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É doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e professor de filosofia na Universidade Estadual do
Paraná (Unespar). Participa do Coletivo Paulo Freire, projeto de extensão do curso de filosofia da Unespar que
organiza círculos de cultura. Este manuscrito foi publicado, em dezembro de 2019, na revista HHMagazine:
Humanidades em Rede (cf. https://hhmagazine.com.br/como-compreender-e-resistir-o-bolsonarismo-gay/).
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Minha hipótese é a de que, ao explicar como o oprimido transforma-se em
perpetuador ativo de sua própria opressão, Paulo Freire e Augusto Boal nos ajudam a
entender o bolsonarismo gay. Lidos em conjunto, os dois autores nos oferecem recursos para
resistir o fenômeno que o corrente texto se propõe a analisar. O itálico na frase precedente
serve para destacar o duplo aspecto da questão elencada em nosso título. Nosso objetivo é
não só compreender como também sugerir meios de resistência ao bolsonarismo gay.
Em primeiro lugar, a “sombra” torna mais fácil para o opressor agir a favor da
opressão, pois fornece uma narrativa que justifica seus privilégios e que o torna insensível à
injustiça sofrida pelo oprimido. É muito mais fácil para uma pessoa rica, por exemplo, não
se sensibilizar ao ver um sem-teto quando ela endossa o discurso da meritocracia, segundo o
qual a culpa da pobreza é dos próprios pobres (que são preguiçosos, viciados etc.) e segundo
o qual a riqueza é fruto do mérito, quer dizer, do trabalho árduo. Outrossim, é também mais
fácil para um heterossexual agir a favor da opressão homofóbica quando ele introjetou o
discurso segundo o qual os homossexuais são inferiores porque constituem uma aberração.
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pobreza ou à homofobia – para retomar os exemplos do parágrafo anterior –, em verdade,
contribui para que esses dois eixos de opressão continuem vigentes. Na sociedade opressora
em que vivemos, não agir contra a homofobia ou a pobreza, na prática, equivale a apoiá-las.
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Tendo reconstruído brevemente os apontamentos de Freire sobre a internalização da
opressão, vejamos como eles nos auxiliam a compreender o que leva um gay a se tornar
bolsonarista. Em primeiro lugar, Freire nos leva a perceber que a conformidade do oprimido
às métricas inventadas pelos opressores gera benefícios psíquicos. Na medida em que segue
as regras de conduta observadas pelos homens heterossexuais, o gay bolsonarista se sente
“superior” perante os gays “afeminados”. Em segundo lugar, Freire nos ajuda a perceber que,
além de aumentar sua autoestima, a “sombra” tende a tornar o oprimido insensível ao
sofrimento dos demais oprimidos. Visto que concorda com a ideia de que os gays seriam
“inferiores”, o gay bolsonarista não considera problemático a homofobia que se dirige
àqueles gays que desrespeitam as regras de conduta estabelecidas pelo opressor.
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disse que o caso de agressão que sofreu foi um dos fatores causadores da depressão que
culminou em sua tentativa de suicídio.
II
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um tipo similar de opressão a criar núcleos de interação nos quais possam, em conjunto,
revisitar o passado de cada um de modo a identificar os lugares e as ocasiões em que um
certo tipo de osmose ocorreu entre eles. Mediante uso da técnica do arco-íris do desejo, os
núcleos conseguem combater as opressões internalizadas de seus participantes.
O modo como os núcleos criados por Boal visam reverter a internalização da opressão
lembra os “círculos de cultura” propostos por Freire (2017b, p. 99). Na descrição de Freire,
os círculos de cultura oferecem, sobretudo, espaços onde os oprimidos conseguem expurgar
a “sombra” do opressor, alojada dentro deles, por meio do debate democrático. Tanto em
Boal quanto em Freire, o que se objetiva é a formação de subjetividades democráticas – vale
dizer, de mentalidades e sensibilidades que não mais hierarquizam os cidadãos em grupos
“superiores” e “inferiores”. 2 Essa formação, como dissemos, corresponde a um longo e
doloroso “parto”. A passagem de uma subjetividade opressora para outra democrática está
longe de ser uma tarefa fácil.
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Para uma explanação mais detida de como a luta contra a opressão, segundo Freire e Boal, visa à formação de
subjetividades democráticas, cf. Dalaqua (2018 e 2019).
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Esse ponto é ressaltado em um dos relatos incluídos no vídeo “Homossexuais que
apoiam Bolsonaro”, disponível no YouTube. No último depoimento do vídeo, uma jovem
bolsonarista inicia seu relato declarando: “Sou homossexual, mas se pudesse, não seria. Por
quê? Porque é uma vergonha”. A jovem corrobora, assim, a asserção de Boal e Freire. É por
ter internalizado a visão, criada pelo opressor, de que os homossexuais seriam “inferiores”
que a jovem acaba por tornar-se cúmplice de um discurso que a oprime.
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Referências
BOAL, Augusto. O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1996.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra,
2002.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e
Terra, 2017a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra, 2017b.