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Recife
2017
LUIZ ROBERTO LEITE FARIAS
Recife
2017
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204
Inclui referências.
__________________________________
Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira
Orientador ± LETRAS - UFPE
__________________________________
Prof. Dr. Ricardo Postal
LETRAS - UFPE
__________________________________
Prof. Dr. Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis
TEORIA DA ARTE E EXPRESSÃO ARTÍSTICA - UFPE
Recife ± PE
2017
Dedicado a meus pais,
José de Ribamar Farias (in memoriam)
e Maria da Conceição Leite Farias,
por terem me cercado de amor,
de discos
e de livros.
AGRADECIMENTOS
Toda gratidão a minha esposa, Ana, e minha filha, Beatriz, por todo o apoio
incondicional a este projeto de mestrado e, principalmente, pela paciência monástica
comigo, nesses dois últimos anos. Muito obrigado.
Um agradecimento especial a meu orientador, o prof. Dr. Anco Marcio Tenório
Vieira, por ter acreditado no meu projeto hermiliano e por sempre confiar em mim
mais do que eu mesmo, o que, certamente, tornou o caminho bem mais fácil.
Um muito obrigado aos professores da banca examinadora, Dr. Luís Augusto da
Veiga Pessoa Reis e Dr. Ricardo Postal pela leitura atenta e interessada deste
trabalho e consequente crítica valiosa para o aprimoramento do texto.
Um muito obrigado à professora Dra. Ermelinda Ferreira pela confiança no meu
trabalho e incentivo, ao publicar meu primeiro artigo e uma tradução na revista
Intersemiose.
Gratidão a prof. Dra. Lucila Nogueira (in memoriam) pela dedicação inquebrantável
no curso que acabou por se tornar quase particular, sobre o Surrealismo, na sala de
leitura da Pós-Graduação em Letras. Descanse em paz.
Obrigado ao prof. Me. João Denys Araújo Leite pelo apoio a essa aventura do
mestrado em literatura e principalmente por repassar o amor contagiante ao velho
pantagruélico, nosso Hermilo Borba Filho.
Um obrigado a meus amigos e professores da UFPE, Dr. André de Sena e Dr.
Bertrand Cozic pelo apoio e orientação nessa caminhada do mestrado.
Agradecimentos às professoras Dra. Débora Ferreira e Dra. Ana Lima, amigas e
irmãs nas Letras, por todo o apoio e encorajamento.
Um agradecimento especial à professora Dra. Polyanna Camelo pelo
aconselhamento e orientação quando este mestrado ainda era só um projeto.
Um agradecimento também especial aos professores da Universidade Católica de
Pernambuco, Dr. Janilto Andrade, Dr. Robson Telles e Professora Ma. Haidée
Camelo Fonseca, pelo incentivo ao trabalho de pesquisa e por acreditar em meu
potencial desde os primeiros passos na graduação.
Um muito obrigado à professora Ma. Mirella Izídio por toda a atenção e paciência em
orientar um estranho quanto aos caminhos acidentados para se chegar ao mestrado
em uma universidade federal.
Um obrigado enorme a minha querida turma de mestrado 2015 pelo
companheirismo e excelente humor, sempre. Tudo ficou mais fácil com vocês.
Um agradecimento muito especial a minha sobrinha, a professora Ma. Patrícia de
Oliveira Leite Farias pelo socorro nos meandros da tecnologia da formatação e da
apresentação final do trabalho.
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and disorder is the price one always
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Geoffrey G. Harpham
Um Agá
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aparência de profeta e passei a viver
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Um Agá
RESUMO
This work aims to perform a literary criticism of the novel Agá ² by author Hermilo
Borba Filho ² in which there is, as a striking feature, the presence of the grotesque
and its body images, in the description of the characters and in the development of
actions. Although the grotesque is present in almost all the literary production of
Hermilo Borba Filho, little has been said about the theme, not to mention that the
very thinking about the grotesque has been done in a limited way, in Brazil, with
discussions generally based solely on Victor Hugo, Wolfgang Kaiser and Mikhail
Bakhtin. Therefore, this essay seeks first to fill this gap in the approach to the
grotesque, bringing to the discussion authors such as Geoffrey G. Harpham, Carl
Skrade and also Michel Foucault, seen here through a less trodden path about the
grotesque. Second, there is an analysis of the presence of the grotesque in the
literature of Hermilo Borba Filho, in his dramatic work, short stories and novels, as a
way of attesting to the importance of the grotesque to the poetic conception of the
author. Finally, there is the analysis that proposes a reading of the novel Agá
thorough the perspective of the grotesque and its body images. This allows one to
look both at the meaning of the action of its grotesque characters and at the
relationships between body, sex, sacrifice, sacredness and torture. The denunciation
of the latter makes Hermilo Borba Filho's novel a memorial of the abuses of the
power of totalitarian states, with Agá displaying a literature committed to justice and
the freedom of man.
Figura 1² Nicolas Ponce, gravura em metal dos desenhos da Domus Aurea, 1786.
(Fonte: HARPHAM, Geoffrey G. On the grotesque: strategies of contradiction in art
and literature. Princeton, N.J: Princeton University Press, 2006.)..............................19
Figura 2 ² Uma alma desafortunada. (Fonte: WRIGHT, T.; FAIRHOLT, F. W. A
History of Caricature & Grotesque in Literature and Art. London: Virtue Bros. &
Co. 1865.)...................................................................................................................20
Figura 3 ² Detalhe de Cristo Carrega a Cruz, de Bosch, cerca de 1502. (Fonte:
BOSCH. Abril Coleções. Trad. Simone Novaes Esmanhotto. São Paulo: Abril, 2001.
[Coleção Grandes Mestres; v. 19]..............................................................................22
Figura 4 ² Mulher Grotesca, atribuído a Quentin Metsys. (1525-1530) (Fonte: ECO,
Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2015.)...22
Figura 5 ² Palácio Apostólico no Vaticano. (Fonte: HARPHAM, Geoffrey G. On the
grotesque: strategies of contradiction in art and literature. Princeton, N.J: Princeton
University Press, 2006................................................................................................29
Figura 6 ² Páginas 14 e 15 do Saltério de Luttrell.(Fonte:www.bl.uk Disponível
em:< http://www.bl.uk/turning-the-pages/?id=a0f935d0-a678-11db-83e4-
0050c2490048&type=book >. Acesso 3 de jan. 2017.)..............................................30
Figura 7 ² Marginalia do Decreto de Graciano. (1340-1345) (Fonte:
discardingimages.tumblr.com Disponível
em:<http://discardingimages.tumblr.com/post/50978406337/flying-penis-monster-
decretum-gratiani-with-the> Acesso em: 3 de Jan. 2017.).........................................31
Figura 8 ² Detalhe de A tentação de Santo Antão, de Bosch. (Fonte: BOSING, W.;
BOSCH, H. Hieronymus Bosch, cerca de 1450 a 1516 HQWUH R FpX H R LQIHUQR
.|OQ: Taschen. 2001).................................................................................................36
Figura 9 ² Detalhe de O livro dos mortos, em Agá. (Fonte: BORBA FILHO, Hermilo.
Agá. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.)....................................................67
Figura 10 ² Aphrodite, Capitoline, de Jacqueline Hayden, 1999. (Fonte:
jacquelinehayden.net Disponível em: http://jacquelinehayden.net Acesso em: 3 jan.
2017.).........................................................................................................................97
Figura 11 ² Performance de Fernanda Magalhães.(Fonte: fermaga.blogspot.com.br
Disponível em: <http://fermaga.blogspot.com.br/search?updated-max=2014-09-
20T16:48:00-03:00&max-results=30> Acesso em: 3 de Jan. 2017.).........................97
Figura 12 ² o Hermafrodita do Museo Nazionale Romano. (Fonte:
www.romeartlover.it Disponível em:<http://www.romeartlover.it/Vasi194.htm> Acesso
em: 3 de Jan. 2017.).................................................................................................122
Figura 13 ² Invocação a Príapo, séc. 1 d.C. Pompeia, Casa de Vetti. (Fonte:
ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2015.).......................................................................................................................123
Figura 14 ² Detalhe de Crucificação, de Mathias Grünewald (1515) (Fonte: ECO,
Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2015)..141
Figura 15 ² A batalha entre o carnaval e a quaresma, de Pieter Brueghel (1559)
(Fonte: www.brasil.gov.br Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/old/copy_of_imagens/sobre/cultura/carnaval/imagens/old/g
aleria-1/historia/bal_93435_664.jpg/view> Acesso em: 3 Jan. 2017.......................154
Figura 16 ² Detalhe de A batalha entre o carnaval e a quaresma (1559) (Fonte:
www.brasil.gov.br disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/old/copy_of_imagens/sobre/cultura/carnaval/imagens/old/g
aleria-1/historia/bal_93435_664.jpg/view> Acesso em: 3 Jan. 2017.......................155
Figura 17 ² São Sebastião de Guido Reni. (Fonte: www.museus.gov.br Disponível
em: http://www.museus.gov.br/tag/guido-reni/ Acesso em: 3 de Jan. 2017............168
Figura 18 ² São Sebastião de Mantegna. (Fonte: Museu do Louvre online.
Disponível em: < http://mini-site.louvre.fr/mantegna/acc/xmlen/section_5_0.html>
Acesso em: 28 de Fev. 2017....................................................................................168
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
2.2 CONTOS..............................................................................................................81
2.3 ROMANCE...........................................................................................................98
CONCLUSÃO..........................................................................................................171
REFERÊNCIAS........................................................................................................174
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.............................................................................180
INTRODUÇÃO
O pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976) certamente dispensa
apresentação. Mas apenas como forma de introduzir sua literatura, que se escrevam
algumas notas biográficas: nascido no Engenho Verde ² distrito da cidade de
Palmares, localizada na Zona da Mata sul do estado ² foi um homem múltiplo e
dividido em uma dezena de atividades artísticas, dentre elas o teatro ² como ator,
autor, encenador, crítico e professor ² a tradução, a ensaística e escritor de ficção
literária. Entre as décadas de 1930 e 1960, dedica-se principalmente à dramaturgia,
trabalhando no Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), no Teatro do Estudante
de Pernambuco (TEP), e funda o Teatro Popular do Nordeste (TPN). Torna-se
referência no país, principalmente depois que passa a residir em São Paulo, em
1953. Nesta cidade, desenvolve várias funções, em comissões de julgamento, como
crítico e colunista de jornais, e também como encenador várias vezes premiado,
entre outras, pela Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT), com a peça O
auto da compadecida, de seu conterrâneo, Ariano Suassuna.
Após três décadas dedicadas à dramaturgia, Borba Filho lança sua primeira
obra de ficção literária, Os caminhos da solidão (1957), e só volta a publicar sete
anos depois, Sol das almas (1964). Mas é a partir do lançamento de sua tetralogia
Um cavalheiro da segunda decadência, que o autor recebe destaque da crítica em
todo o Brasil e no exterior, recebendo o prêmio Chevalier de L'Ordre des Arts et des
Lettres do governo francês. Composta de A margem das lembranças (1966); A
porteira do mundo (1967); O cavalo da noite (1968) e Deus no pasto (1972), os
romances, em tom altamente confessional, narram a vida do personagem Hermilo
ao longo do Séc. XX, através de todas as convulsões políticas e guerras que
atribularam o Brasil e o mundo. Dentre os dramas políticos vividos pelo protagonista,
destaquem-se duas ditaduras, a de Getúlio Vargas, nos anos 1930-1940 ² em que
o personagem Hermilo é preso político ² e a ditadura militar dos anos 1960, que
marcariam consideravelmente a ação e o desenvolvimento dos protagonistas do
autor pernambucano, sempre às voltas com a resistência em meio a um sangrento
jogo de poder, especialmente em sua obra prima, Agá (1974).
11
Apesar do sucesso obtido por Hermilo Borba Filho em vida, especialmente
como dramaturgo e escritor de ficção, sua morte prematura, aos 59 anos, em 1976,
deixou um vácuo injustificável de novas edições de sua obra, o que foi bastante
prejudicial à divulgação do trabalho do autor por algumas gerações. Lembrando que,
à época da morte do autor pernambucano, este vinha sendo lançado por editoras
prestigiadas, como a combativa Civilização Brasileira, que ousava publicar um
escritor tão crítico e satírico do regime militar, além da Editora Globo, que lançou a
excelente trilogia de contos. Daí que, mesmo com a retomada das edições, em fins
dos anos 1980 para os anos 1990, a força de divulgação das novas editoras parece
não ter sido o suficiente para uma propagação mais ampla, especialmente em
território tão vasto como o brasileiro. Então, em pleno século XXI, apesar do trabalho
de alguns professores entusiastas, não é incomum encontrar estudantes dos cursos
de Letras de Pernambuco que associam o nome de Hermilo Borba Filho a, apenas,
um nome de teatro na cidade do Recife. Portanto, diante dessas dificuldades com a
divulgação da obra de Hermilo Borba Filho, o que também se reflete em uma fortuna
crítica escassa do autor, esta dissertação tem este objetivo não só estudar uma obra
literária moderna, mas de manter a chama da discussão viva e acesa, de divulgar a
literatura de um dos maiores escritores brasileiros, um pernambucano que precisa
ser mais conhecido. Falemos, então, mais de Hermilo Borba Filho.
Este trabalho tem o objetivo de realizar uma crítica literária do último romance
publicado em vida por Hermilo Borba Filho, Agá. E para realizar essa tarefa,
aprofundaremos a compreensão do grotesco na literatura de Borba Filho, como
também abordaremos as imagens do corpo que resultam desse grotesco, como é o
caso dos hermafroditas, dos onanistas, dos despedaçamentos dos corpos, da
deformidade etc. E quando se refere às imagens do corpo relacionadas ao grotesco,
e devido à importância das Artes para a compreensão do grotesco, é possível dar
XPDFRQRWDomRDPSODDRWHUPR³LPDJHP´TXHLQFOXDQmRVyDVILJXUDVGHOLQJXDJHP
ou aspectos de estilo da linguagem poética. Portanto, além da representação das
imagens do corpo na literatura, é possível também realizar um diálogo intersemiótico
com as Artes em geral, o que é, como veremos, certamente autorizado pelo próprio
texto, e que enriquecerá a apreciação estética da obra de Hermilo Borba Filho. Por
isso, sempre que possível, traremos imagens pictóricas e esculturas do corpo, que
12
ilustrem certas características do grotesco que falaremos, realizando, dessa forma,
uma aproximação entre as representações do corpo nas Artes e na literatura.
1
CELESTE CARVALHO DA SILVA, Virgínia. Memória e ficcionalidade em Deus no Pasto de Hermilo Borba Filho.
Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Pernambuco. Recife: O Autor, 2009.
2
SILVA, Josimere Maria da et al. Escrita de si, memória e testemunho em Margem das Lembranças, de
Hermilo Borba Filho. Dissertação (mestrado). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa: O Autor, 2013.
13
autor em inserir sua obra nessa forma literária. Essa intenção autoral de Hermilo
Borba Filho é o que nos guiará na análise de sua obra, respeitando a recepção
estética desejada pelo autor e seu editor, como nos ensina Anco Márcio Tenório
Vieira:
14
contemplação se faça a partir de diferentes ângulos; é como se o autor
assumisse a atitude cubista na perscrutação do objeto. (LIMA, 1993: 140-
141)
Em 3.3 Isto é meu corpo (que é dado por vós): tortura e sacrifício em Agá,
baseado no capítulo de Agá, Eu, padre, propomos um olhar sobre os corpos dos
torturados que os confunde com o corpo deformado de Cristo, esse Cristo tão
retratado a partir da Idade Média, e que acaba por sugerir um erotismo grotesco do
corpo torturado. Nessa analogia entre o martírio de Cristo e o dos que se rebelam
contra as ditaduras, é possível ver o padre encenando uma eucaristia que celebra
tanto a morte de Cristo quanto a de um prisioneiro esmagado em sua carne e ossos.
Mas essa analogia torna também o chão da cela da prisão não só em um calvário ou
via crucis, mas em uma verdadeira mesa de dissecação moderna. Esse olhar sobre
os corpos dos torturados confunde-se, então, com o olhar de um anatomista ²
como o Hermilo da tetralogia e o padre de Agá o foram ² que mapeia a ação do
poder sobre os corpos como forma de erigir um memorial da tortura, um testemunho
17
que preserve a memória dos que perderam a vida nos porões da repressão no
Brasil.
Por fim, neste terceiro e último capítulo que encerra o ensaio, o item 3.5
Erotismo e morte trata desses temas tão inevitáveis, quando se aborda a literatura
de Hermilo Borba Filho, mas que pretendemos ver de uma perspectiva que supere o
meramente sensual ou licencioso. O erótico apresenta-se, então, como uma busca
do sagrado, da transcendência, mas que também se confunde com tantos outros
temas bastante presentes na literatura de Borba Filho, especialmente a violência, o
sacrifício e a morte. Esta morte que, obviamente, é o preço a se pagar pelos que se
rebelam contra os governos totalitários, e que é, por isso, tão presente em Agá,
pode ser vista, na ficção mística de Hermilo Borba Filho, não só como a extinção da
vida, mas, talvez, uma experiência com o sagrado que redima o homem de todo o
seu sofrimento.
18
1 O GROTESCO: ALGUMAS ABORDAGENS TEÓRICAS
Figura 1. Nicolas Ponce, gravura em metal dos desenhos da Domus Aurea, 1786
20
Fonte: WRIGHT & FAIRHOLT, 1865
O conceito do grotesco, ao passar de um substantivo que se referia aos
desenhos das grutas, começa a carregar outras características que seguirão com
bastante constância nessa concepção estética, quando se tenta classificar o
grotesco: dentre elas, a pouca fidelidade na representação da realidade concreta, da
natureza, geralmente abrindo espaço para o onírico e o devaneio, a animalidade, a
mistura de domínios, a deformação. E nessa transição do conceito, Wolfgang Kayser
chama a atenção para o uso que Montaigne fez do vocábulo: ao apresentar seus
ensaios, o escritor os denominou de grotescos, já que a combinação dos textos
tinha, para ele, uma aparência monstruosa, sem forma, o que justificaria essa
qualificação grotesca. Segundo Kayser:
22
Essas pequenas deformações se associam na criação de outro dos
componentes mais importantes na estética do grotesco, que é a monstruosidade.
Esta pode ser tanto encontrada em uma criatura imaginária, carregada de
simbolismos, quanto em um humano deformado em sua aparência. A deformação e
a monstruosidade do grotesco também abrem caminho para especulações sobre o
belo e o sublime, o que fez parte das primeiras reflexões sobre o grotesco,
realizadas por Victor Hugo, que via no grotesco um contraste que ressaltaria ou que
seria uma escada para o sublime. No século XX, essa função de contraste sofreu
críticas, como as de Mikhail Bakhtin que via o grotesco e o sublime como uma
unidade:
No Séc. XX, escritores como William Faulkner marcaram suas obras com a
presença de personagens e ações grotescas, como em Enquanto agonizo (As I lay
dying), em que uma dezena de personagens que beiram os limites da humanidade,
ou da imbecilidade, narram, de várias perspectivas, uma verdadeira odisseia do
féretro de uma matriarca, num percurso que cruza várias cidades, tudo isso com o
corpo já em estado de decomposição.
24
A lista segue longa por Thomas Mann, Kafka e a relação de seus
personagens com o tragicômico da condição humana e, por fim, o que não esgota
de maneira alguma a lista de autores que se utilizaram do grotesco, há a literatura
de Henry Miller. Deste escritor, Hermilo Borba Filho tinha profundo conhecimento ± e
escreveu uma pequena biografia literária (BORBA FILHO, 1968a). Durante algum
tempo, o autor pernambucano foi bastante comparado a Miller, sendo o escritor
americano citado como uma fonte de inspiração, talvez devido à presença forte do
sexo e do erotismo nos romances de ambos os escritores, pelo menos no misticismo
que ambos buscam nas suas abordagens do erótico. No entanto, é preciso cuidado
nessa comparação, já que a relação entre o erotismo e o grotesco presente na
literatura de Borba Filho é uma ramificação de fontes variadas, como a cultura
popular brasileira, a cultura negra, o teatro de bonecos, a FRPPHGLD GHOO¶DUWH, e as
artes pictóricas renascentistas.
Por fim, o grotesco chega aos dias de hoje ainda de maneira bem presente,
no cinema, na literatura, nos programas de auditório da TV, em que os
apresentadores, por exemplo, possuem nomes de animais (Ratinho, Leão) e
expõem humanos a situações bizarras. O grotesco apresenta-se também na ação
de resistência à padronização estética do corpo, na oposição aos padrões de
civilidade e ao verniz dos bons modos. Além disso, o grotesco é percebido no
comportamento de algumas autoridades e figuras públicas, que muitas vezes
mesclam uma aparente seriedade esperada de suas ações com o que pode ser
considerado bizarro, comportando-se como bufões ou palhaços, em vez de
respeitáveis dignitários.
26
também comentada rapidamente por Kayser ² do paradoxo na constituição do
grotesco.
3
Todas as traduções de excertos em inglês foram realizadas pelo autor desta dissertação.
4
WŚĞŶǁĞƵƐĞƚŚĞǁŽƌĚ͞ŐƌŽƚĞƐƋƵĞ͟we record, among other things, the sense that though our attention has
been arrested, our understanding is unsatisfied. Grotesqueries both require and defeat definition: they are
neither so regular and rhythmical that they settle easily into our categories, nor so unprecedented that we do
not recognize them at all. The stand at a margin of consciousness between the known and the unknown, the
perceived and the unperceived, calling into question the adequacy of our ways or organizing the world, of
dividing the continuum of experience into knowable particles.
27
determinado grupo, geralmente conturbando o status quo da sociedade e desafiando
normas estabelecidas.
Quanto aos grotescos das grutas da Domus Aurea, eles tinham o papel de
ornamento das paredes, função que foi mantida, de certa maneira, nas colunas do
Vaticano. (Figura 5). A diferença é que esses ornamentos de Rafael Sanzio e
Giovanni de Udine começaram a tomar maior espaço físico e destaque para o olhar
de admiradores, além de se arriscarem em temas considerados pagãos, causando
impacto no contexto católico romano:
28
Raphael encarregou a maior parte da decoração a Giovanni, que, tendo
carta branca, criou um sistema de concepção baseado no que tinha visto
QDV µJUXWDV¶ que preencheu os espaços tão inteiramente, e que era tão
independente de qualquer centro, que rivalizou com os próprios painéis,
realizando a liberação do ornamento da dominação do centro. Nunca antes
o grottesche havia sido aplicado a uma área de superfície tão grande ou
importante; nunca antes tinha o ornamento se destacado tão
5
independentemente. (HARPHAM, 2006: 34)
5
Raphael assigned the decoration largely to Giovanni, who, given a free hand, created a system of design based
ŽŶ ǁŚĂƚ ŚĞ ŚĂĚ ƐĞĞŶ ŝŶ ƚŚĞ ͞ŐƌŽƚƚŽĞƐ͟ ƚŚĂƚ ĨŝůůĞĚ ƚŚĞŝƌ ƐƉĂĐĞ ƐŽ ĞŶƚŝƌĞůLJ͕ ĂŶĚ ǁĞƌĞ ƐŽ ŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚ ŽĨ ĂŶLJ
center, that they rivaled the main panels themselves, effecting the liberation of ornament from the domination
of the center. Never before had grottesche been applied to such a large or important surface area; never
before had ornament stood so independently.
29
Essa presença dos grotescos, de forma tão perturbadora e cativante do olhar,
passa de uma função secundária ² ornamental ² para dirigir-se a uma
independência temática que as iluminuras normalmente não tinham, como diz
Harpham acima, chegando a rivalizar com os temas cristãos. Isso se agravou com
as iluminuras para os livros sagrados cristãos, para os livros de oração ² como o
saltério de Luttrell (Figura 6) ² em que a marginalia, que deveria ilustrar as histórias
para os não letrados, se insurge contra o controle temático dos textos, o que gerou
críticas de religiosos quanto ao tom geralmente irracional, humorístico e indecoroso
(Figura 7) dos desenhos.
Fonte:www.bl.uk, 2017.
30
Figura 7. Marginalia do Decreto de Graciano. (1340-1345)
[...] dois sistemas de arte foram codificados: a arte do centro que tinha um
assunto e significava algo de maneira inteligível e coerente, com as
imagens reconhecíveis arranjadas de acordo com esquemas tradicionais e
convencionais, e uma arte da margem que, pelo menos em relação ao
centro, não tinha nenhum assunto, não produzia nenhum sentido, e
representava coisas que não existiam nem poderiam existir, nem jamais ter
7
existido. (HARPHAM, 2006: 37)
6
The problem of the relation between center and border is raised in miniature by this figure: which is within
which? Which is the dominant principle and which the subordinate element?
͙ƚwo systems of arte were codified: the art of the center that had a subject and signified in an intelligible
7
and coherent way with recognizable images arranged according to traditional and conventional schemata, and
an art of the fringe that, at least in terms of the center, had no subject, yielded no meaning, and represented
things that were not, nor could be, nor had ever been.
31
Nesses dois sistemas, percebe-se que a arte do centro apresenta-se como
algo já convencionado, normalizado, com seus usos e funções aceitos pela
comunidade. No caso das ilustrações cristãs, estas deveriam servir a uma função
pedagógica que auxiliasse à evangelização dos fiéis que não tinham acesso à
escrita. Essas ilustrações tinham portanto não só um compromisso com as
narrativas, mas, por extensão, elas se subjugavam à lógica da sintaxe verbal e ao
desenvolvimento de raciocínios característicos da linguagem verbal. Já na arte da
margem, de onde se insurgem as pequenas criaturas grotescas e irreverentes, há
uma fuga não só aos temas e argumentos do texto, mas um escape ao
compromisso de imitação da realidade. Se, por um lado, isso causa dificuldades à
apreensão de qualquer sentido convencionado, por outro lado, abre espaço para
uma arte que questiona a norma, que transgride, que se lança para além de uma
função meramente mimética.
9
The grotesque occupies a gap or interval; it is the middle of a narrative of emergent comprehension.
33
vários autores que tecem diferentes teorias para seus objetos de estudo parecem
adotar os paradoxo como aspectos fundamentais na experimentação, por exemplo,
do grotesco, em Geoffrey Harpham (2006), ou da imagem poética, em Octavio Paz
(2015), ou a experiência do sagrado no grotesco, em Carl Skrade (1974). E essa
confluência de abordagens enriquece sobremaneira a crítica da obra de Hermilo
Borba Filho, tal a liberdade poética e presença do grotesco não só em Agá, mas em
quase toda a obra do autor pernambucano. Vejamos um pouco do que estes autores
dizem sobre o paradoxo.
Como quase todos os que teorizam sobre o grotesco, Geoffrey Galt Harpham
destaca como característica do grotesco a convivência simultânea de opostos, como
ele bem define, TXH R JURWHVFR p XPD ³JXHUUD FLYLO HQWUH D DWUDomR H D UHSXOVD´
(HARPHAM, 2006: 11)10, com nenhuma delas prevalecendo, ambas se auto
afirmando. Daí que a palavra fusão é tão usada, ao se falar do grotesco, como
tentativa difícil de sintetizar teses antagônicas. Por isso, Harpham admite essa
dificuldade ao lidar com o grotesco:
Os exemplos aos quais ele se refere são uma série de pares de personagens
literários, desde Miranda e Caliban, passando por Quasimodo e Esmeralda, até a
Bela e a Fera. Nestas combinações, há a presença simultânea de uma realidade
que pode ser dividida em registros de alto e baixo, ou civilizado e não civilizado, o
que, para Harpham, aponta para uma configuração do grotesco. Com a presença
constante de opostos do grotesco, muitas vezes com a narrativa beirando o absurdo,
Harpham encaminha-se para a questão do paradoxo, considerando-o como uma
aproximação de verdades ocultas que desafiam a razão, o que aproxima o grotesco
do mito e do sagrado:
͙ďƵƚƚŚĞŐƌŽƚĞƐƋƵĞŝƐĂůǁĂLJƐĂĐŝǀŝůǁĂƌŽĨĂƚƚƌĂĐƚŝŽŶͬƌĞƉƵůƐŝŽŶ͙͘
10
11
In all the examples I have been considering, the sense of the grotesque arises with the perception that
something is illegitimately in something else. The most mundane of figures, this metaphor of co-presence, in,
also harbors the essence of the grotesque, the sense that things that should be kept apart are fused together
34
ambos os termos de uma contradição ao mesmo tempo. Buscar o paradoxo
por si só pode parecer ordinário ou sem sentido, o que é extremamente
cansativo para a mente. Mas se perseguido por uma questão de verdade
indizível, pode rasgar os véus e até mesmo, como o grotesco, aproximar-se
do sagrado. Porque ele quebra as regras, o paradoxo pode penetrar em
novos e inesperados reinos da experiência, desvendando relacionamentos
12
que a sintaxe geralmente obscurece. (HARPHAM, 2006: 13)
Como seu peculiar status linguístico indica, "grotesco" é outra palavra para
uma não-coisa, especialmente as formas marcantes do ambivalente e do
anômalo. A mente não tolera por muito tempo tais afrontas a seus sistemas
classificatórios, do jeito que as formas grotescas se apresentam; assim que
é exposta a tais formas, a mente começa a operar de certas maneiras, e
são essas operações que nos dizem que estamos na presença do grotesco.
As "tentações" que tragam e atormentam Santo Antônio nas representações
de Schöngauer, Bosch, Breughel, Grünewald, Ensor, e em inúmeros outros,
ativam tais respostas características, que são reveladas quando tentamos
13
descrever as não-coisas atacando o santo. (HARPHAM, 2006: 3)
12
If the grotesque can be compared to anything, it is to paradox. Paradox is a way of turning language against
itself by asserting both terms of a contradiction at once. Pursued for its own sake, paradox can seem vulgar or
meaningless; it is extremely fatiguing to the mind. But pursued for the sake of wordless truth, it can rend veils
and even, like the grotesque, approach the holy. Because it breaks the rules, paradox can penetrate to new and
unexpected realms of experience, discovering relationships syntax generally obscures.
Ɛ ŝƚƐ ƉĞĐƵůŝĂƌ ůŝŶŐƵŝƐƚŝĐ ƐƚĂƚƵƐ ŝŶĚŝĐĂƚĞƐ͕ ͞ŐƌŽƚĞƐƋƵĞ͟ ŝƐ ĂŶŽƚŚĞƌ ǁŽƌĚ ĨŽƌ ŶŽŶ-thing, especially the strong
13
forms of the ambivalent and anomalous. The mind does not long tolerate such affronts to its classificatory
systems as grotesque forms present; within an instant of its being exposed to such forms it starts to operate in
certain ways and it is these operations that tell us that we are in the presence of the grotesque. The
͞ƚĞŵƉƚĂƚŝŽŶƐ͟ ƚŚĂƚ ĞŶŐƵůĨ ĂŶĚ ƚŽƌŵĞŶƚ ^ƚ͘ ŶƚŚŽŶLJ ŝŶ ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂƚŝŽŶƐ ďLJ ^ĐŚƂŶŐĂƵĞƌ͕ ŽƐĐŚ͕ ƌĞƵŐŚĞů͕
Grünewald, Ensor, and countless others activate such characteristic responses, which are revealed as we try to
describe the non-things attacking the saint.
35
Figura 8. Detalhe de A tentação de Santo Antão, de Bosch
Fonte: BOSING;BOSCH,2001
36
O paradoxo então se faz também presente na linguagem poética,
especialmente quanto a suas imagens, mas também é percebido na experiência do
sagrado. E o que há em comum na ação dos teóricos que trabalham nesses campos
² da linguagem poética e da teologia ² é justamente questionar a lógica de
Parmênides, tão arraigada no pensamento ocidental e que atua, segundo eles, como
camisa de força para o sentimento poético ou transcendental. O poeta e crítico
Octavio Paz, que também acompanhou de perto o movimento surrealista, é um dos
que questionam os limites da lógica ocidental e propõe uma abertura da consciência
para o pensamento oriental, mais receptivo às contradições e aos paradoxos da
existência humana. Segundo ele:
Para Octavio Paz, o papel da imagem poética é colocar em xeque algo tão
fundamental como esse princípio da não contrDGLomR GH ³R VHU QmR p R QmR VHU´
com o auxílio, principalmente, da metáfora, que vem a ser o material primeiro da
poesia e da imagem poética. Essa imagem, ao colocar lado a lado termos
contraditórios, exerce função similar ao grotesco, na fusão dos opostos, como diz
Octavio Paz: ³&DGD imagem ² ou cada poema composto de imagens ² contém
muitos significados contrários e díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem
suprimi-los´ 3$=, 2015: 38). E mais à frente o autor FRQFOXL ³[...] toda imagem
aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si, isto é,
submete à unidDGH D SOXUDOLGDGH GR UHDO´ 3$=, 2015: 38). Esse ³abarcar e
reconciliar sem suprimir´ parece também pertencer às intenções filosóficas do
grotesco, o que o torna tão prenhe de paradoxos e sempre funcionando no limite da
linguagem. Uma linguagem humana que, de uma maneira ou de outra, é regida por
uma sintaxe lógica que se abala com a presença de elementos não racionais. Daí a
riqueza da investida poética que expande as possibilidades de compreensão
humana diante da complexidade do real e do desafio pela busca da verdade ²
37
mesmo que esta não seja universal. Octavio Paz então põe a imagem poética nesta
difícil tarefa de dizer o indizível:
38
nos impulsionar para além da bomba e para além de 1984. (SKRADE,
14
1974:18)
14
I believe that while the artist of the grotesque frequently works in a non-religious style, he nonetheless
works with religious content. Further, I believe that the eruption of the grotesque in our time is an attack on
and a counterbalance to our rationalism and is a renewed call for the recognition of the non-rational as a real
ĂŶĚǀĂůƵĂďůĞĂƐƉĞĐƚŽĨŵĂŶĂŶĚƚŚƵƐ͕ƉĞƌŚĂƉƐŽĨŵĂŶ͛ƐĞdžƉĞƌŝĞŶĐĞŽĨ'ŽĚ͘WĞƌŚĂƉƐƚŚĞ^ƚŽŝĐwas not even half
right in locating the link between God and man in reason. Perhaps the grotesque can force us to hear the
inaudible voice that can speak to us in our vacuum, our time between the times, of new and viable images and
symbols which can help to thrust us beyond the bomb and beyond 1984.
39
não é pacífica e ordenada. A vida é repleta de arestas e acontecimentos
15
fantásticos e possibilidades e mudanças. (SKRADE, 1974: 13)
O autor segue destacando que não faz um crítica contra a razão em suas
qualidades cognitivas, pois ela é necessária à existência do homem, mas contra a
razão que põe o princípio da não contradição acima de tudo, como no enunciado
que assume a forma de uma lei inquestionável: ³QmRpSRVVtYHODOJRVHUHQmRVHUDR
PHVPRWHPSR´(SKRADE, 1974: 38)16, o que, para o grotesco, essa impossibilidade
é praticamente a sua razão de ser, no que se refere a essa convivência simultânea
de contradições. Da mesma forma, também critica o princípio da necessidade: ³R
TXH p p QHFHVVDULDPHQWH´ (SKRADE, 1974: 38)17 Para Skrade, isso tudo é um
grande erro, pois ele não crê na materialidade desses princípios, pelo contrário,
considera-os altamente abstratos, além de, muitas vezes, serem a causa da
violência e intolerância humanas, quando o homem tenta impor sua perspectiva
sobre o outro.
15
Reason seeks to order and structure life in neat, quiet and orderly compartments. But life, real life, simply is
not neat and orderly. Life is replete with rough edges and fantastic happenings and chances and changes.
͙it is not possible for something to be and not to be at the same time.
16
17
[...] what is, is necessarily.
18
The overwhelming witness of the grotesque art in regard to man is that he is twisted, broken, fragmented.
40
atômica. Agora, já em pleno Séc. XXI, não se pode dizer que progredimos muito,
muito pelo contrário, o que torna o romance de Hermilo Borba Filho ainda tão atual.
Não à toa, os escritos de Bakhtin não eram bem vistos pelo poder
estabelecido na Rússia de seu tempo, o que levou-o a ser perseguido politicamente.
43
Ao escrever em meados do século XX, quando a revolução Russa já mostrava suas
contradições do totalitarismo stalinista, Bakhtin demonstrava essa esperança ² e
que era provavelmente compartilhada por Hermilo Borba Filho ² de que a vida
humana seria realizada por meio de ciclos, em que nem a alegria da liberdade, nem
a morte dos regimes totalitários poderiam ser eternos.
Apesar dessas críticas que veem o carnaval de uma maneira mais negativa,
há outros que pensam de uma maneira mais abrangente. Um exemplo é Wilson
Yates, em sua introdução à obra The grotesque in art and literature (1997), que faz
uma avaliação mais positiva sobre a concepção de carnaval de Bakhtin. Em vez de
olhar de modo stricto senso para o carnaval, Wilson Yates sugere que Bakhtin
procurava muito mais produzir um mito que ajudasse a humanidade a fugir de seu
individualismo exacerbado e tão incentivado pelo capitalismo. Dessa forma, seria
possível compreender que cada corpo individual não é apenas uma propriedade
privada, mas a parte necessária não só de uma sociedade PDV GR JUDQGH ³FRUSR
FyVPLFR´em sua totalidade. Diz Wilson Yates:
45
símbolo para o pessoal, o social e o natural; como metáfora para o cosmos
ao qual pertencemos. Ao fazer isso, ele mitologiza o carnaval. É um mito do
carnaval em vez do carnaval de fato que finalmente informa a perspectiva
20
de Bakhtin do corpo cósmico. (YATES, 1997: 24)
ŶƵŵďĞƌŽĨƚŚĞŽƌĞƚŝĐĂůƉŽŝŶƚƐĐĂŶďĞŵĂĚĞĂďŽƵƚĂŬŚƚŝŶ͛ƐƚƌĞĂƚŵĞŶƚŽĨZĂďĞůĂŝƐ͘&ŽƌĞŵŽƐƚ͕ŚĞŝƐĐƌĞĂƚŝŶŐ
20
46
morte. E esta morte não é vista com pessimismo, mas como semeadura para um
novo nascimento, revelando, uma vez mais, a renovação simbólica do carnaval.
São essas imagens do corpo que permeiam boa parte da ficção de Hermilo
Borba Filho, especialmente em Agá, que apresenta o protagonista e demais
personagens em constante oposição ao corpo asséptico e harmonioso da arte
clássica. É interessante destacar que os exemplos geralmente usados por Mikhail
Bakhtin, para as imagens grotescas na pintura, são justamente Bosch e Brueghel. O
47
primeiro se faz presente na obra de Hermilo Borba Filho, que chega a chamar o
FDUQDYDO GR 5HFLIH GH XP ³SDtV ERVFKLDQR´, em A porteira do mundo (BORBA
FILHO, 1994: 124), o que reforça a relação do grotesco com a obra do autor
pernambucano. Além disso, em Agá, enquanto as crianças são apresentadas como
masturbadores inveterados, com o sêmen sempre a esguichar em situações
YDULDGDV R TXH GHVDILD TXDOTXHU H[SHFWDWLYD GH ³ERP JRVWR´ OLWHUiULR RV DGXOWRV H
velhos não ficam atrás: estes muitas vezes estão envolvidos em ações com a
presença hiperbólica de esperma, urina e fezes, além de possuírem falos
animalescos que desafiam qualquer chance de realismo (vide a cena em que o
pênis atravessa um rio, em meio a uma sessão de masturbação).
48
Ao desenvolver seu conceito de ³UHDOLVPR JURWHVFR´ TXH VHULD D GHILQLomR
estética da literatura de François Rabelais, Mikhail Bakhtin destaca como a principal
característica desse grotesco o rebaixamento. Esse rebaixamento seria um
movimento contrário ao da elevação espiritual, em oposição também à busca e
eleição do sublime como padrão do cânone estético, o que nos leva a pensar essa
relação do grotesco com o sublime.
Então, a partir da retórica, quando o sublime era visto como o efeito do uso
perfeito da linguagem verbal, a reflexão sobre o sublime se expandiu para outras
regiões do conhecimento, o que, na concepção de Philip Shaw (2006), poderia
significar, além desse efeito do uso da fala, o resultado da relação com o divino e o
absoluto, ou o sentimento do maravilhoso diante da grandeza da natureza.
49
natureza humana, o que ampliaria, segundo Eco, as possibilidades do prazer
estético, que não se restringiria à experiência do belo. Segundo Schiller:
50
Diante dessa passagem, é preciso lembrar a maneira como Victor Hugo
compreendia a relação entre o sublime e o grotesco, já que, para ele, a direção era
exatamente oposta ao pensamento de Mikhail Bakhtin. Para Victor Hugo, em seu
prefácio a Cromwell, o grotesco seria um ponto de onde saltar para cima, para o alto
onde mora o sublime. Assim, podia-se ver, pelo menos em meio à aristocracia, o uso
de anões nos quadros (como o de Velásquez, As meninas), que seriam, então, uma
forma de destacar ² em contUDVWHFRPD³IHLXUD´GRVDQ}HV² a ³beleza´ física de
seus senhores. Segundo Victor Hugo:
51
A visão bakhtiniana é de suma importância quando abordamos um romance
como Agá, em que o corpo é tão visado, não só no aspecto carnal de sua
sexualidade, mas também na sua transcendência. É um corpo inacabado, torturado
e esquartejado na carne de presos políticos e de mártires, fazendo, inclusive,
analogias com o corpo de Cristo. No entanto, se o corpo em Agá é local de dor e
suplício, esse mesmo corpo tem em sua carne o último refúgio do Homem: o prazer
é a resistência, nos devaneios eróticos de torturados, em cópulas nas mais variadas
combinações, sem falar nos delírios masturbadores de vários Agás.
O que fez aos homens a ação genital, tão natural, tão necessária e tão
justa, para que não se ouse falar dela sem vergonha e para excluí-la das
conversas sérias e regradas: Nós pronunciamos ousadamente: matar,
roubar, trair; e aquilo, não ousaríamos dizê-lo a não ser entredentes?
(MONTAIGNE apud BAKHTIN, 2013: 280).
52
Embora Bakhtin pense que a grosseria moderna da linguagem seja uma
forma diluída, é inegável a relação corpo/linguagem na franqueza da linguagem de
Hermilo Borba Filho quanto ao corpo e à vida em geral. A falta de rodeios ou de
eufemismos em sua obra certamente torna-o participante de uma certa
PDUJLQDOLGDGH TXDQWR DR FKDPDGR ³ERP-WRP´ OLWHUiULR R TXH VHPSUH OHYRX R DXWRU
pernambucano a ser considerado um ³HVFULWRU PDOGLWR´ (LIMA, 1986: 38). E esse
aspecto marginal talvez seja fruto dessa permanente transgressão (característica do
grotesco) entre o alto e o baixo, entre as representações literárias mais aceitas na
sociedade e o obsceno; entre uma linguagem que é erótica e metaforizada, mas que
muitas vezes aproxima-se de um pornográfico chulo e direto. Por essas tantas
características, cremos que seja possível relacionar a representação do corpo em
Agá com o a visão de corpo grotesco em Bakhtin.
Por fim, é possível ver como a imagem do corpo, em sua acepção mais
grotesca, pode ser um ponto de partida para a compreensão de Agá, em que o
corpo não é apenas um portador de significados eróticos, mas é o que desencadeia
toda uma série de possibilidades interpretativas quanto à gênese dos processos
criativos de Hermilo Borba Filho, o estilo de sua linguagem, as transgressões
estéticas e a possibilidade de vislumbre do sublime e do sagrado no corpo.
53
outro aspecto, decorrente deste, é que o grotesco, segundo essa concepção de
.D\VHU FKDPDGD SRU HOH GH ³R PXQGR DOKHDGR´ DFDED SRU VH FRQIXQGLU PXLWDV
vezes, com uma outra categoria, a do fantástico, principalmente na literatura.
54
grotescas. O exemplo mais usado de atitude criadora, segundo Kayser, é o do sogni
dei pittori, expressão originariamente usada para classificar os trabalhos fantasiosos
de artistas como Hieronymus Bosch e Pieter Brueghel. Se pensamos na obra de
Hermilo Borba Filho, quanto a esse aspecto criador, e devido ao constante diálogo
com outras formas artísticas, como a pintura de Bosch, a &RPPHGLD GHOO¶DUWH, o
cordel, o teatro de bonecos, é possível constatar essa concepção de mundo de
Borba Filho ³GHTXHPGHYDQHLD´segundo Sodré e Paiva, de quem não se prende a
uma visão realista de literatura, mas frequenta o lado mágico da existência humana.
Dizem Sodré e Paiva:
56
permanecendo boa parte de sua argumentação na chamada alta cultura, ou aquela
mais respeitada pelo cânone ocidental, ou seja, concentra-se na literatura romântica,
no teatro romântico, na pintura surrealista, o que traz para a sua abordagem do
grotesco resultado bastante diverso do ensaio de Bakhtin. Este chega a dizer, de
maneira até um tanto quanto irônica, DR IDODU GR HQVDLR GH .D\VHU ³/HQGR VXDV
definições, ficamos surpreendidos pelo tom lúgubre, terrível e espantoso do mundo
grotesco, que ele é o único a captar´. (BAKHTIN, 2013: 41).
Para Mikhail Bakhtin, há dois tipos de grotesco circulando nas artes do século
;; XP JURWHVFR ³PRGHUQLVWD´ TXH HOH DVVRFLD FRP RV H[SUHVVLRQLVWDV H
surrealistas, que seria mais próximo do grotesco da era romântica e que seria o tipo
DQDOLVDGR SRU .D\VHU GH FXQKR PDLV H[LVWHQFLDOLVWD 2 RXWUR JURWHVFR R ³UHDOLVWD´
seria usado por autores de literatura como Thomas Mann, Bertold Brecht e Pablo
Neruda, aos quais acrescentaríamos James Joyce e William Faulkner, como uma
versão mais aproximada da cultura popular, mais centrada na terra e no corpo. Para
o autor russo, Kayser se dedica de maneira muito enfática ao grotesco modernista,
fantástico, surrealista, presente na literatura romântica, em E.T.A Hoffman, em E.A.
Poe, mas subestima as possibilidades mais satíricas e irreverentes vistas em
Cervantes e Rabelais e em tantos artistas do século XX. E é esse aspecto sombrio
que é criticado, que aborda a vida e a morte de maneira muito existencialista e
negativa, que, embora não descarte o riso, não o valoriza como qualidade
fundamental do grotesco.
[...] a literatura fantástica é o único gênero literário que não pode funcionar
sem a presença do sobrenatural. E o sobrenatural é aquilo que transgride
as leis que organizam o mundo real, aquilo que não é explicável, que não
existe, de acordo com essas mesmas leis. Assim, para que a história
narrada seja considerada fantástica, deve-se criar um espaço similar ao que
o leitor habita, um espaço que se verá assaltado pelo fenômeno que
transtornará sua estabilidade. É por isso que o sobrenatural vai supor
57
sempre uma ameaça à nossa realidade, que até esse momento
acreditávamos governada por leis rigorosas e imutáveis. (ROAS, 2014: 31)
Uma das principais vozes que fomentaram essa confusão [entre o grotesco
e o fantástico] foi a de Wolfgang Kayser e seu seminal ensaio O grotesco.
Sua configuração em pintura e literatura (1957). [...] Embora ao longo de
seu ensaio Kayser se empenhe em não esquecer o riso como elemento
característico do grotesco desde a sua origem, ele acaba mostrando
dificuldade em encaixá-lo em sua definição. Isso faz com que, em certos
momentos, o que ele parece estar definindo é o fantástico: para Kayser, o
grotesco é a expressão da paralisia progressiva e inexorável do homem
diante da invasão de forças anônimas (irracionais) que deslocam e
destroem o real e as estruturas da consciência. Daí sua insistência no
medo, como resposta a uma realidade que perde coerência. Se
compararmos essa definição com aquelas que Castex e Caillois deram do
fantástico nessa mesma época, torna-se evidente a assimilação que se
produz no ensaio de Kayser ² erroneamente ² entre grotesco e fantástico
(ROAS, 2014: 193-194)
Para um homem de teatro, como foi Hermilo Borba Filho, para quem a
FRPPHGLD GHOO¶arte KDYLD VLGR ³R PDLRU PRYLPHQWR SRSXODU GD KLVWyULD do teatro
(BORBA FILHO, 2005: 51), ela não poderia deixar de ser fonte de sua poética. Em
sua História do espetáculo (1968b), o dramaturgo pernambucano praticamente cita
os aspectos grotescos da FRPPHGLD GHOO¶DUWH, ao destacar a importância das
máscaras e o clima fantasioso dos espetáculos:
Por outro lado, quanto a Kayser, as marionetes podem fazer parte de uma
estética do grotesco, o que abre caminho para situar alguns momentos da literatura
de Hermilo Borba Filho nesse universo das marionetes, dos bonecos, dos
mamulengos. Para Kayser, a movimentação mecânica advinda da commedia
59
GHOO¶DUWH, associada ao automatismo dos bonecos, gera uma ambiência grotesca, o
que reforça uma apreciação do grotesco que se manifesta nos autômatos, ou seja,
³TXDQGRQRRUJDQLFDPHQWH animado penetra o mecanicamente inanimado tornando
com isso estranho o nosso mundo. Os bonecos do teatro de marionetes só
chegariam a ser grotescos se adquirissem vida própria e, saindo do seu mundo,
HQWUDVVHPGHQWURGRQRVVR´.$<6(509: 50. Nota de rodapé). Entendemos que
é justamente aí, nesse sopro de vida em bonecos, dentro dessa aproximação do
bonecos e o grotesco, que o grotesco se manifesta na literatura de Hermilo Borba
Filho, pois sabemos o quanto ele foi entusiasta e pesquisador dos mamulengos, e
escreveu obra de referência, Fisionomia e espírito do mamulengo (1966). É possível,
então, ver, na produção artística de Borba Filho essa nuance com relação ao teatro
de bonecos e à FRPPHGLD GHOO¶arte, em que os bonecos são, às vezes,
aparentemente humanizados, especialmente em Agá, ou, em seu teatro, os atores
humanos usam máscaras ou assumem formas de bonecos, como se deu em várias
de suas encenações, como, por exemplo, O cabo fanfarrão (com máscaras), Dom
Quixote (que mescla a presença de atores e bonecos) e A pena e a lei (em que os
atores assemelham-se a bonecos de mamulengo).
60
gosto dos teatrinhos de mamulengos. Quando se pensa nessa presença dos
bonecos humanizados, aliada à pancadaria e espancamentos característicos da
ação deles, é de se perguntar se não seria plausível ver ou interpretar ² não só
neste capítulo de Agá ² boa parte da obra de Hermilo Borba Filho como um grande
teatro de bonecos.
Essa afirmação que Kayser defende, de o grotesco não ser capaz de realizar
a forma do romance é, ainda, de certa forma, atual, e ajuda a compreender alguns
aspectos de Agá, quanto a sua forma de romance, especialmente quanto a sua
fragmentação. Esse pensamento de Kayser relaciona-se ao fato de o grotesco
perder força quando o choque ou impacto se naturalizam, devido ao leitor se
acostumar com o grotesco ou até não ter capacidade de percepção estética para
apreciá-lo.
Por outro lado, indo além de Kayser, o efeito também pode ser diluído se o
contexto histórico-social não favorecer mais a presença de alguns elementos do
grotesco, o que é uma crítica de David Roas (2014) quanto à tentativa de
caracterização do grotesco de Wolfgang Kayser. Para Roas, o autor alemão
dispende um grande esforço no estabelecimento de uma estética a-histórica do
grotesco, mas, paradoxalmente, assume ² como a forma perfeita ² uma
concepção romântica do grotesco. Geoffrey Harpham (1976) é, também, um dos que
se demoram na questão da contextualização do grotesco. Para ele, o efeito é, de
longe, o aspecto mais importante na consumação do grotesco e, para isso, o leitor
assume grande importância para essa estética. Ele cita o exemplo das tentações de
61
Santo Antônio, que foram amplamente representadas nas pinturas do século XVI, e
que deveriam ser muito mais chocantes para uma recepção daquela época do que
para a de um homem do século XX, o que o leva a dizer: ³&DGD HUD UHGefine o
grotesco em termos do que DPHDoD VHX VHQVR GH KXPDQLGDGH HVVHQFLDO´
(HARPHAM, 1976: 463)21. O próprio Wolfgang Kayser até admite, em certo
momento, essas dificuldades quanto à recepção³$VIRUPDVLVRODGDVRVFRQWH~GRV
LVROiYHLV QmR VmR SRUWDQWR ³XQtYRFRV´ PDV preenchidos a partir dos mais diversos
FRQWH~GRV´ .$<6(5 , mas, no fim, ele acredita que a presença dos
elementos grotescos em uma estrutura acabam por dar a tônica da recepção³0DV
de outra parte, não há dúvida de que formas individuais e determinados motivos
encerram uma disposição para certoVFRQWH~GRV´.$<6(5, 2009: 157).
Para Kayser, então, a ³forma PDLV EUHYH GD QDUUDomR´ RX VHMD R FRQWR
assume o formato ideal para se plasmar as narrativas grotescas. No entanto,
entendemos que essa questão da duração da narrativa parece se diluir na forma do
romance moderno, em que o fluxo histórico e os próprios protagonistas ² a exemplo
de Agá ² assumem uma forma totalmente fragmentada. Além disso, as narrativas
possuem múltiplas perspectivas simultâneas, desbaratando todo o senso de tempo e
espaço, da maneira como se dá em Agá, com seus vários Eus narradores vivendo,
ao mesmo tempo, em situações tão díspares quanto um embaixador de um governo
militar e um guerrilheiro entrincheirado nas matas da Amazônia. E se pensarmos nas
21
Each age redefines the grotesque in terms of what threatens its sense of essential humanity.
62
questões levantas quando falamos do paradoxo no grotesco e na linguagem, no que
se refere ao transtorno do grotesco e do paradoxo à linguagem e a sua estrutura
sintática, é, então, compreender que o grotesco também pode perturbar estruturas
narrativas maiores, fazendo desta estética grotesca algo do tipo antienredo ou até
antiromance, como é o que parece ser a forma de Agá.
63
frente. Nesta seção, nos deteremos nos onanistas e em um terceiro tipo de monstro
grotesco, uma espécie de matriz social, segundo Foucault, de todos os outros
monstros acima e um componente importante na equação do poder: o soberano
infame.
[...] essa desqualificação que faz aquele que é o detentor da majestas [...]
ser ao mesmo tempo, em sua pessoa, em sua personagem, em sua
realidade física, em seus trajes, em seu gesto, em seu corpo, em sua
sexualidade, em sua maneira de ser, um personagem infame, grotesco,
ridículo. De Nero a Heliogábalo, o funcionamento, a engrenagem do poder
grotesco, da soberania infame, foi perpetuamente aplicada no
funcionamento do Império romano. (Foucault, 2010: 12).
65
cruzamento ou travessia de registros de alto e baixo no estrato e comportamento
social. O monarca rebaixa suas ações para o que é inculto, sujo e obsceno, o que,
de certa forma, também eleva essas mesmas qualidades para um patamar
reservado ao que seria nobre e de maior visibilidade.
Olhando por essa perspectiva, é possível ver até com certo pessimismo o
fruto de uma crítica tão cerrada ² e, muitas vezes, virulenta ² de Hermilo Borba
Filho aos tiranos e ditadores, quando são rebaixados ao nível da bestialidade ou da
bufonaria. Esses tiranos bufões parecem se antecipar aos ataques e realizam, eles
mesmos, o auto rebaixamento, que, no fim das contas, não os impede de encerrar a
encenação e retornar às atrocidades com força redobrada.
66
defesa, simplesmente porque o acusador não se mostra. Na história em quadrinhos,
O livro dos mortos, posicionada bem ao centro do romance Agá, o artista José
Cláudio parece captar essa impessoalidade do Estado ao quase nunca desenhar os
rostos do agressores dos mártires (Figura 9), ou seja, a engrenagem do poder não
tem face.
67
rebeldes ou insurgentes. As agulhas e facas são, então, cientificamente usadas para
perfurar e cortar a carne humana, com o máximo de aproveitamento. Da mesma
forma, as execuções são efetuadas com eficiência científica e sem contato humano,
transformando o poder, cada vez mais, em um monstro sem uma face, sem um
corpo a quem se dirigir e pedir clemência, muito ao estilo de um processo grotesco e
kafkiano.
68
3DUWLQGR GHVVD ³FUX]DGD DQWLPDVWXUEDWyULD´ TXH HUD FRQFHQWUDGa
principalmente nas crianças, e não em adolescentes e adultos, a somatização da
masturbação foi um pulo, e logo a Europa se via infestada de estudos que
culpabilizavam a masturbação em pelo menos três principais formas de
somatização: em primeiro, a forma GD³GRHQoDWRWDO´XPD³GRHQoDSROLPRUID´HJHUDO
à qual qualquer sintoma era ligado com a prática da masturbação: falta de vigor,
depressão, mau cheiro, olheiras etc., muito próximo do que os inquisidores
familiares de um dos Agás pensavam sobre suas práticas ocultas, reveladas no
amarelo da pele; a segunda, uma das mais extraordinárias, via a masturbação como
³FDXVD SRVVtYHO GH WRGDV DV GRHQoDV SRVVtYHLV´ GH PHQLQJLWH RVWHRSRURVH DWp D
loucura, o que não deixa de apontar para essa possível relação entre o masturbador
e a loucura no capítulo Lírico-Trágico-Cômico-Pastoral. Esta última faceta de um
Agá faz dessa narrativa, em particular, um dos momentos mais antimiméticos e
mágicos do romance de Hermilo Borba Filho, em que o Agá delira em visões, em
meio a uma masturbação, à beira de um rio; por fim, Foucault destaca a forma do
³GHOtULRKLSRFRQGUtDFR´XPYHUGDGHLURERPEDUGHLRVXJHVWLYRHPTXHRVMRYHQVHUDP
obrigados a narrar (segundo Foucault, um verdadeiro gênero literário) tudo o que
supostamente sentiam, todo o mal-HVWDU UHVXOWDGR GD SUiWLFD GD PDVWXUEDomR ³D
FDUWDGRGRHQWH´'Dt)RXFDXOWGL]FDQGLGDPHQWH
69
confissão espontânea é o que rege o romance de Borba Filho, diferentemente da
confissão sob tortura, lembrando como resistem os torturados no romance,
especialmente em Eu, Padre. Embora seja questionável acreditar que Agá espere
por absolvição em suas confissões, de fato, principalmente vindo do dissimulado e
manipulador Agá, como ele se gaba em muitas de seus autoelogios, o fato é que ele
fala tudo o que quer por ser um espírito libertário e libertino.
70
2. O GROTESCO NA LITERATURA DE HERMILO BORBA FILHO
O Pai (De um jato.) ² Seu Enéas quer instalar a casa funerária aqui.
71
O Pai ² Assim seja, velha. (Todos se sentam para comer e durante alguns
instantes ninguém fala.)
7RGRVOHYDQWDPRVFRSRVHJULWDP³$R3DUDtVR´HQWUHULVRVHFRPHQWiULRV
somente O Atleta permanecendo indiferente. Voltam a comer animados,
enquanto a luz se apaga.) (BORBA FILHO, 2007: 159)
Seu Enéas ² Você pensa que faz o que quer. Mas quem pode garantir que
não lhe mandaram tomar essa atitude?
O Atleta ² Quem?
Seu Enéas ² É o que você pensa. Não se sente, mas ela anda junto de
todos nós. Às vezes é uma borboleta, outras vezes um gato e outras vezes
um homem como eu. (BORBA FILHO, 2007: 155-156)
72
Curiosamente, Hermilo Borba Filho, como era sua prática, reutilizava seus
textos em outras obras e, dessa forma, usou trechos dessa peça dramática no corpo
do romance Agá. No capítulo Eu, agente funerário, o humor e o macabro mais uma
vez andam lado a lado. No caso da adaptação para o romance, o enredo é sobre a
vida de um casal proprietário de uma casa funerária que, além dos problemas com a
vizinhança, devido ao repentino lucro do casal com a morte, o agente funerário
também se vê em apuros, depois que começar a produzir caixões temáticos e
decorados, o que pode-se associar com as bizarrices do grotesco, nessa mistura de
cores e enfeites e a morte. Um deles, pintado com a bandeira do Brasil, acaba por
colocá-lo em maus lençóis com as autoridades da cidade, que consideraram o ato
como subversivo, ressaltando, também, o tom humorístico desse trabalho funerário.
Por fim, tanto na peça quanto no romance, a cidade se volta contra a família e
seus lucros excessivos com a funerária. No final, em uma situação semelhante a
Fausto, parece que a morte vem cobrar pelos serviços prestados e pela
prosperidade que todos tiveram. Quando os vizinhos começam a apedrejar a
residência/casa funerária, a família já está encaminhada nas mãos de Seu Enéas:
O Coro
O Padre
e etecétera e tal,
aguardente de cana
com maracujá.
Por fim, Manuel de Tal é salvo por seu bom samaritano, um ateu que não crê
³QHPQRFmR´, mas que não fecha os olhos à injustiça:
O Ateu
74
Eu sou decidido,
E toco violão.
Defendo a justiça,
Esse estilo descritivo de Hermilo Borba Filho foi bem recorrente na sua
literatura e provavelmente marcado por relações intersemióticas com as artes dos
pintores renascentistas, ou até com a pintura dos surrealistas, o que traz essa
ambiência onírica e de terror para a constituição de seus romances e contos. Mas,
apesar do desfecho trágico da peça, em Os ambulantes de Deus, o nome rebatizado
de Quem é rico morre inchado se justifica em outra cena mais positiva para o povo
oprimido pela aristocracia canavieira: surge no rio imundo pela ação dos engenhos
de cana um corpo que vem finalmente purificar as águas da cauda fétida:
Morra o pavão!
Morra o pavão!
75
Os da jangada fizeram coro, já alegres, o usineiro, inchado, ia passando,
levando com ele a fedentina, o sol brilhou com mais força antes de
mergulhar atrás das montanhas, havia no ar um cheiro de flores silvestres
[...] (Borba Filho, 1976: 53)
Já em 1971, Hermilo Borba Filho escreve sua última peça teatral, publicada
no ano seguinte: Sobrados e mocambos: uma peça segundo sugestões da obra de
Gilberto Freyre nem sempre seguidas pelo autor. O título levemente irônico liga,
então, essa peça ao célebre ensaio Sobrados e mucambos, do sociólogo
pernambucano ² escrito na sequência de Casa Grande & Senzala ² sobre a
decadência do patriarcado rural e consequente mudança para o espaço urbano, ao
passo que seus ex-escravos tentavam se reacomodar nos mucambos das cidades.
Mas a ironia do título não é única coisa a se notar, como bem alude João Denys
Araújo Leite:
Então, o corpo pode ser uma perspectiva por onde abordar Sobrados e
mocambos, seja por meio das cópulas as mais variadas, isso já desde a abertura da
peça, com uma relação anal entre primos, para a preservação da virgindade,
passando pelos mais diversos abusos de espancamentos, torturas e decapitações
de rebeldes. Mas é também por meio do corpo que Borba Filho vai tecendo seus
76
comentários sociais: no corpo do negro que ainda serve como burro de carga, e que
é boa parte do tempo comparado aos bichos ou com as máquinas, nos abusos
sexuais realizados pelos senhores, assim como nas discussões sobre o clareamento
da pele, como um processo de ascensão social pelo embranquecimento do negro.
77
sujeito humano ² com elementos da cultura popular, tanto em suas formas
negras (de origem africana) como cordelísticas (de origem luso-hispânica,
transpostas para o Nordeste brasileiro) e indígenas. [...] A cultura negra
oferece principalmente a oportunidade de uma experiência corporal do
sagrado, obrigando o indivíduo a inserir-se ritualisticamente na ordem
cósmica ou divina por meio da participação (cânticos, danças, mitos) no
universo do símbolo. Esta ordem mítica (mais somática que psíquica), onde
o corpo é paradigma de comunicação, difere da ordem significativa ou
racionalista do Ocidente, construída na Modernidade por filósofos,
gramáticos e cientistas. (SODRÉ, 1992: 98)
78
Além dessas questões culturais, o grotesco e as imagens do corpo daí
decorrentes vão percorrer todo o texto da peça de Hermilo Borba Filho. Dentre
outras ocorrências, a presença grotesca se manifesta nas constantes metamorfoses
e representações ambíguas dos personagens. Josefina Minha-Fé, por exemplo, que
chama-se, além deste nome, Josefina Meu-Amor e Josefina Meus-Pecados, tem
feições andróginas:
Logo depois, essa Josefina envolve-se em uma cópula que levará à sua
morte. Em um das cenas mais belas e marcantes de Sobrados e mocambos que, na
YHUGDGH p ³QDUUDGD´ HP XPD UXEULFD GD SHoD RV ~OWLPRV PRPHQWRV GH YLGD GH
Josefina são marcados por múltiplas metamorfoses em que as identidades dos
personagens são totalmente embaralhadas, em um jogo de sombras e de máscaras
à luz de velas. Essa ação de encantamento e mistério é uma recriação de outra
peça de Hermilo Borba Filho, Auto da mula-de-padre, publicada em 1948. Tanto no
texto original quanto em Sobrados e mocambos há uma adaptação para o teatro do
mito do folclore brasilHLUR D ³PXOD-sem-FDEHoD´ TXH p WLGD FRPR XPD PDOGLomR j
mulher que seduz um padre, e que também se confunde com histórias de
lobisomem.
Como se vê, Hermilo Borba Filho não deixa de dar voz aos excluídos, aos que
ILFDUDP jV PDUJHQV QRV PRFDPERV GD JUDQGH PHWUySROH ( HVVD ³PDUJLQDOLD´
grotesca protesta como pode, mas de forma emblemática, desta vez contra o
símbolo arquitetônico antagônico aos seus mocambos: o sobrado. De forma
semelhante ao final do episódio Eu, deputado, em Agá, em que os moleques surgem
de maneira frenética em meio a uma festa aristocrática, a turba grotesca de
Sobrados e mocambos vem despudoradamente atacar a norma social e a classe
que os oprime, simbolizadas no sobrado:
80
Interessantemente, apesar de que o mais destrutivo para a estrutura física do
sobrado seria a continuação do apedrejamento, os meninos optam pela caricatura
GRV VHQKRUHV H R ³GHVHQKDU JURWHVFDPHQWH´ (VVHV GHVHQKRV HP FDUYmR QHJUR
nas paredes (provavelmente claras) do sobrado são emblemáticos, já que revelam
no exterior da construção todo o histórico do que se passa no seu interior, gerando
um efeito satírico muito mais forte. Por fim, o mijo abundante é tema amplamente
discutido por Bakhtin, tanto quanto a sua presença crítica nos ritos de carnaval
quanto na literatura de Rabelais, o que insere a obra de Borba Filho nessa linhagem
mais carnavalizada do grotesco na literatura.
2.2 CONTOS
Quanto aos contos, Hermilo Borba Filho foi ficcionista primoroso, e sua trilogia
escrita, já no fim da vida, atesta o nível de excelência ao qual o autor pernambucano
chegou. Os livros O general está pintando, Sete dias a cavalo e As meninas do
sobrado ± que ele preferia chamar de novelas ± são fruto de um controle total da
técnica da escrita e conhecimento profundo da arte popular. Fortemente inseridos no
realismo mágico e nas narrativas populares do cordel, do teatro de marionetes, dos
autos e mistérios, os textos também contêm elementos do grotesco. Para
81
destacarmos apenas alguns trabalhos, analisaremos os contos que deram os títulos
dos livros acima, além de O arrevesado amor de Pirangi e Donzela ou o Morcego da
meia-Noite, contido no volume O general está pintando.
Com essa morte grotesca, em que o homem não só é morto por um galo, mas
TXHWHPVHXSrQLV³SLQLFDGR´TXDVHTXHYLQJDWLYDPente por galinhas ² lembrando
Bakhtin e seus despedaçamentos da carne humana ² o humor bizarro se instaura
nas ações de As meninas do sobrado. Já no dia seguinte ao enterro, surge um galo
preto enorme com a mesma belida de Bernardo no olho direito. Esse galo preto,
após matar o galo Tombador, vai iniciar toda uma sequência de bestialismos ou
zooerastias na história, o que é uma das características de As meninas do sobrado:
[...] e depois subiu a escada de trás para ficar se roçando nas pernas de
Amália o dia todo, bota esse galo pra lá, o galo voltou na roçagem, ficava
bicando a porta do quarto quando Amália a porta do quarto fechava, té que
Amália terminou botando-o no colo, Amália sem pranto mas de luto fechado,
a partir de então todas as seis horas da matina na missa com a
Viscondessa, muito da calada dentro do sobrado, dormindo com o galo
preto [...] (BORBA FILHO, 1976a: 4)
83
[...] (BORBA FILHO, 1976a: 5) E, mais uma vez, a metamorfose já se instala antes
de ser efetivada, nas deixas sutis que o narrador vai realizando, na relação entre o
³ELFR PXUFKR´ H D LPSRWrQFLD GH %HQWR (VWH DSyV PRUUHU GH GHVJRVWR VHWH GLDV
depois reaparece:
84
Após esse flerte fulminante, logo Bonifácio teve acesso ao sobrado para
cortejar Amélia e ser interrogado pela Viscondessa. Mesmo ela arrancando todos os
VHXV VHJUHGRV GH FRQWUDEDQGLVWD H VHX SDVVDGR GH ³Sp-UDSDGR´ D XQLmR VH
FRQVXPD GH PDQHLUD GLVFUHWD HP XPD ³FHULP{QLD tQWLPD R EDVWDQWH SDUD DXWRUL]DU
Bonifácio a arrancar os tampos da prendada Amélia, que gritou a noite toda para
escândalo de todo o Pátio GR 0HUFDGR´ %25%$ ),/+2 D: 6). Essa
suscetibilidade de Amélia ao prazer e à dor acaba por matá-la em apenas quinze
dias. Bonifácio enlouquece e se retira para um sanatório, sendo este marido o único
que não vem a morrer nessa narrativa de Borba Filho.
O ruço tomou-se de amores por Adália e Adália pelo ruço, dando-lhe torrões
de açúcar mascavo na palma da mão, espigas de milho, capim-gordura
alisando-lhe a anca, o ruço armado que só se vendo, as irmãs sabiam mas
fingiam que não sabiam e viam Adália chamar o ruço para um recanto mais
afastado, atrás de uma touceira de bananeiras, e tome mão e o ruço
revirava os olhos e depois era bem uma xícara das grandes que dele
espirrava, isto às vezes duas três vezes por dia, só que nunca viam Adália
85
como se satisfazia, porque que se satisfazia, se satisfazia. (BORBA FILHO,
1976b: 9)
Por fim, As meninas do sobrado encerra-se com mais uma tragédia, seguida
de eventos mágicos com os maridos: Benedito é assassinado de maneira brutal
pelos próprios bichos do jogo:
O ciclo mágico completa-se com uma ceia de Natal em que os espectros dos
maridos e de Amélia comparecem e vão para os quartos com as esposas, com
exceção de Amélia que ainda tem o marido enlouquecido e internado. Após alguns
meses, Amália, Anália, Adália e Adélia começam a realizar partos múltiplos, em um
final grandioso:
Amália punha ovos e dos ovos só saiam galos, galos de todos os tamanhos
e de todas as cores [...] Anália, também ovos, ovos pequeninos, e dos ovos
pequeninos só brotavam canários, mas canários de briga [...] Adália pariu
alfenins branquinhos, deliciosos, todos os alfenins em forma de cavalinhos
pareciam correr; mas foi de Adélia que surgiram todos os bichos:
avestruzes, águias, burros, borboletas-gigantes, cachorros, cabras,
carneiros, camelos, cobras-de-veado, coelhos [...] (BORBA FILHO, 1976b:
14)
Enfim, com essa profusão de vida a borbotar dos ventres das meninas do
sobrado, é possível ver, nessa belíssima narrativa de Hermilo Borba Filho, um
grotesco de aspecto positivo, ao modo como Bakhtin via o realismo grotesco. Ou
seja, um grotesco relacionado ao ciclos de vida, morte e renascimento, de corpos
em permanente mudança e renovação:
Como se vê, para Sonia Van Dijck, o diálogo da obra de Hermilo Borba Filho
com a arte de Bosch é algo que também é notado. Além disso, para o estilo satírico
de Borba Filho, é bastante oportuno apresentar os filhos de um latifundiário
caracterizados por deformações e associados com os pecados capitais, ou seja, a
soberba, a avareza, a luxúria, a ira, a gula, a inveja e, por fim, a preguiça. Mas, além
de tratar desses sete pecados capitais associados a um latifúndio, Borba Filho
também explora o mundo mágico da cultura popular que, no caso de Sete dias a
cavalo, tem a presença marcante do folguedo das Cavalhadas ou Mouros e
Cristãos, que vêm a ser os jogos de origem Ibérica ² ainda presentes no Brasil ²
que encenam as lutas da Reconquista.
Sete dias a cavalo apresenta-se como uma alegoria marcada pela cultura
popular e seguindo as práticas das narrativas populares, repletas de repetições
acrescidas de pequenas variantes: o Fiscal e Neco Graveto partem de cada
engenho sempre às quatro horas da manhã, em ponto, e seguem em direção ao
próximo engenho, sempre encontrando no caminho uma luta encarniçada e grotesca
entre dois exércitos, como no primeiro dia:
Dizem que não bota dinheiro guardado fora de casa, é tudo aí mesmo, e
toda noite, moeda por moeda, só pagando bem aos seus capangas que
guardam o tesouro. Come pouco vive quase nu, nunca se soube de ajuda a
ninguém, rói as unhas, não dá nem um café com língua, vai se enterrar com
a fortuna e penar na eternidade toda. (BORBA FILHO, 1975: 135)
-iQRWHUFHLURHQJHQKRGHQRPH³2OKRG¶ÈJXDGD3DQDVTXHLUDV´RVYLDMDQWHV
são recebidos por um personagem grotesco consumado, um coronel chamado
³Abecê´PDLVFRQKHFLGRSRU³$EHFr-7ULSp´XPDQmR de pênis avantajado e que vive
na luxúria HP PHLR D WRGR R WLSR GH EDFDQDO ³OLELGLQRVR impenitente e contumaz,
anão por natureza e pela maldade de Deus, esquisito, dizia, vai ver, aquele tico de
gente possuidor de assutadora estrovenga, daí o apelido´ [...] (BORBA FILHO, 1975:
135). Em determinado momento, as ações no engenho tomam também o rumo mais
hilário, nas descrições das bacanais do coronel anão. E essas bacanais começam
com uma imagem das mais grotescas, com um ritual bizarro encenado por ratos
numa gaiola:
90
vociferar impropérios, sem praticamente deixar os convidados falarem, o que, mais
do que nunca, simboliza a impossibilidade da tarefa do Fiscal. Na descrição de Neco
Graveto:
[...] ele é assim desde que eu entendo de gente, nasceu de mau jeito, tem
raiva permanente, quando menino era um pavor, depois que cresceu é um
horror, briga por tudo e com todos, de manhã, de tarde e de noite, é insone,
briga até com o nome. BORBA FILHO, 1975: 139)
Neste engenho, mais uma vez o Fiscal entra na rotina dos filhos do Patriarca,
sem poder exercer seu ofício, nem ao menos emitir alguma opinião. Após um
banquete surreal para quase uma centena de pessoas, o Fiscal sai mais uma vez de
mãos vazias.
O Fiscal, mais uma vez sendo enrolado, ainda assiste a um recital de piano
da esposa do octogenário Quilidônio-Lebracho, uma menina de treze anos que,
segundo o velho, era a única coisa que ele não invejava de ninguém, ou seja, uma
esposa ainda púbere.
92
Para um conto publicado em 1973, ou seja, no auge da ditadura militar no
Brasil, a narrativa vai arriscada e sutilmente construindo a imagem grotesca e
patética dos militares, com pequenas animalizações das figuras satirizadas, como
um sargento que late como um buldogue e que, mais à frente, chegará a babar de
prazer para o general, sem falar na adjetivação dos soldados do exército como
³YHUGH-SDSDJDLRV´ que repetem mecânica e impensadamente os movimentos
ordenados pelo sargento.
Como se vê, nessa manobra militar satirizada, os fuzis são trocados pelos
pinceis e tintas e a crítica segue na caracterização quase pejorativa dos
³VROGDGLQKRV´FRPRVHIRssem não soldados guerreiros, mas apenas brinquedos na
engrenagem do poder.
93
[...] o menino rompeu a barragem, desceu embalado de ladeira abaixo, justo
quando estava a dois metros do General a bala alcançou-o nas costas, o
jato de sangue esguichou na tela, o General voltara a concentrar-se e, com
uma pincelada, aproveitou aquele vermelho inesperado para o seu
crepúsculo, o sorriso abrindo-se, ausente do corpo e do brado. (BORBA
FILHO, 1973: 104)
[...] veio o perfume, é jasmim, falou mesmo, era mais do que jasmim, era
perfume de tudo, só falou jasmim porque jasmim também continha, outros
cheiros, um cheiro só, mistura de cravos, de rosas, da flor do bogari,
adivinhava, intuía, pelos ossos, pela pele de corpo inteiro, sinal nas partes,
era perfume de mulher, quando viu foi aquilo que não viu, já estava
envolvido, sentia que as mãos eram dentro das suas costas, que ela, se ela,
estava toda dentro dele [...] (BORBA FILHO, 1973: 39).
Pirangi chega perto da loucura em noites de amor com essa aparição. Mas,
sempre pela manhã, após as visitas do morcego, a mendiga chamada Donzela
surge para dar bom dia, o que sempre gera asco no vigia, embora já seja insinuado
pela narrativa que o morcego, a aparição e Donzela são a mesma pessoa:
94
Após quinze noites, o morcego e a presença feminina desaparecem ² e com
elas Donzela ² o que leva um apaixonado Pirangi ao relapso e ao descontrole com
o seu trabalho de vigia e operador do sino das horas. Isso causa grande transtorno
para a pequena cidade, o que leva o povo a protestar junto ao prefeito. Diz o
narrador:
[...] noites cada vez mais longas depois das meias, quem estivesse doente,
velando defunto, na insônia, parindo ou fornicando poderia notar, num
átimo, que o sino não batera as duas ou as três ou as quatro, conforme
ensimesmamento maior de Pirangi, já advertido pelo administrador do
mercado que de pessoas várias ouvira reclamações [...] (BORBA FILHO,
1973: 40-41)
os homens diziam precisou ter estômago, com aquela sujeira, o fedor acre,
o riso dos dentes sujos, devia ter gosto de coco podre no mínimo; apareceu
uma beata que convenceu Donzela a banhar-se, no meio do banheiro ela
nua, outras beatas em derredor, exalando ovos podres, ato de caridade,
esfrega daqui esfrega dali, todo o cuidado com a barriga, quanto mais
botassem mais água suja saía, o sujo dos anos todos, melhor esfregar com
sabugo de milho, mais melhor com caco de telha, Donzela ria, achava
gostoso..." (BORBA FILHO, 1973: 42).
[...]um menino de dez anos contou para quem quisesse que vira Pirangi, o
vigia, de capote e rifle atravessar o pátio do mercado, encontrando-se com
Donzela, a quem dera a mão, subindo a ladeira do Matadouro, andando
para o horizonte, dois toquinhos no lusco-fusco. (BORBA FILHO, 1973: 45).
22
In particular, the impressive amount of work across the discourse of carnival, or more properly, the
carnivalesque ʹ much of it in relation to the work of Bakhtin ʹ has translocated the issues of bodily exposure
and containment, disguise and gender masquerade, abjection and marginality, parody and excess, to the field
of the social constituted as symbolic system.
96
campo artístico específico, nas artes pictóricas ou na literatura, mas tem o trânsito
estético que o permite se infiltrar em tantas outras discussões e espaços da
sociedade moderna.
Figura 10 Aphrodite, Capitoline, de Jacqueline Hayden
Do alto do tanque espreitei o abismo redondo [...] e eu vi, vi com estes olhos
que a terra há de comer, figuras escuras ajoelhadas comendo os próprios
joelhos, cada uma com um urubu na cabeça e uma cruz de fogo às costas,
aos poucos perfilando-se, nuas, sem sexo, desprendendo um odor de
santidade e o desespero na cara, as bocas sem som transmitindo-me sua
virtude e sua falta de fé, num grito mudo que varava igrejas abandonadas e
santos de pedra. [...] (BORBA FILHO, 1994: 74)
98
símbolos religiosos cristãos são apresentados na sua forma mais sombria. Mais à
frente, na continuação da visão, as sugestões de intertextualidade com as artes
pictóricas são mais claras:
Mas, além dessas visões, o grotesco surge neste romance de uma forma em
que o bizarro anda de mãos dadas com o riso, consumando o que muitos
pesquisadores sempre atribuem a uma configuração perfeita do grotesco, que causa
choque e desconcerto na recepção das ações. Um exemplo disso é a festa de
batizado grotesca de uma cachorrinha, numa festa que congregava a sociedade
recifense e altos funcionários de empresas de petróleo. Hermilo descreve com
acidez essa sociedade recifense e os estrangeiros encenando, alegremente, uma
paródia de batismo, em uma espécie de ritual pagão:
99
que se fazia de padrinho pajear a gringa-madrinha portadora do objeto do
batismo: uma cachorrinha felpuda e preta, cujo nome soube por um
cochicho de Dolly:
Essa cena, ambientada nos anos 1940 do Recife, remete, com surpreendente
similaridade, a alguns acontecimentos na sociedade brasileira, na aproximação do
século XXI, e que chamou a atenção de Sodré e Paiva, em ensaio sobre o grotesco:
- Agora, vai ver sua especialidade. Sabe qual é? Seu esfíncter vaginal
morde mais do que uma boca cheia de dentes. Quando a penetro e ela o
contrai, por mais esforços que faça não consigo retirar o membro.
Por fim, na passagem que dá título ao romance, Hermilo tem sua visão da
grande vagina suspensa no ar, vista do fundo de um navio que é levado para o alto
mar com prisioneiros políticos. Após semanas vivendo em uma espécie de navio
negreiro, ou, como Jonas, em um ventre de baleia, em meio a torturas, estupros e
assassinatos, o herói avista a redenção dos justos que prenuncia seu renascimento,
após grande provação:
[...] mas eu me vali do meu ser alado e logo estava na coberta, limpo, puro,
cristalino, sob uma fatia de lua e milhões de estrelas. Da Constelação de
Orion destacou-se uma concha semelhante a uma ostra, ornada de pelos
pretos na parte superior, os lábios levemente entreabertos, rosados,
úmidos, desceu e pairou sobre o mar, o espigão se destacava na noite,
olhei-a e reconheci a concha cósmica, mais para baixo, anjos, tinha um
buraco profundo e então eu vi, vi, que para aqueles que iam nascendo era a
porteira do mundo. (BORBA FILHO, 1994:152).
Sobre esta visão, Geoffrey Harpham nos fala da relação aparentemente óbvia
do grotesco com as grutas, com as cavernas, mas que carrega essa alegoria do
útero materno e de renovação. Harpham, dialogando com o pensamento de Mircea
Eliade, fala dessa experiência como um rito de iniciação, de morte e renascimento
do herói, a partir da
͞'ƌĞĂƚDŽƚŚĞƌ͗͟ƚŚĞŚĞƌŽŽƌŝŶŝƚŝĂƚĞ͞ĚŝĞƐ͟ƚŽŽƚŚĞƐƚĂƚĞŽĨďĞŝŶŐďLJƵŶĚĞƌƚĂŬŝŶŐĂ͞ƉĞƌŝůŽƵƐĚĞƐĐĞŶƚ͟ƚŽĂ
23
primal condition, figured as the belly of the whale, the womb of the Mother, or, later, the jaws of hell. As the
mouth or uterus of Mother Earth, tŚĞ ĐĂǀĞ ŝƐ ŝŵĂŐŝŶĞĚ ĂƐ ;ŝŶ ůŝĂĚĞ͛Ɛ ƉŚƌĂƐĞͿ Ă vagina dentata ʹ a concept
101
Portanto, a vagina dentata de Eliade ² ou a porteira do mundo para Borba
Filho ² parece iluminar bastante a presença grotesca nesta visão, de fato originária
das grutas do navio, de seu ventre, em que Hermilo resiste e renasce dos porões da
tortura para uma nova vida, a partir desse rito de passagem, como ele diz:
Por fim, entendemos que A porteira do mundo tem uma presença muito
intensa do grotesco, e que se manifesta em praticamente todas as suas vertentes.
Essa presença do grotesco se fará cada vez mais no universo hermiliano, como no
restante da tetralogia, e chegará a seu ápice nos últimos trabalhos do escritor
pernambucano, na peça Sobrados e Mocambos, nos romances Agá e Os
ambulantes de Deus e na trilogia de contos. Quando abordarmos, no terceiro
capítulo, o grotesco e as imagens do corpo no romance Agá, ainda retornaremos a
esse romance importante, A porteira do mundo, já que ele também prenuncia, de
maneira mais explícita, a relação entre o sexo e o sagrado na literatura de Hermilo
Borba Filho. Mas antes vejamos sua obra póstuma, Os ambulantes de Deus, em que
o grotesco também se faz bastante presente.
bristling with threat for us, but one that corresponds perfectly with the ambivalence of the return. After a
dangerous ordeal in a cave which was often ritually transformed into a labyrinth, the hero, born afresh, issued
forth to bestow boons on his fellows.
102
A analogia é realçada com a inclusão ² no início dos cinco capítulos ² de
epígrafes de versículos do livro de Êxodo da Bíblia, livro este também não muito
afeito ao realismo, tal a profusão das pragas fantásticas enviadas por Deus aos
egípcios.
[...] era só o navegar para chegar ali, ao alcance da vista, do outro lado do
rio como dizia na cidade, terras do Paul com casa de farinha, banho de bica,
PDWDGHDUDoiWDFKDVGHPHOHUDVyLVWR´(BORBA FILHO, 1976b: 18).
103
configuraria para o leitor um desconforto e desconfiança quanto a capacidade da
razão em abarcar essa própria realidade: a jangada corre sem sair do lugar; o sol
comporta-se de maneira aleatória, alterando e confundindo noites e dias etc. Mas, a
partir do momento em que os próprios tripulantes não parecem estar perplexos com
as anomalias da realidade, e que se torna claro ² também para o leitor ² que os
tripulantes estão, de fato, mortos, a configuração do Fantástico parece desvanecer.
Isso pelo menos pela ótica de David Roas, GH³$PHDoDGR)DQWiVWLFR´DRUHDO mas
que também se aproxima da definição de fantástico de Tzvetan Todorov:
104
SRU RXWUD SDVVDJHLUD ³'XOFH-mil-KRPHQV´ (VVD FDUDFWHUL]DomR KtEULGD
homem/vegetal, por sinal, vem a ser uma das mais antigas imagens do grotesco,
desde o tempo das escavações do palácio de Nero, em que os ornamentos
mostravam figuras humanas com seus membros confundindo-se com ramagens. Já
o Amigo-urso, em outro momento, não só tem uma cauda animal a nascer em suas
costas, mas metamorfoseia-se em um urso, de fato, vindo, em seguida, a copular
com Dulce-mil-homens, numa relação de bestialidade.
³1LVWROiYLQKDXPDGDVLUPmVGHTXDWURXPHVSDQDGRUFRORULGRHTXLOLEUDGR
bem no meio das costas. Imediatamente as outras meninas correram para
debaixo de uma mangueira, todas formadas, queixinhos levantados, bustos
empinados, posição correta, cantando a república é filha de Olinda alva
estrela que fulge e não finda, a irmã fungando nas pernas delas, Dulce-Mil-
Homens no seu canto, não estava mais chorando, na mão direita uma
lagartixa e na esquerda uma rã-de-parede, jogou-as com nojo,
transformaram-se em pombos e saíram voando; a irmã, sempre de quatro,
se chegou a ela, fungou-a, começando dos pés, foi indo, atingiu os joelhos,
meteu-se embaixo da sua saia e fungou onde não devia fungar [...].
(BORBA FILHO, 1976: 35)
- Je me branle, chérie,
Tu me branles amour,
- É isto! É isto o que sabem fazer: atacar com violência. É este o uso que
sabem fazer das forças.
- Cães é o que são! Cães! Somente isto! Agora estão no poder, mas dia
haverá em que pagarão por tudo o que cometeram. (BORBA FILHO,
1976:86)
107
3. O GROTESCO E AS IMAGENS DO CORPO NO ROMANCE AGÁ
108
masturbadores. Vejamos: Há 3 fenómenos sexuais distintos: (1) a
sexualidade normal. (2) a homossexualidade. (3) a monossexualidade ou
masturbação. (3) contém 3 elementos (A) o Sonho, porque é visionado o
outro elemento da cópula. (B) O desdobramento do Eu, porque o indivíduo
figurará como dois no m[es]mo. (C) O requinte, porque o ato sexual tem de
ser investido de várias coisas para não (...) (LOPES, 1990)
109
Então, quanto a essa origem dos onanistas na literatura, a história de Onã, o
segundo filho de Judá com Sua, e que Gi RULJHP DR WHUPR ³RQDQLVPR´ ²
significando coito interrompido ou masturbação ² já funciona como exemplo da
variedade de significados do onanismo e da masturbação: em sua passagem
meteórica pelas páginas da Bíblia, Onã recebe a incumbência do pai, Judá, para dar
uma descendência ao irmão mais velho de Onã, Er, que fora morto por Deus. Onã,
ao desposar a cunhada, Tamar, desobedece ao pai:
Então disse Judá a Onã: Toma a mulher do teu irmão, e casa-te com ela, e
suscita descendência a teu irmão. Onã, porém, soube que esta
descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía
a mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar
descendência a seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos do Senhor, pelo
que também o matou. (BÍBLIA, Gênesis 38:8-10)
Jean Paul Sartre, ao prefaciar o romance de Jean Genet, Nossa senhora das
flores, também levanta questões semelhantes a Fernando Pessoa e a história de
Onã, quanto aos masturbadores. Como dissemos, a obra-prima de Genet, que fora
ladrão, foi escrita numa cela de prisão, em meio à segunda guerra mundial. Com o
texto escrito em papel para fazer sacolas, o romance tem como herói um
masturbador inveterado e solitário a criar suas personagens, que lhe fazem
companhia nas noites da cela. Sartre, ao analisar o romance, destaca algumas
110
características que ele percebe no ato da masturbação como processo criativo. Ao
falar de Genet, Sartre propõe:
111
um olhar grotesco, em que misturam-se a postura patética do homem adulto a se
comportar (devido a sua posição humilhante de preso) como uma criança embaixo
dos cobertores, uma criança masturbadora. E a presença desse corpo grotesco
acaba por, praticamente, pedir por uma linguagem que também desça ao nível do
FRUSR H GD VLWXDomR RV ³SHLGRV HVPLJDOKDGRV TXH HX OHYR DR QDUL]´ DOpP GH
transgredir, na literatura (suposto local da alta cultura), os registros de bom-tom, da
civilidade e da educação burguesas. Portanto, esse uso da linguagem aproxima
bastante os masturbadores de Genet e os de Hermilo, quando vemos a narrativa
deste último permitir enunciados como:
Embora a comparação aprofundada com Jean Genet não seja o objetivo aqui,
entendemos que Sartre, ao concluir sua análise sobre o masturbador em Genet,
endossa, em parte, nossa visão de a masturbação ser a gênese da literatura
moderna, como a de Hermilo Borba Filho. Escritor e personagem usam a literatura
como forma de sair do ensimesmamento, por meio da literatura. É como se o
masturbador não se contentasse com o prazer da ejaculação solitária: ela precisa
ser compartilhada e espetacularmente apresentada. A fantasia do masturbador,
então, não fica relegada a um quarto ou cela escuros, embaixo das cobertas, pelo
contrário, ela move e engendra a criação verbal:
Foi no quarto do funil, nas noites leitosas, que descobri o pênis. A princípio,
era somente uma cócega agradável, o prepúcio ainda rebelde, certa vez me
excitei tanto que o puxei todo e me banhei em sangue. Por mais que me
batessem na manhã seguinte, nada expliquei. Minhas irmãs criaram uma
lenda: Na noite em que ele sangrou...- Solto o prepúcio, solta a imaginação.
Masturbava-me vezes sem conta e na cama-de-vento, por intuição, varejei
por todas as vaginas pressentidas: da minha mãe, das minhas irmãs, da
negra que ajudava na cozinha, das meninas que conhecia de visitas [...]
(BORBA FILHO, 1974:92).
113
Interessante é notar que o controle familiar sobre o corpo do pequeno masturbador
assemelha-se quase ao de um Estado autoritário sobre os subversivos ou
resistentes, quando Agá confessa acimaTXDVHGHIRUPDF{PLFD³3RUPDLVTXHPH
EDWHVVHP QD PDQKm VHJXLQWH QDGD H[SOLTXHL´. Além disso, esse Agá agente
funerário, além de masturbador, não só anda à margem do controle familiar mas, na
VXD IDQWDVLD LQFHVWXRVD LQIULQJH WDEXV GRV PDLV DQWLJRV ³YDUHMDQGR´ GHVGH DV
amigas e conhecidas até sua própria mãe e irmãs. Portanto, para esse pequeno
onanista e marginal, o único empecilho à sua imaginação era apenas seu próprio
corpo, no caso, todo o problema concentrava-se no prepúcio. Como diz Agá, sobre
VXDV QRLWHV ³OHLWRVDV´ GH VHX SUySULR VrPHQ URPSLGR R SUHS~FLR ³VROWD D
LPDJLQDomR´ R Tue o aproxima aos desdobramentos de Fernando Pessoa e de
Jean-Paul Sartre sobre a produção do sonho, da fantasia, no masturbador. Essa
imaginação solta o incita a uma paródia com as artes plásticas, rebaixando-as de
maneira grotesca em sua linguagem, como atestam suas confissões:
114
esse corno tem o vício de Cheira-Província arrebento ele de pau. (BORBA
FILHO, 1974: 93).
Por fim, talvez em sua versão mais hiperbólica de um Agá, o Eu, Lírico-
Trágico-Cômico-Pastoral, o anti-herói hermiliano surge como o masturbador-mor de
todas as suas versões. Este Agá apresenta-se como um homem já muito além dos
limites da sanidade, e que derrama-se numa narrativa delirante em que há de tudo,
desde elementos (verdadeiras colagens de textos antigos) dos teatros de bonecos a
delírios homicidas em um hospício. Ele sofre, como vários Agás, diversas
metamorfoses que vão desde a sua aparição como um boneco de marionete até
assumir a forma de um cavalo. Mas, como personagem grotesco, além desse
aspecto de animalidade, ele não deixa de ter suas características de deformação e
monstruosidade, como ele se descrevH HQTXDQWR ERQHFR ³6RX FDOYR WHQKR XPD
115
barriga enorme, uma corcunda e um órgão sexual monstruoso. Sou herói QDFLRQDO´
(BORBA FILHO, 1974:161).
Outro dia, deflorei uma menina que podia ter uns dez anos, sem pelos. Vou
contar: eu estava me masturbando, aqui, no meu lugar favorito, quando ela
surgiu na outra margem, acocorou-se e, sem calcinhas, pôs-se a mijar.
Aquilo me excitou como nunca na vida. E aconteceu aquela coisa
extraordinária: meu pênis foi crescendo, encompridando, chegou aos meus
pés, continuou a crescer, atravessou o rio [...] meu pênis a ergueu, a
princípio alguns centímetros do solo, depois metros, quando dei de mim ela
estava encarapitada naquilo que poderia ser confundido com a copa de um
coqueiro. [...] A menina se divertia às pampas e eu ficava cada vez mais
angustiado porque o que me interessava era ejacular. Não sabia o que
fizesse. Mas, de repente, tudo se apresentou fácil: subi pelo meu membro e
quando cheguei ao ponto exato em que ele estava enterrado na xoxota da
menina forcei um dedo, alcancei o freio de glande, massageei-o. Quando
senti que o orgasmo ia chegar, desci a toda pressa e nem bem me sentara
o sêmen explodiu como uma gêiser, durante um instante sustentando a
menina no alto de repuxo, ela jogando beijos para todos os lados [...]
(BORBA FILHO, 1974: 173-174).
116
Ainda assim, nessa cena das mais bizarras, é possível ver o humor grotesco
se insurgir, já que tudo leva a crer que o pênis do masturbador não passa de um
³SDX-de-VHER´ HP TXH HOH H D JDURWD FRPHPRUDP D IDoDQKD GH HVFDOi-lo. O
PDVWXUEDGRUFRPHPRUDHMDFXODQGRDPHQLQD³MRJDQGREHLMRVSDUDWRGRVRVODGRV´
É uma cena sórdida que poderia até gerar um processo por incitação à pedofilia,
mas que é uma imagem que não se afasta muito da cultura popular e da praça
pública, aspectos tão presentes no grotesco e na literatura de Hermilo Borba Filho.
Não por acaso, em seus últimos fios de consciência, Agá percebe que suas
artimanhas estão se esgotando e que a sociedade já percebe que ele é um
desviado, um delinquente que precisa ser normalizado ou retirado de circulação, o
que o faz um frequentador de LQWHUQDo}HV³1DYHUGDGHHVWRXVHPWUXQIRV$VYLV}HV
crescem e fala-se em me mandarem para algum lugar sinistro do Recife. Já estive
nesses lugares algumas vezes, deles me recordo muito vagamente, mas sei que
nada de bom traziam para mim. É, estou sem truQIRV´%25%$),/+21974: 174-
175).
No capítulo de Agá, Eu, hermafrodito, Hermilo Borba Filho retoma seu anti-
herói grotesco de A Porteira do Mundo, que então frequentava o baixo meretrício do
Recife, nos anos 1940, mas que, em Agá, ressurge em uma América Latina
dominada por governos totalitários, após a metamorfose de um jovem atleta em um
hermafrodita. Este transforma-se em uma espécie de prostituto (a) de luxo, um
sedutor de políticos, latifundiários, entre outros ricos e poderosos, propiciando
constantes inversões e rebaixamentos de autoridades. Ao cabo de suas peripécias,
117
o hermafrodita, quase sem querer, assume a condição de guerrilheiro em uma causa
SRUDTXLORTXHHOHFKDPDGHDV³PLQRULDVHUyWLFDV´HQmRVyPDVGRV³SHGHUDVtas,
as lésbicas, os negros, os cáftens, os hippies, os ateus, os párias, os voyeurs, os
poetas, os ladrões, os jovens, os tQGLRV´ (BORBA FILHO, 1974: 142; 159). Com
essa faceta de Agá, Borba Filho atualiza uma tradição de metamorfoses míticas e
literárias, e traz para o Séc. XX uma personagem rebelde e também simbólica do
anseio pela totalidade, na fusão do masculino e do feminino, e que pode assumir
uma simbologia de rito de passagem e do casamento, o Hieròs Gámos, um
androginismo atenuado, ou o casamento do herói que é coroado ao final de suas
aventuras (BRANDÃO, 1987: 33-41). Daí que, no desfecho de suas aventuras, o
hermafrodita encontra sua recompensa, uma companheira, de nome Eva, que o
completa, em franca intertextualidade com o Gênesis bíblico. Por fim, o hermafrodita
fecha seu ciclo, ao sofrer mais uma metamorfose e retornar a sua condição original.
118
é o caso dele, ou seja, aqueles personagens transformam-se em humanos de sexos
diferentes, vivendo um momento de cada vez, mas não têm o poder e força do duplo
sexo simultâneo do Agá, o que Junito Brandão vem a chamar, no caso das
PXGDQoDV GH XP VH[R HP RXWUR GH ³WUDYHVWLVPRV´ RX ³DQGURJLQLVPR DWHQXDGR´
(BRANDÃO, 1987: 35).
Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o
masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que
tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim
circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem
semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor
terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os
deuses, e o que diz Homero de Elfialtes e de Otes é a eles que se refere, a
tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses.
(PLATÃO, 1972 :29).
O próprio Agá narra como se deu sua criação, sua metamorfose, realizando
um intertexto com o Gênesis bíblico. Isso acontece em meio a um sonho, na noite de
31 de março de 1964, realizando também uma alusão ao dia do golpe militar no
Brasil. A diferença da criação em Agá para o Gênesis é que o hermafrodita é
autocriado. Ele mesmo, combinando seus dois sexos, germina o terceiro gênero que
os sintetiza. Dessa forma, a cada passo da autocriação do hermafrodita, ele recita a
e[SUHVVmR ³H YL TXH HUD ERP´ QD SULPHLUD SHVVRD R TXH QR *rQHVLV p QDUUDGR QD
WHUFHLUD SHVVRD ³Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom´ (BÍBLIA,
Gênesis 1:31):
Apanhei uma goiaba, abri-a, olhei sua polpa vermelha, colei-a entre minhas
coxas e vi que era bom. Depois, colhi um pepino, colei-o mais acima da
goiaba aberta, e vi que era bom. Agarrei também dois pequenos mamões,
120
maduros, grudei-os à altura do tórax e vi, refletidos no rio, que eram bons.
Soprou, então, um vento morno durante algum tempo, enquanto eu
permanecia de olhos fechados, e quando abri era a lua, e à sua luz vi que
meus cabelos haviam crescido, que os pelos do meu corpo haviam
desaparecido, com exceção do triângulo, que todo eu arredondara, carnuda
(o). (BORBA FILHO, 1974: 151)
Sou Hermes alado, bipartido, ao mesmo tempo jogo com a letra o e com a
letra a para indicar o meu verdadeiro estado. A princípio, era uno, mas ao
juntar-me com Afrodita fundi não só os nomes, mas a capacidade de
fecundar e ser fecundado, e até mesmo reproduzir sem ato externo de
geração [...] (BORBA FILHO, 1974: 142)
122
Devido a esses atributos de beleza, o hermafrodita torna-se um participante
assíduo nas altas rodas do mundo político. E é num trabalho como prostituta
HVSHFLDOSRUWDGRUDGHXPD³H[FHomR´FRPR$JiTXDOLILFDVHXKHUPDIURGLWLVPRTXH
ela ID]VXDSULPHLUD³YtWLPD´XPODWLIXQGLiULRTXHJRVWDYDGHQRYLGDGHVQDFDPD E
isso tudo se dá após o hermafrodita ter sido aprovado para o trabalho em um
³FRQFXUVR´ GH DQRPDOLDV R TXH PDQWpP R SHUVRQDJHP hermiliano tão participante
do universo grotesco e seus circos de horrores e de freaks. É importante perceber
que a subversão do hermafrodita atinge especialmente a posição de controle do
macho dominador. Os homens que ele seduz são representados com metáforas
grotescas que ressaltam o lado animal, com os machos e seus membros priápicos
³GH XPD JURVVXUD GHVFRPXQDO H GH XP FRPSULPHQWR IRUD GR FRPXP´ %25%$
FILHO, 1974: 149). Essa qualidade derivada de Príapo, o deus da fertilidade grego,
que é sempre representado nas artes pictóricas (Figura 13) com o seu pênis enorme
e ereto, parece garantir a segurança e o domínio de virilidade aos homens, que não
suspeitam das tramas do hermafrodita, que sempre planeja inverter, literalmente, as
posições de controle e domínio na cama.
Figura 13. Príapo
Após essa descrição de sua vítima, Agá apresenta sua artimanha sexual, que
é sempre a mesma: seduz o macho com o lado feminino derivado de Afrodite para,
em seguida, contra-atacar a vítima com o lado astuto e masculino de Hermes, com o
pênis que era sempre preso e disfarçado por um elástico cor de pele. A narrativa
assume um tom abertamente humorístico, o que torna a ação do hermafrodita tão
classicamente grotesca: uma cena risível e bizarra com um humano portador daquilo
que seria uma anomalia física, que exerce atração e repulsa ao mesmo tempo, que
submete um poderoso a um situação de inversão política (de iniciativa e comando
na cama) e, literalmente, geográfica, saindo de baixo do macho para subjugá-lo por
cima. A cena risível é narrada por Agá:
[...] soltei o elástico. Meu membro, que não se comparava com o dele, mas
era um instrumento bastante respeitável, deu um pinote como um potro e
bateu rijo contra o braço do homem. Ele recuou como se houvesse sido
picado por uma víbora. Imediatamente agarrei sua mão e levei-a ao meu
pênis. No primeiro instante, comicamente, ele apalpou para se certificar do
fenômeno, sem acreditar no que estava fazendo. De repente, soltou-o,
sentou-se na cama, gritou: Cruces! Es tu nada! ± quis levantar-se, mas eu o
detive, abraçando-o, colando minha boca ao seu ouvido, murmurando: Soy
yo, querido, hombre y mujer, al mismo tiempo, em el mismo cuerpo. Todo
eso para usted. [...] Aproveitei o momento da estupefação, da atração e da
repulsa, do inusitado, do assombro, devagarinho, com palavras brandas [...]
fui virando-o, de costas, para mim. (BORBA FILHO, 1974: 150)
Segundo Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002), esses anos, a partir de 1965,
são considerados o segundo momento da TV brasileira, aquele em que a tecnologia
começa a realmente chegar aos lares brasileiros, com a abertura de créditos para
compras de aparelhos de TV e a expansão da oferta de imagens em todo o país:
Por fim, concluindo com essa modalidade que Sodré e Paiva chamam de
³FKRFDQWH´ RV DXWRUHV D FRQFHEHP FRPR uma variante que seria puramente
provocatiYDH³FRPLQWHQo}HVVHQVDFLRQDOLVWDV´UHDOL]DGDGHPDQHLUDPDLVJUDWXLWD
de forma mais embrutecedora, o que seria uma característica dominante nos
programas de TV. Quanto a esse aspecto puramente sensacionalista, a narrativa de
Agá atualiza-se, quatro décadas depois, em programas como o de Fausto Silva, o
³)DXVWmR´RXQRDLQGDFRQWHPSRUkQHRGHHermilo Borba Filho, Sílvio Santos e, por
ILP QR SURJUDPD GR DSUHVHQWDGRU &DUORV 0DVVD R ³5DWLQKR´ (VWH ~OWLPR
ironicamente, reveste-se das características mais marcantes do grotesco, ou seja, é
um ser humano, um homem que é, ao mesmo tempo, um roedor, um rato que atiça
o auditório com um show de aberrações e pancadarias que são aplicadas, inclusive,
nos próprios assistentes. Portanto, ao falarem sobre a atualidade do grotesco na TV
brasileira (e que não é exclusividade nossa, já que a TV americana também é
carregada do grotesco), Sodré e Paiva destacam:
128
controlado, prendendo essas massas a um ciclo viciado e sem progresso. Por outro
lado, Hermilo Borba Filho, na sua paródia, apresenta o mesmo grotesco como uma
espécie de contraveneno que desmascara a manipulação dos meios de
comunicação, especialmente através do meio televisivo.
129
³,672e0(8&2532´48(e'$'23259Ï6725785$(6$&5,)Ë&,2
EM AGÁ
130
No princípio do romance, o protagonista Agá, como um herói cômico
moderno, apresenta como se dá a gênese do seu tipo, ou seja, ele é um herói de
ocasião. Para ele, o herói é feito no momento em que é cobrada sua participação
nos eventos mais dramáticos, e não por um valor moral intrínseco a sua
personalidade. E ele, para tentar demonstrar alguma coragem que o qualifique,
desdenha dos ditadores, mas já lembrando com temor dos métodos de suplício para
os que se rebelam, enumerando parte do rosário de torturas que desfilam pelas
páginas do romance:
Foi farda me cago. Foi bala, me cago. Foi faca, me cago. Tenho um
profundo respeito pela eletricidade, já que ela me dá desde o gelo para um
Martini bem seco às queimaduras na minha querida glande nestes tempos
onde não se deve pensar quanto mais escrever ou falar. Mas de repente me
convenço que, à minha maneira, sou um Agá como foi meu bisavô e cago
para todos os ditadores. Na hora, veremos. Não será pior a traição da
mulher a quem se ama do que um choque elétrico? Muito pior a traição ao
semelhante do que o pau-de-arara? Muito pior ainda a sufocação do
pensamento, em palavras orais e escritas, em atos, do que o mergulho num
barril de óleo de automóvel? Ninguém sabe quando tem ou não vocação
para mártir. Nunca se faz um mártir por antecipação. (BORBA FILHO, 1974:
19).
131
espiritual, em um mosteiro no alto da cidade de Olinda. Devido a esse seu caráter
compassivo, neste capítulo, e embora tenha sido torturado apenas de forma
psicológica, o que já não é pouco, ele tem a oportunidade de se irmanar com os que
são esmagados em seus corpos por um Estado autoritário e impiedoso para com os
que se rebelam e resistem.
Outubro: Fui interrogado vezes sem conta e, de cada vez, em pé, durante
horas e mais horas. Chamavam-PHGH³RSDGUHFRPXQLVWD´HHXVDELDTXH
não estava só porque se referiam a RXWURV ³SDGUHV FRPXQLVWDV´ )XL
ameaçado, mas não torturado, isto é, torturado fisicamente. De cada vez
que era chamado precisava lançar mão de todas as minhas forças para
lutar contra o medo físico que de mim se apossava, mas graças a isto
cheguei a compreender, pela primeira vez, o sacrifício dos primeiros
cristãos, pois na verdade consegui separar o corpo da alma. Os dois jamais
chegaram a tremer juntos. (BORBA FILHO, 1974: 57).
132
posicionar em defesa dos oprimidos, naquele momento conturbado e violento da
história do Brasil. Então, na véspera do golpe militar, o Agá padre faz um sermão em
que ele cita o profeta Amós e a brutalidade sofrida por um estudante baleado na
coluna (o que poderia remeter ao atentado a Candido Pinto, presidente do DCE da
UFPE, em 1969, e que o deixou paraplégico). Logo após à missa, ele recebe a visita
de industriais que frequentam sua igreja, protestando quanto ao teor inconformado
GRSDGUHVHJXQGRHOHV³LQFLWDQGRRVSDURTXLDQRVjUHYROWD´%25%$),/+2
51). O padre então escreve em seu diário, criticando o cristianismo domesticado e
pacífico da burguesia:
Após o golpe militar, esse seu engajamento acaba por levá-lo, como preso
político, para os porões da repressão da ditadura. Nesse calabouço da tortura, a
narrativa assume a ambiência mais macabra e grotesca do romance, tal o caráter
infernal e inumano que envolve o local. O corpo humano também sofre as agruras
que poderiam frequentar qualquer quadro de Hieronymus Bosch ou Pieter Brughel e
suas representações do inferno:
136
linguagem, a imagem de seu corpo. Assim, quando o preso é despejado no chão da
cela, o padre pode dizer:
Foi espancado mais cinco madrugadas seguidas, cada uma lhe tirando a
vida aos poucos. Havia um propósito geográfico: primeiro ficou sem as
orelhas, depois sem o bico dos peitos, em seguida com as mãos partidas,
de outra com os testículos esmagados, por fim com as pernas quebradas.
(BORBA FILHO, 1974: 64).
137
Além dessa visada fisiognomônica, ordenada em lista, a anatomia também
coopera na racionalização do olhar, devido a sua escrutinização do corpo, suas
enumerações dos órgãos, dos caminhos das correntes sanguíneas, o que colabora
na naturalização da imagem do homem, dissociando-o de sua aura sagrada ou
misteriosa. E essas enumerações fisiognomônicas e anatômicas seguiam uma
lógica estabelecida em longa tradição: de cima para baixo. Partia-se da parte
superior do crânio, descendo analiticamente para o restante do corpo. Portanto, da
mesma forma como se dá na fisiognomonia, essa enumeração assemelha-se ao
percurso escolhido pelos torturadores do prisioneiro, como na passagem citada mais
acima, partindo do alto do corpo (as orelhas), seguindo descendentemente até as
pernas. Mas, coincidentemente, o narrador é um anatomista, um ex-estudante de
medicina que também percorre o corpo do torturado com interesse, traduzindo ²
através de seu diário ² o corpo em linguagem, em literatura. Jean-Jacques
Courtine, ao finalizar sua análise das classificações e ordenações fisiognomônicas,
propõe como poderiam ser feitas essas conversões simbólicas de corpo em
linguagem, o que parece avalizar essas possibilidades interpretativas:
Mateus chegou neste instante com o café que servia antes de ser
substituído pelo outro carcereiro e ficou à espera de que eu me entregasse
ao Santo Sacrifício, saindo e voltando com o pão e o vinho para as celas de
cada lado da minha. (BORBA FILHO, 1974: 62)
139
capítulo Eu, Padre praticamente em uma santa ceia e Paixão, em que o sacrifício de
ambos, do Cristo e do prisioneiro, se anunciam.
2 Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra
seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza
havia que nos agradasse.
7 Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi
levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores,
ele não abriu a boca. (BÍBLIA, Isaías 53: 2-7)
3RU HVVD SHUVSHFWLYD GD ³RYHOKD PXGD´ H WRVTXLDGD PDLV H PDLV SLntores,
como Giotto, Grünewald (Figura 14), entre outros, dedicaram-se a representar o
140
Cristo em sua situação de humanidade e sofrimento na carne, o que não era
costume até então, quando, no máximo, a cruz era usada simbolicamente como
referência ao martírio.
141
de AgáTXDQGRPXLWRVDQGDYDP³GHVJDUUDGRVFRPRRYHOKDV´PDVDOJXQVKRPHQV
³GHGRUHV´VRXEHUDPFRPRSDGHFHU
142
contextualizado em situações não respaldadas pelas Escrituras, mas que, de certa
IRUPD DSUR[LPDP HVVHV UHODWRV H LPDJHP GH &ULVWR j ³3DL[mR´ GR SULVLRQHLUR
político:
No começo do sexto dia senti que ia morrer pelo silvo da sua respiração,
pela palidez que se estendia por seu corpo martirizado. Aprestei-me para
ajudá-lo com um arremedo de cerimonial, estávamos numa catacumba,
voltávamos no tempo. Quando me ajoelhei ao lado da cama sua mão
procurou a minha, tentando apertá-la a pressão relaxando aos poucos, todo
ele indo embora. Acho que adivinhei o minuto exato em que se desprendia.
Curvei-me beijei-lhe a mão, ouvi a minha voz dizendo-lhe: Isto é meu
corpo... (BORBA FILHO, 1974: 64).
144
questão perpassa as relações familiares do protagonista multifacetado, Agá, já a
partir de sua infância, quando tenta escapar ao controle de sua sexualidade. Em
seguida, as relações de poder estão presentes em todas as artimanhas desse
protagonista de caráter manipulador, desde as relações sexuais da puberdade até
às da maturidade, quando encarna um marido desvairado e assassino.
Mas esse Agá deformado e escamado pela radiação não é o único monstro
que frequenta a narrativa. Seguindo a concepção de grotesco que vimos em Michel
Foucault, destacamos o monstro moral ou a soberania grotesca, na pele do déspota
bufão, além de ser possível testemunhar nesse tirano mais uma das tantas
metamorfoses presentes no romance de Hermilo Borba Filho.
Então, quando esse Agá embaixador estava em meio a sua vida burocrática,
mas recompensada com noitadas na cama com suas secretárias e algumas virgens
(sua predileção) que eram agendadas para ele, Agá recebe o convite-intimação de
visitar algumas prisões no interior do país, como forma de o ditador amainar as
críticas que vinha sofrendo. O personagem grotesco começa então a ser
apresentado em detalhes e vamos nos deparando cada vez mais com o universo da
soberania grotesca, da forma que Michel Foucault concebeu esse monstro social e
grotesco.
146
narrador, mas, principalmente, pela auto desqualificação do tirano, devido às
próprias ações desse bufão grotesco. Mas, antes disso ainda há a descrição física
do general, dada por Agá, exatamente após este narrar o martírio de presos
políticos, vítimas do ditador:
Olho de relance o General, ele está de olhos fechados, cochilando, sua cara
rosada de descendente de alemão reflete uma serenidade incrível. Com a
sua roupa branca, à paisana, se parece muito mais com um fazendeiro
abastado do que com um tirano (BORBA FILHO, 1974: 29).
147
O General já está se desfazendo das suas vestes e eu não posso deixar de
olhá-lo: é um atleta da cintura para cima e quando as bermudas, ao simples
ato de correr o fecho-éclair, lhe caem aos pés, dou um passo atrás de tão
assustado que fico: é o membro mais descomunal que jamais vi em toda a
minha vida, em tudo se assemelhando, ainda flácido ao de um jumento. O
General espoca uma das gargalhadas e balança seu instrumento, com ele
dando palmadas numa e noutra coxa, produzindo um som cavo.
Timidamente, fico nu. O General olha-me e fala como perito: Até que o
senhor não é desprotegido. (BORBA FILHO, 1974: 33).
De repente, vejo que o General diz algo a Carmen. Ela se levanta, vai até a
mesa, retira a toalha de linho, estende-a no tapete, o General se masturba,
de narinas acesas, todo o seu corpo tremendo. A mulher, então, acocora-se
no centro da toalha, seu rosto congestiona-se, vejo que ela está defecando.
Logo se ergue e o excremento lá fica. Posta-se ao lado do General,
acariciando-se, ele se ajoelha, curva-se, toma o bolo fecal entre as mãos,
esfrega-o no rosto e a ejaculação vem instantaneamente, posso jurar que é
um litro de esperma. (BORBA FILHO, 1974: 35).
148
Em seguida, vem o excremento que, em boa parte da estética do grotesco,
assume uma relação com a escatologia como uma espécie de preocupação e
divinação do tempos últimos, mas que, no contexto desse ritual, parece sugerir,
além de uma imagem de banquete grotesco (afinal uma toalha de mesa é usada),
também a total regressão do general a um estado infantilizado, como uma criança a
se esfregar nas próprias fezes. No entanto, o que é emblemático, nessa excitação
do general, é que isso aconteça com as fezes de uma prostituta, realizando-se,
então, um total rebaixamento de autoridade, da maneira que Mikhail Bakhtin tanto
DERUGRX TXDQGR R JHQHUDO ³VH DMRHOKD FXUYD-VH´ SDUD DSDQKDU R EROR IHFDO 0DV
além do rebaixamento, este é precedido por uma inversão, no momento em que
XPD SDUWLFLSDQWH GDV PDUJHQV GD VRFLHGDGH XPD SURVWLWXWD ³ORJR VH HUJXH´ SDUD
que o tirano se curve ao chão.
No episódio Eu, deputado, o Agá narrador assume, mais uma vez, uma
posição socialmente mais privilegiada do que outros Agás menos favorecidos.
Depois de encarnar um diplomata que usufrui das benesses de um ditador
estrangeiro, dessa vez a narrativa se situa num Brasil futurístico e assolado por um
governo implacável e controlador das liberdades individuais, até os mínimos
149
detalhes da vida sexual dos cidadãos. Diferentemente de outros episódios, como o
do Eu, diplomata, a narrativa não se concentra no ditador, sendo citado apenas de
passagem. O poder assume um aspecto mais impessoal, trazendo para o próprio
Estado o status de monstro grotesco que vigia e pune os que se rebelam contra toda
a forma de controle. Hermilo Borba Filho projeta, assim, nesta espécie de distopia
brasileira, um futuro baseado no que se passava no Brasil do início dos anos 1970,
quando os anos de chumbo e repressão estavam no auge do vigor totalitário.
Então, esse Agá deputado, que, segundo ele, foi nomeado por ser escritor,
mantém o tênue fio que liga os narradores escritores e também conduz a narrativa
fragmentada de Agá. Mas, no contexto desse episódio, a escolha por um escritor é
feita exatamente pela insignificância que esse ofício assumiu nessa distopia
brasileira, ressaltando-se a posição grotesca deste Agá deputado, se o olharmos
pelos concepção de Harpham ³Todo escritor é considerado um marginalizado [...]
(BORBA FILHO, 1974: 114), ou seja, frequenta as margens, mas pode em algum
momento perturbar o centro, desestabilizando o poder hegemônico.
Portanto, a SUiWLFD³GHPRFUiWLFD´GHVVHs parlamentares do futuro resume-se,
pateticamente, à leitura de discursos inofensivos de um passado distante, inclusive
um tratado sobre formigas fluminenses, todos os textos sendo escolhidos
automaticamente por uma espécie de computador. Até os apartes de outros
parlamentares e os apupos das galerias são lidos e concatenados. E é justamente a
máquina distribuidora de discursos que dispara toda uma comédia macabra de
erros, que vai tirar esse pobre e velho Agá deputado de seu conforto e lançá-lo nas
masmorras tecnológicas do regime. No fatídico dia em que a máquina erra, esta
entrega ao deputado um texto que deveria ser mais uma leitura anódina e medíocre,
e para ser apartada e apupada de acordo, mas, na verdade, é um emocionante
discurso atribuído a Teotônio Vilela, na época do AI-5, em defesa do Nordeste e dos
imigrantes que vinham sendo rechaçados com placas nada hospitaleiras nas
estradas no sul do país:
O Nordeste é, geralmente, assunto azedo para o paladar dos que não
provam de seu drama perene. Doce apenas a sua paisagem litorânea,
virgem dos olhos turísticos derramados de cruzeiros e mais virgem ainda
dos dólares tentadores. Talvez só isso, senhor Presidente, porque, mesmo
a nossa literatura, a grande e bela, é uma interminável escalada de
angústia. (BORBA FILHO, 1974: 125).
Como não poderia deixar de ser, numa sátira grotesca, o presidente age de
maneira tresloucada e os políticos transformam-se rapidamente em ratos batendo
em retirada. E o Agá deputado, mais uma vez transformado em herói de ocasião, é
HQFDPLQKDGRSDUDR³VDUFyIDJR´ ou ³RTXHFRUUyLDVFDUQHV´a masmorra futurística,
onde será torturado e onde provavelmente assistiu à execução de sua esposa
WDPEpP XPD ³(YD´ TXH QmR p ³H[HFXWDGD´, mas faz uma, de maneira eufêmica,
³SDVVDJHP´LQDODQGRJiV.
Como é uma tônica nas narrativas grotescas e modernas, esses
protagonistas hermilianos são a antítese dos heróis clássicos, ou seja, são
verdadeiros anti-heróis, ou heróis cômicos, frágeis, controvertidos e imorais. E nessa
tragicomédia futurista, apesar do desenvolvimento tecnológico, os que são
subjugados pelo poder dominante sofrem das mesmas agruras boschianas ou
dantescas, mas agora de maneira mais tecnológica. Portanto, a narrativa de Borba
Filho retoma o velho diálogo com as pinturas de Bosch e Brueghel, na descrição de
suplícios, tudo em um tom humorístico:
[...] Os encarregados dos computadores, em número de três, por exemplo,
foram amarrados a foguetes com subida de 15.000 metros; os datilógrafos ±
(só escapou uma loura porque ± ah, as saudosas comedinhas norte-
americanas ± pintou-se todinha de piche), homens foram pendurados pelos
testículos durante vinte e quatro horas, as mulheres foram submetidas aos
puxa-seios, um aparelho de sucção, com duas peças como desentupidores
de pias, que puxam os peitos até o limite máximo, mantendo-se assim
durante um dia; o Presidente da Assembleia foi sumariamente destituído de
suas funções e teve os dedos indicadores de ambas as mãos amputados
em espetáculo de televisão, com os anéis que recebera como um dos
maiores dedos-duros da pátria. (BORBA FILHO, 1974: 128)
Apesar desse antigo rol de suplícios grotescos, com todas suas bizarrices
costumeiras DV ³SHoDV FRPR GHVHQWXSLGRUHV GH SLD´ aliando o horror e o riso, o
Agá discorre, posteriormente, sobre as mudanças no comportamento do poder, na
ministração dos castigos, na normalização dos rebeldes. Obviamente, com essa fala
do deputado, vindo de um futuro distante, Borba Filho insere sua crítica ao estado de
151
coisas, no início dos anos 1970, quando a tortura era uma espécie de câncer que
desfigurava a todos os envolvidos. Então, para o deputado, tudo tornara-se cada vez
mais impessoal, DQWLVVpSWLFR ³VHP yGLR´, o que deve ter sido o sonho do Estado
nazista, na eliminação de judeus, sem expor os carrascos a desgaste emocionais. O
Agá deputado então compara HVWH³VDUFyIDJR´ em que ele está aos calabouços do
passado, talvez um daqueles do episódio de Eu, padre:
Há uma grande diferença, no que se refere à tortura, entre o regime em que
vivemos e o da década de 70, por exemplo. Agora, eles torturam
cientificamente, quase como se aplicassem um remédio, mesmo quando
vão até à morte, sem ódio, sem ligar à personalidade do torturado. Não
conta o homem, mas o que o homem praticou. Chegam a ser delicados.
Antigamente, não. Muitas e muitas vezes foram torturadas pessoas por
serem elas o que eram e não por haverem cometido qualquer espécie de
crime. (BORBA FILHO, 1974: 132).
152
desproporcional ao número de convidados, o caos grotesco se instala: Cambará e
uma verdadeira matilha de meninos esfomeados invadem sorrateiramente o local e
se lançam em cima dos alimentos e dos convidados, causando pânico entre estes:
Os garçons, aflitos, veem suas bandejas desaparecer no ar. Alguns garotos
já estão em cima da mesa, desfazendo as pirâmides de lagosta e pitus. A
onda de meninos continua crescendo e, com ela, senhoras grávidas que,
fazendo das saias uma espécie de cesto em semicírculo, vão arrecadando
tudo o que podem arrecadar, inclusive sorvetes e gelo. Dois homens, a um
canto, brigam por um peru que, afinal se parte ao meio com um ruído de
papel rasgado. Toda a comida desaparece da mesa e as garrafas de bebida
passam a circular. (BORBA FILHO, 1974: 140).
Esse caos instalado em recinto tão próximo ao centro do poder tem todas as
características de uma ação grotesca, isso a começar pelas hipérboles na descrição
do banquete PHVDV JLJDQWHV ³SLUkPLGHV´ GH DOLPHQWRV WXGR LVVR HP VLWXDomR
proporcional à fome dos meninos. E pelas mãos destes meninos é que se dá,
também, esse ataque simbólico e tomada do poder por aqueles que frequentam as
margens da sociedade e do poder. Por outro lado, os que possuem uma posição
mais privilegiada se rebaixam e passam a agir como animais, disputando pedaços
de comida ou carregando desesperadamente sorvete e gelo nos tecidos das saias.
Ao final, mais uma inversão acontece, quando Cambará, em meio a tantos
oficiais condecorados, sai do chão e se eleva a uma mesa para conclamar seu
³H[pUFLWR´ GH HVIRPHDGRV D DWDFDU e destruir as misteriosas estátuas de santos.
Após perceber que, magicamente, não são atingidos pelas metralhadoras das
estátuas, ele pode exaltar³&DPEDUiGiXPDJDUJDOKDGD HJULWD6mRGHEULQTXHGR´
(BORBA FILHO, 1974: 141). E da maneira como geralmente acontece com o anti-
herói Agá, a ocasião traz oportunidades de rebeldia, que é muitas vezes simbólica,
diante de oposição tão forte, mas o gesto há de permanecer:
A algazarra é enorme. Abaixo-me e empunho uma coxa de ganso. Ponho-
me à frente dos moleques e dou uma ordem. Marchamos contra o Palácio
dos Documentos, do outro lado da rua. Ganhamos terreno e tiros pipocam.
Desta vez, alguns moleques caem, sangrando. Sinto um enorme cansaço,
uma enorme desesperança. Indigente, aprumo-me ainda mais e deixo que
as balas venham. Se escapar, quando a esperança for sepultada, restar-
me-ão duas coisas muito importantes enquanto esperar a morte: o gesto
que se repetirá até converter-se em coisa concreta e as longas noites de
meditação num dos campos de concentração. (BORBA FILHO, 1974: 141).
E nessa nova investida, na qual as balas são reais, o Agá deputado mais uma
vez se aproxima das telas de Pieter Brueghel ² A batalha entre o carnaval e a
quaresma (1559) (Figura 15 e 16) ² ao atacar o palácio empunhando uma coxa de
153
ganso, como se fosse ³HVSDGD´, Hermilo Borba Filho traz para a cena toda a
ambiência do grotesco, ao fundir no mesmo evento o riso aliado ao horror dos
meninos caindo baleados. Cambará também cai, com uma bala entre os olhos, e
mais uma aventura de um Agá se encaminha, de maneira tragicômica, para o final.
E se termina de maneira melancólica, pelo menos fica a esperança de, um dia, o
³JHVWRFRQYHUWHU-se em coisa concreta´Hque o final possa ser reescrito.
154
Figura 16. Detalhe de A batalha entre o carnaval e a quaresma (1559
155
ao se referir ao corpo humano, ele o fazia de maneira minuciosa, enumerando todos
os órgãos de maneira disciplinada. Esse modo anatômico e fisiológico de abordar o
corpo humano na literatura não deixa de se aproximar de Hermilo Borba Filho e sua
representação do corpo humano, principalmente os corpos de prisioneiros e
torturados. Apena lembrando que Borba Filho foi, embora momentaneamente,
estudante de medicina, e seus personagens, como o Hermilo de A porteira do
mundo e o padre, em Agá, são narradores com um passado de anatomistas. De
uma maneira ou de outra, o corpo humano surge, pela ótica desses narradores,
como que pelos olhos de um cientista a enumerar friamente a decomposição da
carne humana em ordem e enumerações.
156
algumas análises de Bakhtin, quando as séries do corpo e desmembramentos se
cruzam com as séries de gastronomia de Rabelais. Neste autor, as cenas de
combates e desmembramentos dos soldados às vezes são usadas em comparação
a pedaços de guisado em uma panela, trazendo um aspecto bizarro para o relato.
A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo que pudesse
implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo [...] fazendo o
carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no
último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e
de admiração. (Idem, 2014: 14).
Esse tipo de inversão, segundo Foucault, veio a ser parte de uma espécie de
carnavalização das execuções, quando os papéis de executado e executores eram
invertidos: a população aproximava-se do cadafalso para ouvir as últimas
LPSUHFDo}HV GR SULVLRQHLUR TXH HUD ³DTXHOH TXH QmR WHP PDLV QDGD D SHUGHU
maldizer os juízes, as leis, o poder, a religião. O suplício permite ao condenado
HVVDV VDWXUQDLV GH XP LQVWDQWH HP TXH QDGD PDLV p SURLELGR QHP SXQtYHO´
(FOUCAULT, 2014: 61). E assim, cada vez mais, procurou-se o auxílio de máquinas,
para se tocar o corpo do prisioneiro, o menos possível, como a chegada da
inevitável guilhotina para uma morte limpa e rápida, antecipando de certa forma o
século XX, na máquina de execução da colônia penal kafkiana, até as execuções
em massa dos nazistas.
Nos quadrinhos, intitulado O livro dos mortos, podemos ver a lista dos que
não foram apenas executados, mas que tiveram seus corpos desmembrados ou
mutilados: o primeiro, um cristão novo que tem os ossos triturados na primeira vida
do Santo Ofício a Pernambuco, em 1594; na mesma linha e, não sem ironia, um
dramaturgo e escritor satirista, Antônio José, o judeu, queimado vivo pela
inquisição; Felipe dos Santos, enforcado e esquartejado por cavalos; Tiradentes,
enforcado, esquartejado e membros espalhados pela cidade. Em um dos
quadrinhos, a fala comumente atribuída a um padre para o povo, adaptado do livro
de Eclesiastes ³QmR WUDLDV R WHX UHL nem por pensamento, pois as aves do céu
levarão a tua voz (BORBA FILHO, 1974: 236). A lista de mortes ou execuções
segue, passando por Zumbi e finalizando com Antônio Conselheiro, mas a mais
emblemática no desmembramento dos heróis, vem a ser a Revolução
Pernambucana de 1817, que fornece, através dos pedaços dos prisioneiros, toda
uma topografia do estado de Pernambuco. A sentença é assim narrada, no seu
desfecho, e poderia pertencer a qualquer inferno boschiano:
Sonia Van Dijck também traz uma declaração do crítico literário Leandro
Konder que achamos relevante, pois ele percebia o texto de Borba Filho,
159
especificamente no romance A porteira do mundo, como ³IRUWH FDUUHJDGR GH
sensualidade, desenvolvido num clima de violência, sob o signo de exigências
místicas´,GHPE, de fato, Borba Filho dá uma tônica, talvez a partir de A
porteira do mundo, que se desenvolve fortemente no resto de seus escritos, no que
se refere a manter o sexo sempre muito próximo do campo do sagrado, do místico,
da violência e da morte. Isso sem falar nos problemas com o sexo do pastor em Sol
das Almas, o segundo romance de Borba Filho, e a entrega de corpo e alma ao sexo
do narrador Hermilo, em Margens da Lembrança, o primeiro livro da tetralogia Um
cavalheiro da segunda decadência. Mas as visões que surgem em A porteira do
mundo são emblemáticas e despertam a discussão para o resto da obra de Hermilo
Borba Filho.
160
Os seres que se reproduzem são distintos uns dos outros e os seres
reproduzidos são distintos entre si como são distintos daqueles de que
provieram. Cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua
morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para os outros algum
interesse, mas ele é o único interessado diretamente. Ele só nasce. Ele só
morre. Entre um ser e outro, há um abismo, há uma descontinuidade.
(BATAILLE, 2013: 36).
Foi nu como estava, também ensanguentado, que voei pela janela e pairei
sobre os edifícios, um molho de cravos na mão, enquanto a cidade se
dividia, metade brilhante e metade azulada, de um lado o sol, do outro a lua,
os rios correndo em vertical, as pontes ligando o nada a outro nada, as
nádegas de Irene formando um arco-íris incandescente sobre a minha
cabeça, eu verificava que possuía os dois sexos, era o enviado
hermafrodita, o ânus se assemelhava aos sóis infantis, enquanto o pênis
era a cauda de um cometa, ambos jamais se encontrariam, eu passeava
meu carneiro e, à sombra das grutas, me unia ora a ninfas, ora a sátiros,
sem jamais saber ser era o homem ou a mulher quem mais gozava nos
prazeres do amor [...] (BORBA FILHO, 1994: 22).
Vê-se que mais uma vez o hermafrodita surge no mundo hermiliano, desta
vez sobrevoando de maneira mágica a noite do Recife, toda a visão surgindo como
fruto de uma relação sexual anal com Irene, uma mulher pobre, uma prostituta e
figura de vítima sacrificada no altar-cama deste Hermilo sacerdote e místico. E o
ritual segue com o pênis inclusive surgindo como uma adaga sacerdotal:
E após essa imolação, que, segundo ele, GHL[RX R ³VDQJXH FRDJXODGR QD
SRQWD GD PLQKD YDUD´, assemelhando o pênis a um instrumento cortante, Hermilo
chega ao desfecho de sua visão e experiência com o sagrado, em um dos
momentos mais altos da narrativa do autor pernambucano:
161
E todas as luzes se extinguiram: do sol, da lua, das estrelas, dos postes,
das casas, dos fifós, era uma treva asfixiante, minha barba crescia e
formava uma escada por onde iam subindo os bêbados, as prostitutas, os
pederastas, todos os cornos do mundo, padres simoníacos, políticos,
ladrões e assassinos e, enquanto subiam, alcançando a minha boca eu os
cuspia para o infinito e era engraçado de ver as cabriolas que davam, um
olho para aqui, um culhão para ali, um baço acolá, todos os corações se
reunindo num só, crescendo, ainda opaco, pouco a pouco iluminando-se e
tornando-se rubro, cercado por estrelas de espinhos que se enterravam
cada vez mais na carne, tudo isto porque, mais uma vez, eu encontrara
Deus na merda (BORBA FILHO, 1994: 22).
Enfim, a partir dessa visão, a literatura erótica de Hermilo Borba Filho não
pode mais ser dissociada da busca pelo sagrado. A busca dos anti-heróis
hermilianos precisa sempre ser vista com mais abrangência, sem simplificar o papel
do sexo como algo apenas obsceno ou pornográfico. Nessas relações complexas
que se manifestam na presença do sexo, da violência, do erotismo, do sacrifício, do
sangue, dos despedaçamentos, o homem busca acima de tudo, e
desesperadamente, não apenas o prazer da carne, mas a transcendência e a volta a
um continuidade perdida.
163
Além disso, este Agá, que é também um onanista inveterado, frequenta hospícios e
tem instintos assassinos em relação a sua esposa:
164
violência na luta contra a descontinuidade do ser. A fusão, para o autor, ocorre
sempre sob o signo da violência, da violação:
Então, para além da embriaguez aberta à vida juvenil, nos é dado o poder
de abordar a morte face a face, e de nela ver enfim a abertura à
continuidade ininteligível, incognoscível, que é o segredo do erotismo, e
cujo segredo apenas o erotismo traz. (BATAILLE, 2013: 47).
166
Assim, o erotismo aqui, longe de ser apenas algo físico e corporal, também
assume outros matizes que lançam os personagens de Borba Filho para além da
própria experiência carnal, para uma experiência religiosa.
Além dessas relações entre a morte o erotismo, este não se faz presente em
Agá, apenas, com a presença explícita de sexo, de cópulas, mas, por exemplo, pode
se insurgir sutilmente na representação do corpo de torturados. Assim como há
muito de figuras cristãs na narrativa de Agá, com o corpo do preso torturado
entrando em uma relação direta com o corpo sofrido e deformado de Cristo, assim
também, esse mesmo corpo do torturado remete à sensualidade presente nas
representações medievais dos santos cristãos.
Em A lamentação pelo Cristo morto, pintada por Giotto para a capela dos
Scrovegni, todos os personagens choram (inclusive os anjos) e sugerem ao
fiel sentimentos de compaixão por alguém com quem ele deve se identificar.
É desse modo que a imagem do Cristo doloroso passará também para a
cultura renascentista de barroca, em um crescendo de ³erótica da dor´, em
que a insistência no rosto e no corpo divino martirizado pelo sofrimento
chegará aos limites do comprazimento e da ambiguidade, como acontece
com o Cristo, mais que ensanguentado, sanguinolento, da Paixão de Mel
Gibson. (ECO, 2015: 49)
167
Em ambiente renascentista e pós-renascentista, no clima de revalorização
do corpo humano e de sua beleza, nota-se uma tendência à excessiva
³SXOFULILFDomR´GHIDWRVGRlorosíssimos, de modo que, mais que o tormento,
importa antes a força viril ou a doçura feminina com que os santos o
enfrentam. Mas isso não exclui o deleite, frequentemente homófilo, e as
várias representações do martírio de São Sebastião dão prova disso. (ECO,
2015: 56).
169
nos permite ventilar essa abordagem erótica e homoafetiva do Eu, padre ao corpo
do torturado.
170
CONCLUSÃO
Como foi visto ao longo desta dissertação, o grotesco tem uma presença
marcante não só no romance Agá, mas em toda a obra de Hermilo Borba Filho,
servindo de rica fonte para a ambientação e caracterização da sua obra de ficção,
possibilitando várias leituras e interpretações. E para abordar esse grotesco,
comentamos as ideias de autores como Geoffrey Galt Harpham e sua visão
instigante do grotesco como a arte das margens e, por que não, a arte dos escritores
marginais como Hermilo Borba Filho. Também Carl Skrade e sua teologia que põe o
grotesco como arte fundamental para compreender o homem moderno e
fragmentado ² como o herói Agá o é ² e as possibilidades do grotesco em se
relacionar com o sagrado, em ter um papel preponderante na transcendência do
Homem. Além desses, tURX[HPRV0LFKHO)RXFDXOWDERUGDQGRVHXV³DQRUPDLV´FRPR
personagens grotescos, como, por exemplo, os onanistas e o importantíssimo
³PRQVWUR PRUDO´ R GpVSRWD EXImR TXH UHEDL[D D PDMHVWDV GH TXH p LQYHVWLGR
personagem não só presente nas páginas de Agá, mas que ² tristemente ² parece
não querer se retirar do mundo real, em pleno século XXI. Além desses autores,
concentramo-nos também nos já clássicos pensadores do grotesco, Victor Hugo,
Mikhail Bakhtin e Wolfgang Kaiser, mas procurando sempre balancear a abordagem
com a atualização do pensamento deles, feita por outros autores contemporâneos,
tentando assim escapar de automatismos, ou o uso indiscriminado de termos
EDVWDQWH FRQKHFLGRV FRPR ³FDUQDYDOL]DomR´ H R ³FRUSR JURWHVFR´ GH %DNKWLQ RX R
³PXQGRDOKHDGR´GH.DLVHUHVXDUHODomRDPEtJXDFRPRJrQHUR)DQWiVWLFR
171
à tona um aspecto que consideramos central na compreensão do grotesco em
Hermilo Borba Filho, ou seja, o uso que ele faz de um grotesco bastante propício à
cultura brasileira, advindo da fusão da cultura de origem europeia com a cultura
negra. Além disso, a peça termina com todas as marcas da carnavalização e do
realismo grotesco bakhtiniano, com as mesmas hordas de moleques que
ressurgiriam em Agá, desta vez, em vez de atacar banquetes da aristocracia
pernambucana, resolve pichar as paredes e urinar nas grades do sobrado. Quanto
aos contos, vimos Hermilo Borba Filho em total comando da linguagem e no domínio
do realismo mágico. E o grotesco entra em perfeita sintonia com o mágico, nas
antropomorfizações, nas bestialidades, no bizarro das ações em As meninas do
sobrado, assim como na caracterização dos personagens grotescos em Sete dias a
cavalo, na sátira ácida ao poder grotesco dos militares em O general está pintando.
Por fim, na análise dos dois romances, vimos o quanto o grotesco já antecipava
temas de Agá, e continuava, postumamente, em Os ambulantes de Deus, na
concepção poética de Hermilo Borba Filho.
Por fim, na análise de Agá vimos Hermilo Borba Filho realizar sua produção
mais desafiadora para um crítica literária, uma espécie de antiromance com um herói
completamente fragmentado, visto de múltiplas perspectivas muitas vezes
simultâneas. Então, em Agá, surge uma narrativa em que se misturam a confissão
autobiográfica e a literatura de resistência, uma literatura de denúncia contra a
tortura e que é também um memorial do sofrimento daqueles que foram torturados.
E isso é feito para que não se esqueça o sacrifício desses torturados, que são
comparados a Cristo, no sofrimento e na deformação dos corpos pela brutalidade do
poder estabelecido, tanto na Ditadura Militar no Brasil, quanto em Estados
totalitários na América do Sul. E como protagonista dessa narrativa desafiadora
surge o Eu, Agá, um herói grotesco que se alterna em várias personas, desde o
protagonista hermafrodita e prostituto de luxo a um padre envelhecido e solidário
com os torturados, ou ao diplomata às voltas com um déspota bufão e animalizado,
entre tantas outras personagens marcantes. O grotesco surge nessa narrativa do
romance justamente pela relação tão forte do grotesco com o corpo humano e suas
partes baixas, seus fluidos, seus excrementos etc., gerando imagens do corpo que
nos levaram a propor essa leitura de Agá, a partir e através dos corpos de seus
personagens. Assim, o percurso de leitura seguiu pelos corpos não só pelo aspecto
172
de deformação e monstruosidades mais comuns ao grotesco, mas nos
despedaçamentos dos rebeldes de todas as épocas no Brasil, nas mais bizarras das
ações associadas aos fluidos do corpo, aos corpos dos onanistas e suas inúmeras
masturbações e ejaculações, ao humor, ao corpo do rebelde hermafrodita e sedutor
de poderosos. E quanto a esses masturbadores ou onanistas, eles propiciaram um
ponto de discussão interessante, baseado ² em parte ² em texto pouquíssimo
conhecido de Fernando Pessoa, que nos ajudou a refletir ² com a ajuda de Jean
Paul Sartre ² sobre a proliferação de Eus em Agá, na projeção das múltiplas
personas literárias na imaginação do masturbador.
173
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