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Situações clinicas !

: Análise Fenomenológica de Discursos Clínicos


O conteúdo na íntegra, de cada capítulo, é de responsabilidade única e exclusiva do autor.

COORD ENAÇÃO EDI TORIA L


Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo
Myriam Moreira Protasio

CONSELHO EDI TORIA L Situacões


Clínicas 1
An a Maria Lopez Calvo de Feijoo
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez
Adriano Holanda
Carmem Lucia Barreto
Henr iette Tognetti Penha Morato Análise Fenomenológica de
José Paulo Giovanetti
Roberto Novaes de Sá Discursos Clínicos
Tommy Akira Goto

SÉRIE
Psicologia Existencial e Suas Práticas

ORGANIZADORE S DA SÉRIE
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo
Myriam Moreira Protasio

RE VISÃO TÉCNICA E DE PADRONIZAÇÃO


As organizadoras
ORGANIZAÇÃO
CAPA, PROJETO GRÁ FICO E DIA GRA MAÇÃO
Ana Luisa Videira
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa
S623
Myriam Moreira Protasio
Situações clínicas I: análise fenomenológica de discursos clínicos/ organização Ana
Maria Lopez Calvo de Feijoo, Myriam Moreira Protasio. - l.ed.- Rio de Janeiro, RJ:
IFEN, 2015.
336 p. (Psicologia Existencial e Suas Práticas)

ISBN 978-85-63850-06-5

1. Psicologia existencial. 2. Psicologia_fenomenológica. 3. Psicologia clínica. 1. Instituto


de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro. li. Feijoo, Ana Maria
Lopez Calvo de. III. Protasio, Myriam Moreira. IV. Série.

CDD 150.192
0020/2015 CDU 159.9

Todos os direitos desta edição reservados ao


Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (Editora Científica) lª Edição
Rua Barão de Pirassinunga, 62 - Tijuca - Rio de Janeiro - Brasil
Rio de Janeiro, 2015
www.ifen.com.br I e-mail: edicoesifen@ifen.com.br
sentativo desta psicologia que costumamos chamar de fenomenoló-
Solidão, cristalizacão da identidade
gico existencial e que se constrói em diálogo com a filosofia existen-
cial. A força desta publicação advém desta diversidade, ao dar voz à feminina e a clínica psicológica existencial
pluralidade que se esconde sob o diálogo com estes pensadores e que,
ao mesmo tempo, se afasta deles ao inaugurar modos próprios de se
ANA MARIA LOPEZ CALVO DE FEIJOO
articular e de constituir caminhos do pensar e fazer clínico. Assim,
queremos finalizar esta apresentação agradecendo o esforço dos es-
tudiosos que escreveram os textos aqui presentes, que se debruçaram
sobre situações clínicas vividas por eles. Mas, também, reverencian-
Com o título clínica psicológica existencial o que queremos mos-
do-os por sua coragem em exporem o modo próprio de articulação
1 rar é, primeiramente, como poder atuar por meio de uma perspectiva
do seu fazer.
·m psicoterapia que opera uma transposição da filosofia para o campo
Esperamos que o leitor encontre nestes textos inspiração para
psicoterapêutico. A filosofia da qual traremos, aqui, será basicamente a
suas próprias pesquisas e estudos acerca do fazer clínico.
ontologia fundamental de Heidegger, principalmente, aquela que se faz
presente em Ser e tempo. A transposição da filosofia para a atividade
Serrinha do Alambari, 6 de setembro de 2015.
línica não é uma novidade, Binswanger foi o primeiro a introduzir
Myriam Moreira Protasio
o pensamento da Heidegger no modo de pensar a psiquiatria, como
~·s larece Stein (2012):

Sobretudo Binswanger, em seus volumosos livros, persiste


em extrair de Ser e tempo material para refazer a Psiquiatria,
e de transportar, do campo que ele chama filosófico para
o campo empírico, médico ou terapêutico elementos que
pudessem modificar a relação clínica (p.104)

A transposição do modo de pensar de Heidegger para ao modo


1k pensar na prática clínica vem sendo pensada por~ (2012), que
nlirma categoricamente já ter se efetivado há muito tempo, no entanto,
111\ muitas questões nas quais precisamos nos deter, são elas: a descrição
1• ., prescrição e a relação analista e analisando deslocada da determi-

11 11;, o causal.
Uma das questões na qual precisamos nos deter diz respeito ao
1, r:\tcr descritivo e enunciador do modo de ser do homem presente

1·111 Ser e tempo e, no entanto, a clínica psicológica a princípio tem um


, .rrátcr prescritivo com o objetivo de cura. Uma questão que se impõe é
, 111110 passar da descrição para a prescrição? Essa questão em seu funda-
uu-nto diz respeito à ética entre ser em seu caráter descritivo e dever - ser
1•111 s 'LI caráter prescritivo. Stein (2012) ao tratar desse tema pergunta "Ao

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~- -
passar de informações parciais do nível descritivo para práticas de cura o 1 1 un os riscos da transposição do campo filosófico para o campo psico-
que acontece?" (p. 105). É justamente essa transposição o que queremos u-rnpêutíco! O caminho que vamos seguir aqui diz respeito ao modo
esclarecer neste texto, mostrando o modo como a clínica psicológica pode 1",jlC ífico de pensar que tomaremos da ontologia heideggeriana, ou
acontecer sem assumir uma prescrição. Com relação à cura, poderíamos ,,1·Ja, o modo fenomenológico - hermenêutico. A hermenêutica de Hei-
afirmar que não é esse o objetivo da clínica psicológica? Sim e não. Não, ill'ggcr pressupõe circularidade, que preserva a relação entre universal
isso quer dizer, que não sabemos de antemão o que seria curar-se, dado a ,. singular. O singular diz respeito a que o Dasein é sempre meu e que a
singularidade no que diz respeito à decisão que cada um assume em sua 1 umpreensâo é um existencial que se expressa sempre singularmente.
existência. Sim, uma vez que queremos, com a relação que se estabelece Mas a indeterminação originária do Dasein torna necessário que ele
na clínica, sustentar um espaço de pensamento que se demora ao pensar ',l' constitua pelos sentidos que se articulam no mundo que é seu. As
sobre as orientações do mundo que nos aprisionam em um dever ser, obs- orientações do mundo, ou seja, o acontecimento - apropriativo cons-
curecendo o caráter de poder ser que todos nós somos. A situação clínica 1 i I ui-se no caráter universal que sustenta as possibilidades singulares
que traremos aqui nos mostra, justamente, o aprisionamento por meio da 1k- ser.
cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de solidão Assim, a queixa da solidão diz respeito às expressões singulares
quando essa identidade não se realiza. que se sustentam no modo que a identidade feminina se cristalizou em
Ao pensar a clínica psicológica de um ponto de vista distinto ao nosso horizonte histórico. Há muito se consolidou a tese de que toda
das ciências naturais que operam com a noção de causa - efeito, po- mulher necessita de um homem que lhe dê e confirme a sua identidade
sicionando de antemão o analista como o eu faço da relação, vamos f ·minina. Essas teses aparecem nos mitos, nas histórias infantis, nos
tomar a concepção de Dasein tal como desenvolvida por Heidegger contos, romances e até em teorias acerca do psiquismo humano. A in-
(1927/2003). O filósofo, ao redefinir o conceito de ser humano como 1 .rpretação hermenêutica com a qual lidaremos na clínica diz respeito,
Dasein, estabelece outro modo de apreender o tradicional conceito fi- primeiramente, a conhecer as determinações do horizonte histórico
losófico de necessidade e possibilidade. Em Ser e tempo, o filósofo in- ·m que nos encontramos. Sem deixar, no entanto, de atentarmos ao
troduz a concepção de decisão e do deixar as coisas aparecerem por modo como cada um singularmente corresponde a essas determina-
elas mesmas. Stein (2012), assim, resume essa passagem: ''A condição ções do mundo. E é nesse jogo do dever ser e poder ser que o singular
causa-efeito 'violenta' a existência humana, pois a ignorá' (p.106). Por pode emergir como ser das possibilidades. É, justamente, esse jogo que
isso Heidegger em Ser e tempo substitui a expressão "liberdade" pela será mostrado na situação clínica que discutiremos adiante.
ideia de decisão. E é justamente a ideia de decisão discutida ontologica- A clínica psicológica existencial se sustenta na noção de cuidado
mente pelo filósofo que discutiremos onticamente na clínica como não que podemos acompanhar em Ser e tempo, trata-se do caráter univer-
se tratando de uma mera escolha. sal das descrições heideggeriana, no entanto, não é possível um proces-
A cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de so psicoterapêutico sem singularidade. De acordo com o que diz Stein
solidão, por parte das mulheres, torna-se cada vez mais frequente nos (2012): ''A preservação da singularidade do indivíduo, ao mesmo tempo,
consultórios de psicologia, por esse motivo é que essa questão se apre- a possibilidade de pensá-lo em sua generalidade, tal como é desenvolvido
senta com o mérito de ser pensada. Falar de identidade feminina não em Ser e tempo, põem-nos em uma relação clínica diferente" (p.107).
aponta para uma generalização? Tomar a queixa de solidão que aparece Ainda, para poder apresentar o tema solidão, que também com-
em alguns consultórios de psicologia não é um caminho que conduz a põe o título deste texto, esse deve ser pensado. Iniciemos pelo que en-
algo que diz respeito à singularidade? Para levar a cabo essa discussão, tendemos aqui por solidão. Fogel (1999) pensa a solidão totalmente
precisamos recorrer a Heidegger, ou melhor, a sua fenomenologia her- articulada ao silêncio e diz que é nesse espaço de liberdade que o ho-
menêutica. Surge, então, a segunda questão, de como podemos lidar mem tem a possibilidade de encontrar a sua necessidade, a sua tarefa

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Situações Clínicas 1 • 19
própria que no mundo moderno pode receber a alcunha de uma tarefa Para pensar o modo como a identidade feminina foi se constituin -
totalmente da ordem do inútil. No entanto, no mundo em que nos en- do e cristalizando historicamente, acompanharemos como a posição
contramos, o espaço do necessário e do inútil da tarefa própria aparece social da mulher foi se modificando e cristalizando desde o período
em uma extrema restrição e totalmente velado. A solidão é tomada Neolítico II (3000 a.C 2500 a.C) ao Contemporâneo. Para assim, po-
como algo que deve ser evitado a qualquer preço. E o preço é alto, exi- dermos nos aproximar de uma situação específica muito presente nas
gindo que se preencha esse silêncio com o burburinho, com a ocupa- ·rises existenciais presentes em nosso horizonte histórico, as queixas de
ção excessiva, por isso parece necessário e imprescindível à presença do mulheres com relação à solidão. Cabe ressaltar que temos a oportunida-
outro com quem podemos estabelecer uma relação de preenchimento, de de acompanhar mulheres de 15 a 60 anos, tanto em clínicas privadas
de modo a que não se abra o espaço do silêncio e da solidão. corno em atendimentos comunitários, que buscam a clínica psicológica.
Sabemos que o atendimento clínico em Psicologia é destinado a Mas como poder entender o que está em questão no sofrimento des-
pessoas que a ele recorrem, na maioria das vezes espontaneamente, por sas mulheres. Elas referem-se ao fato de não conseguirem conquistar
diferentes motivos, dentre eles a solidão, o luto e o abandono. Essas ou manter relacionamentos amorosos. Isso acaba resultando em desâni-
situações passaram a ser compreendidas pela ciência psicológica como mo e desinteresse em todas as áreas de suas vidas. Essa modalidade de
traumáticas, portanto, que devem ser evitadas e quando não forem pas- -ofrimento é, frequentemente, interpretada pelas diferentes psicologias
síveis de serem evitadas, devem ser corrigidas. E é, geralmente, na in- 1 01110 algo da ordem de uma menos valia ou de uma fissura psíquica que
tervenção corretiva que se abre um espaço para a atuação do psicólogo 11fo permite a realização do projeto dessas mulheres. Aqui trataremos
clínico. As pessoas que sofrem pelo trauma saem em busca da escuta e 1 lcssa temática como algo que se teme. E que esse temor se constitui pelo

dos cuidados de um profissional que possa corrigir aquilo que lhe traz discurso de nosso tempo que, a todo o momento, nos diz que temos que
sofrimento. Essa interpretação e consequente atuação clínica partem 1 onquistar a felicidade, e feliz é aquele que tem "a família Doriana".

da naturalização da relação causa-efeito. Assim efetua-se uma genera- Em uma perspectiva existencial que abandona totalmente a ideia
lização na qual a singularidade é desconsiderada. Mas, também, pode dr uma estrutura psíquica que subjaz todo o modo de sentir, pensar e
ocorrer ao contrário, tudo pode ser tomado como da ordem de uma ,1gir do homem, a ideia de castração, tão cara à psicanálise, é totalmente
particularidade, recaindo-se em um relativismo e subjetivismo extre- .rhandonada, dando lugar à oportunidade de acompanhar o fenômeno,
mo, sem lugar para aquilo que tem um caráter universal. 1 k-svelando outras possibilidades de compreensão do mesmo. E, assim,

Na psicologia, que se sustenta na universalização de seus pressu- 11,1 clínica existencial, ao abandonar-se a ideia de castração, damos voz
postos, tende-se a pensar que a identidade feminina é algo da ordem de 11 experiência e ao sentimento de solidão presente nas mulheres que
uma determinação biológica que em um paralelismo estabelece o psí- buscam a clínica para que elas possam se libertar desse aprisionamento,
quico. Assim, pensam -se as questões trazidas pelas mulheres por meio 1111 seja, desse sentimento de solidão que as acompanha.

de uma teoria psicológica sobre o psiquismo feminino. Em uma pers- Mas, uma vez que, não se parte de uma estrutura e dinâmica psí-
pectiva existencial em psicologia, consideramos que nem o biológico e q11 ica que dão lugar aos traumas e aos complexos, como dar suporte a
nem o psíquico determinam os modos de ser do homem, ao contrário uma perspectiva em psicologia que parte da ideia da inexistência de
ambos se constituem pelas interpretações desses elementos em uma 11 m psiquismo e retoma a existência em sua dinâmica performática?
configuração historicamente constituída. Existência, então, diz respei- 1'11ra poder sustentar esse modo de pensar é que vamos dialogar com
to às possibilidades mais originais daquele que existe no seu encontro, 11s pensadores que já se ativeram a essa questão. Dentre eles, elegemos

também mais originário, com o mundo. Logo de início, nenhuma iden- 1 Icnomenologia hermenêutica de Heidegger.
tidade caracteriza o feminino, ao contrário, é no próprio existir que as Para Heidegger (1927/2003), o ser-aí, marcado pela nadidade
identidades se constituem e também podem se cristalizar. 1· pela fragilidade ontológica, busca a estabilidade do mundo, que se

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constitui em um apoio, suporte e tutela e nele assume uma identidade. possíveis, o único e possível sentido. E, é exatamente nessa restrição
Mas é exatamente esta busca e esse encontro que o coloca na cadência dt sentidos possíveis, com a tentativa de corresponder às solicitações
do mundo e, o existente, esquecendo-se do seu próprio ritmo, acaba lirg .mônicas presentes em nosso horizonte histórico, que as tensões
obscurecendo o seu caráter de poder ser. São as situações limites que, 1·x istenciais acontecem e as queixas aparecem.
ao entrarem na articulação do ser-aí e mundo, rompem com os senti- Vemos que em Freud (1969) há uma estrutura psíquica que está
dos sedimentados, abrindo, então, a possibilidade de questionamentos l 111 i mamente vinculada ao biológico, ou seja, a presença ou a ausência
da situação em que nos encontramos. Primeiramente, cabe pensar- du talo. Quando saímos desse modo de compreender a experiência hu-
mos sobre a cadência que se impõe pelas orientações sedimentadas 111,111a, partimos de um deslocamento de toda e qualquer determinação
em nosso horizonte histórico. Como essas determinações surgem nas ,qil'ioristicamente dada acerca do modo como o homem de constitui.
queixas dos analísandos, no modo de decadência ao ritmo do mundo, 1 •,sn discussão pode ser encontrada em Heidegger (2008) quando ele
obscurecendo seu caráter de poder ser? Torna-se pertinente ressaltar 1111~ diz sobre o caráter de indeterminação do ser-aí no momento do
que a clínica psicológica em uma inspiração fenomenológica herme- 11,1•, imento. Quando um bebê do sexo feminino nasce, ele não está
nêutica se estabelece muito mais em uma negatividade do que pro- d,·ll'rminado por absolutamente nada, embora ao nascer já se encon-
priamente a partir de uma identidade positiva. Isso consiste em per- l 11• cm uma compreensão prévia, impessoalmente determinada, que
mitir transparecer àquele que está submetido a um acompanhamento "111 I .nta acerca do modo que cada uma deverá estruturar a sua exis-

clínico o caráter de nadidade, de indeterminação e de incompletude 11 1H la. Mas sua indeterminação própria, bem como o caráter de poder
de sua existência. Para poder mostrar como concretamente se dá o 1·1, .iparecem sempre como um anúncio de outros possíveis. Isso nos
acontecimento da clínica, vamos trazer à discussão uma situação mui- 111mtra como já no início, ao nascer, e na maioria das vezes, tende-
to presente nas queixas de mulheres que buscam a clínica psicológica, 11111•, a acompanhar a cadência do mundo, acabando por acreditar que
o medo da solidão. 11-,~ orientações sedimentadas em nosso horizonte histórico estão as
111111 ,is e inquestionáveis verdades. Heidegger nos diz que é preciso
ult.rr ao pensamento mais originário para, então, poder deixar trans-
Cristalização da identidade feminina 1'·" t'l -r as possibilidades de aparição do sentido dos fenômenos que
11, ,1111111 obscurecidos pelas determinações hegemônicas. Logo, vamos
Primeiramente, vamos buscar a gênese daquilo que encontramos 1, t 11,vcder aos gregos arcaicos para ver como os diferentes sentidos
nas queixas de solidão. Vamos buscar nos gregos antigos o sentido ori- ,111 h-minino em sua relação com o masculino se movimentou nesse
ginal daquilo que pretendemos discutir, ou seja, a constituição do fe- 11111 lrnnte histórico.
minino. Ao proceder a uma análise sobre como se cristalizou, ao longo Hrandão (1989) ao tratar de Helena discute a questão do femi-
do tempo, o sentido do feminino pensamos poder compreender o que 1111111 vm diferentes períodos gregos, a iniciar pelo período anterior ao
ocorre hoje. Ao tematizar o sentido da palavra análise, verificamos, nos 111, 1111, que afirma Brandão (1989, p.10) ser a "passagem do Neolítico II
Seminários de Zollikon, que análise refere-se à analisein que em grego t llltHI :i 2600 a. C.) para o Bronze Antigo (2600 a 1950 a.C.)". Em Creta
comportava dois sentidos: destecer e libertar. O sentido que vai pre- ,l11111lt1:iva uma cultura agrária que valorizava acima de tudo a fertilida-
valecer é o de destecer como dividir em partes, fragmentar. Enquanto ,1, 1 'um isso a divindade tutelar era feminina, a Deusa Helena, consi-
o sentido de libertar ficará totalmente obscurecido (Heidegger, 2001). 1, 1,111.1 a rande Mãe. E assim em Creta, nesse período, a estrutura da
Ao encontrar os sentidos mais originários, podemos mostrar como um 111111111ldade era matrilinear e as mulheres tinham o mesmo direito de
dos sentidos ficou obscurecido enquanto o outro ganhou relevo, de p,11111 lpnção política e social que tinham os homens. Ainda na Ilíada e
modo que este passou a ser considerado em total restrição dos sentidos 1 1,/1,"·i11 encontramos muitos elementos de valorização da mulher:

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A ternura e a agonia de Andrômaca, esposa e mãe símbo- La a situação feminina. Tolstói (2014) apresenta a situação da mulher
lo do autêntico amor conjugal; a amabilidade, a doçura, a por meio de três personagens femininos: Karenina, Dolly e Kitty. Cada
personalidade e a paixão recatada de Nausícaa; a firmeza e uma, com sua situação específica, vive as tensões que insidiam sobre as
a respeitabilidade inspirada pela rainha Arete; a afeição e o mulheres e que determinavam o modo como elas deviam se conduzir.
devotamento da velha ama Euricléia; e, por fim, a paciên- E qualquer coisa que saísse do esperado trazia profundas tensões que
cia, a astúcia e a fidelidade de Penélope desfilam diante de ruda uma, com muita dor, vivenciava-as a seu modo. Karenina ousou
nossos olhos suscitando admiração, encantamento e uma urriscar seu casamento, sua condição social, seus filhos, com a segu-
grande simpatia. (Brandão, 1989, p. 13) , .inça que estes lhe traziam, para levar as últimas circunstâncias a sua
p.rixão. Ela amou, sofreu, culpabilizou-se, desistiu, retornou ao seu pro-
Segundo Brandão ( 1989 ), nessa mesma época, já surgia a violência
pt'lsito, mesmo sendo condenada e expurgada por sua ousadia. Dolly,
e a arbitrariedade masculina contra a mulher muito bem exemplificada
ulrcndo pela infidelidade do marido e, ainda, por ter de conduzir as
na figura de Agarnenon, que chega a sacrificar sua filha para alcançar
nuzclas familiares de modo solitário, resolve abdicar do romance e do
seus objetivos. Essa desvalorização e submissão da mulher avançam de
.uuur, porém decidiu por não se tornar uma mulher divorciada. Ela
tal modo que "Com Hesíodo, Século VIII a.C., fenecem a beleza de Nau-
11,1~~ª a sua vida a dedicar-se totalmente a criação de seus filhos. Esta
sícaa, a ternura de Andrômaca e a fidelidade de Penélope" (Brandão,
111, • de forma diferente de Anna. Dolly ao seguir a cadência das orien-
1989, p. 134). E ainda, passa ser Pandora a responsável por tudo que vai
1 11,, ll'S de sua época era elogiada e valorizada pelo sua dedicação a sua
atormentar os homens. No século VII a.C, a mulher aparece valorizada 11111 lgação de esposa e mãe.
algumas vezes, como em Alceu, Anacreonte e sobretudo Safo (a maior
J.I Anna Karenina sofre pelo amor escondido, pela culpa por ser
das poetisas gregas, que representou a liberação feminina na Ilha).
.,o
1id11•I marido, mas sente-se plena pelo amor correspondido. Ela teme
O sentido de valor do feminino e igualdade com o masculino
I" 1 .!1·1· o lugar de esposa e ficar no lugar da amante. Anna sabia que essa
obscureceu-se e mantém-se dessa forma, até a época atual. De outras
111111\.IO a humilharia e a colocaria em um lugar desprezível, socialmen-
formas aparecem a desvalorização e o escárnio à mulher. Os poetas e 1 \•,·,lm mesmo, opta por ir contra as determinações de seu momento
os escritores parecem atentos à tentativa de manter a mulher nessa ca- 111 1, 11 , o de como deveria se comportar uma mulher. Kitty, que em um
dência e a submissão das mesmas à situação que lhe é imposta. Mesmo 1, 11 111 li 1 mdo momento fica indecisa entre dois pretendentes resolve, por
quando singularmente, alguma se impõe e luta contra a posição im- 1,111111 til i.1 de sua mãe, escolher o mais fino e bem colocado na socieda-
posta a mulher, essa atitude traz inúmeras formas de sofrimento, tal 1, il 11 11do mão daquele que era verdadeiramente apaixonado por ela.
como aconteceu com Safo. E podemos acompanhar com alguns desses 1 , 1 1 11llta também lhe traz consequências extremamente dolorosas,
escritores do século XIX e XX a atenção especial que eles dispensam
,p11 11 1,q1az desiste dela. Esse abandono mexe com sua vaidade e seu
ao universo feminino, como por exemplo, Tolstói (1877/2014) com
, 1ill111, 11111.1 vez que essa era uma situação de muita humilhação para
Anna Karenina, Kierkegaard (1843/2006) em Diário do sedutor, Sartre
1 111 1111dl1l'r. 1 itty fica com muito medo de ficar solteira, situação que
(1939/2005) com o conto Intimidade, Assis (1882/2008) com Bentinho 1iil11 111 nlcrlortzava por demais as mulheres. Cabe, então, perguntar
e Capitu, Lispector (1998) em Macabéa.
p11 1 11H 1111lra na gênese da situação da mulher em nosso horizonte
Dos escritores que denunciaram as situações em que as mulheres 1, ,, , 11' < lu.ris são as determinações sedimentadas presentes em nosso
se encontravam nos seus romances, crônicas e poesias podemos nos
, 1 11111i lii..lt'1ri ·o que aprisionam as mulheres a essas determinações?
deter em Leon Tolstói (1828 - 1910), ao apresentar Anna Karenina I' 1111 1· q11t· por volta de 1880, Anna, Dolly e Kitty dado aos seus
(publicado entre 1873 e 1877) com a tensão que a acompanha em sua , i, 1, d1· 11d .tcrrninação, constituíam-se segundo as orientações
história. Esse romance foi considerado uma das obras que mais retra
11 111111111111dr s · ·ncontravam. Às mulheres dessa época não era pos-

24 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa Situações Clínicas 1 • 25


sível uma vida profissional, nem mesmo uma vida sem que um homem, psi como aquele que é capaz de facilitar o caminho do desvelar de ou-
seja pai, marido, irmão, cunhado, as mantivesse. Elas, tão logo se torna- tras possibilidades.
vam prontas para o casamento, teriam que se casar. Assim eram traça- Assim, vale, ainda, determo-nos acerca de como nos conduzire-
dos seus destinos. Assim mesmo, Anna ousou, abandonou por comple- mos na clínica frente à queixa de solidão. A solidão diz respeito ao ter
to o apoio do impessoal e seguiu o caminho que a paixão lhe indicava. que corresponder a um mundo que em sua retórica ressalta que só é feliz
Por isso, teve que viver as consequências daquilo que determinara ela uquele que constitui uma família, pois se assim não for, ele fracassou.
própria seguir, sem a tutela do mundo. Ela, totalmente impedida de ver Jl,ssa é a retórica do mundo que avisa sobre aquilo que devemos temer.
seu filho e de frequentar os locais em que a sociedade russa se encon- 1• (.• na tentativa de evitar aquilo que tememos que nos escravizamos no
trava, ficou completamente só. Essa situação servia de exemplo para as i-ntido de atender a tais demandas. Abrir um espaço de transformação
outras mulheres, de forma que ou se comportavam de modo "correto" lp,11ifica sustentar um espaço em que a libertação das determinações
ou teriam o mesmo destino de Anna. O temor pelo destino anunciado l11·1wmônicas possa surgir. Mas cabe agora a pergunta, como fazer isso?
mantinha-as na cadência do mundo. Foi o que aconteceu com Dolly. Stein (2012) nos indica um caminho ''A preservação da singula-
Esta, por temer ser uma mulher divorciada, mesmo que infeliz e sentin- 11tl111k de indivíduo, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensá-lo em
do-se envelhecida precocemente, resolve manter-se no casamento. 11,1 p.1·ncralidade, tal como é desenvolvida em Ser e tempo, põe-nos em
E hoje? O que acontece a mulher? Muitas mulheres, mesmo que 1111111 relação clínica diferente" (p.107). Relação clínica diferente é aque-
tendo inúmeras possibilidades, como por exemplo, ter filhos mesmo 1, 1 111 que não impera a relação causa-efeito e nem prioriza a figura do
que solteira, ascender na vida profissional, entre outras, ainda sofrem 1111lht.1. E ainda com base no que nos diz Fogel (2010) sobre a dor da
pelo fato de não conquistarem um relacionamento estável. O que está l,11 q111• diz do descompasso entre o que se quer e o que se pode.
em questão, nesses casos? Para tentar esclarecer o que está em jogo na
queixa dessas mulheres, temos que acompanhar o fenômeno tal como
aparece no relato dessas mulheres. E se a questão ainda é o temor, já '.il uação clínica em discussão
que a retórica do medo frequentemente aparece em diferentes veículos
\ queixa de solidão cada vez se torna mais frequente em mulhe-
de comunicação, dizendo que você só está protegida e feliz se estiver
' 11111111,1 também apareça em homens, com menor frequência. Mu-
acompanhada, o que fazer diante daquilo que tememos? Em tese, cos-
11 1 1111, · 1 5 e 60 anos comparecem à clínica queixando-se de solidão.
tuma-se dizer que frente ao medo é preciso fazer surgir a coragem, mas
111 ,p11• vsl,I muito difícil encontrar um namorado, companheiro,
o que dizem as mulheres que de algum modo se queixam da solidão?
11111 11111 11·!.1cionamento sério. Com isso, as mulheres casadas, muito
Muitas se referem à frustração pelo projeto idealizado que não
111, 111, 1111·11lt·, ·o tumam dizer: "Ruim com ele, pior sem ele" e as mu-
se concretiza. Esse projeto diz respeito à constituição de uma família,
11!11• 1,IH p .rguntam: "O que há de errado em mim?" As primeiras,
Dessa situação muitas outras se desdobram, tais como sentimentos d(·
, 1 , q111·r ·111 modificar o marido e não abandoná-lo e as segun-
rejeição, exclusão, abandono. Essas mulheres, muitas vezes, perguntam
1 1111•111 011I rar seu erro para assim poderem modificar a situação
o que há de errado com elas e em que consiste a sua culpa. Todos e st·•,
argumentos, embora dolorosos, ainda apontam para uma esperança d1•
I' , 11111111l r:1111. Obviamente, que nenhuma das duas pretensões
,1 , 1 il, ,111,ndas mediante o acompanhamento clínico. Não basta
que uma vez sanados os erros, a culpa e livre do ideal a cumprir, o pro
1 11 1 q111• 11 qu ·sequer se transforme em algo efetivo. Não é suti-
jeto se realize. Percebemos uma insistência, ainda que por dífercnu-
l' 11 , 1 11, 1111I rc o que está errado para poder agir de forma certa
modos de conquistar o projeto idealizado, em um total obscurecimcutu
1 li I d, , 111 H 1·l'I ização dos objetivos. A transformação ou rearti-
de outras possibilidades que se encontram na gênese de sua existênc l11
1 1 111 ido 11,10 a ·ontece pelo fato de que assim se quer. Nem se
como, por exemplo, de não se casar. Daí a importância do profission.il

26 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa Situações Clínicas 1 • 27


dá pelo fato do outro da relação se modificar ou pela correção do erro. Acompanhar compreensivamente aquilo que o analisando tem a dizer
Logo o que acontece na clínica que denominamos de existencial? É esse l onsiste em alguns aspectos que precisam ser esclarecidos. Tanto analista
o tema que desenvolveremos a seguir. Vale ressaltar que os sete itens que quanto analisando como Dasein sempre se encontram na compreensão,
apresentaremos abaixo foram extraídos dos acontecimentos que apare- logo, não há como ser-no-mundo sem uma compreensão prévia. Com-
ceram nesta situação clínica. A ordem dos acontecimentos, não foram, preender previamente diz respeito ao fato de que somos todos tomados,
necessariamente, consecutivas. A forma como foram organizadas tem 1111 inicio e na maioria das vezes, pelas orientações do mundo em que nos
uma finalidade exclusivamente didática. 1•11 ·ontramos. Por isso, o analista já sempre se encontra em um mundo
, , unpartilhado, e por isso pode compreender o que o outro lhe diz. E,
1 -A relação analista-analisando: ao tomar o homem como Da- 1111da, na fusão de horizontes nos quais se encontram analista e analisan-
sein que em seu ser é cuidado (Sorge), portanto, estrutura relacional em d11, n tarefa daquele é acompanhar o conteúdo fenomenal que o analisan-
que todo Dasein se encontra, torna-se impossível não se relacionar, ou d11 .ipresenta. Tudo isso acontece em uma compreensão mais originária,
seja, Dasein constitui-se no próprio ter de ser no meio de outros seres. 1111 ~l·ja, não explicativa, nesta toma-se de antemão a relação causa-efeito.
Logo, Dasein é relacional e isto se dá de vários modos: substitutivo, , umpreensão na relação psicoterapêutica é possível, pois, sempre já
indiferente e libertador. A relação posta em termos de eu-tu pressupõe 11111pr iendemos. A especificidade dessa relação, no entanto, implica em
um distanciamento em que o eu pode assumir o lugar do saber, de de- ,,11,• pdo menos o analista conheça algumas das determinações do mun-
tentor da verdade, tornando a relação substitutiva. 111 1•111 que eles (analista e analisando) se encontram para poder, então,
Em uma conversa de Boss com Heidegger (2001) este sugere 11111 lortalecer ainda mais a automatização de um determinado modo
que em uma clínica que se pretenda daseinsanalista, a relação analis- 1, 1•1 que traz dor ao analisando. Compreender, na clínica psicológica
ta-analisando como eu-tu seja substituída pela relação tu-tu (du-du 1 l1•11çial, consiste em acompanhar aquilo que o outro tem a dizer bem
Verhiiltnis). Essa substituição aponta para a supressão de uma espécie ,,111, 1 ,1 -strutura de sentido que sustenta seu modo de ser, deixando que
de onipotência do analista, retirando-o do lugar do saber daquele que 111111,,10 cm que ele se encontra apareça para ele, de modo que diante
conhece a verdade e, portanto, sabe indicar o caminho correto. Oni- li 11, ,·Ir possa decidir-se, ou seja, transformar-se.
potência e saber que podem perturbar a própria relação no sentido de
que ambos conquistem sua liberdade no interior da própria relação. A Rompendo as ilusões: com a ideia de romper as ilusões que
relação tu-tu acontece na horizontalidade, o analista não prescreve, não 11111"1r11la111 no relato do analisando durante o processo psicotera-
se posiciona como mantenedor da verdade, portanto, consente que el 1111, 11 q11 'remos dizer que, no mínimo, as ilusões que são sustentadas
não sabe qual é o melhor caminho a tomar. Nessa relação, o analista 111 1111 •10 horizonte histórico não sejam fortalecidas. Caso se consiga
acompanha a saga do outro, portanto, diante daquilo que o outro de 1 111 11111 vspaço de destruição das ilusões, é nesse sentido que o diálogo
cide só lhe resta dar um passo atrás, deixando o outro entregue àquilo 111111 1,\ 11 .ontecer, Mattar e Sá (2008) compartilham com a proposta
que lhe diz respeito. A esse modo de estabelecer a relação analista ana 1 1 111do quando afirmam que para sustentar um espaço para a rea-

lisando denominaremos relação tu-tu. 111 d,· uma clínica existencial devemos atentar-nos em que:

Urna vez que as demandas do sofrimento existencial, en-


2 - A compreensão na relação psicoterapêutica: em Seminários 111·
dl'r .çadas à clínica psicoterápica, cada vez mais estão rela-
Zollikon, Heidegger (2001) diz "É decisivo que cada fenômeno que surgi·
1 louudas ao nivelamento histórico de sentido que pode ser
na relação de analisando e analista seja discutido em sua pertinência 11, 1
. nmputado no cálculo global de exploração e consumo, é
paciente concreto em questão a partir de si em seu conteúdo fenomenal 1•
linpr ·s indível, para que a psicoterapia possa se constituir
não seja simples e genericamente subordinado a um existencial" (p.l. O)

28 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Situações Clínicas 1 • 29


em um espaço de reflexão propiciador de outros modos de r .fere-se ao homem do silêncio e da solidão como aquele que se coloca
existir, que ela própria não permaneça subordinada a esse 1 r mte a frente com esse caráter, no seguinte trecho:
mesmo horizonte histórico de redução de sentido (p.191).
Melhor: o silêncio é este modo de ser, que é sob a forma
de ação necessária, enquanto e como destinação e estória de
4 - Deixando aparecer que vida não é o lugar de total realização,
liberdade para a morte. E tal modo de ser é a insistência da
que vida comporta frustrações, ou seja, projetos não realizados: o ressonância de silêncio porque este modo de ser, que fala
analista atua de modo a não impedir que apareça ao analisando a ideia pela forma de todo e qualquer modo possível de ser (os "ver-
de que a vida não é o lugar de total realização, de que a vida comporta bos" do existir), é aquilo que, desde fora, se mostra como o
frustrações, ou seja, projetos não realizados. Trata-se de mobilizar 9 incontornável, o incontrolável, o insubsumível (p. 219).
descompasso entre o querer ser e o poder ser. Gilvan (2010), ao tratar
do descompasso entre o dever ser e o poder ser, alerta para a dor que Para Heidegger (1927/2003), a crise existencial diz respeito a um
se pode alcançar quando o dever ser encontra-se para além do poder 11111111ento em que algo acontece e imediatamente torna possível a suspen-
ser. Diz ele que se trata da dor da dor. Trata-se da dor revolta contra o 110 do horizonte hermenêutico a que alguém se encontra submetido. Nes-
finito e o limite que a vida impõe. E isso se fortalece junto à ideia de que ,1 suspensão de orientações e determinações, torna-se possível a abertura
devemos a qualquer preço superar os obstáculos. Essa ideia ainda con- 1 1111 Iras possibilidades encobertas pelas determinações hegemônicas, ou
tém a tese de que a vida é obstáculo a vencer. Daí a insistência, a luta, 1•!,1, abre-se um espaço de possibilidades frente às transformações possí-
a esperança e a ilusão. Luta que amolece o ânimo, definha e enfraque- 11•l•1, Como o existente é um projeto jogado no mundo, a sua relação com
ce. Kierkegaard (1848/2010) refere-se a essa situação como desespero. 111111,ndo é marcada por um projeto compreensivo. Assim, o Dasein herda
Desespero é a doença do eu que aparece pela crença na soberania da 11,11 ,1 si as compreensões do que significa liberdade, felicidade, realização,
vontade, por isso Kierkegaard refere-se ao desespero de querer ser si 111l11t·stima. O mundo, como horizonte histórico de sentidos, veicula es-
mesmo e de não querer ser si mesmo. Esse modo de atuação refere-se 1 •,lgnificados. O Dasein é um projeto existencial e como tal se abre em
ao sentido negativo presente na clínica daseinsanalítica. 11111 espaço de significados constituídos em uma facticidade ao mesmo
A..12ositividade na clínica diz respeito a uma orientação que indica 1, 1111,c1 cm que constitui um sentido pelo qual ele opera esses significados.
caminhos que conduzem à conscientização, à superação e à conquista J11 horizonte da técnica, as determinações sedimentadas dizem respeito
da auto realização. A negatividade na clínica consiste em deixar que , , ulusc na produção, consumação, objetivação, resultados e método.
transpareça no analisando o caráter de nadidade, de indeterminação q11t"ix:as que nos chegam à clínica encontram-se, intimamente, rela-
e de incompletude da existência. Isso quer dizer que a clínica, nesses ' l1111,1das às determinações da técnica, características de nosso tempo.
termos, vai deixar transparecer que percalços, dores e frustrações tam- 1 ll'SSoas em sofrimento vem à clínica buscando o método certo para
bém são próprios ao existir humano. E, assim, aquele que traz à clínica 1, , 111111 u istar a autoestima perdida, a vontade de trabalhar para se torna-
a expectativa de naquele espaço conquistar o nirvana, possa entregar-se ,, 111 produtivas e bem sucedidas, a conquista da felicidade. Acerca disso,
à existência de modo a compreender o seu caráter de lançado, indeter- 1, 1, 11 cntarn Sá e Mattar (2008) que as queixas na clínica estão intima-
0

minado e ao mesmo tempo de poder ser. "" 1111· r .lacionadas ao nivelamento histórico de sentido da técnica.

5 - Questionando as verdades estabelecidas: a clínica existen- <, - Abrindo o caráter de poder ser de toda e qualquer existência,
cial acontece no sentido de colocar em questão as verdades estabeleci- 1111nu-dida em que o analisando percebe o quanto restringe suas pos-
das, dentre elas a "família Doriana", "Felizes para sempre". Fogel (1998) thllldudes: na medida em que o analisando puder perceber o quanto

30 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa


Situações Clínicas 1 • 31
restringe suas possibilidades à única e absoluta conquista ditada pelo sentido de que a relação aconteça de modo a que o analisando possa
impessoal, surge a oportunidade de que se abra o caráter de poder ser encontrar a medida singular da existência que é sua. Isso diz respeito ao
de toda e qualquer existência. Primeiramente, para que a possibilidade l'Spaço onde o querer e o poder se rearticule, compassadamente.
de que o espaço da clínica se efetive como espaço de transformação é 7 - Despertar, lembrar e transformar: a clínica psicológica res-
necessário que analista e analisando se abram para que algo ali possa guarda o espaço do silêncio, da solidão e da recordação para, desse
acontecer. Assim, é preciso que haja interesse e afeição (phatos). Para modo, oportunizar o caminho da vontade à necessidade, dos possíveis
Heidegger (1920/ 2010), é a participação no mesmo phatos que nos liga 110s necessários. Assim, nesse compasso, o psicoterapeuta pode sustentar

uns aos outros, trata-se do sentido mais originário da empatia. E, as- ,1 possibilidade de que o analisando conquiste a medida de sua existência

sim, compartilhando desse espaço, podemos nos abrir para que haja •,lngular. Trata-se do espaço onde o querer e o poder se reencontram.
uma disposição para a transformação. Faz-se necessário uma dupla A seguir, mostraremos uma situação clínica, no momento em
apropriação, o analisando tem que se deixar apropriar pelo espaço para que se estabelece a relação psicoterapêutica. Logo no início, atuamos
que o próprio espaço lhe devolva o aí que é o seu. d!' modo a deixar que a relação se estabeleça em uma dinâmica tu-tu,
Como podemos pensar em uma recuperação ou superação de i.d como mostraremos a seguir, acompanhando Flávia', com 15 anos
uma fissura ou inautenticidade sem uma estrutura psíquica de base que d1· idade ao trazer à clínica o seu sofrimento com o rompimento de sua
detenha em si mesma a "verdade singular" a qual tem que ser encontra- u-lução amorosa:
da para o reestabelecimento do psiquismo? Ou, ainda, sem uma adap- Flávia diz: Vim aqui por que acredito que seja o lugar em que eu
tação do comportamento? E, ainda, sem a premissa de um trauma no 1•11sso sarar a minha dor. Você vai me ajudar não vai? Sabe como fazer
passado que inviabiliza a vida fluida? A clínica que mantém a ideia de /11u, não sabe? Minha amiga me disse que depois que veio aqui conversar
uma interioridade psíquica tem como base o seu caráter confessional, 111111 você tudo se resolveu. Por favor, me diga como posso fazer para ar-
que acredita que com a revelação da verdade vem a libertação ( Cabral, 1,111car essa dor do meu peito. Às vezes parece que vai faltar ar.
2012). O analisando, inserido nessa perspectiva, vem em busca das ver- Analista: Eu preciso saber um pouco sobre a sua dor. O que está
dades que estão escondidas em sua interioridade ou então em busca 1111111/ecendo com você?
das medidas corretivas que o possibilitem realizar seus projetos. Flávia: Estou sofrendo muito. Não sei nem como começar a contar.
O clínico que atua em uma perspectiva fenomenológico-existen- 1 ',,,, [avor, diga-me o que eu tenho que fazer e, eu farei.
cial distancia-se totalmente dessa forma de atuação, mesmo porque Analista: Se você mesmo nem sabe como começar, nem o que fazer,
acredita que desse modo vai tranquilizar o analisando, dando-lhe a sua 1 ,111/1/ eu poderia saber, minimamente, o que você pode Jazer?
tutela, assegurando-o da possibilidade de conquistar seus objetivos, des- Flávia: Mas você é psicoterapeuta não é? Então sabe como acabar
de que ele siga o método certo. A clínica existencial caracteriza-se mui- 1 11111 o sofrimento, não sabe?

to mais por uma negatividade, não há nada em que esse clínico possa Analista: Sei acompanhar o sofrimento e posso acompanhar o teu,
orientar, mesmo porque a verdade é algo que se conquista no momento 111111 11üo posso lhe dizer que tenho o antídoto contra o sofrimento.
mesmo da existência. Logo, a verdade é essencialmente abertura e o aí Flavia: Mas preciso que você me prometa, eu não aguento mais essa dor.
existencial é o fenômeno mais originário da verdade. Ser verdadeiro é Analista: Eu não posso lhe prometer algo que só cabe a você. Só
ser desocultado na medida em que se é em um mundo. Isso torna o 1 , ,, , sabe o que lhe dói e só você pode encontrar outro modo de lidar com

exercício clínico não um ato confessional que na confissão conquista a ,, 111r1 dor. Então o que tanto dói em você?
consciência e a liberdade. O que acontece é uma conquista e reconquista
l'lávia é um nome fictício assim como toda a situação clínica apresen-
incessante de si, que no final das contas é pura indeterminação em seu
1111,1 lista compilação é fruto da experiência da autora com atendimentos e
caráter de poder ser. A clínica psicológica existencial se direciona no 11111•1 visões na clínica psicológica.

32 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa Situações Clínicas 1 • 33


Em seguida serão mostrados alguns trechos da situação clínica Ilusões, pergunta: E o que fez você acreditar que esse relacionamento se-
com Flávia, em que o analista a acompanha compreensivamente na 1 /11 para sempre?
sua queixa de solidão, medo, abandono e a dor do luto pelo projeto Flávia: Nós começamos a namorar muito cedo e sempre fomos um
de relação interrompido. 11,11·11 o outro. Estudávamos juntos, compartilhávamos dos mesmos ami-
1;11,. Temos a mesma religião. Frequentávamos a igreja juntos. E passamos
Flávia: Meu namorado e eu terminamos o relacionamento que era
muito bom e eu me sentia muito feliz com ele. Ele disse que está muito /'"" uma situação difícil com nossas famílias e mesmo assim nos manii-
1 vuios juntos. Isso tornou mais fácil passar pela situação. Agora, sinto-me
novo para um relacionamento sério e que mesmo gostando de mim, pre-
feria viver outras coisas que a vida proporciona. Isso tem um mês, no iní- /it/11/111ente sozinha. Terei que enfrentar meus pais, que nunca concor-
cio, eu pensei que era passageiro, mas agora já o vi com outras meninas e ,/,11,1111 com o rumo que o namoro tomou. Temos amigos em comum e
parece que terminou mesmo. Desde que rompemos, não consigo dormir, , ln 11110 ficar com ele. Ele é mais alegre, é o líder do grupo. Isso tudo me
, 11, Ili' ti' medo. Eu sempre fui mais preterida pelo grupo, mas como era
acordo com a sensação de falta de ar, não consigo estudar. Já emagreci 5
quilos. Estou sofrendo muito. Sempre pensei que nosso relacionamento ,, /'' hurira dama, todos me respeitavam. Agora, não sou mais nada. Não
0111, utuunicativa, não conto piadas engraçadas, ao contrário, as pessoas
era para sempre. E estou vendo que não foi.
1 /111111 11/é que sou chata. Mas, eu nem me importaria com nada disso
Analista: Então é o rompimento do namoro que está doendo muito?
Flávia: Doendo é pouco, dilacera. Parece que tudo acabou para , /,· estivesse comigo. Pensava que nós fossemos nos casar e construir
mim. Não vejo mais graça em nada. Até ficar com os amigos, viajar, coi- "' ,, f,1111{/ia. Só isso me importava. E agora? Esse projeto furou, o que
11111 outccer com minha vida?
sas que eu gostava tanto, agora não quero. Mas também não quero ficar
em casa. Nunca quero estar onde estou. Não tenho lugar mais no mundo. ( Pl.\via permanece um longo tempo chorando e o analista aguar-
Não sei o que vai acontecer comigo. Tenho medo, pavor. l 1 1•,11 k-utcmente)
Analista: O medo, o pavor te deixa intranquila. Mas do que você 1,l11vla retorna: Éramos cúmplices,fazíamos tudo juntos, comparti-
tem tanto medo? ,, 11 ,11111" das mentiras que contávamos. Quando passamos por uma si-
, •1 ,,,, 1111/Í/o difícil ficamos juntos e isso me deu forças. Não me importei
Flávia: Eu não sei. Acho que tenho medo de perdê-lo totalmente. En-
quanto que ele não estava com outra menina, eu estava sofrendo, mas co111 '" 111,/,1 utu: tive que suportar, ele estava do meu lado. Pensei que depois
,, /11 ,11 f,11110s juntos para sempre.
esperança, ou melhor, certeza de que ele voltaria.
Analista: Sem esperança a dor fica mais aguda. Sem esperança res Nu 1·111 ido de que pudesse acontecer o rompimento das ilusões
ta o que? 11111 1,1, wm dar asas à curiosidade, não perguntou qual foi a situa-
Flávia: Nada. Minha vida ficou vazia. Todas as minhas amigas no Ili 1, li 11nportava tratar do quanto toda essa experiência tinha para
morando e eu sozinha. Não gosto de ser a solteirona do grupo. Eu sei todos 11 11 ,1•111ldo da eternização da relação. Na tentativa de esclarecer
me dizem você é jovem, têm seus estudos, outros namorados irão aparecei, Ili,, ,p11· •,11sl .nta o sofrimento e começar a desfazer a ilusão da eter-
'' 1 l.1 , rlução, ele diz: Tudo isso fez você acreditar que essa relação
Nada disso me conforta. Sinto-me mal, vazia.
•,11,1 "'111/JIT, no entanto, tudo isso foi insuficiente para garantir a
Analista: E antes do rompimento sua vida era plena? O namoi o
,,, ,111 ,/11 relação. E hoje, você sofre não só pela perda da relação,
preenchia a sua vida?
1111/11 111 Jido d smoronamento de seu projeto de futuro.
Flávia: Antes eu namorava, tinha um companheiro, um amigo. '/'1
nha o grupo de amigos, tinha meus estudos. Enfim, tinha uma vida chrt« 111 l.i 11·.~ponde: E também porque ele não foi legal comigo. Vou
1/,1 ti 1/11111110 difícil que lhe falei e você vai entender do que estou
de coisas. Eu pensava que seria para sempre assim. Nunca pensei que es,,
/ 11/ 11 ,,·g11i11le, nós dois éramos virgens. A nossa religião exige
namoro fosse acabar.
111,, "'" nuinter assim até o casamento. Mas tanto ele insistiu,
O analista, a fim de investigar de que modo Flavia construía suu

Situações Clínicas 1 • 35
34 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa
que mesmo eu não querendo, resolvi ceder. Eu tinha medo de que meus Após algum tempo, Flávia traz o seguinte assunto: Há um rapaz
pais soubessem e eles não iriam me perdoar. Mesmo porque meu pai é o que está se interessando por mim. Ele era nosso amigo e sempre mostrou
Pastor da Igreja e nós temos que dar o exemplo. Acontece que minha mãe ieu interesse em mim. Estou super feliz com isso. Também o outro já está
descobriu as pílulas no meu armário e isso deu muita confusão. Meu uamorando outra menina da igreja. Acho que eu também posso namo-
pai disse que eu não era mais a filhinha dele, minha mãe disse que se eu rar outro rapaz. Flávia passou várias sessões falando desse outro ra-
era mulher para manter um relacionamento sexual, também teria que p,1z. Dizia como ele era inteligente, gentil, ligava todos os dias para ela.
me responsabilizar pelas tarefas da casa. Tive que conciliar meus estudos luclusíve que era até mais amoroso que o primeiro namorado. Nessas
com as obrigações das tarefas da casa. Minha vida modificou totalmente. uportunidades, discorria acerca de tudo que era ruim na outra relação.
Mas não me importava, porque nós dois ficamos mais juntos ainda. Só As sessões passam a transcorrer com muitos relatos sobre a con -
que agora, ele terminando comigo, meus pais dizem que agora eu sou q11ls1a. Até que Flávia traz outra situação: O segundo rapaz, na verdade,
uma mulher e que os outros rapazes só vão se aproximar para se aprovei- 1, 111 outra namorada e, por isso concordamos em manter seu relaciona-
tarem de mim. Vejo um destino triste para mim, possivelmente, vou ficar 1111•1110 em segredo, até que ele terminasse com a moça. Acontece que ago-
solteirona, sozinha. E a solidão muito me amedronta. Às vezes, acho que ,,, l'i,· se encontrava em dúvida. Ele viu que não era tão fácil terminar,
ele vai se divertir um pouco, mas depois voltará para mim. Mas quando , , 1 ,1111 de acreditara no início.

telefono para ele e ele é grosseiro, diz para eu dar um tempo, que não quer As sessões transcorreram da mesma forma que as entrevistas
falar comigo, perco a esperança. Penso: "Será que ele precisava ser tão 1111t l,1ls. Esperança, idealização de projetos de casamento e filhos, re-
grosseiro assim?" i 1, 11111 unente eterno. Por outro lado, dor, luto, destruição dos proje-
Analista: Ele dá a entender que você não deve ter esperança, é isso? 1 , 1111·do da solidão, da rejeição. Às vezes Flávia ainda dizia que se
Flávia: É isso. E é isso que faz doer ainda mais. (Permanece cho- 111 l,1 usada, que o rapaz só queria transar com ela, mas com a outra
rando por um longo tempo). ,11,, ,1 qt 1 .ria se casar. Outras vezes, acreditava que ele iria decidir-se
Analista: Sem esperança dói mais, não é Flávia? 1 , l.1 P •rguntava-se por várias vezes porque isso acontecia logo com
Flávia: Dói. Mas ter esperança também é ruim, a todo momento " 1111 a-se por vezes frustrada, revoltada. Outras vezes, ficava triste
caio do cavalo. Preciso pensar em outras coisas. Preciso encontrar outro , pl'rançada.
sentido em minha vida. N11 1 clação psicoterapêutica, o analista deixa aparecer que a vida
Analista: Mas qual? , 111111,:nr de total realização, a vida comporta frustrações, ou seja,
Flávia: Ter amigos, estudar, sair. Não sei, mas preciso fazer outros 1 111 11 lo realizados. Flávia começa então a trazer para a sessão o
coisas. 111 oi,• Ili nr sozinha. Esse medo tomava seu pensamento dia e noite.
Analista: Como? 1, , , 1111ds. certificava-se de que o rapaz não queria assumi-la. Nes-
Flavia: Tenho umas amigas que não eram do grupo. Elas jicaraiu 111 11111, dl's .obríu que seu primeiro namorado espalhara que tivera
muito aborrecidas quando comecei a namorar e me afastei delas. M11,1, 11 , 11111 da. Mas isso não era o que a incomodava. Pior para ela
algumas delas já me procuraram e me chamaram para sair. Tenho q11,· 1 1111 do rapaz não resolver essa situação. E de outra vez começa
me animar e sair com elas. Tenho que parar de ficar esperando que 11111 11 11 1 IH los os indícios de que era ela que o rapaz iria escolher.
dia ele volte. ,11 1 ilrn, indícios de que ele não queria. Esse modo de manter a
Em muitos outros encontros Flávia relatava todos os indícios q111 , 11111•,I, .ivu pela segunda vez. A situação se repetia, ou seja, na
mostravam que o rapaz ainda poderia estar interessado em voltar. 11111 1 1 oi, 11n111lcr a ilusão de que a relação perduraria, Flávia preferia
outros encontros ela também relatava os indícios em que ele deixava 11 1,I, 1 "' os indícios que apontavam para a finalização da relação.
claro seu desinteresse. 1 1 11 111111111•1110 de se iniciar a incluir elementos que apontassem

36 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa


Situações Clínicas 1 • 37
ILl\111

para a dissipação da ilusão, assim, diz o analista: Você percebe vários Flávia: Claro que não e você sabe disso. Sou jovem, ainda irei para a
indícios de que o rapaz escolherá você, como continuar ligando para você /,u uldade e é disso que tenho que me ocupar. Não tenho que ficar lamen-
todos os dias, fazer questão de te encontrar, te dar presentes. E quais são /,111t!o, chorando, achando que eles são a única coisa que presta na minha
os indícios de que talvez não seja você quem ele escolherá? 1 kl«. Quando saí daqui, na semana passada,fui para a escola e vi os dois
Flávia permaneceu em silêncio, por um tempo, e começou a la- , auversando, tive a impressão que falavam de mim, senti nojo deles, são
crimejar. O analista se manteve em silêncio, deixando um espaço para /111/10s, infantis, imaturos. Pensei na mesma hora, eu vou me acabar, ficar
que Flávia no silêncio, sem se distrair com o falatório, pudesse recordar , liortmdo por esses caras. Não, não vou fazer isso. Alguma coisa mudou
essas situações. Ela retorna, depois de um longo tempo e diz: Muitos. .ivutro de mim. Eu nem sei te dizer o que foi, mas me libertei. Depois disso,
E começa em tom mais ameno e demorado a descrever todos: ele só se ,, I cundro me telefonou e eu fui bem sucinta, não tive vontade de esticar
encontra comigo às escondidas, dia dos namorados é com ela que ele fica. ,, , 1111versa. Ele insistiu e fui educada, mas não queria mais me encontrar
É ela que ele respeita. Sempre vai com ela à missa, independente se é na , ,1111 de. Pude ver toda a manobra de sedução, ele disse que eu era linda,
mesma missa que eu vou. /,1/,1 de. Nada do que ele disse me afetou. Não sou mais refém das seduções
O Analista na tentativa de destruir a ilusão, então, diz: Todos esses ,l, /1•. li/e não tem namorada? Fica com ela então e não me perturba.
são indícios de que ele pode não escolher você. O analista segue questionando as verdades estabelecidas tais
Flavia responde: São. E tem mais ainda. Ele, também, já conta , 111110 "familia Dorianà', "Felizes para sempre': "Familia de Pastor". Os

para os outros que a outra é a namorada e comigo ele se diverte. Isso dói. , 1111111tros continuaram acontecendo nessa mesma dinâmica de lamen-
Dói muito. Mas não falo nada porque pelo menos tenho quem telefone 1 t\ ,111, de revolta e de tristeza, até que Flávia, em um dos encontros, traz
para mim, quem está comigo. , , 1·1•,11inte relato: Eu fico pensando porque logo eu, que sempre cuidei tão
Analista: Ainda é melhor, mesmo sabendo o que ele fala de você, mes- /,, 111 ila minha vida, de meu futuro, tive que viver a situação de abandono
mo você não gostando, do que ficar totalmente sem ninguém. , ,, /'"fJel de amante. É isso que eu vivo hoje: uma mulher abandonada
Flávia: É. (Silencio longo). É a segunda vez que isso me acontece. , 11/111,issa.
Parece até que eu ter alguém para mim é impossível. Estou destinada a O psicoterapeuta pergunta: Por que não você? Com essa fala, o
ser amante? Talvez seja isso. Acho que tenho que me conformar. 111111 o arriscou apontar para o caráter imprevisível e incontrolável da
Analista: Ou amante ou solidão, parece que são as únicas saídas 1 1 ncia. Flávia, novamente, permanece durante muito tempo no si-
que você vê para você. Ok. Até a próxima semana. 1 111 lo e, então, retorna: Por que não comigo? Nunca tinha pensado nisso.
Na clínica, abrir o caráter de poder ser de toda e qualquer exis- I', 1111,111ece em silêncio por um longo tempo e retorna: Acho que sonhei
tência pode acontecer na medida em que o analisando percebe o quan- /, 11111/s, sonhei mais do que vivi e agora fico pensando que a vida não é
to restringe suas possibilidades. Flávia chega à sessão parecendo mais /,1111//i" Doriana. A vida não é conto de fadas com final feliz "casaram-se
animada, sorrindo e a fisionomia não se mostrava tão abatida: pensei /111,1111 felizes para sempre". Penso que a religião também ajuda a gente a
muito no que você falou na última sessão. Posso ser amante, posso ficar , ,i,,,r assim. Filha de Pastor tem. que dar o exemplo, nós temos que fazer
sozinha, pode aparecer outra pessoa na minha vida. Pode muita coisa, 111,/,1 direitinho, afinal seu pai é o pastor. A gente acaba acreditando nisso
depende daquilo que eu fizer. ,1, /111 que será como a gente quer que seja.
Analista: Não entendi, sobre o que você está falando? ( )s encontros continuaram e Flávia, pouco a pouco, caminhava se
Flávia: Sobre a última sessão. Você disse que não havia saída para ,11111li, conta de como as coisas podem acontecer, ou seja, podem se dar
mim e eu estou te dizendo que há saída. Não vou ficar lamentando que es- 111 11111do como planejamos, mas também pode ser de modo totalmente

ses caras imaturos, bobocas sejam a última oportunidade na minha vida. llh•11•111c do planejado. Ela dava-se conta do quanto tentava iludir-se,
Analista: E não são? 1 111 lormando aquilo que lhe acontecia, no sentido de que fosse da

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m1111111

melhor forma para ela, ou seja, que não doesse. Flávia refletia sobre o 1rr. Eu faço a minha parte, sou sincera, digo o que quero e o que não que-
quanto os contos de fadas eram modos de iludir. Pouco a pouco, desfa- 111, o que gosto e o que não gosto. Ele também e, assim, vamos seguindo
zia os laços da ilusão. Com isso, vivia o luto, na medida em que se dava 111 nossos caminhos. Sinto-me tranquila quanto ao relacionamento. Hoje
conta que seu projeto era apenas algo que estava em seu imaginário. 111/11/,a preocupação é poder me formar, ter um bom emprego para poder
Acabou se relacionando com outros rapazes e quando não dava certo, ,i/r tia casa de meus pais. Enquanto moro e dependo deles tenho que dar
lembrava-se de como era a relação com o seu primeiro namorado. Ou- ,1//sfr1ção. Quando eu puder ter minha casa e me sustentar, posso viver
tras vezes, a aproximação do segundo rapaz com quem se relacionou " 111l11ha vida com aquilo que acredito e quero fazer. Mas, por enquanto,
suscitava uma lembrança. Mas, Flávia se dava conta que também não 1, 11/w que aguardar. Meus pais exigem que eu vá à igreja, afinal meu pai
eram relações como aquelas que ela queria. Ela pensava no vestibular, , /1111/or e tenho que dar o exemplo. Eu vou para não contrariá-los e não

na faculdade e na vida profissional. Agora, não era só o casamento que , 1,11 problemas em casa. Meus amigos e ex-namorados, amantes, estão
a atraia, via a vida plena de possibilidades. ,, , 11111 u mesma vidinha. Com as mesmas fofoquinhas, com as mesmas
Após dois anos de psicoterapia, Flávia já se encontrava com 17 1 ,1111,m,das. Nada disso me incomoda mais. Ás vezes, eu vejo as brinca-
anos e já estava na faculdade. Ela mostrava interesse nos estudos e es- i, /1,1,, os flertes deles e digo de que boa me livrei. Sou mais feliz agora,
tava totalmente envolvida com o seu futuro profissional. Ela conhecera ,,,,., /tÍ te disse, tenho a sensação de liberdade.
outros rapazes, mas agora sem ficar planejando casamento e filhos. No
convívio com os amigos da Universidade descobriu que não era infe-
rior nem diferente porque não era mais virgem e, então, permitiu-se Lonsiderações finais
ter outras experiências sexuais agora não mais se sentindo usada, nem
tendo que se relacionar para agradar o outro. Enfim, como ela mesma 1 iurante todo o processo em que analisando e analista estiveram
dizia, sentia-se livre. Livre dos preconceitos, das verdades idealizadas 1111 ,r.~, · acompanhou a experiência de Flávia para que, no acompa-
da identidade feminina cristalizada. 1 11 il,1 própria experiência, eles pudessem encontrar aquilo com o que
A clínica existencial prosseguiu no sentido da reconquista da 11 11' vn ontrava afetada. Apenas seguindo aquilo pelo que a jovem
1 1l1111rnda é que poderíamos ir ao encontro do afeto transformador
medida da existência singular: espaço onde o querer e o poder se rc
articulam. Flávia, agora, não lidava com os relacionamentos de modo 11 1 11•,11 idade. Esse afeto transformador fica muito bem ilustrado por
a seu querer estar em descompasso com o seu poder. Na faculdade, 1 , 1111 ( 1988) no seu conto Amor, quando Ana, que levava uma vida
conheceu um rapaz que ela mesma denominava de maduro. Ela sabiu 1111d,1da e sob controle se depara com um cego no sinal, mascan-
aguardar os acontecimentos, não se deixava mais seduzir pelas pala 1,i, 1, 11·. 'Iambém podemos ver esse mesmo momento epifânico, tal
vras, como ela mesma dizia, deixava que as atitudes mostrassem aquilo , , ,1, 1111111inado por Lispector, no romance O idiota de Dostoievski
1 'li I ', ) quando Mískin vê o burro.
em que a relação se constituía.
Flávia: Hoje, namorando Pedro, vejo a situação passada como Ji-11111 l I q111· o mundo não tem uma medida naturalmente dada, a me-
de minha imaturidade e das influências que os valores da igreja exerciam ,11, .l,1d,1 pelo mundo como se fosse natural, ou pode ser conquis-
sobre as minhas decisões. Meus pais não participam de nada. É c1•1 /11 ' 1 11111111·!:1 existência. Assim, aconteceu com Ana e com Mískin.

que eles não me perdoaram. Eu compreendo, a moral da igreja é m11/1,, "11 /,/11, que significa visto) rearticula sentidos que tem um po-
esmagadora. Eu decepcionei e pronto, mas também não quero viver p11111 1 oi, 11 ,111sformação. A epifania, embora muito importante, é ex-
não decepcionar. Quero viver para viver. A relação com Pedro é mais lt·1'1 1111111• dilkil de ser conquistada.
Ele tem seus projetos, eu tenho os meus, sinto-me bem quando estou rr1111 11 1,1 1111 sltuação psicoterapêutica, pouco a pouco, ganhava, na
ele, mas também me sinto bem quando não estou. Será o que tiver 1//11 1 l1 lll i:1 • não na norma dada pelo mundo, ou seja, no como

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deve ser uma mulher, a sua medida existencial. Assim, ela tomava a < 'ubral. A.(2012). Da crise do sujeito à superação da confissão clínica.
referência historicamente constituída de como uma mulher deve como Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.12, n. 3, p. 987-1006.
sendo naturalmente dada. Tratava-se de uma restrição de sentido ou 111gcl. G. (1998). Da solidão perfeita: escritos de filosofia Petrópolis, RJ:
de uma apropriação do sentido sedimentado pelo mundo? Ela exercia Vozes.
o cuidado de si ou entregava o seu cuidado ao outro? Desconhecia seu
l 11111·1. G. (2010). O homem doente do homem e a transfiguração da dor.
limite, seu necessário? Ela existia no descompasso do querer e do poder
Rio de Janeiro: Mauad.
que eram seus? Ao alcançar o limite do querer em meio ao poder é que
Flávia encontra a importância daquilo que se configura na finitude, ou
u. lilrgger, M. ( 2010). A fenomenologia da vida religiosa. (Enio Gia-
chiní, Jairo Ferradin, Renato Kirchner, Trad.). Petrópolis: Vozes;
seja, nos seus limites. A restrição do querer, que não leva em conta o
llragança Paulista: Editora Universitária São Francisco. (Original
poder, obscurece as possibilidades dadas pelo mundo. É na descoberta
publicado em 1920)
de seu caráter de poder ser que outras possibilidades se abrem como
tais. Na situação de Flávia, ela precisava descortinar a possibilidade de 11 ld1·g1•,n, M. (2001). Seminários de Zollikon. (Gabriela Arhnold; Ma-
que casar-se não era algo que aconteceria por que assim ela queria. Ca- 11,1 d' Fátima Almeida Prado, Trad.). Petropólis: Vozes. (Original
sar-se, ter um namorado era uma possibilidade bem como não casar-se p11l1li .ado em 1987)
ou não ter um namorado. 1ol11',1\1'1\ M. (2003). Ser y tiempo. (Rivera Cruchaga, Trad.). Madrid:
Assim, Flávia não temia mais a solidão e o silêncio. Ela ficava frente 1 ,11•dos. (Original publicado em 1927).

a frente com seu caráter de poder ser. Diferentemente do que ela temin, 1 1, 1 1 ,1 1, M. (2008). Introdução à filosofia. (Marco Antonio Casanova,
1 1

descobriu que dessa forma experimentava a liberdade de se entregar 1 l 1,1,I ). Siio Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1928).
existência e não mais permanecer na luta para que as coisas se dessem
I' 1,1111. S. (2006) A. O lo uno o lo otro: un fragmento de vida, v. 1.
ao modo da ditadura do impessoal.
111, 11,1111ya Saez y Darío González, Trad.). Madrid: Editorial Trot-
O analista, para tanto, prosseguia de modo a dar apenas aqull«
11 (l l1 lgl11al publicado em 1843).
que ele não tinha. O analista ao dar o que tem, apenas dá o que devi
ser, algo da ordem de uma qualificação moralmente dada. Ao dar o q111 11 •1 t ( l ')98). Macabéa. ln. Laços de família. Rio de Janeiro: Edi-
não tem, o analista recua de modo a que o outro possa se libertar p,111
ele mesmo. (Leão, 2013). Por isso, o analista não atua por meio de u1111 1 ! '111 1). O ethos em Platão a partir do eidos. ln. Bocayuva I.
funcionalidade e instrumentalização e sim de uma posição envergo 11 l 1 11111s na antiguidade. Rio de Janeiro: Viaverita.
nhada, de recuo frente à decisão do outro. ~) 1 , '.'I. R.N (2008). Os sentidos da "análise" e "analítica" no
11 11111111!1 d· 11 idegger e suas implicações para a psicoterapia.
11,/,, , lh,111isa em Psicologia, Rio de Janeiro, 8 (2), 191-203.
REFERÊNCIAS
1 1 '1111',) tutinudade. (Alcântara Silveira, Trad.). Rio de janei-
111 1 l 11111l1·lrn. (Original publicado em 1939).
Assis, M. (2008). Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (l 111
"1 'l 111,1////m ixistencial e psicanálise: Freud, Binswanger,
ginal publicado em 1882).
1 1111 1<·: 1)111.
Brandão, J. (1989). O eterno feminino. Rio de Janeiro: Vozes.
1111111 Karicnina. (Rubens Figueiredo, Trad.). Editora
Dostoievski, F. (2015). O idiota. (Paulo Bezerra, Trad.). São Paulo 1 1
( < 11 l11 nul publicado em 1877).
tora 34. (Original publicado em 1869).

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