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TRADUÇÃO, TRADIÇÃO, TRAIÇÃO. Chegar a Jesus com dois mil anos de intervalo

Uma dificuldade típica quando falamos de Jesus tem que ver com os intermediários. Como
podemos conhecer Alguém quando há tanto nos entremeios? Tanto tempo, tanto espaço, tanta
gente, tantas versões, tanto silêncio. Haverá forma de superar este jogo do telefone estragado
gigante?

Se, na última edição, apresentámos uma visão histórica sobre Jesus, o texto que agora
apresentamos, retirado da obra Jesus Cristo - História e Mistério, do reconhecido biblista
Joaquim Carreira das Neves, oferece-nos um guião de leitura para a questão fundamental que
é a do acesso a Jesus. Qual relação entre o Jesus de carne e osso e o Jesus da fé? Os
intermediários - essa cadeia longa e frágil que foi depositando as migalhas no chão para que
pudéssemos refazer o percurso até às origens - ter-se/nos-ão enganado?

A resposta a este problema é lenta. Em primeiro lugar, iremos rever os dados históricos que nos
permitem afirmar "Jesus existiu". Seguidamente, teremos que estudar o estatuto dos textos do
Novo Testamento. São biografias de tipo jornalístico? São descrições factuais? Ou, pelo
contrário, não passarão de fantasias? Qual o valor destes relatos? Finalmente, apontaremos os
dados da investigação actual acerca de Jesus, nas suas diversas correntes, para ilustrar o
quanto este debate é aceso e estimulante.

Mais do que uma conclusão, o texto oferece-nos um convite. Não poderemos superar por
completo alguma nebulosidade a respeito de Jesus. Todo o encontro tem a sua sombra. Mas,
por vezes, a sombra é o único indício claro da presença de um corpo. Os textos e a tradição têm
tanto de anúncio como de ocultação: revelam e calam. Essa traição assumida - que é a traição
de qualquer poema - exige dos leitores uma sintonia que os faça cúmplices do acontecimento
que o texto só pode mostrar, tapando. Escritos por vezes desajeitadamente, estes textos são o
resultado de um trabalho de compreensão de uma experiência pessoal e colectiva, cuja
vitalidade dificilmente poderia ser reduzida a papel. Um texto mostra a sua riqueza não pelo
modo como nos prende o olhar nas suas folhas mas pelo vigor com que nos conduz o olhar
para o mundo. Por isso, estes textos têm a forma de reticências: há algo que jamais poderiam
dizer. O que eles querem dizer não está no papel: está para lá dele.

«Porque buscais entre os mortos O que vive? Não está aqui: ressuscitou» (Lc 24, 5-6).

O JESUS DA HISTÓRIA

A primeira etapa tem a ver com o chamado Jesus da História. Ninguém duvida hoje em dia de
que Jesus existiu, embora em tempos passados se tivesse falado de figura lendária e
mitológica. Trata- se dum judeu que viveu a maioria dos seus anos em Nazaré, mesmo que
pouco saibamos das suas origens e da sua juventude. É historicamente certo que, por volta dos
trinta anos, deixa os seus familiares em Nazaré e começa uma vida itinerante de pregador, de
profeta e de taumaturgo para anunciar a vinda próxima do Reino de Deus. A sua vida faz um
todo com esta pregação.

Ainda hoje os estudiosos do NT continuam e hão de continuar a investigar sobre o significado


histórico e teológico deste sintagma - o Reino de Deus -, uma vez que Jesus apenas o enunciou,
mas nunca o explicou. As suas parábolas são histórias fictícias que nos demonstram as várias
facetas deste Reino de Deus, mas também os seus milagres e os seus pequenos discursos,
narrativas de seguimento, diatribes e controvérsias com amigos e inimigos. É absolutamente
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certo que Jesus pregou o Reino de Deus em parábolas, mas continua sempre por estudar quais
são as autênticas parábolas, tanto em número como em conteúdo, uma vez que o tempo
histórico da tradição e da redacção intervêm naturalmente neste assunto. O mesmo se diga
dos seus milagres, discursos, controvérsias e diatribes com os seus amigos e inimigos. Quer isto
dizer que é sempre difícil chegarmos a concluir com precisão quem foi e como foi o verdadeiro
Jesus histórico e quais são as suas ipsissima verba, isto é, as suas próprias palavras. O que os
evangelhos sinópticos nos apresentam são memórias desse verdadeiro Jesus, pregador e
profeta, que se distinguiu profundamente de todos os profetas do AT, inclusive de Moisés, -
como já vimos no estudo que fizemos aos grupos judaicos daquele tempo e às instituições
religiosas de então - e que, pelo seu mistério pascal, é depois acreditado, não apenas como
pregador e profeta, mas também como Messias, Filho de Deus, Salvador e Senhor. Saber situar
o Jesus da história no contexto político, social e religioso do seu tempo é absolutamente
necessário para não cairmos em fantasias lendárias e gnósticas, como foi apanágio de
evangelhos posteriores não canónicos (o exemplo do proto evangelho de Tiago e todos os
evangelhos gnósticos).

Modernamente, muito se tem escrito sobre Jesus como essénio, como um simples fariseu
reformador, como um mago, como um zelote ou guerrilheiro, como um marxista, etc. Ao longo
do nosso estudo abordaremos estas posições. Uma vez que a história de Jesus (jesuologia) se
mistura nos evangelhos com a cristologia e soteriologia [ou seja, o que se refere à salvação] a, a
descoberta do Jesus histórico é um estudo académico relativamente recente, e é por isso que
os autores procuram encontrar critérios exegéticos capazes de nos aproximar o mais possível
desse Jesus histórico. Semelhantes critérios variam de autor para autor, mas, duma maneira
geral, confluem nos seguintes: 1) o critério do embaraço (quando os evangelhos afirmam
dados que nos embaraçam porque nos apresentam situações da vida de Jesus em aparente
contradição com a fé cristã sobre o mesmo Jesus, como é o caso do baptismo de Jesus em Mc
1, 7-8 e par., ou o caso dos irmãos e irmãs de Jesus em Mc 6, 3 e par.); 2) o critério da
descontinuidade (quando se trata de material próprio de Jesus, que não depende nem do
judaísmo nem das comunidades pós-pascais, como é o exemplo da proibição de jejuar (Mc 2,
18, 22 e par.) ou a proibição do divórcio mosaico (Mc 10, 2-12 e par.; 3) o critério do duplo
testemunho (quando os mesmos textos se encontram em mais do que uma fonte ou tipo de
materiais, como é o caso da proclamação do Reino de Deus, da ceia pascal, de algumas
parábolas, milagres, paixão e morte); 4) o critério da coerência (quando a doutrina de Jesus ou
as suas ações concordam com a mesma doutrina e acções autenticadas pelos outros critérios,
como é o caso de Jesus se servir da catequese de tipo oral e não lógico-racional, usando, por
isso, da sabedoria oral judaica e da apocalíptica, que têm a ver, por exemplo, com a
proclamação do Reino que já veio e que ainda há de vir); 5) o critério da língua aramaica (como
é o caso da evocação de Deus como Abba em Mc 14, 36; cf. Rm 8, 15;GI 4, 5); 6) o critério da
rejeição e execução na Cruz, como consequência normal política e religiosa da sua pretensão
messiânica e da sua pregação pouco ortodoxa quando comparada com a ortodoxia de fariseus,
saduceus e Sinédrio; 7) o critério das origens cristãs, que não têm explicação se não aceitarmos
o dado histórico da vida de Jesus.

O JESUS DA TRADIÇÃO

Apresentamos acima os sete critérios para encontrarmos, no emaranhado dos evangelhos


sinópticos, o verdadeiro rosto do Jesus histórico. Vamos agora apresentar o chamado Jesus da
Tradição. Uma vez que Jesus nada escreveu nem mandou escrever, e uma vez que Jesus não
morreu como todos os outros mortais, na medida em que os seus discípulos mais próximos, a
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começar por algumas mulheres, acreditam que ele ressuscitou, depressa se forma um pequeno
grupo de homens e mulheres que crêem que este homem é mais do que um simples pregador,
rabi, profeta e taumaturgo. Ele é o Messias, o Filho de Deus e o Salvador que havia de vir ao
mundo. Este grupo de homens e mulheres concluem que o plano de Deus sobre a humanidade
atinge o seu clímax precisamente em Jesus de Nazaré. Para tanto, perscrutam as Escrituras
Sagradas dos seus antepassados (o AT ou as Escrituras Hebraicas) e encontram nelas os tipos
ou a prefiguração deste Jesus de Nazaré. Tudo quanto Jesus fez e disse já tinha a marca da
autenticidade divina naquelas Escrituras. Por isso mesmo, os evangelhos e, já muito antes, as
cartas de Paulo, estão cheias de alusões bíblicas ao AT, que hoje chamaríamos apologéticas,
sobre a vida de Jesus. Em quase todos os discursos de Pedro e Paulo nos Actos dos Apóstolos
(e também de Estêvão em 7, 2-53) há um exórdio ou abertura, que começa precisamente
comeste plano de Deus exarado nas Escrituras e agora completado na vida do mesmo Jesus (At
2,22: " ... este [Jesus], depois de entregue, conforme o desígnio imutável e a previsão de Deus.
. . "; 3, 18: "Dessa forma, Deus cumpriu o que antecipadamente anunciara pela boca de todos
os profetas..."; v.24: "E, por outro lado, todos os profetas que falaram desde Samuel
anunciaram igualmente estes dias..."; 10, 43: "É dele [de Jesus] que todos os profetas dão
testemunho..."; 13, 16-41; cf. v. 27: "Sem dúvida, os habitantes de Jerusalém e os seus chefes
não quiseram reconhecer Jesus, mas, condenando-o, cumpriram, sem disso se aperceberem,
as profecias que são lidas todos os sábados..."; vv.32s: "E nós estamos aqui para vos anunciar a
Boa Nova de que a promessa feita a nossos pais, Deus a cumpriu em nosso benefício..."; 20, 27:
" ... jamais recuei, quando era preciso anunciar-vos todos os desígnios de Deus... "; 26, 6: "E,
agora, encontro-me aqui a ser julgado por causa da minha esperança na promessa feita por
Deus a nossos pais. . . "; v. 22: " ... sem nada dizer além do que os Profetas e Moisés
predisseram que havia de acontecer").

É durante este período, logo a seguir ao mistério pascal, que apóstolos, discípulos
,evangelistas, profetas e doutores, anunciam o kerigma cristão centrado na morte e
ressurreição de Jesus. Neste tempo, ainda não há os chamados ministérios eclesiais bem
estabelecidos. Por volta do ano cinquenta, Paulo escreve aos Coríntios sobre a diversidade de
dons e carismas de maneira livre e de acordo com o Espírito Santo (cf. 1Cor 12, 8-11: o dom da
sabedoria, o da ciência, o da fé, o das curas, o dos milagres, o da profecia, o do discernimento
dos espíritos, o da glossolalia [o dom de falar línguas], o da interpretação da mesma glossolalia.
Ainda hoje continuamos a discutir sobre os conteúdos de cada um destes dons e carismas e a
necessidade dos mesmos para um bom crescimento e organização do corpo de Cristo-Igreja
(1Cor 12, 14ss). Na continuação da narrativa, Paulo faz esta afirmação: "Vós sois o corpo de
Cristo e cada um, pela sua parte, é um membro. E aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são,
em primeiro lugar, apóstolos; em segundo, profetas; em terceiro doutores [mestres]..."(1 Cor
12, 27-28). Só depois é que vêm os que têm o dom dos milagres, das curas, das obras de
assistência, do governo e da glossolalia. E, por fim, para que não haja confusão e vaidade
espiritual, Paulo apresenta-nos um hino ao amor, o dom e o carisma que está por cima de
todos os demais, e ao qual todos os outros devem obedecer (1Cor 13). Ficamos, então, a saber,
que naquelas primitivas comunidades, mormente nas paulinas (nas cartas chamadas pastorais
e nas chamadas católicas o assunto já é diferente), se anunciava a nova fé cristã de maneira
muito livre, e sempre na dependência do Espírito Santo, isto é, da força divina do Pai e do Filho
que tudo determina e a todos impulsiona. Mesmo assim, o Apóstolo distingue entre
"apóstolos, profetas e doutores", que encabeçam todos os demais ministérios. Mas também
não nos é fácil estabelecer conteúdos precisos para estes três ministérios, tanto mais que, ao
falar de apóstolos, Paulo não pensa apenas nos Doze, mas também nele próprio e em tantos
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outros que o acompanham como enviados por Jesus Cristo para a obra da nova fé ou boa nova
(evangelho). O que Paulo quer significar com estes ministérios da Palavra é a sua oposição à Lei
de Moisés, muito estática em todos os seus mandamentos e preceitos, segundo a qual advinha
a justificação para os judeus que a cumpriam. A justificação-salvação residia, agora, na fé em
Jesus Cristo, e não na Lei, e era preciso que esta nova maneira de acreditar fosse espalhada por
todo o mundo. São estes apóstolos, profetas, doutores, evangelistas, catequistas, etc., que
espalham a fé cristã um pouco por toda a parte, no meio de dificuldades internas e externas, e
é esta fé que aparece nos nossos evangelhos.

Nesta perspectiva, não há dúvida de que a pregação apostólica destes apóstolos, profetas e
doutores, se adaptava às novas circunstâncias consoante os destinatários da mesma pregação.
O Jesus da história era um judeu da Galileia que falava em aramaico para galileus, enquanto
que agora estes evangelistas cristãos falavam em grego para judeus, gregos e romanos, fossem
eles rurais ou citadinos. Só a simples passagem do aramaico para grego tem as suas
implicações nos evangelhos. Reparemos no exemplo das palavras de Jesus sobre o divórcio em
Mt 5, 31-32; 19, 7-9; Mc10, 4-12 e Lc 16, 18. Em Mateus e Marcos Jesus responde de maneira
negativa aos judeus que defendiam a possibilidade do divórcio de acordo com a lei de Moisés
em Dt 24,1. Em Mt 19,8 Jesus apresenta o critério do próprio Deus: " ... mas desde a origem
não era assim." Em Mt 5,31, Jesus apresenta a sua própria autoridade: "Foi dito: 'Aquele que
repudia a sua mulher, passe-lhe um documento de divórcio', mas eu digo-vos...". Em Mc 10, 5,
Jesus refere a dureza do coração dos judeus: "Por causa da vossa dureza do coração Moisés
deixou-vos este preceito." Qual foi o verdadeiro critério que o Jesus histórico usou? É
impossível qualquer conclusão de modo absoluto, porque os três critérios obedecem à tal
pregação apostólica dos apóstolos, profetas e doutores. O assunto é tanto mais interessante
quanto Jesus, apenas em Mateus (Mt 5, 32 e 19, 9), refere uma excepção para a possibilidade
do divórcio: "... a não serem caso de adultério da mulher". Em caso de infidelidade da mulher,
segundo Jesus, o marido podia divorciar-se dela. Mas todos sabemos que Jesus ia à raiz das
questões e não admitia excepções deste género. Isto leva-nos à conclusão de que é o próprio
Mateus, por razões pastorais da sua comunidade, e não Jesus que abre esta excepção. Esta
inculturação ainda é mais patente na versão de Marcos uma vez que este evangelista - e só ele
- admite a possibilidade de também a mulher se poder divorciar do marido (Mc 10, 12: "E se
aquela que repudiou o seu marido se casar com outro, comete um adultério."). Esta adjunção
de Marcos só se pode compreender dentro da moral matrimonial de gregos e romanos, onde,
realmente, a mulher também tinha o direito de se divorciar, mas nunca na dos judeus.

Como estes exemplos, há muitos outros que poderíamos aduzir. Nesta época da pregação
apostólica, a liturgia - como se viu no último exemplo apresentado -, deve ter influenciado
bastante a doutrina evangélica, sobretudo na questão da oração, do sábado, do baptismo e da
eucaristia. Como veremos, o evangelho que melhor espelha este tipo de influências é o de
Mateus. Por isso mesmo é que ele termina com o sermão do Ressuscitado no monte da Galileia
a pedir aos onze discípulos: "Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em
nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo" (Mt28, 19). Semelhante doutrina sobre o baptismo
e sobre a Trindade vai muito além do Jesus histórico. Jesus foi baptizado, mas segundo a
tradição sinóptica nunca baptizou nem se referiu jamais ao baptismo cristão. Este é um
resultado da vivência da Igreja à luz do Espírito Santo. O mesmo se diga da doutrina da
Trindade, tanto mais que nas cartas de Paulo temos fórmulas triádicas e não propriamente
trinitárias. Por isso, a prática do baptismo cristão influenciou a doutrina trinitária e vice-versa.
Deste período da pregação e tradição apostólica advém muito do material das controvérsias de
Jesus contra os judeus, especialmente contra os fariseus, tanto mais que, como vimos, depois
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da queda de Jerusalém, no ano 70, desaparecem os saduceus, os zelotes, o Sinédrio, o Templo


e os sacerdotes, mas permanecem os fariseus que vão salvar o judaísmo da derrocada. E são
precisamente estes fariseus que, na assembleia de Jâmnia, impõem a expulsão dos judeus
cristãos das suas sinagogas (Jo 9, 22 e 16, 2) e estabelecem uma oração própria contra os
minim (cristãos). Uma vez mais, é o evangelho de Mateus (mas, agora, também o de João) que
mais influências absorveu deste tempo apostólico. Iremos, pois, a seguir, estudar a última
etapa da elaboração dos evangelhos sinópticos, chamada precisamente a etapa do Jesus da
redacção.

O JESUS DA REDACÇÃO

Pela etapa da Redacção, descobrimos que os autores dos evangelhos não foram apenas
compiladores de tradições históricas mas também verdadeiros autores. Autor é aquele que dá
forma e sentido à sua investigação histórica. E é por isso que os exegetas procuram
encontrarem cada evangelho a sua estrutura através da sintaxe, da semântica e da
intencionalidade. Todos eles têm formas próprias gramaticais e uma semântica teológica
própria. Lucas é o evangelista que melhor serve de modelo como autor, uma vez que começa o
seu evangelho com um prólogo de fundamentação histórica: "Visto que muitos empreenderam
compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os
que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra, resolvi
eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expô-los a ti por
escrito e pela sua ordem, caríssimo Teófilo, a fim de reconheceres a solidez da doutrina em que
foste instruído" (Lc 1,1-4). Lucas afirma, então, que já antes dele muitos outros tinham escrito
sobre o mesmo assunto. E trata-se de testemunhas oculares, que depois se tornaram
servidores da Palavra.

O que interessava a estas testemunhas oculares não era tanto a realidade histórica factual, mas
a sua base histórica para que a pregação da Palavra tivesse um sentido ou um acento bem
histórico. A Palavra não era uma filosofia, uma gnose ou uma iniciação de mistérios de
salvação, mas girava em torno duma narração (diegese) dos factos que entre nós se
consumaram. Trata-se de factos e não de mistificações ou lendas. Mas uma vez que estes
factos são a base sólida para a Palavra, a história transforma-se em história da salvação, tanto
mais que a finalidade de Lucas é apresentar factos a Teófilo para que a sua fé em Jesus Cristo
tenha solidez. Lucas não é um historiador que apresente ao seu amigo Teófilo a verdade factual
duma vida de Jesus, mas a verdade da fé fundamentada em factos. A história está em função
da Palavra e da Fé e não o contrário.

E quem foram estes "muitos" que empreenderam compor antes de Lucas o que também ele
agora compõe? Como veremos, apenas nos chegou às mãos antes de Lucas, o evangelho de
Marcos e a fonte Quelle. Mas não há dúvida que muitos outros terão escrito sobre aquilo que
se pregava acerca de Jesus, mas cujos escritos não chegaram até nós. Naquele tempo dava-se
mais valor à verdade da Palavra saída através da tradição oral do que à escrita propriamente
dita. A catequese passava pela oralidade e não pela escrita. É por isso que Papias, bispo de
Hierápolis, cerca de 115 d.C., procurava falar com as pessoas que tinham contactado
directamente com as testemunhas oculares de Jesus, a começar pelos próprios Apóstolos, a
fim de fundamentar a sua fé nas testemunhas pessoais e não tanto nos escritos. Os chamados
"cabeçalhos" dos evangelhos: "Evangelho segundo S. Mateus ... segundo S.Marcos ... segundo
S. Lucas... segundo S. João", só aparecem nos princípios do século terceiro, o que significa que
não foram os autores que hoje conhecemos como Mateus, Marcos, Lucas e João que puseram
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o seu nome na respectiva obra ou evangelho, mas foi a Igreja. Também não conhecemos
nenhum manuscrito desses autores, mas apenas cópias de cópias.

Os manuscritos mais antigos em códices que possuímos de todo o NT remontam ao séc. IV.
Antes desta data temos códices e pergaminhos parcelares, alguns escritos dos chamados
Padres da Igreja e já alguns textos evangélicos em traduções antigas (copta, siríaco e latim). O
facto de a Igreja escolher Mateus, Marcos, Lucas e João para autores dos respectivos
evangelhos, não significa que corresponda à verdade histórica. A Igreja depende da tradição
sobre este assunto, mas a tradição fundamenta-se na apostolicidade dos autores. Era preciso
que os autores fossem apóstolos ou discípulos directos dos apóstolos. Teríamos, então, dois
apóstolos, Mateus e João, e dois discípulos de apóstolos, Marcos e Lucas. Mas a moderna
crítica bíblica conclui sobre a incerteza de semelhantes atribuições, pelo menos no que se
refere a Mateus e a João. No nosso caso, o que interessa é a afirmação de que os autores dos
evangelhos, sejam eles quem forem, são verdadeiros autores e não simples compiladores de
factos e narrativas. A redacção final tem a ver com uma organização interna bem ordenada das
tradições escritas e orais que os respectivos autores possuíam. Depois veremos que cada autor
apresenta materiais próprios, exclusivos a cada autor, como já vimos, aliás, com o estudo que
fizemos da narrativa da Ascensão, que só aparece em S. Lucas. A estes textos chamamos de
redaccionais, e dão-nos a tónica catequética, teológica, cristológica, eclesiológica,
pneumatológica, de cada um.

O facto de os evangelhos não terem sido escritos por testemunhas oculares explica mais
facilmente as divergências entre eles. Quem lê os evangelhos (e toda a Bíblia) de maneira
fundamentalista e historicista procura explicar estas divergências através do concordismo
bíblico. Vejamos o exemplo do sermão da montanha. Realmente Mateus 5, 1 chama-lhe
sermão da montanha, que abrange os cc.5-7 de Mateus, mas Lucas, em 6, 17 chama-lhe
sermão da planície. Trata-se de dois sermões de Jesus, um na montanha e outro na planície ou
de um só sermão? Claro que se trata de um só sermão. Mas como a palavra montanha, em
Mateus, tem um significado especial, pois vê Jesus como sendo o novo Moisés que sobe à nova
montanha do Sinai para nos dar a sua doutrina, chama-lhe sermão da "montanha", enquanto
Lucas não tem essa maneira de ver a pessoa de Jesus tão ligada à figura de Moisés. A solução
não está no concordismo, mas na intenção do evangelista como autor da sua respectiva obra.
Assim sendo, a conclusão mais importante a tirar é a seguinte: os evangelhos foram compostos
com uma ordem lógica e não necessariamente com uma ordem cronológica.

Como autores, os evangelistas são também teólogos quando direccionam as suas tradições ou
quando adicionam o seu material próprio às mesmas tradições com fins ou objectivos
específicos. Surge, assim, tantas vezes, a questão sempre presente, entre a verdade bíblica e a
verdade histórica. Entre uma e outra não há qualquer contradição ou oposição desde que
partamos do pressuposto de que os autores dos respectivos evangelhos não tiveram por
intenção escrever uma biografia de Jesus como hoje entendemos o género literário biográfico.
A sua intenção, como já vimos com o prólogo de Lucas, é fundamentar a fé dos seus leitores e
ouvintes. Por isso, não estranha que cada autor possa compor as suas tradições segundo
objectivos próprios. A sua verdade tem a ver com a história em função da fé e da salvação e
não o contrário. Veremos como isto é fundamental para compreendermos as profundas
divergências no chamado evangelho da infância de Lucas e Mateus. Mas também
compreendemos que muitos cristãos tenham perdido a fé, em tempos passados, quando se
confundia verdade bíblica com verdade histórica factual. E também compreendemos que, hoje
em dia, um dos problemas fundamentais no estudo da Bíblia continua a ser esta tónica da
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verdade, sobretudo por causado aparecimento das novas igrejas de tipo fundamentalista e
historicista. Como já vimos, os exegetas servem-se de critérios para atingirem o mais possível
os ditos e os factos do Jesus histórico, mas, por mais que investiguem, nunca chegarão a uma
verdade histórica absolutamente comum e neutral, uma vez que se trata de quatro evangelhos
com visões teológicas, cristológicas e eclesiológicas bastante distintas. É que, finalmente, tudo
o que temos nos evangelhos vem de Jesus Cristo e vem da Igreja, e, para quem acredita, tanto
é verdade o que vem de Jesus Cristo como o que vem da Igreja.

DO JESUS DA HISTÓRIA AO CRISTO DA FÉ

Os três evangelhos sinópticos são muito semelhantes e muito diferentes e, em relação ao


quarto evangelho, as diferenças são abissais. Isto significa que temos pelo menos três tradições
originais acerca da pessoa de Jesus, como depois nos foram transmitidas nos quatro
evangelhos: a tradição de Marcos, da qual provém também Mateus e Lucas, a tradição da
"Quelle", da qual provém o material evangélico comum a Mateus e a Lucas, que não vem em
Marcos, e a tradição joânica, que está na origem do evangelho de S. João, das três cartas de S.
João e do Apocalipse de S. João. Em todos estes escritos, a pessoa de Jesus, tal como ele viveu
durante os três anos da sua chamada "vida pública", isto é, o Jesus da história, mistura-se com
o chamado Cristo da fé, ou seja, os evangelistas não nos relatam uma biografia histórica, como
nós estamos habituados a ler as biografias modernas sobre os grandes homens/mulheres da
história.

Os evangelhos não são, portanto, uma biografia da pessoa de Jesus, mas uma Boa Nova - pois é
isso que significa a palavra Evangelho - que Jesus nos trouxe. E esta Boa Nova tem a ver coma
história e com a fé; nem só história, nem só fé, mas sim história e fé. É que os evangelhos
foram escritos muito depois do mistério da morte e ressurreição de Jesus, e não há dúvida de
que quando os evangelistas os escreveram foi a partir do ângulo da fé no Ressuscitado. Esta fé
determina, na pregação de apóstolos, discípulos, profetas e doutores, que imediatamente
começaram a pregar a Boa Nova sobre a pessoa de Jesus, a elaboração literária dos quatro
evangelhos. Por isso é que se fala do Jesus da história, da tradição e da redacção.

Desde que o NT começou a ser estudado, a partir do séc. XVII, com critérios científicos, a
questão do Jesus da história veio imediatamente à tona da água e tem seguido o seu processo
consoante as perspectivas de cada investigador e das posições históricas e ideológicas das
respectivas escolas ou correntes. Já há cem anos, o autor alemão A. Schweitzer escrevia: cada
nova época da teologia descobria em Jesus as suas próprias ideias e não se podia imaginar que
fosse doutra maneira. E não se reflectiam nele apenas as distintas épocas: cada indivíduo
interpretava-o segundo a sua própria personalidade. Não há nenhuma tarefa histórica mais
pessoal do que escrever uma vida de Jesus. Outro grande estudioso alemão sobre o Jesus
histórico foi J. Jeremias, que escreveu: Os racionalistas descrevem Jesus como o pregador mor;
os idealistas como a quinta essência do humanismo; os estetas exaltam-no como o amigo dos
pobres e o reformador social, e os muitos pseudocientíficos fazem dele uma figura de novela.
Em 1996, os dois exegetas alemães Gerd Theissen e Annette Mertz publicaram um livro
volumoso precisamente com o título o Jesus Histórico, onde estudam com profundidade todos
os assuntos relacionados com a questão.

No Prólogo, depois de confirmarem a importância destes últimos duzentos anos de estudos


científicos sobre a pessoa histórica de Jesus, ressalvam quatro aspectos sobre os mesmos
resultados. O primeiro é que a ciência não diz "assim foi", mas "assim poderia ter sido tendo
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em vista as fontes" que nos servem de base para o estudo. O segundo é que a ciência não diz
"é assim", mas "assim estão as coisas segundo o estado actual da investigação", e isto significa
exactamente "segundo o estado actual dos nossos saberes e erros". O terceiro é que a ciência
não diz simplesmente "este é o nosso resultado", mas "este é o nosso resultado a partir de
determinados métodos". E isto significa que "a via pela qual a ciência alcança o seu objectivo é
para ela tão importante como o próprio objectivo; por vezes, inclusivamente mais". O quarto é
que a ciência é consciente de que os seus resultados são mais efémeros do que os problemas a
que procura dar respostas. E em relação à questão do Jesus histórico muitos problemas
continuam em aberto, porque dependem, necessariamente, das "pré-compreensões" e
"interesses" dos respectivos estudiosos.

No estudo desta questão sobre a investigação do Jesus da história podemos distinguir três
grandes etapas. A primeira é a do tempo do Iluminismo, sobressaindo as figuras de Reimarus,
Schweitzer,Bultmann e W. Wrede. Reimarus afirma, que os discípulos de Jesus foram para além
da intenção original de Jesus, que era a de ser um judeu libertador, mas que resultou num
fracasso. E o tempo da teologia liberal, que produziu muitas vidas de Jesus caracterizadas pela
pré-compreensão do positivismo histórico. Bultmann, anos mais tarde, afirma que os
evangelhos não passam duma criação da fé pascal e, por isso, não nos podem servir de base
para um estudo sério sobre o Jesus da história. Mais ainda, o estudo histórico de Jesus não
interessa à fé cristã, pois equivaleria a destruir a mesma fé porque seria cair na "justificação
pelas obras". Neste sentido, "a crítica histórica mais radical e a fé cristã coexistem, mas não
dialogam". Bultmann parte sempre do pressuposto ideológico luterano de que a fé cristã deve
subsistir apenas a partir do mistério da cruz do Calvário e nada mais. A segunda etapa aparece
com a reacção de alguns discípulos de Bultmann, a começar por Käsemann, que acharam que
era legítimo e importante o estudo do Jesus histórico, a começar pela própria historicidade dos
relatos da ressurreição, que originou o tempo da chamada "new quest", para o distinguir do
tempo da "old quest". Käsemann parte do princípio de que os evangelhos têm em primeiro
lugar uma intenção kerigmática, mas cujo kerigma não renuncia de modo algum à realidade
histórica de Jesus, antes, a pressupõe. Sem este pressuposto histórico resvala-se
imediatamente para a possibilidade do gnosticismo. Esta investigação, que se passa sobretudo
nos meios protestantes, tem a ver com uma hermenêutica existencial e com uma preocupação
teológica e pastoral ao mesmo tempo. Para eles existe uma certa continuidade entre o Jesus
histórico e a fé no Jesus que a Igreja primitiva prega. Trata-se não duma "cristologia explícita",
como vem a acontecer mais tarde, mas duma "cristologia implícita". "Jesus não reivindicou
para si próprio os títulos da cristologia da Igreja, mas a investigação histórica descobre em
Jesus uma pretensão de autoridade, de contacto imediato com Deus, de desempenho dum
papel único para a chegada do Reino de Deus, e tudo isto constitui uma cristologia implícita e
explica porque é que posteriormente surge a cristologia explícita. Sem dúvida que esta
cristologia explícita já pressupõe a fé no acontecimento pascal, mas não é uma tergiversação
da realidade histórica, mas apenas um desenvolvimento e explicitação duma possibilidade de
sentido que já existia nela. A terceira etapa aparece por volta de 1980. Tanto a exegese como a
cristologia católica e protestante da hora actual se fundamentam nestes pressupostos: o Cristo
da fé está na continuação do Jesus da história. O Cristo da fé não é de modo algum uma criação
das comunidades cristãs primitivas, mas uma criação do próprio Jesus frente à sua novidade
histórica se tivermos na devida conta o critério da "descontinuidade" que Jesus nos apresenta
ao confrontarmos a sua pessoa e propostas religiosas e a religião histórica do judaísmo do seu
tempo. Se os evangelhos apresentam um Jesus, como temos vindo a expor, que se
autoproclama com uma autoridade única frente à Lei, ao Templo, à sinagoga, etc., o posterior
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mistério pascal em nada contradiz este sentido da consciência única de Jesus como figura
escatológica e messiânica, antes o pressupõe. Os autores que mais sobressaíram neste
período, para além de Käsemann, foram G.Ebeling, E. Fuchs, H. Braun, W. Marxzen, H.
Conzelmann, G. Bornkamm e M. Robinson.

Ultimamente esta etapa ganhou novo ânimo, sobretudo a partir dos anos 80 e dos estudos de
alguns exegetas dos Estados Unidos da América do Norte. Nesta etapa, os investigadores estão
voltados para uma orientação interdisciplinar e, portanto, servem-se muito das ciências
humanas, mormente da sociologia, antropologia e arqueologia. A sociologia e antropologia
apresentam-nos os costumes e os parâmetros da vida social e familiar dos tempos de Jesus:
quais eram os valores familiares e tribais da cultura e civilização mediterrânicas daquele tempo
e como é que Jesus se moldou aos mesmos ou reagiu contra eles? Os textos dos evangelhos
apresentam-nos um Jesus completamente inserido no judaísmo de então, partilhando das
refeições dos seus compatriotas, da liturgia na sinagoga, da pesca no lago de Tiberíades, da
peregrinação anual ao Templo de Jerusalém. Mas esta inculturação viva e existencial também
lhe servia de púlpito de doutrinação, onde expunha as suas ideias de ruptura ou de contra-
cultura em relação à cultura e aos valores patriarcais e familiares daquele tempo. O facto de
Jesus permanecer sempre celibatário ia contra a cultura patriarcal de então. Por isso, nem
admira que alguém o classificasse de homossexual, como se pode depreender da frase de
Jesus sobre os "eunucos" em Mateus 19, 11-12. O facto de ter abandonado a sua família, para
formar uma família de discípulos, constituía outro escândalo, sobretudo partindo-se do
princípio de que era filho único - o primogénito - e que tinha como dever sagrado velar pelo
resto da família. Assim se explica que os próprios familiares o julgassem como alguém pouco
ajuizado (Mc 3, 20-21). O seu poder taumatúrgico, sobretudo em relação aos chamados
"possessos", fazia com que os seus detractores o classificassem como possuído de Belzebu
(Mc3, 22-29 e par.)

O facto de ter escolhido doze discípulos especiais ia contra o costume rabínico em que os
alunos escolhiam o seu rabi, apenas por alguns anos, para depois se tornarem também rabis.
Os discípulos-apóstolos de Jesus, pelo contrário, são seus discípulos por toda a vida, e não
aprendem na escola de Moisés, mas na escola do próprio Jesus. É com ele que vivem e é
segundo ele que ensinam a vinda do Reino de Deus. Quando o convidam para as refeições,
nem sempre segue os costumes ritualistas das purificações e, quando se dirige aos anfitriões,
inverte por completo toda a sociologia antropológica de então (Lc 7, 36-50 e par;11, 37-41 e
par.). Neste sentido, Jesus é um judeu de raça pura e um anti-judeu de cultura religiosa,
familiar e social. E é por tudo isto que chamava tanto a atenção das pessoas que se
perguntavam: mas quem é este homem, mestre e rabi? Porque é que se comporta desta
maneira tão estranha e inaudita? Na procura do Jesus histórico, esta fase do "Third Quest"
também dá muito valor à especificidade da Galileia, uma vez que o judeu da Galileia era um
tanto ou quanto diferente do judeu da Judeia. Na Galileia, os judeus estavam habituados a
conviver com os pagãos desde os velhos tempos da conquista de Sargão II em 722 a.C. Por isso
é que Mateus classifica a Galileia como "Galileia dos pagãos" (Mt 4, 15, citando Isaías 8, 23-9,
1). E em João7, 41 alguns judeus perguntam: "Mas pode lá ser que o Messias venha da
Galileia?" e, um pouco mais adiante, dentro do mesmo contexto, em 7, 52, o Sinédrio responde
a Nicodemos: "Investiga e verás que da Galileia não sairá nenhum profeta."

Durante a revolta dos Macabeus, no séc. II a.C., o nome "Galileia dos estrangeiros" é bastante
comum, e a minoria judaica da Galileia pede ajuda aos da Judeia (cf. 1Macabeus 5,14s). Um
dos filhos de Judas macabeu, Simão, recolheu muitos judeus da Galileia e transferiu-os para a
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Judeia (1Macabeus 5, 21ss). Um pouco depois, no reinado de Aristóbulo I (104-103a.C.), a


Galileia acaba por ser conquistada e unificada à Judeia. Esta posição político-religiosa é
invertida por Pompeu no ano 63 a. C., ao libertar do jugo judaico as cidades helenizadas da
chamada "Decápole". No tempo de Jesus, a Galileia formada pelos habitantes judeus era um
país de condição judaica, juntamente com a Pereia e a Judeia, mas sem as dez cidades da
Decápole. É sintomático que as relações de Jesus com os pagãos da Galileia não fossem nem
frequentes nem amistosas. Há apenas dois relatos em que Jesus se encontra com pagãos -com
a mulher sirofenícia e com o capitão de Cafarnaum - e, tanto num caso como noutro, Jesus
realiza as duas curas à distância. Outro elemento importante é verificarmos que as duas
maiores cidades da Galileia eram cidades de influência grega e romana, a saber, Séforis, que
ficava apenas a 6 quilómetros de Nazaré, e Tiberíades, a 16 quilómetros de Cafarnaum. Lendo
os evangelhos, percebemos que Jesus nunca foi a estas cidades, e, se tal corresponde à
história, significa que Jesus se dirigiu sempre ao povo tipicamente judeu e sobretudo aos
humildes dos campos e das aldeias. As críticas aos ricos e a defesa dos pobres e humildes
também têm a sua explicação a partir desta sociologia e desta geografia. Os evangelhos
sinópticos, especialmente se tivermos em conta uma leitura sociológica de algumas parábolas,
são bastante preclaros em nos mostrarem as tensões entre os ricos latifundiários da Galileia e
os pequenos agricultores e trabalhadores à hora. A parábola dos vinhateiros homicidas (Mc 12,
lss) demonstra que os trabalhadores não querem entregar aterra ao patrão. A parábola dos
trabalhadores da vinha, seguindo-se por grupos das horas do dia (Mt 20, 1-16), apresenta a
"murmuração" pela injustiça do patrão em pagar igualmente aos que trabalhavam de sol a sol
e aos demais. A parábola de Mateus 18, 23-34 sobre o servo que não tem dinheiro para pagar
as dívidas ao patrão e que, por isso mesmo, tem que ir para a prisão, indica a influência do
direito romano, porque tal não acontecia com o direito judaico: as dívidas de judeus para com
judeus nunca levavam os devedores à prisão (cf. também Mt 5,25ss).Em que é que o facto de
ser galileu poderá ter influenciado Jesus nas suas opções? Terá influenciado a sua revolução
teológica? A abertura galilaica ao mundo greco-romano terá influenciado a sua atitude de
"Rabi" carismático, sem eira nem beira, um pouco à maneira dos filósofos da escola filosófica
dos gregos "cínicos", como pensam alguns investigadores? Por causa de ter vivido na Galileia,
terra da subversão judaica contra os romanos, será que podemos classificar Jesus de um
subversivo da ordem, à maneira dos zelotes?

Todas estas interrogações são pertinentes, pois temos que partir do princípio de que Jesus foi
Alguém que pensou demorada e atentamente a sua "vocação" religiosa, sempre a partir do
factor histórico e político -religioso do seu tempo. Para quem crê que Jesus é o Filho de Deus e
o Salvador do mundo não são estranhas todas estas posições e interrogações, mesmo que não
concorde com as ilações deste ou daquele investigador. Sempre dentro desta perspectiva,
deixando agora os possíveis contributos das ciências humanas, sobretudo da sociologia e
antropologia, e também da arqueologia, os investigadores da "Third Quest" pesquisam,
igualmente, o mundo bíblico e extrabíblico daquele tempo, tanto o imediatamente antes de
Jesus, como o imediatamente depois, para inferir dados que possam iluminar a sua figura
histórica. Trata-se, sobretudo, dos textos de Qumran e dos textos dos evangelhos não
canónicos.

Quanto a Qumran, depois de ter passado a febre do qumranismo, ninguém duvida de que as
expectativas messiânicas dos monges de Qumran, as suas comidas rituais, o seu zelo pela Lei e,
sobretudo, a exegese dos pesharim (comentários a textos proféticos), mormente o pesher a
Habacuc, iluminam tanto pela negativa como pela positiva o mundo religioso de Jesus e de
todo o NT. Embora ainda persistam muitas dúvidas sobre a razão de ser dos essénios e da
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comunidade de Qumran, não há dúvida de que tudo começou quando, no séc. II a.C., um
sumo-sacerdote macabeu, o chamado "sacerdote sacrílego" dos escritos de Qumran, se
outorgou o poder de rei e sumo-sacerdote ao mesmo tempo, deixando cair o sacerdócio
sadoquita tradicional. Assim sendo, para o "Mestre de Justiça", que era a alma religiosa da
comunidade, Jerusalém e o seu Templo viviam fora da Lei de Deus, e só havia uma coisa a
fazer: sair de Jerusalém, refugiar-se no deserto e esperar que Deus castigasse os sacrílegos de
Jerusalém e restabelecesse a ordem sadoquita e enviasse o seu Messias a partir da
comunidade de Qumran. Nesta comunidade cultual, os "filhos de Sadoc", isto é, parentes das
famílias dos sumos-sacerdotes legítimos, tinham a parte de leão, e é por isso que as questões
sobre a pureza sacerdotal e sobre o calendário litúrgico assumem papéis de teologia
fundamental. Os qumranitas têm consciência de que expiam os pecados do povo infiel, a
começar pelo sumo-sacerdote e de mais sacerdotes de Jerusalém. E uma vez que os dados
arqueológicos nos levam para os anos 125-100 a.C., o sumo-sacerdote sacrílego só pode ser
um dos três macabeus: Jónatas, Simão ou João Hircano. O fundador, o tal "Mestre de Justiça",
explicava os profetas em função da própria comunidade, dando, desta feita, à própria
comunidade, um estatuto teológico de escatologia realizada: os profetas falaram em função da
comunidade. O que Jesus anunciava sobre o Reino de Deus também os qumranitas o
anunciavam, embora com perspectivas diferentes, e a maior das diferenças consistia na
vertente pessoal e individual do próprio Jesus como entidade central desse mesmo Reino,
enquanto em Qumran era a comunidade em si que desempenharia essa função. E, para a
comunidade de Qumran, a vinda do Reino de Deus consistia na observância estrita da Torah,
muito ao contrário de Jesus. À mística qumrânica da Torah, Jesus responde com a mística da
graça e do amor. Um outro aspecto muito importante, que nestes últimos tempos tem
interessado os estudiosos do Jesus histórico, refere-se à literatura apócrifa dos judeus e dos
cristãos. Quanto aos judeus, sobressaem os estudos em volta dos targumes, que eram os
comentários litúrgicos das sinagogas em que o hebraico era traduzido para aramaico
acompanhado de alguns comentários internos. E quanto aos cristãos sobressaem os
evangelhos apócrifos descobertos em Nag Hammadi e demais literatura dos primeiros séculos
cristãos.

O problema que se põe é o das fontes e a pergunta que se faz é esta: haverá escritos mais
antigos que os nossos textos canónicos? Enquanto a maioria dos investigadores responde pela
negativa, há, no entanto, alguns autores que respondem pela positiva, isto é, que conferem
valor histórico a alguns apócrifos e descobrem, neles, textos que podem ter a ver directamente
com o próprio Jesus e, inclusivamente, serem mais antigos que os canónicos. Inscrevem- se,
neste caso os autores H. Koester e D. Crossan. Acima de tudo, há quem pense que o chamado
Evangelho de Tomé contém palavras autênticas de Jesus que terão influenciado a fonte Quelle.

O próprio D. Crossan admite que o chamado Evangelho Egerton é dos anos 50, que o Papiro
Oxirinco 1224, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho da Cruz (que seria o núcleo do Evangelho
de Pedro), e que o primeiro estrato do Evangelho de Tomé (que teria sido redigido em
Jerusalém a mando de Tiago, "irmão de Jesus") são textos independentes dos nossos canónicos
e muito primitivos. O mesmo autor defende, ainda, que o Evangelho dos Egípcios e o
Evangelho secreto de Marcos se devem datar pelo ano 70.Embora estas vozes sejam
contraditadas pela grande maioria dos exegetas e historiadores, a verdade é que vieram para a
rua, veiculadas também em parte pela imprensa americana e muito difundidas entre um certo
público ávido de novidades contra tudo o que seja tradicionalmente católico ou protestante.
Apenas como exemplo de grande divulgação referimos o artigo de fundo da Time, de 6 de
Dezembro de 1999, intitulado Jesus at 2000, acompanhado por um rosto de Jesus na própria
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capa. De facto, todo o artigo se fundamenta em literatura apócrifa sobre a pessoa de Jesus.
Como afirma um exegeta espanhol, R. Aguirre Monasterio, não é possível admitir que o
Evangelho de Tomé seja anterior e independente dos evangelhos canónicos, [quando, além
domais - ajuntamos nós - tem notas específicas de gnosticismo], nem é possível que o
Evangelho da Cruz seja a fonte dos relatos da Paixão dos nossos evangelhos canónicos, quando
está cheio de aspectos fantasistas e secundários.

Joaquim CARREIRA DAS NEVES, Jesus Cristo - História e Mistério, Editorial Franciscana, Braga,
2000, pp. 41-46; 50-54.

Joaquim Carreira das Neves

01.06.2012

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