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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

O Corpo Impuro: sobre a Digitalização da Matéria no


Imaginário da Cibercultura
Erick Felinto 1

Resumo: Os discursos da cibercultura anunciam repetidamente o desaparecimento


do corpo e da materialidade, a serem convertidos em padrões informacionais no
horizonte virtual do ciberespaço. Este trabalho analisa o tema da digitalização do
corpo/matéria no imaginário cibercultural, propondo criticar o tropo com base em
uma teoria radical sobre as materialidades das tecnologias. O apelo a um
pensamento fundado na matéria serviria, assim, para combater o vetor religioso e
irracionalizante que contamina boa parte dos discursos sobre as tecnologias
digitais na contemporaneidade.

No contexto de uma cultura onde toda concretude tende a desaparecer, onde


os temas da virtualização e desrealização são continuamente encenados, o corpo aparece
como um lócus fundamental de resistência da matéria. Falar do corpo é falar, portanto,

1
Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, Doutor em Literatura Comparada pela UERJ e PhD
candidate em Romance Linguistics and Literatures, pela University of California, Los Angeles. Atualmente é
Procientista da UERJ e Subchefe do Departamento de Teoria da Comunicação da mesma universidade,
desempenhando as funções de professor do Mestrado em Comunicação Social, onde coordena a linha de
pesquisa "Novas Tecnologias e Cultura". Possui diversos artigos publicados em periódicos nacionais e
estrangeiros sobre temas de comunicação e cultura e literatura comparada. É membro da Modern Languages
Association e do International Center for Borges’ Studies.
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daquilo que ainda escapa ao desejo de digitalização do real, ao impulso de fuga da matéria
tão característico dos discursos da cultura informática. No momento em que penso e
escrevo estas palavras, sinto a matéria de meu corpo em confronto com a matéria da
máquina que uso para registrar materialmente minhas idéias. O texto, por certo, é ainda
imaterial, existindo apenas nos bits e bytes do computador. Contudo, eu já o imagino em
sua forma final: no papel por meio do qual novos corpos e materialidades virão entrar em
acordo em atos de leitura. Desse modo, sinto na ponta dos meus dedos em interação com o
teclado o sinal da inevitável ancoragem física da minha subjetividade. E o texto que
produzo almeja ser igualmente uma expressão dessa afirmação inquestionável do material.

Nas linhas que seguem sugiro, portanto, pensar o corpo como fortaleza final
da matéria; como aquilo que resiste ao mito da digitalização e ao cartesianismo informático.
Contra as fantasias dos epígonos do espiritualismo tecnológico, como Hans Moravec, para
quem a consciência humana poderá prescindir em futuro próximo das limitações corporais 2 ,
este ensaio se apresenta, assim, como uma fenomenologia do corpo-obstáculo. Esse corpo
é um local de múltiplos afetos e inscrições, com certeza. Como na colônia penal imaginada
por Kafka, o corpo deste texto será atravessado por forças que o modelam, que desenham
na sua superfície sem que se tenha necessariamente consciência de tais inscrições.
Contudo, diferentemente do que sucede no conto, o corpo aqui resiste ao aparato singular
(eigentümlicher Apparat) das tecnologias 3 . Sofre suas inscrições, mas não desaparece nem
se entrega por inteiro. Ele pode ser pensado, assim, como um local de combate contra as
tendências imaterializantes do imaginário dominante acerca das tecnologias do digital.

2
Em seu livro mais conhecido, Mind Children: the Future of Robot and Human
Intelligence, Moravec sonha com um futuro próximo quando, por meio da tecnologia, se tornará possível
transferir (download) a consciência humana para o computador. Cf. Hayles (1999: 1).

3
“Es ist ein eigentümlicher Apparat” (‘é um aparato singular’): assim se inicia o discurso
do comandante ao explorador curioso a respeito do funcionamento da máquina na colônia penal. Cf. “In der
Strafkolonie”, em Kafka, F. (1995: 100).
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Como afirma Ken Hillis, muitos entusiastas e promotores das novas


tecnologias anseiam por exorcizar as incômodas “situações históricas e materiais do mundo
real” (1999: xvii). O real histórico e a materialidade representam um peso do qual esse
imaginário gnóstico almeja incessantemente libertar-se para flutuar livremente nos sonhos
ascensionais da utopia digital. Os gnósticos defendiam, nos primeiros séculos do
cristianismo incipiente, a libertação das amarras corporais e materiais que mantêm o ser
humano aprisionado num mundo decadente. Apenas o homem “pneumático” 4 , criatura
puramente espiritual, seria capaz de transcender a condição da matéria decaída,
aproximando-se do empíreo onde viveria a elite dos bem aventurados. Hoje, o ciberespaço
surge como novo empíreo, ou Nova Jerusalém Celestial, segundo propõem Michael
Benedikt (1992) e Margaret Wertheim (1999). Os sonhos religiosos de apagamento da
materialidade corporal retornam assim, em versão tecnológica, no contexto de uma cultura
secularizada, mas que parece ansiar por uma volta do sagrado e do sentido 5 .

Em seus múltiplos sentidos, a palavra corpo carrega consigo já uma


semântica da materialidade. Na terminologia das ciências da natureza, os objetos são
“corpos”; na das ciências humanas um “corpus” é um conjunto de obras. Mesmo aquilo
que se apresenta, a princípio, como imaterial pode tomar a forma de um corpo. É nesse
sentido que o filósofo Geoff Waite explora a potencialidade de significados implicados no
neologismo corps/e. Analisando a influência do pensamento de Nietzsche na cultura
contemporânea, Waite entende seu corps/e como “o corpus vivo da obra de um homem
morto e a corporação (corps) viva das pessoas que ela informa, encarna, corporifica,

4
Sobre o conceito de “homem pneumático” e sobre o impulso de descorporificação na
cibercultura, ver também meu artigo “A Tecnoreligião e o Sujeito Pneumático no Imaginário da
Cibercultura”, a ser publicado brevemente na edição 2004 da Agenda do Milênio Unesco/Universidade
Cândido Mendes.

5
Sobre o possível retorno da religiosidade, é possível citar diversos trabalhos recentes:
Vattimo (1996), Moreira e Zicman (1994), Crespi (1999), Maffesoli (1990).
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incorpora” (1996: 8). O que Waite chama de “Nietzsche’s Corps/e” traduz-se, assim, na
noção de que uma filosofia toma corpo, se concretifica e engendra conseqüências materiais,
inclusive no mundo da vida cotidiana (ou, como prefere Waite, da “espetacular tecnocultura
da vida cotidiana”). Não surpreende que o corpo, com todos os seus vetores de
materialidade, venha se converter em principal vítima de um imaginário de
desmaterialização. Como afirma Deborah Lupton,“na cultura do computador, a
corporalidade é representada freqüentemente como uma barreira desafortunada à interação
com os prazeres da computação” (in Bell & Kennedy, 2002: 479)

É fato que todo a tradição filosófica ocidental tendeu a valorizar o espírito


em detrimento da materialidade. O privilégio da voz sobre a escritura, como denunciado
por Derrida em sua Gramatologia, é talvez uma das mais vivas expressões dessa
valorização. O logocentrismo do Ocidente repousa na oposição entre espírito e matéria, na
qual a materialidade da escritura aparece como “quase que maléfica” e o corpo e a
materialidade, como “exteriores ao espírito, ao sopro, ao verbo, ao logos” (Derrida, 1973:
41,42). A exterioridade do corpo não poderia ser senão um incômodo, pois ele se afasta
assim da sede de toda verdade: o espírito como uma origem absoluta.

David le Breton observa que uma das conseqüências mais interessantes da


modernidade foi precisamente essa separação cartesiana entre corpo e espírito, passando o
primeiro a ser tomado como mero suporte do segundo. Enquanto que nas sociedades
tradicionais ou pré-modernas, o sujeito é seu corpo, nas culturas modernas o sujeito possui
um corpo. Assim, o corpo passa a ser mero envelope do espírito, e sua materialidade pode
ser descartada facilmente. Essa separação radical entre corpo e consciência gera duas
representações conflitivas. De um lado, temos, “em uma perspectiva quase gnóstica”, o
repúdio ao corpo e os sonhos de desmaterialização; do outro, os desejos de saúde total e
aperfeiçoamento corporal nas academias de ginástica ou clínicas de cirurgia plástica. Nos
dois casos, porém, “o corpo é dissociado do homem que encarna e encarado como um em-
si” (Le Breton, 2000: 229). Trata-se, assim, apenas de uma aparência de paradoxo. No
âmbito do imaginário cibercultural, as próteses eletrônico-mecânicas e a digitalização do
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sujeito respondem a um só e idêntico problema: a ruptura ontológica entre subjetividade e


corpo.

É como se a separação entre corpo e espírito reproduzisse, no plano da


subjetividade, o corte processado entre sujeito e objeto, quando do nascimento da razão
ocidental. Esse rompimento, que para Benjamin seria responsável pela possibilidade do
juízo 6 – Urteil (“separação originária”) –, também se encontra na origem do distanciamento
entre corpo e sujeito: o corpo se torna um objeto entre outros, se objetifica, e a distância
entre ele e o espírito só faz ampliar-se. No imaginário contemporâneo e nas ficções
promovidas pelos arautos da cibercultura, a distância chegou a seu paroxismo. Abundam
as propostas de aperfeiçoamento ou simples abandono do corpo; abundam as propostas de
transcendência das limitações impostas pela matéria. Contra esse imaginário da
transcendência, Ken Hillis sugere encontrar o lado positivo e criativo das limitações típicas
do humano:

É melhor, contudo, engajar-se no mundo material de tal forma que


a imaginação seja capaz de conceber as oportunidades que
repousam nas assim chamadas limitações do que aceitar
acriticamente quaisquer sugestões virtuais ou despropositadas de
que os corpos não importam, de que existem poucas restrições que
não possam ser afastadas ou desprogramadas, de que a
transcendência pode vir sem muito esforço ou de que não
precisamos nos preocupar excessivamente a respeito dos efeitos de
nossas ações (1999: 203).

E não é apenas nos excessos das fantasias da digitalização que o corpo, com
sua materialidade, tende a desaparecer. Alguns discursos que buscam descrever a
experiência mais ordinária da comunicação mediada por computador também não hesitam

6
“No pecado original, onde antes havia sido apalpada a eterna pureza do nome, eleva-se a
pureza mais rigorosa da palavra que julga, do juízo (Urteils)”. Cf. “Über Sprache überhaupt und über die
Sprache dês Menschen”, in Aufsätze, Essays, Vorträge (Gesammelte Schriften, Band II-1), 1991, p. 153.
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em descartá-lo. A rede se apresenta como um espaço em que inteligências incorpóreas se


encontram na pureza de um mundo transparente e imaterial. A solidez da interface
desaparece, o ritmo dos movimentos corporais e as sensações de fadiga, excitação, calor ou
frio não aparecem nessas descrições. Sherry Turkle menciona em seu livro o testemunho
de uma usuária anoréxica da Internet que estabelece prazerosas conexões entre o
desaparecimento de seu corpo no mundo físico (através do emagrecimento progressivo) e
no mundo virtual. “Minha descrição MUD 7 é uma combinação de fumaça e anjos. Eu
gosto da frase ‘espécie de mulher’. Creio que é isso que desejo ser também na vida real”
(apud Turkle, 1999: 215). Turkle compara esse tipo de experiência nas salas de chat ou de
roleplaying – a troca de sexo, o abandono da corporalidade, a flexibilização da identidade –
ao processo de dépaysement característico do trabalho de campo na antropologia. O
dépaysement consiste no abandono dos referenciais da cultura do investigador, de modo
que este possa penetrar na cultura alheia. Contudo, a vivência desse deslocamento cultural
acompanha o investigador em seu retorno à cultura de origem, que agora passa a lhe
provocar estranheza.

Mas a coisa vai além do abandono da cultura ou do país (pays). Trata-se de


desembaraçar-se do próprio corpo para experimentar em que consiste, por exemplo, o
pertencimento a um outro gênero. O homem coloca repetidamente uma máscara feminina
em suas visitas ao mundo virtual, e mais tarde, quando intenta apresentar-se novamente
como homem, suas construções argumentativas, seus discursos soam como falsos ou
deslocados. Seria, porém, de um otimismo absolutamente excessivo esperar que a
construção de uma personagem feminina em exercícios de conversação online pudesse
alterar essencialmente a experiência cognitiva ou existencial do internauta. Entender o que
é ser uma mulher envolveria necessariamente o exercício de habitar um corpo feminino -
ou, no mínimo, a experiência de travestir-se em mulher para sentir, na superfície do corpo,

7
MUDs: “multi user domains”, salas virtuais de interação online por meio de jogos
textuais.
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os regimes cotidianos de representação do feminino em uma sociedade essencialmente


falocêntrica. O cinema é pródigo em imaginar experiências do tipo. Tootsie (1982), de
Sidney Pollack, e Victor/Victoria (1982), de Blake Edwards, são apenas alguns dos
exemplos mais significativos. Porém, por mais que o wishful thinking pós-moderno possa
desejar abrir mão da materialidade do corpo e converter a experiência da sexualidade em
um dado unicamente cultural, sempre permanecerá um resquício experiencial dependente
do componente biológico. Pretender que o ser humano seja uma entidade puramente
construída por pulsões culturais ou psíquicas é advogar uma espécie de metafísica da
cultura, na qual o domínio do simbólico torna o humano infenso a toda determinação
biológica.

Entretanto, mesmo se não desejarmos penetrar nas espinhosas questões de


gênero na internet (e já existe uma considerável bibliografia sobre o tema) podemos
confrontar o tema da descorporificação por meio de um posicionamento político. Jennifer
González adverte, por exemplo, que o problema com tal espécie de fantasias é o fato de
assumirem “que diferenças entre indivíduos ou grupos sejam primariamente superficiais –
literalmente da profundidade da pele (skin deep)” (in Bell & Kennedy, 2002: 549). A
resolução dos problemas de gênero, raça ou classe se daria, assim, através do simples
abandono do corpo físico e das livres encenações de diferentes personas na internet. E
Allucquere Rosane Stone sugere que “esquecer o corpo é um velho truque cartesiano; um
truque que tem desagradáveis conseqüências para aqueles corpos cujo discurso é silenciado
pelo ato de nosso esquecimento. Ou seja, aqueles sobre cujo labor se funda o ato de
esquecer o corpo” (in Benedikt, 1992: 113).

O esquecimento do corpo em certos discursos ciberculturais se


fundaria, assim, também num curioso imaginário místico-político. A rede é imaginada
como o novo paraíso virtual, onde todos os seres humanos poderiam se encontrar em
igualdade de condições; onde os conflitos de gênero, raça, religião ou classe
desapareceriam magicamente. Mas esquecer o corpo é esquecer a materialidade histórica
na qual tais conflitos se radicam. É imaginar que a condição emancipatória seja possível
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apenas através do abandono da materialidade, num plano alternativo da existência situado


em algum domínio ideal da espiritualidade – ainda que uma espiritualidade “digital”.
Outro problema envolvido nesse imaginário é precisamente o fato de imaginar a
experiência de descorporificação (ou o ciberespaço onde esta se dá) como um local fora do
tempo e do espaço. Nessa idéia reside o tema – tão exaustivamente repetido nos discursos
ciberculturais – da Nova Cidade de Deus, da Jerusalém Celestial eletrônica. Margert
Wertheim é quem enuncia o tropo mais claramente: “O ciberespaço não é um construto
religioso per se, mas como eu argumento neste livro, uma maneira de entender esse novo
domínio digital seria como uma tentativa de elaborar um substituto tecnológico para o
espaço cristão do céu” (1999: 19).

A metáfora é retomada por Andoni Alonso e Iñaki Arzoz, mas dessa vez
com teor crítico. Contra os discursos “tecno-herméticos” da cibercultura, os autores
elaboram um panfleto visando desconstruir, com muito bom humor e ironia, os mitos dessa
nueva ciudad de Dios. Ali, a fantasia do corpo virtual é referida a toda uma tradição
imaginária de libertação das amarras corporais, que vai dos ancestrais animismos até as
viagens astrais de místico sueco Emannuel Swedenborg (Alonso & Arzoz, 2002: 146-154).
Como muitas outras metáforas do discurso cibercultural, também a imagem do corpo
digital torna-se perigosa quando esquece seu estatuto metafórico e é tratada como uma
realidade, atual ou possível (e desejável).

Há uma série de fenômenos intrigantes implicados nos discursos


ciberculturais da desmaterialização. A questão mais importante talvez seja a que toca
precisamente no paradoxo do encontro entre o material e o imaterial. A cultura
contemporânea se apresenta como uma época essencialmente anti-espiritualista, como o
momento histórico da vitória da matéria sobre o espiritual. A tecnologia seria uma das
faces mais evidentes dessa supremacia do material. Nos grandes centros urbanos o triunfo
da matéria se anuncia em cada prédio monumental, em cada espaço onde o ser humano
acostumou-se a conviver com a máquina e com as conquistas tecnológicas. Mas essa face
material da tecnologia pode ser enganosa. As tecnologias da comunicação e informação
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que se desenvolveram ao longo do século passado parecem trabalhar em um registro


diferente do das tecnologias anteriores. Produzem realidades imateriais, mas cuja
efetividade na vida cotidiana das sociedades contemporâneas é inquestionável. Juremir
Machado acerta ao denominá-las tecnologias do imaginário: “dispositivos (elementos de
interferência na consciência e nos territórios afetivos aquém e além dela) de produção de
mitos, de visões de mundo e de estilos de vida” (2003: 22). São tecnologias de
acionamento do imaginário, responsáveis ou pelo menos co-responsáveis pela criação de
um duplo virtual da realidade, de uma atmosfera simbólica na qual todos navegamos.

Algumas linhas atrás questionei a evidência da vitória da materialidade na


onipresença das tecnologias na vida contemporânea. A formulação talvez seja enganosa,
ou então constitua mais um dos numerosos paradoxos típicos da cultura contemporânea.
Pois se por um lado a cultura parece afirmar a matéria através da monumentalidade e da
presença cotidiana das tecnologias, por outro é inegável o fato de que as mesmas
tecnologias se tornam progressivamente invisíveis a nossos olhos. Scott Bukatman percebe
essa “desaparição” das marcas visíveis do tecnológico e nota que tal invisibilidade as torna
menos suscetíveis à representação e compreensão (daí mais uma razão do fascínio que
exercem no imaginário) (1998: 2). Talvez as representações monumentais do tecnológico –
e sua força na imagerie da ficção científica é inquestionável – constituam o resquício de um
imaginário tecnológico moderno, que ainda dá seus últimos suspiros em meio à instituição
de uma nova forma de fenomenologia tecnológica: a da invisbilidade progressiva. Mas se
as novas tecnologias são invisíveis – e também nesse sentido o termo “tecnologias do
espírito” (Cf. Sfez, 1988) parece curiosamente apropriado –, nem por isso são menos
ubíquas ou marcantes. Dessa forma, o imaginário a respeito do ciberespaço talvez
constitua, como sugere Bukatman, “uma compensação narrativa pela perda de visibilidade
no mundo” (1998: 143). Nas fantasias da subjetividade virtual, que domina com inteira
liberdade o mundo digital, o sujeito fragmentado da cultura contemporânea se vê num
espaço que é capaz de compreender e no qual pode trafegar de forma semelhante aos
espaços euclidianos, mas cada vez mais labirínticos nas metrópoles pós-modernas, de sua
experiência cotidiana.
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Mas se em muitos dos discursos ficcionais e teóricos sobre as novas


tecnologias matéria e corpo tendem à eliminação, também existem novos horizontes
teóricos onde a materialidade é ressuscitada e redimida. Esse é o objetivo de um projeto
intelectual que se define, precisamente, como materialidades da comunicação. Como
explica Hans Ulrich Gumbrecht, mais ativo representante dessa corrente, trata-se de um
projeto que “tenciona ser teórico, porém, focalizado em fenômenos concretos e nem sempre
‘espirituais’” (1994: 390). Gumbrecht lembra que a tendência dominante no pensamento
teórico do Ocidente continuamente envolveu a exclusão de “qualquer referência ao corpo
humano” (1994: 391), assim como à materialidade dos fenômenos. A tradição filosófica
com a qual as ciências humanas têm trabalhado é de matriz hermenêutica, preocupada que
está com a determinação do sentido (imaterial) dos fenômenos e não com sua concretude
objetiva.

Em contraposição a esse paradigma, a escola das materialidades (se é que


assim se pode chamá-la) sugere pensar a teoria a partir de um campo não-hermenêutico ou
interpretativo. A teoria que emerge de tais princípios, antecipada em certos pontos por
alguns importantes pensadores como Mac Luhan e Foucault, se caracteriza assim por um
pendor menos antropocêntrico (menos espiritual), menos anti-tecnológico e menos
transcendental. Dessa forma, ela se dedica a estudar não propriamente o sentido dos
fenômenos comunicacionais, mas antes as condições materiais para a emergência desse
sentido. Em outras palavras, preocupa-se com as acoplagens entre sujeitos, corpos e
tecnologias comunicacionais no sentido de buscar explicar de que modo determinadas
formas de acoplagem são capazes de engendrar sentido a partir do não-sentido. As
materialidades da comunicação podem ser entendidas como uma tentativa de inserção
decidida e metódica do corpo e da matéria no âmbito dos estudos culturais. Seu método de
trabalho é eminentemente descritivo e não interpretativo; seu foco são os meios e as
instituições que deles fazem uso; seu campo é a materialidade histórica da época em pauta
(sempre percebida a partir do prisma de seus discursos e tecnologias dominantes).

O exemplo talvez mais direto do tipo de abordagem teórica permitida por


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esse projeto intelectual são as fascinantes análises da influência da máquina de escrever no


desenvolvimento de certas idéias e textos de Nietzsche, sugeridas inicialmente por
Friedrich Kittler em seu curioso Aufschreibesyteme 1800/1900 (1990) e desenvolvidas mais
tarde por Martin Stingelin no ensaio “Comments on a Ball”, incluído na coletânea
Materialities of Communication, organizado por Gumbrecht e Karl Ludwig Pfeifer (1994).
Em fevereiro de 1882, Nietzsche recebe como presente de Natal uma das primeiras
máquinas de escrever, chamada “esfera de tipos”, desenvolvida pelo pastor dinamarquês
Hans Malling Hansen. A máquina havia sido projetada inicialmente para o uso de pessoas
com deficiência visual, e Nietzsche, de fato, encontrava dificuldades cada vez maiores para
escrever à mão devido a seus problemas visuais. Stingelin sugere que certas construções
frasais e até mesmo certos conceitos encontrados em escritos produzidos com a máquina de
escrever refletem a influência dessa materialidade maquínica no desenvolvimento imaterial
das idéias do filósofo. De fato, em resposta a uma carta propondo que a qualidade dos
pensamentos de uma pessoa está profundamente ligada ao instrumento de escrita, Nietzsche
responde: “Você está certo – nossos instrumentos de escrita funcionam lado a lado com
nossos pensamentos” (apud Gumbrecht & Pfeiffer, 1994: 81).

Ainda que hoje possa parecer algo óbvia a noção da importância da


materialidade do meio na constituição do sentido (especialmente após a célebre frase de Mc
Luhan, “o meio é a mensagem”), a verdade é que o pensamento teórico deu muito pouco
destaque e desenvolvimento à questão. Apenas recentemente, de fato, corpo e matéria
parecem retornar com vigor nas especulações das ciências humanas. Hoje o corpo parece
estar em toda a parte: no universo da propaganda e da imagem midiática em geral, no
campo da arte e do pensamento teórico, ainda que a imagem que dele temos seja algo
traumática – um corpo freqüentemente fragmentado ou deformado, como aquele dos
modernismos, magistralmente descrito por Eliane Robert Moraes em O Corpo Impossível
(2002). Contudo, a presença do corpo no horizonte dos estudos sobre a cibercultura ainda é
tímida. A realização de mais estudos detalhados sobre a estrutura de interfaces ou sobre as
formas de acoplagem do sujeito com a materialidade do computador e de outros aparatos
comunicacionais e informacionais pode, sem dúvida, colaborar para a admissão do corpo
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no horizonte da cibercultura. Essa ausência também se expressa – se quisermos nos manter


ainda dentro de uma perspectiva tradicionalmente hermenêutica – na carência de estudos
etnográficos sobre usos e práticas sociais da rede. Porém, mais que isso é necessário que se
adote um posicionamento filosófico de suspeita diante das mitologias da imaterialidade.
Como diz Vivan Sobchak, a tecnologia é “‘incorporada’ e ‘vivida’ por seres humanos que
nela se engajam dentro de uma estrutura de sentidos e metáforas, na qual as relações
sujeito-objeto são cooperativas, co-construtivas, dinâmicas e reversíveis” (in Gumbrecht &
Pfeiffer, 1984: 85).

A idéia de “incorporação” se revela, de fato, de grande utilidade em tal


contexto. Acoplagens entre diferentes sistemas (humanos e maquínicos), próteses e
extensões são conceitos que apontam para a materialidade da tecnologia. A noção
mcluhaniana de prótese ou extensão tecnológica é retomada, no âmbito da cibercultura, por
meio da metáfora do ciborgue. Em Donna Haraway, na mais célebre utilização da imagem
ciborgue, poder-se-ia esperar que a materialidade tecnológica ou do corpo aparecesse com
todo vigor, dado que ali se trata de utilizar tal figura como instrumento de liberação
política, por meio de um feminismo renovado. Mas existem instâncias discursivas no texto
onde o fantasma da imaterialidade insiste em penetrar sorrateiramente. A linguagem do
Manifesto Ciborgue, que se pretende fiel ao feminismo, ao socialismo e ao materialismo
(2000: 39), faz uso constante de tropos religiosos. É verdade que podemos encontrar um
importante precedente dessa utilização em Walter Benjamin, e as Teses sobre o Conceito de
História constituem talvez o mais nítido exemplo disso. No texto de Benjamin, contudo, a
estratégia – uma forma de apropriação secularizada (säkularisierende Aneignung) do
vocabulário teológico, como sugere Winfried Menninghaus (1980: 7-8) – reconduz-nos
constantemente ao mundo material. A noção de materialismo histórico atravessa todo o
texto. Em Haraway, por outro lado, ficção e realidade histórica se aproximam, ao passo
que a imaterialidade das tecnologias e a fluidez absoluta dos corpos e identidades corre o
risco de nos conduzir a um mundo de unidade absoluta. Os ciborgues de Haraway são,
como a tecnologia que os constitui, ubíquos e invisíveis. “Eles são – tanto política quanto
materialmente – difíceis de ver” (2000: 49).
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Para Hermínio Martins, argumentos como os expostos no Manifesto


Ciborgue, principalmente a idéia da abolição de todas as separações ontológicas,
aproximam-se perigosamente dos sonhos gnósticos de transcender a diáspora dos seres
(1996: 191). Martins ali identifica, de fato, uma expressão do que considera como
gnosticismo tecnológico típico da tecnociência contemporânea: a crença na tecnologia
como instrumento supremo para a transcendência das fronteiras e limites
caracteristicamente humanos.

As metáforas que têm habitado os estudos sobre a cibercultura não


representam, em si mesmas, um perigo epistemológico. Analogia e comparação são
instrumentos especialmente importantes na aproximação de novos objetos de estudo.
Mesmo certas inflexões religiosas do discurso cibercultural são aceitáveis quando se pensa
que a tecnologia possui, de fato, relações genéticas com a religião (Cf. Noble, 1999).
Contudo, a tarefa do conhecimento é utilizar a metáfora como ponte, como local de
ultrapassagem. No momento em que a metáfora substitui a coisa, em que a distância crítica
se perde e nos aproximamos do reino da indiferenciação, aí repousa o perigo de novas
formas de totalitarismo. O discurso tecnocientífico, ao se manifestar como religiosidade de
uma época desencantada ou reedição tecnológica de credos gnósticos, faz desaparecer do
horizonte do pensamento a materialidade e corporalidade necessárias a seu ancoramento no
real. Na avalanche do linguajar religioso e espiritualizante, das utopias acríticas e dos
desejos de imaterialidade esconde-se a possibilidade de uma tirania digital que, suprimindo
de seus discursos o corpo, encontra assim novos e sutis modos de controlá-lo.

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