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Pierre Brune/

-
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UnB
JOSÉ OLYMPIO
fDITO I .A 3

Duplo

Uma das primeiras denom inações do duplo fora daqui (aspecto sobre-humano). é o motor
é o alter ego. No contexto das comédias de absoluto de suas ações. A dualidade ressalta na
Plauto, chamam-se sósias ou menecmas duas análise do sentido da obra. Não tomaremos esse
pessoas que impressionam pela semelhança de cam inho, preferindo restringir-nos ao estudo
uma em re lação à outra, a ponto de serem dos textos onde aparece uma pista lingüística
confundidas. A mesma ordem de idéias encon- explícita, tal como "duplo", ·' eu - o outro -
tra-se nas expressões como almas irmãs, almas ele", "eu - dois em um ", "eu - o mesmo",
gêmeas, irmãos siameses ... O termo consagra- a homonímia ou a semelhança. a proximidade
do pelo movi mento do romantismo é o de Dáp- estranha assinalada pelo "eu" que levanta a
pelganger, cunhado por Jean-Paul Richter em questão da identidade. Todas as obras que ana-
1796 e que se traduz por "duplo", "segundo lisaremos dão testemunho, até em seu signifi-
eu". Significa litera lmente "aquele que cami- cante, dessa estranha presença.
nha do lado", "companheiro de estTada". En- Nossa análise leva em consideração tão-so-
dossamos a definição dada pelo próprio Rich- mente obras do Ocidente, das quais este é um
(Somente ter: "assim designamos as pessoas-que se vêem dos grandes mitos. Mito que demonstra uma
Mauro, mais
ninguém,
a si mesmas" .,0 que daí se deduz é que se trata, afinidade particular com um gênero literário -
enxerga em primeiro lugar, de uma experiência de sub- a ficção fantástica - e se prolonga na ficção
Oliver como jetividade. Outras fotmu lações literárias goza- científica. Mas o mito do duplo é também muito
seu duplo. rão de certa prosperidade: "je est un autre" (eu bem representado nas artes plásticas (a arte
é um outro) (Rimbaud), "e/ otro" (o outro) medieval com seus seres de duas cabeças, o
(Borges). maneirismo, o surrealismo) e na arte cinemato-
Segundo J.-P. Yernant (Mythe et tragédie en gráfica.
Grece ancienne [Mito e tragédia na Grécia Estamos diante de um a figura ancestral
antiga] , ed. Maspéro), Édipo é o paradigma do que na Iiteratura terá sua apoteose no século
homem " desdobrado". Sófocles (Édipo rei) XIX, na esteira do movimento romântico,
questiona até que ponto o homem, cuja condi- embora o mito ainda seja bastante produtivo
ção consiste em estar aqui (aspecto humano) e no século XX. O atributo "FA" é
bastante interessante.
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Sua fonna preferida é a novela. que conta a foi moldado. Passar a seu Ka significa morrer.
perturbação introduzida por um acontecimento O Ka sobrevive à morte do corpo. A idéia da
estranho (Goethe . A fonnadramática, que per- dupl icidade, da geminação como solução afor-
mite representar o duplo por meio de um segun- tunada exprime-se também no mito de O ban-
do personagem em cena é escolhida essencial- quete de Platão (discurso de Aristófanes). O
mente antes e depois do romantismo, enquanto homem desdobrado, a mulher desdobrada ou o
que a poesia :i:ica por levantar o problema do andrógino representavam a união primitiva, o
eu. apodera-se de bom grado desse mito que estado de perfeição a que os homens põem fim
assume na balada romântica acentos folclóri- quando ameaçam os deuses: a bipartição é o
cos. castigo infligido pelos deuses, detenninando a
Em compensação, o mito é um pouco menos representação do homem que se segue (cada um
freqüente no romance. de nós não passa de um homem que foi cortado
ao meio), representação importante para as re-
caídas literárias do m ito, pois implica uma ma-
leabilidade do ser humano, cujo destino se con-
Aspecto mítico lendário e simbólico verte em busca: a busca do duplo com seus
aspectos am bíguos - benéficos e maléficos-
testemunha uma passagem, uma transgressão
Sua eflorescência durante o romantismo não fora dos limites do humano, um castigo simbo-
nos deve fazer esquecer que o mito do duplo lizado pelo corte (esse mito está ligado àqueles
remonta a épocas bem mais recuadas no tempo: da revolta dos homens contra os deuses [Pro-
antigas lendas nórdicas e germânicas contam o meteu, Ícaro ... ] ).
encontro com o duplo; a libertação do duplo é No Gênesis, o homem começa sendo um.
um acontecimento nefasto que muitas vezes Deus corta o homem em dois; reencontramos
pressagia a morte. As lendas da alma viajante aí a idéia subj acente ao mito de O banquete: a
que sai do corpo do adormecido e assume o cisão resulta num enfraquecimento. Em todos
aspecto animal ou o de uma sombra constituem, esses mitos, o homem é interpretado como pos-
nesses relatos, uma das representações do alter suidor de uma natureza dupla- em particular,
ego. O duplo é também Schutzgeist (espírito masculina e feminina. A estrutura do homem
protetor). interior pressupõe a união de dois elementos
As divindades pré-colombianas são duplas diferentes: concepção que está presente, nas
(masculinas/femin inas), inclusive no tocante a religiões tradicionais, na separação entre alma
suas atribuições benéficas/maléficas: o número e corpo.
um do panteão mex icano é Ometeotl: Deus- A idéia da dualidade da pessoa humana -
dois (""Popoi-Yuh" = livro do conselho dos masculino/feminino, homem/animal, espíri-
maia-quíchuas da Guatemala. Primeira tradu- to/carne, vida/morte - revela uma crença na
ção francesa de G. Raynaud [1927]: os deuses, metamorfose (até mesmo na metempsicose)
os heróis e os homens da antiga Guatemala). que impl ica uma certa idéia do homem como
Miguel Angel Asturias retomará esses da- responsável pelo seu destino.
dos, particularmente nas Leyendas de Guate- As mitologias dão realce a esse duplo aspecto
mala (1929): lenda da tatuan a, em que o Mestre benéfico/maléfico do ser vivo, dicotomia que
Amendoeira ora assume a forma humana ora a reencontramos nas figuras-símbolo das reli-
fonna vegetal; o duplo é, em geral, o nahual, giões (p.ex., diabo e anjo da guarda no cristia-
forma animal intercambiável com a fonna hu- nismo). O ocultismo, com o símbolo da morte-
mana. Nele se traduz a lembrança de uma sim- renascimento, influencia também as produções
biose entre o animal e o humano. Segundo a literárias em que se manifesta o duplo.
ética maia, os gêmeos Hun Batz e Hun Chuen A maior parte dos estudos realizados no
eram os modelos do homem civilizado. século XX sobre o duplo privilegia o ângulo
No Egito antigo, o Ka é um duplo, manifes- psicológ ico, a começar pela interpretação psi-
tação das forças vitais; este princípio tem uma canalítica de O. Rank ( 1914) que relaciona os
existência independente do corpo com o qual diferentes aspectos do duplo na literatura com
Duplo I 263

o estudo da personalidade dos autores, com o mentada numa análise das obras de que eles são
estudo dos mitos (Narciso) e das tradições mi- personagens, ainda não é, entretanto, suficiente-
tológicas; os heróis que se desdobram apresen- mente restritiva, o que o leva a comentar, por
tam uma disposição amorosa voltada para o exemplo, Bartleby de Melville ou Les Misérables
próprio Ego e sofrem de uma incapacidade de (Os miseráveis) de Victor Hugo, que, em nosso
amar. Um conflito psíquico cria o duplo, proje- entender, não fazem aparecer nenhum duplo.
ção da desordem íntima; o preço a pagar pela Keppler faz o inventário de sete modalida-
É possível libertação é o medo do encontro. Mas o duplo des d iferentes de duplo: o perseguidor, o gê-
associar essa está ligado também (23 tese) ao problema da meo, o(a) bem-amado(a), o tentador, a visão de
passagem ao
mote, como
morte e ao desejo de sobreviver-lhe, sendo o horror, o salvador, o duplo no tempo - mas
revelado por amor por si mesmo e a angústia da morte indis- poderíamos acrescçntar outros mais. Ele assi-
Mutarelli, de sociáveis. Visto sob essa perspectiva, o duplo é nala sua relação com o Bildungsroman (roman-
todas (ou a
uma personificação da alma imortal que se ce de formação), seu papel de catalisador de
maioria), de
suas obras. toma a alma do morto, idé ia pela qual o eu se uma transformação profunda do eu e, conse-
protege da destruição completa, o que não im- qüentemente, sua não menos profunda ambi-
pede que o duplo seja percebido como um güidade (mal/bem, subjetivo/obj etivo). Basean-
" assustador mensageiro da morte", do que re- do-se na psicologia de Jung (conceito de "inte-
sulta a ambivalência de sentimentos a seu res- gração da personalidade"), ele caracteriza o
peito (interesse apaixonado/terror): ele é ao duplo como uma parte não apreendida pela
mesmo tempo o que protege e o que ameaça. imagem de si que tem o eu. ou por ela excluída:
Rank evolui de um conceito puramente freu- daí seu caráter de proximidade e de antagonis-
(A ideia por diano (repressão do desejo sexual) para uma mo. Trata-se das duas faces complementares do
trás da morte,
concepção junguiana, o sentimento de culpabi- mesmo ser.
criação e
morte de suas lidade do eu indo dar no desejo de morte, para Ainda dentro da perspectiva junguiana,
personalidade renascer, de acordo com a visão junguiana, num Arenberg faz uma aproximação entre a con-
s artísticas) outro ser. frontação com o duplo, que se conclui por um
O estudo de Rogers fundamenta-se na aná- processo de m orte/ressurreição nos românticos,
lise do inconsciente freudiano e de seus conteú- e a concepção dos ritos de passagem do xama-
dos infantis, distinguindo um desdobramento nismo; para ela, os românticos estão em busca
objetivo (duas pessoas) de um subjetivo (divi- de uma nova mitol ogia, fundada também na
ded se/f). Tymms distingue entre duplos por iniciação. W. Krauss, que se apóia numa abor-
divisão e duplos por multiplicação. As obras dagem puramente literária, desenvoh·e a idéia
citadas como bibliografia são pertinentemente de que a nostalgia do infinito provoca urna
comentadas no livro de Keppler ( 1972), ao qual cisão dolorosa do ser. Opõem-se, em dualismo
peço ao leitor que se reporte. irreversível, o que satisfaz o desejo e o que a ele
O estudo de Keppler dedica-se unicamente se recusa. A conclusão é a fórmula banal do
ao estudo dos duplos na literatura e comenta romântico como habitante de "dois mundos".
muitos exemplos anglo-saxões. Sua definição O mito do duplo, no Ocidente, acha-se em
dos duplos é mais rigorosa do que as demais. estreita ligação com o pensamento da subjeti-
Para ele, o duplo é ao mesmo tempo idêntico vidade, lançado pelo século xvn ao formular
ao original e diferente - até mesmo o oposto a relação binária sujeito-objeto, quando até en-
- dele. É sempre uma figura fascinante para tão o que prevalecia era a tendência à unidade.
aquele que ele duplica, em virtude do paradoxo Essa oposição- concepção unitária do mun-
que representa (ele é ao mesmo tempo interior do/concepção dialética- é refletida pela revi-
e exterior, está aqui e lá, é oposto e complemen- ravolta que sofre o mito literário do duplo.
tar), e provoca no original reações emocionais Desde a Antiguidade até o final do século XVI,
extremas (atração/repulsa). De um e outro lado esse mito simboliza o homogêneo, o idêntico:
do desdobramento a re lação existe numa tensão a semelhança física entre duas criaturas é usada
dinâmic a. O encontro ocorre num momento de para efeitos de substituição, de usurpação de
vulnerabilidade do eu original: A caracteriza- identidade, o sósia, o gêmeo é confundido com
ção que Rogers nos oferece dos duplos, funda- o herói e vice-versa, cada um com sua identida-
(Continuação de como o mito é tratado no decorrer das eras)
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de própria. A tendência à unidade prevalece reúne num mesmo lugar dois irmãos gêmeos
também quando um personagem desempenha idênticos, com o mesmo nome e que não se
dois papéis. conhecem, o que dá rriotiv.o a urna série de
A partir do término do século XVl, o duplo qüiproquós. A ação não sai da família, mas o
começa a representar o heterogêneo, com a gêmeo que chega a Epidamo usurpará, sem
divisão do eu chegando à quebra da unidade querer, a identidade de seu irmão, a ponto de
(século XIX) e permitindo até mesmo um fra- ver-se este obrigado a defender-se para não ser
cionameqto infinito (século XX). considerado louco. Os dois irmãos envolvem-
Essa evolução é um reflexo da nova concep- se numa aflitiva seqüência de ações e reações
ção que se passa a ter do lugar ocupado pelo automáticas que só chega a um termo na cena
homem na natureza. No pensamento das reli- de reconhecimento em que as testemunhas es-
giões monoteístas, o homem é feito à imagem tarrecidas defrontam-se com dois seres vivos
de Deus, seu duplo é objetivo; ao passo que, idênticos, não mais sabendo qual é qual.
com a afmnação da independência do ego e de Essa motivação do enredo condicionada
Deus, no século XVII, a divindade é conduzida pela semelhança entre dois seres será retornada
à morte: o livre exercício da razão data do por·Shakespeare na Comedy oferrors (Comé-
momento em que Descartes se debruça sobre o dia dos erros, 1592- I 593 ). Shakespeare duplica
seu eu e fundamenta no "cogito" (2" Meditação o número de gêmeos, acrescentando ao par de
metafísica) as verdades da metafísica e da mo- gêmeos patrões um par de gêmeos criados, o
ral que antes se deduziam de Deus. É o primeiro que multiplica os qüiproquós e provoca um
passo de urna reflexão que considerará o sujeito contraponto cômico à interrogação sobre a
corno o centro do mundo (Kant) e que dará identidade, com os criados expressando inge-
corno resultado sua hipertrofia (Fichte, Schel- nuamente essa sensação de perda da sua pessoa
ling), fonte do sentimento de alienação (o eu que lhes causou a série de confusões, reso lvi-
duplo dos românticos). das, afinal, na cena de reconhecimento geral. A
O século XX mantém-se na problemática do mesma vertente será explorada por Régnard em
heterogêneo, com a psicanálise, enquanto que Les Ménechmes, por Goldoni em I due geme/li
a filosofia (pragmática) situa o sujeito numa veneziani (Os gêmeos venezianos, 1748), por
relação ternária sujeito-língua-objeto: o mito Tristan Bemard em Les Jumeaux de Brighton
do duplo continua a ser atual, como figura (Os gêmeos de Brighton, 1939), por Sacha
privilegiada d,o heterogêneo. Guitry em Mon Double et ma moitié (Meu
duplo e minha metade, 1931 ).
A comédia italiana suscita urna posteridade
I. O duplo como figura literária a partir da comédia La Calandria
(1513), do cardeal Bibbiena, que põe em cena
do homogêneo dois gêmeos, menino e menina, vivendo sepa-
rados, e faz com que se encontrem em Roma; a
menina, vestida com trajes masculinos, toma-
I. Os gêmeos e a usurpação de se a réplica perfeita do irmão. Nesse enredo
identidade nas comédias de confusão inspira-se Gli Ingannatti (Os ludibriados, 153 I),
de autor anônimo, em que também vemos dois
Nas lendas heróicas, o herói gêmeo é aquele irmãos gêmeos separados, Fabrizio e Lélia,
que conseguiu tomar visível no mundo seu com a moça maquiavelicamente fazendo-se
duplo. Assim sendo, o gêmeo é, na literatura, a passar por. homem para recobrar o amor que
primeira forma do duplo. Flaminio já não demonstra por ela. É o retomo
A semelhança traço a traço com um perso- do irmão a Módena e a conseqüente revelação
nagem vivo, a ponto de confundir os que os do duplo que reajusta os casais e permite um
freqüentam, é o argumento de comédias que desfecho feliz.
remontam a Plauto, este já um imitador dos Lope de Rueda retoma a história em Los
gregos. Em Menaechmi (Os rnenecrnas), repre- Enganados (Os ludibriados, l 556), tirada da
sentada pela primeira vez em 206 a.C., o acaso comédia italiana.
Em G/i Inganni (As aparências enganado- méritos, é aceito como rei verdadeiro. ~x­
ras, 1562), de N. Secchi, tornamos a encontrar rando a autenticidade de sua fi liação. "\;'~~
:.una situação análoga: um menino e uma meni- peças o tema sofre modificações e é a necessidaêc
na gêmeos são vendidos como escravos em de salvar o país da vacância do poder que leva a
"\;'ápoles; a moça, em trajes masculinos, desper- utilização de um sósia. Encontram-se neste caso
ta noutra mulher uma paixão que seria lamen- A un tiempo reyyvasallo (Rei e vassalo ao mesmo
:ável se não aparecesse a tempo o irmão. Sha- tempo, século XVII, de autor anônimo), e Sulpiria
icespeare, em Twelth night (Noite de Reis, (1672), de A. Draghis.
1602), vai buscar inspiração numa segunda G/i Na comédia E/ palacio confuso (Confusão
lnganni - esta de autoria de C. Gonzaga e no palácio) de Lope de Vega ( 1630), a rainha
encenada em 1592 - para dispor de novos escolheu para substituir o rei morto na guerra
recursos no agenciamento de duas intrigas pa- um esposo que se põe a banir os nobres e a dar
ralelas; a reunião dos gêmeos, a confusão de poderes ao povo; enquanto o rei dorme, ela
identidade já não servem mais que para resolver utiliza um sósia que dá ordens contrárias. O ver-
uma situação tomada inextricável graças às dadeiro rei fica achando que está louco; ele encar-
estranhas aspirações do coração humano. A na o mal, para a nobreza, e será aos poucos
intriga principal é movida pelos gêmeos Viola neutralizado pela utilização do sósia. No fmal da
e Sebastian, sósias com alma de aventureiros. peça sabe-se que o rei e seu sósia camponês são
gêmeos, filhos do rei que morreu em combate.
P. Comeille retoma o esquema em Dom
2. O sósia e a usurpação Sanche d'Aragon (1649), onde o esposo vivo
despótico é também neutralizado por seu gê-
voluntária de identidade meo que se criou entre camponeses.
A usurpação da identidade de um pretenden-
A substituição como prova de amizade é te ao trono é usada em E! Imperador fingido (O
utilizada na história em latim de Radulfus Tor- falso imperador, 1650), de G. de Bocangel, em
tarius Ami e Amile (I 090), na qual Ami se La Crueldad por el honor (A crueldade por
submete ao ordálio no lugar de Amile e àcabará causa da honra, 1623), de J.R. de A1arcón y
sendo salvo por ela. Em Titus et Gisippus (sé- Mendoza e em E! pastelero de Madrigal (O
culo XII), de P. Alfonso, Gisippus faz-se subs- pasteleiro de Madrigal, 1660), de J. de Cuellar,
tituir junto à esposa por seu amigo e sósia, bem onde um pasteleiro que se identifica com o rei
mais apaixonado do que ele, sem que ela se dê de Portugal é executado pelos espanhóis.
conta do que está acontecendo. Em todas essas peças, a semelhança utiliza-
No teatro espanhol do Renascimento, a se- d-a para substituir uma pessoa por outra serve
melhança de um rei ou de um dignitário com ao desenrolar da ação e ao objetivo de mano-
um camponês, utilizada para fins políticos, é bras políticas relacionadas com a maneira de
um tema de usurpação do poder que se explora governar.
freqüentemente; em E! Rey p or semejanza (Rei A usurpação de identidade pode valer-se
por semelhança, 1600), de Grajales, a rainha faz tão-somente do uso de roupas do sexo opos1o
com que seu amante assassine o rei, que é um (travestissement, " transformismo"): trata-se.
déspota, e, para ocultar o crime, põe em lugar na verdade, de dois papéis desempenhados pe:Z
do rei um camponês estranhamente parecido mesma pessoa para levar a bom termo ffi-.rig25
com o finado. O camponês se tornará um rei amorosas - como acontece em MiJes G!aria-
exemplar. A substituição por um duplo revela- sus (O soldado fanfarrão, cerca de ~06 a.C.), er
se benéfica para o pais. Plauto, e em Don Gil de las cal:.as l~ {Dom
Vemos o mesmo tema em La Ventura con e! Gil dos calções verdes, 1617 . de TL--so de ~o­
nombre (A aventura pelo nome), de Tirso de Jina. Aparecem em dado momento quatro dife-
Molina (1630). O pastor Ventura, rei substituto rentes Dom Gil, fonte de qüiproquós in.fulrúlS
muito benéfico, que vai combater vitoriosa- (no mesmo caso estão as peças EJ hombre pobre
mente os saxões, é, na verdade, o meio-irmão todoes trazas (O homem pobre é rodo farrapos)
do rei assassinado. O falso rei demonstra seus de Calderón, e E! semejame a si mesmo (O
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retrato de si mesmo, 1630), de J.R. de Alarcón com1ca desventura conjugal. Ele duplica a
y Mendoza). ação, fazendo o casal de criados Sósia/Cleantis
O " transformismo'" que ajuda a fazer avan- expressar sentimentos análogos, mas transpos-
çar a ação e a intriga amorosa será utilizado nas tos em relação ao amo.
comédias de Marivaux. como por exemplo em O ponto culminante da progressão dramáti-
Le)eu de I 'amour e de I 'hasard (O jogo do amor ca é a revelação da dupla impostura, que inspira
e do acaso, 1630). A troca com o duplo cria- o desfecho: não mais se trata, como em Plauto,
do/criada põe em evidência as relações sociais de uma missão religiosa e salvadora (nascimen-
(contraste entre a vestimenta e a linguagem). to de Hércules, o matador dos monstros) mas
Amim. em Die Verkleidungen desfranzosis- de uma aventura extraconjugal banalizada: é
chen Hofmeisters und seines deutschen Zo- Sósia, com sua argumentação torrencial, quem
glings (Os transformismos de um preceptor dá o tom ao conjunto.
francês e de seu aluno alemão, 1835), utilizará Kleist reporta-se a Moliere em seu Anfitrião
o tema do disfarce mais para focalizar a duali- (1806). Giraudoux retoma a trama em Amphi-
dade de todo ser e a instabilidade do real (o tryon 38 ( 1929). ·
duplo como representação do heterogêneo). Grande número de obras trata da metamor-
fose momentânea de um deus num mortal de
quem e le usurpa os traços e a identidade. Na
3. O duplo sobrenatural Historia regum Britanniae ( 1132-1135) de Geof-
frey ofMonmouth, por exemplo, Uterpandragon
As comédias que tratam do duplo mágico passa uma noite de amor com a rainha Igraine por
provêm das lendas heróicas da união de um ter asswnido os traços de seu marido.
deus com uma mortal (un ião mística do céu e O Mahabharata (século IV-V a.C.), livro
da ten·a, que deve produzir o nascimento de um sagrado da Índia, mostra em sua terceira parte
herói salvador: mitologia indiana, ciclo das len- ("NaJa e Damayanti", livro III) quatro deuses
das tebaicas que se relacionam com a metamor- que tomam a aparência Ge NaJa e ajudam Da-
fose em touro na presença de Europa, em cisne mayanti a encontrar finalmente a NaJa verda-
na de Leda, em chuva de ouro na de Dânae ...). deira.
Em Roma, Plauto dá forma teatral à lenda, O encontro com o duplo mágico é sempre
escrevendo Amphitruo (Anfitrião, 201 -207 fonte de angústia para quem é assim confronta-
a.C.), tragicomédia que junta o maravilhoso ao do com o enigma da identidade e acaba por
doméstico, que humaniza os deuses em sua julgar-se maluco, mesmo quando o tema é usa-
visita à Terra pelo processo da metamorfose e do para fins cômicos.
do empréstimo de personalidade. Júpiter toma A epopéia de Gilgamesh - ciclo de poemas
emprestados os traços de Anfitrião para gozar em língua sumeriana, da literatura assíria do
dos favores de Alcmena, enquanto Mercúrio final do rn milênio - conta as tribulações de
assume a forma do escravo Sósia. A narrativa Gilgamesh, rei de Uruk que se tomou um fardo
do nascimento de Hércules está no primeiro para seus súditos. Atendendo aos rogos destes,
plano: do pai mortal, Anfitrião, nasce um filho a deusa Aruru cria Enquidu, a réplica de Gilga-
mortal, Íficles; Zeus engendra o herói, uma mesh. De início eles combatem entre si; depois,
noite mais velho que seu irmão gêmeo. feitos amigos, realizam juntos proeza sobre
Os efeitos cômicos são obtidos com a con- proeza. Enquidu morre nos braços de seu ami-
frontação entre Sósia e o falso Sósia (Mercú- go. Gilgamesh corre o mundo à procura do
rio). O verdadeiro Sósia termina sendo despo- segredo da vida eterna.
jado de sua identidade, vencido pelas provas. Em contraste com um Gilgamesh inteira-
No final da peça, Júpiter revela o embuste, mente absorvido pelas lutas exteriores no mun-
embora conserve sua majestade de Deus. do, Enquidu, seu complemento, é aquele que se
Rotrou tira da peça latina, em 1636, uma volta para as coisas da alma. Mesmo depois de
comédia - Les Sosies (Os sósias). Moliêre ter passado para o reino das sombras, Enquidu
retoma esse tema em moda no seu Amphitryon continua a dar ajuda a Gilgamesh, que até então
( 1668), transformando a lenda heróica numa ignorava a existência do inferno.
Duplo I 26-

Enquidu mostra-l he a necessidade que tem ( 1605-1615), de Miguel de Cervantes. Por seu
o homem de negociar com o mundo invisível caráter de herói mimético, Dom Quixote aspira
por meio do culto prestado aos espíritos. Gi lga- a ser o duplo encarnado dos heróis dos roman-
mesh, o homem exterior, só é levado a com- ces de cavalaria, imitador, no plano da realida-
preender seu ser interior (Enquidu) quando este de, de um produto da arte. Ele quer imitar
vai para o mundo das sombras e lá perman ece Roland, Amad is de Gaula: "sou louco e louco
como uma réplica sua. É a confrontação com o devo ser", proclama, a reprodução do mesmo é
duplo mortal que lhe ensina o destino do ho- sua maneira de viver: o herói se defme em
mem e sua dimensão metafísica. função da analogia com duplos literários. Fan-
Em todas as obras até aqui consideradas, a tasiou-se com roupas que não são suas e um
identidade de quem assim se vê dupl icado não nome que não é seu. Ao tornar-se Don Quijote
é posta em discussão. O duplo instaura uma de la Mancha, rompe com a biografia de Don
substituição apenas momentânea, e o original Quixano, modesto fidalgo de província, 50
reencontra em seguida todas as suas prerroga- anos, egoísta e solitário. Preferiu morrer para o
tivas. O desfecho da história promove a reafir- mundo e renascer sob a forma do "reparador de
mação da unidade do ser. danos" que institui Rocinante e Dulcinéia: é a
Mas o homem também é tentado a uti lizar a escolha da verdadeira vida, a instituição de um
magia para seu proveito - por exemplo, para outro mundo dentro deste em que vivemos.
alcançar os prazeres do amor que a primeira Mas aquele que se desdobrou (duplicou) cria
identidade lhe interditava. É o que acontece em para si a ilusão de agir sobre o exterior, quando
Avatar (1857), de Théophile Gauthier. Magia na verdade não faz mais que objetivar seu dra-
humana e ciência oculta reve lam-se, porém, ma interior - a consciência da inanidade da
impotentes para conseguir a troca perfeita de " verdade ira" vida instaura o nascimento para
personalidade . Casanova, ao envelhecer, trans- a vida espiritual e heróica. Dom Quixote, que
porta-se para a identidade de um duplo mais vive no mundo dos romances de cavalaria, só
jovem e que é amado, para gozar de uma última admite como parceiros seres mascarados, com
noite de am or ("O retorno de Casanova", 1917, disfarces, falsos cavaleiros, falsas princesas,
de A. Schnitzler). O sonho de eternidade por falsos escudeiros.
meio da reencarnação num duplo jovem serve A realidade é duplicada pela ficção e sofre
de tema tanto para Strange stoty (Estranha his- sua influência, ainda que a intenção seja de
tória, 1862), de Bulwer-Lytton, como para The ridicularizá~ la. A esfera de evolução dos perso-
story of the late Mr. Elvesham (A história do nagens e de Dom Quixote cinde-se em duas:
falecido Mr. Elvesham, 1897), de H. G. Wells. Dom Quixote traz o imaginário para o real, em
Através do mito do duplo, vemos que o que de certo modo deixa sua marca; procura
homem aos poucos se arroga a prerrogativa dos abolir o tempo ao mimar com rigor máximo o
deuses, de se transformar passando por diver- código de vida dos cavale iros, sem com isso
sos avatares e de renascer. deixar de negar a dualidade da realidade e de
sua representação na ficção e na arte (cena das
marionetes); encarna o que na literatura não
tem substância, com a pretensão de viver no
11. Do homogêneo ao heterogêneo mundo real. Fazendo de si próprio um mito
vivente, mobiliza Sancho Pança para os servi-
ços menos sublimes do real, transferindo-lhe
A abertura para o espaço interior do ser, ass·im os encargos da carne que o estorvam
perspectiva que se inaugura no século XVII, (veja-se em Marthe Robert, L 'Ancien et le Nou-
força ao abandono progressivo do postu lado da veau [O antigo e o novo], ed. Payot).
unidade da consciência, da identidade de um Mas quem é o duplo de quem? Dom Quixote
sujeito, única e transparente. tanto é o tentador de Sancho como a vítima de

- No ponto de junção das épocas que assina-


lam uma radical mudança na concepção do
dupl o situa-se Don Quijote de la Mancha
um Sancho que o desvia de sua meta. A afeição
que liga um ao outro faz da dualidade de base
uma unidade profunda, a do sensível e o inteli-
268 I Duplo

gível. Por sua incapacidade de agir sobre o em cena, ele provoca o encontro consigo pró-
mundo, Dom Quixote é um herói da duplicida- prio, com o que e le será: uma estátua de pedra.
de modema: ele fracassa na tentativa de unir o O usurpador de identidades acabará fixado
ideal à realidade. Vê-se aparecer a representa- numa forma definitiva. E é a fascinação exerci-
ção de um homem em dois. pela reunião de dois da por esse confronto entre o morto e o vivo, a
personagens que não se parecem e são comple- estranheza que desperta esse fascinador fasci-
mentares. nado pelo mal, que o tornam uma etapa impor-
O personagem de Don Juan que nasce no tante na figuração do duplo.
teatro em 1620 com a peça E/ Burlador de Fausto é o irmão inimigo de Don Juan, a
Sevilla y e/ convidado de piedra (O embusteiro quem ele se acha associado na cultura ocidental
de Sevilha e o convidado de pedra), de T irso de (G rabbe). Fausto interiorizao que em Don Juan
Mofina, é representativo da transição. É o trans- estava dissociado, representando a associação
gressor que se choca com o representante da Lei possível do instinto de vida, do desejo e da ação
(o comandante). ( Rank, em seu estudo sobre pensada. O Fausto de Goethe tem duas partes,
Don Juan, nele vislumbra o conflito entre duas das quais a primeira (Fausto I, 1806) mostra um
instâncias: o Eu individual sem fre ios e o Eu Fausto desesperado pela coexistência em si
social; dentro desta mesma perspectiva, Don próprio de duas alm as, uma que se agarra à
Luis, seu pa i (veja-se o Don Juan de Mo liere), ten:a, a outra que aspira a soltar-se dela para
é a parte da própria alma que Don Juan rejeita). e levar-se ao mistério divino (ato V, versos 870-
Mas o desdobramento também ocorre por 876); Mefistófeles não leva em consideração o
obra dele mesmo, Don Juan: no texto de Tirso, ele desejo de Fausto que se exprime pela metáfora
é Proteu que multiplica as identidades falsas para do Streben (desejo de reun ir o saber e o conhe-
seduzir: com a cumplicidade da noite, faz-se pas- cimento pela experiência).
sar pelo amante que está sendo esperado, promete Fausto é duplo no sentido de que, como
casamento. Em Moliere, ele é aquele que desdo- representante da subjetividade, aspira a encon-
bra (duplica) o sentido das palavras. trar o mundo objetivo, superando assim as con-
O enganador de mulheres gostaria tambem tradições de seu ser por meio de uma ação sobre
de enganar o divino, mas nesse aspecto não é o mundo.
bem-sucedido. Mais que o de Hoffinann ( 1813), A síntese do pensamento e da ação só se
que evoca através dele o conflito entre poderes pode realizar dentro de uma pequena comuni-
divinos e demoníacos (o desejo de alcançar na dade. A colocação de Mefisto a seu lado, que
Terra o infinito graças à posse da mulher é estimu la Fausto como o mal, acentua a estrutu-
diabólico), é sobretudo o Don Giovanni de Da ra bipolar associada à figura da morte e do
Ponte e Mozart ( 1787) que manifesta a estrutu- renascimento.
ra do duplo: Leporello é o Don Giovanni no O Fausto de Goethe representa no desdobra-
desempenho das tarefas menos nobres, uma mento a explicação decisiva da consciência
representação dele, enquanto o próprio repre- com o mal. O instante de plenitude, ideal ina-
senta o papel de Leporello junto à mulher deste: cessível que suprimiria o dilaceramento, é o que
Don Giovanni é a parte heróica, Leporello a mantém aceso esse Fausto, de quem Goethe faz
parte bufa. A sedução de Don Juan reflete-se na o protótipo do humano, num processo contínuo
sem-vergonhice de Leporello. que se alimenta de impulsos, fracassos e êxitos
Por intermédio do duplo, Don Giovanni es- parciais. A dissociação de Fausto, o fato de
capa ao castigo: é ele próprio quem aponta o colocar-se perto dele o espírito do mal, que ele
duplo como culpado - a confusão lhe permite enfrenta como um adversário, dão ao drama seu
existir e caçoar com desprezo dos representan- aspecto dinâmico: a confrontação com o mal -
tes da Lei . E Leporello identifica-se com Don e com o mal em si mesmo - é uma etapa neces-
Giovanni. (Nesses anos que precedem a Revo- sária; o cunho dualista da tragédia de Fausto
lução, a relação entre o amo e o criado se encontra sua justificação na relação constante
inverte.) entre acontecimento e caráter.
Don Juan representa o instinto vital em opo- Longe de ser um enfraquecimento, a divisão
sição ao social. Obrigando a Lei a comparecer é o que instaura uma relação ativa com o mun-
Duplo I 26"'

do, a condição dialética da criatura: o homem nhar dos signos que o sugerem. A proposta feita
dilacerado, condição da liberdade do homem. um ano mais tarde, de trocar sua sombra por sua
De modo que Fausto li (183 1) realiza a alma, é recusada por Schlemihl.
síntese entre subjetividade e mundo obj etivo na Ao duplo exterior (sombra = imagem so-
idéia de polaridade como união dos contrários: cial) opõe-se alma = identidade profunda.
"wir sind geeinte Zwienatur" (somos a união Schlem ih l opõe-se à inversão dos valores des-
de duas naturezas). sa sociedade, opõe-se à submissão à sombra. O
Os conflitos representados são os de urna herói acaba por aceitar sua condição de homem
alma à procura de si mesma. O mito do duplo sem sombra, renuncia a seu falso duplo, guar-
torna-se aqui a metáfora ou o símbolo de uma dando sua alma intacta para viver apartado dos
busca de identidade que leva ao interior - homens. Chamisso suscitou toda uma posteri-
mesmo se, na cena exterior, no mundo, o origi- dade para sua perda de sombra.
nal tem pela frente um duplo que é objetivo. H.E. Ewers nela se inspirará para fazer o
Passamos do exterior para o interior. O conflito fi lme O estudante de Praga; Hoffmann, para
essencial transfere-se para a luta por um melhor escrever Die Abenteuer der Sylvesternacht (As
eu na escolha entre o bem e o mal. aventuras da noite de São Silvestre, 1815), onde
É a alma humana que está no centro do o dup lo-reflexo simboliza a indestrutibilidade
debate, pronta a aceitar sem exame a existência do desejo sensual que impede de reencontrar a
objetiva do duplo (como em Wilhelm Meisters honorabilidade burguesa; Andersen, em A som-
Lehrjahre [Os anos de aprendizagem de Wi- bra (1846) (reencontrar sua sombra perdida
lhelm Meister], 1795-1796), pronta a aceitar as resulta em tornar-se a sombra dessa sombra e
miragens da arte em detrimento do real (Der morrer); Hoffmansthal, no libreto que escreve
Triumph der Emphindsamkeil [O triunfo da para a ópera de Richard Strauss Die Frau ohne
sensibilidade], 1777). Schatten (A mulher sem sombra, 1919), em que
Na época das "Luzes", o desmascaramento a perda da sombra simboliza a esterilidade e a
do duplo significará o triunfo da razão sobre o renúncia à sombra um triunfo do ser moral.
obscuro (em Die Erscheinung [A aparição] de Aceitar a perda do duplo-engodo é sair fortale-
Chamisso, poema de 1826, ou em Peter Schle- cido da provação.
mihls Wundersame Geschichte [A estranha his- Em Wunderbare Geschichte von Bogs (/em
tória de Peter Schlemihl], 1814, conto filosófi- Uhrmacher (A história maravilhosa de Bogs, o
co). Schlemihl vende ao homem cinzento (o dia- relojoeiro, 1807), de C. Brentano J. Gõrres, a
bo) sua sombra, para ganhar a riqueza e a consi- separação de um segundo rosto que nasce por
deração. Mas perde assim seu direito à identidade baixo dos cabelos permitirá ao herói ser plena-
social e torna-se objeto de escândalo. mente ele mesmo.
O duplo, a sombra, tem um sentido alegóri-
co: toma-se dissociável do corpo como um
manto. Trocar a sombra imaterial pela bolsa
sempre cheia é deixar-se enganar bobamente. 111. Figuras do heterogêneo
A sombra é o símbolo da aparência, que o
homem rico não seria capaz de dispensar: aque-
le com uma bela barriga, o burguês, é o que I. O eu estranho, a dispersão do eu
projeta a mai s bela sombra. Schlemihl deseja
adquirir uma condição social à custa do único A emergência do sentimento de uma~­
bem que lhe é indispensável. tica alteridade, de uma visão romântica do ~
Chamisso pinta uma sociedade que toma a aparece condicionada pela componen~e ~ismn­
aparência (a sombra) pela realidade (G.L. Fink, ca e política (a revolução francesa e pela ilJo.-
Recherches germaniques n° 12, 1982); ela in- sofia idealista (Uber den Begriff der IJ~­
verte os valores, considerando honesto aquele chaftslehre [Da doutrina da ciênciaJ. r9-!, ~
que substitui Schlemihl junto a Minna porque Fichte).
tem uma sombra, não obstante ser um ladrão. Numa época de convulsão política em q-Jc
O dinheiro de nada adianta se não se acompa- as hierarquias não se mantêm. em que a a'10ri-
270 I Duplo

dade do Estado e da Igreja é posta em discussão, um infinito (a alma), e o sentimento é de tal


a problemática da identidade pessoal toma-se estranheza que o leva à esquizofrenia.
crucial. O idealismo filosófico serve de suporte É perseguido pe lo pesadelo de encontrar-se
metafísico à teoria do eu duplo (duplicado). com um outro ele mesm o, visível: a dissolução
O mundo é uma duplicata: tudo não passa de da realidade obj eti va no mundo subjetivo da
aparência, a verdadeira realidade está fora, nou- consciência motiva a obsessão do desdobra-
tro lugar; tudo o que parece ser objetivo é na mento ... O terror que lhe ins piram os espelhos
verdade subjetivo, o mundo não é senão o pro- ilustra o fundamento filosófico de sua angústia
duto do espírito que dialoga consigo próprio. - sou sujeito que tem consciência e objeto de
Convencidos da veracidade dessa representa- que tenho consciência.
ção, os heróis de Jean-Paul vivem a experiência Ao encontrar seu am igo e sósia Siebenkas,
de ver no espelho o corpo, que lhes é familiar e imaginando estar vendo a si próprio, desmoro-
cujas partes percebem, metamorfosear-se em na, repetindo as palavras de Swift em seu leito
corpo opaco estranho (alheio) à consciência; é de morte: "eu sou o eu". O desdobramento
quando aparece o duplo, mito recorrente dos (duplicação) conduz à loucura e à morte. Esse
romances de Jean-Paul. desdobramento da consciência não permite
No romance de formação Siebenkiis ( 1796- coincidir consigo próprio, uma vez que a cons-
97), o advogado dos pobres Siebenkas sufoca ciência - por só ser possível com e por esta
no universo confinado de Kuhschnappel e na cisão - nos impede o acesso à realidade subs-
v ida conj ugal. Ele t rocara de nome com sua tancial.
alma irmã, seu duplo e sósia, Leibgeber. Para Tudo o que alguém percebe fora de si é
escapar a essa identidade, o fa lso Siebenkas sempre esse alguém mesmo. Idé ia que também
faz-se passar por morto, retoma a identidade de se acha expressa no ensaio de Kleist Übber das
Leibgeber e se casa com Natalie- a mulher Marionettentheater (Sobre o teatro de marione-
que Leibgeber ama e a quem renuncia para tes, 1810).
correr o mundo, assumindo, como "valsante da O desdobran1ento, o conhecimento, é sinô-
vida", as identidades múltiplas que são a mal- nimo da perda de uma inocência da inconsciên-
dição da condição humana. cia que permitia ao homem formar um todo
Leibgeber, intérprete da filosofia idealista, indivisível com a natureza. A consciência hu-
sofre dessa divisibilidade do sentimento do eu mana, com sua capacidade de desdobramento,
fundamentada na reflexão duplicante. Leibge- seu poder de imaginar, torna-se fonte de terror.
ber e Siebenkas, reunidos, representam o ideal Romance de educação, Titã ( 1800-1811) mos-
do "homem elevado", ressurgência do mito tra os perigos de uma subjetividade que se fecha
platônico das duas metades complementares dentro de si mesma: a perda de substância do
reunidas (almas irmãs, gêmeos ... ), homem du- eu acompanha a coisificação a lienante, a petri-
plo fe ito de duas naturezas. Com o desapareci- ficação do eu num d uplo, angústia que desfaz a
mento de Leibgeber, Siebenkas se tornará reali dade do mundo causando um sentimento
defini tivamente ele próprio acresc ido de seu de horror ao próprio corpo.
amigo. Em Hesperus (1795), Victor, para agradar ao
É a vertente trágica do homem duplo a quem vigário, aceita deixar-se reproduzir em cera; e
fo i imposta a separação que Jean Pau l explora o boneco de cera tenta imobi lizar a alma numa
em Titã (180 1-1803), dando prosseguimento forma alienante. Ass im, existir em efígie ilustra
à história de seus dois personagens. Siebenkas, a angústia de encontrar-se com o alheamento (a
também chamado Leibgeber, chama-se agora estranheza) do corpo. A confrontação com a
Schoppe, preceptor de A lbano, o herói ideal corporeidade levanta o problema da existência:
que resiste à doença do subjetivismo. onde está o infin ito nessa for ma? A crise da
Leibgeber vive obcecado pelo enigma da identidade que esvazia o eu de s ua substância é
identidade. Como humorista (cisão entre um e u s ub linhada em Schoppe pela repetição do ges-
atuante e um eu espectador) ele observa seu to: Schoppe tira uma máscara s·ob a qual usa
corpo, abismado com a idéia da separação e da uma outra e assim por diante. O eu não é senão
reunião de um princípio finito (o corpo) com a máscara de um outro eu, num desdobramento
Duplo I 271

infinito. (A mesma angústia de ver-se confron- Blainvi/le (1809), também de Amim. Mellück,
tado com seu reflexo exprime-se num episód io a feiticeira oriental, conseguiu colocar sobre os
do romance de Fouqué, Der Zauberring [O anel ombros de um manequim o traje usado pelo
mágico] 1813). conde como penhor de fidelidade à sua noiva,
A doença do desdobramento nos persona- da qual está distante: o manequim ao qual Mel-
gens de Jean Paul expressa uma descontinuida- lück deu os traços do conde anima-se. Ao des-
de da Ressoa, uma perversão do real provocada truí-lo no momento em que ele abraça a mulher
pela reflexão que se extravia de sua meta inicial do conde, seu amigo terá a impressão de come-
- assegurar a coerência do eu. Ela conduz à ter um assassinato em efígie. O manequim é, de
loucura e ao crime os heró is de Jean Paul e o diversas maneiras, o duplo do conde; ele é o
personagem William Lovell, do romance que duplo do amante de Mellück, está vestido com
leva seu nome (A história de William Lovell - a roupa da traição, é o duplo do homem físico,
1795-96), escrito por L. Tieck. A instabilidade o conde perdeu seu coração que pertence a
do eu traduz-se pela existência dos duplos com Mellück. A magia não é senão o invólucro de
v ida própria, como em Siebenkas, em Die un- uma realidade psicológica: o duplo é o signo
sichtbare Loge (A loja [maçônica] invisível, aparente do endemoniamento interior. Mellück
1793), também de Jean Paul, em manequins, só consegue arrancar à distância, por meio do
marionetes e autômatos. olhar, o coração do conde para dar vida ao
O homem está circunscrito por suas próprias manequim, porque o conde está tomado pela
figurações que o fazem tomar consciência de paixão, embora resista a ela É a alma, a psique
sua identidade para sempre alterada (Schoppe que está no centro do debate.
e as figuras de cera). O homem artificial eleva-se da matéria à
Enquanto a perda da substância do eu se condição de ser vivo graças ao herói; é uma
exprime sob a forma de uma coisificação alie- criatura brotada de sua subjetividade. ainda que
nante da subjetividade (encontro com o duplo), necessite de pais, como Spalanzani, Coppelius,
certas hipóteses pseudocientíficas (magnetis- para construírem o arcabouço, o boneco pro-
mo animal: Franz Anton Messmer, 1774-18 15) priamente dito, como em Der Sandmann (O
partem do princípio de que existe um fluido que homem de areia, 1816), de Hoffmann.
penetra toda a natureza e que põe o sujeito num Natanael e o autômato Olímpia formam um
estado de hipersensibilidade que justifica os casal e O límpia tem uma existência social.
fenômenos de vidência, de hipnose, de sonhos Como um novo Pigmalião, Xatanael dá-lhe
premonitórios ... Esse princípio espiritual serve vida por meio de seu olhar, pois ela representa
como e lemento de ligação do homem com a sua interioridade. Nela é a si próprio que ele
natureza. ama, ela é seu reflexo e seu complemento, seu
A pseudodescoberta vai permitir que se creia único meio de ter um a relação com o mundo
(=Narciso); no entanto, Olímpia é o símbolo
na possibilidade de uma união magnética a dis-
de sua al ienação.
tância. Daí extraem os românticos sua crença no
Esse obj eto saído de seu próprio ser foi posto
inconsciente, nos sonhos. Uma continuidade liga
como sujeito diante dele, por Natanael não
o amorfo ao vivente. O duplo converte-se na
conseguir ser um escritor de verdade. A criação
metáfora da relação com o mundo.
artística poderia ter sido o caminho de salvação
para aquele sobre quem a ficção tem efeito
maior do que a realidade. O desmonte da bone-
2. A união do vivente com o ca diante de seus próprios olhos transpõe para
simulacro técnico a realidade o medo esquizóide de despedaça-
mento que atormenta Natanael recorrentemen-
Em Isabel/a von Agypten (Isabel do Egito, te (figurado pelo vendedor de areia que arranca
1812), de Arnim, o Golem Bella representa os olhos às crianças), visão que o leva à loucura
uma fo rma simplificada do duplo, o eu sensual e, em seguida, após uma trégua, ao suicídio.
oposto ao eu espiritual. Mais sutil é o tratamen- Olímpia é também uma alegoria de sua noiva
to dado ao duplo-manequim em Mellück Maria em carne e osso, Klara.
272 I Duplo

Para os românticos alemães, o du plo-autô- inicialmente ao conto : "Life in death"(A vida


mato torna-se um símbolo da degenerescência na morte). O artista cria um retrato vivo de sua
do humano, como vemos em Die S achtwachen mulher, que morre em conseqüência disso. O
des Bonaventura FOs serões de Bonaventura, que significa que. a arte de criar o duplo consu-
1805), de amor anônimo. e em Die Automate ma-se, no artista, pelo recurso às fontes vitais
(Os autômatOs. : 819 . d e Hoffinann. Confundir da feminilidade obtidas através do assassinato
figuras artificiais com seres vivos é o sinal de pictórico. A arte se anima e se fortalece às
uma doença c!a sensibilidade que leva à loucu- custas do sangue perdido pela vida numa osmo-
ra. ao assassimrro e ao suicídio. se curiosa: a arte, ao tirar a vida, restitui-a. Esta
Im·crsameme. o Golem no romance de mes- postulação de uma continuidade entre o vivente
mo norr;e de G. Meyrink (1915) tem o poder de e o inanimado, no espírito do herói que vê seu
fullr reYe lar a si mesmo o coração humano: duplo, faz com que infligir a morte ao retrato
forma oca, ele força o herói a buscar sua iden- deste signifique também a morte dele próprio.
tidade profunda, a tomar consciência de seu ser Tanatos é o duplo de Eros.
intimo (viagem no quarto sem saída), a renascer Nessa linhagem pós-romântica, o perigo da
psiquicamente (perspectiva ocultista). inversão dos valores vida-morte está represen-
Hoffmann apresenta o encontro com o duplo tado em The Picture of Dorian Gray (O retrato
real ou fantasiado ("fantasmado") como a pos- de Dorian Gray), 1891, de Oscar Wilde. Ao
sibilidade do herói de encontrar sua identidade; contemplar seu retrato, Dorian descobre sua
nessa busca do eu autêntico muitos fracassam, beleza e jura para si mesmo manter-se sempre
como Natanael, entregando-se à onipotência do igual à própria efígie. Efetua, assim, a troca do
pensamento e deixando de apreender a dualida- animado, do vivente com o inanimado, do ex-
de do sensível/inteligível. O desejo narcísico do terior com o interior. Dorian converte-se em sua
herói, de dar vida a uma boneca que preencha efígie, objeto do culto de si mesmo que escapa
a expectativa nostálgica do ideal (que também ao envelhecimento (o duplo ideal), ao passo
aparece em Der Artushof [A corte de Artus], que o retrato torna-se o emblema de sua inte-
Das Glübde [O juramento], Die Brautwahl [A rioridade (imagem da consciência).
escolha da noiva]), acaba tendo como resultado Dorian descobre um segundo duplo literário
a loucura e a morte, representada como petrifi- na história do parisiense que provou de todas as
cação do ser em seu sonho. O duplo representa paixões e não se conforma em ter perdido sua
o paradoxo da imaginação que assume forma beleza. O dândi perverso, companheiro de Lord
humana e com o qual o herói aspira a ter uma Henry, que se coloca acima do humano por
relação de fusão e carnal. A vida factícia passa força do princípio do "tudo é permitido", vê no
a ser idolatrada em detrimento do vivente auto- retrato um espelho de sua alma; ao apunhalar
mático (o filisteu) na inversão dos valores sua efígie, suicida-se, efetuando na morte a
vida/morte. inversão do superficial e do íntimo. Dorian
Reconhecer-se nesses objetos contraban- petrifica-se numa imagem, sem ter alcançado a
deados que são autômatos, retratos (como em autoconsciência. A função de advertência,
Das ode Haus [A casa deserta] de Hoffmann, exercida pelo duplo ao ir enfeando, perdeu-se.
Das Jesuitenkirche [A igreja dos jesuítas], Dorian luta até o fim contra a interiorização da
1813 ), estátuas que criam vida (Raphael und consciência.
seine Nachbarinnen [Rafael e suas vizinhas], A credulidade popular vê feitiçaria num re-
de Arnim, Das Marmobild [A estátua de már- trato quando ele se parece com o original e é
more], 1819, de Eichendorff,La Venus d'Ille [A expressivo. O efeito assustador de uma imagem
Vênus de Ille], 1837, de Mérimée) ou encontrar com excesso de vida está ligado ao medo de
neles seus complementos significa perder-se descobrir um vício oculto da alma que possa
(cf. L 'oeil invisible [O olho invisível], 1858, de fazer sua aparição na efígie. Assim, em Prop-
Erckmann-Chartrian). hetic picture (O retrato profético), de Hawthor-
Edgar Poe, em The Oval Portrait(O retrato ne, o pintor fixou uma expressão cJe medo em
ova[), 1842, mostra a transferência inexorável Elinor e uma animação estranha e perversa em
da vida para a arte, bem refletida no título dado Walter, ao fazer o retrato dos dois noivos, pro-
Duplo I 273

fetizando o acesso de loucura sanguinária que Hoffmann esboça o retrato de um homem


sobreviria mais tarde. O escândalo que repre- dividido que reage projetando sobre um tercei-
senta para o herói a confrontação com o duplo ro suas pulsões anti-sociais. O duplo fantasmá-
provém de que este revela o oculto, mas, ao tíco corresponde, em termos freud ianos,· ao
mesmo tempo, tal revelação significa a possi- conteúdo reprimido, ao passo que o duplo vi-
bilidade de uma mudança do eu, de um progres- vente evoca a hereditariedade pesada pela ver-
so no autoconhecimento. tigem da compulsão de repetição. O visionário
Medardo está se protegendo contra o homicídio
e a loucura ao dar forma a suas pulsões.
3. O símbolo da busca da identidade Somente pela ace itação final de sua identi-
dade na solidão e na religião (substitutas , aqui,
Em Die Elixiere des Teufels (Os elixires do da arte, que noutros textos de Hoffmann é o
diabo), 1815- 16, Hoffmann conta a história de meio de transcender a existência humana fada-
uma linhagem maldita engendrada pelo pintor da ao dilaceramento) é que ele assum irá sua
Francesko, que se casou com o diabo que havia identidade. O sonho com o infinito, com a outra
tomado a forma de uma Vênus. Francesko é realidade, buscados - fora dos caminhos per-
condenado a retomar à Terra, até que a linha- mitidos - por meio da transgressão, implica
gem maldita seja salva pelos duplóS com vida uma ameaça, da qual nascerá a consciência da
(Medardo e Aurélia). Medardo nasceu de pai culpa. Representações idênticas do duplo apa-
desconhecido, condenado à multiplicidade de recem em Kater .'vfurr (O gruo \1urr, 1819): o
identidades. O encontro com o duplo, que é músico Kreisler tem uma sensação de estranha-
vivo e que ele não conhecia, seu meio-irmão menta, duvida das possibilidades de chegar a
Victor, cuja identidade ele vai tomar empresta- conhecer a si próprio e ao mundo. e identifica-
da, precipita seu sentimento de despersonaliza- se com o pintor louco Eninger que se converteu
ção. A consciência turva de suas faltas faz com num novo Pigmalião ao apai.xonar-se perdida-
que ele projete num duplo seus instintos sen- mente pelo retrato daprinces.a Hedwiges reali-
suais e criminosos, a parte de si mesmo que zado por ele na juventude: K.reisler toma cons-
deseja ignorar. ciência de que o amor do artista se manife;,"i:a num
O duplo em carne e osso, Victor, representa olhar que vê, na realidade terrena a imagem
o abandono à força bruta do instinto e à tentação interior, sem demonstrar desejo de posse.
da loucura; o duplo sonhado, Francesko, o pai A dupla estrutura acha-se à mostra o tempo
que retoma de além-túmulo, é o duplo-salvador inteiro na história: na composição. em que se
que desperta a voz da consciência. Duas ten- encaixam, alternando-se. a biografia trágica do
dências se combatem em Medardo: de um lado, músico e a autobiografia sorridente do gato em
a aspiração ao bem, que - depois de um des- busca de sua identidade; e no estilo humorístico
falecimento subseqüente ao último ataque do da biografia do gato (que diz eu). a que se
duplo, em que este chegou a saltar-lhe sobre os contrapõe o estilo fantasioso adotado para
ombros numa perseguição fantástica p ela flo- Kreisler, personagem que ressurge a partir da
resta- o faz "renascer", para escolher a vida coletânea Kreisleriana do mesmo Hoffmann -
mansa e retirada de um convento; de outro, a a figura do duplo serve aqui para falar da rela-
busca da satisfação imediata dos desejos profa- ção do artista com o mundo.
nadores: ele quer possuir Aurélia, sósia do re-
trato de santa Aurélia, numa profanação do
sagrado. 4. O emblema da supra-realidade
A dimensão metafísica da culpa (os pecados
dos paiS' fervilham no sangue dos filhos) é O artista, homem-duplo por excelên cia , é
corrigida pela dimensão psicológica. Medardo aquele que pode compreender que por trás das
é um sensual que aspira ao ideal: preso à terra, aparências se esconde a verdadeira vida. O
olha para o céu. Dilacerado, tem que lutar com mundo é duplo. Em Der goldene Topf(O vaso
seu duplo, sua sensualidade que, para saciar-se, de ouro, 1814), de Hoffmann, Anselmo vive a
vai até o crime. problemática do artista romântico colocado en-
274 I Duplo

tre dois pólos: o burguês feliz na vida cotidiana a suas criações. Das steinerne Herz (O coração
e o artista que renuncia a essa felicidade auto- de pedra, 1817) retrata uma transferência de
mática para ter acesso a outra realidade (mito ação: dois jovens cumprem o destino de seus
do "retorno da idade de ouro" e da Atlântida pais que não conseguiram se unir no passado
aberta ao iniciado, que tem por guia um mentor por causa da "cegueira" do herói, encerrado
com dupla personalidade, o arquivista e mago numa visão pessimista do mundo (simbolismo
Lindhorst). do coração de pedra). Don Juan (1813), na
Essa viagem ao interior de si, que rompe leitura de Hoffrnann, é aquele que projeta nas
(graças à ajuda de instrumentos mágicos) os mulheres toda a beleza que sente em si mesmo;
estreitos limites das aparências (espelho, vaso cada uma delas torna-se uma boneca de sua
de ouro) por meio da abertura de um terceiro criação e ele sofre pela decepção ante o contras-
olho, poetizao universo, "romantiza-o" (Nova- te entre o rosto real e o rosto sonhado. Em lgnaz
lis), transfiguração que só é possível para certos Denner (1816), é a imagem do duplo diabólico
seres que "se separam" da vida cotidiana. que aparece.
Nessa etapa da iniciação, forças antagônicas Expressão da situação do eu diante do mun-
(fadas, magos ... ) se enfrentam . Assim como em do, o desdobramento representa também para
Prinzessin Brambilla (A princesa Brambilla, os românticos alemães a via de acesso a uma
1820), o combate do herói Giglio- que sofre supra-realidade; assim é que o herdeiro do mor-
de dualismo crônico -com seu duplo, o prín- gado, em Die Majoratsherren (1820), de Ar-
cipe Cornelio Chiappari, encontra seu desfecho nim, vê tudo duplicado, suas visões assinalam
no mito da redenção do herói. o diálogo do Eu com o real. O duplo pode ser
A metáfora do duplo absorve, aqui, o tema, signo do acesso a uma realidade oculta, de uma
recorrente no início do século XX, do antago- apoteose.
nismo entre o artista e o burguês (Thomas É nessa fonte que se inspira Gérard de Ner-
Mann) que, em Hoffmann, só se resolve pela val ao falar da "velha Alemanha, a mãe de
síntese da espiritualidade e da sensualidade (o todos nós, a Teutônia".
maravilhoso, a utopia). "A expansão do sonho na vida real", o
Mito hoffrnanniano por excelência, o duplo desdobramento como clarividência exprime-se
aparece sob todas as suas modalidades. Em Die nas narrativas de Nerval e muito particularmen-
Doppeltganger (Os duplos, 1821 ), Doedatus e te no soneto El desdichado (que faz parte da
George são tão parecidos que as pessoas os coletânea Les chimeres [As quimeras] 1853): o
confundem; partidos, cada um deles, de um tema da felicidade perdida suscita a imagem do
claro sentimento de sua própria identidade, são eu palimpsesto. O eu presente é a negação dos
levados pela experiência da confusão a tocar eus passados. Veja-se, por exemplo, Sylvie
com o dedo a dificuldade de saber quem é o eu. ( l853),~m que se evoca o presente do jovem
Uma divertida variante do duplo no teatro é parisiense povoado de fantasmas. Deus deixou
representada por Signor Formica, em que Pas- de existir; a imagem do deus morto, a experiên-
quale Capuzzi vê-se frente a frente com um cia da perda do ser suscita aquela do duplo.
duplo em cena, que faz o que ele não quer fazer, O único amor que Nerval traz em seu cora-
num diálogo apaixonado consigo próprio. ção desdobra-se em imagens femininas antinô-
Em Meister F/oh (Mestre Pulga, 1822), a micas: Sylvie e Adrienne, as mulheres con-
dupla natureza de um ser manifesta-se sob a trárias, se completam. Aurélia é, aos olhos do
forma de dois indivíduos. Klein Zaches (O pe- narrador, uma reencarnação de Adrienne: mas
queno Zacarias, 1819) mostra à sociedade dos a irreversibilidade do tempo toma impossível a
deístas que as aparências induzem erroneamen- unidade. Aurélia não se identifica com Adrien-
te a atribuir todos os feitos de outros a um ne e nega ser a divindade que o narrador vê nela.
horrível homúnculo. A imagem-duplo do desejo não passa de uma
Das Fraulein von Scudéry (A senhorita de forma vazia.
Scudéry, 1820) descobre a dupla personalidade O eu só se cura da cisão nos momentos
de um joalheiro, burguês respeitado, que se privilegiados em que o tempo é âbolido: como
toma assassino pelo amor fetichista que dedica quando Sylvie e Gérard ressuscitam as bodas
Duplo I 275

do tio e da tia num minuto etemo que insp ira o das ruas o encontro com o mundo das pulsões
reconhecimento do eu eterno. Como v iver du- e do inconsciente. O encontro com o outro
ravelmente na zona em que ideal e real se toma-se uma maneira de penetrar em si mesmo.
fundem? Como se estivesse sonhando acorda- A imagem da iniciação e da busca de um eu
do, Nerval vive uma viagem pela cidade de melhor, em harmonia com o mundo, está votada
Paris, em Aurelia (1854). O tema da viagem ou
• das andanças surge, a partir do romantismo,
ao fracasso. O duplo, que é uma etapa importante
no caminho da busca, representa paradoxalmente
constantemente associado ao mito do duplo, ao mesmo tempo o que permitiria alcançar o
que é o da busca do me lhor eu - em Nerval, a objeti vo e também o que entrava o eu.
busca do eu feliz. Jules Gracq, em Au Château d'Argol (No
A descida aos infernos, em Aurelia, é uma castelo de Argol, 1932), mostra um jovem herói
descida eu adentro ; é preciso enfrentar prova- do conhecimento - Albert "doutor Fausto" -
ções, no caminho da iniciação, em particular o perdido na floresta e subjugado pelas águas no
confronto com o apavorante fantasma do sósia caminho que leva a um castelo.encantado. Ele
no estado intermediário em que sonho e vida se vive (ou imagina viver) o encontro com Hermi-
encontram (capítulo IX): o autor vê seu duplo nien, seu duplo e seu oposto, o anjo negro, a
tornar-se ator e tomar seu lugar, levado por parte sensual de sua alma. que o desviará da
guardas. Esse " outro", aproveitando-se da sua busca espir itual, levando-o até o castelo à pre-
semelhança e da confusão que cria em terceiros sença de Hei de (ser duplo: por um lado, santa,
e na própria Aurélia, irá celebrar o casamento símbolo do Graal e de Cristo: por outro, impura
místico, objetivo da viagem de além-túmulo [Heide = Heidin, "pagã .. ] . .-\busca espiritual
para reencontrar a morte. transforma-se numa busca sensual. simboliza-
A trágica aventura pessoal toma-se símbolo da pelo estupro de Heide.
da oposição dos princípios inimigos: o casal A impossível união sonhada por AJbert -
cosmogônico e providencial é impedido de for- fu ndir as três entidades num corpo único (mito
mar-se (ver: " A história do califa Hakem", da Trindade), que juntasse o intelectual, a sen-
inserida em Voyage en Orient [Viagem ao sualidade e a mulher. o amor e a fraternidade
Oriente], 1835). v iril - tem como saldo o assGS5ÍlllO do duplo
Será a figura do duplo a altemativa moral do feminino e masculino.
bom e do mau envolvida na questão da salvação Ainda que a busca resulte num fracasso, o
"sou eleito ou maldito"? encontro com o duplo simboliza a nostalgia de
Aurélia se perde nesse debate corv o eu; o um encontro com o outrO. a aspiração de um eu
outro é o espírito mau. A aparição do duplo está racional a tornar-se um eu sonhador. capaz de
ligada ao tema da culpa (o pensamento egoísti - experimentar a paixão. a fusão. para além das
co de que a mulher amada lhe pertence mais limitações da personalidade - simboliza o de-
quando morta do que quando viva, a deificação sejo de comunhão.
do amor, o insulto ao criador).
Ver seu dup lo é estar louco. Esta idéia, que
aparece como um leitmotiv na literatura alemã 5. Um mito de amor
do duplo, é corroborada pela experiência ner-
val iana. A duplicação da amada num falso duplo (cf.
É dentro da perspectiva dessa fi liação ner- fragmento que se conservou do Tristão, escrito
valiana que podemos ver em Nadja ( 1928), de pelo ang lo-normando Thomas por volta de
Breton, um encontro com o duplo. Breton, atra- 11 70) não consegue fazer esquecer o verdadei-
vés de suas andanças em Paris com um duplo ro amor nem reduzir o desejo de perenidade do
feminino - Nadja - , evoca uma paisagem laço amoroso. O mesmo conteúdo acha-se ex-
mental: o subjetivo (o eu da enunciação) e o presso nas histórias com duplos vivos de mortas
objetivo (o outro, Nadja), o sonho e a vigília, a que foram amadas com paixão.
razão e a loucura, o presente e o passado revi- E. Poe retoma o tema recorrente das mortas
vida; o mundo é duplo, tecido permeável que que sobrevivem num duplo: Ligéia (1 837) em
põe em contato o eu e outrem. Ao acaso, surge sua rival, More/a ( 1839) em sua filha, Eleonora
276 I Duplo

( 1835) em sua substituta. Se a morta imortali- Maria) opõe o duplo puro ao herói corrompido.
za-se em seu duplo, é para reconstituir com o Desdobrar-se pode, num caso assim, fazer parte
narrador uma unidade (união dos complemen- de uma estratégia de defesa baseada na busca
tares, que no plano da realidade se vê sempre de uma negação do eu do loroso.
ameaçada pe la morte).
O paradigma e a metáfora dessas histórias
de amor são fornecidos pela novela The Fali of 6. Os monstros de dentro
the H ouse ofUsher (A queda da Casa de Usher, ou o inferno íntimo
1839), em que o solar familiar dos gêmeos
Roderick e Madeline, fendido por uma racha-
Quanto mais avançamos no século XIX,
dura, simboliza o uno e o duplo, do que dá
mais chega ao primeiro p lano uma das caracte-
testemunho o reflexo projetado pela casa na
rísticas que se delineiam no romantismo - a
lagoa, assim como "a bizarra e equívoca deno-
representação do dilaceramento vivido pelo eu
minação de casa de Usher", Us-her (em ingl.,
até em seus aspectos patológicos. A análise
us = "nós", her = "ela"; Usher = nós-ela),
ontológica permanece subjacente à análise psi-
desdobramento do protagonista e do narrador
cológica, mas esta toma a dianteira: o sujeito
em face dela; ou seja, a fissura está sempre
freudiano div idido aparece na literatura antes
presente, não obstante a união fantasmática.
de ser teorizado; o heterogêneo é, numa de suas
Mas com o retorno da morta como símbolo
componentes, a dualidade do ser: o sujeito de
da onipotência do pensamento (cf. Vera, de
desejo entra em choque com a personalidade,
Villiers de I'Isle-Adam, 1874, em que a presen-
imagem imposta pela sociedade.
ça de Vera se impõe pela virtude mística do
O antagonismo entre o ser de desejo e o eu
amor), a criação do duplo pelo desejo do herói
social, ou seja, a imagem de um eu ajustado que
suscita um sentimento de culpa que implica o
se exige daquele que persegue certas ambições
castigo mortal, circularidade que também va-
na sociedade, é o tema de três variações sobre
mos encontrar na novela de Poe, Berenice
o duplo que têm como trágico desfecho a des-
(1835).
truição do eu, na loucura ou na morte. A história
O encontro com seu próprio duplo simboliza
de William Wilson (1839), de E. Poe, que,
para o enamorado a perda da amada, a solidão
percorrendo a Europa para fugir de um gêmeo
que faz desejar a morte. No Buch der Lieder (O que ele odeia, gêmeo que é visto como um
livro dos cantos, 1817-21), de H. Heine, o
perseguidor por esse jovem titã que deseja viver
duplo, pálido companheiro, reaparece (Junge a liberdade absoluta de seu desejo de potência
Leiden [Sofrimentos precoces] no 2, no 3, Die e entra em choque a todo momento com a lei
Heimkehr [O retorno, 1823], n° 13, n°20, no 3J, moral defendida por seu duplo, encerra-se pelo
Lyrisches lntermezzo [Intermédio lírico, 1822- assassinato deste último, que não passa de uma
23], n° 38). forma de suicídio. Um diálogo arquejante com
Heine termina o ciclo do retorno por um a imagem no espelho põe fim à ilusão de
adeus ao sentimento romântico da vida (n° 44). Wilson que até o último momento não quer
Ele retira sua solidariedade ao eu doloroso por compreender que tentou matar a própria cons-
meio da ironia. O mesmo sentimento doloroso ciência, mas qu e esta acabou sendo mais
da vida exprime-se na visão de um "desconhe- forte.
cido vestido de preto que se parecia comigo O duplo, visto como perseguidor porque tem
como um irmão", em La Nuit de décembre as qualidades exigidas para a vida social, ao
(A noite de dezembro) de A. de Musset: com~ passo que o original se põe ou se sente "à
panheiro de viagem e alma do outro mundo, margem", é também o tema da novela de Dos-
testemunha de sofrimentos cuja presença é toievski, Dvojnik (O sósia, 1846). Y.P. Goliad-
sinal de ausência, de uma solidão consigo kine é, ao inverso de Wilson, um tímido, deter-
próprio, prelúdio da morte. O desconhecido minado unicamente por sua função de "conse-
vestido de preto ainda não está marcado com o lheiro titular". Cioso de subir.1la "carreira, sua
sinal inefável do vício (cf. Lorenzaccio, 1834) vida se define tão-somente pelo olhar que os
em que o sonho de um outro eu (alucinação de chefes ("seus pais") dirigem a ele.
Duplo I 277

O masoquista Goliadkine " mais velho " vê tamos em plena época vitoriana onde impera
surgir a seu lado um duplo sádico, Goliadkine uma moral rígida) como uma certa propensão
"júnior", detestado, e com o qual ele se acha para a alegria (simples sensualidade ou perver-
em secreta conivência; a designação patroními- sidade?)- da outra parte que ele quer encarnar
ca revela a ação parasitária exercida pelo duplo: por inteiro: a imagem do cientista virtuoso e
ela evoca Golias e ao mesmo tempo exprime austero que conhece apenas os prazeres simples
em russo a idéia de piolhento, de indigente, da amizade masculina, cujo duplo é sem dúvida
assinalando o dilema daquele que quer subir na o primeiro narrador da história, seu amigo o
escala social embora tenha interiorizado o jul- jurista Mr. Utterson.
gamento desfavorável de si mesmo que ele Mas na medida em que " o mal" libertado,
atribui a seus superiores. Para reconhecer que que assume a forma de algo assim como um
Goliadkine Júnior é uma parte dele próprio, anão repugnante chamado Hyde ("escondido",
seria preciso que ele se considerasse ambicioso, se fizermos a associação com o ingl. hide =
gostando de usufruir os prazeres da vida, ávido esconder), se desenvolve com pleno vigor, o
de luxo e de honras; mas ele vive na negação bom dr. Jekyll, pálido fantasma, vai ser parasi-
perpétua de seus er e termina imerso na loucura, tado pelo outro: as duas partes não eram iguais,
acometido pela visão da multiplicação dos Go- a força da virtude simbolizada pelo titulo de
liadkine, metáfora do exército de pequenos bu- doutor parece bem fraca. Traduzindo a situação
rocratas ambiciosos que aguardam ser promo- em termos freudianos, poderíamos dizer que,
vidos. apertado entre o id = Hyde e o superego =
A respeitabilidade aparente que se opõe ao doutor, o ego= Jekyll reduz-se a mna espessura
egoísmo do ser profundo- essa oposição entre mínima.
a máscara e o ser - torna-se ainda mais perni- Toda a história do duplo revela que é peri-
ciosa pelo fato de que aquele que assim se goso conceder uma expressão ao mal: Hyde vai
desdobra exerce uma função de justiça e leva aos poucos ganhando terreno sobre Jekyll; o
os outros à sua perda. mal, Hyde, é mais vigoroso do que o pobre
Em Mr. Justice Harbottle (O sr. juiz Harbot- Jekyll, pálida imagem da bonorabilidade; ele
tle, 1851), de S. Le Fanu, o juiz iníquo perse- libertou a força bruta É por puro instinto de
guido pelo duplo do acusado é condenado por conservação que Hyde aceila ·oltar a ser Jekyll:
um duplo de si próprio - " Lord Twofold" o alter ego infernal do respeitável dr. Jekyll
(twofold = "duplicado") - a ser executado desembaraça-se de qualquer :!mitação moral.
numa sessão de um tribunal fantasmagórico Jekyll é seu refém. Mesmo em ;ek)·lL Hyde
que recomeça pelo avesso o verdadeiro proces- vive e age; Jekyll protege Hyde. pois Jekyll visa
so, desvendando sua iniqüidade. apenas à aparência da respeitabilidade.
Stevenson, que com The strange case of Sua morte revela o que ele era realmente: o
doctor Jekyll and Mister H ide (O estranho caso corpo, encolhido, tem os traços hediondos do
do dr.Jekyll e de Mr.Hide, popularizado como outro. A moral da história parece dizer que o
"O médico e o monstro", 1885) escreveu a prazer leva ao crime, mas sob outra perspectiva,
mais famosa das histórias de duplos, já havia o que a novela nos mostra é o fracasso do
anteriormente, numa primeira aparição do tema processo de repressão. Jekyll queria pôr-se a
em Markheim (1885), retratado também um salvo do mal encerrando-o sob uma aparência
homem que não aceita se ver tal como é e exterior a si próprio, e é então que ele volta com
acredita dialogar com um duplo maléfico (Cf. redobrados poderes.
Ta/e ofTod Lapraik (A história de Tod Lapraik, É de se notar a evolução com respeito ao
1893). Com Jekyll-Hyde ele vai mais longe. duplo de Dostoievski, ainda equívoco do ponto
Jekyll sabe que está duplicado e tenta, na qua- de vista da existência: no texto de Stevenson,
lidade de homem de ciência, desembaraçar-se Hyde existe fisicamente, é percebido por todos.
da parte malformada de seu ser, que não se O duplo, imagem do inferno que temos no
coaduna com suas ambições sociais. Por meio coração ou na cabeça, é muito naturalmente o
da invenção de um pó, ele tenta separar a esfera diabo, que aparece na novela de J. Hogg, The
do desejo -qualificada eufemisticamente (es- confessions of a justified sinner (As confissões
278 I Duplo

de um pecador justificado, 1824), história de ralmente regenerado - ainda que fisicamente


um personagem que simboliza os efeitos de destruído - que sai da confrontação "comigo
uma possessão religiosa, que sempre se dedi- mesmo, com tudo o que havia em mim de
cou a cultivar uma boa consciência e a idéia de baixo, de vil e de desprezível".
sua predestinação, mas que acabará suicidan- A crise de identidade faz aceder à aceitação
do-se ao dar-se conta de que o tentador, o diabo, da natureza humana com sua dupla postulação
o duplo exterior - Gil Martin - , companheiro do anjo e da besta. Homens como o starets ou
de fraudes e crimes, está dentro dele, é uma das Aliocha demonstram a possibilidade de a pes-
duas almas que nele habitam e que, ora uma, soa mudar. A confi·ontação com o duplo adqui-
ora outra, o possuem. A estruturação da narra- re uma ressonância social: é necessário ao ho-
tiva- relato objetivo/diário de um possesso - mem saber quem é para agir junto a seus seme-
marca pelo encaminhamento para o interior a lhantes (história de Aliocha).
tomada de consciência progressiva do herói. O duplo é sintomático da crise da fé do
É também o diabo, mas aqu i o diabrete homem moderno que substituiu a transcendên-
ridículo das lendas, que representa para Ivan cia pela mercadoria (mundo ateu europeu opos-
Karamazov, em Brat 'j Karamazov (Os irmãos to ao mundo russo) .
Karamazov, 1879-1880), seu infemo pessoal. Em Dostoievski, a figura do duplo aparece
O diálogo com o diabo no desfecho do relato, no caminho da busca do melhor eu, de uma
antes do ju lgamento de Dmitri, simboliza o busca do humano que ao mesmo tempo signi-
diálogo consigo próprio, o exame de cons- fique que o divino não morreu (cf. Besy [Os
ciência. demônios, no Brasil publicado como Os pos-
Dostoievski retrata um personagem que, ao sessos] [187-72], Podrostok [O adolescente,
tomar consciência da duplicidade de seu ser, 1875]). A confrontação com um duplo, catali-
busca a melhor maneira de ser um homem por sador da transformação moral do herói, aparece
inteiro através da in tegração e da aceitação do também em Dickens (A Christmas Caro! [Con-
mal, na linha do ensinamento crístico. to de Natal, 1842], The Haunted Man [O ho-
Ivan quis negar que trazia consigo a herança mem obcecado, 1848] e em R. KiplÍng [The
patema, os demônios de que cada irmão acen- dream of Duncan Parrennes [O sonho de Dun-
tua lima componente (a paixão sensual= Dmi- can Parennes, 1891 ]).
tri, o crime= Smerdiakov), recorrendo à ficção A experiência do duplo como desapropria-
de um duplo ideal e magnificado (o grande ção de si mesmo, como fenômeno de vampiri-
Inquisidor). Mas, ao dessolidarizar-se assim de zação._flo eu, cujas primícias surgem com Jean
sua família, ao imaginar para si próprio que Pau l, é levada a seu paroxismo com Edgar
continuaria inocente, ao "deixar as serpentes se Allan Poe e Maupassant.
entredevorarem ",tomou-se culpado, por omis- É "o demônio da perversidade" que move o
são, de encorajar Smerdiakov a que passasse da herói de The black cat (O gato preto, 1843) de
intenção ao ato, ao assassinato real do pai , ele E. Poe - em que o gato do título responde pelo
que em espírito condenou o pai sem apelação, nome simbólico de Pluton [Plutão] - a enfren-
e que, ao destruir a idéia de Deus, divinizou o tar seu infemo pessoal; no entanto, da mesma
homem ("parábola do grande lnquisidor") na forma que William Wilson, o herói do "gato
moral do "tudo é permitido". preto" teme elucidar seu ser profundo que ele
Comparado a ele, Aliocha representa aquele enucleia e empareda. Mas o terror inspirado pelo
que se identificou com o duplo positivo, o bicho está dentro dele. O herói continua prisionei-
starets Zózimo, que passou pela confrontação ro de suas pulsões assassinas. O grito do bicho
com o mal e pela aceitação dele (símbolos: o emparedado simboliza a impossibilidade de es-
odor deletério, as bodas de Caná). Ivan reinte- conder por mais tempo o eu profundo.
gra e aceita a parte de si mesmo que reencontra Porém, prisioneiro do horror associado à
nos duplos ex istentes como seres vivos, sua consciência dos demônios interiores, o herói
paixão por Catharina lvanovna (parte Dmitri), possuído por seu duplo experhnenta também
salva o pobre bêbedo (parte Al iocha), assume por ele uma atração fatal, um gosto mórbido
sua culpa (parte Smerdiakov). É um Ivan mo- que o atrai para a experiência da loucura, que
Duplo I 279

em Maupassant adquire uma ênfase de verdade lo: a imagem obsessiva da janela, do livro posto
autobiográfica. O horror ao duplo simboliza o sobre a mesa e da página que vira sozinha,
medo de viver consigo próprio; o herói de Lui enquanto na poltrona que parece vazia (para os
(Ele, 1883) sente bruscamente a necessidade de outros) instala-se plenamente o duplo, " bem
uma vida a dois que ele sempre evitou, por meio ali, sentado no meu lugar". Ausência e plenitu-
do donjuanismo, para escapar ao tormento de de, imagem da loucura que chega ao ponto de
descobrir quem ele é. concluir que "vai ser preciso que eu me mate",
Um duplo movimento reaparece como um indicação clara de que o outro é o eu.
leitmotiv no herói-narrador que se desdobra em
escritor e em personagem atuante na história:
" ele não me deixa e eu sei muito bem que não
existe". O desconhecido que surge ao lado do IV. A abertura para o mundo
eu, representação do desdobramento da perso-
nalidade, aparecia já no poema intitulado " Ter-
ror" (1880). O suj eito dividido, tal como aparece na lite-
Depois o desconhecido concretiza-se: rece- ratura sob a forma do duplo perseguidor, é
be um nome (não um sobrenome, como em testemunho da profunda mudança, quanto à
Stevenson), um nome simbólico que expressa concepção do eu, que se efetua durante o perío-
todo o horror do sentimento de autoscopia: do assinalado pela revolução política e pelas
Horla (Le Horla, 1886). Analisado esse nome reviravoltas consecutivas ao advento da era
lingüisticamente, ressalta a dissociação confi- industr ial. O eu soberano que se expressava
gurada em hors !à: hors (fora [de mim]), là (lá no cogito dá lugar ao "quem fala por mi m?".
= " não aqui " e lá= " presente"; presente mas O sujeito descobriu sua brecha.
não aqui), nome que dissimula eufemistica- A psique, objeto de representação em diver-
mente a condição do dup lo, que está fora e, por sas instâncias pela psicanálise, dá provas -
conseguinte, não está dentro; noutras palavras, pelo estudo dos sonhos, em Die Traumdeu-
que representa o desmentido da loucura: aquele tung (A interpretação dos sonhos, 1900) e dos
que está fora de mim não sou eu. atos falhos em Die Psychopathologie des All-
Desse modo, o herói do "hors !à" mantém tagslebens (Psicopatologia da vida cotidiana,
a uma grande distância espacial aquele que não 190 I) - de que o heterogêneo faz parte da
deve dar testemunho do psiquismo, é a figura cond ição humana, sendo que Lacan mostra que
do heterogêneo por excelência, um ser com o outro do sujeito jamais se encontra onde este
existência própria, um ser novo, um mutante o imagina, em virtude do inconsciente; o acesso
que, proveniente de plagas distantes- doBra- ao simbólico consuma-se pela divisão do eu.
si l - vai provocar uma epidemia. (Cf. Le séminaire (O seminário), livro XI e
Tudo é pretexto para manter à distância o L 'inconscient freudien et !e nôtre (O incons-
que está no interior do eu, ou seja, para coisifi- ciente freudiano e o nosso, 1973).
cá-lo num duplo - "senti alguém que se enca-
rapitava em mim" -, num vampiro. No entan-
to, a metáfora do corpo transparente, a ausência I . Na direção do homem novo
de reflexo no espelho vêm contradizer todos
esses efeitos de espacialização do eu íntimo A influência da psicanálise sobre a literatura
para livrar-se dele. A ausência de reflexo no do princípio do século XX - que, embora
espelho mostra que o duplo não passa de uma formule a idéia da dualidade da consciência,
ilusão: um " hors !à" (presente lá fora) sem indica que ela deve ser vencida - é patente.
essência, um sinal de loucura. O dup lo é a figura privilegiada dos dramas
Maupassant deu ao duplo sua forma canôn i- expressionistas da conversão (Wandlung) que
ca, realizando, ao mesmo tempo, a façanha de introduzem ao território do subconsciente (!ch-
jamais defi ni-lo no texto por seu nome clássico. Dramen [dramas do eu]).
Ele é designado por toda uma série de nomes Os escri tores expressionistas escrevem
que apontam para esse sentido sem mencioná- para confessar-se, tomando como mode lo o
280 I Duplo

sueco A. Strindberg e sua trilogia (drama em último curou-se de seu ódio aos homens pela
estações). Til! Damaskus (O caminho de Da- observação de seu duplo, surgido magicamente
masco, 1904), em que os personagens se des- graças à invenção do Rei dos Alpes; o resultado
dobram para, ao fim, reencontrar - ainda que é que desse modo ely pode ver-se objetivamen-
seja na morte - sua identidade, sua unidade te tal como é e fica curado de sua misantropia.
original. A conversão expressionista ao homem (Ver também a feeria teatral Der Verschwender
novo passa pela utilização em cena de duplos, [O perdulário, 1834]).
projeções do personagem central, seu ideal
(como em Die Korafle [O coral, 1919], Der
Sohn [O filho, I 91 4], de Hasenclever ), seu anjo 2. ''O discurso do outro ''
da guarda (como em Der arme Vetter [O primo
pobre], de E.Barlach), seu eu melhor (Das letz- A busca da verdadeira identidade é, de uma
te Gericht [O juízo fmal, 1919], de J.M. Bec- ou de outra maneira, o objetivo que persegue as
ker), ou um monstro como o homem-bode que histórias de duplo vistas dentro da perspectiva
aparece no drama de Werfel Der Spiegel- freudiana. A abordagem do inconsciente é em
mensch (O homem-espelho, 1920). Mesmo tais casos "o discurso do outro", fornecido pelo
quando a confrontação com o duplo resulta na duplo.
morte do herói, como em Zweimai Olivier (O li- A emergência de desejos sensuais inconfessa-
vier duas vezes), ele (Kayser), ao matar-se, dos, figurada pelo encontro com o duplo - o
alcança a regeneração moral. A morte é um cavaleiro sósia -que levará um soldado à rebe-
segundo nascimento pela afirmação do melhor lião e à morte, é contada na novela Die Reiterges-
eu até no auto-sacrifício - a antítese do "ho- chichte (O cavaleiro, 898), de Hoffinansthal.
mem-espelho", cuja autocomplacência permi- O encontro simboliza a libertação de um
te o surgimento de monstros. outro eu, ao mesmo tempo que anuncia a morte
O cotidiano povoa-se dos fantasmas dos er- próxima- a ligação do duplo com a sensuali-
ros e dos crimes: assim é que a guerra de dade e com a morte.
1914-18 faz ressurgir na consciência os duplos L. Pirandello faz a confidência da consciên-
das vítimas e dos assassinos em Verzweiflung cia que tem de ser duplo em Os diálogos do
(Desespero, 1920), novela de A.M. Frey. pequeno eu com o grande eu ( 1897 - 1906): seu
Para escapar ao desespero, os heróis, deba- tema principal, no teatro como na ficção em
tendo-se entre os apelos do bem e do mal - geral, fo i sempre o drama do sujeito dividido
tema representado em cena pela confrontação pela apreensão de seu inconsciente. Para ele, a
do herói com seu duplo - , partem em busca de única realidade do eu está em seu avesso, ou
um novo evangelho, que tanto pode ser pura- mesmo em seu oposto.
mente humano (como em Methusalem oder der Inúmeras são as novelas que narram um
ewige Bürger [Matusalém ou o homem eterno], desdobramento ou que fazem aparecer a duali-
de Y. Gol!) como inspirado nas fontes da fé dade ou o dualismo das personagens: J.M. Gar-
cristã: Das Hotel (O hotel, 1923-24), de M. dair faz uma anál ise das _mesmas, bem como
Beckmann, Days without end (Dias sem fim , dos dup los no teatro. Pirandello usa seguida-
1934), de O'Neill, em que o personagem dila- mente a imagem de gêmeos (reais ou simbóli-
cerado, John = o bem I Loving = o mal, final- cos), sendo a maneira mais segura de iden-
mente reconcili ado consigo próprio na fé de sua tificá-los a homoními a, pelo menos parcial
infância, volta a ser John Loving. · ("Tanino e Tannoto", "Nené e N ini ", "Rondo-
Nesse período do início do século XX, as ne e Rondinella" ... ). La disdette di Pitagora (A
obras são animadas por uma preocupação mo- desdita de Pitágoras) conta os reencontros do
ral. Elas utilizam o duplo como metáfora no narrador com um sósia de seu amigo Tito, mais
caminho da transformação do indivíduo, cha- verdadeiro que o original, que ele revê depois
mado a integrar-se na sociedade. de uma ausência de três anos;.consecutivos ao
F. Raimund, no Vo lksstück vienense Der casamento de Tito.
Alpenkonig und der Menschenfeind (O rei dos O duplo retoma a Pirandello quando ele
Alpes e o misantropo, 1928), mostra como este retoma, no teatro, os temas que usou como
Duplo I 281

leitmotivs em seus contos e romances. Sobretu- crise, a metáfora do homem dilacerado, é logo
do o tema do aprisionamento na personalidade posta em discussão: é preciso superar o mito da
e por efeito do o lhar lançado pelo outro- tema unidade do eu, diz Hesse, a projeção alienante
que ressurge como uma obsessão. Assim, mor- da unidade do corpo naquela do espírito; somos
to ou vivo, Mattia Pascal, no romance 11 fu feitos de uma multiplicidade de almas. E ele nos
Mattia Pascal (O falecido Mattia Pascal, 1904) convida a restaurar a multiplicidade de um eu
faz a experiência de que sua morte fictícia não em que a parte do lobo talvez seja a melhor.
lhe assegura a possibilidade de ser um outro, Hesse inspira-se na filosofi a oriental, em Sidar-
diferente do que ele foi. Continua sendo o que ta (1922), para imaginar um homem novo que
era, um prisioneiro dos outros, com a agravante já não sofreria de dual ismo crônico, abrindo-se
de ser um defunto. a todas as virtual idades ao viver p lenamente, de
Stefano Giogli (Primeira e segunda manei- acordo com o espírito e o instinto, sua dupla
ras) é aprisionado pela personalidade que sua natureza masculina e feminina A mesma con-
esposa forjou para e le. Eve-Lyne Morli, La ciliação dos contrários, figurada por um duplo
Signora Mor/i, une e due (As duas caras da antagonista, é preconizada em Demian (1 919).
Senhora Morli, 1922) é uma mulher janusiana O tema da metamorfose e sua relação com o
(de Jano, com suas duas faces contrapostas - animal cruza-se aqui com o mito do dup lo.
N.T.). Autêntico camaleão, da mesma maneira O homem traz em si seu animal (como vemos
que se adapta ao respeitável advogado Lelio, em Lokis [ 1869], de Mérimée). Ele aparece
adapta-se ao hedonista Ferrante. Quem é ela? facilmente no século XX como um mutante
Eve a louca ou Lyne a sensata? A impossibili- (por exemplo, em Die Verwandlung [A Meta-
dade de ter acesso ao sentimento de identidade, morfose, 1911] de Kafka, em Axolotl [l%3] de
quando a personalidade depende das circuns- J. Cortazar) que se toma prisioneiro de um
tâncias e dos olhares dos outros, está expressa outro corpo, ou mesmo se transfOi.Tffia numa
pelos tormentos da atriz Donata Genzi (em parte de corpo (em Nos [O nariz, ~836], de
Trovarsi [Encontrar-se] ) que leva o desempenho Gogol, em The breast [O seio, 19-~]. de P.
de seus papéis para a vida real. Em Enrico IV Roth), sem degradação do que constitui a ca-
(Henrique IV, 1922), o duplo se constitui em racterística própria do homem: o pensamento.
metáfora do teatro. Às vezes ele morre, mas em geral se adapta;
Pirandello consegue erguer o véu do misté- reencontramos aqui o mito platônico da malea-
rio da psique, pôr a nu o rosto individual sob a bilidade humana.
máscara e revelar a marionete manipulada pe- Pode-se notar a preocupação social em obras
los outros explorando a interpretação de papéis onde a confrontação com o duplo representa a
que fazem surgir o que os heróis deveriam (ou conscientização do que é im portante para o eu
gostariam de) ser. O duplo tem função capital e, ao mesmo tempo, do papel desempenhado
nessa elucidação; ele é a metáfora do orig inal. pela pessoa em seu ambiente. O problema que
Cada um é sua própria marionete. Compete a então se coloca é o seguinte: como consegue a
cada um descobrir sua máscara. pessoa aceitar-se e ser ela mesma na sociedade.
Assim é que, em The secret sharer (1925), As obras americanas mostram de maneira
de J. Conrad, o homem nu que sai do mar, o significativa a aceitação do princípio de reali-
passageiro clandestino, fará descobrir ao capi- dade: assim é que o judeu Fidelmann (em The
tão sua identidade. A decisão de salvar o crimi- last Mohican [O último dos moicanos, 1955],
noso, arriscando a própria sorte e a da tripula- de B. Malamud) termina por aceitar a lição que
ção no salvam ento de seu duplo, dá-lhe verda- lhe dá seu duplo- aparentemente perseguidor
deiramente o comando do navio. mas, fundamentalmente, salvador - , o judeu
O reconhecimento do duplo já não é, em si da Europa central Süsskind: sua vocação de
-;Jesmo, um resultado, mas um novo ponto de crítico de arte não passava de uma ilusão.
;mtida. Da mesma forma, as conseqüências positi-
A alegoria do dupl o animal em Der Steppen- vas do enfrentamento de suas próprias deficiên-
olf (O lobo da estepe, 1927), espe lho a que cias e complexos; no romance de S. Bellow The
;:corre Harry Haller vivendo um momento de victim (A vítima, 1947), essas conseqüências
· 282 I Duplo

decorrem da confrontação de um modesto em- da evasão: o eu percorre uma série de metamor-


pregado judeu nova-iorquino com seu duplo- foses (Botton), rompendo o princípio de identida-
parasita, um certo Albee, de nome transparente. de. O poeta é o vidente que cultiva dentro de si as
O herói, Lewenthal, é um representante do ho- alucinações (Alquimia do verbo) e a união com a
mem moderno, vítima de sua família que o natureza (Bannieres de mai [Bandeiras de maio]),
tiraniza, do trabalho no escritório. alvo do pre- a ampliação de si ao ponto de alcançar as dimen-
conceito racial. Ao expulsar de dentro dele sua sões do mundo, a transformação alquímica (a
imagem de rebaixamento, Albee, Lewenthal Idade de Ouro), "je deviens un óperafabuleux"
vence em si próprio " a vítima" e está pronto ("tomo-me uma ópera fabulosa").
para recomeçar uma vida nova. Na Europa, esse O desdobramento é uma experiência de lou-
otimismo construído já não parece ser aceito cura em que a confrontação com o duplo expri-
depois da Segunda Guerra Mundial. Na Alema- me o fim da loucura assassina (veja-se Les
nha, sobretudo, onde a busca do eu melhor, il/uminations [As iluminações]). Em Le voyant
simbolizada pela busca do irmão caçula ("o (O vidente) encontramos que mui tas outras vi-
anjo", no romance de Nossack Der }üngere das cabem por direito a "cada ser" (Alquimia
Bruder [O irmão mais novo, 1949] ), está fada- do verbo).
da ao fracasso. No território de Aporée (trans- A literatura tem a vocação de pôr em cena o
parente alusão à Europa), queimado por um duplo, invalidando o princípio de identidade: o
cataclismo, o eu melhor não existe mais. que é uno é também múltiplo, como o escritor
Schneider, o herói, terá uma morte estúpida por sabe por experiência.
acidente, depois de encontrar-se no cabaré A vontade de apagar o eu, de escapar ao
hamburguês de Aporée com Carlos, o duplo eu-prisão pela viagem, de criar um eu-evasão
caricatura! do anjo, "um ti pinho canalha". por meio da imaginação é uma constante no
A dimensão utópica ligada à figura do duplo, universo de Julien Green, em que o duplo tem
esse eu melhor para o qual gostaria de tender o uma presença obsedante até em sua obra mais
homem europeu, vai esbarrar em frases como recente (Le langage et son double [A linguagem
"Nada mudou ... A mesma falsificação de sem- e seu duplo], 1985), que o mostra dividido entre
pre". Nessa Europa marcada pelas ruínas das duas pátrias lingüísticas, os EUA e a França.
guerras, é por uma ruptura radical com o pas- Pela poética do duplo, escritores contempo-
sado - que significa a rejeição da personalida- râneos liberam seus heróis, que muitas vezes
de de outrora - que Anouilh anuncia em Le são duplos deles próprios aprisionados num eu
voyageur sans bagage (O viajante sem baga- particular, fixado no molde da personalidade.
gem, 1958) o segundo nascimento de um am- Assim é que, com o personagem Fabien, em
nésico que recusa voltar a ser quem ele foi, Sij'étais vous (Se eu fosse você, 1947), Julien
reendossar a personalidade de sua somb ra Green sacia uma pequena parte do seu desejo
de antes. A rejeição do duplo faz nascer um de "atravessar a humanidade da mesma manei-
homem novo, emancipado, sem raízes. ra como se roda por paisagens desconhecidas".
A cada nova transformação ele é ele próprio e
mais um outro, experimentando as virtualida-
3. A literatura como duplo des que mais lhe fazem falta - uma represen-
tação do escritor em sua relação com os perso-
Como fazer para que se apague esse eu tão nagens, ao mesmo tempo semelhantes a ele e
doloroso, carregado de passado, de família, de diferentes.
tradição?... Já Rimbaud apontava o caminho de Esse gosto por viajar de um ser ao outro
tal eliminação ao declarar triunfante: "Je est un começa, em Green, pelo estudo quase clinico
autre" ("Eu é um outro": Carta a Demeny de um homem com dissociação de personalida-
[1871 ]), que iria se tomar um dos princípios de de que sonha com uma impossível libertação
sua arte poética. espiritual (Le voyageur sur terre [O viajante
Reencontrando-se "numa alma e num cor- sobre a terra, 1924]). Em Green, o imaginário
po" ("Adieu" em Une saison en enfer), Rim- está sempre tomando a frente da realidade que
baud, prisioneiro de si mesmo, abre o caminho decepciona.
Duplo I 283

Em Le visionnaire (O visionário), por exem- mente a cerimônia da escrita (cf. Cortazar em


plo, o sonho de satisfação do desejo sexual Rayuela [O jogo da amarelinha], de que trataré-
(relato de Manuel) acompanha a narrativa do mos mais abaixo) que se desdobra na aventura de
cotidiano (relato de Marie-Thérese), enquanto um romancista convertido em personagem.
que um outro duplo de Manuel, arraigado à vida
decepcionante do cotidiano, o velho entrevado
que custa a morrer no seu quarto sem janela, 4. Além do espaço e do tempo
vem a ser, dentro de seu sonho, o dup lo de si
mesmo que obedece ao princípio de realidade O personagem pode viver simultaneamente
até nas fantasias ("fantasmas") comandadas em duas épocas, pode estar em dois lugares,
pelo princípio de prazer. vive duas ou muitas vidas ao mesmo tempo
Ao júbilo que acompanha a proclamação da (The man who has been Milligan [O homem que
eliminação do eu pela apropriação do duplo havia sido Milligan, 1930], de A. Blackwood).
(Rimbaud, Hesse, Green) corresponde sempre M . Aimé, na novela intitulada Les Sabines
o sentimento trágico da perda do eu e a obsessão (As sabinas, 1953), atribui à sua heroína o dom
pela loucura nesses mesmos autores. da ubiqüidade. Ela povoa a Terra com seus
A vertente sombria do apagar-se do eu apa- dup los.
rece, por exemplo, nas narrativas de Beckett, O m ito do duplo toma-se o meio de expres-
Textes pour rien (Textos a troco de nada, 1955), sar o contato, para além do eu, enrre duas vidas,
relatadas por um personagem que desenvolve entre duas culturas: o encontro do Oriente com
um monólogo sem referenciação espaço-tem- o Ocidente (Nerval, Rimbaud, Hesse) e aquele
poral, mostrando que até mesmo a relação com do Novo Mundo com o Velho Mundo. Em cada
a enunciação, com o "aqui e agora" contidos ocasião, a viagem no espaço é também uma
no dizer " eu", já não basta para estabelecê-lo viagem no tempo (dualidade espaço-temporal).
como identificável. Essa negação da irreversibilidade do tempo
Aquele que diz "eu" trai-se forçosamente, aparece, no século XIX, nas histórias de me-
sem controle sobre todas as vozes que o habi - tempsicose. Assim é que Bedloe, em A ta/e of
tam e falam a torto e a direita dentro dele. O eu the ragged mountains (Uma história das mon-
é esvaziado de sua substância, esvaziado de ser, tanhas Ragged; na tradução francesa: Souvenirs
e já não aparecem em cena mais do que tecidos de M Auguste Bedloe [Reminiscências do sr.
esparsos que se fazem passar pelo eu. Estamos Augusto Bedloe]) de 1844, Poe revive um epi-
aqui nos antípodas da ambição totalizadora dos sódio da existência do seu sósia mono 50 anos
românticos, do m ito do eu infinito em conso- antes e transfere-se defin itivamente para essa
nância com o mundo. O duplo simboliza a identidade, apoiado na crença de que o limite
dúv ida sobre o real. O eu, puro discurso, está entre os seres cessa de existir pelo renascimento
no cruzamento de uma trama de vozes (veja-se de um morto num vivo.
Molloy [1951]). Da mesma forma, a narrativa de J. Green,
Tendo desaparecido aquilo que demonstra- Varouna (1939- 1940), é um conto de metem-
va um enraizamento do eu no real, o imaginário psicose: uma cadeia liga os casais alcançados
prevalece sobre a realidade; já não se sabe quem pelo fenômeno no curso dos tempos. O futuro
é o original, quem é o duplo. aparece como um duplo do presente, ao fixar
A ficção adquire um caráter de realidade. uma das virtual idades consideradas.
O autor introduz-se na aventura narrada como Sir William Howe, em A mascarada de
sendo um dos personagens. Parece, portanto, Howe (1837), de N . Hawthome, é confrontado
natural que o escritor da novela de L. Hartlay, com seu duplo numa alucinação premonitória,
WS. (1951), seja assassinado por um de seus visão pela qual fica sabendo que será o ú ltimo
protagonistas, projeção da vertente negra de governador inglês do Massachusetts, tradução
sua personalidade, "o personagem em busca do espacial do medo à derrota e à morte que traba-
autor" que é também ele mesmo. lha o espírito do governador.
A negação do sujeito da enunciação chega ao A coincidência de duas épocas num mesmo
ponto de negar o sujeito que preside soberana- momento é acompanhada muitas vezes dacoin-
284 I Duplo

cidência de dois lugares, metáforas que visua- acidente banal, vê-se de volta ao mundo dos
lizam a idéia do duplo, da identidade que junta gauchos de sua infância e aí é implicado num
duas vidas numa. H. James gosta dessa "teles- duelo de morte, repetindo o passamento român-
copagem" do tempo, dos lugares e da identida- tico de seu avô, traspassado pelas lanças dos
de: em seu romance que ficou fragmentário, índios.
The sense ofthe past (O sentimento do passado, A morte sonhada durante a morte verdadeira
1917), o americano Ralph Pendrel, a partir do "é como se dois homens existissem ao mesmo
momento em que transpõe a soleira da porta de tempo". Borges designa assim o imaginário
urna velha casa londrina em 191 O, passa a ser como vitorioso sobre o real. O eu já não é
também um jovem americano de 1814 que vi ve definido por sua posição aqui e agora: o sujeito
uma aventura amorosa enquanto o outro conti- vive o presente como ilusão.
nua em seu presente de 191 O. Ser múltiplo e ninguém é próprio da condi-
Esses dados acham-se completamente in- ção humana. No livro de contos E/ Hacedor
vertidos em The jolly corner (O cantinho agra- (O criador, 1960), Borges varia ao infinito o
dável, 1908), em que o herói, ao retomar à sua mito do duplo: eu e o outro, Borges e eu, "é ao
casa natal em Nova York depois de viver 38 outro, a Borges, que as coisas acontecem, o que
anos na Europa, procura desentocar o fantasma faço é andar em Buenos Aires ", até que ·os dois
do passado num outro eu que não teria partido; personagens se reúnem no mito da literatura:
no fim, evita a confrontação com o duplo. A jogo eterno com o tempo, em que o eu se perde,
história de evitação do duplo e de "telescopa- o eu da enunciação transformando-se num ele
gem" de tempo e de seres é também narrada em =não-pessoa (o escritor Borges). A individua-
The beast in thejungle(A besta na selva, 1903), lidade reintegra-se ao arquétipo humano; o eu
onde o enfrentamento com a besta, com "o romântico é reduzido ao silêncio: a dissolução
outro destino", sempre adiado, retirar ia a más- do eu, que se perde num conjunto mais vasto, é
cara - cuja existência é apenas social (perso- a realidade do século XX.
na)- permitindo-lhe viver a realidade da pai- Mas, num mundo que vive urna crise de
xão amorosa. identidade, o sonho, da mesma forma que a
A "telescopagem" do tempo e dos lugares poesia, nos fazem mais próximos "daquilo que
como condição de aparecimento do duplo fa- éramos antes de ser o que não sabemos se
zem nascer um instante m ítico, pesado de con- somos" (J. Cortázar). Neste mundo, a verdade
seqüências para o destino do herói. e o erro não são mais os critérios absolutos que
A história de Osbert Sitvell, The man who traçam os limites entre sonho e realidade, por-
lost himself(O homem que se perdeu, 1930) - que o sonho é mais verdadeiro. Cortazar ima-
que se chamava primeiramente The man who gina um mundo às avessas, onde uma mulher,
found himself(O homem que se encontrou)- Alina Reyes, de Paris, encontra seu duplo, uma
fala do mesmo encontro num hote l de Granada, mendiga de Budapeste, ao atravessar uma pon-
narrado duas vezes diferentemente de acordo te, no conto "A distante" do livro Las armas
com o centro de perspectiva, do escritor Tristram secretas (As armas secretas, 1963). A mendiga
Orlander consigo mesmo. Cinqüenta anos sepa- é o duplo inverso de Alina, a rainha Uogo feito
ram os dois interlocutores. O encontro é crucial com o anagrama do nome), a má consciência de
para o rapaz que, renegando seu ideal, vai decidir Alina que ela acredita poder eliminar facilmen-
tomar-se um escritor de sucesso; para o idoso te. Mas a usurpação indevida talvez estivesse
escritor de sucesso, confrontar-se com o jovem sendo cometida pela outra, pela rainha feliz,
que ele foi assinala o momento da morte. amada, mimada - ao passo que aquela consi-
A abertura para a eternidade por meio da derada como uma aderência indigna seria a
identidade de destino, o eterno retomo como manifestação da realidade. A duplicação do eu
estrutura obsedante do imaginário que nega o ressaltada pela dissociação espaço-temporal
tempo que passa estão presentes em Borges: em mostra que Atina descobre no i'maginário sua
E/ sur (Sul), Ficciones (Ficções, 1956), ele realidade.
evoca o mito da morte dup la: aquele que morre Duas personagens aparecem sobrepostas,
num hospital em Buenos Aires, depois de um ambas reais e no entanto diferentes, no conto
Duplo I 285

"The out-sister" (A irmã do lado de fora). em Em Fuentes, a narração tende para o mito e
Windershins (1911), de O. Onions. Realiza-se a alegoria. A história passa por esse processo
uma reunião dos contrários: o que aparece fora no drama Todos los gatos son pardos ( 1970) . O
é o que está dentro, a desenhista é a freira ou retorno do mesmo ao outro configura-se aqui
vice-versa. como o drama de uma opressão expulsando a
No conto Der Nachbach (O vizinho, 1917), outra.
de Kafka, o duplo usurpador talvez seja apenas Cortés expulsa Montezuma que tiranizava o
o sonho daquele que se sente privado de ser, povo asteca. Cortés será por sua vez afastado
desapropriado de si mesmo dentro da ociosida- pelo poder da Espanha católica e imperial.
de agitada da fantasmagoria burocrática i'mpro- Montezuma é o duplo frágil de Cortés e este
dutiva, cuja identidade se reduziria à placa co- o duplo cego de Montezuma (veja-se a cena 9).
locada na porta: "Harras, Escritório". Mas vítima e vencedor são ambos vítimas do
Sonho e realidade invertem-se também no poder que eles acreditavam dominar. Nada mu-
conto escrito na 3a pessoa "à noite, olhando dará no destino dos mexicanos. No final da
para o céu" , do livro Las armas secretas, de peça, vem9s Cortés aparecer em cena so]? a
Cortazar. O acidente com a moto e o transporte aparência de um general dos EUA, e Montezu-
para o hospital, apresentados de maneira realis- ma sob a aparênc ia de um presidente do Mé-
ta, revelam-se como sendo o sonho tranqü iliza- xico.
dor de um prisioneiro que vai ser sacrificado a Montezuma usa o travestismo como um fal-
faca pelos astecas. Será o acidente, a cidade de so duplo para sondar Cortés. Uma princesa
pedra, o sonho daquele que vai morrer no sacri- asteca que se fez amante de Cortés dará à luz
fício ritual, ou será que é o acidente que provoca um filho que devia representar o mexicano de
a imagem do sacrifício? A consciência do su- uma nação enfim livre. De modo que o duplo
jeito lança uma ponte entre dois un ivers,os se- significa o retomo permanente do mesmo: por
parados. força das estruturas do \1éxico. haverá sempre
Num primeiro enfoque, a visão do duplo para colonizados e colonizadores. que por sua vez
Cortazar não passa de uma variante do encerra- passam a colonizados.
mento em si mesmo (como no' 'relato sobre fundo Esses mesmos temas voltam com um signi-
de água" e em "uma flor amarela"). ficado ma is geral em Terra nostra ( 197 5), onde
Mas, para os escritores latino-americanos, a figura do duplo simboliza a busca da perso-
há uma expansão do território confinado, os n"alidade oculta nos meandros de uma persona-
personagens vivem simultaneamente espaços e lidade histórica, os monarcas espanhóis suces-
tempos plurais. Para eles o mito do duplo real , sivos incorporando-se ao monarca eterno de
imaginário, sonhado, "fantasmado" é uma for- todas as Espanhas, Don Juan como o duplo de
ma de abordar sua relação com a história, com Dom Quixote. Por ser preciso mais de uma vida
a memória, uma forma de criar uma mitologia para completar uma personalidade, a procura
sincrética que leve em conta a civilização pró- do duplo é a busca de nossa personalidade
pria (relação com as divindades pré-colombia- dissimulada nos avatares de uma experiência
nas) e o que lhes vem da Europa, marcando sua histórica marcada pela relação conflituosa entre
condição de homens dilacerados entre duas cul- a civilização do Novo ;viundo, construída em
turas e dois mundos: o anglo-saxão e o medi- tomo da Espanha - que às vésperas do ano
terrâneo. 2000 se acha devastada - e a civilização do
Ass im é que o mexicano C. Fuentes faz mundo anglo-saxão.
reaparecer o duplo como um leitmotiv em sua Como atingir um equilíbrio entre dois mun-
obra. Por exemplo, no mito do retomo ao seio dos que causaram a desgraça das populações, o
matemo, da reintegração ao estado fetal, essa latino e o anglo-saxão? Esse ponto de encontro
"zona sagrada" (Zona sagrada, 1967) para a é, mais urria vez, representado como sendo
qual convergem todos os desejos de Guillermo, Paris, encruzilhada intelectual e moral. A dua-
o narrador, numa reunião incestuosa com sua lidade "Velho Mundo" - "Novo Mundo", que
mãe Claudia Nervo, que se pretende desmemo- se resolve numa síntese dos elementos antagô-
riada. nicos, símbolo e alegoria do homem novo -
2M6 I Duplo

"o outro mundo"-, condiciona a própria ar- Nessa invenção do homem do futuro, perce-
quitetura do livro de Fuentes. be-se muito bem a influência de um romance-
O duplo representa para este a integração de chave do século XX, obra em que o mito do
uma personalidade antiga num novo ser, seja no duplo ocupa posição central: Der Mann ohne
plano individual, seja no plano das sociedades. Eigenschaften (O homem sem qualidades,
É ainda uma mensagem política que aparece em 1930 - livro I; 1933 - in ício do livro II), de R.
Una familia lejana (Um parentesco distante, Musil, cujo inacabamento tem a ver, sem dúvi-
1980), sob a forma simbólica da reunião do jovem da, com o papel desempenhado pelo duplo, o
mexicano Victor Heredia e seu amigo André motivo das relações entre Ulrich e Agathe (ir-
Hérédia, jovem francês, dois gêmeos que se mão e irmã), (Ulrich chamava-se numa primei-
unem expressando um diálogo entre duas cultu- ra versão Anders = "Outro"). O outro só apa-
ras, a presença do passado no presente. rece como virtual idade de seu ser quando surge
A dificuldade do diálogo entre dois conti- o tema central da definição de uma moral pes-
nentes e entre duas culturas tão indissociavel- soal da vida verdadeira, que prevalece sobre a
mente ligadas, encontra sua expressão também sátira da monarquia austro-húngara.
em Rayuela (1963), de Cortazar. O argentino Musil não se limita a tomar emprestado uma
Horacio Olivera experimenta em suas peregri- das formas que o mito assumiu na tradição,
nações por Paris uma situação de "homem sem toma-as todas e as justapõe numa visão sincré-
qualidades". tica. Ele se inscreve na tradição romântica de
O exilado que pula de uma casa para outra um Jean Paul, ao definir o amor de Ulrich por
procura aproximar-se do centro de si mesmo, Agathe como amor por si próprio. Mas os prin-
demonstrando dispon ibilidade para a aventu- ·cipais mitos associados ao duplo são o tema de
ra, demonstran do a liberdade daquele que até discussões eruditas entre o irmão e a irmã, em
na mendicância tenta experimentar outras que recapitulam uma longa história que se con-
maneiras de ser homem, diferentes da perso- funde com aquela do homem ocidental: o mito
nalidade adaptada ao eu social. Nessa amare- platônico das duas metades que se buscam uma
linha simbólica, ele percorre diferentes "es- à outra, o mito de Pigmalião, o de Hermafrodi-
tações" de uma viagem iniciática, de uma ta , de Ísis e de Os íris ...
concentração em si mesmo que vai dar no Em "A irmã gêmea" (primeira versão do
encontro do duplo. romance), Musil pensava em explorar a seme-
Esse espectador à margem que se mantém lhança do irmão com a irmã como recurso
numa disponibilidade lúdica abre-se para ou- "picaresco" para fins de espionagem. Os dois
tros mundos (as três partes do romance intitu- personagens, Ulrich-Anders e Agathe, são ao
larn-se "do outro lado [Paris]", "deste lado mesmo tempo amigos, homem e mulher, irmão
[Buenos Aires]" e "de todos os lados"). e irmã, gêmeos e até mesmo irmão e irmã
O expatriação termina por um retorno ao siameses. Musil faz de sua relação uma aventu-
país, ao encontro de Traveler, esse viajante ra, " uma viagem aos limites do possível".
imóvel que é seu duplo, homem de território Esse empreendimento de uma vida, que se
se o compararmos a Oliveira, homem tran - concentra cada vez mais na história de Ulrich e
Agathe, é o signo da efetivação do "fantasma"
seunte. A solidão converte-se em amizade,
central da obra, ao qual Musil escapa por meio
amor correspondido. Quem ordena o jogo é o
de desenvolvimentos discursiv os que marcam
escritor Morelli, que como autor propõe doi s
a oposição entre masculino e feminino ( concei ~
livros em um, uma le itura a duas ve lo cidades,
tos que se afirmam aos pares: visão que dá e
linear ou paradigmática. Pula-se de um capí- visão que toma, experiência convexa e cônca-
tulo para outro, como no j ogo da amare linh a va, apetitivo/não apetitivo).
(Morelli é um trocadilho com marelle ["ama- O empreendimento configura-se como um
relinha" em francês]). Cortazar vive também longo devaneio em tomo do m~stério do "apa-
entre dois idiomas: dentro desta perspectiva recimento do ser humano sob dois estados -
da escrita, a aventura de Oliveira- que não homem e mulher" (O homem sem qualidades,
é mas procura ser- ganha pleno significado. parte II, capítulo 3°).
Duplo I 287

Um mito proteiforme A figura de um associai (Poe, Stevenson)


resultará na pesquisa de uma nova sociabilida-
O mito do duplo acha-se hoje vivo e produ- de (H esse, Cortazar); o duplo, símbolo da alie-
tivo. Permeável às modificações, ele tanto se nação individual numa sociedade que se mas-
presta ã ambição totalizante dos românticos- sifica (Dostoievski), pode ser também a condi-
que pretendem possa refletir-se no eu finito o ção de uma libertação social e política (Fuen-
mundo infinito - como ã pintura da oblitera- tes). O homem plural, as ficções em níveis
ção do eu, disposto a viver em avatares, esse eu vários, a abertura para mundos possíveis (o
que estabelece e por vezes aceita seu caráter de duplo é uma figura privilegiada da ficção cien-
fragmento, considerando que aí reside uma tífica) estão na ordem do dia.
perspectiva de enriquecimento e de diálogo A ambigüidade, a incerteza, a indecisibilida-
com o mundo, visão contemporânea de um de que fazem parte do refinado jogo de troca
otimismo construído, racional, que ao soar a entre o eu e seu duplo confundem a referência,
hora do absurdo viu-se temperado pela pintura ao expressarem uma dúvida (construtiva) sobre
de um eu que já nem sequer é capaz de asseverar o real, dúvida graças ã qual é cabível imaginar
sua existência pela intermediação do discurso que o individual poderá ser superado (utopia
(Beckett). musiliana).
Ao encerramento no eu romântico doloroso Entretanto, ao mesmo tempo que o mito se
e confinado que tem medo de perder sua subs- lê como um trajeto dirigido ã procura de um
tância porque transpor os limítes leva ã loucura, melhor eu, a ambivalência nele presente mani-
segue-se uma abertura para o mundo. A alteri- festa-se em sua relação privilegiada com a fi-
dade dentro do eu é o que vai permitir um gura da circularidade (Borges). Mas o duplo
diálogo, um reencontro, até mesmo uma solida- renasce sempre das cinzas que marcam a rela-
riedade com o outro. A desapropriação já não ção com a morte. Mais que o círculo, é a ima-
significa um empobrecimento, uma nadifica- gem da espiral que viria ao caso, o símbolo da
morte-renascimento. O duplo está apto a repre-
ção do ser, mas uma possibilidade de enrique-
cimento. sentar tudo o que nega a limitação do eu, a
encenar o roteiro fantasmático do desejo.
O homo sapiens que se libera de seu duplo
divino transforma-se num homo ludens e num NICOLE FERNANDEZ BRAVO
homo communicans.

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