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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gládiston de Souza Coelho

De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel Bandeira

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Gládiston de Souza Coelho

De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel Bandeira

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Literatura e Crítica
Literária, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria
Aparecida Junqueira.

SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
Aos meus Pais, Waldir e Maria das Dores, a
toda minha família e a Lilian.
AGRADECIMENTOS

A Deus, antes de tudo, pelo Sopro Divino de vida;


Aos meus pais, pela intensa luta para propiciarem minha educação, pelos
ensinamentos, e o maior: mesmo nas horas mais difíceis, sempre esboçaram o
sorriso incentivador;
A toda minha família, pela compreensão, estímulo e paciência;
Aos amigos e colegas de classe, pelas conversas e discussões nos corredores e
nas salas de aula da PUC-SP;
À Lilian de Cássia Felix, amiga, companheira que acompanhou de perto a produção
desta pesquisa, incentivou-me, encheu-me de esperanças e, sobretudo, reergueu-
me quando as forças começavam a escapar-me;
A todos os professores que comigo percorreram este caminho, especialmente a
minha orientadora, Maria Aparecida Junqueira, que, com generosidade e paciência,
tranquilizou-me nos instantes mais difíceis, orientando-me a contornar as muitas
pedras no caminho;
À CAPES, pelo incentivo e apoio financeiro;
À poética de Bandeira, pela viagem literária por todos esses anos;
Enfim, a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram com a elaboração
desta pesquisa.
EPÍGRAFE

Sou bem-nascido. Menino,


Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,


Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,


Queimou sem razão nem dó —
Ah, que dor!
Magoado e só,
— Só! — meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes


Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.

— Esta pouca cinza fria...


Bandeira, 1917

Meu caro Mário de Andrade.


Recebi a Paulicéia desvairada e a sua carta de 23 de novembro (!). Obrigado.
A sua carta testemunha com abundância d'alma aquele afeto e admiração com que você me
ofereceu o seu lindo livro. Desvanece-me grandemente o ter um admirador e amigo da sua força e da
sua bondade.
(Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 3 de outubro de 1922.)
COELHO, Gládiston de Souza. De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel
Bandeira. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em
Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP,
Brasil, 2013.

Resumo
O escopo desta pesquisa é a analise da gênese do projeto poético de Manuel
Bandeira por meio das cartas trocadas entre ele e Mário de Andrade. E, assim, por
meio das leituras, análises e comparações de sua produção poética, depreender o
modo como o poeta constitui sua lírica. Iniciada em maio de 1922 e prolongada até
outubro de 1944, essas correspondências revelam elementos constitutivos do
projeto poético de Bandeira. Nas dobras dos discursos epistolares, estão registrados
os diálogos que balizam boa parte do pensamento desse poeta. Com isso, delineia-
se a questão chave desta pesquisa, ou seja, a verificação de que até que ponto os
fatos discutidos pelo poeta em suas cartas são efetivamente aplicados em seus
versos. O corpus analisado compõe-se de cartas dos dois interlocutores e dos
poemas de Manuel Bandeira. A metodologia parte das análises e comparações dos
discursos, observando-se os pontos mais incisivos e que oferecem os elementos
necessários para averiguação nos processos de criação. Como referencial teórico
para a compreensão da historicidade, contexto social e vida e obra de Bandeira,
apoiamo-nos em estudos de Antonio Candido, Lafetá, Júlio Castañon e Alfredo Bosi.
Acerca dos estudos das cartas e dos processos de criação, recorremos a Hansen,
Moraes e Salles. Em relação à música, o estudo se apoia nos conceitos de Bennett,
Carpeaux, Chissel, Dourado, Med, Priolli, Schafer e Schoenberg. Por fim, os
resultados da pesquisa nos levam a compreender a carta como fragmentos de
discurso e resíduo de memória multifacetada que revela o processo criativo da
poética de Manuel Bandeira como uma das propostas dos modernismos brasileiros.

PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira; Correspondência; Poesia; Processo de


criação, Projeto poético.
COELHO, Gládiston de Souza. De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel
Bandeira. Master‘s degree dissertation. Program of Postgraduate Studies in
Literature and Literary Criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP,
Brasil, 2013.

Abstract

The aim of this research is the analysis of the genesis of Manuel Bandeira‘s
poetic project by the letters exchanged between him and Mário de Andrade. And,
thus the readings, analyses and comparisons of his poetry, see how the poet
constitutes his lyric. Initiated in May 1922 and prolonged until October 1944, these
letters show elements of poetic project of Bandeira. In the epistolary discourses, are
recorded the dialogues that underpin much from the poet‘s thoughts. Considering
this, it delineates the key question of this survey, that is, checking how far the facts
discussed by the poet in his letters are effectively applied in his verses. The analyzed
corpus is consisted by letters of the two interlocutors and the poems of Manuel
Bandeira. The methodology of the analysis goes from comparisons of speeches to
observing the more incisive and points that offer the necessary elements for
investigation in the processes of creation. As a theoretical framework for
understanding the historicity, social context and life and work of Bandeira, we support
in studies of Antonio Candido, Lafetá, Julio Castañon and Alfredo Bosi. About the
studies of letters and the processes of creation, we resorted to Hansen, Moraes and
Salles. The part about the concepts of music, the study is based on the concepts of
Bennett, Carpeaux, Chissel, Golden, Med, Priolli, Schafer and Schoenberg. Finally,
the results lead us to understand the letter like fragments of memory residue and
multifaceted discourse that reveals the creative process of the poetics of Manuel
Bandeira as one of the proposals of the turn.

Key-words: Manuel Bandeira; Letter; Poetry; Creation process, Poetic project.


SUMÁRIO

Índice de abreviaturas............................................................................................... 7

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8

Capítulo 1. Bandeira: o homem, o poeta, o crítico ............................................... 11


1. 1. Bandeira: vida e poesia .................................................................................. 11
1. 2. Bandeira: cartas e crítica ................................................................................ 21

Capítulo 2. Bandeira como poeta e crítico no contexto modernista................... 29


2. 1. O contexto modernista ................................................................................... 29
2. 2. Cartas: testemunho e memória. ..................................................................... 40

Capítulo 3. Conversa entre poetas: a gênese poética de Bandeira .................... 53


3.1. A linguagem poética de Bandeira. .................................................................. 53
3.2. Musicalidade em Bandeira. ............................................................................. 74

Considerações Finais ........................................................................................... 122

Referências ............................................................................................................ 127


Índice de abreviaturas

A seguinte lista compõe-se dos títulos dos poemas do poeta Manuel Bandeira
que são utilizados no corpus desta pesquisa. Para facilitar a leitura e organizar o
trabalho, utilizamos, com as iniciais, as siglas dos títulos referidos, conforme a obra
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993.

A cinza das horas ................................................CH


Carnaval ............................................................... Ca
O ritmo dissoluto ................................................ RD
Libertinagem ........................................................ Li
Estrela da manhã ............................................... EM
Lira dos cinquent‘anos....................................... LC
Belo Belo................................................................ BB
Estrela da tarde................................................... ET
Mafuá do malungo.............................................. MM

7
INTRODUÇÃO

Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma


nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as
repele para longe. (CALVINO, 1993, p. 12)

A epígrafe traz uma possível resposta para qualquer pesquisa que se lance
ao exame das peculiaridades acerca de um autor conhecido e intensamente
estudado. Manuel Bandeira é um desses autores, cujo trabalho é divulgado e
estudado por críticos e estudiosos da historiografia literária brasileira.
É amplamente estudado pelo conjunto de sua poesia, e não tanto pela sua
correspondência, a qual forma um acervo relevante para os estudos literários
brasileiros. Bandeira manteve correspondência com várias personalidades, entre
elas, Ribeiro Couto, Vinícius de Morais, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire,
Mário de Andrade. Estudá-la é uma maneira de contribuir para sua fortuna crítica e
abrir o leque de compreensão acerca de seu projeto poético.
Com todos os autores com quem se correspondeu, o maior número de cartas
foi trocado com Mário de Andrade. Esse diálogo ocorreu de 25 de maio de 1922 a 30
de outubro de 1944. Bandeira discute com o interlocutor paulista assuntos variados:
folclore, tradição brasileira, danças, ritmos musicais. Além disso, tece comentários
acerca da linguagem, etimologias, fatos linguísticos, crítica, pintura e música.
Este trabalho trata de cartas que Manuel Bandeira enviou a Mário de
Andrade, as quais foram publicadas, em 2002, na obra Correspondência Mário de
Andrade & Manuel Bandeira, com introdução e notas de Marcos Antonio de
Moraes. As cartas escolhidas revelam o posicionamento de Bandeira em relação à
sua poética. Poemas também foram selecionados com o objetivo de tecer diálogo
com o processo poético-crítico contido nas cartas.
Nesse sentido, buscamos apreender, em seu discurso epistolar com Mário de
Andrade, aspectos formadores de seu projeto poético, tendo em vista a sua crítica
quanto à elaboração de seus poemas.

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Bem se sabe do desafio dessa empreitada, uma vez que a fortuna crítica
sobre Bandeira é vasta. Destacam-se Ribeiro Couto, Gilberto Freyre, Paulo Mendes
Campos, Sérgio Buarque de Holanda, Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade,
Sérgio Milliet, Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de Campos, Gilberto
Mendonça Teles, Sebastião Uchoa Leite e outros tantos nomes. Mais recentemente,
podem-se citar quatro outros pesquisadores: Davi Arrigucci Jr, João Luiz Lafetá,
Júlio Castañon Guimarães e Ruy Espinheira Filho.
A troca de cartas entre Bandeira e Mário, mantida por mais de duas décadas,
entretanto, instiga-nos a levantar questões que nos ajudem a problematizar a
relação entre a correspondência e a poesia de Bandeira. Daí perguntarmos: até que
ponto a correspondência de Manuel Bandeira a Mário de Andrade descortina o seu
pensamento poético revelado em seus poemas? Ou seja: até que ponto as cartas
inscrevem criticamente a sua concepção de poesia, apontando para o seu projeto
poético?
Fundamentam este trabalho, no que diz respeito à biografia do poeta e o
contexto do qual fez parte, os estudos de Antonio Candido, João Luiz Lafetá, Alfredo
Bosi, Luiz Costa Lima, entre outros. Valemo-nos de autores como Peter Gay, João
Adolfo Hansen e Marcos Antonio de Moraes, para aprofundar a historiografia das
cartas enquanto gênero de documentação e memória. Para a análise de elementos
constitutivos do projeto poético bandeiriano, apoiamo-nos nas cartas trocadas entre
Bandeira e Mário, na concepção de crítica genética Cecilia de Almeida Salles e
Octavio Paz. Ainda sobre a musicalidade do início do século XX, principalmente as
relações da música com o surgimento de novos sons e sua reverberação na poesia,
apoiamo-nos em estudos de Bennett, Carpeaux, Chissel, Dourado, Med, Priolli,
Schafer e Schoenberg. No entanto, é preciso esclarecer que o trabalho não parte
das teorias para o estudo das cartas e dos poemas, mas em direção inversa, já que
as cartas oferecem um material crítico revelador do processo de criação do poeta.
Na correspondência, os pontos mais relevantes foram delineados e anotados,
por temas e sub-temas, que são estudados no terceiro capítulo. Em cada missiva, os
interlocutores ora desenvolvem novos assuntos, ora retomam pontos para
discussão. Por esse motivo, a seleção alonga-se pelas constantes entradas
propiciadas por Moraes.

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Esta dissertação divide-se em três capítulos. O capítulo um, denominado
"Bandeira: o homem, o poeta, o crítico‖, trata da biografia do poeta, demonstrando
aspectos pessoais e sociais que se tornaram proeminentes na formação literária de
Bandeira como família, infância, estudo, trabalho, viagens, descoberta da doença,
publicações e morte do poeta. Também, apresenta Bandeira como estudioso das
tradições folclóricas, de ritmicidade particular e, ao mesmo tempo, universal. Discute
ainda o universo das correspondências desse poeta, as particularidades da base de
sua poesia, as angústias, as alegrias e decepções não somente com a vida mas
com a própria ideia de modernismo.
No capítulo dois, intitulado "Bandeira como poeta e crítico no contexto
modernista", estudamos o contexto modernista, emoldurado pelas relações
econômicas, políticas e socioculturais de um país cujas transformações refletiam no
pensamento e nas produções literárias. Além disso, nessa conjuntura, observamos a
maneira como Bandeira busca apreender essas mudanças e o que propõe para sua
poesia. Em seguida, traçamos o percurso das cartas ao longo da história e a sua
função como um documento de testemunho e memória nas diferentes áreas do
saber e essencialmente na literatura.
O capítulo três, nomeado "Conversa entre poetas: a gênese poética de
Bandeira‖, analisa os pontos que mais se destacam nos discursos entre Bandeira e
Mário: a linguagem, a musicalidade. Para isso, tentamos identificar e depreender os
elementos constitutivos de sua poética. Isto é, aqueles que mais se destacam nos
discursos epistolares e o que acontece em sua produção poética. Ressalta, também,
os debates travados entre ele e Mário sobre as funções das linguagens prosaica e
culta, das tensas discussões sobre os neologismos e invencionices em torno do
modernismo, da musicalidade e do ritmo.

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Capítulo 1. Bandeira: o homem, o poeta, o crítico

1. 1. Bandeira: vida e poesia

MINHA TERRA

Saí menino de minha terra.


Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus...
E hoje uma bonita cidade!

Meu coração ficava pequenino.

Revi afinal o meu Recife.


Está de fato completamente mudado.
Tem avenidas, arranha-céus.
É hoje uma bonita cidade.

Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!


(BB, p. 201)

O período é do segundo império no Brasil, antes mesmo da abolição dos


escravos, momento em que o país passa pela incipiente transformação cultural e
urbanística. Bandeira nasceu Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, em Recife,
no ano de 1886, na rua Joaquim Nabuco, anteriormente chamada rua da Ventura,
no bairro Capunga. O pai, o engenheiro Manuel Carneiro de Sousa Bandeira,
homem culto, também interessado por literatura foi a pessoa com quem teve as
primeiras conversas sobre leituras. Como comenta o poeta em Itinerário de
Pasárgada, ouve do pai as narrativas dos contos de fadas além das cantigas de
roda. Sua mãe, Francelina Ribeiro de Sousa Bandeira, anotara em caderno o
seguinte trecho:

Nasceu meu filho Manuel Carneiro de Souza Bandeira filho, no dia


19 de abril de 1886, 40 minutos depois de meio-dia, numa segunda-
feira santa. Foi batizado no dia 20 de maio, sendo seus padrinhos
seu tio paterno Dr. Raimundo de Sousa Bandeira e sua mulher D.
Helena V. Bandeira. (GUIMARÃES, 2008, p. 13)

Oriundo de famílias de posse e de bagagem cultural, teve dois irmãos,


Antônio e Maria Cândida. Foi ela quem, nos momentos difíceis da descoberta da
doença de Bandeira, acompanhou-o por toda vida. A ela dedica alguns versos e por
11
quem nutre sentimento e gratidão. Aos quatro anos de idade, transfere-se com os
pais para o Rio de Janeiro e, a partir desse momento, as mudanças são constantes
em sua vida. Mudam-se para Santos, São Paulo e retornam para o Rio, fazendo
uma breve passagem por Petrópolis. Em Itinerário de Pasárgada registra:

Sou natural do Recife, mas na verdade nasci para a vida consciente


em Petrópolis, pois de Petrópolis datam as minhas mais velhas
reminiscências. Procurei fixá-las no poema "Infância": uma corrida de
ciclistas, um bambual debruçado no rio (imagino que era o fundo do
Palácio de Cristal), o pátio do antigo Hotel Orleans, hoje Palace
Hotel... Devia ter eu então uns três anos. O que há de especial
nessas reminiscências (e em outras dos anos seguintes,
reminiscências do Rio e de São Paulo, até 1892, quando voltei a
Pernambuco, onde fiquei até os dez anos) é que, não obstante
serem tão vagas, encerram para mim um conteúdo inesgotável de
emoção. (BANDEIRA, 2012, p. 25)

A infância servirá de material para sua lírica. Das lembranças desse período
surgem poemas que revelam humanismo, deleite, graciosidade, com uma pitada de
ironia. Em outros, cria cenas de uma infância perpassada pela inocência, como
ocorre em "Porquinho-da-índia". Aliás, a fase de criança marca um Bandeira atento e
observador do cotidiano, demonstrando nos versos teor descritivo. Também em
Itinerário de Pasárgada, afirma:

Na casa de Laranjeiras, onde moramos os seis anos que cursei o


Externato do Ginásio Nacional, hoje Pedro II, nunca faltava o pão,
mas a luta era dura. E eu desde logo tomei parte nela, como
intermediário entre minha mãe e os fornecedores – vendeiro,
açougueiro, quitandeiro, padeiro. Nunca brinquei com os moleques
da rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo.
Jamais me esqueci das palavras com que certo caixeiro de venda
português deu notícias de um companheiro que não era visto havia
algum tempo: "O seu Alberto está com os pulmões podres".
(BANDEIRA, 2012, p. 31)

Leituras de contos de fadas e cantigas de roda ficam na memória do poeta,


tornando-se os primeiros passos de sua trajetória literária, cujo caminho duplica-se
entre o mundo da infância e o universo adulto. No poema "Camelôs", nota-se a
recuperação da infância:

12
Camelôs

Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:


O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam Box
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.
(...)
(Li, p. 127)

O olhar apreende os brinquedos e as brincadeiras de um tempo do ―tostão‖


que o vendedor camelô, sem hierarquizar importância, mostra: balõezinhos de cor,
macaquinho, cachorrinho, homenzinhos, perereca, canetinhas-tinteiro, assim como
suas ações e qualidades, num mundo quase encantado.
Ainda no Rio de Janeiro, a partir de 1896, cursa o Externato do Ginásio
Nacional, antes chamado Colégio Pedro II, retomando em 1911 seu antigo nome,
pois, em razão da proclamação da República, tentava-se apagar os vestígios do
império. Nesse período, Bandeira destaca-se como aluno. Desse tempo são seus
colegas Sousa da Silveira1 e Antenor Nascentes, que se tornaram filólogos e são
citados em muitas passagens das cartas e também em Itinerário de Pasárgada.
Teve como professores os críticos João Ribeiro2, José Veríssimo e o filólogo Said
Ali. Como registra Guimarães (2008, p. 15), essa fase é marcada por leituras de
François Coppée, Leconte de Lisle, Baudelaire, Heredia, Antônio Nobre.
Em 1903, em São Paulo, matricula-se na Escola Politécnica, tentando seguir
a carreira de arquiteto. Trabalha nos escritórios da Estrada de Ferro Sorocabana, e
cursa desenho de ornato, no período noturno, no Liceu de Artes e Ofícios. Em
virtude da tuberculose, abandona os estudos no final do ano letivo. Em carta de 27
de dezembro de 1924, Bandeira explica a Mário o efeito da tísica em sua própria
vida e formação humanista. A morte é, sobretudo, a vida em curso, nunca para ele
um fim em si mesma. Demonstra, simultaneamente, dois Bandeiras ou duas
naturezas distintas: um antes e outro depois da doença:

A tuberculose em Manuel foi uma data histórica. Justíssimo. Eu


próprio não sei dizer qual é o verdadeiro Manuel: o manso ou o outro.
Antes da doença fui dinâmico como um futurista italiano, verdadeiro

1
Álvaro Ferdinando Sousa da Silveira (1883-1967)
2
João Ribeiro (1860-1934) foi professor de Manuel Bandeira no colégio Pedro II.
13
azougue, sarcástico, remedador (grande talento comediante),
agressivo, sem maldade de coração mas com muita maldade
intelectual. A tísica pôs água nessa fervura toda. (MORAES, p. 166)
(MB 61, p. 165)

Em carta enviada a Mário, em 3 de julho de 1922, Bandeira (MORAES, 2001,


p. 66) escreve, comentando a passagem por São Paulo: "Já vivi em São Paulo onde
cursei o 1° ano da Escola Politécnica (ia estudar arquitetura) e posso dizer: São
Paulo é alguma coisa e o Rio é uma mistura de coisas onde também a coisa paulista
entra".
O rompimento de seus estudos marcou-o profundamente. Esse fato
representou um momento de reflexão e revitalização do impulso à escrita. Em busca
de um lugar mais tranquilo, com o objetivo de recuperar a saúde debilitada, realiza
constantes mudanças de cidades. Em Lira do cinquent'anos, poetiza um desses
momentos que traz o menino, o homem e a vida:

Criou-me desde eu menino,


Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
(LC, p. 182)

Um poema publicado na primeira página do Correio da Manhã foi comentado


por Machado ao pai de Bandeira, que trabalhava na mesma repartição que Machado
de Assis, elogiando os versos incipientes do poeta. A primeira estrofe desse poema
(soneto) compõe-se de versos que revelam oposição, entre divino carnal:

Nasceste para o beijo e os êxtases divinos


Do amor, e és para o amor a heroína ideal.
Trazes disso estampado o vívido sinal
Na rubra timidez dos lábios purpurinos.
(BANDEIRA, apud. GUIMARÃES, 2008, p. 17)

Ingressa na vida cultural do Rio, torna-se um curioso pelas outras áreas,


chegando a vender seus livros em sebos para angariar dinheiro com o intuito de
assistir às turnês na cidade. Nessa época, inicia sua formação musical, podendo,
mais tarde, tecer comentários a Mário sobre muitos compositores como Bach,

14
Beethoven, Schubert, Schumann, Debussy, Chopin, Gluck, Mussorgsky, Liszt,
Weber, Satie, e o brasileiro, Villa-Lobos.
A gravidade da doença leva-o para a Europa e, em 1913, interna-se no
sanatório de Clavadel, na Suíça. Aproveita os momentos para se dedicar aos
estudos, principalmente retomar o alemão. A passagem por esse sanatório permite-
lhe conhecer o poeta francês, Paul Éluard, pseudônimo de Paul Eugène Grindel. Em
cartas, comenta esse período. Com a iminência da guerra de 1914, retorna ao
Brasil, residindo no Rio de Janeiro.
Mais tarde, uma sucessão de acontecimentos marca radicalmente sua vida. A
perda da mãe (1916), da irmã (1918), que lhe servia como enfermeira, e do pai
(1920) cravam de vez o desalento na alma do poeta. O sentimento da morte, desde
a trágica revelação de sua própria enfermidade, torna-se angústia, inconformismo e
alento para se lançar com ímpeto na produção poética. Publica seu primeiro livro, A
cinza das horas, em 1917, impresso nas oficinas do Jornal do Comércio, com
uma edição de duzentos exemplares, custeada por ele mesmo. Dois anos mais
tarde, publica Carnaval (1919), livro que se torna foco de admiração e atenção do
grupo modernista paulista. Em 1920, publica Ritmo dissoluto, Libertinagem e
Crônicas da Província do Brasil e poemas de Estrela da manhã.
Na casa de Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro, em 1921, acontece o
primeiro encontro entre Bandeira e Mário, quando este estava de passagem pela
cidade para divulgar o poema "Cenas de crianças" e os versos de Paulicéia
desvairada. Além disso, o escritor paulista tinha como objetivo reunir adeptos
modernistas entre os cariocas. Guilherme de Almeida já havia apresentado a Mário
os poemas de Carnaval, que despertou no escritor paulista a vontade de conhecer
pessoalmente o autor da obra. A troca de cartas entre os dois começaria somente
em 25 de maio de 1922, por iniciativa de Bandeira. Moraes (2001, p. 14) sintetiza a
importância dessa correspondência:

A partir daí as páginas dessas cartas testemunham a história da


amizade entre duas figuras de proa do modernismo brasileiro.
Eyewitnesses e participantes do movimento, esses documentos
registram estratégias de divulgação da arte moderna, dissenções nos
grupos, comentários em torno da produção literária, exposições de
artes plásticas e apresentações musicais, no calor da hora. Adentram
o diálogo epistolar outros atores do modernismo, redivivos, com suas
fraquezas morais e potencialidades, examinados com paixão ou
criticados cruamente.
15
Em sua ida a São Paulo, trava conhecimento com personalidades do cenário
cultural, como Couto de Barros, Tácito de Almeida, Paulo Prado, Menotti del Picchia,
além de criar um círculo de amigos sempre referidos nas cartas, como Jaime Ovalle,
Dante Milano, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais (neto). Junta-se a
eles para debates em torno do modernismo brasileiro e da poesia que viria a se
denominar poesia modernista. Data de 1924 a publicação do volume de poesias,
incluindo Cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto. Anota Candido (apud
BANDEIRA, 1993, p. 6):

Em Cinza das horas e Carnaval, e mesmo em grande parte de Ritmo


dissoluto, os ambientes e as coisas correspondem mais ou menos ao
que deles espera a sensibilidade média, alimentada de poesia
tradicional. Em lugares adequados à tonalidade confidencial e
plangente da moda crepuscular, o poeta confunde de certo modo as
coisas com os sentimentos, unificando-os por um fluido
intercomunicável que suprime as fronteiras e, ao mesmo tempo,
descaracteriza os objetos.

A vida de Bandeira torna-se cheia de atividades. Colabora com a coluna Mês


Modernista, do jornal A noite e produz crítica musical para a revista A ideia
Ilustrada (CANDIDO, apud. BANDEIRA, 1993, p. 22). Viaja a diversos estados e
cidades brasileiras (Belém, Salvador, Recife, Paraíba, Fortaleza, São Luís). Participa
como fiscal, em Recife, de bancas examinadoras de preparatórios (1928/29).
Alavanca sua carreira ao escrever crônicas semanalmente para o Diário Nacional
de São Paulo (1928/30) e A província, de Recife (1930/31). Produz crítica de
cinema para o Diário da Noite, do Rio (1930).
Em 1930, publica Libertinagem, custeado por ele próprio. Em 1935, o
ministro Capanema o nomeia inspetor de ensino secundário. Em seu cinquentenário,
em 1936, é homenageado, com a edição de 201 exemplares do livro Homenagem a
Manuel Bandeira. Esse livro, do qual participam "[...] trinta e três entre os mais
importantes escritores modernos do Brasil" (BANDEIRA, 1993, p. 22), é composto
de comentários, estudos, poemas e impressões sobre Bandeira.
Seus primeiros lucros com a produção poética datam de 1937, aos 51 anos
de idade, com o prêmio concedido pela Sociedade Felipe d'Olivera (1937). No ano
de 1938, torna-se professor de Literatura do Colégio Pedro II e membro do Conselho
Consultivo do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por

16
nomeação do ministro Gustavo Capanema. Sua Antologia de poetas brasileiros
da fase parnasiana e o Guia de Ouro Preto são publicados pelo Ministério da
Educação.
As epístolas revelam um Bandeira antenado à cotidianidade não somente
paulistana como também carioca. As constantes conversas e contatos com
protagonistas tanto da área literária quanto das artes plásticas e da música
permitiram-lhe conhecer os posicionamentos de representantes de cada campo do
conhecimento. Em decorrência, tece comentários às vezes polidos e muitas vezes
ácidos sobre determinados aspectos da estética modernista.
Bandeira sente especial admiração pela música, pintura, por assuntos de
linguagem, pelas festas populares e pela diversidade rítmica brasileira. Embora
estivesse limitado pela doença, percorre regiões do país, incluindo cidades do Rio
de Janeiro e Minas Gerais. O poeta caminha atento pelas ruas, praças e avenidas,
dedicando atenção às culturas, folclores, modos de falar do povo, cuja oralidade
revela peculiaridades como diferentes ritmos e sonoridades. Esses aspectos são as
bases para a formação de um Bandeira próximo do cotidiano brasileiro. No campo
da música, especialmente, entra em contato com Villa-Lobos, com quem convive e
discute pontos de vista acerca da cultura. Em muitos instantes, critica-o, como
confessa a Mário de Andrade.
Se Recife foi seu berço, o Brasil foi sua casa. Soube como poucos captar a
beleza natural dos interiores e exteriores das casas, ruas, praças, as andanças
desconcertadas dos transeuntes, materializando-os em poemas. O que é possível
reconhecer em:

COMENTÁRIO MUSICAL

O meu quarto de dormir a cavaleiro da entrada da barra.


Entram por ele dentro
Os ares oceânicos,
Maresias atlânticas:
São Paulo de Luanda, Figueira da Foz, praias gaélicas da Irlanda...
O comentário musical da paisagem só podia ser o sussurro sinfônico
[da vida civil.
No entanto o que ouço neste momento é um silvo agudo de sagüim:
Minha vizinha de baixo comprou um sagüim.
(Li, p. 128)

17
Há uma estreita relação entre intimidade do quarto, natureza e vida civil. De
igual modo, o poeta coloca em mesmo verso dois espaços distintos: nacional e
universal - São Paulo e Irlanda. Além da ambientação, a sonoridade está
constantemente presente em seus versos, trazida, aqui, por sons e cheiros –
―comentário musical da paisagem‖ – transformada no ―sussurro sinfônico da vida
civil‖. Todavia, em contraste com o exterior e interior, ―o que ouço neste momento é
um silvo agudo de sagüim‖. O silvo do sagüim – espécie pequena de primata de
cauda longa – é o que ouve o sujeito lírico na harmonia sonora deste momento
interior. Na força da cotidiana e simples vida: ―minha vizinha de baico comprou um
sagüim‖. Também em ―última canção do beco‖, o cenário urbano é descrito:

ÚLTIMA CANÇÃO DO BECO

Beco que cantei num dístico


Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa.


Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
(...)
(LC, p. 179)

Nesse poema, o beco se torna elemento representativo do espaço urbano. O


poeta trata das singularidades de suas experiências nos centros urbanos. Como
uma espécie de testemunha ocular, flagra detalhes e os transforma em poesia. A
imagem do ―beco‖, apreendida na ―última canção‖, contrasta o externo e o interno,
traduzindo intimidades da rua, do quarto, do eu, no olhar do poeta. O ―beco‖ – O
poema do beco -, cantado em dístico – ―Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a
linha do horizonte? - O que eu vejo é o beco.‖ -, resultou ―cheio de elipses mentais‖.
Ou neste poema, reminiscências em elipses também. Na casa, por exemplo,
metáfora de memória, o quarto vai ficar na eternidade. Como descreve Bachelard
(1993, p. 24-42), ―[...] a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde,
18
o nosso primeiro universo. Por esse motivo ela humaniza o ser que nela vive. É um
verdadeiro cosmos. [...] a casa e o quarto são marcados por uma intimidade
inolvidável. Registra Bandeira, desse modo, sua sensibilidade em reação à
transformação que as coisas sofrem na passagem do tempo.
Em Bandeira, as fronteiras parecem desmanchar tanto nos versos quanto em
muitas passagens das cartas, por causa da mescla da linguagem trivial quase
infantil, própria das relações familiares, e da formalidade do universo adulto,
denotadas na seriedade poética com que o poeta trata os assuntos.
Ora sério, ora brincalhão, cômico, sarcástico, o tom modalizado dos discursos
proferidos a Mário revela o que Bandeira é em vida e em verso. A prosa poética
perceptível nas correspondências ecoa na poética prosaica construída em seus
poemas. Passeia livremente da linguagem infantil ao formalismo adulto. Nesse
sentido, reconstrói o jogo do duplo entre um eu e um outro, entre o autor e o leitor.
Essa alteridade sempre presente em Bandeira é constituída no jogo de
elementos como: ironia/graciosidade, leveza/peso, provincianismo/cosmopolitismo,
linguagem formal/informal, tradição/modernidade, sublime/grotesco, local/universal,
realidade/fantasia, vida/morte. O poeta torna a leitura dos versos mais agradável,
alivia também pelo humor3 como trata da sua tragédia pessoal:

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.


A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
— Respire.
.............................................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão
[direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
(Li, p. 128)

3
Em ―O humor na moderna poesia brasileira‖, texto integrante de Estudos Literários (in.
BANDEIRA, 1997, p. 522), o poeta anota: ―O humour, ou seja, a disposição para rir, ou pelo menos
para sorrir, de coisas ou situações que encaradas a sério seriam demasiado penosas ou revoltantes
die lachende Throene im Auge, como o definiu Jean Paul Richter instalou-se na poesia brasileira
com a geração de 22, subversiva dos cânones e valores então em voga.‖. Bandeira atribui o humor,
muitas vezes usado nas paródias, como uma das maneiras de contrapor o parnasianismo e o
simbolismo.
19
Nesse poema, a voz lírica zomba de sua própria situação por meio do jogo de
palavras instaurado entre termos do campo semântico da doença contrastados com
os da dança. Esse jogo é criado pela habilidade com que o poeta lida
humoristicamente com a questão, não como uma forma de anulação, mas sobretudo
de enfrentamento da vida. A leveza da leitura é criada pela relação desse jogo entre
vida e morte.
As constantes mudanças de cenário e de clima permitem-lhe a experiência
que somente a vida poderia lhe presentear, consagrando-o pela sua capacidade
perceptiva. Essa experiência propicia-lhe uma visão detalhada das variedades
cultural, geográfica e linguística do Brasil. Assim, começa a fazer crítica de artes
plásticas n'Amanhã (1941), torna-se professor de literatura hispano-americana na
Faculdade Nacional de Filosofia (1943). Em seguida, escreve o Panorama de la
poesía brasileña para a Editora Fondo de Cultura Económica, do Mexico. Dois anos
mais tarde, recebe o prêmio de Poesia do Ibec e publica Apresentação da poesia
brasileira e Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos. No ano
de 1954, sai Itinerário de Pasárgada, reeditado pela São José em 1957, com
acréscimo de ―De poetas e de poesia”. É livro sobre crítica literária e de poesia.
Como tradutor, em 1956, verte para o português Maria Stuart, do poeta
alemão Schiller, MacBeth, de Shakespeare, a tragédia La Machine infernale, de
Jean Cocteau. Em 1957, somam-se as peças June and the Paycock, de Sean
O'Casey, e The rainmaker, de N. Richard Nash. Neste mesmo ano, publica, pela
Editora Alvorada, o livro de crônicas Flauta de papel. Faz viagens para a Holanda,
Londres e Paris. Traduz, em 1958, o Auto do divino Narciso, de Juana Inés de la
Cruz, a peça em verso Colóquio-sinfonieta, de Jean Tardieu. Na sequência, em
1959, The Matchmaker (A casamenteira), de Thornton Wilder; em 1960, o drama D.
Juan Tenório, de Zorrilla. Ainda nesse ano a Editora Dinamene, da Bahia, publica
Estrela da tarde.
Para a Coleção Prêmios Nobel da Editora Delta, verte ainda, em 1961 e 1962,
o poema Mireille, de Mistral, e Prometeu e Epimeteu, de Carl Spitteler. Somam-se a
essas traduções, entre os anos de 63 a 65, Der kaukasische Kreide Kreis, de Bertolt
Brecht, O advogado do diabo, de Moris West, 'Tis Pity She's a Whore (Pena ele ser

20
o que é), de John Ford, Os verdes campos do Éden, de Antonio gala, A fogueira
feliz, de J. N. Descalzo, e Edith Stein na câmara de gás, de Frei Gabriel Cacho.
Após uma série de trabalhos: produções poéticas, crônicas, artigos sobre
crítica e recebimento de um número representativo de cartas e de homenagens de
amigos e críticos, Bandeira começa a apresentar sérios problemas de saúde. Falece
em 13 de outubro de 1968, aos 82 anos, no Hospital Samaritano, em Botafogo. É
sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Cemitério S. João
Batista. Ironicamente, a vida pregara-lhe uma peça. Em virtude de sua doença,
vivera cada dia como se fosse o último.

1. 2. Bandeira: cartas e crítica

CARTAS DE MEU AVÔ

A tarde cai, por demais


Erma, úmida e silente...
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou


Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado...


Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.
(...)
(ACH, p. 52)

Marcos Antonio de Moraes, na introdução do livro Correspondência Mário


de Andrade & Manuel Bandeira, cita Candido (apud. MORAES, 2001, p. 9) que
ressalta a importância da contribuição de Mário de Andrade: "A sua correspondência
encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua

21
portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da
sua obra e do seu espírito"4.
Essa afirmação de Candido a Mário vale também para Bandeira. Isso se
levarmos em conta o acervo de sua correspondência – legado de documentos
autênticos - e as informações aí veiculadas, referentes ao projeto de Bandeira. Tais
documentos propiciam a abertura de novas possibilidades de leitura tanto da matriz
de pensamento desse poeta quanto da ampliação de horizontes para o projeto
modernista. A afirmação de Candido corrobora as expectativas referentes aos ideais
modernistas brasileiros. Especialmente em Bandeira, que não somente abraçou a
causa de uma poética autenticamente brasileira, como também imprimiu sua marca
no cenário intelectual do Brasil.
Assim como Mário de Andrade, Manuel Bandeira pode ser apresentado como
um dos fecundos correspondentes de seu tempo. Mesmo diante da doença, a
tuberculose, Bandeira soube encarar a vida com a máscara humanizadoramente
humilde da ironia: "Eu gosto de você – mas muito, – quando exprime o seu alto e
puro lirismo na cortante ironia da linguagem terra-a-terra." (MORAES, 2001, p. 70).
Talvez, como forma de velar o sentimento de fraqueza perante o desconhecido,
desdobra esse olhar tanto na produção poética como nas correspondências. Por
exemplo, trata a morte, muitas vezes, com humor como demonstra nas conversas
informais e em tom de brincadeira com os amigos. Em 17 de janeiro de 1935,
registra: ―Até quando vão as suas férias? Não dá as caras por aqui neste verão? Tenho um
projeto de passar o mês de março em Cambuquira para ver se conserto de vez o fígado (o
Ribeiro Couto caçoou que eu ‗me mudei agora para o fígado.‘)‖. (MORAES, 2001, p. 609)
Assim como muitas missivas, alguns poemas do autor fazem referência à
morte, que se dissimula pela delicadeza na maneira de expressar, pela forma lúdica
que imprime leveza aos versos como em "Profundamente", apresentado na carta de
22 de agosto de 1927:

PROFUNDAMENTE

"Quando ontem adormeci


(...)
―Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo

4
Conforme Moraes, em nota 1, p. 9, esse trecho pertence a CANDIDO, Antonio. Mário de Andrade.
Revista do Arquivo Municipal, nº 106. Ed. Facsimilar nº 198. São Paulo, Departamento do Patrimônio
Histórico, 1990, p. 69.
22
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia, Rosa
Onde estão todos eles?

"Estão todos dormindo


Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente. 5
(MORAES, 2001, pp. 348-349)

Nesse poema, o poeta retoma o passado por meio da memória. No entanto, o


uso do verbo ―Dormindo‖, seguido do advérbio ―Profundamente‖, instaura nos versos
o eufemismo, amenizando e até humanizando a ―morte‖. A angústia da pergunta
―Onde estão todos eles?‖ é apaziguada na estrofe seguinte pela afirmativa: ―Estão
todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente‖. Em artigo
intitulado "A expressão da ironia em ‗Libertinagem‘", Giovanni Pontiero (1980, p.
267) comenta a nova fase do poeta quanto à sua recusa "[...] em conformar-se com
formas tradicionais". Para Pontiero, o autor de "Meninos carvoeiros" demonstra a
agudez da expressividade, as variedades de recursos como ambiguidade,
evocações subjetivas e a inquietude. Ainda desenvolve um fio de raciocínio pelo
qual os paradoxos são o resultado do reajustamento do poeta com o mundo dos
sãos.
Entrar nessas cartas é uma maneira de observar as pistas do projeto poético,
as quais se revelam como fragmentos de uma matriz de pensamento, auxiliando no
desvendamento de sua poesia. Apreender os fundamentos poéticos é transpor a
intimidade acolhedora de Bandeira. Além disso, essa imersão possibilita trazer à luz
o cotidiano bandeiriano, do qual emana uma multiplicidade temática, rítmica e
musical.
Tais cartas, tendo em vista a determinação de Mário, só vieram a
conhecimento do público 50 anos após o seu falecimento. Esse pedido foi cumprido
rigorosamente pela família e pelos amigos, como registra Moraes (2001, p. 9). As
missivas guardadas por Mário passaram a figurar o acervo do IEB, na Universidade
de São Paulo, graças ao empenho dos professores Antonio Candido e José

5
Conforme nota 28 apresentada por Moraes (2001, p. 349), este poema passou por modificações
tanto da disposição tipográfica quanto das estrofes e de alguns versos.

23
Aderaldo Castello, este último, então, diretor do mesmo instituto. Foram organizadas
em livro conforme as "normas internacionais e metodologia de pesquisa
especialmente desenvolvida", segundo Moraes (2001, p. 9). Mário e Bandeira tinham
consciência da importância dessas correspondências como valor documental.
Preservaram-nas, registrando esclarecimentos de situações, identificação de
correspondentes e datas.
A Coleção do IEB inclui as notas de pesquisa do organizador Marcos Antonio
de Moraes. A confiabilidade dos textos exigiu a participação também de outras
editoras que estabeleceram "[...] um corpus epistolográfico fidedigno, fixado segundo
metodologia científica interessada na uniformidade textual e na atualização
ortográfica" (MORAES, 2001, p. 11). O conjunto dessas cartas permite uma espécie
de composição do diálogo entre os dois interlocutores seja pelo tom pessoal da
amizade, do qual brotam as experiências cotidianas, seja pelo confidencial, cujo teor
de elaboração evidencia tanto a liberdade da escrita como a elaboração do discurso.
Aparece, ainda, o tom crítico, dadas as aprovações dos estilos ou tratamentos
das obras produzidas, bem como as reprovações dos aspectos, a cujo projeto
modernista parecesse incompreensão. Mário e Bandeira estavam atentos ao
tratamento de uma literatura modernista. Essa consciência permitiu-lhes elaborar,
mesmo que intuitivamente, um projeto para os trabalhos realizados por longos anos.
Os procedimentos empregados ecoam como pistas fidedignas nas páginas de cada
missiva. Do universo desse discurso epistolar emana:

[...] o entendimento de situações individuais e histórico-artísticas que


as cartas apenas nuançam. Multiplicam o diálogo em questão,
paralelamente, vozes de outros interlocutores – cartas, artigos,
entrevistas, muitos documentos, enfim –, acrescentando dados e
fazendo fluir as relações da vida como o mundo da arte. (MORAES,
2001, p.11)

Das palavras dirigidas um ao outro, nasce uma ―humanidade‖ que permite a


compreensão da prática poética. Nos discursos das epístolas e na poesia de
Bandeira, observa-se a intenção de humanizar o leitor por meio dos versos, ou seja,
pela singularidade da palavra poética. Há uma constante preocupação com aquele
que vai ler o poema. Essa singularidade parece referir-se ao ser em sua
individualidade surgida do cotidiano do homem. Dessa forma, o cotidiano, construído

24
pela linguagem prosaica e pelas imagens, talvez seja o espaço no qual se devolve
ao homem sua humanidade, isto é, valoriza-se aquilo que constrói, no dia a dia, a
sua própria narrativa de vida.
Para esses interlocutores, a importância dessa correspondência centrava-se
no debate de projetos de literatura. Era o gênero que, pela sua especificidade,
tornava possível os diálogos em torno de um projeto de vida, não mais apenas como
expressão de sentimentos amorosos ou meio de comunicação pessoal. Moraes
(2001, p. 12) declara:

[...] o próprio Mário havia grifado a importância do modernismo na


consolidação do gênero epistolar no Brasil, tornando-o "uma forma
espiritual de vida em nossa literatura". Forma o conjunto mais
representativo da epistolografia brasileira do século XX, no que tange
a discussão de projetos estéticos e aos arquivos da criação que
desnudam o artefazer de poetas, ficcionistas, artistas plásticos e
músicos.

Assim como o autor de Paulicéia desvairada, Bandeira tinha consciência de


que o gênero epistolar no Brasil constitui por si mesmo uma arena, na qual os
projetos estéticos podem ser discutidos.
Logo após a Semana de Arte Moderna, Mário envia carta a Bandeira, em 06
de junho de 1922, dizendo que tê-lo conhecido foi uma alegria. Nela, esboça
admiração pelo poema "Os sapos", incluído em Carnaval, obra que lhe foi
presenteada pelo autor:

Há no livro uma página que considero das maiores de nossa poesia:


"Os sapos". Já o sabias. (Quando estive no Rio, o ano passado um
desejo eu tinha: conversar com o autor dos "Sapos". Realizei meu
desejo. Voltei contente). Os teus trechos de verdadeiro verso livre
são magníficos. (MORAES, 2001, p. 62)

Evidencia-se, nesse trecho, a abertura de discussões que se alongariam nos


discursos das cartas a respeito de música, poesia e outros temas. Há, igualmente,
registros sobre a produção literária, exposições de artes plásticas, música, cultura,
assuntos sobre Língua e Linguagem, arquitetura, indicando a preocupação do
homem de letras. Afirma Moraes (2001, p. 14):

O "comungar" da carta se espelha no desejo de estar junto ("Ah


Manuel se nós pudéssemos viver na mesma cidade!), na constante
25
troca de opinião, nas sugestões contestadas ou aceitas. O "outro", no
diálogo epistolar, concorre muitas vezes para a realização artística,
funcionando como termômetro da criação. A carta é "laboratório"
onde se acompanha o engendramento do texto literário em filigranas,
desvendando-se elementos de constituição técnica da poesia e seus
problemas específicos. Propicia a análise (gênese e busca do
sentido) e torna manifesto as motivações externas que "precisam a
circunstância" da criação. A escrita epistolográfica também
proporciona a experimentação lingüística e o desvendamento
confessional. Enquanto expressão do momento, nascida ao correr da
pena, os paradoxos e contradições se tornam presentes. Como em
um romance, nela também as paixões se entrelaçam e os desejos
afloram.

Observa-se uma fluida fronteira entre os gêneros carta e texto literário.


Rompem-se as barreiras interpostas entre o universo do relato e o da poesia, entre a
prosa e o verso. A poesia rompe o discurso epistolar assim como Bandeira, em
muitos versos, rompe o poema pelo discurso jornalístico. Exemplos disso são os
poemas:

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da


[Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(Li, p. 136)

IRENE NO CÉU

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:


— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
(Li, p. 142)

Em ―Poema tirado de uma notícia de jornal‖, os versos confundem-se com a


prosa jornalística. É a notícia de um fato corriqueiro que envolve João Gostoso. O
próprio nome da personagem remete à graciosidade da fala. O peso do elemento
trágico é aliviado pela forma prosaica do contar. O tom da notícia rompe os
26
paradigmas do universo literário e coloca o cotidiano na categoria do poético. Sem
falar que a ironia se presentifica nesses versos envoltos no humor, por meio das
acumulações de verbo: ―chegou – bebeu cantou dançou – se atirou e morreu‖. Em
caminho inverso, aproxima a poesia da realidade humana, fazendo-a descer do
"olimpo", onde a tradição clássica a colocou. Com isso, devolve ao homem o direito
de comungar o poético. Em ―Irene no céu‖, a proximidade dos dois elementos dá-se
de maneira tenra, pois é essa intimidade que propicia o uso da linguagem informal.
Nesses dois poemas, o prosaico imprime à narrativa rapidez e leveza, por
aproximar o verso da prosa. Referindo-se a esse rompimento de fronteiras, Moraes
(2001, p. 14) argumenta:
A instigante aproximação da carta ao texto ficcional traz à tona a
problemática da escrita epistolar, gênero fluído em seus limites e
prenhe de possibilidades literárias e pragmáticas. Enquanto gênero,
talvez o aspecto mais contundente da correspondência de Mário de
Andrade e Manuel Bandeira esteja na configuração da personalidade
do autor de Paulicéia desvairada, tornado "personagem" desse
"romance". Em 1926, Bandeira constatava a fratura na personalidade
do amigo que se expande sem embaraço na escrita epistolar, mas
encolhe-se no trato pessoal: "Há uma diferença grande entre o você
da vida e o você das cartas. Parece que os dois vocês estão
trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida é que é o das
cartas".

A amizade entre Bandeira e Mário, demonstrada nas cartas, é o pêndulo pelo


qual as constantes tensões definem maior ou menor aproximação. Evidencia,
mesmo nos instantes mais críticos, o respeito como o amortecedor de prováveis
intrigas mais sérias. As cartas revelam também as posições ideológicas de Bandeira
em contraste com o pensamento de Mário. Essas posições norteiam este estudo,
pois são índices necessários ao levantamento dos critérios adotados com os quais
Bandeira elabora sua produção poética. Distinguir esse sistema de ideias significa
remontar o projeto poético de Bandeira e apreendê-lo em seus versos. Há a
necessidade de verificar nos poemas os traços ressaltados nas cartas e depreender
até que ponto essas relações se sustentam. Não se pretende com isso dispor em
segundo plano o discurso epistolar, dada a sua importância documental.
Depois de um longo período de diálogo, o ano de 1941 marca a diminuição do
fôlego e, por conseguinte, o distanciamento, ou o "resfriamento da amizade
epistolar" entre os dois (MORAES, 2001, p. 16). MORAES (2001, p. 675, nota 20)
registra o sentimento de Bandeira em relação a esse esfriamento: ―Em dezembro de
27
1943, MB comenta a Alphonsus de Guimarães Filho: ‗Não tenho escrito a ninguém.
A minha correspondência com Mário de Andrade, antigamente constante e
minuciosa, praticamente desapareceu‖. Na carta 31 de março de 1944, escreve:

há que anos eu não tinha o prazer de receber de você uma carta


como esta de 19 – comprida, com versos, diz-que-diz-que etcetera. A
vida tornou-se para nós tão cheia de trabalhos que a
correspondência vai sempre ficando para um momento de pausa,
que nunca chega! Eu estou literalmente afogado em mil coisinhas.
(MORAES, 2001, p. 674)

Ainda assim, Bandeira deixou uma produção de epístolas cujo teor forma uma
memória residual e fragmentada de seu pensamento. As correspondências duram
até a proximidade da morte de Mário. A última carta, datada de 30 de outubro de
1944, é enviada por Bandeira, do Rio de Janeiro, cujas últimas palavras do poeta e
amigo pernambucano mais uma vez se voltam ao seu cotidiano:

Você precisa vir conhecer o meu novo apartamento no Edifício S.


Miguel (onde morou Portinari). Av. Beira Mar 210, ap. 409. Tenho
aqui mais graça. E estou armado de uma geladeira elétrica e de uma
rádio-vitrola. Falar nisto, se houver gravada em disco alguma canção
do Guarnieri com versos meus, quero tê-la. (MORAES, 2001, p. 678)

Com esse tom liricamente familiar e de cumplicidade, encerra-se a


correspondência entre Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Ao mesmo tempo, o
diálogo aí presente ecoa para a posteridade como um documento sempre aberto a
novas perspectivas. Também mantém um contínuo desdobramento das interfaces
desses dois arautos do modernismo brasileiro.

28
Capítulo 2. Bandeira como poeta e crítico no contexto modernista.

NOVA POÉTICA

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.


Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e
[na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe
[o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:


Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e
[as amadas que envelheceram sem maldade.
(BB, p. 205)

2. 1. O contexto modernista

Para compreender as propostas de Bandeira em relação ao seu projeto


poético e pensamento critico, é salutar refletir sobre o conceito de Modernismo, em
sua poética que parece desdobrar em tradição e modernidade. De acordo com
Lafetá (2000, p.22), devido à sensibilidade do país à modernização dos quadros
culturais, o Modernismo destruiu as barreiras da linguagem oficializada, "[...]
acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura
popular. Assim, as componentes recalcadas de nossa personalidade vêm à tona,
rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial (...)". Os autores, então, passam
a experimentar a linguagem "[...] com suas exigências de novo léxico, novos torneios
sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite ― e obriga ―
essa ruptura".
O grupo dos literatos, principalmente do eixo Rio-São Paulo, do qual Bandeira
era participante, entra em contato com leituras dos textos dos futuristas italianos,
dos dadaístas e dos surrealistas franceses. A música de Debussy, o teatro de
Pirandello, o cinema de Chaplin6, o cubismo de Picasso, o expressionismo plástico

6
Em ―O heroísmo de Carlitos‖, uma das Crônicas da Província do Brasil, Bandeira (in Seleta de
Prosa, 1997, pp. 123), escreve: ―Aqui é que começa a genialidade de Chaplin. Descendo até o
público, não só não se vulgarizou, mas ao contrário ganhou maior força de emoção e de poesia. A
sua originalidade extremou-se. Ele soube isolar em seus dados pessoais, em sua inteligência e em
sua sensibilidade de exceção, os elementos de irredutível humanidade‖.
29
alemão, a psicanálise de Freud, o relativismo de Einstein e o intucionismo de
Bergson constituem-se elementos da base do pensamento modernista brasileiro.
Embora essas correntes de pensamento sejam referenciais aos grupos modernistas,
nem todos concordavam com essas posições, demonstrando diversidade de ideais e
projetos.
Os ecos do Iluminismo e das teorias lançadas pelo Romantismo na Europa,
tanto na literatura quanto na música, ainda faziam-se ouvir no território brasileiro. Em
Bandeira, tais manifestações são demonstradas nas as cartas enviadas por ele a
Mário:

Fizeste bem em nada corrigir na Paulicéia. Beethoven dizia que toda


a correção parcial feita mais tarde em uma obra de arte lhe quebra a
unidade. E compreende-se: o artista não está mais na [storming] do
momento de criação. Salvo quando esse momento de criação é a
eternidade de um Fausto. (MORAES, 2001, p. 74)

Esses dois interlocutores, apesar dos anseios por uma brasilidade literária
autêntica, deixam transparecer certa identificação com a literatura e a música
universal europeia. Segundo Sebastião Uchoa Leite (1966, p. 22), ―O poeta
revivificava as tradições. Seu romantismo inato não o abandonou nas futuras
metamorfoses e concorreu no início para evitar que o poeta fosse confundido com
os ‗grandes‘ parnasianos da época pré-modernista‖. A busca por uma identidade
ocorria em toda a América Latina. Tentava-se criar uma fronteira entre o Eu e o
Outro. Essa alteridade alterna-se no jogo do duplo: o aqui e o lá, o presente e o
passado, impulsionando, conquanto de maneira lenta, a consciência da relação
tradição versus modernidade, mais tarde retomada, incisivamente, por T. S. Eliot
(s/d) e Octavio Paz (1984), por exemplo.
Dentre os movimentos ocorridos, a Guerra do Paraguai, significou um "[...]
verdadeiro divisor entre o denominado tempo antigo e o moderno". (VELLOSO,
2010, p. 40), pois deixou como herança a antagônica situação de escravidão.
Moderno, nesse momento histórico, tem a ver com a transição da abolição da
escravidão e da implantação do regime republicano. A sociedade impôs ao negro
uma dupla identidade: cidadão enquanto soldado nas lutas em defesa do país,
especialmente contra o Paraguai, e escravo assim que retornava em solo brasileiro.

30
Com as incipientes transformações no sistema de produção, alterava-se a
percepção do tempo, devido às "Mudanças no panorama técnico-industrial"
(VELLOSO, 2010, p. 40). Como consequência, gerava-se certo "Estranhamento e
mal estar". A velocidade cada vez mais acentuada nos processos e experiências de
mundo levava à chamada perda de referências.
Stuart Hall (2006, p. 10) entende esses fenômenos como fragmentação da
identidade. Segundo ele, diferentemente do sujeito iluminista, cujo centro era fixo e
no qual permanecia, o sujeito moderno, ou sociológico, começa a sair desse núcleo.
Ele desliza por outros centros e não consegue retornar ao anterior. Em relação a
essa crise, Bosi, no capítulo ―Era dos extremos‖, amplia esse conceito e nos auxilia
na compreensão desse fenômeno:

A crise de identidade do sujeito que escreve, que a prática


desconstrucionista tende a exasperar, é, no limite, a morte do autor
auspiciada, a certa altura por Barthes. Sujeito da escrita e autor
seriam, em última instância, encenadores móveis de mensagens
pelas quais não passaria uma consciência estruturante estável nem
uma personalidade criadora de um estilo próprio. A escrita seria,
portanto, um produto de aglutinação de subdiscursos que caberia à
Retórica ou à História das mentalidades classificar. (BOSI, 2002, p.
253.)

Para essa recuperar sua história, o poeta moderno precisa forjar um


instrumental, e assim, a linguagem alegórica e fragmentada é o modo que encontra
para dialogar com a tradição. A tensão causada pelo mal estar, dada a perda da
capacidade da fruição do homem, provoca, como postula Stuart Hall (2006, p. 10), a
crise de identidade. Isso porque "A identidade, nessa concepção sociológica,
preenche o espaço entre o 'interior' e o 'exterior' - entre o mundo pessoal e o mundo
público".
Ainda de acordo com Stuart Hall (2006, p. 12), por projetarmos em nós
mesmos essa identidade cultural "[...] ao mesmo tempo que internalizamos seus
significados e valores, tornando-os 'parte de nós', contribui para alinhar nossos
sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e
cultural". Em virtude disso, "A identidade, então, costura (ou, para usar uma
metáfora médica, 'sutura') o sujeito à estrutura". Bandeira, em sua poesia, por meio
da linguagem prosaica, permite a acessibilidade da leitura. A aproximação do leitor

31
com o texto permite-lhe sua acessibilidade ao universo poético, propiciando-lhe,
recuperar essa identidade enquanto um sujeito no mundo.
Para entendermos a importância de Bandeira enquanto um escritor
preocupado com o seu tempo e com a própria literatura, apoiamo-nos na ideia de
Edward Said (2007), que questiona o papel dos intelectuais e, também, a verdadeira
função da literatura para humanidade. Um dos pontos centrais de seu pensamento
pauta-se no papel do intelectual como mediador na conjugação de humanismo e
cidadania, dada a importância das diversidades, e da relação entre as artes e a
realidade do homem. De forma um pouco parecida, Bandeira, ao se preocupar com
essa inserção do leitor, opta pela linguagem prosaica, como uma espécie de
democratização da leitura, mais liberta das formalidades. É nesse sentido que se
entende o humanismo na poesia de Bandeira. Embora não tenha sido uma pessoa
engajada politicamente, por sua vida reclusa à escrita, Bandeira produz uma poesia
que promove a reflexão do leitor.
As mudanças sociais e econômicas ocorridas nesse período contribuíram, de
certa maneira, para a transformação do sujeito. A esse respeito, Lafetá (2000, p. 23)
escreve:

Outro fator que permite essa convergência é a transformação sócio-


econômica que ocorre então no país. O surto industrial dos anos de
guerra, a imigração e o conseqüente processo de urbanização por
que passamos nessa época, começam a configurar um Brasil novo.
A atividade de industrialização já permite comparar uma cidade como
São Paulo, no seu cosmopolitismo, aos grandes centros europeus.

Esse fato é relevante, pois "[...] a literatura moderna está em relação com a
sociedade industrial tanto na temática quanto nos procedimentos (a simultaneidade,
a rapidez, as técnicas de montagem, a economia e a racionalização da síntese)‖
(LAFETÁ, 2000, p. 23). Na poética bandeiriana há a construção da síntese emotiva,
sobre a qual o autor discute em carta enviada de Petrópolis, em 6 de janeiro de
1923:

Há qualquer coisa de científico em sua poesia, pelo menos de


aguçadamente inteligente. Dá-me, como já lhe disse, o mesmo gozo
da moral dedutiva de Espinosa. Não creio que você esteja perdido
para a poesia. Onde há síntese emotiva e aproximações bruscas de
termos remotos, haverá sempre poesia. A prova é o silogismo regular
(...). (MORAES, 2001, p.81)
32
Esse trecho já aponta a identificação do autor com uma escrita poética do
amigo composta da síntese emotiva e da busca por termos remotos. De certa
maneira, essa fala contradiz em alguns momentos ao que o próprio Bandeira
escreve em seus poemas. Exemplo disso é a sua ―Poética‖: Estou farto do lirismo que
pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.”.
No início do século XX, a imaginação literária é permeada pela urbanidade,
demonstrando as transformações tanto do espaço físico quanto da própria cultura.
Ambos os aspectos re-encenam o espaço literário, as temáticas e a própria
linguagem. A esse respeito, Luiz Costa Lima (1995, pp. 18-19) afirma:

Partindo do pressuposto de ser a linguagem uma rede de


significações verbalmente estabelecida, através da qual o homem
não apenas se assegura do que já soubesse, mas a partir de que
estabelece o novo que desconhecera, partindo-se, em segundo
lugar, do suposto de que a linguagem é elemento da cultura,
modificado e propulsionado por esta, chegamos ao terceiro lugar, ao
pressuposto fundamental: a linguagem se modifica por responder e
se propor como ponta de lança na sociedade que muda. Entre
linguagem e sociedade corre um vínculo estreito, não determinista,
que faz com que a sombra desta se projete no semblante
dessemelhante daquela.

Nessa esteira do pensamento moderno brasileiro, a literatura passa a revelar


"novas subjetividades em jogo" (VELLOSO, 2010, p. 40). Recria, por meio da
palavra, o sentimento de ambivalência interposto no constante jogo de duas
temporalidades: tradição e modernidade. Para exemplificar esse jogo, Velloso
recupera a voz de Machado de Assis: "A Antiguidade cerca-me por todos os lados. E
não me dou mal com isso. Há nela um aroma que, ainda aplicado a coisas
modernas, como que lhe troca a natureza [...]".
Instaurava-se o desafio: integrar o país no panorama da moderna cultura
ocidental. Com Tobias Barreto na liderança, "[...] um movimento intelectual de
projeção nacional surge na Faculdade de Direito de Recife, como continuidade do
desejo de mudança desencadeado pelas tensões do período. Já Machado de Assis
apontava, em ‗Instinto e nacionalidade (1872)‖, para o ‗sentimento íntimo‘ como uma
maneira de se pensar a brasilidade, segundo o qual era necessário mudar o "instinto
de nacionalidade em força consciente" (VELLOSO, 2010, p. 41). Buscava-se "[...]

33
definir a nacionalidade através da elaboração de uma crítica literária". Continua
Velloso (2010, p. 42):

Pela primeira vez, constatava-se o caráter mestiço da cultura. Mas


ainda predominava a visão pessimista da nacionalidade, vista como
resultado do atraso cultural. Lia-se a brasilidade através da cartilha
do darwinismo social, distinguindo-se civilizações superiores e
inferiores em função das etnias. Imaginava-se que a nacionalidade
brasileira fosse um elo fraco na corrente mundial.

Segundo ainda Velloso (2010, p. 40), na América Latina, intelectuais da


geração de 1898, na tentativa de se criar os ideais heroicos americanos,
acreditavam que o instrumental científico poderia auxiliar no progresso e na marcha
evolutiva. Apoiavam-se nas teorias evolucionistas de Hippolyte Taine (Histoire de la
literature anglaise, 1863), cuja base é o pensamento determinista. Além disso, o
positivismo de August Comte (1789-1854) era um ideal que se somava para
estabelecer no país o ideal autoritário que tendia ao progresso. Esse pensamento
permeava o ideário nacional de 1870 a 1914. Sobre essa marcha, Alfredo Bosi
(2002, p. 9) escreve:

[...] há sempre a "marcha das civilizações, a curva da história", a


decadência dos ideais feudais, a centralização monárquica, a
irrupção do espírito crítico..., em suma, o grande quadro evolutivo
estabelecido a partir das Luzes e mantido e até mesmo enrijecido
pelo dogma do progresso linear dos evolucionistas do século XIX.

Para Bosi, há uma estreita relação da literatura e da história. A literatura


funciona, nessa conjuntura, como componente de um sistema "[...] que a condiciona,
a atravessa e a transcende. E a história literária tende, teoricamente, a perder a sua
especificidade e a tornar-se inseparável da evolução daqueles fatores, verdadeiras
causas que concorreram para determiná-la‖ (BOSI, 2002, p. 9).
Instalam-se aí as bases para a chamada modernização conservadora de
1930, estabelecendo, simultaneamente, a imposição autoritária e a sensibilidade
modernista. Por conseqüência, desembocou na desmistificação do estereótipo do
brasileiro como um povo "abstrato e romantizado" (VELLOSO, 2010, p. 42). A
evidência estava no fato de que "Nos cantos, nos contos, na poesia e nas danças o
povo brasileiro começava a ser identificado na figura do indígena, no africano, no

34
europeu e no mestiço". Velloso completa: "Mesmo de forma precária e contraditória
reconhecia-se a perspectiva de multiplicidade".
Vários estudos acerca da complexa mestiçagem brasileira começavam a
despontar e a revelar um Brasil múltiplo. Silvio Romero desenvolve em Os cantos
populares do Brasil (1883) e Contos populares do Brasil (1885) um estudo das
tradições populares. Tem como pilar os critérios etnográfico e geográfico, estudos
esses, elogiado por Câmara Cascudo. Três anos depois, em Etnografia brasileira
(1888) observa os elementos da cultura negra presentes nas casas brasileiras. Em
Os ciganos do Brasil, Mello Moraes (apud. VELLOSO, 2010, p. 43) ressalta a
significativa representação desse grupo como contribuição à expressividade de
"natureza crédula, fantasiosa e visionária", que culminava na agregação de traços de
integração nacional e na associação das distintas narrativas formadoras do ideário
brasileiro.
A esses dois intelectuais, junta-se Euclides da Cunha (1902) com Os
Sertões. Nessa obra, elege o sertanejo como símbolo nacional. Em uma das
passagens, o autor descreve esse sertanejo como o Hércules-Quasímodo, nome
atribuído à também duplicidade do caráter de homem forte e desajeitado. Destaca-
se aí um duplo universo, desencadeado na tensão criada pelo jogo entre os
elementos antagônicos: passado/presente, serão/litoral, Norte/Sul, mestiço/branco.
Euclides desvela os conflitos entre o Estado e o sertanejo. Sob a lente de sua escrita
"Ficava claro o isolamento em que vivia parte expressiva da população brasileira",
fazendo observar uma outra realidade "fora da escrita, da história e da civilização"
(VELLOSO, 2010, p. 43).
Além desses autores, Bosi (1995, p. 359) registra a importância de Lima
Barreto por revelar o "[...] ridículo e o patético do nacionalismo tomado como
Bandeira isolada e fanatizante". Afirma ainda, "[...] no Major Policarpo Quaresma
afloram tanto as revoltas do brasileiro marginalizado em uma sociedade onde o
capital já não tem pátria, quanto a própria consciência do romancista de que o
caminho meufanista é veleitário e impotente".
O Brasil mostrava-se nesse momento, em uma dimensão espaço-temporal
dupla, dada a distância geográfica e grau de desenvolvimento dos sertanejos em
relação à população do litoral e à dos sul do país. Nas obras de Romero, Mello
Moraes e de Euclides da Cunha,

35
[...] pode-se perceber, no entanto, dois pontos em comum: a questão
de temporalidade histórica e o entendimento do campo literário.
Compreender como o passado se articulava ao presente e as formas
através das quais a literatura vinculava-se à vida moderna é uma
questão estratégica. (VELLOSO, 2010, p. 44)

A partir desse momento, surge a querela entre Machado de Assis e Silvio


Romero. O primeiro defendia a ideia de uma modernidade em contínuo diálogo com
a tradição, já que era cético em relação ao papel dos letrados. Já Romero, adotando
o critério evolucionista geográfico, defende o papel dos intelectuais como uma
espécie de "função redentora" (VELLOSO, 2010, p. 45). Essa polêmica possibilitou o
amadurecimento intelectual para se pensar a literatura como uma prática escritural,
processo por meio do qual se podia depreender a base dos elementos moduladores
da produção textual.
Se, para Romero, o regionalismo significava o atraso passadista, para
Machado e José Veríssimo era uma outra voz em diálogo com a modernidade. Em
1930, toda essa efusão de pensamento culmina em uma nova leitura do moderno.
Assim fez diluir as fronteiras entre categorias como provincianismo, regionalidade,
tradicionalismo, compreendidas até então como antagônicas ao cosmopolitismo,
universal e moderno. Essa tese foi corroborada pelo pensamento de Mário de
Andrade em relação à desgeografização (cf. VELLOSO, 2010, p. 46) e também
desfez a separação entre passado e presente: tradição/modernidade.
Essa diluição de fronteiras é outro aspecto observado na poética de Bandeira.
Em seus versos, a fluidez fronteiriça é recriada pela linguagem prosaica, pelo
diálogo entre tradição e modernidade. Cria, destarte, uma maneira de aproximação
dos espaços distintos. Segundo Said, o humanismo proposto pela literatura permite
uma nova maneira de se olhar para a tensão existente no espaço da realidade e no
da poesia. Essa tensão é imposta pela força de embate das distintas visões de
mundo. Destarte, esse pensamento projeta uma fluida fronteira espaço-temporal na
sociedade. Bandeira7 constrói em muitos versos uma espécie de tensão. Entretanto,
muitas vezes ela aparece velada, como um pano de fundo. É o caso, por exemplo,

7
Para se compreender o modo como a fissura das fronteiras se projeta na modernidade, autores
como Milton Santos (2001), Stuart Hall (2006), Deleuse e Guattari (1997), Akhil Gupta & James
Ferguson (2000), além de George Steiner (1990) e Flora Süssekind (2005), colocam-se como sólidos
alicerces capazes de sustentar a discussão sobre o tema da desterritorialização, por vezes chamada
extraterritorialidade, já iniciada no início das grandes revoluções industriais.

36
de ―Meninos carvoeiros‖, em que a leveza do poema contrasta com a realidade dos
meninos raquíticos:

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,


Encarapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos
[desamparados!
(RD, p. 116)

Bandeira torna-se protagonista nessa arena em que fervilham novas ideias


em torno da renovação da literatura, especialmente da poesia. Identifica-se com o
grupo paulista, principalmente pela amizade revelada a Mário de Andrade nas
cartas. Em 23 de novembro de 1923, ciente dessas transformações, escreve: ―Creio
que a poesia modernista é propícia aos grandes poemas. O classicismo e o
romantismo foram. O parnasianismo não. Era pau. O simbolismo não. Era débil,
monocórdio.‖. Bandeira expressa a vontade de se criar uma ciclo de escritores
modernos: ―Eu tinha ganas de fazer um Malazarte! Faze tu! Já disse ao Graça que
nós brasileiros podemos criar um ciclo, o ciclo de Malazarte.‖ (MORAES, 2001,
p.107)
A Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 22 de fevereiro de
1922, pode ser considerada, como ressalta Alfredo Bosi (1995, p. 341), um divisor
de águas. Isso em virtude das novas ideias proclamadas pela estética em relação às
anteriores como o Parnasianismo e o Simbolismo. No entanto, o espírito de
mudança explodira bem antes. Sob os auspícios das batalhas travadas pelos ideais
iluministas, o foco era o rompimento com a tradição em todos os setores da
sociedade. A Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII, marcara profundamente
os meios de produção e definiram as divisões do trabalho em etapas. Essa ideologia
transpôs as linhas limítrofes das fábricas e impôs à sociedade um novo conceito nas
relações sociais.
O movimento inovador que surgia no Brasil situava-se ―em primeiro lugar
dentro da série literária‖ mediante ―sua relação com as outras séries da totalidade
social‖. A nova ―proposição estética‖ era encarada em suas ―duas faces‖
complementares e ―relacionadas em forte tensão‖, afirmando que: ―enquanto projeto
estético, diretamente ligada às modificações operadas na linguagem, e enquanto
projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) da época.‖.
37
Situando-se no eixo São Paulo-Rio, Lafetá analisa o Modernismo brasileiro em duas
linhas, distinguindo: ―o projeto estético do Modernismo (renovação dos meios,
ruptura da linguagem tradicional) do seu projeto ideológico (consciência do país,
desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas
atitudes e produções)‖ (LAFETÁ, 2000, pp. 19-21).
A revolução estética propunha uma ―radical mudança na concepção de obra
de arte‖, abandonando os preceitos da mimese platônica em prol ―de uma qualidade
diversa e relativa autonomia‖. No momento em que subverte os ―princípios da
expressão literária‖, insere-se ―dentro de um processo de conhecimento e
interpretação da realidade nacional.‖. Dentre os aspectos presentes na literatura
nacional, Lafetá afirma: ―convergência entre projeto estético e ideológico‖,
rompimento da ―linguagem bacharelesca, artificial e idealizante‖, bem como a ―força
ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular‖ (LAFETÁ, 2000, p. 21).
Ainda completa:

[...] as ‗componentes recalcadas‘ de nossa personalidade vêm à


tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial;
curiosamente, é a experimentação da linguagem, com suas
exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens
surpreendentes, temas diferentes, que permite – e obriga – essa
ruptura. (LAFETÁ, 2000, p. 22).

De acordo com Lafetá, o modernismo brasileiro nasce sob as influências das


vanguardas europeias. Absorve delas a concepção de arte e as bases de sua
linguagem. Quanto à da arte e da linguagem, reafirma a deformação do natural
como fator característico: "o popular e o grotesco como contrapeso ao falso
refinamento academicista, a cotidianidade como recusa à idealização do real e o
fluxo da consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional".
Conforme o crítico, com o intuito de realizar esses princípios, ―os vanguardistas
europeus foram buscar inspiração [...] nos procedimentos técnicos da arte primitiva
(...)‖ (LAFETÁ, 2000, p. 22).
A divisão do trabalho em categorias fez surgir um novo sujeito. Esse sujeito
foi se tornando mais individualista no meio de um sistema que o tornava mais
isolado. Em vez de agente do processo social, sentia-se uma parte desconexa na
sociedade. Ao mesmo tempo, os produtos industriais tornavam-se, cada vez mais,
presentes nos lares. Substituíam os artesanatos, representantes das diversidades
38
culturais. Surgia um novo conceito de estética. A padronização típica do novo
modelo de produção começava a ditar as modas e estilos da população. A mesmice
começava a se impor como regra. Esse fato incomodava muitos artistas, dentre eles
os poetas.
Mais tarde, com a expansão das fábricas na Europa e da crescente produção
de bens de consumo e mercadorias, houve a necessidade de expansão e busca de
novos consumidores. O crescente desenvolvimento das metrópoles denotava o
caráter cosmopolita. Como conseqüência, o planeta tornava-se pequeno, reduzido a
uma única pátria. O cosmopolitismo transformava-se em objeto estético da poesia
moderna como se percebe desde autores como Baudelaire. Para Lafetá (2000, p.
23), ―a atividade da industrialização‖ que já permitia a comparação do
cosmopolitismo de São Paulo aos grandes centros europeus, fato que foi decisivo na
literatura em relação ―aos procedimentos (a simultaneidade, a rapidez, as técnicas
de montagem, a economia e a racionalização da síntese)‖. Na poesia de Bandeira,
esse cosmopolitismo é levado à condição de sublimação. Revela um modo de captar
os aspectos urbanos: cidade, quartos, trem, becos, sinos, ruas e calçadas.
Segundo Schafer (2001, p. 107), com a Revolução industrial, grande
quantidade de novos sons foi introduzida nas sociedades, acarretando graves
consequências "[...] para muitos dos sons naturais e humanos que eles tendiam a
obscurecer (...)". Essa ampliação desdobrou-se até a segunda fase, na qual "[...] a
revolução elétrica acrescentou novos efeitos próprios e introduziu recursos para
acondicionar sons e transmiti-los esquizofrenicamente através do tempo e do
espaço para viverem existências amplificadas ou multiplicadas". O excesso de
informação acústica fez surgir uma confusão sonora na era das revoluções,
atrapalhando a audição. Dentre esses sons, compreendiam-se os dos metais, como
ferro e estanho, e das novas fontes de energias, como carvão e vapor.
No Brasil, Bandeira delineia em poemas como ―Trem-de-ferro‖ os contornos
da nova paisagem. A modernidade avançava os interiores com os trilhos e os novos
sons dos metais e do carvão. Os modernistas brasileiros surgiam como uma nova
classe que proclamava a modernização do país. Estavam em caminho oposto à
República Velha (1894-1930, aproximadamente), marcada pela hegemonia das
classes dos proprietários rurais de São Paulo e de Minas Gerais. Nesse período,
denominado "café com leite", devido à produção cafeeira atrelada à pecuária, esses

39
dois estados alternavam-se no poder. Os dois determinavam os caminhos do país. A
produção cafeeira, além de depender da exportação, mantinha o país preso às
velhas e ultrapassadas técnicas. Esse regime, no entanto, sofreu um golpe com o
início da 1ª Guerra Mundial. A nobreza fundiária, conservadora e estamental,
começava a ser substituída pela incipiente burguesia industrial presente nos Estados
de São Paulo e Rio de Janeiro.
A nação modificava-se no mesmo ritmo da acentuação dos processos de
urbanização e concomitante à crescente imigração de europeus que se fixam no
centro-sul. Por outro lado, a cultura canavieira do Nordeste entrava em declínio.
Esse cenário era propício à propagação das novas ideias propostas pelos artistas. O
quadro nacional passava, então, de uma fase provinciana para cosmopolita. No
entanto, na poesia modernista, e especialmente em Bandeira, essa fronteira entre
provincianismo e cosmopolitismo tende a diluir. Sobre as categorias do
cosmopolitismo e do provincialismo, Alfonso Berardinelli (2007, p. 59) registra:

Cosmopolitismo e provincialismo são desde há muito tempo


categorias sobretudo valorativas. Se não um juízo estético de valor,
nelas está implícito um julgamento preliminar e mais temível da
adequação histórica. Em poucas linhas, esse julgamento poderia ser
assim definido: a arte moderna é cosmopolita; a arte provinciana não
é moderna, nas é atual, mesmo admitindo nela a presença de
qualidades artísticas tradicionais.

Berardinelli (2007, p. 59) ainda argumenta que "A linguagem da lírica


moderna tal como nos é descrita por Hugo Friedrich é a negação ativa e dinâmica de
qualquer determinação de tempo e lugar".

2. 2. Cartas: testemunho e memória.

Escritores, pensadores e pintores fizeram das cartas veículo de informação,


reflexão ou teorização de diversas áreas do conhecimento. Dentre eles, destacam-
se poetas como Goethe (Companheiros de viagem: Goethe e Schiller, 1993),
Schiller (A educação estética do homem, 2011), Kafka (Carta a meu pai, 1970),
Rilke (Carta sobre Cézane, 2001), Rodin (A arte [em] conversas com Paul Gsell,
1990), Mário de Andrade e o próprio Manuel Bandeira. Músicos como Beethoven,

40
Schubert, Schumann e Debussy também escreveram cartas, nas quais tratam dos
mais variados assuntos. Elas se tornaram documentos, revelando o pensamento e a
intimidade desses autores.
Além disso, as cartas revelam o contexto social, os ideais e o pensamento de
uma época que a própria história ou a teoria da arte não poderiam registrar. As
cartas, gênero adotado por uma infinidade de pessoas, principalmente a partir da era
vitoriana (Peter Gay, 1999.), tornaram-se um fenômeno entre as diversas classes
sociais. Muitas vezes, os temas abordam situações rotineiras e banais, relações
familiares, amorosas, sociais, comerciais, políticas e literárias. Utilizada há séculos,
desde Platão, esse gênero passou e continua passando por modificações tanto na
forma quanto no conteúdo e na função.
Nas dobras dos discursos epistolares, torna-se indispensável reconhecer os
índices equivalentes a fragmentos de discursos. Esses fragmentos, uma vez
reunidos, tornam-se peça de um quebra-cabeça, revelando-se, na relação
parte/todo, a chave para se compreender o pensamento do autor. Manuel Bandeira
foi um missivista. Seus diálogos com Mário de Andrade tornam-se fragmentos de
seu projeto poético.
As cartas são um gênero que, por natureza, põe em cena um eu e um outro,
embora esse outro seja um mesmo eu (autor-leitor), como acontece nos diários.
Mesmo quando alguém escreve para si mesmo é um meio de se comunicar
rapidamente com um interlocutor ausente. Ou seja, é uma escrita na qual apenas
um dos interlocutores está presente, seja o remetente pela ausência do destinatário
ou vice-versa. Ambos estão ausentes no instante em que um terceiro as lê, mas, por
meio da leitura, presentificam-se pela memória. O conceito de memória, nesta
pesquisa, é entendida como reminiscência. Hansen define a carta da seguinte
maneira:

A carta é um gênero do discurso, próprio da pessoalidade, em


oposição a história, gênero impessoal. Pessoal, mas não
sentimental, é sermo, definido por Cícero como "fala" sobre assuntos
próprios entre amigos ausentes; ou colloquium, como diz Erasmo. O
sermo deve ser simples, pois escrever uma carta equivale a
"sussurrar com um amigo num canto", não a "gritar num teatro".
(HANSEN, 2003, p. 33)

41
A carta firma uma "relação performativa" entre remetente e destinatário, cujo
objetivo é a informação de assuntos do comércio humano. Os enunciados são
subordinados à função da retórica da utilidade, e imprime o destinatário por uma "[...]
disposição simples, clara e quase sempre breve dos enunciados." (HANSEN, 2003,
p. 34). A subordinação refere-se à utilidade da instrução, pois o "[...] remetente
fornece ao destinatário a perspectiva avaliativa da representação efetuada por meio
do estilo simples, indicativo de madureza e prudência‖.
As correspondências tiveram papel preponderante como crônica histórica e
informativa em Portugal no instante das navegações. Em território brasileiro, além de
caracterizarem a curiosidade geográfica e humana, ao desejo de conquista e
domínio, elas passam à função pedagógica. A crônica histórica e informativa adquire
no Brasil determinadas peculiaridades. Juntamente com a curiosidade pelos
aspectos geográficos e humanos e o anseio pela conquista, as cartas revelam que
de início também há o fascínio dos colonizadores diante da exuberante e exótica
paisagem. Tais aspectos foram testemunhados pelos cronistas portugueses Pero
Vaz de Caminha, Pero de Magalhães de Gandavo e Gabriel Soares de Sousa. De
igual modo, os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta atestam em suas
missivas, por meio da literatura informativa, os ideais catequéticos e pedagógicos
jesuíticos. (CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo, 1987, p. 11).
Na era vitoriana, meados do século XIX até, aproximadamente, 1901, o
número de cartas e diários escritos aumentou significativamente em número e com
intensidade inigualável, "como repositórios dos relances de sua vida introspectiva"
(GAY, 1999, p. 337). Tornava-se uma espécie de comunicação capaz de valer como
um exercício de ocultação do "eu". Entretanto, apesar de serem destinadas a um
público específico e selecionado, "[...] elas se tornaram os instrumentos favoritos do
auto-escrutínio e, dessa forma, da auto-revelação". Essas correspondências revelam
as relações como "[...] muito mais francamente confessionais do que seus críticos
gostariam de imaginar". Isso porque há de se considerar que, além das diferenças e
costumes ―[...] o gênero e o status social dividiam os redatores de cartas e de diários
em vários grupos.‖ (GAY, 1999, p. 337).
Gay ainda lembra que há uma larga distância quanto ao aspecto vocabular, já
que os ―mais bem-educados se beneficiavam de um vocabulário mais rico e de
modelos melhores para ajudá-los no acesso à vida interior — e, naturalmente, para

42
ocultá-la.‖. Esses levavam certa vantagem em relação aos ―[...] pequenos-
burgueses, cujas mensagens pessoais, para si mesmos e para os outros, eram
muitas vezes tocantes pela deficiência de sua formulação‖ (GAY, 1999, p. 337)."
Peter Gay (1999, p. 338), em sua análise sobre a era vitoriana, observa o
florescimento do estilo confessional em todos os tipos de burgueses. Tal fato fora
estimulado pela propaganda do romantismo que defendia o "[...] amor recíproco
como único fundamento aceitável para os compromissos permanentes e para troca
ilimitada de emoções (...)". No entanto, da imensa quantidade de cartas produzidas
na era vitoriana e ao longo dos séculos, boa parte fora destruída ou perdida em
decorrência da fragilidade do papel. A quantidade dessas teria sido muito maior em
relação às que resistiram ao tempo. Peter Gay comenta que apesar de a
―devastação do tempo‖ e das ―perdas inevitáveis‖ acarretadas pelas mudanças e

[...] um certo grau de autovigilância por parte dos que mantinham


diários, censurando suas próprias anotações, ou por parte dos
destinatários das cartas, que obliteravam certas passagens, eram tão
importantes como fatores de defesa desse material particular quanto
a intervenção de parentes ou amigos ansiosos para proteger a boa
reputação de quem escrevera. Era um jogo cruel com posteridade
inquisitiva; mas restou um número suficiente de cartas e diários,
marcantemente diferentes entre si, inclusive alguns que os
contemporâneos considerariam escandalosos, justificando assim a
confiança do historiador de que sua amostra é relativamente
representativa dos sentimentos burgueses. (GAY, 1999, p. 338)

Ainda sobre a sensibilidade desse gênero, Rocha (1965, p. 9) observa:

Por condições inerentes ao gênero em si, é a carta um documento


perecível, sujeito a todas as formas de destruição (fogo, naufrágios,
extravio, tintas corrosivas, conveniências políticas, escrúpulos
morais, descuido do destinatário ou dos seus descendentes, etc.).
«Cartas são papéis», diz o povo, e, em regra, papéis que só tiveram
uma via. Por isso mesmo, muitas desapareceram, outras existem,
mas estão ainda por descobrir.

Com a popularização e democratização desse gênero, devido à gradual


diminuição dos preços, até então altíssimos para a maioria das pessoas da classe
menos favorecida, os tons emocionais acentuavam-se. Os conteúdos passam a
desvendar alto grau de sensibilidade de espírito, como é o caso das cartas trocadas
entre Heloísa e Abelardo. Nas cartas de Madame Sévigné, enviadas a sua filha, há

43
um tom de franqueza, vivacidade e de inteligência nos comentários pessoais (GAY,
1999, p. 339). A respeito dessa correspondência, como aponta Amaral (2000, p. 23),
a carta enviada à filha "[...] é marcada por uma avalanche afetiva, pela "excessiva
ternura" que se reitera, infalível, a cada carta e num tom que, fora de contexto, pode
passar perfeitamente por trechos de uma correspondência amorosa". O trecho a
seguir comprova:

"Olhe um pouco a lua, esta lua que também estou olhando; estamos
vendo a mesma coisa, embora a duzentas léguas uma da outra"; "se
você gosta de ser perfeitamente amada, você deve gostar da minha
amizade"; "amo você tão apaixonadamente que acho que não se
pode ir além disso"; "viverei para amá-la, abandono minha vida a
este sentimento, a toda alegria e a toda dor, a todos os prazeres e
todas as mortais inquietações, enfim a todos os sentimentos que esta
paixão pode causar". (AMARAL, 2000, p. 23)

A sensibilidade do século XVIII era marcada pela introspecção, os conteúdos


seguiam receitas sofisticadas e permeadas de emoção construída por uma
linguagem equilibrada de "lógica forense" (GAY, 1999, p. 339). A geração do século
XIX aprendera bastante com a passada e, influenciada pelas experiências
românticas, passaram a escrever com mais suavidade no tom, humanidade e,
muitas vezes, com certa lacrimosidade apaixonada. Gay (1999, p. 339) afirma:

Esse era o espírito que os popularíssimos romances epistolares da


época, de Richardson até Rousseau e Goethe, ao mesmo tempo
exibiam e promoviam e que, como era inevitável, estimulou o gosto
pelas trocas mais francas, menos baseadas em fórmulas. Por toda a
Europa, os criadores da moda substituíam o estilo formal pela
linguagem baseada na fala.

Essa espiritualidade é percebida nas cartas dos compositores a suas amadas,


amigos ou familiares. Vários deles legaram à historiografia literária musical suas
naturezas íntimas. Assim, permitiram aos intérpretes maior proximidade da maneira
como se deveria executar as composições. As partituras por si mesmas não dariam
conta de registrar a expressão pretendida pelos autores. As cartas de Beethoven,
por exemplo, tornaram-se registros para os estudos da sua biografia, inclusive as
relações travadas sobre suas ideias e sua intimidade. Em uma delas, escrita em 6
de julho de 1807 e endereçada à misteriosa "Amada imortal", o músico escreve:

44
Meu anjo, meu todo, meu eu! Apenas poucas palavras e com lápis
(com o teu). Somente amanhã conhecerei minha residência, com
certeza: quanto indigno desperdício de tempo com estas coisas! Por
que profunda tristeza onde fala a necessidade? Pode subsistir nosso
amor por outro meio além do sacrifício e da renúncia a tudo? Podes
mudar esta situação em que não sou todo teu nem tu toda minha?
Ah! Deus, fita a bela natureza e tranqüiliza tua alma diante do
irremediável! — O amor exige tudo e com razão: assim o sinto frente
a ti e tu frente a mim. — Só que olvidas facilmente que devo viver
tanto para mim como para ti. Se nossa união fosse completa, esta
dor não nos afligiria nem a ti nem a mim. (...) Teu fiel Ludwig.
(PAHLEN, 1996, pp. 43-44)

No poema "Soneto Sonhado", observa-se, de certo modo, referência a


Beethoven. Na carta de Beethoven, lemos: ― Meu anjo, meu todo, meu eu! Apenas
poucas palavras e com lápis (com o teu)‖; no poema, Bandeira inicia o primeiro quarteto:
―Meu tudo, minha amada e minha amiga, / Eis, compendiada toda num soneto‖:

SONETO SONHADO

Meu tudo, minha amada e minha amiga,


Eis, compendiada toda num soneto,
A minha profissão de fé e afeto,
Que à confissão, posto aos teus pés, me obriga.

O que n'alma guardei de muita antiga


Experiência foi pena e ansiar inquieto.
Gosto pouco do amor ideal objeto
Só, e do amor só carnal não gosto miga.

O que há melhor no amor é a iluminância.


Mas, ai de nós! não vem de nós. Viria
De onde? Dos céus?... Dos longes da distância?

Não te prometo os estos, a alegria,


A assunção... Mas em toda circunstância
Ser-te-ei sincero como a luz do dia.
(ET, p. 244)

Friedrich Schiller (1759-1805), poeta e dramaturgo alemão, escreveu várias


cartas. Na primeira (Carta I) de suas cartas-ensaio dedicadas à reflexão sobre o belo
e a arte, declara:

Permitireis que vos exponha numa série de cartas os resultados de


minhas investigações sobre o belo e a arte. Sinto vivamente o peso
de um tal empreendimento, mas também seu encanto e sua
dignidade. Falarei de um objeto que está em contato imediato com a

45
melhor parte de nossa felicidade e não muito distante da nobreza
moral da natureza humana. Defenderei a causa da beleza perante
um coração que sente seu poder e o exerce, e que tomará a si a
parte mais pesada de meu encargo nesta investigação que exige,
com igual frequência, o apelo não só a princípios, mas também a
sentimentos. (SCHILLER, 2011, p. 21)

Essas cartas são testemunhas das convenções românticas. Assim como


foram as das épocas de Epicuro, Platão, Sêneca e Cícero. Até mesmo as trocadas
pelos judeus instalados nos Estados alemães, décadas antes de eles adquirirem a
igualdade legal como cidadãos (GAY, 1999, p. 345). Por meio delas, descobrem-se
as mais íntimas relações e expressividade de sentimentos, de discussões acerca de
literatura, como foram as de Byron, Balzac. Ainda as discussões entre Goethe e
Schiller, Tolstoi a sua esposa Sophia, Richard Wagner às três importantes mulheres
que tiveram importância em sua vida: Minna Planer, Mathilde Wesendonck e Cósima
Liszt. Em uma das correspondências a Minna, enviada de Berlim, 23 de maio de
1836, o compositor expressa seu amor:

Ontem foi meu aniversário, dia asquerosamente feio. Nem uma, uma
única pessoa a meu lado! Ai, Minna, sinto-me muito miserável; não
sei o que será de mim, se o céu prolonga por muito tempo mais
nossa união. Sou indiferente a tudo, meu interior consome-se e vejo
cada vez mais claro que somente uma vida feliz contigo pode
devolver-me minha força. E unicamente então, sinto-o, poderei atuar
como um homem enérgico e ditoso. (PAHLEN, 1996, p. 135)

Robert Schumann (1810-1856)8, no último dia do ano de 1837, estava em


estado de ânimo em relação à união iminente com Clara Wieck 9. Por isso, escreve-
lhe na Noite de São Silvestre10, 1837, 11 horas passadas:

Há uma hora encontro-me sentado aqui. Quisera escrever-te durante


a noite inteira, mas não encontro palavras... Senta-te, agora, a meu
lado, enlaça-me com teus braços e deixa que nos fitemos nos
olhos... em silêncio, felizes... (...) Quanto somos felizes... Clara,
ajoelhemo-nos! Vem, Clara minha, sinto-te... sejam para o Supremo
nossas derradeiras palavras! (PAHLEN, 1996, p. 98)
8
Compositor alemão de grande ambição literária, foi grande escritor e eminente músico Clássico. (cf.
Carpeaux, 2001, p. 266)
9
Compositora e filha de Wieck, professor de piano de Schumann. Por ela, Schumann nutria
admiração e amor. Ele teve que travar uma intensa luta contra o pai dela, que não consentia o
casamento dos dois. A união realizou-se mediante decisão judiciária. (cf. Carpeaux, 2001, p. 266)
10
Conforme tradutor, a Noite de São Silvestre é conhecida como a última noite do ano em vários
países da Europa. (Pahlen, 1996, p. 98)
46
Em cartas endereçadas a Emma Bardac11, datada de 30/11/1910, Debussy,
de (Viena), terça-feira, 30 de novembro de 1910, expressa sua intimidade e carinho:

Despertou-me teu telegrama esta manhã. A primeira carta chegou


um pouco mais tarde. Pobre de minha querida pequena, como
cultivas teus sofrimentos! Pensa bem que empreendo esta viagem
em nosso benefício, visando combater a obstinada miséria sem a
qual não me encontraria aqui, tão distante de ti, tão viúvo de tuas
carícias. (...) Teu... vosso... Claude (PAHLEN, 1996, pp. 249-250)

As cartas, mesmo quando não pedem ou exigem resposta explícita,


representam um vívido diálogo, cujos interlocutores estão ausentes, porém nem
sempre solitários. Para Gay (1999, p. 356), ―[...]: escrever cartas quase nunca é um
ato inteiramente solitário.‖, com exceção do ―narcisista‖, que, para ele, ―[...] na
verdade escreve para si mesmo, o outro está sempre presente (...)‖. Para isso, o
autor cita os seguintes exemplos ―[...] uma fotografia sobre a mesa, uma flor seca
entre as páginas de um livro, uma imagem guardada na memória —, esperando ser
informado, corrigido, agradado — acima de tudo, agradado.‖.
Em relação ao papel da memória conservado pelas as cartas enquanto
documento histórico e literário, optamos pela denominação "reminiscência". Para
isso, utilizamos a diferenciação feita por Rossi (2000, p. 16) entre memória e
reminiscência. Para ele, a memória é dos homens e dos animais enquanto a
reminiscência é uma aptidão humana. Rossi (2010, p. 15) retoma a oposição
platônica e aristotélica do conceito. Para ele, tanto na tradição clássica da filosofia
quanto na maneira comum de se pensar, a memória "[...] parece referir-se a uma
persistência, a uma realidade de alguma forma intacta e contínua; a reminiscência
(ou anamnese ou reevocação), pelo contrário, remete à capacidade de recuperar
algo que se possuía antes e que foi esquecido". Ele ainda explica que em toda

[...] tradição aristotélica, o tratamento da memória e da reminiscência


(que é a passagem do ato de lembrança em potencial) se liga
principalmente ao mundo de fenômenos que vamos hoje reagrupar
com o termo "psicofisiologia". Na tradição platônica, ao contrário, a

11
De acordo com Pahlen (1996, p. 246), Emma Bardac aparece na vida de Debussy por volta do final
de 1903, ela era uma mulher culta, dotada de inteligência e cujas formas físicas constituíam uma
beleza harmônica, além de uma espírito gracioso, o que a tornava uma pessoa cativante.
47
memória se apresenta como uma forma de conhecimento ligada à
doutrina misteriosófica da reencarnação. (ROSSI, 2010, p. 16)

A anamnese platônica não decorre dos sentidos, mas atua unicamente como
"[...] um reconhecimento de essências, de coisas inteligíveis e universais. Todo o
conhecimento é uma forma de lembrança e a anamnese atua em um nível que não é
o da empiria e da psicologia". Conforme Platão, no diálogo com Fedro: "A alma
retorna ao mundo e se reúne ao corpo "inchada de esquecimento e maldade (...)"
(ROSSI, 2010, p. 16). Ecléa Bosi (1998, p. 89) registra: "A anamnesis
(reminiscência) é uma espécie de iniciação, como a revelação de um mistério. A
visão dos tempos antigos libera-o, de certa forma, dos males de hoje".
Escrever é tornar presente o outro, é deixar como memória o registro de um
instante da conversa entre dois interlocutores. Em uma análise dos comentários de
Silviano Santiago dos aspectos biográficos das cartas de Cristina César, Michel
Riaudel (2000, p. 96) argumenta que o crivo biográfico, "[...] necessariamente
fundado e legitimado a partir de uma exterioridade do texto - o que não invalida em
nada essa legitimidade -, está solicitado pelo conjunto da obra poética que parece
conjugar, uma após outra, as expressões do íntimo". Esse argumento corrobora a
ideia de que a carta, "[...] enquanto forma híbrida, hesitando entre o genus familiare
et iocosum e o genus severum grave, deixa situar o que se escreve num entre-dois,
ambivalente e ambíguo, entre a vida e a obra, o biográfico e o literário (...)‖
(RIAUDEL, 2000, p. 97).
No entanto, a escrita é um fragmento. Ela exige no silêncio do outro ou na
resposta, provavelmente posterior ou mesmo irrealizada, o complemento do
pensamento do autor. Escrever é, sobretudo, um ato de autoconhecimento. Antes de
se escrever para o outro, escreve-se para si mesmo, um projeto de escrita em
construção, muitas vezes, no leitor, conquanto se tenha passado séculos. Peter Gay
(1999, p. 359) retoma uma questão antiga: "Como posso saber quem sou antes de
ler o que escrevi?". Para ele, essa indagação "[...] contém uma verdade importante:
escrever cartas pode ser um exercício de autodefinição‖.
Por isso, independente da forma dessas cartas, natural ou afetada, elas
podem ser fragmentos de uma confissão (GAY, 1999, p. 359). Por meio desses
fragmentos de memória, o exercício da escrita torna-se um exercício de conservação

48
do passado no presente. Ou seja, ao atuar no presente não atua de maneira
homogênea. Conforme Ecléa Bosi (1998, p. 48):

De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se


vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas:
trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De
outro lado, ocorrem lembranças independentes de quaisquer hábitos:
lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas
ressurreições do passado.

Para Ecléa Bosi (1998, p. 55), lembrar, muitas vezes, não significa apenas
reviver, mas um ato em potencial de refazer, reconstruir e de repensar "[...] com
imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória 12 não é sonho, é
trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e
que se daria no inconsciente de cada sujeito". A lembrança, nesse sentido, "[...] é
uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no
conjunto de representações que povoam nossa consciência atual‖ (BOSI, 1998, p.
55). Segundo Ecléa Bosi (1998, p. 89), ―Mnemosyne, a recordadora, era divindade
no panteão grego.‖ Então qual seria ―o poder de Mnemosyne?‖. Responde a autora:
―Irmã de Cronos e de Okeanós, do tempo e do oceano, mãe das musas cujo coro
conduz, ela preside à função poética que exige intervenção sobrenatural.‖. Por esse
motivo, ela, a memória, é ―[...] uma forma de possessão e delírio divinos, o
entusiasmo. O intérprete de Mnemosyne é possuído pelas musas assim como o
profeta o é por Apolo.‖.
Bandeira, ao escrever a Mário, presentifica sua voz. Permite que ela
atravesse os tempos, tornando-se um eco de suas ideias, de sua posição frente à
própria denominação do modernismo. Passados mais de dois séculos, desde Platão,
Mário de Andrade e Manuel Bandeira, na primeira década do século XX, fazem da
carta uma espécie de laboratório. Nelas, trocam opiniões, discutem a própria
literatura, expõem, por meio de fragmentos, os elementos necessários à composição
poética, especificando os problemas que ela envolve. Moraes (2001, p. 14),
referindo-se a essa correspondência, declara que a carta é ―[...] é "laboratório" onde
se acompanha o engendramento do texto literário em filigranas, Desvendando-se

12
Conforme Commelin, Mnemósine (ou Memória) é representada como uma mulher que apoia o
queixo na mão, em uma atitude de meditação. Casou-se com Júpiter e teve nove filhas, ou musas:
Clio, Euterpe, Talia, Melpômene, Terpsícore, Ératro, Polímnia, Urânia e Calíope. (COMMELIN, P.
1997. pp. 77-79, 373.)
49
elementos de constituição técnica da poesia e seus problemas específicos.‖. Nesse
sentido, ela, a carta, ―Propicia a análise (gênese e busca do sentido) e torna
manifesto as motivações externas que "precisam a circunstância" da criação.‖.
Completa Moraes (2001, p. 14):

A escrita epistolográfica também proporciona a experimentação


linguística e o desvendamento confessional. Enquanto expressão do
momento, nascida ao correr da pena, os paradoxos e contradições
se tornam presentes. Como em um romance, nela também as
paixões se entrelaçam e os desejos afloram.

A correspondência entre Bandeira e Mário, conforme Espinheira Filho (2004,


p. 139), ―[...] caracterizou-se, em toda a sua duração, pela atividade crítica. São
considerações contínuas, francas, engraçadas ou dolorosas, compassivas ou
implacáveis, de parte a parte‖. As considerações recíprocas e de igual modo aquelas
dirigidas ao universo intelectual e artístico do momento histórico, em boa parte,
imprimem o exercício crítico. No entanto, muitas delas são entremeadas por um
discurso confidencial quanto às temeridades da vida. O tom da amizade também
persegue cada missiva, detalhando até mesmo as dificuldades financeiras: ―Se o
Lobato desistir de editar-me, não sairei mais a público senão em revista: não tenho
dinheiro nem paciência nem gosto para me editar a mim próprio‖ (MORAES, 2001,
pp. 94-95). De igual maneira, Bandeira comenta desgostos e decepções com
amigos, perda de parentes, alegrias, viagens pelo país e momentos em que esteve
recluso em Clavadel: ―Eu ia a caminho de Clavadel (Suíça). Esse retrato agrada-me
porque me faz lembrar uns velhíssimos brocados de seda que vi na sala de espera
do fotógrafo‖ (MORAES, 2001, p. 97).
Muitas vezes, expressa um teor melancólico, devido às perdas dos entes
queridos, principalmente, dos pais e da irmã. Outras vezes, revela-se irônico na
maneira de poetizar os percalços impostos pela realidade. Por esse motivo, o fazer
poético torna-se fundamental para ele. Por meio dela, expressa o cotidiano do
homem, utilizando-se de uma linguagem simples. Cria em seus versos a leveza
necessária para tocar o leitor. Em sua poesia, observa-se tanto o artista quanto o
crítico.
Nas muitas passagens das cartas, a crítica tecida soa como um desabafo,
uma postura mais elucidativa em relação ao elemento poético. A poesia, para ele,
50
deveria ser o mais possível sintética, despojada dos excessos, mas, ao mesmo
tempo, simples ao ponto de, pela sua leveza, poder conquistar o leitor. Ecos de Eliot
e Baudelaire estão presentes em sua poesia. A aproximação de Bandeira com Eliot
é observada pelas leituras da revista inglesa The Criterion, na qual o próprio Eliot
era um dos diretores. Bandeira registra em 19 de agosto de 1925: ―Encontrei hoje na
Avenida os dois pueres mostrando ao Graça Aranha o n° do Criterion (...)‖
(MORAES, 2001, p. 227). Em 17 de setembro de 1926, compara Mário a Baudelaire
na maneira de ―fazer pastiches‖: ―Pois fique sabendo que você falhou como
pasticheur Sucedeu-lhe o mesmo que a Baudelaire querendo decalcar o Gaspard de
la nuit e fazendo obra original nos Poèmes em prose.‖ (MORAES, 2001, p. 311). Em
nota de rodapé 35, Moraes (2001, p. 353) registra uma fala de Bandeira: ―Esse
nome de Pasárgada, que significa ‗campo dos persas‘ ou ‗tesouro dos persas‘,
suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias, como o
de L‟invitation au Voyage de Baudelaire.‖.
Nas análises, tecem-se as relações entre o dizer impresso de Manuel
Bandeira e Mário de Andrade nas correspondências ao longo de duas décadas
(1922 a 1944). Por conseguinte, apreender a tessitura poética produzida nas cartas
é também uma forma de revelar o seu projeto. Do mesmo modo, permitem-se
apreender aspectos da sociedade brasileira do início do século XX e as relações
impostas pelo mercado aos novos escritores. Além disso, observar as relações mais
amistosas com certos artistas e críticos, assim como as tensas relações mantidas
com Monteiro Lobato, devido à falta de interesse deste em publicar os poemas do
autor de Libertinagem. Como o próprio Bandeira confidencia a Mário, Lobato
afirmara, em determinada situação, que poesias não se vendiam. Essa posição
acarretou a mágoa do poeta em relação ao editor. Em 31 de maio de 1923, Bandeira
declara a Mário: ―Os meus poemas estão na mão do Lobato.‖ (MORAES, 2001, p.
94).
Em seguida, nessa missiva, confessa a desconfiança em relação ao editor: ―O
Lobato fechou contrato comigo desde agosto do ano passado. Todavia até agora,
nada. Ele diz que verso não é negócio, é negocinho. Que isso de versos é bucha,
sejam péssimos ou excelentes.‖. Em seguida, Expressa desconforto e desolação:
―Se o Lobato desistir de editar-me, não sairei mais a público senão em revistas: não
tenho dinheiro nem paciência nem gosto para me editar a mim próprio.‖ (MORAES,

51
2001, p. 94). O momento crucial dessa mágoa é revelado na carta enviada em 24 de
setembro de 1923. Nela, nota-se a difícil relação iniciada entre ele e Lobato:

O Lobato acaba de me roer a corda, comunicando-me que não


editará mais os meus versos, para a publicação dos quais ele se
comprometera formalmente há mais de um ano, compromisso esse
várias vezes renovado, sendo que o último não data de um mês. É
uma canalha, cuja palavra não merece fé. E como não posso confiar
que ele me devolva os originais com a devida cautela para que não
se percam no correio, peço-te, meu caro Mário, o grande favor de
passares pelo escritório da firma Monteiro Lobato & Cia., Gusmões
70, a fim de te serem entregues os meus manuscritos. (MORAES,
2001, p.103)

Na carta de 17 de abril de 1924, novamente ataca Lobato, considerando-o


―um homem desonesto‖ que ―[...] ri-se infamemente dos poetas sem compreender
que os verdadeiros poetas, longe de ser os ingênuos que ele imagina, é que
possuem (como disse Cendrars) o senso das realidades.‖ (MORAES, 2001, p. 118).
Para a compreensão da linha de pensamento daquele que imortalizou Recife
como a Veneza Brasileira em "Evocação do Recife", urge um estudo no qual se
solda alguns aspectos das duas pontas da produção de Manuel Bandeira: sua
poesia e a correspondência com Mário da Andrade.

52
Capítulo 3. Conversa entre poetas: a gênese poética de Bandeira

Perguntas pelos meus poemas e pelos meus projetos.


Não tem projetos quem vive como eu ao Deus dará do
amanhã. (Bandeira, apud. Moraes, 2001, p. 94)

3.1. A linguagem poética de Bandeira.

Reconstruir as bases de sustentação da poética de Bandeira significa


compreender o pensamento desse poeta e o seu projeto poético. Na sua
correspondência com Mário, nota-se a relevância desse discurso, pois quanto mais
se aprofunda nesses estudos mais parece ficar claro o caminho percorrido por ele
em sua poesia, permitindo-nos estabelecer bases do seu projeto poético. Dos
comentários, das correções, do silêncio, das críticas feitas, apreende-se uma matriz
de pensamento revelada nas cartas. Salles (2008, p. 40), referindo-se às cartas
como armazenamentos, retoma Louis Hay, para quem tais armazenamentos ―São
documentos processuais, que mostram o acompanhamento metalingüístico do
processo ou os registros de reflexões de uma maneira geral. Ele dá, como exemplo,
as anotações, os diários e as correspondências.‖. Como pedras que vão se
encaixando umas às outras, embora aparentemente disformes, essas reflexões
juntam-se e se entrelaçam, revelando o projeto.
Nas cartas trocadas com Mário, Bandeira discute os aspectos de uma poesia
que se projeta, em diálogo com a tradição. Quanto ao fato de Mário retomar autores
como Cocteau e Papini, o poeta recifense, em carta de 3 de julho de 1922,
tranquiliza-o: ―Claro que não lhe deve importar que o dêem por imitador de Cocteau
e Papini, deste e daquele. Já tenho visto essa maneira, forma, estrutura, ou que
melhor nome tenha, em vários poetas franceses, italianos.‖ (MORAES, 2001, p. 65).
Confessa, por exemplo, que um dos motes da poesia de Mário é a dignidade
retratada na assimilação do passado, dizendo: ―Em português agora você. Você é
imitador deles como todo o poeta que escreve em metro regular é imitador de todos
os poetas que o precederam e que foram por ele assimilados.‖ (MORAES, 2001, p.
65), Bandeira revela que esse diálogo é também uma característica importante para
si mesmo. Essa imitação consciente e inventiva como linha a seguir é revelada ao
dizer: ―Um poema realmente digno desse nome implica em matéria de sensibilidade

53
e de técnica a assimilação de todo o passado e, a mais, alguma coisa que balbucia
– e é a contribuição ingênua do poeta.‖ (MORAES, 2001, p. 65)
Na carta de 3 de outubro de 1922, Bandeira censura aspectos como ―O
desvairismo gongórico‖ e os "exageros coloridos" em poemas da Paulicéia
desvairada, ao afirmar: ―O que me exaspera?... – O desvairismo gongórico‖,
presentes nos trechos: "Oh, incendiária dos meus aléns sonoros!", ―alucinações
crucificantes‖, ―de todas as auroras do meu jardim!", "Tripudiares gaios" e
―alcantilações..."13 (MORAES, 2001, p. 69). No trecho seguinte dessa carta,
continua: ―Nessas, como em outras expressões, vejo muitos exageros coloridos que
não me parecem bastante conscientes para se me impor.‖ (MORAES, 2001, p. 70).
Nessa mesma missiva, ainda não deixa de alfinetar o amigo em relação ao
excesso de rimas e ecos, ao dizer:

Exasperam-me também as rimas e muitos ecos interiores. Detesto,


como você não pode fazer idéia, o final da "Caçada":

"Abade Liszt da minha filha monja,


na Cadillac mansa e glauca da ilusão,
passa o Oswald de Andrade
mariscando gênios entre a multidão!..."
(MORAES, 2001, p. 70).

Repudia o amigo pelas excessivas rimas, cujo teor nasce de uma


"forçosidade repudiante": ―E sentindo-me chocado pelas rimas dos seus poemas, me
perguntava perplexo se as rimas dos meus poemas livres também farão o mesmo
efeito nos outros?‖ (MORAES, 2001, p. 70). Além disso, não concorda com a
maneira que Mário recupera certa tradição poética declarando: ―Exaspera-me ainda
certo resíduo passadista, aqui e ali.‖, assinala a proximidade entre a sintaxe de
Mário e a dos parnasianos: ―substantivo + adjetivo + subst. + adj.‖ como no verso: ―E
o ciúme universal das fanfarras gloriosas‖. Enfatiza o que é natural e forçado na
poesia de Mário ao destacar: ―Para ser completo parnasiano, seria melhor subst. +
adj. + adj. + subst.‖ (MORAES, 2001, p. 70). Ao comentar o efeito provocado pelos

13
Como registra Moraes (2001, p. 71, notas 28 a 31), esses trechos referem-se aos versos seguintes:
―Oh! Incendiária dos meus aléns sonoros!‖ (―Tu‖, v. 29); ―As alucinações crucificantes/De todas as
auroras do meu jardim!‖ (―Tu‖, v. 35-6); ―E o maxixe do crime puladinho/ na eternização dos três
dias... Tripudiares gaios!...‖ (―A caçada‖, v. 12-3); ― Alcantilações!... Ladeiras sem conto!‖ (―A
escalada‖, v. 2).

54
poemas de Mário no leitor, Bandeira pensa como as rimas estabelecem esse efeito
nos seus poemas.
No trecho seguinte, o poeta discute os neologismos e as palavras cujas raízes
evocam uma espécie de "étimo desconhecido e incognoscível: ―O luar era um afago
tão suave, / — Tão imaterial — / E ao mesmo tempo tão voluptuoso e tão grave! / O
luar era a minha inefável carícia‖14. Ainda nessa carta de 3 de outubro, critica o
amigo por utilizar neologismos: ―E enfim os neologismos, que me parecem ter o ar
muito novo, ainda quando legítimos, como o temático arlequinal, tão expressivo.‖
(MORAES, 2001, p. 70), o que, para Bandeira, torna esse verso artificial. Não se
trata do uso do neologismo, mas da forma como é utilizado. Tanto é que em seu
poema ―Neologismo‖ expressa:

Beijo pouco, falo menos ainda.


Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.‖
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
(BB, pp. 199-200)

Em Itinerário de Pasárgada, compara o jogo sonoro criado no verso


―Teadoro, Teodora‖ com o efeito produzido entre os termos ―Capibaribe‖ /
―Capiberibe‖, de ―Evocação do Recife‖: ―De igual modo, em ‗Neologismo‘ o verso
‗Teadoro, Teodora‘ leva a mesma intenção, mais do que o jogo verbal.‖ (BANDEIRA,
2012, p. 65). Afirma sua preferência quando diz:

É idiossincrasia minha. Gosto das palavras velhas, das palavras de


étimo desconhecido ou resultantes de corruptelas profundíssimas: o
"íngreme" que ninguém sabe de onde veio, o "mesmo" que mal se
diria vir de metipsissimu, "chão" palavra estupenda [...]. Se lhe digo
essas coisas, meu caro Mário, é porque você já se confessou muito
longe desta Paulicéia. (MORAES, 2001, p. 70)

Esse confessar permite a Bandeira continuar dizendo: ―Se não, eu teria receio
de magoar alguma delicada fibra paterna. Pomos tanta ternura em cada um de
nossos poemas!‖ (MORAES, 2001, p. 70). Ao mesmo tempo, demonstra sinceridade

14
Versos de ―Na solidão das noites úmidas‖, poema integrante de O ritmo dissoluto. (BANDEIRA,
1993, p. 107)
55
e certeza de que é nessas trocas que acertos e erros constituem-se gradualmente
na ―evolução‖ do projeto poético: ―Gostaria de saber como você receberá essas
críticas; se na sua evolução, você está com o meu sentimento, e não estando, em
que está afastado deste desvairismo‖ (MORAES, 2001, p. 70). Bandeira, embora
critique Mário, também reconhece a riqueza de seu lirismo ao dizer:

Eu gosto de você –, mas muito, –, quando exprime o seu alto e puro


lirismo na cortante ironia da linguagem terra-a-terra. Sabe-me
deliciosamente a sua "tendência pronunciadamente intelectualista".
Compreendo e sinto agudamente o seu lirismo geométrico que me
dá um gozo análogo ao que me deu a Ética de Espinosa. (MORAES,
2001, p. 70)

Com essa declaração, Bandeira deixa transparecer sua afeição pelo uso da
ironia. Essa ironia, como ele observa, parece mais uma maneira de Mário recriar seu
próprio lirismo.
Na crítica estabelecida por Bandeira, acerca do objeto poético, nota-se a
intenção de criar um lirismo que prime pela flexibilidade sintática, pela emoção,
graça e humor. Essa liberdade propiciada por uma sintaxe menos presa às normas
gramaticais imprimem leveza e rapidez na leitura. Em "Poética", poema de
Libertinagem, Bandeira já se mostra avesso a um tipo de lirismo comedido, que se
comporta conforme as regras da estética clássica. Esse índice não indica,
entretanto, que ele seja uma pessoa oposta à tradição literária. Pelo contrário, opta
por um lirismo mais liberto da "fôrma", que se transforma a partir da tradição.
A necessidade do diálogo com essa tradição é sempre uma maneira de se
reinventar. Revela a novidade em direção à sensibilidade, ao humor apaixonado dos
"clowns", à emoção e humanismo dos "loucos" e "bêbedos". Tal novidade é erguida
sobre a linguagem usada no cotidiano. Contrário ao purismo das correntes pós-
simbolistas, cuja lírica se prendia à força bem comportada das rimas, propõe uma a
poesia que retrata a vida simples. Por isso, formula um lirismo despido e revestido
de liberdade, como acontece em ―Poética‖:

Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
[protocolo e manifestações de apreço ao sr. Diretor

56
(...)
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Skakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


(Li, p. 129)

Nesse poema, há índices daquilo que, para ele, não seriam os elementos
constitutivos de seu lirismo, mas o contrário. Por isso, o poeta resume, no último
verso, o lirismo desejado: a libertação propiciada pelo lirismo ―dos loucos‖, ―dos
―Bêbedos‖ e dos ―clowns‖. Conforme Koshiyama (2010, p. 86), a escolha do título
por Bandeira é significativo por dois modos: primeiro porque ―representaria um
esforço de compreender, novamente, não uma arte da poesia, mas o que nela é
nascimento, condição de uma experiência.‖; segundo: ―o que se quer é definir uma
arte poética, ou compreender a experiência da poesia?‖. Para Koshiyama, tratando-
se de um poeta do século XX, Bandeira estaria muito mais próximo de estabelecer
relações entre poética e lirismo. O lirismo pretendido por Bandeira nasce da
identificação com ―seres marginais‖, ―seres feridos‖ e ―seres mínimos‖, denotando a
pungência e compaixão presentes em sua poética. Explica Koshiyama (2010, p. 92)
que:

É apenas porque o lirismo propõe-se como projeto conservar plena e


íntegra recordação da experiência individual e social, que o poeta
pode integrar a experiência de seres que vivem à margem e trazê-
los, com a força compassiva de sua emoção e de seu canto, para
junto de nós.

Mais precisamente, Bandeira ―[...] fala é do conteúdo de uma poética


negativa, para levar-nos á experiência do lirismo em si mesmo.‖, e, como um ―grito
de esperança‖, o lirismo é compreendido como ―emoção‖ e ―caminho em que se
resgata a memória de uma unidade‖. Nesse sentido, completa Koshiyama (2010, p.
93): ―Ao identificar a experiência humana, o lirismo e a libertação, Manuel Bandeira
deu nome à poesia, resgate e sinal nosso, vivo. Deu nome à poesia em si mesma.
Lirismo. Libertação.‖.
Além do lirismo, as cartas revelam a preocupação de Bandeira pelo verso e
ritmo. O interesse pela definição do verso e ritmo desperta-o quando Sousa da

57
Silveira, então docente de português na Escola Normal do Rio, na tentativa da ―[...]
explanação do ponto do programa que se refere a ‗formas de linguagem, prosa e
verso‘‖, precisa ―dar uma definição do verso que abranja também o verso-livre
modernista.‖ Silveira apela a Bandeira tal definição. Bandeira, na carta de 20 de
março de 1925, tenta definir prosa e verso: ―Prosa é a linguagem ordinária, não
metrificada. Verso é a linguagem metrificada. Cada verso ou metro é um conjunto de
palavras formando um ritmo de tal natureza que apare [ce] como um elemento bem
definido do discurso.‖ (MORAES, 2001, p. 192). Em seguida, indaga:

Na prosa também há ritmos, mas os ritmos da prosa não têm esse


caráter de elemento. Os versos constituem ritmos expressivos ou
emotivos que o poeta deliberadamente procurou e assinala
graficamente (para os fazer atuar de pronto com toda a sua força
emotiva ou expressiva). Isso servirá? (MORAES, 2001, p. 190).

Não contente com sua definição, solicita a Mário pesquisa e solução do caso.
Ao se referir à definição dada por Mário, diz na carta de 30 de março de 1925: ―Você
tem razão no que diz acerca de prosa e verso. Prosa e todo, verso é elemento.
Prosa e poesia. Poesia tem dois sentidos, um geral e outro restrito. O restrito:
composição em versos.‖ (MORAES, 2001, p. 192). Entretanto, a definição de Mário
ainda não estava clara, pois, para Bandeira, o amigo ―caiu no critério formal‖ que
queria evitar. Ainda faltava a diferenciação da frase prosaica e do verso: ―Para mim
tudo está em estabelecer nitidamente essa diferença. A sua definição não me
parece satisfatória.‖ (MORAES, 2001, p. 192).
Ao contrário de Mário, declara: ―O verso não determina as pausas nem me
parece também que essas pausas existam sempre.‖. Como justificativa, contra
argumenta: ―Dizer que o verso determina as pausas é definir do ponto de vista do
leitor, quando o essencial é precisar o critério segundo o qual o poeta diz que tal
linguagem foi composta em frases prosaicas ou em versos.‖ (MORAES, 2001, p.
193). Para provar a confusão do amigo, ressalta: ―Quanto às pausas, nas suas
‗Danças‘, por exemplo, há enfiadas de versos em que os ritmos passam
vertiginosamente sem pausas.‖. Para Bandeira, a definição do ritmo feita por Mário
não o satisfaz por estar estreitamente ligada à física. Retomando um ataque de

58
Honório Bicalho15 a Mário, Bandeira lembra: ―Engraçado é que o Honório Bicalho
atacou a frase de sua crítica sobre o meu livro ‗Ritmo estupendo!‘ Disse ele:
―nenhum verso isolado pode constituir ritmo, pois para haver ritmo é preciso a volta
periódica, etc., etc.‖, Bandeira revela que tanto ele quanto Mário equivocaram-se:
―Ferramos na discussão. O que nos separava era uma questão de palavras.‖. Em
seguida argumenta: ―A respeitar esse sentido, então mesmo na poesia chamada
metrificada quase nunca havia ritmo: numa série de decassílabos, por exemplo,
alternavam-se sem voltas periódicas os versos acentuados na 4ª e 8ª e os
acentuados só na 6ª.‖16 (MORAES, 2001, p. 193).
Dessa discussão, Bandeira evidencia a construção de seu pensamento sobre
a concepção do verso. Expõe a Mário que ―[...] para explicar o verso-livre é preciso
partir do conceito tradicional do verso e mostrar depois que ele é um caso particular
do verso-livre.‖. Concorda com Mário que o ―Verso é a linguagem metrificada‖;
entretanto, discorda em relação à ideia de que ―Antes do verso-livre os poetas
metrificavam, nós não metrificamos‖. Conforme Bandeira, o ritmo é sentido e não
apenas metrificado: ―Os poetas têm o sentimento dos ritmos (ritmos de
decassílabos, ritmos de alexandrinos, etc.) e não metrificam coisa alguma.‖ E raras
vezes o poeta ―mede para verificar‖. Para convencer o amigo exemplifica: ―Pela
minha experiência pessoal só me lembro de ter me enganado uma vez: fiz como
alexandrino o verso ‗Esta casa, hoje toda alegria hospitaleira‘‖. Compara-se à
maneira dos poetas gregos e latinos dizendo: ―Seguramente eles não ajuntavam as
palavras segundo a quantidade: eles tinham no ouvido os ritmos que produziam
certas distribuições de quantidades.‖ (MORAES, 2001, p. 193). Bandeira revela um
modo de pensar o ritmo e seus próprios versos. Deseja compreender a diferença
entre o ritmo do verso e da prosa, já que ―O estado lírico tanto pode exprimir-se em
prosa como em verso, em música, em cores, em linhas, em pedra, etc‖. (MORAES,
2001, p. 193). Então, Bandeira cogita:

15
Honório Bicalho (1886-1930), que segundo o próprio Bandeira, “cultivou as letras, escrevendo
contos, que nunca reuniu em livro, uma novela de caráter autobiográfico intitulada Na vida (rio de
Janeiro, 1918, Tip. Do Jornal do Comércio), e artigos para a imprensa, especialmente para o Correio
de Minas, de Juiz de Fora, do qual foi assíduo colaborador. Literariamente usava o pseudônimo
Rufino Fialho.‘ (MORAES, 2001, p. 189, nota 17).
16
Para uma melhor compreensão das transformações ocorridas com os decassílabos, conferir o
capítulo ―O decassílabo‖ de Spina (2003, pp. 45-61).
59
O que eu sinto é isto: na prosa o ritmo contínuo, ou pelo menos, na
prosa ritmos que não têm tão definido aquele caráter de elemento. O
isolamento em que surgem os elementos que chamamos versos, é
em si mesmo expressivo. Quando fazemos versos procuramos isso,
coisa que não procuramos quando escrevemos prosa. Nesta há
muito forte o sentimento de nexo do contexto. Por isso da sua
definição eu preferia simplistamente destacar as 6 primeiras palavras
e dizer simplesmente: "Verso é o elemento da poesia". E já não
estou gostando de dizer que "frase prosaica é o elemento da prosa."
Frase prosaica não é elemento: é apenas porção. (MORAES, 2001,
p. 193).

A dificuldade de se chegar a uma definição aceitável revela-se no trecho


seguinte: ―Viro e mexo e não saio disto: verso é um ritmo que em seu isolamento
possui força expressiva ou emotiva.‖ (MORAES, 2001, p. 194). Ao retomar essa
discussão na carta de 2 de abril de 1925, confessa a Mário: ―Estou gostando muito
da definição - verso é a entidade rítmica determinada pelas pausas dominantes da
linguagem lírica.‖ (MORAES, 2001, p. 194)., completando que ―O vocábulo entidade
é preciso e contém aquelas noções vagas que eu exprimia por elemento, autonomia
de ritmo, e a existência própria e interior de que falou G. Kahn17.‖ (MORAES, 2001,
p. 194).
Outro aspecto discutido pelos dois, como marca deste projeto, é o uso de
versos alexandrinos, revelando um diálogo com a tradição clássica. Mário, em carta
de outubro de 1922, tenta explicar o porquê de sua opção pelo verso alexandrino e
parnasiano e pelo excesso de musicalidade:

Mas é que, assim como está, Paulicéia me é excessivamente cara. É


o meu lago onde passeio às vezes, para me recordar de uma época
de vida. Essa época não me traz à lembrança uma mulher amada,
como a Lamartine e Musset18, mas uma condição humilhante,
precária, estúpida e formidável de exatidão e beleza guerreiras.
Respeitei-a nos cactos selvagens que deu. Não fui jardineiro. Colhi
em pleno matagal. (MORAES, 2001, p. 72)

Mário justifica o uso do alexandrino por duas razões: a liberdade poética e a


maneira natural de sentir o poema: ―Zangaste com o verso alexandrino e parnasiano
‗e o ciúme universal etc.‘ Mas, caro Manuel, sabes da liberdade, mesmo excessiva
que há no meu livro: portanto não foi preconceito que me obrigou àquela fórmula.‖

17
―Gustave Kahn (1859-1936), poeta e romancista Francês.‖ (MORAES, 2001, p. 195, nota 23)
18
―Alphonse de Lamartine (1790-1869) e Alfred Musset (1810-1857), escritores românticos
franceses.‖ (MORAES, 2001, p. 73, nota 35).
60
(MORAES, 2001, p. 72). E completa: ―Era assim mesmo. Senti assim. Saiu assim.
Como posso eu desritmar um movimento que brotou naturalmente?‖. Daí a
explicação sobre os substantivos e adjetivos e a proximidade com o passado:

Só por prevenção? Mas no "Prefácio" já afirmava não desdenhar


balouço de versos comuns. A comoção muita vez está num ritmo
comum. Os ritmos comuns existiram primeiro na natureza, depois no
preconceito. Não há preconceito nem chavão que não tenha existido
naturalmente. E o meu ocasional alexandrino, mesmo com seus dois
substantivos e dois adjetivos, existiu ali naturalmente dentro de mim.
Da mesma forma rimas e metros que dentro do livro se encontram.
Além disso: eu ainda estava muito perto do meu passado. Esta lei de
hímen que nos persegue! (MORAES, 2001, p. 72)

Se, para Mário, esse recurso brota naturalmente, então opta pelos versos
comuns, não por preconceito à fórmula, antes pela liberdade que orienta Paulicéia.
Além disso, afirma não desritmar o que surge de modo natural.
Na carta de outubro de 1922, Bandeira, embora compreenda Mário ao dizer:
―Tens toda a razão no que dizes sobre versos alexandrinos. Sentiste assim.‖, não
deixa, entretanto, de contra-argumentar ao afirmar: ―Mas quando a gente sente com
força, com exagero, mete às vezes os pés pelas mãos. A inteligência às vezes
intervém e pondera: isso não.‖. Bandeira está na defesa de como produz seus
alexandrinos: ―Eu faço muitos alexandrinos daqueles de substantivo e adjetivo e vou
publicá-los: são versos da alma passadista, (...)‖, e, simultaneamente, não esconde
seu desagravo com certos recursos empregados por Mário: ―Mas aquele alexandrino
e aquelas rimas na Paulicéia e talvez no lugar onde estão me desagradam.‖.
Quando Mário, em carta de outubro de 1922, entretanto, defende-se do exagero,
ressaltando a ―emoção‖ e o ―sentir‖, Bandeira declara: ―A tua emoção me irrita. E
pronto: sentimento contra sentimento. Não há nada a fazer‖ (MORAES, 2001, p. 74).
A título de exemplo, poemas como ―Inscrição‖, ―A aranha‖, ―À beira d‘água‖, e
―Verdes mares‖, ―O súcubo‖, ―A ceia‖, ―Menipo‖, ―A morte de Pã‖, ―Confidência‖,
―Toante‖, de Carnaval foram construídos em alexandrinos. No poema ―Inscrição‖:

Inscrição
A / qui, / sob / es / ta / pe / dra, on / de o or / va / lho / ro / re / ja,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Re / pou / sa, em / bal / sa / ma / do em / ó / leos / ve / ge / tais,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

61
O al / vo / cor / po / de / quem, / co / mo uma / a / ve / que a / de / ja,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Dan / ça / va / des / cui / do / sa, e ho / je / não / dan / ça / mais...
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
(CH, p. 47)

Além do verso alexandrino, Bandeira confirma aquilo que escreve a Mário:


substantivo + adjetivo: ―óleos vegetais‖. No terceiro verso, o autor inverte a ordem:
―alvo corpo‖ (adjetivo + substantivo). Essa construção se repete em versos dos
poemas ―Aranha‖ e ―À beira d‘água‖:

A aranha

E o meu veneno... Escuta a minha triste história:


Adj. + Subs.
Aracne foi meu nome e na trama ilusória
subs + adj.
Das rendas florescia a minha graça estranha.
subs. + adj.
(CH, p. 50)

Verdes mares

Desce. Uma moça ri, quebrando o panamá


―– Perdi a mala!‖ um diz de cara acabrunhada
subs.+ adj.
Sobre as águas, arfando, uma breve jangada
adj. + subs.
Passa. Tão frágil! Deus a leve, onde ela vá.
(Ca, pp. 85-86)

Nessa troca de ―restrições‖, ou melhor, no que poderia ser entendido como


preconceitos ao parnasiano ou ao modernismo, Bandeira se esclarece:

Mário, meu querido Mário: somos sinceros. Nunca me passou pela


cabeça que tenhas querido fazer obra extravagante, que tenhas
procurado criar alexandrinos, etc. Tudo o que fizeste, fizeste com
espontaneidade. Acredita agora também que as minhas observações
nasceram não de preconceitos modernistas, mas de idiossincrasias
irremediáveis. Nem pretendo ter razão. (MORAES, 2001, p. 74)

Bandeira dispõe as suas observações no rol de suas idiossincrasias, sem


deixar de revelar sua queda pela síntese: ―Mas o meu espírito, amigo das sínteses,
detesta desenvolvimentos (...).‖ (MORAES, 2001, p. 75). Reforça ainda esse caráter
de síntese quando em carta de 6 de janeiro de 1923, respondendo a Mário, afirma:

62
―Pode ser que você não tenha achado o que procura (...). Não creio que você esteja
perdido para a poesia. onde há síntese emotiva e aproximações bruscas de termos
remotos, haverá sempre poesia.‖ (MORAES, 2001, p. 81). Bandeira, ao avaliar a
poesia de Mário, vai deixando rastros do seu pensamento sobre o poético. Em
relação à ―síntese‖ volta a dar índices de sua concepção quando comenta o poema
―Carnaval carioca‖ na carta de maio de 1923:

E como penhor desse juízo, vou desde já dizer-te o que me


desagradou nele. Devo contudo avisar-te que só o faço para atender
ao teu pedido de conselho, mas sentindo bem a pertinência e
mesquinharia que há em chicanar detalhes naquela admirável
síntese. (MORAES, 2001, p. 88)

Uma das maneiras de materializar esse espírito de síntese está, por exemplo,
na sua preocupação com a seleção lexical, etimologia das palavras. Busca a palavra
que abarque em si mesma o sentido pretendido. Na carta de 27 de julho de 1923,
Bandeira consulta Mário sobre o vocábulo usado em "Meninos carvoeiros":

[...] fazia-te uma consulta sobre o vocábulo chouteira que empreguei


nos "Meninos carvoeiros". Não existe chouteira no sentido de
chicote. Chouteira é andadura de cavalo; e também andaço. Teria
surgido no meu subconsciente por corruptela de açouteira? Que
devo fazer? Ponho açouteira ou peia? (MORAES, 2001, p. 97)

Na carta de 5 de agosto de 1923, Mário responde-lhe sobre o vocábulo


empregado em ―Meninos carvoeiros‖: ―Agora para acabar, tua pergunta. ‗E vão
tocando os animais com uma chouteira enorme‘. Primeiro: ainda não consegui
descobrir se escreveste chouteira ou chouteria.‖. Mário observa que o verso pode
indicar ambigüidade: ―Entendi o verso doutra forma, que os meninos tocavam os
animais e que estes caminhavam num chouto pesado. Vejo agora que a tal palavra
queria significar o açoite de que os meninos se serviam.‖, e sugere a Bandeira a
troca do termo: ―Acho que deves substituir o termo‖. (MORAES, 2001, p. 101).
Agora é Mário quem repreende Bandeira: ―Ninguém poderá jamais
compreender tua intenção, pois, além de inventares um termo, dás-lhe um sentido
que as fontes não autorizam. Sê tradicional.‖ (MORAES, 2001, p. 101). Dessa
discussão, Bandeira acata a sugestão de Mário, e troca o termo ―chouteira‖ por
―relho‖: ―E vão tocando os animais com um relho enorme‖ (RD, p. 115). Na troca de
63
informações entre eles observa-se que os versos se constroem mediante a
interferência de um e de outro, e que há entre eles um respeito mútuo. Mário, em
carta a Bandeira de 22 de maio de 1923, afirma: ―Tenho inteira confiança em ti‖
(MORAES, 2001, p. 92). Ou então em carta de 15 de novembro de 1923, com
referência a Losango cáqui, Mário diz: ―Sei que é um tormento dar uma opinião
sincera a um amigo. Mas exijo de ti esse tormento. Eu preciso de tua opinião, meu
querido Manuel. Com toda sinceridade: não me obrigo a segui-la. Podes dizer uma
coisa e eu fazer outra. Mas necessito absolutamente de tua opinião sincera e
áspera, desimpedida.‖ (MORAES, 2001, p. 106).
Bandeira vai registrando a construção de seu pensamento poético na
conversa com Mário. Na carta de Natal de 1923, Bandeira novamente reflete acerca
da síntese ao comentar o Losango cáqui: ―Quando li os versos impressos, achei-
lhes frouxa unidade poemática. Era preciso desenvolver mais, construir melhor. Mas
eu sou assim: quando digo o essencial da minha emoção, todo o resto me parece
supérfluo e desprezável.‖. No entanto, ao mesmo tempo em que interfere na
produção do amigo, denota receio pela facilidade com que Mário acata suas
sugestões: ―A facilidade com que vais aceitando as minhas sugestões atemorizam-
me. Vê lá. Pesa-as bem sempre.‖ (MORAES, 2001, p. 112).
Questões de pontuação, de fonética e de semântica tornam-se uma constante
preocupação revelada pelos diálogos tecidos nas correspondências. Na carta de 29
de setembro de 1924, Mário diz: ―Escrevi Clam com eme, quero nacionalizar a
palavra. Que achas? [...] Examina a pontuação que adotei atualmente.‖ (MORAES,
2001, p. 129). Na carta de 10 de outubro de 1924, Bandeira, evidenciando
conhecimento e cuidado com as palavras, responde comentando o título escolhido
por Mário do livro O clã do jabuti:

Clan com n. Com m é que fica estrangeirado, nem se sabe o que é à


primeira vista. O a nasal no fim das palavras representa-se hoje por
an ou ã. No antigo português era ora com m, ora com n, conforme a
etimologia. Mas as formas em am evoluíram para ão: tam, quam e
todas as 3ª pessoas do plural dos verbos: amam, amaram. Isso nas
palavras originárias do latim. Nas que vieram do tupi ou da África
também se transcreveu o a nasal por an (nhan-nhan, Itapoan,
Ibirapuitan, etc). Ou clan ou clã. Mas para que mudar? Todo o mundo
já está habituado com o n. (MORAES, 2001, p. 131)

64
Nesse diálogo, Bandeira revela-se consciente do uso e da etimologia da
palavra.
Nessa mesma carta, ainda tece críticas ao poema ―Carnaval carioca‖: ―Foi
muito interessante para mim cotejar o novo texto do "Carnaval carioca" com a cópia
que me tinhas mandado o ano passado. Algumas emendas estão boas. Outras me
parecem infelizes.‖ (MORAES, 2001, p. 131).
Nas questões de estilo e semântica, Bandeira enfatiza que Mário levou em
conta o sentido exato do vocábulo ao dizer: ―Vi que em muitos casos emendaste
levando em conta o sentido exato dos vocábulos. Mas com isso prejudicaste os
valores líricos.‖ (MORAES, 2001, p. 131). Refere-se à troca do vocábulo ―pardo‖ por
―negro‖ no verso: ―E o excesso goitacás, pardo, selvagem‖. E aconselha: ―O critério
semântico faz preferir negro, mas o valente valor lírico que há naquele pardo!‖
(MORAES, 2001, p. 131). Bandeira argumenta ainda:

Pardo é ali insubstituível. Não se pode mudar nenhuma letra.


Ponha bardo ou perdo, pasdo, pasto, parda e não é a mesma coisa.
Milagre verbal, meu caro Mário. Tem que se respeitar. A gente topa
com eles no momento da inspiração. Depois vem o juízo, a
inteligência e não sei que mais e começam a soprar coisinhas.
Há muitos exemplos de correções desse gênero, que eu
restabeleci na forma primitiva. Limitei-me a indicar sem justificação,
pois seria um não acabar de escrever. Compreenderás. (MORAES,
2001, p. 132)

Bandeira revela aqui a sua compreensão da língua literária, a qual é preciso


respeitar mesmo que o juízo entre e sopre que ocorreu transgressão à norma da
língua.
Nessa carta, ainda sugere que Mário faça algumas alterações quanto à grafia
original das palavras de origem estrangeira, como "Pierrot". Bandeira critica o amigo
por usar construções arcaicas ao estilo de Gonçalves Dias (1823-1864), como
"Ignaros". Para Bandeira, esses termos soam estranhos na poesia moderna. O
poeta chama a atenção para uma poesia autêntica, sem o uso de construções
exageradamente forçadas. Por esse motivo, a deixa: "‘Ignaros‘? Só é suportável no
‗Canto do Piaga‘ ou no ‗I-Juca Pirama‘ e na boutade do Severiano de Rezende que
chamou o Bernardelli de marmorista ignaro." (MORAES, 2001, p. 132). Casos como
esses, de acordo com Moraes (2001, p. 133), foram suprimidos ou trocados por
Mário. Índice da confiança que Mário tinha por Bandeira.
65
Um desses casos também é tema de várias cartas, uma espécie de contenda,
na qual ora um, ora outro tenta argumentar que estão corretos em suas escolhas.
Bandeira critica Mário por utilizar a expressão ―obsecava‖. Para o autor de
"Evocação do Recife", trata-se de fatos de linguagem, como discute na
correspondência de 30 de julho de 1933: ―Observações sobre linguagem: não há
obsecar, como você escreve com o sentido do obséder, que ou se dirá, fazendo
galicismo, obsedar, ou fazendo latinismo obsidir. Há obcecar, com c, que é outra
coisa, cegar completamente.‖ (MORAES, 2001, p. 564).
Bandeira refere-se ao fato de Mário insistir em utilizar o termo no trecho: ―A
composição do Bumba-meu-boi o obsecava.‖. Propõe ao amigo a seguinte
transformação: ―a Composição do Bumba era uma preocupação que não o largava
ou não o deixava. Tenho duas observações mais: não sei se não é inútil comunicá-
las a você.‖ (MORAES, 2001, p, 564). Apesar de saber que Mário não atenderá o
seu pedido, ainda assim tenta convencê-lo: ―Estou certo que você não me atenderá,
e no entanto não há nada de que eu esteja mais certo nesta vida.‖ (MORAES, 2001,
p, 564). Daí a insistência:

Repito que isso não é português nem brasileiro nem língua nenhuma.
Não é "fato" da linguagem. A sua sistematização só é lícita quando
se exerce sobre fatos de linguagem. Me desespera, te desespera,
lhe desespera, nos desespera, mesmo se desespera (mais raro e em
casos especiais) são fatos da língua: o desespera, não. (MORAES,
2001, p, 564)

Às vezes, Bandeira é implacável em sua crítica, chega a demonstrar um


pouco de irritação em relação à insistência do amigo. Para Bandeira, o recurso
utilizado por Mário não ―[...] é fato da língua literária nem da língua popular ou
familiar.‖. Nessa esteira, continua: ―E a sua insistência é tanto mais incompreensível
quando se reflete que você põe sempre o interesse social acima das satisfações
individualistas mais legítimas como são as do artista.‖. Reafirma severamente sobre
os ―purismos‖ da ―gramatiquinha‖ de Mário, ao dizer: ―[...] irritam todo o mundo e
prejudicam enormemente a sua ação social. Se irritam a mim, que sou seu amigo!...
Afinal falei, mas sei que será à toa. (...) (MORAES, 2001, p. 564). Essa discussão
demonstra o fino conhecimento de Bandeira sobre os fatos de linguagem.
Em carta seguinte, de 6 de agosto de 1933, Mário responde, tentando
justificar o uso de "obsecar": ―O caso do "obsecar" eu sabia perfeitamente mas é um
66
desses casos que, tantos na vida! A gente resolve a trouxe-mouxe e vai de repente,
alguém obriga a gente raciocinar mais de espaço about.‖. No entanto, parece que a
contenda vai se acalmando: ―É um caso curioso de etimologia popular... semi-
erudita. Os galiparlas dos jornais, querendo obséder, mais lembrando obcecar (cuja
grafia naturalmente não lembravam), fizeram "obsecar", verbo novo com o sentido
tão necessário de obséder.‖ (MORAES, 2001, p. 564).
Como prova final, Mário tenta demonstrar um exemplo a Bandeira do uso de
expressões como ―o desespera‖: ―Mas se dizem sem querer ‗me parece‘, porque
então não dizem ‗o desespera‘? você retorquirá. Não dizem, meu caro?‖ (MORAES,
2001, p. 565). De Leonardo Mota, ―cantador popular‖, (Sertão Alegre, edição de Belo
Horizonte 1928, p. 89), Mário transcreve o seguinte exemplo: "O padre disse: - O
protejo..."; do ―rapsodo nordestino‖ Leandro Gomes de Barros‖, em ―Peleja de
Antonio Batista e Manuel Cabeceira‖. Mário retoma os versos do cordel: "Fiz
Romano atropelar-se / E fiz Germano correr, / Abocanhei Ugolino / Porém não pude
o morder." (MORAES, 2001, p. 565). Mário encerra esse trecho com a seguinte
afirmativa: ―São os únicos exemplos que encontro na minha papelada, sem levantar
da cadeira.‖19 (MORAES, 2001, p. 565), a qual é comentada por Bandeira na carta
de 7 de agosto de 1933: ―Agora você me surge com um exemplo e me diz que tem
outros. Gostaria de conhecê-los. O seu exemplo é ótimo e só resta saber se é de
fato popular e como é o contexto em que ele aparece.‖ (MORAES, 2001, p. 567).
Essa resposta a Mário reafirma a reciprocidade, a abertura do diálogo e da
confiança entre os dois, construídas ao longo de duas décadas, permitindo-lhe dizer:

quando eu disse que achava à toa discutir o caso do O desespera


não foi querendo significar que você seja teimoso a ponto de não
querer se render a razões plausíveis, mas que sinto você aí firme
como rocha e queria evitar que você perdesse o seu tempo tão
precioso em repisar razões que já me tem dado mais de uma vez.
Foi o que se deu nesta última carta. (MORAES, 2001, p. 566)

Bandeira não entende a língua como uma criação lógica, há uma diferença
entre o que os gramáticos e puristas querem e o que querem os que trabalham
realmente os fatos de linguagem. Em razão disso, desabafa a Mário: ―As suas
alegações de lógica não pegam. Não pegam, não pegam, não pegam. A língua não
19
Em leitura recente, observamos que Moraes estuda essa contenda no artigo intitulado ―Curtos-
circuitos na correspondência Mário de Andrade e Manuel Bandeira‖. (MORAES, 2013, pp. 135-147).
67
é uma criação lógica. Ou por outra, ela tem uma lógica que não é a individual e
muitas vezes nos escapa.‖ (MORAES, 2001, p. 566). Para Bandeira, são os fatos de
linguagem que contrariam a lógica defendida por Mário: ―Justamente para não
contrariar essa lógica é que é preciso a gente se conformar com os fatos da
linguagem.‖ (MORAES, 2001, p. 565), pois para o poeta, ―Os gramáticos e os
puristas só querem se conformar com os fatos da linguagem escrita, [...]. os que
trabalham sobre os fatos da linguagem falada da classe cultivada é que me parecem
no melhor caminho.‖ (MORAES, 2001, p. 566).
Nesse debate acerca desses fatos de linguagem, notamos o porquê de o
projeto bandeiriano encaminhar-se pela linguagem prosaica, pois nessa missiva, ele
já aponta índices de que ―[...] As criações do povo em geral são as mais vivas e
legítimas. Elas se impõem [à] classe cultivada quando nelas fala o gênio da língua.‖,
já que elas legitimam o sistema da língua: ―A sua lógica individual, como a de
qualquer escritor culto só se exerce legitimamente até o ponto em que sistematiza
dentro dos fatos da linguagem ainda que só populares.‖. Ainda, nas linhas seguintes,
completa: ―A língua é uma coisa tão bela, tão viva, tão vária nas suas contradições,
nos seus repentes, nos seus erros, nas suas impurezas!‖ (MORAES, 2001, pp. 566-
567). Na expectativa de imprimir à discussão seu ponto de vista, Bandeira
argumenta:

Escreva naturalmente, Mário. Adotando o que lhe pareça bom para a


sua expressão, mas sem essa preocupação de exigir muito para
obter um poucadinho. Você é escritor, não é gramático. Os escritores
só podem influir na língua pelo gosto da expressão, não pela lógica.
A lógica é para os gramáticos, que trabalham sobre a criação do
gosto dos bons escritores. (MORAES, 2001, p. 567)

Na carta de 13 de outubro de 1924, Bandeira responde as críticas de Mário.


Referindo-se aos versos: "Sou o animador de imagens fanadas / o fixativo de
fantasmas transitórios", afirma: ―Tinhas posto antes ―o estatuário de fantasmas
transitórios. Era impressionista.‖. Bandeira não apreciou o termo ―estatuário‖, achou-
o intelectualmente impróprio. Mário, segundo Bandeira, imprime imagem precisa ao
empregar o termo ―fixativo‖ em ―fixativo de fantasmas transitórios‖. Declara que:

Ficou destoante o detalhe analítico preciso na imprecisa síntese


lírica. Eu tirei o impróprio estatuário porque senti a tua repugnância.
Procurei outra coisa e não achei, mas soou-me de maneira
68
fortemente expressiva aquele animador de imagens fanadas e de
fantasmas transitórios, como ritmo e timbre. (MORAES, 2001, pp.
139-140)

Mário, entretanto, em carta de 7 e 8 de novembro de 1924, rebate essas


considerações. Diz que, embora Bandeira proponha ―Eu sou o animador das
imagens fanadas. E dos fantasmas transitórios‖, prefere ―o fixativo dos fantasmas
transitórios‖. Conserva o ―fixativo‖ e afirma: ―Não posso animar fantasmas
transitórios, já de si animados. Meu desejo é fixa-los. ‗Fixativo‘ está muito bem.‖
(MORAES, 2001, p. 146). Mas Bandeira, não contente, defende-se, em carta de 20
de novembro de 1924, dizendo: ―‗Fixador‘ será melhor que ‗fixativo‘??. Fixativo é
coisa manipulada. O poeta é o agente manipulador.‖ (MORAES, 2001, p. 151). O
verso, enfim, configurou-se em: ―Fixando os ecos e as miragens‖, apontando o
gerúndio uma ação. Essa discussão revelada nas cartas mostra o quanto são
conscientes da linguagem, seja a palavra, seja o modo de operá-la no poema.
Preocupação parecida é notada nas discussões que empreendem, também,
em verso do poema ―Carnaval carioca‖, acerca do uso de ―pronome‖. Nesta mesma
carta de 7/8 de novembro de 1924, Mário apresenta o porquê da escolha do
pronome oblíquo iniciando o verso: ―Lhe embala o sono‖, em vez de ―Embala-lhe o
dormir‖. Para ele, é preciso ter coragem de ―escrever brasileiro‖ e argumenta que
―Dante não surgiu sozinho‖, mas foi preparado pelos poetas que escreveram em
língua vulgar antes dele, ―lembrando erros possíveis de serem legitimados‖.
(MORAES, 2001, p. 146). Bandeira, na mesma carta de 20 de novembro de 1924,
dá a sua opinião sobre este caso:

O brasileiro gosta de começar a frase com pronome oblíquo quando


é da 1ª pessoa. ―Me deixe‖, ―me leve‖, etc. com a 2ª e 3ª pessoas [é]
outro jeito. É um caso que estou ainda observando. Aí é que me
parece caber bem ―Embala o sono dele...‖. Veja se te serve [...]
mudar para o ―Lhe embala‖ para o que proponho.‖ (MORAES, 2001,
p. 151).

O poeta pernambucano, ao formalizar o discurso literário, não é que não


aceite a transgressão da língua gramatical, mas a observação dos fatos linguísticos
lhe é cara, por isso diz ―estou ainda observando‖. Para Bandeira, em carta de 7 de
agosto de 1933, a lógica de ―qualquer escritor culto só se exerce legitimamente até o
ponto em que sistematiza dentro dos fatos da linguagem ainda que só populares‖
69
(MORAES, 2001, p. 567). Sobre o experimentalismo no discurso literário, Bandeira
prefere que esteja baseado em fatos da língua, mesmo que falada ou popular, ao
invés de fundamentado em solução artificial.
Quanto ao espaço da crítica, as cartas entre Mário de Andrade e Manuel
Bandeira revelam acordos e desacordos com os quais vão construindo o próprio
discurso literário. Dentre os já ressaltados, um outro incomoda Mário, ou seja, a
influência lusitana sofrida por Bandeira. Em carta de 27 de dezembro de 1924,
Bandeira mostra-se queixoso por Mário não o ter criticado, de fato, quanto a poemas
das obras Carnaval e Ritmo Dissoluto. Contudo, sua carta mostra Bandeira
justificando os empregos que faz. No caso da influência lusitana (cf. MORAES,
2001, p. 167, nota 146), comentada por Mário, Bandeira afirma que ―Não
desaparecerá [...] porque se apóia em fundamentos estéticos. Não renuncio a uma
infinidade de recursos expressivos do português moderno e arcaico. O essencial é
que apareçam na linguagem como recurso de expressão artística‖. Defendendo o
lusitanismo de seus versos, Bandeira continua: ―Demais, vocês do Sul tiveram o
alemão e o italiano para contrabalançar a influência lusa.‖. Nesse sentido, observa
que o ―Norte ficou mais português. Português [...] completamente assimilado‖
(MORAES, 2001, p. 166). Assim justifica o lusitanismo em sua linguagem poética. O
que Mário retruca, em carta de 29 de dezembro de 1924, ao dizer que o que fez ―foi
uma observação psicológica e não uma censura‖. Afirma, entretanto, considerar
―isso um mal, aliás menos pior que o da influência francesa sobre toda a gente
brasileira‖ (MORAES, 2001, p. 171). Mário faz a crítica, mesmo à luz da justificativa
de Bandeira: ―Faça o favor também de isentar de influência lusa a ‗Paráfrase de
Ronsard‘. Quis transpor à língua portuguesa o sabor arcaico do original francês.‖
(MORAES, 2001, p. 166). A essas considerações, Mário afirma: ―Censuro e continuo
a censurar a ‗Paráfrase de Ronsard‘. Gênero falso de fazer versos e não fazer
poesia. É poetice e não lirismo. O erro fundamental, o erro está em fazer
paráfrases.‖. Mário alerta que este erro fundamental conduz a outros como o ―buscar
expressões que não são tuas, de poetas antigos e palacianos.‖ (MORAES, 2001, p.
172).
Mário recusa ainda a argumentação de Bandeira quanto aos versos de ―Solau
do desamado‖, aos quais se refere: ―de tão mau gosto! Oh! Que horrível aquela

70
‗dona Olaia‘ rimadora e intrometida‖ (MORAES, 2001, p. 167, nota 146) ou ―Oito
anos faz que te não via‖, do poema ―Três idades‖ (A cinza das horas), afirmando:

Sei perfeitamente que Olaia é nome antigo português. O que critiquei


foi Olaia servir de rima, que lhe tira toda e qualquer neutralidade e
liberdade e o torna obrigatório e encaixado a muque na poesia. Os
achares que-te-não-via ―saboroso musical‖ só prova que estás muito
lusitano. Isso até entre portugueses é maneira mais de escrever que
de falar. Pedante. Ninguém fala assim ou escreve no Brasil a não ser
por preconceito e imitação. Influência. MORAES, 2001, p. 172).

Muitos dos reparos sugeridos por Mário são aceitos por Bandeira que parece
deixar-se convencer também pelos fatos linguísticos, ressalvando, contudo, a
musicalidade. Sobre esse verso de ―Três idades‖, declara: ―Também aqui aceitei o
reparo de Mário e na edição seguinte pus: „Oito anos faz que não te via‟, ainda que
musicalmente me parece que piorou o verso‖ (MORAES, 2001, p. 167, nota 148).
O que se nota nesse vai e vem das cartas é que um método crítico vai se
construindo, embasado nas avaliações sobre a composição dos poemas,
fundamentadas, portanto, em aspectos formais e estéticos. Não perdiam de vista,
todavia, como afirma Mário, ―que um livro representa uma época‖ (MORAES, 2001,
p. 168).
Mário de Andrade, nessa mesma carta de 29 de dezembro de 1924, a
respeito do emprego de diminutivos por Bandeira, declara de modo sensível e cru a
sua opinião:

Quanto aos diminutivos são uma coisa deliciosa em tua obra. A pena
foi serem feitos quase sempre à portuguesa. Você já reparou que o
diminutivo brasileiro ainda é mais carinhoso que o português? Eu
creio que isso nos veio do fundo amoroso do negro. Bodezinho pra
nós ficou bodinho, que é uma maravilha e a que nada se compara no
mundo das línguas que conheço. É engraçado, agora que começo a
escrever brasileiro, tenho usado uma quantidade enorme de
diminutivos. Você compreende: a gente não pode fingir, quer falar
brasileiro mas isso não basta. É preciso sentir brasileiro também.
(MORAES, 2001, p. 172).

Bandeira já tinha se comovido com a fala de Mário sobre o emprego reiterado


de diminutivos em poemas de Ritmo dissoluto:

71
E aparece um defeito saboroso do Ritmo dissoluto: a mania de
diminuir tudo, carinhoso, por sossegado amor. Com certeza ele não
reparou que exprime por diminutivos tudo que ama. Quando a gente
encontra um diminutivo, já sabe, o poeta está num assomo de
ternura. (MORAES, 2001, p. 167, nota 150).

Eis o verso do poema ―Estrada‖, a que se refere Mário: ―Enterro a pé ou a


carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso‖. ―Bodinho‖ era a preferência
de Mário. Mário parece colaborar, nessas sugestões, para que Bandeira, cada vez
mais, lapide a própria criação literária. Nesse caso, contudo, Bandeira não segue a
orientação do amigo. Exprime, no entanto: “Muito discutimos sobre este ponto. Mário
estava erradíssimo imaginando que uma forma do diminutivo era portuguesa e a
outra brasileira.” (MORAES, 2001, p. 173, nota 165).
Outro ponto discutido por Bandeira é a diferenciação entre poesia e ciência.
Em carta de 03 de setembro de 1927, comenta a Mário acerca de como o mundo
deve ser representado nos poemas. Para ele, a poesia não é e nem deve ser a
expressão direta da realidade, mas, sobretudo, a recriação dessa realidade. Em
carta de 3 de setembro de 1927, critica a falta de vida no poema ―Vitória-régia‖ de
Mário ao dizer: ―Não constitui poema. Me parece que não é poesia, nem na forma
nem no espírito‖, pois não se pode considerar um poema apenas por conter certas
rimas, mesmo que "três daquelas linhas tenham aquele isolamento de ritmo".
Salienta que a poesia não pretende ser a vida tal como apresenta. É neste sentido
que é imprescindível a separação entre ciência e literatura, assim como entre poesia
e gramática. O que Bandeira faz é censurar o amigo por não separar a realidade
convencional da realidade poética: ―É uma peça analítica e expositiva, propriamente
um capítulo de história natural, como os de Fabre, onde há uma mistura de literatura
e ciência.‖ (MORAES, 2001, p. 351). O que depreendemos de Bandeira é que tal
fato implicaria a construção poética, destituindo-a de seu caráter.
A poesia precisa, nesse sentido, ter vida própria, constituir seu universo
particular singular e para o qual converge a universalidade das maneiras de
expressão da linguagem. Como afirma Bandeira: ―Eu creio que a vitória-régia é um
desses temas em que a poesia coincide com o documento.‖ (MORAES, 2001, p.
353). Acrescenta: ―Quando o tema é de natureza vulgar, cômica, brincalhona ou
abjecta, enfim de uma certa sutileza que faz com que a poesia escape ao comum do
homens, a gente pode lançar mão dele e a ação do poeta consiste apenas em

72
assinalar o documento‖. Ainda nessa carta, aconselha Mário a desistir de fazer
poesia a não ser que ela brote naturalmente ou ―a menos que ela lhe apareça no
virar de uma esquina.‖. Na carta de 4 de outubro de 1927, Mário dá a entender que
aceita os comentários de Bandeira ao dizer: ―sobre a ‗Vitória-régia‘ quase que
concordo inteirinho. Vou experimentar botar aquilo em linha de prosa pra ver o que é
que sai.‖20 (MORAES, 2001, p. 355). No entanto, Mário discorda de Bandeira de que
―só mesmo três versos possuem o isolamento rítmico que faz o verso‖, ainda
completa:

Acho que a poesia está mesmo toda em versos verdadeiros que


estão a cem metros da versificação livre. Fiz naturalismo em verso. O
que me distingue dos que já o fizeram sobretudo na Antiguidade
grega e latina, e que fiz por ser a vitória-régia, não faria nem mesmo
com o jequitibá. Sinto que tem um lirismo objetivo (desculpe) na
vitória-régia. (MORAES, 2001, p. 335).

Na carta de 10 de outubro de 1927, Bandeira rebate a explicação do amigo:


―No fundo a vitória-régia me aporrinha. As rainhas me aporrinham: eu nada tenho a
ver com rainhas. Me fale numa rosa, isso sim.‖ (MORAES, 2001, p. 356). Rebate,
também, a concepção equivocada de ―lirismo objetivo‖ proposta por Mário: ―Apesar
do ‗desculpe‘ que explicava a impropriedade da expressão ‗lirismo objetivo‘ eu acho
que é abuso falar disso mesmo dizendo desculpe. Não insisto porque você sabe isso
melhor que eu.‖. Bandeira, para encerrar o assunto e demonstrar que é inalterável
sua posição em relação ao caso, completa: ―Na ‗Vitória-régia‘ os elementos
aparentes são a beleza o luxo e o mistério que são com a melancolia os geradores
exclusivos de lirismo na gente pobre de força lírica‖ (MORAES, 2001, pp. 356-357).
Diante de questões e posicionamentos irreconciliáveis, observa-se que entre
os dois interlocutores uma autonomia crítica persiste e é respeitada por ambos. O
julgamento eficaz e severo não diminui entre eles os gestos de sensibilidade diante
do poema e do homem, como se extrai da fala anterior de Mário sobre o ―assomo de
ternura‖ do poeta.

20
Conforme Moraes (2001, p. 351, nota 34), Mário transforma, ―o poema ‗Vitória-régia‘ em relato
poético de um dos dias do diário do Turista Aprendiz (7 de junho). O final dessas impressões em
prosa coincide com os versos lembrados por MB na carta. MA evocaria ainda a ‗Vitória-régia‘ na
crônica ‗Flor nacional‘, a propósito do concurso da revista Rural para escolher a ‗rainha das flores
brasileiras‘.‖

73
Outro aspecto que entre Bandeira e Mário flui nas cartas e constrói os
projetos poéticos de ambos é o conhecimento estético e crítico acerca do caráter
musical/sonoro do poema. Bandeira deixa índices de seu pensamento sobre a
música nas artes, em carta de 20 de novembro de 1924, ao debater a poesia de
Mário. Nesse sentido, afirma: ―É inegável o elemento música nas artes da palavra.
Desde que há som, há música. E é inegável também o elemento imagem na música.
Senão ela seria puramente sensorial. Para mim na poesia é legitimamente cabível o
efeito puramente musical.‖ (MORAES, 2001, p. 151). A interpretação de um e de
outro quanto a este aspecto interessa-nos para apreender, no projeto poético de
Bandeira, o quanto suas escolhas são consistentes e legitimam sua poesia.

3.2. Musicalidade em Bandeira.

Maior ainda foi em mim a influência da música. Não há


nada no mundo de que eu goste mais do que música.
Sinto que na música é que conseguiria exprimir-me
completamente (BANDEIRA, 2012, p. 64).

Se a musicalidade é fator preponderante na poesia, o ritmo torna-se o alicerce


de uma forma de expressão musical nos versos de Bandeira. Os deslocamentos das
células melódicas dentro dos versos auxiliam na elaboração da leveza rítmica. As
rimas mesclam-se no interior e exterior e muitas vezes é o ritmo que as cria.
Apesar de atestar nas cartas desconhecimento musical, manifesta em sua
poesia um universo particular com intensidade de ritmos permeado de sensibilidade
e leveza. É com tom quase de lamento que confessa desconhecer, como Mário
conhece, a teoria musical e a técnica ao piano. Na carta de 3 de [julho] de 1922,
comenta:

Uma qualidade que me fascina em você é a sua musicalidade. É


aliás o que mais me seduz na poesia. Eu faço versos para me
consolar de não ter idéias musicais: nunca a melodia mais precária
ou mofina me passou pela cabeça. Sinto-me por isso,
espiritualmente, um aleijado. Ainda bem que não me falta o
sentimento do ritmo e da estrutura musical. Onde as encontro, gozo-
as libidinosamente (MORAES, 2001, p. 65).

74
Nas correspondências, Bandeira e Mário discutem aspectos da musicalidade,
revelando-a fundamental em suas obras. A respeito da música do compositor
francês Claude Debussy (1862-1918), Mário (apud MORAES, 2001, p. 63, nota 11) a
considera "[...] obra admirável de audácia, de sinceridade, de beleza convencional,
mas vaga demais, excessivamente espiritual para expressar vida.". Em posição
contrária ao amigo, essa vagueza e espiritualidade representam, para o poeta
pernambucano, certo despojamento por conferir o silêncio da alma e serenidade.
Mário julga o poema ―Debussy" de Bandeira muito mais próximo de Erik Satie (1866-
1925). Em carta de 6 de junho de 1922, expressa:

Os teus trechos de verdadeiro verso livre são magníficos. Gosto


menos do "Debussy". Esplêndido como fatura, não há dúvida. Mas a
fatura pouco me interessa. Entendo Debussy duma outra maneira.
Não tenho a sensação Debussy ao ler teus versos. Nem mesmo do
autor de Boite à Joujoux21 e do Children‟s corner22. Sabes que mais?
Lendo ou evocando o teu pequeno poema, lembro-me
imediatamente, imagina de quem?... de Erik. O Satie do Minuete, da
Aubade, dos Morceaux em forme de poire. (...).(grifo do autor)
(MORAES, 2001, p. 62)

Embora falte a Bandeira, como declara, ―idéias musicais", o desejo pelo


domínio da técnica e o conhecimento da teoria musical levam-no a pesquisá-la. Daí
esmerar-se no trato do ritmo e da estrutura musical. Assim o poema ―Debussy‖, de
Bandeira, entrou na conversa dos poetas. Nesta mesma carta de 3 de julho,
Bandeira, acerca desse poema, expressa:

E o meu ―Debussy‖? Tristeza! Incomunicabilidade dolorosíssima das


almas! Você não sente Debussy como eu: ainda bem! [...] Mas quero
prevenir-lhe que aquilo não é todo o Debussy. É aquele aspecto
fugace [...]. Ele começa como quem batuca por desfastio com três
notinhas que vão e vêm, a gente sorri e daí a pouco ele põe o dedo a
furto numa fibra dolorida e então a gente cair em si e chora‖
(MORAES, 2001, p. 66).

Bandeira quer concretizar em Debussy, via sugestão musical, o estado


d‘alma. Esclarece a Mário que ―No que respeita à técnica o Para cá, para lá são os
1ºs compassos Réverie mas à rebours, que na Réverie as notas oscilam do grave

21
Composição de 1913.
22
Composição de 1908, em que há uma espécie de ―delicado humorismo‖ (CARPEAUX, 2001, p.
391).
75
para o agudo e do agudo para o grave.‖ (MORAES, 2001, p. 66). Tenta expressar o
momento de oscilação do "grave para o agudo". Recria a metáfora do peso e da
leveza, propiciada pelo ritmo ternário da valsa no movimento pendular do "para cá,
para lá". Na sonoridade dos versos, quer construir a imagem da própria experiência
de vida. Uma espécie de mistura de sentimentos fundidos no ritmo da poesia.
Entretanto, não satisfeito com a sua explicação que pontua o ritmo, revela imagens
de um novelozinho associado à vida de uma menininha:

Mas se houvesse no meu "Debussy" apenas essa onomatopéia


afetuosamente satírica eu não o teria publicado. Há ainda que um dia
vi naquela atitude uma menininha de três anos, que então
acreditávamos inapta para a vida por uma lesão cardíaca precoce, e
isso despertou-me uma ternura profunda misturada à lembrança da
Jeune fille aux cheveux de lin23. E aquele novelozinho de linha que
oscila umas três vezes e cai pareceu-me a imagem da vida daquele
anjinho (...). (MORAES, 2001, p. 66)

Recolhe assim para dentro dos versos: ―[...] uma colossal ampliação e
sucessão de círculos, a imagem da minha vida, da vida de todos nós, e dos mundos
e dos universos.‖ (MORAES, 2001, p. 66). Esse é o estado d‘alma quase
incomunicável que Bandeira quer apreender.
A técnica, aliada à sensibilidade, reconstitui, também, a experiência infantil e
recupera o jogo entre o real e o universo poético. A poesia relaciona-se em Bandeira
a essa força de ternura e estranhamento. Eis o poema:

Debussy

Para cá, para lá...


Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma criança
(vem e vai...)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
―Psiu... ―
Para cá, para lá...
Para cá e...
― O novelozinho caiu.
(Ca, pp. 90-91)

23
Conforme observa Moraes, Bandeira comete um lapso em relação ao nome da composição que na
verdade é La fille aux cheveux de lin: ―composição pertencente ao livro I da série de Prelúdios (1910)
de C. Debussy. (MORAES, 2001, p. 67, nota 22).
76
Tanto o ―Debussy‖ de Bandeira quanto a ―Rêverie‖ de Claude Debussy
expressam certa tristeza, que o poeta nomeia para Mário: ―Tristeza!
Incomunicabilidade dolorosíssima das almas‖. Nos versos: ―Um novelozinho de
linha... (...) / Oscila no ar pela mão de uma criança / Que delicadamente e quase a
adormecer o balança Psiu... ‖, Bandeira sugere não só o adormecer da criança,
mas também a fragilidade da menininha ―inapta para a vida por uma lesão cardíaca
precoce.‖. como apreender esse sentir / sentimento / imagem d‘alma na poesia?
Em ―Debussy‖, Bandeira aproxima o poema da canção de ninar. No
compositor Debussy, a tristeza é revelada pela musicalidade, composta em tom
menor (Ré menor).24

24
Para a compreensão, apresentamos um quadro (Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nota.
Acesso: 11/09/ 2011) com as nomenclaturas das notas musicais:

Cada nota possui um valor específico na composição musical. Na literatura musical, as notas
são grafadas em linhas (5) e/ou espaços (4), que constituem o pentagrama (do grego: penta = cinco;
grama = linha). A seguir, a representação do pentagrama: (MED, 1996, pp. 14-16)
A armadura de clave (também denominada armação de clave) é a denominação dos
acidentes colocados ao lado de uma clave na pauta musical. Ela indica que as notas correspondentes
à localização na pauta onde a armadura foi escrita precisam ser tocadas de modo consistente um
semitom acima (sustenido) ou abaixo (bemol) de seu valor natural. No piano, por exemplo, as notas
chamadas naturais são representadas pelas teclas brancas; as seminaturais, pelas teclas pretas. A
armadura é comumente grafada logo em seguida à clave no início da pauta musical. Conforme Med
(1996, p. 105) ―Armadura de escala é um conjunto de alterações constitutivas, sustenidos ou
bemóis, que pertencem a uma escala.‖.
No início da pauta, o compositor escreve na clave (sol e/ou fá) o andamento do compasso,
indicando o andamento do ritmo. O ritmo é uma sequência ordenada de pulsações ou movimentos
regulares no tempo. Conforme Med (1996, p. 11), o ritmo é ―ordem e proporção em que estão
dispostos os sons que constituem a melodia e a harmonia.‖. Cada estímulo do ritmo é denominado
pulsação. A pulsação é regular e precisa no tempo. É representada graficamente por linhas verticais
que mantém a mesma distância entre si. O compasso, por sua vez, é o agrupamento de pulsações
que é determinado pela acentuação regular de determinadas pulsações. Ex.: Binário: 2 pulsações,
ternário: 3 pulsações, quaternário: 4 pulsações.
A seguir, figuras que representam as claves de Sol e Fá e dois modelos de armadura. No
piano, as claves orientam o intérprete: a clave de sol indica que se deve tocar com a mão direita; e

Fá, com a esquerda: Clave de Sol Clave de Fá (MED, 1996, pp. 50-51)
Armadura bemol → tom maior: Fá maior; tom menor: Ré menor:
Armadura sustenido → tom maior: Sol maior; tom menor: Mi menor:
O compasso ou andamento, por exemplo, 4x4, indica que o compasso é quaternário, feito de
quatro tempos equivalentes a uma semínima, ou ¼ de tempo (forte, fraco, meio-forte, fraco). Uma
valsa, por exemplo, é representada na armadura de clave por 3x4 (um tempo ternário: compasso em
que o ritmo equivale a três semínimas com valor de ¼ de tempo (forte – fraco – fraco). (MED, 1996,
pp. 114-121)

77
Bandeira afirma que a técnica de composição dos compassos de seu
―Debussy‖ é oposto aos da ―Rêverie‖. Nesse ponto, ele está correto. Na ―Rêverie‖, a
base da harmonia, que está na clave inferior, as notas oscilam dos graves para os
agudos. Ou seja, as notas seguem a seguinte sequência: Si bemol, dó, ré, sol
(crescendum) e volta em ré, dó, si bemol novamente. Essa estrutura é igual até o 8º
compasso. Essas notas fazem os movimentos do ―para lá e para cá‖, porque partem
dos graves em movimentos ascendentes em direção aos agudos. Ou seja, partem
da nota si em direção ascendente. Em seguida, retornam ao si, grave, em
movimento descendente. Eis os nove primeiros compassos da ―Rêverie‖, do
compositor Debussy:

Na base do primeiro compasso, por exemplo, ao qual se refere Bandeira, há a


seguinte sequência: si - dó - ré - sol (para lá) e o retorno sol - ré - dó - si (para cá).

Esse fato comprova o discurso de Bandeira. Seu poema caminha em direção


contrária ao do compositor francês: Ainda em ―Debussy‖, escreve: ―Para cá, para
lá... / para cá, para lá...‖. Retomemos os versos iniciais do poema: ―Para cá, para
lá... / Para cá, para lá...‖.
As referências a compositores e a outros poetas aparecem de diversas
maneiras na poesia de Bandeira. É o que pode ser observado na forma de
composição, na musicalidade, no ritmo, em títulos e até mesmo em trechos de
poemas. Há uma possível referência à Für Elise de Beethoven, no poema ―Letra de
uma valsa romântica" (BB) que diz:

78
A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.

E eu, que também morro,


Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicamente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!


Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!
(BB, pp. 195-196)

O poema sugere a solidão da voz lírica pela ausência da amada. Elisa, citada
no final das 2ª, 3ª e 4ª estrofes, respectivamente: ―Se não vens, Elisa!‖ / ―Teu amor,
Elisa!‖ / ―Desumana Elisa!‖. A estrutura é composta no ritmo da valsa, cujo acento
tônico recai nas segundas sílabas: fraco - forte – fraco. É o que se nota nos versos:

A / tar / de a / go / ni / za (sílabas métricas)


1 e 2 e 3 e
(notação musical)
Ao / san / to a / ca / lan / to
1 e 2 e 3 e

Em música, tal acento denomina-se ársis - tésis – ársis e pode ser encontrado
nos quatro primeiros compassos da obra ―Für Elise‖, de Beethoven (1995, p. 6),
composta em 1810:

79
A valsa de Bandeira segue o mesmo ritmo do compasso de Beethoven. No
entanto, Beethoven diferencia-se pelo deslocamento do acento rítmico para primeira
nota (forte-fraco-fraco) do compasso, enquanto em Bandeira está na segunda
(fraco-forte-fraco). Retomemos o segundo compasso da ―Für Elise‖:

.
1 e 2 e 3 e
(Forte – fraco – meio forte – fraco meio forte – fraco)

Nesse compasso, o ritmo ternário é formado por seis colcheias que equivalem a três
semínimas.
Na carta de 27 de julho de 1923, o poeta revela sua admiração pela obra do
compositor alemão ao afirmar: ―A semana passada foi de beatitude. Os concertos da
Filarmônica... Weber. Beethoven. Wagner. Strauss. Ontem foi a última noite. A vida
hoje parece öde ... Por que é que Deus não me deu a sinfonia, como a Beethoven?‖
(MORAES, 2001, p. 98). Reafirma, também, seu desejo em ser um especialista em
música.
Se admira os compositores estrangeiros, Bandeira revela, nas cartas, não só
admiração mas também forte amizade pelo compositor brasileiro Villa-Lobos. Em
carta de 21 de julho de 1925, Bandeira descreve a musicalidade de Villa-Lobos
como grandiosa:

Há noites atrás passei horas agradáveis em casa do Villa. Não havia


mais ninguém. E eu não deixei o homem sair da música. Villa é
enorme. Com um piano de aluguel arrebentadíssimo, uma técnica à
Ia diable, aquela voz, os olhos de louco e que mais, meu Deus? ele
cria um conjunto orquestral inédito, tão admirável como um quarteto
de cordas ou um jazz-band!! Eu rio e admiro a valer. Volto pra casa e
não posso dormir. Começo a ver uma porção de Villa-Lobinhos,
falando, gesticulando... (MORAES, 2001, p.220)

A carta revela a afinidade de Bandeira com a musicalidade de Villa-Lobos, ao


mesmo tempo mostra que o poeta vai adentrando o universo musical de Villa. Em
carta de 15 de abril de 1926, Bandeira revela a Mário sua aproximação com Villa e a
identificação com a sua musicalidade ao declarar:

80
Depois do jantar Villa cantou duas coisas de uma série Serestas que
ele está compondo. A 1ª é pra ―Pobre cega‖ do Álvaro Moreyra. A 2ª
é prao ―Anjo da guarda‖. A música do Anjo está matante parece uma
tarde que não acaba mais. Fiquei com os olhos cheios d‘água me
atraquei com o Villa, beijei-o. Que bruta comoção, puta merda!
Quando ele diz ―um anjo moreno violento e bom – brasileiro‖ é tal
qual minha irmã, Mário! A música é de uma simplicidade e de uma
elevação, toda consonante mas de técnica bem moderna e imagine,
o acompanhamento é um tema sincopado popular, antes de começar
o canto o piano faz um floreio de violão. Começa o canto e quando
chega ―ao pé de mim‖ há um ah! e o piano faz um intermezzo
movimentado depois volta a baita melancolia do canto completando a
melodia que tinha ficado suspensa. Eu senti uma felicidade...
(MORAES, 2001, p. 286)

Nota-se que o poeta pernambucano revela, aqui, conhecimentos de música


quando avalia o trabalho de Villa-Lobos e descreve o que ouve, como em: ―A música
é de uma simplicidade e de uma elevação, toda consonante mas de técnica bem moderna‖,
―o acompanhante é um tema sincopado popular‖, ―antes de começar o canto o piano faz um
floreio de violão‖, ―e o piano faz um intermezzo movimentado depois volta a baita melancolia
do canto completando a melodia que tinha ficado suspensa‖.25

25
Um som musical possui um número de vibrações regulares, caracterizando sua altura, também
chamada frequência. Esse som é chamado fundamental. Quando executado, leva consigo uma série
de outros sons secundários chamados harmônicos que vibram concomitante ao fundamental. Quando
dois sons são executados ao mesmo tempo, podem produzir sensações agradáveis (harmoniosas) ou
desagradáveis (desarmoniosas). Essa sensação provém da relação existente entre o número de
vibrações que compõem os sons executados. O som será mais harmonioso quanto mais simples e
exata for a relação entre o número de suas vibrações. (PRIOLLI, pp. 62-63)
O sentido de consonância e dissonância desses sons está relacionado com o número de
vibrações que os compõe. São chamados intervalos consonantes quando dois sons executados ao
mesmo tempo possuem harmônicos comuns. Quando Bandeira se refere ao ―tema sincopado‖, está
falando do prolongamento de um som executado na pulsação fraca, ou parte da pulsação, até a
pulsação forte, ou parte da pulsação seguinte. É uma estratégia de se romper a regularidade do
ritmo. A cadência, que é a sensação de repouso na terminação de uma frase ou membro de frase, é
colocada em suspensão. Com isso, não se cria a ideia de repouso definitivo (PRIOLLI, 1995, p. 10).
Quanto ao intermezzo, palavra italiana que significa interlúdio, é caracterizada como uma
pequena composição, cujo caráter é de improviso. Ocorre na metade de uma peça musical (ópera,
hino, salmo, cantata) entre dois atos, cuja função é preencher um intervalo. Conforme Med (1996, p.
293), os floreios são ornamentos que contribuem para embelezar ou decorar determinada melodia.
Eles são expressos por pequenas notas ou sinais especiais. São importantes para a improvisação.

Dentre os nove tipos de ornamentos, citamos, a título de exemplificação, a appoggiatura e a

acciaccatura (Símbolos disponíveis em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Music-


appoggiatura.png - Acesso em 21 out. 2013)

81
A compreensão da música produzida por Villa-Lobos parece fornecer pistas
para entendermos o modo como Bandeira desloca as células rítmicas em seus
versos. Por conhecer certas técnicas musicais de composição, aplica-as em seus
versos, principalmente no deslocamento de ritmos e rimas. Na primeira estrofe do
poema, já tratado neste capítulo, ―Letra de uma valsa romântica‖:

A / tar / de a / go / ni / za
1 2 3 4 5 6
Ao / san / to a / ca / lan / to
1 2 3 4 5 6
Da / no / tur / na / bri / sa.
1 2 3 4 5 6

podemos identificar esse recurso. Nos dois primeiros versos, os acentos rítmicos
recaem sobre a segunda e quinta sílabas métricas. Já no terceiro verso, desloca-os
para a terceira e quinta sílabas. Entre as sílabas de final de tarde e o a inicial de
agoniza, ocorre o que em música se chama síncope ou suspensão do ritmo. O
mesmo ocorre na sílaba final to de santo com a de acalanto, no segundo verso.
Na carta de 1º de maio de 1926, Bandeira critica a forma como Villa-Lobos
musicou o poema de Dante Milano. Nessa crítica, notamos a empreitada do poeta
pernambucano na área da crítica musical: ―O Villa musicou também a poesia do
Dante. Embora a melodia seja muito bonita, acho que não condiz com o espírito da
letra.‖ Não agrada ao poeta a musicalidade aplicada por Villa ao poema de Dante:
―Me parece que à poesia do Dante devia ser aplicada aquela maneira claramente
expositiva [...]‖, pois, como sugere, ―[...] aqueles versos tem um tom expositivo, não
cantante, e a melodia que o Villa arranjou é cantantíssima.‖ (MORAES, 2001, p.
288). Ao mesmo tempo, nessa correspondência, verifica-se a admiração do poeta
pelas leituras do folclore feitas por Villa-Lobos ao demonstrar gosto pelas Cirandas
para piano:

Tenho entendido e gostado das últimas coisas de canto do Villa; os


estudos e leituras que ele tem feito para a obra de folclore que o
Arnaldo Guinle encomendou a ele adoçaram, simplificaram,
clarificaram o Villa, é a minha impressão. A série das Cirandas para
piano são tão bonitas, tão brasileiras e tão pianísticas. É uma
gostosura, como você diz. (MORAES, 2001, p. 288)

82
Essa identificação com os elementos folclóricos é perceptível em muitos
versos de Bandeira, como é o caso de ―Lenda brasileira‖ e ―Cunhatã‖:

Lenda brasileira

A moita buliu, Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que saiu do


mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no chão. Quis
puxar o gatilho e não pôde.
— Deus me perdoe!
Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do
caçador e começou a comer devagarinho o cano da espingarda.
(Li, p. 136)

Nesse poema, a linguagem simples revela concisão e leveza à narrativa.


Bandeira mescla verso e prosa, recriando uma poesia ―tão brasileira‖ que traz o
linguajar popular e folclórico condensado em som e imagem.

Cunhatã
Vinha do Pará
Chamava Siquê.
Quatro anos. Escurinha. O riso gutural da raça.
Piá branca nenhuma corria mais do que ela.

Tinha uma cicatriz no meio da testa:


— Que foi isso, Siquê?
Com voz de detrás da garganta, a boquinha tuíra:
— Minha mãe (a madrasta) estava costurando
Disse vai verse tem fogo
Eu soprei eu soprei eu soprei não vi fogo
Aí ela se levantou e esfregou com minha cabeça na brasa

Riu, riu, riu

Uêrêquitáua.
O ventilador era coisa que roda.
Quando se machucava, dizia: Ai Zizus!
(Li, p. 138)

Nesse poema, o poeta utiliza recursos da linguagem oral como repetições:


―Eu soprei eu soprei eu soprei não vi fogo‖, ―Riu, riu, riu‖. Além disso, a construção
de frases curtas denota concisão e rapidez no contar: ―Vinha do Pará / Chamava
Siquê. / Quatro anos. Escurinha. O riso gutural da raça‖. Os textos folclóricos
remetem à tradição oral, e Bandeira utiliza expressões típicas dos falares de
determinadas regiões: ―Com voz de detrás da garganta, a boquinha tuíra:‖. Cunhatã

83
é personagem de lendas e pode significar: criança, menina, moça. Em carta de 24
de abril e 1927, Bandeira explica a Mário: ―Pra acabar: Uêrêquitaua é o nome da
tribo índia; tuíra quer dizer sujo (me pareceu tão expressivo pra exprimir esse
sujinho de boca de menino não é?)‖ (MORAES, 2001, p. 344).
Há uma estreita relação entre a poesia de Bandeira e a musicalidade de Villa-
Lobos. Nos seis primeiros compassos da obra ―Vamos todos cirandar‖ – Brinquedo
de roda, nº 6, de Villa-Lobos, o ritmo pouco animado orienta o leitor a observar as
estratégias de composição. A sequência melódica desses compassos é feita,
intencionalmente, de notas simples que sugerem o tema e o gênero musical
composto por uma linguagem também simples, cuja narrativa rápida e de fácil leitura
reconstrói o universo infantil. É o que observamos nos seis primeiros compassos de
Villa-Lobos:

1 2 3 4 5 6

Villa-Lobos compõe esta música em uma partitura de execução mais simples,


com notas bem marcadas pelo ritmo ternário 26. Cumpre, com isso, o propósito de
recriar a imagem e o clima ―pouco animado‖ da brincadeira. O primeiro compasso
(trecho cortado por uma barra vertical) é formado por três notas semínimas e
sequenciais na clave de Sol, superior: lá-si-dó. Na clave de Fá, inferior, o ritmo é
formado por seis colcheias (que equivalem à metade de uma semínima): fá-dó-sol-
dó-lá-dó. Em termos de composição, podemos entendê-la como de fácil execução.
No segundo compasso, a melodia constrói o movimento de retorno (ré-dó-si),
enquanto o ritmo cadenciado na parte de baixo mantém-se sem muita alteração: (si-
dó-lá-dó-sol-dó), o que acontece nos compassos 3, 4, 5 e 6. As passagens das
notas também são simples, evidenciando a proposta do compositor. Nos compassos

26
Três batidas por compasso.
84
seguintes, 25 e 16, novamente a alternância de ritmo (quaternário). A partir do
compasso 27, Villa-Lobos alterna o ritmo ternário para o binário:

25 26 27 28 29 30

Nos compassos seguintes (31 a 36), observamos o ritmo binário27


acentuado28, também chamado staccato29. Esses compassos são criados por
semicolcheias pontilhadas na base (clave de fá) e por semínimas e colcheias na
parte superior da partitura (clave de sol).

Cria-se, assim, o ritmo típico das cantigas de roda, muitas vezes bem
marcadas, facilitando a assimilação musical e da letra. O ouvinte decora com certa
facilidade as letras, auxiliado pelo refrão e pela repetição de notas. Nesses
compassos, as sequências melódicas propiciam simplicidade devido à escolha
consciente do compositor. As notas superiores e inferiores repetem-se, tal como no
poema ―Trem de Ferro‖, de Bandeira. Não há uma variação complexa em relação à
escala e à tonalidade (dó-mi-sol / fá-mi-ré-dó / si-sol-fá-ré / mi-dó-ré-si / dó-sol / sol).
Na clave de fá, as semicolcheias formam os sincopados (estaccatos ). Assim
como Bandeira faz em alguns de seus poemas.

27
Duas batidas por compasso.
28
Os pontilhados sob as notas na clave de fá indicam os acentos métricos. Ou seja, caem sobre o
primeiro tempo de cada compasso criando um ritmo bem marcado. (MED, 1996, p. 44)
29
O staccato, ou destacado, indica uma forma de fraseio ou articulação. Em outros termos, as notas
e os motivos das frases musicais devem ser executados com suspensões entre elas. As durações
dessas notas ficam mais curtas e acentuadas. Assim, essas notas destacam-se das demais dentro do
compasso. Conforme Med (1996, p. 44), ―Indica que os sons são articulados de modo separado e
seco‖.
85
A métrica em muitos poemas de Bandeira também sofre alterações. Às vezes,
o poeta varia o ritmo e, em seguida, retorna ao ritmo inicial, como acontece em
―Trem de Ferro‖ (EM, p. 158). Para sugerir o ritmo do trem, nas duas primeiras
estrofes, os versos são compostos de quatro sílabas métricas:

Ca / fé / com / pão
1 2 3 4
Ca / fé / com / pão
1 2 3 4
Ca / fé / com / pão
1 2 3 4

Nas quarta e quinta estrofes, há a mudança para o ritmo ternário:

Bo / ta / fo / go
1 2 3
Na / for / na / lha
1 2 3
Que eu / pre / ci / so
1 2 3
Mui / ta / for / ça
1 2 3
Mui / ta / for / ça
1 2 3
Mui / ta / for / ça
1 2 3
(EM, p. 159)

Vejamos um trecho da sexta estrofe, composta de cinco sílabas métricas:

Quan / do / me / pren / de / ro
1 2 3 4 5
No / ca / na / vi / á
1 2 3 4 5
Ca / da / pé / de / ca / na
1 2 3 4 5
E / ra um o / fi / ci / á
1 2 3 4 5
(EM, p. 159)

Enfim, na última estrofe, o ritmo ternário retorna, imprimindo ao poema o


lúdico:

Vou / de/ pres / sa


1 2 3
Vou / cor/ ren/ do
1 2 3

86
Vou / na / to/ da
1 2 3
Que / só / le/ vo
1 2 3
(EM, p. 159)

Como Bandeira compôs seu ―Trem de ferro‖ para ser musicado, fez a escolha
rítmica necessária à execução instrumental. Na carta de 3 de dezembro de 1935,
revela que Camargo Guarnieri encomendara a ele o poema: ―uma vez o
Chateaubriand me encomendou uma poesia sobre o café intitulada "Ponta de trilho".
Agora o Camargo Guarnieri fez coisa parecida: me pediu uma letra para uma peça
de canto e piano sob o título de Trem-de-ferro.‖ (MORAES, 2001, p. 619). No
entanto, como o tema já fora trabalhado por Ascenso 30, em ―Vou-me embora p‘ra
Catende...‖31, Bandeira lembrou-lhe tal poema. Entretanto, Guarnieri ―[...] retrucou
que queria letra minha, que sente muita facilidade em me musicar, etc. [...] O desejo
dele me contagiou. Me acudiu uma brincadeira que meu pai fazia.‖ (MORAES, 2001,
p. 619).
Bandeira revela, nessa carta, informações importantes sobre o processo de
composição de seu poema: ―Quando o trem sai da estação, dizia ele, vai dizendo:
Ca...fé cumpão ...ca...fé cumpão...ca...fé cumpão... E quando toma velocidade:
Poucagente, poucagente, poucagente...‖. Revela, também, o ritmo pretendido para
seu ―Trem de ferro‖ (a bossa): ―Sobre essas duas células compus a "bossa".
Introduzi na parte central melódica uma quadrinha popular, e para esticá-la, a pedido
do Camargo, inventei mais duas no mesmo estilo‖. Insere, também, a quadra
popular no ritmo do martelo das emboladas e o tom de brincadeira nessa
composição: ―Li o esboço ao Camargo, portanto ele sabe que fora dessas três
quadrinhas tudo o mais tem que ser corrido no ritmo do martelo das emboladas.‖
(MORAES, 2001, p. 619). Mais adiante, adverte:
30
Ascenso Ferreira (1895-1965), que, conforme Moraes (2001, p. 337), escreve em nota: ―[...] criou
uma poesia despojada, cuja seiva advém da cultura popular do Nordeste. Moraes, ainda nessa nota,
retoma a fala de Bandeira em relação a Ascenso: ―Os seus poemas são verdadeiras rapsódias
nordestinas, onde se espelha fielmente a alma ora brincalhona, ora pungentemente nostálgica das
populações dos engenhos‖ (Apresentação da poesia brasileira, p. 1114)‖. O contato de Bandeira e
Ascenso está registrado na carta a Mário, de 1 de fevereiro de 1927: ―Estive com um sujeito que
lembra você no jeitão, na voz e no gosto pelo folclore musical – o Ascenso Ferreira. É interessante.
Lhe quer bem. Me contou coisas deliciosas que diz ter mandado pra você.‖ (MORAES, 2001, p. 337).
Em 2 de abril desse mesmo ano, descreve Ascenso como ―[...] um camaradão, muito interessante
quer como poeta, quer como homem.‖ (MORAES, 2001, p. 339)
31
Como bem lembra Moraes (2001, em nota 25, p. 619), Bandeira refere-se ao poema ―Trem de
Alagoas‖ (Cana-caiana, 1939), de Ascenso Ferreira, cuja estrofe é ―— Vou danado pra Catende‖.

87
Todavia, convém você lembrar isso a ele, pra que não aconteça ele
fazer como o Aníbal Machado, a quem mostrei os versos e ele quis
dar expressões em "muita força, muita força, muita força". – Não,
Aníbal, é preciso correr "muntaforçamuntaforçamuntaforça..." Ritmo
puramente onomatopaico atenuado para a transição à melodia no
"galho da ingazeira debruçada no riacho que vontade de cantar.
(MORAES, 2001, p. 619)

Como comprovam as correspondências, é provável que Bandeira tenha


aprendido muito sobre musicalidade, embora, como já fora apontado neste capítulo,
insista em dizer que não domina as técnicas musicais. No conjunto de sua obra
poética, entretanto, há uma grande variedade de ritmos como valsa, polca, martelo,
samba, maxixe, além do soneto (que na música refere-se à sonata). Em carta
enviada de 19 de novembro de 1930, demonstra afinidade com a sonata ao
comparar a composição desse gênero musical com a estrutura de uma carta
anterior, enviada por Mário:

Recomecemos pois a intimidade de que esta sua carta é um gostoso


exemplo na sua estrutura de sonata distribuída que está em três
andamentos (não falo dos temas que são os velhos temas cíclicos da
sua pessoa): Diário Nacional (allegro ma non tropo), Schmidt
(allegretto) e Villa (prestíssimo). (MORAES, 2001, p. 467)

Há também a presença do popular como projeção do folclore que estabelece


o elo entre passado e presente, tradição e modernidade. Em ―Trem de ferro‖, é
possível depreender a modernidade representada pela máquina a vapor e a tradição
denotada na imagem da área rural: bicho, ponte, poste, pasto, boi, galho, ingazeira e
riacho, por exemplo, presente na quinta estrofe:

Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
(EM, p. 159)
88
O ritmo cadenciado de "Trem-de-ferro", por exemplo, permite a fusão entre a
transformação do passado de um Brasil rural à velocidade da modernidade. Essa
modernidade é rasgada simultaneamente pelos trilhos32 e pelo aço e, sobretudo,
pela sonoridade e ritmo criados pelo próprio poema. De igual maneira, faz o recorte
entre as variedades linguísticas regional e urbana e dos elementos que vão pintando
na tela branca o cenário do interior em que nas manhãs o café com pão já anuncia
mais um dia na peleja do homem.
A imagem do trem cria uma aura de mistério na sociedade moderna,
principalmente para os poetas. Estes fazem da máquina a vapor uma fonte de
inspiração, cuja sonoridade confunde-se com a própria vida. A modernização dos
sistemas de produção transformou a maneira de se ouvir. Além disso, inovou as
diversas esferas da vida social urbana e, no ritmo do trem, avançou as fronteiras em
direção ao interior dos países. Em muitos vilarejos, o trem cobriu-se de certa aura,
pois marcava o compasso da vida como o relógio marca o do tempo. "Era o relógio
de ponto das primeiras comunidades, tão previsível e tranquilizador quanto o sino da
igreja" (SCHAFER, 2001, p. 121).
Em 8 de dezembro de 1935, Bandeira retoma a discussão sobre a
composição de seu poema ―Trem-de-ferro‖, sempre salientando o tom de ―diversão‖:

Sim, o meu "Trem-de-ferro" foi um divertimento, mas dê à palavra a


sua devida interioridade. A alma se me descarregou nele da
necessidade de duas expansões profundas. Sempre quis exprimir o
gozo que me dão certas paisagens vistas da janela de um trem. Você
não imagina a quantidade de boizinhos, de pedacinhos de cerca, de
capinzinhos que eu tenho na memória.‖ (MORAES, 2001, p. 620).

O lirismo bandeiriano, como depreendemos de suas missivas e poemas,


constrói-se pela memória que o remete à infância, seja extraído de momentos com o
pai, de quem constantemente fala, seja do próprio cotidiano infantil, do qual muitas
vezes se viu privado por causa da doença. Continua o poeta nessa carta:

32
Conforme Schafer (2001, p. 119.) "O trem conquistou o mundo com um mínimo de oposição.
Dickens não gostava dele: ‘Cada vez mais forte, ele guincha e grita enquanto chega avançando sem
resistência rumo ao seu objetivo‘. Wagner também não gostava e, embora o Colégio de Medicina da
Bavária protestasse, em 1838, afirmando que velocidade com que os trens viajavam devia causar
danos ao cérebro, os trens permaneceram e as linhas férreas se multiplicaram."

89
Aproveitei a ocasião p'ra esse carinho de reconhecimento. Outra
coisa é que quando faço qualquer poeminha em que está misturado
o espírito brincalhão de meu pai, tenho a impressão de estar
novamente nas nossas pândegas de de manhã em pijama. Quanto
ao caráter predominantemente rítmico e exterior do poema, foi
exigência do Guarnieri. Ele quer dar o ritmo do trem. Havia, aliás,
que fazer coisa diversa de Honegger. A Pacific é um super-ritmo uma
ampliação esplêndida. Fiquei no conceito popular mais simples, –
trenzinho da Great Western. (MORAES, 2001, p. 620)

A oralidade é traço de composição na obra poética bandeiriana, como se


pode observar em poemas como "O anel de vidro" [CH, p. 74], "Belém do Pará" [Li,
pp. 132-133], "Lenda brasileira" [Li, p. 136], "O amor, a poesia, as viagens" [EM, p.
151] e "Boca de forno" [EM, pp. 153-154]. Em ―Belém do Pará‖, por exemplo:

Belém do Pará
Bembelelém
Viva Belém!

Belém do Pará porto moderno integrado na equatorial


Beleza eterna da paisagem
(...)
Bemblelém
Viva Belém!
Nortista gostosa
Eu te quero bem.

Terra da castanha
Terra da borracha
Terra de biriba bacuri sapoti
Terra de fala cheia de nome indígena
Que a gente não sabe se é de fruta pé de pau ou ave de plumagem
[bonita
(...)
(Li, pp. 132-133)

Há a presença de elementos das cantigas de roda como a linguagem simples


da oralidade marcada pelo tom da fala, as repetições e o vocabulário de termos
regionais. Tanto Bandeira como Mário e Villa-Lobos pesquisaram o folclore para
utilizá-lo em suas obras, seja na poesia ou na música. Na carta de 12 de agosto de
1926, Bandeira comenta com Mário o desconhecimento de João Ribeiro33 ―a origem

33
Moraes (2001, p. 197, nota 31) registra, em nota de rodapé 31, a fala de Bandeira sobre a
importância de João Ribeiro: ―Esse abriu-me os olhos para muitas coisas. [...] Tudo o que ele nos
dizia interessava ao nosso grupinho prodigiosamente: era tão engenhoso, tão diferente da voz geral‖
(Itinerário de Pasárgada, Poesia e prosa, v. 2, p. 19)‖. Moraes ainda acrescenta nessa nota: ― João
Ribeiro leu os modernistas com isenção crítica e espírito de curiosidade. Do penumbrista das Cinza
90
da palavra maxixe no sentido de dança‖. Ressalta ainda o interesse de Villa-Lobos
pela pesquisa folclórica ao afirmar: ―Também o Villa, que anda às voltas com tudo
quanto é livro de folclore não encontrou a menor indicação nesse sentido.‖
(MORAES, 2001, p. 303).
Em carta de 14 de abril de 1925, Bandeira, para dar a Mário uma ideia sobre
João Ribeiro, aconselha-o a ler as ―Páginas de Estética do João Ribeiro‖, dizendo:
―Repare que o livro é de 1905. Se você não tiver tempo de ler todo, corra os olhos
na ‗Nota B‘ (p. 154) e veja que é inteligente e favorável à sua tentativa dialetal.‖.
(MORAES, 2001, p. 196). Para esclarecer tal nota, Moraes (2001, p. 196, nota 32)
afirma: ―A nota B, relacionada a ‗Críticos e escolas literárias‘, primeiro capítulo de
Páginas de estética, discute a expressão ‗dialeto brasileiro‘, empregada por Rui
Barbosa em ataque ao abuso da ‗francesia‘.‖ . Nessa missiva, Bandeira observava a
proximidade entre Ribeiro e Mário quanto ao projeto da ―tentativa dialetal‖, cujo
caráter era a defesa da ―língua nacional‖. Ainda nessa nota, João Ribeiro ―encampa
a causa‖ de Rui Barbosa, que recrimina ―[...] escritores pelo emprego do galicismo
linguístico (...) enquanto imitação de ‗fontes clássicas‘, sem preconceito à expressão
popular (...)‖.
A retomada desses elementos folclóricos é realizada, principalmente, por
linguistas, etnólogos, poetas, músicos e pesquisadores, entre eles, Bandeira, Mário
de Andrade, Câmara Cascudo, Gilberto Freyre e Villa-Lobos. Foi a pedido de
Gilberto Freyre que Bandeira escreve o poema ―Evocação do Recife‖ (Li, pp. 133-
136). Em carta de 21 de julho de 1925, comenta a Mário: ―Eu andei fazendo uma
‗Evocação do Recife‘ para o álbum comemorativo do centenário do Diário de
Pernambuco. A pedido do Gilberto Freire que é um rapaz inteligentíssimo de lá.
Você conhece-o?‖ (MORAES, 2001, p. 220). Gilberto Freyre (in. BRAYNER, 1980, p.
76) escreve em seu artigo Manuel Bandeira, Recifense‖: Sucede, no caso, que o
poema em certo sentido mais brasileiro de Manuel Bandeira ―Evocação do
Recife‖ ele o escreveu porque eu pedi que ele o escrevesse.‖. ―Evocação do
recife‖, nas palavras de Freyre, ―É o que a geografia lírica do Brasil tem de melhor‖
(in. BRAYNER, 1980, p. 77).
Mário, no entanto, em reposta, em carta de 26 de julho de 1925, confessa não
conhecê-lo, nem mesmo lhe enviara a Escrava: ―Não conheço o Gilberto Freire e

das Horas arriscou a previsão: ‗Manuel Bandeira criou um nome que, dentro em pouco, será popular
na sua pátria, se tem valor o meu vaticínio.‘ (Crítica. Os Modernos, p. 69)‖.
91
acho que não mandei meu livro pra ele.‖ (MORAES, 2001, p. 221). Apesar da
tentativa de Bandeira aproximar Mário de Freire, houve entre esses dois um
―estranhamento mútuo‖. Moraes (2001, p. 221, nota 83), registra que Mário ―[...]
silencia, ou quando muito, refere-se ao autor de Nordeste na imprensa com
parcimônia, reconhecendo-lhe os méritos.‖ Acrescenta ainda:

Freyre (1900-1987) e MA figuram curiosamente na historiografia


literária brasileira como personalidades antagônicas. Na verdade,
enquanto intelectuais formadores de opinião, propunham ações
diferentes para o mesmo objetivo: um nacionalismo crítico da arte e
do pensamento brasileiro. Intrigante, contudo, é o estranhamento
mútuo entre eles.

A menção a Gilberto Freyre aparece na 1ª estrofe do poema ―Casa Grande &


Senzala‖34 (MM, p. 307). A primeira estrofe é composta dos quatro seguintes versos:

‗Casa Grande & Senzala‘


Grande livro que fala
Desta nossa leseira
Brasileira‖.

Na segunda estrofe, a referência à cultura do Norte, representada pelo ―cheiro


e sabor‖, como um traço da terra que ainda marca o poeta, nesse caso, ao Nordeste
dos engenhos de açúcar:

Mas com aquele forte


Cheiro e sabor no Norte
— Dos engenhos de cana
(Massangana!)
(MM, p. 307)

A leitura do poema na íntegra demonstra o interesse do poeta pela situação


do país. Embora não atuasse de forma engajada, como gostaria Mário, Bandeira
acompanhava em seu silêncio a situação do país estudada pelos amigos
antropólogos. Na 6ª estrofe desse poema, lemos:

34
Em Andorinha, andorinha, Bandeira escreve: ―Como se neste livro de contatos com a terra ele
tivesse renunciado ao contraponto formidável da Casa grande & senzala e Sobrados e mucambos
para deixar cantar livremente a melodia amorável dos canaviais, tão deliciosamente transposta em
valores plásticos pelo pintor Cícero Dias.‖ (in. BANDEIRA, 1997, p. 263)
92
Que me importa? É lá desgraça?
Essa história de raça,
Raças más, raças boa
—Diz o Boas —
(MM, p. 307)

Conforme registra Moraes (2001, p. 667, nota 9), Mário suprimira, da carta de
20 de janeiro de 1944, um trecho no qual incentivava Bandeira a engajar-se na
literatura de combate: ―A mensagem, escrita no verso da folha 4, atesta que esta
carta foi reescrita, quando então MA certamente suprime a última parte, em que
incita MB, através do enredamento da amizade, a engajar-se na literatura de
combate.‖. Essa nota refere-se a: ―Refleti. não mandei.‖ Segue trecho dessa carta:

Você é quem devia estar fazendo epigraminhas, sátiras etc.


(desculpe o convite mal disfarçado) e coisas que contribuam assim
pra aumentar a tensão dos cultos e semi-cultos que adoram você.
Você, que devia, Manu, e sinto saudade de você. Você, não será a
primeira vez que faz ―poemas de circunstância‖ e que delícias já fez.
Destrua, m‘ermão, envenene, pra eu não me sentir tão solitário de
companheiros de geração. Agüenta este namoro e me queira sempre
bem (MORAES, 2001, p. 671).

Talvez por perceber inútil tal tentativa, Mário opta por não enviar a carta.
Diferente dele, Bandeira não seguiu uma vida engajada nos assuntos de política.
Nas cartas analisadas, quase não há comentários sobre esse assunto. Esse fato é
até compreensível se se levar em conta a saúde debilitada do poeta. No entanto,
não justifica sua reclusão.
Se acompanhava em silêncio as questões políticas, opina com contundência
sobre as poéticas. Na carta de maio de 1923, Bandeira descreve a poesia de Mário
como um triunfo do modernismo, quase que uma sacralização, uma espécie de
oração. Com isso expõe seu lirismo, cuja harmonia constrói-se por emoção e
sensações para a qual convergem tradição e modernidade. Diverge da posição de
Graça Aranha ao dizer: ―Se o Graça fez uma mera constatação ao dizer que ele tem
partes românticas, vá, mas se a observação encerra reparo crítico, é descabida e só
pode ser atribuída a preconceito de falso modernismo.‖ (MORAES, 2001, p. 90). Por
isso afirma que o poema do amigo paulista é ―inatacável‖.
Conclui que o ―Carnaval‖ de Mário

93
[...] é um triunfo, um grande triunfo para a arte moderna, pois
trabalhando dentro da técnica moderna, fizeste uma coisa que
está a cavaleiro dessa mesma técnica, obra de admirável
universalidade onde ao mesmo tempo, a tua personalidade
parece ter alcançado a plenitude de projeção. (MORAES, 2001,
p. 90).

Conforme Bandeira, a harmonia presente nos versos do amigo cria um


―mundo de sensações‖: "É que eu sou poeta... / Palhaço / Juiz / Criancinha.".
(MORAES, 2001, p. 90). Em outro trecho dessa missiva, elogia a assimilação da
tradição em Mário, uma tradição, aliás, ―comida‖, ―digerida‖, ou seja, não uma mera
cópia da tradição, mas uma tradição ampliada:

E a cantiga do berço final? Tem partes românticas? Sim. E clássicas


também. E parnasianas. E simbolistas. E impressionistas. E dadás. E
seja lá o que diabo for. Mas tudo isso comido, digerido, assimilado,
absorvido e feito vida, a vida pessoalíssima do meu caro Mário de
Andrade. (MORAES, 2001, p. 90)

Ciente da função da musicalidade poética como parte intrínseca da poesia,


Bandeira insiste na importância de se depreender duas espécies de musicalidade.
Uma que ele considera automatizada ou forçada, tal qual a utilizada pela "corrente
passadista" dos parnasianos e simbolistas; outra, que brota naturalmente da poesia.
Em carta de maio de 1925, critica severamente alguns poetas anteriores aos
parnasianos como ―muito paus, palavrosos, vazios‖. No entanto, considera Castro
Alves como o ―único grande‖. Quanto às ―palavras‖ de Fagundes Varela e às
―pieguices‖ de Casimiro de Abreu, considera: ―[...] de vez em quando vem uma
coisinha brasileira, brasileira, brasileira e fico com vontade de dar um beijo numa
bananeira. E são essas coisinhas que a gente precisa descobrir, cultivar, alargar.‖
(MORAES, 2001, p. 204).
O que critica como essencial na produção de outros poetas, busca em seus
poemas realizar. Em "Meninos carvoeiros", por exemplo, há uma espécie de
musicalidade para a qual converge ancestralidade, misticismo, utopia, alegria e
tristeza. Ou seja, o ritmo do poema acompanha o descompasso dos burrinhos
descadeirados. Cria, ao mesmo tempo, a cena do mundo infantil em descompasso
com o trabalho: ―Só mesmo essas crianças raquíticas / Vão bem com estes

94
burrinhos descadeirados / A madrugada ingênua parece feita para eles...‖ (RD, p.
116).
Esse universo da infância é recuperado em diversos poemas de Bandeira,
tornando a infância um espaço para o qual converge o pensamento. É uma maneira
de se voltar para a própria essência humana. A figura da criança em Manuel
Bandeira torna-se figura emblemática, pode tanto significar uma maneira de visitar o
passado que não mais retorna quanto marcar uma contraposição ao sistema
ideológico. A criança é, essencialmente, assistemática. O que vale para ela é a
brincadeira, o jogo, o despojamento e a liberdade, aspectos que marcam os versos
bandeirianos de diversos poemas como, por exemplo: ―Flores murchas‖, ―Infância‖,
―Presepe‖, ―Meninos carvoeiros‖, ―Camelôs‖, ―Na rua do sabão‖, ―Balõzinhos‖, ―Céu‖,
―Canto de natal‖, ―Os voluntários do Norte‖. No poema ―Epígrafe‖ que abre A cinza
das horas, o tom melancólico anuncia a dureza do destino:

Epígrafe
Sou bem-nascido. Menino.
Fui como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
(CH, p. 43)

No início da 1ª estrofe de ―Infância‖, o poeta busca na memória a Petrópolis


dos tempos de infância. A ―Corrida de bicicletas‖, o ―bambual debruçado no rio‖, a
―teta negra da ama-de-leite‖ parecem reacender em ―minhas reminiscências‖, já que
confessa a voz lírica: ―...Meus olhos não conseguem romper os ruços definitivos do
tempo‖:

Corrida de ciclistas.
Só me recordo de um bambual debruçado no rio.
Três anos?
Foi em Petrópolis.
Procuro mais longe em minhas reminiscências.
Quem me dera me lembrar da teta negra de minh‘ama-de-leite...
...Meus olhos não conseguem romper os ruços definitivos do tempo.

Ainda em Petrópolis... um pátio de hotel... brinquedos pelo chão...


(...)
(BB, p. 208)

95
Na última estrofe, mostra a vida de angústia consolada pela poesia: ―Com dez
anos vim para o Rio. / Conhecia a vida em suas verdades essenciais. / Estava
maduro para o sofrimento / E para a poesia!‖.
A poesia de Bandeira é construída por uma musicalidade que prima a
naturalidade, o ritmo da própria vida, cujo pulsar revela a espontaneidade da
linguagem. Em sua musicalidade, há ecos de Bach35 a Villa-Lobos. Esse fato revela
a variedade de ritmos nos versos produzidos, propiciando musicalidade inventiva de
cadência mais livre. De igual modo, produzem graça, humor e leveza. Revela nas
cartas seu gosto por Bach. Na carta de 6 de junho de 1931, expressa que: ―Uma das
vantagens da companhia do Paulo36 é que quando estou estourando de
aporrinhação da minha vida, dou um pulo na vitrola e ponho por exemplo a Tocata e
fuga em ré menor (...).‖ (MORAES, 2001, p. 512). Em outra carta de 29 de julho de
1931, novamente expressa sua estima por música erudita: ―Liguei o rádio e em vez
de tango ou embolada besta saiu a Inacabada de Schubert. Eu tinha acabado de
almoçar (...) e tome a ternura de Schuschu tão bom, tão meigo.‖ (MORAES, 2001, p.
513). Novamente confessa admiração pela musicalidade de Bach: ―Quando me sinto
mofino desencadeio na vitrola a Tocata em ré menor. Agora temos a Sonata op. 126
de Schubert tocada por Kreisler e Rachmaninoff37. Nenhuma sonoridade violino me
satisfaz tanto como Kreisler.‖ (MORAES, 2001, p. 513). O nome do compositor
alemão aparece, também, na carta de 15 de agosto de 1931:

Em matéria de Scarlatti eu sou francamente do abuso. Ô música pra


fazer bem à gente! Esses ladrões do século XVII tinham saúde.
Tenho me sentido mais alegrinho estes últimos tempos e atribuo a
ouvir discos de Bach todos os dias. A gente carece fazer cura de
Bach de vez em quando. (MORAES, 2001, p. 518)

Ou então na carta de 3 de dezembro de 1935, quando registra o


descontentamento com a execução da música de Bach, denotando conhecimento e
compreensão em relação à musicalidade do compositor alemão: ―Fui ouvir a missa
de Bach. Saí quinze minutos depois de entrar. Desequilíbrio gritante da massa coral

35
Johann Sebastian Bach, compositor alemão (1685-1750), ficou famoso como o maior organista de
seu tempo além der ter sido um virtuose no cravo e no violino (CARPEAUX, 2001, p. 110). Dentre
suas mais conhecidas composições, citam-se Tocata e fuga em ré menor e o Cravo bem temperado.
(CARPEAUX, 2001, p. 110)
36
Referência a Paulo Ribeiro de Magalhães. (MORAES, 2001, p. 507, nota 67)
37
Serge Rachmaninov (1873-1943), compositor russo, que, segundo Carpeaux (2001, p. 298), ―Foi
antinacionalista sem renegar o lastro de mentalidade eslava.‖.
96
e da orquestra. Solistas absolutamente olho-do-cu. Orquestra pífia de bar deserto de
subúrbio. Bach ist kein Bach!‖ (MORAES, 2001, p. 619).
Em outros momentos, não deixa também de alfinetar o amigo Villa-Lobos pelo
exagero de executantes escolhidos pelo compositor brasileiro na execução das
peças de Bach. Assim, surge o seu lado crítico musical. Na carta de 8 de dezembro
de 1935, comenta a Mário:

Parece que o Villa afundou mesmo. Os jornais elogiaram muito, mas


o público ―arrepunou‖. Saiu do Municipal convencido que Bach é uma
estopada. Já tive ocasião de ouvir o orfeão do Villa. Ai a coisa é
melhor. Também o que canta são coisas simples quase sempre.
Uma ou outra vez o Vila se mete numa fuga de Bach e afunda de
novo. E essa mania de massa que ele tem: 500 executantes! 700
executantes! Positivamente a batutinha dele não dá p‘ra essas
babilônias. (MORAES, 2001, p. 620)

A composição, por exemplo, do compasso inicial de "Menuet", [BWV Anh.


116] de Johann Sebastian Bach (1658-1750)38, parece ressoar nos poemas de
Bandeira. Vejamos primeiro Bach de ―Menuet‖:

1º comp. 2º comp. 3º comp. 4º comp. 5º comp. 6º comp.

1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3

1-2 3 1 2 3 1-2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3

Neste trecho, notamos a leveza musical criada pelo compositor, evitando-se o


excesso de notas na composição. No primeiro compasso, na clave de sol, a melodia
é construída por seis colcheias (meio tempo) em um movimento ternário (3/4). Na
clave de fá, a semibreve (dois tempos) e a mínima (1 tempo) formam a base do

38
Disponível em: http://www.mutopiaproject.org/ - Acesso em 03 fev. 2013.
97
ritmo. Há o jogo em que a primeira nota, uma mínima, alonga-se no compasso até
encontrar a segunda, mais curta, semínima, criando, assim, o ritmo e a harmonia 39
desejada. A partir do segundo compasso, começa uma inversão, como se o ritmo
criasse uma atmosfera de brincadeira que se alterna nos compassos seguintes.
Assim como em Bach, o jogo de alternâncias é comum nos versos de
Bandeira. O ritmo cria a impressão de uma brincadeira, como nos versos dos
poemas "O Fauno" e "Canto de Natal". Enquanto no poema Fauno, a aproximação
com o estilo minueto se dá no ritmo da leitura, em "Canto de Natal", dá-se também
na inversão dos dois primeiros versos das estrofes. Em ―O Fauno‖, observamos:

O Fauno

Na / ca / la / da
1 2 3
Da al / ta / noi / te,
1 2 3
(EM, p. 244)

Nesses dois primeiros versos, o ritmo ternário mantém-se com o acento


tônico sobre o terceiro verso. No entanto, nos terceiro e quarto versos, a sílaba
tônica é deslocada para os quinto e sétimo versos, modificando o ritmo do poema:

Quan / do a / som / bra é / co / mo a au / gus / ta


1 2 3 4 5 6 7 8
An / te / ci / pa / ção / da / mor / te,
1 2 3 4 5 6 7 8
(EM, p. 244)

Nos versos seguintes, o ritmo retorna ao andamento dos três primeiros


versos:

Gri / ta o / fau / no:


1 2 3
— "Bem / que / ve / lho,
1 2 3
Te / re / cla / mo.
1 2 3

39
Conforme Priolli (1995, p. 6), a harmonia é uma espécie de gramática da composição e ela deve
ser tanto contrapontada no que se refere ao sistema de imitações, em que as vozes dialogam,
simultaneamente na dança particular de cada voz, garantindo a cada voz a independência.na
harmonia instrumental, ela, a harmonia, é muito mais livre e com isso o conteúdo harmônico da obra
condiz com a concepção musical de cada época. Schoenberg (2001, p.49) define-a como ―o ensino
dos complexos sonoros (acordes) e de suas possibilidades de encadeamento, tendo em conta seus
valores arquitetônicos, melódicos e rítmicos e suas relações de equilíbrio [Gewichtsverhaltnisse].‖
98
Bem / que / ve / lho,
1 2 3
Te / de / se / jo,
1 2 3
Gri / ta o / fau / no:
1 2 3
Que / ro e / cha / mo,
1 2 3
(EM, pp. 244-245)

Em ―Retrato‖ (Op. P. 221), por exemplo, na mesma estrofe o acento tônico


varia, mas mantém o ritmo ternário:

Retrato

o / sor / ri / so es / cas / so,


1 2 3 4 5 6
o / ri / so /-sor / ri / so,
1 2 3 4 5 6
a / ri / sa / da / nun / ca.
1 2 3 4 5 6
(Co / mo / quem / con / si / go
1 2 3 4 5 6
Traz / o / sen / ti / men / to
1 2 3 4 5 6
Do / ma / dras / to / mun / do.)
1 2 3 4 5 6
(Op, p. 221)

Em ―Nu‖ esse deslocamento tônico também aparece. Observemos a primeira


estrofe:

Nu
Quan / do es / tás / ves / ti / da. (3 e 5)
1 2 3 4 5 6
Nin / guém / i / ma / gi / na
1 2 3 4 5 6
Os / mun / dos / que es / con / dês
1 2 3 4 5 6
Sob / as / tu / as / rou / pas.
1 2 3 4 5 6
(ET, p. 243)

Na partitura seguinte, de Bach, os três primeiros compassos do ―Prelúdio 1‖40


(Das Wohltemperierte Clavier I - BWV 846), conferem o ritmo cadenciado da

40
Disponível em: http://www.mutopiaproject.org/ - Mutopia-2005/11/19-5. Acesso em 03 fev. 2013.
99
balada41, exprimimindo altos e baixos, fortes e fracos, alternados entre sons e
silêncios, como são os poemas de Bandeira. Vejamos o ―Prelúdio‖:

1...2...3...4... 1...2...3...4... 1...2...3...4...

Na clave se sol, superior, o compositor utiliza as semicolcheias (metade da


colcheia = ¼ de uma semíninma) para construir a melodia pontilhada. Notamos que
as notas se repetem com poucas variações. Mas o efeito é uma melodia composta
pela sequência harmônica. Em Bandeira, a referência às baladas está presente em
vários poemas: "Balada das três mulheres do sabonete Araxá", "Balada de Santa
Maria Egipcíaca", "Balada do rei das sereias", "Balada para Isabel" e "Baladilha
arcaica". Observemos fragmentos de dois poemas:

Balada de Santa Maria Egipcíaca

San / ta / Ma / ri / a / E / gip / cí / a / ca / se / gui / a


1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4
Em / pe / re / gri / na / ção / à / ter / ra / do / Se / nhor.
1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4
(...)
San / ta / Ma / ri / a / E / gip / cí / a / ca / che / gou
1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4
À / bei / ra / de / um / gran / de / rio.
1 2 3 4 1 2 3 4
E / ra / tão / lon / ge a / ou / tra / mar / gem!
1 2 3 4 1 2 3 4
E es / ta / va / jun / to à / ri / ban / cei / ra,
1 2 3 4 1 2 3 4
(...)
(ORD, p. 106)

Balada das três mulheres do sabonete Araxá

Que ou / tros, / não / eu, / a / pe / dra / cor / tem


1 2 3 4 1 2 3 4

41
Conforme Dourado (2004, p. 39) (1. Canção de origem folclórica cuja letra tem caráter narrativo. 2.
Na música popular brasileira, canção leve e geralmente romântica.
100
Pa / ra / bru / tais / vos / a / do / ra / rem,
1 2 3 4 1 2 3 4
(...)
(EM, p. 150)

Nesses dois poemas, a referência à balada não está apenas no título mas
também no ritmo dos versos. Além das baladas, Bandeira compõe versos com
outros ritmos. O poeta experimenta, também, o ritmo musical "rondó42". Segundo
Bandeira, (1997, p. 549), em ―A versificação em língua portuguesa‖, o rondó é ―[...]
forma francesa, é um poema de quinze versos, distribuídos em três estrofes,
segundo o esquema aabba / aabC / aabbaC, a maiúscula C representa as palavras
iniciais da primeira estrofe repetidas como estribilho e último verso da segunda e da
terceira estrofe.‖ Em vários poemas constrói esse ritmo musical como em:

Rondo dos cavalinhos43


Os cavalinhos correndo. A
E nós, cavalões, comendo... A
Tua beleza, Esmeralda, B
Acabou me enlouquecendo. A

Os cavalinhos correndo, A
E nós, cavalões, comendo... A
O sol tão claro lá fora, C
E em minh'alma — anoitecendo! A

Os cavalinhos correndo, A
E nós, cavalões, comendo... A
Alfonso Reyes partindo, D
E tanta gente ficando... E

Os cavalinhos correndo, A
E nós, cavalões, comendo... A
A Itália falando grosso, F
A Europa se avacalhando... E

Os cavalinhos correndo, A
E nós, cavalões, comendo... A
O Brasil politicando, B
Nossa! A poesia morrendo... E
O sol tão claro lá fora, C
O sol tão claro, Esmeralda, B
E em minh‘alma – anoitecendo! A
(EM, 1993, pp. 161-162)

42
Para melhor compreensão do rondó, conferir Llacer Pla (1982, pp. 64-71).
43
Publicado no livro Estrela da manhã (1936), com o título ―Rondó do Jockey Club‖, ideia surgida
―[...] durante um almoço oferecido naquele lugar ao grande escritor mexicano Alfonso Reyes em
1935, por ocasião da sua despedida do Brasil, onde era embaixador.‖ (CANDIDO, 2002, p.69)
101
Na forma canção folclórica da Idade Média, Rondó adquiriu os seguintes
esquemas: AA: B: AA:B que ainda podia ser abreviada para AAB ou AAB:A. Esta
forma de composição introduz um primeiro tema (A). Após o fim de ―A‖ apresenta o
tema ―B‖, que após seu final retorna a ―A‖. Em seguida, apresenta o tema ―C‖ e
assim sucessivamente. O poema ―Rondó dos cavalinhos‖ compõe-se do seguinte
esquema: AAB:A / AAC:A / AAD:E / AAF:E / AABECBA.
É interessante notar que o próprio poeta prenuncia a quebra dessa estrutura
no último verso da 4ª estrofe: ―A Europa se avacalhando...‖. Nesse verso, Bandeira
refere-se à invasão da Absínia pela Itália ocorrida em 1935. A Liga das nações
impôs à Itália sanções econômicas que não surtiram efeito, já que Mussolini ―[...] as
desautorou e os países signatários não reagiram.‖ (CANDIDO, 2002, p. 69). Esse
avacalhamento referido à Europa é o que acontece com a estrutura do poema: vai
se avacalhando, na última estrofe temos: AABECBA, ou seja, rompe com a ordem
do rondó. Ainda segundo Candido (2002, p. 69): ―Naquela altura, discutia-se muito
no Brasil se a poesia estava no fim, diante da profunda transformação dos meios
estéticos e o caráter pragmático da vida moderna.‖. Esse ritmo foi utilizado por
Beethoven (1770-1827) em, por exemplo, o "Rondo A capriccio" -"Rage Over A Lost
Penny - G Maior - OP. 129 (1975)44 e na Sonata N° 8 "Pathétique"45, 3rd Movement,
Op. 13:

44
Disponível em: http://www.mutopiaproject.org/-Mutopia-2004/11/17-498. Acesso em 03 fev. 2013.
45
Disponível em: http://www.mutopiaproject.org/-Mutopia-2003/04/02-296. Acesso em 29 abr. 2013.
Public Domain.
102
Como já afirmamos, a musicalidade de Bandeira também se aproxima da de
Debussy, cujas células musicais ajudam a construir uma melodia elevada pela
leveza da musicalidade. Cria-se, assim, o efeito impressionista. O silêncio garante o
equilíbrio necessário à suspensão. O resultado é uma música de imprecisões
aparentes. Assim como a lírica de Debussy, a poesia de Bandeira eleva-se pela
sutileza da síntese, pela linguagem prosaica e pela mescla rítmica, como acontece,
por exemplo, em ―Na rua do sabão‖. Nesse sentido, observemos os dois primeiros
compassos da ―Suite Bergamasque - Clair de Lune‖, de Claude Debussy (1977) e
dois trechos dos poemas de Bandeira: "Noturno na Mosela" e "Na rua do sabão".

Nesses cinco primeiros compassos, notamos que as notas ligam-se por sinais

específicos chamados ligadura46: . Na poesia essa ligação acontece quando uma


sílaba átona se liga à outra forte fundindo-as. Esse efeito chama-se suspensão ou
síncope. Ao mesmo tempo, o prolongamento das notas na base (clave de Fá), pela
nota pontuada: (aumenta anota em até a metade de seu valor), que sugere
suavidade e elevação. No pentagrama superior, todas as notas são ligadas pela
ligadura de frase: , representada pelo arco superior. Observemos como Bandeira
46
Ou Legado, é um sinal que se coloca acima ou abaixo da nota para ligar sons. Existem três tipos
de ligadura: valor, articulação e de frase (ou fraseado). De valor: união de duas ou mais notas de
mesma altura e mesmo nome, somam-se o valor das notas que são tocadas como se fosse uma
única nota. De articulação: união de duas notas diferentes. De frase: união de três ou mais notas
diferentes. (MED, 1996, pp. 47-49).
103
recria esses efeitos de suspensão e de prolongamento no poema ―Noturno da
Mosela‖:

Noturno na Mosela

A noite... O silêncio...
Se fosse só o silêncio!
Mas esta queda d'água que não pára! que não pára!
Não é de dentro de mim que ela flui sem piedade?...
A minha vida foge, foge — e sinto que foge inultemente!
O silêncio e a estrada ensopada, com dois reflexos intermináveis...

Fumo até quase não sentir mais que a brasa e a cinza em minha
[boca.
O fumo faz mal aos meus pulmões comidos pelas algas.
O fumo é amargo a abjeto. Fumo abençoado, que és amargo e
[abjeto!

Uma pequenina aranha urde no peitoril da janela a teiazinha


[levíssima.

Tenho vontade de beijar esta aranhazinha...

No entanto em cada charuto que acendo cuido encontrar o gosto que


[faz esquecer...
Os meus retratos... Os meus livros... O meu crucifixo de marfim...
E a noite...
Petrópolis, 1921
(RD, pp. 116-117)

Nesse poema, Bandeira utiliza vários elementos para criar o efeito de


suspensão: as reticências, o sinal de exclamação no final de alguns versos, as
frases curtas, as repetições. Quanto à sonoridade, há o uso de sons sibilantes [s],
[c], [x] e [z]:

―A noite... O silêncio... / Se fosse só o silêncio!‖


―Fumo até quase não sentir mais que a brasa e a cinza em minha
[boca‖
―Os meus retratos... Os meus livros... O meu crucifixo de marfim...‖

e fricativos [f], [v], [g], [j], [ch]:

―A minha vida foge, foge - e sinto que foge inultemente!‖

Uma pequenina aranha urde no peitoril da janela a teiazinha


104
[levíssima.
Tenho vontade de beijar esta aranhazinha...
O fumo faz mal aos meus pulmões comidos pelas algas.
O fumo é amargo a abjeto. Fumo abençoado, que és amargo e
[abjeto!

Os sons nasais contribuem para instaurar o ritmo lento:

―A noite... O silêncio...‖

―Se fosse só o silêncio!‖

―Não é de dentro de mim que ela flui sem piedade?...‖

―A minha vida foge, foge - e sinto que foge inultemente!‖

―O silêncio e a estrada ensopada, com dois reflexos intermináveis...‖

―O fumo faz mal aos meus pulmões comidos pelas algas.‖

―No entanto em cada charuto que acendo cuido encontrar o gosto


[ que faz esquecer...‖
―Tenho vontade de beijar esta aranhazinha...‖

―O fumo é amargo a abjeto. Fumo abençoado, que és amargo e


[abjeto!‖

Moraes (2001, p. 87, nota 10) ressalta:

O poema manteve em Poesias (Ritmo dissoluto), de 1924, esse


título. Em 1937, as Poesias escolhidas já o trazem como "Noturno da
Mosela". Telê Ancona Lopez acompanhando o percurso textual e
genético do poema, analisa: "A denominação anterior, 'Soneto',
desafiava, nos autênticos versos livres em O ritmo dissoluto, a
distribuição tradicional dos 14 versos na conhecida estrutura poética,
propondo separação estrófica diferente. Bandeira, o poeta da
filigrana, da introspecção, prende-se às formas musicais e aos
compositores que pedem o intérprete único–Debussy, o adágio, o
noturno. A substituição efetuada dá conta desse aspecto; ao mesmo
tempo, coloca nitidamente o poema no espaço de Petrópolis, no
bairro alemão da Mosela, onde o rio modesto é reconhecido no
feminino, como seu homônimo, ali homenageado pelo imigrante (die
Mosel) [...]". ("Um caminho de poemas". In: Manuel Bandeira: verso e
reverso, p. 161). A datação "Petrópolis, 1921", que acompanha a
última versão, aparece em 1958, em Poesia e prosa (Aguilar, 1958).
A menção, na carta, ao "Soneto", enquanto poema recente da
produção de Bandeira, corrige agora o erro/a intenção do poeta.

105
Bandeira mantém os 14 versos do soneto. Entretanto, assim como Debussy,
faz um novo arranjo para os versos, criando sensação de leveza própria do
impressionismo. É uma espécie de composição por pinceladas, por fragmentos ou
filigranas, reconstituindo a configuração pictórica introspectiva musical típica do
compositor francês. Todos esses recursos constituem-se parte do lirismo pretendido
por Manuel Bandeira. Moraes (2001, p, 243, nota 145) transcreve um trecho da carta
de Mário de Andrade a Prudente de Moraes Neto, assinalando o lirismo de Bandeira:

Em Manuel [...], que é o mais cheio de lirismo da minha geração (os


que estão agora na casa dos trinta) tem um desequilíbrio evidente
entre o lírico e o poeta. Ele mesmo reconhece isso. Todos os últimos
poemas dele, desde o Ritmo dissoluto, com algumas exceções
apenas, são fragmentos do lirismo constante da vida. São
fragmentos completos em si que não tem nada que falte nem antes
nem depois porém são fragmentos porque lhes falta o juízo exclusivo
do resto e conclusivo da sensação, que lhes daria a intenção de
poema, torná-los-ia residentes em si mesmos e não na continuidade
da sensação.

A musicalidade de Bandeira contribui para a construção dos versos por meio


de pinceladas ou filigranas cujas impressões tecem, por fragmentos líricos, a leveza
necessária para que o balãozinho possa elevar-se no poema "Na rua do sabão":

NA RUA DO SABÃO

Cai cai balão


Cai cai balão
Na Rua do Sabão!

O que custou arranjar aquele balãozinho de papel!


Quem fez foi o filho da lavadeira.
Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.
Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos
[oblongos...
Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.

Ei-lo agora que sobe — pequenina coisa tocante na escuridão do


[céu.

Levou tempo para criar fôlego.


Bambeava, tremia todo e mudava de cor.
A molecada da Rua do Sabão
Gritava com maldade:
Cai cai balão!
(...)
(RD, p. 119)
106
A linguagem prosaica mais uma vez colabora para a re-encenação do
universo infantil, no qual as brincadeiras das ruas tornam a vida das crianças mais
leve. De igual maneira, a das pessoas que passam e observam o balãozinho de
papel. É um mundo construído que remete às cantigas de roda, ao descompromisso
com o peso do trabalho. Há o jogo instaurado entre peso e leveza (―arame‖, ―papel
de seda‘), mundo infantil e adulto (―molecada‖, ―lavadeira‖), passado e presente
(―Bambeava‖, ―trabalha‖), cair e subir (―Cai cai balão‖, ―Ei-lo agora que sobe‖),
linguagem culta e prosaica (‗cortou-o com amor, compôs os gomos‖, ―Bambeava,
tremia todo e mudava de cor‖), ―amor‖ e ―maldade‖.
A trivialidade da linguagem confere ao verso mais agilidade, dada a síntese.
Essa síntese, tratada muitas vezes por Bandeira nas correspondências, é percebida
também em seus micropoemas, que são muito próximos dos microcontos. São
exemplos: ―Tragédia brasileira‖, ―Noturno da rua da Lapa‖, ―Noturno da parada
Amorim‖, "Porquinho-da-índia", "Camelôs", "Irene no céu", "Debussy", "Irene no
céu", ―Namorados‖, ―O desmemoriado de Vigário Geral‖, "Macumba de pai Zuzé".
Em ―Noturno da Parada Amorim‖, o tom da prosa aproxima o poema do conto. É,
aliás, uma maneira de se fazer prosa poética:

Noturno da parada Amorim

O violoncelista estava a meio caminho do Concerto de


[Schumann
Subitamente o coronel ficou transportado e começou a gritar:
[— Je vois des anges! Je vois des anges!
[— E deixou-se escorregar sentado pela
[escada abaixo.
O telefone tilintou.
Alguém chamava?... Alguém pedia socorro?...

Mas do outro lado não vinha senão o rumor de um pranto


[desesperado!...
(Eram três horas.
Todas as agências postais estavam fechadas.
Dentro da noite a voz do coronel continuava gritando: — Je
[vois des anges! Je vois des anges!)
(Li, p. 140)

Não fosse a disposição dos versos, esse poema poderia ser confundido com
um micro-conto, principalmente pelo discurso em terceira pessoa: ―O violoncelista
estava a meio caminho do Concerto de Schumann‖. Os verbos no pretérito são

107
marcas da prosa narrativa: ―estava‖, ―ficou‖, ―deixou-se‖, ―escorregar‖, ―tilintou‖,
―estavam‖, ―Eram‖. A estrutura segue o padrão da narrativa: a primeira estrofe
instaura a situação inicial; a segunda já insere o início do conflito. Na quinta estrofe,
o clímax; a última ou oitava equivale ao desfecho. Ainda, não há a presença de
rimas internas nem externas. O ritmo, como já fora apontado, é o da prosa.
A cadência da valsa "Debussy", de Bandeira, por exemplo, pode ser
comparado à valsa de Chopin (Valse 'Minute Waltz' - Op. 64, N°. 147):

Observemos como este ritmo é apresentado nos cinco primeiros compassos


da obra. Na parte superior da partitura, está a clave de Fá, na qual geralmente é
composta a voz da melodia:

1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3

Bandeira traduz esse ritmo para o seu poema ―Debussy‖, cujos primeiros
versos estão assim dispostos:

Pa / ra / cá, / pa / ra / lá...
1 2 3 4 5 6
Pa / ra / cá, / pa / ra / lá...
1 2 3 4 5 6
Um / no / ve / lo / zi / nho / de / li / nha...
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Pa / ra / cá, / pa / ra / lá...
1 2 3 4 5 6
Pa / ra / cá, / pa / ra / lá...
1 2 3 4 5 6

47
Disponível em: http://www.mutopiaproject.org/-Mutopia-2004/08/12-483. Acesso em 29 fev. 2013.
108
Nos primeiro, segundo, quarto e quinto versos, o acento tônico recai sobre as
3ª e 6 sílabas métricas. No terceiro verso, a cadência modifica-se: o acento tônico
está nas 3ª, 5ª e 8ª sílabas métricas. Esse deslocamento rítmico revela um dado
importante na poética de Bandeira: a força lírica apoia-se na flexibilidade do ritmo.
Assim, eliminar os exageros torna-se para ele uma necessidade. A arte de
escrever torna-se então uma "Secreção que alivia". Em carta de 9 de abril de 1927,
comenta a Mário:

Minha arte não é arte. É secreção que alivia... excreção... apesar de


todas as mudanças por que passei e que você assinalou na sua
crítica o móvel e razão profunda do Carnaval e Ritmo dissoluto como
do que veio depois são os mesmos da Cinza das horas. Gosto muito
de ser gostado pelos outros, mas o desamor ou incompreensão dos
outros não me dão dor nenhuma. (MORAES, 2001, p. 343).

A preocupação de Bandeira em conhecer os ritmos, os falares e as


variedades de danças típicas de um Brasil ainda desconhecido é observada em
carta de 9 de janeiro de 1935, enviada a Bandeira por Mário. Bandeira já procurava
criar poemas com uma vasta variação rítmica. Essa preocupação nos revela que em
seu projeto, estava incluída a produção de poemas com riqueza de ritmos e
melodias folclóricas e regionais. Nessa mesma carta, Mário envia dados sobre
musicalidade solicitados por Bandeira:

Embolada: Fórmula poético-musical, específica do Nordeste


(brasileiro), (em compasso binário rápido), usada (geralmente) pelos
solistas nas peças com refrão coral ou dialogadas (como cocos ou
desafios). (...)
Martelo: Forma poético-musical nordestina, geralmente em
versos menores que a redondilha, usada nas estrofes dos solistas,
especialmente nos desafios. (...)
Jongo: Dança cantada rural brasileira, de origem africana,
assimilável (geralmente) como fórmula poético-musical e como
coreografia ao samba rural. (...)
Cateretê: (Porque você escreveu Catereté (sic)?): Dança
cantada rural brasileira, pelo menos de nome originariamente tupi,
mas coreograficamente muito contaminado de processos africanos
de dançar.
Lundu: Primitivamente, dança cantada rural de origem
africana; atualmente canção solista, com freqüência de caráter
cômico.
Maxixe: Dança urbana (brasileira), geralmente instrumental,
em compasso de dois-por-quatro rápido, (originária da cidade do Rio
de Janeiro). (MORAES, 2001, pp. 607-608)

109
Se ele solicitou esses dados, pretendia usá-los em sua produção. Como será
que esses ritmos aparecem em seus versos? O ―martelo‖ é uma variação do verso
heroico48. Apresenta ritmo de galope com acento tônico em decassílabos (10 sílabas
métricas49) sobre as 3ª, 6ª e 10ª sílabas métricas do verso. Também pode acontecer
a variação na marcação do ritmo na disposição tônica: 4ª, 7ª e 10ª sílaba métrica,
conhecido por Moinheira. Bandeira utiliza-o para compor ―Sonho Branco‖, do qual
transcrevemos os quatro versos da primeira estrofe:

Não / pai / rãs / mais / a / qui. / Sei / que / dis / tan / te


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Es / tás / de / mim, / no / grê / mio / de / Ma / ri / a
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Des / fru / tan / do a i / ne / fá / vel / a / le / gri / a
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Da al / ta / con / tem / pla / ção / e / di / fi / can / te.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
(ET, p. 240)

Ainda que utilize o ritmo martelo, observa-se variações quanto à posição da


sílaba tônica nos decassílabos nos seguintes versos de ―Peregrinação‖ (ET, p. 241):

Quan / do o / lha / da / de / fa / ce, e / ra um / a / bril.


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Quan / do o / lha / da / de / la / do, e / ra um / a / gos / to.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Du / as / mu / lhe / res / nu / ma: / ti / nha o / ros / to
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Gor / do / de / fren / te, / ma / gro / de / per / fil.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Em ―Rondó da Colombina‖ (Ca, p. 92), por exemplo, na primeira estrofe, o


poeta varia a acentuação para a quinta e oitava (3° verso), ou até mesmo na quinta
e sétima (4° verso):

O / so / nho / pas / sou. / Traz / ma / goa / do o / rim,


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

48
Conforme Dourado (2004, p. 197), o martelo, é uma ―Forma de DESAFIO dos cantadores do
Nordeste brasileiro que serve de base para improvisações de letras e músicas. É bastante usado
para versos de tema heróico. Os martelos mais empregados são o gabinete e o agalopado.‖. Quanto
ao martelo agalopado, registra: ―Forma de MARTELO (acp. 2) rápido do desafio nordestino cujas
estrofes são geralmente decassilábicas [var.: martelo de seis pés]‖. Segundo Sadie (1994, p. 578),
―processo especial de desafio, em redondilha maior ou em versos decassílabos‖.
49
Versos compostos de 10 sílabas métricas regulares. Podem ser compostos em ritmo heróico ou
sáfico ou os dois ritmos na mesma estrofe. Os sáficos apresentam sílabas tônicas obrigatoriamente
nas posições 4, 8 e 10. (Leodegário Amarante. apud SPINA, 2003, p. 58)
110
Ma / goa / da a / ca / be / ça ex / pos / ta à u / mi / da / de.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Essas variações ocorrem em boa parte dos decassílabos de Bandeira como


em: ―Soneto sonhado‖ (Estrela da tarde), ―Improviso‖ (Estrela da tarde), ―Irmã‖
(Estrela da tarde), ―Adeus amor‖ (Estrela da tarde), ―Soneto em louvor de Augusto
Frederico Schmidt‖ (Lira dos cinquent‘anos) e ―O lutador‖ (Belo Belo).
O ritmo maxixe 50 sofreu influências do lundu, da polca e da habanera (SADIE,
1994, p. 587). É a forma de composição escolhida por Bandeira no poema ―Verde-
negro‖ (ET, p. 268), cujo ritmo é binário, também conhecido como 2/4.

Verde-negro
dever
de ver
tudo verde
tudo negro
verde-negro
muito verde
muito negro

Observemos:

de / ver
1 2
de / ver
1 2
tu / do / ver / de
1 2 1 2
tu / do / ne / gro
1 2 1 2
ver / de- / ne / gro
1 2 1 2
mui / to / ver / de
1 2 1 2
mui / to / ne / gro
1 2 1 2

A composição em forma de maxixe também está presente em uma estrofe de


―Trem de ferro‖:
50
Conforme Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2011, p. 898), maxixe significa ―dança
popular, cheia de movimentos requebrados, volteios e negaças.‖. De acordo com Dourado (2004, p.
198), o maxixe―Dança urbana em COMPASSO BINÁRIO surgida no Rio de janeiro do final do século
XIX. [...] Com elementos da HABANERA e do TANGO BRASILEIRO, a dança sofreu influência da
POLCA e chegou a surgir travestida de europeia em bailes da classe média como polca-tango. O
maxixe assumiu-se verdadeiramente nacional graça aos ritmos SINCOPADOS trazidos pelos negros
africanos, e abriu caminho para o surgimento do samba urbano [...]‖. Ver Tinhorão (2013, p. 71)
111
Ca / fé / com / pão
1 2 3 4
Ca / fé / com / pão
1 2 3 4
Ca / fé / com / pão
1 2 3 4
(EM, p. 158)

Bandeira agradece ao amigo paulista as definições recebidas e declara a


importância dessas pesquisas em carta de 17 de janeiro de 1935 : ―Aliás os seus
livros muito me têm auxiliado no que respeita a música. Com esta remeto também
um cartão de agradecimento ao meu tio. Engraçado que antes de receber a sua
carta, tomei a coisa como brincadeira sua, pois ele não assinou.‖ (MORAES, 2001,
p. 609)
A multiplicidade de temas, ritmos e musicalidade torna-o um poeta das
variações. Nele, percebemos ecos de vários poetas da tradição clássica e
romântica, além da musicalidade de diversos compositores. Do Brasil, soube utilizar
e transformar uma gama de ritmos folclóricos de músicos como Ernesto Nazaré,
Villa-Lobos e Guarnieri. Essa curiosidade pela musicalidade é ainda registrada na
carta de 19 de fevereiro de 1935, na qual solicita a Mário pesquisas sobre samba e
maxixe. Se o poeta tem interesse pelos ritmos é porque quer utilizá-los em seus
poemas, como demonstraram as análises anteriores:

Agora, você: me defina para o dicionário SAMBA. Não é sopa.


Já andei viajando por você, Gallet & Cia, sem achar jeito. Hoje todas
essas coisas sincopadas de Carnaval que não são valsas, marchas
ou modinhas se chamam sambas. Uma coisa é certa: o que se
chama hoje samba não é o que se chamava assim antigamente.
Talvez você possa dar uma definição neste estilo: "antigamente, etc,
hoje, etc."
(...)
PS. Tornei a abrir a carta para falar do samba e pedir também
esclarecimento sobre tango. Quando vim de Pernambuco em 96, era
no Rio o reinado do maxixe. Tudo era maxixe. Por volta do tempo de
Nazaré (antes do tango argentino) tudo era tango. O que é o nosso
tango? Agora tudo é samba. Me salve! (MORAES, 2001, pp. 613-
614)

Mário, em carta de fevereiro de 1935, responde-lhe prontamente com as


informações solicitadas:

112
recebi a carta agorinha, desta vez a resposta é mais fácil:
Samba: Dança cantada (brasileira) de origem africana
compasso binário e acompanhamento (obrigatoriamente) sincopado.
O Samba urbano (Rio de Janeiro) distingue-se profundamente, no
caráter musical e na coreografia, do Samba rural.
Tango: Dança sul-americana do séc. XIX, criada sobre as
influências da Polca e da Habanera. Atualmente, dança cantada
argentina, sob o nome de Tango Argentino.
(...) No caso do Samba não existe antigamente e atualmente.
A forma rural persiste vivíssima, pelo menos no centro, São Paulo,
Minas, Estado do Rio. E no sertão do Nordeste também. (MORAES,
2001, p. 614)

Bandeira retoma os temas e as formas das cantigas medievais, de roda e as trovas.


Esse fato comprova o diálogo com a tradição literária, principalmente com a portuguesa,
pelo uso de termos lusitanos. Há vários poemas cuja estrutura remete às cantigas
medievais. São exemplos: ―Dentro da noite‖ (CH), ―O inútil luar‖ (CH), ―Ingênuo enleio‖ (CH),
―Enquanto morrem as tardes‖ (CH), ―Bacanal‘ (Ca). Os versos seguintes pertencem à
primeira estrofe do poema ―Cantar de amor‖:

Cantar de amor

Quer‟ eu em maneyra de proençal


Fazer agora hum cantar d‟amor...
D. Dinís

Mha senhor, com‘oje dia son,


Atan cuitad‘e sen cor assi!
E par Deus non sei que farei i,
Ca non dormho á mui gran sazon.
Mha senhor, ai meu lum‘e meu ben,
Meu coraçon non sei o que ten."
(LC, p. 170)

Nesse poema, a referência é direta, pois já na epígrafe o poeta traz o nome


de D. Dinis. Além disso, a linguagem remete ao português medieval e enfatiza o
refrão51 e os paralelismos sintáticos52. De acordo com Spina (2002, p. 72):

51
Conforme Spina (2002, p. 51): ―O refrão, via de regra ou fundamentalmente, é um fenômeno
poético que denuncia a origem social do canto, porque ele se encontra ligado à execução coletiva das
danças primitivas, e como tal às primeiras manifestações de solidariedade humana.‖. Quanto a esse
recurso nas cantigas trovadorescas, escreve: ―A última forma de estribilho parece ser aquela que se
verifica com as paralelísticas galego-portuguesas. Cada coro por vez cantava uma cobra (estrofe), e
os dois coros em conjunto executavam o refrão.‖ (SPINA, 2002, p. 56).
52
Em relação ao recurso do paralelismo, Spina (2002, p. 69), remetendo-se aos cantos paralelísticos
de há 25 a 30 séculos, confere uma espécie de ―carpintaria Formal‖ que atesta ―[...] o canto a dois
coros, que a primitiva poesia ctônica suscitava, ao embalo de uma coreografia adequada.‖

113
O paralelismo, na sua foram indígena – diríamos –, é a sucessão de
dísticos em que o pensamento é repetido com variações vocabulares
ou inversão das palavras do verso, seguido de refrão ou não. A sua
forma alternada é indiscutivelmente o testemunho de que o
paralelismo esteve ou está freqüentemente ligado às danças rituais a
dois coros, aos cantos de prece, aos cantos triunfais.

No poema ―Enquanto morrem as rosas‖:

Enquanto morrem as rosas

Morre a tarde. Erra no ar a divina fragrância.


Fora, a mortiça luz do crepúsculo arde.
Nas árvores, no oceano e no azul da distância
Morre a tarde...

Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham


No pranto das desesperanças dolorosas.
Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham,
Morrem as rosas...

Morre o teu sonho?... Neste instante o pensamento


Acabrunha o meu ser como um pesar medonho.
Ah, por que temo assim? Dize: neste momento
Morre o teu sonho?...
(CH, p. 65)

embora não haja referência direta como no poema anterior, Bandeira utiliza a
estrutura das cantigas trovadorescas medievais lusitanas: três estrofes compostas
de três versos e um refrão. Cada estrofe desenvolve um tema: a morte da tarde, das
rosas e do sonho.
A "Cantiga de amor", de Mafuá do Malungo é outro exemplo dessa retomada
das cantigas medievais:

CANTIGA DE AMOR

Mulheres neste mundo de meu Deus


Tenho visto muitas – grandes, pequenas,
Ruivas, castanhas, brancas e morenas.
E amei-as, por mal dos pecados meus!
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!
(...)
(MM, pp. 327-328)

114
Além desse diálogo mantido com a música erudita e com a música popular e
folclórica, outro traço que evidencia são os ecos do romantismo, por exemplo, no
seu poema Carnaval. No poema ―Epílogo‖, observamos, também, referência a
Schumann:

Epílogo

Eu quis um dia, como Schumann, compor


Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...

Quando o acabei — a diferença que havia!


O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura...
— O meu carnaval sem nenhuma alegria!...
(Ca, p. 101)

O título poderia ser entendido como uma espécie de coroação da obra de


Bandeira em homenagem ao compositor nascido na Saxônia. As referências diretas
são notadas nos 1° e 6° versos. A composição do Carnaval, de Schumann, teve
início no ano de 1833 e faz parte de um conjunto de obras de que estão
―indissoluvelmente ligadas à sua vida pessoal‖ (CHISSELL, 1986, p. 31). O
compositor acabara de conhecer duas ―mulheres gloriosas‖, como atesta em carta
enviada à mãe em 2 de julho de 1834. A ―excitação romântica‖ por essas duas
mulheres, Emília e Ernestine, fez reviver em Schumann o interesse ―por umas
variações que ele tinha iniciado em 1833 sobre a Sehnsuchtswalzer‖ que costumava
chamar de ―histórias de amor musicais‖ e que planejava publicar sobre o nome de
Scenen. Na carta citada também escrevera: ―Eu já lhe falei sobre Emília, a filha de
16 anos do cônsul norte-americano... A outra é Ernestine, filha de um rico nobre da
Boêmia, o barão von Fricken [...] Elá é realmente dedicada a mim, e se interessa por
tudo que é artístico‖ (CHISSELL, 1986, p. 32). Entretanto, ao descobrir que
Ernestine, na verdade, era filha ilegítima e que não era ―tão bem dotada artística e
intelectualmente‖ como pensava, despreza-a, ―mas felizmente não antes de ela ter-
lhe inspirado o surto imaginativo de que ele precisava no momento de uma
composição de vulto‖. Conforme Chissell (1986, p.32), Ernestine nascera em Asch, e
―SCHA eram exatamente as quatro letras de seu próprio nome que podiam ser
115
traduzidas em notação musical (em alemão: mi bemol, dó, si natural e lá)‖. Essa
coincidência marcou definitivamente o destino de Schumann, que resolveu manter o
compasso em três por quatro e escreveu novas variações que, em 1835, ficaram
prontas com o título de Fasching: Schwänke auf vier Noten (Carnaval: Brincadeiras
sobre quatro notas).
O carnaval de Schumann é composto de um conjunto de partes ou peças que
formam unidade musical intrínseca, ou seja, ―um modo de fazer com que o todo
significasse mais que as soma das partes‖ (CHISSELL, 1986, p. 32). Com isso,
recria um palco carnavalesco no qual desfilam Schubert (Preâmbulo – Lá bemol –
Quase majestoso, introdução na qual retoma as variações ―Trauerwalzer‖, Op. 9/2,
de Schubert.), Pierrot (Mi bemol – moderado), Arlequim (Si bemol – Vivo),
Colombina (Fá menor – presto), o próprio Schumann nos papéis de Florestan (Sol
menor – Passionato, alusão ao lado furioso do compositor) e Eusebius (Mi bemol –
Adagio, em que faz alusão à calma, ao lado ponderado do próprio Schumann).
Também homenageia a mulher com quem se casaria, Clara Wieck, em Chiarina (Dó
menor – Passionato), Paganini, Chopin (lá bemol – Agitato) e Ernestine von Fricken
(Estrella - Fá menor – Com afeto.
Depreendemos, assim, o porquê de a voz lírica do ―Epílogo‖, de Bandeira,
referir-se ao Carnaval de Schumann como ―todo subjetivo‖ e que ―Fosse o meu
próprio ser interior‖. No entanto, o poeta revela haver diferenças entre o seu
Carnaval e o de Schumann: ―Quando o acabei — a diferença que havia!‖. Para
Bandeira, se o Carnaval de Schumann ―cheio de amor‖, ―de frescura‖ e ―de
mocidade‖, é porque tais elementos não estão presentes no seu próprio, em que há
apenas ―a morta mortacor‖ da ―senilidade e da amargura‖ que o transforma em um
poema ―sem nenhuma alegria‖. Isso é o que ele diz. O Carnaval de Bandeira é
composto por 33 poemas, com variações de ritmos como rondós, madrigais,
baladilhas. O poema de Bandeira funciona como uma metalinguagem que ele utiliza
como autocrítica, ou seja, revela a distância entre o seu carnaval e o de Schumann:
―É como se, de alguma forma, ele justificasse não ter sido suficientemente
carnavalesco e/ou musical, frustrando quem esperava do poeta apenas risos,
confetes e serpentinas.‖.

116
Na carta de 10 de novembro de 1924, Bandeira faz observações à paráfrase
de Mário em "Cenas de crianças"53. Critica o amigo por ter escrito essa obra sobre
os "andaimes de Schumann" como uma espécie de paráfrase do Kinderszenen, um
álbum que Schumann dedica à poeticidade musical do universo infantil: ―[...] recebi
as "Cenas de crianças" e o Primeiro andar. Já os li. Você me diz que não pretende
publicar as "Cenas". Por quê? O que acho de pau ali são aqueles andaimes de
Schumann‖. Por isso, adverte: ―A obra está feita e é bem sua: retire os andaimes.‖
(MORAES, 2001, p. 147).
Para evitar que a obra do escritor paulista se torne uma mera cópia de
Schumann, orienta-o a utilizar nos títulos dos poemas uma linguagem e imagens
específicas do universo nacional, especialmente ao infantil: ―Não intitule ‗Cenas de
crianças‘. É mais do que isso. É um poemazinho infantil. O menino, a irmãzinha de
leite, o irmão da bicicleta, a ama Tita, o passarinho amarelo. Apague também nos
subtítulos os vestígios das Kinderszenen.” (MORAES, 2001, p. 147). Bandeira elege
uma paráfrase transformadora que se mantenha tão original quanto à obra
parafraseada. Nessa carta, ainda sugere outras alterações nos títulos e em termos
usados por Mário, para que a obra se aproxime da realidade brasileira, como, por
exemplo, "Gata Borralheira" em vez de "Imagens da terra e homens estrangeiros";
"Homem-na-chuva" em vez de "História curiosa"; "Cabra cega" pode ficar; "Tita" em
vez de "Criança roja"; "Tchem! ou o Palhaço preto" em vez de "Completa felicidade"
(MORAES, 2001, p. 147). Acrescenta o poeta:

"A gata tem dois gatinhos" em vez de "Grave acontecimento". "O


moço de cabelos cacheados" (por que encaichado? diz-se assim em
São Paulo?) em vez de "Cismando"; "Boizinho branco" em vez de
"Assustando", etc. etc. e etc. E suprimir "Fala o poeta". Por quê?
Pelo seguinte: aquilo é bonito e eu me lembrei de ver se achava
editor para oferecê-lo às crianças. Acho que as crianças gostarão.
"Fala o poeta" não é para crianças. O meu plano seria o seguinte.
Fazer um desenhista meigo, o Angelus por ex., desenhar uma figura
para cada poemeto e levar a coisa ao Paulo de Azevedo que um dia
disse que quem fizesse um bom livro para crianças no Brasil
ganharia muito dinheiro. Você consente e aprova o plano?

53
Na carta de 31 de outubro de 1924, Mário escreve: ―Aqui vão Primeiro andar e ―Cenas de crianças‖.
Estas foram escritas como férias à Paulicéia no mês seguinte do da escritura primeira e tumultuária
desta. Não lhes dou a mínima importância e nunca as publicarei creio.‖ (MORAES, 2001, p. 142).
117
Bandeira também experimentou variações temáticas e rítmicas no poema
"Variações sérias em forma de soneto", no qual ocorre variação de ritmo entre os
versos e as estrofes. Os acentos tônicos recaem em diferentes sílabas, muitas vezes
alternando e retomando as anteriores. Para exemplificar, seguem os versos da
primeira estrofe:

Ve / jo / ma / res / tran / qüi / los, / que / re / pou / sam,


3 6 10
A / trás / dos / o / lhos / das / me / ni / nas / sé / rias.
2 4 8 10
Al / to e / lon / ge e / las / o / lham, / mas / não / ou / sam
3 6 10
O / lhar / a / quem / as / o / lha, e / fi / cam / sé / rias.
2 6 8 10
(ET, p. 236)

Mozart (apud. BENNET, 1986, p. 64), a título de exemplificação e de


comparação, também faz uma série de variações da melodia francesa ―Ah, vous
dirai-je, Maman‖ a partir de um tema em forma ternária. As notas mais importantes,
chamadas de notas-guias, estão indicadas com um círculo:

dó sol lá sol fá mi ré dó

Na variação seguinte (1), conforme demonstram as notas circuladas, o tema


está escondido entre rápidas semicolcheias.

dó Sol lá sol fá mi

ré dó

Na variação seguinte (2), as semicolcheias passam para a mão esquerda, na


clave de fá, enquanto o tema é claramente ouvido na mão direita (clave de sol).

118
dó sol lá sol fá fá mi mi

fá sol dó sol sol mi sol lá mi sol

Na parte superior dos pentagramas (clave de Sol) da variação 2, as notas


guia repetem-se ainda que de maneira variada: dó, sol, lá, sol, fá, fá, mi, mi. No
segundo pentagrama (parte inferior da figura), as notas base da clave de Fá são: fá,
sol, dó, sol, sol, mi, sol, lá, mi, sol. A variação é uma das mais antigas estruturas
musicais, que, conforme Bennet (1986, p. 63), remonta o início da música
instrumental e se tornou popular no século XVI, principalmente por parte dos
compositores para instrumentos de teclado na Inglaterra dos Tudor, tendo
permanecido como uma forma predileta de compositores até a atualidade. Quanto
ao princípio da variação, Bennet (1986, p. 63) afirma:

Como tema, o compositor escolhe uma melodia relativamente


simples, fácil de memorizar, frequentemente com uma estrutura
binária ou ternária. Pode ser uma melodia bem-conhecida, como
uma melodia folclórica, uma melodia inventada pelo próprio
compositor ou até tomada de empréstimo a outro compositor. De
início, o tema é apresentado de forma relativamente direta. O
compositor então constrói sua peça repetindo a melodia tantas vezes
quantas quiser — mas alterando-a ou variando-a de alguma forma a
cada repetição.

Em carta a Mário, de 23 de maio de 1924, Bandeira faz referência ao


compositor e pianista norte-americano Louis Moreau Gottschalk (1829-1869),
considerado o ―[...] precursor na incorporação de ritmos e melodias caribenhas,
latinas e folclóricas creolas à música erudita.‖ (MORAES, 2001, p. 127, nota 24).
Relata ainda: ―Eu atribuía a predileção de Chopin ao fato de ter o discípulo
Gottschalk iniciado, por assim dizer, o gosto da música pianística aqui.‖ (MORAES,
2001, p. 126). A discussão nessa carta reforça a hipótese de que Bandeira utiliza a
variação em seu projeto, isso porque Gottschalk compôs Variações sobre o Hino
Nacional Brasileiro.

119
Depreendemos que Bandeira defende, acima de tudo, a música da vida, a
musicalidade brotada dos elementos simples. Por isso, privilegia os ritmos
germinados das tradições folclóricas, sejam elas nacionais ou estrangeiras. Prima
por uma espécie de musicalidade que possa propiciar graça, lirismo, leveza, humor
expressivo de subjetividade e emoção para além de uma teoria da poesia. Ritmos e
sonoridades são, para ele, a tradução da emoção poética.
Essa emoção é capaz de fundir em si mesma razão e emoção. Com isso,
cria-se o jogo harmônico dos contrários, em cujos polos gravita a tensão necessária
para restituir aos versos sua condição de libertação.
Como o próprio capítulo sugere, as cartas mostram vários pontos importantes
na trajetória de Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Por meio das conversas
travadas entre os dois escritores, observamos que, por meio dos fragmentos de
discursos, o projeto poético de Bandeira vai sendo revelado, principalmente em
relação aos fatos de linguagem, versificação e ritmos. As cartas, como observa
Salles, são ―documentos de processo‖ que ―contêm sempre a idéia de registro‖ ou
seja, são ―registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma
gênese que agem como índices do percurso criativo‖. Salles acrescenta que,
embora não tenhamos ―acesso direto ao fenômeno mental que os registros
materializam‖, tais registros ―podem ser considerados a forma física através da qual
esse fenômeno se manifesta‖, e são, portanto, ―vestígios vistos como testemunho
material de uma criação em processo‖ (SALLES, 2004, p. 17). Isso porque ―esses
documentos desempenham dois grandes papéis ao longo do processo criador:
armazenamento e experimentação.‖ (SALLES, 2004, p. 18). Quanto ao conceito de
armazenamento, Salles tece a ponte com o conceito de fragmentos de Novalis; e
quanto ao de experimentação, refere-se à ―natureza indutiva da criação‖. É função
do crítico rastrear as pegadas deixadas pelo autor.
Em relação ao ―projeto poético‖, Salles (2004, p. 37) informa que ―Em toda
prática criadora há fios condutores relacionados á produção de uma obra específica
que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo.‖ Passamos a
compreender melhor Manuel Bandeira no momento em que temos consciência de
que os ―princípios envoltos pela aura da singularidade do artista‖ constituem, assim,
os ―gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e
único.‖. Nesse sentido, ―o projeto estético, de caráter individual, está localizado em

120
um espaço e um tempo que inevitavelmente afetam o artista‖. Retomando a fala do
próprio Bandeira (apud. SALLES, 2004, p. 37), Salles registra: ―Somos duplamente
prisioneiros: de nós mesmos e do tempo em que vivemos‖.

121
Considerações Finais

Missiva, epístola, correspondência... seja qual for o nome dado à carta,


chegamos à conclusão de que guarda em suas dobras não só informações
pessoais, intimidades, confissões amorosas, mas também documentações
históricas, projetos, etc. A carta significa uma espécie de memória material (ou
resíduo de memória). Isso porque, ao registrar, o autor pode cometer lapsos ao
escrever uma data, um nome e mesmo uma letra. No momento em que registra, o
autor dialoga com um interlocutor. Nesse instante de descontração, pode revelar
fatos significantes sem mesmo saber o seu valor documental. Daí a força que esse
gênero representa na pesquisa científica e, especialmente, no campo literário. Esses
lapsos podem ser entendidos como pistas, para se depreender um processo, uma
gênese ou um pensamento.
O fascínio pelo misterioso universo da palavra escrita escondida nas dobras
dos discursos epistolares ainda continua atraindo leitores de todos os segmentos
sociais. Seja pelo simples prazer de ler as notícias de entes queridos, inteirarem-se
das questões relativas a assuntos corriqueiros, seja pelos documentos que as cartas
significam. Se gerações anteriores aguardavam ansiosas por suas cartas protegidas
pelo emblemático e sedutor envelope, as novas gerações continuam trocando as
mais variadas conversas em redes sociais. Do suporte do papel ao meio digital,
ainda assim confirma uma escrita de caráter fragmentário de memória.
Basta que se rompa o lacre para que venha a lume um pensamento, um
segredo, uma ideia. A carta não apenas revela, ela é uma espécie de guardiã em
estado constante de um vir a ser (Dasein) à espera daquele que venha lhe irromper
o laço que ata as duas pontas da história e, em seguida, tecer a ponte entre duas
vozes.
Este trabalho realizou recortes, especulações, leituras e releituras na tentativa
de mapear um percurso de Manuel Bandeira na sua empreitada poética.
Investigamos pontos relativos ao que poderia ser entendido como parte do projeto
poético ao qual ele se debruçou ao longo da vida. Uma vida intensa dedicada à
palavra. O número de seus poemas disputa lugar com o de crônicas e de
correspondências. Por esse motivo, optamos por verificar relações entre a produção
poética e o discurso epistolar.

122
Dessas análises e reflexões, observamos que, nas cartas trocadas com Mário
de Andrade, Bandeira deixa pistas valiosas de sua gênese literária. Fixamo-nos em
dois pontos relevantes, constitutivos do projeto poético: o modo como opera a língua
em seus versos e o caráter musical dos ritmos e da sonoridade pretendida pelo
poeta. No momento em que decidimos nos ater a essas linhas de investigação,
começamos a analisar os pontos convergentes e divergentes que se apresentavam
aos exames e interpretações. Observamos o que ele escreveu nas cartas e o modo
como operou a linguagem em seus versos para criar sua lírica. Em caminho inverso,
mesmo sem dizer, depreendemos aquilo que critica nos poemas e a forma poética
dos discursos nas cartas.
Nos discursos epistolares tecidos com Mário, Bandeira permite-nos
compreender que em sua poesia o diálogo com a tradição é fator relevante, pois se
desdobra em relações com o passado, especificamente, com a musicalidade. Para
isso, ele busca nas tradições orais e nos recursos da linguagem um modo de
construir o jogo no qual o leitor é também participante. Uma espécie de aproximação
com esse leitor. Em seus discursos com Mário acerca da língua, deixa transparecer
aspectos importantes de seu projeto poético como nos debates sobre a
sistematização da língua e suas contradições, o uso de neologismos e paráfrases e
a precisão de imagens por meio da síntese da linguagem. Além disso, revela que na
poesia é possível a imitação desde que ela seja consciente e inventiva. Bandeira
também evidencia a preferência por um lirismo que prime pela flexibilidade sintática
e rítmica, sem exageros de rimas e ―ecos coloridos‖. Discute com Mário questões de
fonética, de semântica e de estilo, bem como argumenta sobre ―desvario gongórico‖,
lógica da linguagem, prosaísmo, etimologia.
Ao mesmo tempo em que estuda os aspectos da linguagem, por meio de
pesquisas e consultas a Mário e aos amigos, busca entender os elementos da
música como verso, ritmo, harmonia e técnicas de composição musical como, por
exemplo, as variações rítmicas melódicas e temáticas. Assim como discute, nas
cartas, temas sobre música erudita, popular e folclórica, procura realizá-los em seus
versos, muitas vezes recuperando o universo infantil. Ao se aproximar e se
identificar com a teoria musical, mesmo se colocando como leigo nesse assunto,
conseguiu compreender muito do que Mário e Villa-Lobos lhe apresentavam.
Destarte, experimenta em seus versos uma variedade de ritmos e musicalidade

123
tanto da música erudita quanto da popular e folclórica. Em uma espécie de jogo,
funde esses dois gêneros e cria um lirismo singular. Por meio das análises e
comparações, descortinamos diferentes ritmos e estilos no conjunto de sua obra:
polca, sonata, maxixe, cantigas populares como as trovas, balada, rondó, samba,
além de outros. Nesses experimentos, mescla combinações rítmicas e melódicas,
que representam uma maneira de recriar uma lírica própria.
Nas discussões travadas com Mário de Andrade, depreendemos divergências
ideológicas e de estilos no interior do próprio grupo de intelectuais de que
participavam: Bandeira e Mário pertenciam ao grupo dos paulistas. As cartas
permitem observar rupturas entre eles, indicando que não se pode pensar em
Modernismo brasileiro, mas, sobretudo, Modernismos. Até mesmo entre Mário e
Bandeira há diferenças de estilo e de propostas, que são discutidas nas
correspondências. Mesmo assim, ambos respeitam a posição um do outro; opinam,
discutem, aconselham-se. Muitas vezes, essas discussões alongam-se por várias
missivas. Nesses discursos epistolares, notamos, também, diferentes propostas
entre os dois e os amigos, como Ribeiro Couto, Oswald de Andrade, Monteiro
Lobato, Villa-Lobos. No entanto, há uma coexistência pacífica em relação aos
interesses de cada membro.
Na primeira parte desta dissertação, os capítulos 1 e 2, que tratam do
momento historiográfico e da vida do poeta, contribuem para percebermos a
multiplicidade de estilos em Bandeira. A amizade estabelecida com personalidades
de áreas distintas, dentre elas músicos, compositores, artistas plásticos, linguistas,
antropólogos e arquitetos é fator relevante em sua formação. É nos diálogos com
essas pessoas que vai se formando o poeta do cotidiano. Bandeira buscava
apreender especificidades e técnicas dessas outras áreas do conhecimento não
somente com o intuito de copiá-las ou empregá-las em sua técnica. Nessa busca,
havia um propósito: entender o processo de construção para, em seguida, ao
empregá-lo em seus versos, ter a capacidade de desconstruí-lo. Nesse sentido,
podemos dizer que ele é um poeta da desconstrução. Desconstruir não no sentido
de aniquilar, mas reconstruir pelo avesso, por meio da inversão ou da mescla.
Os estudos dessas cartas possibilitaram-nos adentrar a intimidade de
Bandeira e Mário. Embora a organização de Moraes esteja direcionada à pesquisa
do projeto do escritor paulista, ela também possibilita, nas entrelinhas, por meio do

124
discurso e do silêncio, uma espécie de imersão no pensamento do poeta recifense.
Por conseguinte, descortina-se a gênese de parte do projeto poético bandeiriano,
permitindo-nos analisar a estrutura de sua obra. Em outros termos, podemos
depreender as bases de sua obra poética pelo discurso das epístolas. Ao recriar o
ritmo do rondó, por exemplo, Bandeira faz uma variação dentro do próprio ritmo,
deslocando a acentuação tônica das sílabas métricas. Nas análises dos sonetos,
observamos que, embora a forma se mantenha, o tema varia, assim como varia o
ritmo: no mesmo poema, ele experimenta o ritmo heróico e sáfico. Ou mesmo, tenta
quebrar os decassílabos, forçando o verso de dez para onze sílabas métricas. É um
jogo com a forma e o conteúdo. Embora a forma seja buscada da tradição clássica,
a temática moderna e a linguagem prosaica tornam-se a via para ele desconstruir
essa tradição, dando-lhe uma nova roupagem.
Nesse sentido, a força lírica de Bandeira brota da flexibilidade de composição
de elementos como formas, linguagem, ritmo e musicalidade. Preferimos ―brotar‖ e
não ―surgir‖, porque o primeiro termo revela muito mais proximidade com o elemento
terra. A poética de Bandeira é bem isso, um brotar da terra, cuja oralidade remete à
ancestralidade do homem, cujas imagens aparentemente grotescas revestem-se da
aura poética. Exemplo disso são ―Os sapos‖, os ―Burrinhos‖ descadeirados, o
porquinho-da-índia, os balõezinhos, a feira, o camelô, a preta Irene que pede licença
a São Pedro bonachão, ao médico que solicita ao paciente que dance um tango
argentino, como última coisa a se fazer na vida.
Apesar de não ter sido uma pessoa engajada politicamente na literatura de
combate, como foi Mário, Bandeira esteve em sintonia com seu tempo. Soube captar
em seus versos um Brasil ainda por ser descoberto, como já assinalavam os amigos
Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Percebeu as disparidades existentes
dentro dos movimentos modernistas, e, como crítico, foi muitas vezes implacável
com os amigos e consigo mesmo. Refletiu sobre sua própria escrita, por isso, muitas
vezes, recorria a Mário para obter sugestões e críticas. Embora nem sempre
cedesse aos julgamentos do amigo, demonstrou-lhe respeito e admiração. Como
crítico, também esteve atento aos novos escritores que surgiam.
Nós, leitores, colocamo-nos como espectadores e personagens conduzidos a
esse universo poético. Somos levados a experimentar novamente nossa infância.
Uma infância construída nos versos por sensações múltiplas como comicidade,

125
graciosidade chapliniana, melancolia, humor. Nessa poesia tecida pela linguagem
trivial, experimentamos um pouco de humanismo. A leitura das cartas e da poesia de
Bandeira nos faz sentir um pouco mais libertos. Dos versos bandeirianos, emana
uma sensação de leveza e ternura. Depois da leitura, a sensação é a de que ela nos
põe de volta à realidade mais preparados para suportarmos o nosso fardo. Isso
porque o lirismo de Bandeira aponta para uma postura libertária como a dos loucos
e dos clowns.
Manuel Bandeira permite-nos compreender, por meio de seus discursos
epistolares e de seus versos, o que podemos considerar seu projeto poético. Suas
cartas são pistas, uma espécie de fragmentos de memórias ou resíduos. Para isso,
é necessário juntar esses estilhaços, organizá-los cuidadosamente, combiná-los
como peças de um grande jogo. A riqueza do gênero carta é indiscutível, melhor
ainda quando ela nos permite adentrar e experimentar a gênese de criação de um
escritor. Bandeira é um desses clássicos, já que nos instiga sempre a retornar à
leitura e análise de seus versos e de suas cartas. Apesar de haver muito ainda a ser
desvendado, o certo é que nesta pesquisa tivemos a oportunidade de aprender um
pouco mais com ele e sobre ele. Aprendemos, sobretudo, com suas cartas e com
seus poemas. Passado quase meio século de sua morte, sua poesia continua ainda
sendo objeto de estudo e curiosidade. É sempre uma experiência que se revela no
duplo, no embate, cuja tensão provoca uma espécie de graciosidade lírica. Portanto,
como uma forma de respeito e agradecimento, calemo-nos aqui e deixemos que o
próprio poeta fale sobre essa experiência:

Tive com Mário de Andrade uma correspondência epistolar


que se iniciou em 1922 e se prolongou sem interrupção até sua
morte. Mário escreveu milhares de cartas. Nunca deixou carta sem
resposta. Creio, no entanto, que as da nossa correspondência têm
importância especial, porque comigo ele se abria em toda confiança,
de sorte que estas cartas valem por um retrato de corpo inteiro,
absolutamente fiel. [...] Discutíamos. Eram longas missivas
―pensamenteadas‖, como certa vez ele as qualificou. Mesmo sem se
ter conhecimento de minhas, percebe-se claramente todas as minhas
contraditas e reservas, tal a ordem que Mário punha na exposição de
nosso debate. [...] outra coisa que vemos largamente esclarecida
nesta correspondência é o caso da língua. Sempre fui partidário do
abrasileiramento do nosso português literário, de sorte que aceitava
em princípio a iniciativa de Mário. Mas discordava dele
profundamente em sua sistematização [...] (MORAES, 2001, p. 681)

126
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