encaro a entrada por alguns minutos. Não é uma mansão, mas é uma casa muito
boa. Todos os detalhes dela foram escolhidos a dedo por Júlia. Todos os quadros,
todos os tapetes, móveis, tudo. Ela estava em cada canto daquele lugar.
Uma lágrima tímida escorre pelo canto do meu olho, mas eu a enxugo
rapidamente. Meu momento de colocar tudo isso para fora chegará, eu tenho
certeza, mas não seria agora, com minha filha ao meu lado, vendo cada
movimento meu. Eu precisava ser a força dela. A garantia de que tudo daria
certo.
— Vamos, meu amor? Aposto que minha bebê está cansadinha, não está? —
Estendo os braços e ela pula do banco de trás para o meu colo com facilidade.
Aninha-se em meu peito ali mesmo no banco da frente, encostando seu rostinho
em meu terno preto. Eu a envolvo com meus braços e acaricio seu cabelo
sedoso. Minha filha cheira a flores…
E é ali, naquele abraço dentro do carro, que encontramos paz, eu e ela.
Nós somos uma família diferente agora.
Só nós dois.
— Eu não sou mais um bebê. — Ela diz, tentando colocar em seu rostinho
doce uma expressão de brava que eu mesmo havia ensinado a ela. Quando Júlia
me advertiu que eu não devia ensinar essas coisas a nossa filha, eu ri, mas agora
eu vejo que eu serei o único a lidar com isso, com toda a sua educação. — Eu
sou uma mocinha. — Ela sorri, mostrando todos os seus dentinhos de leite. —
Mamãe sempi me diz isso. Que eu sou uma mocinha.
— Você é sim, minha mocinha. — Eu aperto seu nariz e ela ri. — Minha
mocinha teimosa, que vai entrar agora e tomar um banho, e depois cama. O
nosso dia foi longo.
— Eu posso doimi com você, papai? Não quero doimi sozinha — ela se
esforça ao máximo para falar a palavra “dormir” direitinho, mas sua língua presa
não colabora.
— Claro que pode, minha vida — eu concordo, dando-lhe um beijinho de
esquimó. A partir de hoje a minha cama seria para sempre muito grande para
mim, então nada mais justo que a minha filha pudesse dividi-la comigo.
Descemos do carro e seguimos para casa. Paro na porta com certo receio;
agora tudo seria diferente. Ao abrir aquela porta, eu teria a confirmação: ela
nunca mais voltaria. Não ouviria sua voz cantando de manhã na cozinha, quando
ela fazia questão de fazer seu próprio café. Não haveria seu perfume inundando a
sala. Não haveria suas coisas espalhadas por todo lugar, tomando todos os
espaços e me fazendo ficar louco com ela… Como eu daria tudo para continuar
recolhendo sua bagunça… Nunca mais iria às suas apresentações de balé, nunca
mais a teria dançando para mim.
Deus… Era peso demais para as minhas costas suportarem.
— Papai — Lilith puxa meu terno e eu olho para baixo, encontrando seus
olhos. Ela faz um sinal com a mãozinha e eu me abaixo, até ficar de frente para
ela, de igual para igual. — A mamãe foi morar com papai do céu… Você me
disse. Mas onde Ele mora? É muito longe?
— Ele mora lá no céu, meu anjinho. Por isso ele se chama Papai do céu. — Eu
explico o óbvio, torcendo para que essa resposta bastasse.
Mas é claro que não bastaria. Não quando se trata de Lilith, que sempre quer
saber de tudo nos mínimos detalhes.
— Oba! Então podemos visitar ela papai! — Seus olhinhos se enchem de
esperança e eu sufoco um gemido.
O que a fazia pensar que podíamos?
— Não, meu amor. Não podemos.
— Podemos sim! Você trabalha lá no céu, a mamãe me disse uma vez… Você
tem um carro que leva as pessoas no céu, né? — Ela diz em toda a sua inocência,
comparando os aviões que eu pilotava aos carros.
Suspiro. Como posso explicar isso a ela?
— Meu amor… É diferente. São céus diferentes. — Começo, mas a
explicação não convence, nem a mim e nem a ela, então eu tento de novo. — O
papai queria muito poder levar você para visitar a mamãe, mas o céu que eu
trabalho é diferente do céu que a mamãe mora agora. O céu que a mamãe mora é
muito mais longe e nem um carro chega lá. Nem o do papai.
— Muito longe papai? — Lágrimas pinicam seus olhinhos quando a realidade
finalmente a atinge: ela nunca mais verá sua mãe. Sinto que irei morrer ao
assistir aquilo. Como é injusto ver minha filha sofrer e não poder fazer nada!
Mas eu não posso enganá-la. Sua mãe não voltaria e, por mais que doesse, um
dia ela entenderia.
— Sim, meu anjinho. Muito longe. Agora a mamãe mora no céu acima do
céu.
CAPÍTULO 2 – DUAS VIDAS

Alexandre
Olho através da escuridão e do silêncio da minha sala de estar. Balanço o copo
entre meus dedos, fazendo o whisky girar, enquanto sinto as lágrimas molharem
minha camisa de linho. Lilith adormeceu há algumas horas e eu quase a invejo
por isso. Como eu queria poder dormir também, sem pesadelos ou desespero.
Como eu queria dormir e acordar desse sonho ruim.
O problema é que todas às vezes que eu fecho os meus olhos, me vem uma
cena na cabeça: o alumínio frio cobrindo o corpo da mulher da minha vida; da
mãe da minha filha.
Da mãe do nosso próximo filho.
Ela estava grávida e nenhum de nós sabia disso.
A investigação a respeito da morte de Júlia continuava a passos de tartaruga,
mas eu jamais desistiria de colocar aqueles monstros na cadeira. Dia sim, dia
não, eu estava na delegacia responsável cobrando novidades.
Eu só teria um pouquinho de paz quando alguém estivesse pagando pelo que
fez com a minha família.
Minha mãe ficou alguns dias conosco, mas até Dona Ilana tinha sua vida para
cuidar. Ela era maravilhosa, mas sabia que não poderia substituir Julia —
ninguém de fato poderia — então ela apenas ficou e nos alegrou com sua
presença por uns dias, mas depois foi embora com suas malas na mão e um
aperto no coração por nos deixar pra trás. Desde então, minha rotina se resume a
acordar, me dedicar totalmente à minha filha o dia inteiro e depois dormir. A
Office Airlines me deu um mês de férias para que eu colocasse a minha vida nos
eixos, como se isso fosse possível. Eu sabia que nem cem anos fariam isso por
mim, quem dirá um mês.
O problema é que esse mês acaba hoje, e amanhã eu preciso ao menos tentar
voltar à minha rotina. Eu ainda tenho contas a pagar e uma filha para criar, eu
não posso me dar ao luxo de deixar tudo pra lá.
— Doutor Alexandre? — Ouço uma voz me chamando e me viro em direção à
entrada do hall.
— Cilene? O que você ainda faz aqui? — Ergo meu pescoço até ver nossa
funcionária de muitos anos sorrir para mim. Ela era funcionária de minha mãe, e
quando me casei, a trouxe comigo. A figura baixinha e gordinha, de cabelos
castanhos sempre puxados para trás me é tão familiar quanto minha própria mãe.
Ela é maternal e dedicada; Júlia a amava de todo o coração e Lilith a trata como
uma segunda avó.
— Desculpa a hora, Doutor Alexandre, é que eu quis ficar aqui ajeitando
umas últimas coisas porque eu sei que o senhor volta amanhã para o trabalho,
né?
— Cilene, primeiro: para de me chamar de doutor, eu sequer tenho doutorado.
E sim, amanhã eu volto para o trabalho. Obrigada por se preocupar com isso. —
Sorrio fracamente, sem tentar limpar as lágrimas que banham meu rosto. A essa
altura, eu já estou triste e alterado demais para me importar, e Cilene é família;
ela sabe de tudo, vê tudo, e está sempre ali por mim.
— Ô, Doutor Alexandre… — Ela se aproxima a passos lentos, talvez com
medo da minha reação. O fato é que eu ando completamente transtornado esses
últimos dias e tenho descontado em pessoas que não merecem. Mas eu
simplesmente não controlo isso. Eu só quero minha Júlia de volta. — Dona Júlia
não ia querer ver o senhor assim.
Ela junta as sobrancelhas em sinal de piedade e eu sequer tenho forças para
brigar. Eu apenas abaixo a cabeça e choro. Choro pela ausência, pela dor, pelo
medo de criar minha filha completamente sozinho. Choro por tantas coisas que
sequer consigo descrevê-las ou separá-las. Tudo havia se tornado um bolo de
decepção e tristeza em meu peito. Algo que pesava e me afundava, me dando a
sensação de afogamento.
A única pessoa que ainda não havia experimentado o meu mau humor é Lilith.
Para ela, eu ainda sou o mesmo papai sorridente e amoroso de sempre. Ela
merece só meu lado bom. O melhor deles.
— Eu não aguento mais, Cilene. — Fungo e me levanto da cadeira, meio
trôpego. Encaro a senhora que trabalha há tantos anos para mim, com os olhos
vermelhos. — Por que isso aconteceu justo com a gente? A gente se amava
tanto… — Eu dou a volta na cadeira e vou em direção à escada — Você já viu
casal mais bonito do que a gente, Cilene?
— Nunca, Doutor, nunca… — Ela enxuga as lágrimas com os dedos e eu
decido acabar logo com aquela conversa, porque eu provavelmente a estou
assustando.
— Pode ir para casa, Cilene… Eu vou dormir. Está tudo bem, isso passa com
uma noite de sono e um banho. — Eu tento parecer convincente, mas sei que não
sai nada bom. Nem mesmo eu acredito na minha mentira.
Ela concorda com a cabeça, mas logo em seguida se volta, meio tímida.
— Doutor Alexandre… Será que a Sophia pode passar o dia comigo aqui
amanhã? Ela tem médico aqui perto, aquele que a Dona Júlia pagava para ela, e
se ela vier comigo será mais fácil de eu acompanhá-la até lá no horário correto.
Puxo em minha memória rapidamente quem diabos é Sophia. Ah, claro, a
filha de Cilene. Meu Deus, minha cabeça está uma bosta.
Pobre garota. Há muitos anos não a via. Normalmente ela estava aqui quando
eu viajava e nunca nos encontrávamos. Ela sempre frequentou minha casa
quando mais nova, e sempre foi muito próxima do André, meu irmão mais novo.
Com dezessete anos ficou paraplégica depois de uma besteira, e eu nunca
mais a havia visto, já que estava sempre ocupado, trabalhando demais. A última
vez que conversei com ela foi em meu casamento, na verdade. Fazia pouco
tempo que ela estava na cadeira de rodas, ainda se acostumando com a nova
vida.
Não sabia como ela estava agora, para ser sincero. Júlia era quem sabia de
todos os detalhes, e eu sei que minha mulher a amava de todo coração, e estava
pagando para ela o tratamento com um especialista. É óbvio que eu continuarei
com isso.
— Claro que sim, Cilene… Você sabe que nem precisa me perguntar uma
coisa dessas, pelo amor de Deus. — Eu digo, mal-humorado enquanto subo as
escadas, me segurando no corrimão. Eu preciso parar de beber. Eu nunca tive
esse hábito e não vai ser agora que eu vou começar. Não quando eu tenho uma
criança para cuidar… — Você é mais dona dessa casa do que eu, pô. E ó — eu
me viro novamente —, marque a próxima consulta dela, como sempre fez. Eu
continuarei pagando como Júlia fazia.
Os olhos da bondosa senhora se iluminam. Eu sei como isso é importante para
ela.
— Tudo bem. Muito obrigada Doutor Alexandre. Tenha uma boa noite. — Ela
acena e eu aceno de volta, de qualquer jeito.
Eu só queria apagar de vez.

Sophia
Rodo minha cadeira de um lado para o outro, nervosa. Hoje eu faço 24 anos e
terei uma consulta de rotina com o Doutor Anézio, o médico que me trata desde
ano passado, quando a Dona Júlia começou a pagar minhas consultas.
Coitada da Dona Júlia, que Deus a tenha em bom lugar. Eu não quis ir ao seu
enterro, pois não teria estrutura. Ela era tão boa para mim, que a ideia de vê-la
sem vida me aterrorizava. Ela sempre quis saber mais sobre o acidente que me
deixara paraplégica, e quando soube de todos os detalhes, se dispôs a me ajudar,
com aquele coração enorme que ela tinha. Eu não sei muito sobre seres de luz,
mas com certeza Dona Júlia é um agora.
Eu tinha dezessete anos e era o churrasco de aniversário do meu namorado.
Após pedir muito para os meus pais, eles finalmente me deixaram ir.
O dia estava agradável, gostoso e eu estava muito feliz. Em uma brincadeira
boba, Rodrigo me empurrou na piscina, e isso resultou em uma lesão nas minhas
estruturas medulares, ou seja: a passagem de estímulos nervosos através da
minha medula foi prejudicada. Resumindo, como minha lesão foi incompleta, eu
ainda consigo sentir minhas pernas, consigo ter sensações da cintura para baixo,
formigamentos, toques… Mas é só isso.
Eu jamais andaria novamente. Essa é uma possibilidade inexistente.
O dano foi irreversível; o tratamento que faço é apenas para que os músculos
não atrofiem e eu sinta dor.
Eu sequer me lembro da sensação de caminhar. Também não me lembro da
sensação de amar alguém; Rodrigo causou isso em mim, e apesar de ter ficado
comigo nos primeiros meses, disse que não conseguiria namorar uma
paraplégica, que aquilo era demais para ele.
Imagina para mim…
Mas eu não reclamo, sério. Eu levo minha vida numa boa e tento ao máximo
ser agradável com todos. Ninguém tem culpa da minha condição, nem eu
mesma. Ser infeliz só deixaria as pessoas que eu mais amo infelizes também, e
isso é o que eu menos quero na vida.
Levanto o meu olhar e vejo o espelho, então rodo a cadeira de lado, a fim de
me ver melhor. O jeans azul claro combina perfeitamente com a blusa creme, de
tecido leve e renda. Amarro meu cabelo curto e preto em um rabo de cavalo que
encosta na minha nuca. Jogo a franja de lado e, enquanto passo o rímel, meus
olhos cor de uísque, grandes e brilhantes, me fitam de volta.
Analiso meu rosto e percorro minha boca cheia com os dedos, tentando
lembrar qual é a sensação de ser beijada.
Já faz tanto tempo…
Eu sou bonita, modéstia à parte, e a cadeira não faz com que eu me sinta
menos interessante. Eu sou como qualquer garota por aí, cheia de sonhos e
planos, e desde o acidente, para o bem ou para o mal, todos eles incluíam minha
fiel cadeira.
Para todos os efeitos, ela é minhas pernas.
Coloco o brinco de pérolas que ganhei da tia Marli aos dezoito anos, passo um
batom mate na boca e sorrio satisfeita para o espelho que me encara. Papai
sempre diz que eu pareço uma boneca, mas eu acho que isso é porque ele me
ama muito.
Minha mãe entra apressada no quarto, recolhendo minha bolsa com as mãos e
jogando malas e sacolas em meu colo.
— Vamos logo, Sophia. Eu quero estar lá antes do Doutor Alexandre sair. —
Ela gesticula com as mãos, me enxotando do quarto, deixando claro que eu
precisava ser mais rápida.
Penso sobre Alexandre por alguns instantes. Há muitos anos não o vejo, acho
que a última vez em que o encontrei foi em seu casamento, quando eu ainda era
uma adolescente tímida o bastante para mal cumprimentá-lo.
Lembro-me de sua feição; eu o achava tão bonito que meu peito ardia, mas
lógico que era uma coisa boba. Aliás, era mais uma admiração do que uma
paixonite, na verdade. Era impossível não admirá-lo: bonito, sorridente, alegre…
Um piloto de avião. Um dia eu o vi – quando ele ainda era solteiro – usando o
uniforme da companhia ao lado de André, seu irmão.
Aquela imagem era quase como um quadro pintado à mão.
André também é impressionante, mas com ele eu sempre fui mais próxima;
sempre fomos muito amigos. Ele é, possivelmente, o cara mais bem-humorado e
engraçado que eu conhecia.
Seu sorriso é largo, seus olhos são brilhantes e sua barba ralinha lhe dá um ar
sério, compenetrado. Seriedade essa que some no momento em que ele abre a
boca: é uma piada atrás da outra; estar ao seu lado é quase como estar em um
show de stand up comedy.
Ele também tem uma noiva que é maravilhosa. Ariela é alta, negra, de cabelos
longos e olhos gatunos, ambos pretos e lindos. Sua presença é marcante e seu
carisma, impressionante.
Ela é modelo internacional, então eles se veem pouco, mas nenhum dos dois
reclama, pois se conheceram assim, e aprenderam a viver dessa maneira.
Ossos do ofício, diziam eles.
— Sophia! — Minha mãe me encara, pasma. — Para de divagar e vamos! Eu
já disse que preciso estar lá antes do Doutor Alexandre sair.
— Tá bom, tá bom! — Eu exclamo, irritada. — Lilith vai estar lá? — Abro
um sorriso diante da confirmação da minha mãe enquanto movimento minha
cadeira. Eu simplesmente amo aquela garotinha.
Ela é um pedaço vivo da Dona Júlia na terra.
Um pedaço de amor para consertar o coração partido do Alexandre.
CAPÍTULO 3 – AS APARÊNCIAS ENGANAM

Sophia
— Princesaaaaaaaaa! — Abro os braços e a pequena Lilith corre ao meu
encontro. Por mais que as circunstâncias não me deixassem correr ao encontro
dela, eu ao menos podia esperá-la de braços abertos e com um sorriso no rosto.
Quando ela era menorzinha, não entendia muito bem a minha condição, mas
depois de muita explicação e com muito jeitinho, Dona Júlia conseguiu fazer
com que a pequena Lilith entendesse que eu era diferente das outras pessoas.
Ela explicou que eu poderia brincar com ela, desde que a gente fizesse
algumas mudanças, e que isso não atrapalharia em nada a nossa diversão. Minha
princesinha é tão esperta que compreende a situação melhor do que muito adulto
por aí.
Ela senta-se em meu colo, tomando cuidado para que as sandálias não sujem
minha roupa, e enlaça seus bracinhos em volta do meu pescoço, me segurando
forte.
— Senti saudade, Sosô. — Ela me diz, com um sorriso no rosto.
Passo minhas mãos por seus cabelos lisos e negros, observando a delicada
trança que vai de uma ponta à outra do cabelo, formando um arco. Antes, quem
fazia essas coisas era Dona Júlia, e agora eu me pergunto quem poderia
continuar com esses cuidados mínimos, mas tão necessários a uma criança. Ela
sempre foi tão dedicada à filha, que pensar nessa menina sem a mãe me faz
sentir o peito arder.
— Também senti saudade, minha Lili. — Eu sorrio, passando os dedos por
seu rosto delicado. — Quem fez essa trança linda em você?
— Papai. Ele pesquisou na inteinet. — Ela segura a ponta do cabelo. — Hoje
tá lindo, mas demorou um pouquinho pá ele pegar o jeito. — Ela ri e eu rio
junto.
Minha mãe vai para a cozinha, atrasada e nervosa com o café da manhã do
Seu Alexandre. Hoje ele volta para o trabalho e ela quer que tudo esteja
impecável; segundo ela, ele já vinha sofrendo muito desde que a esposa se fora,
então caprichar em todos os detalhes era o mínimo que ela poderia fazer para
que a vida dele fosse mais fácil.
Concordo com ela. Eles sempre foram tão bons para nós. Desde os seus pais,
até ele e sua esposa. Dona Júlia pagava o meu tratamento, e mamãe me contou
que ele ordenou que eu continuasse indo ao mesmo médico, que ele pagaria as
despesas como ela fazia. Confesso que isso me tirou um enorme peso das costas,
pois eu não saberia o que fazer caso esse auxílio fosse cortado. Meus pais nunca
poderiam pagar esse médico e esse tratamento, e eu nunca poderia pedir isso a
eles. Era um médico muito bom, mas muito caro.
Trabalhar é meio fora de cogitação; não que eu não seja capaz, mas porque as
pessoas são preconceituosas. Eu sempre sou olhada de lado, como se o fato das
minhas pernas não funcionarem impossibilitasse o funcionamento do resto do
meu corpo, inclusive do cérebro.
Chega a ser ridículo.
— Sabia que minha mamãe foi morar com o papai do céu lá nas nuvens? —
Lilith me confidencia, com suas mãozinhas em concha, no meu ouvido, como se
me contasse um segredo super secreto. — Papai disse que lá é o céu acima do
céu. Um céu muito, muito longe do céu que ele trabalha. Queria ir lá ver ela, mas
é longe demais. Nem o carro que o papai dirige no céu chega lá. Ninguém chega
lá. — Sua boca forma um bico e eu sinto vontade de afagá-la.
Meu coração dói ao ouvir isso. Saber o quanto esse anjo ainda sentiria falta de
sua mãe era impossível, mas seriam inúmeros os momentos. É terrível saber que
tanta coisa lhe fora negada pela maldade humana.
— Sim, meu anjinho, lá é muito longe, mas acredite, sua mamãe está bem. —
Eu respondo, sorrindo e enchendo seu rosto de beijinhos. Logo em seguida, beijo
sua barriguinha, onde sei que ela tem cócegas. Ela começa a rir e se contorcer
em meu colo, mas eu não paro, pois sei que ela gosta. Eu preciso distraí-la desse
assunto tão pesado.
Quando nossa "sessão tortura" acaba, ouço uma voz grave ecoar pelo cômodo
e ergo meus olhos, buscando de onde ela vinha.
— Lili, tão cedo e já importunando as visitas? — Dou de cara com Alexandre
parado à nossa frente. Ele dá um sorriso de canto frio, quase mecânico, e eu
paro. Há anos não o via, pois ele estava sempre muito ocupado com as viagens e
o trabalho na companhia, mas eu posso afirmar com toda a certeza: o tempo só
lhe fez bem. Ele estava ainda mais bonito do que já foi um dia.
Seu uniforme azul estava perfeitamente abotoado e ele já estava com o quepe
de piloto, ostentando o brasão da república em dourado na parte superior. O
cabelo castanho só aparecia na parte de trás, mas bem aparado e sedoso como
sempre. E em questão de segundos, todas as minhas fantasias de adolescente
vieram à tona.
Balanço a cabeça discretamente, como se isso me fizesse esquecer essas
bobagens. É um absurdo sequer olhá-lo com alguma espécie de cobiça. Ele é
apenas bonito e isso não passa de admiração.
Ridiculamente bonito, aliás.
Apenas isso.
— Não tô ipotuinando, papai. — Ela sai delicadamente do meu colo, como
Dona Júlia já havia ensinado, e corre em sua direção para abraçá-lo. Ele sorri
diante da palavra errada, e abre os braços para recebê-la.
— Não está, não é? Sei. — Ele a enche de beijos e a coloca de volta no chão.
Depois volta sua atenção para mim, com a expressão totalmente neutra. — E
você, Sophia? Há quanto tempo… — Coloca as mãos nos bolsos, como se não
soubesse o que fazer com elas. — Como tem passado?
— Bem… Tudo ótimo, Seu Alexandre. — Sorrio sem graça diante dessa
conversa forçada.
Não tínhamos intimidade nenhuma, e eu sei que ele só está tentando ser
educado por conta de minha mãe e de sua falecida esposa. Minha reação é
perguntar como ele também está, mas seria provavelmente rude, então decidi me
manter calada.
— Ah… Você tinha que ser filha da Cilene mesmo — ele brinca brevemente
—, para me chamar de "Seu Alexandre". Eu nem sou tão mais velho que você,
Sophia. Fica só Alexandre, por favor.
Ele é dez anos mais velho que eu. Mas nem que fossem vinte, trinta anos,
Alexandre sempre seria uma figura inalcançável para mim.
— Alexandre, então. — Sorrio sem graça e minha mãe entra na sala, nos
salvando dessa total falta de assunto.
Ele se vira rapidamente, como se pensasse o mesmo que eu, e se dirige à
minha mãe.
— Cilene, alguém ligou? Eu estou esperando a babá que ficou de começar
hoje a cuidar da Lilith, mas ela simplesmente não apareceu. E eu já estou
atrasado. — Ele fala agoniado. — Já, já a companhia liga. O André mesmo já
ligou duas vezes enchendo o saco.
— Não, doutor Alexandre, ninguém ligou não. Nem veio aqui. — Minha mãe
responde. — Mas se for por isso, pode deixar que eu a olho! Não se atrasa não!
Alexandre passa por minha mãe e pega Lilith no colo, levando-a até o sofá.
Enquanto delicadamente abotoa suas sandálias mal presas, ele responde à oferta.
— Cilene, você já cuida dessa casa enorme sozinha, cuida da minha comida,
da minha roupa, cuida de mim. Pedir pra cuidar da Lilith já é demais, não acha
não? Ela não para um segundo! Parece que essa menina é ligada no 220! — Ele
repreende-a com o olhar de forma brincalhona e ela ri gostosamente.
Uma ideia me vem à cabeça, como forma de agradecimento por toda a ajuda
que sua esposa me deu ao longo desses anos e da qual ele pretendia continuar
dando.
— Pode ir, Alexandre. Eu fico com ela. — Sorrio, me sentindo feliz por poder
ajudar. — Meu médico é só no final da tarde mesmo.
Quando eu termino de proferir essas palavras, meu sorriso morre, porque eu
recebo o olhar.
Sim, O OLHAR.
Aquele que eu aprendi a definir desde que me encontro nessa cadeira. Por
mais que as pessoas tentem disfarçar, esse olhar é muito fácil de reconhecer. Ele
vem acompanhado de dúvidas e com um monte de desculpas.
O olhar de "Você é incapaz"; "Você é inválida".
— Ebaaaaaa!!! — A pequena Lilith corre em volta da minha cadeira, feliz
pela notícia. — Eu quero que a Sosô cuide de mim, papai! Ela conhece um
moooooonte de históia de pincesa.
— Não quero te atrapalhar, Sophia. — Alexandre engole os argumentos que
eu sei que pairam sobre ele, mas que ele é incapaz de proferir. Por mais que ele
pense em N motivos para não deixar sua filha em minhas mãos, admiti-los em
voz alta estava fora de cogitação.
É sempre assim.
Sinto-me extremamente humilhada, mas engulo o choro e apenas balanço a
cabeça em sinal positivo, forçando um sorriso. A mulher dele, que me conheceu
depois, mas que conviveu muito mais comigo, saberia o quanto eu sou capaz de
cuidar da filha dele. Ela nunca teve preconceitos comigo, pois sempre me deu
oportunidades de provar que eu posso fazer o que todos fazem. Que eu posso ser
igual a qualquer um, talvez até melhor. Eu só precisava de uma chance para
mostrar.
— Não vai me atrapalhar, de forma alguma. — Digo, tentando manter a calma
e a postura. Não queria demonstrar o quanto aquilo estava me machucando.
— A Lilith é um pouco hiperativa, eu temo que ela te canse muito. — Ele
finalmente solta o argumento mais comum.
Sorrio mais uma vez. Eu já estava acostumada com isso, com essas desculpas.
Ele era apenas mais um a quem eu precisaria provar que minhas diferenças não
me fazem pior que ninguém.
Ok, eu posso lidar com isso. Eu sempre posso.
— Tudo bem, o meu pique é grande. Pode ir tranquilo Alexandre. — Ele
assente, mas eu percebo que a dúvida ainda está presente em seus olhos; o medo
de deixar sua filha em minhas mãos é imenso. Para finalizar a questão, solto uma
última frase, irônica o suficiente para fazê-lo pensar, o que o faz arregalar os
olhos completamente sem reação, e talvez até um pouco envergonhado. —
Minhas pernas não funcionam, mas minha garganta sim. Qualquer coisa eu grito
por ajuda.
CAPÍTULO 4 – SAUDADE É O AMOR QUE FICA

Alexandre
— Seja bem-vindo de volta! — Meu irmão segura a porta, me esperando
entrar. Ouço o baque dela se fechando atrás de mim e quando tenho certeza que
mais ninguém nos ouve, suspiro alto e me sento à mesa de frente para André.
— Acho que já ouvi isso umas quarenta vezes desde que pisei meus pés na
companhia. — Digo mal-humorado, jogando o quepe na cadeira ao lado e
afrouxando o nó da gravata. Odiava os olhares de pena que estavam sendo
dirigidos a mim desde que cheguei. Todos ali são meus amigos, todos estiveram
no velório, todos me abraçaram lá.
Por Deus! Por favor, vamos seguir em frente. Eu preciso disso, não de olhares
piedosos e cuidados excessivos. Eu preciso me sentir normal de novo, fingir que
isso não aconteceu realmente, pelo menos não aqui.
— Eles só querem ajudar, Alexandre. Não seja um pé no saco. — André
revira os olhos pra mim, sem emoção, depois vai em direção à porta e passa a
chave na fechadura, certificando-se que ninguém atrapalharia nossa conversa.
— Eu não tenho dúvidas disso, mas eu realmente preciso da minha vida de
volta, André. E esse pessoal ficar me rodeando o tempo todo como se eu tivesse
cinco anos de idade não vai ajudar em nada, porra. Na verdade, só me faz
lembrar o assunto a cada dois minutos.
Meu irmão arqueia uma sobrancelha para mim, parando em minha frente com
o polegar e o indicador no queixo.
— Alexandre, o que diabos está acontecendo com você?
Essa pergunta não é séria, é?
— Minha esposa morreu? Minha vida acabou? — Eu faço uma cara de "você
é idiota por acaso?" para ele, que simplesmente revira os olhos para mim.
— Para com isso, porra. Só para! — Ele bufa.
André sempre foi o mais prático e o menos sentimental, diferente de mim, que
sempre fui totalmente o oposto. Ele vive completamente afastado da noiva e pelo
que vejo, ambos lidam muito bem com essa situação.
— Olha, sua esposa morreu e eu nem consigo dimensionar a dor que você
está sentindo. Eu sei que deve ser o momento mais difícil da sua vida e, nossa,
eu nem sei o que eu faria sem a Ariela também, mas jamais ouse dizer
novamente que sua vida acabou. Senão por mim ou por nossos pais, que seja
pela Lilith. Aquela menina agora é o seu mundo meu irmão. E conhecendo a
Julinha como eu conhecia, ela deve estar querendo voltar ao mundo dos vivos e
te ensinar boas maneiras por tratar as pessoas que te querem bem do modo como
você está tratando. Para de ser babaca, pelo amor de Deus! Estar sofrendo não é
motivo o suficiente para ser um idiota.
Droga, ele tinha razão.
Odeio quando isso acontece, mas sim, ele tinha razão.
— E hoje você vai ser meu copiloto. — Ele me olha como se pedisse
desculpas — Eu sei que você odeia isso, mas são ordens de cima. Eles acham
que você precisa de um tempo antes de assumir o controle novamente.
Abafo o xingamento porque ele acaba de me dar um sermão sobre não ser um
cavalo com as pessoas próximas a mim, mas isso estava indo longe demais.
Minha dor emocional jamais interferiria no meu trabalho. Eu sempre fui um
profissional excelente e isso não mudaria jamais. Nós temos que saber separar as
coisas aqui.
Penso alguns segundos e acabo deixando esse assunto para depois. Resolvo
contar para o André o que fiz mais cedo. Tenho certeza que vou ouvir outro
sermão por conta disso, mas estou preparado. Eu sei que no fundo mereço,
mesmo sem ter feito com intenção.
— Fiz uma merda hoje — digo chateado, passando os dedos pela fronte,
friccionando levemente o local, como se massageasse as têmporas. Parecia que
tudo estava colaborando para que eu enlouquecesse de vez.
— Outra? O que foi? — Meu irmão para de batucar a caneta azul que
mantinha nas mãos e me olha sério. Ele sabe que quando eu assumo que fiz algo
errado, é porque é realmente errado.
— Sabe a filha da Cilene? — Pergunto retoricamente, porque eu tenho certeza
absoluta de que ele sabe quem é. Ele conviveu com ela muito mais do que eu;
eram amigos, na verdade.
Um sorriso se espalha no rosto do André. Até onde eu me lembro, eles se
adoravam. O afastado sempre fui eu mesmo.
— Claro, a Soph! O que tem ela? A Lilith a chama de Sosô, é super
engraçadinho… — Seu sorriso enorme me irrita. Me irrita porque eu sei que o
fumo será muito maior do que eu esperava.
Como é possível que até o André soubesse da relação que minha filha tinha
com essa moça e eu não? Isso só me mostrava o quanto eu era ausente, mesmo
achando que não.
Discorro rapidamente o quão babaca fui, duvidando da capacidade da moça
em cuidar de Lilith, e a feição de André vai se transformando, como se ele fosse
voar em minha garganta e me estapear a qualquer momento.
— Você é um babaca pau no cu! — É a única coisa que ele me responde
depois de tudo o que eu conto a ele.
— Obrigado, fico muito lisonjeado. — Eu ironizo.
— Sério, Alexandre, isso é coisa de se fazer? A Sophia é muito capaz, você
não sabe o quanto porque nunca se interessou em conhecer a menina! Ela
praticamente cresceu no meio da nossa família, todos nós a conhecemos… Fazer
o que você fez é praticamente destratar a Cilene. Fora que é preconceito. —
Primeiro ele praticamente grita, mas depois suspira quando vê que pegou pesado
comigo. Como meu irmão, ele sabe que eu jamais faria algo assim
propositalmente. — Olha Alex, é o seguinte: eu sei que está sendo uma fase
difícil e você está preocupado sobre com quem deixar a Lili enquanto trabalha e
tudo mais, mas acredite, a própria Julia confiava extremamente na Sophia. Você
não precisa ser idêntico a ela, fazer tudo o que ela fazia… Claro que você terá
seu próprio modo de cuidar de sua filha. Mas tente ouvir a própria Lilith, talvez
ela mesma te ajude com isso da próxima vez. Se ela quis ficar com a Sophia, é
porque com certeza ela já ficou outras vezes. Eu já vi a Sophia fazer coisas
estando em uma cadeira de rodas que muitas pessoas por aí não fazem andando,
cara. Vai por mim.
Caramba, é verdade.
— Você tem razão — eu concordo derrotado. Como se já não bastasse o meu
extremo mau humor por causa do modo como as pessoas vinham me tratando, eu
também estava me sentindo mal pelo modo como eu vinha tratando as pessoas.
Que carma! Que inferno!
— Eu sempre tenho. — André brinca enquanto coloca o quepe, sorridente.
Estende-me o meu e por um segundo sua expressão se abranda. — Alexandre,
pensa em tudo o que eu te falei. É normal sentir o que você está sentindo, mas as
pessoas que estão a sua volta te amam e só querem o seu bem. Elas não têm
culpa da sua perda. Ninguém tem. Eu estou aqui para o que você precisar, irmão,
mas tente se controlar e ser o Alexandre de sempre. A Júlia detestaria ver no que
você está se transformando. Eu te amo, cara, espero que você saiba disso. — Ele
sorri para mim e eu ensaio um sorriso de volta.
— Eu sei. Obrigado, André. — Coloco meu quepe e ajeito minha camisa
branca sob o terno antes de abrir a porta, mesmo sentindo o peso do mundo no
peito. Eu sabia que as palavras de André ficariam na minha cabeça por tempo
demais, tempo o suficiente para que eu consertasse as coisas que eu vinha
destruindo. — Agora vamos, que está na hora de voltar aos céus, piloto.
[…]
Tiro a camisa de seda azul clara do guarda roupa e a aperto junto do peito.
Cheiro ela, como se buscasse ali algum resquício do perfume de Júlia. Lembro-
me o último dia em que ela usou essa camisa, em um jantar que tivemos no La
Roseh, um restaurante que ela amava.
Júlia era linda, mas extremamente simples. Usava roupas e acessórios
discretos, perfumes florais, estampas claras. Nada que chamasse atenção para si.
Sua luz brilhava em qualquer lugar que ela fosse, mas apenas por sua presença,
seu carisma, sua tranquilidade inenarrável, seu sorriso contagiante. Eu sempre á
comparava ao sol. A Júlia era o meu sol, e acho que por isso hoje eu vejo tudo
cinza.
— Paaaaaapaaaaaaaai! — Lilith entra correndo no quarto e eu enxugo as
lágrimas rapidamente. Seu cabelo negro e liso vem balançando, mas ela estaca
quando me vê com a roupa da sua mãe na mão.
— Oi meu benzinho — eu tento sorrir, mas sei que ela percebe que tem algo
errado.
— Você tá choiando? — Ela meneia a cabecinha, como fazia sua mãe.
— Não, meu amor, o papai só tá arrumando as coisas da mamãe. Bobagem. —
Eu sorrio novamente, mas, mais uma vez, ela me quebra com sua sensibilidade e
inteligência.
— Não é bobagem, papai. — Ela sorri, colocando a mão por cima do meu
peito, em um gesto tão adulto que eu me assusto. — Às vezes eu choro também.
Não preciso responder nada, eu simplesmente a abraço.
— Por que você tá colocando tudo nessa malona? Você vai levar lá onde ela tá
morando? — Ela faz um "oh" com sua boquinha, se desprendendo do abraço,
subindo na cama e mexendo nas coisas já separadas. Meu coração se contorce.
Em sua pequena cabecinha, ela ainda achava que eu poderia ir onde sua mãe
estava.
— Não meu amor. — Me sento ao lado dela, ajeitando suas mechas soltas. —
O papai está separando algumas coisas da mamãe para dar para quem não tem…
Você lembra como a mamãe era boa? Como ela gostava de dividir tudo com todo
mundo?
Seus olhos, que me lembram tanto os da Júlia, de repente brilham.
— A mamãe era muito boa. — Ela balança a cabecinha em sinal positivo,
concordando plenamente.
— Pois então, meu anjo. Como ela não vai mais morar aqui, e lá com o Papai
do céu ela não precisa dessas roupas, o papai vai dar para quem precisa e não
tem, entende? A mamãe gostaria disso, você não acha?
— Entendi papai. — Ela faz que sim com a cabeça, mas me pega
desprevenido de súbito, me abraçando forte novamente. Abraço-a de volta e
ficamos assim por alguns segundos, até que minha filha fala algo que faria meu
coração sangrar ainda mais.
— Eu tô com saudade dela, papai. — Sua mãozinha escorreu por meus
cabelos, em um carinho pueril, inocente e calmante.
— Eu sei, meu amor, eu sei. O papai também está. — Eu a aperto mais contra
mim, tentando de alguma forma encontrar palavras que a consolassem, mas o
que vem a seguir me pega totalmente desprevenido: no fim das contas, o
consolado fui eu.
Ela enfim se desenlaça de nosso abraço e segura meu rosto com suas duas
mãozinhas, dando um sorriso inocente, derrubando castelos que eu construí em
minha cabeça e me fazendo sentir ainda mais remorso pelo modo como agi mais
cedo.
— Mas a Sosô me disse hoje que se eu for uma boa menina e todo dia rezar po
papai do céu… Ele vai dar o recado pa mamãe e ela vai cuidar da gente de lá de
cima, do mesmo jeitinho que ela cuidava daqui, sabia? E ela disse também que
você é muito legal e que vai fazer de tudo pa cuidar de mim sem a mamãe aqui,
então eu não posso ficar tisti, porque se eu ficar tisti, você fica tisti também.
Então eu não tô tisti papai, só tô com saudade, mas vai passar tá bom? Eu
pometo.
Olho nos olhos cheios de esperança da minha filha e sorrio genuinamente pela
primeira vez desde que metade da minha vida se foi. Queria eu ter essa inocência
capaz de mover o mundo e fazer as coisas darem certo. Também queria ter o
discernimento de explicar a morte para uma criança de uma forma tão simples e
bonita como Sophia fez.
Eu realmente preciso me redimir com ela.
CAPÍTULO 5 – NADA É TÃO MAL QUANTO PARECE

Sophia
— Obrigado por ter me recebido, Sophia. — Alexandre me diz enquanto olha
para os enfeites da sala de casa. Ele passa pela estante de madeira no centro da
sala, e então seus olhos pairam nos vários troféus e nas medalhas que eu ostento
ali, uma lembrança não muito vaga dos dias em que eu podia andar. Seus olhos
se voltam para mim, queimando tudo por dentro. — São seus?
Olho brevemente para eles e então balanço a cabeça, concordando, com uma
pontada de saudade. Não era frequente me sentir assim, mas às vezes acontecia.
— São sim. Da época em que eu jogava vôlei. Ganhei alguns campeonatos com
a escola. — Sorrio fracamente, tentando disfarçar o incômodo daquela
lembrança.
— Sabia que eu me lembro de você jogando? — Quando faço cara de quem
não entendeu, ele continua: — Com o André, lá em casa. — Ele sorri meio de
lado, explicando sua lembrança. — Vocês adoravam acabar com a minha paz na
hora de estudar. — Seu sorriso se amplia. — Era uma gritaria a cada ponto.
— E a cada mergulho também. — Eu concluo, rindo.
Alexandre tinha razão, André e eu sempre fomos muito próximos, mesmo ele
sendo um pouquinho mais velho do que eu. Ele sempre me convidava para
nadar, ou para jogar com ele na quadra da casa em que moravam. Na verdade,
André e eu fazíamos muitas coisas juntos; era incrível como nossa amizade
sempre foi livre de interesses.
Alexandre se aproxima um pouco mais, andando pelo cômodo com as mãos
dentro dos bolsos, em passos vagarosos. A cada centímetro que ele se aproxima
de mim, é como se meu corpo reagisse apenas ao calor do seu. Meu Deus, eu
preciso tirar isso da cabeça. É só uma reação exagerada à beleza dele, nada mais.
Forço um sorriso, mas ele sai do meu rosto assim que o patrão da minha mãe
abre a boca.
— Você era apaixonada por ele, não era? — Demoro um segundo para
entender, até que percebo que ele se refere ao irmão. Depois que a descrença
passa, eu aperto meus olhos e balanço a cabeça, tentando organizar os
pensamentos.
A primeira coisa que me vem à cabeça é que eu não sabia bem se era paixão,
encantamento ou amor, mas se eu senti alguma coisa por alguém, algum dia,
definitivamente foi por quem me fazia a pergunta, não por André, que era meu
amigo.
Se eu sentia algo era por ele: o inatingível Alexandre.
E já passou da hora de eu tirar isso da cabeça. Já se passaram quase dez anos
desde que senti meu peito arder por ele pela primeira vez. Será que precisaria de
mais dez para eu finalmente entender que ele nunca me olharia de outra forma?
— Não, nunca fui apaixonada por ele. — Faço uma pausa e olho dentro dos
seus olhos, com minha expressão mais séria para deixar aquele assunto de uma
vez por todas para trás — Éramos só bons amigos. Somos, na verdade, no
presente. Somos bons amigos.
Ele sorri.
— Bom, isso também não é da minha conta. Desculpa ter perguntado. — Eu
apenas balanço a cabeça, dizendo para deixar para lá. Eu só queria saber o que
ele estava fazendo ali, àquela hora.
Meu pai e minha mãe estão na cozinha, provavelmente se matando para ouvir
qualquer coisa dessa conversa. Eles são discretos, mas isso não significa que não
sejam curiosos também. Só que eu não posso julgá-los; eu também estou curiosa
demais para saber o que Alexandre quer comigo, que não podia esperar que o dia
amanhecesse.
Ter esse homem plantado no meio da minha sala, esperando para falar comigo
era simplesmente a coisa mais estranha que poderia acontecer.
— Mais uma vez, obrigado por ter me recebido.
— Não por isso, Alexan… Digo, Doutor Alexandre. — Eu me corrijo
rapidamente e ele sorri. É complicado. Por mais que eu esteja magoada com a
reação que ele teve ao praticamente esfregar na minha cara que eu não era capaz
de cuidar de Lilith, eu não posso resistir a esse sorriso. É maravilhoso de tantas
maneiras que eu nem sei explicar.
Alexandre é indecente de tão bonito.
— Vou dizer para você o mesmo que eu digo para sua mãe, Sophia. Doutor é
quem faz doutorado, pelo amor de Deus.
Sua expressão se suaviza por um instante, mas logo em seguida fica séria
novamente. Seu rosto ganha um ar de preocupação e ele coloca as duas mãos de
volta no bolso da calça, tentando disfarçar seu incomodo.
— Sophia, eu vim aqui pedir desculpa para você pelo modo como agi hoje
mais cedo lá em casa.
Desculpa? Ele veio me pedir desculpa?
Eu quase não posso acreditar.
De repente minhas bochechas ficam vermelhas e eu decido acabar com isso o
mais rápido possível. É inaceitável o patrão da minha mãe, no meio da minha
sala, me pedindo desculpas. Sim, eu fiquei chateada, mas eu deveria lembrar que
quem pagava meu tratamento era ele. Talvez ele tenha sido um idiota naquele
momento, mas definitivamente não era um total idiota. Eu sabia o suficiente dele
para chegar a tal conclusão.
Lei do mundo: pessoas fazem merda.
— Você não tem que me pedir desculpa… — Eu impulsiono a cadeira para
mais próximo do sofá onde ele finalmente havia sentado, e decido me fazer de
boba. — Eu nem sei por que você está me pedindo desculpa.
Ele sorri de novo, mas dessa vez é um sorriso triste.
— Júlia tinha razão… André também. — Ele me olha profundamente nos
olhos e por um segundo eu perco um pouco a fala.
— Sobre o que?
— Ambos sempre me disseram que eu sou um idiota. — Diante da cara
engraçada que eu provavelmente fiz, ele riu. — E ambos sempre disseram que
você é uma menina muito especial.
Eu simplesmente coro e fico sem saber o que responder, mas ele me livra
disso e continua:
— Enfim, eu e você sabemos que eu devo te pedir desculpa sim. O que eu fiz
foi ridículo e de forma alguma é isso que eu quero passar para minha filha… Eu
não sou assim, e Júlia me mataria se estivesse aqui… — O sofrimento ao
mencionar a esposa é palpável em seu rosto.
— Esquece isso, Doutor Al… — Eu começo a falar, mas ele me olha feio. —
Digo… Esquece isso, Alexandre.
Ele pensa alguns segundos, depois finalmente resolve tomar coragem para
falar.
— Eu queria te fazer uma proposta. Espero não ter te magoado o bastante para
você rejeitá-la.
Uma proposta? O que um homem como ele teria para me propor?
— Na verdade, é mais uma oferta… Ou um convite, como você quiser
chamar. — Ele se aproxima mais e se abaixa na minha frente, ficando na altura
da cadeira e olhando dentro dos meus olhos. Se ele soubesse como é precioso
esse gesto de ficar de igual para igual comigo, me olhando nos olhos… Poucas
pessoas têm essa sensibilidade. — Na verdade, é um apelo desesperado, Sophia.
Meu coração palpitou. Isso era errado de tantas formas, mas ele era tão…
Bonito. Assim, tão de perto, conseguia ser ainda mais. Eu quase podia contar as
pintinhas em seu nariz.
— Cla… claro Dout… Digo, claro, Alexandre. — Eu me corrijo diante do seu
olhar de aviso. Eu quase sempre me tornava uma boba sem fala diante dele.
— Eu estive pensando… A Lilith te adora. Ela simplesmente ama ficar com
você. E eu, bem… Eu preciso de uma babá para ela. Hoje ela me contou todas as
coisas que vocês fizeram, tudo que você explicou para ela sobre a partida de
Júlia. E bem, Sophia, eu preciso de uma mulher com ela. Eu nem sei se consigo
fazer esse tipo de coisa. — Ele me disse meio cabisbaixo. — Eu realmente
apreciaria muito se você pudesse ser a babá dela. Você já provou por A+B ser
capaz disso, muito melhor do que eu até.
Eu penso alguns segundos. Não sei se isso seria uma boa ideia. Eu
sinceramente não gosto do rumo que meus pensamentos andam tomando quando
estou perto desse homem. Eu sei que pensar nele da forma como tenho pensado
é extremamente errado por N razões diferentes: ele acabou de perder a esposa;
ele tinha milhões de coisas para pensar no momento; uma filha para criar… Eu
era bem mais nova e estava presa a essa cadeira… Para um homem amante da
liberdade como ele, se interessar por alguém que está presa a esse objeto é
praticamente impensável.
E o principal: eu deveria respeitar a memória de quem sempre me ajudou.
Deus, no que eu estou pensando? Onde eu estou com a cabeça?
Quando me preparo para dizer que não, que talvez não seja uma boa ideia, ele
me olha com uma mistura de expectativa, ansiedade e desespero.
— Por favor? — Ele espera minha resposta, apreensivo.
E eu simplesmente não posso negar.
Um simples olhar e tudo está perdido: todas as minhas convicções, todos os
meus medos. Eu só quero fazer algo por ele.
— Claro Alexandre, vai ser um prazer te ajudar. — Sorrio, mas o que eu quero
mesmo é chorar diante dos sentimentos conflitantes que se apossam do meu
coração. Eu acabo de assinar minha sentença de sofrimento por tempo
indeterminado, e eu sequer posso dizer que estava arrependida por isso.
CAPÍTULO 6 – QUANDO SE PERDE TUDO, O QUE RESTA?

Sophia
Sinto meu coração acelerar quando entro na sala de estar. Minha mãe foi
embora há algumas horas e Lilith já está descansando depois de muita
brincadeira. Sinto-me um caco, mas vale a pena. Tem valido a pena cada dia
desde que cheguei aqui, para falar a verdade.
Cada momento que passo ao lado desses dois seres me faz aprender um pouco
mais sobre amor, cuidado e fidelidade. É um intensivo de coisas boas, e agradeço
a mim mesma por ter me dado essa chance de desculpar o episódio do
Alexandre, e aprender coisas novas todo dia.
Acreditem ou não, Lilith, do alto dos seus seis anos, tem muito para ensinar.
Há uma semana eu ganhei um quarto nessa casa, com direito a decoração,
móveis e toda a acessibilidade de que necessito. Esse quarto fica ao lado do de
Lilith, para que assim eu possa monitorar seu sono quando Alexandre estiver em
uma de suas corriqueiras viagens.
A princípio, todos os quartos eram no andar de cima, mas como eu precisava
ficar perto dela, Alexandre subiu o escritório e os quartos de hóspedes, e com os
cômodos aqui embaixo vazios, ele fez um quarto de brinquedos para eu fazer as
atividades com Lili, além de nossos próprios quartos: o meu, o de Lili, e ao lado
do de Lili, o dele, para que possa estar sempre por perto caso ela precise de ajuda
quando ele estiver na casa.
Os pesadelos ainda são constantes, e às vezes ela quer dormir com o pai e eu
não posso impedir, mas a cada dia que passa, eu a convenço mais e mais de que
ter sua independência é algo bom. Uso meu exemplo, dizendo para ela que
mesmo com todas as limitações que tenho, tento ser independente ao máximo.
Mostro a ela, com pequenas atitudes, que quando temos nossa liberdade, temos
tudo. Tenho certeza de que é isso que dona Júlia iria querer que ela aprendesse.
Lili ainda é muito pequena para entender tudo, mas ir colocando isso aos
poucos em sua cabeça é o correto, já que ela não terá a mãe para ajudá-la sempre
que for preciso. Eu sei que é possível aprender a ser independente desde cedo,
porque eu precisei ser, e quando estava mais velha, tive que reaprender tudo do
zero, como uma criança, após o acidente.
Digo a ela que sua mãe ficaria orgulhosa de como ela está se saindo bem e
isso é o bastante para que ela sinta desejo de fazer as coisas conforme falo. Lilith
é uma criança inteligente e doce. Arriscaria dizer que sua inteligência ultrapassa
o limite do compreensível.
Ela é especial como sua mãe era e é por esse motivo que a culpa me corrói a
cada dia que passo na presença de Alexandre. É errado sentir o que eu sinto em
relação a ele.
É extremamente errado.
— Sophia? — Sua voz me tira dos pensamentos incômodos que insisto em ter.
— Está tudo bem?
— Claro, me desculpe. — Eu digo, sem graça. — Já coloquei a Lili para
dormir, e estava indo para o meu quarto. Não quero atrapalhar.
Ele balança a cabeça, em negativa.
— Não atrapalha, o que é isso. Você parece um pouco cansada hoje. — Ele se
recostou, olhando de soslaio para mim. Percebendo o que tinha falado e
lembrando-se do nosso primeiro encontro aqui depois da morte de dona Júlia, ele
se apressou em tentar se explicar — Desculpe, eu juro que não quis dizer que…
Levantei a mão, parando-o.
— Tudo bem, eu entendi. Não sou de porcelana. — Sorri para confirmar o que
falava e ele se tranquilizou visivelmente. — Pessoas em cadeiras de rodas ficam
cansadas, Alexandre, assim como pessoas que não as usam. É normal.
— Me desculpe se qualquer dia eu falar alguma coisa idiota. — Ele começa, e
eu sei que o álcool já fez efeito, porque quando está sóbrio, Alexandre tende a
ser mais quieto. — Eu juro que não é por maldade. Até hoje eu não me perdoo
pelo modo como falei com você naquele dia.
— Aquilo é passado; achei que já tivéssemos deixado isso claro.
— Você gostava muito da Júlia, não é? — Quando digo que sim, ele sorri. —
Ela gostava muito de você também. Ela vivia falando sobre você. Se eu tivesse
escutado mais, provavelmente não teria feito aquilo.
Quando olho para ele, vejo seus olhos marejados.
— Alexandre… — Eu começo, mas o que vem a seguir me mata por dentro.
— Eu queria ter escutado ela mais, sabe? Ela sempre tinha tanta coisa para
falar… E eu confesso que às vezes, cansado, eu só fingia que ouvia. Eu só
balançava a cabeça e sorria. Meu Deus, ela deve ter me dito tanta coisa
importante. — O choro irrompe de seu peito e eu fico sem reação. — Eu queria
tanto ter podido olhar um pouco mais em seus olhos, descobrir suas paixões.
Queria tanto poder ter dado mais importância às coisas que eu achava bobas.
Com certeza não eram. — Ele suspira. — Eu devia ter ficado mais com ela.
Meu Deus, ele estava se culpando sem motivos. Todos nós fazemos coisas
assim todos os dias. Não significa que amamos menos, ou não nos importamos.
Quem os conhecia de perto sabia o quanto eram bons um para o outro. Ele não
pode pensar assim.
— Você era um excelente marido, acredite em mim. Ela te amava, te
admirava. Os olhos dela brilhavam quando ela falava sobre você. — Me
aproximo mais e ele ergue os olhos molhados, e meu coração se aperta ao ver
tanta dor e tanta beleza em uma pessoa só. Preciso acalmá-lo. — Eu não acho
que ela sentia que faltava nada. Ela amava a vida que tinha.
Ele estende sua mão até a minha, e sem pensar muito, segura meus dedos. Não
há nada sexual ou malicioso ali, mesmo assim, aquele simples toque leva uma
corrente elétrica por todo o meu corpo.
— Jura? — Ele pergunta com um ar de esperança, como se aquela pequena
informação o salvasse de mais uma noite pensando em tudo o que poderia ter
feito.
Sorrio, e, sem pensar duas vezes, aperto sua mão entre as minhas.
— Eu juro. De todo meu coração. Ela, com certeza, não iria querer que você
pensasse mais nisso.
— Obrigado, Sophia. — Ele sorri, e sua mão escorrega das minhas,
lentamente. — É muito importante saber disso.
Ele estava tão bonito, mas não pelos motivos certos: o cabelo úmido e
levemente bagunçado, os olhos brilhando pelas lágrimas paradas e o copo de
uísque, como sempre, pendendo na outra mão.
Alexandre estava uma bagunça. Mas ainda assim, era a bagunça mais bonita
que eu já vira em toda a minha vida.
[…]
Eu não podia pensar em meu patrão daquela maneira. Como posso desejar o
homem de alguém que tanto me ajudou? Que tanto confiou em mim?
Porque é isso que eu sinto.
Eu sei que o desejo; até mais do que eu gostaria de admitir para mim mesma.
Mas… Como posso sentir isso por alguém que pertence à outra, mesmo essa
outra não estando mais aqui? Como sentir isso por alguém que não tem olhos
para outra coisa que não seja a filha, o trabalho e a esposa que se foi?
Como querer isso estando presa a essa cadeira?
Eu nunca tive preconceito comigo mesma, mas agora, olhando para mim,
como competir com alguém que, dançava graciosamente como um anjo?
Já deitada em minha cama, olho para o teto e, por um momento, um mísero e
breve momento, me pergunto como seria se Alexandre se interessasse por mim
daquele jeito, como um homem se interessa por uma mulher. Como seria me
sentir excitada e ansiosa quando ele olhasse para mim, me desejando?
Como seria sentir suas mãos me tocando?
Por um instante eu quis tudo aquilo que eu jurei nunca reclamar sobre: eu quis
os flertes e os joguinhos; eu quis os beijos e todas as coisas que vêm depois
deles.
Por um instante, eu quis que tudo fosse como antes.
Antes de essa cadeira tirar tudo de mim.
CAPÍTULO 7 – SOBRE ANJOS

Alexandre
Às vezes sinto tanta falta dela, que coloco suas músicas para tocar e a vejo
dançando para mim como antes. É como se nada tivesse mudado em minha
cabeça. Como se ela ainda estivesse aqui, como se tudo não passasse de um
sonho ruim.
Eu tento continuar, continuar de onde eu parei, como se minha vida fosse um
jogo pausado. É como se eu estivesse acordado há mais de um mês, mas o
mundo estivesse meio adormecido.
É algo sem explicação.
Eu vou amá-la para sempre, incondicionalmente, mesmo que ela não esteja
mais aqui.
Os dias passam, mas eu não vejo. Sinto-me cansado, exausto, mas o sono não
vem. Eu não durmo; passo as noites acordado.
Eu a vejo quando fecho os olhos; quando os abro também.
Eu a vejo em tudo.
Eu simplesmente perdi algo insubstituível, e não sei lidar com isso.
Talvez um dia eu entenda por que ela se foi.
Talvez.
[…]
— Desculpa Sophia, eu não te vi aí. — Sorrio fracamente quando a vejo se
aproximando. Eu estava tão absorto em meus pensamentos que não ouvi o
barulhinho que sua cadeira fazia, sempre denunciando quando ela se
aproximava. Ela vive aqui agora e eu preciso dar meu braço a torcer, ela vem
quebrando muitos galhos meus. Lilith vive mais feliz com ela sempre ao redor, e
nas noites em que eu trabalho, sua presença é ainda mais imprescindível. O
condomínio fechado garante toda a segurança, mas a companhia dela para minha
filha é o essencial.
— Tudo bem, eu só vim ver se o senhor precisa de alguma coisa. Estou indo
me deitar — ela diz, calmamente.
Às vezes ela fazia coisas assim, agir como se fosse minha empregada, quando
na verdade seu único trabalho aqui era só cuidar de Lilith, mas eu já havia
entendido que é seu jeito de ser, e já estava me acostumando com essas pequenas
manias. Além de tudo, Sophia tem algo de que eu gosto muito: ela é serena.
Pouco se ouve de sua voz e quando ela fala, é de forma calma. Sua voz é quase
como uma canção, qualidade admirável em dias em que as pessoas querem
chamar atenção a todo custo.
— Vai dormir tão cedo? — Eu pergunto — Ainda não são nem dez da noite.
Meninas da sua idade costumam dormir mais tarde — eu digo e ela ri um pouco
mais alto do que de costume, o que me surpreende. Aos poucos, ela estava
perdendo a timidez comigo.
— Eu não sou como as meninas da minha idade, Alexandre. — Sorrio ao
ouvir ela me chamar apenas de Alexandre. Essa história de doutor me irrita
profundamente, ainda bem que eu estou conseguindo tirar isso dela aos poucos.
— Eu sei que não é. — Apenas olho para ela. Sua face se enrubesce e eu acho
graça. Ela é uma menina altiva quando precisa, defendendo seus direitos, sua
posição na sociedade como cadeirante. Ela sabe que não é menos do que
ninguém por estar naquela situação e eu acho isso incrível. Mas às vezes ela age
como uma adolescente; qualquer elogio a fazendo corar. Ela se engasga na hora
de agradecer alguma coisa. Suas palavras enrolam quando ela precisa falar
comigo em certos momentos.
É engraçadinho.
Puxo a mesinha de centro que está entre os dois sofás. Retiro ela do lugar e a
encosto na parede ao lado, abrindo um vão para que a cadeira se acomodasse.
— Vem cá, senta aqui. Ainda está cedo, podemos conversar — eu digo. Sinto-
me tão sozinho desde que Júlia se foi e todos falam tão bem de Sophia. Quero
conhecê-la melhor. Parece que todos da minha família a conhecem, menos eu.
Chego até a me sentir mal por isso.
— Não sei se é adequado, Doutor… — A recrimino com o olhar, e rindo, ela
se corrige. — Digo… Alexandre. Agora eu trabalho para você.
— Eu que estou te convidando, Sophia. Eu preciso me distrair. E você é amiga
do André, não é? Por que não pode ser minha amiga também? — Minha
pergunta é genuína. Ela se tornou amiga do André, mesmo ele também estando
na posição de patrão. É quase a mesma coisa.
Ela pensa por alguns segundos e logo abre um enorme sorriso. Ela e meu
irmão se adoram, apesar de não conseguirem se encontrar mais com tanta
frequência.
— Sou sim. O André é incrível.
Dou risada com o elogio ao meu irmão. Ele é um mala sem alça, exagerado e
orgulhoso, mas sim, ele é incrível.
— Eu também posso ser, Sophia. Sou legal, acredite em mim.
Ela se aproxima empurrando a cadeira e encaixando-a no vão que abri,
deixando claro que estava aceitando meu convite.
— Eu sei que é — ela enfim abre um sorriso enorme. Por um momento,
aquele sorriso me aquece por dentro, me transmitindo paz, e eu retribuo. É bom
me sentir próximo de outro ser humano assim. Desde que Júlia se foi, minhas
interações sempre acabam sendo meio… Vazias. — Quem começa falando, eu
ou você?
[…]
— Papaaaaai… — Ouço Lilith me chamando e a procuro com os olhos. Ela
adentra a sala com seu pijaminha da Frozen e os pezinhos no chão frio. As
mãozinhas estão nos olhos, esfregando-os pelo sono.
— Vem cá, meu amor — eu me levanto e vou ao seu encontro, pegando-a no
colo. — O que aconteceu?
— Pesadelo — ela diz com o rostinho choroso. Meu coração se contorce, e
nessas horas eu percebo que eu talvez não seja tão bom pai quanto penso que
sou. Não sei agir nesses momentos; é como se nada do que eu falasse fosse
realmente o correto.
Abraço ela com mais força. Abraços são a linguagem mais fácil nesse
momento.
— Já passou, meu amor. Papai está aqui e tia Sophia também. — Ela abre os
olhos ao ouvir o nome da Sophia e a vê também na sala. O sorriso que ela dá já
conforta um pouco o meu coração.
Sophia abre os braços, chamando Lilith com as mãos para seu colo. Minha
filha se inclina e eu sei que ela quer o acolhimento da babá. Sem relutar, entrego-
a aos braços de Sophia, que a acomoda com muito cuidado no colo, escondendo
seu rostinho no peito. Eu me sento ao lado delas e pego na sua mãozinha,
mostrando a ela que também estou aqui.
— Foi só um sonho ruim, meu amor. Já vai passar. — Eu digo, meio incerto se
eu deveria usar essas palavras mesmo ou se há uma regra do que falar quando
seu filho está com medo. Júlia sempre cuidou dessas coisas, e eu pareço um
bobo, sem saber o que fazer.
Sophia não diz nada. Apenas abraça Lilith forte, depois beija sua testa e
acaricia seu cabelo. Fica nesse carinho um tempo, até que finalmente começa a
falar, baixinho como de costume.
— A Sosô tá aqui, tudo bem? O papai também. A gente vai te proteger de
tudo. E eu duvido que algum monstro metido a besta irá enfrentar seu pai. — Ela
diz, e sorri naturalmente, como se aquela fosse a maior verdade do mundo. Eu
quase me sinto tudo o que ela fala.
Lilith enfim começa a se acalmar.
— O papai é foite. — Minha filha fala com dificuldade por causa de sua
língua presa, e por dentro me sinto orgulhoso. — Mais foite que os monsto.
— Ele é sim — Sophia me devolve o olhar. — Mas também tem outro Papai
que nos protege de tudo e de todos… O Papai do Céu.
— Ele potege todo mundo? — Lilith pergunta e em seguida abre a boca, já
com sono novamente.
— Todo mundo. — Sophia é enfática, e, por um segundo, vejo nela a mesma
fé inabalável de Júlia.
— Até o papai Alexandre?
— Sim, até o papai Alexandre.
Seu olharzinho ganha uma nota de tristeza e o que vem a seguir, me faz
desmoronar.
— Então puiquê ele não potegeu a mamãe?
Eu abro minha boca para cortar o assunto, porque jamais saberia o que
responder.
Mas, é claro, Sophia sabia.
— Ele protegeu, sim. Ele a levou para um lugar super seguro… E ainda deu a
ela um superpoder, que é poder cuidar da gente aqui embaixo. Agora ela é um
anjo, sabia?
— Um anjo? — Sua boquinha rosada se abre em surpresa. — De asa e tudo?
— Sim, de asa e tuuuudo. — Sophia a abraça como se quisesse esmagá-la. —
E eu vou te ensinar a fazer uma oração para ela, você quer?
— O que é olação, tia Sosô?
— Oração é o jeito mais fácil que o Papai do Céu nos deu para falar com ele,
com seu filho e com os anjinhos, como a sua mamãe. — E boom, um soco bem
na minha cara. Há muito tempo eu não falava com Deus. Tanto tempo que eu
nem me lembrava de como era a sensação.
Os olhos da minha filha brilham e eu sorrio.
Que tato, que delicadeza… Que amor Sophia transmitia ao falar com minha
filha. Eu estava comovido.
— É assim, tá preparada? — Quando minha filha sinaliza que sim, ela
continua: — Repete comigo: "Santo anjo do Senhor…".
— Santo anjo do Senhor… — Lilith e eu repetimos juntos e Sophia ergue o
rosto, admirada por me ver acompanhar a oração. Desde que Júlia se foi, eu
vivia praguejando coisas pelos cantos, indignado com Deus por levá-la de mim.
Acho que ela estava surpresa.
— "Meu zeloso guardador…".
— Meu zezolo guaidador… — Minha filha se enrosca toda e eu acho graça.
Preciso segurar a risada no meio da oração.
— "Se a ti me confiou à piedade divina…".
— Se a ti me confiou à piedade divina…"
— “Sempre me rege…” — esperamos ela repetir — ”Me guarde… Me
governe… E me ilumine, amém!”.
— Amém! — Repetimos os três.
Em poucos minutos minha filha dorme novamente.
E, mais uma vez, eu sou grato por ter Sophia por perto.
CAPÍTULO 8 – AUTOFLAGELO
Quatro meses depois
Alexandre
Entro fazendo o mínimo de barulho possível. Pelo silêncio da casa e as luzes
apagadas, todos já dormem. Jogo as chaves na mesinha de centro e suspiro,
cansado.
Eu estou um caco.
Voei mais horas do que eu realmente podia ter voado, na realidade. Pedi voos
e mais voos ao meu chefe. Passei as horas de descanso trancado dentro do hotel.
Trabalhei à exaustão e deixei todos intrigados, inclusive André, que me conhece
mais do que a mim mesmo. Ele sabia que havia algo errado comigo.
A questão é que eu simplesmente não queria voltar para casa. Eu não queria
voltar para a casa porque minha própria casa me acusava. Para todos os lugares
que eu olhava, eu via Júlia. Eu via seus olhos grandes, seu cabelo lindo e sedoso.
Eu sentia seu cheiro, via suas fotos, ouvia suas músicas… Eu enchia todos os
meus poros de Júlia.
Mas quando eu me virava, lá estava ela.
Sempre radiante. Sempre alegre. Sempre com alguma coisa interessante para
falar. E ela, justamente ela, estava me fazendo perder o foco. A cada dia que
passava, Sophia preenchia mais a minha casa com sua voz doce, com o barulho
de sua cadeira – que eu prometi a mim mesmo trocar por uma nova – e suas
risadas engraçadas.
Ela preenchia todos os espaços com o carinho que sentia por minha filha, pelo
cuidado com seus sentimentos e inclusive, com os meus.
Todas as vezes que ela achava que ninguém estava olhando, eu a ouvia cantar
baixinho enquanto realizava alguma tarefa. E todas as vezes que estava distraída,
eu via como ela olhava para Lili, cheia de amor e carinho.
Há tantas coisas que você pode aprender sobre alguém quando elas acham que
você não está reparando. E era exatamente assim que Sophia se sentia: ela
achava que eu nunca estava reparando. Ela achava que eu não olhava para ela, eu
sei.
Mas ela está tão enganada. Eu a olho mais do que deveria, na verdade.
Droga, eu não devia estar pensando nisso.
Viro-me e olho para o quadro na parede da sala. Júlia me encara com a mesma
ternura de sempre. Por um momento tive medo de que seu olhar fosse de
acusação, como se por mágica, sua expressão sempre tão linda mudasse ali
naquela foto.
Mas não. Ela ainda me olha da mesma forma.
Júlia nunca me julgava. Era uma característica dela.
Penso por um momento em me sentar e ouvir suas músicas. Imaginá-la
dançando para mim, me olhando e sorrindo, mas pela primeira vez, esse desejo
não é maior do que eu.
Eu quero apenas subir para o quarto e acabar com esse dia de uma vez por
todas. Eu quero apenas me trancar e fingir que isso não está acontecendo.
Convencer-me, de alguma forma, que é tudo coisa da minha cabeça; fruto da
minha imaginação.
— Me perdoe, amor — sussurro para a foto. — Eu realmente estou cansado
hoje. — Digo, tentando convencer a mim mesmo.
Entro pelo corredor de forma rápida. Quero apenas passar por seu quarto e ir
direto para o meu, mas eu não me contenho. Paro por alguns segundos em frente
à sua porta, imaginando se ela estaria acordada.
Por um segundo eu quero bater. Quero perguntar se está tudo bem. Quero
saber como foram esses três dias e o que elas fizeram sem mim. Por um segundo
eu quero saber se ela está confortável em minha casa, mesmo já tendo a resposta
para isso. Quero saber como Lilith está se comportando.
Por um segundo, eu quero conversar com ela como fazemos quase todas as
noites. Quero falar de livros, de música e até de política que, por sinal, ela
entende muito mais do que eu.
Por um segundo eu quase faço tudo isso.
Por um segundo.
Mas retomo meu juízo e continuo andando, indo direto para o meu quarto.
Já dentro do quarto, fecho a porta e encosto-me a ela, jogando o quepe na
cama e desabotoando o uniforme rapidamente. Levo minhas mãos ao rosto,
esfregando-o. Onde eu estava com a porra da cabeça? Isso só deve ser a solidão
falando mais alto dentro de mim.
É isso. Com certeza, é isso.
Respiro fundo quando o maior dos eufemismos passa pela minha mente: não
posso olhar para ela desse jeito.
Não posso sequer olhá-la.
Não quando os meus olhos insistem em vê-la de outra maneira.

Sophia
Com muito cuidado, tiro a mãozinha quente de Lilith de cima da minha e
sorrio. Depois de umas dez histórias seguidas, ela finalmente dormiu.
Desligo a luz principal do quarto e deixo apenas a luz fraca e amarelada do
abajur inundar o ambiente. Coloco o livro grosso de clássicos infantis sobre a
cômoda, a cubro com sua mantinha de princesas da Disney e com muito cuidado
manobro a cadeira de modo que não bata em nada. Não posso fazer barulho de
jeito nenhum, Lilith havia demorado muito para dormir e o que eu menos quero
é acordá-la agora. O sono da pequena anda leve como uma pluma; não sei se foi
sempre assim ou se começou depois que Dona Julia morreu, mas ultimamente
ela acorda várias vezes durante a noite e o motivo era sempre o mesmo:
pesadelos.
Delicadamente encosto a porta, deixando uma fresta aberta. Meu quarto é
estrategicamente de frente para o dela, o que facilita muito. Quando Alexandre
está em casa, ele a socorre porque sabe que eu demoro até conseguir me sentar
novamente na cadeira, porém, nos dias em que ficamos sozinhas, ou ela vem até
mim ou eu vou até ela, mesmo com todas as dificuldades.
Depois de conseguir me acomodar na cama, olho no relógio. Já é tarde e eu
preciso dormir logo, mas meus pensamentos não deixam. Eu luto contra isso
toda noite ao me deitar, mas a cada dia que passa mais Alexandre se torna o
personagem principal das minhas divagações.
A cada dia eu me pego mais admirada com o seu modo de andar, de falar, de
agir comigo… Sua educação, seu respeito e suas boas maneiras. Cada vez mais,
a cada dia, ele se torna meu motivo de adoração, e cada vez mais eu me torno
apenas sua amiga, a babá de sua filha e uma pessoa com quem ele diz sempre
poder contar.
Os dias na casa passam, mas parece que a relação que ele construiu ao redor
da morte de sua mulher não muda em nada. Todas as noites, ele fica por horas na
sala, ouvindo as músicas que ela costumava dançar, bebendo o vinho que eles
costumavam beber ou apenas olhando para o nada.
E, por diversas vezes, eu o vi chorando.
Como eu poderia estar apaixonada por uma pessoa que nunca irá superar a
perda do seu verdadeiro e único amor?
Isso é autoflagelo, e parece que a cada dia eu me machuco mais e mais.
[…]
É quase meia noite quando ouço o barulho da porta da frente se abrir.
Alexandre havia chegado. Dou um suspiro e fico atenta, ouvindo seus
movimentos. Espero ouvir o mesmo ritual de sempre, mas dessa vez,
surpreendentemente, é diferente. As chaves são jogadas na mesinha de centro da
sala como de costume, mas ao invés dele sentar-se no sofá e ligar baixinho
alguma das músicas que Dona Julia amava, eu o ouço entrando pelo corredor.
Eu o imagino em seu uniforme azul, as mãos nos botões, uma mania sua que
eu já tinha reparado e seu quepe levemente torto para o lado esquerdo. Imagino
seu andar firme enquanto seus sapatos batem no piso de madeira.
Cada passo é uma batida incerta do meu coração.
Ele não irá ter seu momento hoje? Seu momento de pensar nela, como todos
os dias ele faz?
Talvez ele esteja cansado. É isso, ele está cansado. Já faz três dias que ele está
viajando sem voltar para casa, o que não acontece mais com tanta frequência.
Talvez o corpo esteja desacostumado com a rotina que antes era tão comum.
A certa altura, seus passos cessam. Prendo a respiração por um momento,
porque eu sei que ele parou em frente ao meu quarto. Depois de alguns segundos
em total silêncio, ele volta a andar e logo em seguida ouço a porta de seu quarto
ser aberta.
Solto a respiração.
Por que ele havia parado em frente ao meu quarto? Será que ele queria
perguntar algo sobre Lilith?
Espero mais alguns minutos e depois que meu coração desacelera, acho
melhor tentar dormir. Já é tarde e amanhã meu dia começa cedo. Aninho-me
entre minhas cobertas e suspiro aliviada. O sono não demora a chegar, afinal, é
muito mais fácil dormir sabendo que ele está no quarto ao lado.
Apenas a sua presença na casa já é o suficiente para mim.
CAPÍTULO 9 – UM ANJO VEIO ME FALAR

Alexandre
Eu já estou deitado, tentando ler um livro para chamar o sono, quando ouço
um barulho no quarto de Sophia. Abaixo o livro, depositando-o ao meu lado, e
apuro meus ouvidos, tentando ouvir melhor as vozes lá fora.
— Calma, meu anjinho, foi só um pesadelo… Shh… — Sophia fala baixinho,
repetindo o barulhinho com a boca, como se ele tivesse a capacidade de
melhorar a situação. — Não vamos acordar o papai, ok? Ele chegou de viagem e
está cansado.
Minha filha, no entanto, parece sequer ouvir suas palavras.
— Não Sosô… Não foi pesadelo. A mamãe veio me veeeer. Aquedita em mim.
— Ouço o choro de minha filha ao fundo e não penso duas vezes antes de
levantar e ir ver o que está acontecendo. Meu coração dispara, e eu saio assim,
do jeito que eu estou, apenas de short de dormir, sem camisa e descalço. Quando
eu entro no quarto, meu ar volta e eu sorrio. Lilith está deitada no colo de
Sophia, que a abraça, enlaçando seu corpo. Ela está com o rosto abaixado,
ouvindo atentamente tudo que minha filha fala, e prestando atenção a cada
palavra.
— Meu amor? — Entro devagar no quarto e as duas levantam o rosto para
mim. Um pequeno calor percorre meu corpo quando percebo que Sophia
também respondeu ao chamado que era para ser de Lilith. Acho que ela também
percebe, pois fica sem graça e abaixa a cabeça, para esconder o rubor
instantâneo que surge em seu rosto.
— Papai… — Minha filha estende a mãozinha e eu peço permissão para
sentar-se na beirada da cama de Sophia. — A mamãe veio me ver.
Por um momento eu sinto o ar ir embora, mas segundos depois eu apenas
entendo que não posso fantasiar nada a respeito disso. Minha filha é uma criança
e pode muito bem pensar que a mãe viera vê-la, mas eu devo entender que foi
apenas um sonho, nada mais.
Temos falado muito de Júlia esses dias e talvez isso tenha ficado em sua
cabecinha.
— Foi um sonho, meu anjinho está tudo bem. — Eu digo e sorrio, tentando
passar confiança. Os pesadelos de Lilith estavam cada vez piores, e eu já não
sabia mais a quem recorrer. Médicos, psicólogos, a própria Sophia. Eu buscava a
ajuda de todos, mas nada parecia surtir o efeito desejado. O trauma de Lilith,
apesar de ser pouco percebido durante o dia, vinha com força total toda noite.
— Sim, só um sonho. — Sophia sorri para minha filha e depois levanta os
olhos para mim, em confidência. Sinto que quando se trata de Lilith, somos
cúmplices. É como se nós dois soubéssemos sempre o que dizer para completar a
fala do outro.
Sophia tem olhos grandes, expressivos e extremamente amigáveis. A cor de
mel de sua íris, apesar de me lembrar da cor do uísque, me traz sentimentos
bons. Eu sorrio para ela involuntariamente e ela sorri de volta. Sussurro um
obrigado e ela apenas balança a cabeça, como quem diz: não é nada.
Minha filha se desenlaça do abraço de Sophia e vem em minha direção. Atira-
se em meus braços e depois de aninhar seu rosto em meu peito, ela começa a
falar. De forma alguma minha pequena quer aceitar que aquilo fora apenas um
sonho, então eu apenas deixo que fale. Talvez seja a única solução para acalmar
seu coraçãozinho confuso.
— A mamãe veio me ver… — Ela diz e me olha, praticamente suplicando
para que eu acredite. Apesar de ser uma criança, talvez algo nela possa ter
entendido que eu não acreditaria, e ela faz um grande esforço para conseguir o
contrário. — Ela estava toda de banco… E o cabelo dela estava lindo papai! —
Sua língua enrola especialmente nas palavras com R, mas o costume de escutá-la
me fazia entender cada palavra, e as visitas à fonoaudióloga começavam a surtir
algum efeito.
— Foi, meu anjinho? — Dou corda, afinal, negar, nessas circunstâncias, seria
pior.
— É… E ela me abaçou… Me beijou… E disse assim: fala po papai que eu
não julgo ele.
Eu estaco na hora.
Minha pulsação some e eu sei que fico branco. Meu corpo congela, e por um
segundo eu sei: Júlia esteve mesmo aqui. Pode me chamar de louco se quiser.
Em sonho ou pessoalmente, mas ela esteve.
Isso nunca poderia ter saído da cabeça da minha filha.
— Tia Sosô, o que é julgar?
Sophia pensa um pouco e responde, totalmente alheia à realidade que me
acerta. Júlia estava dando uma resposta ao medo que eu exprimi mais cedo,
pouco depois de chegar em casa cansado e angustiado.
— É quando você pensa ou fala algo de alguém, sem saber se aquilo é ou não
verdade. São conclusões precipitadas, entende?
— O que é pecipitada? E conclusões? — Ela aperta os olhos, curiosa.
— Eu prometo que te explico amanhã — Sophia ri —, mas resumindo, Lili,
julgar é pensar algo de alguém.
— Entendi. — Lilith parece satisfeita com a resposta, então se vira para mim
com um sorriso perfeito, como se tivesse descoberto a pólvora. — Então a
mamãe não pensa nada de você, papai!
Atônito, eu apenas concordo, enquanto meu peito parece querer explodir.

Sophia
Observo a expressão de medo que se instalou no rosto de Alexandre.
Desde que ele entrou no quarto que eu tenho tentado desviar o olhar. Ele está
apenas com um short de dormir, e isso é muito estranho para mim. Eu sempre o
vejo sobriamente vestido ou de uniforme, mas nunca o vi sequer sem camisa.
Diferente do que eu imaginava, seu corpo é firme e esculpido, e eu preciso de
muito esforço para sufocar um suspiro, principalmente quando reparo na
tatuagem sobre seu peito esquerdo: uma bússola lindamente desenhada e a
palavra Wanderlust logo abaixo, em letras cursivas e bem-feitas. Não é nada
pequena, mas está sempre escondida debaixo das roupas que ele usa. Eu jamais
imaginaria que alguém sóbrio e sério como Alexandre poderia gostar de
tatuagens.
Desviar os olhos é um tarefa quase impossível, mas que sou obrigada a fazer
quando seus olhos se abaixam e encontram os meus, pregados em sua pele.
Lentamente viro o rosto e disfarço como posso, mesmo sabendo que fui pega no
flagra.
— Ahh, e eu contei para a mamãe que a Sosô está cuidando de mim agoia…
— Lilith me tira do devaneio em que me encontro e eu volto minha atenção para
ela. — E ela disse que gosta muito de você tia Sosô. Que é pa eu te respeitar,
ajudar você e ser boazinha e…
Sorrio, mas meu sorriso morre logo depois.
— E ela também não te julga. — Lilith solta na maior inocência e volta a se
aninhar no pai, sem fazer ideia do que falava, ou o que suas palavras
significavam.
Mas eu sei.
E algo me diz que Alexandre sabe também, a julgar pela sua reação e o seu
rosto pálido.
Não é possível que estejamos falando da mesma coisa. Deve ser tudo uma
coincidência.
Não, isso é loucura. Só pode ser loucura.
Ergo meu olhar para enfim encontrar o de Alexandre, totalmente assustado.
Sem precisar de muito e sem trocar nenhuma palavra, nós dois sabemos: não era
uma loucura. Júlia não nos julga pelo mesmo motivo: os nossos sentimentos.
E meu coração simplesmente esquece como bater.
[…]
Depois de algum tempo, e muita conversa, Alexandre se vira para Lilith com
um sorriso cansado no rosto. É mais do que óbvio que aquela história ainda
martela tanto na cabeça dele quanto na minha, mas ninguém toca mais no
assunto. É muito mais fácil ignorar o elefante na sala; fingir que não está
acontecendo é a melhor forma de fingir que tudo não passou de coisa da nossa
cabeça.
— Princesa, vamos dormir com o papai? — Alexandre estende os braços, em
um convite. — Você já importunou muito a tia Sophia.
Lilith enruga o narizinho. Apesar dos seus seis anos, ela é muito pequenina e
magra, frágil como uma bonequinha. O estereótipo de Júlia estava todo nela.
— Eu não impoituno, né Sosô?
Dou risada. Ela provavelmente nem sabia o que era importunar.
— Jamais, minha princesa, jamais.
Ela se volta satisfeita para seu pai, contente por estar certa.
— Tá vendo, papai?
— Mas você precisa deixá-la dormir, meu anjo. — Ele tenta mais uma vez e
boceja. Provavelmente os dias viajando deixaram-no esgotado.
— Eu vou dormir aqui com ela! — Lilith solta e eu rio.
— Meu amor… Não começa… — Alexandre joga os braços ao lado do corpo,
nitidamente cansado, e tenta mais uma vez convencê-la, mas eu o impeço.
— Alexandre, deixa… Ela não vai me atrapalhar. Pode ir dormir tranquilo.
Após um segundo pensativo, ele finalmente retruca:
— Tem certeza?
— Absoluta. Pode ir.
Ele sopra um beijo em sua direção, e quando está saindo pela porta, Lilith o
chama mais uma vez.
— Papai! — Ela fica de joelhos na cama; seu pijama de unicórnio chamativo
faz um sorriso enorme surgir em meu rosto.
— Sim, meu anjo? — Ele se volta, mas o que vem em seguida nos deixa sem
ar.
— Você tem que dormir aqui também. — Seus olhinhos brilham sem malícia,
e ela tira a franjinha incômoda de cima deles. — Você tem que ficar aqui e
poteger a gente dos monsto. Só você consegue poteger a gente, papai.
— Lilith, olha, meu amor… — Ele começa, mas ela não deixa.
— A cama da Sosô é gandi.
— Meu amor, nós não podemos dormir na mesma cama que você… — Eu
tento, na tentativa de ajudar Alexandre, mas ela simplesmente não quer ouvir.
Seus olhinhos se enchem de lágrimas novamente e eu olho desesperada para ele.
Eu odiava vê-la chorar.
— Mas você e a mamãe doimiam comigo quando eu tinha pesadelo… — As
lágrimas finalmente rolam, e eu começo a fraquejar.
— Filhinha… — Alexandre se ajoelha em sua direção — Com a mamãe era
diferente… Ela era sua mamãe e eu seu papai. Nós podíamos dormir na mesma
cama. — Ele tenta argumentar, mas a decisão final é dela, e já sabíamos disso.
— Mas a mamãe foi emboia! E quem ficou no lugar dela foi a Sosô… — Ela
realmente não entendia a diferença entre nós duas na situação, e ali não havia
maldade.
Alexandre me olha derrotado, como quem pede permissão. Eu apenas vou
para o lado com um pouco de dificuldade e Lilith se aninha em meus braços,
feliz por ter conseguido. Alexandre, relutante, dá a volta na cama, se deitando do
outro lado e Lilith estende sua mãozinha para tocar no pai.
— Só por hoje, tudo bem? — Ele sussurra para ela e ela concorda, já
sonolenta.
E depois de algum tempo, é assim que eu finalmente durmo, sentindo diversas
coisas: o perfume de Alexandre invadir os lençóis, o calor de mais dois corpos
em minha cama…
Mas o principal de tudo: eu não sabia se assumia o sentimento de felicidade e
acolhimento que senti nesse momento, como se essa família fosse minha, ou se
sentia vergonha por estar me apropriando de algo que não era meu por direito.
CAPÍTULO 10 – QUEM MAIS NEGA É QUEM MAIS MENTE
Alexandre
Todas as manhãs, eu dou bom dia para quem já morreu. Eu sei, é loucura, mas
eu faço isso. Todas as manhãs eu acordo, e a primeira coisa que meu corpo faz
automaticamente é virar-se na cama para que eu abra os olhos em frente ao
grande porta-retratos de Júlia, estrategicamente posicionado na minha mesinha
de cabeceira. Esse porta-retratos vai em minha mala para onde eu for; ela está
sempre ali, em qualquer quarto de hotel que eu durma, ou até mesmo nos
alojamentos da companhia. Ela está sempre lá.
Sempre.
Há um misto de alegria e dor em pousar meus olhos em sua imagem. A dor
com certeza ganha de lavada, mas ainda assim, eu insisto nesse hábito
destrutivo. É como houvesse algo de prazeroso em rasgar meu peito todas as
vezes em que a vejo e me lembro que ela não vive mais.
Só que hoje foi diferente.
Quando eu acordei, não foram os olhos da minha falecida esposa que me
encararam, brilhantes como todo dia. Não foi seu cabelo curto que eu vi, nem
sua pele pálida ou seu rosto fino… Não foram seus dentes perfeitamente brancos
em um sorriso quase imoral de tão lindo.
Foram os cabelos da Sophia que eu vi.
Os olhos dela ainda fechados em um sono tranquilo.
Foi sua pele leitosa e seu rosto redondinho, com maçãs saltadas, coradas.
E ela sorria enquanto dormia. Sorria abraçada à minha filha; sorria como se
sonhasse que estava correndo, livre…
Sorria como se sorrisse para mim.
Ela provoca o pior e o melhor efeito em mim: melhor porque quando estou
com ela, sinto um fio de vida correr em minhas veias, como se, por um segundo,
eu pudesse sorrir de novo. E o pior porque eu sinto que estou traindo meu
sentimento por Júlia. Eu jamais achei que olharia para outra mulher, mesmo que
sem intenção de fazer isso.
Um suspiro seu me traz de volta à realidade e então, ao olhar para ela
novamente, ainda envolta em seu sono sereno, eu sorrio junto,
involuntariamente. Mas esse sorriso dura apenas um segundo, e eu salto da
cama, desesperado. Eu não posso ficar aqui. Não posso pensar mais nessas
coisas. Não posso compará-las mais.
Eu não posso me aproximar mais.
Não posso.

Sophia
Esfrego os olhos, ainda sonolenta, quando alguns raios de sol entram pelas
frestas da cortina do quarto. Lentamente os abro, com medo de encontrar
Alexandre e Lili ainda dormindo ao meu lado, mas eles já não estão mais ali.
Suspiro, dividida entre o alívio de não ter um homem como ele me vendo
acordar e a sensação de perda ao ver seu lado vazio. Também sinto vergonha por
tê-lo deixado acordar antes de mim, mas Deus sabe o quanto eu estava cansada
pelos dias em que fiquei com Lili enquanto ele trabalhava.
Sem contar que hoje é minha folga: com o pai em casa, eu estou livre para
fazer o que quiser, inclusive sair, mesmo que eu não vá fazer isso. É domingo, e
domingo pede cama e livro, nada mais. Minhas amigas até me mandaram
mensagens, mas eu estou tão cansada que prefiro ficar curtindo o dia de hoje
com tranquilidade.
Pisco algumas vezes, e vejo o lençol da cama todo amarrotado, me dando a
certeza de que o que havia acontecido na noite anterior não havia sido um sonho.
E não foi.
Não foi porque o seu cheiro estava ali, espalhado pelo lençol, grudado na
cama, no quarto, no ar.
Em tudo.
Fecho os olhos, tendo a plena noção de que aquele cheiro é o melhor do
mundo. Meu peito aperta, porque eu sei que estou simplesmente enlouquecendo
com tanta proximidade.
Quando eu namorei Rodrigo, imaginei ter esquecido a paixão adolescente que
sentia por Alexandre, mas os dias nessa casa me provaram que eu nunca
realmente o esqueci. No máximo, adormeci uma paixão que eu sabia ser
impossível. E agora, tudo está vindo à tona com uma intensidade incontrolável, e
eu não sei como agir.
As palavras de Lili voltam à minha mente, e por um segundo, eu me deixo
iludir, imaginando que talvez ele possa sentir qualquer coisa por mim. Qualquer
coisa que fizesse Júlia aparecer em sonho para dizer que não o julgava.
Meu Deus, eu preciso acordar para a vida. Isso já é delírio.
— Ebaaaaaaaaa! — O gritinho vindo do quarto de Lili me desperta dos meus
pensamentos impróprios e eu sorrio, imaginando o que está fazendo minha
florzinha tão feliz. Não que ela não fosse uma criança extremamente animada
todas as vinte e quatro horas do dia, mas essa sua felicidade parecia ter um
motivo especial.
— Não corre assim Lili, você vai caaaair. — Ouço a voz já cansada do
Alexandre mais perto do meu quarto, e constato, tarde demais, que eles estão
vindo para cá.
Ajeito-me na cama como posso, arrumando os cabelos rapidamente e
erguendo a colcha para cobrir uma parte do meu corpo ainda de pijama. Inútil da
minha parte fazer isso porque havíamos dormido todos juntos, mesmo assim,
minha noção me pede para ser discreta.
— Sosoooooooooô! — Ela grita toda feliz ao entrar correndo em meu quarto
como um furacão, se jogando na cama com todo o peso de seu pequeno
corpinho, fazendo seu pai correr e perder a cor do rosto. Definitivamente ele
ainda não está acostumado a lidar com ela sozinho, e eu nem posso julgá-lo. Lili,
mesmo sendo tão pequena no tamanho, às vezes era quase como um tornado. —
Adivinha quem vem me visitar? E me levar para passear? E comprar um monte
de boneca nova? Adivinhaaa? — Ela metralha as palavras sem parar,
arregalando seus grandes olhinhos, esperando minha resposta.
— Hummm, não sei. Me dá uma dica? — Coloco o indicador no canto da
bochecha, fazendo cara de quem não sabia, mesmo tendo certeza de que a visita
inesperada é o André, levando em consideração a felicidade de Lili.
Ela simplesmente ama o tio.
— É meu titio Andé! — Ela grita, a alegria estampada no seu rosto. — E a
titia Aiela vem também! Ela tá no Basil. — A dificuldade de pronúncia de Lili a
faz visitar um fonoaudiólogo todas as semanas, mas no fundo eu achava
engraçadinho seu modo de falar; deixava-a ainda mais fofa. Alexandre se
preocupa, mas eu sei que ela irá aprender em breve, com certeza. É preciso
apenas calma e paciência.
Crianças precisam de tempo e apoio, apenas isso.
— Acho que precisamos ensinar melhor o conceito de "pista" para a Lili. —
Ele ri, encostado no batente da porta, falando a primeira coisa desde que entrou
no quarto. Ele está descalço, mas, diferente de ontem quando só usava um short
de dormir, hoje veste uma camiseta branca e uma calça de moletom azul escura.
— Desculpa ela entrar assim, Sophia, mas essa menina está sem controle. Espero
que ela não tenha te acordado.
Sorrio por sua preocupação.
— Não acordou, de verdade. E eu já precisava me levantar mesmo. — Digo
ainda com o sorriso estampado no rosto, e ele demora alguns segundos para
entender que isso é uma deixa para que eles pudessem me dar licença pra me
arrumar.
— Ah, meu Deus! Claro. Desculpa. — Ele bate na testa, sorrindo sem graça.
— Vem Lili, vamos deixar a Soph se trocar, ahn?
E, de repente, eu virei Soph.
[…]
Vesti uma blusa amarela de manga comprida, trabalhada em renda, e uma
calça jeans clara e detonada, que eu havia colocado com muita luta, por conta da
pressa em sair do quarto logo. Por mais costume que eu tenha, nunca é tão fácil
assim trocar de roupas sozinha.
— Ora, ora, quem nós temos aqui? — André sorri ao me ver entrando na sala.
Ele está em pé, com as duas mãos no bolso, em uma atitude totalmente
despojada, bem diferente de todas as vezes que o vi vestido com o uniforme de
piloto. Ariela está ao seu lado, maravilhosa como sempre, em um vestido
vermelho florido que combina perfeitamente com sua pele negra e sedosa e com
suas curvas abusivas. Seu cabelo está solto em cachos altos e, sinceramente, essa
mulher parece uma rainha.
Antes que eu possa responder, André se abaixa levemente para me abraçar.
Ergo os braços um pouco, enlaçando-o pelo pescoço. Por sobre seus ombros,
vejo o sorriso gentil de Ariela, que repete o gesto do noivo assim que ele me
solta.
— Quanto tempo, André. — Sorrio e me dirijo para sua noiva logo em
seguida. — E você, Ari… Está incrível como sempre.
— Minha querida… — Ela solta com seu sotaque arrastado. Apesar de ser
brasileira, o português é a língua que ela menos fala, por conta de suas inúmeras
viagens a trabalho e por morar fora há muito tempo. Pisa em solo brasileiro
apenas para visitar a família e o noivo, nada mais. Muitas vezes a vi trocar
palavras e se enroscar toda para conjugar verbos, assim, como se esquecesse
como falar. — A única pessoa incrível aqui é você. — Ela conclui com uma
piscadinha que eu sei ser sincera. Essa mulher é um poço de bondade e
educação.
— A Sophia é incrível, você tem razão, Ari. — Alexandre se adianta e sorri de
soslaio para mim, quase como um segredo. — Eu não sei o que faria sem ela. Eu
definitivamente não sei criar uma menina sozinho, pelo amor de Deus.
Esforço-me ao máximo para não me sentir elogiada, mas é difícil, já que os
três olham para mim e sorriem, o que me faz retribuir o gesto. Uma sensação
reconfortante se instala em meu peito primeiramente, para depois se espalhar por
todo o meu corpo, em cada parte de mim. Uma sensação que eu senti poucas
vezes desde o acidente que me tirou o privilégio de andar: a sensação de ser útil,
de me sentir igual a todos.
A sensação de ser necessária.
Tão bobo para alguns, tão importante para mim.
Conversamos rapidamente sobre amenidades: tempo, meu tratamento, minha
mãe, e Lili, até que eles decidem ir logo para o tal passeio. Lili não para de
chamar os tios, puxando a mão de Ariela em direção à porta e falando sem parar
sobre todos os lugares que eles iriam juntos.
— Ansiedade mandou lembrança. — Alexandre fala, brincando.
— Nossa, eu não faço ideia de quem ela puxou isso… — André responde
irônico.
— Não enche, vai.
Ele os acompanha até a porta e antes de finalmente saírem, Lili se vira para
mim, perguntando se eu não queria ir junto com eles, mas Alexandre é mais
rápido que eu.
— Não filhinha, a Soph está cansada. Hoje é o dia de folga dela. — Vejo
quando André olha de soslaio para Alexandre, apertando a boca. É claro que ele
ficou intrigado com o modo como o irmão me chamou, mas Alexandre olha para
ele como quem diz: fique na sua.
— Você vai descansar, Sosô? — Lili pergunta.
Eu assinto e assopro um beijo em sua direção, deixando claro que a estaria
esperando bem aqui quando ela voltasse, e sendo assim, ela sai feliz e contente,
de mãos dadas com os tios, tagarelando como sempre.
Assim que a comitiva sai porta afora, eu viro minha cadeira discretamente
para voltar ao meu quarto. Alexandre provavelmente está muito cansado de
todos os dias que trabalhou sem parar, e com certeza irá querer seu precioso
momento a sós, para pensar em Júlia como faz todos os dias.
É praticamente um ritual: música clássica, uma dose de uísque, ou seja lá o
que for aquilo, já que eu não entendo nada de bebidas, e os olhos cravados no
enorme quadro dela dançando que está na parede da sala.
Triste, doloroso, mas… Bonito, de certa forma.
Antes que eu consiga sair da sala sem ser notada, ouço Alexandre me chamar.
— Soph… — Viro-me rapidamente, mais vidrada do que deveria ao ouvir
meu nome sendo chamado por ele de forma tão íntima.
— Sim Doutor… — Balanço a cabeça, me corrigindo rapidamente. — Sim,
Alexandre?
Ele me observa por alguns segundos, dezenas de pensamentos passando por
trás de seus lindos olhos. Dá alguns passos em minha direção, mas recua de
repente, como se estivesse arrependido disso; quase como se brigasse consigo
mesmo.
— Você já tomou seu café da manhã? — Ele me pergunta, e quando eu nego,
ele sorri de canto. Voltando a andar em minha direção, ele segura as alças da
minha cadeira de rodas, me empurrando em direção à cozinha, claramente
deixando de lado sua dúvida em estar perto de mim. — Então me faz
companhia? Odeio tomar café da manhã sozinho.
CAPÍTULO 11 – CURA NECESSÁRIA

Sophia
— Você gosta de café preto, ou prefere com leite? — Alexandre pergunta
enquanto procura nossas xícaras no armário. Depois de procurar em algumas
portas, ele para no meio do caminho, com um olhar pensativo. — Você sabe
onde fica a louça nesse armário? Sua mãe é mais dona dessa casa do que eu.
Dou risada e aponto a porta do outro lado.
— Ali. Xícaras, pratos e copos. Desse lado aí são as panelas. — Explico e ele
ri ao perceber que todo mundo conhece sua casa mais do que ele mesmo.
Depois, pega o que precisa e coloca a xícara na minha frente.
Não tem muita coisa na mesa, já que ele só pegou o que cada um gosta de
comer. Ele se senta em seu lugar, mas antes de me servir, ele olha mais uma vez
para a mesa.
— E se a gente comesse lá fora, no jardim? Faz tempo que eu não tomo café
da manhã lá. — Pergunta, e uma sombra de tristeza passa por seu rosto. Nem
preciso perguntar para saber com certeza que a última vez que ele tomou café da
manhã no jardim fora com Júlia.
— Acho uma ótima ideia. — Sorrio e estico minha mão, pegando o saquinho
com pães, enquanto ele pega o restante das coisas.
— Quer ajuda? — ele pergunta, preocupado. É engraçado até, porque ele me
deixa ficar dias e dias com a filha dele, mas às vezes acha que eu não consigo
sequer carregar algo nas mãos.
Eu sorrio com o canto da boca, de uma forma quase travessa.
— Ok, já entendi. Eu não tenho muita noção e você tem muita paciência. —
Ele solta. Me surpreendo com a naturalidade e gargalho alto, o fazendo rir
também. Há algum tempo, nossas conversas estão bem mais informais, e isso me
faz tão feliz.
É como se eu estivesse conhecendo alguém novo.
— Vindo de você, eu realmente não me importo — solto, e ele para, me
olhando de lado. Por um segundo seu olhar me queima, como se estudasse a
frase que eu acabara de deixar escapar. Sinto meu rosto queimar, e acho que ele
vai deixar essa passar, mas estou completamente enganada.
— Ah é? Por quê? — Seu olhar tem um tom desafiador, e eu quase posso
sentir o cheiro de fumaça das engrenagens da minha cabeça funcionando.
Penso o mais rápido que posso e então dou de ombros.
— Porque você avisou que poderia ser idiota às vezes. Eu já estou preparada
— solto, rindo, mesmo sabendo que essa não é a verdade. A verdade é que eu
não me importo porque ele pode dizer o que quiser, eu sempre irei entender suas
intenções. Eu nunca fui nada próxima de Alexandre, mas é como se eu
conhecesse cada pedaço e nuance dele. Cada pensamento, e principalmente, é
como se eu conhecesse seu coração por inteiro.
— Ainda bem que eu avisei então. — Ele ri, mas quase posso jurar que vejo
uma pontada de decepção em seus olhos.
Quase.
[…]
Fecho os olhos um segundo, sentindo o vento bater em meu rosto enquanto
nós tomamos café em silêncio. Quando você não consegue mais andar, é como
se todos os outros sentidos ficassem mais aguçados. Eu amo sentir o vento no
rosto porque ele me lembra de quando eu podia correr.
É quase como voltar no tempo.
— E então Sophia… — Alexandre começa e eu abro os olhos, virando minha
cadeira levemente para o lado dele, prestando atenção em suas palavras. — Será
que seus pais já me odeiam?
— Como assim? — Pergunto, sem entender.
— Eu te monopolizei. Você não volta para casa há dias. Sua mãe ainda te vê,
porque ela está aqui todo dia, mas seu pai deve estar sentindo sua falta. Se bem
me lembro, sua mãe sempre disse que você é a bonequinha dele…
Sorrio.
— Ele está feliz, na verdade. Ele sabe como eu sempre quis me sentir assim,
útil. Para todas as outras pessoas, trabalhar é uma forma de prover o sustento,
Alexandre. Para mim, é uma maneira de provar para mim mesma que eu posso o
que qualquer um pode. E eu posso mesmo.
Ele aperta os olhos, abaixando a cabeça.
— É claro que você pode. — Um sorriso de canto, quase triste, toca sua boca.
— Só um idiota pensaria o contrário.
— Esquece isso — ergo minha mão, e toco a sua por cima da mesa. Ele ergue
os olhos devagar, e então olha para nossas mãos. Eu quase nunca o tocava, e de
repente, esse toque pareceu íntimo demais, então eu a retiro, como se não fosse
nada demais, mesmo que meu coração bata descompassado, quase como se fosse
sair pela boca.
— Acho que isso magoou mais a mim do que a você. — Ele diz e eu
concordo, balançando a cabeça e erguendo as sobrancelhas de forma quase
irônica.
— E namorado? Não tem nenhum sentindo sua falta? — Ele pergunta
despretensioso, enquanto brinca com uma folhinha da planta ao lado da mesa.
Meu coração acelera e eu penso em Rodrigo. Desde que o nosso namoro acabou,
eu nunca mais tive ninguém. Vendo que minha expressão muda, ele se apressa
em completar. — Desculpa se eu estou sendo invasivo, Sophia. Eu só me toquei
de que quase não te conheço, e por culpa minha mesmo… Eu estou sempre tão
preso dentro de mim.
— Tudo bem. Não está sendo invasivo. É só um assunto um pouco delicado
demais para mim, mas não é culpa sua.
— Então não vamos falar sobre isso. — Ele sorri, tentando mostrar que está
tudo bem.
— Não, vamos falar sobre isso sim — eu abro bem os olhos, encarando-o. —
Às vezes assuntos delicados precisam ser conversados, Alexandre. É uma forma
de exorcizá-los.
Eu sei que ele entende, pois abaixa a cabeça concordando, quase culpado. Ele
sabe que de certa forma, eu também me refiro a ele e Júlia. O nome dela é
praticamente proibido em casa. Só ele e Lili falam dela, e cada vez, ele falava
menos.
A verdade é que Alexandre havia criado uma bolha em volta de si. Ele prefere
fingir que nada aconteceu, a encarar os fatos e tentar superá-los.
Às vezes fingir que um machucado não dói é mais confortável do que tentar
fazê-lo cicatrizar, simplesmente porque fazê-lo cicatrizar arde.
— O último namorado que eu tive foi quem me colocou nessa cadeira, e acho
que você já deve saber disso. — Quando ele concorda eu continuo. — E depois
dele, eu nunca mais conheci ninguém interessante o bastante para tentar amar de
novo.
— Você acha que se você não estivesse nessa cadeira isso seria mais fácil? —
Ele não parece desconfortável em me fazer essas perguntas, e nem eu me sinto
assim. Somos apenas dois amigos conversando. Ele só está curioso, e eu respeito
o fato dele perguntar diretamente para mim, ao invés de ficar fazendo
suposições.
Há bastante dignidade na sinceridade.
— Provavelmente. E não é porque as pessoas não se interessam por mim,
sabe? — Dou de ombros — Mas as pessoas querem ficar pelos motivos errados,
na maioria das vezes.
— Como assim? — Ele joga um pedaço de pão na boca, prestando muita
atenção ao que eu dizia. Acho que em todas as nossas conversas, ele nunca
esteve tão atento.
— As pessoas têm que saber que não vão se relacionar com um cadeirante só
para ajudá-lo a se locomover, mas para amá-lo como a pessoa que ele é — digo,
porque é o que sinto. Quero que alguém fique comigo porque me ama,
independentemente do fato de eu andar, falar, ouvir, enxergar. Quero que me
amem apenas por me amarem.
Depois de alguns segundos em silêncio absoluto, Alexandre finalmente diz:
— Uau. Isso foi… intenso. Eu nunca tinha pensado por esse ponto de vista.
— É que do lado de cá é mais fácil enxergar esses pequenos detalhes. — Digo
sincera.
Ele assente.
— E você o odeia? Digo, o rapaz que você namorou… Que fez isso com
você?
— Não — sou imediata na resposta. — Não o odeio. Fiquei magoada com ele
durante muito tempo, mas não pela brincadeira que ele fez que resultou nisso. Eu
sei que ele jamais teria feito se soubesse que aquilo me machucaria. O Rodrigo
nunca foi um cara ruim, e ele sofreu muito com isso, muito mesmo. O que mais
me machucou na verdade foi vê-lo ir embora quando ele prometeu que ficaria.
— Ele te deixar foi pior para você do que ele a colocar nessa cadeira?
Caramba, você devia amá-lo muito mesmo. — Há um tom de descrença e
amargor em sua voz.
— Foi, foi pior porque isso só me provou que durante o tempo em que
estivemos juntos, ele nunca me amou de verdade, como eu achei que ele amava.
Não foi por ele ter ido embora, mas pelos motivos que o fizeram ir. Ele foi
covarde, mas não comigo. Ele foi covarde com o amor que jurava sentir por
mim. — Uma lágrima escorre por meu rosto, mas eu sou rápida em secá-la. Não
é tristeza, apenas uma constatação de coisas que eu sempre pensei, mas nunca
expressei.
Era bom colocá-las para fora e analisá-las por outros ângulos.
Alexandre estende a mão, me ajudando a enxugar meu rosto. Em sua
expressão há muito carinho e uma dose de compreensão misturada com
descrença. É como se ele me entendesse, mas ao mesmo tempo me achasse uma
louca.
— Você é um enigma, Sophia. — Ele solta, me encarando profundamente,
enquanto sua mão continua em meu rosto.
— Não sou não. Na verdade, eu sou bem fácil de entender. — Pego sua mão
em meu rosto e a aperto com força, deixando claro que aquela frase era tanto
para mim quanto para ele. — Eu aprendi que é necessário ter serenidade para
aceitar as coisas que não posso mudar, Alexandre.
Ele fecha os olhos, como se tomasse um segundo para entender, e então sorri.
— Então você não é um enigma, eu retiro o que eu disse.
— E o que eu sou então? — Sorrio e inclino a cabeça, ansiosa para saber mais
sobre suas suposições sobre mim. Esse momento é tão nosso, e eu gosto tanto
disso, de ter um momento com ele, falando apenas de nós, e não das coisas à
nossa volta.
Ele beija minha mão e então a solta, depois de um bom tempo em que
estávamos tendo contato.
— Uma lição de vida, principalmente para mim. — Ele ergue sua xícara de
café, levando-a à boca, e o silêncio se instala entre nós enquanto eu imagino que,
pela primeira vez, Alexandre está considerando aceitar o que ele não pode
mudar: a morte da esposa.
E ao contrário de qualquer coisa que possa parecer, nunca um silêncio foi tão
confortável.
CAPÍTULO 12 – VULNERÁVEL
Semanas depois
Alexandre
— Sosô, isso é chato. — Encosto na porta da sala e vejo Lili reclamar de algo
com Sophia enquanto faz um bico do tamanho do mundo. Paro para observar por
uns segundos, antes que elas percebam que estou em casa. Às vezes eu gosto de
fazer isso, observá-las de longe. Em meses fazendo isso, as cenas nunca me
decepcionavam.
— Eu sei, meu amor, mas você precisa fazer. Lembra que eu te expliquei o
motivo? Você não quer falar direitinho? — Ela pergunta com paciência e minha
filha balança a cabeça, concordando.
— Então vamos, de novo. — Elas começam a falar algumas palavras e eu
percebo que são as que Lilith mais tem dificuldade. Lembro-me então que a
fonoaudióloga havia deixado exercícios para Lili praticar, e provavelmente é isso
que as duas estão fazendo.
Observo a cena em silêncio, e elas sequer percebem que estou ali. Lilith
começa a desanimar, mas Sophia fala algo que a faz rir alto, e ela começa de
novo, mais animada do que antes. Cruzo os braços e então sorrio ao perceber que
Sophia está sempre cuidando de todas as necessidades da minha filha, sempre.
Até mesmo as emocionais.
Tarefas da escola, exercícios, alimentação, desenhos animados de princesas
que eu sequer sei o nome… Sophia sabe o de todas; conhece todas. E debate
todas as histórias de princesa com Lilith como se fosse com outro adulto, indo a
fundo em cada uma delas.
Ela sempre explica para minha filha o papel de uma mulher na sociedade
usando exemplos que ela possa entender, e mesmo que ela ache que eu nunca
estou de olho, eu vejo a cada dia Lilith aprender mais e mais.
Mesmo sem ter noção disso, Sophia está ensinando minha filha a lutar por
seus direitos e a brigar por seu lugar no mundo com unhas e dentes.
Assim como Júlia ensinaria.
O pensamento me acerta com força e meu pulso acelera instantaneamente com
essa percepção. Minha garganta arde e se contrai, tornando dolorosa a passagem
de ar por ela.
Eu respiro mais rápido e tudo dói, enquanto um desespero inexplicável toma
conta de mim.
Enquanto um milhão de pensamentos passa por minha cabeça, eu fico
paralisado no lugar, me perguntando o que diabos vai acontecer quando Soph
também for embora de nossas vidas.
Da vida de Lilith, quero dizer.
Porque ela vai. Nada a prende aqui, a não ser um trabalho que eu lhe ofereci.
Não há vínculos. Um dia ela vai querer uma vida diferente, e quando ela se for,
minha filha vai sofrer novamente com mais uma perda.
— Papai! — Lilith me chama e eu abro os olhos, me tocando de que minha
filha havia percebido minha presença ali. Quando Sophia se vira, seu olhar
encontra com o meu, totalmente alheia a todos os pensamentos que a envolviam
e inundavam minha cabeça.
— Oi Alexandre! — Ela me dá um sorriso largo, sua marca registrada e eu
balanço a cabeça, tentando voltar à minha racionalidade.
— Desculpa, eu não queria atrapalhar vocês — tento sorrir, mas tenho certeza
que falho na tarefa, pois Sophia franze a testa, me analisando.
— Está tudo bem? — Ela pergunta, genuinamente preocupada.
— Está sim, eu só estou com dor de cabeça — respondo vago. — O dia não
foi dos mais fáceis hoje.
— Quer que eu pegue um remédio? — Ela se adianta, mas eu nego, parando-a
com um sinal de mão.
— Não, está tudo bem. Eu só preciso descansar. Sua mãe está em casa? — Eu
pergunto, e quando ela confirma, eu respondo, já andando em direção ao meu
quarto. — Então pede para ela levar meu almoço no quarto, por favor? E fica de
olho na Lilith; eu só preciso dormir um pouco.
Seu sorriso morre e ela concorda enquanto eu me afasto.
Eu só preciso ficar sozinho e manter distância.
Eu só preciso voltar para a minha concha de tristeza e luto.
Para todos os envolvidos, lá é o lugar mais seguro para estar.
[…]
Passei o resto do dia trancado no quarto. Almocei, cochilei e tomei café da
tarde lá, e nos intervalos entre uma coisa e outra, pendurei quadros de Julia por
todas as paredes. Quadros de nosso casamento, de nossa família, dela dançando.
Eu preenchi todos os espaços vazios com ela, porque ela é a única que deve
ocupar minha mente, e se eu estou deixando outra pessoa entrar em meus
pensamentos, o problema está em mim.
Só em mim.
Inferno. Só faz oito meses que minha mulher morreu. Eu nem deveria estar
me preocupando com isso. É cedo demais para sequer olhar para o lado. De
repente eu me sinto sujo, culpado, egoísta… A pessoa que eu mais amei na vida
está a sete palmos do chão e eu estou preocupado com sentimentos que com
certeza minha carência está inventando. É injusto com Júlia, com Sophia,
comigo.
São coisas da minha cabeça. Isso chega a ser ridículo.
Antes de dormir, vou até o quarto de Lilith lhe dar um beijo, e respiro fundo
de alívio quando não encontro Sophia por lá e a minha filha já dormindo. Pouso
minha boca em seu cabelinho escuro e suspiro, mentalmente pedindo desculpa
por toda a minha ausência no dia de hoje.
— Te amo, mocinha — digo baixinho e ela se remexe, puxando o cobertor
para cima. Minha filha é friorenta, assim como a mãe, e eu agradeço a Deus
ainda poder ver um pouco da minha mulher no pedaço de amor que Ele permitiu
continuar comigo, e percebo que, pela primeira vez desde que Júlia se foi, eu sou
genuinamente grato por algo. — Te amo mais do que tudo, e antes de qualquer
coisa, sempre virá você.
[…]
Voltando para os meus aposentos, passo em frente ao quarto de Sophia. A luz
está acesa, então olho no relógio do corredor para constatar que ainda é menos
de dez da noite. Provavelmente ficar o dia todo trancado dentro do quarto tirou
minha percepção de tempo, então eu balanço a cabeça e me obrigo a voltar
rápido para minha cama, antes que eu cometa o desatino de bater em sua porta
agora que eu sei que ela está acordada.
Deito-me e com muito esforço, finalmente durmo, mas meu sono não se
prolonga muito e eu acordo assustado, repleto de imagens de Sophia em minha
cabeça.
Mas que inferno é esse?
Ah, que ótimo! Agora eu estou sonhando com ela.
Sento-me na cama, irritado, e esfrego os olhos. Jogo a cabeça para trás e as
imagens de poucos minutos atrás voltam com força total. O sorriso que ela tinha
em meu sonho, sua risada discreta, mas cheia de vida, o brilho do seu olhar.
Nós estávamos de mãos dadas e ela parecia tão feliz.
Meu Deus do céu, no que eu estou pensando?
Calço um chinelo e vou até a cozinha. Preciso de um copo de água fresca para
colocar os pensamentos no lugar certo. Sem me preocupar em vestir uma camisa,
já que todos na casa dormem, eu saio do meu quarto em direção à cozinha, ainda
meio trôpego pelo sono e muito irritado pelas peças que minha mente anda me
pregando.
Quando entro, acendo a luz ainda esfregando os olhos e tomo um susto
quando vejo Sophia sentada na mesa, no escuro, comendo um pedaço de bolo e
tomando uma caneca enorme de leite.
— Santa mãe de Deus! Quer me matar do coração? — Coloco a mão no peito,
sentindo os batimentos cardíacos acelerados. Aperto os olhos em direção ao
relógio da cozinha e vejo que são três horas da manhã. — O que você está
fazendo aqui às três horas da manhã?
— Deu fome — ela ri, colocando a mão em frente à boca cheia. — Desculpa
ter te assustado.
— Por que você está comendo no escuro? Nem dá para enxergar o prato
direito. — Apesar do susto, eu acabo achando graça. Ela parece quase culpada
por estar ali.
— Não queria acordar ninguém, só isso. — Ela diz e dá de ombros enquanto
dá mais uma mordida no pedaço de bolo. A cada dia ela parece mais confortável
em minha presença, mas comigo acontece exatamente o contrário. Quanto mais
eu me aproximo, pior me sinto.
Só que eu não devia fazer isso.
Ela não tem culpa das coisas que minha cabeça inventa. Ela sequer sabe o que
está acontecendo dentro de mim, e se eu ficar bancando o otário a cada cinco
minutos, ela vai se afastar, e será minha filha quem irá sofrer.
Abro a geladeira e tiro a garrafa de água, enchendo em um copo sem
responder absolutamente nada. Viro-o todo na boca, de uma vez, tentando tirar a
sensação de secura de minha garganta. Depois penso por um segundo e caminho
em direção à mesa, onde Sophia come seu bolo, olhando para mim quieta. Sento-
me em silêncio do outro lado, de frente para ela e pego a faca, cortando um
pedaço para mim também. Em silêncio, coloco-o na boca.
— Desculpa se eu te assustei, mesmo. — Ela finalmente diz, e eu sei que está
desesperada para acabar com esse clima esquisito. Coitada, ela sequer sabe o
motivo de eu estar agindo como um babaca antissocial.
— Tudo bem — olho para ela e sua expressão é tão cautelosa que é
impossível não rir. Ao mesmo tempo em que ela é forte e decidida, às vezes
Sophia pode parecer um bichinho acuado. — Eu que sou exagerado. André
sempre diz que eu tenho uma veia dramática.
— Como se ele não tivesse também. — Ela relaxa e sorri também. — Na
verdade, acho que ele tem duas.
Balanço a cabeça em concordância enquanto rio.
— As mãos da sua mãe são de ouro — mordo mais um pedaço com vontade.
— Esse bolo tá divino.
Ela ergue o olhar e vejo o orgulho antes dela responder, com um sorriso de
canto e um arquear triunfante de sobrancelha:
— Esse quem fez fui eu.
— Uau! — É a única coisa que eu consigo dizer, porque está realmente bom.
— Então quer dizer que além de cantora, você também é cozinheira? — Me
refiro aos momentos em que a peguei cantando escondida, e ela cora.
— Ai meu Deus, você me ouviu cantar? — Ela pergunta de olhos arregalados,
e toda a pose vai embora.
— Humrrum. Várias vezes — confirmo, e vejo-a quase sumir em sua cadeira.
— A única coisa que eu tenho a dizer é: sinto muito. — Quando ela ri, eu rio
também. — Minha voz é quase uma ofensa aos viventes.
— O que importa é a intenção — pisco para ela, e por mais inocente que esse
gesto possa parecer, vejo ela se retesar em seu lugar. — E não acho que sua voz
seja tão ruim assim.
Ela entorta a cabeça, dando um sorriso forçado, com a boca cheia de bolo,
deixando muito claro que não acredita em uma palavra do que eu havia dito.
— Ah, tá… — Ela diz quase rindo. Eu rio junto, porque a voz dela realmente
é péssima, o que eu jamais falaria para ela. Mesmo sendo uma voz terrível, eu
gosto de vê-la cantando pela casa, então eu não diria nada que pudesse fazê-la
parar com esse hábito. — Posso te fazer uma pergunta? — Seus olhos cravam
em meu peito descoberto, e só então me toco que estou esse tempo todo sem
camisa na frente dela.
— Claro, vai fundo.
Então ela aponta meu peito, mais precisamente minha tatuagem. — O que
significa Wanderlust?
Olho para baixo, em direção à imagem, e então começo a explicar:
— Wanderlust é uma palavra em alemão que pode ser traduzida como um
desejo intrínseco e profundo de viajar. — Ela presta muita atenção a cada
palavra que eu digo e eu acho isso muito legal; é como se ela quisesse absorver
tudo o que eu pudesse ensinar. — Na língua alemã é comum encontrar palavras
que representem sentimentos muito específicos, e que não encontramos tradução
exata em outras línguas, tipo nosso termo “saudade”, sabe? Wanderlust é uma
delas. O sentimento representado por Wanderlust é o de querer viajar pelo
mundo mais do que qualquer outra coisa. É não se sentir confortável apenas em
um lugar. É um interesse genuíno por conhecer novas culturas e explorar
ambientes ainda não conhecidos. Eu sinceramente acho que nenhuma outra
palavra me definiu tanto na vida. Foi por isso que eu virei piloto. Eu amo o céu,
mas amo ainda mais conhecer o que há debaixo dele, em diferentes lugares do
mundo. Às vezes não tenho muito tempo para parar em certos lugares para onde
viajo, mas dá para ter uma boa ideia de como o mundo é muito maior do que os
nossos olhos podem ver. O mundo é incrível, Sophia.
Enquanto eu explicava, seus olhos brilhavam de interesse genuíno. Ela parecia
maravilhada com cada palavra que eu dizia.
— Sua tatuagem é linda. — Ela disse com a voz quase fraca. — E realmente:
a palavra te define. Foi uma excelente escolha.
Seu olhar desce e se fixa em meu abdome. Abaixo os olhos, e percebo que seu
olhar está grudado em mim de uma forma quase fascinada. Tenho certeza
absoluta que ela não imagina que seu interesse em meu corpo está tão explicito.
Por dentro, meu coração queima, e por fora, minha pele arde, e mesmo me
recriminando com todas as forças, eu faço o mesmo que ela: meus olhos
vagueiam até encontrarem o decote de seu pijama simples, e pela primeira vez
eu reparo como o corpo de Sophia pode ser bonito, mesmo que ela faça de tudo
para escondê-lo. Seus ombros são finos, e os ossos da clavícula são delicados,
dando a ela um ar de fragilidade que não lhe compete, na verdade.
Sou tirado de meus pensamentos com a voz baixa e rouca de Sophia, atraindo
minha atenção:
— Você quer? — Quando ergo os olhos para seu rosto, assustado com suas
palavras, ela aponta o bolo, com a respiração um pouco mais rápida do que o
normal.
— O que?
— Bolo. Você quer mais bolo? Ou posso guardá-lo?
Meu Deus, eu vou ficar louco. Ela está falando do bolo. Da porra do bolo.
Alexandre, se situa!
— Não, obrigado. Eu vou voltar para o quarto… — Começo a falar e ela
começa a se mexer junto, tentando levar o bolo com uma mão enquanto empurra
a cadeira com a outra. Pego o bolo das mãos dela e levo até a bancada da
cozinha, facilitando o processo, porque chega a ser ridículo como estamos
atrapalhados no meio da cozinha. — Deixa comigo.
Ela concorda e olha para os lados, tentando a todo custo, desviar o rosto.
O que quer que tenha acabado de acontecer, aconteceu em profundo silêncio, e
nenhum de nós admitiria nada. Mesmo que nada demais houvesse sido dito, eu
sabia que havia algo ali, e não era só de minha parte.
Eu precisava dizer alguma coisa que quebrasse isso, esse clima tenso e
carregado que havia acabado de se instalar entre nós. Precisava fazer com que
esse sentimento esquisito deixasse de existir.
Não queria que houvesse mais essa tensão entre nós, pelo bem da amizade que
estávamos criando, e principalmente, pelo bem de Lilith.
Principalmente por minha filha.
— Preciso voltar a dormir… — Tomo coragem e digo algo que sei que irá
cortar isso em segundos: — Eu sonhei… com a Júlia. — Os olhos dela se
arregalam e eu sei que alcancei meu objetivo, mesmo vendo-a engolir em seco.
A essa altura, eu já sabia que não estava imaginando as reações de Sophia, até
porque elas eram idênticas às minhas. — Nunca é fácil. Ela não sai da minha
cabeça e… — continuo e ela não reage, mas seu olhar ganha uma nota de
tristeza que parte meu coração ao meio, então eu apenas encerro aquela conversa
estranha. — Boa noite, Sophia.
— Boa noite, Doutor Alexandre. — Sua voz sai em um tom baixo, quase
culpado, me fazendo voltar a ser o Doutor Alexandre, mas eu sabia o motivo: se
isso era difícil para mim, eu tenho certeza que também era para ela. Com certeza
culpa era algo que eu não sentia sozinho.
Eu menti, eu sei.
Mas precisava mentir para não a perder, mesmo sabendo que não se pode
perder o que não é seu.
CAPÍTULO 13 – UM LUGAR FELIZ

Alexandre
Acordo tarde depois da noite particularmente diferente que tive ontem. Tomo
um banho rápido e visto apenas uma calça de moletom e uma camiseta de malha
leve. Quero aproveitar que estou de folga, e ir até a academia. Com o ritmo
frenético dos voos, e as tentativas de ficar o mínimo possível em casa, eu quase
não tenho tido tempo de me exercitar, e meu corpo está pedindo socorro.
Entro na sala e Lilith está desenhando na mesinha de centro. As pernas estão
jogadas no tapete, e tem lápis de cor e giz de cera espalhados por todo o cômodo.
Sorrio ao vê-la tão concentrada em sua tarefa e me aproximo, olhando seu
desenho por trás e me surpreendo com a qualidade do desenho, para uma criança
de apenas seis anos: uma bela paisagem verde, como se fosse um grande jardim.
O céu é de um azul límpido, e algumas flores e árvores estão espalhadas pela
imagem.
Parece um lugar feliz.
Meu coração se aperta, e eu me pergunto se depois da morte da mãe, minha
filha precisa inventar lugares felizes para se sentir melhor. Sinto-me um péssimo
pai de repente, fugindo dos meus problemas como se fosse uma criança birrenta,
enquanto a verdadeira criança da história está ficando cada vez mais presa em
casa, com babás e empregadas, que apesar de serem maravilhosas, não são nem
seu pai, nem sua mãe.
Uma angústia sobe por minha garganta e percebo que estou condenando
minha filha a ter uma vida tão triste quanto a minha, e isso soa muito como
egoísmo.
— Bom dia, meu anjinho — eu sussurro, e ela dá um pulo, se virando e me
abraçando.
— Oi papai! — Seus olhinhos brilham. — Não sabia que você estava em
casa!
Sua felicidade é tão genuína que corrobora tudo o que eu havia pensado
segundos atrás. Minha filha sente minha falta, e eu me sinto pior ainda. Desisto
da academia no mesmo segundo.
— Hoje é a folga do papai, e o dia é só seu. Vamos fazer tudo o que você
quiser, o que acha?
Um enorme sorriso se espalha e ela me abraça de novo, apertado. Seus
bracinhos magros em volta do meu pescoço me prendem, como se ela não
quisesse me deixar ir, e meu coração fica pequeno dentro do peito. Às vezes eu
me surpreendo com a minha criancice sobre algumas coisas.
— Então vem desenhar comigo! — Ela corre para pegar uma folha em branco
e eu me animo quase tanto quanto ela. Tiro os tênis e fico só de meia, sentado no
tapete ao seu lado. Passamos alguns minutos concentrados em nossos desenhos,
e enquanto minha filha continua trabalhando com afinco na sua imagem, eu
desenho aviões no céu e coloco todo meu esforço ali. Nunca fui bom desenhista,
mas por minha filha, eu posso me transformar em qualquer coisa, só para fazê-la
feliz.
De repente me dou conta de que está faltando alguém nesse cenário e olho
para os lados. A casa está em silêncio e eu estranho. Só sei que Cilene está em
casa, pois ouço o barulho de música vindo de seu inseparável radinho que fica na
ilha da cozinha. Não tem sinal nenhum de Sophia por ali, então me viro
despretensiosamente para Lilith e pergunto:
— Filha, cadê a Soph? Não era para ela estar cuidando de você? — Aperto os
olhos e minha filha responde, sem nem erguer a cabeça.
— Hoje a Sosô tinha médico. Ela me falou ontem… — Dou risada quando
vejo que ela pinta com tanto afinco que sua linguinha está para fora, no canto da
boca. — Aí hoje ela saiu bem cedinho, eu ainda estava doimindo… Mas ela
pediu pa Cilene ficar comigo, papai. Eu já sou gandi, vocês não pecisam ficar se
peocupando…
— Grande, né? — Eu rio da autoconfiança da minha filha, e percebo que sua
resposta é confirmada quando vejo a cabeça de Cilene apontar na divisa da porta
da sala com a cozinha. Ela dá um sorriso e eu balanço a cabeça, dizendo que
agora eu estava cuidando da Lilith, e que ela não precisava se preocupar. Pela
primeira vez em dias, somos só eu e minha filha no ambiente, e eu sinto falta de
Sophia, mesmo sabendo que ela volta logo. Tudo ficava meio silencioso sem ela,
para ser sincero.
Voltamos para os nossos desenhos e eu espio pelo canto dos olhos como está
indo sua pintura. Agora, na imagem que já era bonita, há uma pessoa vestida de
branco no centro do papel. Solto meu lápis com cuidado na mesa quando
percebo que ela está desenhando Júlia. O cabelo curto e o sorriso radiante
denunciam que é a sua mãe que minha filha desenha com tanta vontade. Tento
puxar conversa, para extrair mais informações:
— O que você está desenhando?
Minha filha vira para mim com um sorrisão no rosto, e diz, como se fosse a
coisa mais natural do mundo:
— Eu vi a mamãe ontem, mas ela não veio aqui. Acho que foi sonho, papai,
porque eu encontei ela nesse jaidim aqui. — Ela levanta o desenho e me mostra
com a ponta do lápis o lugar bonito que havia desenhado. — A gente conveisou
bastante.
Remexo-me no lugar, tomando coragem, e decido ir mais a fundo. Agora que
não tinha ninguém nos ouvindo, eu queria saber tudo o que Lilith estivesse
disposta a me contar, para assim decidir se acredito de vez em minha filha e
assino meu atestado de loucura, ou se procuro um profissional que possa ajudá-
la. É muito comum pessoas sofrerem de estresse pós-traumático, e talvez
conversar com um psicólogo infantil ajudasse Lili a passar por esses meses
difíceis.
Tento entrar na dela, tratando do assunto com tanta naturalidade quanto
possível.
— E sobre o que vocês conversaram? — Eu me inclino, pegando o lápis azul
para colorir o céu que eu havia desenhado, e vejo que meus dedos tremem pela
expectativa do que ela vai me dizer.
Ela dá de ombros enquanto continua pintando, e fica claro como aquilo tudo é
simples para ela. Talvez por ser sua mãe, talvez pela sua pureza de criança que
ainda não foi manchada pela incredulidade da vida adulta…
— Ela peiguntou da escola, da vovó, de você, papai… — Ela ergue os olhos
para mim e sorri. — Sabe, a mamãe também sente nossa falta igual a gente sente
a dela. Eu pedi pa ela voltar, já que tava com saudade, mas ela disse assim: “com
o tempo tudo vai ficar mais fácil pa todo mundo”. E se a mamãe disse, eu
aquedito. Ela nunca mente, né, papai?
— É filha? Ela te disse isso? — Eu pergunto e sinto meu rosto esquentar.
Lágrimas indesejadas se acumulam em meus olhos e por mais que minha cabeça
insista em dizer que eu estou louco, meu coração sabe que Júlia falaria algo
exatamente assim. Eu quase posso ouvir sua voz repetindo as mesmas palavras,
na verdade.
— Disse papai. — Ela não olha para mim, continua pintando tranquilamente.
Agradeço por isso enquanto seco as lágrimas de qualquer jeito com a barra da
camiseta. O que eu menos quero é que ela me veja vulnerável assim, senão ela
vai parar de falar. E eu preciso que ela fale.
Que ela fale até eu acreditar.
Eu quero acreditar tanto quanto eu preciso de ar.
— E ela falou da Sosô também. — Ela se vira, mas graças a Deus parece não
perceber meu choro. — Disse que a Sosô é muito boazinha, que eu devo
respeitar e obedecer ela…
— Isso é verdade, filha. Você deve sempre tratar a Sosô muito bem, como a
mamãe e o papai te ensinaram a tratar todas as pessoas.
— E ela disse que a Sosô seria uma ótima mamãe pa mim, papai. — Quando
eu acho que nada pode me surpreender mais do que isso, ela continua a falar: —
Ela disse que só falta você parar de brigar com você mesmo e aceitar.
[…]
— Você está me dizendo que a Lili está vendo a Júlia? — André arqueia a
sobrancelha para mim, como se eu estivesse louco, e eu não o julgo. Se fosse eu
no lugar dele, pensaria o mesmo.
— Eu sei que é difícil de acreditar…
— Nossa, ainda bem que você sabe. — Ele se joga na poltrona à minha frente
e eu lhe entrego um copo de uísque com gelo. André raramente bebe, mas acho
que devido a essa conversa mais do que estranha, ele achou melhor pedir algo
forte.
— Mas eu sei que é verdade, André — me sento de frente para ele, me
inclinando e olhando nos olhos do meu irmão. — Eu tenho certeza; eu sinto. A
Lilith está falando a verdade. Eu até cogitei ser estresse pós-traumático, mas ela
está bem. Ela fala disso com naturalidade, e com palavras que só a Júlia usaria.
— Abaixo a cabeça e o tom da minha voz. — André, ela fala de coisas que só o
meu coração sabe. Não tem como certas coisas saírem da cabeça da Lili.
— Do que você está falando? — Ele aperta os olhos e franze a testa, como se
não tivesse entendendo nada. Eu nunca tive segredos com meu irmão, mas isso é
algo… Algo que eu quero guardar para mim. O que eu ando sentindo por Sophia
não pode, de forma alguma, ganhar o mundo.
— Deixa para lá — eu digo e me levanto, colocando as mãos nos bolsos e
indo em direção às janelas de vidro do escritório. Dali posso ver o jardim, então
observo Lilith sentada na mesinha de café que temos lá, enquanto Soph, ao lado
dela, lê um livro. Minha filha presta atenção, completamente absorta no que está
ouvindo, e meu coração se aperta.
Júlia tem razão.
Ela seria uma ótima mãe.
Minha filha se sente tão em casa com ela, que mal consigo descrever. Mas daí
a imaginar que ela seria e ela realmente ser, são duas coisas completamente
diferentes. Eu não posso fantasiar sobre isso.
Não mais do que eu já venho fazendo em meu íntimo.
— Deixa para lá coisa nenhuma – André fala atrás de mim, e eu vejo seus
olhos se direcionarem para o mesmo lugar que os meus. Ele dá um suspiro
resignado e então solta: — O que ela falou sobre a Sophia, Alexandre?
Viro-me, e o encaro intrigado.
— Quem te disse que ela falou algo sobre a Sophia?
Ele ri.
— Eu conheço essa sua expressão psicopata de quem não consegue tirar algo
da cabeça. Anda, desembucha. Me deixa entender o que está acontecendo aqui
dentro. — Ele cutuca meu peito com seu dedo indicador e eu bufo, passando as
duas mãos pelo cabelo. Depois me sento de novo e respiro, antes de finalmente
falar, já que mentir para André não era uma opção por dois motivos: eu nunca
mentia para ele, e ele sempre sabia quando eu estava mentindo sobre algo, não
importa o que seja.
— Ela disse que a Sophia seria uma ótima mãe para Lilith.
— E…?
— E que só falta eu aceitar.
— Uou! — Ele diz, se reclinando nas costas da poltrona. — Até agora eu
estava ouvindo isso e achando até engraçadinho, mas agora eu acho que preciso
me intrometer, irmão. Você acreditar nas coisas que a Lili fala, eu até entendo.
Mas por favor, não envolva uma inocente nisso tudo. Não crie coisas na sua
cabeça que você não conseguirá corresponder na vida real, e principalmente, não
se aproxime da Sophia por conveniência. Ela não merece, Alex. Essa menina já
sofreu demais. Se for para alguém ficar com ela, que seja por amor, não por
necessidade, e muito menos por egoísmo.
— Eu não disse nada disso — tento me defender, mas ele bate no meu joelho,
depois dá com os dedos na lateral da minha cabeça, um sinal claro de que sabia
tudo o que se passava ali.
— Mas pensou. Eu conheço sua mente tanto quando conheço a minha, e eu
tenho certeza que essa história já está plantada nela há dias. Mas eu estou
avisando: ao primeiro sinal, eu vou ser o primeiro a interferir, pelo bem de todos
vocês. Não deixe que algo que você quer que seja verdade destrua o que você já
tem de concreto. Você quer conveniência, e é muito conveniente se envolver
com quem sua filha ama. É menos trabalhoso e eu te conheço o suficiente para
saber que você faria isso só pela Lilith. Mas pensa na outra parte. A Soph está te
ajudando muito, e ela merece respeito e consideração, mas principalmente: ela
merece sentimentos verdadeiros.
— Eu sei disso tudo, e eu acho que você deveria saber com quem tá falando,
porra. Sou eu, André. Eu jamais a magoaria, pelo menos, não propositalmente —
eu falo meio exasperado, e ele me olha como se desnudasse minha alma. É
insuportável o tanto que ele me conhece.
Ele sorri então, meio debochado, e volta a pegar seu copo.
— Ótimo. Eu não quero mesmo esquecer que você é meu irmão, mas acredite
em mim: se tratando da Sophia, eu esqueço se precisar.
CAPÍTULO 14 - SENTIMENTOS INVÁLIDOS

Alexandre
Depois que André se vai, eu fico às voltas pela casa. Sophia coloca Lilith para
dormir, e eu fico procurando o que fazer, inquieto.
A conversa com meu irmão ecoa sem parar em minha cabeça, e eu não sei
mais o que pensar. Ele tem razão. Eu não posso simplesmente me jogar no que
eu acredito ser verdade sem pensar nos sentimentos de Sophia, e até mesmo, nos
sentimentos da minha filha.
Nos meus sentimentos, porra.
Não posso simplesmente querer tapar um buraco abrindo um maior ainda, e
enquanto eu penso em tudo, minha vontade é gritar, gritar até meus pulmões
racharem, até toda essa dor e confusão se esvaírem de dentro de mim.
A verdade é que eu não aguento mais.
Eu não sei seguir em frente, e eu sei que não dá pra voltar para trás.
Simplesmente não dá pra desfazer o que aconteceu.
Eu me sinto amarrado em algo em que eu não quero estar e isso dói como uma
queimadura em carne viva. A única coisa que eu sei é que estou lutando contra
sentimentos fortes demais dentro de mim, de uma forma que eu nunca achei que
precisaria fazer.
Enquanto meu coração, meu corpo e minha mente brigam, eu vou até o
aparador da sala. Aproveito o silêncio da casa, aproveito que todos
provavelmente dormem, e faço algo que há muito eu não fazia: encho meu copo
de uísque puro, vou até o rádio e coloco a música preferida de Júlia, e então eu
me sento na poltrona, imaginando-a dançar para mim enquanto me sinto sangrar
por dentro.
Encher meus poros dela já não estava mais ajudando, mesmo assim, eu
tentava como um louco.
[…]
Viro mais um copo de uísque puro e aprecio a queimação na garganta,
fechando os olhos. Então os abro, sentindo o ardor tão característico subir pelo
rosto. Sirvo outra dose, pensando em quantas serão necessárias para amortecer
essa dor de vez.
Provavelmente vou me tornar a porra de um alcoólatra.
— Alexandre? — Olho para trás e vejo Sophia se aproximando, o barulhinho
chato de sua cadeira em meus ouvidos. Droga, eu realmente preciso ver isso para
ela. Não respondo, apenas me viro de volta para frente, uma forma muda de
dizer que eu queria um pouco de privacidade.
Eu não gosto de ser mal-educado com Sophia, mas nesse momento, ela é
praticamente o motivo de tanta confusão dentro de mim, então ficar longe dela
uns míseros minutos não era pedir muito, era?
— Você precisa de alguma coisa? — Ela insiste, sempre solícita. — Lilith já
dormiu e eu também vou me deitar, se você não quiser mais nada.
— Pode ir Sophia, está tudo bem. Você sabe que não é minha empregada, não
se prenda por mim. — Batuco os meus dedos na madeira do encosto da poltrona
enquanto rodo o copo de uísque na outra mão, sem olhar diretamente para ela.
Eu sabia que já estava bem fora do meu normal, e sinceramente, não queria que
Sophia estivesse aqui nesse momento. Eu não sabia o que era capaz de falar ou
pior, de fazer, com ela tão perto.
— Tem certeza? — Ela estica o pescoço, e quando eu não me viro para
responder, ela dá a volta com sua cadeira, ficando de frente para mim. Assim,
sentado, é muito mais fácil olhar nos olhos castanhos acobreados dela. Eu quase
podia mergulhar naquela imensidão. Os olhos dela falam tanto, de tantas formas,
que é impossível descrever. Se ela soubesse como seus sentimentos por mim
ficam claros quando ela me olha assim, ela jamais olharia novamente.
Principalmente porque eu temo que os meus fiquem explícitos também.
Ela chega um pouco mais perto de mim, e me esforço para não me engasgar
de nervoso. Estou com medo de que, se a oportunidade surgir, todos aqueles
sentimentos que guardo no peito se libertem, e a decisão do que a gente ia ser
um para o outro não estará mais em minhas mãos. Até agora ela me pareceu
muito maior e muito mais forte do que todas essas coisas contra as quais estou
sempre lutando, mas até onde nós podemos ir sem nos machucarmos?
Seus olhos ganham uma nota sincera de preocupação, e eu sinto o efeito disso
na boca do estômago. Eu não saberia dizer se é como um soco ou se são as
malditas borboletas que eu só senti com Júlia durante minha a vida toda.
— Absoluta — não forço um sorriso sequer. Mesmo que eu não queira sentir,
um estranho sentimento de raiva começa a subir por minha garganta, me
acusando, sem dó nem piedade, por eu estar gostando de outra pessoa tão cedo,
de uma forma tão intensa. Por eu estar gostando de outra pessoa quando eu jurei
não gostar de mais ninguém.
Sem fazer menção de sair dali, ela se vira, olhando o quadro de Júlia que eu
encarava até então. Um sorrisinho de canto surge em seu rosto e eu não sei como
não a puxei ali mesmo e a beijei. Ou como não me dei um soco por pensar nessa
possibilidade.
— Ela era linda… — Sua voz sai cheia de admiração. — Eu lembro a
primeira vez que ela conversou comigo sobre tudo o que estava acontecendo em
minha vida, logo quando eu parei de andar. O carinho, a atenção, a bondade.
Deus, eu nunca quis tanto ser outra pessoa na vida, Alexandre… — Ela se vira
novamente, e seus olhos queimam um buraco em mim. Sinceridade e notas de
admiração transbordam de seus lábios a cada palavra que ela diz. — Naquele
dia, eu quis muito ser como ela. E desde então eu tento, sabe? Eu tento ajudar as
pessoas, ser gentil, ser luz, mesmo quando tudo é escuridão. Desde que eu
conheci a Dona Júlia, eu tento ser como ela todos os dias.
Suas palavras, por mais bonitas e cheias de admiração, despertam algo em
mim. Algo escuro. Eu não quero que ela tente ser como Júlia, porque ela é ela!
Com defeitos, qualidades, problemas e limitações. Ela é ela, e é a coisa mais
linda do mundo.
Assim como Júlia também era.
Eu não quero que ela seja como Júlia, porque isso seria tentar tomar o lugar
dela em nossas vidas. Na vida da minha filha, e na minha também.
Eu jamais aceitaria isso, porque é errado de muitas formas que eu nem sei
como começar a descrever.
A raiva cresce em mim como uma planta trepadeira, e antes que eu possa
medir as palavras, elas já estão fora da minha boca, fazendo com que eu me sinta
um lixo de ser humano meio segundo depois de proferi-las:
— A Júlia dançava, Sophia. Sinceramente, eu não acho que você possa ser
como ela.
Quando meus olhos alcançam os de Sophia, eu vejo o tamanho da merda que
eu falei. A vergonha toma seu rosto e ela abaixa a cabeça, mas não sem antes eu
ver as lágrimas se acumulando em seus olhos.
Porra! Que merda! O que eu fiz? Por que eu falei isso?
Eu sou um idiota. Me deixei levar pela mágoa e pelo que estou sentindo por
ela, e a feri de propósito, como um bicho acuado tentando se defender de uma
ameaça que não existe.
Jesus Cristo, como eu sou babaca.
— Sophia… — Eu tento chamá-la, mas ela já está virando sua cadeira, sem
falar nada. Eu a magoei tanto que ela sequer iria responder.
Quando eu pego em seu braço, ela se vira para mim, sem se importar mais em
esconder as grossas lágrimas que rolam por seu rosto.
— Você tem razão, Doutor Alexandre. Eu jamais serei como ela. Obrigada por
me lembrar disso. — Vejo seu queixo tremer pelas lágrimas e pela raiva. — Não
que você precisasse. Acredite, eu percebo que sou inválida a cada coisa que eu
tento fazer todo dia e não consigo. — Ela bate as mãos em sua cadeira com ódio,
me deixando ciente do objeto.
Eu preciso consertar isso.
— Soph, eu não quis dizer isso. Por favor… — Minha voz sai engasgada, e,
meu Deus, como dói vê-la tão triste, principalmente por saber que fui eu que fiz
isso quando ela só estava tentando me ajudar.
— Quis. Quis e disse. — Ela olha profundamente em meus olhos antes de
falar de forma firme, como eu nunca havia visto antes: — Que bom saber que o
álcool te dá coragem para falar o que você jamais falaria sóbrio. É uma forma
eficaz de saber o meu lugar nessa casa.
— Não, espera. — Eu me levanto, mas ela continua indo para longe. — Me
perdoa, Sophia. Eu estou mal, estou bêbado e com saudade. Eu tenho tanta coisa
na minha cabeça, que se você sequer soubesse…
— Eu não vou saber. Eu não preciso saber e não quero saber. — Ela se vira
com raiva, e me diz: — Eu sou só a empregada aleijada, Doutor Alexandre. Não
perca seu tempo. Tenha uma excelente noite.
— Você é muito mais do que uma babá aqui nessa casa, Sophia. Porra, se você
soubesse! — Eu grito, tentado a falar de uma vez tudo o que estou sentindo, para
acabar logo com isso.
Seguro o seu pulso em uma tentativa de me explicar, mas sinto seus dedos
magros e frios tirarem minha mão de lá.
— Eu diria para você que está na hora de parar de beber, mas quem sou eu,
não é? De qualquer forma, é melhor você descontar suas frustrações na bebida
do que em pessoas inocentes. Ressaca se cura com muita água e um
comprimido; os sentimentos das pessoas são um pouquinho mais difíceis.
Ela se vira para ir embora, e por mais que eu queira implorar para que ela me
perdoe, eu não posso: é melhor que ela se vá. Ela está perto demais e sua
presença é tão equivocada que, pela primeira vez, não tenho controle de minhas
reações, então eu a deixo ir, mesmo ficando com um buraco no coração ao vê-la
se afastar chorando.
CAPÍTULO 15 – ABRAÇANDO O CÉU

Alexandre
No dia seguinte minha cabeça lateja. Parece que tem uma maldita escola de
samba aqui dentro.
Sigo os conselhos raivosos de Sophia e bebo muita água e um comprimido
para dor. Por mais que eu não queira, preciso ir trabalhar hoje, então me arrumo
lentamente, tentando ao máximo prorrogar o momento de descer e encarar quem
eu tanto magoei na noite passada.
Porque, meu Deus, a merda que eu fiz foi colossal.
Acordei hoje torcendo para tudo não tivesse sido um sonho, mas eu sabia que
não era. Eu tinha estragado toda a amizade e confiança que havíamos construído
durante esses meses, e isso é vergonhoso demais, porque sequer há um motivo
para eu ter reagido daquele jeito. Minha cabeça só ficou inventando motivos
para eu repeli-la, mas eram motivos que eu sequer acreditava. Sophia nunca
tentaria tomar o lugar de Júlia, e isso qualquer pessoa que a conhece
minimamente sabe.
Eu já disse que sou um idiota?
Pego meu quepe e vou até a sala, torcendo para que eu não encontre as malas
de Sophia na porta, ou até mesmo seu olhar triste, porque eu não sabia o que era
pior. Outra dose disso eu juro que não aguento, não mais do que já presenciei
ontem.
Encontro minha filha pronta para a escola em seu uniforme azul e branco, e
quando olho para trás, vejo Soph entrando com a mochila dela nas mãos. Ela
enfia cadernos lá dentro e o pequeno estojo de Lili. Está tão presa em sua tarefa
que sequer percebe minha presença ali.
— Lili, eu duvido que você use tanta coisa assim num dia só e… — Quando
ela ergue os olhos e me vê ali, seu sorriso morre. — Bom dia, Doutor Alexandre.
A Lilith já está quase pronta para a escola, o senhor pode aguardar só eu dar o
café dela?
Meu coração se afunda com a frieza e o tom profissional com que ela me trata.
O estrago foi realmente feio.
— Bom dia, Soph. Claro que eu espero, que pergunta. Você já tomou café?
Quer tomar conosco? — Eu me atropelo nas frases, falando sem parar.
— Obrigada, mas eu vou tomar depois que vocês saírem. — Ela aponta a
cozinha e eu entendo que ela quer ir preparar o café da minha filha. Tento falar
mais alguma coisa, mas minha cabeça não pensa tão rápido, e antes que eu tenha
a chance, ela se afasta.
Lilith desce do sofá em um pulo e olha para mim, seus olhinhos com certa
nota de tristeza. Ela puxa meu uniforme, uma forma de pedir colo que há muito
tempo ela não usava comigo.
Quando eu a pego, ela olha para o quadro de Júlia e dá um suspiro. Depois,
me encara com aqueles olhos grandes que lembravam tanto os de sua mãe.
— Mamãe disse que às vezes nem te reconhece mais. — Ela diz, e
provavelmente não faz ideia do impacto que aquilo tem em mim. Se ainda havia
qualquer dúvida de que Lili realmente via Júlia, essa dúvida acabava de ser
aniquilada. Eu sabia exatamente do que minha mulher estava falando.
Júlia, que nunca me julgava, estava fazendo aquilo depois de morta. E porra, a
dor disso é quase tão grande quanto seria se ela estivesse aqui, na minha frente,
apontando o dedo na minha cara.
Olho para o quadro e sinto minha garganta fechar.
— Eu sei, meu amor… — digo, olhando em direção à enorme foto na parede.
— Nem eu me reconheço mais. Me perdoe pela decepção.
Minha filha passa os bracinhos ao redor do meu pescoço e sinto seu coração
bater junto ao meu.
— A mamãe também vem te visitar, papai? — Ela pergunta com o rosto
colado em meu ombro, a voz abafada pela minha roupa.
— Não, meu amor. Esse privilégio é só seu. — Meus olhos se enchem de
lágrimas por todas as coisas que vinham acontecendo, todas ao mesmo tempo,
como uma bola de neve. — Mas eu a sinto bem aqui, pertinho, todos os dias. E
eu prometo que vou fazer as coisas do jeito que ela ia gostar que eu fizesse, tá
bom?
Minha filha balança a cabeça.
— Eu sei, papai.
E se ela sabia, estava de bom tamanho para mim. A única coisa que realmente
importava nesse momento era saber que minha filha acreditava em mim.
E o perdão de Sophia, claro.
[…]
Voltei tarde da companhia, e como esperado, Lilith já estava dormindo. Fui até
o seu quarto e lhe dei um beijo de boa noite como todos os dias. Depois, ao invés
de ir para meu quarto, parei em frente ao quarto de Sophia. A luz acesa lá dentro
me dizia que ela ainda estava acordada, mesmo sendo muito tarde. Pondero por
um segundo, pensando que talvez ela queira ficar sozinha, mas no fundo eu sei
que é só minha covardia falando mais alto.
Eu preciso falar com ela. Preciso me desculpar do jeito certo, mesmo que eu
não saiba qual jeito é esse.
Fecho os olhos, pensando no que dizer para ela, se ela aceitar me ouvir, claro,
e apoio a cabeça na porta. O covarde em mim quer ir para o quarto e esperar que
o tempo resolva tudo sozinho enquanto finge que nada aconteceu, mas sei que
não posso. Não posso porque isso seria dizer sem palavras que eu não estava
arrependido do que falei, mas eu estava. Por Deus, como eu estava.
Ergo a mão e bato de leve na porta. Preciso encará-la.
A princípio ela não responde. Bato de novo, dessa vez mais forte.
— Soph? — Ela não responde, mas sei que está próxima a porta; o barulho de
sua cadeira a denuncia, e pela primeira vez eu gosto disso. — Eu preciso falar
com você, posso entrar?
De novo ela não fala nada, mas dessa vez ouço a porta se abrindo. Quando ela
me encara não vejo o habitual sorriso lindo com o qual estou acostumado, mas
também não vejo mágoa ou raiva, eu vejo algo pior: uma tristeza inexplicável.
Eu deveria saber que Sophia não é alguém de guardar sentimentos ruins, nem
mesmo se ela quisesse. Mas a verdade é que eu preferia que ela guardasse,
porque simplesmente não estava preparado para a dor que surge em meu peito
quando eu vejo o que causei a ela.
Ela me dá espaço para passar e fecha a porta. Certamente não quer que Lilith
ouça o que temos para conversar. Quando se trata de Lilith, o mundo poderia
estar desabando, e ela sempre fingiria que tudo está bem apenas para não fazer
minha filha sofrer.
Pensando nisso, eu me sinto ainda mais canalha pelas palavras que usei ontem
com ela.
— Como eu posso te ajudar, Doutor Alexandre? — Ela arruma sua postura na
cadeira, e por mais que isso me doa, também me faz querer rir. Meu Deus, essa
menina é muito forte.
— Para de me tratar assim, por favor. Tá me enlouquecendo! — Eu me
abaixo, e fico ao lado de sua cadeira, o mais próximo de seu rosto que eu
consigo. Eu quero que ela saiba o quanto serei sincero em cada palavra que eu
disser, e para isso ela precisa olhar nos meus olhos. Também sei como ela gosta
quando alguém fala com ela na mesma altura. — Me perdoa pelo modo como eu
te tratei ontem. Foi horrível e eu não vou culpar a bebida, porque não foi ela.
— Eu sei que não foi. — As palavras saem de forma dolorida de sua boca e
seus olhos começam a se encher de lágrimas, mas ela não altera a voz; continua
serena como sempre. — Você disse o que queria me dizer, mas eu te garanto que
não precisava, Alexandre. O que você fez foi chutar cachorro morto. Eu sei que
nunca serei como a Dona Júlia, que dançava graciosamente. Eu sei que ela
parecia um anjo quando estava nas pontas daquelas sapatilhas, e acredite, eu sei,
que isso está longe demais da minha realidade.
Se ela soubesse como parece um anjo para mim, muito mais do que qualquer
pessoa. Melhor: se ela soubesse que eu passei a acreditar em anjos depois que a
conheci.
— Você tem razão. Eu disse o que eu queria dizer e disse por que quis —
engulo em seco, porque sei o quão difícil será admitir certas coisas em voz alta.
— Mas eu disse pelos motivos errados, e não porque é o que eu realmente penso,
Soph. Eu estava machucado, e quando você disse que queria ser como ela, eu
temi que você pudesse tentar roubar o lugar dela. — Quando seu olhar de
indignação pousa sobre mim, eu me apresso em falar: — Eu sei que isso é
besteira, você não precisa me dizer. Mas eu ando sentindo coisas que estão me
desestabilizando mais do que eu posso aguentar. Eu quis te machucar de
propósito, Soph. Eu só não pensei que te machucar pudesse me machucar ainda
mais.
As lágrimas rolam como cascatas por seu rosto. Ela abaixa a cabeça e suas
mãos tremem, enquanto ela reflete sobre minhas palavras. Eu sei que deveria dar
seu tempo para digerir o que falei, mas eu simplesmente não consigo, então faço
a única coisa que eu consigo pensar em fazer: eu a abraço. Mas o mais
impressionante disso, é que mesmo sendo eu o causador dessa tristeza, ela deixa.
Ela me deixa abraçá-la.
E é quase como alcançar o céu.
Envolvo meus braços em volta do seu corpo, da melhor forma que consigo
com a cadeira entre nós e então ela se enrosca em mim, enquanto enterra o rosto
em meu ombro e chora. Fecho os olhos deixando a culpa me consumir, e passo
as mãos em suas costas, tentando tranquilizá-la. E enquanto ela chora, sei que
não é pelo que eu falei apenas. São anos e anos de dor muito bem escondida,
muito bem camuflada. São anos de preconceitos, desafios, tristezas,
impotência… São anos tentando mostrar para todo mundo que, assim como
qualquer pessoa, ela podia fazer o que quisesse. Eu e meu comentário ridículo
fomos só a gota d’água.
— Eu amo a sua filha. — Ela consegue falar em meio aos soluços. — E eu só
queria te ver melhor. Eu só queria parar de te ver sofrer tanto pela casa, sempre
bebendo, sempre chorando. Eu só queria que isso acabasse, mas eu não queria
tomar o lugar de ninguém, jamais. Eu não sou esse tipo de pessoa…
— Eu sei — sussurro próximo ao seu ouvido, enquanto acaricio seus ombros.
Depois enfio meu rosto em seus cabelos cheirosos, sem querer saber se isso é
adequado ou não. Pressiono os lábios na pele à mostra de seu ombro. — Eu sei,
me perdoa. Por favor, me perdoa.
Ela não me responde, mas aos poucos vai se acalmando. Os soluços morrem, e
sua respiração vai voltando ao normal. Ela se afasta levemente para me olhar e
eu fico tenso, porque tenho medo de suas próximas palavras. Tenho medo de que
ela avise que está indo embora. Tenho que ela saia dessa casa e nunca mais volte.
Tenho medo de perdê-la.
— Sabe por que doeu tanto? Não foram pelas suas palavras; eu já ouvi muito
delas desde que fiquei nessa cadeira, Alexandre. Foi por quem as disse. — Ela
me encara altiva. — Eu te admiro desde que eu tinha sei lá… Quinze anos? —
Ela se engasga com um riso de escárnio. — Me aproximar de você nesses
últimos meses e te conhecer melhor foi incrível para mim, e sinceramente, eu
nem sei por que… Porque às vezes você é bem irritante e cabeça dura. Às vezes
você é tão mal-humorado e maltrata quem não merece por coisas que ninguém
tem culpa. Eu continuo aqui porque, sabe se lá porque, eu ainda gosto de você, e
porque eu amo sua filha, mas, por Deus, você se fecha a cada mínima coisinha
que acontece e eu tenho que começar tudo de novo, em um esforço sobrenatural
para te tirar da bolha em que você se enfia e…
Ela não para de tagarelar sobre todos os meus defeitos, e um sorriso nasce no
canto da minha boca ao observar isso. De uma forma pouco convencional,
Sophia está admitindo que gosta de mim, e que não é de hoje. Essa certeza me dá
uma sensação gostosa no peito e meu sorriso se alarga, o que ela nem percebe,
porque continua falando sem parar.
Então, tamanha minha euforia por essa descoberta, eu interrompo o fluxo
incessante de palavras que ela diz sem nem parar para respirar da única forma
que consigo pensar no momento: com um beijo.
CAPÍTULO 16 – INFINITO PARTICULAR

Alexandre
Nosso beijo não tem nada de sexual, pelo contrário. É um beijo doce, calmo,
que faz meu coração bater mais rápido, mas ao mesmo tempo enche meus poros
de paz. No momento que meus lábios tocam os dela, tudo se esvai da minha
mente, e ficamos apenas nós dois, em um momento só nosso.
Aqui não há patrão, nem babá. Não há luto, nem as limitações de Soph; nem
minha filha, nem diferença de idade.
Aqui só há eu e ela.
E parece tão certo.
Minha boca captura seu lábio inferior e ela deixa escapar um leve murmúrio
de forma quase inaudível. Quando ouço esse barulhinho, perco completamente
meu controle. Sinto, de repente, que ela é tão minha.
Minhas mãos, que estão em seu rosto, descem para seus braços, e eu os puxo
para colocá-los em volta do meu pescoço, o que ela faz sem reclamar. Depois de
alguns segundos assim, com os braços envoltos em mim, sua mão sobe para
minha nuca. Sinto seus dedos escorregarem por entre os fios do meu cabelo, e
seu toque é delicado, assim como tudo o que ela faz.
Meus lábios abrem ainda mais os dela e minha língua busca a sua. Minha mão
vai para sua coxa à mostra pelo pijama curto e eu acaricio de leve a pele exposta.
Sei que ela provavelmente não sente completamente meu toque ali, mas nesse
momento, essa necessidade é minha: eu preciso senti-la. Ela está quente, e o
simples toque me deixa sem chão.
Nossas bocas continuam se acariciando com leveza, enquanto tento como
posso chegar mais perto de seu corpo. A cadeira está entre nós, mas eu não me
importo, e tento como posso ficar o mais próximo que consigo.
Quero beijá-la mais: mais forte, mais profundamente, por mais tempo.
Quero abraçá-la e fundir nossos corpos.
Quero me perder nela.
Antes, porém, de completar esse pensamento, sua boca para de se mover de
repente. Ela me empurra delicadamente e respira descompassada, tentando
recuperar o fôlego. Seus olhos me encaram, indo da minha boca até minha íris,
enquanto ela analisa minha expressão sem palavras. Seus lábios estão rosados
pela pressão dos meus, e seu peito sobe e desce com rapidez, como se ela ainda
estivesse tentando entender o que está acontecendo. Quando eu sorrio para ela,
ela quase retribui.
Quase.
Mas, tão rápido quanto meu impulso de beijá-la, a sua expressão muda. Ela
balança a cabeça como se quisesse tirar aquilo de sua mente e suspira forte,
quase brava, e é possível ver mágoa em sua feição. Em seguida, coloca uma das
mãos na boca em descrença e aponta o dedo indicador para mim.
— Me beijar para consertar as coisas foi cruel, Alexandre. — Ela diz com a
voz engasgada e uma dor lancinante no olhar.
Aquilo me acerta como um soco e meu sorriso some. É isso que ela pensa de
mim? É essa a impressão que eu venho passando desde que nos aproximamos?
Que eu posso fazer qualquer coisa sem medo das consequências?
Eu jamais faria isso com ela. Porra, eu jamais faria isso com qualquer pessoa!
— O que? — Eu pergunto e a olho bem dentro dos olhos. — Você realmente
acha que eu seria capaz?
Ela me desafia, me encarando de volta.
— Você realmente acha que eu tentaria tomar o lugar da Dona Júlia? — Seu
olhar ganha uma nota dura de repreensão e então eu entendo. É horrível ser
julgado por intenções que nunca tivemos.
Ponto para ela.
— Entendi Sophia.
— Será que entendeu mesmo, Alexandre? Você não pode fazer isso. Eu queria
que esse fosse um momento especial e único, não assim, uma forma de calar
minha boca e se desculpar por sua grosseria. Eu não quero um prêmio de
consolação, até porque eu também não sou um. — Ela deixa claro que jamais se
deixaria ser usada para que eu tapasse meus buracos emocionais, e, meu Deus, a
cada palavra que sai de sua boca, eu tenho mais certeza do que sinto.
Essa menina é uma rocha.
Menina não. Essa mulher. Essa mulher é uma rocha.
Mas apesar de todas as coisas que ela me dizia, uma em especial havia se
destacado no meio de todo seu discurso, e pensar nela me fazia ficar eufórico,
mesmo que isso me fizesse parecer um idiota narcisista.
— Você já esperava um beijo meu, Sophia? — Pergunto, pouco me
importando com a compostura. Eu já a havia perdido há tempos, e nesse
momento eu só queria certezas. Ela me olha por um segundo, claramente
pensando se deve ou não responder a minha pergunta, até que volta a falar:
— Não. — Quando eu me preparo para retrucar que ela está mentindo, ela
continua: — Eu esperava um beijo do Alexandre de dias atrás, daquele que era
gentil e não me discriminava. De você, desse Alexandre, eu só quero
profissionalismo. Espero que isso não se repita, Doutor Alexandre. Eu não fui
embora ontem porque eu amo demais a Lilith para simplesmente lhe virar as
costas, mas não use isso para fazer o que bem entender. Não é justo comigo, e
muito menos com a sua filha. Não se brinca com os sentimentos de ninguém,
achei que você soubesse disso.
Essa mulher sabe lutar suas batalhas.
Eu sorrio e ela franze a sobrancelha, intrigada, o que me faz sorrir mais largo
ainda.
— O que?
— Caramba, você é tão forte! É muito mais incrível do que eu imaginava. —
Ela arregala os olhos, deixando claro que não esperava aquela resposta.
Por um momento nos encaramos, então eu me levanto e vou em direção à
porta. Eu sabia que devia esse momento a ela; ela precisava ficar sozinha.
Quando eu toco a maçaneta, olho para trás e encaro seus olhos cor de uísque
apenas para deixar claro uma coisa. Uma coisa que ela precisava saber, antes que
minha próxima crise de consciência chegasse e me impedisse de falar tudo o que
eu sinto de uma vez por todas:
— E para deixar claro, Sophia: eu não te beijei para consertar as coisas. Mas
eu vou consertar as coisas para poder te beijar muitas outras vezes. — Então eu
pisco, deixando-a de boca aberta. — Boa noite.

Sophia
Quando ele sai do quarto, eu solto a respiração que estava prendendo. O
suspiro é tão alto que tenho quase certeza de que ele ouviu do outro lado da
porta, mas eu não me importo.
Eu realmente não me importo.
Toco a boca com a ponta dos dedos e fecho meus olhos, tentando sentir
novamente a sensação de seus lábios nos meus. Foi um beijo delicado e quente,
como eu sempre imaginei que seria um beijo dele.
Foi incrível, mas… infinitamente perigoso. Perigoso porque meu coração, tão
bobo, criou um milhão de fantasias em apenas alguns minutos.
Por mais que tenha sido uma estratégia dele para que eu esquecesse o que ele
me falou, eu acho que nunca na minha vida, um beijo fora tão bom. Foi como ir
ao céu e voltar, e mesmo que tenha durado pouquíssimo tempo, eu sinto que
perdi uma vida inteira naquele momento, porque enquanto estava acontecendo,
eu não pensei que era uma estratégia. Também não pensei no que ele havia me
falado, nem em como eu estava magoada com isso, ou em qualquer outra coisa
além do fato de que eu queria aquele beijo.
Eu precisava daquele beijo.
Precisava daquele beijo como precisava de ar, e ao mesmo tempo em que é
bom se sentir assim em relação à outra pessoa, também é desesperador.
Desesperador porque é difícil impor limites do que a pessoa pode ou não fazer
com o seu coração.
Mas eu não posso fantasiar sobre isso, e minha voz da razão faz questão de me
lembrar. Esse sentimento já está fadado ao fracasso, e alimentá-lo só me fará
sofrer em algum momento muito próximo. As coisas ficariam muito
complicadas e difíceis de administrar, e ele me afastaria de Lili.
Por Deus, não consigo sequer pensar na possibilidade de ficar longe dela.
Isso partiria meu coração.
Não. Não só partiria. Isso destruiria meu coração em milhões de micro
pedacinhos.
É isso. Eu não posso me deixar levar pelos caprichos de Alexandre, por mais
que eu seja apaixonada por ele, porque isso me prejudicaria de tantas formas
diferentes que nem sei.
Eu não posso deixar isso acontecer.
Toco meus lábios novamente e suspiro quando uma voz irritante e
perturbadora dentro da minha cabeça sussurra, fazendo meu coração disparar:
talvez você já tenha deixado.
CAPÍTULO 17 – FLORES EM VIDA

Alexandre
Entro no meu quarto e fecho a porta, dando um suspiro pesado. Desabotoo os
punhos da minha camisa impecavelmente branca, depois abro os da frente,
tirando-a e a jogando em cima da cama. Viro-me e então encaro minha imagem
no grande espelho, uma das portas do meu enorme guarda-roupa. Júlia amava
esse espelho.
Observo meu corpo por alguns segundos, depois meu rosto, e passo as mãos
pelos cabelos. Apesar de um ou outro fiozinho grisalho que às vezes surgia pelas
preocupações, eu sei: eu sou jovem. Sou bonito. Caramba, eu tenho trinta e
quatro anos apenas. Em que mundo eu vivo para achar que minha esposa, que
me amava tanto, que era tão altruísta, que só queria meu bem, ia querer me ver
envelhecer sozinho e mais mal-humorado do que já sou?
Júlia sempre ia querer meu bem, aqui ou em qualquer outro lugar.
Desde que ela morreu, eu questiono meus sentimentos todo santo dia.
Primeiro, era o ódio pela partida precoce dela. Depois, era o medo de não
conseguir fazer nada sozinho, principalmente criar nossa filha. Em seguida, era
minha incapacidade de esquecê-la e assim por diante, até que os sentimentos a
serem questionados eram os que eu comecei a sentir por Sophia. A culpa me
corroía como ferrugem no metal.
Mas isso acaba hoje.
E quando eu digo “isso acaba hoje”, eu não estou falando do que venho
sentindo por Sophia, muito menos de meu amor por Júlia. Esse vai ser eterno e
tão forte quanto era quando ela estava aqui. Mas se eu aprendi uma coisa com a
minha bela mulher, é que amor não combina com sentimentos negativos. Não
combina com culpa, nem medo, muito menos ódio e hostilidade. E se os
sentimentos que eu andava sentindo estavam me fazendo agir como um babaca
por aí apenas para escondê-los, talvez fosse a hora de assumi-los de uma vez por
todas.
Agora entendo de forma muito clara, que o amor não serve para nada se você
o guardar dentro de você. Ele só tem sentido e força, quando se tem coragem de
entregá-lo para outra pessoa.
Isso não quer dizer que eu já ame Sophia. É cedo demais para dizer isso.
Mas eu posso amá-la, porque, por Deus, se existe alguém digna de amor
nessa terra, é ela.
Caminho até meu criado-mudo e pego o porta-retratos com a foto de Júlia.
Sorrio ao ver sua expressão calma e tranquila e seu sorriso do tamanho do
mundo e sinto meu coração se inundar de amor, isso me dá a certeza de que
meus sentimentos por ela nunca irão mudar. Diferentes amores podem coexistir.
Ela será para sempre meu primeiro amor, meu raio de sol, e isso, nenhum evento
ou pessoa pode mudar, eu sei. Mas ela não está mais aqui.
Eu estou.
Eu estou e não posso jogar fora minha vida, não quando fora a própria Julia
quem me ensinou que a vida precisa ser vivida da melhor forma possível.
Dou um beijo no vidro e então falo em voz alta o que eu preciso. Nada melhor
do que dizer alguma coisa em alto e bom som para torná-la verdade.
— Eu te amo, Júlia. Tenho certeza que nunca vou deixar de amar. Mas, pela
primeira vez desde que você se foi, eu acho que consigo aceitar que tem espaço
no meu coração para mais alguém — engulo em seco e então completo —, não
pela Lilith, mas por mim, pelo meu coração. Eu quero viver isso por mim
mesmo, porque eu mereço. Porque, meu amor, você sempre me disse isso e
agora eu acredito: eu mereço ser feliz. — Dou a volta na cama e me sento na
beirada, então abaixo a cabeça, pensando nas próximas palavras que quero dizer.
Eu as quero escolher muito bem, afinal, eu estava falando com uma das pessoas
mais importantes da minha vida, e mesmo não tendo mais sua presença física
aqui, eu quero confirmar que a conexão que temos vai além do corpo e da alma.
Sei que sempre disse ser um cético em relação a muitas coisas que envolvem o
céu e a terra, mas dessa vez, eu quero muito acreditar. Eu quero muito a
confirmação física de tudo o que minha filha vem dizendo todos os dias, então
eu continuo, desafiando minhas próprias verdades e dúvidas. — Mas eu sei
também que você quer uma mãe para a Lili, meu amor, e eu sei que para você,
ninguém faria esse papel melhor do que a Sophia. Você já gostava dela muito
antes de partir. Você conhecia o coração dela como ninguém. Eu quero a sua
benção, Júlia. Me faça sentir que você me apoia, por favor, me faça sentir.
Aperto a foto contra meu peito e deixo as lágrimas virem. Sei que deveria
estar me sentindo ridículo fazendo isso aqui, sozinho, no escuro do meu quarto,
mas não me sinto. Apenas me sinto esperançoso. Apenas quero certezas.
— Por favor, amor… — eu sussurro. — Por favor.
Após alguns segundos, que parecem horas, em um silêncio apaziguador, uma
brisa suave entra pelas janelas abertas e meu quarto se inunda com o cheiro de
Júlia: uma mistura do perfume que ela usava e suas inseparáveis balas de menta.
Meu lado cético grita que isso é algo que minha cabeça está inventando para
acalmar meu coração, mesmo assim eu olho para os lados, procurando ver algo,
qualquer coisa, mas tudo continua igual. Se qualquer pessoa entrasse aqui, agora,
jamais desconfiaria de nada, mas eu sei. Meu lado cético perdeu feio essa. Eu sei
que ela veio me dar a resposta de que tanto preciso.
Ela veio me fazer sentir.
O choro irrompe com força e as lágrimas descem por todo meu rosto enquanto
eu me abraço, mas a sensação não é ruim. Na verdade, é libertadora.
Uma paz enorme preenche meu coração e depois de vários minutos, sorrio,
ainda de olhos fechados, e simplesmente digo baixinho, pois sei que ela irá me
ouvir:
— Obrigado meu amor — eu respiro fundo, aliviado, pois sei por que ela
veio. Ela veio porque me ama. Porque ama nossa filha. E porque sabe que eu não
preciso ficar sozinho para sempre, apenas para provar ao mundo que eu a amei
de verdade. Que ainda a amo. Eu fiz isso em vida, e isso basta.
Eu lhe dei flores em vida.
Eu lhe respeitei em vida.
Eu lhe amei em vida.
Mas agora, eu preciso seguir a minha, porque eu continuo aqui.
— Obrigado por me amar tanto a ponto de me libertar de mim mesmo.
[…]
No dia seguinte, acordo com ânimo revigorado. Pela primeira vez em meses,
dormi como um anjo e acordei com o coração leve. Coloco uma roupa de corrida
já que estou de folga, pisco para o retrato de Júlia que continua no mesmo lugar
e então saio do quarto com um sorriso ridículo no rosto, quase do tamanho do
mundo para ser mais exato. Atravesso o corredor, e a porta aberta do quarto de
Sophia me entrega que ela já está acordada, provavelmente com Lilith, na sala.
Ela é muito mais matinal do que eu.
Entro assoviando uma música qualquer e sorrio quando a vejo em sua cadeira,
trançando o cabelo da minha filha, que está sentada em seu colo, enquanto as
duas cantam a música tema de algum desenho infantil que eu não faço a mínima
ideia de qual seja. O cheiro de café fresco invade a casa, o que denuncia que
Cilene já está aqui e quando eu olho pelas janelas de vidro com as grandes
cortinas abertas, até o dia parece estar mais bonito do que o normal.
— Bom dia, lindas! — Falo alto, entrando no cômodo. Sophia olha para trás,
intrigada com a forma que usei para cumprimentá-la, mas eu apenas sorrio. Ela
abaixa a cabeça e o rubor toma conta de seu rosto, exatamente como eu imaginei
que seria nosso primeiro encontro depois do beijo.
— Bom dia, papai! — Lilith sorri com sua única janelinha à mostra, o que eu
acho uma graça.
— Bom dia, Alexandre. — Ela não usa o doutor, termo que eu odeio, e por
dentro eu comemoro com um soquinho imaginário no ar. O que eu menos
preciso nesse momento é de formalidades entre nós. A questão é que ela também
não me encara por mais de dois segundos.
Ela continua a fazer a trança em Lili e eu observo seus dedos trabalharem com
agilidade, enquanto minha filha está aninhada em seu colo. Assim que ela
termina, dá um beijo estalado no rosto da minha filha, o que indica que ela já
pode descer. Ela o faz de pronto, e vem em minha direção. Abro os braços e a
pequena pula em mim, enlaçando as pernas em minha cintura enquanto me beija
no rosto.
— Achei que você ia dormir até mais tarde, então já dei o café da Lili. — Seu
tom de voz é suave, mas sem grandes emoções, o que não é bom. Prefiro ela
com raiva do que apática, para ser sincero.
— Não tem problema — eu digo, enquanto dou um beijo de esquimó em
minha filha. — Você pode tomar café comigo e me fazer companhia, então.
— Não acho que seja… — Ela se prepara para recusar, mas não a deixo
terminar de falar.
— Você sabe que eu odeio tomar café da manhã sozinho, Soph — desvio meu
rosto do da minha filha e a encaro profundamente. — Por favor?
— É, faz companhia po papai, Sosô. — Minha filha vira a cabeça em direção
a Sophia e dá uma piscadinha meio torta, depois uma risadinha marota. Por
menor que ela seja, às vezes eu acho que essa menina sabe mais do eu imagino.
Bobo sou eu.
Sophia apenas suspira diante do pedido de Lili e então concorda, sem graça,
avisando em seguida que vai buscar a mochila de Lilith, pois está quase no
horário da escola. Quando ela sai, me sento no sofá e puxo minha filha para mais
perto. Ajeito sua franjinha rebelde que insiste em sair da linda trança que Soph
fez nela, e então pergunto, um pouco desconcertado, enquanto minha voz quase
falha:
— Filha, a mamãe veio te ver ontem?
Ela é rápida em balançar a cabeça em negação.
— Não, papai. Ontem ela não veio, nem um pouquinho.
Será que agora que tudo está “resolvido” entre nós, ela deixaria de visitar
Lilith? O pensamento é interrompido quando Sophia volta para a sala, e chama
minha filha. Ela desce correndo do meu colo, mas volta e me dá um beijo
molhado no rosto antes de pegar a mochila das mãos da babá, lhe dar também
um beijo e sair correndo porta a fora, para os braços da moça da van escolar.
Alguns dias, quando eu tenho que viajar, eu mesmo a deixo na escola para
aproveitar mais o tempo com ela, já que é caminho, mas normalmente ela vai na
van, assim eu fico despreocupado com seu horário ou com quem seria
responsável por levá-la e buscá-la.
Quando minha filha finalmente se vai, eu me viro para Sophia e coloco as
duas mãos no bolso, sem saber o que fazer. Eu fiquei tanto tempo com Júlia, que
eu simplesmente me esqueci de como agir em momentos assim.
— Você ainda está brava comigo? — Encolho os ombros e dou um sorriso
sem graça, orando para que Deus, de algum lugar, fizesse meu charme funcionar
uma única vez na vida.
Ela vem até perto de mim e então dá de ombros.
— “Ficar brava” é um termo muito quinta série, não é? — Ela ergue um dos
cantos da boca, e eu não sei se é um sorriso amigável ou de deboche. — Eu
fiquei profundamente ofendida pela sua extrema falta de tato, na verdade.
Deboche. É isso aí, Alexandre. Parabéns pela sua extrema burrice. Agora
conserta a situação, gênio.
Antes que eu consiga falar qualquer coisa, ela sai na frente, indo em direção à
cozinha, e eu vou atrás. Quando paramos à mesa já posta, ela diz, com uma voz
que eu não sei como identificar:
— Mas se você está preocupado com isso, relaxa, Alexandre. Não precisa
pedir desculpas de novo, você já pediu. — Ela ergue os olhos para mim. — Não
precisa tentar me beijar de novo, nem fazer mais qualquer outra loucura para
resolver as coisas. Eu já entendi que você está arrependido, então sem pedidos
de casamento, ok?
Ai! Quanta acidez e ironia.
Suspiro, resignado.
— Eu já te disse que aquele beijo não teve a ver com consertar nada, Sophia.
Mas vamos esquecer isso por um segundo — eu deixo claro que voltaríamos a
esse assunto muito em breve, porque eu precisava fazê-la entender que minhas
motivações para beijá-la não tinham nada a ver com querer resolver nada. —
Primeiro, antes de falarmos de qualquer coisa, eu quero que você realmente
saiba que eu sinto muito. Enquanto você não disser que me perdoa, eu vou
continuar pedindo desculpas até te enlouquecer. Eu vou pendurar uma faixa lá na
portaria do condomínio. Vou mandar um caminhão de som, uma banda marcial,
qualquer coisa. Não duvide da minha capacidade de fazer isso — eu aponto o
dedo em sua direção, dando força à minha ameaça.
Ela me olha séria e essa expressão dura tempo suficiente para me amedrontar
antes de virar um sorrisinho de canto em sua boca.
— Você sabe ser bem chato quando quer, não? Pelo amor de Deus. — Ela ri
de novo enquanto coloca o leite na xícara, e eu respiro, aliviado. Ela está
brincando comigo. Não quer dizer que ela está me perdoando, mas já é alguma
coisa.
Engatinhar antes de andar, Alexandre. Uma coisa de cada vez.
— Mas eu também sei ser bem legal quando eu quero — pisco para ela.
— Pena que você nunca quer.
— Caramba, você sabe ser má — digo, surpreso. — Eu achei que você não
conseguiria ser má nem se tentasse.
— Tá bem. Você sabe ser legal? Então me mostre isso, Alexandre. — Ela me
olha séria e profundamente e todo meu corpo se arrepia. Em meses de
convivência, é a primeira vez que ela é tão direta comigo e tão segura de si. Ela
está exigindo que eu a trate como ela merece ser tratada, e acredite, eu vou fazer
isso.
— Eu vou te mostrar, confia em mim — digo, mas antes que eu consiga me
aproximar, a campainha toca. Olho para os lados, mas não vejo Cilene.
— Acho que minha mãe está na lavanderia. Deixa que eu atendo. — Ela se
adianta, mas eu a paro com as mãos. Sorrio para ela e balanço a cabeça.
— Pode tomar seu café, eu atendo — dou um sorriso e me viro em direção à
porta, dando uma corridinha até ela. Abro-a animado e dou de cara com um
rapaz que não conheço. Franzo o cenho, sem entender como ele passou pela
portaria do condomínio. Normalmente, quando não é ninguém da casa, eles
interfonam avisando que tem alguma visita esperando autorização para entrar.
— Bom dia. — Ele sorri meio sem graça e tenta olhar para dentro, mas eu me
adianto e cubro o campo de visão dele, não gostando de sua atitude. Seu cabelo
loiro e seu corpo magro não escondem que é um rapaz novo, pelo menos, bem
mais novo do que eu. Quem é esse cara?
— Bom dia — eu respondo com a voz mais em alerta do que eu gostaria. Não
o conheço, mas algo em mim simplesmente não gosta da presença dele aqui.
— Eu posso falar com a Sophia? — Ele tenta sorrir, mas vê que minha cara
está para poucos amigos, e eu travo o maxilar, para deixar bem claro que não é
coisa da cabeça dele.
— E quem gostaria? — Eu faço a pergunta, mas algo dentro de mim me diz
que eu já sei a resposta.
Eu não preciso nem que ele responda, mas ele o faz mesmo assim.
— Diz para ela que é o Rodrigo.
CAPÍTULO 18 – UMA VISITA INESPERADA

Sophia
Sinto minhas mãos tremerem quando paro atrás de Alexandre. Eu poderia
reconhecer aquela voz em qualquer lugar do mundo depois de milhares de anos,
mesmo que soe exagero. Por meses a fio, depois do acidente, eu esperei que ele
batesse na minha porta com um pedido de perdão, mas depois que eu percebi
que isso nunca aconteceria, eu me conformei com o sumiço dele.
Na verdade, o sumiço dele era confortável até. Eu podia depositar toda a culpa
pela minha dor em alguém, mesmo que eu não admitisse em voz alta. Com ele
longe, eu nunca precisei confrontar meus demônios internos que insistiam em
perguntar “E se?”.
E se ele não tivesse me empurrado?
E se ele tivesse ficado?
E se?
Eu odiava os “E se’s”. Eles me corroeram por dentro por muito tempo, até eu
aprender a lidar com eles da maneira certa: ignorando-os. Não existe “E se”. O
que existe é a realidade.
E minha realidade hoje é essa.
Mas agora eu ouço a voz dele de novo e tudo dentro de mim esfria e se agita
ao mesmo tempo. Sinto minha garganta fechar e todos meus questionamentos
voltam de uma vez, em uma fração de segundos. Fecho os olhos, mas os abro
rapidamente quando ouço a voz de Alexandre soar vários tons mais grave:
— Rodrigo? Aquele Rodrigo? — Há uma descrença em sua voz que pode
muito bem ser confundida com raiva — Você não é o ex-namorado baba…
Corto-o, antes que ele prossiga. O que eu menos preciso nesse momento é que
ele diga em voz alta o que está pensando e afugente Rodrigo quando o que eu
mais preciso é que ele fique e se explique.
Não posso deixar Alexandre falar porque tenho certeza que não é nada bom.
— Rodrigo, o que você quer aqui? — Eu pergunto logo atrás de Alexandre,
que sai do meu campo de visão. Um segundo depois, sinto ele se posicionar atrás
de mim, e colocar as mãos nas alças da minha cadeira, como se fosse um guarda-
costas, um protetor ou algo do tipo.
— Soph, a gente pode conversar?
Meu patrão bufa tão alto que eu posso sentir sua respiração em cima de mim,
praticamente.
— Soph? Você a chamou de Soph? — Alexandre dá uma risadinha de
escárnio. — Isso só pode ser brincadeira… — Ele resmunga e Rodrigo fecha a
cara, enquanto eu simplesmente não consigo dizer nada. Isso é surreal para mim.
É surreal demais.
— É sério. — Ele ignora Alexandre e me olha de cima para baixo, tentando
encontrar meus olhos. Se ele soubesse que essa é a maneira que eu mais detesto
que conversem comigo. — Eu sei que você não quer me ouvir, mas a gente
precisa muito, muito conversar. — Quando eu ainda não respondo, ele suspira,
derrotado. — Por favor, Sophia.
— Acho que você não tem mais nada para falar com ela, então se me dá
licença… — Alexandre começa a falar e fechar a pesada porta de madeira
branca, mas Rodrigo a segura com a mão e semicerra os olhos.
— Quem é você, aliás? — Meu ex-namorado pergunta, petulante. Isso sempre
foi uma característica sua, essa falta de limites.
— Amigo. — Alexandre se adianta, ficando cara a cara com ele. A palavra
“amigo” sai ácida demais para ser levada ao pé da letra, e então ele fala algo que
faz Rodrigo abaixar a cabeça. — Você veio bater na porta da minha casa e eu
sequer sei como você conseguiu entrar nessa porra de condomínio, então eu
tenho certeza que você sabe quem eu sou.
Intrometo-me, porque, por mais que eu aprecie o que Alexandre está fazendo,
que é me defender do seu modo, essa decisão só cabe a mim. Eu poderia bater
mil portas na cara de Rodrigo, mas isso só me daria satisfação pessoal e
momentânea, e não é isso que eu busco. O que eu quero é entender as coisas.
Fechar os ciclos.
E para isso, eu preciso ouvir o que ele tem a dizer.
— Alexandre… — Eu toco seu braço e ele se vira, me olhando, — Você me
dá cinco minutos?
Ele me olha por segundos que parecem durar horas, e então diz baixinho:
— Eu não concordo com isso, Sophia, mas se você acha que precisa…
Balanço a cabeça e forço um sorriso.
— Eu preciso. Posso falar com ele no jardim?
Alexandre balança a cabeça.
— Claro. — Seus olhos saem de mim e param em Rodrigo, em uma espécie
de ameaça velada. — Me chame, se precisar.

Alexandre
Quando Sophia sai logo atrás daquele playboyzinho cheirando a leite, eu
espero ela bater à porta, mostrando toda sua raiva contida pelos anos de
abandono que ele proporcionou a ela. Eu esperei que, de alguma forma, ela
mostrasse a ele o quanto sentia raiva ou incômodo por sua presença, mas na
verdade ela a fechou atrás de si com bastante cuidado.
Ela fecha a porta com um clique baixo, sem qualquer alarde, não
demonstrando qualquer emoção, então eu tento convencer a mim mesmo que
isso é ainda melhor: essa saída significa que ele não gera mais qualquer
sentimento nela. Nem raiva, nem dor, nem tristeza, muito menos saudade.
Ele não gera mais nenhuma emoção nela, não é? Tem que ser, pelo amor de
Deus. Isso é hora para esse palhaço aparecer?
Sinto minhas mãos se fecharem em punhos e por um momento não sei dizer se
estou me controlando para não socar a maldita porta, a cara do porteiro que
deixou esse moleque entrar ou se estou me segurando apenas para não correr
atrás dela e colar minha boca na sua na frente do babaca, para mostrar para ele
que é tarde demais para ele voltar atrás.
Deus, que ela pense assim também, ou eu nunca vou me perdoar por deixar as
coisas chegarem a esse ponto quando eu tive tantas oportunidades de colocar
tudo no lugar.
Não consigo lidar com esse pensamento, então corro escadas acima até chegar
ao meu escritório. As grandes janelas estão cobertas por cortinas escuras, e eu
puxo apenas um pedacinho para olhar lá fora, no jardim. Me sinto invasivo e
infantil fazendo isso, mas não consigo controlar. Eu preciso saber o que está
acontecendo.
Ele está sentado em um dos bancos e ela está de frente para ele. Mesmo daqui,
é possível ver como sua postura está rígida, enquanto o babaca gesticula com a
expressão sofrida, que convenceria qualquer um, menos a mim.
Que teatrinho da porra!
Não é possível que ela vá ouvir o que esse cara tem a dizer, seja lá o que for.
Eu tenho certeza absoluta de que é tudo mentira, de qualquer forma.
Olho de novo pela janela e no exato momento em que espio, vejo o tal
Rodrigo segurar a mão dela. Torço internamente como um lunático para que ela
puxe a mão e sente um tapa na fuça do idiota, mas ela não o faz. Sua expressão
não muda, não há nenhuma emoção em seu rosto, mas ela também não recua, o
que me faz sentir como se tivesse uma bola de chumbo presa na garganta.
Encosto a testa no vidro já coberto novamente pela cortina e fecho os olhos.
Eu me tornei um especialista em ser imbecil e afastar e magoar as pessoas que
eu amo, mas todas elas suportaram quietas, respeitando meu luto, e eu me
aproveitava disso. Eu agia da forma mais desagradável possível, levando-as ao
limite.
Mas com Sophia, era diferente. Ela nunca chegava ao limite. Estava sempre
ao meu lado, mas também sempre foi brutalmente sincera acerca do meu
comportamento babaca. Ela sabia que minha hostilidade era explicável, mas
também deixava bem claro que ela não era justificável. Ela me repreendia apenas
com um olhar doce, um sorriso de canto ou uma resposta bem-humorada que me
mostrava que ela não iria desistir de me fazer virar gente novamente, e, mesmo
que inconscientemente, por muito tempo eu resisti, apenas para ver até onde ia.
Ela sempre me amou em silêncio, da forma mais bonita e humana, quando eu
sequer merecia isso. E quando eu finalmente consegui magoá-la de forma quase
irreparável com meu comportamento inaceitável e idiota, esse cara volta antes
que eu consiga me desculpar, o que me enche de incertezas.
Imaginar que ela pode perdoá-lo, mas não a mim, me deixa oco.
Penso em abrir as cortinas e olhar de novo, mas desisto. É melhor voltar lá
para baixo e esperar sem espiar mais, porque eu simplesmente não consigo ficar
assistindo isso.
Não sem enlouquecer.
CAPÍTULO 19 – CICATRIZES INVISÍVEIS

Sophia
Saímos porta afora e então Rodrigo segura nas alças da minha cadeira, para
empurrá-la. Eu respiro fundo e olho para trás.
— Não precisa fazer isso. Eu posso ir sozinha. — Ele concorda sem graça,
então continua a andar ao meu lado. — Ao contrário do que você imaginava
quando me abandonou, eu sou bem independente.
Ele abaixa a cabeça, constrangido, mas não responde nada e muda de assunto
no mesmo instante.
— Seu patrão é um pouco protetor, não? — Ele comenta, com as mãos nos
bolsos.
— É só o jeito dele — digo enquanto o vento bate em meu rosto. Olho para o
lado, porque por mais que isso seja bobo, não quero ficar olhando para ele. Me
traz lembranças demais, e nem todas são boas.
— Sério? Porque me pareceu bem mais do que isso. — Ele responde, olhando
para os lados também, uma mistura de desdém com ciúmes, coisa ridícula que
sequer lhe cabe mais.
Eu paro minha cadeira e então, pela primeira vez, olho fundo dentro de seus
olhos.
— Você trocou duas frases com ele. Não dá para conhecer ninguém por duas
frases, Rodrigo. — Ele me olha de volta, e eu reparo como ele está diferente.
Seu cabelo está mais comprido, agora ele tem barba, e seu corpo está um pouco
mais definido. Ainda lembra o menino de quando namorávamos, mas ele parecia
mais adulto. Mais homem.
— Eu sei. Me desculpa. — Nós voltamos a andar, e então chegamos
finalmente aos bancos do jardim. Eu sempre venho aqui com Lilith, fazer as
lições ou ler os livros das princesas que ela tanto gosta. Parece que aqui, com o
vento batendo no rosto e o cheiro das flores, tudo fica mais fácil de ser
entendido.
Eu espero ele se sentar e então paro minha cadeira de frente para ele,
descansando minhas mãos em meu colo. Tiro uma mecha de cabelo do rosto e o
encaro, esperando que ele fale. Eu não preciso começar essa conversa. Ele sim.
— Você está linda. — Ele se embaralha todo — Mais. Você está mais linda
ainda.
Engulo em seco. Eu não preciso ouvir isso, não agora. Eu precisava ouvir isso
quando toda a minha confiança e autoestima foram quebradas e eu me vi em
uma cadeira de rodas sem a possibilidade de voltar a pisar no chão. Eu precisava
ouvir isso quando fui isolada por pessoas que eu considerava amigos e quando
eu senti que nunca mais seria normal de novo, mesmo que isso não fosse
verdade. Eu precisava ouvir isso quando ninguém me disse. E quando ninguém
me disse, eu mesma disse para mim, repetidas vezes, até acreditar. E nesse dia,
eu descobri que há um amor mais importante do que todos os outros: o próprio.
Seus elogios chegaram um pouco tarde demais.
—Tenho certeza de que não foi para isso que você veio, Rodrigo.
— Você tem razão. — Ele suspira e balança a cabeça, escolhendo as palavras.
Parecia que doía quase fisicamente nele estar ali, mas eu o conhecia. Sabia que
se ele estava ali, estava porque queria. Rodrigo nunca fez nada que não quisesse.
Ele sempre se ouviu muito, sempre buscou seu bem-estar, e eu sempre admirei
isso, até ele querer ir embora depois do acidente. Ele quis ir, e foi.
Ele sequer olhou para trás.
— Então o que? — Eu o desafio.
Vamos acabar logo com isso.
— Eu vim te pedir desculpas. Não, desculpas não… — Ele se corrige e vejo
seus olhos marejarem. — Eu sei que já te disse isso, mas eu entendi que tinha
que ser pessoalmente, então eu vim te pedir perdão. Cara a cara, Soph. Sem
precisar de caneta e papel para isso.
Eu não entendo o que ele quer dizer com “pessoalmente”, mas não procuro
entender. Eu só foco na palavra “perdão” e em como esperei por ela tanto tempo.
Acho que nem mesmo eu tinha esse entendimento.
Eu esperei por um pedido de perdão sim.
Era o mínimo que eu merecia.
Ele ergue os olhos, esperando minha resposta. Consigo ver sua íris e contar
suas sardas, tão discretas, mas que eu sempre gostei de desenhar com as pontas
dos dedos. Apesar de estar ainda mais bonito, ele havia ficado no passado, eu
não tinha nenhuma dúvida quanto a isso.
Aquele pedido de desculpas não podia ter chegado mais atrasado, mas não
posso negar que fiquei curiosa para ouvir o que ele tinha a me dizer.
É o que dizem: antes tarde do que nunca.
Será que ele acha que pode falar alguma coisa, depois de todos esses anos, que
faça alguma diferença no modo como me senti durante tanto tempo? Eu nunca
quis entregar meu coração para ninguém porque ainda trazia as cicatrizes que
Rodrigo me deixou ao resolver me abandonar. Será que há palavras capazes de
fazer esse medo deixar de existir? Eu duvido muito, sinceramente.
— Perdão, precisamente, pelo que? — Eu me arrisco a perguntar. Será que ele
sabia que o estrago não havia sido só em minha coluna, mas também em meu
coração? Em minha cabeça?
Ele suspira.
— Eu sei que as marcas que eu deixei em você não tem nada a ver com essa
cadeira, Sophia. — Ele responde, me surpreendendo, como se lesse meus
pensamentos. — Eu sei que sou culpado disso, porém isso eu fiz
inconscientemente. Mas te abandonar eu fiz sabendo que te machucaria, e fiz
pensando apenas em mim mesmo. Eu sei, acredite, eu sei que é isso que precisa
de perdão. — Ele aponta para minha cadeira. — Você nunca ligou essa cadeira à
mim, e é por isso que eu acho que o mundo não te merece. — Ele engole em
seco. — Você é tudo o que eu sempre precisei. E tudo que eu deixei ir por ser
burro demais, e egoísta demais também, então eu também não te mereço.
Ah, pode apostar nisso.
Mesmo com toda a ironia que me preenche ao ouvir tudo isso, meus olhos
estão cheios de lágrimas, porque eu não esperava sentir sinceridade em suas
palavras. Eu realmente não esperava, mas eu sinto. E o que eu também não
esperava era erguer o rosto e encontrar os seus olhos também molhados.
Mas sinceridade não é uma borracha. Ela não apaga o que você foi, ou o que
fez. Ela apenas te faz, talvez, ser um ser humano melhor, se assim você decidir.
Sinceridade é para o futuro, não para o passado.
— Realmente. Você não merece a mulher que eu me tornei, Rodrigo —
consigo responder entre as lágrimas. Ele já havia quebrado minha confiança em
mim uma vez, mas jamais deixaria que ele o fizesse de novo.
— Eu sei que te escrever não era o suficiente, e eu entendi o seu silêncio,
Soph. Eu entendi que você queria que eu te dissesse pessoalmente tudo o que eu
te escrevi… E é por isso que eu estou aqui.
Aperto os olhos. Ele estava falando em escrever… De novo.
— O que você quer dizer com “escrever não era o suficiente”? — Eu
pergunto, sem realmente entender.
— Minhas cartas… — Ele arregala os olhos e então sua expressão muda. —
As cartas que eu te escrevi todos esses anos, Sophia. Uma por mês, duas
talvez… Não sei, foram tantas.
Cartas?
Eu realmente não entendo. Quando eu olho para ele, sinto que ele finalmente
compreende a confusão estampada em meu rosto.
— Meu Deus! — Após um suspiro pesado e um balançar de cabeça, ele diz,
arrasado: — Você nunca as recebeu.
CAPÍTULO 20 – DECISÕES DIFÍCEIS

Sophia
— Cartas? Que cartas? — Minha expressão vacila e tenho certeza de que
meus olhos se arregalam, porque eu sei que, pela expressão de Rodrigo, há algo
ali. — Do que você está falando?
— Estou falando das cartas que eu te escrevi como um louco durante todo
esse tempo! — Sua voz soa desacreditada — Eu te mandei cartas todo esse
tempo, Sophia. Eu nunca mandei mensagens nem liguei porque não tinha mais
seu número. — Realmente, eu havia trocado meu número quando nós
terminamos. Não aguentava mais as mensagens de solidariedade dos nossos
amigos em comum, mas principalmente, não aguentava o silêncio do meu ex-
namorado nos primeiros dias. Se eu trocasse o número, teria uma desculpa para
dizer a mim mesma que justificasse a falta de contato. — Aí eu te procurei nas
redes sociais, em todas, e descobri que você não tem também…
Dou uma risadinha, desacreditada e ergo a sobrancelha.
— Na verdade, gênio, você está bloqueado de todas elas — uso o velho
apelido que sempre usávamos um com o outro quando a gente falava alguma
besteira.
Ele ri, e pela sua expressão ele lembra também, mas não permito que esse
clima se instale. Eu não queria suas boas lembranças.
— Acho que nem posso reclamar, né? — Ele dá um sorriso sem graça e eu
respondo na mesma hora, voltando com a frieza habitual.
— Com certeza não.
— Enfim… A única coisa que me restava era seu endereço. Eu fui até sua casa
duas vezes, mas seus pais me colocaram pra fora de lá, dizendo que você não
queria me ver — ele dá de ombros. — Eu não sabia mais o que fazer para falar
com você. Tentar, ao menos.
Franzo o cenho. Eu nunca fiquei sabendo que Rodrigo fora até minha casa.
Meus pais nunca sequer tocaram no nome dele depois do nosso término, para ser
sincera. Para eles, era como se meu ex-namorado nunca tivesse existido.
— Aí eu comecei a escrever as cartas. Eu precisava que você soubesse o
quanto eu me arrependi do tudo o que eu te fiz, e te colocar nessa cadeira nem é
a coisa que mais me machuca ter feito. — Ele se adianta no banco e segura
minhas mãos. — Soph, eu me senti um merda dia após dia, desde que eu te
deixei. Eu era um moleque, mas não justifica, eu sei que não. Então, de alguma
forma, eu tentei te contar como eu me sentia. Como você nunca respondeu, fui
atrás de todas as suas amigas, e descobri que grande parte delas também te
abandonou. Cara, que merda é essa? Nós somos uma sociedade doente que não
sabe lidar com as diferenças.
Enxugo as lágrimas que brotaram novamente em meus olhos com as pontas
dos dedos.
— Acredite em mim, eu sei disso mais do que ninguém — o ressentimento e a
mágoa são palpáveis em minha voz.
— Quando eu finalmente consegui encontrar uma, ela me disse que você
estava trabalhando na mesma casa que sua mãe. Lembrei que vim com você aqui
algumas vezes, então eu não pensei muito e — ele abre os braços —, aqui estou
eu. Pronto para ser insultado e chutado, exatamente como eu mereço.
Ignoro sua gracinha no final. Rodrigo sempre usou o humor para camuflar o
quão desconfortável ficava com algumas coisas, mas eu não ia cair nessa.
— Como você conseguiu entrar no condomínio? — Eu pergunto, tentando
mudar de assunto. A essa altura, tenho certeza que Alexandre já ligou até para o
Papa para saber como alguém desconhecido passou pela portaria.
— Contei uma história triste para o porteiro e ele me deixou entrar. —
Rodrigo dá de ombros, e vejo a sombra de um sorrisinho de canto. Seu poder de
persuasão era insuportável de tão bom.
— Meu Deus — coloco uma das mãos na boca —, o Alexandre vai colocar
esse homem no olho da rua. — Exclamo preocupada, então me toco de uma
coisa. — Espera aí. Onde essas cartas estão?
Rodrigo dá de ombros.
— Elas nunca voltaram, Sophia. Elas foram entregues, sem dúvida.
Abaixo o rosto e fecho os olhos.
— Minha mãe… — Eu tenho certeza que na cabeça dela existe um milhão de
motivos para mantê-lo longe de mim. Eu tenho certeza de que ela fez isso
pensando no meu bem, simplesmente porque não queria que Rodrigo voltasse e
quebrasse meu coração mais uma vez. Mesmo assim, ela não podia. Não se pode
esconder esse tipo de coisa de ninguém. — Vem Rodrigo, eu preciso tirar essa
história a limpo.
Saio na frente e Rodrigo vem logo atrás. Ele coloca as mãos nas alças da
minha cadeira e murmura um “Por favor?”. Eu não sei por que ele quer tanto
fazer isso, mas penso um pouco e concordo. Andamos em silêncio até a casa e
quando chegamos na porta, eu me viro e pergunto:
— Que história tão triste foi essa que você contou para o porteiro para ele te
deixar entrar?
Ele sorri, mas há uma nota de tristeza inexplicável em seu olhar quando ele dá
de ombros.
— A nossa.
[…]
Quando entrei em casa com Rodrigo atrás de mim, minha mãe estava na sala
com Alexandre. Pela expressão aflita em seu rosto, com certeza Alexandre fora
alertá-la da presença do meu ex-namorado e ali estava ela, torcendo as mãos em
preocupação e com o olhar aflito. Quando os olhos dela cruzaram com os de
Rodrigo, eu não precisei de mais nada para saber quem havia escondido as cartas
dele durante todo esse tempo.
Naquele olhar havia muitos sentimentos: medo e angústia, preocupação e dor,
mas principalmente, culpa. Havia muita culpa lá.
— Filha… — Ela começa, mas eu ergo as mãos, fazendo-a parar. Eu nunca na
vida ousei calar minha mãe, mas hoje eu sabia que tinha esse direito.
— Mãe, cadê? — Olho-a profundamente. Seus olhos foram para as mãos de
Rodrigo pousadas nas alças da minha cadeira. Olhei para o lado, e Alexandre
também olhava para a mesma direção que minha mãe.
— Eu… Eu não sei do que você tá falando, Sophia. — Ela tenta, mas eu fecho
os olhos, sentindo toda a dor vir. Eu me sinto extremamente enganada. Tratada
como criança.
— Mãe, por favor, não piora isso… — As lágrimas começam a descer,
grossas e fortes. — Você sabe que não podia ter feito isso. Só me fala.
Alexandre se adianta na sala.
— O que aconteceu lá fora para ela estar nesse estado? — Ele tira as mãos de
Rodrigo bruscamente da minha cadeira, e me afasta dele. Se fosse qualquer outra
ocasião, eu brigaria, porque eu não sou um boneco para ser jogada para lá e para
cá, mas por hora, um estresse só já é o suficiente.
— A vida aconteceu, amigo. — Meu ex-namorado ironiza a palavra tanto
quanto Alexandre o fez anteriormente. — Às vezes ela dá de dez a zero na gente,
não é mesmo?
— Eu tenho certeza de que nesse caso em específico, o que aconteceu foi
você. Você aconteceu. — Alexandre vocifera. — Você já machucou a Sophia
demais, não acha?
Olha o sujo falando do mal lavado.
— Espera aí. Você não é só o patrão dela? — Rodrigo diz sarcástico, dando
ênfase na palavra só.
— Ainda assim, sou mais do que você. — Alexandre cruza os braços em
frente ao peito e eu quase rio, porque nunca o vi sendo tão infantil. Eu conhecia
bem os joguinhos do Rodrigo, e ele estava entrando em um rápido demais.
— Será? — Rodrigo coloca as duas mãos na cintura, e ergue a sobrancelha de
forma irônica. Por um minuto, eu me sinto assistindo a uma novela mexicana,
daquelas de quinta categoria.
— Você está na minha casa e…
Bom, já deu. Meus nervos não aguentam mais essa.
— Chega! — Eu peço, de repente, talvez um pouco alto demais. Quando
percebo meu tom, eu abaixo a voz. — Vocês dois, chega. Por favor.
Quando os dois se calam, assustados, eu volto para minha mãe. A essa altura,
ela já sabia que o caos estava instalado e não adiantaria de nada fugir.
— E então, mãe? — Pergunto, travando os dentes, me negando a acreditar que
meus pais fariam algo assim. Eu tenho certeza de que eles fizeram pensando no
meu bem, mas mesmo sabendo disso, não doía menos.
Era como se deixar de andar me tornasse inválida em todos os sentidos, até
mesmo para tomar minhas próprias decisões, e isso é uma situação tão
desconfortável e sufocante quanto pode parecer. É como se de repente, por conta
de um acaso do destino, sua vida deixasse de ser sua para ser de outras pessoas.
Ninguém merece perder o controle da própria vida assim, nem que seja pelas
melhores intenções.
— Estão em casa, em cima do meu guarda-roupa. — Ela abaixa a cabeça. —
Eu queria jogar todas fora, mas seu pai nunca deixou. Ele também acha que é
uma decisão sua.
Eu enxugo minhas lágrimas.
— Porque é exatamente isso que é, mãe — encaro-a, deixando claro que,
apesar de minhas pernas não funcionarem mais, todo o resto ainda funciona, e
aquela é minha vida. O protecionismo de ninguém deve servir como desculpa
para que lhe digam o que fazer, nunca. Liberdade é muito mais que andar, correr
ou voar, que seja. Liberdade é poder ser você, mesmo com todas as decisões
difíceis e todas as escolhas erradas.
Já haviam tirado minha liberdade de uma forma; eu não deixaria que tirassem
de mais outra, nunca mais.
— É uma decisão minha.
CAPÍTULO 21 – O PASSADO É O REMETENTE

Sophia
— Eu quero vê-las — digo decidida.
Minha mãe respira fundo e então dá de ombros, fingindo desdém, quando na
verdade eu sei que ela está profundamente abalada.
Ela achou que nunca seria descoberta.
— Tudo bem, eu te mostro quando você for para casa… — Ela torce as mãos.
— Mas não há nada demais lá, filha. Só mais um monte de mentiras para te fazer
sentir pena. Esse menino não merece sua consideração. Não merece nem que
você ouça o que ele tem a dizer. Ele acabou com a sua vida.
— Mãe, eu quero vê-las agora. — Sou firme. Eu sei que ela falará todo o tipo
de coisa para me dissuadir de ter acesso a essas cartas, mas eu quero lê-las.
Quero dar um fim a isso de uma vez por todas, e tirar todos os “E se’s” da minha
cabeça.
— Sophia, isso é loucura. Eu estou no meio do meu serviço, não posso
simplesmente largar tudo para atender um capricho seu, minha filha.
Capricho?
Olho para Alexandre e torço para que ele entenda meu pedido silencioso. Ele
balança a cabeça devagar e se vira para minha mãe:
— Se ela quer ver, Cilene, vocês podem ir. Não tem problema por mim.
Minha mãe arregala os olhos.
— Doutor Alexandre, isso não é necessário…
— É necessário, sim. — Ele diz com a voz calma e me surpreende por sua
sensibilidade com meu momento. — Se for fazer a Sophia se sentir melhor, é
necessário. Vai Cilene, sou eu que estou pedindo.
Quando ela atende ao pedido dele, e sai da sala para pegar suas coisas,
Rodrigo se vira para mim com um pequeno sorriso de vitória. Ele estava mesmo
ansioso para que eu lesse as tais cartas, o que me deixava profundamente
nervosa em relação ao conteúdo. Será que o que eu leria me faria mudar de
opinião em relação à ele?
— Eu posso levar vocês lá, Sophia. — Quando eu estou pronta para dizer que
não é necessário, de fato, Alexandre se adianta.
— Ela não vai com você. — Ele praticamente rosna, e depois se vira para
mim, praticamente implorando para que eu entre em sua desculpa infantil. Esse
homem usava meu amor pela filha dele mais vezes do que realmente deveria. —
Se você precisa tanto ir até lá, Soph, eu te levo. Assim você volta para casa antes
da Lili chegar.
Assinto com a cabeça e depois me viro para Rodrigo.
— Obrigada, Rodrigo, mas eu vou com o Alexandre. Eu preciso mesmo estar
aqui antes da Lili voltar da escola. — Tento um sorriso, mas ele não sai. Eu
ainda não conseguia tratá-lo com naturalidade, e eu nem sei se deveria,
realmente. Não antes de clarear todos os sentimentos que eu tinha guardados
dentro do peito.
— Tudo bem, eu entendo. — Quando ele faz menção de sair, se volta para
mim e pergunta: — Eu posso anotar seu número novo? Eu só quero poder falar
com você sem ter que enganar mais algum porteiro. — Eu quase rio, mas
Alexandre bufa atrás de mim quando ouve que foi o porteiro que deixou Rodrigo
entrar. Meu Deus, eu realmente temo que esse homem perca o emprego.
— Ah, tudo bem. — Pego o celular de sua mão, meio reticente e digito meu
número. Ainda não estou confortável com sua presença, mas, por mais que eu
tentasse bloquear de minha mente, todas as nossas lembranças boas vinham e
voltavam em um piscar de olhos. É realmente difícil me esquivar disso, e fingir
que uma pessoa não te fez mais bem do que mal é mais complicado do que
parece. Em todo o tempo do nosso relacionamento, a única vez que ele me
decepcionou foi quando me abandonou, e isso só me faz entender uma coisa, por
mais que seja difícil para mim: Rodrigo não é um cara ruim, ele só foi covarde.
Mas acho que em algum momento da nossa vida, todos já fomos um pouco
covardes.
— Tchau, Sophia. — Ele ergue os dedos e dá um sorriso, e eu apenas sussurro
um adeus de volta.
E sem falar com Alexandre, Rodrigo fecha a porta e sai.

Alexandre
A mãe de Sophia entrega a pequena caixa de cartas em suas mãos e tenta, mais
uma vez, avisá-la de que aquilo é um erro, mas Soph não quer ouvir, e por mais
que eu odeie o fato desse moleque ter voltado do quinto dos infernos justo nesse
momento, eu preciso reconhecer que o que os pais dela fizeram foi um erro. Era
uma decisão que cabia a ela, e que lhe foi negada.
— Filha, eu sempre tentei convencer sua mãe a lhe mostrar isso. Eu não
concordo em você ter contato com esse rapaz, eu não concordo de jeito nenhum
que ele volte para sua vida, mas eu sei que é seu direito. — O pai de Sophia tenta
justificar, mas ela não parece muito inclinada a ouvir.
Após um tempo olhando para a caixa em suas mãos, ela ergue o rosto e diz,
calma:
— Vocês podem me dar licença? Eu quero ler… — Estamos todos em seu
quarto, e quando ela fala isso, todos vamos nos retirando, até eu sentir sua mão
frágil em meu pulso. — Alexandre… Você pode…?
— Ficar? — Eu completo sua frase e ela balança a cabeça, nervosa. Um
sorriso nasce no canto da minha boca e eu balanço a cabeça, concordando, é
claro. Mesmo sem saber por que ela me quer ali depois de tudo o que eu lhe fiz,
eu não posso sequer pensar em lhe dizer não. — Claro. Você sabe que pode me
pedir o que quiser.
Esse gesto, porém, não passa despercebido pela mãe dela. Seu olhar vai de
nossas mãos para nossos rostos, mas a gente não explica nada. Nem precisamos,
na verdade. Somos dois adultos. Eu apenas espero ela sair e encosto a porta,
dando a Sophia a privacidade necessária para esse momento.
— Você está nervosa? — Eu pergunto, me sentando na beirada de sua cama e
ficando de frente para ela. Preciso ser sincero e dizer que eu estava, talvez, mais
nervoso do que ela. Eu não sabia o que tinha dentro de cada envelope daqueles, e
a possibilidade do babaca convencê-la de que está arrependido me deixa
agoniado, mas eu ainda acho que ela deve ler todas elas, porque mesmo que isso
me tire do caminho, é algo que ela necessita.
Fechar feridas.
Eu sei como é tê-las abertas, e ninguém merece passar por isso na vida. Todos
deveriam ter o direito e a oportunidade de deixar certas coisas para trás,
principalmente ela, um ser humano tão doce e tão bom.
— Um pouco. — Ela dá de ombros.
— Você quer que ele te dê um motivo para ter te deixado? Um motivo forte e
compreensível, algo que salve tudo o que você sentia por ele?
Ela dá um sorriso de canto, mas não há alegria nenhuma ali.
— Não, com certeza não. E eu também sei que não tem um motivo aqui. O
Rodrigo sempre foi muito passional, Alexandre, mas não mentiroso. Isso ele
nunca foi. — Ela verifica as datas, e pelo que percebo encontra a primeira de
todas elas. — Ele não precisa mentir sobre o motivo que o fez ir embora. Ele me
deixou porque não aguentava o tranco, só isso.
— Então por que você acha que ele voltou? — Eu pergunto, mesmo tendo
medo da resposta.
Ela abre a carta e passa os olhos pelas primeiras linhas. Depois dá um suspiro
e diz, com um tom que eu não sei identificar:
— Pelo mesmo motivo que o fez ir.

“Sophia,
Estou sentado olhando para o papel há mais de uma hora, porque, por mais que eu tenha muito a
te dizer, eu simplesmente não sei como começar. Eu devia começar implorando por perdão, claro, mas eu
não sei até onde isso resolve todas as merdas que eu fiz, e eu também duvido muito que você vá me perdoar.
Então, eu só vou tentar te dizer como eu estou me sentindo.
Hoje faz um mês que eu te deixei. Sim, eu estou contando.
E eu, que tinha medo do sacrifício que seria estar com você nessa situação, não imaginaria que
ficar sem você seria mil vezes pior. Eu sei, sou um otário.
Ou um “gênio”, como você dizia.
A verdade é que eu sinto falta disso. Dos apelidos. Das risadas. De você.
Sinto sua falta, Sophia. Sinto falta de nós.”.

Sophia fecha o papel em suas mãos e olha para cima, tentando controlar as
lágrimas. Eu pego a carta que ela segura e a coloco ao meu lado, então ela pega
outra.
Algumas partes ela lê em voz alta para mim, em um misto de tristeza, dor e
descrença. Algumas vezes ela chega a dar uma risadinha de escárnio, mas eu sei
que na verdade, ela só está tentando camuflar os sentimentos que a tomam.
O que ela não lê, eu entendo como sendo coisas muito particulares, e por mais
que eu brigue internamente comigo sobre isso, sobre como estou sendo infantil
tendo esses pensamentos bestas, é impossível não me sentir incomodado em
perceber como esse rapaz a conhece. Em como ele consegue mexer com todas as
emoções dela, e principalmente, em como eles tiveram um passado cheio de
acontecimentos. Mas o que mais me surpreende, no fim das contas, é perceber
que ele sempre foi um bom namorado. Então por que esse idiota fez isso?
— Olha isso. — Ela resmunga, e lê um pedaço da carta. Por mais que ela tente
parecer brava, eu sei que ela está dilacerando por dentro.

“Eu queria saber como está sendo essa sua nova fase. Todos os dias eu me culpo pelo que fiz a
você, e sinceramente, acho que foi por isso que eu fui embora. Eu não ia conseguir assistir dia após dia o
quanto estraguei tudo, o quanto estraguei sua vida. A culpa me corrói um pouquinho a cada dia, mas a
saudade também. A briga aqui tá foda.
Ps: você ainda odeia que eu fale palavrões?”.
— Dá pra acreditar? — Ela balança a cabeça.
— Ele é um idiota — eu resmungo indignado, porque ele é mesmo. Sincero
ou não, ele é um imbecil. — Jaz faz anos e ele ainda acha que você odeia ou
deixa de odiar alguma coisa sobre ele?
— Ele usa o humor para camuflar situações em que se sente desconfortável. É
tipo você com o uísque. — Ela dá de ombros e eu reviro os olhos. Sophia e essa
mania de justificar tudo, inclusive a merda dos outros.
— Tem mais? — Estico o pescoço para tentar ver e ela puxa outra carta da
caixa. Ela não leria todas hoje, eram muitas, mas parecia que por algum motivo,
ela queria passar os olhos em todas, como se alguma delas fosse lhe dar uma
resposta.

“Decidi continuar escrevendo, mesmo sem ter qualquer resposta sua. No fundo, acho que essas cartas
são mais para mim do que para você, para ser sincero. De qualquer forma, eu escrevo e finjo que você só
está internalizando seus sentimentos antes de finalmente aceitar me ver, não que você está propositalmente
me ignorando, simplesmente porque me odeia. Você sabe que eu sempre fui muito bom em fingir.
Hoje, minha especialidade é fingir que sua falta não está me matando.
Eu não consigo me envolver com ninguém, mesmo que elas andem.
Foda-se, elas podiam voar, que seja.
Sophia, elas não são você. Ninguém é.
Me ferrei, não é?
Eu banquei o idiota e te perdi. Destruí sua vida e nem fiquei ao seu lado para ajudá-la a se
reconstruir…”.

— Aparentemente, você fez isso muito bem sem ele — tento me controlar,
mas não consigo. É um monte de baboseira barata colocadas em papel, mas eu
não posso falar isso com essas palavras, Sophia nunca me perdoaria, e minha
cota de babaquices ditas já ultrapassou o limite do aceitável.
— Eu sei o que você está pensando. — Ela aponta uma das cartas na minha
direção, me recriminando. — Apenas, me deixa. Me deixa fazer isso.
— Eu não falei nada, Soph.
— Mas pensou. — Ela argumenta, e, bom, não tem como discutir com esse
argumento. Eu realmente pensei.
— Tudo bem, eu pensei — confesso.
— Então não pense. — Ela consegue dar uma risadinha e isso aquece meu
coração. Eu amava saber que a fiz rir em um momento tão ruim. — Só me apoie,
por favor.
— Sempre. — Sorrio e meus olhos se erguem, encontrando os dela. Nos
encaramos por alguns segundos e eu toco no assunto, porque eu preciso falar,
mesmo que essa não seja a melhor hora. Na verdade, acho que nunca será uma
boa hora, então que seja de uma vez. — Então… Nós somos amigos de novo?
Mexo na barra da minha camiseta enquanto espero uma resposta, e ela abaixa
o rosto, mexendo nas cartas. Um sorrisinho de canto surge em sua face e ela
balança a cabeça.
— Nós nunca deixamos de ser, para com isso.
Seguro seu queixo e ergo seu rosto para olhar novamente em seus olhos. Fico
sério para ela entender o quão honesto eu estava sendo.
— Eu não estava brincando sobre o que eu te disse, Sophia. Eu não te beijei
para consertar nada. — Quando ela inspira, pensando sobre o que falaria, eu a
corto. — Mas não vamos falar disso agora. Nós vamos ter muito tempo para isso
ainda. No momento, o que importa é você e o que você está sentindo.
Ela sorri.
— Obrigada.
Eu pisco.
— Por nada, linda.
[…]
Muitas cartas lidas e muitas ironias ditas por mim depois, Sophia enxuga os
olhos e se prepara para voltar para a sala. Em alguns momentos da leitura, eu
banquei o idiota, porque eu simplesmente não aguentava tanta ladainha. Mas eu
preciso que ela saiba que apesar de qualquer coisa, eu estaria ali por ela, assim
como ela esteve por mim em meus piores momentos.
Quando entramos na sala, os pais de Sophia nos olham angustiados, como se
estivessem desesperados pelo aval da filha. No entanto, Sophia não diz nada. Ela
não toca no assunto das cartas, nem em como está se sentindo sobre isso. Apenas
se vira para mãe e diz:
— Eu estou indo para minha casa. — Eu sinto meu coração se aquecer quando
ela se refere a minha casa como sendo sua, mas é impossível não notar os olhos
do pai dela se arregalarem quando as palavras deixam sua boca.
— Filha… sua casa é aqui. — Há dor em cada palavra que sai de sua boca.
Dor e culpa.
Ela balança a cabeça.
— Não, pai, minha casa é onde a Lilith está. Não estou desmerecendo vocês,
nem essa casa, que eu amo tanto. Mas vocês me decepcionaram muito mesmo.
Eu preciso só da minha pequena, e esquecer que vocês pegaram o ódio de vocês
e quiseram que eu sentisse também, quando na verdade eu só queria seguir em
frente. E eu só vou esquecer isso quando estiver com ela, porque mesmo com
seis anos de idade, ela dá aula para todos nós.
— Filha, não é bem assim… — O pai dela tenta, mas ela não está disposta a
discutir. Não é raiva, nem mágoa, nem nada. É apenas cansaço. Cansaço de lutar
diariamente pelo direito de ser quem é, e de poder fazer as coisas como quer
fazer, sem ser confundida com uma criança pequena.
— Pai, foram vocês que me ensinaram a ser cristã, mas acho que se
esqueceram disso pelo caminho. Eu sei que vocês me esconderam isso porque
me amam, mas amor nenhum vale isso. Vocês tiraram de mim o direito de
perdoar uma pessoa. Isso é meio sério, não é? — Ela pergunta, mas nenhum dos
dois responde. A vergonha está estampada no rosto de ambos. — Eu amo vocês,
mas eu preciso de um tempinho para colocar meus sentimentos no lugar.
Quando ela se afasta, eu me viro para Cilene e dou um meio sorriso, tentando
melhorar a situação de alguma forma.
— Pode ficar em casa pelo resto do dia, Cilene. Vocês tiveram um dia difícil.
Eu levo a Sophia para casa.
Ela concorda, então eu saio logo em seguida.
Antes que Sophia saia pelo portão, eu me abaixo e seguro suas mãos entre as
minhas e sem dizer nada, eu as beijo. Quando ergo meus olhos, encontro os seus,
fixos em mim, curiosos.
— Eu só quero que você saiba que eu te acho muito forte. Muito mais forte do
que eu. Muito mais forte do que muita gente que eu conheço. — Afago seus
dedos entre os meus. — E se eu consegui aguentar todos esses meses de tristeza
e angústia, é porque eu tinha você ao meu lado.
E seu rosto inchado pelo choro se abre em um sorriso lindo.
— Mas agora vamos — eu me levanto, deixando claro que aquilo não era uma
estratégia para conseguir nada. Eu apenas queria que ela soubesse o quanto é
importante para mim.
O quanto tem se tornado importante.
CAPÍTULO 22 – O MAIS PURO AMOR DO MUNDO

Alexandre
Lilith chega da escola e faz Sophia esquecer todas as merdas que a rodeiam
por algum tempo, o que de certa forma é bom. Ela está com a aura pesada, de um
jeito que eu nunca havia visto antes. Não sei se pela reaparição do fantasma em
forma de ex-namorado babaca, pelas cartas cheias de besteiras ou pela atitude
nada correta dos pais. Talvez uma mistura muito ruim de todas essas coisas.
E eu achando que as coisas ruins só aconteciam no fantástico mundo zoado
do Alexandre.
Jantamos todos juntos, e enquanto Lilith conta sobre a aula de balé e de como
a professora dissera que ela tem muito jeito para a dança assim como sua mãe,
Sophia e eu nos olhamos e trocamos sorrisos cúmplices. Nós dizemos nada e
tudo ao mesmo tempo, em apenas um segundo de reconhecimento. Aquilo me dá
um estranho respiro, um alívio muito grande, na verdade. É uma sensação de
finalmente estar completamente conectado com outro ser humano além da minha
filha, e isso é tão bom.
Se ela ainda não está bem, com certeza ficará. Porque é isso que mulheres
com a força de Sophia fazem: elas se reconstroem quantas vezes forem
necessárias, e ficam cada vez mais fortes, mais sábias, mais inteligentes.
Mais lindas – minha mente sussurra em meu ouvido quando eu a vejo dar um
grande e iluminado sorriso em direção à minha filha. Seu cabelo castanho está
amarrado alto, mas algumas mechas estão soltas de um jeito bagunçado, porém
incrivelmente bonito, como uma moldura natural ao seu rosto. Seus olhos cor de
uísque brilham em direção à minha filha, que conta algo de forma muito
animada, e Sophia, mesmo com tudo o que a está remoendo por dentro, se anima
também, como se nada fosse mais importante do que o que a pequena está
dizendo.
E assim como a terra gira em torno do sol, eu vejo claramente que Sophia gira
em torno da felicidade da minha filha, não importando quais circunstâncias
aconteçam. E se uma pessoa é capaz de amar tão genuinamente alguém que
sequer tem seu sangue, ela é capaz de sentir o mais puro amor do mundo.
Na verdade, ela é capaz de ser o mais puro amor do mundo.
E então eu sorrio também, mesmo sem elas estarem me olhando, e meu peito
explode em admiração.
Meu Deus, como eu nunca reparei nela antes?
[…]
Saio do banho e coloco um short de dormir. Ando pelo cômodo, um pouco
agitado e olho pela janela. Apesar de ser bem tarde, o sono me abandonou, e eu
estou sendo atormentado pelos milhares de pensamentos que sempre insistem em
rondar minha cabeça. Com o passar do tempo, estou aprendendo a lidar com
eles, filtrando o que é bom sentir e o que apenas me puxará para trás, então,
antes que eles tomem conta de mim, eu saio em direção à cozinha, para buscar
um copo de água ou até mesmo de vinho.
Qualquer coisa que me faça pegar no sono.
Passo pelo quarto de Sophia e vejo sua luz acesa. Sei que prometi a mim
mesmo que daria um tempo para ela processar tudo, mas preciso saber como ela
está depois do que aconteceu hoje. Bato de leve em sua porta e espero uma
resposta. Quando ela me diz para entrar, empurro lentamente a porta e a encontro
já deitada. Ela me dá um sorriso meio torto, mas engraçadinho.
— Se eu fosse sair daqui só pra abrir a porta, daria um trabalhão. — Ela ri e
eu rio junto.
— Não quero te incomodar — digo —, só quero saber como você está. Sem
sono? — Pergunto e ela balança a cabeça, concordando.
— Sem sono.
Sem pedir permissão, eu entro em seu quarto. Sei que não estou em meus
melhores trajes, mas já morávamos há tanto tempo na mesma casa, que isso
havia virado quase uma mera formalidade. Olho para a beirada da sua cama, e
vejo um espaço vazio lá. Aponto-o como se pedisse permissão, e ela concorda
com a cabeça, então me sento ao lado de seu corpo. Ela se endireita, ficando
quase sentada, e eu coloco minha mão sobre a sua.
— Eu sei que foi um dia difícil, mas acredite em mim, o senhor especialista
em dias difíceis: eles passam. Vai ficar tudo bem entre você e seus pais. Vocês
todos só precisam de tempo.
Ela concorda com a cabeça.
— É, eu sei. Também já tive minha cota de dias de merda.
Arregalo os olhos e rio.
— Será que eu ouvi você dizer merda? Você? Sophia? — Soo exagerado e ela
ri.
— É, eu também sei falar palavras feias. Não sou a dona de todo o mau humor
do mundo, porque esse posto é seu, mas eu também sei esbravejar quando
preciso, viu?
Ajeito uma mecha de seu cabelo atrás da orelha e então suspiro, olhando para
ela.
— E o que você não sabe, hein? Tem horas que eu tenho a impressão de que
você sabe tudo, sobre todas as coisas.
— E tem vezes que eu acho que não sei nada. — Ela diz baixinho.
— Às vezes a gente precisa falar pra vida o quanto ela é uma vaca quando
quer. — Mesmo que eu tenha prometido que ficaria longe, desço meus dedos de
seu cabelo para o seu rosto e faço um carinho em sua bochecha. Ela não recua,
nem me recrimina, então eu aproveito. Eu precisava tocá-la. — Você está mesmo
bem?
Ela ergue seus dedos e acaricia os meus, que ainda estão em seu rosto. Depois
de todo o estresse que tivemos, ser tocado por ela é quase inacreditável, pois eu
cheguei a achar que ela jamais sequer me olharia de novo.
— Não. Mas vou ficar. — Um sorriso triste toca seu rosto. — Eu sempre fico,
Alexandre.
— E eu não sei? — Nossos olhares se encontram, e por alguns segundos, eles
dizem a mesma coisa: estamos profundamente atraídos um pelo outro. Nossas
respirações ficam pesadas, e o desejo quase toma uma forma humana dentro do
cômodo. Eu quero fazer isso, e sei que ela quer também, então abaixo o meu
rosto e ela fecha os olhos, o que eu entendo como um sim para um beijo. Porém,
quando nossas bocas estão quase se tocando, ela toca meus lábios com os dedos,
me parando.
— Preciso te dizer uma coisa.
Sufoco a frustração e suspiro. Ela teve paciência comigo, e eu teria toda a
paciência do mundo com ela, se precisasse.
— Então me diz.
— Eu aceitei tomar um café da tarde com o Rodrigo amanhã. É minha folga,
mas quero saber se tem algum problema para você.
Como se vai de um beijo para um quase infarto em tão poucos segundos?
— Claro que tem problema! — Eu digo, com a boca ainda quase colada na
sua. Quando ela suspira, nossas respirações se encontram, se confundem, e eu
quero muito fingir que não escutei sua última frase e me inclinar apenas um
pouquinho mais para tocar sua boca. A questão é que eu não posso. — Tem
muito problema sim, mas não é pelo seu trabalho, Sophia. Amanhã é sua folga, e
na sua folga você faz o que você quiser — falo, deixando claro meu desconforto.
— O problema é você sair com esse cara, seja quando for.
Ela ergue os olhos, e eu não resisto à tentação de sustentar seu olhar com tudo
de mim. Assim, tão de perto, ela parece ainda mais inocente e delicada, o que me
deixa mais primitivo e muito mais protetor. E se isso não é um tremendo
problemão, eu não sei o que é. Eu não me sinto assim há muito, muito tempo.
— Qual o problema em sair com ele? — Ela me desafia. Eu sei que ela sabe
que eu tenho muito a dizer, e se ela quer ouvir, ótimo.
— Eu entendo você ter ficado brava com seus pais por eles terem escondido
algo tão importante de você, mas daí a aceitar esse cara na sua vida assim, como
se nada tivesse acontecido… é demais, Sophia. Foi ele que te colocou nessa
cadeira, pelo amor de Deus. Ele não pode simplesmente reaparecer e tudo bem.
Ela ergue uma sobrancelha para mim, e mesmo que eu pareça louco, eu quase
vejo divertimento em seu olhar.
— Você sabe que eu não o culpo, e eu li aquelas cartas, Alexandre, você
estava lá, você as ouviu também. Ele se desculpou. Então por que você está
reagindo assim? — Ela sustenta meu olhar com o queixo levantado. Tão dona de
si. Dona de si o bastante para me emputecer. Ela quer o que? Que eu enumere
todos os motivos pelos quais esse cara não merece voltar para a vida dela? Ou
será que ela prefere por ordem alfabética? Porque eu posso fazer dos dois jeitos.
Mas, contrariando minha raiva, eu decido ir direto ao ponto:
— Me diz você, Sophia. Por que você está reagindo assim? Porque eu
simplesmente não entendo.
O silêncio que paira entre nós apenas quer dizer que nós dois estamos
pensando sobre isso, e eu me pergunto se os pensamentos dela são iguais aos
meus. Também me pergunto, mais do que eu quero admitir, se ela já gostou de
mim tanto quanto já gostou desse cara, seja lá no passado ou agora, no nosso
presente. Inferno, eu daria muito apenas para saber isso.
— Com todo o respeito que eu tenho por você, não é algo que você deva
entender, Alexandre. Apenas respeitar. Eu não vou virar amiga dele. Não vou
voltar com ele, nem nada do tipo. Eu só quero ouvi-lo, agora com todos os
pingos nos ís. E eu sou só sua funcionária, então. — Ela dá de ombros, seus
olhos quase implorando para que eu a desminta.
Ela quer que eu a desminta? Eu vou fazer isso, mas vou fazer do meu jeito.
E esse moleque não vai nem saber o que passou por cima dele.
— Você não é só isso para mim, e a essa altura você já deveria ter percebido,
Sophia. Mas não tem problema. Eu fiz a merda, mas eu vou consertá-la. —
Quando ela pensa em retrucar alguma coisa, eu não lhe dou tempo. Me abaixo e
selo minha boca na sua, antes de levantar-se da cama e sair do quarto sem falar
nada.
Não foi um beijo, eu sei.
Foi mais do que isso. Foi uma promessa.
Uma promessa de que eu não vou desistir dela tão fácil assim.
CAPÍTULO 23 – O AMOR ESTÁ EM TUDO

Sophia
Olho-me no espelho enquanto termino de colocar os brincos. O vestido azul,
bem a cara do verão, caiu muito bem em mim, e como o dia está quente, acho
que ele é uma ótima opção para um café da tarde.
O cabelo preso em um rabo de cavalo frouxo dá um ar de casualidade, e eu
jogo minha franja para o lado com a mão mesmo. Pego meu rímel e estico meus
cílios o máximo que consigo, depois passo um batom claro na boca, mas é só
isso. De qualquer forma, maquiagem carregada nunca combinou comigo mesmo,
e eu estou tentando não me arrumar muito. Não quero que pareça que me
arrumei para Rodrigo.
Ao mesmo tempo, me olho mais uma vez no espelho e me pergunto se estou
bonita, antes de sair do quarto. Eu realmente não menti, e não quero estar bonita
para meu ex-namorado.
Eu quero estar bonita para o Alexandre.
Esse pensamento me acerta, junto com a conversa estranha de ontem e o
segundo beijo, ainda mais sem noção do que o primeiro. Aonde ele quer chegar
com tudo isso? E por que isso me afeta tanto assim?
Balanço a cabeça, tentando desanuviar todos esses pensamentos. Vou até a
caixinha onde estão todas as cartas de Rodrigo e pego uma delas. Abro-a e releio
as palavras mais uma vez:

“Às vezes me pergunto o que você está fazendo, como está vivendo. Torço para que esteja bem.
Mas é impossível não me perguntar todo santo dia se você vai ser capaz de me perdoar um dia. Você vai,
Sophia?”.

Guardo o envelope dentro da bolsa e saio do quarto com todas essas questões
em mente. Quando entro na sala, a cena que vejo faz meu coração ficar
pequenininho. Alexandre está deitado no sofá, com Lilith enrolada em seus
braços e um livro de princesa aberto em suas mãos. Ele está lendo uma
historinha para ela, que presta muita atenção em cada palavra, e mesmo sabendo
que eu já li essa mesma história para ela um milhão de vezes, a pequena ainda
absorve tudo como se fosse a primeira vez.
Penso em sair sem fazer alarde para não atrapalhá-los, porém, quando eu viro
minha cadeira, Lilith ouve e me chama.
— Sosô, como você tá linda! — Ela exclama admirada, erguendo a cabecinha
que estava repousada no peito de seu pai, e eu sorrio. — Ela não tá linda, papai?
— Ela se vira, esperando uma resposta.
Alexandre ergue os olhos e dá um meio sorriso.
— Você tem razão mesmo, filha. A Sosô está linda. — Ele passa os dedos
entre os fios escuros e lisos da filha e solta, casual. — Mas a Sosô está sempre
linda, não está?
Lilith sorri feliz, e confirma com a cabeça.
— Obrigada meu anjinho — eu digo para Lili. — Obrigada também,
Alexandre — eu murmuro, um pouco mais sem graça, e abaixo a cabeça. Mesmo
com a aproximação que estávamos tendo nos últimos dias, às vezes eu
simplesmente não sabia como reagir diante dele. É como voltar a ter quinze
anos.
— Aonde você vai? — A pequena torce o rosto.
— Eu vou tomar um café com um amigo meu, meu amor. Mas eu já volto, tá?
É rapidinho. — Alexandre torce o nariz diante da palavra “amigo”, mas não diz
nada, então Lilith sai de seu abraço e vem correndo até mim. Ela se senta em
minha cadeira e me dá um beijo estalado na bochecha.
— Bom passeio, Sosô. — Sua janelinha aparece no sorriso gigante que ela dá
e é impossível não sorrir junto. Se existe um ser mais doce do que essa criança,
ainda não fomos apresentados.
— Obrigada. — A beijo de volta e então ela desce, voltando para perto de
Alexandre. Ele me olha mais uma vez, mas dessa vez não sorri. É mais como se
ele me perguntasse com os olhos: “você vai mesmo sair com esse cara?”. Faço o
meu melhor para ignorar isso e me viro, tentando esconder meu nervosismo.
Meu coração acelera consideravelmente enquanto me dirijo à saída, e quando
chego ao portão, Rodrigo está me esperando em um táxi adaptado. Por mais que
eu não queira, dou um sorriso quando o vejo encostado na lateral do veículo,
como se fosse o próprio dono. Sua camiseta branca está colada ao corpo,
ressaltando os músculos nada exagerados, e assim como eu, ele está vestido
casualmente. Suspiro de alívio, pois odeio me vestir inadequadamente.
— Uau! — Suas duas mãos estão no bolso enquanto ele me olha. — Você está
linda.
— Obrigada — me limito a dizer, então ele finalmente abre a porta. Respiro
fundo, tomando coragem para fazer isso, mas não o deixo perceber.
Quando o táxi toma as ruas da cidade, meus pensamentos já estão muito longe
daqui. Mesmo que eu não queira, o homem que ficou lá dentro lendo historinhas
para a filha ocupa muito mais minha mente do que esse que veio me buscar.
E isso é assustador, porque pela primeira vez, minha paixão platônica não
parece tão platônica assim.

Alexandre
Quando Sophia sai, eu fico olhando para porta por, pelo menos uns cinco
segundos, me sentindo o cara mais derrotado do planeta. Ela está indo em
direção ao cara, e eu não posso fazer nada. Não posso proibi-la de nada, não
posso fazer mais do que eu estou fazendo.
Lilith se distrai mexendo nos lápis de cor que já estão espalhados por toda a
sala, então eu me permito ter um momento. Olho para o enorme quadro de Júlia
dançando na parede e suspiro, pensando no que posso fazer para resolver todas
as coisas de uma vez. O engraçado é que eu sei que se ela estivesse aqui, diria
com todas as letras: não dá pra resolver tudo de uma vez, Alexandre. Chega com
esse imediatismo. Dê tempo ao tempo.
Não sei quanto tempo fico assim, até que vejo Lilith subir no sofá e ficar da
mesma altura que eu. Ela me abraça pelo pescoço e olhamos na mesma direção,
fitando o retrato da mãe.
— Papai… — Ela me chama depois de alguns segundos em silêncio.
— Oi, meu anjinho — coloco minha mão sobre seus bracinhos, enlaçando-a
enquanto olhamos os dois para o mesmo quadro.
— A minha pofessora de balé era amiga da mamãe, né? A Tia Andéia.
— Era sim – confirmo para ela. Andréia e Júlia eram parceiras na dança, além
de amigas íntimas por quase toda a vida. — Por que a pergunta meu amor?
— Porque ela disse que eu pareço muito a mamãe. Os olhos dela até encheram
de láguimas hoje enquanto ela me via dançar, e eu até pensei que estava
dançando mal, mas depois ela disse que não, que eu danço muito bem, e que até
nisso eu e a mamãe somos parecidas. — Ela segura meu rosto e me olha, cheia
de esperança. — Você acha que eu pareço com ela, papai?
Sorrio, porque parecer é quase um eufemismo. Lilith é mais parecida com a
mãe do que eu posso descrever. Elas têm a mesma cor de cabelo, os mesmos
olhos questionadores, o mesmo tom de pele, e, claro, a mesma doçura. Júlia se
foi, mas deixou uma cópia em miniatura para mim.
Uma mini Júlia com a língua afiada e uma energia inacabável.
— Muito, meu amor. Você é a cara dela. — Confirmo e ela parece gostar
muito do que digo para ela.
— Que bom, porque ela é linda… — Ela usa o verbo no presente, o que me
indica que ela continua sendo visitada pela mãe.
— Ela tem te visitado? — Viro meu corpo, ficando de frente para ela. Arrumo
seu cabelo bagunçado na testa, colocando os fios extremamente lisos atrás de sua
orelha.
— Eu vejo a mamãe todo dia, papai. Nem sempe eu converso com ela, mas
sabe o que ela me disse uma vez?
— O que meu amor?
— Ela disse que estaria em tudo perto de mim, e se ela disse, eu aquedito. A
mamãe nunca mente, você sabe.
— É, eu sei. — Puxo seu nariz de forma carinhosa e ela ri. — Então a mamãe
está em tudo?
— É. — Ela balança a cabeça, muito animada. — No sol, no céu, no jardim,
em tudo. A mamãe não foi embora, papai. Ela só se tornou um pouquinho de
cada coisa, sabe? E agora eu tenho a mamãe em todos os lugares! — Ela diz
animada, me pegando completamente de surpresa, e meus olhos se enchem de
lágrimas. Mais uma vez, minha filha estava me dando uma lição.
Eu a abraço apertado, tão apertado que com certeza a assusta.
— Meu Deus, filha, de onde vem tanta sabedoria? — Ela ri com a sua
janelinha e me abraça de volta, fechando os olhos, sem me dar uma resposta
concreta de imediato. Eu sabia que minha filha era especial, iluminada, só não
sabia que era tanto. Depois de um bom tempo abraçada a mim, ela me solta e dá
de ombros, com a melhor expressão infantil que ela, no alto de seus seis anos,
pode fazer.
— Eu não sei como papai, eu só sei.
Então eu me dou conta: minha filha nasceu especial. Toda a sabedoria, todo o
amor, toda luz veio com ela, em seu amago. Sua sabedoria é tão incrível porque
é intrínseca. Nada lhe foi ensinado. Pelo contrário, se tem alguém que aprende
todos os dias nessa relação, esse alguém sou eu.
— Você tem razão, meu amor. A mamãe está em tudo mesmo e
principalmente… — toco seu coração —, ela está aqui.
— E aqui. — Ela toca responde descansando a mão em meu peito e eu
concordo.
— E aqui — coloco minha mão sobre a mão da minha filha, por cima de meu
coração. — Com certeza, aqui.
[…]
Ergo-me da espreguiçadeira, e abaixo meu livro, observando Lilith na parte
mais rasa da piscina. Como estamos sozinhos em casa, e o calor está
insuportável, decidi pegar uma corzinha. Há meses não faço isso, e eu estou
precisando.
Com todo o estresse dos últimos meses, as viagens cada vez mais cansativas,
os dias longe de casa, eu havia me esquecido um pouco de olhar para mim. Ter
momentos em paz, sem pensar em nada, muitas vezes funciona melhor do que
qualquer terapia do mundo, pelo menos no meu caso.
Minha filha acena, e eu aceno de volta, e então olho no relógio. Falta pouco
para o sol se pôr, e mesmo que eu não queira fazer isso, calculo mentalmente
quanto tempo Sophia já está fora. Eu não sei o que ela tanto tem para conversar
com aquele cara; a única coisa que eu sei, é que preciso fazer alguma coisa. Ele
não pode simplesmente chegar e ir tomando tudo, ocupando espaços que não são
mais dele.
Penso um pouco e então uma ideia me toma. Eu preciso ter um momento com
Sophia, para termos uma conversa séria a respeito dos nossos sentimentos, e
nada melhor do que estarmos sozinhos para isso. Sem qualquer distração, ou
medo. Não que minha filha atrapalhasse, mas eu me permito ser um pouco
egoísta dessa vez.
Hoje eu quero a atenção de Sophia só em mim.
Puxo meu celular da mesinha ao lado e disco para meu irmão. No segundo
toque ele atende, e eu pergunto se ele pode levar Lilith para dormir com ele, mas
sem mencionar o motivo.
O que eu menos preciso nesse momento, é sermão do Padre André.
Alego que preciso resolver umas coisas e quando ele concorda, eu desligo,
com um sorriso no rosto. Chamo Lilith e digo que o tio virá buscá-la em meia
hora, então ela sai rapidamente da piscina, dando pulinhos de alegria e
exclamando em alto e bom som todos os programas mais do que divertidos que
ela vai pedir para ele levá-la. Dou risada porque sei que a noite do meu irmão
será longa.
Levanto da espreguiçadeira seguindo minha filha, dou um sorriso do tamanho
do mundo e então coloco meus óculos de sol antes de seguir para dentro da casa.
Se esse cara quer medir forças, nós vamos medir. Vou fazê-lo entender que
voltou um pouco tarde demais.
— Café da tarde é o cacete. Aprende como se faz, moleque.
CAPÍTULO 24 – MINHAS VERDADES

Sophia
Quando o táxi para em frente ao lugar que Rodrigo me leva para comer, eu
respiro fundo, tentando controlar as lágrimas que eu sei que irão querer cair. É
uma padaria simples, mas é extremamente significativa para nós dois. É de
frente para o colégio onde nós dois estudávamos, e nós sempre comíamos aqui
antes ou depois das aulas. Foi aqui que ele disse que me amava pela primeira
vez. Foi aqui que ele escondeu uma aliança dentro de um cupcake e me pediu em
namoro, em uma cena tão clichê quanto romântica. Foi aqui que ele contou que
seus pais haviam se separado, e chorou como uma criança em meu colo, sem se
importar com todos olhando. Foi aqui que eu lhe disse que estava pronta para
perder minha virgindade, e que eu havia escolhido ele para isso. Foi aqui que ele
disse que ainda iriamos nos casar.
Depois do acidente, nunca mais voltamos aqui.
Quando ele percebe minha expressão, me chama algumas vezes e assim que
eu o olho, ele franze o cenho, entendendo que talvez, as lembranças sejam
demais para mim.
— Se você quiser, a gente pode ir para outro lugar.
A questão é que fugir nunca me ajudou em nada.
— Não, tudo bem — eu forço um sorriso. — Eu gosto daqui. Gosto mesmo.
Seu semblante se ilumina, como se minhas palavras tivessem despertado
alguma lembrança em sua mente.
— Eu sei. — Ele dá um sorriso, e eu sei que é sincero. Ele sempre amou esse
lugar também. — Tô torcendo para eles ainda terem aquele bolo com sorvete.
Quando entramos, me surpreendo quando percebo que ele já havia deixado
uma mesa reservada em um lugar com espaço suficiente para a cadeira e para eu
me movimentar com folga. Quando nos acomodamos, ele pega o cardápio, e
sorri para a atendente. Percebo que ela o olha claramente interessada, mas ele
sequer percebe. Rodrigo nunca teve muita noção de sua beleza, para falar a
verdade. Ele está sempre distraído, com a mente a todo vapor, pensando em mil
coisas ao mesmo tempo, e parece que isso não mudou nada durante todo esse
tempo.
— Acho que eu vou querer o de sempre. — Ele ergue os olhos do cardápio e
sorri para mim. Por um segundo, eu realmente sinto como se seis anos não
tivessem passado, mas a sensação logo é quebrada.
— Será que depois de seis anos, “o de sempre” continua a mesma coisa? —
Eu solto, talvez um pouco ácida, e ele percebe que não estou confortável com ele
fingindo que nada mudou.
Tudo mudou. Tudo.
— Eu sei que é difícil para você, Sophia. E acredite, eu agradeço muito por
você, pelo menos, estar tentando.
— Eu devo isso muito mais a mim do que a você, Rodrigo — digo olhando
dentro de seus olhos. — Muitas coisas ficaram em aberto entre nós, e por mais
eu que tenha fingido que essas coisas não me afetaram ao longo dos anos, elas
afetaram sim. Eu só sei, assim como você, fingir muito bem.
[…]
Nossos pedidos chegaram e nós comemos em silêncio. No começo foi
estranho e constrangedor, mas logo o silêncio se tornou reconfortante. Ele havia
pedido o de sempre, bolo com sorvete, e eu havia pedido cupcakes e um milk-
shake duplo de morango.
Enquanto me distraía com o canudinho da minha taça, Rodrigo largou o garfo
e olhou para mim. Percebi que ele queria falar alguma coisa e não tinha
coragem, então eu apenas balancei a cabeça e ri.
— Fala, vai.
Ele arregala os olhos.
— Como você sabe que…
— Que você quer falar alguma coisa? — Eu faço uma cara de obviedade. —
Dois anos, Rodrigo. Dois anos de namoro. Tem coisas que nunca mudam.
— Tudo bem. — Ele relaxa os ombros e me olha nos olhos. — Então você…
leu as cartas?
Faço que sim lentamente com a cabeça.
— Todas elas?
— Todas.
— Ainda se sente como antes? — Ele torce as mãos em expectativa, e eu
largo de vez meu prato. Eu sabia que aquela seria uma conversa difícil, só não
sabia que seria tanto. Minha cabeça estava confusa.
— As coisas não mudam da noite para o dia. Nós conversamos. Eu li as
cartas. Entendi muitos pontos, outros não. Mas Rodrigo… — Nesse momento,
me permito ser o mais sincera possível. Eu não tinha obrigação de digerir tudo o
que aconteceu em anos, em questão de horas. — Isso não vai apagar os anos de
merdas que aconteceram. Não vai apagar seu abandono, porque
independentemente de qualquer coisa que você tenha escrito, uma coisa não
mudou: você foi porque quis ir.
— Eu fui porque sou um idiota. — Ele bufa e joga as costas para trás.
— Está aí um ponto que eu não posso discordar, gênio. — Eu brinco, tentando
aliviar as coisas. — Entende que o que me machucou não foi você me deixar?
Ninguém é obrigado a ficar com ninguém, Rodrigo. Mas você se foi pelos
motivos errados. Você não deixou de me amar. Você não foi porque a relação
estava desgastada. Você foi porque não aguentou me ver em uma cadeira de
rodas. Só que em nenhum momento você pensou em como eu me sentia em estar
em uma. E eu não te culpo por eu estar nela. Eu sei que você nunca me
machucaria de propósito. Mas meus piores machucados não são os que eu vejo
no espelho. Hoje em dia, essa cadeira é só uma cadeira. Em mim, a parte que
você mais estragou não foi minha coluna… Foi meu coração.
— Caralho, cada vez que você fala sobre isso, fica pior. Eu me sinto ainda
mais um lixo, e eu sei que isso vai me assombrar até meus últimos dias. Eu
nunca vou ter paz por ter te machucado tanto, e eu… eu sequer sei como fiz isso.
Num dia nós éramos um casal lindo, e no seguinte, eu estava destruindo tudo. —
Ele coloca as duas mãos na cabeça. — Eu não sou esse tipo de pessoa, você sabe
disso, mas por um momento eu fui. Não sei se foi medo, desespero, eu realmente
não sei, e talvez eu passe o resto da minha vida tentando entender o que diabos
passou pela minha cabeça.
Olho para ele e sinto uma dor real em sua feição, e de repente eu já sei o que
fazer. Quando ele me deixou, nos primeiros dias, o tempo parecia ter acelerado e
alçado voo sem mim. Parecia que os dias passavam e eu não via. Algumas vezes,
parecia o contrário: parecia que tudo tinha parado de repente. Essa sensação de
inércia me deixava petrificada, em pânico. Eu torcia para acordar daquele sonho
ruim. Eu tentava me levantar da cadeira, e muitas vezes eu caí e chorei no chão
até alguém me levantar.
Às vezes, eu me pegava mirando meu reflexo no espelho do meu quarto e me
indagando quem eu havia me tornado, se eu iria para algum lugar daquele jeito.
Então a imagem mudava e não era mais eu, apenas a sombra opaca da pessoa
que eu costumava ser. Se eu fosse alguém ruim, eu poderia dizer a ele que jamais
o perdoaria. Poderia jogar em seu rosto cada dia que eu sofri. As dores, a
depressão, as dificuldades, os tratamentos que eu não tive condições de pagar.
Eu o faria sentir toda a tristeza que eu senti. Mas eu não sou essa pessoa, e eu sei
como tudo aconteceu depois que o período de aceitação passou.
Depois de um tempo, as coisas começaram a mudar. Se eu caía da minha
cadeira, eu mesma me levantava. Se algo era difícil, eu fazia e refazia até se
tornar possível. E quando eu me olhava no espelho, já não via uma pessoa
horrível. Eu me reconhecia. Via-me novamente, e com um adicional: uma força
descomunal, renovada a cada amanhecer. Uma força que eu criei dentro das
minhas próprias limitações.
Às vezes você precisa cair para levantar-se ainda mais forte.
Ele pode achar que me destruiu, mas eu me reconstruí mil vezes mais forte.
Mil vezes mais sábia também. E eu tenho plena consciência do que uma pessoa
sábia faz: ela segue em frente, independente dos obstáculos que lhe impõem no
caminho.
Estico minha mão e seguro a sua, e ele me olha assustado, quase não
acreditando que eu o estava tocando.
— Não vamos voltar a ser melhores amigos num passe de mágica. Sequer sei
se realmente vamos ser amigos de novo, Rodrigo. — Eu tiro o envelope da
minha bolsa e estendo até ele. Quando ele o abre, não entende o porquê eu
estava lhe entregando sua própria carta. — Mas se tem uma coisa que eu aprendi
na vida, é que perdoar nunca deixou ninguém mais fraco. E se sua dúvida era
essa, se eu um dia seria capaz de te perdoar, a resposta é sim. Eu te perdoo. Nós
somos novos demais para seguir com ódio e culpa. Nenhum desses dois
sentimentos vai mudar o passado, e muito menos vai fazer nada por nós.
Ele fica atônito, sem saber como reagir. Eu realmente acho que ele pensou que
a batalha seria muito mais dura, mas eu sinceramente, não aguento mais isso.
São seis anos. Não seis meses, não seis dias. Seis anos amarrada a algo que já
não me pertence há um bom tempo. Então, depois de alguns segundos, ele ergue
minha mão até a altura da sua boca e a beija. Seu olhar é cansado, quase
dolorido.
— Tem coisa que não muda mesmo, né? Você continua sendo melhor do que
eu. — Ele sorri e eu retiro minha mão. Acho que estamos chegando ao fim desse
café, mas eu me sinto mais leve. Leve de uma forma que eu jamais achei que
ficaria após uma conversa com ele. — Obrigada, Soph. E bem, aquelas coisas
que sua mãe disse… Que era mentira tudo o que escrevi nas cartas… Eu juro
que não é. Eu juro mesmo.
— Eu não te perdoo pelas suas verdades, Rodrigo — dou de ombros. — Eu te
perdoo pelas minhas.
Ele balança a cabeça, concordando sem graça. Brincando com o que havia
sobrado do bolo, ele pensou um pouco antes de falar de novo:
— Eu sei que isso provavelmente é irrelevante para você agora, mas eu quero
te dizer uma coisa.
— O que?
Sua expressão se torna melancólica, e então ele diz, absurdamente triste:
— Mesmo com o seu perdão, vou passar o resto da vida imaginando o que
teria acontecido se eu não tivesse ido embora.
CAPÍTULO 25 – SENTIR É MELHOR QUE SABER

Alexandre
Escuto quando a porta da sala se abre e me preparo para ir encontrá-la. Olho-
me no espelho mais uma vez e ajeito as mangas da minha camisa, um tanto
nervoso. Dou uma ajeitada no cabelo, imaginando se está tudo certo com a
minha aparência, e porra, eu não sei mais fazer isso. Faz tempo que eu não tenho
um encontro, ou seja lá o que for isso que eu estou planejando fazer.
Eu tenho que ir com calma? O que eu falo? Quando eu falo?
Ah, foda-se. Eu só vou lá e vou falar de uma vez.
E se ela decidir ir embora e não cuidar mais de Lilith?
Não, ela jamais faria isso.
Mas e se ela fizer?
Bom, aí eu imploro.
Passo pelo corredor com passos largos e coloco um sorriso na cara, mas
quando eu entro na sala, ele morre no mesmo instante. Sophia está lá, mas ela
tem companhia. Pelo amor de Jesus Cristo, o que esse idiota está fazendo no
meio da minha sala?
— Oi Alexandre. — Soph me olha e dá um sorriso. — Uau. Tá elegante.
Olho para minha roupa e por um momento me pergunto se exagerei.
— Obrigado, eu acho — forço um sorriso e não me preocupo em
cumprimentar o panaca que está me encarando. Pelo jeito, ele também não faz
questão. A única diferença é que esse palhaço tá dentro da minha casa; educação
cairia bem nesse caso. — Eu precisava falar com você… Em particular.
— Ah, claro. — Ela sorri. — O Rodrigo só veio me trazer até em casa e… —
De repente ela olha para os lados. — Cadê a Lilith?
— Foi dormir na casa do André, ele veio buscar ela à tarde.
— Que ótimo. Ela deve ter feito uma festa. — Sophia sorri, porque ela sabe o
quanto Lilith ama estar na casa do tio. — E eu presumo que você vai aproveitar
e sair, assim tão bem arrumado.
— Na verdade… — eu começo, mas Rodrigo nos interrompe.
— Se a princesinha não está e o seu patrão vai sair — ele dá ênfase na palavra
patrão, como se quisesse me lembrar de qual lugar eu ocupo na vida dela. —
Você está livre né Sophia? A gente podia dar mais uma volta, tem um parque
novo que…
Primeiro: quem ele pensa que é ao se referir a minha filha com essa
intimidade? Ele nunca nem sequer a viu. Segundo: Que falta de educação da
porra ficar se intrometendo em tudo. Terceiro: graças a Deus eu não tenho porte
de arma. Ser preso por homicídio aos 34 anos não está nos meus planos.
Se bem que tem gente que merece o réu primário que a gente guarda.
— Como eu estava dizendo antes de ser cortado — de forma muito irônica eu
o interrompo, exatamente como ele fez, porque se ele sabe ser mal-educado, eu
tenho dez anos a mais de experiência nessa merda. — Não vou sair, não. E eu
preciso falar com você, em particular. — Olho para Sophia com intensidade e
então ela entende o quanto estou desconfortável com esse cara aqui. No mesmo
instante, ela se vira para Rodrigo.
— Eu preciso mesmo descansar, Rodrigo. — Ela dá a deixa e ele entende que
ela quer que ele vá embora.
— Claro, claro. — Ele se abaixa e lhe dá um beijo no rosto. — Descanse. A
gente pode marcar isso para outro dia.
— Vamos ver. — Ela dá um sorriso forçado, e quando faz menção de
acompanhá-lo até a porta, eu me adianto.
— Deixa comigo, eu abro a porta para ele, Soph — sorrio, e ela sorri de volta,
achando que é um gesto de educação da minha parte, quase como uma trégua.
Na verdade, eu só quero ter certeza de que ele vai mesmo. Talvez eu também
queira bater à porta com força depois de chutá-lo para longe.
Caminho atrás dele com um sorrisinho mal disfarçado, e quando eu abro a
porta e espero ele passar, o ouço resmungar baixinho para que ela não ouça:
— Eu sei o que você tá fazendo. — Ele me olha com cara de poucos amigos.
— Você gosta dela, não é?
— Isso é da sua conta por que mesmo? Faz seis anos, cara, e quem foi embora
foi você. Supera. — Respondo, com um enorme sorriso de deboche e sarcasmo
na cara. Quando ele não responde nada, eu apenas termino essa conversa
desagradável — Ah! E cara feia pra mim é fome, queridão. Tenha uma boa noite.
E então, sem mais delongas, eu bato a porta em sua cara com um inexplicável
prazer.
[…]
— Você não gosta mesmo dele, né? — Ela pergunta, e dá uma franzidinha no
nariz, claramente arrependida por deixá-lo entrar.
— O que me denunciou? — Coloco uma mão no peito dramaticamente e faço
uma cara forçada de surpresa. — Meu completo desprezo pela presença dele?
Minha cara feia? Minha notável vontade de esganá-lo? Por favor, me diga.
Quero fazer mais. — Respondo sarcástico, enquanto me aproximo dela. Ela ri da
minha cena e eu me abaixo, até ficar à sua altura. — E respondendo à sua
pergunta anterior, eu não vou sair. Na verdade, eu fiz um jantar para a gente.
— Um jantar? Você? — Ela não consegue acreditar e eu me sinto levemente
ofendido. — Tem certeza?
— Sim.
— E você cozinhou?
— Sim, ué.
— Alexandre… — Ela entorta o rosto e eu jogo as mãos para cima.
— Tá, eu não cozinhei. Eu não sei fritar um ovo, e sequer sei onde estão as
panelas nessa casa. Eu comprei a comida, tá melhor para você? — Ela balança a
cabeça, rindo, e eu sorrio junto com ela. — Mas o que vale é a intenção. É só um
jantar simples.
— Claro que vale. — Ela dá de ombros. — E desculpa por ter deixado o
Rodrigo entrar. Não vai mais acontecer. É que eu ainda não sei como agir com
ele. A conversa hoje foi exaustiva, mas acho que finalmente posso dizer que
coloquei um ponto final nisso tudo.
— Isso é ótimo. Não acho que esse cara voltou para te fazer bem — sou
sincero. Eu realmente não acho.
Ela torce o rosto de um jeito que diz “eu não sei”, mas não quero mais falar
sobre isso, então eu sorrio e deixo o assunto morrer. De qualquer forma, essa
noite é sobre tudo, menos sobre ele.
Essa noite é sobre nós.
— Essa produção toda é para o nosso jantar? — Ela aponta minha roupa e de
repente eu me sinto meio bobo.
— É. Eu exagerei?
Seus olhos brilham para mim com uma inegável admiração.
— Não… — Ela prolonga essa palavra por um pouco mais de tempo do que o
normal, e as próximas saem quase como um suspiro. — Você está lindo, na
verdade.
É a primeira vez que ela diz algo assim, tão abertamente, e mesmo que eu
ache que toda a beleza dessa noite se concentrou apenas nela, é impossível não
sorrir com o elogio.
— Você também está linda, Soph. — Mesmo que não tenha se arrumado para
mim, meu lado negro da força insiste em reforçar isso, mas eu o ignoro. Hoje
nenhuma insegurança ganharia minha atenção.
— Obrigada. — Seu rosto ganha um tom rosado, e eu concluo que isso nunca
perde a graça. Deixá-la ruborizada é quase meu atual esporte favorito.
— E então, pronta para jantar?
Sophia
Quando Alexandre disse que tinha preparado um jantar para nós, eu imaginei
que ele havia pedido comida e que iríamos nos sentar para assistir alguma coisa
na televisão enquanto comíamos lanches ou até mesmo comeríamos comida
mexicana no jardim, como ele gosta tanto. Isso já havia acontecido outras vezes
em todos esses meses que estou aqui, por isso imaginei que o que encontraria
qualquer coisa quando entrasse na sala de jantar, menos um “simples jantar”.
A mesa estava posta, e havia vários tipos de comida servidas à vontade. Acho
que como ele não sabe do que eu realmente gosto quando se trata de comida
caseira, ele pediu de tudo um pouco. As cortinas estão fechadas, as luzes
apagadas, e só o lustre em cima da grande mesa de madeira está aceso, dando
ênfase a toda aquela produção, e deixando o lugar com um clima intimista que
faz meu corpo se arrepiar. Olho para trás, e ele sorri de um jeito tímido, mas não
fala nada. Ele só se adianta, abrindo espaço para mim, então vou com minha
cadeira até a ponta da mesa e me ajeito, esperando ele fazer o mesmo.
— Quando você disse que tinha preparado um jantar, não imaginei que fosse
tudo isso… — Eu tento entender o que está acontecendo. Meu coração está
batendo forte demais, e por mais que eu tente não criar expectativas sobre o que
essa noite significa, é praticamente impossível fazer isso enquanto Alexandre me
olha com tanta delicadeza enquanto se senta ao meu lado, mesmo tendo a
enorme mesa cheia de lugares vazios à disposição. A cada dia que passa, eu o
sinto mais e mais próximo de mim, nos gestos, nas palavras, nas atitudes, até
mesmo no olhar. A cada dia que passa, eu sinto que eu estou, finalmente,
conhecendo o verdadeiro Alexandre.
Acho que não é necessário dizer que ele é ainda mais bonito, com toda a força
que essa palavra tem, do que eu fantasiava. Por baixo de toda a casca de
grosseria e mau humor, tem um ser humano lindo, e descobri-lo finalmente é
uma das melhores experiências da minha vida. Eu praticamente me sinto a Bela,
percebendo que a Fera, afinal, não é tão fera assim.
— Você só merece o melhor, Sophia. — Ele diz, olhando profundamente
dentro dos meus olhos. Não há hesitação em sua voz, nenhuma dúvida quando
ele diz isso, então eu realmente acredito que eu mereça o melhor, mesmo sem
saber o que eu fiz para ele achar isso.
— E o que eu fiz para merecer o melhor? — Aceito a taça de vinho que ele
me estende, depois o vejo encher uma para si próprio.
— Não é óbvio? Você só dá o seu melhor. Em tudo. Quando se trata de mim,
da Lilith, até daquele babaca que não merece sua consideração. Até mesmo
quando o babaca que não merecia sua consideração era eu, Soph. E isso só me
faz ter certeza de que nada é forçado, tudo é feito de coração, porque essa é a sua
essência. Eu queria retribuir de alguma forma o tanto de amor que você tem
dado para a gente desde que chegou aqui. Eu quero voltar a merecer sua
consideração, sua amizade, seu… — Ele para no meio da frase, engasgando-se
um pouco nas palavras. Parece nervoso, mesmo assim, cada palavrinha que ele
disse tocou bem lá no fundo em mim.
— Eu não sei o que dizer… — começo, mas ele estende a mão, tocando-a por
cima da minha, me silenciando.
— Não precisa. Você estar aqui já é o bastante. Um passo de cada vez. — Ele
sorri, como se lembrasse de algo, e eu sorrio junto, porque nunca na vida tive um
momento tão íntimo com alguém. Íntimo, porque a cada palavra que dizemos,
parece que finalmente estamos encontrando nossos lugares na vida um do outro,
mesmo que eu ainda não saiba exatamente o que isso significa.
E assim como em todas as melhores coisas do mundo, às vezes, não é
necessário saber o que dizer.
É tudo sobre sentir.
CAPÍTULO 26 – ENTÃO…

Alexandre
— Eu te elogiaria e diria que tudo estava uma delícia… — Ela limpa a boca
com o guardanapo e então ergue a sobrancelha e dá uma risadinha. — Se tivesse
sido você quem tivesse cozinhado.
Sorrio, coloco meu guardanapo na mesa e me levanto, sem dizer nada. Ela
observa meus movimentos enquanto eu chego até sua cadeira. Me abaixo,
porque sei o quanto ela gosta de ser olhada nos olhos e então pergunto:
— A gente pode ir pra sala? Quero conversar com você um pouquinho. —
Seu olhar se torna preocupado e ela balança a cabeça, confirmando. Sei que o
fato de eu não ter respondido à sua brincadeirinha a deixa preocupada, mas na
verdade, eu não respondi apenas porque estou nervoso demais, passando e
repassando dentro da minha mente tudo o que preciso falar, e qualquer distração
pode me fazer esquecer. Jesus, são tantas coisas que eu quero dizer.
Levanto-me e empurro sua cadeira até a sala, parando ao lado do sofá, naquele
lugarzinho que eu já deixo reservado para ela. A cadeira dela é motorizada, o que
faz com que ela consiga ser bem independente na maioria do tempo, mesmo
assim, eu gosto de fazer isso. Gosto de empurrá-la, pois me sinto próximo dela.
É minha forma de andar de mãos dadas com ela.
Então eu volto a me abaixar, e toco seus joelhos descobertos pelo vestidinho
de verão. Ela está linda nele. Respiro fundo, tentando imaginar como se começa
falando isso, mas eu travo. Não sei como começar.
— Alexandre, está acontecendo alguma coisa? — Ela arregala os olhos e sua
mão vai para meu queixo, levantando meu rosto que está baixo, pensativo. Forço
um sorriso.
— Está. Aparentemente eu só estou em pânico demais para conseguir falar. —
Meus dedos brincam na pele descoberta de seu joelho, mas ela parece não
perceber, e se percebe não fala nada, já que seus olhos estão fixos nos meus. —
Eu diria que preciso de um uísque, mas acho que você me mandaria à merda,
não é?
— Sem dúvida. Não temos boas experiências com você falando sobre o efeito
do álcool. — Ela ri e continua: — O que você precisa falar? Só fala. Você não
quer mais que eu cuide da Lilith, é isso? Você precisa da sua privacidade de
volta? — Suas palavras começam a se tornar desesperadas e eu apenas ergo
meus dedos, pousando sobre sua boca. Ela entende e para de falar.
— Não é nada disso — respiro fundo. — Eu queria te falar tantas coisas.
Queria que fosse de um jeito bonito, queria ter tido tempo de comprar flores, sei
lá. — Eu me engasgo com as palavras e me xingo por dentro. Eu consigo
controlar um avião, mas não consigo falar meia dúzia de palavras para uma
mulher. Quanta desenvoltura, Alexandre!
— Flores? — Ela inclina a cabeça, tentando entender como flores se encaixam
nesse contexto. Ou ela tem pouquíssima fé em si, ou tem pouquíssima fé em
mim, porque eu acho que já deixei claro o quanto estou interessado nela.
— Soph, eu não sou bom nisso. Sério, me ajuda. — Seguro seus dedos entre
os meus e acaricio sua mão com delicadeza, enquanto tremo de nervoso. — Eu
sei que eu fui um idiota — dou uma risadinha. — É um talento que eu tenho,
sabe? Ser idiota. É tipo um dom.
Sua expressão muda drasticamente e um sorriso se espalha em seu rosto.
— Realmente, nesse quesito você é bem talentoso. — Ela ri de um jeito muito
gostoso, que acalma um pouco todas essas sensações esquisitas em mim. É mais
do que óbvio que ela está brincando comigo.
— Mas eu quero desenvolver outros talentos. Estou trabalhando para isso, na
verdade.
— Ah é? Tipo quais?
Sento-me no sofá e fico de frente para ela. Ergo minha mão e ela não recua,
então delicadamente toco seu rosto.
— Tipo… Fazer você sorrir desse jeito. Modéstia à parte, acho que estou
ficando bom nisso.
Ela me encara com aqueles enormes olhos cor de uísque e com a boca
ligeiramente aberta.
— É. Você está. — Ela finalmente concorda, e então dá um sorrisinho que a
transforma da babá bonita da minha filha em alguém que faz meu coração bater
mais rápido. Passo minha mão por trás do seu pescoço, trazendo seu rosto para
mais perto e sem pressa nenhuma, roço meu nariz em sua pele, sentindo-a,
sentindo seu cheiro. O tempo parece estar em câmera lenta e tudo ao redor
parece estar no mudo. A única coisa que eu consigo ouvir é o som de nossas
respirações se encontrando, se fundindo.
— Eu estou sentindo um monte de coisas confusas, Sophia, mas eu tenho
certeza de uma coisa: eu odeio imaginar que você pode ficar com qualquer outra
pessoa que não seja eu. Por favor, me diz que você não está pensando em dar
uma chance para aquele idiota — aproximo ainda mais meu rosto do seu. —
Porque eu não estou preparado para te perder agora que eu descobri o quanto eu
preciso de você.
Ela ofega de olhos fechados. É quase como se ela estivesse saboreando
minhas palavras. E então, ela finalmente abre os olhos, me encarando, e nós
ficamos assim, cara a cara. Normalmente, ela não seria o tipo de mulher que me
atrairia, e eu não falo pela cadeira de rodas, de forma alguma. Eu já a conheci
fora de uma e ainda assim, não me interessei por ela, porque naquela época eu só
conhecia seu exterior. Sempre foi bonito, mas não era o principal.
Hoje, eu conheço seu coração.
E sei que ela é exatamente o tipo de mulher que atrairia qualquer homem
inteligente que conversasse com ela por cinco minutos. Com Sophia, todas as
convicções vão por água abaixo. Tudo nela é diferente. Não parece delicada,
mesmo com sua estrutura pequena, seu corpo miúdo e seu rosto de anjo, porque
mesmo que todas essas coisas combinadas façam dela uma imagem frágil de se
ver, a força que ela tem quando se procura conhecê-la um pouco melhor, faz
tudo cair por terra. Tem uns olhos incríveis. Nunca vi nada parecido. O fato de
serem da cor da minha bebida favorita já é interessante por si só, mas o jeito
como os sentimentos dela passam por eles sem qualquer impedimento, é único.
Nunca conheci uma mulher que fosse tão direta e transparente em relação aos
próprios sentimentos. É como se ela tivesse capacidade zero de disfarce.
Ela também é tão bonita. Não é estonteante, mas tem uma beleza tão
particular que encanta, e o fato de aguentar apanhar tanto da vida sem esmorecer
a deixa com um brilho diferente de tudo que já vi. Em suma, ela é muito, muito
mais do que eu mereço, e mesmo assim eu a quero.
— Não estou pensando em dar uma chance para o Rodrigo. — Ela finalmente
responde a minha pergunta, fazendo meu coração, que estava em suspenso,
voltar a bater. — Não é ele quem eu quero, Alexandre.
Aproximo meu rosto e encosto minha boca na sua, bem de leve. Sorrio sobre
seus lábios, deixando claro que mesmo que eu não tenha falado nada a respeito
de tudo o que estou sentindo, com apenas um olhar e um gesto, ela sabe de tudo.
Do mesmo jeito que ela não disse meu nome quando disse não querer Rodrigo,
mesmo assim eu entendi. Nossos corpos falavam por si só.
Às vezes, palavras são desnecessárias.
Mas às vezes, elas servem para reforçar o quanto o que está para acontecer é
incrível.
— Que bom, porque agora eu vou te beijar.
Ela passa os braços em volta do meu pescoço e sobe os dedos por meu cabelo,
antes de concordar com um sorriso de canto.
— Então beija.
Sophia
Não é a primeira vez que Alexandre me beija, mas é a primeira vez que ele
me avisa sobre o que vai fazer e eu concordo. Enquanto aqueles olhos lindos se
aproximam dos meus, é impossível não notar que, pela primeira vez desde que
me mudei para cá, eles não parecem tristes como de costume. Meus dedos vão
para o seu cabelo enquanto eu aceito o inevitável: eu sou completamente
apaixonada por esse homem, de uma forma intensa e avassaladora, e continuar
negando isso só me machucará ainda mais.
Ele está aqui, e está me beijando com tanta doçura e paixão que é
praticamente impossível não saber que ele realmente me quer. Ele já me disso
isso de várias formas possíveis, então está mais do que na hora de eu parar de
negar, e aceitar que eu posso ser desejada, seja por quem for, exatamente da
maneira como eu sou. Minha cadeira é só uma cadeira, e Alexandre deixa isso
bem claro quando sua boca finalmente toca a minha. Um incrível calor acende
em meu peito, enquanto ele me beija suavemente, acompanhando o contorno dos
meus lábios com os seus. O simples roçar de sua pele na minha desperta
emoções que meu corpo jamais havia sentido, nem mesmo quando eu ainda
andava.
Por causa da minha cadeira, nenhuma parte dos nossos corpos se toca da
cintura para baixo, mas isso não parece ser um problema para ele, porque seus
lábios continuam nos meus, um pouco mais famintos agora. Eu retribuo o beijo,
talvez um pouco lenta e desajeitada, porque além da falta de prática, eu ainda
estou em uma batalha com meu cérebro, convencendo-o de que isso está
realmente acontecendo. Não é mais um desejo impossível ou um sonho distante.
Está realmente acontecendo.
Pensamentos sabotadores me fazem pensar se eu estou fazendo tudo direito,
beijando-o da maneira certa, mas, como se ele conseguisse ler meus
pensamentos, um som profundo vem dele, e eu sorrio sobre sua boca, sabendo
que aquilo é, com certeza, um sinal de que eu o estou agradando. Ele sorri
também, antes de pressionar seus dedos em minha nuca, me trazendo para ainda
mais perto.
O beijo fica mais profundo, e eu sinto sua língua deslizar sobre a minha, me
deixando completamente extasiada. Ele tem o melhor gosto do mundo, e o modo
como ele me beija me faz imaginar que ele pensa o mesmo de mim. Eu quase
não me lembrava da sensação de ser tão desejada assim.
Então eu me entrego a essa sensação com tudo de mim.
Quando nossas bocas começam a se separar, ele prende meu lábio inferior
entre seus dentes, e dessa vez, o som de profunda satisfação vem de mim. Eu me
sinto ofegante e anestesiada, um misto de sensações que eu não sei descrever,
sinceramente.
— Você confia em mim? — Seus olhos estão intensos, ardentes e sensuais
sobre meu rosto. Eu sei que estou vermelha e quente, e meu peito sobe e desce
rapidamente, enquanto minhas mãos ainda seguram seu pescoço, os dedos
cravados em sua pele, como se eu não quisesse me soltar dele nunca mais.
— Às vezes, mais do que em mim. — Minha resposta parece surpreender, mas
principalmente agradar, pois ele traça meu lábio inferior com os dedos, antes de
se curvar e roçar sua boca na minha novamente, de maneira ainda mais
inebriante e tentadora.
— Linda. — Ele sussurra em meu ouvido. — Se segura em mim, tá? — Faço
o que ele pede, e antes que eu comece a processar o que está acontecendo, ele
passa uma das mãos fortes por minha cintura e a outra pelas minhas pernas, me
erguendo em seu colo em um segundo. Reprimo um gritinho pela surpresa, mas
sorrio quando percebo como nossos rostos estão próximos, e como a sensação de
seu corpo colado ao meu é boa.
Ele caminha até o sofá e se senta, me aninhando em seu colo. A emoção de
estar tão próxima à ele é tão grande que traz lágrimas aos meus olhos. Seus
braços me envolvem e eu deito a cabeça em seu ombro, de lado, de forma que
nossos olhares ainda se encontrem. Ele me olha profundamente enquanto
acaricia minhas costas, e eu sei que ele percebe as lágrimas, mas não fala nada.
Provavelmente sabe o motivo que as fazem cair, então ele apenas sorri para mim
de uma forma muito acolhedora.
Meus dedos voltam para o seu cabelo, em um carinho ainda desacreditado.
Quase morro de medo de acordar agora e ver que tudo isso é apenas mais um dos
muitos sonhos que já tive com ele. Meu lado cético ainda tem medo de ser
magoada, então antes que consiga me controlar, um pedido quase desesperado
sai de minha boca:
— Por favor, Alexandre. Não me machuque.
Ele ajeita a franja que insiste em cair em meu olho, depois desce os dedos pelo
meu rosto, até erguer meu queixo para que eu possa olhá-lo diretamente nos
olhos. Antes de se curvar para me beijar novamente, ele diz as palavras que eu
quero guardar pra sempre dentro de mim:
— Nunca mais vou deixar ninguém te machucar de novo e isso inclui a mim,
Soph. Eu prometo.
CAPÍTULO 27 – INSÔNIA

Alexandre
Ficamos por tanto tempo juntos no sofá, que eu mal me toquei de que já era
quase madrugada. Conversamos sobre muitas coisas. Eu contei a ela sobre Lilith
querer saber se parecia com a mãe, e ela em contrapartida, me contou os detalhes
da conversa com o ex-namorado. Por mais que eu, sinceramente, não goste de
saber que ela não tinha qualquer rancor por ele, aquilo também reforça que a
essência de Sophia é exatamente como eu acho que é: ela é uma boa pessoa,
apenas porque ser assim está dentro dela.
Depois de ela ficar um tempo deitada em meu colo, com o rosto colado ao
meu peito, trocamos de posição, e eu a coloquei sentada no sofá, para poder
deitar-se em seu colo. Com a cabeça apoiada em suas pernas, ela fazia um
carinho em meu cabelo enquanto a gente conversava.
Ela me contou muitas coisas de quando era criança, e várias de antes de deixar
de andar. Descobri que o time em que ela jogava fora campeão estadual de
voleibol nos jogos escolares, e que antes do acidente acontecer e ela ficar presa à
essa cadeira, seu maior sonho era ser jogadora profissional. Apesar de não ser
alta, ela jogava muito bem, e já até tinha alguns times de olho nela.
Ergo o rosto para vê-la falar sobre isso e percebo o quanto seus olhos brilham
de emoção e principalmente, de saudade.
— Você não pensa em voltar? — Pergunto, de repente. Quer dizer, eu sei que
ela pode, se quiser. — Digo, com a acessibilidade e tudo mais, é possível, não é?
Ela sorri.
— É sim. A modalidade que inclui cadeirantes se chama Vôlei Sentado. Inclui
não só cadeirantes, mas também amputados, paralisados cerebrais…
— E você não tem vontade?
— Já pensei várias vezes, mas a minha mãe sempre colocou empecilhos. Eu
realmente não sei se ela acha que eu vou me magoar caso eu não consiga me
adaptar, ou se ela acha que não é a mesma coisa… Só sei que como ela achava
que nem compensava tentar, eu fui deixando para lá, e acabou que eu nunca fui
atrás. Mas seria bem legal, sim.
Levanto de seu colo e me sento ao seu lado. Curvo o corpo sobre ela, e então a
beijo de novo, porque foda-se, eu jamais me cansarei de beijá-la. Depois que eu
fiz isso pela primeira vez, cada vez mais é difícil não fazer novamente.
— Se você quiser, posso ir atrás disso com você — roço meu nariz no seu e
ela sorri.
— Jura?
— Claro. — Quando ela me dá um sorriso lindo, eu busco seus dedos e
entrelaço-os nos meus. — Eu gosto muito de ficar com você, Sophia. Muito
mesmo.
— Eu também. — Ela responde, mas então seu sorriso morre e seus olhos,
mesmo que ela tente disfarçar, pousam sobre o quadro de Julia na parede da sala.
Seu corpo se retesa, e ela abaixa a cabeça, desviando o olhar, como se, por mais
loucura que pareça, ela estivesse com vergonha da minha esposa. Eu sei que é
compreensível, pois me senti assim todo esse tempo, e, pra ser sincero, sei que
ainda me sentirei algumas vezes. Certas coisas são difíceis de serem deixadas
para trás de uma vez só. Tudo é um processo.
— Eu sei o que você está pensando — puxo seu queixo e faço-a olhar em
meus olhos —, e sei que é difícil. Há menos de um ano ela estava aqui, e vocês
eram amigas. Mas agora eu sei, com toda a certeza desse mundo, que ela só quer
o melhor para nós, Soph. E o melhor é você.
Ela me olha por alguns segundos e então abaixa a cabeça. Sinto que algo na
atmosfera mudou, mas eu não sei o que é. Quando ela volta o olhar para mim,
entendo o que houve.
— Você me beijou por que eu sou o melhor para vocês, é isso?
Suspiro.
Quando percebo como essas palavras poderiam ser interpretadas de forma tão
equivocada, puxo sua boca para a minha de novo e a beijo com mais intensidade.
Se eu não era bom com palavras, precisava, pelo menos, ser bom nos gestos.
— Isso te parece um beijo por conveniência?
Ela dá de ombros e eu entendo que durante todos esses meses ela teve muita
paciência comigo. Com meus surtos, minha falta de educação, meu mau humor.
Ela sempre relevou e procurou entender, então agora é minha hora de fazer o
mesmo por ela. Sophia é inteligente e absurdamente segura na maioria das coisas
que faz, mas agora, mais próximo dela, é fácil perceber que nas questões do
coração ela ainda precisa se adaptar em muitas coisas. Ela nunca namorou
depois de Rodrigou, nunca ficou com ninguém, então é como se ela estivesse
começando do zero em uma nova condição.
Acaricio seu rosto e sorrio, mostrando para ela que está tudo bem. Que ela
sempre estará segura em dividir seus medos e suas inseguranças comigo.
— Não. Eu te beijei porque quero te beijar. Hoje e muitas outras vezes mais.
Eu quero você por você, Soph, não por conveniência. — Acaricio seu cabelo e
ela descansa o rosto na palma da minha mão, agraciada com minhas palavras. —
Por favor, nunca pense isso, tudo bem? Você ser o melhor para nós é só um
agradável detalhe, que eu não vou ser hipócrita e dizer que não é importante,
porque é. Minha filha te amar tanto e você a amar de volta é muito importante
para mim, mas não é o motivo principal.
— Então o motivo principal é? — Ela pergunta, mesmo sabendo a resposta. E
se ela queria ouvir, eu lhe diria quantas vezes fosse necessário.
— Você. Você é o motivo principal.

Sophia
Por um bom tempo depois de Alexandre me levar até a porta do meu quarto e
ter me dado um longo beijo de boa noite, eu fico acordada na cama. Diferente de
todas as outras noites de insônia, essa nem se compara; a ansiedade de tudo o
que havia acontecido me toma por inteiro, e a agitação diária por estar sempre
perto dele se eleva mil vezes mais.
De uma forma nunca experimentada por mim antes, meu corpo todo parece,
de alguma maneira, estranho: sensível ao extremo e quente demais.
Empurro o edredom de cima de mim e suspiro, olhando para o teto. Eu sei que
já é tarde, de madrugada, na verdade, mas prefiro não conferir no relógio para
não me sentir ainda mais agitada. Eu sei que parece até exagerado, mas são anos
de expectativas realizadas em uma noite. Coisas que eu sonhei por uma vida e
nunca achei que aconteceriam, aconteceram hoje, e é impossível não me
perguntar, de cinco em cinco minutos, se tudo não foi apenas um sonho.
Ele disse que gosta de mim.
Mordo o lábio e fecho os olhos, pensando na boca dele sobre a minha. Ele
beija tão bem e tem um gosto tão bom… E o cheiro então? Parece que o perfume
dele está impregnado na minha pele, sob meu nariz, na minha roupa e em tudo o
que me cerca. Nós havíamos conversado sobre tantas coisas, havíamos ficado
tanto tempo juntos, compartilhando informações, e mesmo assim, eu sinto que
foi pouco. Eu quero mais.
Com um pouco de dificuldade, mudo de posição na cama e empurro o lençol
também. O ar fresco da noite que entra pelas janelas meio abertas toca meus
braços, e pela forma ultrassensível em que me encontro, qualquer coisa faz eu
me sentir a flor da pele.
Por baixo da minha blusinha fina de seda do conjunto de dormir, sinto que a
ponta dos meus seios está rija. Do umbigo para baixo, a parte afetada em que eu
consigo sentir um pouco mais de sensibilidade, sinto pequenas pontadas. É uma
pulsação que desce dos seios até as coxas, e meu folego some só de lembrar
nossos corpos se tocando, mesmo que de forma tão inocente.
A questão é que apesar de toda minha inexperiência, eu não sou tão inocente
ou ingênua para não saber que na verdade, eu estou excitada. Muito excitada, por
sinal.
Olá, hormônios, é bom rever vocês depois de tanto tempo.
Meu corpo havia acordado, finalmente, depois de um sono longo e profundo.
Dou risada, porque é impossível não pensar que ter Alexandre me desejando é
uma excelente forma de acordar.
Passo minha mão pelo pescoço e fecho os olhos. Parece que seu toque em
minha nuca, me trazendo para um beijo, ainda queima ali.
Desço vagarosa e timidamente minha mão até meu seio e ofego ao toque. Eu
nunca tive vontade de fazer isso antes, mas agora parece quase uma necessidade.
Minha pulsação está acelerada e subiu à garganta, enquanto meu coração palpita
como um louco estranho em mim.
Quando minha mão desce até a barriga, sentindo minha pele quente nas pontas
dos dedos, um toque na porta me assusta.
Meus olhos se abrem e focam o teto enquanto eu lentamente volto à
consciência. Jesus, o que está acontecendo?
Mais um toque e eu prendo a respiração, como se ela denunciasse o que eu
estava fazendo. Só estávamos nós dois na casa, então o que Alexandre queria ali
tão tarde?
O mesmo que você, minha consciência debocha de mim, como se tivesse vida
própria.
— Soph? — Percebo que ele está colado à porta quando sua voz atravessa as
paredes.
Ajeito-me tão rápido quanto posso e engulo em seco.
— Sim?
— A luz estava acesa e… — Ele para um pouco, como se pensasse no que
está dizendo, e então suspira. — Está tudo bem?
— Está sim — me limito a dizer.
— Eu… posso entrar?
— Hum, claro — eu solto, com a voz um pouco estrangulada pelo
nervosismo. Meu Deus, esse homem no meu quarto do jeito que eu estava cinco
minutos atrás? Não vai dar certo, não vai mesmo.
Ele abre a porta lentamente e meu coração dá um salto quando eu o vejo. Ele
se encosta ao batente, ainda sem saber se pode ou não entrar mais do que isso, e
eu fico um pouco mais calma ao perceber em seu rosto que eu não sou a única
nervosa aqui. A calça de moletom pende em seus quadris, a camiseta branca de
algodão se agarra a todos os lugares certos em seu corpo e seu cabelo está uma
bagunça. Acho que alguém também rolou na cama.
— Insônia. — Sua boca sobe um pouco no canto e fica claro de forma
definitiva que nós dois estávamos tendo o mesmo problema para dormir.
Por mais que tudo dentro de mim grite para mandá-lo voltar para o quarto,
quando minha boca se abre algo totalmente diferente disso sai dela:
— Aqui também. Entra, vai.
CAPÍTULO 28 – FALSA INOCÊNCIA

Sophia
— Na verdade, eu só queria te dar boa noite. — Um sorriso leve aparece em
meu rosto. A cada momento junto com ele, minha familiaridade com suas
manias e desculpas aumenta consideravelmente. E a verdade é: Alexandre
sempre arranja desculpas para vir ao meu quarto.
— Achei que você já tivesse me dado boa noite. — Inclino a cabeça de lado,
encarando-o com um ar divertido, o que faz aquele sorriso torto e lindo dele
aumentar um pouco mais.
— Engraçado, eu não me lembro disso. — Seu tom é brincalhão, mas há fogo
em seus olhos. — Eu dei?
— Acho que eu posso esquecer aquele boa noite e ganhar um novo, se isso for
tão importante para você. — Brinco com ele.
Silenciosamente, ele fecha a porta atrás de si e encosta-se a ela. Esse gesto faz
meu coração acelerar, mas não de medo. Apesar de eu ser completamente
indefesa em relação a ele, eu sabia que ele jamais me faria mal algum. Jamais
faria qualquer coisa que eu não quisesse, simplesmente porque Alexandre é um
cavalheiro. Um homem de verdade.
O frio na barriga, na verdade, se deve ao fato de que eu não sei o que fazer,
mas também ao fato de eu querer qualquer coisa que ele possa e queira me
proporcionar.
Enquanto ele se aproxima da minha cama a passos lentos, quase incertos,
prendo a respiração. É difícil agir de forma casual com um homem tão bonito
como ele dentro do meu quarto, de madrugada.
Mesmo com toda a minha inexperiência, minha cabeça se enche de todo tipo
de pensamento sexual. Coisas que eu nunca experimentei, mas que meu corpo
praticamente implora quando ele está por perto.
Com cuidado, ele se senta ao meu lado, tocando sutilmente minha barriga.
Meu corpo volta a esquentar sob aquele olhar intenso.
— Eu estou muito feliz, Soph. — Sua voz rouca me diz que o ar pesado entre
nós não é coisa da minha cabeça, então eu estremeço com a real possibilidade de
algo acontecer efetivamente aqui.
— Eu também.
— Jura? — Ele passa o braço por cima da minha barriga, para apoiar a mão
do outro lado.
— Juro.
Ele se inclina e seu tronco fica sobre o meu, pairando levemente. Menos de
um centímetro separa nossos corpos, e meus suspiros trêmulos e minha
respiração ofegante não passam despercebidos por ele.
— Soph? — Meu nome sai de sua boca de um jeito sexy, que acompanha seus
olhos pesados de desejo.
— Sim? — Me pergunto se ele pode ver através do meu baby doll como o
meu coração bate acelerado, e todos os outros sinais que um corpo pode dar.
— Acho que estou com muita vontade de te deixar ainda mais feliz. — Ele se
abaixa e nossas bocas ficam pausadas a poucos centímetros uma da outra. Sua
respiração paira sobre meu rosto, se misturando com a minha, me fazendo
ofegar. Eu amo sentir seu hálito quente sobre minha pele.
— Como assim? — Pergunto, com a voz falha. Eu sei de que forma ele pode
me deixar mais feliz, mas há algo de muito sexy nesse joguinho de falsa
inocência que estamos jogando. E quando ele sorri de uma forma quase erótica,
eu sei que ele gosta disso também.
Ele ergue e abaixa o rosto, fazendo seu nariz roçar no meu e nossas bocas se
tocarem.
— Será que você não sabe mesmo? — Ele me desafia, me fazendo entrar na
onda.
Decido arriscar um palpite.
— Você vai me beijar?
Seus lábios se levantam novamente em um sorriso nada inocente.
— Vou. Mas não vou fazer só isso. — Seu lábio roça o meu mais uma vez,
dessa vez molhado, em uma ameaça de beijo que nunca vem. — Você quer saber
o que eu vou fazer?
— Quero. Me mostre. — Eu o desafio de volta.
— Com todo prazer. — Minhas veias ficam quentes de repente por causa do
calor que se apossa de todo meu corpo. Meus músculos, todos eles, ficam tensos,
mas de uma maneira gostosa e extremamente bem-vinda. É como se ele
estivesse me despertando, centímetro por centímetro, de uma forma que eu
nunca achei que pudesse ser despertada. É como se toda a inocência fosse
substituída pela vontade de saber o que fazer para devolver para ele todo o
prazer que ele vem me proporcionando nos pequenos gestos.
E mesmo que eu não saiba o que fazer, meu corpo sabe. E eu quero muito
confiar nele.
Ao sentir os lábios dele tocando os meus, meus olhos se fecham, e toda aquela
sensação flutuante que eu estava sentindo antes dele chegar volta com toda
força. O toque extremamente sutil de nossos lábios aliado à minha ansiedade me
deixam a flor da pele.
Alexandre deposita todo o peso do seu corpo no braço direito e com a mão
livre, toca meu rosto. Eu amo isso nele: essa mania delicada de sempre me fazer
carinho enquanto me beija.
Sua boca toca um canto do meu lábio, depois o outro, até deslizar a mão pela
minha nuca e subir sua boca até minha orelha. Fecho os olhos e estico a coluna o
máximo que minha limitação me permite, reagindo a isso com tudo de mim.
Então sua boca desce novamente, e em um segundo, seus lábios desbravam
minha mandíbula. Depois de alguns beijos, ele morde meu queixo com
delicadeza e eu me encolho com o arrepio intenso que serpenteia por todo o meu
corpo. Ouço sua risada rouca, mas não me importo. Nesse momento, meu corpo
tem vida própria, então um gemido incontido escapa por minha garganta.
— Você é linda, sabia? Eu adoro todas essas reações que você tem quando
está comigo… Quero ser o dono de todas elas. — Ele chupa meu lábio de uma
forma diabolicamente erótica, me tomando, me exigindo para ele. Alexandre é
um alfa, e eu sempre soube disso, observando as suas atitudes diárias. Mas eu
não imaginava que intimamente, ele pudesse ser ainda mais. É como se ele
quisesse me tomar, e eu quisesse entregar tudo de bandeja para ele, sem
questionar qualquer coisa. Quase como um feitiço ou encantamento.
— É tudo tão natural. Eu adoro a franqueza do seu corpo, Sophia. Ele nunca
mente para mim.
Não sou capaz de responder nada, e sequer tenho tempo, porque ele me beija
novamente, dando tudo de si, exigindo tudo de mim.
Não é qualquer tipo de beijo. É o beijo de um homem desesperado. Como se
ele precisasse de oxigênio e eu fosse a única fonte de ar disponível. Como se ele
estivesse morrendo de sede e minha boca fosse um manancial de água cristalina.
Alexandre me ataca.
A mão em meu pescoço me detém, enquanto ele me absorve para si. Como se
eu realmente fosse querer ir para qualquer outro lugar que não aqui, em seus
braços.
Alexandre me devora.
Acho que é realmente a única palavra que eu posso usar que faz jus ao modo
como ele me beija.
De repente, ele tira a mão do meu pescoço, e sem que ele precise dizer
qualquer coisa, eu me deito novamente. No momento em que minha cabeça toca
o travesseiro, todas as inseguranças a respeito da minha virgindade e da minha
condição me atacam sem dó nem piedade, e o medo repentino tira todo o ar dos
meus pulmões. Eu preciso contar a ele que nunca fiz isso antes. Preciso dizer que
não sei como é, como agir, o que fazer, e que tudo é uma descoberta para mim.
Preciso contar como são todas as questões fisiológicas e de sensibilidade que
teríamos que lidar ao dar esse passo, e por mais que já sejam naturais para mim,
com certeza me fariam sentir vergonha na frente dele.
Eu tenho medo do que ele vai achar do meu corpo, de como ele irá reagir com
as limitações que eu sei que terei na cama. Tenho medo que ele desista antes de
sequer tentar.
Porém, antes que eu consiga detê-lo e despejar todos os meus temores, ele me
beija novamente, um beijo tão carinhoso e doce que faz todo o medo ir embora e
todos os pensamentos negativos virarem pó enquanto ele acaricia meu rosto.
Alexandre estica o corpo sobre mim e eu quero sentir seu peso. Quero sentir
nossos corpos juntos mais uma vez.
— Não quero te machucar. Me avisa se isso for demais. — Ele sussurra
enquanto me beija.
— Não, não é. — Eu respondo enquanto dou acesso para ele, jogando o
pescoço para trás. Ele afunda seu rosto em meu ombro, beijando e mordendo
minha pele, enquanto eu gemo baixinho. Eu não sou de cristal, e sei que uma
hora ele irá ver isso. Por enquanto, ele apenas quer ter cuidado comigo, e é
impossível não apreciar esse carinho.
Completamente influenciada pelo meu desejo por ele, estico os braços,
buscando desesperadamente a barra de sua camiseta, e quando meus dedos
finalmente a encontram, deslizo minha mão, tentando, sem sucesso, puxá-la para
cima.
Sinto Alexandre se contrair em cima de mim ao sentir meus dedos roçando
sua barriga por baixo do tecido. Então, sem dizer nada, ele se ergue. Fico em
pânico, imaginando o que eu fiz de errado, mas a sensação logo é substituída por
um completo fascínio, quando, olhando dentro dos meus olhos, ele coloca as
próprias mãos na barra da camiseta e a tira pela cabeça, jogando-a logo em
seguida no chão.
Ah. Meu. Deus.
Meus olhos encaram vidrados o seu corpo, e um silêncio de contemplação
toma o ambiente. Alexandre é divino. Cada pedaço dele. A pele é suave, os
músculos são definidos e rijos, e a tatuagem combina com todo o conjunto. Não
que eu não tivesse visto antes. Já vi sim, muitas vezes. Mas essa é a primeira vez
que posso tocar.
Ergo as mãos e toco seu peito, os dedos contornando o desenho da bússola,
para logo depois descer até a barriga, sentindo seus músculos contraídos. Ele
encosta sua testa na minha e então diz, sem rodeios:
— Eu nunca sonhei que um dia poderia sentir tanto desejo por outra pessoa
assim na vida. Mas você, como sempre, quebra todos os meus padrões; fode com
todas as minhas convicções, Sophia. — Sua mão aperta minha cintura, e ele
investe seu corpo contra o meu, me fazendo senti-lo em todas as partes de mim.
— E eu nunca imaginei que pudesse adorar tanto isso.
CAPÍTULO 29 – BOA NOITE, ANJO

Sophia
Conforme ele se debruça sobre mim, posso senti-lo contra minha barriga. Ele
está extremamente duro, e por mais bobo que isso possa parecer para qualquer
outra pessoa, não posso deixar de me sentir orgulhosa. Alexandre é um cara
bonito e viril; um piloto de avião, o fetiche de cinquenta por cento da população
feminina, e está aqui, duro por minha causa, me devorando entre beijos e
apertos, como se estivesse desesperado por mim.
Passo os braços por seu pescoço, e o trago para mais perto, ansiando por senti-
lo de forma tão íntima mais uma vez. Eu sei que ele percebe minha intenção,
pois investe seu corpo contra o meu com mais força, me fazendo fechar os olhos
e respirar fundo de desejo contido. Enquanto uma das minhas mãos acaricia suas
costas, a outra desce pelo pescoço, passa pela barriga e para no cós de seu
moletom. Meus dedos brincam em sua pele nua, enquanto sinto um calor
queimando minha pele, especialmente entre as coxas. Uma pulsação intensa
corre por todo meu corpo, então, da maneira como posso, me mexo embaixo
dele, trazendo-o para mais perto de onde eu o queria, com todo jeitinho.
— Nossa, Sophia… — Ele fecha os olhos e suas palavras saem roucas e
ásperas, não de um jeito rude, mas sim sensual. Eu definitivamente gosto do som
da sua voz assim.
Ele suga meus lábios em um beijo fogoso, o que abafa completamente o
gemido de prazer que vibra por minha garganta e reverbera por todo meu corpo.
Minha sensibilidade está a mil, compensando em certos lugares o que eu não
sinto em outros.
É como se todas as minhas terminações nervosas estivessem em combustão.
O tecido fino do meu baby doll é praticamente inexistente entre a pele quente
de seu peito junto ao meu corpo. Toda vez que ele se movimenta, o tecido desce,
revelando um pouco dos meus seios. A princípio, sinto vergonha, mas agora o
desejo é tão intenso que eu não me importo mais com nada. Agora só existe sua
boca na minha boca e sua pele junto à minha pele.
Enquanto eu me deixo levar por todas essas emoções, sinto seus dedos
deslizando as alças da minha blusinha, primeiro uma, depois a outra. Ele beija
meus ombros, depois desce a boca, pairando um pouco acima dos meus seios.
Sinto os seus dentes rasparem de leve os ossinhos da minha saboneteira, que eu
sempre achei tão feios por serem saltados, mas que agora eu amo, porque ele
parece adorar me provocar exatamente nesse ponto. Sua mão desce dos meus
ombros para a curva da barriga, e ele aperta minha cintura, me fazendo ofegar.
Percebo que ele desceria mais a mão, mas então ele pensa por um segundo e a
sobe de volta. Entendo imediatamente seu receio: ele não sabe nada sobre como
me sinto da cintura para baixo, então provavelmente é mais fácil tratar essa parte
como zona proibida por enquanto.
Mas ele não precisa.
Eu quero que ele explore tudo o que tiver vontade em mim.
Seguro sua mão e delicadamente a desço novamente, pairando-a sobre minha
coxa. Ele suspira, como se se sentisse um idiota por não saber agir, quando na
verdade, eu acho fofo. Ele apenas não quer errar comigo.
— Eu subi porque não sei… — Ele se atrapalha e dessa vez quem acaricia seu
rosto sou eu.
— Tudo bem, eu realmente entendo. — Seguro sua mão, e a subo novamente,
parando-a sobre meu umbigo. — Daqui… — desço-a lentamente, fazendo ele
sentir minha pele eriçada até o joelho — … até aqui, é onde eu tenho mais
sensibilidade. São as vértebras menos afetadas. Eu consigo sentir seus toques,
Alexandre. Consigo sentir tudo. Mas do joelho para baixo, eu sempre vou
precisar da sua ajuda. Se você quiser que eu me mexa, precisa me ajudar a fazer
isso. — Olho dentro dos seus olhos, em um misto de pânico e desejo, me
perguntando se isso é demais para ele. Essa minha dependência. Por um
segundo, a insegurança me assalta. Porque ele ficaria com alguém como eu, se
pode ter tantas outras? Porém, meu pensamento negativo é quebrado por um
sorriso de completo agradecimento.
— Obrigado por explicar; torna tudo mais fácil para mim. A gente vai
encontrar nossas próprias formas de fazer tudo, Sophia. Aqui e em qualquer
outro lugar. — Ele me beija suavemente. — Prometo para você que eu vou me
esforçar e aprender tudo direitinho.
Antes que eu possa responder, ele agarra minha coxa, levantando minha perna
e colocando-a em volta de seu quadril, apoiando-a. Ofego com esse contato tão
íntimo e sinto ele se acomodar mais profundamente, me pressionando de um
jeito que me excita além do normal, mas que também desperta em mim um
conflito interno: eu devo dizer a ele que sou virgem? Quando seu quadril faz o
movimento novamente, esqueço qualquer coisa que está passando em minha
cabeça e apenas o sinto, completamente excitado para mim. É incontrolável, e eu
gemo sem pudor em seus lábios.
— Por… Nossa, eu amo esse som. — Sei que ele sufoca um palavrão em
respeito ao fato de eu não gostar, mas há algo de inebriante em vê-lo tão perdido
em meu corpo, que eu sequer me importaria com isso. Ele poderia falar todos os
palavrões do mundo, que eu o acharia ainda mais incrivelmente sexy.
É como se aqui, perdida entre meus lençóis e seu corpo, eu fosse outra Sophia.
Uma que quer coisas que eu sequer imaginaria querer.
Todas as sensações do mundo atravessam minha pele, se alojando em meu
âmago, gerando uma ânsia que eu nunca experimentei antes. O desejo que eu
senti em minha cama, sozinha, poucos minutos antes dele chegar, não é nada
perto do que eu estou sentindo agora. É mais intenso, forte e absurdamente real,
como uma explosão de cores e sons dentro de mim.
Como se eu estivesse caindo de um abismo, mas não me importasse nenhum
pouco com isso.
Ele enfia as mãos por baixo da minha blusa, percorrendo minhas costelas
lentamente, como em uma tortura milimetricamente ensaiada. Sinto a ponta de
seus dedos desenharem minha carne, centímetro por centímetro, e me entrego à
sensação completamente.
Quando sua mão quente encosta em um dos meus seios, fecho os olhos e jogo
a cabeça para trás. Enquanto ele o envolve com a palma, eu debato dentro de
mim, sabendo que preciso falar com ele de uma vez por todas, porque, por mais
que tudo esteja ótimo entre nós, ele não pode simplesmente descobrir que sou
virgem quando já estiver dentro de mim, e no ritmo que as coisas estão, isso não
vai demorar a acontecer.
— Alexandre… — Toco suas costas. — Alexandre, espera. Espera só um
pouquinho.
De repente ele para em cima de mim e ergue a cabeça, me encarando com o
olhar assustado.
— Eu te machuquei? O que eu fiz? — Ele pergunta ansioso, e eu sorrio,
balançando a cabeça.
— Não, calma. A gente só precisa conversar um pouquinho… Antes de bem,
seguir com isso. Tem uma coisa que eu preciso te dizer. — Quando ele não diz
nada, sei que é minha deixa para continuar a falar. Ajeito-me na cama, e mesmo
sem precisar, já que estou tão acostumada com isso, ele me ajuda. Encosto a
cabeça na cabeceira da cama e dou de ombros, tentando fazer aquilo parecer
menos do que é. — É que eu… nunca fiz isso, sabe? — Ele demora um segundo
processando a informação, então sorri.
— Ah, entendi. Meu Deus, como eu sou lerdo, claro — ele segura minha mão
—, você nunca fez isso depois que parou de andar. Eu lembro que você me disse
que nunca mais tinha namorado depois do Rodrigo e eu devia ter me lembrado
disso, desculpe…
Balanço a cabeça.
— Não. Não, Alexandre. — Ele para, me olhando sem entender. — Eu nunca
fiz isso. Nunca. Eu sou virgem.
Ele fica alguns segundos em silêncio, processando a nova informação. Tudo
parece em câmera lenta, e eu sinto uma pressão no peito, tentando adivinhar o
que se passa em sua cabeça.
— Nunca? Tipo, nunca? — Ele pergunta, meio engasgado. Ele está quase tão
nervoso quanto eu.
Balanço a cabeça, em negativa, lentamente.
— Mas você tem quase vinte e cinco anos, Soph. Eu não entendo.
— E estou há quase sete nessa cadeira, Alexandre. Não que estar nela seja um
impeditivo, mas como você mesmo se lembra, eu nunca fiquei com ninguém
depois do Rodrigo. Na época, eu tinha dezessete anos. Nós fizemos algumas
coisas, sim, mas eu ainda não estava pronta para tudo. — Abaixo a cabeça,
mexendo nos dedos. — Na verdade, eu ia dormir com ele no dia do acidente. Era
aniversário dele e eu havia decidido que seria um bom presente, sei lá. — Bufo,
me sentindo um pouco ridícula ao lembrar daquilo. — Eu não iria te falar, mas
achei que você merecia saber. Nem todo mundo se sente confortável em ser o
primeiro de alguém.
Se olhar fica vago enquanto as palavras saiam da minha boca.
— Você fez bem em me contar, sério. — Ele finalmente diz, depois do que
parece uma eternidade.
— Ah é? — Questiono.
— É. — Ele confirma.
— Então pare de olhar para mim como se tivesse algo de errado comigo. —
Decido ser piadista, mesmo sendo uma péssima hora para isso. — Tirando as
pernas que não funcionam e esse hímen intacto, eu sou como qualquer outra
mulher.
Suas sobrancelhas se erguem, enquanto ele me analisa.
— Não estou te olhando assim, linda. — Ele toca meu pescoço e sobe a mão,
fazendo carinho. — E você jamais será como qualquer outra mulher. Você é
muito melhor.
Surpreendo-me com sua resposta, mas ao mesmo tempo, ela aquece meu
coração. Pode ser que seja pena, sei lá, mas eu prefiro achar que é verdade.
Prefiro achar que ele realmente sente isso por mim. Mas ainda quero
desesperadamente saber o que ele está pensando. Quero desesperadamente que
ele não esteja mentindo.
Antes que eu possa falar qualquer coisa, ele me puxa para um forte abraço.
Fecho os olhos e aperto o rosto em seu peito, inspirando e inalando seu cheiro,
deixando-me levar por aquela nova sensação de pertencimento. Suas mãos se
movem pelas minhas costas, depois ele afunda os dedos no meu cabelo.
— Algo me diz que você nunca mais vai me tocar assim de novo — eu
resmungo frustrada, mas ele ri alto.
— Você não poderia estar mais enganada.
Ele me solta e então fica de frente para mim, me olhando com intensidade. Na
verdade, é bem mais do que isso. Eu estou sendo devorada por seu olhar,
exatamente da mesma forma que eu havia sentido enquanto ele me beijava,
minutos atrás. A verdade é que Alexandre é intenso em tudo o que faz. É uma
característica tão sua. Seus lábios se abrem e eu mordo os meus, em expectativa.
Uma sensação poderosa se forma em minha barriga quando ele finalmente fala:
— É claro que eu vou te tocar assim de novo, mas da próxima vez, vai ser da
maneira certa. — Em quê de vulnerabilidade se apossa do meu peito, sob aquela
deliciosa tensão, e de repente minha garganta fica seca diante de tantas
promessas veladas. — Quando eu te disse que íamos encontrar nossas próprias
formas de fazer as coisas, eu não estava mentindo. Então, quando for acontecer,
vai ser de uma forma que seja boa tanto para mim quanto para você.
Principalmente para você. — Ele se curva para frente e sua testa toca a minha, e
esse simples contato faz meu peito saltar.
— Você é maravilhoso, Alexandre.
— Porque você me faz ser. Só por isso.
Endireito-me, encostando as costas na cabeceira novamente. Mordo o dedo
para esconder o sorriso bobo pelo que ele acabou de me dizer, porém, de acordo
com o olhar divertido em seu rosto, sei que falhei miseravelmente.
— Eu só quero que você saiba de uma coisa, Sophia. Você não precisa me
esconder nada, nunca, ok? Seja o que for. Mesmo que você sinta vergonha ou
ache que eu não vou entender. Mesmo que você pense que eu não vá gostar, ou
achar bonito, o que for. Apenas me diga. Apenas me mostre. Eu preciso saber
para poder fazer do jeito certo. Eu quero que dê certo.
Só o que posso fazer é balançar a cabeça.
— Tudo bem — concordo.
— Ótimo — ele diz. — Eu posso dormir aqui? — Ele muda o assunto
rapidamente, e eu fico em choque pelo pedido, mas seus olhos de menino pidão
me fazem rir.
— Claro — sorrio, porque há poucas coisas na vida que eu quero mais do que
dormir abraçada a esse homem. Deito-me e ele vai para o seu lado da cama, nos
cobre com o edredom, depois envolve minha cintura com seus braços,
descansando o queixo em meu ombro. Suspiro e relaxo o meu corpo no dele, me
aproximando e me aninhando. Aqui eu me sinto aquecida e segura, de uma
forma que eu não me sinto há anos.
— Boa noite, Alexandre.
Seus lábios tocam meu pescoço e eu sorrio. Minha pele nunca se cansava de
sua boca.
— Boa noite, anjo.
CAPÍTULO 30 – ALGUMAS VERDADES

Alexandre
Demoro alguns segundos para entender onde eu estou. Meu queixo ainda está
apoiado no ombro delicado de Sophia, e eu posso sentir seus cabelos cheirosos
em meu rosto. A sensação é nada menos do que indescritível. Meus braços ainda
estão firmes em volta de sua cintura, então eu percebo que não dormimos, mas
sim praticamente desmaiamos na noite passada.
Pode ser piegas o quanto for, e na verdade, nada másculo dizer o que estou
prestes a dizer, mas meu coração acelera levemente em meu peito com tudo isso.
Ah, foda-se. Fodam-se os padrões.
Eu estou feliz pra porra, e não estou nem aí.
Algumas memórias da noite anterior surgem desmanteladas em minha cabeça,
mas quando começam a fazer sentido e eu me lembro de todos os detalhes,
desgrudo levemente meu corpo do dela. O que eu menos preciso é que ela, que
havia acabado de me confiar o fato de que é virgem, acorde com uma espetacular
ereção lhe cutucando o quadril.
Muito cavalheiro, Alexandre. Nota dez para você.
Sorrio sozinho porque mal posso acreditar. Até cogito estar sonhando, porque
simplesmente não me sinto merecedor de tudo isso. Não me sinto merecedor
dela.
Um anjo. É isso que ela parece para mim.
Subo minha mão de sua cintura, acariciando toda a pele pelo caminho.
Quando paro sobre seu peito, sinto seu batimento cardíaco e então inspiro,
extasiado. Ela se remexe, tentando se aninhar ao meu corpo novamente, e eu
sorrio, percebendo que mesmo inconsciente, seu corpo busca o meu. Aproveito a
deixa e faço alguns movimentos para que ela acorde e se vire para eu ver seu
rosto, porém, antes que isso aconteça, a porta se abre e um furacão de cabelos
negros e franjinha entra a toda velocidade.
— Sosô, eu chegueeei e… — Lilith então estaca, olhando para nós dois. Mal
tenho tempo de dizer qualquer coisa, quando um enorme sorriso se abre em seu
rosto e ela grita, olhando para trás, animada: — Titiooooo Andééééé, eu não
disse? Não disseeeee? Papai e a Sosô tão namorando!
— Lilith, não, filha… — Eu tento fazer sinal com a mão para que ela fique
quietinha, mas não dá tempo. Simplesmente não dá. André surge logo atrás da
minha filha e arregala os olhos, indignado.
— Porra, Alexandre! — Ele grita frustrado, enquanto tenta tapar a vista de
Lilith. Com os olhos arregalados, fico imóvel. Minha nossa, que drama!
— Não pode falar palavrão, titio Andé! — Lili solta, fazendo cara de brava,
enquanto tenta se desvencilhar das mãos de André, que ainda insiste em tapar
seus olhos.
Sophia acorda assustada e, sem entender nada, olha para trás, me implorando
socorro com os olhos.
— André, larga ela. — Ele parece não ouvir enquanto tenta tirar minha
animada filha do quarto. — André, porra, larga ela. Não tem nada demais aqui,
larga a Lilith.
— Não pode falar palavrão, papai! — O fumo também sobra para mim, e eu
rio.
Quando ele finalmente me ouve e a solta, ela vem correndo e sorrindo, e pula
em cima da cama. Depois abraça a Sophia, que ri, sem entender absolutamente
nada do ataque. Saio da cama, e ergo os braços, mostrando que estou vestindo
minha calça de pijama. A camiseta está em algum lugar do quarto, mas é só uma
camiseta, oras. Ele apenas faz um sinal com o dedo, me mandando sair do
quarto, completamente furioso.
— Soph, eu… — Começo a falar, mas ela lê a frustração em meu rosto e sorri,
fazendo sinal para eu ir.
— Vai, pelo visto você tem explicações a dar. — Ela dá uma apertadinha nos
olhos, claramente tirando sarro. — Ele é seu pai? Achei que fosse seu irmão.
— Rá, rá, muito engraçado. — Eu pego minha camiseta do chão e a passo
pela cabeça. — Cuida dessa criança, que eu estou indo acalmar a outra.
Ela ri e eu saio, fechando a porta atrás de mim. Sigo André, que entra em meu
quarto, e bate à porta, bravo. Meu Deus, cadê os limites do meu irmão?
— Cadê. A. Porra. Dos. Seus. Limites? — Ele pergunta, separando palavra
por palavra, irado, e eu percebo o quanto somos iguais. Eu rio, porque era
exatamente o que eu estava pensando nesse segundo. Ele percebe que eu estou
rindo, e seu rosto fica ainda mais contorcido de ódio. — O que é tão engraçado,
seu filho da puta?
— Deixa a mamãe saber como você anda falando dela, deixa… — Sigo até o
banheiro, procurando minha escova de dentes. Eu sei que tenho muita merda
para ouvir, então é melhor começar o dia de qualquer forma.
— Sem piadinha, Alex. Você dormiu com a Sophia! Você perdeu o juízo,
caralho? — Ele coloca as duas mãos na cintura, estupefato.
Eu tento. Deus sabe que eu tento, mas André não colabora, então eu perco de
vez a paciência. Ele só está fazendo suposições em cima de suposições, sem
parar para ouvir o que eu tenho a dizer.
— A gente só dormiu junto! Não enche meu saco — eu digo, de uma vez. —
Não aconteceu nada, tá bom?
— Por quê? — Ele solta de repente, me pegando de surpresa.
— Como assim por quê? Ora, porque somos dois adultos, talvez? — Eu faço
cara de obviedade, mas é claro que eu devia saber que com meu irmãozinho as
coisas não funcionam bem assim. Ele vai me cutucar até ouvir o que quer, para
depois usar minhas próprias palavras contra mim.
— Você tá carente, e tá usando essa menina das formas mais erradas
possíveis, mas que caralho! Você merecia um soco na boca só por ser babaca
desse jeito.
Espera aí. Ele entra aqui, fala o que quer e acha que está certo? Ele sequer
perguntou como eu me sinto em relação a ela, ou ao que está acontecendo entre a
gente. Ele está julgando, completamente sem sentido e sem razão. Mas que
merda.
— Você não sabe do que está falando.
— Sei. Eu estou falando da sua carência e…
— Eu não tô carente, André! Eu tô apaixonado, porra! — Explodo, gritando
na sua cara algo que eu ainda não tinha dito em voz alta nem mesmo para mim.
O ar parece ficar suspenso no quarto e nós dois ficamos em silêncio, assustados
pela declaração. Minha respiração está rápida, e eu estou pronto para o embate,
mas meu irmão parece ter desistido da guerra. Ele apenas fica em silêncio por
um minuto, então me olha e diz algo, calmamente. O tom não é alto, mas é
claramente um ultimato, levando em consideração seu dedo apontado no meio da
minha cara:
— Espero que seja isso mesmo, Alexandre. Porque ao menor sinal de idiotice
sua, a minha ameaça ainda está valendo.
Aperto os olhos, desconfiando do seu jeito tão protetor. Toda vez que o
assunto é Sophia, ele se eriça todo, e sinceramente, não estou gostando disso.
— Desde quando você se tornou tão protetor assim em relação à Sophia,
André? — Finalmente crio coragem e pergunto, mesmo sabendo que estou
sujeito a um esporro fenomenal.
E não é que ele vem?
— Você tá com ciúme? — André ri com escárnio — Guarda as esporas,
galinho de briga. Eu amo a Sophia, mas como uma irmã. E se você quer saber
desde quando me tornei tão protetor assim em relação a ela, foi quando eu
percebi que ela te amava, lá na adolescência dela, quando a coitadinha se
maquiava para jogar vôlei comigo porque sabia que você estaria em casa, e
tentava de todas as formas chamar sua atenção, mas você nunca sequer olhou na
direção dela. Você a tratava como se ela não existisse, e desde aquela época, eu
via todos os sentimentos no olhar dela, Alexandre. O olhar dela era sempre triste.
E sabe qual a merda disso tudo? Eu ainda vejo todos os mesmos sentimentos lá.
Quando você está perto, nada mais existe. Você é o mundo todo para ela, então
me diz… O que vai sobrar se você destruir tudo isso? Ela é muito transparente,
e eu sei que você sabe disso. E eu sei que você também sabe que essa menina
não precisa de mais uma dor na vida. — Suas palavras me acertam como um
soco no estômago, simplesmente porque eu sei que ele está certo. — Ela sempre
gostou de você, e parece que essa merda nunca saiu do coração dela, então não
ouse, nem por um segundo, achar que eu vou deixar barato se você a machucar.
Inconscientemente ou não, você já fez isso demais.
E então, sem esperar qualquer resposta minha, André bate à porta e vai
embora, me deixando muitas coisas sobre as quais pensar.

Sophia
Tento acalmar Lilith, enquanto os olhinhos da pequena brilham de entusiasmo.
A felicidade em ver eu e seu pai juntos é palpável, mesmo que ela não entenda o
que significa dois adultos dormindo juntos. Na cabecinha dela, ela só associa que
há algo entre nós, porque um dia seu pai lhe disse que só dormia com sua mãe,
porque eles eram um casal. E com essa informação em mente, tudo é
maravilhoso em sua imaginação de criança.
Sinceramente, eu não queria que ela soubesse de nada agora, até porque nem
nós dois sabemos o que realmente está acontecendo entre a gente. Não sabemos
como tudo isso vai se desenrolar. Tudo o que eu menos quero é magoar essa
criança. Ela não merece sofrer mais do que já sofreu.
— Você tá namorando o papai, né? Você vai ser minha mamãe? — Ela
continua a pular em meu colchão, bem na minha frente. Seus cabelos caem nos
ombros a cada pulo, alguns tapam seus olhos e eu seguro sua cintura como
posso, com medo de que ela caia. Jesus, de onde vem tanta animação?
Consigo finalmente sentá-la à minha frente, e então arrumo suas madeixas.
Depois olho bem dentro de seus olhos e acaricio seu rostinho claramente feliz
pela novidade. Mas a verdade é que nem eu mesma sei qual é a nossa situação?
Estamos juntos? Estamos só nos conhecendo? É um namoro?
É difícil dar uma resposta que sequer eu tenho.
— Não sei meu amor. É muito cedo para eu te dizer isso, mas mesmo que eu
não o namore, eu posso ser sua mamãe. — Deixo isso claro para que ela saiba
que, mesmo que isso entre mim e o pai dela não dê em nada, ela nunca me
perderia. Eu sempre estaria aqui por ela.
— Pode? — Ela faz uma carinha confusa, e eu sorrio por toda sua inocência.
— Sim, posso. Porque para ser sua mamãe, eu só preciso te amar… e eu te
amo muito. Sempre estarei aqui para você, sempre.
Um enorme sorriso se espalha por seu rosto, as bochechinhas ficando
vermelhas. Minha menina parece uma bonequinha.
— Eu te amo, Sosô. — Ela joga seus bracinhos sobre mim, me apertando com
toda a força que uma criança do seu tamanho é capaz de ter.
— Eu também, meu anjinho, eu também. — A abraço de volta, beijando seu
cabelo com carinho. Se há algo que Deus sabe que é real, é o meu amor por essa
criança. Por ela, eu sou capaz de tudo, e mesmo que ela não tenha o meu sangue,
ninguém poderia ser mais minha filha do que ela.
CAPÍTULO 31 – RESILIÊNCIA

Sophia
Visto uma roupa e coloco Lilith no banho, enquanto André e Alexandre
terminam de conversar trancados no quarto. Eu sei que deve ser algo novo para
André, mas sinceramente, não consigo entender por que ele ficou tão bravo.
Alexandre e eu somos dois adultos, vacinados, bem resolvidos.
Droga, quem eu quero enganar? Se isso for para frente, André com certeza
será o menor de todos os nossos problemas. Todo mundo irá estranhar e talvez
até não aceitar: nossos pais, os amigos de Alexandre, a família toda. Por tantos
motivos diferentes, que eu sequer posso começar a enumerá-los.
Suspiro e vou para sala, então vejo que André já está lá, sentado no sofá. Sua
expressão é difícil de ler, mas quando ele me vê chegando, se levanta e vem ao
meu encontro, como se estivesse me esperando. Respiro fundo e tento um sorriso
de canto, quase como se eu estivesse pedindo desculpa. Pelo que, eu não sei.
— Desculpa a reação exagerada, Soph. É que eu realmente não esperava. —
Ele suspira e coloca as duas mãos no bolso, retribuindo com o mesmo tipo de
sorriso que eu acabo de lhe oferecer.
— Eu acho que eu entendo, André — dou de ombros. — É compreensível. Eu
sou a filha da empregada, e o tipo de mulher que nunca chamaria a atenção de
Alexandre… — Aponto a cadeira e ele faz uma cara estupefata para mim, como
se não estivesse acreditando nas palavras que saíram da minha boca. Na verdade,
nem eu estou acreditando. Às vezes minha insegurança quase se materializa,
ganhando vida e falando por mim. É uma luta diária: eu contra mim mesma.
— Sério? — Ele fecha a cara, franzindo a sobrancelha. — “O tipo de
mulher”? Falar isso para qualquer um que não te conheça, tudo bem. Mas para
mim, Sophia? Eu não acho que você é menos do que ninguém por nenhum
desses motivos. Nem pela cadeira, nem por você ser filha da Cilene e do
Roberto, que são duas pessoas incríveis, por sinal. E no fundo, eu sei que você
também não acha. Guarda esse vitimismo que começou a nascer aí, porque ele
não combina em nada com você.
Sorrio. Esse é o André que eu conheço.
Quando eu penso em retrucar com algo inteligente e engraçado, ele respira
fundo e então se abaixa, me olhando nos olhos. Desde sempre, André se
comunicou assim comigo. Ele sempre me olhou nos olhos para tudo. Foi a
primeira pessoa a aprender o quanto isso é importante para mim, e eu
simplesmente amo isso.
— Você sabe que eu te amo, não sabe? — Ele diz e eu inclino a cabeça,
surpresa com essa declaração repentina. André é sempre fechado com seus
sentimentos, e de repente meu coração se aquece com tanto carinho. — Talvez
eu nunca tenha falado isso tão abertamente para você, porque não é meu jeito e
você sabe disso, mas você é a irmã que eu nunca tive. Se esse idiota te magoar,
você me liga na mesma hora, e eu me resolvo com ele. — Ele engrossa a voz,
claramente querendo me fazer rir. — Ele vai pagar com sangue.
Ergo meus braços e ele entende que eu quero um abraço apertado.
— Eu também te amo, André. Te amo muito. — Quando o solto, olho dentro
de seus olhos, sendo o mais sincera possível. — Você é a melhor pessoa que eu
conheço.
— Achei que essa pessoa era eu. — Sorrio quando Alexandre se debruça
sobre minha cadeira, beijando meu pescoço, e André revira os olhos. Eu sequer o
ouvi chegar.
Decido provocar.
— Alexandre, eu posso não mandar no meu coração, mas eu ainda mando no
meu cérebro. Você sabe que seu irmão é a melhor pessoa que todo mundo
conhece. Isso é algo meio unânime.
Agora quem revira os olhos é ele, e eu rio.
— Pior é que eu não posso nem discordar. — Ele diz a contragosto, mas há
uma pitadinha de humor em seu tom.
— Não pode, porque eu sou mesmo demais. — André dá um tapinha não tão
amigável no ombro de Alexandre. — Então tenha em mente que se você vacilar,
a melhor pessoa que você conhece vai te partir no soco, irmãozinho.
— Uau, alguém está com saudade da Ariela… — Alexandre o irrita, e eu me
seguro para não rir. Esses dois nunca crescem. O que me intriga é que os olhos
de André ganham uma nota de tristeza repentina ao ouvir o nome da noiva.
— Uau, o mal-amado tem uma namorada agora e resolveu bancar o
espertinho… — Ele se vira e vai em direção à porta. — Agora eu vou embora,
porque eu ainda tenho que trabalhar. Vocês dois são drama demais na minha
vida.
— Eu também tenho que trabalhar. — Alexandre grita enquanto o irmão se
afasta: — Você pode me esperar e me dar uma carona?
André se vira e ri, girando a maçaneta, um olhar claro de vingança no rosto.
— Tá de castigo porque é um babaca. Se vira e vai com seu carro, porque eu
tenho coisas para resolver antes de ir para a companhia. — Ele pisca para mim.
— Até mais, Soph.
[…]
Enquanto Alexandre se troca para o trabalho, vou até a cozinha preparar o
café da manhã de Lilith, já que ela não quis comer nada na casa do tio. Estou
fazendo seu leite quando ouço minha mãe chegar. Ela entra na cozinha e quando
me vê, para onde está. A princípio ela não sabe bem o que fazer ou o que dizer,
visto que é a primeira vez que nos encontramos desde a história das cartas. Eu
ainda me sinto enganada por ela, é verdade, mas ela é minha mãe. Eu odeio estar
brigada com ela, isso me consome por dentro.
— Bom dia, mãe — eu suspiro e me viro para ela, encarando seus olhos. Ela
sorri, claramente aliviada por eu estar falando.
— Bom dia, meu amor — ela vem até mim — você está bem?
Tento segurar o sorriso em meu rosto. Como dizer a ela que eu nunca estive
melhor?
— Estou ótima, mãe.
Ela concorda, com um sorriso de canto.
— A gente pode conversar?
Ah não, não hoje que eu me sinto tão feliz. Eu sei exatamente sobre o que ela
quer falar, e isso é passado.
— Mãe, eu não quero mais tocar nesse assunto, sério. — Coloco o copo de
leite na bancada de mármore da cozinha e me viro para ela, olhando em seus
olhos. — Eu realmente entendo os motivos que te fizeram fazer isso. Não
concordo, mas entendo. — Sua expressão ganha uma nota de leveza. — E hoje
cedo eu percebi que faria qualquer coisa pela Lilith, qualquer coisa que eu
pudesse achar que é pelo bem dela, então, tudo bem. Você quis me proteger de
um perigo que você achou que ele representava, e eu seria muito idiota se não
entendesse isso. Então, tudo bem. Vai passar.
— Que bom. Que bom — ela concorda. — Eu te amo, filha. Eu só quero o seu
bem.
Assinto, porque sei que essa é a mais pura verdade. Não há nada que ela não
faria por mim, mesmo que às vezes errasse no meio do caminho.
— Eu conversei bastante com o Rodrigo, mãe, e ele também foi o responsável
por me fazer enxergar que tudo o que vocês fizeram, foi pensando em me ver
bem. Então ele pediu que eu esquecesse isso de uma vez. Ele sabe que vocês me
amam e fizeram tudo pensando somente em mim.
O olhar dela muda completamente. É como se ela não tivesse ouvido
absolutamente nada do que eu falei, só a parte do “Eu conversei bastante com o
Rodrigo”.
— Você está conversando com esse menino de novo, Sophia? — Ah meu
Deus, lá vamos nós.
— Não, mãe. Sua audição é seletiva? — Eu pergunto, contrariada. — Eu
conversei com ele uma vez. Conversei e o perdoei, porque eu preciso seguir em
frente. Vocês deviam fazer o mesmo.
— Olha só! Esse menino tá jogando com a sua cabeça de novo, tá vendo? Ele
voltou e vai acabar com a sua vida mais uma vez, para depois te abandonar. Me
ouve, filha! — Ela parece desesperada, então eu tento acalmá-la.
Só não sabia que o soco no estomago que estava por vir seria muito pior do
que o primeiro.
— Ele não vai me abandonar porque não é com ele que eu estou mãe —
suspiro, e quando ela me olha sem entender, eu digo baixinho: — Não é nada
concreto, e eu realmente não sei o que está acontecendo entre nós, mas o
Alexandre… Ele me beijou ontem à noite. E disse que gosta de mim. Disse que
quer ficar comigo, mãe. — Meus olhos brilham quando eu conto isso para ela.
Por mais que seja cedo, que ele seja o patrão dela e que nossa relação esteja
estremecida, eu nunca escondi nada dela. Minha mãe sempre foi minha melhor
amiga, e eu não queria de forma alguma que isso mudasse.
Mas antes que eu consiga processar tudo o que vem a seguir, eu sei que já
mudou, porque sua expressão vai de choque para horror em segundos.
E certas coisas simplesmente não têm desculpa.
— Sophia, o Doutor Alexandre está carente, você não percebe? —Minha mãe
abre a boca e meu sorriso morre imediatamente. — Ele é uma boa pessoa, mas
provavelmente está apenas confuso. Filha, quando ele for refazer a vida dele, vai
ser com alguém que possa acompanhá-lo nas coisas que ele gosta de fazer. Ele te
beijar não quer dizer que ele gosta de você. Talvez só queira dizer que ele está
tentando sentir algo de novo. Ele está desesperado para sentir novamente.
As lágrimas imediatamente escorrem por meu rosto e eu levo os dedos até as
bochechas, tentando de alguma forma, parecer menos patética do que me sinto
no momento. Eu já havia sofrido preconceito em todos os lugares, mas vindo da
minha própria mãe é como uma facada no coração. E o que mais machuca é: e se
ela estiver certa? E se for isso mesmo?
Antes que eu possa falar qualquer coisa, vejo a feição da minha mãe mudar e
empalidecer imediatamente. Sinto um toque em minhas costas e quando olho
para trás, vejo Alexandre segurando as alças da minha cadeira, já com seu
uniforme de piloto, pronto para o trabalho, e com uma postura rígida que poucas
vezes vi.
— Cilene… — Ele coloca o polegar nos lábios, pensativo, provavelmente
escolhendo as palavras em respeito aos anos de convivência. — Eu te amo como
se você fosse da família, mas, por favor, nunca mais fale dos meus sentimentos
como se os conhecesse mais do que eu, porque ficou claro que você não os
conhece. O que você fez agora foi inadmissível.
Percebo o choque no rosto dela, mas sua postura não muda. Eu a conheço, e
sei que ela tem certeza que tem razão.
— Eu só não quero que ela se machuque. Você tem uma filha, e sabe que faria
de tudo para protegê-la. — Ela usa a mesma desculpa de sempre.
Como se conseguisse ler meus pensamentos, Alexandre se adianta:
— E está tentando protegê-la machucando-a primeiro? Isso eu sei que jamais
faria com a Lilith. A Sophia apenas não anda, então para de fingir que o seu
protecionismo é saudável, porque não é. O que te faz pensar que eu não poderia
me apaixonar por ela? O fato dela não andar? — Ele segura meus ombros com
firmeza quando diz o que vem a seguir, e meu coração se enche de amor. Se eu
achava que era impossível me apaixonar por ele ainda mais, eu estava
redondamente enganada. — O coração da sua filha é muito mais importante para
mim do que as pernas dela, eu te asseguro. — Antes que eu possa dizer qualquer
coisa, ele vira minha cadeira, deixando claro que não me deixaria ali sozinha. —
Agora, tenha um bom dia.

Alexandre
Tiro Sophia de dentro da cozinha com os nervos à flor da pele. Foi preciso
muita resistência para não falar poucas e boas para sua mãe, mas levei em
consideração os anos que ela trabalha para minha família e o fato de que eu a
vejo como uma segunda mãe. Eu sei que as mães, como quaisquer outros seres
humanos, também fazem merdas colossais, mas a questão é que ultimamente ela
não tem economizado em magoar a Sophia com a péssima desculpa de que é
para o bem dela. Isso está passando dos limites.
Paro a cadeira no meio da sala e me abaixo, enxugando seus olhos cheios de
lágrima. Eu sei que ela está tentando não chorar perto de mim. Sei que ela pensa
que é fraca por isso, mas ela não faz ideia do quanto eu a acho forte por aguentar
tudo isso calada. Resiliência a define muito bem.
Ela é uma rocha.
— Tudo o que eu disse para sua mãe é verdade. Você é muito mais do que um
par de pernas — a beijo ternamente, a fim de provar meu ponto. — Azar de
quem não percebe isso, e sorte minha por entender antes que fosse tarde demais.
Ela estica sua mão e a pousa em meu rosto, dando um sorriso contido. É nítido
o quanto ela está magoada, mas ainda assim ela tenta disfarçar, para que eu não
fique chateado. Quando faço menção de beijá-la, Lilith entra correndo na sala.
Nós nos separamos rapidamente e seus passos diminuem, até que ela para na
porta, olhando para nós dois. Quando ela vê o rosto de Sophia molhado, seus
olhinhos se arregalam, surpresos.
— Sosô, o que foi? Você está tísti? — Sua expressão vai de surpresa para
preocupada em segundos, e eu vejo o quanto minha filha realmente a ama.
Sophia enxuga as lágrimas e sorri, da melhor forma que pode, tentando
tranquilizá-la.
— Um pouquinho, meu amor. — Acho incrível ela não poupar minha filha de
como a vida realmente é, mas naturalizar que todo mundo pode sofrer às vezes.
Ela chama Lilith com as mãos, até que minha filha vem e se senta em seu colo,
na cadeira. Então Soph faz um carinho em seu cabelo e diz, de maneira delicada:
— Mas a tristeza faz parte da vida Lili. Não teríamos dias bons se os ruins não
existissem.
— É, eu se. — Minha filha balança a cabeça e então seu rosto se ilumina,
como se ela lembrasse de alguma coisa ou tivesse uma ideia. De repente ela pula
do colo de Sophia e corre até o aparelho de som que Júlia usava para ensaiar as
coreografias, ligando-o. Quando ela o faz, a música “Meant to be” explode nos
alto falantes e ela se anima, pulando no sofá, cheia de vigor. — Mamãe dizia que
a dançar é a melhor coisa para afastar a tristeza, mesmo que você não saiba.
Meus olhos se enchem de lágrimas, porque eu sei quão grande é o coração da
minha filha. Ela nunca veria Sophia triste e ficaria sem fazer nada para mudar
isso, mesmo que na sua percepção de apenas seis anos, ela cometa algumas
falhas.
— É uma ótima alternativa, mas eu não consigo, Lili. — Sophia se explica,
mas antes que minha filha fique triste pela gafe, eu me adianto. Tenho certeza de
que eu nunca mais terei uma oportunidade melhor do que essa para me retratar.
— Quem disse? — Eu viro sua cadeira para mim e ela faz uma cara de
obviedade, que me faz rir. — É, eu sei que eu disse, mas eu sou um idiota. Não
vale. — Solto as alças de sua cadeira e me movo pela sala, arrastando todos os
moveis do centro para tirá-los do caminho. Quando tem um espaço bom, eu
simplesmente a puxo pelas mãos, girando sua cadeira e fazendo-a rir. — Você
pode o que quiser, Sophia.
Enquanto Sophia e eu giramos no meio da sala, Lili pula no sofá, animada, e
nós cantamos a plenos pulmões, errando algumas vezes e rindo disso. Seu
sorriso é do tamanho do mundo, e eu percebo que há muito tempo não me sinto
tão feliz. Então uma verdade inegável se faz clara em minha mente: quando nós
nos dedicamos a fazer outra pessoa feliz, os mais atingidos pela felicidade somos
nós mesmos.
If it's meant to be, it'll be, it'll be
Baby, just let it be
If it's meant to be, it'll be, it'll be
Baby, just let it be
So, won't you ride with me, ride with me?
See where this thing goes
If it's meant to be, it'll be, it'll be
Baby, if it's meant to be
Quando a música termina, eu me abaixo e beijo sua testa, ofegante. Ela sorri e
eu me sinto completo de uma forma que há muito não me sentia. É como se eu
estivesse no lugar certo depois de muito tempo vagando por aí.
— Não disse que iríamos arrumar nossas próprias formas de fazer as coisas?
Eu não menti. Nós vamos.
— Eu sei — seus olhos brilham. — Obrigada.
Quando me levanto, Lili ainda está pulando no sofá. Vou até ela e a pego no
colo, porque minha filha é o anjo que me fez ver que a vida continua valendo a
pena. Quando ela me abraça, debruça a cabeça em meu ombro e diz: — A
mamão está tão feliz, papai.
Sinto-me em paz. Fecho os olhos e agradeço por isso, porque sei que, de
algum lugar, Júlia realmente sorri para nós.
CAPÍTULO 32 – COMO EU TE VEJO

Alexandre
Os dias continuam a passar, mas eu sinto que algo está diferente. Apesar de
todas as noites, depois de Sophia colocar Lilith para dormir, nós ficarmos um
pouco juntos, sei que algo a está incomodando. Por mais que eu tente ignorar, sei
o que é: sua mãe vem trabalhar todos os dias, mas elas mal se falam. Cilene acha
que está certa em agir como está agindo, e Sophia não consegue lidar com o fato
de a mãe ter tão pouca fé nela e na sua capacidade de estar com alguém.
Algumas vezes até tocamos nesse assunto: Cilene quer proteger Sophia de
tudo para não vê-la sofrer, mas não percebe que a faz sofrer ainda mais não lhe
dando os créditos da própria vida.
É uma situação complicada.
Para piorar, por mais que eu queira, não posso me meter na situação. Não
quero que qualquer palavra errada que eu diga, faça Cilene sair do emprego e a
afaste ainda mais de Sophia. Além do mais, ela está conosco há anos. Ninguém
conhece tanto a minha casa e a minha rotina quanto ela. E eu simplesmente não
confio essa tarefa a mais ninguém, porque apesar de todas as coisas que vêm
acontecendo, eu realmente amo essa mulher como se fosse minha segunda mãe.
Paciência e tempo, nesse caso, são as melhores escolhas.
Nessa noite em especial, eu sei que Sophia não está bem. Passou o dia calada,
brincou com Lilith como sempre, mas vez ou outra, eu reparava em seu olhar
perdido. Ela estava distraída e aérea, e eu sei que ela nunca é assim.
Eu sabia que precisava fazer alguma coisa.
Disse para ela descansar um pouco e fiquei com Lilith. Como foi meu dia de
folga, nós nadamos, assistimos Frozen pela décima oitava vez, e depois de uma
leitura com soneca no sofá, coloquei minha filha no banho e pedi uma pizza.
Quando ela chegou, fui até o quarto de Sophia para chamá-la para jantar. Lilith
já estava nos esperando lá embaixo, ansiosa para comer seu sabor favorito.
Chego na porta do seu quarto, mas antes que eu entre, vejo, pela porta aberta,
uma cena que faz meu coração se contorcer. Sophia está parada em frente ao
espelho, se olhando atentamente. Não preciso ser muito inteligente para saber o
que isso significa, e isso me dói, porque eu ainda não sei como agir. Todo dia é
uma descoberta de como lidar com seus medos e suas limitações, e eu ainda
estou aprendendo a fazer isso.
Dou um toquinho de leve na porta e me encosto ao batente, esperando que ela
se vire. Quando ela me vê, disfarça como pode e eu dou um sorriso, deixando
claro para ela que eu havia visto o modo como ela se olhava. A cada dia eu a
conhecia melhor.
— Tá tudo bem, anjo? — Pergunto e entro, e ela se apressa em balançar a
cabeça, confirmando, como se eu fosse acreditar. — Tem certeza?
Antes que ela consiga confirmar de novo, eu me abaixo e apoio as duas mãos
em seus joelhos. Depois, olho em seus olhos e digo, calmamente:
— Lembra que a gente disse que podíamos falar tudo um pro outro? Lembra
que você me prometeu que diria tudo, para eu poder saber como agir?
Ela suspira e concorda.
— Lembro.
— Então por que você não me fala o que está acontecendo? Até então eu
achava que o problema era só sua mãe, mas eu estou vendo que tem algo a mais
aí. O que é, Soph?
Ela suspira e se vira de novo para o espelho, encarando o próprio reflexo.
Então vejo seus olhos marejarem, e ela dá de ombros.
— Eu só acho que em alguma hora, você vai perceber que está cometendo um
erro. Eu não posso ser tudo o que você precisa por vários motivos. E se minha
mãe tiver razão? Não é mais fácil a gente desistir disso enquanto ainda está no
começo? — Ela leva os dedos até os olhos, enxugando as lágrimas que insistem
em rolar pelo seu rosto. — Eu não quero sofrer de novo, Alexandre.
Ah, Deus.
— Porque isso agora, Sophia? Quando você veio ficar com a Lilith aqui, no
primeiro dia, você se impôs para mim. Me mostrou do que é capaz, deixou claro
que pode fazer o que quiser… Eu não entendo por que você está tão abalada
ultimamente, e isso não é uma crítica. Eu só quero entender para te ajudar.
Ela olha para cima, engolindo em seco, e provavelmente, escolhendo as
palavras.
— Era fácil me sentir capaz quando eu não precisava provar isso, Alexandre.
Mas agora… tá tudo diferente. Eu descobri que minha mãe não acredita em
mim. Não acredita que eu possa tomar decisões, que eu possa ter um
relacionamento normal. Eu descobri que as piores batalhas ela não quer que eu
enfrente, simplesmente porque não acredita que eu possa vencê-las. E se nem
minha mãe acredita em mim, quem vai?
Eu quero dizer para ela que eu, eu acredito, mas esse é o momento de deixá-la
falar. Ela precisa colocar tudo para fora. Preciso entender os sentimentos dela
para ajudá-la a administrá-los.
— Soph, eu sei que é difícil… — Eu começo, mas ela balança a cabeça,
negando.
— Não, não é difícil. Se fosse difícil, eu conseguiria. — Ela engole em seco.
— O problema é que é amedrontador. Desesperador. Eu não quero cair de cabeça
em algo, brigar com Deus e o mundo para provar que eu posso fazer as coisas, e
depois cair do cavalo. Não posso me arriscar a te amar com tudo de mim para
depois você cansar de bancar a babá da aleijada… — Quando ela fala isso, tudo
some da minha vista. Eu apenas coloco meu dedo sobre sua boca, silenciando-a.
— Nunca mais se refira a si mesmo desse jeito. Eu posso entender e aceitar
que você fique insegura, porque é tudo novo; é novo para mim também. Mas
nunca mais fale de si mesma assim, com tanto desdém, simplesmente porque
você não tem motivos e principalmente, porque eu sei que você não se vê assim.
Você passou a se ver assim por causa dos outros, e anjo, isso é loucura.
Ela abaixa a cabeça.
— Eu sei. Eu nunca deveria falar assim de mim, você tem razão. Mas eu estou
buscando todos os meios para fazer você entender. Eu só quero que você veja
que haverá altos e baixos. Haverá dias em que eu estarei bem, e haverá dias em
que eu estarei assim, amedrontada, insegura, triste. E eu só quero te poupar de
passar por todo esse drama. É só isso.
Respiro fundo. Como eu poderia explicar para ela que quem sabe o que é
melhor para mim sou eu, e mais ninguém? Consigo entender todos os medos que
ela sente, mas isso não é motivo para que eu concorde com suas teorias e a deixe
continuar pensando isso.
— Eu entendo isso que você está pensando… — Digo, e ela funga baixinho.
— Entende? — Ela continua a limpar as lágrimas e eu balanço a cabeça, em
afirmação.
— Sim, mas não quer dizer que eu ache que você está certa. — Viro sua
cadeira para o espelho e então agacho ao seu lado, mirando nosso reflexo juntos.
Mesmo com toda a diferença entre nós, somos inegavelmente bonitos um ao
lado do outro. — Mas se pra você é tão difícil enxergar como eu te vejo, eu vou
ser meus olhos para você, tudo bem? Vou te mostrar exatamente como eu te
vejo, e no final, você vai entender que o fato de você não andar, não significa
nada para mim, Sophia. Absolutamente nada.
Então tiro a presilha que prende seu sedoso cabelo no alto de sua cabeça. As
mechas caem em seus ombros, e eu sorrio para sua expressão no espelho. Ela
não está entendendo nada.
— Eu amo seu cabelo. Tá vendo como ele é lindo? — Afundo então meu
rosto em seu pescoço, depois subo o nariz, inalando o cheiro delicioso de seu
shampoo. — E não é só porque ele é lindo. Ele é macio, é cheiroso… Eu adoro
sentir ele em minhas mãos quando estou te beijando.
Ela sorri, meio tímida.
— E por falar em beijar… — Me adianto e selo minha boca na sua, beijando-
a delicadamente. — Eu amo a sua boca. Amo. E não é só porque eu adoro te
beijar, nem porque seus lábios são macios e seu hálito é doce. Eu amo sua boca
porque ela tem sempre as palavras certas. Ela é linda porque fala as palavras
mais doces e sempre tem uma mensagem de conforto para quem quer que seja. É
linda porque sempre tem as preces mais sinceras e porque tem o sorriso mais
incrível que eu já vi. Seu sorriso seria capaz de iluminar uma cidade inteira.
Dessa vez, seu sorriso é ainda maior, e seus olhos brilham, o que me leva a
mais um ponto.
— E por falar em iluminar… — Aponto seu rosto no espelho. — Seus
olhos… Olha como eles brilham, Sophia. Além de terem a cor da minha bebida
favorita, toda sua verdade é refletida neles. Quando você fala sobre algo que
ama, e principalmente, quando olha para a minha filha. Eu também adoro como
eles ficam pequenininhos quando você ri muito. É engraçadinho demais. —
Aperto sua coxa e a encaro. — Eu poderia falar de cada pedacinho do seu corpo,
porque eu tenho motivos para gostar de cada um deles. Mas eu não preciso,
porque a parte principal está aqui — coloco minha mão sobre seu coração e ela
coloca a dela em cima, praticamente me agradecendo com o olhar. — Suas
pernas são só suas pernas, Soph. E eu não me apaixonei por elas. Eu me
apaixonei pelo seu coração.
— Você está apaixonado por mim? — Ela acaricia meu rosto, quase como se
eu tivesse falado algo que não está mais do que claro. Na verdade, eu achava que
tinha praticamente um letreiro em néon na minha testa confirmando isso.
— Não é obvio? Achei que isso não fosse mais uma dúvida.
— É que te ouvir falar é diferente. — Ela sorri e eu me curvo para beijá-la.
— Se esse é realmente o problema… — eu falo, com todas as letras: — Eu
estou apaixonado por você, Sophia. Bem apaixonado. Apaixonado para caralho,
se me permite essa ênfase.
Ela ri, jogando a cabeça para trás, mas eu continuo a falar.
— Você pode não perceber, porque isso é algo que te é tão inerente… Mas as
pessoas que convivem com você praticamente conseguem vera sua aura — beijo
o dorso da sua mão —, e eu que não acreditava em anjos, agora tenho o meu.
Quando volta a me encarar, com os olhos cheios de lágrimas, faz uma
pergunta que eu sei que está martelando sua cabeça há dias:
— Você quer realmente fazer isso, Alexandre? Você quer mesmo ficar
comigo, não importando quais sejam as dificuldades pelas quais eu passe?
Porque todos os dias elas aparecem.
Eu não tinha dúvida. Não tinha mesmo.
— Mais do que qualquer outra coisa. Vamos tentar, Sophia.
— Se isso der errado… Vai dar muito, muito errado. Tem a sua filha, as
nossas famílias. É muita coisa envolvida… — Ela começa, mas eu a corto,
pensando justamente no amor que ela tem pela minha filha, e em como ela já é
parte dessa casa e da nossa vida. Não há como voltar atrás.
Então eu a olho profundamente, deixando claro que eu não estou aberto a
discussões sobre isso.
— Mas se der certo… E eu sei que vai — me inclino e a beijo na boca —, vai
dar muito, muito certo.
CAPÍTULO 33 – DO NOSSO PRÓPRIO JEITO

Sophia
— Ela dormiu? — Pergunto quando Alexandre chega ao meu quarto. Todas as
noites, nossa rotina agora é assim: Lilith dorme, e nós ficamos um pouco juntos
em meu quarto. Nunca mais dormimos na mesma cama, mas os momentos em
que ficamos abraçados, conversando, nos beijando ou vendo um filme são os
momentos mais aguardados do meu dia. E quando ele está viajando, bom, eu
simplesmente morro de saudade.
É incrível como uma rotina pode se instalar em sua vida tão rapidamente.
Antes eu jamais sonharia com isso, e hoje eu sequer posso imaginar viver sem
esses momentos.
Depois da conversa que Alexandre teve comigo, aprendi a respirar fundo antes
de pirar com minhas próprias suposições acerca do que estávamos tendo. Eu
analisava meus sentimentos, separava o que eram dúvidas e medos reais e os que
eram inventados pela minha cabeça, então, o que era real, nós discutíamos
juntos, tentando achar as melhores soluções. Está funcionando, mas apesar de
falarmos de tudo, um assunto ainda está suspenso entre nós: sexo.
É frustrante, mas ao mesmo tempo, eu sinto que ele está dando o meu tempo
para ter certeza de que é isso mesmo que eu quero fazer. O problema é que eu
tenho, e eu decidi que se ele não falar disso até o fim de semana, quem irá falar
sou eu. Não dá pra continuar fingindo que isso não está entre nós, como se fosse
o único passo que falta para que isso que estamos desenvolvendo seja uma
relação de verdade.
— Já. Li umas dez histórias para ela antes. — Ele se abaixa e cheira o creme
que estou passando no corpo e faz um sinal positivo com a mão. Eu sei que ele
ama esse cheiro, então eu passo de propósito. — E sabe o que ela me disse um
pouco antes de pegar no sono?
— Vindo da Lili, tudo é possível. — Rio, estendendo o vidro para Alexandre,
que entende a deixa e se abaixa em minha frente, passando o creme em minhas
pernas. Por mais que eu consiga fazer tudo sozinha, é sempre bom ter uma
ajudinha às vezes. Sem contar que suas mãos em meu corpo são um bônus que
eu nunca recuso.
— Ela perguntou: “você vai ficar com a Sosô hoje?” — Ele me olha enquanto
eu absorvo a informação. Quando eu rio, estupefata, ele só balança a cabeça,
também indignado. — Dá pra acreditar? A gente faz um esforço danado, e a
bonitinha sabe que todas as noites eu venho para cá.
— É que no quesito disfarçar você não é nenhum James Bond, né,
Alexandre?! — Ele faz cara feia, mas depois concorda e então se deita. Eu ainda
estou na cadeira, mas já estou vestida para dormir. Quando termino de passar
meu creme corporal, encosto a cadeira ao lado da cama e com alguns
movimentos, faço a transferência para a cama e me deito. No começo, Alexandre
sempre queria me ajudar nesse momento, mas então ele percebeu que é natural
para mim. E por mais que eu aprecie a boa intenção, ele me poupar dos
pequenos esforços só me fará perder a autonomia que eu demorei tanto para
adquirir.
Ele se ajeita, encostando as costas na cabeceira e então eu me aninho,
encostando as costas em seu peito. Pendo a cabeça para trás e ele beija minha
boca com carinho.
— Está cheirosa… — Ele desce o nariz para meu pescoço e eu me arrepio. O
fato de eu depender mais dele no quesito sexual me faz ter a sensibilidade
aflorada em partes como a orelha, o pescoço e até mesmo os ombros. É um outro
tipo de relação, e mesmo que ele faça sem querer, sempre acerta onde me beijar.
— Obrigada — sorrio e volto a olhar para frente. Pego o controle e ligo a TV,
zapeando os filmes que poderíamos assistir. Sua mão desce por meu braço,
fazendo carinho, e então ele pega o controle da minha mão, desligando o
aparelho e colocando-o delicadamente no colchão. Olho para trás sem entender,
mas ele é rápido em explicar.
— Quero ficar com você hoje. Achei que a gente poderia conversar um pouco
sobre algumas coisas. — Seu tom é delicado, e eu assinto, balançando a cabeça
em positivo.
— Claro. Sobre o que?
— Eu tenho algumas… dúvidas… — Sua expressão é quase de desespero.
Como se ele estivesse com vergonha de falar o que está pensando.
— Dúvidas? — Eu franzo o cenho. — Que tipo de dúvidas?
— Do tipo… sexuais — ele dá de ombros. — Eu… sabe… andei pesquisando
muito sobre isso. Para, entender… Saber o que fazer. Mas é difícil, Soph,
porque…
— Porque cada pessoa é diferente. São lesões diferentes, traumas diferentes,
cabeças diferentes, né? Assim como todo andante. — Comento, e ele me olha
surpreso.
— Andante? — Eu rio da cara engraçada que ele faz, porque acho que nunca
usei esse termo com ele.
— É um termo que a gente usa. Vocês nos chamam de cadeirantes…
Chamamos vocês de andantes.
— Então você tem um namorado andante? — Ele repete a expressão com
uma voz diferente, fazendo cócegas nas minhas costelas, e por mais que eu
esteja passando mal de rir, é impossível não reparar na palavrinha martelando
minha mente: namorado.
— Primeiro: eu tenho um namorado? — Consigo folego e ele me beija, antes
de descer a boca para o meu pescoço, mordendo de leve.
— Achei que aquele cara que vem ficar com você toda noite fosse seu
namorado. Coitado, ele acha que é, viu? Não fica dando esperança para o rapaz
se você não tem boas intenções com ele. — Meus olhos brilham, e ele me abraça
mais apertado. — Mas agora falando sério: você tem um namorado e ele quer
saber como você sente tudo, então, será que você pode explicar essa parte para
mim sem que eu precise implorar?
Eu rio.
— O que você quer saber? — Estico meu braço e acaricio seu pescoço, então
ele abaixa a boca e morde minha mão levemente, provocativo. — Não sei se
posso te dar muitas informações, afinal, eu não tenho experiência, né?
— Eu sei. Mas você é a pessoa que mais conhece seu corpo, né? E eu não
quero saber nada sobre sua virgindade. Como resolver isso, acredite, eu já sei. —
Ele ri, depois acaricia meus dedos com os seus. — Eu quero saber da sua lesão.
O que eu posso fazer, o que eu não posso, como é mais confortável e se você
sente prazer da forma comum, ou se eu preciso explorar isso de formas
diferentes. Quero saber essas coisas, Sophia.
Com muito jeitinho, me viro na cama, ficando de frente para ele. Com
delicadeza, ele pega minhas pernas e as passa por cima das dele, e ficamos com
os corpos muito próximos um do outro. Ele flexiona os músculos dos ombros
quando vem para frente me beijar, e quando ele se afasta de novo, não posso
fazer nada além de admirar toda a sua sensualidade.
— Vamos ver o que eu posso falar para você a respeito disso… — Mordo o
lábio inferior, pensativa, e ele observa fascinado. — Acho que posso começar
por uma coisa simples. — Pego sua mão e a coloco em cima da minha perna.
Com delicadeza, faço movimentos de vai e vem, até ele entender que é pra me
fazer carinho, então ele continua por si próprio. — Isso, por exemplo. Eu não
tenho sensibilidade aí, como você sabe. Mas eu adoro quando você me acaricia,
mesmo que eu não sinta, porque eu sei que é uma mistura de ternura com desejo.
Ainda que eu não sinta o toque em si, o prazer vem de olhar suas mãos se
movimentando sobre mim, vem de observar a sua necessidade de tocar todas as
partes do meu corpo. O estímulo, nesse caso, é visual.
— Entendo… — Ele diz com a voz rouca. É mais do que óbvio para mim que
ele também gosta de me acariciar, não importa qual parte do meu corpo seja.
Então ele sobe a mão, e aperta minha coxa com um pouco mais de pressão. Seus
dedos sobem, atravessando a linha do baby doll, e descem, arranhando de leve o
interior da minha coxa, até embaixo. Sinto seu toque, mesmo que de forma fraca,
em todas as minhas terminações nervosas.
— É exatamente isso. E eu acho que o maior segredo está nisso, sabe? O tipo
de relação é outro: eu tenho muito mais sensibilidade em partes como minha
orelha, meu pescoço, minhas costas. Quando você me toca, eu sempre tento
adivinhar para onde sua mão irá depois… É um jogo delicioso imaginar o que
você está pensando, o que quer fazer comigo… — Sussurro, e sinto que minha
voz já está diferente. Sua mão continua a me explorar, e de repente eu percebo
que isso é muito mais do que apenas uma conversa. É uma aula teórica aliada a
prática.
— Você gosta de imaginar aonde minha mão vai te tocar? — Ele pergunta,
mordendo de leve minha orelha, provocando, enquanto sinto meu corpo todo se
arrepiar. Começo a falar, mas sua boca toma a minha, silenciando-me. De início,
seu toque, como sempre, é suave. Uma exploração carinhosa dos meus lábios e
queixo, mas eu quero mais. Sinto-me uma viciada, provando só mais um
pouquinho da droga preferida. Nunca é o suficiente.
Deslizo a mão por seu peito, depois subo e enfio os dedos por dentro de seu
cabelo macio, bagunçando tudo. Ele só precisa disso para aprofundar o beijo.
Sinto sua língua deslizar para dentro da minha boca. Com uma mão ele apoia
minhas costas e com a outra ele enlaça minha cintura. Com apenas um
movimento, vou parar em seu colo, e o beijo parte de inocente e doce para
altamente sexual em questão de segundos.
— Você não precisa que eu te ensine nada. — Consigo falar entre nossos
lábios. — Acho que suas mãos conhecem meu corpo melhor do que eu. Você me
toca e já é o suficiente, Alexandre.
— Então me fala onde você quer ser tocada. — Ele abaixa as alças do meu
baby doll, e eu suspiro forte, agarrando seu cabelo com as duas mãos, enquanto
suas duas mãos em minhas costas me puxam para mais perto dele.
— Você está no caminho certo. — Ele entende a dica, e pela primeira vez, ele
abaixa minha blusa por completo, deixando meus seios à mostra. Eu pensava que
sentiria vergonha ao me mostrar para ele pela primeira vez, mas é exatamente o
contrário. Seu olhar de adoração para o meu corpo é um combustível potente
para minha autoestima, e nesse momento eu esqueço todas as minhas
inseguranças, simplesmente porque não tem como um olhar desse ser mentiroso.
Esse homem me quer, e me quer muito.
Uma de suas mãos envolve meu seio esquerdo, e delicadamente, ele abaixa a
cabeça. Fecho os olhos esperando o momento, e quando ele vem, sinto que tudo
dentro de mim queima, irradiando ondas diretamente para minha região íntima.
Sua boca quente suga meu mamilo e eu ofego, porque me sinto muito próxima
de algo que eu nunca experimentei sozinha. Quando minha boca solta sons
ininteligíveis, ele diminui os movimentos, até soltar sua boca de minha pele.
Delicadamente, ele sobe para meu pescoço e chegando perto do meu ouvido,
com a voz rouca e carregada de desejo, ele sussurra:
— Acho que entendi, Sophia. Ninguém é “deficiente de hormônios”, não é?
Mesmo que você tenha perdido a sensibilidade em um lugar, há muitas outras
formas de conseguir prazer. Acho que aos poucos, estou descobrindo as suas.
Balanço a cabeça, ainda de olhos fechados. A sensação de segundos atrás
ainda reverbera por todo meu corpo. Eu sinto que estive muito próxima de sentir
o tipo de prazer que vejo nos livros que leio desde a adolescência.
É inexplicável.
Alexandre parece perceber, pois sobe a boca e me beija, e respirando devagar,
ele apenas diz:
— Eu quero que você sinta isso quando eu estiver dentro de você. E agora que
eu sei exatamente onde te tocar, te garanto que vai ser muito melhor. — Só
consigo balançar a cabeça concordando. Eu também quero isso. A experiência
completa.
— Eu também quero isso. Quero descobrir com você o que eu posso e consigo
fazer, Alexandre. Vai ser tão novo para mim quanto para você. Mas eu quero
descobrir.
— Sabe o que a gente faz? — Ele me beija, mordendo meu lábio inferior. —
A gente arranca algumas páginas do Kama sutra… Desenha outras e coloca no
lugar. Vai ser de uso exclusivo nosso. — Ele dá uma risadinha que parece
enferrujada por falta de uso, e aquilo me encanta. Ele está fazendo tudo ficar
mais fácil.
Solto um suspiro de surpresa, porque não esperava que por baixo daquele
corpo definido e daquele ar, por muitas vezes taciturno, houvesse não só algum
senso de humor, mas também tanta sensibilidade e tato. Ele é um cavalheiro, que
apesar de não esconder nenhum pouco que quer muito transar comigo, deixa
claro que tudo acontecerá no momento exato que tem que acontecer. Eu me sinto
encantada, e então percebo muito claramente que eu não sou só apaixonada por
esse homem.
Eu percebo claramente que eu o amo.
O amo com tudo de mim.
CAPÍTULO 34 – ACONTEÇA O QUE ACONTECER, DESFRUTE

Alexandre
— Obrigada. — Ela enlaça seus braços em meu pescoço e me dá um selinho.
Não entendo por que ela está me agradecendo, então franzo o cenho e ela sorri.
— Por todo esse tato, essa paciência. Você está sendo incrível, Alexandre. Isso
sempre foi uma questão que ficou em minha cabeça… “Será que quando eu
encontrasse alguém, essa pessoa teria delicadeza comigo?” E agora eu sei que
tem que ser com você, porque você faz eu me sentir segura comigo mesma.
Encosto minha testa na sua.
— Claro que vai ser comigo — aperto sua bochecha —, eu nunca mais vou te
soltar, para nada. Não vou dar nem a chance de outra pessoa se aproximar. —
Seus olhos brilham quando eu digo isso, mas é a verdade. Eu não sei lidar com
todos os sentimentos dentro de mim ainda, não sei se o que sinto é amor, mas o
que eu sei, com toda a certeza do mundo, é que gosto muito dela. Gosto tanto
que não consigo pensar mais em nossos caminhos separados.
Ela ri.
— Como se eu quisesse outra pessoa — ela roça seu nariz no meu.
— Tem mais alguma coisa que eu deva saber? — Pergunto, porque quero que
tudo saia perfeito quando eu for lhe dar sua primeira noite. Ainda que isso entre
nós não dê certo um dia, por algum motivo, eu quero que sua primeira vez seja
comigo. Quero lhe mostrar como ela pode e deve ser tratada. Quero lhe fazer
ver, sem dúvida alguma, que ela pode e deve ser adorada em cada pedaço de seu
corpo. Quero que ela saiba que ela é uma mulher com limitações, mas ainda
assim, é uma mulher inteira.
— Tem mais uma coisa — ela abaixa a cabeça —, mas é algo que eu não me
sinto tão confortável em dividir com você, mesmo que seja necessário.
— Você tem vergonha? — Eu pergunto e ela balança a cabeça, o rosto
corando.
— A gente já não conversou sobre isso, anjo? — Pergunto com a voz baixa,
olhando em seus olhos. Não quero pressioná-la, mas quero que ela saiba que ela
pode me falar o que quiser. — É algo muito íntimo?
Eu sondo, querendo saber se eu devia ou não insistir, mas ela resolve falar por
conta própria, provavelmente se lembrando que eu lhe dissera o quanto eu
precisava saber para pode agir corretamente.
— Eu não sei se você sabe como é a questão fisiológica de um cadeirante,
Alexandre, mas não é tão fácil como é para vocês. No geral, eu sou bem
independente nisso; consigo tomar banho e ir ao banheiro sozinha, desde que eu
tenha as barras de acessibilidade. Alguns cadeirantes usam uma sonda de alívio
para drenar a bexiga, porque a gente não consegue controlar ou segurar como
vocês. Eu não uso, porque vou ao banheiro a cada hora e esvazio minha
bexiga… Mas quando eu saio ou para dormir, eu tenho que usar uma…
Ela empaca na frase e eu percebo o quanto ela está desconfortável em dividir
aquilo comigo. Eu sei o que ela vai dizer: ela usa uma fralda para não ter que
ficar acordando, ou no caso, quando sai, não correr o risco de encontrar um
banheiro sem acessibilidade onde ela possa ir sozinha. Eu sei como é isso,
porque nas minhas pesquisas li sobre esse assunto. Na verdade, é como uma
calcinha, para facilitar ela vestir, mesmo assim, imagino que seja desconfortável
para ela dividir isso comigo.
Sorrio para ela e então balanço a cabeça confirmando.
— Já entendi. Eu sei que você está desconfortável, então não precisa falar.
Mas isso não muda nada. Eu não te acho menos bonita ou menos independente
por isso, ou seja lá o que for que você estiver pensando… Não é uma vergonha,
é apenas uma necessidade.
— Mas e se um dia você…
— Eu vir? Se eu vir, eu vi — ajeito-a em meu colo. — Sophia, quando eu
disse que eu estou aberto para saber tudo sobre você, não estou falando só das
coisas boas. Estou falando de tudo. Você já me viu bêbado, mal-humorado,
irritado, até meio agressivo… E você está aqui. Se isso entre nós não der certo,
pode ter certeza que não será por motivos como esse. Porque essas coisas, são
coisas que eu vou me acostumar, que eu vou aprender a lidar, a te ajudar. Se isso
não der certo, vai ser pelos mesmos motivos que qualquer outro relacionamento:
incompatibilidade de gênios, falta de amor, negligência de sentimentos… Mas
nunca, ouça bem, nunca pela sua condição — falo sério nessa parte. Ela precisa
entender isso, e se eu precisar explicar cem vezes, eu o farei. — Achei que eu já
tivesse deixado isso claro.
— Desculpe — ela diz —, você deixou, sim. É só a minha insegurança
falando mais alto. Às vezes acontece.
— Acontece com todo mundo. Cadeirantes e andantes — uso o termo que ela
me ensinou e pisco, então pergunto se tem mais alguma coisa que ela queira me
dizer. Ela balança a cabeça, negando, mas continua a falar sobre como é estar em
uma cadeira, e eu ouço cada palavra. Isso sempre me ajuda a entender cada vez
mais sua cabeça e seu coração.
— Sabe… Cadeirantes lidam com muitos tipos de dificuldades todos os dias:
desde questões psicológicas e de aceitação, até questões externas, como
acessibilidade, que infelizmente, nesse país, ainda é algo muito falho. Mas a
única diferença entre nós e as outras pessoas é a mobilidade. Sentimentos,
conversas, interesses, tudo isso a gente também tem. E você me trata exatamente
da forma como eu quero ser tratada: normalmente.
— Mas eu te acho diferente, Sophia, é inegável. — Quando seu sorriso vai
morrendo, me sinto culpado por ser tão ruim com as palavras, então me corrijo
rapidamente, apertando sua cintura em meu abraço e ajeitando-a melhor em meu
colo. — Você é muito mais forte do que a maioria das pessoas que eu conheço. É
mais madura, mais espiritual, mais humana. E eu simplesmente adoro isso.
Ela me olha de uma forma graciosa.
— Acho que o segredo é aceitar o que a vida nos dá, todos os dias quando
acordamos. O que a princípio pode parecer uma tragédia, muitas vezes é uma
nova chance de se reinventar, de recomeçar e entender sua própria força. De
provar para si mesmo que não importa quão forte a vida bata, mais forte
estaremos quando nos levantarmos — ela mexe em meu cabelo enquanto fala
isso —, porque às vezes, quando a gente finalmente encontra as respostas, Deus
vai lá e muda as perguntas, e se a gente não aceitar isso para viver, então a vida
simplesmente se torna muito difícil de suportar.
— E isso não deveria ser considerado muito, muito injusto? — Meu lado
cético e pouco espiritual resolve dar as caras. Eu sempre fui muito temente à
Deus, mas desde que Júlia se foi, há algo em mim que insiste em sempre
questionar tudo que envolve uma fé muito grande.
— Não quando as novas perguntas te dão respostas muito melhores,
Alexandre. Algumas vezes, é um mistério que talvez você só entenda lá na
frente, como foi no caso da Dona Júlia. Eu realmente não entendo por que ela se
foi — ela toca em um assunto extremamente doloroso para mim, mas pela
primeira vez, consigo pensar nisso sem querer gritar até o ar dos meus pulmões
sumirem. — Do mesmo jeito que na época em que eu fiquei paraplégica, eu
também não entendi o motivo. Hoje eu sei que isso só serviu para me deixar
mais grata pela vida, mais atenta às pequenas coisas, e principalmente, hoje eu
sei que isso me trouxe você e a Lilith. Se eu continuasse a andar, provavelmente
estaria jogando em algum time fora do estado, ou teria me casado com uma
pessoa que não me amava como eu merecia ser amada… E mesmo diante de
todas as dificuldades que eu tenho, eu aprendi que sou valiosa demais para não
ser amada da maneira certa. E quando eu digo isso, eu incluo a mim também.
Apesar de todos os meus medos e as minhas inseguranças, eu me amo
exatamente como eu sou, Alexandre.
Não sei de onde vieram tantas coisas, mas eu ouço tudo em silêncio, atento a
cada palavra. Talvez ela só estivesse me mostrando as coisas do seu ponto de
vista, ou talvez ela estivesse me dando um recado muito claro sobre o modo
como eu devo tratá-la, ou talvez ainda seja só sua sabedoria enorme falando,
como sempre. A única coisa que eu realmente tenho certeza é de que essa mulher
me salvou de mim mesmo, e eu vou tentar todos os dias não a decepcionar.
— Eu tenho um lema muito pessoal, sabe? — Ela toca meu peito com os
dedos, subindo e descendo em um carinho despretensioso.
— E qual é esse lema, posso saber?
— “Aconteça o que acontecer, desfrute.”.
— Como é? — Olho para ela desconfiado. Não é possível que ela vá me dizer
o que eu penso que vai.
— É isso mesmo. O modo como a gente enxerga as adversidades da vida pode
ser o fator crucial para a felicidade nela. Ou a infelicidade, se você quiser
enxergar tudo como uma grande punição.
— Eu não sei se consigo enxergar tudo com tanto otimismo, Soph… — Sou
sincero. Às vezes eu acho que sua fé é quase utópica.
— Alexandre, não é otimismo, é realidade… A chuva cai sobre os justos e
sobre os injustos. A vida tem altos e baixos, então eu acredito fielmente que os
mais sábios e mais felizes são aqueles que conseguem tirar de tudo um
aprendizado. Eu poderia me lamentar todos os dias pelo fato de não andar mais,
mas, para o bem ou para o mal, essa cadeira hoje é minha melhor amiga: ela é
minha liberdade. Ela é a liberdade que me foi tirada pela burrice humana. Ela
não tem culpa de eu estar como estou, mas ela me locomove. Então eu não posso
odiar o que hoje em dia me ajuda. Se a gente enxergar dessa forma todas as
coisas que a gente não tem o poder de mudar, suportá-las com certeza será mais
fácil.
— Porra, você é incrível. Tem horas que eu duvido que você seja real.
— Eu já me lamentei muito, muito mesmo. Já odiei muito estar como estou, e
já odiei essa cadeira com todas as minhas forças. Já chorei, e ainda choro, como
você pôde ver esses dias mesmo. Eu sou humana, e eu não acho que a gente tem
que negar a realidade da dor. Não estou dizendo que enxergo tudo lindo em cem
por cento do tempo, mas eu tento. Eu tento, porque nada vai mudar se eu
reclamar, mas tudo pode mudar se eu ao menos tentar enxergar o lado bom.
Não encontro forças para responder nada, então apenas a abraço. Ela retribui
com tudo de si, descansando o rosto sobre meu cabelo, em um carinho só dela.
Perto de mim, de minha estrutura, ela parece tão pequena e indefesa, mas quando
comparo sua força com a minha, me sinto uma criança de colo que ainda precisa
aprender muito.
Fecho os meus olhos, e com um pouco da fé restaurada, agradeço a Deus,
rapidamente, pela chance de só ter tido mulheres incríveis em minha vida. Minha
mãe, minha mulher, minha filha e agora ela. Com cada uma, eu aprendi que
posso ser um pouco melhor a cada dia. E que o tempo de aprender é todo dia.
— Eu prometo que vou te fazer feliz — sussurro perto de seu ouvido.
— Você já faz — ela responde, aquecendo meu coração, e eu sorrio, porque
no momento, é tudo o que eu preciso ouvir para ter a certeza de que estou no
caminho certo.
CAPÍTULO 35 – CADA UMA TEM SEU LUGAR

Alexandre
Estaciono o carro na frente da escola e vejo Lilith vir correndo ao meu
encontro. Sua mochila balança em suas costas e sua franjinha cai no rosto, e eu
vejo como o tempo passa rápido.
Há pouco tempo ela ainda era um bebê, engatinhando pela casa e mastigando
coisas, e num piscar de olhos ela está assim, quase uma mocinha, que me ensina
todos os dias lições valiosas demais.
Ela abre a porta de trás do carro e se joga como um furacão no banco. Um
sorriso enorme estampa seu rosto enquanto ela solta as alças da mochila e a joga
ao lado, e eu sei que isso se deve ao fato de eu te vindo buscá-la. Por conta do
trabalho, nem sempre eu conseguia. Eu faço sempre, no mínimo, um voo por
semana, o que já me faz ficar pelo menos dois ou três dias fora de casa. E eu
também não tenho horário certo, então às vezes eu saio de dia, às vezes eu saio
de noite, e às vezes eu só fico de sobreaviso, esperando me chamarem. É
exaustivo, mas vale a pena tanto pela remuneração, quanto pelo que conheço
através do meu trabalho. Eu simplesmente amo voar.
— Oi papai! — Ela se enfia entre os dois bancos dianteiros do carro e faz um
biquinho para me beijar. Afago seu cabelo e antes de ligar o automóvel, eu digo:
— Vai, filha. Senta direitinho no assento, e passa o cinto. — Só quando ela me
obedece é que eu finalmente saio com o carro.
Ligo o som baixinho, em uma rádio que toca MPB. Júlia amava ouvir essa
rádio no carro, e sempre ficava inventando coreografias para todas as músicas
em sua cabeça. Olho para trás e vejo Lili batucando a mãozinha em cima da
mochila, alheia, olhando os carros passarem. É impossível não me lembrar de
sua mãe em cada gesto que ela faz, e percebo que o gosto musical das duas
também é idêntico.
— Sua mãe adorava essas músicas, sabia? — Pergunto, e ela imediatamente
olha para frente, abrindo um enorme sorriso. Já fazia alguns dias que não
falávamos de Júlia, e eu não quero que isso aconteça. Quero que minha filha
mantenha sempre sua memória viva em si, e se isso depender de mim, sempre
serão as melhores memórias.
— Eu estou com saudade dela, papai. — Ela solta de repente, e pende a
cabecinha para o lado. Em momentos como esse, eu nunca sei o que dizer. Eu sei
que ela irá sentir essa saudade em muitos momentos da vida, mas é difícil ver
um filho sofrer e saber que não há nada que você possa fazer a respeito. É
excruciante se sentir impotente diante de certas coisas que a vida nos impõe.
A única coisa que eu posso fazer é ser empático.
— Eu também estou, meu amor. Eu sinto saudade dela todos os dias.
Então, uma pergunta me surpreende:
— Mesmo quando você está com a Sosô? — A princípio, a pergunta me
desestrutura, mas no segundo seguinte eu entendo que nunca haverá uma
oportunidade melhor para explicar o que está acontecendo entre Sophia e eu para
minha filha. É uma ótima forma de colocar os sentimentos de todo mundo em
seus devidos lugares, sem culpa ou dúvidas.
— Meu amor… A Sosô e a mamãe são duas pessoas diferentes, e uma não
substitui a outra. Eu amo a sua mãe. Amo com tudo dentro de mim. Ela me deu
você, que é o maior presente que eu já ganhei na vida e ela foi a pessoa com
quem eu descobri o que é amar de verdade. Mas ela não está mais aqui, e a
Sophia é uma pessoa muito boa…
— Ela é. — Minha filha concorda com a cabeça, rapidamente.
— Então… São sentimentos completamente diferentes. A gente pode amar as
duas ao mesmo tempo, com todo nosso coração, sem precisar esquecer a outra.
Cada uma está em seu lugar de direito, mas são lugares diferentes, entende? A
gente não precisa escolher. — Eu digo isso para minha filha com convicção, mas
algo dentro de mim se contorce. Está tudo maravilhoso entre nós, mas eu
realmente poderia? Eu realmente poderia amar outra pessoa como amei Júlia?
Pensar nisso ainda me causa certo estranhamento. Eu sei que amo muitas
coisas em Sophia: o modo como ela enfrenta a vida, o modo como ela sorri.
Amo sua fé, sua calma e sua paciência. Amo seu corpo, mesmo que ela ache que
não.
Mas será que eu a amo do jeito certo? Será que eu a amo por completo?
— Eu sei, papai — ela sorri —, a mamãe já me explicou isso.
Sinto um frio percorrer meu corpo, me fazendo esquecer imediatamente a
questão que me atormenta a cabeça. Há alguns dias nós não falávamos mais das
“aparições” de Júlia para Lilith, então decido perguntar:
— A mamãe ainda vem te visitar? — Tento não deixar transparecer que estou
nervoso, mas antes que eu sequer pense nisso, minhas mãos tremem no volante.
— Bem pouco, papai. — Ela tira a franjinha do seu olho e olha pela janela,
como se não estivesse contando nada demais. — Da última vez eu tava bem tisti
com ela porque ela não vinha mais, mas aí ela explicou que cuida de mim de
onde ela está, mesmo que eu não veja. Ela disse que agora eu tenho a Sosô, e ela
também disse que onde ela tá, tem muitas pessoas pa ajudar, então ela ia vir
menos…
Sinto a garganta apertar em um nó, mas Lilith não parece abalada. Pelo
contrário, ela me dá uma visão muito diferente das coisas.
— A mamãe sempre gostou de ajudar todo mundo, né, papai? — Ela dá um
sorriso e é como se não estivéssemos falando de algo tão difícil. A compreensão
espiritual dessa criança é algo que foge completamente do meu entendimento.
— Sempre filha — concordo e engulo o choro, porque se minha filha sabia ser
uma rocha para mim, eu seria para ela também. — A mamãe é incrível.
— Igual à Sosô — ela pisca para mim.
— Igual à Sosô — eu pisco de volta, e se isso não foi um recado muito bem
dado dos céus, eu não sei mais o que seria. — E filha… Quando você encontrar
a mamãe de novo, diz para ela que o papai a ama muito e está com saudade?
— Ela já sabe disso, papai — minha filha dá de ombros, como se isso fosse
algo indiscutível. — Não seja bobinho.
[…]
Abro a porta da casa segurando a mochila de Lilith na mão, mas ela passa
como um furacão por mim. Sophia está na sala, de costas para nós, ajeitando
alguns vasos de flores. Não é a função dela nessa casa, mas sempre que ela não
tem nada para fazer, ela cisma de arranjar serviço. Quando eu estou por perto
não deixo, mas obviamente a teimosia em forma de namorada que eu arrumei
mal espera eu virar as costas para sair arrumando o que fazer.
Encosto a porta e fico observando Lilith se aproximar dela, subindo no sofá e
tapando seus olhos com as mãozinhas pequenas. Minha filha olha para trás e ri.
— Adivinha quem é! — Ela diz, se esforçando para que seus dedinhos
pequenos cubram realmente alguma coisa. Sophia ri, mas então espera um pouco
e diz, com a voz confusa:
— É a Elsa?
— Não! — Minha filha joga a cabeça para trás, rindo. Nesses momentos, eu
vejo como ela é uma criança como qualquer outra: cheia de inocência e
brincadeirinhas bobas. Mas quando ela fala de coisas sérias e espirituais, eu sinto
que ela está em um patamar muito mais alto do que todo mundo que a cerca. É
como se ela fosse uma alma antiga.
— Então é a Ana? — Eu juro, por todos os santos que existem, eu não faço
ideia de quem são essas que elas estão falando, mas acho graça em ver a
paciência de Sophia. Tenho certeza que ela ficaria ali o dia todo se minha filha
insistisse na brincadeira.
Ela dá uma risadinha.
— Não! Sou eu, Sosô. — Ela solta as mãos e então enfia a cabeça na frente de
Sophia, sorrindo e segurando o rosto dela com as duas mãozinhas. — Sua
bobinha.
Ah, pronto. Hoje todo mundo é bobinho para ela. Deus do céu, essa idade é
tensa.
— Não acredito! Vem cá, então. Você vai ver só quem é bobinha!
Subitamente, Sophia a agarra, puxando Lilith para seu colo, lhe enchendo de
cócegas e beijos. Enquanto minha filha ri e se contorce, desesperada por ajuda,
eu rio vendo a cena. Um sentimento de calor se espalha por todo meu corpo e
então sussurro para mim mesmo, antes de ir me juntar à bagunça:
— Você tem razão, Júlia. Lilith realmente tem quem cuide dela.
Na verdade, quem cuide de nós.
[…]
Como todas as noites, estou no quarto de Sophia, quase como um momento
que inventamos para nós.
Todas as vezes que estou aqui, eu me sento e a coloco em meu colo. É uma
forma de nos sentirmos e de ficarmos juntos, corpo a corpo, algo que a cadeira
impede durante o dia.
Abaixo a cabeça e lhe dou um beijo no ombro nu. Ela está apenas de sutiã, e
as alças caem em seus braços, deixando pouco para minha imaginação. Estamos,
aos poucos, nos conhecendo: gostos, desejos, vontades, mesmo que o principal
ainda não tenha acontecido. Não é que eu não sinta falta disso, eu sinto, e muito,
para ser completamente sincero: já faz quase um ano que eu não sei o que é
dormir com uma mulher, então sim, isso é importante.
Mas ainda não é o principal.
Subo o beijo e planto minha boca na parte macia da sua pele, exatamente onde
o ombro encontra o pescoço. Ela se arrepia e mesmo sabendo que já é
madrugada e que eu preciso voar amanhã, decido provocá-la. Eu acho
importante deixar esse clima de desejo no ar. Quanto mais eu a quiser, mais eu
vou me esforçar para tê-la da forma como ela merece.
Pego seu rabo de cavalo de forma firme, porém gentil, e puxo sua cabeça para
trás, deixando-a a mercê da minha boca. Quando a beijo, sou consumido pelo
desejo que me queima por dentro. A cada dia, eu penso que uma hora será fácil
me entregar a esses pequenos momentos sem ser consumido por dentro. E a cada
dia, provo a mim mesmo estar muito errado, porque toda vez que nossas bocas
se encontram, o beijo fica mais quente e urgente.
Com uma mão seguro seu queixo e com a outra eu apoio sua barriga,
enquanto ela enlaça meu pescoço e nos devoramos. Minha mão entra por baixo
de sua camiseta, mas não subo porque acho que não sou capaz de tocá-la mais
um dia sem terminar dentro dela.
O problema é que ela interrompe o beijo, e praticamente arfa ao pedir para
que eu a toque. Eu sei que não devo. Sei o que eu deveria fazer – ou não fazer,
no caso –, mas não consigo, simplesmente porque eu sou incapaz de dizer não a
ela.
Então deslizo minha mão e envolvo um de seus seios, levando nós dois a
loucura. Porém, quando invisto meu quadril mais uma vez contra ela, me lembro
de tudo o que programei para amanhã e me obrigo a parar com isso. Não quero
nada rápido, nada silencioso, nada limitante. Quando ela faz aquele som sexy
que vibra por todo meu corpo, levanto a boca, e com muito custo, digo, quase
sem fôlego:
— Meu Deus. Preciso ir.
— O que? — Ela abre lentamente os olhos, assimilando minhas palavras,
ofegante e trêmula, sem entender nada.
— Sério, Soph. Não sou santo, anjo. — As palavras quase doem para sair de
minha boca. — Se eu não for agora, eu vou ultrapassar todos os limites.
— E se eu não quiser que você vá? — Puta que pariu! Ela está me testando, só
pode. Testando todos os meus limites.
— Para de dificultar meu papel de príncipe — resmungo brincando e ela
encosta a testa sobre mim, rindo suavemente.
— Tá certo, me desculpe.
— Não se desculpe por querer o mesmo que eu — engasgo. — Lilith vai
dormir na casa da minha mãe amanhã, então…
Ela arregala os olhos, o peito claramente descompassado diante das minhas
palavras. Quando ela não diz nada, suspiro e passo a mão pela testa, achando
graça da minha própria burrice.
— E eu acabei de estragar a surpresa… — Ofego, rindo. — Desculpa, eu não
levo jeito para ser romântico.
Ela balança a cabeça.
— Não, você é perfeito.
Dessa vez meu riso é sarcástico, quando eu gentilmente a tiro de meu colo.
Quando termino de ajeitá-la na cama, ela pergunta:
— Qual a graça? Por que você tá rindo?
Levanto da cama e coloco minha camiseta de volta antes de me inclinar e lhe
dar um beijo de boa noite.
— Porque, meu anjo… O cara perfeito vai sair daqui e vai tomar um banho
bem, bem gelado, e torcer para amanhã chegar logo.
CAPÍTULO 36 – A CURA PARA TODOS OS MALES

Sophia
— E aí, cunhadinha? — André está encostado ao seu carro quando eu apareço
na entrada do condomínio. O sorriso em seu rosto é imoral de tão bonito,
principalmente quando ele brinca assim comigo, mas não tem o mesmo efeito
que o sorriso do Alexandre.
Os dois irmãos são parecidos fisicamente em muitas coisas, mas cada um tem
uma característica marcante que o difere do outro. André é mais alto que
Alexandre, um pouco mais magro também. O cabelo é um pouco mais claro,
mas os olhos e o sorriso dos dois são idênticos, e quando eles se juntam, o termo
beleza vira praticamente um eufemismo.
— Ainda não entendi nada — eu rio, e ele se abaixa para me abraçar.
— Eu vim te buscar para um passeio. Vamos tomar um sorvete — depois que
entramos no carro e ele guarda a minha cadeira, continuamos a conversar —, no
shopping.
— Tem uma sorveteria aqui ao lado — eu aponto o outro lado da calçada, e
ele me olha como se, de repente, eu tivesse duas cabeças.
— Sophia, me ajuda a te ajudar. O Alexandre quer fazer alguma coisa e me
pediu pra te tirar de casa, porque, aparentemente, agora eu virei empregado dos
dois lindos, né? Então só vamos, mulher de Deus. — Quando eu arregalo os
olhos, surpresa com a revelação, ele dá de ombros e ri. — É, eu não sei guardar
segredo, tá legal? Então, seja o que for que ele está aprontando, faça uma cara de
surpresa convincente e diga: “Meu Deus, não acredito, Alê!”, por favor. Ele
estava uma pilha de nervos quando me ligou, foi engraçado.
Continuamos em silêncio por alguns minutos, enquanto ele dirige
concentrado. André normalmente é tagarela, mas nos últimos dias, toda vez que
o vejo, ele está quieto e distante, como se estivesse lutando contra algo dentro
dele. Definitivamente, não é o André que eu conheço.
— E você sabe o que é? — Puxo assunto e olho pela janela, tentando disfarçar
meu rosto corar. Seja o que for, sei que tem a ver com hoje à noite. Lilith havia
ido cedo para a escola e depois iria direto para a casa da avó, e ele desapareceu o
resto do dia. Juntando essas coisas com o que ele tinha me dito na noite passada,
eu só podia imaginar que tudo isso tem a ver com a gente. E estou quase
morrendo do coração só de imaginar.
— Não, ele não quis me falar. — Ele responde, mas não fala mais nada.
Observo seu rosto e vejo como ele está aéreo. Poucas vezes o vi assim em toda a
minha vida, e todas as vezes que vi, algo sério estava acontecendo. O maxilar
travado de André é praticamente um indicativo de que a cabeça dele está em
qualquer lugar, menos aqui, nessa conversa.
— André… — Toco sua mão por cima do câmbio, e ele olha para mim, quase
como se eu tivesse lhe dado um susto. — Tá tudo bem? Você está estranho… —
Vejo em sua expressão que ele quer mentir, dizer que está tudo ótimo, mas
depois de alguns segundos pensando, ele suspira e diz, balançando a cabeça:
— Não, não está tudo bem, Soph. — Seus dedos apertam o volante com força
e eu percebo como falar sobre o que quer que seja está sendo difícil para ele.
— O que está acontecendo? — Eu insisto. Estamos chegando ao shopping,
então, quando finalmente estaciona, ele suspira e joga a cabeça para trás no
banco, antes de dizer completamente chateado:
— A Ariela está me traindo. — Quando minha boca se abre em surpresa, ele
vira o rosto para mim e posso ver toda a tristeza do mundo em sua íris castanho
claro.
— Ah, meu Deus, André. — Me solto rapidamente do cinto de segurança e
me inclino para abraçá-lo. Ele aperta minhas costas com força e eu posso sentir
toda a tristeza que o consome apenas nesse abraço. André sempre foi louco por
Ariela, e mesmo que o relacionamento deles fugisse do convencional, com a
distância física sendo algo tão presente, o amor que ele sente por ela sempre foi
inquestionável. Eles são aquele tipo de casal que quando você vê, sabe que
foram feitos um para o outro. — Eu sinto muito. Por que você acha isso?
— Ela já está estranha há um tempo. Quase não quer conversar por telefone…
Nem por mensagens. Demora pra responder meus e-mails, e todas as
oportunidades que ela tem de vir para o Brasil, ela tem evitado. No começo, eu
achei que pudesse ser o trabalho, o cansaço, enfim, você sabe como a Ariela é —
ele diz, e eu realmente sei. Ela é completamente obcecada pela profissão, o que
combina perfeitamente com a personalidade de André, afinal, ele também é.
— E você tem certeza de que não é mesmo isso?
Ele ri de forma sarcástica.
— Ah, eu tenho. Com certeza eu tenho.
Ele tira o celular de dentro do bolso, abre uma foto e me estende o aparelho.
Quando o pego, meu coração se contorce. Ariela não é o foco da foto e sim outra
moça, que faz pose para a câmera. Mas lá atrás ela aparece sentada no colo de
um rapaz, em uma boate, com os braços enlaçados em seu pescoço.
— Pode ser… Um amigo? — Eu tento melhorar a situação, mas até mesmo eu
sei que é ridículo supor isso. Porém, para confirmar ainda mais, ele desliza o
dedo, e passa para a próxima foto, e nessa, ela beija o rapaz, aparentemente cheia
de paixão. — É, não é um amigo — eu constato o óbvio. — Como você
conseguiu essas fotos?
— Entrei no Facebook dessa amiga dela, que não me tem nos contatos. Como
eu sabia que elas iam sair juntas, eu fui olhar se tinha alguma foto, algo que
pudesse me dizer alguma coisa… E bem, ou a menina não sabe que ela é noiva
de um otário aqui no Brasil, ou não percebeu a merda que fez.
— E o que você fez? Vocês conversaram?
Ele suspira.
— Não. Ainda não. Ela vem para o Brasil no mês que vem — ele abaixa a
cabeça e respira fundo, e eu sei, ele está se controlando para não chorar. — Eu
quero perguntar olhando nos olhos dela, Soph. Porque se isso foi uma aventura,
uma necessidade humana por ela estar longe, qualquer coisa, eu estou disposto a
perdoá-la. Porque eu amo tanto essa filha da puta, que eu sou capaz de esquecer
qualquer merda só pra continuar com ela. Eu sou capaz de entender qualquer
coisa, desde que ela esteja disposta a explicar. E eu tenho medo de que, se eu
disser que sei de tudo, ela sequer venha. Sequer me dê a chance de conversar
pessoalmente.
Ele não merece. Apenas não merece ser traído de uma forma tão mesquinha
assim, mas eu entendo o amor que ele sente por ela. Eu só não sei se se anular
assim apenas para não perder alguém é o melhor caminho, mas
independentemente de qualquer coisa, eu estou aqui por ele.
Puxo-o pela gola da camisa e ele entende que eu quero abraçá-lo. Quando
meus braços o envolvem, ele sussurra:
— Só, por favor, não conta para o Alexandre. Ele não entenderia. — Ele
funga, reprimindo as lágrimas. — Na verdade, ele a odiaria.
Afundo meus dedos em suas costas. Eu sempre adorei a Ariela, mas qualquer
sentimento bom que eu tinha se esvaiu de mim no momento em que vi a dor nos
olhos do meu melhor amigo.
— Bom, vamos deixar que apenas eu a odeie. Porque André, nesse momento,
eu a odeio muito. — Ele não responde nada, então apenas lhe dou minha
palavra: — Prometo que não vou contar.
— Obrigado.
Solto ele e seguro seu rosto com as duas mãos.
— Tudo por você. Agora vamos tomar esse sorvete aí, porque você sabe o que
dizem sobre sorvete, né?
— O que dizem sobre sorvete, Sophia? — Ele ri de mim, tentando me
acompanhar nessa tentativa de deixar as coisas um pouco melhores.
— Sorvete cura tudo. É capaz de fazer a gente esquecer qualquer coisa.
Ele me olha querendo rir, e antes de sair para abrir o carro e me ajudar a
descer, ele resmunga:
— Porra, haja sorvete.
[…]
Depois de horas conversando sobre muitas coisas e tomando todos os sabores
de sorvete disponíveis na sorveteria, voltamos para o condomínio. André
estaciona na frente de casa, e eu me inclino para abraçá-lo. Afago suas costas e
sei que ele demora em meu abraço, pois está realmente abalado. É triste saber
que seu amigo está sofrendo e não poder fazer nada a respeito disso. Dói-me
quase fisicamente vê-lo assim.
— Por favor, fique bem. — Eu o solto e suplico quando nos encaramos.
— Vou ficar. — Ele diz e força um sorriso. — Afinal, de corno e louco, todo
mundo tem um pouco, não é? — Eu rio, porque sei que mesmo em meio ao
sofrimento, ele não quer me preocupar.
— O ditado não era outro? — Eu aperto os olhos e sorrio, e seu sorriso
aumenta quando ele aperta minha mão.
— Era? Não sei. — Então ele suspira, antes de falar: — Espero que, seja o
que for que o Alexandre esteja aprontando, você aproveite muito. Ele realmente
gosta de você, Soph.
— E eu gosto muito dele — sou enfática, porque com André eu não preciso
fingir.
— Desde sempre, não é?
— Desde sempre — confirmo com a cabeça, e ele sorri.
André sai do carro e me ajuda a descer, me colocando na cadeira com todo o
cuidado do mundo. Depois de mais um abraço, ele se despede e vai embora, e eu
me viro, encarando a entrada da casa. Busco a chave da porta da frente em
minha bolsa, e reúno coragem para entrar.
Aconteça o que acontecer hoje, eu estou ansiosa para isso.
[…]
Entro, e percebo o quanto a casa está quieta. Chamo por Alexandre, mas ele
não responde. Acho estranho, mas vou em direção ao meu quarto. Se ele estiver
em casa, vai perceber que eu cheguei pelas luzes acesas. Passo pelo corredor, e
quando abro a porta e entro, um sorriso se espalha por meus lábios e meu
coração se aquece.
No meio da minha cama, um enorme buquê de rosas repousa no meio dos
lençóis incrivelmente brancos. São tantas rosas, de diferentes cores, que eu perco
alguns segundos apenas olhando para elas. No criado-mudo há alguns bombons,
morangos, e um vinho. As luzes estão um pouco diferentes, mais baixas, e ao
fundo toca baixinho uma das minhas músicas preferidas. Não é nada grandioso,
mas é exatamente o que eu esperava dele: pequenos detalhes feitos com
delicadeza e cuidado. Coisas que eu lembraria para sempre, toda vez que
pensasse nessa noite.
— Ei, anjo — ele diz, e eu me viro para vê-lo parado atrás de mim, encostado
ao batente da porta. Ele veste uma roupa simples, mas é impossível não me
lembrar de quantas vezes eu disse o quanto amava vê-lo vestido daquele jeito.
Em suas calças confortáveis de dormir e em sua camiseta branca, que se agarra
ao seu tronco com perfeição, seu corpo fica ainda mais bonito.
Alexandre, ao invés de tentar me impressionar com tudo milimetricamente
planejado, quis deixar tudo o mais natural possível. Quase como se fosse uma de
nossas noites comuns. A única diferença é que agora, eu sei que ele está
preparado, assim como eu, e isso é o mais importante: todos têm certeza do que
querem.
— Oi — sussurro, quase com medo de falar um pouco mais alto e acordar
desse sonho. Meu coração bate tão rápido e tão desesperado, que eu tenho medo
de ter um infarto a qualquer momento.
Ele baixa o olhar para me avaliar.
— Eu amo esse vestido. — Ele sabe que é o vestido que eu usei no dia em que
ele disse que queria ficar comigo. Olho para baixo e então aliso o tecido, sem
saber onde colocar as mãos. O clima no quarto está enchendo minha mente com
tudo o que pode acontecer daqui para frente.
Sem falar mais nada, ele desencosta da porta e vem até mim. Abaixa-se e
delicadamente acaricia minha coxa, seus dedos correndo devagar por minha
pele, subindo e explorando tudo o que o vestidinho de verão esconde. Ele abaixa
a boca e então beija uma perna, depois a outra, de forma incrivelmente
carinhosa.
— A casa é só nossa por hoje. — Quando seus olhos voltam a pousar nos
meus, eles estão cheios de promessas.
Suas mãos sobem mais um pouco, lentamente, até se concentrarem em meu
tronco. Ele aperta minha cintura, colocando pressão sobre minha pele, e eu
ofego, sentindo seus dedos firmes me segurarem. E então, sem falar nada, ele
passa um braço por trás das minhas costas e o outro embaixo das minhas pernas,
e em apenas um movimento, me ergue, me pegando no colo. Passo os braços por
seu pescoço e nos encaramos alguns segundos antes dele finalmente me beijar.
— O que você está fazendo? — Minha pergunta sai arrastada, minha voz fraca
e débil pelo desejo.
— Adivinha… — Ele morde meu lábio de forma provocativa.
— Acho que posso imaginar algumas coisas — eu digo, enquanto ele me
carrega até a cama. Quando ele finalmente me deita no colchão, me observa um
pouco com total adoração antes de finalmente segurar minha cintura e se inclinar
para me beijar novamente.
— Ah é? Você imagina?
Concordo de leve com a cabeça, até que ele sorri e afunda seu rosto em meu
pescoço, me beijando ali.
— Pois bem, anjo. Essas coisas estão prestes a sair da sua imaginação para
virarem realidade.
CAPÍTULO 37 – COMPLETA, FINALMENTE

Sophia
Não o deixo terminar de falar. Avanço sobre sua boca de forma intensa. Ele
não deixa por menos, e com a mesma urgência que eu, retribui ao toque. Nossos
beijos ficam mais profundos e intensos. Sua língua me invade, acariciando a
minha, e então percebo que ele já havia estreado o vinho que estava sobre o
criado-mudo.
— Já abriu o vinho? — Provoco e ele sorri, com cara de quem foi pego
fazendo arte.
— Acredite, você não é a única nervosa aqui.
Quando eu entendo suas palavras, meu coração se aquece. Imagino-o andando
de um lado para o outro, me esperando chegar, pensando em como seriam as
coisas entre nós. Ele está preocupado comigo, em como será minha primeira vez,
e isso me faz querê-lo ainda mais.
De forma lenta, quase lânguida, sinto suas mãos passearem por minhas costas.
Embora eu não tenha qualquer experiência, e todo meu conhecimento venha dos
romances que eu leio desde a adolescência, inexplicavelmente meu corpo sabe o
que fazer, quase como se ele fosse programado para ser de Alexandre.
Uma mão volta a apertar minha cintura, enquanto a outra se move por meu
pescoço e orelhas de forma extremamente excitante. Sinto quando uma de suas
mãos fortes entra por baixo do meu vestido, e então eu me sobressalto,
lembrando-me de uma coisa.
— Alexandre… — Empurro seu corpo com delicadeza e ele ergue, o rosto
preocupado.
— O que? Você não quer isso? — Ele começa a levantar, mas eu o seguro pela
gola da camiseta e encosto minha testa na sua.
— Não, não é nada disso. Eu só preciso… — Engasgo, sem saber como falar.
Eu havia saído de casa para um passeio longo, estava com a minha “calcinha
especial”, não tinha como ele tirar minha roupa, não agora. Nós ainda não
tínhamos tanta intimidade assim. — Eu só preciso de… Um banho. — Forço um
sorriso e ele demora alguns segundos, então provavelmente percebe meu
desconforto e qual é o motivo dele.
— Ah, claro. Claro, minha linda. — Ele sai de cima de mim e então, meio
nervoso, pergunta: — Você prefere que eu, hum…
— Só me coloca na cadeira, por favor? — Forço um sorriso para mostrar que
está tudo bem. — O resto eu faço sozinha, sem problemas.
Odeio essa sensação de clima cortado que acabou de se abater sobre nós.
Quando ele faz o que eu peço, vou até o guarda roupa e pego meu nécessaire e
um conjunto de peças íntimas, depois me dirijo até o banheiro em silêncio,
enquanto ele finge procurar algo para assistir enquanto eu estiver no banho.
Fecho a porta e me pergunto o que ele está pensando sobre isso. Será que está
arrependido de tentar isso, com todos esses empecilhos no caminho?
Será que tudo vai dar certo? Meu Deus, será que vai ser bom para ele
também? Eu não sei o que fazer!
Eu só queria que tudo fosse natural.
Tomo um banho rápido e aproveito a água quentinha para tentar tirar todos os
medos e dúvidas da minha cabeça. Com tudo de mim, eu sei que se há alguém
para quem eu posso entregar todos os meus medos e desejos, esse alguém é
Alexandre.
Saio do banho e com meu jeitinho, ainda dentro do banheiro, coloco o
conjunto preto de lingerie que trouxe comigo. É lindo, com renda e
transparência, algo que eu guardei por muito tempo para uma ocasião especial.
Pela primeira vez em anos, me sinto realmente desejável como qualquer outra
mulher.
Escovo os dentes, passo um perfume e arrumo os cabelos. Não demoro quase
nada para fazer isso tudo.
Minha pulsação está acelerada, meu corpo inteiro concentrado no homem que
me espera lá fora, do outro lado da porta.
Respiro fundo, conto até dez e então abro a porta do quarto. Quando entro,
Alexandre está de costas, parado perto da janela, observando o céu. Tiro um
segundo para admirá-lo sem que ele me veja: a estatura, o porte físico, tudo nele
emana masculinidade e tudo dentro de mim se contrai ao perceber que ele quer
dormir comigo. Com o coração batendo na garganta, o chamo:
— Pronto — respiro fundo, tentando não pirar com o fato de que estou só de
calcinha e sutiã nessa cadeira —, estou pronta.
Quando ele vira para trás, seu olhar queima sobre mim longamente. Ele abre a
boca e meneia a cabeça, como se, por um segundo, perdesse as palavras, e por
um momento ele me faz acreditar que não há diferença nenhuma entre nós.
— Você está linda…
A luz que entra sorrateira pela cortina preenche seus olhos, e tudo o que eu
leio em sua íris me causa um arrepio. É um misto de desejo com admiração e
algo a mais, que eu não sei decifrar.
— Obrigada — sussurro. Eu simplesmente não sei o que fazer ou falar, então
eu digo, sem graça e com a voz meio trêmula: — Acho que a gente pode
continuar de onde parou.
Ele caminha até mim devagar, e quando ele me olha de perto, seus olhos
ganham um tom mais escuro de avidez.
Sem dizer nada ele me pega no colo, exatamente como tinha feito antes. Meu
coração bate descompassado, quase como se quisesse sair do peito.
Dessa vez ele se senta na cama e me coloca em seu colo. Depois, tira meu
cabelo dos ombros e pressiona os lábios ali, de forma lenta, se demorando nesse
contato. Sua boca em minha pele parece queimar, mas é uma queimação boa,
algo que eu só sinto quando ele me toca.
— Você é linda, sabia? — Ele ergue o rosto, e me olha nos olhos, como se
quisesse uma resposta. Como se ele quisesse saber que eu entendi como ele me
vê de uma vez por todas.
— Não, não sabia — sou completamente sincera, porque eu realmente não sei.
Mas se ele acha, já é tudo para mim.
— Pois então fique sabendo, meu anjo. — Ele ajeita minhas pernas em volta
dele, me colocando da melhor forma. Tremo quando sinto sua ereção através da
calça fina de moletom. Nós quase não nos tocamos e ele já está completamente
pronto.
— Me beija? — Eu peço com a voz sussurrada. — Me beija e me faça me
sentir assim, linda, como você diz?
Ele sorri de um modo calmo e lento, e suavemente suas mãos vão para as
laterais do meu rosto. Sem me dar uma resposta verbal, ele toca meus lábios com
os seus. Em minha cintura, sinto seu toque ficar mais intenso enquanto eu
aprofundo o beijo. Ele está me deixando no controle de tudo, e isso me dá uma
sensação de poder nunca experimentada.
— Me diz o que você quer — ele beija meu queixo enquanto jogo a cabeça
para trás —, me diz que eu faço.
— Me toca — eu peço com a voz fraca.
— Como? — Ele instiga. Ele quer que eu verbalize meus desejos; quer que eu
esteja ciente de tudo o que ele fizer comigo hoje. Alexandre é naturalmente
dominante, mas quando estamos assim, ele abre mão de seu poder para que eu
me sinta confiante. Ele sabe como trabalhar todos os cantos mais obscuros da
minha mente.
— Como na noite passada — eu reúno forças e consigo falar.
Sem precisar de mais nada, ele desliza suas mãos por meus ombros e depois
desce, abrindo meu sutiã. Encolho os ombros, deslizando-o pelos braços, e meus
seios ficam à mostra enquanto ele joga a peça de renda de lado. Depois, afunda o
rosto em meu pescoço e suas mãos vão para meus seios. Ele apalpa os dois ao
mesmo tempo, depois aperta os bicos com os dedos, brincando e provocando,
me fazendo ofegar.
Quando minha pele já está dolorida e sensível o suficiente, ele abaixa o rosto,
sugando um após o outro, aplacando um sofrimento com outro ainda pior. Gemo
de forma contida, mas ele ergue a cabeça, e, me olhando nos olhos, fala de forma
firme:
— Não quero que você se contenha, Soph. A casa é nossa hoje. Quero que
você faça todos os sons que quiser. Quero tudo de você aqui, agora. Quero que
você me diga o que quer, como quer, onde quer. Tá bom?
Apenas assinto com a cabeça, fechando os olhos e segurando a respiração.
— Então me diz, anjo… O que você quer de mim? — Ele pergunta com um
tom de voz extremamente sensual.
— Quero que você me toque. Por favor, me toque — eu suplico.
Ele sussurra próximo ao meu ouvido, enquanto sinto sua respiração quente em
minha pele:
— Onde você quer que eu te toque? Diga.
Estremeço com a sensualidade com que ele faz isso. Quando estamos assim,
eu quase nunca o reconheço. É como se ele amasse jogar comigo, com meus
desejos. É como se ele fosse o meu dono.
— Por favor, Alexandre — eu gemo, mas não consigo dizer onde. Minha
timidez ainda não permite, e ele percebe isso.
Suas mãos descem pelos meus ombros, param em minha cintura por um
segundo e então escorregam para as minhas coxas. Ele acaricia um pouco cada
uma, e então sua mão direita vai parar no interior da minha perna.
Ele arrasta os dedos longos por minha pele, em uma espécie de tortura
massacrante, lenta e contínua.
— Estou no caminho certo? — Ele pergunta baixinho, ainda em meu ouvido e
eu demoro um pouco para responder. Não preciso vê-lo para saber que ele está
sorrindo daquela forma provocativa que só ele sabe fazer. — Não precisa ter
vergonha. Sou eu, anjo. Então me diz: estou no caminho certo?
— Está — solto a palavrinha e no mesmo instante seus dedos puxam minha
calcinha de lado, e eu me contraio quando ele finalmente alcança o ponto. Eu já
me toquei algumas vezes, principalmente depois que começamos o que temos,
mas nunca foi assim. O simples toque dos seus dedos em minha pele faz tudo
dentro de mim tremer e se contrair, como se eu fosse explodir.
Quando ele desliza um dedo para dentro, finalmente, ele beija minha garganta
ao mesmo tempo.
— Assim? — Concordo com a cabeça, freneticamente, e ele sorri.
Com o polegar, ele toca meu ponto mais sensível, e eu sinto tudo dentro de
mim vibrar. A sensação é tão forte que meu primeiro instinto é querer sair de
cima dele, mas eu sei que não consigo, e isso faz tudo ficar mais intenso. Eu sou
dominada por minhas próprias limitações, e por um segundo, isso não parece ser
tão ruim.
— Meu Deus, péssima hora para eu lembrar que não consigo sair do seu colo
— eu solto e ele ri.
— Não me faça rir agora, anjo. Estou tentando ser sensual aqui — quando ele
coloca outro dedo em mim, eu perco o folego. — E eu acho ótimo que você não
possa fugir. Vai sentir tudo com ainda mais intensidade. Isso vai ser incrível.
— Eu quero te tocar também — digo com o rosto corando. Eu quero devolver
a ele tudo o que ele me proporciona. Quero que ele saiba que isso não precisa ser
só para mim. — Por favor.
— Você vai — ele diz, então tira os dedos de dentro de mim e eu me sinto
vazia.
Ele segura a camiseta branca pela barra e então a puxa pela cabeça, jogando-a
no chão. Pega minhas duas mãos, coloca as suas por cima e me faz sentir sua
pele, seu peito, seus ombros. Cada pedaço dele é lindo; cada parte é especial, e
assim como Alexandre me disse uma vez, eu amo cada partezinha dele.
Seus braços fortes envolvem minha cintura e ele me puxa para frente, me
fazendo esfregar em seu colo. Sei que estou molhada e sei o quanto ele sentiu
isso enquanto me tocava. Acho que nunca na vida fiquei dessa forma. É como se
meu corpo estivesse descobrindo que ele pode fazer muitas coisas que não fazia
ideia; compensando em alguns lugares o que eu não consigo sentir em outros.
— Você está tão pronta… — Com um movimento ele segura minhas costas, e
com delicadeza me vira na cama, me deixando por baixo. Agora estou deitada,
olhando para seu peito firme e seus olhos que me adoram, cheios de paixão.
Ele pega minhas pernas, afastando-as com delicadeza, deixando um espaço
para ele se acomodar. A ansiedade cresce dentro de mim e minhas mãos vão para
sua calça de moletom. Delicadamente, eu a empurro para baixo e ele termina de
se livrar dela com poucos movimentos, e quando percebo que ele não está
usando uma cueca, eu ofego. Instintivamente, minha mão desce e eu aliso sua
rigidez com os dedos, o que o faz jogar a cabeça para trás enquanto ele prende a
respiração. Eu sei que isso deve ser difícil para ele tanto quanto para mim: sou a
primeira mulher com quem ele vai dormir desde que ficou viúvo. Sei que tenho
minhas limitações e minha virgindade, e sei que ele está lutando contra todo seu
desejo reprimido por quase um ano, porque sabe que precisa ser delicado
comigo.
Somos duas bombas prestes a explodir, e só um pode controlar o outro.
Com delicadeza, ele segura os dois lados da minha calcinha e a tira, passando-
a pelas minhas pernas, depois a joga junto com todas as nossas outras peças de
roupa. Estamos os dois completamente nus, finalmente. Nunca chegamos tão
longe assim, mas eu quero mais. Quero tudo.
Seu olhar faminto passeia por minha pele nua, e por um segundo bobo, eu
quero me esconder. Como se conseguisse ler meus pensamentos, ele sussurra
enquanto sobe por meu corpo e beija cada pedaço meu:
— Eu disse e repito: você é linda. E meu lado de homem ama saber que só eu
te vi assim até hoje. Amo saber que tudo isso é meu, e que eu sou o primeiro a
ter tudo isso. E pretendo ser o último também. — Ele beija minha barriga, mas
meu cérebro só registra essa promessa velada e eu suspiro. — Eu poderia te
olhar para sempre, e nunca me cansaria.
Quando ele diz isso, meus olhos enchem de lágrimas. Não são de tristeza, mas
sim de um sentimento incrivelmente bom: o de ser desejada e respeitada,
exatamente como sou. Sem precisar mudar nada, sem precisar sentir vergonha ou
me desculpar por ser assim.
Sem precisar me esconder.
Com os olhos brilhantes e intensos, ele reivindica meus lábios em um beijo
cheio de paixão, e eu me entrego, mesmo com todo o frio na barriga. Eu me
entrego porque sei que eu jamais vou querer outra pessoa assim, tão próxima e
íntima de mim.
Esse lugar é dele.
Sempre foi.
Sinto um calor intenso se formar em meu âmago, se espalhando mais para
baixo, e por mais incrível que possa parecer, dessa vez não sinto medo do que
está prestes a acontecer.
Só quero que aconteça.
A cada suspiro e gemido, meu corpo pede por ele. Nunca me senti assim: o
corpo inteiro parece gritar por libertação.
Com os olhos fixos em mim, ele, com toda sua habitual delicadeza, afasta
minhas coxas, e ajeita minhas pernas do jeitinho que ele quer que elas fiquem.
Ele faz tudo isso com suavidade, me fazendo compreender que isso não é um
problema para ele. Depois ele pega uma camisinha que havia deixado ao lado da
cama e a coloca, enquanto eu observo a tudo isso fascinada. Uma pontada de
insegurança ainda tenta me acertar, mas eu a ignoro, porque eu sei que estou
pronta.
Sei o quanto eu o quero.
E isso é mais do que suficiente para essa ser a melhor noite da minha vida.
— Olha para mim, Sophia. Olha dentro dos meus olhos, tá? — Ele beija o
meu rosto e eu arrumo forças para falar, porque eu quero que ele saiba o quanto
ele está sendo incrível.
— Não precisa pedir. Eu quero te olhar, Alexandre. Vou te olhar porque quero
me lembrar dessa noite para sempre. — Ele espalma sua mão sobre meu rosto,
me segurando, me acalentando.
Preparando-me.
— Se for incômodo, se doer, me diga para parar, e eu paro no mesmo
segundo.
Seguro seu punho e balanço a cabeça, concordando, mas eu sei que não direi
nada. Eu o quero tanto, que nenhuma dor seria pior do que a de não tê-lo dentro
de mim de uma vez por todas, exatamente como eu venho fantasiando há
semanas.
Então, enquanto ele se ajeita entre as minhas pernas, me beija profundamente
por vários minutos, me relaxando e me distraindo do que está por vir. Quando
sua mão escorrega para meu quadril, ele o segura com firmeza antes de se
impulsionar para frente, de uma vez só.
Uma dor aguda e penetrante se espalha por dentro de mim e eu fecho os olhos,
segurando a respiração e me acostumando à sensação. Sinto meus olhos ficarem
molhados, mas disfarço, porque não quero que ele ache que eu não estou bem.
Eu estou. Eu estou mais do que bem.
— Você está bem? — Ele pergunta num sussurro, ficando imóvel. Aceno com
a cabeça, dizendo que sim, porém, quando seus olhos procuram os meus e ele os
vê, um pequeno pânico aparece em suas feições bonitas. Eu balanço a cabeça,
querendo dizer que está tudo bem. — Anjo, eu pensei que seria melhor para você
fazer isso de uma vez só, me…
Coloco meu indicador sobre sua boca, calando-a, e tento sorrir. Não quero que
ele se sinta mal, porque eu não estou me sentindo. Não mesmo.
— Não, você agiu certo. Sentir dor é inevitável. Por favor, não pare — peço
num sussurro. Ao mesmo tempo em que tudo arde e queima dentro de mim, eu
também me sinto inteira. A experiência de tê-lo dentro de mim é quase
transcendental, e eu não quero que ele se sinta mal por isso. Ele fez da melhor
forma, e ele sabe o que está fazendo. Entreguei todo o controle em suas mãos
porque sei que são as mãos certas.
Ele permanece imóvel dentro de mim, assimilando minhas palavras, e então
leva seus lábios aos meus, me beijando tão lenta, terna e profundamente que
sinto um novo tipo de sentimento que eu sequer sabia que existia.
Meus olhos se enchem de lágrimas novamente, mas dessa vez, elas significam
outra coisa: elas significam plenitude. Meu peito se enche de amor.
Quando ele volta a se mexer dentro de mim e me beijar, qualquer dor que eu
tenha sentido some, dando lugar a outros tipos de sensações. A cada investida
dele dentro de mim, sinto que sou dele. A cada toque, sinto que encontrei meu
lugar.
E, pela primeira vez desde o acidente, eu me sinto completa novamente.
CAPÍTULO 38 – NOSSO JEITO DE FAZER AMOR

Alexandre
Meu nome sai da boca de Sophia em um gemido, e eu fecho os olhos, me
acostumando com a sensação de estar dentro dela.
A simples possibilidade de tê-la machucado me deixa inquieto, mas quando
ela deixa claro que está bem, e eu posso sentir que ela está finalmente curtindo o
momento, relaxo junto com ela.
Seu corpo me aperta, me deixando louco, e eu me seguro para não ser mais
firme nem bruto. Ainda que eu esteja louco de desejo, essa noite é especial; essa
noite é dela. Eu terei muitas outras oportunidades de me satisfazer em seu corpo,
e eu sei que arrumaríamos diferentes formas de fazer isso nunca ficar cansativo,
mesmo dentro de suas limitações. Na verdade, eu já sabia disso antes mesmo de
hoje, mas agora eu tenho certeza. Tenho certeza porque a mistura do seu cheiro,
com a maciez de seu corpo, nosso suor, nossos sussurros… é tudo surreal.
Muito maior e melhor do que eu poderia imaginar que seria.
— Al… — Ela tenta falar meu nome, mas não consegue, e só suspira.
Movimento-me, impulsionando-me novamente contra ela. Seguro seu quadril,
forçando-me para frente, arrancando um gritinho rouco de prazer da boca dela,
enquanto encho seu colo de beijos. A percepção de que ela está se entregando
finalmente traz um sorriso em meu rosto, mas também me deixa louco de tesão.
Enquanto mantenho uma mão em sua cintura, a outra sobe, segurando seu
ombro, o que me deixa entrar mais fundo nela. Quando percebo que sua
respiração está ofegante, dito um ritmo mais frenético, fazendo-a soltar pequenos
sons sensuais.
— Sente como eu te quero? — Pergunto em seu ouvido e ela só consegue
balançar a cabeça em afirmação. — Não importa o que você pense de negativo
sobre você. Não importa, porque não é real. Você. É. Linda.
— Ah meu D… — Ela sussurra entre gemidos, então eu a calo com um beijo,
sentindo seu grito morrer em sua garganta.
— Você é deliciosa. Deliciosa. — Minha boca vai para seu seio e minha mão
desce entre nós, acariciando seu ponto de prazer, enquanto meus quadris
continuam em movimento.
É o bastante.
Ela joga a cabeça para trás, fechando os olhos e mordendo os lábios enquanto
goza. Ela tenta se reprimir, mas eu não deixo.
— Sophia, deixa vir. É assim mesmo, é natural. Eu quero te ver sentindo
prazer. — Diante das minhas palavras ela se entrega, gemendo alto e com
vontade, enquanto aperta os próprios seios e morde o lábio inferior.
Uma das cenas mais sensuais que já vi em toda a minha vida. Sua entrega é
simplesmente linda.
— Sop… — Dessa vez é o seu nome que morre em minha boca. Enterro o
rosto em seu ombro enquanto gozo junto com ela.
Quando a sensação passa, é possível ouvir apenas nossas respirações
descompassadas no silêncio do quarto. Nossos corações pulsam frenéticos, nossa
pele está quente e escorregadia, mas nunca ficamos tão lindos juntos como
agora.
Com cuidado, saio de dentro dela, mas antes a beijo com todo o sentimento do
meu coração. Essa não é uma noite qualquer. Não é só sexo.
Essa noite tem um milhão de significados: entrega, confiança, carinho,
sentimento.
Recomeços.
— Isso foi incrível — digo, deitando-me ao lado dela e puxando-a com
cuidado para o meu peito. Beijo sua cabeça com carinho. — Você está bem? Está
com dor?
Ela sorri.
— Nunca estive tão bem. Estou me sentindo maravilhosa.
Sua resposta me dá uma sensação de paz, então eu mergulho minha boca na
sua, tendo a certeza de que, não importa o que aconteça daqui pra frente, essa
noite sempre será lembrada como perfeita, por nós dois.
[…]
Acordo de madrugada com Sophia dormindo em meu peito. Apenas uma
fresta de luz passa pelas cortinas, e a parca claridade ilumina sua pele leitosa, me
dando uma visão quase poética de seu corpo.
Ela é linda.
Lembranças do nosso momento de poucas horas atrás atravessam minha
mente, me fazendo sorrir de orelha a orelha. Tudo havia saído muito melhor do
que eu pensava. Não foi difícil, sequer estranho. Havia sido apenas nós.
O nosso jeito de fazer amor, exatamente como eu havia prometido que seria.
Beijo seu ombro, com a clara intenção de acordá-la. Eu sei que o dia logo vai
amanhecer e a casa não será mais nossa, então quero aproveitá-la como posso.
Ela se remexe, fazendo um barulhinho, e eu insisto, dessa vez beijando seu
pescoço. Ela abre os olhos, demorando uns segundos para se situar, então
quando finalmente acontece, ela abre um sorriso maravilhoso em minha direção.
— Ei, você — ela brinca, tocando a ponta do meu nariz com o dedo.
— Não vou pedir desculpa por ter te acordado, porque eu fiz de propósito —
ela desce sua mão por meu peito e então morde o lábio.
— É? — Balanço a cabeça confirmando. Ela me olha dentro dos olhos, e
percebo que ela quer me falar alguma coisa.
— O que foi, anjo? — Desço a boca, beijando sua garganta com delicadeza, e
ela arfa, mas quando eu ergo os olhos de novo, sei que a dúvida ainda continua
lá, em sua cabecinha. — Me fala, vai.
— Foi, bom… Digo, foi normal pra você? — Sei que ela não está
conseguindo escolher as palavras, mas eu havia entendido. Ela quer saber se com
ela foi como com qualquer outra mulher.
— Não foi normal para mim, Soph. Foi muito, muito melhor.
A expressão de espanto toma seu rosto.
— Por quê?
— Porque foi com você.
Então ela sorri, e é a minha vez de perguntar.
— Era assim que você imaginava sua primeira vez? Correspondi às suas
expectativas?
Ela toca meu rosto com sua mão em concha e eu sinto toda a ternura do
mundo nesse simples contato.
— Não, Alexandre. Foi muito melhor do que eu podia sequer imaginar.
Obrigada por fazer tudo tão perfeito, e, principalmente, por ter esperado o tempo
certo.
— Você é maravilhosa, porra! — Digo, e então rio em sua boca enquanto a
beijo. Quando nos soltamos, deixo claro: — E sim, eu falei palavrão. Porra é um
advérbio de intensidade para mim.
Ela ri e inclina a cabeça pra me olhar, e seu olhar é tão intenso que beira a
adoração. Sinto uma onda de carinho tão forte que quase perco o fôlego com
essa compreensão. Carinho por ela, por sua adoração, por sua inocência, pelo
jeito como espera coisas boas de mim só porque acha que eu valho a pena.
Em algum lugar dentro de mim, algo me diz que vou decepcioná-la; que vou
magoá-la mais uma vez, destruí-la, simplesmente porque eu não sei se vou poder
amá-la com tudo de mim, exatamente como ela merece. Exatamente como eu já
amei outra pessoa um dia.
Mas, pela primeira vez, eu escolho ignorar essa voz incômoda, e me deixo
acreditar que o passado, minha dor, minha perda não me definem.
Pela primeira vez eu escolho acreditar que é só uma questão de tempo até eu
amá-la exatamente como ela merece ser amada.
[…]
Na manhã seguinte, acordo antes de Sophia. Levanto-me da cama e vou até o
seu banheiro, ligando a torneira da banheira que nunca é usada. Enquanto ela
enche, volto ao quarto para acordá-la, mas paro diante da cena linda que é essa
mulher dormindo.
Observo-a e sorrio, porque ela é bonita mesmo enquanto dorme. Tão serena e
tranquila, como se não tivesse nenhum problema a enfrentar na vida.
Mesmo com o sono pesado, ela tem um sorriso lindo estampado em seu
semblante, o que me faz sorrir ainda mais, pensando na noite anterior.
Tudo o que havia acontecido havia sido maravilhoso, e eu nem estou
pensando sobre o sexo, apesar de ele ter sido incrível.
Eu estou pensando mais no depois: o modo como ela me olhou, cheia de
admiração e carinho. A forma como eu pude ver em seus olhos como ela se
sentia segura comigo.
E eu sabia que, apesar de tudo, isso não tinha nada a ver com ela perder sua
virgindade, nem com o fato de termos transado.
Tinha a ver com confiança.
Enquanto eu penso em tudo isso, ouço o farfalhar dos lençóis, e em seguida,
ela me olha com aqueles enormes olhos cor de uísque.
— Me diz que você não estava me olhando dormir, pelo amor de Deus — ela
tapa o rosto e eu rio, mas não respondo, porque eu estava mesmo.
— Preparei um banho de banheira pra gente. Vamos aproveitar essa parte da
manhã, porque depois eu preciso ir trabalhar e a Lilith vai estar aqui, com toda a
sua animação.
Ela faz um biquinho.
— Você vai demorar a voltar? — Eu sei o que ela está pensando, e é o mesmo
que eu: não quero ficar longe depois de ontem.
— Volto amanhã. É uma viagem curta — sorrio e então me aproximo da
cama, pegando-a no colo. — Agora vamos, tem um banho delicioso esperando a
gente.
[…]
Coloco Sophia na banheira e ela se segura nas bordas, depois me sento de
frente para ela, espirrando um pouco de água pelos lados por causa do meu
tamanho.
Ela prende o cabelo escuro em um coque no alto da cabeça, mas alguns fios
rebeldes se soltam e ficam grudados em sua pele molhada. Inclino-me, e sem
aviso prévio, beijo-a na boca antes de descer os lábios até seus seios. Ela ofega,
atordoada e surpresa, mas isso dura apenas um segundo. Em seguida, suas mãos
pequenas grudam nas mechas molhadas do meu cabelo, e ela os puxa com
desejo.
Deslizo minhas mãos entre suas coxas, sabendo exatamente onde tocá-la para
que ela perca o controle. Uma mão desce para meu ombro, apertando-o em
desespero, enquanto a outra continua grudada em meu cabelo.
Ela ergue meu rosto, pedindo para que eu a beije, o que eu faço sem pensar
duas vezes.
Seus lábios estão quentes.
Necessitados.
Urgentes.
Minha menina aprendeu a ser exigente, e eu adoro isso.
Quando minha mão encontra o ponto perfeito para fazê-la sentir prazer, meu
celular toca. Jogo meu rosto em seu ombro, bufando, frustrado.
— Preciso atender essa merda — digo, meio a contragosto. A companhia não
tinha horário para me ligar, então eu tinha que estar a postos 24 horas por dia. É
cansativo, mas é o que paga minhas contas, então, apesar dos palavrões que eu
solto de vez em quando, eu não posso realmente reclamar.
Sophia ri da minha cara, mas sei que ela está irritada também.
— Vai, pode ser algo com a Lilith. — Duvido, afinal, uma hora dessas minha
mãe já a mandou para a escola.
Saio da banheira, meio apressado, escorregando na água que espirramos no
chão com nossos movimentos. Quando atendo, ouço em silêncio o que a pessoa
tem a dizer, mesmo achando tudo muito estranho.
— Claro, eu já estou indo. Obrigado por ligar. — Desligo, e volto para o
banheiro. Suspiro ao encontrar o rosto esperançoso de Sophia.
— Vou ter que te ajudar a sair. Você adivinhou. Preciso ir à escola de Lilith.
Ela arregala os olhos, apreensiva.
— Aconteceu algo com ela?
— Não, mas parece que eu preciso ir até lá porque ela está na diretoria. — Eu
me apresso em tranquilizá-la, ainda que eu mesmo não esteja tranquilo. Eu
nunca recebi uma ligação dessas; Lilith nunca me deu trabalho na escola. — A
professora quer falar comigo.
CAPÍTULO 39 – UM LUGAR QUE SEJA MEU

Sophia
Alexandre entra em casa com Lilith no colo. Seu rosto está escondido no
ombro do pai, enquanto seus bracinhos envolvem seu pescoço. Nunca vi minha
pequena assim, tão desanimada, então olho para Alexandre, buscando uma
resposta silenciosa, mas ele apenas balança a cabeça e suspira.
— Meu amor, está tudo bem? — Dou a volta no corpo de Alexandre, e seus
olhinhos tristes encontram os meus. Mesmo que faça tempo, consigo ver que ela
chorou em algum momento hoje. Eu conheço cada expressãozinha sua.
Quando ela não responde, meu peito se aperta e eu volto a buscar Alexandre
com os olhos, desesperada por uma explicação. Ele a coloca delicadamente no
chão, mas no momento que seus pés tocam o piso, ela vem em minha direção,
buscando colo. Aninho-a em minhas pernas, e ela envolve os braços em meu
pescoço, exatamente como estava com o pai. Apoio suas pernas compridas no
braço da cadeira e então Alexandre nos empurra até o centro da sala, depois se
senta em um dos sofás, jogando a cabeça para trás no encosto, e respira fundo.
— Parece que tem uma menina implicando com ela na aula de balé. Pelo que
ela me contou já faz um tempo, mas hoje a Lilith explodiu e empurrou a menina.
Depois, quando a professora foi falar com ela, começou a chorar e só parou
quando eu cheguei lá. — Ele alisa a testa, pensativo, e quando eu pergunto o que
a menina fez para Lilith reagir assim, ele dá de ombros.
— Lilith não quer falar.
Então eu toco o queixo da minha pequena, fazendo-a olhar para mim.
— Meu amor, o que houve? Conta para mim? — Busco seus olhos a todo o
momento, até que ela se ajeita e resolve falar:
— Não quero mais fazer balé, Sosô.
— Mas meu amor, você ama o balé.
— Mas essa menina fica tirando sarro de mim, falando que eu não sei falar
direito! Ela fica dizendo que eu tenho a língua maior que a boca, e que eu pareço
o Cebolinha… — Ela fica nervosa, e Alexandre se levanta e começa a andar pela
sala.
— Amanhã eu vou falar com a professora dela, Sophia. É uma matéria
optativa da grade curricular, e se ela não quiser fazer, eu a coloco em uma escola
de dança particular. Pelo menos ela se livra do problema. — Ele me diz o que vai
fazer, mas eu sei que não é o bastante. Já estive no lugar de Lilith, e isso não é se
livrar do problema, é apenas trocá-lo de lugar. Já sofri na pele a dor de achar que
não devo fazer algo por causa da maldade humana, e não vou deixar minha
menina passar por isso de jeito nenhum, seja onde for.
— Deixa que eu resolvo isso, Alexandre. — Minha postura decidida o assusta,
mas antes que ele consiga retrucar, ergo o rosto de Lilith para olhá-la dentro dos
olhos. Eu preciso que ela saiba que isso é sério.
— Você gosta de dançar, Lili?
— Eu amo Sosô, mas eu tô ficando neivosa e errando tudo puiquê ela tá
sempre implicando comigo.
— Se você gosta, você não vai sair da turma. É o que você ama, e a gente
nunca pode desistir do que a gente ama. — Digo, lembrando que desisti de muita
coisa por causa de pessoas que apenas queriam me magoar, e isso não é justo.
Não foi justo comigo, e eu não vou deixar acontecer com ela nunca. — Lili, se
duvidarem de você, não pare. Vá até o fim e mostre que você pode tudo. E se
você duvidar de você, não pare também. Faça, e mostre para você mesma que
você pode tudo. Porque você pode, meu amorzinho.
Seus olhos ganham uma notinha de vida, mas logo ela desanima de novo.
— Mas não é só isso que ela faz. Ela me fala outra coisa, todo dia, e é isso que
tá me deixando mais tisti… Foi por isso que eu empurrei ela hoje.
— Que coisa? — Alexandre agacha, ficando da nossa altura — O que ela está
te falando? — Percebo em seu semblante o quanto ele está bravo, mas não pode
demonstrar, afinal, ele precisa ser o exemplo para a filha.
— Ela fica dizendo que eu não tenho mãe. Que eu sou filha de chocadeira…
— Os olhinhos de Lili brilham pelas lágrimas e meu coração se contorce. Isso
não pode ficar assim, porque ela tem mãe sim. Na verdade, por falta de uma, ela
tem duas.
Júlia lá de cima e eu aqui.
Um instinto de leoa se apossa de mim, e eu sei que se fosse preciso,
defenderia ela com unhas e dentes, de quem quer que fosse. E é nesse momento
que eu sei que, não importa minha relação com Alexandre ou qualquer outra
coisa: essa menina é minha filha porque meu coração a escolheu.
Ergo seu rosto e digo, entre lágrimas que eu nem notei surgirem em meu
rosto.
— Diz pra ela que você tem mãe sim. Eu sou sua mãe, e enquanto eu estiver
aqui, eu nunca vou te deixar desistir de nada que você queira. — Ela se joga em
meus braços, chorando, e eu a seguro, sabendo que ela é todo o meu mundo. Ser
apoiada por uma mãe é algo que me faz falta até hoje, adulta. Eu não quero que
ela sofra por isso jamais. — Eu te amo muito, tá me ouvindo? Você não saiu
daqui — coloco sua mão em minha barriga —, mas nasceu aqui — ergo sua mão
até meu coração. — Você não nasceu de mim, Lilith, mas nasceu para mim. E ai
de quem ousar dizer o contrário.

Dois dias depois


Eu já estou deitada quando Alexandre para na porta do meu quarto. Mesmo
comigo olhando para o corredor, ele se encosta no batente e sorri, batendo na
madeira da porta.
No dia do incidente com Lilith na diretoria, ele viajou, e só voltou hoje, dois
dias depois. Havia acabado de colocá-la na cama e agora está aqui, para dar a
minha parte de atenção. E mesmo sabendo o quanto ele está cansado por causa
do trabalho, eu a quero, pois estou morrendo de saudade.
— Toc, toc — ele diz, e eu sorrio.
— Quem é? — Estico o pescoço e ele desencosta, caminhando em minha
direção com um olhar meio perdido. Já havia tirado o uniforme, o que me faz
fazer um beicinho. Eu simplesmente amo vê-lo vestido de piloto. É sexy.
— Um pai cansado — ele arrasta seu corpo pela cama e se deita ao meu lado,
fechando os olhos e passando as mãos pela minha cintura. Depois descansa o
rosto em meu peito e eu o envolvo com minhas mãos, fazendo um carinho em
sua cabeça, deslizando os dedos pelos fios curtos e sedosos.
— Então descanse — eu digo, mas ele levanta a cabeça, procurando meus
olhos.
— Como foi depois que eu fui trabalhar? Ela ficou bem com a questão da
menina do balé? — Ele pergunta, um pouco angustiado.
— Talvez eu tenha ido até a aula — começo a falar com cautela — para vê-la
dançar…
Ele sorri e eu sei que fui pega no pulo.
— E para mostrar para a menina que ela tem mãe?
— Talvez…
— Você não existe — ele beija minha boca. — Acho que nunca vou ser capaz
de agradecer por tudo o que você faz por nós.
Quando ele diz isso, sei que é o momento de deixar meus sentimentos claros.
Quero que Alexandre saiba que nada do que eu faço, faço por obrigação ou por
interesse. Eu apenas faço porque ele e a filha se tornaram meu mundo em pouco
tempo, e eu simplesmente faço tudo por eles. Faço tudo porque os amo.
— Você não precisa me agradecer. Eu amo vocês, Alexandre — solto
casualmente, mas meu peito acelera quando digo isso e sei que ele percebe. Seu
olhar cai sobre minha boca, depois sobre meus olhos, e eu ofego.
— Você me ama? — Ele pergunta, e eu apenas balanço a cabeça, engolindo
em seco. Não estou arrependida de falar, mas a possibilidade de uma rejeição me
machuca até mesmo antes da hora.
— Muito — consigo finalmente dizer. Seus dedos vão para o meu rosto e ele
faz um carinho gentil com a ponta dos dedos. Depois ele desce sua mão, me
segurando pela nuca com intensidade. Ele fica um tempo em silêncio, apenas me
olhando, como se estivesse brigando com algo interno. Seus olhos não deixam os
meus um minuto sequer e então, um pouco engasgado, ele diz:
— Você é linda, sabia? Te ter na minha vida é muito importante para mim. Eu
não sei como estaria se não fosse por você…
Abaixo a cabeça, sem graça, e ele me abraça mais forte, porque com certeza
percebe minha reação às suas palavras. Sei que não devo dizer algo esperando
ouvir o mesmo em troca, mas é impossível não ficar um pouco triste com a
realidade disso.
É a primeira vez que digo que o amo, e não recebo o mesmo de volta. Ele me
trata com respeito, com carinho, com delicadeza, mas uma voz dentro de mim
insiste em se perguntar se um dia ele será capaz de me amar com tanta
intensidade quanto eu sei que ele já foi capaz de amar alguém.
Mesmo com todos os últimos acontecimentos entre nós, ainda há um lugar na
vida de Alexandre que ninguém mais poderá ocupar.
E por mais que todos os gestos dele digam muito para o meu coração, é
impossível não pensar que eu quero ouvir em palavras que também sou amada,
e que Alexandre ainda não está pronto para isso.
CAPÍTULO 40 – INESPERADO, MAS NEM TANTO
Alguns dias depois.
Alexandre
No segundo em que abro os olhos, sei que dia é hoje. Fecho-os de novo,
esforçando-me para dissipar a queimação em meu peito, tentando, de alguma
forma, voltar algumas casas, há alguns dias, quando eu havia me permitido não
pensar nisso. Ou, de forma mais absurda, tentando voltar precisamente um ano
atrás, quando nada disso tinha acontecido.
Mas eu sei que não posso.
Queria, mas não posso.
Jogo as pernas para fora da cama, e antes mesmo de sequer me sentar direito,
o choro irrompe do meu peito como uma barragem estourada.
Inesperado, mas nem tanto.
As lágrimas descem grossas por meu rosto, e eu jogo meu corpo para trás,
batendo de volta no colchão, permitindo afundar meu corpo no edredom macio.
Ainda que eu tente ter forças para me levantar e enfrentar esse dia, não sei se
consigo.
As pessoas dizem: “Supere isso, Alexandre.”, “Você consegue.”, “A vida
continua.”. Mas ninguém entende que eu luto contra uma coisa muito maior e
mais difícil de processar, e que seguir em frente, por mais que eu queira, às vezes
não é tão fácil assim.
Hoje faz um ano que Júlia se foi.
Sim, eu segui a vida, porque realmente as pessoas tem razão: querendo ou
não, ela segue. Voltei a trabalhar, estou criando minha filha, estou namorando de
novo. Seguir a vida é possível, e é bom, mas pedir que eu não sinta mais essa dor
chega a ser até errado.
Porque toda vez que eu fecho os olhos, eu vejo seu corpo coberto pelo
alumínio, ao lado do carro. Toda vez que eu penso sobre isso, lembro que, a essa
altura, era para eu ser pai de duas crianças. Toda vez que eu fecho os olhos, me
lembro dos policiais me segurando enquanto eu tentava chegar até ela. Toda às
vezes que eu digo para mim mesmo que eu não posso mais pensar nisso, eu me
lembro que, por causa dessa justiça falha e ridícula, os assassinos da minha
mulher, os responsáveis por deixarem minha filha sem mãe, continuam soltos
por ai, talvez até fazendo novas vítimas, destruindo outras famílias.
Com dificuldade, levanto-me, tomo um banho e troco de roupa. Adio ao
máximo o momento de ir para a cozinha tomar café, pois sei que hoje Lilith está
em casa. Não quero que ela me veja assim, e não quero que Sophia me veja
assim. Por mais compreensiva que ela seja, temo que ela se sinta mal em me ver
sofrer tanto por outra pessoa quando há poucos dias eu estava dormindo com ela,
tirando sua virgindade e deixando claro o quanto eu adoro estar em sua
companhia. Não que eu a esteja traindo, eu sei que não, mas ainda assim, pode
ser algo difícil de lidar.
Respiro fundo e abro a porta para enfrentar o dia, e quando o faço, dou de cara
com minha namorada pronta para bater. Quando nossos olhares se encontram,
ela abre um enorme sorriso, que morre ao ver minha expressão. Eu não estou
mais chorando, mas fica nítido em minha cara que era exatamente isso que eu
estava fazendo minutos atrás.
— Eu vim te chamar para tomar café. A Lilith está esperando — ela diz, mas
sua voz vacila.
Me abaixo e lhe dou um beijo rápido. Diferente dos outros dias, não quero
mergulhar em sua boca e lhe dar um longo beijo. Eu só quero senti-la e saber que
ela está aqui. É o bastante. Egoísta, eu sei, mas eu nunca disse que sou um
príncipe encantado.
Sua mão vai para meu rosto e ela me olha, preocupada.
— Está tudo bem?
— Sim, está sim — pego sua mão e aperto, forçando um sorriso — Eu já
estava descendo…
Meus pensamentos percorrem um caminho sombrio, e eu tento, a todo custo,
me concentrar para permanecer no presente.
— Não, não está tudo bem, eu te conheço.
Será que tudo o que estou sentindo está estampado bem na minha cara? Eu
achei que seria forte o suficiente para conseguir muito bem esconder o turbilhão
de emoções dentro de mim, mas pelo visto não. Pelo visto, eu deixei tudo
transbordar no segundo em que seus olhos encontraram os meus.
Então ela respira fundo e sua expressão ganha um tom de compaixão e até de
certa tristeza.
— Ah, meu Deus, Alexandre… É hoje, né? Hoje faz um ano que Dona Júlia
se foi… — Ela coloca as duas mãos na boca, e me surpreendo ao olhar seu rosto
e não encontrar nenhuma nota de desagrado.
Balanço a cabeça, mas tento não perder a pose.
— É, hoje faz um ano. O tempo passa muito rápido, né? — Antes que eu
termine de falar, ela me puxa pelos braços e entendo que ela quer me abraçar.
Inclino-me e afundo meu rosto em seu ombro, sentindo seu cheiro, e então
desabo de novo. Meu Deus, eu não posso fazer isso com ela.
— Me desculpa — consigo sussurrar —, eu só não posso controlar…
Ela me aperta mais forte.
— Não, não. Pelo amor de Deus, você não tem que se desculpar. — Ela diz e
sinto sua voz embargada também. — Você tem todo o direito do mundo de estar
se sentindo desse jeito. — Sinto seus dedos afundarem em minhas costas,
dizendo sem palavras que ela estava ali. — Eu a amava também, Alexandre. Por
favor, não pense que só porque estamos juntos, você precisa esquecê-la ou nunca
mais falar dela. Não pense que é errado sofrer. Todo mundo nessa casa a amava.
Todo mundo sente a falta dela, e está tudo bem se sentir assim.
— Eu só queria… — Começo a falar, mas antes que eu termine, ela completa
pra mim, me dando um sorriso de canto.
— Ficar sozinho um pouco? — Ela pergunta e eu balanço a cabeça
confirmando. — Então fica, pode deixar que eu cuido da Lilith. Acho que ela
não ligou a data ao dia de hoje, então vamos fingir que está tudo bem. Vou dizer
que você está com dor de cabeça e vou arranjar alguma coisa pra gente fazer
enquanto você descansa.
— Você não está brava? — Eu pergunto meio receoso. Tenho medo de ela
estar tentando me deixar melhor enquanto se machuca por dentro.
— Pelo amor de Deus, você teve uma vida com ela! — É a única resposta que
eu obtenho, mas ela me parece incrivelmente verdadeira. Como se aquilo nem
fosse um ponto a se discutir.
— Você sabe que isso não significa que…
— Eu não acho que isso tenha que significar nada, Alexandre. Mas talvez
signifique algo sim. Talvez signifique que você é um ser humano como qualquer
outro. Você não tem que me explicar nada — ela sorri de forma compreensiva
—, quando estiver melhor a gente conversa. Agora descansa.
E quando ela se vai, eu entendo por que Júlia a colocou no nosso caminho:
Porque assim como ela, Sophia é um anjo.
[…]
Um pouco antes do anoitecer, consigo tomar um banho, me trocar e descer.
Lilith está deitada no sofá assistindo um filme e eu me surpreendo ao ver Sophia
sentada no sofá também, fazendo carinho na cabeça da minha filha.
Há poucos dias nós havíamos trocado sua cadeira de rodas automática por
uma monobloco, por indicação da fisioterapeuta. Depois de uma avaliação, ela
chegou à conclusão de que a cadeira automática estava limitando a Sophia em
muitos sentidos, e até fazendo com que ela perdesse a força dos membros
superiores. Depois de muita pesquisa e conversa com o médico e a
fisioterapeuta, conseguimos encontrar o modelo perfeito para ela, de acordo com
suas medidas, peso e tamanho, e em poucos dias, eu já percebo como ela está
ainda mais ativa com a cadeira certa, e até para fazer as transferências tem sido
mais fácil. É nítida sua felicidade.
Chego perto, reivindicando um cantinho para mim e Sophia sorri, animada por
me ver ali. Inclino-me e a beijo, e quando Lili se vira, ela sorri também.
— Está melhor, papai? — Seu sorriso banguela me faz sorrir de volta.
— Estou sim, meu amor, a dor de cabeça melhorou — digo, e então ela se
levanta e vem até mim, sobe no meu colo e se aninha. Depois sua mãozinha se
entrelaça na minha e ela dá um aperto forte, antes de sussurrar algo que só eu
posso ouvir, enquanto Sophia está presa à tela da TV. E o que ela me diz faz com
que de repente eu me sinta um pouco egoísta.
— Eu também estava tisti, papai — ela dá de ombros e eu percebo que,
diferente do que imaginávamos, Lili sabe sim que dia é hoje —, mas eu não
podia deixar a Sosô sozinha.
Engulo em seco, ciente do tamanho da força das duas mulheres que tenho em
minha vida. Perto delas, eu sou um fraco sem tamanho.
— Obrigado por cuidar dela pro papai, tá? — Ela balança a cabeça sorrindo,
orgulhosa de si mesma, e meu peito se enche de orgulho também.
— A gente sempi cuida uma da outra, né, Sosô? — Minha filha se vira e
Sophia sorri daquele jeito que eu amo: com a boca e com os olhos.
— Sempre, anjinho — ela ergue os olhos para mim e nos olhamos
intensamente por alguns segundos, milhares de palavras não ditas transmitidas
naquele silêncio.
Quebro o silêncio com um convite que eu sei que nenhuma das duas recusará:
— Que tal terminarmos a noite com um cinema? Ainda tem algumas sessões
abertas no shopping daquele filme que você estava doida para ver, filha. Dumbo,
não é? — Lili se anima na hora, confirmando e pulando do sofá.
— Vaaaaaaaaaamos!!! — Ela grita, animadíssima, e Sophia ri.
— Então vai se trocar — Sophia diz, e minha filha obedece imediatamente,
correndo para seu quarto. Quando ficamos apenas nós dois na sala, me mexo,
ficando mais perto dela. Sem dizer nada, tomo o lugar de Lilith e me deito em
seu colo. Sem que eu precise dizer ou pedir nada, suas mãos vão para o meu
cabelo e eu fecho os olhos, aproveitando o carinho. Eu simplesmente amo as
mãos dela em mim.
— Você está mesmo melhor? — Sua voz é sussurrada, então eu abro os olhos,
e dou de cara com sua expressão confusa. Eu sei que ela não está brava pelo que
aconteceu mais cedo, mas há algo em seus olhos. Algo que eu não consigo
decifrar e que me dá medo.
Tristeza? Dúvidas, talvez?
— Estou — me viro e subo meu corpo, até me sentar novamente, colado a ela.
— Estou, porque eu tenho você. É motivo o bastante para lutar contra mim
mesmo. — Observo sua íris castanha de perto, esperando ela dar aquele sorriso
encantado de sempre, mas dessa vez ele não vêm e isso me dá um gelo por
dentro.
Fico alguns segundos a encarando, tentando entender o que se passa em seu
coração. Quando eu não consigo, faço o que sei fazer de melhor: seguro sua
nuca e trago sua boca para a minha, beijando-a profundamente para camuflar o
que quer que seja que está entre nós.
Porque às vezes, fingir que não está acontecendo é a única forma de não
sofrer antes da hora.
CAPÍTULO 41 – MEU REFÚGIO

Alexandre
Estamos esperando a sessão começar em uma das poltronas perto das salas.
Lilith já está com seu pacote extragrande de pipoca doce, enquanto Sophia
responde algumas mensagens no celular, concentrada. Estico o pescoço e vejo o
nome de Rodrigo, e antes que eu consiga me conter, solto, visivelmente irritado:
— Eu achei que ele tinha te deixado em paz — roubo uma pipoca do pacote
de Lilith, na esperança de que mastigar alguma coisa disfarce meu maxilar
instantaneamente travado. Sophia ergue os olhos e um sorriso de canto aparece
em sua boca, junto com um olhar travesso.
— Você estava espiando meu celular? — Ela pergunta, fingindo indignação, e
eu continuo resmungando como um velho.
— Foi sem querer — pego mais uma pipoca e não dou o braço a torcer pro
meu erro. — E não foi isso que eu te perguntei.
— Alexandre, você não me perguntou nada. Você afirmou — ela ri ainda mais
do meu desconforto e eu a olho de lado.
— Então estou perguntando agora: esse cara ainda não te deixou em paz? —
Ela se inclina e me beija, achando graça da situação, mas eu não cedo ao charme.
Até quando esse moleque ia ser uma sombra na vida dela? E até quando ela
deixaria?
— Ele só perguntou se eu estou bem. Faz dias que a gente não se fala.
Faz dias? Ela está contando?
— Então vocês se falam sempre? — Se ela está tentando melhorar a situação,
está falhando miseravelmente.
— Não. Só às vezes. Ele me manda mensagem, eu respondo. Só isso. —
Quando eu não digo nada e roubo mais pipoca de Lili, que me olha feio
escondendo seus doces, Sophia continua a falar: — E ele sabe que estamos
juntos.
Paro de mastigar e então, involuntariamente, o canto da minha boca sobe em
um meio sorriso que eu tento a todo custo disfarçar.
— Ele sabe? Como?
Ela revira os olhos, como se eu fosse uma criança.
— Eu contei.
— Ótimo. Espero que ele saiba qual é o lugar dele a partir de agora — dessa
vez quem sorri é ela.
— E qual é o lugar dele, Alexandre? — Ela pergunta, e eu sei que está me
provocando para ter certeza de que eu tenho ciúme. Porra, claro que eu tenho.
Isso não é nem discutível.
— Bem longe de você.
[…]
— Ei, Alexandre! — Me viro e dou de cara com Ricardo, um dos pilotos da
companhia, parado em minha frente. Levanto-me para lhe cumprimentar e
sorrio, dando dois tapinhas em seu peito. Ele, de longe, dá um aceno para Lilith,
que sorri.
— Oi, tio Ricaido! — Ela sorri com a boca cheia de pipoca, e ele lhe sopra um
beijo. A companhia, apesar de grande, é como uma grande família. Nós
conhecemos as famílias uns dos outros, e mesmo que na época eu tenha sido um
grandessíssimo idiota, eles me apoiaram incansavelmente na morte de Júlia.
Jamais me esquecerei do tanto de amor que recebi.
Sophia está ao meu lado, e antes de eu fazer as devidas apresentações, decido
perguntar como estão as coisas.
— E aí, como estão as férias? Curtindo muito? — Ele havia ido para os
Estados Unidos com a família, conhecer a Disney, e agora estava de volta.
— Viajei bastante, mas agora só descansando. E você? — Um grande sorriso
toma seu rosto e ele me dá um tapinha no ombro. — André me contou que está
namorando… Fiquei feliz. Estava na hora já. Você é novo, merece recomeçar. —
Quando ele diz isso, Sophia sorri de um jeito diferente, mas ele não percebe. Só
que eu percebo que o sorriso em seu rosto é de satisfação por saber que o que
temos não é algo que precisa ser escondido.
E nunca será.
— Estou, e vou te apresentar a sortuda que aguenta meu bom humor todos os
dias — pego na mão de Sophia e beijo, e ela sorri ainda mais para Ricardo, o que
me faz pensar que é impossível alguém ser imune a um sorriso tão lindo assim.
— Ricardo, essa é a Sophia, minha namorada. Soph, esse é o Ricardo, meu
colega de trabalho.
Antes que eu possa fazer qualquer coisa, o sorriso no rosto de Ricardo se
transforma em uma careta de dúvida. Eu sei que ele não faz por mal, mas é óbvio
que Sophia percebe no mesmo segundo. Com certeza ela já viu esse tipo de
expressão vezes o bastante para conseguir reconhecê-la de longe e de primeira.
A expressão só dura um instante, mas eu sei que esse instante é o bastante.
— Ah, claro, oi Sophia — ele estende a mão para ela e tenta ser amigável,
mas eu sei que o estrago já está feito. Ela disfarça e sorri, simpática como
sempre, mas eu percebo como suas bochechas ficam rosadas de vergonha e seu
olhar cai. — É um prazer. — Ricardo sorri ainda mais largo, tentando consertar o
estrago, mas até ele percebe que não foi nada discreto. O desespero em seu olhar
é palpável.
— O prazer é todo meu — ela se remexe na cadeira, desconfortável. — Vocês
podem me dar licença? Eu vou comprar mais pipoca para a Lili. — Ela então se
vira para Lili, meio desnorteada e estende a mão, chamando-a. Minha filha vai,
sem perceber o constrangimento, pulando ao lado de Sophia, contando alguma
coisa animada.
Quando elas estão longe o bastante, me viro para Ricardo, com uma expressão
indecifrável.
— Parabéns pela coragem, porque noção você não tem — eu digo e ele
suspira, com os ombros caídos.
— Cara, eu fui grosseiro, né? — Ele pergunta, desesperado. É nítido o
arrependimento em seus olhos.
— Só não te dei um soco porque minha filha está aqui — eu respondo sucinto.
Agora que estou sentindo raiva pelo modo como ele olhou para ela é que
percebo como foi ridículo o modo como eu a olhei quando ela se ofereceu para
cuidar de Lilith, naquela primeira vez que a reencontrei depois da morte da Júlia.
Meu Deus, o ser humano é uma raça de idiotas.
— Eu juro que não fiz por mal… Foi só a surpresa. Eu nunca imaginei te ver
com uma… — antes que ele complete a frase, eu a termino por ele. Eu termino,
porque Deus sabe que se ele terminar de dizer, eu não respondo por mim.
— Uma cadeirante? — Ele se cala de novo, engolindo as palavras. —
Ricardo, vou te dizer o que eu digo para todo mundo que faz essa observação
inútil: a Sophia é muito mais do que as pernas dela. Faz muito mais do que muita
gente que anda. É muito mais inteligente, forte e independente do que a maioria
das pessoas que eu conheço, incluindo você. — A surpresa toma seu rosto, mas
eu não me arrependo de usar palavras duras. Às vezes, para ganhar uma batalha
é necessário soltar algumas bombas, e eu prometi para Sophia que ninguém mais
a machucaria, não se eu pudesse evitar. Suas batalhas agora também são
minhas. — Então, quando a minha namorada voltar para cá, você vai pedir
desculpas para ela. Ela é cadeirante, não idiota. Ela viu o modo como você a
olhou, e o mínimo que ela merece é que você reconheça seu erro, de uma forma
gentil, claro. — Ergo a sobrancelha ameaçadoramente, deixando claro o que eu
espero dele, e aguardo sua reação.
Ele me olha surpreso, primeiramente, mas depois um sorriso idiota surge no
rosto dele. É quase um sorriso de deboche.
Do que esse imbecil tá rindo?
— Ricardo, o que foi? Não me faça te dar aquele soco — eu perco a
paciência.
Ele balança a cabeça e me dá um tapinha no ombro, como se tivesse
finalmente entendido algo.
— Nada, cara, pode deixar que eu vou pedir desculpa para ela, porque eu sei
que fui um idiota, e se ela está te aguentando, ela merece mesmo um prêmio. Eu
só estou… Impressionado. — Ele me olha com uma expressão divertida, mas ao
mesmo tempo, quase orgulhosa. Não estou entendendo porra nenhuma.
— Com o que?
— Não é óbvio? — “Não, não é óbvio!”, eu quero gritar na fuça dele, mas
antes que eu diga qualquer coisa, ele completa a frase, como se fosse algo que eu
devesse saber. E talvez realmente fosse: — Ué; eu tô impressionado com o
tamanho do seu amor por essa menina.
[…]
Entro no quarto de Sophia e ela já está deitada na cama. Com um espelho na
mão, ela tira a maquiagem do rosto com um algodão. Encosto a porta, tiro os
chinelos e subo na cama, me sentando atrás dela. Passo os braços por sua
cintura, encaixo o queixo em seu ombro e vejo nossa imagem refletida ali.
— Você está bem? — Pergunto, porque sei que o episódio com Ricardo pode
tê-la magoado, e com razão.
— Estou, claro. — Ela diz, e eu procuro resquícios de mentira em seu olhar,
mas não encontro. Acho que ela está falando sério. — Eu estou mesmo
acostumada com isso, Alexandre. Não quer dizer que não machuca, mas também
não choca mais.
— Eu quis dar um soco nele.
— Foi por isso que ele pediu desculpas com tanto afinco? — Ela ri e coloca o
espelho de lado, depois vira o rosto e me beija rapidamente.
— Não, ele pediu desculpas porque sabia que estava errado. Ele é uma boa
pessoa, sério mesmo.
— Eu sei. A maioria das pessoas que fazem isso o são. É que esse preconceito
está tão enraizado na sociedade que as pessoas fazem e só depois percebem. É o
estranhamento pelo novo, pelo diferente. É difícil aceitar algo que não se
compreende muito bem, né?
Sorrio e aperto sua cintura.
— Já pensou em fazer palestras por aí? — Ela fica em silêncio por um
tempinho, mas depois se vira para mim, com o cenho franzido.
— Não… Mas não seria uma má ideia, não é?
— Seria uma ótima ideia. Você tem muito para falar, Sophia. Muito para
ensinar.
Ela sorri, genuinamente encantada. Inclina seu rosto e me beija mais uma vez,
de leve, e então diz aquilo que eu nunca estou preparado para ouvir, mas
principalmente, aquilo que eu nunca estou preparado para responder.
— Eu te amo. Obrigada por todo o seu apoio. — O desespero de devolver
algo à altura me bate, mas antes que eu consiga pensar nisso, ela continua a falar,
provavelmente me livrando propositalmente da questão. A paciência dela é
enorme, mas algo em mim grita que uma hora ela também chegará ao limite: —
Amanhã eu tenho fisioterapia cedinho. Eu sei que você vai trabalhar, então você
pode pedir para minha mãe ficar de olho na Lili até eu voltar? É rápido.
— Claro — eu digo. — Ainda não está falando com ela?
— Não — ela sussurra, e o sofrimento em seu rosto é visível.
— Tudo vai melhorar, eu prometo. É só uma questão de tempo.
Ela concorda silenciosamente, mas sei o quanto ela está triste por essa
situação, então decido que é hora de tirar essas preocupações de sua cabecinha.
Deito-a de costas na cama e começo a beijar seu pescoço enquanto abaixo as
alças do seu baby doll lentamente, fazendo o clima passar de pesado para quente
em instantes. Seu cheiro entra em mim, me fazendo, por um segundo, esquecer
tudo de incerto que ainda nos envolve, e eu respiro aliviado por esse dia estar
chegando ao fim.
Estar com ela é meu refúgio.
— Posso dormir aqui?
CAPÍTULO 42 – ERROS JUSTIFICÁVEIS

Alexandre
Entro na cozinha e vejo Cilene preparando o café da manhã. Abro a geladeira
em silêncio, mas eu sei que ela já percebeu que estou ali. Assim como tem
evitado muito contato com Sophia, ela está fazendo o mesmo comigo. Apesar de
eu ser o patrão dela, Cilene sabe que ela é família, e eu jamais a mandaria
embora por isso, mas acho que já está na hora de deixarmos as coisas claras
aqui. Não suporto mais ver Sophia sofrendo tanto por uma besteira que as duas
podem resolver com apenas uma conversa sincera.
— Bom dia, Cilene — eu digo e ela se vira, sem o habitual sorriso de sempre.
Coloca as xícaras na mesa e me responde, de forma séria:
— Bom dia, Doutor Alexandre.
Sorrio e abaixo a cabeça. A mulher é dura na queda.
Puxo uma cadeira e a seguro pelo pulso. Ela me olha sem entender. Aponto a
cadeira, pedindo sem palavras para que ela se sente; quando ela o faz, respiro
fundo, tomando coragem e escolhendo as palavras para começar essa conversa
tão necessária. É excelente que Sophia não esteja aqui nesse momento. Isso é
algo que eu quero tratar sozinho com a mãe dela.
— Você sabe que eu gosto muito de você, não sabe? — Eu pergunto e ela
demora um pouco para concordar, mas sei que é por pura birra. Ela sempre
soube do carinho e do amor que toda a minha família, não só eu, sentimos por
ela. — Mas mesmo gostando muito, muito mesmo de você, eu estou um pouco
decepcionado pelas coisas que você tem feito ultimamente. — Antes que ela
consiga se defender, eu prossigo: — Esconder a verdade de Sophia, falar aqueles
absurdos sobre nós, ignorar sua filha, que é louca de amor por você, não aceitar
as diferenças entre a gente… Cilene, isso não é você. Por Deus, me explica o que
está acontecendo.
— Ela é minha filha, Alexandre — pela primeira vez ela usa meu nome de
igual para igual —, e eu não quero que ela se machuque.
— Mas aí quem machuca ela é você, Cilene. Você não percebe? Se ela não
estivesse em uma cadeira de rodas, você não teria metade desse protecionismo.
Com certeza você deixaria a gente se resolver, e se não desse certo, você a
mandaria seguir a vida. E o que tem de diferente nisso tudo? É só porque ela não
anda? Ela pensa, fala, é inteligente e madura. Pode tomar suas próprias decisões.
É a vida dela, Cilene. Mostre que você confia nas decisões que ela toma, e diz
que se nada der certo, você vai estar lá por ela. Como uma mãe. Não como uma
mãe de uma cadeirante, só como uma mãe. É isso que ela espera de você: amor e
confiança. Esse seu medo disfarçado de protecionismo só vai afastar ela cada
vez mais, e vai chegar uma hora que vai ser impossível trazer ela de volta.
— Você não entende — ela balança a cabeça e começa a enxugar as lágrimas.
— Eu tinha um futuro planejado para ela na minha cabeça. Ela é minha filha
única, já que eu não pude ter outros filhos. Ela cresceu e eu sempre pensei que
ela ia se casar, ter filhos. Que ela me daria netos… — sua dor é visível — Mas aí
aquele moleque acabou com tudo. Ele destruiu a vida dela. Não consigo olhar
para a minha filha e pensar que o mundo sempre vai fazê-la sofrer. Que as
pessoas vão olhar pra ela sempre com pena. Que todo o futuro que ela tinha no
vôlei, que era algo que ela amava, acabou. Que talvez ela nunca se case e tenha
filhos, mas se isso acontecer, ela sequer vai poder correr com eles… — Eu a
puxo para um abraço, porque, por mais absurdo e irreal que sejam as coisas que
ela está dizendo, eu, como pai, consigo entender sua dor, seu medo. — Toda mãe
deveria poder correr com seu filho, Alexandre.
— A vida da Soph não acabou, Cilene. Ela só recomeçou de um modo
diferente. A sua filha é capaz de tudo — solto-a e, por mais que doa fazer isso,
eu comparo ela e Júlia pela primeira vez: — Quem não pode mais correr com a
própria filha é a Júlia, porque ela morreu. A Soph continua viva, e está sendo
uma mãe extraordinária para a minha filha, que sequer tem o sangue dela. Você
só acha que ela não é capaz de fazer muitas coisas, mas ela é. Tudo é uma
questão de como enxergamos as coisas: a Sophia tinha duas escolhas: enxergar a
cadeira como suas asas ou como sua âncora. Ela escolheu ver como suas asas…
Mas adivinha o que você escolheu?
Ela abaixa a cabeça, mas não me responde nada. Isso não ia ser tão fácil como
eu imaginei que pudesse ser.
— Onde ela está? — Ela me pergunta, e eu decido usar uma forma muito clara
dela entender o que está acontecendo entre elas: distanciamento.
— Ela está na fisioterapia. Você sempre ia com ela não é? — Quando ela
balança a cabeça afirmando, eu termino: — Vocês estão se afastando, Cilene.
Nas coisas mínimas, mas que logo se tornarão grandes. Não deixa isso acontecer.
Quando ela não responde mais nada, eu decido que é hora de deixá-la com
seus próprios pensamentos. Não há mais nada que eu possa fazer para consertar
as coisas. Falar essas verdades foi a última tentativa de fazê-la enxergar a filha
maravilhosa que tem, e que está perdendo por não saber lidar com a situação.
Antes, porém, que eu saia da cozinha, ela me chama mais uma vez. Olho para
trás e ela me encara, com os olhos lacrimejados.
— Você sabe que semana que vem é aniversário dela? — A pergunta me pega
de surpresa e eu sei que fico atônito, de repente. Na verdade, eu não sabia, e sei
que ela percebe pelo sorrisinho que ela dá.
Ela se levanta e vem em minha direção, parando de frente para mim.
— Você sabia que ela ama girassóis? Que são suas flores preferidas?
— Cilene, eu não… — Começo, mas ela me corta.
— Todo aniversário da Sophia o pai dela planta um pé de girassol novo lá em
casa. É uma tradição.
Assinto com a cabeça, entendendo aos poucos aonde ela quer chegar.
— É uma linda tradição, Cilene.
Ela sorri, de lado.
— Você, por acaso, sabe que o sabor de bolo preferido dela é morango com
creme…?
— A gente ainda está se conhecendo — eu tento me justificar.
— E eu a conheço desde que ela morava aqui — ela toca sua barriga. — E se
eu erro, Alexandre, é porque eu amo demais. Por favor, não julgue meus medos,
porque ninguém tem esse direito. Eu vi minha filha passar o pior na vida, e eu
estava lá, recolhendo cada caco, secando cada lágrima. Eu estava lá em cada
cirurgia, em cada consulta, em cada fisioterapia. Talvez de um jeito torto, errado
e até rude, mas com todo meu amor. Eu amo do jeito que me ensinaram a amar,
mas isso não significa que eu ame menos.
A dimensão disso me acerta como um soco, e de repente eu chego a me sentir
mal. Ela realmente errou e amar demais não tira sua culpa, mas agora é mais
fácil ver como seus erros são justificáveis, e que talvez, um dia, eu cometa erros
com Lilith também.
Pais erram tentando acertar.
Meus ombros caem e eu passo a mão pelo rosto. Cilene, que conhece cada
expressão minha como se eu fosse seu filho, se aproxima e me segura pelos
ombros.
— Se você quer ficar com ela, filho, precisa conhecer ela melhor. Você
chegou ontem, mas eu estou aqui desde que ela nasceu. — Diante da minha cara
assustada, ela ri e me abraça, com o carinho que estou tão acostumado, e
finalmente eu posso sentir minha querida Cilene de volta. — Isso não é uma
bronca, é só um aviso, e eu agradeço sua honestidade comigo, então eu também
vou ser honesta com você; quem sabe assim, nós dois cumprimos nosso papel
nessa história toda, hein? — Eu assinto com a cabeça, agradecido, então ela
continua: — Por mais que ela esteja amando viver esse conto de fadas, ela ainda
acha que não é importante o suficiente para você, e eu nem preciso estar
conversando com ela para saber disso. Eu leio no olhar dela, todos os dias, que o
maior medo dela é que o príncipe que ela tanto venera, vire o sapo de uma hora
para outra.
CAPÍTULO 43 – ABRINDO OS OLHOS

Sophia
O dia do meu aniversário passou de forma tranquila. Minha mãe me procurou
para uma conversa e me pediu desculpas, e eu sinceramente acho que tem dedo
do Alexandre disso, mas não é que eu esteja reclamando, longe de mim; foi
como tirar um peso das minhas costas, porque eu não aguentava mais ficar
brigada com ela. A princípio foi estranho, mas quando ela me abraçou, toda a
mágoa que eu achava sentir foi embora, e só ficaram os bons sentimentos. Seja
como for, ela é minha mãe e eu sou apenas metade do que posso ser longe dela.
Nenhuma filha deve ficar sem o apoio de uma mãe, e é por isso que eu tento
ser para Lilith o que lhe tiraram de forma tão cruel. Acho importante a ligação
que temos justamente porque sei o quanto ela é necessária para uma criança da
sua idade.
Como Alexandre está viajando, todos à minha volta tentaram fazer com que o
dia fosse mais alegre: Lilith leu historinhas e fez um desenho para mim, minha
mãe fez um bolo durante a tarde, André veio me ver e me trouxe um livro e até
Rodrigo me mandou um presente.
Eu estou sinceramente feliz por ter sido lembrada de tantas formas lindas, mas
ainda falta um pedaço aqui, e meu coração está pesado porque sequer uma
mensagem Alexandre me mandou.
André puxou minha orelha sobre isso e disse que quando eles estão viajando,
usar o celular é muito complicado, o que me deixou um pouco menos paranoica.
A verdade é que mesmo que não tocássemos no assunto, nosso relacionamento
parece estagnado, parado no tempo, e mesmo que eu seja paciente e tranquila, eu
sei definir quando estou um passo à frente ou atrás de alguém em algo, e nesse
relacionamento eu estou anos luz à frente de Alexandre. Eu sei que ele sente
carinho, gratidão, e até tesão por mim…
Eu realmente sei.
Mas isso não é amor, e quando você ama alguém de todo coração como eu o
amo, o que se espera de volta, mesmo inconscientemente, é reciprocidade.
Infelizmente, não estou tendo, e isso me machuca mais do que eu consigo
admitir em voz alta.
Mais do que os meus sorrisos programados conseguem encobrir.
[…]
Ajeito-me no sofá que Alexandre colocou em meu quarto e coloco uma
almofada atrás das costas, erguendo o livro que ganhei do André, facilitando
para que a luz do abajur tocasse as páginas, me permitindo enxergar melhor. Já
estou quase na metade da leitura, de tão cativante que é a história, então nem
percebo quando Alexandre chega de fininho.
— “Como eu sou um girassol, você é meu sol…” — Ele canta baixinho, ao pé
do meu ouvido, e quando eu olho para trás, me surpreendo em vê-lo ainda de
uniforme. Ele estende do meu lado esquerdo um único girassol envolto em um
laço laranja e na outra mão, uma caixinha pequena da melhor doceria que eu já
fui. Fico surpresa diante do gesto e coloco o livro de lado, erguendo os braços,
chamando para que ele venha até mim. Ele dá a volta e se senta ao meu lado, e,
beijando meu pescoço, termina de sussurrar a letra da música, o que me faz abrir
um sorriso enorme de satisfação: — “Você é meu sol. Um metro e sessenta e
cinco de sol…”.
Ergo a mão e passo em seu cabelo, e então nossas bocas se encontram. Eu
estou emocionada com sua atitude, tão simples, mas tão linda.
— Parabéns para a aniversariante mais linda que eu conheço.
— Obrigada, Alexandre… É lindo.
— Feliz aniversário, anjo. — Ele me estende o pacotinho da doceria e eu o
abro, vendo que é um pedaço de bolo. — Desculpa, não tinha mais o bolo
inteiro. Cheguei tarde — ele faz bico, mas eu não me importo. Só de ele ter
lembrado, já significa muito para mim. Quando eu abro e vejo que o bolo é o
meu favorito, é impossível não saber que ele realmente andou falando com a
minha mãe.
— Dona Cilene te ajudou com isso? — Eu pergunto, desconfiada, e ele sorri,
culpado.
— Talvez ela tenha me falado uma ou duas coisas… — Ele aperta minha
cintura.
— Isso é ainda melhor. Ela falou comigo hoje, me deu um presente… Foi
muito bom. Me sinto até mais leve — eu conto animada, enquanto pego a colher
presa ao pacote com um lacinho. Ele se ajeita ao meu lado, tira o terno, o quepe
e o sapato, e dividimos o meu bolo enquanto conto como foi a conversa com
minha mãe. Quando eu termino, ele pergunta sobre os outros presentes em cima
da cômoda: — O livro foi do André… Os brincos foram meus pais, e a Lilith leu
várias historinhas para mim, além de ter feito um desenho lindo de nós três —
aponto a folha colorida pendurada no meu painel de fotos.
Ele dá risada, mas de repente seus olhos param no buquê em cima da cômoda,
arrumados em um vaso ao lado dos outros presentes.
— E os outros girassóis? — Ele se engasga, mas tenta disfarçar — Foi seu
pai? Eu estou sabendo da tradição dos girassóis…
Sorrio, sem graça.
— Não… O buquê foi o Rodrigo que mandou. Ele sabe o quanto eu amo
girassóis.
Alexandre respira fundo, visivelmente chateado, mas antes que eu sequer tente
acalmá-lo, ele tira uma caixinha do bolso do uniforme e sorri de canto, meio
debochado.
— Ainda bem que eu comprei isso, então. Ia ser meio chato que esse
playboyzinho cheirando a leite te desse um presente melhor que o meu… — Ele
diz, e com um clique, abre a caixinha vermelha, adornada com um lacinho
dourado. Lá dentro, vejo um anel prateado, adornado com uma pedra maior em
cima e várias outras pequenas em volta. É delicado e de muito bom gosto.
— É lindo, Alexandre… — Digo encantada.
Ele pega minha mão e, com um movimento, desliza o anel em meu dedo
anelar. Quando ele faz isso, reparo algo que eu não tinha percebido desde que ele
chegou: em seu dedo havia também um anel prateado, simples. Quando ele
percebe que eu vi, se inclina, beija meu pescoço e sussurra em meu ouvido:
— Considere como um anel de compromisso. Eu comprei um para mim
também. — Eu sorrio diante do seu gesto, mas algo me incomoda por dentro.
Nada disso parece realmente real. É quase como se tudo fosse ensaiado, uma
tentativa desesperada da parte dele de me mostrar que ele está no mesmo pé que
eu nessa relação, quando claramente não está.
Eu realmente aprecio o esforço, mas sentimentos… Eles não existem para
serem forçados. Não é isso que eu quero dele.
Não é isso que eu quero de ninguém.
— Eu não quero parecer ingrata, não me entenda mal… É realmente
maravilhoso… — Quando ele aperta as sobrancelhas, em sinal de dúvida,
resolvo colocar para fora: — Mas, por que isso?
Ele sorri, intrigado e então dá de ombros.
— Eu achei que… — Ele respira fundo e eu finalmente percebo: nem mesmo
ele sabe por que fez isso. Ele só fez, achando que isso me deixaria feliz, que isso
tiraria minhas dúvidas e dissiparia meus medos, mas ele não tem um motivo real
para ter feito isso.
Abaixo a cabeça, um pouco constrangida. Não foi assim que eu imaginei esse
momento entre nós. Na verdade, o último momento entre nós que me pareceu
realmente verdadeiro foi quando transamos pela primeira vez. Acho que foi a
última vez que senti Alexandre inteiramente para mim, de corpo e alma.
— Na verdade, você não sabe por que fez isso, não é? — Eu pergunto,
olhando-o de lado, e ele se ajeita no sofá, um pouco nervoso.
— Sophia, eu gosto tanto de você… — Ele passa as duas mãos no rosto,
frustrado, talvez com ele mesmo. Frustrado, talvez, por não conseguir
corresponder ao meu sentimento, mesmo que ele queira muito.
Antes que ele termine de falar, resolvo perguntar o que vem me atormentando
há semanas. Eu sempre penso mil vezes antes de falar isso porque não quero
pressioná-lo. Eu sempre penso nele, nas dificuldades, nos sentimentos, na
pressão que ele sofre. Mas e em mim? Quando eu pensaria em mim?
Só eu não consigo ver que isso é uma relação de amor unilateral. Eu não posso
ser injusta e dizer que ele não gosta de mim. Eu sei que ele tem sentimentos
fortes e relevantes, mas não são nem de perto os mesmos que os meus, o que me
faz pensar: é justo?
É justo conosco?
— Eu sei que você gosta de mim. Eu realmente sei, Alexandre. Você me prova
isso todos os dias, em todos os seus gestos. Que você gosta de mim e se
preocupa não restam dúvidas, mas a pergunta que não quer calar é: Será que um
dia você vai ser capaz de mais do que isso?
— O que você quer dizer com isso, Sophia? — É claro que ele sabe o que eu
quero dizer com isso, ele só está me testando para saber se eu realmente falarei
em voz alta, se eu realmente vou continuar com isso e seguir em frente com essa
conversa.
— Eu não quero saber se você me ama agora, porque ficou muito claro que
você não ama, e eu acho que não tem nada de errado nisso. Sentimentos são
construídos no dia a dia. Mas eu quero saber se existe a chance de você me amar
um dia. Eu quero saber se estou aqui em vão, esperando algo que nunca virá, ou
se existe a possibilidade de eu receber em troca o que eu te dou, que é amor de
verdade, Alexandre. Porque eu te amo de verdade, e amo muito.
— Soph, é difícil… — Ele se ajeita ao meu lado e suspira profundamente,
como se pensar nisso fosse realmente algo que lhe esgotasse todas as forças, e,
meu Deus, isso dói mais do que eu posso explicar. Mesmo assim, eu tento mais
uma vez. Uma única vez, e seja qual for a sua resposta, vai ser o que eu vou
tomar como verdade para mim, doa o quanto doer. Eu não vim a esse mundo
para aceitar migalhas. Eu nunca fiz isso, e não será agora que irá acontecer.
— Na verdade, a resposta é muito simples… — Eu começo.
— Não é tão simples assim, não, Soph… — Ele fica mais alguns segundos em
silêncio, então se volta para mim. Quando acho que vou ter uma resposta, seja
positiva ou negativa, sou surpreendida com ele tentando, mais uma vez, fugir do
assunto. — Eu imaginei uma noite completamente diferente. Achei que você
fosse ficar feliz com o anel, pensei em você o dia inteiro e em como você
reagiria. Por que isso agora? O que temos, por enquanto, não é o suficiente?
Fecho os olhos, pesando cada uma de suas palavras.
Então é isso? Eu devo me sentir satisfeita com o que ele oferece? Eu devo
sorrir e agradecer, como se eu não pudesse achar isso em outro lugar? Como se
isso fosse um favor? Eu devo me contentar com menos do que mereço?
Nunca.
Nem por ele, e nem por ninguém.
— Você já deu sua resposta, Alexandre — tento segurar as lágrimas que
insistem em se acumular em meus olhos. Quando ele percebe, vejo o desespero
se instalar em seu rosto, mas, pela primeira vez, não me importo. Eu só quero
ficar longe dele. Pela primeira vez, eu quero distância de Alexandre, de verdade.
— Pode me deixar sozinha, por favor?
— Soph, para. Por favor… Você não está pensando direito.
Na verdade, acho que desde que começamos isso, é a primeira vez que estou
pensando direito.
Mais importante: é a primeira vez que estou pensando em mim.
Ele tenta segurar minha mão, mas eu o afasto delicadamente. Não quero fazer
uma cena. Não quero exigir coisas que ele não está pronto para me dar e sei que
ele não é obrigado a sentir nada, mas isso não significa que eu tenha que ficar
esperando para sempre, ficar esperando até que um dia ele esteja disposto a me
dar algo.
É a primeira vez que estou pensando em mim antes de qualquer coisa, e eu
devo isso a quem eu sou e a quem me tornei. Nem ele, nem ninguém, vai me dar
menos do que mereço.
Eu não vou aceitar, mesmo que isso doa e sangre como nunca.
Mesmo que isso me mate de tristeza.
Porque antes sofrer por mim do que por quem não retribui o que eu sinto com
tudo de si.
— Eu disse que quero ficar sozinha.
CAPÍTULO 44 – SEMPRE INTEIRO, NUNCA PELA METADE

Alexandre
Quando eu fecho a porta do quarto de Soph atrás de mim, sinto um nó na
garganta acompanhado de um frio na barriga, que faz meu estomago se revirar
de nervosismo. Não consegui retrucar nada quando ela pediu para ficar sozinha
porque, no fundo, eu sei, mesmo que não suporte a ideia de admitir, eu sei que
ela tem razão. Eu havia feito aquilo por puro desespero: desespero por mostrar
que gosto dela; desespero por fazê-la ver que pode confiar em mim e no que
temos.
Mas analisando pela visão dela, agora vejo que minha atitude foi ridícula. Por
Deus, eu sequer perguntei o que ela pensava sobre aquilo. Eu só lhe comprei um
anel e impus minha vontade, como se ela fosse algo de minha propriedade, que
eu lido como quiser.
Isso é tão errado.
E na verdade, eu sei que sua atitude em querer ficar sozinha não foi só pelo
anel. Fora por todas as outras coisas: os “eu te amo” não correspondidos, os
momentos em que fico perdido dentro de mim e a afasto, mesmo
inconscientemente, o fato de que não me entrego sequer um por cento do que ela
se entrega… O anel foi apenas a gota d’água.
Fico tão perdido, sem saber o que fazer ou como reagir, que caminho até meu
quarto e me sento em minha cama, olhando para o nada.
Afrouxo a gravata e encaro o quadro de Júlia na parede.
— Acho que sou um idiota, Júlia.
Fico sentado na cama, pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo, até que
percebo uma luz clara e repentina se insinuando pelas frestas da cortina, e só
então reparo que os minutos viraram horas, e que o dia já está amanhecendo. Eu
passei a noite toda aqui, sentado, perdido em pensamentos.
E mesmo assim, não cheguei à conclusão de merda nenhuma.
De nada, como sempre.
Arrasto-me até o banheiro, sentindo o cansaço das horas sem dormir
acumulando-se sobre mim. Preciso de um banho, porque sei que devemos
conversar e resolver isso o quanto antes. Não suporto a ideia de magoá-la, não
quando eu lhe prometi que jamais faria isso novamente.
Debaixo do chuveiro, fecho os olhos com força enquanto sinto a água escorrer
por meu corpo cansado pela falta de sono, e tento desesperadamente lavar essa
sensação de vazio no peito. Choro por não conseguir demonstrar para uma das
melhores pessoas que já conheci na vida o que realmente sinto, mas
principalmente, por não saber o que realmente sinto.
[…]
Visto uma roupa casual e olho no relógio. Passa das nove, então Lilith já foi
para a escola, e eu sequer lhe dei um beijo de tchau. Provavelmente Sophia
imaginou que eu estivesse cansado demais para me acordar, e me deixou dormir
mais. Se ela soubesse que passei a noite em claro…
Passo pelo corredor e paro em frente à porta de seu quarto. Está fechada, e eu
até penso em bater, mas sigo em frente. Ela queria ficar sozinha um pouco, e eu
preciso dar o espaço que ela necessita, para que assim ela pense melhor. Não
quero que ela faça nada no calor da emoção, mas quando finalmente entro na
sala, estaco onde estou e vejo que meu desejo, dessa vez, não será atendido.
Ela já fez.
Suas malas estão todas amontoadas no centro da sala, inclusive o ursinho de
pelúcia que trouxe para ela de uma das minhas viagens ao exterior. Sinto o ar
faltar, enquanto meu peito dói, como se alguém tivesse enfiado a mão por dentro
de mim e esmagado meus pulmões. Olho em volta, procurando freneticamente
por ela, e quando ela finalmente surge em meu campo de visão, sinto a
queimação aumentar até se transformar em lágrimas borrando minha vista.
Encaro-a e vejo que ela não está tão diferente de mim. Seus olhos estão
vermelhos e inchados, quase tanto quanto os meus.
Como se me olhasse num espelho, a dor é intensa e bem real para os dois.
Aponto as malas no chão e ouso perguntar, mesmo já sabendo a resposta:
— O que é isso, Sophia?
Respirando tremulamente, olho dentro dos seus olhos, achando que só
enxergaria dor lá, mas eu vejo algo mais: há muita determinação também, e eu
finalmente entendo:
Ela não vai mais aguentar minha indecisão, simplesmente porque ela sabe que
não merece isso, e eu deveria saber também.
— Eu estou indo embora, Alexandre.
Por mais que eu já soubesse as palavras que sairiam de sua boca, ouvi-las em
voz alta parece triplicar a dor que sinto dentro de mim. Depois de tudo o que
passamos juntos esses meses, ela está indo embora e a culpa é minha.
— Me diz que isso é brincadeira — eu passo a mão pelo cabelo, depois desço
para minha boca, ainda desacreditado do que está acontecendo. — Me diz que
você só está tentando me dar um susto.
Ela respira, e sem alterar a voz, diz calmamente:
— Não é brincadeira, muito menos um susto. Eu acho que está na hora de eu
encarar a verdade que está na minha cara e que só eu insistia em não enxergar.
— E que verdade é essa, posso saber? — Me faço de desentendido. No auge
do desespero, eu decido lutar com qualquer arma, apenas para tentar convencê-la
a ficar, mesmo sabendo que eu estou sendo egoísta e mesquinho, tentando
empurrar-lhe uma culpa que não é sua. — Porque até ontem estava tudo bem
entre a gente. Eu simplesmente não consigo entender, Sophia!
Ela sorri, como se o que eu tivesse dito fosse uma piada. No fundo, acho que é
mesmo. Eu estou perguntando algo que eu já sei, apenas pelo ridículo prazer da
negação. Eu sempre fui bom nessa merda, mesmo.
— Apesar de eu ter certeza de que você já tem essa resposta, eu vou te
explicar, Alexandre: estou indo embora porque eu já entendi que não vou receber
de você o que eu te dou. Eu te amo! Com tudo de mim, com todas as minhas
forças. Eu amo você, sua vida, sua filha, eu amo tudo que te envolve, como se
você fosse um ser místico ou um Deus. Eu alimento esse sentimento desde que
tinha quinze anos, mas está na hora de eu aceitar que você nunca vai ser capaz
de me amar, não da maneira como eu quero ser amada. Porque só tem um lugar
no seu coração, e esse lugar é da Julia. Esse lugar foi dela antes, durante e
depois. E há coisas na vida que não podem ser forçadas; amor é uma delas —
ela engole as lágrimas que eu sei que quer deixar cair, e cada palavra que eu
ouço é como uma pequena adaga em minha carne. Ela está falando que eu nunca
vou ser capaz de amá-la, mas ela está indo embora sem sequer tentar isso.
Ela está acabando com tudo antes de sequer começarmos, sem sequer me dar a
chance de mudar as coisas.
— Só… Tenta entender que isso ainda é confuso para mim.
Ela aproxima sua cadeira um pouco mais de mim. Não há raiva em seu olhar,
apenas dor e uma maturidade que poucas vezes eu conheci igual. E mesmo que
isso esteja me fazendo sofrer como um cachorro nesse momento, é admirável
sua postura de lutar pelo que precisa e pelo que sabe que merece.
Não sei se sinto raiva ou orgulho. Que confusão de sentimentos da porra!
— Te entender é o que eu tenho feito desde que eu me mudei para cá. Para
tudo o que você já me fez, eu arrumei uma justificativa — ela diz baixinho, e
uma lágrima rola por seu rosto, mas ela a enxuga rapidamente com a ponta dos
dedos. Em nenhum momento perde a compostura. Uma verdade sobre Sophia é
que ela não precisa gritar para ser ouvida. — Não me peça algo que eu já te dou.
Se você não consegue me amar por inteiro, eu não vou deixar você me amar
pela metade. Não vou me submeter a isso. Eu entendo que você não vai deixar
de amá-la, e eu não quero isso. Eu nunca te pedi isso, porque eu a amo também.
Nunca vou deixar de amar, por tudo o que ela fez por mim enquanto estava viva.
Por ter colocado a Lilith no mundo. Por ter me ensinado com seus gestos o que é
o amor cristão. E se você realmente me conhece, sabe que eu jamais te pediria
para esquecê-la, então saiba: não é esse o ponto. Não é por isso que eu estou
indo embora.
— Então por que estamos fazendo isso? Se você entende, por que está indo
embora? — Eu pergunto, beirando ao desespero. Diferente dela, eu quero gritar
até que ela entenda que o lugar dela é aqui, comigo. Com a gente.
— Porque eu quero ser amada também. Mais do que querer, Alexandre. Eu
mereço ser amada.
— E quem disse que eu não te amo? — Eu falo e me abaixo até sua cadeira,
me ajoelhando em frente a ela. Não estou implorando nada, eu só quero estar
próximo dela. Eu só preciso que ela me toque e entenda. Que ela sinta meu
coração na garganta e o desespero em minha voz. Que ela sinta meu corpo
tremendo e o desespero em meu olhar e queira tentar um pouco mais. Eu só
preciso me agarrar a algo, qualquer coisa.
— Você ama? — Ela pergunta, mas não há esperança em suas palavras. É
mais como um desafio, talvez um pedido para que eu reflita sobre o que acabei
de falar. Quando eu não consigo responder e enfio a cabeça em seu colo,
deixando as lágrimas caírem pelo peso dessa conversa esmagadora, ela afunda
seus dedos em meu cabelo, fazendo o carinho que eu tanto amo receber e isso
me desmonta mais ainda. — Está vendo? Você sabe que não me ama, mesmo
assim não quer me deixar ir, e isso só prova que eu estou tomando a decisão
certa. Só prova que você está comigo por conveniência, nada mais. E me perdoe
Alexandre, mas eu não sou obrigada a aceitar somente o que você está disposto a
dar só porque eu te amo.
Ergo o rosto, e a encaro.
— Você está sendo injusta — eu cuspo as palavras, porque a verdade dói, e eu
não quero acatá-la. Eu prefiro refutá-la, prefiro negar a mim mesmo que ela está
coberta de razão.
— Você realmente quer falar de injustiça, Alexandre? — Ela arqueia a
sobrancelha.
— Você está agindo como se eu te desse migalhas, quando eu estou tentando
com tudo de mim, Sophia. Com tudo de mim.
— Você aceitaria para si mesmo o que está me dando? Você acha que amor
precisa ser forçado assim? Você acha que é certo eu saber que você tenta me
amar? — Diante do meu silêncio, ela suspira e completa — É, eu imaginei que
não.
— Sophia, por favor…
— Se por um momento você pensou que eu aceitaria essa situação só porque
eu te amo, você estava errado. E se por um segundo, você estiver pensando que
eu vou definhar com essa separação, tenha certeza que não, então não se
preocupe comigo. Eu vou sofrer sim, muito, provavelmente a cada dia em que eu
estiver longe de você. Mas na minha vida, Alexandre, o sofrimento só veio para
me deixar mais forte, sempre. Só veio para eu me conhecer melhor, para eu
aprender a me respeitar. Eu fiquei paraplégica, fui abandonada e enganada por
quem dizia me amar, e olhe para mim: eu estou viva. Coração partido é só uma
das minhas especialidades.
Ela está comparando o que temos ao que aquele moleque deu para ela, e isso
dói para caralho, porque eu odeio saber que posso tê-la magoado tanto quanto
ele a magoou.
— Ele dizia que te amava, mas te abandonou. Eu não digo, mas estou aqui, te
implorando para ficar. O que parece mais certo, Soph? Por que você não
consegue ver?
— Nenhum dos dois me parece certo, porque eu não preciso aceitar ser amada
pela metade, seja por quem for. — Então ela pega minha mão, a abre e coloca lá
o anel que lhe dei ontem. Quando ergo meus olhos, vejo o momento em que ela
por fim desaba, chorando tanto quanto eu, e finalmente posso ver a extensão do
estrago que fiz, mais uma vez. — Uma aliança não simboliza nada se não houver
sentimentos, Alexandre. Senão, ela se torna só um anel.
Decido me agarrar a promessas. É minha última chance.
— Eu estou tentando, Sophia. Um passo de cada vez. Estou com você, estou
seguindo em frente…
— Você não seguiu em frente. Você está tentando se convencer disso, e é por
isso que você está comigo. Eu sei que você tem carinho por mim, Alexandre. Por
favor, não pense que eu não vejo que você também está sofrendo com isso. Eu
nunca duvidei disso um segundo sequer, e eu nunca vou me esquecer do seu
carinho, da sua delicadeza comigo no momento em que me deu minha primeira
noite de amor. Aquela noite sempre será a mais linda da minha vida, e eu sempre
vou sorrir quando me lembrar dela, porque foi com você. Foi com o amor da
minha vida. Eu senti todos os seus bons sentimentos, em todos os momentos que
tivemos: nas conversas, na cama, nas risadas. Mas você não quer outro amor,
você quer apenas uma certeza em sua vida. Eu não estou aqui para ser a
conveniência de ninguém, e eu não faria isso comigo, nem mesmo por você.
— Se você é uma conveniência para mim, então por que te ver ir embora está
me fazendo sangrar por dentro? — Eu pergunto, porque preciso de respostas. Ou
talvez porque eu preciso que ela pense nisso, mesmo que seja nos últimos
minutos.
— Talvez você me ame; em algum lugar dentro de você talvez esse
sentimento já exista, mas o seu medo ainda é muito maior. Só que isso é algo que
está fora do meu controle, e eu não acho que eu deva ficar aqui e pagar para ver.
Eu não posso te fazer mudar, muito menos mudar o modo como você vê nosso
relacionamento. Você precisa encontrar essa resposta em si mesmo, mas você vai
ter que querer isso, Alexandre. — Ela puxa meus braços, me chamando para um
abraço, e quando me inclino sobre ela, seus lábios quentes pelas lágrimas
encontraram meu rosto também molhado, depois ela me aperta em um abraço
que eu não sei como farei para viver sem. Seu cheiro me envolve, e só então me
toco de como eu amo seu perfume. Como eu amo a maciez da sua pele. De como
eu amo sua risada, sua força, sua sabedoria.
Mas, ainda que meu coração esteja destruído, eu entendi palavra por palavra
do que ela me disse, e eu sei que ela tem completa e total razão.
Eu sempre soube, só não queria enxergar.
Amar algumas coisas nela não é o mesmo que amá-la por inteiro, e ela só
merece cem por cento de qualquer coisa que lhe oferecerem. Se eu a forçar a
ficar, estarei destruindo o que eu mais gosto nela: sua coragem de recomeçar.
— Por favor, só não me proíba de ver a Lilith… Você sabe que eu não posso
ficar sem ela.
— Eu jamais faria isso com vocês duas, Sophia. Essa casa é sua, essa família é
sua… Sempre será.
— Obrigada — ela responde, claro, somente ao fato de que eu não afastaria
Lilith dela. — Eu prometo que vou explicar tudo para ela, e fazê-la saber que
nada entre ela e eu muda. Ela foi para a escola sem saber de nada, então qualquer
coisa, você diz que eu precisei ir para casa hoje. Amanhã, eu peço para o André
levar ela para ficar comigo e nós conversaremos.
Decido fazer uma última pergunta, mesmo que dentro de mim, eu já desconfie
da resposta.
— Nós podemos, pelo menos, ser amigos?
Ela enxuga uma lágrima, mas balança a cabeça em negativa, com os olhos
cheios de dor.
— Não Alexandre, não dá.
— Por quê? Vai ser horrível não te ver mais.
Ela dá um sorriso fraco, antes de apertar minha mão entre seus dedos mais
uma vez, o claro sinal da nossa despedida.
— Tem um ditado que diz que não podemos nos curar no mesmo ambiente em
que nos ferimos, Alexandre. Não é óbvio? — Ela diz, e finalmente se afasta.
Quando nossos olhos se encontram novamente, eu sei que não há mais nada que
eu possa fazer, e isso me rasga por dentro. — Eu te amo demais para ser sua
amiga.
CAPÍTULO 45 – O QUE EU PRECISO

Sophia
Estar em minha própria casa é estranho. Nem parece que até poucos meses
atrás, eu morava aqui e esse era meu lar e meu quarto, porque tudo aqui me
parece fora do lugar. Como se eu não pertencesse ao que é realmente meu.
Encaro as paredes pintadas de rosa claro e me viro, vendo a penteadeira que
meu pai fez com tanto carinho e me deu em meu aniversário de dezenove anos.
Miro o meu reflexo lá e suspiro. Meus olhos estão inchados, há bolsas embaixo
deles e uma tristeza tão grande que é impossível disfarçar, até mesmo para mim.
Meus olhos nunca mentiram. Eles são o espelho da minha alma, e nesse
momento, eu vejo o quanto ela está vazia.
Passo os dedos pelos móveis, e vagarosamente vou até a cama. Pego o ursinho
que Alexandre trouxe de uma de suas viagens e o aperto contra minha bochecha,
inalando seu cheiro: tem o perfume dele, colocado ali propositalmente. Quando
ele me entregou, disse que tinha espirrado o perfume para eu dormir enquanto
ele estivesse viajando.
Ironia pensar o quanto preciso desse ursinho agora.
Coloco-o em cima da cama e me viro para minhas malas, dizendo a mim
mesma que preciso colocar tudo no lugar. Esse lugar havia deixado de ser meu
lar, mas ele voltará a ser, é só questão de tempo até eu me acostumar. Fui eu
quem tomei essa decisão, e eu preciso lidar com todas as consequências dela,
mesmo que eu sofra.
Ouço uma batida na porta e me viro, vendo minha mãe parada ali. Ela deveria
estar trabalhando.
— Precisa de ajuda? — Ela sorri de forma fraca, e entra. Dou um sorriso torto
e abro os braços, pedindo carinho. Ela vem até mim, se abaixa e deita seu rosto
em meu colo.
— Preciso da minha mãe — eu digo entre lágrimas.
— Estou aqui, filha. Sempre vou estar.
Absorvo esse momento e consigo sorrir, porque mesmo em meio à
tempestade, é maravilhoso ouvir isso novamente. Minha mãe está comigo, então,
de repente, não me sinto tão sozinha.
— Você não deveria estar trabalhando?
— Ele me pediu para vir ver você. Assim que você saiu, ele me chamou e me
disse para vir embora — ela ergue os olhos e continua, meio receosa, sem saber
se deve ou não falar: — Filha, ele está destruído.
— Eu também, mamãe. Mas todo mundo vai sobreviver — digo, meio incerta
se isso é realmente verdade. Pensar nas noites sem dormir em seus braços, e nas
manhãs sem tomar café em sua companhia faz meu coração se encolher um
pouquinho dentro do peito.
— Eu sei que vai meu amor. Vocês dois já passaram por poucas e boas — ela
se levanta e olha ao redor, fitando minhas malas. — Quer por tudo isso no lugar?
Eu estou de folga mesmo.
Balanço a cabeça em negativa e dou um sorriso amarelo. Estou cansada
demais para mexer em tudo isso. Agora eu só quero minha cama, meus
travesseiros e algumas horas sem pensar em nada.
— Então eu vou fazer alguma coisa para você comer — penso em retrucar que
não estou com um pingo de apetite, mas não faço isso. Ela só quer estar presente
e mostrar que pode cuidar de mim, sem dizer que me avisou ou qualquer coisa
do gênero, o que é uma evolução enorme. É um momento para ser apreciado,
então tiro forças de algum lugar dentro de mim e sorrio, concordando. — Se
precisar de ajuda, me chama.
— Tudo bem, mãe. Não preciso de ajuda — respondo e no mesmo instante,
André enfia a cabeça no vão da porta do meu quarto e dá um daqueles sorrisos
capazes de iluminar qualquer dia ruim.
— Nem da minha? — Ele diz, e aperta os olhos, entrando com toda sua
imponência, tornando meu quarto ainda menor pelo seu tamanho.
— André, como você sabe que… — então paro e me viro para minha mãe: —
Mamãe, não acredito que você já foi fazer fofoca. O André vai matar o
Alexandre! — Me viro para ele, apreensiva — Por favor, não mate o Alexandre.
— Eu não fui fazer fofoca! — Ela se defende, ofendida e então relaxa os
ombros, exatamente como faz quando se explica de algo que não devia ter feito.
Eu quase posso ver sua guarda baixando. — Enfim, eu não fui fazer fofoca. Não
intencionalmente. Eu só liguei para o seu melhor amigo, Sophia. Na verdade, seu
único amigo, filha. Você precisa dele.
Ele coloca as duas mãos no bolso e me encara, achando graça daquilo, e
minha mãe sai apressada do quarto, fechando a porta atrás de si, correndo da
bronca que ela sabia que tomaria.
Ficamos alguns segundos em silêncio, até que ele se abaixa e me abraça e eu
desabo, porque com ele eu posso. Choro em seu ombro por longos minutos,
molhando sua camisa jeans, borrando o tecido com meu rímel e meu batom. Sei
que ele não se importa com isso, porque a cada soluço meu, ele me aperta mais
contra si e por um segundo, eu me sinto realmente acolhida.
Sinto-me realmente em casa.
— Você tem razão — ele quebra o silêncio e eu me desvencilho dele sem
entender. Quando ele percebe a confusão em meu olhar, ele diz resoluto: — Eu
vou matar ele.
Engasgo uma risada, e seguro suas mãos.
— Pelo amor de Deus, André! — Abaixo a cabeça. — Foi uma decisão
minha. Seu irmão não tem culpa de nada.
— Você quer mesmo que eu acredite nisso? Você é apaixonada por ele desde
os quinze anos, Soph. Para você ter deixado aquela casa, ele com certeza fez
uma idiotice épica. Colossal.
Eu sei que ele só quer me defender, mas preciso que André também acredite
na minha força e na minha capacidade de me defender sozinha. Ele faz pelo meu
bem, pela minha felicidade, mas eu não posso deixar que ele seja injusto com o
próprio irmão.
— André, ninguém tem culpa de não corresponder aos sentimentos dos
outros. Ele não fez nada, ele só quis fazer as coisas entre nós dar certo pelos
meios errados… Mas acredite em mim, seu irmão sempre me tratou com tanto
carinho e respeito. Ele não tem culpa de nada.
— Tem sim, Sophia. Quando a gente sabe que alguém nos ama e nós não
sentimos o mesmo de volta, e mesmo assim damos esperança de algo, nós temos
culpa sim. Foi o que ele fez, e eu o avisei milhares de vezes sobre isso. Que se
ele não estivesse preparado para um relacionamento, que não começasse um sem
ter certeza. Ninguém merece pagar pelas merdas dos outros — ele fala
enfaticamente, e eu sei que ele está apenas defendendo sua verdade. Mas a nossa
verdade nem sempre é a única no mundo. Há diversos caminhos para um mesmo
destino, e cada um escolhe qual tomar na caminhada da vida. É aí que erramos e
acertamos, e consequentemente, aprendemos.
Alguns corações machucados pela estrada são inevitáveis.
— Não julgue algo que você não vive na pele, Dé — uso seu apelido de
infância, e ele sorri quando o ouve, porque nos remete à épocas simples, onde
éramos tão felizes e sem preocupações. — O Alexandre queria me amar, e eu via
isso em cada ato dele, em cada coisa que ele me falava, em cada olhar que ele
me lançava. Mas a Júlia foi o amor da vida dele. A mãe da filha dele. Foi quem o
coração dele escolheu sem precisar forçar nada. É difícil se desvencilhar disso
assim tão fácil, e o erro foi um pouco meu também, em me deixar aproximar
assim, tão cedo. O Alexandre queria sentir de novo, queria ter alguém, e eu
entendo isso. Ele não fez por egoísmo ou maldade, ele fez por desespero. Só que
quando ele finalmente decidiu dar uma chance de seguir em frente, ele se
deparou com algo ainda maior: a culpa. Imagina você começar a gostar de
alguém e sentir crescer dentro de você, como uma planta trepadeira, o
sentimento de estar sendo infiel ao amor que você jurou ao pé do altar, perante
Deus? Imagina sentir que você está sendo infiel a quem te amou até o último
suspiro? — Quando ele olha para baixo, um pouco envergonhado pelo que o fiz
enxergar, eu continuo: — Eu fui embora sim, mas por saber do que eu preciso.
Só que eu jamais culparia seu irmão pelo que ele precisa. E no momento, ele
precisa primeiro ficar em paz com ele mesmo.
— Ele gosta de você, eu conheço meu irmão. Ele gosta mesmo de você, Soph.
Sorrio.
— Eu nunca duvidei disso, Dé. Mas enquanto ele não resolver suas questões
pessoais, enquanto o medo dele ainda for maior que o sentimento que ele tem
por mim, nós só vamos andar para trás, e eu não quero isso para nenhum de nós
dois. Nem para mim, e nem para ele.
— Eu estou aqui, você sabe né? — Ele diz, apertando minhas mãos.
— E tem como não saber? Você nunca me deixa esquecer. É o melhor amigo
que alguém pode ter — sorrio, porque é isso que a presença de André faz: ela me
traz paz; faz-me sentir amada. Minha mãe acertou ao ligar para ele, mesmo que
no fundo eu ainda tema que ele faça alguma coisa com Alexandre. Só Deus sabe
como esses dois podem ser esquentados. Quando ele sorri com minhas palavras,
decido perguntar sobre ele. Envolta em meus próprios problemas, quase me
esqueci dos dele: — E as coisas com Ariela? Como estão?
— Ela vem daqui alguns dias e pretendo conversar com ela e resolver isso de
uma vez, seja como for. Mas eu sei que isso já acabou, Soph. Não há mais
qualquer indício de que ela queira salvar esse relacionamento, e eu só tento
entender onde eu errei com ela, porque dói; dói para caralho estar no escuro
assim.
— Você não errou com ninguém, André. Você é um dos melhores seres
humanos que eu já conheci na vida — eu digo, porque é verdade e eu preciso
que ele também entenda isso —, e se ela te perder por burrice, eu tenho dó de
quando a ficha dela cair e for tarde demais para se arrepender.
— Do mesmo jeito que eu tenho dó do Alexandre quando isso acontecer. Se é
que já não aconteceu — ele se levanta e volta a colocar as duas mãos no bolso.
— Agora eu preciso trabalhar, e graças a Deus que Alexandre voltou de uma
viagem ontem e não precisa voar hoje. Nem sei como ele iria fazer isso.
— Tudo bem, vai lá — sorrio.
— Você vai ficar bem, Soph? — Pergunta, preocupado.
— Eu vou — aceno com a cabeça, mesmo sem saber se isso é realmente
verdade. Eu só preciso que ele não tenha mais nenhum problema com que se
preocupar.
— Ótimo, a gente vai se falando então — ele se abaixa, beija meu rosto e
quando se ergue, diz de uma forma que me faz realmente acreditar que amigos
são anjos na terra: — Eu te amo muito, encrenca.
Dou risada. Talvez a primeira risada verdadeira do dia.
— Eu também te amo, Dé — respondo com os olhos cheios de lágrimas, mas
dessa vez, de gratidão. O sentimento de ser amada gratuitamente é o melhor que
existe. É emocionante. Sem cobranças, sem exigências. Apenas um sentimento
verdadeiro. — E, por favor, me promete que não vai fazer nada? Promete que
não vai brigar com o Alexandre?
Ele demora um pouco até balançar a cabeça em positivo, o que me deixa mais
aliviada.
— Prometo.

Alexandre
A campainha toca e eu jogo a cabeça para trás, no encosto do sofá. Se eu
ignorar, se eu fingir que não é comigo, vão me deixar em paz.
Eu apenas quero paz.
Liguei para minha mãe e pedi que ela buscasse Lilith na escola. Sophia não
está aqui e ela vai me encher de perguntas sobre isso, e eu não estou no melhor
clima para explicar para minha filha o quanto fui burro de perder a melhor
pessoa do mundo. Quando eu estiver melhor, certamente vou conversar com ela,
mas não hoje.
De jeito nenhum hoje.
A campainha toca mais uma vez, e mais uma, e mais uma.
Insistentemente.
O ser humano do outro lado da porta certamente quer me enlouquecer. Coloco
o copo de uísque intocado na mesinha de centro e me levanto. Eu tive uma
enorme vontade de beber até esquecer meu nome quando ela virou as costas e
me deixou, mas nem isso eu consigo fazer mais. Não consigo fazer porque sei o
quanto ela odeia quando eu bebo, e mesmo com ela longe, não quero
decepcioná-la mais uma vez. Minha cota já deu.
A campainha continua tocando e eu me arrasto até a entrada da casa. Abro a
porta já pronto para xingar quem quer que fosse o irritante por trás disso, mas
sequer tenho tempo. Um soco rápido e incrivelmente forte me acerta e eu
cambaleio para trás, segurando o canto da boca. Quando ergo os olhos, me
surpreendo ao ver meu irmão ali, com os olhos cheios de pura fúria.
— Eu te avisei, não avisei, porra?! — Ele pergunta, enquanto segura a gola da
minha camiseta e me chacoalha. Sempre fui o mais forte dos dois, mas nesse
momento, meu irmão parece ter triplicado de tamanho. — Você já devia saber
que eu sou um cara de palavra.
Ainda estou confuso, mas quando ele me solta e eu penso em me defender, ele
me confunde mais ainda com uma atitude que me pega de surpresa: ele me
abraça. Com tanta força e tanto amor que é impossível negar os sentimentos que
me atingem, então eu apenas o abraço de volta. Ele está aqui para me punir,
exatamente como disse que faria se eu a magoasse, mas também está aqui para
ser meu irmão e me dar apoio. Esse é André, a justiça em forma de pessoa. O
amor em forma de ser humano.
— Você é um idiota, Alexandre. Puta que pariu, você é um idiota.
Afundo meu rosto em seu ombro e deixo as lágrimas virem, enquanto me
agarro a ele.
Porque nem mesmo um soco na boca dói tanto quanto a verdade.
CAPÍTULO 46 – O AMOR É A ÚNICA COISA QUE IMPORTA

Alexandre
— Caralho, minha boca tá doendo viu, seu pau no cu! — Massageio o canto
esquerdo do rosto e André se vira, me olhando com desdém. Arrependimento é
algo que não se vê em sua expressão, e eu seria muito inocente se esperasse isso.
Conheço meu irmão, e como ele mesmo pontuou, é um cara de palavra.
— Acredite em mim, minha vontade era fazer muito mais do que isso. Mas eu
prometi para a Soph que ia aliviar. Bom, na verdade, eu prometi que ia perdoar e
não fazer nada, mas às vezes eu minto — ele diz e eu não ouço mais nada de
suas gracinhas. Só quero saber como ela está.
— Ela te ligou? Foi assim que você soube de tudo?
Ele joga a cabeça para trás e pega meu copo cheio de uísque, virando-o na
boca, sem pedir permissão. Às vezes eu sinto que tem algo incomodando André,
vinte e quatro horas por dia, mas ele não se abre. Por mais que eu queira saber o
que é, não insisto, porque meu irmão mais novo não gosta de ser pressionado. A
única pessoa que consegue tirar qualquer coisa dele é Sophia, mas bem, ela não
está mais aqui.
— Cilene me ligou. E eu fui lá ver ela.
Ele a viu? Adianto-me no sofá, ouvidos a postos.
— Como ela está?
— Como você acha? Destruída, assim como você. Ela tenta disfarçar e se
fazer de forte, mas por dentro está quebrada — ele tamborila os dedos compridos
nos braços da poltrona em que está sentado, pensativo, como se pesasse as
palavras que vai me dizer: — Eu não fiquei muito tempo. Inventei para ela que
ia trabalhar e vim aqui te ver. Saber como você está.
— Com a boca doendo. Tomei um soco, sabe? — Resmungo, porque não
posso deixar passar a ironia, mas sei ao que ele se refere, então continuo: — Eu
estou na merda, André. Mas foda-se como eu estou, porque eu mereço. Eu
mereço cada lágrima que eu derramar. Quero saber dela. Você acha que tem
alguma possibilidade dela voltar atrás? — Pergunto esperançoso.
— Claro que tem — André diz e meu coração acelera. — O dia que você virar
gente, tem sim, porque ela te ama de um jeito que poucas vezes eu vi alguém ser
amado. Mas até lá, Alex, sem chance. Sophia quando decide alguma coisa, não
muda de opinião tão fácil, mesmo que isso a mate por dentro.
Dessa vez, quem se joga no sofá sou eu. Suspiro alto e olho para os lados,
quieto por alguns instantes, antes de finalmente falar.
— Talvez seja melhor assim. Talvez seja melhor que ela fique longe de mim e
seja feliz. Ela merece alguém que não tenha essa bagagem fodida que eu tenho.
— Ah, claro. Rodrigo é solteiro, sem filhos e não perdeu nenhuma mulher.
Pontos para ele.
Eu me viro para meu irmão tão rápido, que meu pescoço só falta sair do
corpo, e então ele ri, debochado. André é poliglota: ele fala português, inglês,
espanhol e ironia.
Jogo a almofada mais próxima a mim com força em sua cara, e ele a apara
antes que o acerte.
— O que foi? É uma verdade, goste você ou não. — Então ele para de rir e me
olha profundamente, daquele jeito que ele faz quando vai me fazer engolir um
fato.
— Ele a deixou em uma cadeira de rodas e sumiu por seis anos — eu digo,
caso meu irmão não se lembre, enquanto ele me olha sério por tempo o bastante
para eu saber que iria ouvir um sermão. Tenho que me segurar para não me
encolher no sofá como uma criança que sabe que fez arte.
— É, mas ele voltou e pediu perdão, Alex — antes que ele terminasse de
dizer, eu já havia entendido o recado: — Então, seja mais rápido do que ele.

Alguns dias depois.


Sophia
Os dias passavam de forma lenta, quase dolorida. Eu não tinha nenhuma
notícia de Alexandre, porque eu não as procurava.
No terceiro dia minha mãe quis contar quão miserável ele estava, mas eu não
quis ouvir. André às vezes tenta puxar assunto, mas eu corto, porque sei que se
eu souber qualquer coisa sobre ele, vou me arrepender e querer voltar atrás, e eu
não posso fazer isso, por mais que tudo dentro de mim grite para que sim.
Por mais que eu sinta falta dele todos os minutos e segundos do dia, eu sei que
estou fazendo o certo.
Explicar para Lilith o que havia acontecido entre nós foi a parte mais difícil,
mesmo assim eu priorizei a verdade, e no fim das contas ela entendeu. Por duas
ou três vezes ela me disse que pediu ajuda da mãe para que eu e o pai dela nos
acertássemos, mas segundo ela, sua mãe disse que dessa vez, era seu pai que
deveria consertar a bagunça que havia feito. Como ele não havia entrado em
contato nenhum dia desde que eu fora embora, eu sabia, essa bagunça estava
longe de ser consertada, e quanto mais cedo eu aceitasse isso, mais fácil seria.
Nesse tempo em que estou em casa, procurei informações sobre o vôlei
sentado, a modalidade do esporte para para-atletas, e até encontrei um time que
treinava não muito longe de casa. O técnico disse que eu era bem vinda para um
treino, e eu estava me programando para tentar. Por muito tempo, jogar vôlei
fora minha vida, e quem sabe o esporte não me devolvia a vontade de viver
plenamente? Eu devo tentar.
Eu também me inscrevi em um site de palestrantes. Dentro de mim, sentia que
minha história tinha de ser contada. Que as pessoas precisavam saber que tudo é
possível quando se tem vontade e persistência, e que a paciência e a fé são os
ingredientes principais para se vencer qualquer desafio na vida.
Se eu conseguir tocar uma pessoa só que seja com a minha trajetória e luta, já
estarei feliz. Quero que as pessoas saibam que é possível viver depois de uma
tragédia, e que as mudanças, por piores que possam parecer a princípio, podem
sim trazer algo de bom para as nossas vidas. Só basta ter a vontade de enxergar.
André traz Lilith para que eu veja quase todos os dias, exceto quando ele está
viajando. Aos poucos, ela está se acostumando com minha ausência na casa, mas
há dias como hoje em que ela insiste em falar do pai, mesmo que eu não queira
saber nada. A questão é que para ela, eu não posso pedir silêncio.
— Ele tá muito tisti, Sosô. Igual quando a mamãe foi embora — ela se aninha
em meu colo e descansa a cabeça em meu ombro. Seu semblante está
desanimado, e por mais que eu tente não pensar nisso, minha cabeça diz que
todo esse sofrimento é minha culpa —, mas a mamãe não pode voltar, e você
pode, mas não quer. E eu acho que isso é até pior.
— Meu amor, não é que eu não queira… — Eu tento começar a explicar, mas
me desespero, porque, pela primeira vez, não sei como conversar com meu
anjinho. Não quero magoá-la, mas também não posso falar a verdade para ela.
André percebe meu desespero e desencosta da parede da cozinha, vindo se
ajoelhar ao meu lado, Ele segura a mão de Lilith, fazendo-a olhar para ele, e fala
com todo amor que tem pela sobrinha:
— Princesa, lembra quando o tio André te disse que certos assuntos só os
adultos podem resolver? — Ela acena a cabeça, concordando. — Então, esse é
um deles.
— É conversa de gente grande? — Ela pergunta tristonha e ele concorda.
— Sim. A única coisa que você precisa saber é que seu pai te ama, assim
como a tia Soph. Isso nunca vai mudar, entende? O amor deles vai ser sempre o
mesmo, e o meu também.
— Tá bom, tio Andé — ela concorda, mas logo em seguida solta algo que faz
meu coração se desmanchar —, mas a Soph não é minha tia. Ela é minha mãe.
Mesmo que ela não namore mais o papai, ela me disse que é minha mãe puiquê
ela me ama.
Aperto-a em meus braços e beijo seu rosto, dizendo sem palavras o quão certa
ela está. Sou sua mãe. Serei para sempre sua mãe, mesmo sem ter seu sangue,
mesmo que isso não envolva eu e seu pai juntos.
O amor basta.
— Você tem razão, meu amor — André diz e então me encara, deixando claro
que ele não falava só de mim e de Lilith: — Em alguns casos, amor é a única
coisa que importa.
[…]
Meu pai leva Lili para ver o canteiro de girassóis, então eu passo um café
fresquinho para André. Quando nos sentamos à mesa, ele tamborila os dedos na
madeira, nervoso, e eu os paro colocando minha mão por cima da sua.
— Vai, desembucha.
— O que? — Ele ergue o olhar e eu rio com sua total falta de jeito em
disfarçar as coisas.
— O que está te agoniando, vai, me conta. Ariela veio no final de semana?
Ele suspira e coloca a xícara de volta na mesa, passando as duas mãos no
rosto.
— Sim. Veio.
— E aí? — Eu pergunto, mas a resposta é óbvia e está estampada na cara do
meu amigo.
— Acabou, Soph. Acabou, e de um jeito tão ridículo. Se você visse como ela
foi fria, como ela foi… Eu nem sei explicar. Sequer parecia ela. Foi como se eu
não tivesse sido nada, como se todos os anos que passamos juntos fossem dias
— ele balança a cabeça e sua voz embarga. — Ela disse que sequer sabe se um
dia já me amou.
Oh meu Deus.
— André, eu sinto muito. Sinto mesmo — aperto sua mão entre as minhas. —
Mas eu sei que você vai superar isso e ser muito feliz. Você merece. Você só
merece as coisas boas do mundo.
— Você também, Soph. Você pensa que eu não estou vendo? Você está até
mais magra. Você está comendo direito?
— Não estamos falando de mim aqui, estamos falando de você, e eu sei que
você está sofrendo como um cachorro porque é extremamente apaixonado por
ela — tento me desvencilhar, mas eu já deveria saber que com André, as coisas
não funcionam assim.
— Falar de mim não vai adiantar nada, muito menos mudar as coisas. Acabou,
Soph. Acabou porque ela não me ama, e se ela não me ama, meu amor vale de
que? Já vocês dois… O Alexandre está um caco e nem disfarça, e você fica se
fazendo de forte até quando não precisa — ele se adianta e segura meu queixo,
com aquele jeito carinhoso que o André tem com pouquíssimas pessoas, e sorte a
minha ser uma delas. — O que eu disse para Lilith é verdade. Em alguns casos,
o amor é a única coisa que importa. Vocês se amam. Resolvam isso, porra.
— Seu irmão não me ama, André.
— Ama. Meu irmão te ama e não é pouco. Ninguém sofre daquele jeito por
alguém que não ama — ele diz com tanta convicção que faz meu coração pular,
e eu quase acredito. — Acredite em mim quando eu digo que o idiota só não
percebeu isso ainda.
CAPÍTULO 47 – A FALTA QUE ELA ME FAZ

Alexandre
Chego em casa tarde da noite e jogo o quepe no sofá, de qualquer jeito. Vou
até a cozinha em busca de um copo de água e vejo o jantar em cima do fogão,
com um bilhete de Cilene dizendo que é só colocar no micro-ondas. Suspiro alto,
e percebo o quanto minha vida tem sido vazia desde que ela se foi: eu acordo,
trabalho, faço todas as refeições sozinho, fico um pouco com Lilith e durmo. No
dia seguinte, repito tudo ainda mais desanimado do que no dia anterior. Até
Lilith, que costumava me animar, tem estado tão cabisbaixa quanto eu.
Sophia era luz nessa casa, e desde que ela foi embora, eu vejo tudo cinza.
Lilith tem passado bastante tempo com minha mãe. Eu me recuso a contratar
outra babá e ela também não quer nem saber da ideia, que foi rechaçada de
primeira.
Quando André está de folga, ele leva minha filha para ficar com Sophia, e ela
sempre volta feliz por ter passado o dia com quem tanto ama. Ela sempre me
conta como Sophia está e eu tenho vontade de gritar de agonia por saber que ela
está como eu, apenas levando tudo com a barriga. Minha vontade é entrar em
contato, bater na porta da casa dela, fazer qualquer coisa, mas eu tenho medo.
Mesmo tendo cada vez mais certeza do meu sentimento por ela e de como fui
burro por deixá-la ir, morro de medo de magoá-la mais uma vez, e eu sei que ela
não merece.
Sim, aconteceu o clássico: perdeu para enfim dar valor.
Batam palmas para a minha burrice.
Não que eu não desse valor à ela antes, longe disso. Eu sei que sempre a tratei
com respeito, carinho e delicadeza enquanto estávamos juntos como um casal,
mas eu enrolei muito para perceber o quanto a presença dela era crucial para
minha felicidade. Demorei a perceber que na verdade, ela era toda a minha
felicidade. Que todo o meu crescimento e amadurecimento desde a morte de
Júlia foi apenas por causa dela, e de sua sabedoria e sensatez sem igual.
A questão é que agora eu sei que eu a amo; com sua ausência, isso ficou claro
como o dia para mim.
Diferente do que eu pensava, eu não amo só suas qualidades ou partes dela: eu
a amo por inteiro. Não a ter ao meu lado me mata um pouco a cada dia, quase
tanto quanto ter ficado sem Júlia. A única diferença entre a ausência das duas é
que com Júlia eu sabia que era um adeus definitivo, e com Sophia eu nutro a
esperança infantil de tê-la de volta.
Eu só não sei como fazer isso.
Tento reunir coragem para fazer o que preciso, mas ela não vem nunca. Eu
passo dias e noites acordado, nem sempre resistindo à vontade de enfiar minha
cara num litro de uísque a fim de afogar as mágoas, e principalmente, minha
burrice lá.
A verdade é que eu sei que beber, apesar de aliviar a dor, é um alivio
temporário; não resolve nada.
Não resolveu quando Júlia se foi e não vai resolver a partida de Sophia
também.
[…]
Alguns dias depois.
Acordo mais cedo do que o normal e fico andando pela casa. Vejo Cilene
chegar e preparar o café, então acordo Lilith para ir para a escola.
Depois de deixá-la pessoalmente na porta do colégio, volto para casa e olho
para os lados, as paredes me encarando, acusadoras. Desde que fiquei sozinho
novamente aqui, eu tenho pegado todos os trabalhos que aparecem na
companhia. Afogar-me no trabalho pareceu uma boa alternativa até meu superior
perceber que eu estou mais cansado do que deveria e resolver me dar alguns dias
de descanso. Esses dias têm sido meu inferno na terra, porque eu simplesmente
odeio como cada minuto nesse lugar me faz lembrar que ela não está mais aqui.
Sento-me na cadeira e coloco uma xícara de café puro, virando-o na boca de
uma vez só. O líquido, quente e amargo como eu gosto, desce rasgando, e eu
fecho os olhos um minuto, que se tornam horas dentro da minha cabeça. Cilene
coloca um pão caseiro na minha frente, quentinho, mas eu não o toco, porque há
dias meu apetite simplesmente desapareceu. Ela percebe, e eu a conheço bem o
bastante para saber que ela está rodeando porque quer me falar algo.
Abro a guarda e puxo uma cadeira ao meu lado, pedindo sem palavras para
que ela se sente comigo. Diferente do Alexandre que eu fui quando Júlia faleceu,
que se isolava e queria ficar sozinho, agora eu anseio por ter alguém para me
ouvir choramingar o quanto estou arrependido por tê-la deixado escapar por
entre meus dedos.
Quando ela o faz, eu não penso duas vezes antes de desafogar o que estou
sentindo.
— Como ela está, Cilene? — Eu pergunto meio desesperado, e ela ri sem
muito humor.
— Igual a você; é como se fossem o espelho um do outro. Parece um zumbi
pela casa. Vocês estão definhando e eu não aguento mais ver isso, porque eu não
tenho folga. Eu vejo você se arrastar o dia todo por aqui, e quando vou para casa,
lá está ela com o olhar perdido, com a mente longe. Pelo amor de Deus, tenham
dó de mim.
Sei que é egoísmo pensar isso, mas uma pontada de esperança me preenche ao
ouvir que ela também não está bem, e eu sorrio para Cilene, que sabe muito bem
o que eu estou pensando. Eu me sentiria muito pior se não houvesse nada a que
me agarrar. Eu ficaria muito mais devastado se tivesse a confirmação de que ela
seguiu a vida tranquilamente, me deixando de vez para trás.
É mesquinho, eu sei, mas assim eu posso sentir esperança.
— Você a ama, meu filho? — Ela pergunta, segurando minha mão com
carinho. Ao contrário do que eu pensei, Cilene não está aqui para dizer que nos
avisou, que cantou essa bola. Ela está preocupada, com os dois, e isso é lindo de
ver. O que ela disse para mim em nossa conversa é a mais pura verdade, e agora
consigo ver isso claramente: ela ama do jeito que a ensinaram a amar, mas isso
não quer dizer que ela ame menos. Arrisco a dizer que é o contrário; ela ama
demais.
— Muito, Cilene. Mas só percebi quando ela foi embora, e isso é ridículo, não
é? — Quando ouço minhas palavras em voz alta, chego a uma nova conclusão,
uma que, talvez, eu não quisesse reconhecer antes. — Na verdade, acho que, no
fundo, eu já sabia que a amava, mas o fato de tê-la aqui, tão acessível a mim,
transformava tudo em uma certeza: eu não precisava admitir para mim mesmo
que meu coração amava de novo, porque mesmo que eu não fizesse isso, ela
continuaria aqui. Eu tinha vergonha de ter conseguido amar outra pessoa tão
rápido, Cilene, e agora eu tenho vergonha de tê-la deixado ir.
— Eu entendo, eu realmente entendo. Você e a Dona Júlia eram um casal de
cinema, e eu imagino que sentir algo por outra pessoa deva ser difícil de
processar. A Sophia sabe também. Mas resolva isso, Alexandre. Ver você sofrer
me dói tanto quanto vê-la sofrer. Mesmo sendo dois adultos teimosos, vocês são
minhas crianças.
— Eu tenho tentado ligar, mas ela nunca me atende. Não responde minhas
mensagens, e acho que eu estou embaraçado demais para vê-la pessoalmente.
Acho que ela não vai acreditar que eu finalmente descobri o quanto preciso dela.
Ela vai pensar que eu só estou fazendo isso para trazê-la de volta, seja pela
minha carência ou pela tristeza da Lilith. Não quero que ela pense novamente
que eu a quero pelos motivos errados ou sequer que ela volte pelos motivos
errados. E pensar nisso me faz sentir-me amarrado no lugar. Preso, sei lá. Não
consigo dar um passo sem ficar remoendo tudo o que pode acontecer. E se as
coisas ficarem muito piores? E se eu perder ela de vez?
— Ela é muito determinada, Alexandre. Desde sempre minha menina foi
assim, e só Deus sabe como eu sofri com isso, porque quando ela encasqueta
com uma coisa, nem a segunda vinda do Messias a faz mudar de ideia. Mas se
você estiver sendo sério sobre o que sente, ela vai saber a verdade quando olhar
nos seus olhos, filho. Seja determinado também, assim você vai conquistar a
confiança dela novamente. Esqueça um pouco as palavras difíceis, fale com ela
com o coração. Com a Sophia, essa sempre foi a melhor linguagem, e eu sei
muito bem do que estou falando.
[…]
Não consigo mais ficar em casa, é oficial.
Eu não aguento mais ficar sozinho com os meus pensamentos tumultuados e
confusos, então coloco uma calça de malha, enfio os fones nos ouvidos e decido
correr pelo condomínio. É isso ou acabar com aquela droga de uísque enquanto
afundo o piso da sala andando de um lado para o outro, e assim perder o resto do
dia em autopiedade e comiseração.
Quando ganho a rua, sinto o vento soprar em meu rosto e fecho os olhos,
tentando esvaziar a mente. Corro muito. Corro até não ver mais imagens do
sorriso de Sophia, nem flashes das nossas noites de amor. Até não ver mais seu
rosto molhado pelas lágrimas quando ela me disse que estava indo embora.
Corro até não ouvir mais sua voz cantando surpreendentemente mal pela casa,
nem o barulhinho de sua cadeira que não sai dos meus pensamentos. Corro até
todos os meus músculos queimarem em exaustão e meus pulmões arderem como
se eu tivesse bebido querosene. Corro até sentir minha pele tão molhada que
ninguém mais poderá notar as lágrimas se misturando ao suor e nem os olhos
vermelhos pela necessidade de colocar toda a tristeza para fora de alguma forma,
seja castigando meu corpo ou minha alma.
Corro até meu coração começar a doer pelo exercício, e não mais pela falta
dela.
Quando volto já é quase noite. Lilith foi ao circo com meus pais, e mesmo não
verbalizando o quanto eles merecem, eu sou muito grato pela família que eu
tenho. Eles sabem minhas necessidades antes mesmo de eu pedir por ajuda, e
sempre deixam claro que confiam em mim e que tudo não passa de uma fase.
A questão é que eu não aguento mais essa fase: essa fase de não saber nada, de
sequer me entender. Essa fase de amar tanto uma pessoa e mesmo assim mantê-
la afastada porque sei que não sou bom para ela.
Eu tenho tentado pedir um sinal a Júlia, mas ela parece ter se afastado de mim.
Lilith não compartilha mais suas conversas, e mesmo que ela negue, sei que
ainda vê a mãe. Talvez ela só não queira que eu saiba o que minha mulher pensa
da minha covardia. Sinceramente, acho que eu também prefiro não saber.
Com a casa vazia eu tomo um banho, me troco e tento ocupar minha mente
com coisas boas: eu tento ler, tento ver um filme em meu quarto, tento dormir.
Nada surte efeito, então eu decido me entregar à única coisa que amortece um
pouco essa dor em mim.
No caminho para a sala, paro em seu quarto. Ela só levou os pertences
pessoais, que já tinha antes de morar aqui, então eu entro e vejo seu sofá no
canto do quarto, sua cômoda, seus quadros, seu guarda-roupa.
Sento-me na beirada da cama e passo a mão pelo lençol, sentindo a maciez e
me lembrando de quantas vezes dormi abraçado a ela. Se eu fechar os olhos e
inalar bem, quase posso sentir seu cheiro, ainda impregnado em tudo.
Quando finalmente saio de lá, se algo me segurava, agora não segura mais.
Não penso duas vezes: esqueço o jantar e vou até o aparador, despejando o
líquido amarelo num copo, sem gelo nem nada. Viro-o de uma vez, sentindo a
garganta arder pelo contato. É difícil admitir por quantas vezes o álcool me pôs
na cama nesses últimos tempos, mas eu não sou um príncipe mesmo.
Eu sou só a porra de um ser humano, então é isso. Sem julgamentos.
Na quarta dose, ouço a porta se abrir e olho para trás, com a visão já um
pouco embaçada pela bebida e pelas lágrimas.
André me encara sem entender e vem até mim.
— Estou tocando esse caralho de campainha, você não está me ouvindo não?
Ainda bem que eu ando com a merda da chave dessa casa — ele ralha, mas eu o
ignoro. Sem saco para sermões hoje. — Ah, entendi tudo.
E vai começar.
— André, pelo amor de Deus… — Eu até tento, mas ele parece não me ouvir.
Parece não querer me ouvir. Se antes meu irmão não tinha paciência para minhas
idiotices, parece que nos últimos dias tudo se tornou muito pior.
— Já foi enfiar a cara nessa merda. Tá certinho. Vai resolver todos os seus
problemas, com certeza. A Sophia vai voltar correndo quando souber que você tá
fazendo isso.
Explodo.
— Não enche o saco! Você não sabe o que é perder quem se ama, e eu perdi
duas vezes, André! Duas vezes em um ano, porra!
Um olhar de fúria toma seu rosto e antes que eu possa pensar, ele está bem na
minha frente, despejando tudo em mim, com dor e ódio ímpares no olhar.
— Eu não sei? Pois bem, Alexandre. Eu sei sim. A Ariela me deixou, sabia?
Não! É claro que você não sabia, porque eu não te contei. Como sempre, eu te
poupei — diz irado, e eu abro a boca em espanto. O que? Quando? Antes que eu
possa perguntar, ele continua: — Me chutou como um cachorro sarnento depois
de seis anos. Me traiu e debochou de como eu me rastejei para ela ficar. Ela riu
na minha cara! Disse que nem sequer sabe se me amou de verdade um dia. Então
porra, eu sei sim! Mas eu estou aqui, correndo atrás de merda sua, porque eu te
amo, e prefiro guardar a minha dor só para não te ver sofrer, mas você é um pau
no cu! Você é um arrombado arrogante, que não consegue admitir que está
errado uma única vez na porra da sua vida, que ao mínimo sinal de frustração,
enfia a cara em bebida e se fecha no seu mundo, achando que todo mundo tem
que aturar o que você faz — ele mal toma fôlego para falar e eu me surpreendo
com sua atitude, pois André é sempre pacato ao extremo. Irônico e debochado
sim, mas agressivo nunca. — Pois bem, eu não tenho que aturar essa merda!
Nem eu e nem a Sophia, se você quer saber. Eu estou sofrendo por uma pessoa
que não me quer, mas você está fazendo show, sendo que a Sophia te ama! Te
ama pra caralho! E ela já demonstrou isso um milhão de vezes. Então está na
sua vez de fazer algo por ela. E se você não fizer, eu desejo de todo meu coração
que ela nunca mais volte. Se você não fizer, você merece mesmo comer o pão
que o diabo amassou, e eu vou assistir de camarote, com um balde de pipoca na
mão, porque eu cansei. Eu também preciso do meu irmão, também preciso de
ajuda, também preciso desabafar. Eu também estou sofrendo, porra! Então para
de ser tão egoísta e volta a ser gente.
— Eu sinto muito pela Ariela, eu não fazia ideia… — Tento começar a falar,
mas ele ergue a mão, me parando.
— Não quero falar dela, não agora. Quero falar de vocês. O que você vai
fazer? — Sua voz volta ao normal, como se ele não tivesse explodido há poucos
segundos. Parece que ele só queria me mostrar como eu estou sendo idiota.
Conseguiu com maestria, diga-se de passagem.
— Eu não sei o que eu vou fazer! Ela não me atende! Eu ligo, e ela sequer
deixa chamar. Ela ignora a chamada de imediato. Mensagem, ela não responde.
Eu não sei mais o que fazer!
— Ela não vai te atender, Alexandre, seu idiota! Você acha que está lidando
com uma menina, mas ela é uma mulher. Uma mulher forte e determinada. Você
é só uma das coisas que ela pode e vai superar. Então se você não quer perdê-la,
você precisa fazer alguma coisa efetiva, não ficar chorando no sofá como a
criança mimada que parece que você se tornou nos últimos tempos — ele se
levanta irritado e caminha até a porta. Provavelmente nem vai fazer o que veio
fazer, e está indo embora bravo comigo, mas eu mereço. Mereço todos os
sermões do mundo e todas as broncas, porque eu sou tudo o que ele falou: sou o
idiota mimado, o péssimo irmão, o covarde que sequer conhece quem diz amar.
Eu sou tudo isso sim, mas também sou o cara que é completamente apaixonado
pela mulher que deixou escapar, então logo depois que André sai pela porta, eu
pego as chaves do carro e sequer me troco. Está na hora de fazer alguma coisa.
E eu não vou deixar para depois. Vou fazer agora mesmo.
CAPÍTULO 48 – PARA TODO RECOMEÇO, HÁ ANTES UM FIM

Sophia
Já passa das dez da noite quando entro para tomar um banho e me preparo
para me deitar e enfim descansar. O dia havia sido longo e cansativo, eu
finalmente havia ido ao meu primeiro treino de vôlei sentado. No começo, fiquei
apenas observando os times jogarem, tentando entender a lógica, até que um dos
treinadores percebeu que eu estava perdida, se sentou ao meu lado e começou a
explicar todas as diferenças da modalidade para o voleibol comum.
Basicamente, as regras são as mesmas do vôlei comum, o que me fez respirar
de alívio, já que eu conhecia todas elas de cor e salteado. As únicas diferenças de
uma modalidade para a outra, é que no vôlei sentado você pode bloquear o
saque, e quando você estiver com a bola, não pode levantar com os joelhos, nem
tirar o glúteo do chão, o que eu provei na prática ser um sacrifício e tanto, mas
nada que bons treinos e um pouco de paciência não resolvam. A quadra e a rede
também são menores, para ficar mais fácil a locomoção dos jogadores e para
facilitar o alcance do saque.
De início, foi difícil me acostumar ao ritmo, afinal, fazia anos que eu não
tinha contato com o esporte, além do fato de que é realmente diferente do que eu
tinha costume, porque enquanto no vôlei comum você usa o corpo todo, no vôlei
sentado sua força precisa estar nos membros superiores: braços, ombros e
abdômen devem estar fortalecidos ao máximo, pois é exigido muito deles
durante os jogos.
Apesar de ser um esporte que já foi difundido em mais de cinquenta países,
aqui no Brasil ainda é algo relativamente recente, principalmente quando se trata
da equipe feminina. O treinador me explicou que o time feminino só teve sua
primeira participação nas Paraolimpíadas de Londres, em 2012, então poucas
pessoas tem conhecimento da existência e da importância desse esporte
inclusivo.
Por um momento eu achei que não conseguiria me adaptar aquilo, mas quase
no fim do treino, eu já estava pegando o jeito, e tinha feito até amizade. Dei
risada, desafiei minha força e todos levaram meu primeiro jogo como uma
adaptação, então não precisei ficar comparando minha atuação com os demais
jogadores. Senti-me acolhida, adorei me sentir parte de algo importante, e
pretendo voltar depois de amanhã, quando é o próximo treino.
Já estou ansiosa. É maravilhoso sentir toda aquela emoção de se estar em uma
quadra. Emoção que há muito tempo eu não sentia.
Saio do chuveiro e visto meu pijama. Faço a transferência para a cama e
suspiro de alívio ao perceber, mais uma vez, como é mais fácil fazer isso com a
cadeira nova. Pego meu creme corporal e começo a passar pelo corpo, e as
lembranças de Alexandre deslizando a mão sobre mim, espalhando o produto e
dizendo como gostava do meu cheiro me invadem, me fazendo sentir uma
pontada incômoda de saudade.
Como um carma ou um castigo, qualquer mínima coisa me faz lembrar dele.
Termino de fazer o que preciso e então me ajeito, puxando o lençol sobre
mim, rezando para que dessa vez, depois de um dia tão cansativo, o sono
finalmente resolvesse me visitar. Porém, como se meu coração chamasse pelo
dele, antes que eu consiga desligar a luz do abajur para enfim tentar dormir, ouço
a campainha tocar freneticamente, e então vozes: as vozes da minha mãe, do
meu pai e de Alexandre.
Alexandre está aqui? Uma hora dessa?
Antes que eu consiga sequer sair da cama, ouço um toque na porta e minha
mãe entra, me olhando como se pedisse desculpas, mas também dando de
ombro, como se achasse que aquilo ali demorou tempo demais.
— Acho que é melhor você falar com ele.
A princípio não entendo sua cautela, mas quando ele finalmente entra logo
atrás dela, eu nem preciso que ele abra a boca para saber o que ele andou
fazendo: ele estava afogando sua suposta culpa na bebida. Não é nada demais,
apenas um brilho diferente em seus olhos, e eu já consigo saber as emoções que
o prendem; Alexandre sempre fica com um brilhinho diferente quando bebe,
mesmo que seja apenas uma taça de vinho.
Respiro fundo e faço um sinal com a mão para minha mãe sair e fechar a
porta. Deslizo as pernas para fora da cama e fico ali, apoiada em meus braços
doloridos pelo esforço de mais cedo, me segurando firme na beirada da cama.
Ele fecha a porta atrás de si, encostando-se a ela, e em seguida suspirando.
Ficamos alguns segundos em silêncio, até que eu resolvo acabar com isso logo
de uma vez.
— O que você está fazendo aqui, Alexandre? — Eu pergunto, com a voz
vacilante. Meu coração bate tão forte e tão alto dentro do peito que parece querer
se libertar da caixa torácica, uma mistura de anseio e medo. Ele continua lindo,
mas é impossível não reparar em suas olheiras profundas e em como ele parece
mais magro, o que me surpreende, porque mesmo eu estando da mesma maneira,
há uma diferença crucial entre nós dois: eu estou sofrendo por amor. E ele, está
sofrendo pelo que? Apego?
— Eu estou com saudade, Soph — ele diz, a voz ainda baixa, como se testasse
o que poderia ou não me dizer. Ele não chega a estar bêbado, longe disso. O
conheço o suficiente para saber que ele não se afundou no álcool, apenas tomou
algumas doses. Ainda assim, é fácil perceber que fora isso que o motivou a vir, o
que também não é uma novidade para mim. Alexandre fazendo o certo sempre
pelos meios errados.
Quando eu não digo nada, ele continua:
— Tudo bem. Você quer mesmo saber por que eu vim? Eu vim porque eu te
amo. Eu vim porque eu não consigo mais lidar com isso sozinho. Eu te amo,
Soph, e você precisava saber. Mesmo que você me coloque para fora, você
precisava saber.
Suspiro e abaixo a cabeça. As palavras tomam meus ouvidos, meu peito se
enche de um calor que poucas vezes senti igual. Eu poderia me deixar levar por
essas palavrinhas, mas sei que não posso. Ele bebeu para vir aqui. Está fazendo
isso por desespero, por carência, por medo.
Por qualquer coisa, menos amor.
— Você precisa disso, Alexandre? — Seguro os lençóis com força entre os
dedos, me obrigando a confrontá-lo quando, na verdade, o meu maior desejo é
me jogar em seus braços. Acontece que se eu fizer isso agora, estarei jogando
fora tudo o que suportei até aqui. Vou me deixar enredar novamente pela ilusão
de ser correspondida. — Precisa beber para dizer que me ama?
Algo em seu olhar muda quando as palavras saem da minha boca. Parece
orgulho ferido com algo a mais. Dor… É isso que eu vejo.
Alexandre está tão machucado quanto eu.
— Não. — Ele caminha até mim e, me surpreendendo, se ajoelha em frente à
cama, colocando as mãos em minhas pernas. Seu olhar está mais duro, sua
expressão mais firme, e ele parece resoluto sobre o que fala. — Eu bebi porque
sei que te amo, e é um caralho de um inferno ficar sem você naquela casa. Para
tudo o que eu olho, tem sua marca, mas você não está mais lá. Quando eu me
viro, eu não vejo mais seu sorriso. Eu não me sinto à vontade na minha própria
casa, Sophia, você entende o que é isso? — Queria dizer que sim, que eu
entendo; é assim que eu me sinto desde que voltei para cá. — Eu bebi sim, mas
eu não estou sequer perto de bêbado, e você me conhece o bastante para saber
disso. Então não crie desculpas para não me ouvir, tudo bem? Por que você faz
questão de mostrar que tudo o que eu faço é errado?
Sua resposta me pega de surpresa. Eu sinceramente não sei o que dizer, mas
ele também não me dá esse tempo. Continua a falar, como se quisesse
desengasgar tudo o que precisa. É uma urgência que nunca vi em Alexandre.
— Eu posso não te amar do jeito que você espera, Sophia, porque não é meu
estilo. Eu não sou um príncipe que faz tudo certo e não bebe e não pragueja.
Esse cargo é do André. Mas eu te amo. Porra, eu te amo tanto. Precisei bancar o
idiota e te perder para entender isso, mas eu te amo de uma forma que dói tudo
dentro de mim cada vez que eu acordo e sei que não vou te ver lá, então pelo
amor de Deus, me dá uma folga. Acredita em mim uma única vez.
Suas palavras me acertam e eu quero tanto acreditar nelas. Quero muito
acreditar. Mas dentro de mim, uma voz sabotadora me diz que ele está fazendo
isso pela necessidade de ter alguém ao lado. Algo me diz que eu vou voltar e
nada será novo. Que eu continuarei amando sozinha, amando por dois.
E amar por dois é o pior tipo de solidão que existe.
Abro a boca para responder algo, mas antes que eu consiga, meu pai abre a
porta. Ele encara a imagem de Alexandre ajoelhado ao lado da minha cama e
franze o cenho, depois me pergunta preocupado:
— Está tudo bem aqui, filha? — Sei que visto assim, de longe, parece que
Alexandre está ajoelhado, implorando, mas não é isso. Ele só quer contato. Ele
só quer me olhar nos olhos, de igual para igual, como ele sempre fez.
Suspiro.
— Está, pai. Ele vai dormir aqui, tudo bem? Não quero que ele dirija assim.
Quando meu pai concorda, meio a contragosto, e sai do quarto, Alexandre
ergue o rosto, que está debruçado em minhas pernas e diz:
— Eu não estou bêbado.
— Mas você bebeu, e está nervoso. Eu te conheço o suficiente para saber que
é uma péssima combinação.
— Não vou discutir, Sophia, porque só Deus sabe o quanto eu quero ficar.
Tento ignorar o salto que meu coração dá dentro do peito e, para disfarçar, eu
pergunto sobre meu anjinho.
— Com quem a Lili está? — Ela sempre será minha primeira preocupação. O
mundo pode estar desabando, será dela que eu sempre lembrarei primeiro.
— Com meus pais. Eles a levaram ao circo — ele diz e eu me lembro. Ela
estava super animada, falando disso a semana inteira.
— Vem, vamos dormir. Não acho que a gente vá chegar a lugar nenhum hoje
— eu digo, sem saber exatamente onde isso irá chegar qualquer dia que seja.
Estar tão perto dele é perigoso. É como colocar a mão no fogo e rezar para
que não queime.
Mas a verdade é que eu nunca quis tanto me queimar.
Percebendo minha expressão pensativa, ele diz:
— Eu posso dormir no chão, se você quiser. Ou na sua poltrona de leitura.
— Para de besteira — eu consigo dizer por fim, porque eu o quero perto de
mim. Quero tentar sentir todos os sentimentos que ele tanto diz sentir. Quero
respostas.
Ele tira o sapato e se deita em silêncio, como uma criança que obedece sem
questionar. Ajeito-me no colchão, e abro um espacinho para ele. Minha cama
aqui em casa é uma cama de casal, mas não é tão grande como a da casa do
Alexandre, então ficamos apertados.
Fecho os olhos, inspirando seu cheiro, sentindo-o se impregnar em tudo à
minha volta.
Que saudade.
— Eu sei que isso não é uma volta — ele diz —, eu te conheço o bastante para
saber que eu vou ter que te provar de outras formas que eu realmente te amo.
Mas eu não me importo, tudo bem? Eu rastejo se precisar. Só, por favor, não me
afaste, Sophia. Por favor, por favor, me deixa tentar — sua voz está embargada,
um pouco diferente, então eu simplesmente me deito em seu peito sem pensar
em mais nada, mas sem me explicar também. Momentos como esse não
precisam de palavras, porque tudo está no ar, subentendido. Os sentimentos que
nos rodeiam são fortes demais para serem ignorados, e eu sinto, com tudo de
mim, que esse é o Alexandre que eu tanto queria: o Alexandre que não tem medo
do que sente, o Alexandre que não tem dúvidas.
Pela primeira vez desde que ele chegou, eu finalmente consigo acreditar nele.
Enquanto ele passa o braço em volta da minha cintura, esqueço-me dos
últimos dias, esqueço que ele bebeu para vir aqui, esqueço minhas inseguranças.
Eu só quero estar perto dele. Não vou beijá-lo, não vou dormir com ele. Isso,
como ele disse, não é uma volta, mas pode ser um recomeço no amplo sentido
que essa palavra tem.
Mas agora, eu só quero estar perto dele.
Quando eu faço isso, sinto suas lágrimas molhando meu cabelo quando ele se
encosta a mim e beija o topo da minha cabeça. Meus olhos também se enchem
de lágrimas, porque estar tão perto dele só me faz perceber como sua ausência
dói. Estar perto dele me faz entender que quando ele está longe há um buraco
inexplicavelmente grande em minha vida que é muito difícil ser preenchido por
outra coisa.
Nós ficamos assim por vários minutos e eu sinto toda a eternidade passar
diante dos meus olhos. Mordo o lábio enquanto sinto que suas lágrimas
continuam a cair em meu cabelo, sentindo sua dor como se fosse minha. Aquele
choro parece mais uma lavagem de alma, e eu não o interrompo, porque sei que
ele precisa disso. Ele precisa muito disso.
De alguma forma, parece que somos as duas únicas pessoas da face da terra.
Parece que, nesse quarto, o mundo parou para que nós finalmente nos
entendêssemos.
— O que eu preciso fazer, Soph? Eu sei que deveria saber por mim mesmo,
mas eu não sei, então me ajuda. Me diga o que eu preciso fazer para te ter de
volta, e eu vou fazer, porque agora que eu sei o quanto eu te amo, a possibilidade
de não te ter de volta me mata por dentro. Eu sei que eu sou um idiota, mas eu
sou um idiota que te ama. Acredita em mim — ele diz com a voz rouca e
embargada pelas lágrimas, e eu sei, do fundo do meu coração, que ele está sendo
sincero. Eu nunca desconfiei da sua sinceridade; o que me fez ir embora foram
seus medos. E é deles que nós precisamos nos livrar antes de pensar em seguir
em frente.
Alexandre é uma tempestade impetuosa de sentimentos confusos; um ser
humano com uma mente repleta de espectros perigosos e culpas dispensáveis. E
eu sou capaz de enfrentar tudo isso por amor a ele, se ele estiver disposto a dar o
primeiro passo.
Eu só preciso de um primeiro passo.
— A deixe ir, Alexandre. Não por mim, mas por você. Você precisa deixar a
Júlia ir. E eu não estou querendo dizer que é para você tirar todas as lembranças
dela da sua vida. Eu só estou pedindo para que essas lembranças não te façam
sentir tanta culpa que te impeçam de viver comigo, ou com quem quer que seja.
Por que viver preso a uma dor como a sua é algo que eu não desejo para
ninguém. Antes eu tinha a ilusão de achar que seus pensamentos e seu coração
estarem presos a ela não interferiria na nossa vida, mas interfere. Só que não é o
amor que você sente por ela que me machuca. É a culpa que você sente que nos
separa, então você precisa resolver isso. Precisa aceitar que não há problema em
me amar, que não há traição nisso. Se você a deixar ir, eu volto. Porque eu não
me importo de construir um amor com você aos poucos. O que eu não quero é
construir um amor sobre outro mal resolvido.
Ele suspira e então beija minha cabeça com carinho, mas não demora para me
dar uma resposta, o que só prova que, talvez, ele realmente queira consertar
tudo.
— Eu sei que já te prometi coisas antes e te decepcionei. Mas eu estou te
pedindo uma última chance para te provar que eu sou confiável. Você tem razão,
meu amor. Eu vou deixá-la ir. E quando isso acontecer, eu quero você ao meu
lado de novo. Eu te quero no lugar de onde você nunca deveria ter saído.
CAPÍTULO 49 – UMA NOVA PERSPECTIVA

Alexandre
Acordo com um pouco de dor de cabeça, e quando abro os olhos, demoro
alguns segundos para me situar de onde estou. O quarto de Sophia está
arrumado, mas ela não está aqui. Levanto-me e olho no relógio, constatando que
ainda é bem cedo. Visto meus tênis, ajeito o cabelo e saio sem graça de seu
quarto, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.
A noite de ontem passa como um borrão em minha mente, e me recordo de
como foi esquisita e reconfortante ao mesmo tempo. Depois que prometi à Soph
que eu faria o que ela me pediu, e que eu sabia o quanto precisava fazer, nós não
falamos mais nada. Conversamos em um silêncio cheio de significados, e depois
caímos no sono, abraçados um ao outro, e pela primeira vez em semanas, eu
dormi uma noite inteira.
Tê-la em meus braços fazia tudo ser mais seguro.
Atravesso a sala, mas não há ninguém lá, então continuo caminhando até
chegar à cozinha. Cilene está passando um café, e sorri para mim. Pela janela,
consigo ver o pai de Sophia regando os tão famosos girassóis. Acho que ele não
está muito feliz comigo, mas eu posso culpá-lo? Claro que não. Se fosse Lilith
no lugar de Sophia, eu teria jogado o sujeito pela janela pelo fundo das calças.
Acho que ele é até paciente demais.
— Como você está, meu filho? — Ela pergunta enquanto coloca a garrafa de
café na mesa e se senta, me chamando para sentar-se também. Depois serve uma
xícara para mim e outra para ela.
— Acho que eu te devo desculpas, Cilene. Eu não podia ter chegado tão tarde
na sua casa e ter feito àquela cena; foi bem infantil.
— Na verdade, foi meio desesperador — ela ri, mas não há escárnio em seu
tom. Só um entendimento muito grande. — Fica tranquilo. Eu só quero que
vocês se resolvam e sejam felizes. — Ela toma mais um gole do café. — Eu
esperei você acordar para pegar uma carona, pode ser?
— Claro — eu digo enquanto termino de tomar meu café. — A Sophia, ela…?
— Eu começo, mas Cilene se ajeita na cadeira, nervosa. Anos trabalhando com
ela me fazem sempre estar um passo à frente quando é necessário interpretar
suas reações.
— Ela precisou dar uma saída — essa é fácil: Cilene está mentindo.
— Uma saída? — Pergunto desconfiado.
— É… — Cilene engasga e eu abaixo a cabeça, entendendo tudo. A noite de
ontem foi boa para colocarmos os pingos nos ís sobre o que ela espera de mim,
mas não foi uma volta. Nós sequer nos tocamos além do fato de termos dormido
abraçados. Mas eu posso compreender o que ela estava fazendo, e não posso
criticá-la.
Ela quer certezas? Eu vou dá-las a ela.
— Eu sei que ela está em casa, Cilene, provavelmente escondida no seu
quarto — aumento o tom de voz para que ela possa me ouvir no outro cômodo
colado à pequena cozinha —, mas diz para ela que eu não vou desistir. Eu vou
fazer o que ela me pediu porque eu a amo, e se ela quer provas, ela terá. — Dou
alguns passos e colo meu rosto na porta, sorrindo ao dizer em alto e bom som:
— E se ela continuar fugindo de mim depois disso, a medrosa vai ser ela.
[…]
Estaciono o carro e respiro fundo, olhando para fora. Cheguei ao meu destino.
Depois de mais de um ano, aqui estou eu novamente.
Pego o buquê de lírios no banco do carona, desço do carro ainda com a roupa
que saí de casa na noite anterior e então caminho a passos lentos até a entrada do
cemitério onde Júlia está enterrada. Cheiro as flores em minha mão e sorrio,
porque eram as preferidas da minha mulher.
Passo pelos jardins e me surpreendo com a beleza etérea do lugar. No dia do
enterro de Júlia eu estava tão fora de mim que foi impossível reparar em
qualquer coisa além da minha dor e da sufocante perda que abraçava meu corpo.
Por ser um dos melhores cemitérios de conceito jardim da região, o local é bem
cuidado, bonito até, mas isso não diminui o peso de se estar aqui, e pouca coisa
muda: lápides são lápides, feitas do mais puro mármore ou do cimento e cal mais
barato. Todas elas abrigam a dor da perda, que atinge corações e muda vidas,
sejam elas ricas ou pobres.
Passo pelo portal onde se lê “O que fui, tu és, o que eu sou, tu serás” e
continuo andando, sabendo que essa é uma verdade inegável e talvez até um
recado do universo para mim, e é por isso que estou aqui. Júlia se foi, mas eu
continuo vivo. E apesar de já ter tido uma confirmação mais do que especial
dela, eu precisava disso: de uma despedida física. Uma despedida que eu não me
permiti ter quando ela foi tirada brutalmente de mim, quando eu deixei a
negação me abraçar.
Eu nunca me despedi porque eu nunca aceitei.
Mesmo sem nunca ter voltado aqui depois que enterrei o amor da minha vida,
é impossível não saber exatamente onde ela está. Eu nunca seria capaz de
esquecer aquele dia, nem os caminhos que meus pés fizeram pela pior trilha que
já passei.
Quando finalmente chego, fecho os olhos por um segundo, me permitindo
sentir toda a dor que é estar aqui. Quando os abro, vejo apenas a placa branca
com seu nome, em cima do amplo e bem cuidado gramado. Por se tratar de um
jazigo subterrâneo, o clima aqui é mais leve e me surpreendo ao sentir o
ventinho frio do dia tocar meu rosto e uma estranha sensação de paz invadir
minha alma.
Sento-me ali mesmo na grama e então respiro fundo, sem saber como começar
a conversar com ela. Observo sua foto por um instante. Um enorme sorriso
estampa seu rosto e é impossível não sorrir junto com sua expressão. Um dia me
disseram que essa saudade se tornaria gostosa e eu ri num misto de desgosto e
raiva, querendo dizer que a pessoa não sabia de nada, mas hoje eu vejo que é
verdade: a saudade dentro da gente se transforma. Aos poucos, a dor vai sendo
substituída pelos momentos incríveis, pelos sorrisos, por lembranças tão boas
que o choro vira um sorriso tímido de canto, discreto, mas presente.
Eu sorrio, pela primeira vez, ao pensar na minha falecida esposa. E isso me
traz lágrimas aos olhos mais uma vez, porque eu sinto a cura se alastrar por todas
as minhas terminações nervosas, tomando meu corpo de uma euforia quase
inexplicável. O momento que tive meses atrás em meu quarto, quando recebi sua
benção foi especial, magnifico. Mas nada se compara a sensação de finalmente
estar conseguindo seguir em frente, e não apenas tentando com todas as minhas
forças, que era o que eu estava fazendo naquela época. Antes eu queria, mas
agora eu consigo, porque tenho uma motivação: o amor que sinto por Sophia e o
fato de que quero ser amado por ela. Mereço ser amado por ela.
Segundos viram minutos, até que eu finalmente falo em voz alta, tornando
essa conversa real como precisa ser. As coisas importantes, quando ditas em voz
alta, ganham forma. Ganham peso.
Elas se tornam verdades.
— Oi amor — no momento em que as palavras saem da minha boca, meu
peito se expande, sentindo todo o peso dessas palavras. Ela sempre será meu
amor, um dos meus amores, e não há nada de errado nisso. — Eu sei que você
deve estar me achando um idiota por um milhão de razões diferentes, mas vamos
lá. Você sempre soube me entender, e acho que mesmo assim, tão distante
fisicamente de mim, você ainda vai conseguir compreender. Primeiro, eu não
estava bêbado ontem, eu juro. Eu tinha tomado umas doses, mas o choque de
realidade que o seu querido cunhado me deu foi o suficiente para me acordar por
uma eternidade. Segundo, eu sei que fiz merda quando deixei a Sophia ir
embora, mas eu estou tentando consertar, eu prometo — eu paro de falar, e
mesmo sabendo que não haverá qualquer resposta, eu espero alguns segundos
para voltar a deixar as palavras saírem. — Quando você se foi, eu achei que
nunca ia conseguir amar mais ninguém, e eu sei que se fosse o contrário, se eu
tivesse ido embora primeiro, tudo o que eu mais ia querer é que você fosse feliz
sem mim. Como você sempre foi uma pessoa muito melhor do que eu, acredito
que isso é o mesmo que você está pensando. E eu não posso negar que, por mais
que eu te ame por toda a eternidade, eu percebi que é possível realmente amar,
acima de tudo, uma outra pessoa. É possível viver depois do fim. Sempre achei
que seria uma traição ter sentimentos por outra pessoa, mas se eu sinto tanto
amor por ela, não tem como ser errado, tem? É inadmissível que um sentimento
tão puro e real possa ser errado Ela cuida de mim, me quer bem, e eu te juro, eu
a quero bem tanto quanto quis você. Por favor, meu amor, não quero que você
ache que estou te abandonando. Minha mente e meu coração sempre terão um
pedaço que te pertencem, mas eu preciso que o outro pedaço dele seja cuidado
por Sophia. E com todas as minhas forças, eu também quero cuidar de um
pedaço dela. E eu vim te dizer que é isso que eu vou fazer. Eu sei que já tenho
sua benção.
Coloco as flores em cima da sua placa e olho mais uma vez seu nome ali,
junto de sua foto sorrindo, e eu sorrio mais uma vez ao lembrar tudo o que
passamos juntos: o namoro, os passeios, as minhas voltas de viagem, cheio de
saudade. Lembro-me de quando ela me contou que estava grávida e de como eu
fiquei nervoso ao pedi-la em casamento. Lembro-me de seus passos até o altar,
parecendo um anjo na terra. Eu consigo me recordar de cada lágrima de
felicidade que eu derramei ao vê-la caminhar em minha direção naquele dia. E
quando Lilith nasceu, eu juro, eu posso ter renascido ao olhar aqueles olhinhos
que tanto se pareciam os de Júlia. Eu lembro-me de cada mínimo detalhe de
nossa vida, e de como fui feliz em cada dia ao seu lado. E com isso eu sei, eu
quero continuar sendo feliz.
Quero criar boas lembranças.
Debruço-me sobre a pedra e fecho os olhos, sentindo todos os sentimentos
passarem por mim. Aceitando cada um deles, com o peito aberto e uma coragem
para recomeçar. Não uma coragem fajuta, uma coragem real dessa vez.
Agora eu estou pronto, eu sei que estou.
Antes eu só queria estar, e foi por isso que não deu certo.
Fico assim um tempo, sentindo o vento em meu corpo ao mesmo tempo em
que me dou conta de como Sophia está certa: essa despedida é por mim, não por
Sophia ou por nossa relação. Essa despedida é para que eu me sinta finalmente
livre de uma culpa que eu sequer tenho.
Ergo o rosto, olho para o céu e então abro os braços, sabendo que, seja da
maneira como for, Júlia está me abraçando de volta. Jamais fui de imaginar
coisas, mas a intensidade do momento me tomou de tal forma que foi inevitável
sentir um arrepio e chorar de emoção ao ouvir o que eu poderia jurar ser a voz
calma e doce da minha amada esposa.
"Seja. Feliz."
Eu não sei dizer se tudo foi fruto da minha imaginação ou algo real, mas isso
não importa, no fim das contas. O que importa é que agora eu sei, claramente,
qual caminho seguir. E eu vou fazer isso.
— Eu serei. Prometo que serei.
CAPÍTULO 50 – SOMOS FEITOS DE ERROS E ACERTOS

Rodrigo
Lembro-me até hoje o momento em que a vi pela primeira vez: era o primeiro
dia do ano letivo na nova escola. Eu não aguentava mais mudar de endereço e
isso me irritava, mas quando entrei, ainda meio inseguro e bastante frustrado, lá
estava ela, sentada em uma das primeiras fileiras. No momento em que meus
olhos pousaram nela, eu soube que algo estava mudando naquele mesmo
segundo: dentro de mim algo se acendeu e queimou, fazendo meu olhar ficar
vidrado e minha boca um pouco aberta pela sua beleza. Seu cabelo escuro estava
preso em um rabo de cavalo, e ela sorria abertamente, um sorriso lindo que eu
nunca havia visto igual, em ninguém.
Havia um lugar vago ao seu lado, mas quando eu pensei em ir até lá e me
sentar, vacilei por um segundo. Ela parecia tão popular, cheia de outros alunos
em volta dela, todos conversando e rindo.
E se eu levasse um fora ou passasse vergonha logo no primeiro dia?
Mas então, quando nossos olhares se encontraram, ela deu um sorriso ainda
maior, do tamanho do mundo, capaz de iluminar todas as minhas inseguranças e
medos, e então disse naturalmente: “Ei, vem cá, senta aqui com a gente!”.
E daquele dia em diante, eu conheci a bondade em forma de ser humano. Seus
amigos viraram meus amigos, e em pouco tempo nós estávamos namorando. Ela
me fazia feliz como ninguém, e eu sabia que eu a fazia também. Nós nos
amávamos profundamente, tão profundamente quanto dois adolescentes são
capazes de amar, e mesmo que pareça besteira, naquela época eu sentia que o
que tínhamos podia durar para sempre.
Com ela eu vivi os melhores momentos da minha vida. Descobri que a vida
não era só pais descontrolados brigando dia e noite, nem constantes mudanças de
endereço, nem traições e choro. Eu descobri que o amor podia fazer bem, tão
diferente do mal que eu estava acostumado a ver em volta de mim, vindo de
pessoas que diziam se amar.
Eu achava que íamos nos casar. Realmente achava. Na verdade, já tinha
planos sobre isso. Esperei seu momento certo, nunca forcei a barra para que ela
se entregasse a mim. Deixei-a decidir sozinha quando seria a melhor hora
porque, para mim, o que importava era estar com ela. Mas ai veio o meu
aniversário, eu bebi um pouco para comemorar, talvez para finalmente aproveitar
minha maioridade legal e então, em uma brincadeira estúpida, eu a deixei
naquela cadeira de rodas.
Até hoje, aquele momento é um borrão em minha mente. Não lembro o que
me deu, nem o que me motivou a fazer aquilo. Não lembro quanto tempo levou
para que eu pulasse na água atrás dela, mas de uma coisa eu lembro: do medo
que eu senti.
O medo de ter quebrado algo precioso demais. O medo de ter destruído quem
tanto me amava.
Desde o momento em que ela olhou desesperada para mim, dizendo que não
conseguia se mexer, até agora, eu nunca mais tive um segundo de paz na vida.
Eu vivo e revivo meus erros, cada um deles: o erro de beber sem ter o hábito, o
erro de empurrá-la naquela piscina, o erro de tê-la deixado depois daquilo.
O erro de ter ouvido minha mãe.
Eu nunca quis ir embora. Nunca quis fazer papel de covarde e deixá-la depois
de ter feito o que havia feito com ela. Mas eu era praticamente um adolescente,
confuso e com medo, e minha mãe, vendo a culpa me corroer dia após dia, disse
que eu não precisava viver daquele jeito. Fez-me acreditar que, porque eu não
tinha feito com intenção, eu não tinha que ficar para ajudá-la.
Disse, com todas as letras, que ficar com Sophia só me faria reviver o que eu
mais queria esquecer toda vez que olhasse para ela naquela cadeira.
Eu quis fugir do erro e da dor de tê-la machucado tanto. De ter mudado sua
vida.
Eu quis fugir como eu nunca quis nada na vida.
Mas o erro está em achar que você pode fugir de si mesmo. Ninguém foge de
si mesmo. Quando eu disse para ela que namorar uma cadeirante era demais para
mim, na verdade, eu queria dizer que eu não conseguiria olhá-la todos os dias e
saber que eu fiz aquilo com ela.
Mas o mais importante: eu tive medo de nunca mais ser bom para ela.
Eu não vi mais Sophia, mas eu me olhava no espelho todos os dias, e ele
mesmo fazia questão de me acusar. Foi então que eu percebi que ela poderia
estar do outro lado do oceano que aquilo ainda me machucaria como nada mais
era capaz de machucar.
Conviver com Sophia não era o problema, mas conviver com a minha
covardia se tornou um fardo ainda mais pesado, o que, somado a saudade e a
falta de notícias, me fez rastejar por muito, muito tempo, até o dia em que eu
decidi dar um jeito de encontrá-la.
E quando eu olhei em seus olhos e vi uma mulher ainda mais incrível do que a
menina que um dia eu amei, eu finalmente entendi que almas como a dela são
impossíveis de serem quebradas, principalmente por pessoas tão pequenas como
eu.
Eu a empurrei de um precipício, mas à beira dele, ela criou asas.
[…]
Aperto a campainha da casa dela, e espero ansioso que alguém me atenda.
Mais cedo eu fui até o condomínio onde ela trabalha, mas o porteiro me disse
que ela não morava mais lá. Depois, abaixou a voz como um bom fofoqueiro
faria e me confidenciou que alguém contou para alguém que contou para
alguém que Sophia e Alexandre terminaram o breve relacionamento que tinham,
e que, no fundo, ele sabia que não ia durar, afinal, ela era cadeirante e ele um
piloto; não tinha futuro.
Quase dei um soco na cara dele.
Troco o peso de uma perna para a outra e respiro fundo, olhando para cima.
Tenho medo de que o pai ou a mãe dela me coloquem para fora, mas para minha
sorte, quem eu vejo quando a porta finalmente se abre é ela.
— Rodrigo? — Ela parece surpresa, mas não brava, nem decepcionada, e eu
sei disso quando, logo após o choque, ela abre um sorriso.
— A gente pode conversar? — Pergunto, um pouco nervoso, e então ela
balança a cabeça, me dando espaço para passar. Quando eu entro na sala, ela
fecha a porta e me indica o sofá.
— Você quer uma água? Um café? — Ela aponta a cozinha, mas eu nego de
pronto.
— Não, não, obrigado. Eu só queria saber como você está — digo, esfregando
uma mão na outra. Na verdade, eu não sei realmente o que vim fazer aqui. Nós
já tínhamos conversado sobre tudo, e ela já deixou claro em que pé a nossa
situação se encontra, mas eu ainda sinto que algo precisa ser falado, eu só não
sei o que. Eu não nutro a esperança de uma segunda chance, porque eu sei que
ela não virá. Sophia ama Alexandre, e por mais que eu deteste o cara, é nela que
eu devo pensar, principalmente pelo fato de ter certeza absoluta de que ele sente
o mesmo por ela. É um babaca idiota e grosseiro, mas quando se trata da Sophia,
ele se transforma em tudo o que eu deixei de ser pra ela: protetor.
E não é como se eu não tivesse dado motivos para ele me detestar, então,
mesmo que eu odeie admitir, sei que ele é uma boa pessoa.
— Eu estou bem — ela vacila na resposta e então dá um sorriso meio
mecânico. Um sorriso que eu conheço bem. Os anos passaram, mas eu ainda sei
ler Sophia como a palma da minha mão. Provavelmente ela e o piloto metido a
galã ainda não tinham se resolvido.
— Tá bem nada — eu digo e sorrio. — Posso te ajudar? — Não digo que eu
sei o que houve porque sei que ela ficará brava. Apenas deixo em aberto se ela
se sentir confortável para falar.
— Coisas que a vida apronta com a gente — ela sorri e dá de ombros, mas
consigo identificar toda a dúvida e insegurança que ela está sentindo.
— É, a vida é uma vaca às vezes.
— Oh se é — ela ri um pouco sem graça.
— Isso tem alguma coisa a ver com o Alexandre? — Eu finalmente abro o
jogo, e seus olhos ganham uma nota de compreensão quando ela se toca de que
eu vim procurar ela aqui e não lá na casa dele. Ela balança a cabeça e sorri,
sabendo que eu sei mais do que estou falando, mas não me pergunta nada,
apenas confirma.
— Nós não estamos mais juntos — ela suspira e depois aperta os olhos. —
Quer dizer, na verdade, não sei como estamos. Ele esteve aqui ontem à noite.
Pediu para eu voltar e disse que me ama e… — Quando ela se toca de que está
falando demais, para e passa as duas mãos pelo rosto. — Desculpa, Rodrigo,
acho que eu nem deveria estar falando isso para você.
Adianto-me e seguro suas mãos, depois olho em seus olhos e com toda a
sinceridade que um dia ela já viu em mim, digo:
— Você pode falar o que quiser para mim, Sophia. Eu acabei com a sua vida,
fui um covarde, mas quando eu digo que você pode confiar em mim novamente,
eu estou sendo completamente verdadeiro.
Ela fecha os olhos por um segundo, processando tudo o que eu falei, e então
responde algo que eu não esperava ouvir, pelo menos não tão cedo.
— Você foi covarde, mas se arrependeu. Acho que já conversamos sobre isso.
Quanto a acabar com a minha vida? Não. Você me fez passar por maus pedaços
sim, mas eu estou exatamente onde eu queria estar. Se eu andasse, poderia estar
em qualquer outro lugar. Não teria ganhado meu anjinho, não teria me
aproximado do Alexandre, que apesar de tudo, me mostrou como eu posso ser
feliz sendo exatamente como eu sou, não teria me desconstruído de tantas coisas
e aprendido tantas outras. Não posso ser hipócrita e dizer que amo estar nessa
cadeira, mas estar nela me ensinou coisas valiosas demais para eu odiá-la
totalmente. Então, Rodrigo, eu te livro de qualquer culpa, e acho que você
merece ser feliz, porque o Rodrigo que eu amei merecia, e claramente você não
deixou de ser ele. — Ela franze o nariz daquele jeitinho que eu sempre amei e eu
me sinto emocionar. — Ele só ficou um pouquinho escondido aí dentro.
Antes que eu consiga me parar, saio do sofá e a abraço, enquanto minhas
lágrimas escorrem pelo rosto. Aperto-a forte, sabendo o quanto esse abraço é
necessário. Necessário para mim.
Quando eu finalmente a solto, vejo que ela também enxuga as lágrimas. Só
então eu percebo o que eu vim fazer aqui: eu não precisava me declarar nem
pedir para ela voltar. Isso já passou para nós dois.
Eu apenas precisava de seu aval para seguir em frente. Só ela é capaz de tirar
esse rochedo que eu sustento em minhas costas em forma de culpa.
— Você disse que ele te ama. O que te impede de voltar a ficar com ele?
— Eu tenho medo — essas palavras me surpreendem, afinal, Sophia nunca
tem medo de nada.
— Medo do que? — Tento compreender.
— De ser só um estepe. Medo dele nunca superar a perda da falecida esposa
— eu não fazia ideia da história de Alexandre, não sabia como era a relação dele
com a mulher, nem o que eles passaram. Isso tudo é novo para mim. — Eu tenho
medo de sofrer, Rodrigo. Mas também estou com medo de estar sendo injusta
com ele, quando tudo o que ele fez nesses últimos tempos, foi ser bom para mim.
É horrível estar dividida entre o que eu sinto e o que eu quero.
Disso eu entendo bem.
Reflito um pouco, antes de finalmente falar o que penso.
— Estar longe dele não te faz sofrer também? — Pergunto e vejo a surpresa
em seus olhos. Agacho-me em frente a ela, e seguro suas mãos, tentando ao
máximo falar o que precisa ser falado, por mais que buscar essas verdades dentro
de mim doa um pouco: — Olha, por mais que eu não goste dele, Sophia, e eu
realmente não gosto, é visível o quanto ele se importa com você. Ele gosta de
você, de verdade. E por mais que eu te ame, eu sei que, no fundo, tem algo de
egoísta no que eu sinto. Eu te amo pelo que tivemos lá atrás, mas você merece
ser amada pelo seu presente, não pelo seu passado. Ele gosta de você pelo que
você é agora, não pelo que você já foi um dia, e eu acho que isso merece um
crédito, você não acha?
Ela apenas me olha, estática, sem responder nada. Conheço-a o suficiente para
saber que as engrenagens de sua cabecinha estão funcionando a todo vapor.
Decido dar mais um empurrãozinho.
— Sophia… Eu quero que você seja feliz, de verdade. E se é ele que você
ama, você está perdendo tempo — ergo seu rosto com a ponta dos meus dedos e
olho dentro dos seus olhos, sabendo que após essas palavras, tudo o que houve
entre nós ficará para trás: a dor, a culpa, ó ódio. Tudo isso irá morrer aqui e
agora: — Eu quero que ele te compre flores, te faça rir, te dê amor e tenha longas
conversas com você, sobre tudo e nada. Eu quero que ele faça tudo o que era pra
eu ter feito, quando era a mim que você amava. Eu quero que ele te faça feliz,
porque isso não se trata de mim, ou dele. Trata-se de você. E quando se trata de
você, eu sei que você só merece o melhor, não importa de onde venha.
Quando eu termino de falar tudo isso, ela apenas estende os braços. Fico um
pouco chocado com a possibilidade de ela estar pedindo um abraço meu, mas ela
apenas ri e diz: — Anda logo, Rodrigo.
E então eu a abraço. Abraço e deixo tudo ir embora naqueles segundos em
que nossos corpos se encontram. Quando ela me aperta forte, sei que finalmente
paguei minha pena. Sei que finalmente posso seguir em frente, e eu quero que
ela siga também. Quero que ela seja amada exatamente como merece.
Exatamente como eu não fui capaz de amá-la.
— Você precisa de uma carona? — Erguendo a sobrancelha, pergunto quando
a solto. Ela entende minha pergunta na mesma hora e então enxuga as lágrimas e
lança aquele mesmo sorriso do tamanho do mundo que eu ganhei quando a vi
pela primeira vez. O sorriso que sempre me faz acreditar que o mundo pode ser
um pouco melhor.
— É, eu acho que preciso.
CAPÍTULO 51 – SOBRE RECOMEÇAR

Alexandre
— André, você sabe que quem está sendo um babaca pau no cu agora é você,
não sabe? Eu só estou tentando te ajudar — tiro o telefone um pouco da orelha
enquanto ele profere os duzentos e quatro mil palavrões que inventou só para me
ofender e então, respirando fundo, o coloco de novo no ouvido. — Como assim
eu não tenho nada a ver com a sua vida? Você estava se metendo na minha até
agora… — Antes que eu termine a frase, ele desliga na minha cara, sem pensar
duas vezes.
A questão é que André nunca soube lidar muito bem com suas emoções,
simplesmente porque ele nunca precisou. Quando era mais novo, eu sempre o
defendi de tudo e de todos. Depois que cresceu, se estabilizou na vida rápido,
nunca passou por grandes perdas, sempre teve um relacionamento estável, um
amor calmo, um emprego garantido. André nunca teve o chão chacoalhado
debaixo de seus pés, então estar lidando com esse término com Ariela tem sido
difícil, ainda mais se realmente foi como ele narrou. A mulher o deixou na lona,
e isso me faz querer esganá-la, porque, me socando a cara ou não, esbravejando
e me xingando ou não, ele é meu irmãozinho. É minha família.
Se você ferra com ele, ferra comigo.
Ainda estou perdido em meus pensamentos quando a campainha toca. Jogo o
celular em cima da cama, e passo pelo corredor, em passos rápidos até a porta. A
julgar pelo desespero com que a pessoa está apertando o botão, alguém está
morrendo lá fora.
Quando finalmente abro a porta, dou de cara com Sophia à minha frente.
Mesmo tendo-a visto há tão pouco tempo, meu peito se aperta em saudade, e as
palavras somem da minha boca.
Ela me olha por alguns segundos, e, pelo rosto inchado e olhos vermelhos, sei
que ela andou chorando.
Quando penso em dizer alguma coisa, ela me encara com aquela altivez sem
soberba que só ela é capaz de ter. Um traço da sua personalidade que tanto senti
falta. Sophia é original. É uma joia rara que poucos têm o prazer de ter em mãos
apenas porque só os mais determinados conseguem ter acesso ao melhor dela.
Não tem muitos amigos, mas os que ela tem, são todo seu mundo, assim como
sua família, e dentro dessa conta, eu e minha filha. Somos privilegiados por tê-
la, e saber que estive tão perto de perdê-la faz meu coração doer dentro do peito.
Um milhão de coisas passam por minha mente nesses segundos em silêncio e
eu não sei qual delas falar primeiro, porque todas são o que eu desesperadamente
sinto:
Eu te amo
Senti sua falta.
Por favor, me aceite de volta.
— Eu não sou medrosa — ela me surpreende, falando primeiro. Depois, dá
um sorrisinho de canto, e por incrível que pareça, eu conheço todos os
significados daquele sorriso, mas especialmente, o principal: ela voltou para
mim.
Sem dizer nada, me ajoelho até ficar à sua altura e sorrio, antes de puxar seu
rosto com minhas duas mãos e beijá-la com toda a saudade que senti. Não há
palavras que definam esse momento, e no melhor do meu silêncio, decido
mostrar com um gesto o quanto eu a quero aqui, comigo. Seus lábios encontram
os meus, e ela os abre mais para me receber, sem qualquer negação, o que faz
meu coração se acalmar um pouquinho dentro do peito.
Não sei quanto tempo ficamos assim, conectados por nossas bocas, mas uma
coisa eu sei: foi o melhor beijo que demos até hoje. O melhor porque agora não
há nada entre nós.
Quando lentamente a solto e abro os olhos para encará-la, ela sorri, esperando
que eu diga alguma coisa.
E eu digo a única certeza que eu sempre tive sobre ela:
— Eu nunca achei que você fosse, meu amor.
[…]
Ajeito Sophia em meu colo, exatamente como eu fazia quando estávamos
juntos, e coloco uma mecha de cabelo atrás de sua orelha, enquanto continuamos
a nos olhar intensamente. Desde que nos beijamos, eu a trouxe aqui para o sofá e
ficamos assim, nesses minutos de reconhecimento que se tornaram mais do que
alguns minutos. Na verdade, eu perdi toda a noção de tempo e espaço. Quero
apenas aproveitar sua companhia.
— Não acredito que você está aqui de novo — eu finalmente digo, depois de
muito tempo no mais perfeito silêncio. — Parece que até o ar está respirável
novamente — brinco, tocando a ponta de seu nariz com o meu, para depois roçar
meus lábios no dela.
Ela segura meu rosto com suas mãozinhas delicadas e me olha nos olhos,
transbordando a sinceridade com o qual estou tão acostumado e com o qual eu
não conseguiria mais viver sem. Eu simplesmente amo sua transparência sobre
tudo.
— Eu tenho um milhão de motivos para ir embora agora, Alexandre. Desde
que eu te conheci, você me deu muitos motivos para desistir de você. Mas eu te
amo tanto… Então eu só preciso de um motivo para ficar. Só me dá um motivo e
eu fico.
Consigo entender tudo o que ela está tentando me dizer. E pela primeira vez,
sinto-me realmente confiante em firmar um compromisso com ela. Sinto-me
confiante em lhe prometer algo, porque sei que dessa vez, a promessa não será
quebrada. Todas as questões do meu coração estão muito bem resolvidas, ainda
que eu tenha tido que, à duras penas, lidar com a dor para aprender a me
conhecer melhor e a me resolver comigo mesmo.
— Eu te amar é motivo suficiente? Porque eu te amo, Sophia. E não, eu não
preciso beber para dizer que te amo. Eu cometi um erro, e sei que vou cometer
muitos outros ainda, porque esse sou eu, entende? Eu sou um ogro às vezes, um
babaca sem filtro nem papas na língua, mas eu realmente amo você. De um jeito
explosivo e assustador. Eu tenho medo desse sentimento, eu confesso, porque ele
já me fez sofrer demais. Mas eu tenho mais medo de ficar sem você, então, por
favor, fica. Fica comigo. Fica com a gente.
Ela não responde nada, apenas se inclina sobre mim e me beija. Seus seios
roçam em meu peito enquanto sua respiração acelera e eu sei, apenas com
poucos gestos, que estamos entrando em um consenso sobre nossa relação.
Sobre tudo o que ainda podemos e vamos viver juntos.
— Fui um babaca nas últimas semanas e sei que agora não é a hora de falar
disso, mas há algo que eu preciso dizer. Certo?
— Certo. — Ela diz, então eu acaricio seu rosto com as pontas dos meus
dedos, suspiro e começo a dizer:
— Tenho problemas para me aproximar de qualquer pessoa por causa do que
aconteceu com a Júlia, mas você… Você é diferente. Você abriu caminho até
meu coração com todo o seu carinho e seu jeito de ser. Da primeira vez que nos
beijamos, eu achei que poderia lidar com tudo, lidar com estes sentimentos, com
o luto, com tudo, mas quando percebi que eles eram profundos demais, morri de
medo. Não queria sofrer de novo tudo o que eu sofri quando precisei me
despedir dela. Não queria perder alguém tão importante quanto o ar para mim,
como já me aconteceu. Mas daí eu quase te perdi, e eu percebi que meu medo
era infundado, porque isso pode acontecer com qualquer um. Qualquer pessoa
está suscetível a perder alguém, de uma forma ou de outra. A morte não é a única
forma de perder alguém. Às vezes, presos em nossas conchas de culpa e dor, nos
perdemos até de nós mesmos. Eu vi que quase a perdi antes de tê-la realmente
para mim. E só de pensar isso eu morro.
Ela fecha os olhos, apoiando a testa na minha bem de leve.
— Mesmo que eu nunca mais voltasse, você jamais me perderia Alexandre —
ela sussurra e meu peito se aquece, enquanto eu aperto minhas mãos ainda mais
em sua cintura. — O que eu sinto por você vai além de todas as coisas que nos
rodeiam: tempo, espaço, problemas. Até mesmo uma separação.
— Eu fiz o que você pediu — digo e sorrio, lembrando-me do momento
incrivelmente intenso que tive no cemitério. — Eu me despedi da Júlia. Eu a
deixei ir — olho em seus olhos e sustento nosso contato, fazendo com que ela
entenda que dessa vez foi um adeus definitivo e que não há tristeza nem culpa
em minha expressão. Nada mais ficará entre nós. — Eu entendi que não preciso
te amar como eu amei a Júlia. Eu preciso te amar como amo a Sophia. Nosso
amor não precisa ser igual, nem deve. Eu nunca vou deixar de amar a Julia,
Sophia. Eu não seria capaz! Esse amor foi interrompido, não foi uma escolha
minha, entende? Nem minha, nem dela. Mas agora eu entendo o que você
sempre me disse, mesmo sem palavras: isso não me impede de te amar. Eu te
amo de formas completamente diferentes das que eu a amava, e não tem amor
maior ou menor, são só momentos e sentimentos diferentes. Ela foi uma parte
essencial da minha vida, ela me deu a Lilith. Nos deu a Lilith. Mas você é a parte
essencial do meu agora, do meu presente e futuro. E o meu futuro, eu só vejo
com você — a beijo novamente e ela se entrega a esse momento. Ouço um
gemido baixinho quando a aperto mais e sinto-a estremecer em cima de mim.
Ajeito seu cabelo e encaixo minhas mãos atrás de suas orelhas, puxando-a para
minha boca com ainda mais intensidade e desejo. Desço minha boca e começo a
beijá-la no pescoço, começando a perder o controle, mas então ela me para, com
delicadeza.
Ela precisa de certezas.
— Como vou saber que você não vai se fechar de novo? Como eu vou ter
certeza de que você não vai desistir mais uma vez? — Ela pergunta.
Sua voz sai firme, mas seus olhos transmitem uma fragilidade enorme, quase
me implorando para não a decepcionar novamente. Esse seu medo me faz sentir
como se eu tivesse uma faca cravada no coração. Odeio fazê-la se sentir tão
vulnerável.
Levo meus lábios aos dela por um segundo e então repito o gesto, várias e
várias vezes, enchendo-a de pequenos beijos, distribuídos por todo seu rosto.
Deus, senti tanto sua falta.
— Te prometo que não vai acontecer de novo. Talvez você ainda não acredite
em mim, e eu sei que a culpa é minha, mas acredita em uma coisa só, por favor.
— O que? — Sua voz sai trêmula.
Levo as mãos ao seu rosto, fazendo carinho em sua pele de porcelana.
— Acredite que eu te amo, e todo o resto, eu prometo, eu vou te mostrando
com o tempo.
Ela não responde nada, apenas me abraça, encaixando seu rosto na curva do
meu ombro. Ficamos incontáveis minutos assim, nessa mesma posição, até que
ela resolve voltar a falar:
— Antes de eu voltar, quero te pedir uma coisa — ela apoia as duas mãos em
meu peito e volta a me olhar, deixando claro que aquilo é mais que um pedido. É
uma condição.
— O que você quiser.
Ela aponta a cristaleira do minibar e diz, resoluta:
— Joga todas as bebidas fora. Eu não quero parecer mandona, mas faça, por
favor. Não quero mais isso entre nós. Não quero mais isso em minha vida.
Quando Rodrigo me empurrou, ele… Ele estava… E agora sempre que você fica
nervoso, você… — Ela fica um pouco agitada, trêmula ao dizer isso, mas eu a
corto antes que ela sequer termine.
— Eu jogo.
Ela me olha, surpresa pela imediata concordância, mas eu reitero o que disse
anteriormente.
— Eu te disse que faria o que fosse preciso. Qualquer coisa, Sophia. Eu não
estava brincando. Dessa vez, eu vou cumprir minha promessa.
Ela sorri abertamente, enlaçando seus braços em mim.
— Eu te amo — ela sussurra bem próximo ao meu rosto.
— Eu também — digo abertamente e cheio de certeza do que estou dizendo.
Meu sorriso quase não cabe em meu rosto. — Muito. Mas agora nós podemos
matar a saudade do jeito que eu quero? Porque logo a Lili está em casa e quando
ela vir que você voltou, não vou ter nem chance. Ela vai querer dormir agarrada
com você, porque eu conheço bem a criatura.
— Mas é claro — seus dedos vão para os primeiros botões de sua camisa de
linho creme e ela sorri, de forma travessa, fazendo meus sentidos mais sacanas
ficarem alertas de repente.
Fricciono meu corpo ao seu, me mexendo debaixo dela, mostrando de forma
clara como nossa proximidade está me deixando excitado. Quando ela deixa o
sutiã aparecer finalmente, mexe os ombros, fazendo a camisa deslizar por sua
pele alva, e mesmo que não tenha nada demais na cena, é uma das coisas mais
sexys que eu já vi na vida.
— Caralho… — Minha voz sai áspera, gutural e ela ergue a sobrancelha.
Mesmo percebendo que meus braços estão literalmente tremendo pela vontade
de tocá-la em todos os lugares ao mesmo tempo, ela simplesmente escolhe me
provocar ainda mais, desabotoando o sutiã, que abre na frente, revelando seus
seios.
Embaixo de toda a sua inocência e cara de anjo, há uma mulher fatal que é só
minha, e se eu não sou o babaca mais sortudo desse mundo, eu sinceramente
não sei quem é.
— Advérbio de intensidade? — Ela ironiza e eu entro no jogo.
— Advérbio de vontade — eu encaixo minha mão em seu pescoço e a puxo
para um beijo nada calmo.
Minha boca captura a sua e eu sinto suas mãos puxando minha camiseta. O
jogo é perigoso, afinal, tem pessoas trabalhando em casa. A mãe dela, inclusive.
Meu Deus, a mãe dela está nessa casa, porra.
Enquanto eu a seguro firme em meu colo e a levo para seu quarto sem
interromper nosso contato, ela ri, provavelmente se tocando do mesmo que eu,
então me segura firme e não protesta nenhuma vez: deixamos sapatos, camisetas
e até sua cadeira para trás, na sala. Sua necessidade é urgente, assim como a
minha, mas ainda há o carinho em cada toque e beijo que damos.
Ótimo.
Sexo com amor sempre foi o meu tipo preferido, mesmo.
CAPÍTULO 52 – TOTALIDADE

Sophia
No quarto, Alexandre entra no comigo no colo e fecha a porta com o pé.
Agarro-me ao seu pescoço enquanto nos beijamos, e quando ele enfim me
coloca no centro da cama, puxo seu corpo para ficar sobre o meu e pouso as
pontas dos meus dedos em seu rosto, analisando sua expressão. Seu olhar é uma
perfeita mistura de desejo selvagem com amor e vulnerabilidade que toca meu
coração profundamente.
Antes que eu consiga abrir a boca para dizer qualquer coisa, sua boca captura
a minha, e diferente do beijo que recebi quando cheguei aqui mais cedo, não há
nada de calmo nesse que ele me dá agora. Nossos lábios se sugam com urgência
e ele morde levemente minha boca, me fazendo gemer com a luxúria à que ele
me expõe. Estar intimamente com Alexandre é como me despir de todos os meus
pudores e receios. É como conhecer um novo eu, cheio de desejos e vontades,
sem medo de realizá-los.
Ele inclina o corpo, suspendendo os dois braços em volta de mim, um de cada
lado, abrindo as mãos para se apoiar no colchão enquanto me devora com a boca
em um dos beijos mais sensuais que já demos em todo o tempo em que estamos
juntos.
Todos os seus toques são incrivelmente poderosos e arrepios tomam conta de
mim, perpassando por todo o meu corpo, me deixando ciente do que eu quase
perdi.
Ele desce uma das mãos por toda a lateral do meu corpo, parando-a em meu
quadril. Sinto sua excitação se apertando contra meu âmago e por um segundo
me esqueço completamente das diferenças entre nosso jeito de fazer amor e uma
transa comum. Sorrio ao notar que no fim das contas, eu não mudaria nada,
mesmo com todas as dificuldades. Nossa maneira é especial, porque nela há
tanto cuidado, confiança e amor que nada se compara, nem mesmo o sexo mais
selvagem e cheio de malabarismos.
A fina camada das poucas peças de roupa que ainda estão entre nós deixa
muito pouco para a imaginação, e eu ergo o pescoço, lhe dando total acesso para
seus beijos, e o gemido de desejo que queima minha garganta morre quando sua
boca volta para a minha.
Seus dedos dançam pelo meu corpo, acariciando cada pedaço de pele exposta.
Quando suas mãos tocam meus seios nus, eu respiro sofregamente, sentindo uma
ansiedade sem igual.
— Que saudade — ele diz, antes de finalmente envolver meus seios com as
duas mãos.
— Alexandre… — sussurro enquanto ele os aperta, fazendo o prazer me
tomar. Eu nunca sequer reparei em meus seios antes, mas pela primeira vez, eles
parecem tão bonitos ali, encaixados com perfeição nas mãos do homem que eu
amo.
Meu corpo lateja desesperado de tanto desejo.
— Será que você sabe o quanto é linda? — Um agradável torpor invade meu
ser enquanto meu coração reage às suas palavras. Alexandre sempre diz isso,
todas as vezes em que fazemos amor ou até mesmo quando estamos apenas
juntos. De qualquer forma, toda vez parece novo para mim. Jamais me enjoaria
de seus elogios, pois eles me fazem muito bem. — Não há nada, absolutamente
nada em você que não seja perfeito para mim, meu amor.
Fecho os olhos e sorrio, mesmo sabendo que não é bem assim. Desde que
parei de andar, perdi meu corpo atlético conquistado no vôlei. Minhas coxas,
antes firmes como rochas, hoje são apenas normais. Meu quadril está um pouco
mais largo e meu abdômen antes perfeitamente liso agora ostenta uma
barriguinha por ficar na mesma posição de sempre. Mas mesmo que eu saiba
como era antes e como sou agora, sei que para ele eu nunca fui tão linda, e que
nada disso importa, afinal, agora ele me enxerga pelos olhos do amor.
Se minha forma física fosse realmente tão importante, ele teria me olhado
antes, quando eu ainda andava, o que nunca aconteceu. Nossa história aconteceu
quando tinha que acontecer, e eu sou grata por isso.
Quando nossos olhares se encontram novamente, posso experimentar o
incrível controle que Alexandre sempre exerce quando estamos assim. Com
movimentos lentos, ele retira o restante de suas roupas e também as minhas, e eu
assisto a tudo isso hipnotizada, como se fosse um show bom o bastante para me
dar ao luxo de perder qualquer detalhe.
Quando ele se deita novamente por cima de mim, sua mão segura minha coxa
direita por sobre seu quadril, lhe dando livre acesso ao meu corpo, e quando o
sinto encaixar-se em mim, eu ofego, ansiosa por mais contato.
Combinamos nossos movimentos e cedemos ao que nossos corpos tanto
queriam, e enquanto seus lábios caminham por meu pescoço e ombro, eu afundo
meus dedos em seu cabelo farto e macio, enquanto finalmente ele me toma para
si. A pressão e a totalidade dele em mim sempre são inacreditáveis. Não importa
quantas vezes fizéssemos isso, eu sempre me surpreenderia com a sensação de
tê-lo dentro de mim e de como isso me leva a outros patamares de prazer. Nossas
respirações ofegantes e os gemidos mútuos enchem o quarto, e ele move o
quadril com delicadeza até estar totalmente dentro de mim.
E quando finalmente ele me preenche, tornando nossos corpos um só, eu sei
que não pertenço a qualquer outro lugar que não seja ao seu lado.
[…]
— Tem tanta coisa que eu quero te contar — digo baixinho enquanto entrelaço
meus dedos nos dele. Estamos deitados, lado a lado, e apenas o lençol fino cobre
nossos corpos. O cabelo bagunçado de Alexandre denuncia tudo o que acabamos
de fazer, e o sorriso em seu rosto é tão bonito que quase me dói por dentro.
Eu o amo, muito.
Mas também sou apaixonada, perdida e completamente, por cada detalhezinho
dele: as marcas de expressão que surgem em seus olhos quando ele sorri, os
fiozinhos de cabelo branco que começam a despontar em sua farta cabeleira
escura, seus dentes branquinhos e seus olhos que sempre brilham quando ele está
feliz e satisfeito. Amo seu corpo, sua tatuagem escondida, amo sua pele e amo
sua personalidade forte, que é uma mistura de mau-humor com ironia, sarcasmo
e por vezes, por que não, negatividade sim. Como ele sempre diz, ele não é um
príncipe. Não nos modos que a sociedade exige.
Mas é meu príncipe. Todo meu.
— Então conte — ele beija minha mão e sorri. — Eu tenho todo o tempo do
mundo para te ouvir, porque só Deus sabe como senti falta da sua voz.
Cubro os seios e me ajeito da melhor forma que posso, virando-me de frente
para ele, que passa uma das mãos por minha cintura, apoiando minhas costas e
me dando mais segurança nessa posição. Isso sempre faz eu me encantar cada
vez mais: eu não preciso pedir que ele faça nada para me ajudar nesses pequenos
detalhes, mas ele sempre sabe o que fazer. E quando faz, nunca diz ou pontua
seus atos, apenas faz, como se não fosse nada demais.
— Eu voltei a jogar vôlei — digo e então ele se ajeita, arregalando os olhos e
sorrindo, como se minha novidade fosse tão importante para ele quanto é para
mim, e eu realmente não duvido que seja. — Ontem, quando você foi em casa,
eu tinha acabado de chegar do treino. Foi meu primeiro dia.
— E como foi? — Ele pergunta, genuinamente interessado. Recordo como
tudo aconteceu, lhe contando todos os detalhes, e ao final ele parece
profundamente orgulhoso de mim. — Quero muito te ver jogar no próximo
treino. Isso é maravilhoso, meu amor. Você me mata de orgulho.
Inclino-me, depositando um beijinho em sua boca.
— E eu também me inscrevi em um site de palestrantes. Me deu medo, mas
fui com medo mesmo — rio e ele ri junto comigo. — E hoje eu recebi um e-
mail. Eles me convidaram para um bate papo em um centro de reabilitação e
fisioterapia. Estou nervosa, mas ao mesmo tempo, estou ansiosa.
— Vai dar tudo certo. Você é incrível, e não precisa de muito para agradar ou
motivar quem quer que seja. Seu exemplo grita o que palavra nenhuma
conseguiria dizer, Soph. Você fez isso comigo. Pode fazer facilmente com
qualquer outra pessoa.
Sem dizer nada, apenas sorrio, mas sei que o rubor em meu rosto me entrega
facilmente. Mesmo estando assim, entrelaçada e nua com ele, ainda é difícil me
acostumar a momentos tão íntimos como esse que está acontecendo agora:
Alexandre me olha como se me adorasse dos pés à cabeça. É difícil demais não
reagir assim a tal coisa.
— Eu também quero te contar uma coisa — ele se arruma e então suspira,
antes de falar: — Eu tomei uma decisão.
— Que decisão? — Aperto os olhos, me interessando imediatamente. Nós
tínhamos muitos assuntos para pôr em dia, e pelo jeito, queríamos fazer tudo de
uma vez.
— Quero mudar de casa. Quero sair daqui.
Meu coração acelera um pouco e eu prendo a respiração. Não é possível que
seja pelo que estou pensando.
— Por quê? — Pergunto, por fim, suspendendo a respiração enquanto meu
coração martela meu peito em expectativa.
— Porque essa casa era da Júlia. Minha e da Júlia. E agora eu quero uma casa
nossa, do Alexandre e da Sophia. Não é porque eu quero esquecê-la, longe disso.
Vou levar algumas coisas dela, as fotos, para que nem Lilith e nem nós nos
esqueçamos dela, mas eu acho que você merece uma casa sua. — Meus olhos
marejam quando ele começa a falar. Não há qualquer pedido de casamento, nem
fizemos planos de um futuro, mas ele está aqui, bate à nossa porta, na verdade,
praticamente esmurra: Alexandre me quer ao seu lado, e isso supera qualquer
formalidade. Formalidades que eu não preciso quando o que mais importa está
presente: nossa vontade de estar juntos e o nosso amor. Nossa família
completamente fora dos padrões. —… Uma casa que você escolha, decore,
modifique pra sua mobilidade… Que faça como quiser — ele me beija. — Uma
casa para você ser tão dona quanto é do meu coração.
Meu rosto se ilumina, e antes que ele consiga dizer qualquer coisa, eu o puxo
com as duas mãos para um beijo apaixonado.
— Você não sabe o que isso significa para mim. Obrigada, mesmo. — Beijo-o
de novo, de novo e de novo. — Eu te amo. Eu te amo muito.
Ele sorri de volta, sem conseguir disfarçar o orgulho por ter me deixado tão
feliz.
— Que sorte a minha, não?
CAPÍTULO 53 – O CÉU É TESTEMUNHA
Meses depois.
Sophia
— Pronta? — Alexandre me pergunta enquanto tapa meus olhos por trás da
cadeira. Coloco minhas mãos sobre as suas e balanço a cabeça, concordando,
completamente ansiosa. Não sei o que ele está aprontando, mas estou doida para
descobrir.
— Prontíssima.
No momento em que digo isso ele solta suas mãos, e eu repito o gesto em
seguida abrindo os olhos, que brilham com a visão que tenho à minha frente. É a
entrada da nossa casa, nossa nova casa.
Nós a escolhemos juntos, e depois eu fui a responsável por escolher quase
tudo, desde móveis até todos os materiais para a reforma. Tudo exatamente da
maneira que eu queria, como Alexandre tinha me prometido.
Mas eu fiz isso no catálogo, e depois disso, ele simplesmente me afastou da
reforma, alegando que queria me fazer uma surpresa. Não entendi, mas confiei
nele e deixei em suas mãos. Agora acho que tenho uma ideia do que ele queria
fazer. Logo na entrada, tenho uma ideia de sua surpresa tão especial: há uma
rampa de acesso da rua à calçada e outra, da calçada à casa.
— Você adaptou a entrada — sussurro, quase sem acreditar, tocada pelo
carinho.
Ele dá um sorriso de canto, como se eu não soubesse de nada.
— Eu adaptei a casa inteira, Soph. Em todos os mínimos detalhes. Você não
vai precisar que ninguém pegue nada para você, ou tirar as coisas do lugar para
você passar. Aqui, tudo foi feito pensando em você.
Viro-me para trás e meu coração aquece ao ver sua expressão. É
impressionante como ele pensa em todos os detalhes, sempre. Em como, desde
que nos acertamos, sua maior tarefa é tentar me fazer feliz em cada minúcia, e
ele está se saindo muito, muito bem.
— Isso é sério? — Pergunto ainda abobada. Sem me responder com palavras,
ele apenas indica a entrada, sem me empurrar dessa vez. E é então que vejo que
logo na porta há revestimento contra o impacto da cadeira, além de um puxador
horizontal e uma maçaneta alavanca, que facilita para que eu entre sozinha, sem
precisar de qualquer ajuda.
Quando o faço, entro na espaçosa sala e percebo que os móveis estão
dispostos de uma forma que me dá completa autonomia de locomoção e
segurança. O espaço estático de um cadeirante é maior do que o de um andante,
mas para fazer um giro de 360 graus é ainda necessário mais espaço: quase o
dobro, na verdade, e aqui, eu tenho. Todos os móveis também me dão
possibilidade de alcance, e até o sofá é adaptado para melhorar minha
transferência, o que vai me permitir ficar sempre juntinho com eles.
— É lindo, amor — sussurro embasbacada, e ele parece até mais animado do
que eu quando corre até as janelas da sala e me mostra que todos os peitoris são
mais baixos, me dando uma visão tão ampla quanto a dele lá de fora, além de
terem trincos mais baixos, que facilitam que eu abra e feche a janela quando
quiser, sem precisar me esforçar ou chamar alguém. Os interruptores também
são mais baixos, e um detalhe que pode parecer bobo para qualquer um, é um
mundo de autonomia para mim.
Em nosso quarto, além de várias fotos nossas na parede, que não passam
despercebidas, vejo que o espaço para circulação livre ao redor da cama é ótimo.
No guarda roupa planejado, há cabideiros mais baixos para as minhas roupas e
um espaço da minha altura para meus cremes, perfumes, além de uma sapateira
vertical da minha altura. Tudo para facilitar o processo na hora de me arrumar.
No banheiro da suíte, além das portas também adaptadas, há barras de acesso
tanto em volta do vaso sanitário, que é mais alto do que o normal, quanto do
box, que além de espaçoso, conta com um banco dobrável na parede,
impermeável e antiderrapante, o que acabará com o problema de sempre levar
uma cadeira para o chuveiro na hora do banho.
Os registros são monocomando, o que facilita demais ajustar a temperatura da
água, e na pia, que é mais baixa, não há armários embaixo, mas sim um vão,
onde eu posso encaixar minha cadeira confortavelmente.
— Meu Deus, você não mentiu quando disse que adaptou todos os detalhes!
— Eu exclamo, e mesmo sem perceber que estou chorando, sinto as lágrimas
caindo em meu colo. Dessa vez, porém, são lágrimas de pura felicidade.
— E agora vamos para o cômodo mais importante, já que você gosta tanto de
cozinhar — ele diz e deixa que eu vá à frente. A cozinha com layout triangular é
linda, completamente planejada e a área livre para circulação em volta de todos
os móveis é de mais de um metro e meio. A pia é mais baixa para que eu possa
fazer tudo, e a mesa tem uma adaptação para minha cadeira. O armário é quase
todo composto de gavetas e não portas, o que facilita muito.
Em resumo, tudo é perfeito.
Perfeito para mim.
— Eu não sei nem o que dizer — me viro para ele, que se abaixa à minha
frente e me beija.
— Diz que vai se mudar amanhã mesmo e está tudo certo. Vai fazer todo o
trabalho valer a pena — ele sorri, apertando os olhos daquele jeitinho que eu
tanto amo. Desde que reatamos, eu continuo na casa da minha mãe, e só passo os
finais de semana com ele e Lilith, agora que tenho o vôlei e tudo o mais.
Também fizemos isso para irmos mais devagar, testando nosso relacionamento e
nossos sentimentos, mas diante de tudo isso, eu sei que não há mais o que pensar
ou adiar: somos feitos um para o outro, e tudo aconteceu no tempo que deveria
acontecer.
E é isso que importa.
Feridas quando cicatrizadas deixam de ser feridas. Elas passam a ser apenas
lembranças.
E nós estamos criando as melhores.
Beijo-o de volta e sorrio ao dizer, sem qualquer sombra de dúvidas em meu
coração:
— Me mudo hoje, se você quiser.

Alexandre
André estaciona o carro ao lado do meu, e eu desço antes de todo mundo,
encontrando com ele do lado de fora. O parque em que estamos é lindo, cheio de
árvores de sombra e flores, o lugar perfeito para o que planejei. Meu irmão tira
os óculos escuros, primeiro analisando bem o lugar, e depois me olha de lado,
dando aquele sorriso de canto tão característico e que eu conheço tão bem.
— Até que enfim tá dando uma dentro, hein? — Ele cutuca, mas eu sei que é
brincadeira dessa vez. André adora me irritar, e sinceramente depois de todo o
estresse que o fiz passar, acho que ele tem esse direito.
— O que você acha? — Pergunto esfregando as mãos e olho para trás,
enquanto Sophia conversa animadamente com Lilith, ainda dentro do carro.
Desde que ela voltou para nós, as duas não se desgrudam mais, por nada no
mundo. É a relação mais pura e desinteressada que eu já tive o prazer de
presenciar, e eu acho isso lindo. É uma relação real e inspiradora.
— Acho que você tá nervoso pra caralho — meu irmão brinca. Eu olho de
lado para ele e antes que o xingue, ele abre as mãos, se rendendo. — Tudo bem,
vai. Acho que o lugar é lindo, e que vai sair tudo como você planejou, então pelo
amor de Deus, relaxa. Para de ser neurótico, você já tá dando na cara.
Respiro fundo, tentando fazer minha mente acreditar que sim, vai dar tudo
certo. Relaxo os ombros, conto até três, mas o momento não dura mais do que
um segundo. As dúvidas me assaltam outra vez.
— Já falou com ele? Tá tudo certo? — Questiono e André revira os olhos,
desistindo de tentar me acalmar. Tira o celular do bolso, verificando o aplicativo
de mensagens. Então vira o aparelho e me mostra a tela.
— Sim, temos vinte minutos antes de ele levantar voo, então uma meia hora
ao todo. Vai ajeitar tudo logo para eu dar o ok para ele.
Assinto.
— Ótimo, vou tirá-las do carro — digo, mas André parece concentrado
demais sorrindo com cara de besta enquanto responde a mensagem de outra
pessoa. Dessa vez, quem provoca sou eu: — André, André… — Olho de soslaio
e ele guarda o celular no bolso, retomando sua postura inabalável. Meu irmão
odeia ser pego no pulo. — Você tá louco para perder o emprego, né?
— Ela é minha amiga — ele desconversa.
— A Sophia também era minha amiga — retruco, mas desisto dessa discussão
inútil. Por mais que eu saiba que ele está sim gostando dessa moça, André é
teimoso como uma mula. E apesar de todos os contratempos que eu sei que os
impedem de seguir em frente, eu realmente gosto dela. Acho que meu irmão
poderia ser muito feliz ao seu lado, se realmente se desse a chance. O problema é
que André só fala o que quer falar, quando quer e com quem quer. A única
pessoa que pode arrancar qualquer coisa dele é minha namorada.
Ele volta para seu carro para buscar Cilene e Roberto no exato momento em
que o carro dos meus pais estaciona. Caminho até meu carro, e quando abro a
porta, Lili está rindo de algo e Sophia tenta fazer uma cara séria, completamente
sem sucesso. Eu preciso ensiná-la a ralhar com essa menina, senão estamos
todos perdidos.
— Sua filha está terrível, Alexandre! — Ela diz e então eu a pego no colo, e
ela enlaça os braços em meu pescoço. Coloco-a em sua cadeira e enquanto ela
ajeita o vestidinho amarelo que eu tanto amo nas pernas, eu respondo, achando
divertido:
— Agora é minha filha, né? Você abraçou a causa, agora se vire — rio e ela
puxa Lilith para um abraço, mas logo a solta, dando-lhe um tapinha no bumbum,
para que ela vá correr.
— O que você quer que eu faça? Que eu corra atrás dela? — Ela faz a
piadinha e olha Lili ir à frente, encontrando os avós e os abraçando. Eu amo isso
em Sophia: amo o fato dela nunca, em hipótese alguma, se vitimizar. Ela apenas
encara o que precisa ser encarado, e o mais impressionante: com um enorme e
lindo sorriso no rosto e com o bom humor que ela me ensinou a ter diante das
dificuldades da vida. — Falando em gostar, eu amei essa ideia de piquenique no
domingo com toda a família. Nós nunca fizemos nada todos juntos, achei a ideia
genial.
Que bom que você pensa isso, minha mente grita, desesperada.
Paramos em uma parte mais aberta do parque, e enquanto Cilene estende a
toalha e minha mãe começa a colocar as coisas de comer, animadamente, Sophia
me pergunta por que não nos sentamos embaixo de uma árvore, na sombra.
Em breve você vai descobrir.
— Ah, o solzinho da manhã é gostoso. Quando esquentar mais, vamos para
outro lugar — respondo meio engasgado com a mentira, e André ergue os olhos
enquanto se senta no gramado, rindo de lado. Tirando eu e ele, ninguém mais
sabe o que vai acontecer hoje, e eu gosto de imaginar que a surpresa será geral.
Coloco Sophia sentada na toalha junto com todo mundo e começamos a comer
e conversar. Os minutos vão passando enquanto meu pai conta sobre um novo
negócio para o pai de Sophia e minha mãe e Cilene conversam animadas. André
brinca com Lilith e eu, bem… Eu não paro de olhar um segundo sequer no
relógio.
Sophia percebe minha inquietação e então toca meu braço, delicadamente,
com seu jeitinho único.
— Meu amor, está tudo bem? — Ela pergunta, a feição genuinamente
preocupada. Observo seus olhos cor de uísque, como eu sempre os defini, e só
então percebo que meu o vício mudou de beber o líquido âmbar para admirar sua
íris da mesma cor. O brilho que há neles eu nunca vi antes, e eu sorrio ao
entender que esse brilho se deve ao nosso relacionamento. Não só por mim, nem
só por ela, mas pelo todo que nossa vida se tornou: compramos uma casa nova,
temos nosso quarto, Lilith tem um jardim maior para brincar. Adotamos um
cachorro, passeamos aos domingos, brigamos às vezes porque isso é natural, mas
o principal é que somos uma família. Uma família que se ama, se respeita e se
entende, independente de laços sanguíneos ou de dificuldades pessoais.
Ela me faz enxergar o mundo de uma forma muito melhor, trouxe cor à minha
vida, e na prática, na vida real e no dia a dia, já somos casados. Mas eu quero
mais. Quero que o mundo saiba que eu a escolhi, independente de todas as
dificuldades que encontramos no caminho, mas também quero que saibam que
ela me escolheu. E ser escolhido por ela é algo precioso.
Só há uma única coisa que falta para nós, mas ela está prestes a mudar, e eu
confirmo isso quando o barulho característico do avião específico que contratei
se aproxima e em poucos segundos, aparece no céu.
— Está tudo ótimo amor… — Sussurro e toco seu queixo, levantando-o para
o céu, enquanto todos os outros presentes exclamam surpresa, menos André, que
ri como uma criança, achando nossa ideia concretizada o máximo do máximo —
…, mas está prestes a ficar melhor ainda. Está prestes a ficar perfeito.
Quando ela finalmente entende o que está acontecendo, seus olhos se enchem
de lágrimas, e automaticamente os meus também. Enquanto, em meio às
acrobacias, o avião escreve em fumaça no céu, eu tiro o anel do meu bolso e
repito a mesma frase que se forma lá em cima:
— Casa comigo?
— Alexandre, meu Deus, eu não acredito! — Ela exclama, meio em choque,
meio sorrindo. As lágrimas se misturam ao seu riso em uma sincronia de
sensações indescritível, enquanto todos nós observamos as letras se dissipando
no céu, e como uma mensagem divina, eu entendo que a vida é exatamente isso:
um instante e nada mais. Um mero instante de felicidade, e por isso, precisamos
aproveitá-la, mas principalmente, precisamos olhá-la com carinho. — Sim, sim!
— Ela estende a mão trêmula para mim e eu coloco seu anel, dessa vez
escolhido com todo meu amor, mas principalmente, escolhido no momento certo
e para o momento certo. — Claro que sim!
Puxo seu rosto para um beijo enquanto todos batem palmas, e Lili corre para
nos abraçar, envolvendo nossos corpos com seus bracinhos frágeis.
— Você vai ser minha mamãe de veidade! — Seu gritinho animado faz todo
mundo rir, e mesmo que eu não a corrija, eu sei e todo mundo sabe de uma
verdade inegável: Sophia já é sua mãe de verdade, simplesmente porque
escolheu isso, independente da nossa relação como homem e mulher. O coração
de Sophia escolheu Lilith muito antes de escolher nosso relacionamento, e como
pai, isso é importante demais para mim. É só mais um motivo para amá-la com
tudo de mim.
Quando a adrenalina do momento finalmente começa a passar, ela enxuga as
lágrimas com as pontas dos dedos e se vira para mim, colocando a mão sobre o
coração, emocionada:
— Esse foi o pedido mais lindo do mundo, Alexandre… Eu ainda estou sem
reação. Como você conseguiu fazer tudo isso?
Olho para André e ele encolhe os ombros, tentando fingir que não tem nada
com isso, mas ele tem, e muito. Quando compartilhei a ideia com ele, admiti, um
pouco desanimado, que eu não conseguia encontrar ninguém que fizesse o que
eu tinha em mente. Como meu irmãozinho não é de desistir tão fácil de nada, ele
procurou e procurou, até me lembrar que um dos pilotos da companhia é um
aposentado das forças aéreas, que trabalhou especificamente no Esquadrão de
Demonstração Aérea, conhecido popularmente como a Esquadrilha da Fumaça.
Nós fomos conversar com ele, e como um bom romântico, ele achou a ideia
genial e aceitou na hora me ajudar com meu pedido especial, e aqui estamos nós.
Eu quis fazer esse pedido tão singular porque o céu tem tantos significados para
nós, que é impossível descrevê-los. Além de ser parte fundamental do meu
trabalho, é também onde Júlia está e vela por nós, além de, claro, o fato mais
importante, o fato que eu queria que Sophia soubesse, com todas as letras:
— Eu tive a ajuda do nosso melhor amigo — olho novamente para meu
irmão, que pela primeira vez na vida, fica sem graça com algo. — Sem contar
que por você, Sophia, eu faço qualquer coisa. Você me faz voar, no sentido mais
lindo que essa expressão pode ter, mesmo estando em uma cadeira de rodas.
Você me faz voar sem precisar tirar meus pés do chão. Você me libertou para a
vida e me fez entender que a tragédia que aconteceu em minha vida não me
define, mas minhas atitudes sim.
Sophia sempre me diz que eu sou suas pernas, mas muito cedo eu percebi que
ela é meus olhos quando não posso enxergar. E assim, nos completando de
corpo e alma, é que vamos começar nossa vida.
— Meu Deus, eu te amo, sabia? — Ela ri, me beijando, e eu retribuo seu
sorriso, preso em seu olhar, esquecendo-me de todos a nossa volta. Aqui e agora,
o mundo é só nosso.
— Que bom que eu vou me casar com você, então.
CAPÍTULO 54 – SUA LUZ

Lilith
Papai me deixa sozinha por um minutinho, me dando um milhão de avisos
para não sujar meu vestido branquinho enquanto vai atrás do titio Andé. Ele fala
uns nomes feios quando sai do quarto – ele sempre fala quando é com o titio –,
mas eu finjo que não ouço para não estragar o dia dele, mas depois vamos
conversar sobre isso. Palavras feias vão pra jarra de palavras feias!
O que importa é que eu não vou sujar meu vestidinho, que é lindo. Tem um
laço rosa na cintura e várias floizinhas amarelas na saia. São as flores preferidas
da mamãe Soph, então a vovó escolheu esse, e eu acho que ela vai amar quando
me vir com ele. Eu sei que hoje é um dia muito importante, então eu tenho que
estar bem linda e arrumada, porque eu vou andar no meio de um montão de
gente. E essas pessoas vão tirar fotos minhas.
Preciso estar bem bonita.
Olho no espelho mais uma vez e treino meu sorriso, pra não fazer feio, mas
minha tiara também cheia de floizinhas cai no chão. Eu me abaixo para pegá-la,
e quando me ergo de novo, dou um sorriso enorme ao ver a mamãe Júlia pelo
espelho. Faz tanto tempo que ela não vem me ver que eu estava até tisti, achando
que ela tinha se esquecido de mim.
— Você está linda, filha — ela diz e eu sorrio, me virando de frente pra ela.
Nunca posso abraçar ela, mas o caloizinho que eu sinto quando ela está peitinho
assim é muito gostoso. É quase como um abraço quentinho, igual os do Olaf.
— Obrigada mamãe. Hoje é o casamento do papai com a Soph, sabia?
Mamãe sorri.
— Claro que sabia.
— E você veio pra assistir?
— Eu não perderia por nada, meu amor. Por nada.
— Então você vai me ver levar a aliança? — fico animada. Minhas duas
mamães no casamento!
— Vou, claro. Mas a mamãe também veio te dar um recado muito, muito
importante, então eu preciso que você preste bastante atenção, tá bom?
— Tá bom, mamãe. Tô ouvindo! — Arregalo os olhos, prestando atenção em
cada palavrinha. Se é importante não posso me distrair, o papai sempre me diz
isso.
— Você sabe que a mamãe mora com o Papai do céu, né?
Eu balanço a cabeça, concordando. Papai e Soph explicaram tudinho pra mim.
— Você gosta de aventura?
Ela pergunta sorrindo, e eu balanço a cabeça um montão de vezes, porque eu
amo aventuras.
— Você é muito corajosa, meu amor. Então… Na casa do Papai do céu tem
muitas moradas, minha filha. Vários lugares para se viver, para conhecer, e está
na hora da mamãe ir viver uma nova aventura, não é legal?
— É muito legal, mamãe!
— Então, para viver essa aventura, a mamãe vai precisar ir embora. Por
enquanto, não vamos nos ver mais. Agora você tem a mamãe Soph, e ela cuida
muito bem de você, e eu quero que você cuide bem dela e do papai também, tá
bom? Você me promete? De mindinho? — Concordo, mesmo querendo chorar
porque a mamãe não vai mais vir me ver. Acho que ela percebe que eu tô tisti,
porque ela continua falando: — Mas daqui um tempo, nós nos encontraremos
novamente, eu te prometo.
— Aqui, mamãe? — Arregalo os olhos, preocupada. Será que eu vou para a
casa do Papai do céu?
— Sim, aqui. Mas a mamãe não vai ter mais o mesmo corpo. Nem a mesma
voz, nem o mesmo nome. Mas eu te prometo, ainda serei eu.
Como assim? Se ela não vai ter mais o mesmo corpo, a mesma voz e nem o
mesmo nome, como vai ser minha mamãe? Isso tá estanho.
— E como eu vou saber que é você? — Pergunto, meio desconfiada dessa
conversa.
— Você vai sentir no seu coraçãozinho. Nosso amor nos une há muitos anos,
filha. Nada o engana — ela diz e sorri. — Eu te prometo que você irá saber que
sou eu.
Se a mamãe tá pometendo, eu sei que é verdade. A mamãe nunca mente.
— Tá bom, mamãe. Só me dá uma dica, tá?
— Sim, filha. Eu serei a sua Luz — ela fala essa palavra bem devagazinho —,
a sua Luz, não se esquece disso, tá?
Balanço a cabeça concordando e ela sorri. Eu pisco e então papai entra
apressado no quarto. Ele tá correndo desde cedo, e é engraçado ver ele assim.
Papai é muito neivoso.
Ele não vê a mamãe como eu. Ninguém vê.
— Vamos filha? Está na hora — ele me dá a mão e eu a seguro. Antes de sair,
eu olho para trás mais uma vez, e ela continua lá. Me assopra um beijo, que eu
seguro na palma da mão, colocando pertinho do coração.
Ela vai ser minha Luz.
Não posso esquecer.
Minha Luz.
CAPÍTULO 55 – SIM, PARA SEMPRE
Alexandre
Olho ao meu redor tentando controlar a respiração, enquanto observo a
decoração: no gramado há cadeiras dispostas, onde os convidados já esperam a
chegada da noiva. Um longo tapete vermelho se estende entre elas e flores
silvestres enfeitam o corredor que vem até a mim. Estou parado como um dois
de paus, com todos os padrinhos atrás e o juiz de paz, que lê e relê alguma coisa,
forçando a vista e segurando os óculos na ponta do nariz.
Meu nervosismo é tanto que eu já reparei em todos os pequenos detalhes: a
cor do vestido das madrinhas, que são iguais, os ternos azul-marinho que os
padrinhos usam, formando uma imagem muito bonita de fundo. Reparo até que o
playboyzinho cheirando a leite está entre os convidados, muito sorridente, e
constato que esse abusado veio mesmo. Sophia fez questão de convidá-lo, o que
me gerou um bico do tamanho do mundo por dias. Vê-lo acompanhado de uma
moça, porém, faz minha birra diminuir um pouquinho.
Só um pouquinho.
A questão é que poucas vezes na vida fiquei tão nervoso como estou agora.
Esfrego as palmas das mãos umas nas outras, depois as passo no cabelo, tendo a
certeza de que já estraguei todo o trabalho que o cabelereiro teve. Ajeito minha
gravata pela décima vez, e aprumo os ombros, deixando o terno reto. Respiro
fundo e olho mais uma vez para trás, buscando os olhos de André, que é nosso
padrinho. Ele ri de lado, claramente tirando sarro da minha cara de desespero,
depois dá um passo à frente, falando em meu ouvido:
— Não vá desmaiar. Vai acabar com a cerimônia, maninho.
— Ela está muito atrasada, André — sussurro de volta, no auge do meu
nervosismo. Meu Deus, e se ela não vier? E se desistir de mim?
André olha no caríssimo relógio de pulso, depois ergue o rosto e diz, devagar
e separando as sílabas, como se eu fosse uma criança, para que eu entenda bem.
— Ela está atrasada exatamente três minutos, Alexandre. Isso se esse relógio
estiver certo — ele ergue a sobrancelha, me desafiando a achar uma resposta
para isso. É, não tenho. Acho que estou só nervoso mesmo.
E como eu não tenho resposta para suas gracinhas, resolvo devolver na mesma
moeda:
— Achei que você ia trazer uma acompanhante. O convite extra que eu
mandei era para ela, se você não entendeu a dica.
André suspira, e olha para o lado.
— Eu entendi sim a sua falta de noção, mas óbvio que eu não a trouxe. Ainda
bem que você não abriu essa sua boca grande — ele se curva um pouco e fala,
um pouco mais baixo: — Eu gosto do meu emprego, idiota.
— Mas gosta mais dela.
— Você é louco. Ela é minha amiga, Alexandre.
— Amiga que você já… — antes que eu termine a frase, ele me fuzila com os
olhos, praticamente um aviso mudo para que eu me cale.
— Eu não gosto dela. Não desse jeito — meu irmão insiste.
— Continue dizendo isso para você mesmo, André. Quem sabe uma hora você
acredita? — Eu gosto de provocá-lo; faz o tempo passar mais rápido.
Antes que ele possa retrucar uma resposta, os violinos começam a tocar e os
convidados se viram nas cadeiras, observando meu pequeno anjo entrar sorrindo
com uma almofadinha nas mãos, onde descansam as alianças.
Lilith sorri, ciente da atenção que rouba, enquanto muitos celulares e
filmadoras disparam flashes em sua direção. Sorrio também para a cena e
quando ela finalmente chega até mim, me entrega as alianças, faz eu me abaixar
e diz no meu ouvido:
— Cuida bem dela, tá bom, papai?
— Nós vamos filha. Eu e você — pisco para ela, que assente, concordando.
Então vai para o lado de André, que dá a mão para ela.
Arrumo a postura, ajeito o nó da gravata e coloco as mãos cruzadas na frente
do corpo, respirando fundo, esperando o momento mais aguardado. Quando
Sophia finalmente aparece em meu campo de visão, é difícil não sorrir com sua
imagem, mas é ainda mais impossível não chorar.
Minha mulher está um verdadeiro anjo.
Linda.
Deslumbrante.
Roberto empurra sua cadeira pelo tapete ao som de Little do you know, uma de
suas músicas preferidas e que diz muito sobre nosso relacionamento. Em seu
colo, ela traz um enorme buquê de girassóis, cultivados pelo meu próprio sogro.
Seu cabelo está preso em um coque, e seu vestido de longas mangas de renda
cheio de pedrarias, abraça seu corpo, fazendo com que ela pareça uma princesa.
Minha princesa.
Puxo o lenço do meu bolso e enxugo os olhos, sentindo um leve tapinha de
encorajamento em minhas costas. Nem preciso me virar para saber que é de meu
irmão. Apesar de nossas inúmeras discussões sem sentido e nossas piadinhas
idiotas, eu sei, com tudo de mim, que não estaria onde estou se não fosse por ele.
Se não fosse por sua ajuda e por sua paciência comigo. E por suas broncas
também, claro.
Meu irmão é incrível.
Na verdade, toda a minha família é. A que eu já tive, tenho e a que estou
formando agora. Eu sou um cara abençoado e finalmente poder enxergar isso,
apesar de todas as dores e pesares, é maravilhoso. Toda a minha fé foi
restaurada, o que me faz olhar para o céu sem qualquer mágoa ou dor, mas sim
cheio de gratidão, porque eu entendi uma verdade que poucas pessoas aceitam:
às vezes, Deus não impede que as coisas difíceis aconteçam, mas Ele nos dá a
força necessária para superá-las.
Dou alguns passos em direção a ela, e quando Roberto me entrega Sophia, eu
me abaixo, exatamente como sempre faço quando quero olhá-la nos olhos e ela
me dá seu enorme e radiante sorriso, que na maioria dos meus dias ruins, ilumina
tudo à minha volta.
Beijo sua testa, e me levanto, dando a mão para seu pai, agradecendo-o pelo
anjo que ele colocou na terra. Então, seguro as alças de sua cadeira, e vamos
assim, em nosso jeito de dar as mãos até o altar, onde o juiz nos espera. Depois,
me coloco ao seu lado e me ajoelho, lhe dando a mão, ficando em pé de
igualdade com ela. O juiz sorri para meu gesto, e começa a cerimônia. Confesso
que não presto muita atenção em suas palavras, porque estou encantado demais
com minha noiva, tão linda ao meu lado, prestes a se tornar minha mulher
oficialmente.
A verdade é que eu não paro de olhá-la um segundo sequer.
Ela queria um casamento simples, para poucas pessoas, mas eu não. Eu quis
lhe dar o melhor casamento: muitos convidados, um lugar espaçoso, a melhor
orquestra, o melhor vestido.
Eu quis lhe dar o melhor simplesmente porque ela merece. Por ser quem é, por
me fazer ser quem eu sou.
Depois de tudo o que a vida nos tirou, nós merecemos o melhor. Eu sei que
seria maravilhoso e teria igual valor se fosse apenas um casamento no cartório,
porque somos nós, mas eu não sou hipócrita: qualquer coisa que eu puder fazer
por ela, eu farei.
Teremos as melhores lembranças do dia de hoje.

Sophia
Depois que a cerimônia religiosa acaba, seguimos com as tradições da festa.
Nós dançamos a valsa nupcial sim, do nosso jeitinho, tiramos fotos com os
padrinhos, almoçamos, cortamos o bolo, dividimos as taças de refrigerante –
porque Alexandre é tão correto com suas promessas que não quis beber nem
hoje – e então chega o momento de jogar o buquê.
Posiciono-me no meio do gramado e espero todas as mulheres solteiras
ficarem atrás de mim. Conto até três e então jogo o mais alto que posso, virando
rapidamente em minha cadeira para ver quem foi a sortuda. A acompanhante de
Rodrigo segura o buquê, um pouco assustada, sem saber como reagir. Sorrio
abertamente e então busco meu ex-namorado com os olhos, que ri sem parar da
cara de assustada da moça. Pisco para ele em sinal de cumplicidade e ele pisca
de volta antes de ir até ela e a beijar, me confirmando o que eu já imaginava: ele
está se apaixonando novamente.
E nossa, como é bom saber disso.
Não somos melhores amigos, porque meus pais e Alexandre ainda têm um
pouco de dificuldade em aceitá-lo em minha vida, mas Rodrigo faz parte da
minha história, e eu preciso respeitar isso. Ele me fez conhecer o amor, a dor, a
força, o perdão. Mostrou-me que nem sempre o que pensamos de alguém é cem
por cento verdade, e que ouvir o outro lado da história se faz necessário muitas
vezes nessa caminhada da vida. Não somos nunca os detentores da verdade
absoluta. Somos somente seres singulares vivendo em plural.
Suspiro pensando nisso e olho em volta, sem acreditar que depois de anos de
uma paixão que não tinha qualquer chance de acontecer, aqui estamos nós,
casados. Observo as pessoas dançando, o altar ainda montado, as luzes e a
decoração impecável. Sorrio, um pouco incrédula de que tudo aquilo é realmente
meu.
O começo da nossa história.
Alexandre entra em meu campo de visão e sorri, porque ele sabe exatamente o
que eu estou pensando. Nesses meses de convivência, qualquer suspiro meu
pode ser facilmente interpretado por meu marido. Nossa cumplicidade é linda,
nosso amor é real, nossa família, mesmo que não tradicional, é a mais incrível do
mundo. Eu não mudaria nada. Se eu tivesse a chance de ter tudo o que eu sempre
quis, ainda escolheria tudo o que eu já tenho: minha cadeira, que me ensinou as
melhores lições da vida, ainda escolheria minha filha do coração, meu marido
cabeça dura, meu cunhado esquentadinho, minha mãe superprotetora, meu pai
calmo.
Eu os escolheria mil vezes se preciso fosse.
E eu não poderia ser mais feliz.
[…]
Uma semana depois.
Alexandre abre a porta de nossa casa, e um furacão de cabelos pretos corre em
nossa direção, com seu fiel companheirinho atrás. O cachorrinho que demos para
Lilith se tornou seu melhor amigo nessa casa, e onde ela está, ele está atrás,
abanando seu rabinho e fazendo festa.
— Mamãe, Papai! — Grita, animada — Eu estava com saudade! — Ela corre
e me abraça, sentando-se no meu colo. Alexandre a beija e então se abaixa para
pegar Floquinho no colo. Sim, ela deu esse nome ao cachorro. Segundo nossa
filha, foi porque ele parece um floquinho de neve.
— Nós também, meu amor — beijo seu cabelo. — Como você se comportou
enquanto estivemos fora? Foi boazinha? — Pergunto, mas minha sogra surge na
sala, correndo. Quando vê que chegamos, abre um enorme sorriso ao ouvir
minha pergunta.
— Ela foi muito boazinha, não é, meu amor? — As duas trocam um olhar
divertido, e algo me diz que Lilith aprontou todas, mas prefiro fingir que
acredito. Agora eu consigo entender o que minha mãe quer dizer com “evitar a
fadiga”. — E vocês, se divertiram? — A mãe de Alexandre pergunta, sorrindo.
Ela é uma mulher incrível. Apesar de não poder estar o tempo todo conosco,
recebeu-me em sua família de braços abertos, e sempre me diz que é grata por eu
ter devolvido o sorriso ao seu filho.
A verdade é que ambos fizemos isso um pelo outro. Juntos somos completos.
— Foi maravilhoso — Alexandre responde, se jogando no sofá, cansado. No
dia que nos casamos, fomos da festa direto para uma pousada no interior do Rio
Grande do Sul, e os pais de Alexandre se dividiram com os meus pais na tarefa
de cuidar de Lilith. Aproveitamos o friozinho, descansamos e passamos uma
semana mágica. Por conta do trabalho dele não pudemos ir mais longe, mas foi
incrível, de qualquer forma.
Exatamente como eu sempre sonhei que uma lua de mel pudesse ser.
[…]
Encaro minha imagem no espelho e prendo o cabelo, observando meu rosto
refletido ali. Depois de meses juntos, eu finalmente consigo ver a beleza que
Alexandre tanto exalta, e sorrio ao finalmente entender que é mais uma questão
de alma do que de corpo.
Nossas almas se conversam.
Ouço um toquinho na porta e ao me virar, o vejo parado ali, encostado no
batente, como sempre fazia quando cada um tinha seu quarto. Não sei há quanto
tempo ele está ali, me admirando. Sorrio desconfiada.
— Você sempre chega quietinho — reclamo e ele ri, vindo em minha direção.
Abaixa-se e coloca meu cabelo atrás da orelha, me observando por alguns
segundos com os olhos brilhando.
— Você está ainda mais linda, se é que isso é possível — ele me beija
demoradamente. — Acho que casar te fez muito bem.
— É porque eu tenho um marido maravilhoso.
— E não é que tem mesmo? — Alexandre sendo Alexandre. Ele me beija de
novo, rindo das nossas besteiras. — Vem cá, eu tenho uma surpresa para você lá
na sala.
Saímos do quarto, e Alexandre me deixa ir à frente.
Assim que entro no cômodo, vejo algo que faz meus olhos se encherem de
lágrimas. Na maior parede, há duas fotos que pegam praticamente toda a lateral
da sala: a primeira é uma enorme imagem de Júlia com Lilith ainda bebê nos
braços. Ao lado dela, porém, há outra foto: a do nosso casamento. Eu vestida de
noiva, e Lilith sentada em meu colo, na cadeira, sorrindo feliz com sua janelinha
banguela para a câmera.
Olho para trás e vejo Alexandre com as duas mãos nos bolsos, estudando
minha reação. Sei que, por mais que ele saiba como me sinto em relação ao
espaço de Júlia em nossas vidas, ainda há um receio de que eu me chateie por
algo assim. Mas ele não precisa se preocupar com isso, por que eu consigo ver
esse gesto como amor em sua forma mais pura. Amor e respeito, na verdade.
Nós a amamos e respeitamos seu espaço em nossas vidas.
Júlia se foi, mas também é nossa família. Nunca deixará de ser.
Sorrio para ele, deixando claro que eu amei a ideia.
— Amor, são lindas. Não sei nem o que dizer.
— Para a Lilith sempre se lembrar de que tem duas mães maravilhosas, meu
amor. E para que ela seja sempre grata por isso.
Vou até ele, que se abaixa e beija o topo da minha cabeça. Depois segura
minha mão enquanto continua olhando para os quadros.
— A Júlia foi uma benção na minha vida, Soph. Uma benção que eu conheci
na época certa. Mas você foi um presente, meu amor, um presente de Deus
quando eu mais precisei. Algo que parecia predestinado para mim, mesmo que
eu tenha demorado um tempo para perceber e entender. E todos nós sabemos que
na vida, precisamos de bênçãos e presentes. Obrigado por ter tido paciência
enquanto eu finalmente entendia isso.
Não respondo nada, apenas o puxo para um beijo e depois um longo abraço.
Não há palavras para isso. Não há palavras para nós.
Lilith entra na sala e corre até a gente, nos abraçando também, sem nem saber
o motivo. Sempre que há uma oportunidade de mostrar seu carinho e sua luz,
minha filha aproveita. É da sua natureza.
— Eu amo vocês — digo, dessa vez sem culpa nem receios. Eles são meus e
eu sou deles. Não existe mais o sentimento de estar me apossando de algo que
não me pertence e a leveza disso é sem igual.
Essa é minha família.
Lilith se desenrosca de nós e sorri, com sua janelinha que a deixa ainda mais
linda.
— Nós também te amamos, mamãe. Não seja bobinha — ela toca a ponta do
meu nariz com o dedo e depois se vira para seu pai — Não é papai?
Alexandre acaricia meu rosto e então sorri para Lilith, confirmando.
— Muito, filha, muito.
E então, apertada entre eles, eu confirmo o que eu sempre acreditei ser
verdade, mesmo nos meus piores momentos: a vida é generosa.
A vida é benção.
Mas às vezes, perdidos nas névoas do desânimo e da dor, só não conseguimos
enxergar isso claramente.
EPÍLOGO
2 anos depois
Alexandre
— Como você acha que ela vai reagir? — Pergunto para Sophia enquanto
olho dentro do berço decorado todo em amarelo, que já está preparado há meses,
apenas esperando a feliz ocupante daquele espacinho, e dos nossos corações.
— Eu acho que ela vai amar ter uma irmãzinha — Sophia diz e então, com a
voz baixinha para não acordar a mais nova integrante da família, me pede: —
Pega ela para mim, está na hora da mamadeira.
— Oi, meu amor — sussurro ao pegá-la, apoiando a cabeça dela em meu
peito, com cuidado. Já faz tanto tempo desde a última vez que peguei um bebê
tão pequeno em meu colo que ainda tenho medo de quebrá-la.
Vou com ela até a cama e nos deitamos. Sophia para ao lado, me entrega a
mamadeira e eu a vejo acordar, ainda resmungona. Sorrio, sentindo todos os
temores que eu tinha sobre conseguir ou não amar essa criança se dissiparem
como névoa em minha cabeça no exato momento em que sinto seu coraçãozinho
bater junto ao meu.
Nosso bebê não é nossa filha de sangue. Esperamos por uma aprovação no
sistema de adoção por quase dois anos, e hoje finalmente tivemos a permissão
para buscá-la no abrigo. Apesar de poder engravidar, Sophia optou por não fazer
isso e eu entendi todos os seus motivos. Na verdade, não só entendi como os
apoiei. Além de ser um pouco mais difícil para ela, sabemos que minha mulher é
capaz de amar uma criança sem precisar que ela tenha saído de seu ventre. Lilith
é a prova disso.
E se ela consegue, eu sei que consigo também. Aliás, com ela agora em meu
colo, eu tenho certeza absoluta disso.
Optamos por dar lar e amor para quem não tinha. Optamos por dar uma
chance para quem a vida já começou difícil.
Quando ela surgiu como uma das opções, nós não pensamos duas vezes em
aceitá-la como nossa, mesmo sabendo das inúmeras dificuldades que teremos
pela frente.
Nossa filha é cega.
Ela nasceu assim, e mesmo com pouco menos de três meses de vida já foi
recusada por vários casais, incluindo os próprios pais biológicos.
Mas por nós ela foi aceita de braços abertos, e todos os medos que senti, todas
as inseguranças a respeito dela, todos os receios e anseios foram rapidamente
substituídos por um amor tão grande que sufoca meu peito. O mesmo amor que
senti quando peguei Lilith nos braços pela primeira vez.
Terminamos a mamadeira e em questão de minutos, ela volta a dormir. Sua
respiração é tranquila, calma, e um barulhinho bem baixinho sai de seu narizinho
quando ela suspira. É quase como música para meus ouvidos.
Abraço-a, envolvendo-a com minhas mãos e a coloco bem junto ao meu peito.
Sophia faz a transferência para a cama, e em poucos segundos, se aninha junto à
nós, descansando uma das mãos em suas costinhas e a outra afagando meu
cabelo.
— Ela é linda, não é?
Concordo, balançando a cabeça, ainda de olhos fechados.
— Ela é perfeita. O nome que você escolheu condiz muito com ela.
Nesse momento percebo como valeu a pena toda a caminhada até aqui. Sinto
uma lágrima escorrer e agradeço a Deus por não me permitir desmoronar no
caminho, por não me deixar afundar na solidão e na mágoa.
Eu nunca estive sozinho. Minha filha, Lilith, sempre esteve comigo, sendo
minha razão para continuar. Depois, veio Sophia, e agora, minha bebezinha,
minha mais nova força.
Minha mais bela razão para continuar a ser feliz está comigo: minha família.
Beijo a cabecinha da minha filha e sussurro, ainda emocionado:
— Eu vou te proteger do mundo. Nada de ruim te acontecerá, nunca. Vou ser
um bom pai. Eu te prometo que vou ser um bom pai, minha filha.
Meu coração se aperta e Sophia me abraça. Não consigo entender por que
estou tão emotivo, mas a verdade é que essa criança me ganhou no primeiro
contato, no primeiro olhar. O amor que eu já sinto por ela é tão grande e
inexplicável, como se já nos conhecemos há uma vida.
— Você já é um ótimo pai, meu amor — Sophia sussurra ao meu lado —,
você já é.
Delicadamente, aperto minha filha contra meu peito mais uma vez, sentindo-a,
reconhecendo-a como minha.
Minha garotinha.
Minha.
[…]
— Eu vou ter uma irmãzinha? — Lilith pergunta entusiasmada. Depois de
dois anos de terapia, sua dicção está mil vezes melhor, e agora ela já fala quase
normalmente.
Nós esperamos ela chegar da escola para lhe fazer a surpresa, e a reação está
sendo melhor do que imaginamos. Seus olhos brilham em admiração, e eu não
consigo imaginar um momento em que eu tenha sido mais feliz do que hoje.
Ela se debruça sobre o berço e vê a bebezinha ali, dormindo tranquilamente,
então se vira para Sophia, ansiosa.
— Mamãe, eu posso pegar ela?
— Só se você tomar todo o cuidado do mundo. Você promete? — Minha
mulher diz, mas eu sei que Lili será a melhor irmã do mundo. Minha filha
nasceu para amar.
— Claro que sim! — Ela bate palminhas e então corre para se sentar na
beirada da cama, enquanto eu tiro o delicado corpinho de dentro do berço, e ela
se remexe toda, resmungona. Quando eu a entrego para Lili, ajeito-a em seus
braços, e ela segura como se tivesse a coisa mais preciosa do mundo em suas
mãos, o que não deixa de ser verdade.
— Ela também nasceu do seu coração, mamãe? Igual a mim? — Lili pergunta
para Sophia, que balança a cabeça, concordando. Essa é uma explicação que
ensinamos Lili a dar toda vez que alguém questiona a maternidade de Sophia.
— Sim, do meu coração e dessa vez, do coração do papai também.
— E do meu também! — Lili diz sorrindo, e Sophia concorda, feliz. — Ela é
linda. Vou dividir todas as minhas bonecas com ela, e o meu quarto também, e
todas as minhas roupas…
Sophia ri e eu decido acalmar minha filha. Às vezes sua animação ultrapassa
todos os limites.
— Sim, filha. Você vai poder fazer tudo isso. Mas com calma e aos poucos,
porque sua irmãzinha é um pouco diferente de você.
— Como assim diferente, papai?
Olho para Sophia, buscando ajuda. A pessoa boa com as palavras aqui é ela,
não eu. Ela me olha de lado e então sorri, antes de explicar:
— Você vê o mundo todo colorido, não é, filha? Ela não. Ela não enxerga, e
vai precisar de toda a nossa ajuda e apoio.
Lilith olha para a irmã e pensa um pouco antes de voltar a nos encarar com um
enorme sorriso no rosto.
— Eu vou ajudar, mamãe! Eu vou ensinar ela a fazer tudo, prometo!
Sophia vai até onde Lili está sentada e sem falar nada, beija seu cabelo,
emocionada. Consigo ler nos olhos da minha esposa a gratidão por nossa filha
mais velha ter aceitado a mais nova assim, tão fácil, mesmo com todas as
dificuldades e diferenças. Sem perguntas, sem ciúmes, sem qualquer
questionamento.
Um ser iluminado, é isso que nossa Lili é.
— Papai, ela tem um nome? — Lili pergunta curiosa. Olho para Sophia, que
me devolve um sorriso acolhedor. Assim como Lilith tem um nome especial,
nossa filha mais nova também terá um. Um que faz jus a tudo o que ela veio para
ser em nossas vidas.
— Tem filha, ela se chama Luz.
Lilith me olha, embasbacada, e então sorri. Beija a testa da irmã enquanto seus
olhos brilham, como se ela se lembrasse de algo.
É quase um olhar de reconhecimento.
Ela continua a olhar tão devotada para Luz, que tudo dentro de mim se
contorce, me dando uma enorme vontade de chorar, mesmo sem saber o motivo.
Acho que o dia foi longo e cansativo, e as minhas emoções estão à flor da pele.
— É o melhor nome do mundo, papai.
Então Lili se abaixa e cochicha no ouvido da irmãzinha algo que eu nunca irei
esquecer. Se o amor pudesse se materializar, tenho certeza de que essa seria uma
de suas manifestações:
— Você vai ser minha Luz… E já que você não pode enxergar, eu te prometo
que vou ser a sua também.
Como se entendesse o recado, Luz agarra o dedinho de Lili, emocionando a
todos nós. Ela mal chegou, mas já é uma parte tão grande de nós que eu mal
consigo imaginar um futuro sem ela.
Nosso amor. Nossa esperança.
Nossa Luz.
Escrever O céu acima do céu foi uma experiência desafiadora. Falar sobre
temas tão difíceis me tiravam noites de sono, e acho que foi por isso que eu
demorei mais de seis meses para finalizá-lo.

Mas mais uma vez, meus personagens me salvaram. Alexandre, Lilith, André,
Júlia e até Rodrigo me conduziram por essa história com suavidade, mas Sophia
falou por si só muitas vezes, e eu aprendi com ela. Busquei conhecimento sobre
assuntos que eu nem fazia ideia, chorei escrevendo suas cenas, e mais uma vez,
aprendi que perdoar é divino e recomeçar é essencial.

Acho que eu nasci para escrever sobre isso: perdões e recomeços.

Agradeço primeiramente à minha família, que me apoia incondicionalmente.
Ao meu pai, que torce por mim lá do céu e à minha mãe, que segura as pontas
aqui na terra. Aos meus leitores e aos meus amigos. À Becca Pessoa, por ser
essa revisora fantástica, essa “faz tudo” divina, mas principalmente, essa
amiga sem igual. À Natália Saj, claro, porque o tempo passa, mas ela continua
aguentando meus surtos. À Paula Ravenala, por me ajudar na construção da
Sophia e por ser uma leitora incrível. À Denise, por ser minha beta e a
qualquer hora do dia ou da noite dizer: manda que eu leio!

Vocês fizeram esse livro junto comigo!

E por último e não menos importante, eles, Diego e Vicente, por serem minha
luz, todos os dias.

Com amor,

Cássia Carducci é paulista, nasceu em 1991, e é casada desde 2009. Ser mãe
do Vicente é sua maior conquista na vida. Bacharel em Letras e Tradução pela
Universidade do Sagrado Coração (USC), é apaixonada pelo universo dos livros
desde criança. Tradutora por formação e escritora por amor, vive uma constante
jornada de evolução, desde que descobriu que poderia transformar o hobby em
algo a mais. Hoje ela já tem doze títulos publicados online e três títulos em
formato físico.
Table of Contents
Prólogo – Sophia
Prólogo – Alexandre
Capítulo 1 – Voltando para casa
Capítulo 2 – Duas vidas
Capítulo 3 – As aparências enganam
Capítulo 4 – Saudade é o amor que fica
Capítulo 5 – Nada é tão mau quanto parece
Capítulo 6 – Quando se perde tudo, o que resta?
Capítulo 7 – Sobre anjos
Capítulo 8 – Autoflagelo
Capítulo 9 – Um anjo veio me falar
Capítulo 10 – Quem mais nega é quem mais mente
Capítulo 11 – Cura necessária
Capítulo 12 – Vulnerável
Capítulo 13 – Um lugar feliz
Capítulo 14 - Sentimentos inválidos
Capítulo 15 – Abraçando o céu
Capítulo 16 – Infinito particular
Capítulo 17 – Flores em vida
Capítulo 18 – Uma visita inesperada
Capítulo 19 – Cicatrizes invisíveis
Capítulo 20 – Decisões difíceis
Capítulo 21 – O passado é o remetente
Capítulo 22 – O mais puro amor do mundo
Capítulo 23 – O amor está em tudo
Capítulo 24 – Minhas verdades
Capítulo 25 – Sentir é melhor que saber
Capítulo 26 – Então…
Capítulo 27 – Insônia
Capítulo 28 – Falsa inocência
Capítulo 29 – Boa noite, anjo
Capítulo 30 – Algumas verdades
Capítulo 31 – Resiliência
Capítulo 32 – Como eu te vejo
Capítulo 33 – Do nosso próprio jeito
Capítulo 34 – Aconteça o que acontecer, desfrute
Capítulo 35 – Cada uma tem seu lugar
Capítulo 36 – A cura para todos os males
Capítulo 37 – Completa, finalmente
Capítulo 38 – Nosso jeito de fazer amor
Capítulo 39 – Um lugar que seja meu
Capítulo 40 – Inesperado, mas nem tanto
Capítulo 41 – Meu refúgio
Capítulo 42 – Erros Justificáveis
Capítulo 43 – Abrindo os olhos
Capítulo 44 – Sempre inteiro, nunca pela metade
Capítulo 45 – O que eu preciso
Capítulo 46 – O amor é a única coisa que importa
Capítulo 47 – A falta que ela me faz
Capítulo 48 – Para todo recomeço, há antes um fim
Capítulo 49 – Uma nova perspectiva
Capítulo 50 – Somos feitos de erros e acertos
Capítulo 51 – Sobre recomeçar
Capítulo 52 – Totalidade
Capítulo 53 – O céu é testemunha
Capítulo 54 – Sua luz
Capítulo 55 – Sim, para sempre
Epílogo
Agradecimentos

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