Sei sulla pagina 1di 98

PETER CAMENZIND

Herman Hesse

PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE

Digitalização e Arranjo

Júlia Vieira
Agostinho Costa

Este livro foi digitalizado para


ser lido por Deficientes Visuais

«Agora, ao olhar e meditar nas minhas viagens e tentativas na vida, sinto alegria
e irritação por viver também em mim a velha experiência de que os peixes
pertencem à água e os camponeses à terra, e que um Camenzind de Nimikon,
apesar de todas as suas artes, não pode transformar-se num homem da cidade
ou do mundo.»
Assim se conclui a história da formação do jovem Peter Camenzind, um aldeão
à descoberta das glórias e misérias da vida moderna, até ao momento em que o
círculo se fecha e ele regressa, num derradeiro apaziguamento, à sua terra
natal.

«Em Peter Camezind Herman Hesse justapõe à parábola do filho pródigo o mito
da viagem iniciática. Uma história inspirada, contada num tom de rara beleza do
grande escritor alemão que foi Prémio Nobel de Literatura 1946.»

HERMAN HESSE

PETER CAMENZIND

3ª EDIÇÃO

TRADUÇÃO DE ISABEL ALMEIDA E SOUSA

PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE

(Neste livro a paginação é inferior)


1.

No princípio, era o mito. E assim como o grande Deus fazia poesia na alma dos
hindus, gregos e germanos, procurando expressar-se, assim de novo ele faz
poesia, dia após dia, na alma de cada criança. Então, eu ainda não sabia como
se chamavam o lago, os montes e ribeiros da minha terra; mas olhava a
vastidão lisa, verde-azul do lago ao Sol, recamada de pequenas luzes, as
montanhas abruptas em redor, como uma corda espessa, nas gargantas mais
elevadas, as falhas reluzentes de neve e as pequenas, minúsculas quedas de
água, e no sopé as luminosas veigas salpicadas de árvores de fruto, cabanas e
vacas cinzentas dos Alpes. E estando a minha pobre pequena alma tão vazia,
silenciosa e anelante, os espíritos do lago e das montanhas escreveram nela os
seus belos e ousados feitos. As hirsutas escarpas e rochas falavam, insistentes
e plenas de respeito, dos tempos de que descendem e trazem as cicatrizes.
Falavam do tempo em que a Terra quebrava e vergava e, do seu seio
atormentado, gemendo nas dores do parto, fazia irromper picos e cristas.
Montanhas de rocha erguiam-se bramindo e retumbando e, aguçando-se sem
medida, partiam; montes gémeos lutavam desesperadamente por espaço, até
que um deles vencia, e se elevava, e lançava o seu irmão para o lado,
despedaçando-o. Desde esses tempos, nos desfiladeiros, jaziam ainda aqui e
além, cumes partidos, rochas expelidas e fendidas, e de cada vez que a neve
derretia, a queda das águas lançava para baixo blocos tão grandes como casas,
estilhaçava-os como vidro ou, com golpes colossais, cravava-os profundamente
em veigas macias.
Estes blocos de rocha diziam sempre o mesmo. E era fácil compreendê-los,

ao ver as suas escarpas abruptas, camada sobre camada, quebradas,


retorcidas, rebentadas, cada qual repleta de feridas vivas.
- Sofremos horrores - diziam eles - e continuamos a sofrê-los.
Mas diziam-no com orgulho, austeros e retesados, como velhos guerreiros
invencíveis.
Guerreiros, sim. Eu via-os lutar com a água e os ventos, nas tremendas noites
dos fins de Inverno, quando o exasperado foehn (1) bramia em torno das suas
velhas cãs, e quando as torrentes dos ribeiros arrancavam novos pedaços
ásperos dos seus flancos. Nessas noites, mantinham-se de pé, de raízes
tenazmente fincadas, soturnos, sem respirar; crispados, expunham à
tempestade as escarpas e picos fendidos do temporal, e retesavam todas as
forças, em obstinado recolhimento. E a cada ferida, lançavam o pavoroso
ribombar da cólera e do medo, e por todos os mais longínquos aludes, abafado
e irado, soava de novo o seu pavoroso gemido.
E eu via veigas e taludes e frinchas de rochas cobertas de ervas, flores e
musgos, a que a antiga voz do povo havia dado notáveis nomes cheios de
premunição. Filhas e netas das montanhas, elas habitavam, coloridas e
cândidas, as suas moradas. Eu tocava-as, observava-as, aspirava o seu aroma
e aprendia-lhes os nomes. Mais severa e profundamente, impressionava-me a
visão das árvores. Via cada uma delas fazer a sua vida, criar a sua forma e copa
particulares, e lançar a sua sombra própria. Pareciam-me eremitas e
combatentes, mais aparentadas às montanhas, pois cada uma delas,
especialmente as que se erguiam no alto dos montes, travava a sua silenciosa e
tenaz batalha pela existência e crescimento, contra ventos, tempestades e
rochas. Cada uma tinha de carregar o seu peso e cravar-se firmemente, e daí
advinha a cada uma a sua forma específica e feridas particulares. Havia
pinheiros bravos a que a tempestade apenas permitira manter um dos seus
ramos, e outros cujos troncos vermelhos se haviam retorcido como serpentes
sobre rochas proeminentes, de forma que a árvore e a rocha se apertavam uma
contra a outra, amparando-se. Olhavam-me como homens aguerridos e
infundiam receio e respeito no meu coração.
Mas os nossos homens e mulheres assemelhavam-se-lhes, eram rijos,
asperamente enrugados, parcos em palavras, quanto melhores tanto mais
parcos.

*1. Vento quente e seco dos Alpes Suíços e Austríacos. (N. da T).

10

Aprendi assim a olhar os homens como árvores ou rochas, a pensar sobre eles,
a respeitá-los, nem menos, nem mais que aos silentes pinheiros.
A nossa aldeiazinha de Nimikon fica situada numa faixa triangular junto ao lago,
entalada e pendente entre dois flancos de montes. Um caminho conduz ao
convento próximo, um outro a uma aldeia vizinha, distante quatro horas e meia;
as outras aldeias junto ao lago alcançam-se pela água. As nossas casas são de
madeira, construídas no velho estilo, e não têm idade determinada; quase não
aparecem construções novas, e as velhas casinhas são reparadas por partes,
segundo as necessidades, este ano os soalhos, noutra vez um pedaço do
telhado; e alguma metade de viga ou prancha que pertencia, talvez, à parede do
quarto, encontra-se agora de reserva no forro, e ainda que não mais sirva para o
mesmo, sendo boa em demasia para queimar, usar-se-á no próximo arranjo do
estábulo ou do palheiro, ou como travessa na porta da casa. O mesmo se passa
com os que habitam lá dentro: cada qual desempenha o seu papel enquanto
pode, entra depois, renitentemente, no círculo dos inúteis, e mergulha por fim
nas trevas, sem que isso provoque grande alarido. Aquele que, após uma
ausência de anos, regressa para junto de nós, não encontra maiores mudanças
que uns telhados velhos renovados e outros novos envelhecidos; os antigos
anciãos finaram-se, mas há outros anciãos que habitam o mesmo casebre,
usam os mesmos nomes, olham pelo mesmo rancho de crianças de cabelos
escuros, os quais, no rosto e nos modos, mal se distinguem dos entretanto
falecidos.
A nossa freguesia carecia de um afluxo mais frequente de sangue fresco e vida
do exterior. Os habitantes, uma raça aceitavelmente robusta, são quase todos
estreitamente aparentados, e uns bons três quartos usam o nome Camenzind.
Ele enche as páginas do livro de registo paroquial e vê-se nas cruzes do
cemitério, sobressai nas casas a tinta de óleo, ou num grosseiro trabalho de
talha, e lia-se no carro do carroceiro, nos baldes dos estábulos e nos barcos do
lago. Também sobre a porta da casa de meu pai estava pintado: «Esta casa foi
construída por Justo e Francisca Camenzind», contudo, isso não se referia a
meu pai, mas ao seu avô, o meu bisavô; e ainda que eu, como é provável,
venha a morrer sem deixar filhos, sei que de novo um Camenzind ocupará o
velho ninho, se acaso estiver de pé ainda e tiver um telhado a cobri-lo.

11

Apesar da aparente monotonia, havia, contudo, na nossa comunidade, maus e


bons, nobres e medíocres, poderosos e pequenos, e a par de alguns espertos,
também um divertido pequeno grupo de tolos, sem falar já dos cretinos. Como
em toda a parte, era uma pequena imagem do vasto mundo, e pois que grandes
e pequenos, espertalhões e tolos estavam indissoluvelmente ligados por laços
familiares e parentesco, pisavam-se mutuamente em azeda soberba e estúpida
imprudência, não raro sob o mesmo tecto, de forma que a nossa vida oferecia
vasto campo à profundidade e ao cómico do humano. Contudo, um eterno véu
de dissimulada ou inconsciente opressão poisava sobre tudo isto. A dependência
das forças da natureza e a carga de uma existência repleta de trabalhos, com o
rolar dos tempos, tinham emprestado à nossa comunidade, já de si envelhecida,
uma tendência para a melancolia, que embora não quadrasse mal aos rostos
ásperos e rudes, não produzia, porém, qualquer tipo de frutos ou, pelo menos,
que fossem satisfatórios. Precisamente por isto, alegrávamo-nos pelos poucos
tolos que, sendo suficientemente sossegados e sérios, traziam no entanto algum
colorido e ocasião de riso e zombaria. Quando algum deles, por uma nova
travessura, fazia que se falasse nele, perpassava um relampejar sobre os rostos
enrugados e tisnados dos filhos de Nimikon, e ao gáudio do próprio gracejo,
juntava-se ainda o delicado condimento do saborear farisaico da própria
superioridade, restalejando de prazer por sentir-se ao abrigo de tais erros e
asneiras. Àqueles, inúmeros, que se achavam a meio, entre justos e pecadores,
e que com gosto participariam das prerrogativas de ambos, pertencia também o
meu pai. Não amadurecia partida atrevida que o não enchesse de ditosa
excitação e, então, ele vacilava comicamente entre a admiração pelo instigador
e a mais rotunda consciência da própria integridade.
Ao próprio grupo dos tolos, pertencia o meu tio Conrado, sem que, por isso, em
inteligência, ficasse o que quer que fosse atrás de meu pai ou de outros heróis.
Pelo contrário, ele era um espertalhão, impelido por um espírito inventivo
incansável, pelo qual os outros bem poderiam invejá-lo. Mas de facto, nada lhe
saía bem. O facto de ele não deixar pender a cabeça por isso e não se tornar
inactivo e melancólico, de encetar sempre novas coisas e nisto ter uma
percepção notavelmente viva do tragicómico das suas iniciativas, era sem
dúvida uma prerrogativa,
12

mas era-lhe imputado como singularidade ridícula, pelo que ficava incluído entre
os bufões gratuitos da comunidade. A relação de meu pai com ele era de um
constante oscilar entre a admiração e o desprezo. Cada projecto novo do seu
cunhado, colocava-o num estado de violenta curiosidade e excitação, que em
vão procurava ocultar sob perguntas e alusões irónicas com que o espiava.
Quando o tio se julgava certo do seu êxito e começava a fazer-se de
espertalhão, ele deixava-se convencer e associava-se ao génio em especulativa
fraternidade, até que chegava o impreterível malogro, a que o tio encolhia os
ombros, ao passo que o pai, cheio de cólera, o cobria de desdém e injúrias, e
durante meses a fio não lhe concedia nem mais um olhar ou palavra.
Era a Conrado que a nossa aldeia devia a primeira visão de um barco à vela, e
foi o barquito de meu pai que teve de prestar-se a isso. A vela e o cordame
foram executados com perfeição pelo tio segundo xilogravuras de calendários, e
o facto de o nosso barquito ter sido construído demasiado estreito para um
barco à vela, no fundo, não era culpa de Conrado. Os preparativos demoraram
várias semanas; o meu pai ficou sobre brasas pela excitação, ansiedade e
medo, e até no resto da aldeia se falava essencialmente do novo projecto de
Conrado Camenzind.
Foi para nós um dia memorável aquele em que o barco, numa manhã ventosa
de fins de Verão, pela primeira vez, seria lançado ao rio. O meu pai, no receoso
pressentimento duma possível catástrofe, manteve-se afastado, e a mim, para
minha grande desolação, proibiu-me de ir no barco. O filho do padeiro, Fuessli,
acompanhou sozinho o mestre de vela. Mas a aldeia estava toda sobre a nossa
praia de cascalho e no pequeno jardim, e presenciou o inaudito espectáculo.
Soprava um vento rápido de Leste, lago abaixo. De início, o padeiro teve de
remar até o barco entrar na brisa, enfunar a vela e desaparecer orgulhosamente,
a toda a brida. Maravilhados, vimo-lo sumir-se por detrás do flanco do monte
seguinte, e preparávamo-nos para felicitar como vencedor o astuto tio aquando
do seu regresso e envergonhar-nos dos nossos pensamentos maldosos.
Contudo, quando o barco regressou, à noite, já não tinha vela, os barqueiros
estavam mais mortos que vivos, e o filho do padeiro tossiu e disse:
- Perdeste uma boa festança; por um triz, não houve dois banquetes de funeral
neste domingo.

13

O meu pai teve de colocar duas pranchas novas no barco e, desde então, nunca
mais uma vela se espelhou na superfície azul. Durante muito tempo, sempre que
Conrado tinha pressa nalguma coisa, atiravam-lhe:
- Tens de pôr a vela, Conrado.
O meu pai engoliu a fúria e, durante longo tempo, sempre que o pobre cunhado
passava por ele, olhava para o lado e cuspia num grande arco, em sinal de
indizível desdém. Isso durou até que, certo dia, Conrado lhe apresentou o seu
projecto de forno à prova de fogo, que trouxe ao inventor enorme troça e custou
ao meu pai quatro sonantes táleres. Ai de quem ousasse recordar-lhe esta
história dos quatro táleres! Muito mais tarde, quando, certa vez, houve de novo
carências em casa, a mãe comentou que seria bom que o dinheiro gasto
pecaminosamente ainda ali estivesse. O pai ficou vermelho-escuro até ao
pescoço, mas dominou-se e disse apenas:
- Prouvera que os tivesse bebido num só domingo.
No final daquele Inverno, veio o foehn com o seu rugido cavo, que o alpino ouve
com tremor e horror, e pelo qual, estando longe, anseia com pungente saudade.
Quando o foehn se avizinha, sentem-no muitas horas antes os homens e
mulheres, montes, animais bravios e gados. A sua chegada, quase sempre
anunciada por frios ventos contrários, prenuncia uma ventania profunda e
quente. O lago
azul-esverdeado torna-se, por momentos, negro como breu, e ergue, de súbito,
irrequietas cristas brancas de espuma. Pouco depois, aquele que há minutos
ainda jazia pacífico e silencioso, ruge com exasperada ressaca, como o mar
contra a costa. Logo toda a natureza se encolhe amedrontada. Nos cumes que,
normalmente, tostavam ao longe, podem agora contar-se as rochas, e nas
aldeias que habitualmente se avistavam à distância, apenas como manchas
cinzentas, distinguem-se agora telhados, empenas e janelas. Tudo se achegava,
montes, veigas e casas, como um rebanho assustado. E então, começa o
ribombar rancoroso, o estremecer do chão. As ondas do lago, fustigadas, são
levadas pelo ar como fumo e, sem cessar, especialmente durante a noite, ouve-
se o combate desesperado entre a tempestade e as montanhas. Pouco tempo
mais tarde, espalha-se então pelas aldeias a notícia de ribeiros que
transbordaram, casas abatidas, botes desfeitos e pais e irmãos desaparecidos.

14

Nos meus tempos de infância, eu receava o foehn, odiava-o mesmo. Mas com o
despertar do furor da juventude, comecei a amá-lo, àquele rebelde, o
eternamente jovem, o lutador insolente que trazia a Primavera. Era maravilhoso
como ele, pleno de vida, de exaltação e esperança, iniciava a sua batalha
selvática, trovejando, rindo e gemendo, como ele passava uivando pelos
desfiladeiros, devorava a neve dos montes e, com mãos rudes, vergava os
tenazes pinheiros velhos fazendo-os gemer. Mais tarde, aprofundei o meu amor
e, no foehn, eu saudava então o doce, belo e superabundante Sul, de onde
brotavam renovadas torrentes de desejo, calor e beleza, para se despedaçarem
nas montanhas e, por fim, emurchecerem no Norte plano e frio. Não há coisa
mais estranha e maravilhosa que a doce febre do foehn, que a seu tempo
assalta as gentes das montanhas, especialmente as mulheres, que rouba o sono
e com um afago inflama todos os sentidos. Isto é o Sul que, intempestivo e
flamejante, se lança sempre de novo ao peito do áspero e pobre Norte, e
anuncia às aldeias dos Alpes cobertas de neve, que já nos lagos purpúreos das
terras do Romando, as prímulas, os narcisos e os ramos de amendoeira
florescem de novo.
Depois, quando o foehn deixou já de soprar e os últimos aludes sujos
terminaram de rolar, vem então o mais belo. Por todos os lados, estiram-se,
montanha acima, as floridas veigas amareladas e, nos cumes, puros e felizes,
os picos de neve e glaciares; o lago torna-se azul e quente, e espelha de novo o
Sol e o passar das nuvens.
Tudo isto pode preencher já uma infância e, se necessário, uma vida até. Porque
tudo isto proclama, alto e com vigor, a voz de Deus, como nunca ela perpassou
pelos lábios de um humano. Quem assim a escutou na sua infância, ouvi-la-á
ecoar pela vida fora, doce, vigorosa e terrível, e nunca escapará ao seu
encantamento. Quem seja natural das montanhas, poderá, durante anos,
estudar filosofia ou história natural, e pôr de lado o velho Deus: se de novo ele
sentir ou escutar um alude romper por entre as árvores, o coração estremecer-
lhe-á no peito e pensará em Deus e na morte.
Junto à casita de meu pai havia um minúsculo jardim vedado. Crescia ali uma
alface áspera, cenouras e couves. Além disso, a mãe tinha plantado um alegrete
perfumado e enternecedoramente estreito para flores onde estiolavam,
miseravelmente e sem esperança, dois pés de rosas estivais, um pé de dália e
umas quantas resedas. Com o jardim, confinava uma faixa de cascalho ainda
mais estreita, que ia até ao lago.

15

Havia ali dois barris estragados, algumas tábuas e barrotes e, ao fundo, na


água, estava preso o nosso barquito, que então ainda era reparado e betumado
de dois em dois anos. Os dias em que isso sucedia ficaram-me gravados na
memória. Eram tardes quentes de início de Verão, sobre o jardinzinho
esvoaçavam ao Sol as borboletas amarelo de enxofre, o lago estava azul, liso e
nacarado, cintilando suave e levemente; sobre os cumes dos montes havia uma
ténue névoa e, na pequena praia de cascalho, um cheiro forte a betume e tinta
de óleo. E depois ainda, durante todo o Verão, o bote exalava um perfume de
alcatrão. Sempre que, muitos anos mais tarde, algures junto ao mar, me veio ao
nariz o aroma peculiar, misto de cheiro de água e vapores de alcatrão, surgia-me
logo diante dos olhos a nossa praiazinha do lago, e eu via de novo o pai em
mangas de camisa, brandindo o pincel, via as nuvenzinhas azuladas subir do
seu cachimbo pelo calmo ar estival, e as borboletas relampejar amarelas nos
seus voltejos inseguros e tímidos. Nesses dias, o meu pai mostrava um
extraordinário bom humor, assobiava melodias, coisa que fazia primorosamente,
e soltava até um eventual iodler (1) curto e desgarrado, mas este apenas a meia
voz. A mãe cozinhava então alguma coisa saborosa para a noite, e penso agora
que o fazia na contida esperança de que o Camenzind, naquela noite, não fosse
para a taberna. Mas ele lá acabava por ir.
Não posso afirmar que os meus pais tenham estimulado especialmente ou
perturbado o desenvolvimento da minha jovem índole. A mãe não tinha mãos a
medir com trabalho, e o meu pai, por certo, nunca se debruçara tão pouco sobre
o que quer que fosse como sobre questões de educação. Ele tinha afazeres
suficientes com o manter da sua meia dúzia de árvores de fruto num estado
lastimoso, cuidar da leirita das batatas e tratar do feno. Mas de duas em duas
semanas, à noite, ele pegava-me pela mão antes de sair, e desaparecia comigo
em silêncio no campo de feno que ficava por trás do estábulo. Ali, cumpria-se
então uma estranha cena de punição e expiação: eu recebia uma valente tareia,
sem que o meu pai ou eu soubéssemos exactamente porquê. Eram sacrifícios
silenciosos no altar de Némesis, oferecidos sem ralhos da sua parte ou gritos do
meu lado, como tributo devido a um misterioso poder.

*1. Iodler - música de modulações guturais, característica do Tirol e dos Alpes


Suíços. (N.T.)

16

Sempre que, em anos posteriores, eu ouvia falar do destino cego, estas cenas
misteriosas vinham-me à memória e pareciam-me uma representação
sobremaneira plástica deste conceito. Sem o saber, o bom do meu pai seguia
aqui a pedagogia simples que a própria vida costuma usar para connosco, ao
fazer cair, de um céu estrelado, raios e coriscos sobre nós, deixando à nossa
conta o meditar sobre com que delitos, afinal, provocámos os poderes
supremos. Infelizmente, esta meditação nunca, ou só raras vezes, se iniciava
em mim, antes eu aceitava resignadamente aquele castigo a goles, sem a
desejável autocrítica ou mesmo com obstinação; em tais noites, alegrava-me
sempre por, uma vez mais, estar saldado o meu tributo, e ter diante de mim duas
semanas livres de punição. Mas foi com muito maior independência que
enfrentei os esforços do meu velho para me iniciar no trabalho. A natureza
incompreensível e esbanjadora havia reunido em mim dois dons contraditórios:
uma força física incomum e uma não menor repulsa pelo trabalho. O pai
envidava todos os esforços para fazer de mim um filho útil e um colaborador,
mas eu esquivava-me com todas as trapaças ao trabalho que me era imposto;
mesmo no liceu, não havia herói da antiguidade pelo qual eu sentisse tanta
comiseração como por Hércules, por ele ter sido forçado àqueles famosos
trabalhos árduos. Entretanto, eu não conhecia nada de mais belo que vaguear
ociosamente por sobre as rochas e veigas, ou junto à água.
Montanhas, lago, tempestade e Sol, eram esses os meus amigos, que me
falavam e educavam, e durante longo tempo me foram mais caros e mais
profundamente conhecidos que qualquer pessoa ou destino humano. Os meus
eleitos, todavia, os que eu preferia ao lago espelhado e aos tristes ventos
quentes e rochas ensolaradas, eram as nuvens.
Mostrai-me por esse vasto mundo o homem que melhor conheça ou mais ame
as nuvens que eu! Ou mostrai-me a coisa deste mundo que seja mais bela que
as nuvens! Elas são brinquedo e consolo do olhar, são bênção e dom de Deus,
são a cólera e o poder da morte. Elas são delicadas, suaves e calmas como as
almas dos
recém-nascidos, são belas, ricas e dispensadoras como anjos bons, são negras,
irrevogáveis e fatais como os mensageiros da morte. Elas pairam prateadas em
ténues camadas, vogam ridentes, brancas com bordos doirados, elas param
para repousar com cores amarelas, vermelhas e azuladas. Elas avançam
soturnas e lentas como assassinos, galopam desenfreadas, de cabeça erguida,
como cavaleiros loucos, pendem tristes e sonhadoras em pálidas alturas como
melancólicos eremitas.

17

Elas têm a forma de ilhas maravilhosas e de anjos a abençoar, assemelham-se


a mãos ameaçadoras, velas adejando, grous em migração. Pairam entre o céu
divino e a pobre terra, quais belas metáforas da nostalgia humana, pertencendo
a ambos - sonhos da terra, em que esta roça a sua alma conspurcada no céu
puro. Elas são a imagem eterna de todo o caminhar, da busca, da ânsia e da
saudade do lar. E assim como elas pendem entre a terra e o céu, apreensivas,
ansiosas e obstinadas, assim pendem apreensivas, ansiosas e obstinadas as
almas dos homens, entre o tempo e a eternidade.
Oh, as nuvens, belas, pairando, sem repouso! Eu era uma criança ignorante, e
amava-as, olhava-as e não sabia que também eu atravessaria a vida como uma
nuvem - caminhante, por toda a parte um estranho, pairando entre o tempo e a
eternidade. Desde a infância que elas foram para mim queridas amigas e irmãs.
Eu não consigo passar pelas ruas que logo nos não acenemos,
cumprimentemos e, por um momento, fitemos olhos nos olhos. E também não
esqueci o que então aprendi com elas: as suas formas, as suas cores, os seus
traços, os seus jogos, danças de roda, bailes e repousos, e as suas singulares
histórias a um tempo terrenas e celestes.
Por exemplo, a história da Princesa da Neve. O seu cenário é a montanha
média, nos inícios do Inverno, com ventos quentes rasantes. A Princesa da Neve
surge com um pequeno séquito, vinda de enormes alturas, e procura um local de
repouso em vales largos de montanha, ou sobre um cume arredondado. Cheia
de inveja, a traiçoeira ventania do Leste vê a inocente deitar-se, lambe,
dissimuladamente, montanha acima, e ataca-a, furiosa, com grande bramido.
Lança contra a princesa trapos de nuvens esfarrapados, escarnece dela, grita-
lhe, quer escorraçá-la. Por um momento, a princesa fica desassossegada,
espera, suporta e, por vezes, sobe de novo para as suas alturas, meneando a
cabeça, silenciosa e escarnecendo. Outras vezes, contudo, ela reúne
subitamente em seu redor as amigas amedrontadas, desvenda o seu rosto
ofuscante e principesco, e repele o duende com um frio aceno de mão. Ele
vacila, uiva e foge. E ela deita-se em sossego, envolve o seu trono, largamente,
com uma névoa esbranquiçada, e quando a névoa se vai, os vales e os cimos
estão límpidos e brilhantes, cobertos de neve fresca, pura e macia.

18

Nesta história, havia algo de tão nobre, algo de tão espiritual, de triunfo da
beleza, que me encantava e tocava o meu pequeno coração como um alegre
mistério.
Em breve veio o tempo em que também eu pude aproximar-me das nuvens,
andar entre elas e contemplar de cima parte do seu rebanho. Tinha dez anos
quando subi ao primeiro cume, ao Sennalpstock, em cujo sopé jaz a nossa
aldeiazinha de Nimikon. Foi então que, pela primeira vez, vi os terrores e as
belezas das montanhas. Gargantas profundamente rasgadas, repletas de neve e
águas do degelo, glaciares com um vidrado verde, asquerosas morenas e, por
cima de tudo, como um sino, alto e redondo, o céu. Uma pessoa que tenha
vivido durante dez anos entalado entre uma montanha e um lago, assediada a
toda a volta por picos próximos, não esquecerá o dia em que, pela primeira vez,
teve por cima de si um céu extenso e, pela frente, um horizonte sem limites.
Logo durante a subida, fiquei espantado por as escarpas e superfícies de rocha
que tão bem conhecia lá de baixo, me surgirem tão desmesuradamente
grandes. E eis que, inteiramente subjugado por aquele momento, cheio de medo
e júbilo, via, de súbito, a tremenda vastidão penetrar em mim. Que
fabulosamente grande era, de facto, o mundo! Toda a nossa aldeia, perdida
agora lá no fundo, era apenas uma pequena mancha clara. Os cumes que de lá
de baixo se julgavam bem vizinhos, ficavam a muitas horas de distância.
Comecei então a pressentir que apenas tivera um pequeno vislumbre, que não
havia tido ainda uma visão alargada do mundo, e que, lá longe, se erguem
montes, e caem, e sucedem grandes coisas de que jamais chegará a mais leve
notícia ao nosso isolado buraco de montanha. E logo em mim algo estremeceu
como a agulha da bússola, com uma inconsciente atracção poderosa por
aquelas grandes distâncias. Só então compreendi também inteiramente a beleza
e a melancolia das nuvens, pois via que infindáveis distâncias elas percorriam.
Os meus dois acompanhantes adultos louvaram a minha boa escalada,
repousaram um pouco sobre o cume gélido, e riram com a minha alegria
desconcertante. Eu, porém, depois de passado o primeiro grande assombro, de
alegria e excitação, berrei alto como um touro pelos ares límpidos. Foi o meu
primeiro canto, inarticulado, à beleza. Esperava um eco estrondeante, mas o
meu grito soou nas alturas calmas sem deixar sinal, como um fraco pipilar.

19

Fiquei envergonhado, e mantive-me em silêncio.


Este dia quebrara qualquer gelo na minha vida. É que, agora, os acontecimentos
sucediam-se. Primeiro, levavam-me com frequência nas escaladas das
montanhas, mesmo que difíceis, e penetrei com uma estranha volúpia opressiva
os grandes mistérios das alturas. Seguidamente, fui escolhido para guardador
de cabras. Numa das encostas, onde costumava conduzir os meus animais,
havia um recanto protegido do vento, todo recoberto de gencianas azul-cobalto e
saxífragas de um vermelho suave, o lugar do mundo que mais me aprazia. Dali,
a aldeia não podia enxergar-se, e até mesmo do lago se vislumbrava apenas
uma pequena faixa brilhante por sobre as rochas; em seu lugar, as flores ardiam
em risonhas cores viçosas, o céu azul poisava como uma tenda sobre os
aguçados cumes de neve e, a par do delicado tinir das campainhas das cabras,
ressoava ininterrupta e não longe a queda de água. Ali, eu estendia-me ao calor,
observava as pequenas nuvens brancas e cantava iodler a meia voz, de mim
para mim, até que as cabras notavam o meu entorpecimento e faziam menção
de realizar as mais diversas travessuras e folias proibidas. Logo nas primeiras
semanas, a minha felicidade feácia sofreu um rude golpe, quando eu,
juntamente com uma cabra tresmalhada, me precipitei num desfiladeiro. A cabra
morreu e a mim doía-me a cabeça, além de que fui deploravelmente açoitado,
fugi aos meus velhos e me reconduziram a casa em meio de juras e
lamentações.
Estas aventuras facilmente poderiam ter sido as primeiras e as últimas. Então,
este livrinho teria ficado por escrever, e algumas outras aflições e loucuras não
se teriam dado. Eu teria provavelmente casado com uma qualquer prima, ou
talvez jazesse algures, gelado nas águas glaciares. E isso não teria sido mau.
Mas tudo sucedeu de forma diversa, e não me compete comparar o sucedido
com o não sucedido.
Ocasionalmente, o meu pai prestava pequenos serviços no mosteiro de
Welsdorf. Sucedeu que, certa vez, ele se encontrava doente e me ordenou que
o substituísse. Contudo, não o fiz, e pedi emprestados ao vizinho papel e uma
caneta, escrevi uma carta elegante aos irmãos do mosteiro, entreguei-a à
mulher do mensageiro e, de minha própria iniciativa, fui para a montanha.

20

Na semana seguinte, ao chegar certo dia a casa, encontro ali sentado um padre
à espera daquele que escrevera a linda carta. Eu sentia algum receio, mas ele
louvou-me e procurava convencer o meu velho a deixar-me ir aprender junto
dele. O tio Conrado, precisamente nessa ocasião, estava de novo em boas
graças e pediram-lhe opinião. Claro que ficou imediatamente entusiasmado com
a ideia, que eu tinha de ir aprender e mais tarde ser estudante e tornar-me num
sábio e num senhor. O pai deixou-se convencer e, assim, o meu futuro passou a
incluir-se entre os perigosos projectos do tio, tal como o forno à prova de fogo, o
barco à vela e inúmeras quimeras similares.
Demo-nos logo a um enorme estudo, nomeadamente em latim, história bíblica,
botânica e geografia. Tudo isto me entusiasmava muito, e eu nem pensava que
aquelas coisas latinas me custariam, talvez, a terra natal e belos anos. E decerto
não foi apenas o latim. O meu pai ter-me-ia feito um camponês, ainda que eu
soubesse de cor todo o De viris illustribus de trás para diante e de diante para
trás. Mas aquele homem inteligente havia-me perscrutado até ao âmago do meu
ser onde, como centro de gravidade e virtude cardeal, residia a minha invencível
indolência. Eu furtava-me ao trabalho onde quer que ele estivesse prestes a
iniciar-se e, em seu lugar, corria para os montes ou o lago, ou estendia-me
longe, escondido na encosta, lia, sonhava e preguiçava. Reconhecendo isto,
acabou por me deixar ir.
É ocasião de dizer umas curtas palavras acerca de meus pais. A mãe fora bonita
em tempos, mas disso apenas restava o porte firme e escorreito e os graciosos
olhos escuros. Ela era alta, muito vigorosa, trabalhadora e silenciosa. Apesar de
ser tão inteligente quanto o meu pai e o exceder em força física, não era quem
reinava na casa, senão que deixava o governo ao seu marido. Ele era de
estatura mediana, tinha membros delgados e quase delicados, e uma cabeça
casmurra e esperta com um rosto de cor clara, repleto de pequenas rugas
extremamente móveis. A estas, juntava-se ainda uma curta ruga perpendicular
na fronte, que escurecia sempre que ele movia as sobrancelhas, causando-lhe
um soturno ar sofredor; dava então a impressão de procurar lembrar-se de
alguma coisa muito importante, sem que ele mesmo tivesse esperanças de
jamais vir a recordá-lo. Poder-se-ia aperceber nele uma certa melancolia,

21

mas ninguém prestava atenção a isso, pois os habitantes da nossa região são
quase todos tomados de um leve e permanente abatimento de ânimo cuja causa
são os longos Invernos, os perigos, o esforço do dia-a-dia e o isolamento do
mundo.
Recebi de ambos os pais traços importantes do meu ser; da mãe, um discreto
sentido prático, um quanto de confiança em Deus e um modo de ser silencioso,
parco em palavras; do pai, pelo contrário, um receio das decisões firmes, a
incapacidade de administrar o dinheiro e a arte de beber muito e bem. Este
último traço, porém, não se manifestava ainda naquela tenra idade.
Externamente, tenho do pai os olhos e a boca, da mãe o andar e a constituição
física pesados e robustos, e a vigorosa força muscular. Do pai e da nossa raça
em geral, recebi na vida uma inteligência esperta de camponês, mas também a
turbação de espírito e o pendor para a melancolia sem fundamento. Estando eu
destinado a debater-me por longo tempo entre estranhos, longe da minha terra,
melhor fora que, em lugar disso, eu trouxesse alguma vivacidade e um pouco de
alegre leviandade.
Assim equipado e provido de um fato novo, encetei a viagem para a vida. Os
dons paternos comprovaram o seu valor, pois eu andei pelo mundo e por lá me
mantive pelos meus próprios meios. Todavia, algo deve ter faltado, que nem
mesmo a ciência e a vida no mundo jamais me deram. É que hoje, tal como
nesse tempo, eu posso vencer um monte, marchar ou remar durante dez horas
e, em caso de necessidade, matar um homem apenas com as mãos, mas para
saber viver falta-me, hoje ainda, tanto como então. A familiaridade precoce e
exclusiva com a terra e as suas plantas e animais fizera desenvolver em mim
poucas aptidões sociais, e ainda hoje os meus sonhos são uma prova notável de
quanto eu, infelizmente, tenho tendência para uma vida puramente animalesca.
De facto, sonho com frequência que estou deitado na praia, à beira-mar, que sou
um animal, normalmente uma foca, e sinto nisso um tão grande agrado que, ao
acordar, de forma alguma experimento a reassunção da minha dignidade de
humano com alegria ou orgulho, mas, pelo contrário, com tristeza apenas.
Eu fui educado num liceu da forma habitual, com ensino e alimentação gratuitos,
e estava destinado a ser filólogo. Ninguém sabe porquê.

22

Não há disciplina mais inútil e enfadonha nem estudo que menos me quadrasse.
Os anos de estudante passaram-se rapidamente. Por entre brigas e escola,
vieram horas plenas de saudade, horas cheias de atrevidos sonhos de futuro,
horas repletas de respeitosa veneração da ciência. De tempos a tempos,
também aqui a minha natural indolência vinha ao de cima, trazia-me todo o tipo
de aborrecimentos e castigos e dava, assim, lugar a qualquer novo entusiasmo.
- Peter Camenzind - dizia o meu professor de grego - tu és um casmurro, um
intratável, ainda hás-de rachar a cabeça contra as paredes.
Eu observava o rubicundo caixa-de-óculos, escutava as suas palavras e achava-
o grotesco.
- Peter Camenzind - dizia o professor de matemática - és um génio na preguiça,
e tenho pena que não haja uma nota mais baixa que o zero. Ao teu trabalho de
hoje avalio-o em menos dois e meio.
Eu olhava-o, lamentava-o por se zangar, e achava-o muito enfadonho.
- Peter Camenzind - disse, certa vez, o professor de história - tu não és bom
aluno, mas, apesar disso, hás-de vir a ser um bom historiador. És preguiçoso,
mas sabes distinguir entre o que é válido e o que é insignificante.
Também isto foi para mim extremamente importante. Todavia, eu tinha respeito
pelos professores, pois pensava que eles estavam na posse da ciência, e ante
ela, eu sentia uma enorme e obscura veneração. E apesar de, quanto à minha
preguiça, todos os professores estarem de acordo, sempre ia avançando,
situando-me acima da média. Eu bem notava que a escola e o saber escolar
eram fragmentários e insuficientes; contudo, aguardava o que havia de vir. Por
detrás destes preparativos e maçadas escolares, entrevia o puramente
espiritual, uma ciência segura, incontestável, da verdade. Ali, eu viria a saber
qual o significado da obscura confusão da história, das lutas dos povos e do
angustiante enigma de cada alma.
Mas havia em mim uma outra ânsia ainda mais forte e viva: eu gostaria de ter
um amigo.
Havia lá um rapaz de cabelos castanhos, sério, dois anos mais velho que eu,
chamado Gaspar Hauri. Tinha uma forma de andar e de estar segura e calma,
caminhava de cabeça firme e ar grave, como um homem,

23

e não falava muito com os camaradas. Durante vários meses, eu olhei-o com
grande veneração, nas ruas, mantinha-me atrás dele, e esperava ansiosamente
que me notasse. Sentia inveja de todo o burguês que ele cumprimentava e de
toda a casa onde o via entrar ou sair. Mas eu estava duas classes abaixo e,
provavelmente, ele sentir-se-ia superior até à sua. Nunca trocámos uma palavra
entre nós. Em lugar dele, ligou-se a mim, sem que eu fizesse algo por isso, um
rapaz enfezado. Este era mais novo que eu, tímido e pouco dotado, mas tinha
uns belos olhos e traços dolentes. Como era fraco e um pouco deformado, sofria
na sua classe muitas faltas de educação, e procurava em mim, que era forte e
considerado, um protector. Em breve ficou tão doente que deixou de poder
frequentar a escola. Não me fez falta e depressa o esqueci.
Mas na nossa classe havia um louro folgazão, capaz de mil habilidades, músico,
mimo e bobo. Conquistei a sua amizade, não sem esforço, e o pequeno folgazão
comportava-se sempre para comigo com certa superioridade. Em todo o caso,
sempre tinha agora um amigo. Eu visitava-o no seu quartito, lia alguns livros
com ele, fazia-lhe os trabalhos de grego e, em paga, ele auxiliava-me na
matemática. Por vezes, também íamos passear juntos; devíamos parecer o urso
e a doninha. Era sempre ele quem falava, sempre alegre, galhofeiro, jamais se
embaraçava, e eu escutava, ria e sentia-me contente por ter um amigo tão
folgazão.
Certa tarde, porém, inopinadamente, eu aproximei-me no momento em que o
pequeno charlatão, à porta da escola, apresentava a alguns camaradas uma das
suas representações cómicas preferidas. Ele acabara de imitar um professor, e
gritou:
- Adivinhem quem é este! - e começou a ler alto alguns versos de Homero.
Ele imitava-me com grande minúcia: a minha postura acanhada, a leitura
receosa, a pronúncia rude de montanhês e também o meu permanente
gesticular provocado pela concentração, o piscar e cerrar do olho esquerdo.
Tinha um ar muito cómico e mostrava-se tão burlesco e ridículo quanto possível.
Quando fechou o livro e recebia o justo aplauso, cheguei-me a ele por trás e
vinguei-me. Palavras, não as achei, mas expressei toda a minha indignação,
vergonha e cólera, concentradas num único e gigantesco bofetão.

24

Logo de seguida, iniciou-se a aula, e o professor notou os gemidos e a


bochecha vermelha e inchada do meu antigo amigo que, para mais, era o seu
preferido.
- Quem te fez isso?
- O Camenzind.
- Camenzind, apresente-se! É verdade?
- É sim.
- E por que lhe bateste assim?
Não houve resposta.
- Não tinhas razão nenhuma?
- Não.
Fui pois, severamente punido, e saboreei estoicamente o prazer do mártir
inocente. Mas como eu não era nem estóico nem santo, e sim um rapaz de
escola, depois da pena sofrida, deitei ao meu amigo a língua de fora, em todo o
seu comprimento. Horrorizado, o professor berrou-me:
- Não tens vergonha? Que significa isso?
- Significa que aquele ali é um tipo infame e que o desprezo. Além de que
também é um cobarde.
Assim terminou a minha amizade com o mimo. Ele não teve sucessor, e eu tive
de passar o período da maturação juvenil sem qualquer amigo. Mas apesar de a
minha visão da vida e dos homens se ter modificado algumas vezes desde
então, nunca recordo aquela bofetada sem uma profunda satisfação íntima.
Oxalá o louro a não tenha esquecido.
Aos dezassete anos, enamorei-me pela filha de um advogado. Ela era bonita, e
sinto orgulho por, ao longo da minha vida, me ter enamorado sempre por lindos
rostos de mulher. Aquilo que sofri por ela e por outras, contá-lo-ei noutra altura.
Esta chamava-se Rosa Girtanner, e ainda hoje é digna do amor de homens
muito superiores a mim.
Na altura, o vigor da juventude fervilhava em todos os meus membros. Envolvia-
me com os meus camaradas em enormes batalhas, sentia orgulho em ser o
melhor lutador, o melhor no jogo da péla, o melhor corredor e remador e,
todavia, trazia uma permanente melancolia. E isto nada tinha a ver com a
história amorosa. Era simplesmente a doce melancolia do início da primavera
que me tocava mais fortemente que aos outros, de forma que sentia prazer em
imagens pesarosas, em pensamentos de morte e ideias pessimistas. É claro que
surgiu também um camarada que me deu a ler «O Livro dos Cânticos», de
Heine, numa edição barata.

25

No fundo, não se tratava já de leitura - nos versos vazios, eu verti o meu coração
repleto, sofria com eles, fazia poesia com eles, e acabei num delírio lírico que
provavelmente me quadrava como um peitilho a um porco. Até então, eu não
fizera a menor ideia do que fossem as «belas letras». Agora, seguia-se-lhe
Lenau, Schiller, depois Goethe e Shakespeare, e a pálida ideia da literatura
transformou-se em mim numa grande divindade.
Com um doce arrepio, eu sentia fluir ao meu encontro, a partir destes livros, o
condimentado ar fresco de uma vida que nunca houve sobre a Terra, e todavia
existia de facto, e queria agora rebentar as suas ondas e viver os seus destinos
no meu coração arrebatado. No meu canto de leitura do quarto do sótão, onde
só chegavam o soar das horas do relógio da torre próxima e o bater seco dos
bicos das cegonhas que nidificavam ali ao lado, as personagens de Goethe e
Shakespeare entravam e saíam. Eu descobri o lado divino e o ridículo do ser
humano: o enigma do nosso coração cindido e indómito, a profundidade do ser
da história mundial, a poderosa maravilha do espírito que transfigura os nossos
curtos dias e, por meio da força do conhecimento, eleva a nossa pobre
existência à esfera do necessário e do eterno. Quando eu metia a cabeça pela
estreita frincha da janela, via o Sol brilhar sobre os telhados e ruelas, escutava
maravilhado os pequenos ruídos do trabalho e do dia-a-dia subirem confusos, e
sentia a solidão e o mistério do meu recanto do sótão, repleto de grandes
espíritos, envolver-me como um conto maravilhosamente belo. E aos poucos,
quanto mais eu lia, quanto mais maravilhosa e estranha me tocava a visão sobre
os telhados, as ruas e o dia-a-dia, tanto mais frequentemente surgia em mim,
hesitante e opressiva, a sensação de que também eu seria, talvez, um vidente; e
o mundo que diante de mim se estendia, aguardava que eu elevasse parte dos
seus tesouros, os libertasse do véu do acaso e da mediocridade, e que o assim
descoberto, pela força da poesia, o viesse a arrancar à destruição, eternizando-
o.
Timidamente, comecei a fazer alguma poesia e, aos poucos, fui enchendo
alguns cadernos com versos, com projectos e pequenos contos. Eles perderam-
se, e provavelmente teriam pouco valor, mas proporcionaram-me grande e
sincera excitação e um secreto prazer.

26

Só aos poucos a crítica e a autocrítica se seguiram a estes ensaios, e apenas no


último ano escolar surgiu a primeira e indispensável grande desilusão. Eu
começara a pôr de lado os meus poemas de principiante e a olhar os meus
escritos em geral com desconfiança quando, por acaso, me caíram nas mãos
alguns volumes de Gottfried Keller, que eu logo li duas e três vezes seguidas. Vi
então, numa percepção súbita, quanto os meus sonhos imaturos estavam longe
da autêntica, crua e verdadeira arte, queimei os meus poemas e novelas e olhei
sóbria e tristemente o mundo, com o doloroso sentimento de ser um miserável.

27

2.

No que respeita ao amor... nisso, toda a minha vida permaneci um garoto. Para
mim, o amor pela mulher sempre foi uma adoração purificadora, uma chama
erguida libertando-se do meu coração turvado, mãos postas levantadas para o
céu azul. Devido à minha mãe, e também por um sentimento impreciso
proveniente de mim próprio, eu venerava as mulheres em geral como um sexo
diferente, belo e enigmático, que nos é superior em beleza e unidade do ser, que
devemos considerar santo porque, quais estrelas e cumes dos montes, se acha
distante de nós e parece mais próximo de Deus. Como as agruras da vida lhe
ajuntaram abundantemente o seu condimento, o amor pela mulher trouxe-me
tanta amargura como doçura; permanecendo elas embora no seu alto pedestal,
para mim, o festivo papel do sacerdote adorador transformou-se facilmente
naquele outro, penoso e cómico, do tolo troçado. Rosa Girtanner encontrava-me
quase todos os dias quando eu ia comer. Era uma moça de dezassete anos, rija
e ágil. No rosto oblongo, moreno e viçoso, ressaltava a beleza silenciosa e viva
que a sua mãe possuía ainda nessa altura e, antes dela, a sua avó e bisavó
haviam tido. Desta antiga casa distinta e abençoada saiu, geração após
geração, uma garbosa série de mulheres, todas elas silenciosas e distintas,
todas viçosas, nobres e de imaculada beleza. Há um quadro de uma jovem da
família Fugger, pintado por um mestre desconhecido no século dezasseis, um
dos quadros mais maravilhosos que os meus olhos jamais viram. Assim eram as
mulheres Girtanner e assim era Rosa também.
Tudo isto, é certo, eu ainda não o sabia. Eu via-a apenas caminhar na sua
dignidade silenciosa e alegre, e sentia a nobreza do seu ser simples.

29

Depois, à tardinha, sentava-me pensativo, ao lusco-fusco, até conseguir


representar ante mim, com nitidez, e tornar presente a sua aparição;
perpassava, então, um temor secreto e doce por sobre a minha alma de rapaz.
Em breve sucedeu que estes momentos de prazer se enevoaram e me
provocaram amargas dores. Senti, de súbito, como ela me era estranha, me não
conhecia, nem por mim inquiria, e que o meu belo sonho era um assalto ao seu
ser bem-aventurado. E precisamente quando sentia isto com tamanha
acutilância e dor, via a sua imagem por momentos tão autêntica, viva e
palpitante diante dos olhos, que uma onda escura e cálida preenchia o meu
coração e provocava uma estranha dor até à pulsação mais distante.
Durante o dia, sucedia que, em meio de uma lição ou em pleno ardor de uma
batalha, essa onda voltava. Então, cerrava os olhos, deixava pender as mãos, e
sentia-me deslizar para um abismo cálido, até que o chamamento do professor
ou a pancada do punho de um colega me acordava. Eu afastava-me, corria para
o ar livre, e fixava o mundo perdido em maravilhosos sonhos. Depois, de
repente, eu via como tudo era belo e cheio de cor, como a luz e o alento fluíam
por todas as coisas, como era de um verde límpido o rio, e vermelhos os
telhados, e quão azuis eram os montes. Contudo, esta beleza que me rodeava
não me distraía, senão que a gozava em silêncio e triste. Quanto mais belo era
tudo, mais distante parecia estar de mim, porque não tinha parte nisso e estava
de fora. Os meus pensamentos sombrios reencontravam ali o caminho para
Rosa: se nessa hora eu morresse, ela não o saberia, não perguntaria por mim,
não se perturbaria com isso! E contudo, não sentia desejo de me tornar notado
por ela. Eu gostaria de fazer por ela, ou ofertar-lhe, algo de inaudito, sem que
soubesse de quem provinha.
E fiz de facto muito por ela. Surgiu um curto período de férias, e mandaram-me
para casa. Ali, eu realizava diariamente todo o tipo de manifestações de força,
tudo para, segundo a minha maneira de ver, honrar Rosa. A um pico difícil,
escalei-o pelo lado mais árduo. No lago, eu dava voltas desmesuradas no
barquito, grandes distâncias em curto espaço de tempo. Após uma viagem
destas, voltando esgotado e esfomeado, ocorreu-me permanecer até à noite
sem alimento nem bebida. Tudo por Rosa Girtanner. Eu levava o seu nome e
louvor a cumes distantes e desfiladeiros jamais visitados.

30

Entretanto, a minha juventude maltratada de tanto me sentar nos bancos da


escola, desforrava-se. Os ombros alargavam poderosamente, o rosto e a nuca
ficaram castanhos e, por todo o lado, os músculos se distendiam e avolumavam.
No penúltimo dia de férias, fiz ao meu amor uma oferenda de flores bem árdua.
Eu sabia da existência do edelweiss(1) em vertentes e estreitas faixas de terra,
mas esta doentia flor de prata, sem cheiro nem cor, sempre me pareceu
carecida de encanto e pouco bela. Em compensação, conhecia alguns tufos de
rosa dos Alpes, levados pelo vento para os sulcos de uma ousada escarpa
rochosa, serôdios e atraentemente difíceis de alcançar. Agora tinha de o
conseguir. E pois que à juventude e ao amor nada é impossível, alcancei o meu
objectivo, de mãos esfaceladas e cãibras nas coxas. Na minha perigosa
posição, não podia soltar gritos de alegria, mas o meu coração rejubilava e
saltava de alegria quando quebrei cuidadosamente os ramos rijos e segurei nas
mãos o troféu. Tinha de retroceder, de flores na boca, a escalar de costas, e só
Deus sabe como eu, moço atrevido, terei alcançado são e salvo a base da
escarpa. Em todo o monte, a flor da rosa dos Alpes há muito que tinha passado,
eu tinha na mão o último ramo do ano, em botão, florindo delicadamente.
No dia seguinte, durante as cinco horas da viagem, segurei nas mãos as flores.
De início, o meu coração batia fortemente, ao encontro da cidade da bela Rosa;
mas quanto mais longe se encontrava a zona das altas montanhas, tanto mais
fortemente o amor à terra me puxava para trás. Como recordo bem essa viagem
de comboio! Há muito que o Sennalpstock já não era visível, e já também os
montes serrilhados do sopé se abatiam, um após outro, e cada um deles
libertava-se do meu coração, com uma acutilante sensação de dor. Agora, todos
os montes familiares haviam desaparecido, e irrompia uma vasta e plana
paisagem verdejante. Na primeira viagem, isso em nada me impressionara.
Desta vez, porém, eu era tomado de desassossego, medo e tristeza, como se
tivesse sido condenado a viajar sempre por terras planas adentro, e perder
irreparavelmente os montes e o direito de cidadania na minha terra. Ao mesmo
tempo, eu via incessantemente o belo rosto oblongo de Rosa diante de mim, tão
delicado, estranho e frio, sem se ocupar de mim, que o rancor e a dor me
suspenderam a respiração.

*1. Edelweiss - planta de flor prateada e aveludada típica dos Alpes. (N. T.)

31

Diante das janelas, deslizavam, uma após outra, as alegres e limpas povoações,
com torres esguias e empenas brancas, e as pessoas subiam e desciam do
comboio, conversavam, cumprimentavam, riam, fumavam e diziam gracejos -
tudo gente alegre das terras baixas, gente ágil, franca e de boas maneiras - e
eu, rapaz taciturno das terras altas, mantinha-me sentado em silêncio, triste e
crispado entre elas. Sentia que já não estava na minha terra. Senti que fora
arrancado para sempre às montanhas e, contudo, nunca viria a ser como a
gente das terras baixas, nunca seria tão alegre, tão ágil, afável e seguro. Gente
como aquela, sempre se riria de mim, um como aqueles viria um dia a casar
com a Girtanner, e alguém como aqueles sempre estaria no meu caminho e um
passo à minha frente.
Cheguei à cidade com tais pensamentos. Ali, após os primeiros cumprimentos,
subi ao sótão, abri a minha caixa e retirei de lá uma grande folha de papel. Não
era do melhor, e quando enrolei nele as minhas rosas dos Alpes e atei o
embrulho com um fio trazido especialmente de casa, não se parecia nada com
um presente de amor. Com grande seriedade, levei-o até à rua onde vivia o
advogado Girtanner e, no primeiro momento propício, penetrei pelo portal
aberto, olhei em redor o vestíbulo na semi-obscuridade do lusco-fusco, e poisei
o meu ramo pouco convencional sobre a larga escada senhorial.
Ninguém me viu, e eu nunca vim a saber se Rosa chegou a ver a minha
saudação. Mas eu trepara escarpas rochosas e arriscara a vida a fim de poisar
um ramo de rosas sobre a escada de sua casa, e nisso havia algo de doce, de
tristemente alegre, de poético, que me era benfazejo e que ainda hoje sinto. Só
em horas de descrença em Deus me parece por vezes que aquela aventura das
rosas, como todas as minhas histórias amorosas posteriores, não passou de um
acto quixotesco.
Este meu primeiro amor nunca teve uma conclusão, apagou-se, interrogador e
sem resolução, nos meus anos de juventude, e a par dos meus amores
posteriores, prosseguia silencioso como uma irmã mais velha. Ainda hoje não
posso imaginar nada de mais nobre, puro e belo que aquela jovem patrícia bem
nascida e de olhar calmo. E quando, alguns anos mais tarde, numa exposição
em Munique, vi aquele quadro anónimo, enigmático e encantador da filha dos
Fugger, pareceu-me que tinha diante de mim toda a minha juventude
apaixonada e triste, olhando-me imperscrutável, profunda e absortamente.

32

Entretanto, fui mudando a pele, lenta e pausadamente, e aos poucos tornei-me


por completo num jovem. A fotografia que tirei então, mostra um jovem
camponês ossudo, de alta estatura, com um fato de estudante de fraca
qualidade, olhos um tanto apagados e membros inacabados e desmedidos de
labrego. Só a cabeça tinha algo de precoce e definitivo. Com uma espécie de
espanto, eu via-me a pôr de lado os modos da infância, e esperava com obscura
e alegre ansiedade o período de estudante universitário.
Eu deveria ir estudar para Zurique, e para o caso de resultados excepcionais, os
meus protectores referiram a possibilidade de uma viagem de estudos. Tudo
isso me surgia como um belo quadro clássico: um austero e agradável
caramanchão com os bustos de Homero e Platão, no meio do qual eu estava
sentado, debruçado sobre in-fólios, e de todos os lados uma larga e límpida vista
sobre a cidade, o lago, as montanhas e belos horizontes. O meu ser tornara-se
mais sóbrio e, contudo, mais brioso, alegrava-me com a felicidade futura, na
firme confiança de ser considerado digno dela.
No último ano liceal, apaixonei-me pelo estudo do italiano e tive o primeiro
contacto com os novelistas, cujo estudo mais aprofundado me propunha como
primeiro trabalho facultativo para os semestres de Zurique. Veio então o dia em
que disse adeus aos professores e ao meu hospedeiro, arrumei e preguei o meu
caixote e, com doce melancolia, passei diante da casa de Rosa para me
despedir.
O período de férias que então se seguiu deu-me uma prova amarga da vida, e
rápida e rudemente esfarrapou-me as belas asas do sonho. Comecei por
encontrar a minha mãe doente. Ela estava de cama, quase não falava, e não
ligou grande importância à minha chegada. Eu não era muito mimalho, mas
sempre me doía não encontrar eco para a minha alegria e orgulho juvenil.
Depois, o meu pai explicou-me que embora nada tivesse contra o facto de eu
querer ir para a universidade, ele não poderia dar-me dinheiro para isso. Se o
pequeno estipêndio não chegasse, eu teria de procurar ganhar para mim próprio
o mais indispensável. Que na minha idade já ele comia há muito o pão ganho
com o suor do seu rosto, e assim por diante.
Também quanto a caminhadas, remo e alpinismo, pouco se me ofereceu desta
vez, pois tive de auxiliar nos trabalhos da casa e do campo, e nos meios-dias
livres, já nem sequer me apetecia ler.

33

Revoltava-me e fatigava-me ver como a comum vida diária cobrava os seus


direitos a grandes tragos, e devorava tudo quanto de ardor e entusiasmo eu
trouxera comigo. Aliás, o meu pai, uma vez aliviado da questão do dinheiro,
embora rude e de poucas palavras, segundo a sua índole, não era antipático
para comigo e, todavia, eu não sentia qualquer prazer nele. Também o facto de
a minha formação escolar e os meus livros lhe inspirarem um respeito semi-
desdenhoso me perturbava e fazia sofrer. E depois, eu recordava Rosa
frequentemente, e tinha de novo o perverso e obstinado sentimento da minha
incapacidade campesina para alguma vez, no «Mundo», me transformar num
homem seguro e flexível. Cheguei mesmo a considerar, durante alguns dias, se
não seria melhor permanecer ali, e esquecer o meu latim e as minhas
esperanças na vida, nas tenazes e soturnas obrigações da vida miserável na
terra natal. Vagueava atormentado e acabrunhado, e nem junto ao leito da mãe
doente eu encontrava consolo ou paz. A imagem daquele caramanchão
quimérico, com o busto de Homero, surgiu-me de novo, escarnecedora, e eu
destruí-a, e lancei sobre ela toda a raiva e animosidade do meu ser
atormentado. As semanas tornaram-se insuportavelmente longas, como se
neste período desesperado de dissabores e dilemas eu devesse perder a
juventude.
Eu ficara atónito e revoltado por ver a vida dos meus sonhos felizes tão rápida e
profundamente destruída; agora, porém, espantava-me com o quão súbita e
poderosamente nascia um triunfador dos tormentos presentes. A vida havia-me
mostrado o seu lado cinzento de dia de labuta; agora, de repente, surgia diante
dos meus olhos atónitos nas suas eternas profundezas, e carregava a minha
juventude com uma experiência cândida e poderosa.
Certa madrugada de um dia quente de Verão, senti sede na cama, e levantei-me
para ir à cozinha, onde havia sempre uma cuba cheia de água fresca. Para isso,
tinha de atravessar o quarto dos pais, onde notei o estranho gemer da mãe.
Cheguei-me à sua cama, contudo, ela não me viu nem me deu resposta, e
continuava os gemidos secos e angustiados, as pálpebras estremeciam e o
rosto estava azulado e pálido. Isto não me assustou especialmente, apesar de
me sentir um pouco receoso. Mas vi-lhe depois as duas mãos poisadas sobre o
lençol, quietas, como duas irmãs adormecidas. Nessas mãos, reconheci que a
minha mãe estava a morrer,

34

porque estavam já tão estranhamente fatigadas e sem acção, como nenhum ser
vivo as tem. Esqueci a minha sede, ajoelhei junto ao leito, coloquei a mão sobre
a fronte da moribunda, e procurei-lhe o olhar. Quando este me encontrou, era
bondoso e sem tormento, mas prestes a extinguir-se. Não me veio à ideia que
deveria acordar o pai a dormir ao lado com uma respiração profunda. Assim,
mantive-me ajoelhado quase duas horas, e olhei a minha mãe sucumbir à morte.
Ela aceitava-a em silêncio, com gravidade e coragem, como era de sua índole, e
ofereceu-me um bom exemplo.
O quartinho estava em silêncio e enchia-se lentamente com a claridade da
manhã nascente; a casa e a aldeia repousavam no sono, e eu dispus de tempo
para acompanhar em pensamentos a alma de um moribundo, por sobre a casa e
a aldeia, o lago e os cumes de neve, pela fresca liberdade de um céu puro de
madrugada adentro. Dor, mal a senti, pois estava repleto de espanto e
veneração por me ser dado ver como se desvanecia um grande enigma, e como
o anel de uma vida se cerrava com um leve estremecer. A coragem sem
queixume da moribunda era tão nobre que, da sua acerba glória, recaiu também
sobre a minha alma um raio refrigerante e límpido. Que o pai dormia ali ao lado,
que não havia ali um padre, que nem um sacramento ou a oração santificadora
acompanharam a alma que voltava à pátria, nada disso eu notei. Eu sentia
apenas um arrepiante sopro de eternidade inundar o quartito obscuro e misturar-
se com o meu ser. No último momento, os olhos já extintos, beijei pela primeira
vez na vida a boca fria e emurchecida de minha mãe. Depois, o estranho frio do
contacto causou-me um súbito calafrio, sentei-me na borda da cama, e senti
que, lentas e hesitantes, uma após outra, grandes lágrimas me corriam pelas
faces, o queixo e as mãos.
Pouco depois, o pai acordou, viu-me ali sentado e perguntou-me, bêbedo de
sono, o que havia. Eu queria responder-lhe, mas não pude dizer nada, saí do
quarto, entrei como que em sonhos no meu e, com lentidão e sem consciência,
vesti as minhas roupas. Em breve o velho apareceu junto de mim.
- A mãe está morta - disse ele. - Já sabias? Eu acenei afirmativamente.
- Por que me deixaste dormir? E nem sequer esteve um padre presente! Que
te...

35

E soltou uma grave imprecação.


Então, algo na minha cabeça começou a doer, como se uma veia tivesse
rebentado. Aproximei-me dele e segurei-lhe firmemente as mãos - em força, ele
era como um rapazito, comparado comigo - e olhei-o no rosto. Eu nada podia
dizer, mas ele ficou silencioso e impressionado, e quando em seguida nos
acercámos da mãe, também ele foi tomado pelo poder da morte e pôs um ar
distante e solene. Depois, debruçou-se sobre a falecida, e começou a gemer
baixinho, infantil, quase como um pássaro, em sons agudos e leves. Eu saí e dei
a notícia aos vizinhos. Eles escutaram-me e não fizeram perguntas, mas
apertaram-me a mão e ofereceram o seu auxílio para o trabalho da nossa casa.
Um correu ao convento para ir buscar um padre e, quando regressei, já uma
vizinha estava no nosso estábulo a cuidar da vaca.
Veio o reverendo, e vieram quase todas as mulheres da aldeia, tudo decorreu
pontual e correctamente, como que por si, e até o caixão foi comprado sem
disso termos de ocupar-nos; pela primeira vez pude ver nitidamente como, em
situações difíceis, é bom estar na nossa terra, e pertencer a uma comunidade
pequena e coesa. No dia seguinte, eu teria talvez ocasião de meditar nisto ainda
mais profundamente.
É que, após o caixão ter sido benzido e descido à cova, e o estranho bando de
hirsutos chapéus de coco, tristes e antiquados, incluindo o do meu velho,
desaparecer cada um em sua caixa e armário, o meu pobre pai teve um acesso
de fraqueza. Começou de repente a lastimar-se e em estranhos discursos, em
grande parte bíblicos, expunha-me a sua desgraça, que agora a sua mulher
estava enterrada, e teria ainda de perder o filho e vê-lo partir para longe. Ele não
se calava, e eu escutava aterrorizado e quase disposto a prometer-lhe a minha
permanência ali.
Neste momento, tinha eu já começado a dar-lhe resposta, sucedeu algo de
notável. De súbito, condensado num único segundo, tudo quanto eu desde
pequeno pensara, desejara e ardorosamente ansiara, surgiu-me numa repentina
visão interior. Vi belos e grandiosos trabalhos aguardando-me, livros a ler e a
escrever. Escutei o foehn correr, e vi longínquos lagos e margens brilhando nas
cores do meridião. Vi passar pessoas de rostos inteligentes e plenos de
espiritualidade, e belas damas delicadas, vi seguir estradas e caminhos por
desfiladeiros, conduzindo através dos Alpes, e comboios correndo à desfilada
pelas terras,

36

tudo a um só tempo, e contudo, cada coisa de per si e nítida, e por trás de tudo,
a ilimitada lonjura de um horizonte límpido, recortado de nuvens esfumando-se.
Estudar, criar, observar, caminhar - toda a plenitude da vida refulgia diante do
meu olhar, numa fugaz visão argêntea, e uma vez mais, como nos tempos de
criança, algo em mim estremeceu com uma inconsciente e poderosa atracção
pelo grande e vasto mundo.
Fiquei silencioso e deixei o pai falar, meneei a cabeça e aguardei, até que o seu
ímpeto amainou. Isto deu-se apenas pela noite. Então, expus-lhe a minha firme
decisão de ir estudar e procurar a minha pátria futura, possuidor já da riqueza do
espírito, sem pretender dele qualquer apoio. Ele deixou de insistir, e olhou-me
apenas tristemente, abanando a cabeça. Também ele compreendia que, a partir
desse momento, eu seguiria o meu próprio caminho, e rápido me tornaria
inteiramente estranho à sua vida. Quando hoje, ao escrever, recordei este dia, vi
de novo o meu pai, da forma como nessa tarde estava sentado na cadeira junto
à janela. Uma cabeça de camponês, arguta, inteligente, imóvel, sobre um
pescoço delgado, o cabelo curto que começa a encanecer, e nos traços duros e
austeros, o sofrimento e a idade que avança e luta com a tenaz masculinidade.
Dele e do período dessa minha estada sob o seu tecto, resta-me contar ainda
um curto acontecimento, não de todo sem importância. Na última semana antes
da minha partida, em dado serão, o meu pai pôs o seu barrete e colocou a mão
na maçaneta da porta.
- Onde vais? - perguntei.
- Que tens a ver com isso? - respondeu.
- Sempre mo podias dizer, se não é nada de mal - comentei eu.
Então, ele riu e exclamou:
- Podes vir também, já não és nenhum garoto.
E fui com ele para a taberna. Havia ali alguns camponeses sentados diante de
uma caneca de Hallau, dois condutores de fora que bebiam absinto, e uma
mesa cheia de rapazes novos a jogar às cartas, em grande alarido.
Eu estava habituado a beber um copo de vinho, uma ocasião por outra, mas era
a primeira vez que, sem necessidade, penetrava numa taberna. Que o meu pai
era um bêbedo inveterado, já o sabia de ouvir dizer. Ele bebia muito e de boa
qualidade, daí que a economia do lar se

37

atolasse numa miséria sem esperança, sem que, de resto, a negligenciasse


verdadeiramente. Notei quanto respeito o taberneiro e os clientes lhe
manifestavam. Ele mandou vir um litro de vinho de Vaud, disse-me para servir e
ensinou-me como isso deve fazer-se. Há que começar a deitar bastante baixo,
depois alongar um pouco o fluxo e, por fim, baixar a garrafa tanto quanto
possível. De seguida, começou a falar de diversos vinhos que conhecia e que
em circunstâncias raras costumava apreciar, quando ia à cidade ou ao país do
Romando. Falou com profundo respeito do vinho de Valtellina vermelho-escuro,
de que distinguia três qualidades. Depois, com uma voz mais baixa e incisiva,
acabou por falar de certas garrafas do Vaud. Quase num sussurro e com a
expressão de um contador de histórias, falou por fim do vinho de Neuchâtel.
Deste, havia três colheitas, cuja espuma, ao servir, formava no copo uma
estrela. E com o dedo humedecido, desenhava a estrela sobre a mesa. Em
seguida, mergulhou em espantosas crenças sobre a qualidade e sabor do
Champagne que nunca bebera e acerca do qual supunha que uma garrafa
bastaria para pôr dois homens bêbedos que nem cachos.
Calando-se, pensativo, acendeu o cachimbo. Nisto, reparou que eu nada tinha
para fumar, e deu-me dez rappe(1) para cigarros. Ficámos então sentados frente
a frente, a lançar o fumo sobre o rosto um do outro, e bebemos lentamente, em
pequenos sorvos, o primeiro litro. O Vaud, amarelo e picante, sabia-me
maravilhosamente. Aos poucos, os camponeses da mesa ao lado ousaram
entrar na conversa e, por fim, um após outro, tossicando, foram-se mudando
cuidadosamente para junto de nós. Em breve me tornei também o centro das
atenções, e se evidenciou que a minha fama como alpinista não fora esquecida
ainda. Contaram-se, discutiram-se e defenderam-se todo o tipo de ascensões
arrojadas e quedas fantásticas, envoltas numa névoa mística. Entretanto,
acabávamos já o segundo litro, e o sangue injectava-me os olhos. Inteiramente
contra a minha natureza, eu comecei a gabar-me alto, e narrei também a
temerosa ascensão à escarpa superior do Sennalpstock, onde fui buscar as
rosas dos Alpes para a Rosa Girtanner. Não me acreditaram, reiterei, riram-se e
fiquei furioso. Desafiei para uma luta todo o que me não acreditasse

*1. Rappe - moeda da Suíça alemã, que a partir de meados do século XIX
correspondia ao cêntimo francês. (N. T.)

38

e fiz notar que, em caso de necessidade, os derrubaria a todos juntos. Então,


um velho camponês, corcovado, foi ao aparador, trouxe uma grande caneca de
faiança, e poisou-a de lado sobre a mesa.
- Vou dizer-te uma coisa - ria ele. - Se és assim tão forte, esmaga a caneca com
o punho. Pagar-te-emos tanto vinho quanto ela leva. Mas se não fores capaz,
pagas tu o vinho.
O meu pai concordou de imediato. Então levantei-me, enrolei o meu lenço à
volta da mão e dei um murro. As duas primeiras pancadas não surtiram efeito. À
terceira, a caneca ficou em pedaços.
- Paga você! - gritou o meu pai, brilhando de prazer, e o velho parecia estar de
acordo.
- Certo - disse ele. - Pago tanto vinho quanto cabe na caneca. Mas já não há-de
ser muito.
Claro que o caco já não levava nem um quartilho, e para além da dor no braço
ainda suportei a troça. Agora, também o meu pai zombava de mim.
- Bem, foi assim que ganhaste - gritei eu, enchendo o caco com o vinho da
nossa garrafa e vertendo-o sobre a cabeça do velho. Agora, éramos nós de novo
os vencedores e tínhamos o aplauso dos clientes.
Exageraram-se ainda as brincadeiras rudes como esta. Depois, o meu pai
arrastou-me para casa, e atravessámos aos tropeções, excitados e coléricos o
quarto onde há apenas três semanas se encontrava o caixão da mãe. Eu dormi
que nem uma pedra e, de manhã, estava arrasado e todo partido. O pai troçava
e estava cheio de energia e bem disposto, e alegrava-se visivelmente pela sua
superioridade. Eu, porém, jurei para mim nunca mais me embebedar, e
aguardava ansiosamente o dia da partida.
O dia chegou e eu parti, contudo, não guardei o juramento. Desde então, o Vaud
amarelo, o Valtellina vermelho-escuro, o vinho das estrelas de Neuchâtel e
muitos outros são-me bem conhecidos e meus bons amigos.

39

3.

Saído da atmosfera sóbria e oprimente da minha terra, dei grandes voos de


prazer e liberdade. Se é certo que, no resto da minha vida, sempre sofri
restrições, eu saboreei, contudo, o singular e apaixonado entusiasmo da
juventude com abundância e plenitude. Qual jovem guerreiro repousando na orla
florida da floresta, também eu vivia numa deliciosa inquietação entre o combate
e a brincadeira; e como um vidente repleto de sabedoria, abeirava-me de
obscuros abismos, escutando o rumorejar de grandiosas torrentes e
tempestades, com a alma preparada para escutar a ressonância das coisas e a
harmonia de toda a vida. Profunda e ditosamente, eu esvaziei o cálice pleno da
juventude, sofri em silêncio doces penas por belas mulheres timidamente
veneradas, e saboreei até ao âmago a mais nobre felicidade juvenil de uma
alegre e viril amizade pura.
Com um fato novo de buckskin (1) e um pequeno caixote cheio de livros e outros
haveres, apeei-me pronto a conquistar uma parcela do mundo e, tão depressa
quanto possível, demonstrar aos broncos lá da terra que era de uma massa bem
diferente da dos outros Camenzind. Durante três anos maravilhosos, habitei uma
mansarda de largos horizontes, exposta aos ventos; estudava, fazia poesia,
ansiava e sentia toda a beleza da Terra envolver-me num caloroso amplexo.
Nem todos os dias tinha algo de quente para comer mas, dia após dia, noite
após noite e hora após hora, o meu coração cantava e ria e chorava, pleno de
vigorosa alegria, e abraçava a vida bem amada com ardor e paixão.

*1. Buckskin - tecido grosseiro de lã de origem inglesa. (N. T.)

41

Zurique foi a primeira cidade que eu, jovem inexperiente, tive ensejo de ver, e
durante algumas semanas permaneci extasiado. Não me pus a admirar
realmente ou a invejar a vida citadina - que nisso, de facto, eu era um
camponês; mas sentia grande alegria na multiplicidade de ruas, de casas e
gentes. Eu olhava as ruas pululantes de automóveis, os embarcadouros, as
praças e jardins, os edifícios majestosos e as igrejas; vi gente ocupada correr
em bandos para o trabalho, vi estudantes a vaguear, pessoas distintas saindo a
passeio, peraltas pavoneando-se, estrangeiros deambulando. Elegantes e à
moda, quais senhoras da corte, as mulheres dos ricos pareciam-me pavões na
capoeira, lindas, orgulhosas, e um tanto ridículas. Eu não era realmente tímido,
apenas rígido e teimoso, e não duvidava de todo que seria capaz de conhecer a
fundo essa vida activa das cidades e, mais tarde, vir mesmo a encontrar ali um
lugar decisivo.
A juventude apresentou-se-me na figura de um belo jovem que estudava na
mesma cidade e alugara dois belos quartos no primeiro andar da minha casa.
Todos os dias o ouvia tocar piano lá em baixo, e senti, então, pela primeira vez,
um pouco da magia da música, a mais feminina e doce das artes. Depois, vi o
esbelto rapaz sair de casa, com um livro ou caderno de notas na mão esquerda
e, na direita, um cigarro, cujo fumo ficava a voltear por trás do seu andar
elegante e elástico. Senti-me atraído por ele, com um amor tímido; todavia,
mantive-me à distância, receando estabelecer contacto com uma pessoa ao lado
de quem a minha pobreza e falta de maneiras só poderiam humilhar-me, face ao
seu ser despreocupado, livre e abastado. Então, veio ele mesmo ter comigo.
Certa tarde, bateu à minha porta, e fiquei um pouco assustado; é que nunca
tinha recebido uma visita. O belo estudante entrou, estendeu-me a mão, disse o
seu nome e mostrou tanta liberdade e boa disposição que mais parecíamos
velhos conhecidos.
- Queria perguntar-lhe se não gostaria de fazer um pouco de música comigo -
disse ele amavelmente.
Mas eu nunca na vida tinha mexido num instrumento. Disse-lho, e ajuntei que,
para além do iodler, não conhecia nenhuma arte; contudo, a sua música ao
piano, por diversas vezes me soara lá em cima, bela e sedutora.
- Como podemos enganar-nos! - exclamou ele, divertido. - Pelo seu aspecto
exterior, poderia jurar que era músico. Admirável! Mas sabe cantar iodler! Por
favor, cante iodler. Gosto imenso de ouvir.

42

Fiquei completamente estupefacto, e expliquei-lhe que, assim, por encomenda e


dentro de um quarto, de forma alguma conseguiria soltar um iodler. Isso teria de
ser no cimo de um monte ou, pelo menos, ao ar livre e de puro prazer.
- Então, cantará iodler sobre um monte! Amanhã, talvez? Peço-lho
encarecidamente. Poderíamos sair juntos à tardinha. Passeamos e
conversamos um pouco; depois, lá no cimo, cantará iodler e, à noite, iremos
comer a qualquer aldeia. Tem tempo disponível?
Oh, sim, tempo de sobra. Concordei prontamente. Depois, pedi-lhe para me
tocar alguma coisa, e desci com ele a um lindo alojamento. Alguns quadros
modernos, o piano, uma certa desordem aprazível e um delicado aroma a
tabaco, produziam no belo quarto uma espécie de elegância agradável e um
ambiente confortável que me eram inteiramente novos. Ricardo sentou-se ao
piano e tocou alguns compassos.
- Conhece isto, não? - acenou-me, magnífico, desviando a bela cabeça do
instrumento e olhando-me radiante.
- Não - disse eu - não conheço nada.
- É Wagner - exclamou ele - «Os Mestres Cantores»
E continuou a tocar. Era um som leve e vigoroso, nostálgico e alegre, e
envolveu-me como um banho tépido e estimulante. Entretanto, eu observava
com secreto enlevo a elegância do pescoço e ombros do artista, e as mãos
brancas de músico; com isto, senti-me transbordar daquele mesmo sentimento
de carinho e respeito com que antes havia olhado o estudante de cabelos
negros, acompanhado da tímida percepção de que aquele ser, belo e distinto,
viria, talvez, a tornar-se efectivamente no meu amigo, e realizaria o meu velho e
não esquecido desejo de uma tal amizade.
No dia seguinte, fui buscá-lo. Lentamente e conversando, subimos uma colina
mediana, olhámos a cidade, o lago e os jardins, e saboreámos a beleza
saturada do anoitecer.
- Bem, agora cante iodler - exclamou Ricardo. - E se continua a sentir vergonha,
volte-me as costas. Mas, por favor, bem alto!
Ele bem podia estar satisfeito. Eu cantei, furiosa e exultantemente, pela vastidão
rosada adentro, em todos os tons e modulações. Quando terminei, ele fez
menção de dizer alguma coisa, mas conteve-se de imediato e, escutando,
apontou os montes. De alturas distantes, chegava uma resposta, leve,
alongando-se e ondulando, o cumprimento de algum pastor ou caminhante, e
nós escutámos em silêncio e com alegria.

43

Nesse acto em que, juntos, escutávamos, senti, com um arrepio delicioso, o


prazer de, pela primeira vez, estar junto de um amigo e, assim, a dois, olharmos
as belas e rosadas vastidões da vida. Ao cair da noite, o lago iniciava o seu
suave jogo de cores; pouco antes do Sol se pôr, eu vi emergir da névoa
esvanecente alguns picos dos Alpes ousadamente recortados.
- É ali a minha terra - disse eu. - A escarpa do meio é a Rote Fluh, à direita o
Geisshorn, e à esquerda e mais distante, o Sennalpstock arredondado. Tinha
dez anos e três semanas quando subi pela primeira vez àquele cume abaulado.
Esforcei o olhar para tentar vislumbrar algum pico ainda mais a Sul. Após um
pedaço, Ricardo disse qualquer coisa que não percebi.
- Que disse? - perguntei.
- Disse que já sei qual é a sua arte.
- Qual?
- Poeta.
Corei e fiquei irritado e, ao mesmo tempo, espantado por ele o ter adivinhado.
- Não - exclamei - poeta não sou. É certo que no liceu fiz alguns versos, mas já
há muito que não faço nenhuns.
- Deixa-me vê-los?
- Foram queimados. Mas não poderia vê-los, mesmo que não os tivesse
queimado.
- Eram de certo coisas muito modernas, com muito Nietzsche.
- O que é isso?
- Nietzsche? Ah, meu Deus, mas não conhece?
- Não. De onde deveria conhecê-lo?
Agora, ele estava deliciado por eu não conhecer Nietzsche. Mas eu fiquei
irritado, e perguntei-lhe por quantas geleiras tinha ele já andado. Quando ele
respondeu nenhuma, tomei um ar de espanto tão trocista como o fizera comigo.
Então, poisou a mão sobre o meu braço e disse muito sério:
- Você é susceptível. Mas nem sabe como é são e quão poucas pessoas há
assim. Repare, dentro de um ou dois anos já conhecerá Nietzsche

44

e toda essa tralha muito melhor que eu, porque é mais profundo e mais
inteligente. Mas gosto de si precisamente como é. Não conhece Nietzsche nem
Wagner, mas andou muito sobre montanhas nevadas e tem um rosto de
montanhês inteligente. E de certeza que também é poeta. Vejo-lho no olhar e na
fronte.
Também o facto de ele me olhar tão francamente e à vontade, e expressar a sua
opinião, me deixava maravilhado e parecia estranho.
Mas muito mais espantado e feliz fiquei quando, oito dias depois, numa
cervejaria muito frequentada, bebeu comigo à amizade, se ergueu diante de
toda a gente, me beijou e abraçou e, comigo, dançou em redor da mesa.
- Que pensarão as pessoas?! - adverti, envergonhado.
- Vão pensar: aqueles dois estão extraordinariamente contentes ou
extremamente bêbedos; mas a maioria não vai pensar nada.
Ricardo, por vezes, apesar de mais velho, mais inteligente, mais bem educado e
em tudo mais versado e requintado que eu, parecia-me ser uma verdadeira
criança em comparação comigo. Na rua, ele fazia a corte, meio cerimonioso,
meio trocista, a raparigas da escola ainda adolescentes; inesperadamente,
interrompia as peças de piano mais sérias com brincadeiras absolutamente
infantis e, certa vez que, quase por brincadeira, entrámos numa igreja, disse de
súbito, em plena prédica, pensativamente e com seriedade:
- Olha, não achas que o pároco tem um ar de coelho velho?
A comparação era acertada, mas eu achei que ele poderia tê-lo comentado
depois, e disse-lho.
- Mas se era aquilo mesmo! - amuou ele. - Mais tarde, tê-lo-ia já esquecido.
Que as suas anedotas nem sempre eram espirituosas e, por vezes, não
passavam da citação de um verso de Busch, isso não me perturbava a mim nem
aos outros, porque aquilo que apreciávamos e admirávamos nele, não eram
nem as anedotas nem o seu espírito, mas a indestrutível alegria do seu ser
ingénuo, que irrompia a cada momento e o envolvia numa atmosfera leve e
jubilosa. Podia expressar-se num gesto, num leve riso ou num olhar jovial, mas
ocultá-lo por muito tempo é que ele não conseguia. Estou convencido de que até
durante o sono, por vezes, ele teria de rir ou fazer um gesto de alegria.

45

Ricardo levava-me frequentemente junto de outros jovens, universitários,


músicos, pintores, literatos, todo o tipo de estrangeiros, porque quantas pessoas
interessantes, amantes da arte e fora do comum andassem pela cidade, todas
acabavam por travar relações com ele. Havia entre eles espíritos sérios e
vigorosamente lutadores, filósofos, estetas e socialistas, e com grande parte
deles eu pude aprender muito. Afluíam a mim, parcelarmente, conhecimentos
das mais diversas áreas, e eu ia-os completando e lia muito; fui, assim,
adquirindo, aos poucos, uma certa ideia daquilo que atormentava e fascinava as
cabeças mais activas daquela época, e ganhei uma visão estimulante e
benfazeja do mundo internacional do espírito. Os seus anseios, concepções,
trabalhos e ideais atraíam-me e compreendia-os, sem sentir um impulso forte de
lutar a favor ou contra. Na maioria deles, encontrava toda a energia do
pensamento e a paixão aplicadas às situações e instituições da sociedade, do
Estado, da ciência, das artes e dos métodos de ensino, mas poucos me
pareciam conhecer a necessidade de, sem fim visível, trabalhar em si mesmos e
esclarecer a sua própria posição frente ao tempo e à eternidade. E também em
mim próprio este impulso permanecia ainda, usualmente, meio adormecido.
Não travei mais nenhuma amizade, pois amava Ricardo com exclusivismo e
ciúme. Até às mulheres com quem ele se relacionava com frequência e
intimidade, eu procurava subtraí-lo. Cumpria escrupulosamente os mais
pequenos encontros combinados com ele e ficava melindrado se me fazia
esperar. Certa vez, pediu-me para ir buscá-lo a determinada hora para fazermos
remo. Eu fui, mas não o encontrei em casa, esperando por ele três horas, em
vão. No dia seguinte, censurei-o severamente pelo seu descuido.
- Então por que não foste remar sozinho? - riu, admirado. Esqueci-me
completamente; afinal, não é nenhuma desgraça.
- Estou habituado a cumprir escrupulosamente a minha palavra - respondi,
impetuoso. - Mas é certo que também já me vou habituando a que pouco te
importes ao saber que espero algures por ti. Quando se têm tantos amigos como
tu!
Olhou-me, muito espantado.
- Levas assim tão a sério todas as bagatelas?
- Para mim, a minha amizade não é nenhuma bagatela.

46

- «Tal palavra entrou no seu ser


E ali jurou emendar-se...» - citou Ricardo, solenemente.
E segurando-me a cabeça, esfregou a ponta do seu nariz no meu, segundo o
rito oriental, e fez-me festas até que eu, rindo irritado, me libertei dele; mas a
amizade estava de novo sanada.
Em volumes emprestados e não raro preciosos, eu tinha na minha mansarda os
filósofos, poetas e críticos modernos, revistas literárias da Alemanha e da
França, novas peças de teatro, folhetins franceses e estetas da moda vienenses.
Mas mais séria e entusiasticamente que com estas coisas rapidamente lidas, eu
ocupava-me com os meus novelistas italianos e com estudos de história. Era
meu desejo que, tão rápido quanto possível, pudesse pôr de lado a filologia para
estudar exclusivamente história. A par de obras gerais sobre história e
metodologia histórica, eu lia em particular originais e monografias sobre os fins
da Idade Média da Itália e da França. Isto levou-me a, pela primeira vez, obter
um conhecimento mais profundo do meu favorito entre os homens: Francisco de
Assis, o mais bem-aventurado e divino de todos os santos. E assim, o sonho em
que vira desvendada ante mim a plenitude da vida e do espírito, realizava-se
diariamente e aquecia-me o coração enchendo-o de brio, de alegria e de
vaidade juvenil. No auditório, eu ocupava-me com a ciência um tanto árida e por
vezes um pouco enfadonha. Em casa, regressava às histórias da Idade Média,
afavelmente piedosas ou assustadoras, ou aos agradáveis novelistas antigos,
cujo mundo belo e aprazível me envolvia como um recanto de fábula, coberto de
sombras e com uma luz velada, ou então sentia a vaga indómita dos ideais e
anseios modernos rolar sobre mim. Entretanto, ouvia música, ria com Ricardo,
partilhava da sua alegria nos encontros com os seus amigos, convivia com
Franceses, Alemães e Russos, escutava a leitura de estranhos livros modernos,
entrava, aqui e além, nos ateliers dos pintores, ou participava em tertúlias
nocturnas, onde aparecia grande número de jovens espíritos agitados e
nebulosos, que me envolviam como um carnaval fantástico.
Certo domingo, Ricardo e eu visitámos uma pequena exposição de Pintura nova.
O meu amigo estacou diante de um quadro que representava uma pastagem de
montanha com algumas cabras. Estava pintado com cuidado e agradavelmente,
mas era um pouco antiquado e, no fundo, sem um cunho verdadeiramente
artístico.

47

Em qualquer salão se podem ver muitos daqueles quadros bonitos mas


insignificantes. No entanto, aquele agradou-me como uma representação
bastante fiel das pastagens da minha terra. Perguntei a Ricardo o que o atraía
naquele quadro.
- Isto - disse ele, indicando o nome do pintor ao canto.
Eu não consegui decifrar as letras a vermelho-acastanhado.
- Este quadro - disse Ricardo - é uma grande obra. Há-os mais belos, mas não
há pintora mais bonita do que aquela que o fez. Chama-se Hermínia Aglietti e,
se quiseres, poderemos ir ter com ela amanhã, para lhe dizer que é uma grande
pintora.
- Conhece-la?
- Claro. Se os seus quadros fossem tão belos como ela, há muito que seria rica
e já não pintaria mais nenhum. Ela fá-lo sem prazer e apenas porque, por acaso,
não aprendeu mais nada de que possa viver.
Ricardo esqueceu este assunto de novo, e só algumas semanas mais tarde
voltou a falar nele.
- Ontem, encontrei a Aglietti. Há pouco tempo, pensámos em ir visitá-la.
Portanto, anda! Tens um colarinho lavado? É que ela repara nisso.
O colarinho estava limpo, e fomos juntos visitar a Aglietti, levando eu alguma
repulsa íntima, porque a relação despreocupada e um pouco ordinária de
Ricardo e dos seus camaradas com as mulheres pintoras e as estudantes nunca
me agradara. Os homens eram bastante faltos de delicadeza, ora grosseiros ora
irónicos; por seu lado, as raparigas eram práticas, astutas e maliciosas, e nada
se notava daquele perfume transfigurador em que eu gostava de enquadrar e
venerar as mulheres.
Entrei no atelier um pouco constrangido. É certo que eu estava habituado à
atmosfera das oficinas de pintores, mas era a primeira vez que entrava no atelier
de uma mulher. Tinha um aspecto bastante sóbrio e arrumado. Havia três ou
quatro pinturas acabadas pendendo, emolduradas; uma estava sobre o cavalete,
ainda sem a camada inferior terminada. O resto das paredes estava coberto por
esboços a lápis, muito limpos e atraentes, e por uma estante meio vazia. A
pintora recebeu a nossa saudação com frieza. Pôs de lado o pincel e, de avental
de pintor, encostou-se à estante, parecendo não ter intenção de gastar muito
tempo connosco.

48
Ricardo teceu-lhe rasgados elogios sobre o quadro exposto. Ela riu-se dele e
não os aceitou.
- Mas, menina, eu poderia ter intenção de comprar o quadro! A propósito, as
vacas são de uma autenticidade...
- São cabras - disse ela, calmamente.
- Cabras? Cabras, está claro! Queria eu dizer que são um estudo que me
impressionou. São cabras, exactamente como na realidade, é mesmo o jeito das
cabras. Pergunte ao meu amigo Camenzind, que é ele próprio um filho das
montanhas; ele dar-me-á razão.
Naquele momento, e enquanto escutava perturbado e divertido a conversa,
senti-me percorrer pelo olhar da pintora que me inspeccionava. Observou-me
longamente e com à-vontade.
- É natural das montanhas?
- Sou sim, menina.
- Vê-se. Bem, e que lhe parecem as minhas cabras?
- Oh, são com certeza muito boas. Pelo menos, não as tomei por vacas, como o
Ricardo.
- É muito amável. É músico?
- Não, sou universitário.
Ela não trocou comigo nem mais uma palavra, e tive então tempo para a
observar. A figura estava encoberta e deformada pelo longo avental, e o rosto
não me pareceu bonito. Tinha um recorte nítido e singelo, os olhos um pouco
austeros, o cabelo abundante, negro e macio; mas o que me perturbava e quase
causava repulsa era a cor do rosto, Recordava-me grandemente o gorgonzola, e
não me admiraria por encontrar nele traços verdes. Eu nunca tinha visto aquela
palidez romanda e, agora, à desfavorável luz matinal do atelier, ela tinha um ar
assustadoramente pétreo, não como mármore, mas como uma pedra muito
descorada pelas intempéries. Eu não estava habituado a analisar o rosto de uma
mulher segundo as suas formas, senão que costumava procurar nelas, de forma
ainda um pouco pueril, mais a doçura, o rosado, a graça.
Também Ricardo ficou indisposto com a visita desse dia. Tanto mais espantado
e assustado fiquei quando, após algum tempo, ele me comunicou que a Aglietti
gostaria de poder desenhar-me. Tratava-se apenas de alguns esboços, que ela
não necessitava do rosto, mas a minha figura larga tinha algo de típico.

49

Antes de se falar mais nisto, surgiu outro pequeno acontecimento que alterou
toda a minha vida e, durante anos, determinou o meu futuro. Certa manhã, ao
acordar, tinha-me tornado escritor.
Incitado por Ricardo, eu descrevera ocasionalmente, puramente como exercício
de estilo, alguns tipos da minha terra, pequenos acontecimentos, conversas e
outras coisas, esboçados e representados com o máximo de fidelidade, e
escrevera também alguns ensaios sobre literatura e história.
Certa manhã, então, estando eu ainda na cama, Ricardo entrou no meu quarto e
depôs trinta e cinco francos sobre a coberta da minha cama.
- Isto pertence-te - disse ele, em tom de homem de negócios.
Por fim, tendo eu já esgotado com perguntas todas as conjecturas possíveis, ele
retirou uma folha de jornal do bolso e mostrou-me, impressa, uma das minhas
pequenas novelas. Ele havia copiado alguns dos meus manuscritos, tinha-os
levado a um redactor seu amigo e, sem nada dizer, tinha-os vendido por mim.
Eu tinha agora entre as mãos o primeiro a ser impresso e os respectivos
honorários.
Nunca sentira uma impressão tão estranha. De facto, os esforços de Ricardo
para me dirigir irritavam-me, mas o doce primeiro orgulho do escritor, o metal
sonante e ainda a ideia de uma eventual fama literária foram mais fortes e
prevaleceram finalmente.
Num café, o meu amigo fez-me encontrar o redactor. Este solicitou-me licença
para ficar com os outros trabalhos que Ricardo lhe mostrara, e convidou-me a
enviar-lhe outros de vez em quando. Que havia um tom muito próprio nas
minhas coisas, especialmente nas históricas, que gostaria de receber mais e me
pagaria bem. Só então me dei conta da seriedade do assunto. Não só poderia,
diariamente, comer em condições e pagar as minhas pequenas dívidas, como
também pôr de lado o estudo que fazia por obrigação, e talvez em breve,
trabalhando no meu campo preferido, pudesse viver do meu ganho.
Entretanto, recebi em casa um monte de livros novos enviados por aquele
redactor, para fazer recensões. Eu devorei-os e tive bem que fazer durante
semanas; mas como os honorários só eram pagos ao fim do trimestre, e eu
havia vivido melhor que de costume à conta deles, vi-me, certo dia, sem o meu
último rappe; tive, então, de iniciar de novo uma cura de fome.

50

Durante alguns dias, mantive-me a pão e café no meu quarto, depois, a fome
levou-me a um restaurante. Levei comigo três dos livros para recensão, a fim de
os deixar ali como fiança para a conta. Já os tinha tentado deixar no alfarrabista,
mas em vão. A refeição foi deliciosa mas, ao tomar o café, senti um aperto no
coração. Hesitante, confessei à empregada que não tinha dinheiro, mas que
queria deixar ali os livros como penhor. Tomou um deles na mão, um volume de
poesia, folheou-o com curiosidade, e perguntou se poderia lê-lo. Ela gostava
tanto de ler, mas nunca conseguia comprar livros. Senti que estava salvo, e
sugeri-lhe que guardasse os três pequenos volumes como pagamento da
refeição. Ela concordou e, uns após outros, ficou-me com livros a dezassete
francos cada. Por volumes de poesia mais pequenos, eu pedia, por exemplo,
queijo com pão, por romances, o mesmo com vinho, e as novelas isoladas
valiam apenas uma chávena de café com pão. Tanto quanto recordo, eram em
geral coisas de pouca importância, num estilo crispado à maneira moderna, e a
bondosa rapariga deve ter ficado com uma impressão estranha acerca da
literatura alemã moderna. Lembro com satisfação aquelas tardes em que eu,
com grande esforço, acabava de ler mais um volume a galope e escrevia umas
linhas acerca dele, a fim de o ter terminado até ao meio-dia e conseguir, em
troca, algo que se comesse. Eu procurava ocultar cuidadosamente a Ricardo as
minhas dificuldades económicas porque, embora sem necessidade,
envergonhava-me diante dele, e era com desagrado e sempre por períodos
muito curtos que aceitava o seu auxílio.
Eu não me considerava um escritor. O que escrevia, ocasionalmente, eram
folhetins, e não literatura. Mas em segredo, acalentava a secreta esperança de
um dia me ser dado escrever um poema, um grande e ousado poema à
nostalgia e à vida.
O espelho alegre e límpido da minha alma era de vez em quando ensombrado
por uma espécie de melancolia mas, nessa altura, não estava seriamente
turbado. Ela surgia aqui e além, por um dia ou uma noite, como uma tristeza
sonhadora de solitário, mas desaparecia de novo sem rasto, regressando após
semanas ou meses. Eu habituara-me a ela aos poucos como a uma amiga
íntima, e não a sentia como atormentadora, mas apenas como uma inquietude e
um cansaço que possuíam a sua Própria doçura. Quando me acometia à noite,
em vez de dormir,

51

eu deitava-me horas seguidas no vão da janela, olhava o lago negro, as


silhuetas dos montes recortadas contra o céu pálido e, por cima, as belas
estrelas. Depois, não raro, era tomado por um forte sentimento temeroso e doce,
como se toda esta beleza nocturna me observasse com um justo olhar
reprovador. Como se as estrelas, as montanhas e os lagos ansiassem por
alguém que compreendesse e expressasse a sua beleza e a dor da sua
existência silenciosa, como se fosse eu esse alguém, como se a minha
verdadeira missão fosse a de, pela escrita, dar expressão à natureza silenciosa.
De que forma isto seria possível, era coisa sobre que nunca pensava, senão que
sentia apenas a bela noite, grave, esperar por mim numa exigência silenciosa.
Também nunca escrevi nada neste estado de espírito. No entanto, tinha um
sentimento de responsabilidade frente a estas vozes silenciosas e, usualmente,
após noites como esta, eu dava passeios a pé durante dias. Parecia-me que
poderia assim manifestar um pouco de amor para com a terra que se me
ofertava, numa súplica silenciosa, ideia sobre a qual, depois, eu próprio me ria.
Estes passeios tornaram-se numa base da minha vida futura; a partir de então,
passei grande parte dos anos como caminhante, em excursões de semanas e
meses por diversos países. Habituei-me a fazer longas caminhadas com um
naco de pão no bolso, a passar dias a caminho, solitário, e a pernoitar com
frequência ao ar livre.
Com a escrita, eu esquecera de todo a pintora. E então, chegou-me um bilhete
dela: «Na quinta-feira, alguns amigos e amigas encontrar-se-ão em minha casa
para o chá. Por favor, venha também, e traga o seu amigo.»
Nós fomos e encontrámos um pequeno grupo de artistas em convívio. Eram
quase só gente sem nome, esquecidos, sem êxito, o que para mim tinha algo de
tocante, apesar de todos parecerem inteiramente satisfeitos e divertidos. Havia
chá, pão com manteiga, presunto e salada. Como não encontrei ali conhecidos
e, além disso, não era falador, cedi à minha fome e comi durante uma meia hora
em silêncio e sem parar, enquanto os outros começavam apenas a bebericar o
chá, conversando. Quando estes, um após outro, quiseram pegar em alguma
coisa, apercebemo-nos de que, sozinho, eu tinha comido todo o presunto. Eu
crera, erroneamente, que haveria pelo menos mais uma travessa de reserva.
Como começassem a ouvir-se risos abafados e eu apercebesse olhares
irónicos,

52

roguei pragas à italiana mais o seu presunto. Ergui-me e apresentei-lhe uma


desculpa seca, explicando-lhe que, da próxima, eu mesmo levaria o meu jantar,
e peguei no meu chapéu.
Então, a Aglietti arrancou-me o chapéu da mão, olhou-me espantada e
calmamente, e pediu-me seriamente para ficar. Sobre a sua face recaía a luz de
um candeeiro de pé, suavizada por um quebra-luz de crepe e, em meio da
irritação, os meus olhos descobriram subitamente a maravilhosa beleza madura
desta mulher. De um momento para o outro, senti-me muito descortês e
estúpido, e tomei lugar num recanto afastado, como um garoto de escola
repreendido. Fiquei ali sentado a folhear um álbum do lago Como. Os outros
bebiam chá, andavam de cá para lá, riam e conversavam em confusão e,
algures ao fundo, ouvia-se o afinar de violinos e um violoncelo. Uma cortina
abriu-se e vimos quatro jovens sentados diante de estantes improvisadas,
prontos a apresentar um quarteto de cordas. Nesse momento, a pintora veio
para junto de mim, colocou uma chávena de café sobre a mesinha à minha
frente, acenou-me amavelmente e tomou lugar a meu lado. O quarteto começou
e foi longo, mas eu nada escutei dele; de olhos esbugalhados, eu observava
maravilhado aquela dama elegante, delicada e bem vestida, de cuja beleza
duvidara e cujas provisões devorara. Com alegria e temor recordei que ela
quisera desenhar-me. Depois, pensei em Rosa Girtanner, na ascensão da
escarpa das rosas dos Alpes, na história da Rainha da Neve, parecendo-me
tudo apenas uma preparação para este momento.
Quando a música terminou, a pintora não se foi embora outra vez, como eu
receara, permaneceu calmamente sentada e começou a conversar comigo.
Felicitou-me por uma novela que tinha visto no jornal. Gracejou acerca de
Ricardo, em torno do qual se acotovelavam algumas raparigas, cujo riso
despreocupado sobrepujava por vezes todas as outras vozes. Depois, pediu de
novo licença para me desenhar. Então, tive uma ideia. Sem transição, continuei
a conversa em italiano, o que me valeu não só um olhar alegremente surpreso
dos seus olhos vivos de meridional, como também o delicioso prazer de a ouvir
falar na sua língua, a língua que ficava bem à sua boca, aos seus olhos e à sua
figura, a língua toscana, de sons agradáveis, elegante e fluida, com um leve e
enternecedor acento do linguajar de Ticino. Eu próprio não falava bem nem com
fluência, mas isso não me incomodava. No dia seguinte, deveria ir lá para ser
desenhado por ela.

53
- A rivederla - disse eu como despedida, fazendo uma vénia tão pronunciada
quanto possível.
- A rivederci domani - sorriu ela acenando.
Saindo de sua casa, caminhei sempre em frente, até que a estrada chegou ao
alto de uma colina e, de repente, a paisagem escura se estendeu bela e
majestosa ante mim. Um único barco deslizava sobre o lago e lançava algumas
faixas escarlate tremeluzindo sobre a água negra, da qual só aqui e além
sobressaía uma delgada crista de onda com uma silhueta estreita e prateada.
Num jardim próximo, ouviam-se o toque do bandolim e risos. O céu estava meio
encoberto, e sobre as colinas corria um vento forte e quente.
E assim como o vento acariciava os ramos das árvores de fruto e as copas
negras dos castanheiros, assim como as fustigava e vergava fazendo-as gemer
e rir e estremecer, assim também brincava comigo a paixão. Ajoelhei sobre o
cume da colina, estendi-me sobre o solo, ergui-me de um salto, bati os pés
contra o chão, lancei o chapéu para longe, esfreguei o rosto contra a erva,
abanei os troncos das árvores, chorei, ri, solucei, vociferei, envergonhei-me,
sentia-me ditoso e mortalmente angustiado. Após uma hora, tudo em mim
estava descontraído e abafado num sombrio torpor. Não pensei nada, não decidi
nada, não senti nada; andando como em sonhos, desci a colina, vagueei por
meia cidade, vi numa rua apartada uma pequena taberna ainda aberta, entrei
maquinalmente, bebi dois litros de Vaud e, pela manhã, voltei a casa
tremendamente bêbedo.
Na tarde seguinte, a menina Aglietti ficou muito assustada quando fui ter com
ela.
- Que tem? Está doente? Tem um ar completamente transtornado.
- Nada de grave - disse eu. - Parece-me que esta noite estive muito bêbedo, e é
tudo. Por favor, comece.
Fui conduzido a uma cadeira, pediram-me que me mantivesse quieto. E assim
fiz, porque em breve caía num sono profundo, passando toda a tarde a dormir
no atelier. Certamente em virtude do cheiro a terebintina das oficinas de pintura,
eu sonhei que o nosso barquito, lá em casa, estava a ser pintado de fresco. Eu
estava estendido sobre o cascalho ali ao lado, a manejar a lata e o pincel; a mãe
também ali estava, e quando lhe perguntei se não havia morrido, ela disse
baixinho:

54

- Não, porque se não estivesse aqui, tu acabarias por dar num pobre diabo como
o teu papá.
Quando acordei, caí da cadeira abaixo e, espantado, dei comigo na oficina da
Hermínia Aglietti. A ela, não a vi, mas ouvi-a a fazer tilintar chávenas e talheres
na salita ao lado, e depreendi daí que deveriam ser horas do jantar.
- Já acordou? - gritou-me ela.
- Já sim. Dormi muito tempo?
- Quatro horas. Não tem vergonha?
- Tenho sim. Mas tive um sonho lindíssimo.
- Conte lá!
- Conto, se sair daí e me perdoar.
Ela saiu, mas queria guardar o perdão até eu lhe narrar o sonho. Contei então, e
com a narrativa do sonho mergulhei profundamente na época da infância;
quando me calei e já a noite estava cerrada, tinha-lhe contado, a ela e a mim
próprio, toda a história da minha infância. Ela deu-me a mão, endireitou-me o
casaco amarrotado, convidou-me a voltar amanhã para o desenho, e senti que
tinha compreendido também e perdoado a minha falta de cortesia de hoje.
Nos dias seguintes, posei para ela hora após hora. Quase não falávamos, eu
permanecia ali sentado ou de pé, quieto e como que encantado, escutava o
roçar macio do carvão de esboço, aspirava o leve cheiro a tintas de óleo, e não
tinha outra sensação que saber-me junto à mulher que amava, com o olhar dela
permanentemente poisado em mim. A luz branca do atelier derramava-se pelas
paredes, algumas moscas sonolentas zuniam nos vidros e, na salinha ao lado,
cantava a chama de álcool, pois após cada sessão era-me servida uma chávena
de café.
Em casa, pensava frequentemente em Hermínia. Não me incomodava nem
minorava a minha paixão, o facto de não poder reverenciar a sua arte. Ela, de si,
era tão bela, bondosa, límpida e segura; que me interessavam os seus quadros?
Pelo contrário, eu encontrava no seu trabalho aplicado algo de heróico. A mulher
em luta pela vida, uma corajosa heroína, silenciosa e paciente. Aliás, não há
nada de mais vão que meditar sobre alguém que se ama. Essas correntes de
pensamento são como certos cantos populares e guerreiros onde surgem
milhares de coisas, mas cujo refrão regressa, contumaz, mesmo quando ele em
nada vem a propósito.

55

É também assim, pois, a imagem da bela italiana que trago na memória, a qual
não sendo embora vaga, carece, todavia, das inúmeras pequenas linhas e
traços que usualmente vemos muito melhor nos estranhos do que naqueles que
nos são próximos. Já não sei que penteado ela usava, como se vestia, e assim
por diante, nem mesmo se tinha uma estatura alta ou baixa. Quando penso nela,
vejo uma cabeça de mulher de cabelos negros, de formas nobres, um par de
olhos penetrantes e não muito grandes num rosto pálido e vivo, e uma boca de
um belo arco perfeito, estreita, de severa maturidade. Quando penso nela e
nesse tempo de paixão, recordo sempre e apenas aquela tarde sobre a colina
em que o vento cálido corria sobre o lago, em que eu chorei, rejubilei e
estrebuchei. E uma outra noite que vou agora narrar.
Foi organizada uma pequena festa estival por artistas e seus amigos. Era junto
ao lago, num jardim bonito, um serão em pleno estio, brando e quente.
Bebíamos vinho e água gelada, escutávamos música e observávamos os
lampiões de papel vermelho que pendiam entre as árvores, em girândolas.
Cavaqueou-se, fez-se chacota, houve risos e por fim cantou-se. Um miserável
aprendiz de pintor dava-se ares de romântico; usava barrete ousado, encostava-
se à balaustrada deitado de costas, e tocava qualquer coisa numa guitarra de
braço comprido. A meia dúzia de artistas mais importantes não se encontrava ali,
ou então estavam à parte, ocultos entre o círculo dos mais velhos. Quanto às
mulheres, apareceram algumas jovens em vestidos claros de verão; as outras
andavam por ali com os habituais fatos desleixados. Notei, designadamente,
uma estudante um pouco mais velha e feia que me repugnou; usava um chapéu
de palha masculino sobre os cabelos curtos, fumava charuto, excedia-se no
vinho e falava alto e muito. Ricardo, como de costume, estava com as raparigas
novas. Eu, apesar de toda a excitação, permanecia frio, bebia pouco e esperava
pela Aglietti, que prometera ir comigo num passeio a remos. E veio realmente,
ofereceu-me algumas flores e entrou comigo no pequeno barco.
O lago tinha uma superfície lisa como óleo, e estava escuro, sem cor. Impeli
rapidamente o pequeno barco pelo quieto lago adentro, bem para longe, vendo
sempre diante de mim aquela mulher elegante comodamente recostada e
satisfeita no banco do leme. O céu estava alto e ainda azul e fazia surgir
lentamente, baça, uma estrela após outra; na margem,

56

aqui e além, havia música e divertimentos nos jardins. A água calma envolvia os
remos, num ou noutro ponto vogavam barcos, negros e quase invisíveis já sobre
a superfície quieta, mas eu mal os notava; fixava a mulher ao leme sem desviar
o olhar e levava a planeada declaração de amor oprimindo-me o coração como
uma tenaz. Todo o cenário belo e poético do serão, o passeio no barco, as
estrelas, o lago tíbio e sossegado, tudo isto me atemorizava, pois me parecia um
belo cenário teatral em cujo centro eu devia desempenhar um papel sentimental.
Na minha angústia, opresso pelo profundo silêncio pois ambos nos
mantínhamos calados, eu remava com vigor.
- Que forte que é! - disse a pintora, pensativa.
- Quer dizer gordo? - perguntei.
- Não, refiro-me aos músculos - riu ela.
- Sim, lá forte, sou eu.
Não era um bom começo. Triste e irritado, continuei a remar. Após um pedaço,
pedi-lhe que me contasse alguma coisa da sua vida.
- Que deseja ouvir?
- Tudo - disse eu. - Preferivelmente, uma história de amor. Depois, eu conto-lhe
a minha, a única. É muito curta e bela, e vai diverti-la.
- Que coisas diz! Conte lá!
- Não, primeiro você! Aliás, já sabe muito mais acerca de mim que eu de si.
Desejo saber se já alguma vez esteve realmente enamorada, ou se, como
receio, é demasiado inteligente e altiva para isso.
Hermínia meditou durante algum tempo.
- Isto é mais uma das suas ideias românticas - disse ela - durante a noite, aqui
sobre as águas negras, pedir a uma mulher que lhe conte histórias. Mas
infelizmente, não sou capaz. Vós, os escritores, estais habituados a ter lindas
palavras para tudo, e a supor que aqueles que falam pouco dos seus
sentimentos não têm coração. Quanto a mim, enganou-se, pois não creio que
alguém possa amar com maior paixão e vigor que eu. Amo um homem que está
ligado a outra mulher, e ele não me ama menos; contudo, nenhum de nós sabe
se alguma vez será possível virmos a unir-nos. Escrevemo-nos e, por vezes,
também temos encontros...
- Posso perguntar-lhe se esse amor a faz feliz, miserável, ou ambas as coisas?

57

- Ah, o amor não existe para nos fazer felizes. Acho que ele existe para nos
mostrar quão fortes podemos ser no sofrimento e na paciência.
Eu compreendi isto, e não pude impedir que me saísse da boca um leve gemido
em lugar de uma resposta. Ela ouviu.
- Ah - disse - você também já conhece isto? Ainda é tão novo! Também quer
confessar-se a mim? Mas só se o quiser realmente...
- Noutra altura, talvez, menina Aglietti. Hoje sinto o espírito agitado e pesa-me
que talvez lhe tenha perturbado também a si a boa disposição. Vamos voltar?
- Como queira. A que distância estamos?
Não dei mais resposta, senão que finquei os remos na água com grande
marulhar, virei e puxei, como se o vento norte ameaçasse. O barco deslizava
rapidamente sobre a superfície, e em meio do turbilhão de desolação e
vergonha oculto dentro de mim, eu notava o suor a escorrer-me pelo rosto em
grossas bagas, ao mesmo tempo que sentia frio. Quando pensava bem em
como estivera prestes a fazer o papel do suplicante que se prostra e do amante
maternal e amigavelmente repelido, um arrepio percorria-me a espinha. Isso, ao
menos, fora-me poupado, e quanto à restante desolação, tinha agora de
resignar-me. Remei para casa como um possesso.
A bela menina estava um pouco desconcertada quando me despedi dela
rapidamente e a deixei só. O lago estava tão liso, a música tão alegre e os
lampiões de papel tão festivos como antes, mas a mim, tudo isso me parecia
agora tolo e ridículo. Muito especialmente a música. O que mais me apetecia era
desfazer o fulano do casaco de veludo que ostensivamente continuava a segurar
a guitarra pela larga banda de seda. Além disso, o programa previa ainda fogo-
de-artifício. Era tudo tão pueril!
Pedi emprestados alguns francos a Ricardo, atirei o chapéu sobre a nuca e
comecei a marchar pela cidade fora e mais além, hora após hora, até sentir
sono. Deitei-me sobre o prado mas, uma hora depois, acordei de novo
encharcado de orvalho, hirto e enregelado, e fui até à aldeia mais próxima. Era
manhã cedo. Cegadores de trevo avançavam pelos caminhos poeirentos,
criados ensonados espreitavam de olhos esbugalhados à porta dos estábulos, a
actividade estival do campo anunciava-se por toda a parte. Devias ter
permanecido lavrador, dizia para comigo,

58

envergonhado; avançava pela aldeia e, fatigado, continuei a caminhar até que o


primeiro calor do sol me permitiu o repouso. Junto a um arbusto de faia, atirei-
me sobre a erva seca da berma e dormi sob o sol quente pela tarde fora.
Quando acordei, com a cabeça cheia do perfume do prado e os membros tão
agradavelmente pesados como só após jazerem longamente sobre a terra do
bom Deus, a festa, o passeio de barco e tudo o mais parecia-me tão longínquo,
triste e semi-esvaecido como um romance lido há meses.
Permaneci três dias fora, deixei que o sol me queimasse a pele e perguntava-me
se não deveria ir para casa de uma vez por todas para auxiliar o pai na apanha
do feno.
É claro que, com isto, nem de longe eliminara a dor. Após o meu regresso, fugi
de início ao olhar da pintora, mas não por muito tempo, e sempre que, depois,
ela me olhava e falava, a angústia apertava-me a garganta.

59

4.

Aquilo que meu pai não conseguira naquela altura, conseguiu-o agora esta
angústia amorosa. Fez de mim um bebedor. Para a minha vida e o meu carácter,
isto foi mais importante que tudo o mais que até agora contei. Deus, poderoso e
amoroso, foi para mim um amigo fiel e é-o ainda hoje. Quem haverá tão
poderoso como ele? Quem haverá tão belo, fantástico, entusiasta, tão alegre e
melancólico? Ele é um sedutor, um irmão de Eros. Ele consegue o impossível;
enche pobres corações humanos de belos e maravilhosos poemas. De mim,
solitário e camponês, fez um rei, um poeta, um sábio. Às barcas vazias da vida,
ele carrega-as de novos destinos e, às encalhadas, lança-as de novo para
rápidas torrentes da vida.
E assim é também o vinho. Mas quanto a este, passa-se o mesmo que com
todos os dons e artes preciosos. Ele quer ser amado, procurado, compreendido
e conquistado com esforço. Poucos o conseguem, e ele leva milhares e milhares
à morte. Ele torna-os velhos, ele mata-os ou apaga neles a chama do espírito.
Mas aos seus eleitos, ele convida-os para festas e constrói-lhes pontes de arco-
íris para ilhas bem-aventuradas. Quando estão cansados, coloca almofadas sob
as suas cabeças e abraça-os, quando se tornam presas da tristeza, num
amplexo suave e bondoso como um amigo ou uma mãe consoladora. Ele
transforma a confusão da vida em sublimes mitos e com possante harpa toca o
cântico da criação.
E logo ele é uma criança, de sedosos caracóis, ombros estreitos e membros
delicados. Ele encosta-se ao teu coração e ergue o estreito rosto para o teu, e
olha-te espantado e sonhador com enormes olhos amorosos, no fundo dos
quais, em toda a sua frescura e esplendor,

61

pairam um paraíso e uma infância divina não perdida, como um manancial que
acaba de brotar na floresta.
E o bom Deus assemelha-se também a uma torrente que atravessa, profunda e
rumorejante, uma noite primaveril. E assemelha-se a um mar que embala o sol e
a tempestade sobre as frescas ondas.
Quando fala com os seus dilectos, então, com um marulhar, uma embriaguês
arrepiantes, inunda-os no mar tumultuoso dos mistérios, da recordação, da
poesia, do pressentimento. O mundo conhecido torna-se pequeno e perde-se e,
com temerosa alegria, a alma lança-se na vastidão sem trilhos do desconhecido,
onde tudo é estranho, tudo é familiar, e onde se fala a linguagem da música, dos
poetas e do sonho.
Mas, primeiro, terei de contar.
Acontecia que eu, esquecido de mim e bem disposto, conseguia passar horas a
estudar, a escrever e a escutar a música de Ricardo. Mas não se escoava dia
algum sem dor. Por vezes, ela sobrevinha só à noite, na cama, e fazia-me
gemer, revoltar e adormecer já tarde em lágrimas. Ou então ela despertava se
encontrava a Aglietti. Mas, usualmente, surgia à noitinha, quando começavam os
belos, cálidos e fatigantes serões estivais. Então, eu ia até ao lago, tomava um
barco, remava até suar e me cansar, e parecia-me depois impossível regressar a
casa. Ia, pois, para a taberna ou uma cervejaria. Ali, experimentava diversos
vinhos, bebia e meditava e, por vezes, no dia seguinte estava quase doente.
Muitas vezes era acometido de uma angústia tão horrenda, de tal sensação de
nojo, que decidia nunca mais beber. Mas eu voltava e bebia. Aos poucos,
comecei a distinguir os vinhos e a sua acção, e saboreava-os com uma espécie
de discernimento, mas, geralmente, ainda com bastante inconsciência e
ignorância. Por fim, encontrei apoio no vinho vermelho escuro de Valtellina. Ao
primeiro copo tinha um sabor adstringente e excitante, depois toldava-me os
pensamentos até provocar um sonho calmo e constante, e começava então a
sua acção mágica, ele criava, ele próprio fazia poesia. Então, eu via todas as
paisagens que alguma vez me haviam agradado envolver-me em deliciosas
luminosidades, e eu próprio vagueava por elas, e cantava e sonhava, e sentia
uma vida superior e quente rodopiar dentro de mim. E terminava com uma
tristeza extremamente agradável, como se ouvisse tocar músicas populares em
rabecas, como se tivesse a certeza de encontrar algures uma grande felicidade
pela qual tivesse passado sem a notar.

62

Sucedeu naturalmente que, a pouco e pouco, quase deixei de beber sozinho;


encontrava todo o tipo de companhias. Logo que estava rodeado por gente, o
vinho tinha outra acção sobre mim. Eu tornava-me conversador, mas não
exaltado; sentia uma febre fria e peculiar. Durante a noite, floria uma faceta do
meu ser até então desconhecida, a qual se incluía não nas flores de jardim ou
decorativas, mas na espécie dos cardos e urtigas. É que, a par da
coloquialidade, sobrevinha um espírito arguto e frio, que me tornava seguro,
superior, crítico e trocista. Se houvesse pessoas cuja presença me incomodava,
eram zombadas e molestadas, ora com fineza e astúcia, ora com rudeza e
persistência, até que se iam. Desde a infância que, em geral, as pessoas não
me eram nem especialmente queridas nem necessárias; agora, começava a
olhá-las de forma crítica e irónica. Tinha especial prazer em inventar e contar
pequenas histórias, nas quais as relações entre as pessoas eram rude e
satiricamente apresentadas com aparente objectividade, amargamente
escarnecidas. De onde me vinha este tom depreciativo, nem eu próprio o sabia;
brotava do meu ser como um abcesso que ia amadurecendo, e do qual, durante
anos, não me pude libertar.
Mas se, entretanto, passasse de novo um serão a sós, então, eu sonhava outra
vez com montes, estrelas e música melancólica.
Nestas semanas, escrevi uma série de meditações sobre a sociedade, a cultura
e a arte do nosso tempo, um pequeno livrinho virulento, nascido das minhas
conversas de taberna. Dos meus estudos históricos efectuados com bastante
ardor, juntou-se-lhe algum material histórico, que conferia às minhas sátiras uma
espécie de sólido pano de fundo.
Em virtude deste trabalho, alcancei um posto de colaborador permanente de que
quase podia viver. Logo de seguida, surgiram também as crónicas como livro
independente que tiveram certo êxito. Pus, então, a filologia completamente de
lado. Eu já me encontrava em semestres avançados; seguiram-se relações com
jornais alemães que me elevaram da obscuridade e miséria ao círculo dos
consagrados. Eu ganhava o meu Pão, dispensei a aborrecida bolsa, e lancei-me
a todo o pano rumo à desprezível vida de um pequeno literato de profissão.
E apesar do êxito e do meu orgulho, apesar das sátiras, apesar do meu
desgosto de amor, tanto na alegria como no pesar, o cálido brilho da juventude
repousava sobre mim. Apesar de toda a ironia e de uma pequena

63

e inofensiva afectação, eu via constantemente em sonhos um objectivo, uma


felicidade, uma realização diante de mim. O que viria a ser, não o sabia. Sentia
apenas que a vida teria alguma vez de lançar-me aos pés uma felicidade
especialmente risonha, uma fama, um amor talvez, a satisfação do meu anseio e
a elevação do meu ser. Eu era ainda o pajem que sonha com nobres damas,
com ser armado cavaleiro e com grandes honras.
Eu cria encontrar-me no início de um caminho que conduzia ao alto. Não sabia
que tudo quanto até agora experimentara eram apenas acasos, e que ao meu
ser e à minha vida faltavam ainda o tom profundo e próprio. Não sabia ainda que
sofria de um anseio para o qual nem o amor nem a fama são fim ou realização.
E assim, saboreava a minha pequena fama um tanto rude com todo o
entusiasmo da juventude. Era-me benfazejo sentar-me diante de um bom vinho,
entre gente inteligente e intelectual e, quando começava a falar, ver os seus
rostos ávidos e atentos voltados para mim.
Por vezes, apercebia em todas estas almas de hoje como que um grande anseio
clamando por libertação, e a que singulares caminhos ele as conduzia. Crer em
Deus era considerado estúpido e quase indecoroso, mas à parte isso, criam em
inúmeras doutrinas e nomes, em Schopenhauer, Buda, Zaratustra e muitos
outros. Havia poetas jovens e sem nome que, em habitações com estilo,
celebravam devoções festivas diante de estátuas e pinturas. Eles ter-se-iam
envergonhado de fazer uma vénia diante de Deus, mas prostravam-se de
joelhos diante do Zeus de Otrikoli. Havia ascetas que se torturavam com
continência e cuja toilette bradava aos céus. O seu deus chamava-se Tolstoi ou
Buda. Havia artistas que, mediante tapeçarias, músicas, iguarias, vinhos,
perfumes ou charutos meticulosamente sopesados e harmonizados,
provocavam em si estranhos estados de espírito. Falavam fluentemente e com
artificiosa naturalidade, de linhas musicais, acordes de cores, e coisas do
género, e por toda a parte procuravam a «nota pessoal» que, usualmente,
residia nalguma ingénua auto-ilusão ou extravagância. No fundo, toda esta
comédia crispada me parecia divertida e ridícula; todavia, sentia não raro, como
um estranho calafrio, quanta ansiedade autêntica e verdadeira força espiritual
flamejava ali e em vão se consumia.
De entre todos os poetas, artistas e filósofos da nova moda que fantasticamente
faziam a sua aparição e nessa época, espantado e divertido,

64

eu vim a conhecer, não sei de nenhum que viesse a dar algo de notável. Entre
eles, havia um alemão do Norte com a mesma idade que eu, uma
personagenzinha simpática, pessoa delicada, amável e sensível em tudo o que
se relacionava com questões artísticas. Era considerado um escritor promissor,
e ouvi ler algumas vezes poemas dele que surgem ainda na minha recordação
como algo de extraordinariamente perfumado, belo e inspirado. Talvez que, de
entre todos nós, ele fosse o único que poderia vir a tornar-se num verdadeiro
poeta. Casualmente, vim mais tarde a conhecer a sua curta história. Perturbado
por um fiasco literário, na sua extrema sensibilidade, afastou-se do público e
caiu nas mãos de um mecenas que, em lugar de o estimular e chamar à razão,
rápido o destruiu por completo. Nas villas daquele senhor abastado, diante das
damas histéricas, ele dava-se a um contínuo enfatuamento e, na sua presunção,
imaginava-se um herói menosprezado e miseravelmente mal conduzido; com o
excesso de música de Chopin e êxtases pré-rafaélicos, levava-se continuamente
à perda da razão. É com horror e tristeza que recordo esta plêiade de poetas e
belas almas de estranhos vestuários e penteados, quase incapazes de voar
ainda, pois só mais tarde compreendi o perigo deste relacionamento. Mas a
minha qualidade de camponês das montanhas preservou-me de tomar parte
naquela embriaguês.
Mas mais nobre e compensadora que a fama e o vinho, que o amor e a
sabedoria, era a minha amizade. No fundo, só ela me auxiliava na minha natural
inaptidão para a vida e mantinha os anos da minha juventude com uma frescura
e alvor íntegros. Ainda hoje não conheço nada de mais excelente no mundo que
uma amizade verdadeira e nobre entre homens, e se alguma vez, em dias de
melancolia, sou dominado por algo como a saudade da juventude, sinto-a
apenas pela minha amizade de estudante.
Desde o meu enamoramento por Hermínia que descuidara um POUCO Ricardo.
De início, isso sucedeu inconscientemente, mas após algumas semanas, a
consciência mordeu-me. Confessei-lhe tudo, e ele desvendou-me que, com
pesar, vira aproximar-se e crescer toda aquela desventura, e eu liguei-me de
novo a ele de todo o coração e com exclusivismo. Tudo quanto aprendi das
pequenas artes alegres e livres da vida, tudo veio dele. Era belo de corpo e
alma, e a vida parecia não ter mistérios para si. Como pessoa inteligente e
activa, ele conhecia bem as paixões

65

e erros dos tempos, que passavam por ele sem lhe causar dano. O seu andar e
a sua linguagem e todo o seu ser eram flexíveis, harmoniosos e amáveis. Oh,
como ele sabia rir.
No tocante ao meu estudo dos vinhos, ele mostrava pouco entendimento. Por
vezes, acompanhava-me, mas dois copos chegavam-lhe, e observava o meu
consumo notavelmente superior com um espanto pueril. Mas quando via que eu
sofria e, impotente, era dominado pela melancolia, fazia música, lia para mim ou
levava-me a um passeio. Nos nossos pequenos giros, não raro íamos
descontraídos como duas crianças pequenas. Certa vez, durante o repouso de
um meio-dia quente, estendemo-nos num vale com um bosque, atirámos com
pinhas um ao outro e cantámos versos de «A Piedosa Helena» com melodias
sentimentais. O ribeiro rápido e límpido rumorejava tão insistente e fresco aos
nossos ouvidos que nos desnudámos e deitámos na água fria. Então, ele teve a
ideia de representar comédias. Sentou-se sobre uma rocha musgosa, fazendo
de Loreley, e eu, lá em baixo, como barqueiro, passava navegando no pequeno
barco. Ele apresentava um ar tão virginalmente puro e fazia tais momices que
eu, que deveria fingir o louco de dor, mal continha o riso. De repente, fizeram-se
ouvir vozes, um grupo de turistas surgiu na vereda, e nós, assim desnudos,
tivemos de ocultar-nos em grande pressa por sob a margem desgastada pela
água, formando um parapeito. Quando o grupo, desprevenido, passou por nós,
Ricardo soltou os mais diversos sons estranhos, grunhindo, chiando e bufando.
As pessoas estacaram, olharam em redor, fixaram a água e estavam prestes a
descobrir-nos. Então, o meu amigo surgiu em meio corpo do seu esconderijo,
olhou o indignado grupo, e disse com voz profunda e gestos sacerdotais:
- Ide em paz!
E desapareceu logo de seguida, beliscou-me no braço e comentou:
- Também isto era uma charada!
- E qual? - perguntei.
- Pá, assusta alguns pastores - riu ele. - Infelizmente, também havia mulheres
entre eles.
Quanto aos meus estudos históricos, ele interessava-se pouco. Mas a minha
predilecção, quase enamoramento, por Francisco de Assis, em breve foi
partilhada por si, muito embora ocasionalmente pudesse fazer larachas que me
deixavam indignado.

66
Víamos o bem-aventurado, amável, entusiasmado e alegre como uma deliciosa
criança grande a vaguear pelas terras da Úmbria, feliz com o seu Deus e repleto
de amor humilde para com todos os homens. Lemos juntos o seu imortal Cântico
ao Sol, e sabíamo-lo quase de cor. Certa vez em que regressávamos de um
passeio de barco pelo lago e o vento da tarde movia a água dourada, ele
perguntou baixinho:
- O que é que o santo diz nesta situação? E eu citei:
- «Laudato si, misignore, per frate vento e per aere e nubilo e sereno e bonne
tempo!»
Quando discutíamos e trocávamos ofensas, ele lançava-me, sempre meio a
brincar, ao modo de um rapazola, tal quantidade de apodos jocosos que em
breve eu era forçado a rir e a irritação perdia a sua agudeza. O meu querido
amigo só estava relativamente sério quando escutava ou tocava os seus
músicos preferidos. Mas ainda assim, ele podia interromper-se para fazer
qualquer brincadeira. Contudo, o seu amor pela arte era repleto de pura e
sincera entrega, e a sua sensibilidade pelo autêntico e mais importante parecia-
me iniludível.
Ele praticava maravilhosamente a subtil e delicada arte do consolo, do
acompanhar no sofrimento ou do alegrar, quando algum dos seus amigos estava
em dificuldades. Quando me encontrava de mau humor, ele conseguia contar-
me grande número de histórias anedóticas de uma graça grotesca, e no seu tom
havia um não sei quê de pacificador e animador a que raro eu podia resistir. Ele
sentia algum respeito para comigo, porque eu era mais sisudo que ele; e muito
mais impressão ainda lhe causava a minha força física. Gabava-a diante dos
outros, e sentia orgulho em ter um amigo capaz de o esmagar com uma só mão.
Ele dava muito valor às capacidades e destreza físicas, ensinou-me ténis,
remava e nadava comigo, levava-me a cavalgadas e não descansou enquanto
eu não soube jogar bilhar quase tão bem como ele. Era o seu jogo preferido, e
não só o praticava artisticamente e com mestria, como costumava mostrar-se
sempre especialmente activo, gracejador e alegre. Frequentemente, dava às
três bolas o nome de pessoas das nossas relações, e a cada tacada, pelo
posicionamento, aproximação e distanciamento, construía verdadeiros romances
plenos de gracejos, alusões e comparações caricaturais.

67

Entretanto, ia jogando calmamente, com leveza e extrema elegância, e era um


prazer observá-lo.
Aos meus escritos, ele não dava maior valor que eu próprio. Certa vez, disse-
me:
- Olha, eu sempre te considerei um poeta, e assim te considero ainda, não pelos
teus folhetins mas porque sinto que tens vivo dentro de ti algo de belo e
profundo que, mais cedo ou mais tarde, acabará por brotar. E isso, então, será
um verdadeiro poema.
Entretanto, os semestres escorriam-nos por entre os dedos como moedas
pequenas; inesperadamente, chegou o momento em que Ricardo tinha de
pensar no regresso à sua terra. Com uma descontracção um tanto artificial, nós
saboreámos as semanas que se esfumavam e, por fim, concordámos que antes
da amarga despedida, estes belos anos teriam de ser encerrados por algum
alegre e prenunciador acto fulgurante e festivo. Eu propus uma viagem de férias
pelo maciço de Bernina mas, de facto, estávamos ainda no início da Primavera,
e para os Alpes era demasiado cedo. Enquanto eu matutava noutras propostas,
Ricardo escreveu ao seu pai e, em segredo, preparou-me uma grande e alegre
surpresa. Certo dia, veio ter comigo com uma avultada letra de câmbio e
convidou-me a acompanhá-lo ao Norte de Itália como guia.
O meu coração batia de exaltação e alegria. Iria realizar-se um sonho
ansiosamente desejado, acalentado por mim desde a infância e mil vezes
fantasiado. Febrilmente, tratei dos meus poucos preparativos, ensinei ainda ao
meu amigo algumas palavras de italiano e, até ao último dia, receei que
acabasse por não vir a realizar-se.
A nossa bagagem fora despachada previamente, nós íamos sentados no vagão,
os campos verdes e as colinas tremeluziam ao passar, veio o lago Uri e o
Gothard, depois as aldeolas de montanha e ribeiros, as vertentes de aludes e
cumes nevados do Ticino, de seguida as primeiras casas de pedra negra em
vinhas planas, e a viagem prenunciadora bordejando os lagos, através da
fecunda Lombardia, rumo à ruidosa e viva Milão, estranhamente atractiva e
repulsiva.
Ricardo não fazia ideia da catedral de Milão, que conhecia apenas como um
edifício grande e famoso. Foi divertidíssimo observar a sua decepção e
indignação. Quando superou o primeiro choque e recuperou o humor, ele
mesmo propôs subir ao telhado para se passear por entre a fantástica confusão
de figuras de pedra lá em cima.

68

Com alguma satisfação, verificámos que não havia que lastimar grandemente as
miseráveis centenas de estátuas de santos sobre os coruchéus porque, na sua
maioria, ou pelo menos todas as novas, se manifestavam como um trabalho
fabril de fraca qualidade. Estivemos estendidos quase duas horas sobre as
largas placas de mármore inclinadas, que o sol de Abril havia aquecido
levemente. Com satisfação, Ricardo afirmou-me:
- Sabes, no fundo, não me importo de sofrer mais decepções como com esta
louca catedral. Durante toda a viagem, tive um certo receio das inúmeras
grandezas que iríamos visitar e nos oprimiriam. E agora, tudo começa de forma
tão agradável e humanamente ridícula!
Depois, aquela multidão confusa de figuras de pedra por entre a qual nos
encontrávamos estendidos, evocou nele imensas fantasias barrocas.
- Provavelmente - dizia ele - ali em cima do torreão do coro, que é o pico mais
alto, deve também estar o maior santo, o mais importante. E como não deve ser
nenhum prazer permanecer eternamente como acrobata petrificado em
equilíbrio sobre aquele torreão pontiagudo, é fácil que, de tempos a tempos, o
santo mais elevado seja liberto e elevado ao céu. Imagina agora a confusão que
se gera de cada vez. É que, com certeza, todos os outros santos, precisamente
pela ordem da sua categoria, terão de avançar um lugar e, com um grande pulo,
cada um terá de saltar para o coruchéu do seu predecessor com grande rapidez,
cada qual com inveja de todos os que ainda partirão antes dele.
A partir daquela altura, sempre que passava por Milão, recordava aquela tarde e,
com um riso pesaroso, via as centenas de santos de mármore a dar os seus
ousados saltos.
Em Génova, enriqueci-me de mais um grande amor. Era um dia claro e ventoso,
pouco depois do meio-dia. Eu apoiara os braços sobre um largo parapeito de
mármore, por detrás de mim estendia-se a colorida Génova e, mais abaixo,
avolumava-se e animava-se a vastidão azul: o mar. Num obscuro marulhar e
desejo incompreendido, o eterno e imutável estendia-se para mim, e eu sentia
que no meu interior algo firmava amizade para a vida e para a morte com esta
imensidão azul e espumosa.
Com igual vigor me impressionou o largo horizonte do mar. Eu via de novo,
como nos tempos da infância, um portal aberto aguardando-me. E uma vez mais
me subjugou o sentimento de que não havia nascido

69

para uma vida regular e aconchegada entre os homens, em cidades e casas,


mas para vaguear por terras estranhas e errar por sobre os mares. Com um
impulso obscuro, ergueu-se em mim a antiga e angustiante necessidade de me
lançar nos braços de Deus e irmanar a minha vida com o infinito e o intemporal.
Perto de Rapallo, ao nadar, lutei pela primeira vez com a força da maré, provei o
áspero sabor da água salgada e senti a fúria das ondas. Rodeavam-me ondas
azuis e límpidas, rochas da praia acastanhadas, um profundo céu imóvel e o
eterno e imenso rumorejar. Renovadamente, subjugava-me a visão dos barcos
vogando à distância, ou o pequeno estandarte de fumo de um vapor passando
ao longe. A seguir às minhas bem amadas, as incansáveis nuvens, não conheço
imagem mais bela e autêntica do ansiar e do caminhar que um barco assim, a
passar ao longe, tornando-se mais pequeno e desaparecendo no horizonte que
se lhe abre.
Chegámos a Florença. A cidade estendia-se ali, como a conhecia de centenas
de imagens e mil sonhos: luminosa, ampla, acolhedora, atravessada pela
corrente verde, transposta por pontes e rodeada de colinas recortadas. A ousada
torre do Palazzo Vechio perfurava audazmente o céu luminoso e, lá no alto,
ficava o belo coruchéu branco e aquecido pelo sol; todas as colinas se
mostravam brancas e rosadas no esplendor das árvores de fruto. A
movimentada, alegre e inocente vida toscana revelava-se-me como um milagre,
e em breve me senti mais em casa do que alguma vez me sentira na minha
terra. Os dias passavam-se em igrejas e palácios, ruas, lòggias e mercados, as
noites escoavam-se em sonhos por hortas das colinas, onde os limões
amadureciam já, ou na bebida e em conversas por pequenas tabernas rústicas
de Chianti. Entremeando, passávamos deliciosas horas enriquecedoras nas
galerias de quadros e no Bargello, em mosteiros, bibliotecas e sacristias, as
tardes em Fiesole, San Miniato, Settignano e em Prato.
Cumprindo um acordo já feito em casa, eu deixei então Ricardo sozinho por uma
semana, e deliciei-me com o passeio mais nobre e maravilhoso da minha
juventude através das colinas da Úmbria. Segui os caminhos de São Francisco,
e horas houve em que o sentia caminhar junto a mim, o coração repleto de um
insondável amor, saudando com gratidão e alegria cada ave, cada fonte, cada
roseira brava.

70

Colhia e comia limões em vertentes brilhando ao sol, pernoitava em pequenas


aldeias, cantava e fazia poemas no meu íntimo, e celebrei a Páscoa em Assis,
na igreja do meu santo.
Parece-me sempre que estas oito semanas de viagem pela Úmbria foram a
coroação e o belo ocaso da minha juventude. Todos os dias brotavam fontes
dentro de mim, e eu perscrutava a luminosa e festiva paisagem primaveril como
se observasse os bondosos olhos de Deus.
Na Úmbria, eu seguira Francisco, o «trovador de Deus», cheio de veneração;
em Florença, apreciara a constante evocação da vida do Quattrocento. Em casa,
escrevera sátiras às formas de vida actual. Mas foi em Florença que senti todo o
sórdido ridículo da cultura moderna. Ali, pela primeira vez, fui avassalado pela
impressão de que, na nossa sociedade, eu seria eternamente um estranho; ali,
pela primeira vez, despertou em mim o desejo de prosseguir a minha vida longe
da nossa sociedade, se possível, algures no Sul. Aqui, eu podia comunicar com
as pessoas, aqui, alegrava-me a cada passo com uma sincera naturalidade de
viver, sobre a qual se estendia, enobrecedora e embelezadora, a tradição de
uma cultura clássica e da história.
As belas semanas decorriam maravilhosas e deliciosas; nunca tinha visto
Ricardo tão entusiasticamente arrebatado. Apaixonados e joviais, despejávamos
os cálices da beleza e do prazer. Percorremos aldeias retiradas das colinas,
travámos amizade com estalajadeiros, monges, jovens camponesas e pequenos
párocos de aldeia acomodados, observámos lojinhas rústicas, oferecemos pão e
fruta a lindas crianças morenas; do alto de montes soalheiros olhávamos a
Toscana estendida no brilho primaveril e, ao longe, o reluzente mar da Ligúria.
Tivemos ambos a forte sensação de ser dignos da nossa felicidade e de
caminharmos rumo a uma nova vida de plenitude. O trabalho, a luta, o prazer e
a fama apresentavam-se-nos tão próximos, brilhantes e seguros, que era sem
precipitação que gozávamos aqueles dias felizes. Até a separação próxima
parecia leve e passageira, pois sabíamos com mais certeza do que nunca que
tínhamos necessidade um do outro e podíamos contar com o auxílio mútuo para
toda a vida.

Esta foi a história da minha juventude. Ao revê-la, parece-me que foi curta como
uma noite de verão. Um pouco de música, um pouco de espírito,

71
um pouco de amor, um pouco de vaidade - mas foi bela, rica, colorida como uma
festa de Elêusis.
E apagou-se rápida e pobremente como uma luz ao vento.
Em Zurique, Ricardo despediu-se. Por duas vezes, desceu da carruagem do
comboio para me beijar, e acenou-me ainda carinhosamente da janela enquanto
foi possível.
Duas semanas depois, afogou-se em Baden num pequeno riacho ridículo do Sul
da Alemanha. Não tornei a vê-lo, nem estive presente quando foi sepultado, pois
apenas tive conhecimento disso alguns dias mais tarde, quando já se
encontrava no caixão e debaixo da terra. Então, estendido no chão do meu
quartinho, maldisse Deus e a vida com perversas e horríveis pragas, chorei e
revoltei-me. Até então, nunca compreendera que o único bem sólido durante
estes anos fora a minha amizade. Isso estava agora acabado.
Não suportei permanecer por mais tempo na cidade onde, diariamente, uma
imensidade de recordações se colava a mim e me sufocava. Pouco me
importava o que agora surgiria; estava doente no âmago da minha alma e tinha
horror a tudo o que era vivo. Por enquanto, pareciam pequenas as hipóteses de
o meu ser transtornado se reerguer e, com novas velas enfunadas, vogar ao
encontro da felicidade acre dos anos da maturidade. Quis Deus que eu ofertasse
o melhor do meu ser a uma amizade pura e feliz. Como dois barcos velozes,
lançávamo-nos em frente; o de Ricardo era o lenho colorido, leve, feliz e amado
a que se agarrava o meu olhar, ao qual me confiava, que me arrastaria para
belos propósitos. Agora, com um grito, afundara-se, e eu errava sem timão em
águas subitamente enegrecidas.
Seria meu dever superar esta dura prova, orientar-me pelas estrelas e, numa
nova viagem, lutar pela coroa da vida e buscá-la. Eu crera na amizade, no amor
feminino, na juventude. Pois que um após outro me haviam abandonado, por
que não cria eu em Deus e não me abandonava à sua forte mão? Mas eu fora
desde sempre indeciso e teimoso como uma criança, esperava sempre pela vida
autêntica, que ela caísse sobre mim como uma tempestade, me tornasse
sensato e rico e, sobre grandes asas, me conduzisse a uma felicidade plena.
A sapiente e sóbria vida, porém, mantinha-se silenciosa, e deixava-me errar.
Não enviou tempestades nem estrelas, senão que aguardava até

72

que eu de novo me tornasse humilde e paciente e a minha teimosia estivesse


quebrada. Deixou-me representar a comédia do orgulho, daquele que sempre
sabe melhor, desviou o olhar e aguardou que a criança perdida reencontrasse a
sua mãe.

73

5.
Chega agora o período da minha vida que, aparentemente, foi mais
movimentado e colorido que o passado e que, em todo o caso, daria um
pequeno romance à moda. Eu teria de narrar como fui chamado para redactor
de um jornal alemão, como dei demasiada liberdade à minha pena e à minha
boca maldosa e, por isso, fui chicaneado e censurado, como em seguida ganhei
fama de bêbedo e, por fim, depois de querelas maledicentes, deixei o cargo e fiz
com que me enviassem para Paris como correspondente, como eu errei nesse
ninho maldito, como levei vida desregrada e, em diversos campos, provei a
devassidão.
Não é por cobardia que desprezo os meus eventuais leitores obscenos, e passo
sobre este curto período. Reconheço que, um após outro, percorri maus
caminhos, vi toda a espécie de podridão e nela me atolei. Desde então, perdi o
gosto pelo lado romântico da vida boémia, e tereis de permitir-me que me
atenha ao mais limpo e bom que também existiu na minha vida, e que, ao tempo
de perdição, o deixe perdido e liquidado.
Certa tarde, sentado só no Bois, meditava se deveria deixar Paris ou mesmo a
vida de uma vez. Assim, em pensamentos, pela primeira vez desde há muito
tempo, eu revi a minha vida, considerando que não teria muito a perder.
Mas eis que, de súbito, numa recordação pungente, eu vi um dia passado e
esquecido de há muito - uma manhã do início do Verão, na minha terra, nas
montanhas, e vi-me ajoelhado junto a uma cama, e sobre ela jazia a minha mãe
em agonia.
Estremeci e envergonhei-me de tão longamente ter podido não mais recordar
essa manhã. Os loucos pensamentos de suicídio desvaneceram-se.

75

É que eu penso que nenhum homem sério e inteiramente dissoluto será capaz
de tirar a si mesmo a vida, se alguma vez tiver presenciado o apagar de uma
vida sadia e boa. Vi de novo a minha mãe morrer. Vi de novo no seu rosto o
silencioso e grave trabalho da morte que o enobrecia. A morte tinha um aspecto
rude, mas era tão magnificente e também tão bondosa como um pai cauteloso
que traz o filho perdido de regresso a casa.
De súbito, eu sabia outra vez que a morte era a nossa irmã inteligente e boa que
conhece a hora adequada, e que podemos aguardá-la confiadamente. E
comecei também a compreender que o sofrimento, as desilusões e a melancolia
não existem para nos deixar contrariados e fazer-nos perder o valor e a
dignidade, mas para nos amadurecer e transformar.
Oito dias mais tarde, as minhas caixas foram enviadas para Basileia, e percorri a
pé uma bela parte do Sul da França; sentia de dia para dia os funestos tempos
parisienses, cuja lembrança me perseguia como um fedor, dissipar-se e
enevoar-se. Assisti a uma «Cour d'Amour». Dormi em castelos, em moinhos, em
palheiros e com moços morenos e palradores, bebi o seu vinho quente e
luminoso.
Andrajoso, emagrecido, bronzeado e transformado interiormente, cheguei a
Basileia ao cabo de dois meses. Foi a primeira vez que fiz uma viagem a pé tão
longa, a primeira de entre muitas. Entre Locarno e Verona, entre Basileia e
Briga, de Florença a Perúsia, poucas serão as povoações por onde não haja
peregrinado duas e três vezes de botas empoeiradas - perseguindo sonhos dos
quais nenhum se realizou ainda.

Em Basileia, aluguei um quarto nos arredores, desemalei os meus haveres e


comecei a trabalhar; alegrava-me viver numa pequena cidade onde ninguém me
conhecia. As relações com alguns jornais e revistas ainda se mantinham, e eu
tinha trabalho e com que viver. As primeiras semanas foram boas e calmas,
depois, aos poucos, a tristeza instalou-se de novo, permaneceu dias seguidos,
semanas a fio, e nem com o trabalho desaparecia.
Quem nunca tenha sentido em si o que é a tristeza, não pode compreender isto.
Como hei-de descrevê-lo? Tinha a sensação de uma solidão terrível. Entre mim
e as pessoas, e a vida na cidade, nas praças, nas casas e ruas, havia
continuamente um vasto fosso.

76

Sucedia um grande desastre, surgiam coisas importantes no jornal - isso nada


tinha a ver comigo. Celebravam-se festejos, enterravam-se mortos, faziam-se
mercados, davam-se concertos - para quê? Com que finalidade? Eu saía,
vagueava por florestas, montes e estradas e, em meu redor, os prados, as
árvores, os campos calavam, numa tristeza sem queixume, olhavam-me
silenciosos e suplicantes, e tinham desejo de dizer-me algo, de vir ao meu
encontro, de saudar-me. Mas jaziam ali e nada podiam dizer, e eu compreendia
o seu sofrimento e sofria com eles, pois não podia libertá-los. Fui a um médico,
levei-lhe descrições detalhadas, procurei expor-lhe o meu sofrimento. Ele leu,
questionou-me, observou-me.
- O senhor é invejavelmente saudável - cumprimentou-me ele então -,
fisicamente, não carece de nada. Procure alegrar-se com leituras ou música.
- Pela minha profissão, leio diariamente grande quantidade de coisas novas.
- Mas também não deveria deixar de fazer algum exercício ao ar livre.
- Todos os dias ando três a quatro horas, e em período de férias, pelo menos o
dobro.
- Então, terá de constranger-se a conviver com pessoas. Encontra-se em sério
perigo de se tornar insociável.
- E que importância tem isso?
- Tem grande importância. Quanto maior for actualmente a sua falta de vontade
de convívio, tanto mais terá de se compelir a ver pessoas. O seu estado ainda
não é de doença, nem me parece de inspirar cuidados; mas se não deixar de
vaguear de forma tão passiva, poderá acabar por perder o equilíbrio.
O médico era um homem compreensivo e bondoso. Eu fazia-lhe pena.
Recomendou-me um letrado em cuja casa havia muito movimento e uma certa
vida intelectual e literária. Fui lá. O meu nome era conhecido, foram amáveis,
quase afectuosos, e regressei com frequência.
Certa vez, fui lá numa noite de fim de Outono. Encontrei-me com um jovem
historiador e uma rapariga morena muito magra; para além deles, não havia
convidados. A rapariga cuidava da máquina do chá, falava muito e era
contundente para com o historiador. Depois, tocou um pouco piano. A seguir,
disse-me que havia lido as minhas sátiras,

77

mas não tinha gostado delas. Ela pareceu-me inteligente, mas um tanto em
demasia, e em breve regressei a casa.
Entretanto, haviam descoberto aos poucos que eu andava muito pelas tabernas
e que, na realidade, às ocultas, eu era um bebedor. Isto não me espantou,
porque era precisamente na sociedade académica, entre homens e mulheres,
que os mexericos floresciam com maior viço. A indecorosa descoberta não
perturbou os meus relacionamentos, antes pelo contrário, tornou-me desejado,
porque havia um entusiasmo precisamente pela temperança, homens e
senhoras pertenciam a comissões de ligas de temperança e alegravam-se com
todo o pecador que lhes caía nas mãos. Num determinado dia, deu-se o primeiro
ataque amável. Incitaram-me a meditar na ignomínia da vida de taberna, na
maldição do alcoolismo, e tudo isso sob o ponto de vista sanitário, ético e social,
e fui convidado a participar nos festejos de uma liga. Fiquei extremamente
surpreso, pois até essa altura não tinha conhecimento de todas aquelas ligas e
movimentos. A sessão da liga, com música e uma nota de religião, era
penosamente ridícula, e eu não dissimulei esta impressão. Semanas a fio, fui
massacrado com importuna amabilidade, tudo aquilo se me tornou
extremamente enfadonho e, certa noite, quando me cantavam a mesma música
e ansiosamente esperavam a minha conversão, fiquei desesperado e supliquei
energicamente que finalmente me poupassem àquela choradeira. A jovem
estava de novo presente. Escutou-me atentamente e disse com grande
cordialidade:
- Bravo!
Mas eu estava demasiado indisposto para o notar.
Com tanto maior satisfação presenciei um pequeno e cómico desaire que
sucedeu numa enorme festividade dos abstinentes. A grande liga, mais os
inúmeros convidados, banqueteava-se e convivia na sua sede; proferiram-se
discursos, firmaram-se amizades e cantaram-se coros, e o progresso da boa
causa era celebrado com um grande hossana. Mas para um dos porta-
estandartes contratados, os discursos sem álcool pareceram-lhe demasiado
longos, e refugiou-se numa taberna próxima. Quando o cortejo festivo de
manifestação pelas ruas se iniciou, pecadores maldosos puderam desfrutar do
divertido espectáculo de ver, à cabeça dos grupos entusiastas, um alegre
condutor bêbedo e, nos seus braços, a bandeira da Cruz Azul baloiçar como o
mastro de um navio prestes a naufragar.

78
O empregado bêbedo foi afastado; mas o que não foi afastado foi o tropel de
vaidades humanas, de invejas e intrigas que se ergueu no seio das diversas
ligas e comissões concorrentes e que vicejava cada vez mais num alegre brotar.
O movimento dividiu-se, alguns ambiciosos desejavam toda a reputação apenas
para si, e invectivavam todos aqueles bebedores que não se haviam convertido
em seu nome; abusou-se indignamente dos não poucos colaboradores nobres e
abnegados e, em breve, as pessoas mais próximas tiveram oportunidade de
observar como também ali, sob uma etiqueta idealista, o fedor de toda a sorte de
podridões humanas subia ao céu. Eu tive conhecimento casual de todas estas
comédias, por terceiros, senti um prazer silencioso nelas, e imaginei certos
regressos nocturnos dos beberetes: «Olhai, nós, os libertinos, sempre somos
melhor gente.»
No meu pequeno quarto, alto e com vista desafogada sobre o Reno, eu
estudava e meditava muito. Estava inconsolável por a vida passar por mim
assim, de não ser arrastado por nenhuma torrente forte, de nenhum forte
entusiasmo ou interesse me animar e arrancar ao sonho sombrio. É certo que, a
par do quotidianamente indispensável, eu trabalhava nos preparativos de um
trabalho que deveria descrever a vida dos primeiros menoritas; mas isto era um
trabalho pequeno, apenas uma humilde compilação persistente que não
satisfazia o impulso do meu desejo. Recordando Zurique, Berlim e Paris,
comecei a compreender os anseios, paixões e ideais dos meus
contemporâneos. Um ocupava-se a eliminar os móveis, tapeçarias e fatos
usados até então e a habituar as pessoas a ambientes mais livres e bonitos.
Outro esforçava-se por divulgar, em escritos e conferências dirigidos ao povo, o
monismo de Haeckel. Outros achavam digno de esforço promover a eterna paz
mundial. E outro ainda lutava pelas camadas inferiores indigentes, ou fazia
colectas e pregava para que fossem construídos teatros e museus e abertos ao
povo. Aqui, em Basileia, lutava-se contra o álcool.
Em todos estes esforços havia vida, estímulo e acção; mas nenhum deles era
importante e necessário para mim, e não me teria impressionado nem alterado a
minha vida se todos aqueles objectivos tivessem sido alcançados hoje. Sem
esperança, eu afundava-me recostado na cadeira, afastava livros e papéis e
pensava, pensava. Depois, ouvia o Reno a correr defronte da janela, e o vento a
uivar, e escutava extasiado esta

79

linguagem de uma grande melancolia e ansiedade espreitando por toda a parte.


Via as desbotadas nuvens nocturnas esvoaçar pelo céu como aves assustadas,
escutava o Reno no seu caminhar e pensava na morte de minha mãe, em São
Francisco, na minha terra nas montanhas de neve e em Ricardo que se afogara.
Via-me trepar as escarpas para colher a rosa dos Alpes para a Rosa Girtanner,
via-me em Zurique entusiasmado com livros, música e conversas, via-me com a
Aglietti a vogar sobre as águas nocturnas, vi-me desesperar com a morte de
Ricardo, viajar e regressar, recuperar a saúde e tornar a sentir-me desesperado.
Porquê? Para quê? Oh, Deus, seria então tudo isto apenas uma brincadeira, um
acaso, um quadro pintado? Não havia eu lutado e sofrido os tormentos da ânsia
pelo espírito, pela amizade, pela beleza, verdade e amor? Não continuava a
avolumar-se em mim a enorme onda da ansiedade e do amor? E tudo isto para
nada, para meu tormento e sem o prazer de ninguém!
Então ficava na disposição que me levava à taberna. Soprava a lamparina,
tacteava a velha escada íngreme em caracol, e fazia a minha aparição numa
adega de vinhos de Valtellina ou de Vaud. Ali, recebiam-me com respeito, como
bom cliente, ao passo que, usualmente, eu era contumaz e por vezes muito
grosseiro. Lia o «Simplizissimus», que me aborrecia sempre, bebia o meu vinho
e esperava até que ele me consolasse. E o deus amoroso tocava-me com a sua
macia mão feminina, tornava os meus membros agradavelmente fatigados e
conduzia a minha alma confundida, como hóspede, à terra dos belos sonhos.
Por vezes, admirava-me eu próprio por tratar as pessoas tão rudemente e ter
como que prazer em falar-lhes aos berros. Nas hospedarias que costumava
frequentar, as criadas receavam-me e detestavam-me como labrego e
resmungão que tinha sempre por que reclamar. Se entrava em conversa com
outros hóspedes, eu era sarcástico e grosseiro e, naturalmente, as pessoas
agiam da mesma forma. No entanto, havia alguns poucos companheiros de
taberna, todos eles pecadores e já de certa idade, incorrigíveis, com os quais,
por vezes, passava um serão em que conseguia uma relação aceitável. Havia
nomeadamente um homem grosseiro entre eles, desenhador de profissão, um
misógino, obsceno e beberrão comprovado de primeira classe. Quando o
encontrava à noite, só, em qualquer taberna, começava sempre uma valente
beberronia. Primeiro, trocavam-se conversas, brincadeiras e, entretanto,
bebericava-se uma garrafa de tinto,

80

depois, aos poucos, a bebida tomava o primeiro plano, a conversa amortecia, e


mantínhamo-nos um diante do outro em silêncio, chupando cada qual o seu
Brissago e esvaziando as suas garrafas. Estávamos os dois à altura um do
outro, mandávamos sempre encher de novo as garrafas ao mesmo tempo e
observávamo-nos mutuamente com um misto de respeito e malícia. Certa vez,
na época do vinho novo, em finais de Outono, fomos juntos por algumas aldeias
vinhateiras do Markgraefler, e no «Cervo», em Kirchen, o velho patusco narrou-
me a história da sua vida. Creio que era interessante e pouco comum mas,
infelizmente, esqueci-a de todo. Apenas me ficou a descrição de uma beberronia
já dos seus anos avançados. Encontrava-se ele algures no campo numa
festividade popular. Como convidado da mesa de honra, bem cedo levou tanto o
pároco como o regedor a um estado de verdadeira embriaguês. O pároco tinha
ainda de proferir um discurso. Depois de, com esforço, o carregarem para cima
do pódio, proferiu ali frases monstruosas e teve de ser levado, após o que o
regedor tomou o seu lugar. Começou a falar vigorosamente, de improviso, mas
os fortes movimentos deixaram-no indisposto e terminou o seu discurso de
forma pouco habitual e deselegante.
Mais tarde, eu teria gostado de pedir que me contasse esta e outras histórias de
novo. Mas numa noite de festa de concurso de tiro, deu-se uma briga irreparável
entre nós, puxámos a barba um ao outro e afastámo-nos coléricos. Desde então,
sucedeu algumas vezes estarmos ao mesmo tempo sentados numa taberna
como inimigos, cada qual, claro está, em sua mesa; mas segundo o velho
hábito, observávamo-nos um ao outro em silêncio, bebíamos ao mesmo tempo e
ficávamos sentados muito depois dos últimos fregueses e, por fim, pediam-nos
que saíssemos. Mas nunca chegámos a reconciliar-nos.
Era infrutífero e fatigante o eterno meditar nas causas da minha tristeza e
inaptidão para a vida. Eu não tinha de forma alguma a sensação de estar
esgotado e gasto, bem pelo contrário, sentia-me repleto de impulsos obscuros e
cria que, na hora certa, conseguiria ainda criar algo de profundo e de bom e de
arrancar à vida árida pelo menos uma mão cheia de felicidade. Mas chegaria
alguma vez essa hora? Eu pensava com amargura naqueles senhores
modernos e nervosos que com mil excitantes artificiosos, se estimulam para o
trabalho artístico,

81

ao passo que em mim havia grandes forças inaproveitadas que assim


permaneciam. E de novo eu esquadrinhava em mim que embaraço ou demónio
me deixaria paralisado no pujante e vigoroso corpo da minha alma e dificultava
cada vez mais a respiração. Entretanto, eu tinha ainda a estranha sensação de
ser uma pessoa fora do comum, que de alguma forma ficara para trás e cujos
sofrimentos ninguém conhecia, compreendia ou partilhava. É o que a melancolia
tem de demoníaco, o facto de tornar a pessoa não só doente, como também
pretensiosa e de vistas curtas, quase arrogante. A pessoa julga-se o Atlas de
mau gosto de Heine que carrega sobre os ombros todos os sofrimentos e
enigmas do mundo, como se mil outros não suportassem também os mesmos
sofrimentos e errassem no mesmo labirinto. E embora a maior parte das minhas
qualidades e peculiaridades não fossem tanto minhas, como herança familiar ou
mal dos Camenzind, no meu isolamento e afastamento da terra natal sentia-me
inteiramente perdido.
De quinze em quinze dias, eu ia de novo à hospitaleira casa do erudito. Aos
poucos, conhecera já quase todas as pessoas que a frequentavam. Eram, na
sua maioria, jovens académicos, entre os quais muitos alemães de todas as
faculdades, além de alguns pintores, músicos e burgueses com suas mulheres e
filhas. Eu olhava muitas vezes com espanto esta gente que me saudava como
visitante pouco usual, da qual sabia que semanalmente se encontravam tantas
ou tantas vezes. Que conversavam e faziam uns com os outros? Na sua
maioria, tinham a mesma forma estereotipada do homo socialis e pareciam-me
todos um pouco aparentados entre si, em virtude de um espírito de sociabilidade
nivelador que só eu não possuía. Havia entre eles gente fina e importante, a
quem a eterna convivência aparentemente nada roubava da sua frescura e força
pessoal. Com alguns deles, eu podia conversar longamente e com interesse.
Mas andar de um para o outro, permanecer um minuto junto de cada um, atirar
galanteios às mulheres, dirigir a um só tempo a minha atenção à chávena de
chá, a duas conversas e a uma peça de piano, e nisto mostrar-me animado e
deliciado, isso eu não podia. Para mim, era horrível ter de falar de literatura ou
de arte. Eu via que nestes campos se pensava muito pouco, se mentia bastante
e se palrava também imenso. Portanto, eu mentia também, mas sem qualquer
prazer, e achava o inútil falatório, maçador e aviltante.

82

Preferia escutar, eventualmente, uma mulher a falar de seus filhos ou eu mesmo


contava viagens, pequenos acontecimentos do dia-a-dia e outras coisas
autênticas. Assim, podia por vezes tornar-me confiante e quase bem disposto.
Mas usualmente, no final dessas noites, procurava ainda uma taberna e lavava a
secura da garganta e o tédio podre com o vinho de Valtellina.
Numa destas rodas, vi a jovem outra vez. Havia imensa gente ali, faziam música
e a sua bulha habitual, e eu estava sentado com uma pasta de gravuras a um
recanto de um candeeiro. Eram imagens da Toscana, não as imagenzinhas de
efeitos habituais, mil vezes observadas, mas vistas intimistas, esboços privados,
na sua maioria ofertas de companheiros de viagem e de amigos do dono da
casa. Acabava de encontrar o desenho de uma casinha de pedra, de janelas
estreitas, no vale solitário de San Clemente que eu reconheci, pois havia feito
por ali diversas viagens. O vale fica muito perto de Fiesole, mas a maioria dos
visitantes nunca o vai ver porque não há ali antiguidades. É um vale de uma
beleza rude e peculiar, seco e pouco habitado, entalado entre montes elevados,
escarpados e imponentes, isolado do mundo, melancólico e pouco frequentado.
A rapariga aproximou-se e olhou-me por cima do ombro.
- Porque está sempre tão solitário, Sr. Camenzind?
Fiquei irritado. Sente que os homens lhe dão pouca atenção e vem agora ter
comigo.
- Então, não me dá resposta?
- Perdão, menina; mas que hei-de responder? Fico só porque me agrada.
- Então, estou a maçá-lo?
- A menina é estranha.
- Obrigada. Mas isso é inteiramente assim de parte a parte.
E sentou-se. Eu mantive teimosamente a folha nas mãos.
- Não é um montanhês? - perguntou ela. - Gostava de ouvir contar como é
aquilo. O meu irmão diz que na sua aldeia há apenas um apelido; são só
Camenzind. É verdade?
- Quase - grunhi. - Mas também há um padeiro que se chama Fuessli. E um
estalajadeiro de nome Nydegger.
- E além disso só Camenzind! E são todos parentes entre si?
- Mais ou menos.

83

Estendi-lhe o desenho. Ela segurou a folha, e notei que sabia como pegar numa
coisa daquelas. Disse-lho.
- Louva-me - riu ela - mas como um mestre-escola.
- Não quer também olhar a folha? - perguntei, asperamente. - Senão, posso
arrumá-la.
- Que representa?
- San Clemente.
- Onde?
- Perto de Fiesole.
- Já lá esteve?
- Sim, por diversas vezes.
- Como é o vale? Isto é apenas um pormenor.
Pensei. A severa paisagem, de uma beleza rude, surgiu diante do meu olhar, e
eu semicerrei os olhos para a fixar. Demorou um pouco até que eu começasse a
falar, e soube-me bem que ela permanecesse em silêncio, aguardando.
Compreendeu que eu estava a recordar.
Descrevi-lhe San Clemente, como jaz silente, ressequido e majestoso sob o
braseiro da tarde estival. Ali perto, em Fiesole, há indústria, entretecem-se
chapéus de palha e cestos, vendem-se recordações, ludibriam-se os viajantes
ou mendigam-se-lhes esmolas. Mais abaixo, fica Florença, que encerra uma
torrente de vida antiga e nova. Mas nenhuma delas se pode ver de San
Clemente. Os pintores não trabalharam ali, não houve ali qualquer construção
romana, a história esqueceu o pobre vale. Mas ali, o sol e a chuva lutam contra
a terra, ali, os pinheiros recurvados lutam arduamente pela vida e os poucos
ciprestes palpam os ares com magros cimos, não chegue a tempestade inimiga
que lhes encurta a parca vida a que se agarram com raízes ávidas. Uma ou
outra vez, passa um carro de bois das grandes quintas próximas, ou uma família
de camponeses caminha em direcção a Fiesole, mas não passam de visitantes
ocasionais, e as saias vermelhas das camponesas, normalmente tão mexidas e
alegres, perturbam aqui, e com prazer as dispensamos.
E contei como na juventude passara por ali com um amigo, como me estendera
aos pés dos ciprestes e me recostara aos seus magros troncos; e como a bela
magia melancólica da solidão do estranho vale me recordava os desfiladeiros da
minha terra.
Calámo-nos por algum tempo.

84

- É um poeta - disse a rapariga.


Fiz um trejeito.
- O que quero dizer é diferente - continuou. - Não é por escrever novelas e
coisas semelhantes. É, sim, porque compreende e ama a natureza. Que importa
a outras pessoas se uma árvore rumoreja ou um monte abrasa ao sol? Mas para
si, há ali uma vida que pode sentir.
Respondi que ninguém «compreende a natureza», e que ao indagar e procurar
compreender, apenas encontramos enigmas e caímos na tristeza. Uma árvore
que se ergue ao sol, uma pedra crestada pelos temporais, um animal, uma
montanha - eles possuem uma vida, têm uma história, eles vivem, sofrem,
teimam, deleitam-se, morrem, mas nós não o compreendemos.
Ao falar, alegrando-me da sua atenção paciente e silenciosa, comecei a
observá-la. O seu olhar dirigia-se para o meu e não lhe fugia. O seu rosto estava
muito sereno, entregue, e um pouco tenso da atenção. Era como se uma criança
me estivesse a escutar. Não, era antes como se um adulto, ao escutar, se
esquecesse de si e, sem o saber, ficasse com um olhar infantil. E ao observá-la,
percebi aos poucos, com infantil alegria pela descoberta, que era muito bonita.
Quando deixei de falar, a rapariga manteve-se em silêncio. Depois, estremeceu
e olhou a luz do candeeiro.
- Como se chama afinal, menina? - perguntei, sem me interessar grandemente
por isso.
- Elisabete.
Ela afastou-se e em breve lhe pediram que tocasse piano. Tocava bem, mas
quando me aproximei, vi que já não estava tão bonita.
Quando descia a cómoda escadaria antiga dirigindo-me para casa, escutei
algumas palavras da conversa de dois pintores que vestiam os seus casacos no
vestíbulo da casa.
- Bem, ele passou toda a noite entretido com a linda Elisabete - disse um, rindo.
- Que sonso! - comentou o outro. - E não escolheu a pior.
Então, os macacos já falavam disso. De súbito, apercebi-me de que, quase
contra-vontade, desvendara a esta jovem desconhecida recordações íntimas e
uma grande parte da minha vida pessoal. Como me sucedeu aquilo? E agora, já
as línguas maldosas! - Que corja!

85

Saí e durante meses não voltei àquela casa. Por acaso, foi precisamente um
desses dois pintores o primeiro a questionar-me na rua sobre o assunto.
- Por que não vai mais lá?
- Porque não posso suportar a maldita bisbilhotice - disse.
- Pois é, estas mulheres! - riu o patife.
- Não - respondi - refiro-me aos homens, e muito especialmente aos senhores
pintores.
Durante aqueles meses, raramente vi Elisabete na rua, uma vez numa loja e
outra numa galeria de arte. Usualmente, apresentava-se esbelta, mas não
bonita. Os movimentos da sua figura muito delgada tinham algo de singular que,
normalmente, lhe dava garbo e distinção, mas por vezes, mostrava-se um pouco
enfatuada e artificial. Bela, extremamente bela, estava certa altura na galeria.
Ela não me viu. Eu encontrava-me sentado a repousar um pouco à parte e
folheava o catálogo. Ela estava de pé, perto de mim, diante de um grande
Segantini, totalmente imersa no quadro. Representava algumas camponesas
trabalhando num magro prado, por detrás, os montes abruptos e recortados,
recordando talvez o grupo do Stockhorn e por cima, num céu frio e claro, uma
nuvem genialmente pintada, cor de marfim. Ela impressionava logo ao primeiro
olhar pela sua massa enovelada, enrolada sobre si; via-se que acabava de ser
enfunada e encapelada pelo vento e se preparava agora para subir e
desaparecer, voando lentamente. Visivelmente, Elisabete compreendia esta
nuvem, pois estava totalmente entregue à contemplação. E de novo a sua alma,
habitualmente oculta, assomava no rosto, sorria docemente nos olhos
agigantados, a boca demasiado delgada, tornava-a infantilmente macia, e entre
as sobrancelhas, aplanava o sulco de amarga inteligência na fronte. A beleza e
autenticidade de uma obra de arte forçou a sua alma a apresentar-se bela,
autêntica e sem véus.
Eu mantinha-me sentado ali ao lado, em silêncio, observava a bela nuvem de
Segantini e a bela rapariga encantada com ela. Depois, receei que se voltasse,
me visse e falasse, e perdesse de novo a sua beleza, e deixei a sala
rapidamente e sem ruído.
Por aquela época, a minha alegria pela natureza silenciosa e a minha relação
para com ela começou a transformar-se. Passeava muitas vezes pelas
maravilhosas imediações da cidade, preferivelmente pelo Jura.

86

Via sempre de novo florestas e montanhas erguer-se, prados, árvores de fruto e


arbustos, aguardando um não sei quê. Talvez a mim, esperavam, em todo o
caso, por amor.
E comecei a amar estas coisas. Surgiu em mim uma forte e sequiosa
necessidade que se dirigia à sua silente beleza. Também em mim uma profunda
vida e ansiedade crescia obscuramente, que buscava a consciência, ser
compreendida, que buscava amor.
Muitos dizem que «amam a natureza». Quer isto dizer que não se recusam a, de
vez em quando, extasiar-se com os encantos que ela nos oferece. Eles saem e
alegram-se com a beleza da terra, pisam os prados e, por fim, arrancam grande
quantidade de flores e ramos para, em breve, os deitarem fora outra vez, ou vê-
los murchar em suas casas. É assim que amam a natureza. Recordam-se
destas coisas ao domingo, quando o tempo está bom, e ficam enternecidos com
os seus bondosos corações. Nem necessitariam disso, porque «o homem é a
coroa da natureza». Ah, sim, a coroa!
Portanto, eu olhava sempre com maior avidez a profundeza das coisas.
Escutava o vento ressoar em acordes nas copas das árvores, ouvia ribeiros
bramando nas gargantas e correntes plácidas e silenciosas espraiar-se por
planícies, e sabia que estes sons eram a voz de Deus e que compreender esta
linguagem obscura e primordialmente bela, seria reencontrar o paraíso. Os livros
pouco sabem disso, só na Bíblia se encontra a maravilhosa palavra do
«inexprimível gemido» da criatura. E eu intuía que em todos os tempos, tal como
eu, homens houvera que tinham sido tomados por esta impenetrabilidade,
tinham deixado o seu trabalho do dia-a-dia e buscado a solidão para escutar o
canto da criação, observar o correr das nuvens e, em incansável ansiedade,
estender os braços em oração para o eterno, anacoretas, penitentes e santos.
Nunca estiveste em Pisa, no Camposanto? Ali, as paredes estão decoradas com
imagens desmaiadas de séculos idos, e uma delas mostra a vida dos
anacoretas no deserto da Tebaida. Ainda hoje, nas suas cores esmaecidas, a
ingénua pintura jorra a magia de uma paz tão maravilhosa, que sentes uma dor
súbita, e a necessidade de chorar algures, em santas lonjuras, os teus pecados
e a tua impureza e nunca mais regressar. Inúmeros artistas procuraram assim
exprimir a sua saudade em imagens sagradas, e qualquer encantador
quadrozinho de uma criança de Ludwig Richter

87

te canta a mesma canção que os frescos de Pisa. Por que razão Ticiano, o
amigo do tangível e do corporal, deu por vezes aos seus quadros claros e
materiais, aquele fundo do mais maravilhoso azul profundo? É apenas uma
pincelada de azul profundo, e quente, não se percebe se pretende representar
montanhas distantes ou apenas o espaço ilimitado. Ticiano, o realista, nem ele
próprio o sabia. Ele não o fazia, como os historiadores de arte pretendem saber,
por razões de harmonia de cores, era antes o seu tributo ao insaciável que,
oculto, habitava também a alma deste ser alegre e feliz. Assim, parecia-me, a
arte esforçara-se em todos os tempos por nos ofertar na sua linguagem, a
silente necessidade do divino.
Mas com maior maturidade e beleza e, todavia, mais ingenuamente, expressava
isto São Francisco. Foi então que o compreendi inteiramente. Ao englobar toda a
terra, as plantas, as estrelas, os animais, ventos e águas no seu amor para com
Deus, ele transmitiu-o à Idade Média, mesmo a Dante, e descobriu a linguagem
do eternamente humano. Ele chama a todas as potências e manifestações da
natureza seus amados irmãos e irmãs. Quando, em anos posteriores, foi
condenado pelos médicos a deixar queimar a fronte com ferro em brasa, em
meio do seu pavor de enfermo atormentado, saudou neste terrível ferro «o seu
amado irmão, o fogo».
Ao começar agora a amar a natureza como pessoa, a escutá-la como camarada
e companheira de viagem que fala uma língua estrangeira, a minha melancolia,
embora não curada, ficava enobrecida e purificada. O meu ouvido e olho
aguçavam-se, aprendia a compreender delicadas tonalidades e diferenças, e
ansiava por escutar cada vez mais perto e claro o pulsar de toda a vida e, talvez
um dia, participar do dom de, em palavras poéticas, dar-lhe expressão, para que
também outros se aproximassem dele, e o visitassem com melhor compreensão
das fontes de todo o refrigério, purificação e ingenuidade. Por enquanto, isso
não passava de um desejo, de um sonho... eu não sabia se alguma vez poderia
realizar-se, e ative-me ao que me era mais fácil, oferecendo a todas as coisas
visíveis o meu amor, e habituando-me a não mais olhar o que quer que fosse
com indiferença ou desprezo.
Não me é possível dizer como isto actuou de forma renovadora e consoladora
sobre a minha vida obscurecida!

88

Não há no mundo nada de mais nobre que faça maior felicidade que um amor
sem palavras, constante e desapaixonado, e nada desejo mais profundamente
que entre aqueles que lerem as minhas palavras, alguns, ou mesmo apenas
dois ou um só, por meu incitamento, quisesse iniciar-se nesta arte pura e
abençoada. Alguns possuem-na por natureza e praticam-na toda a vida
inconscientemente, são os preferidos de Deus, os bons, as crianças entre os
homens. Outros aprenderam-na com grande sofrimento: nunca vistes entre os
aleijados e os miseráveis, alguns de olhos meditativos, silenciosos e brilhantes?
Se não quiserdes escutar-me e às minhas pobres palavras, ide ter com aqueles
nos quais um amor sem avidez superou o sofrimento e o transformou.
Desta plenitude que eu louvei em certos pobres sofredores, ainda hoje me
encontro miseravelmente distante. Mas ao longo destes anos, raras vezes careci
da consoladora fé de conhecer o caminho para ela.
Não posso dizer que também eu o tenha trilhado, antes me sentei pelo caminho
em todos os bancos e não deixei de seguir certos desvios perversos. Havia duas
tendências egoístas e poderosas que em mim lutavam contra o amor verdadeiro.
Eu era um bebedor e um solitário. É certo que cortei substancialmente a minha
porção de vinho mas, semana sim semana não, o deus bajulador adulava-me e
eu lançava-me nos seus braços. Só muito raramente, porém, sucedeu eu ficar
jazendo pelas ruas ou fazer cenas nocturnas, porque o vinho ama-me, e só me
atrai até ao ponto onde os seus espíritos se relacionam com o meu num diálogo
amigável. No entanto, após cada bebedeira, a má consciência perseguia-me
durante longo tempo. Mas, no fundo, não podia retirar o meu amor ao vinho,
para o qual herdara de meu pai grande inclinação. Durante anos, acarinhara
esta herança, cuidadosa e piedosamente, e havia-me apropriado dela
profundamente; por isso, tirei-me de apuros, e estabeleci um acordo meio a
sério meio a brincar entre o meu vício e a minha consciência. Incluí no cântico
do Sol do santo de Assis «o meu amado irmão, o vinho».

89

6.

Muito pior era o meu outro defeito. Eu sentia pouco prazer no convívio, vivia
como um solitário, e ante as coisas humanas, estava sempre pronto a usar de
escárnio e desprezo.
No início da minha nova vida, ainda não pensava nisso. Achava correcto deixar
os homens entregues uns aos outros e reservar o meu carinho, dedicação e
simpatia apenas para a natureza silenciosa. E esta, de início, também me
preenchia inteiramente.
À noite, quando me preparava para ir para a cama, recordava de repente uma
colina, uma orla de floresta, uma única árvore preferida que há muito não
visitara. Agora, ela erguia-se ao vento durante a noite, sonhava, passava talvez
pelo sono, gemia e movia os ramos. Que aspecto teria? E eu deixava a casa,
procurava-a e via um vulto indistinto na escuridão, observava-o com espantoso
carinho e trazia dali, em mim, a sua imagem na escuridão.
Vós ris disto. Talvez este amor fosse mal orientado, mas não era esbanjado.
Mas, como haveria eu de encontrar a partir daqui o caminho que conduzia aos
homens?
No entanto, quando o primeiro passo está dado, o prémio surge sempre por si
mesmo. A ideia do meu grande poema surgia-me cada vez mais próxima e
possível. E ainda que o meu amor me levasse alguma vez, como poeta, a falar a
linguagem das florestas e das torrentes, para quem seria? Não apenas para os
meus bem amados, mas principalmente para os homens, para quem eu queria
ser um condutor e professor no amor. E para com essas pessoas, eu era rude,
sarcástico e insensível. Senti a discrepância e a imperatividade de lutar contra o
meu isolamento,

91

e manifestar também amizade fraternal para com os homens. Isso era difícil
porque, precisamente nesse ponto, a solidão e o destino haviam-me tornado
duro e irascível. Não bastava esforçar-me por, em casa e na taberna, ser menos
rude e, pelo caminho, acenar amavelmente a alguém que encontrava. Aliás, já
aqui eu via o quão profundamente havia acerado a minha relação com as
pessoas, pois as minhas tentativas amigáveis eram recebidas com desconfiança
ou tomadas como escárnio. E o pior era que, há quase um ano, eu evitava a
casa daquele letrado, a única das minhas relações, e reconhecia que tinha de ir
lá bater de novo à porta e procurar algum caminho naquela forma de
convivência.
Sucede que, neste ponto, a minha própria humanidade escarnecida me auxiliou
sobremaneira. Mal pensara de novo naquela casa, logo vi em mente Elisabete,
bela como a vira diante da nuvem de Segantini, e notei de súbito quanto ela
partilhara a minha ansiedade e melancolia. E sucedeu que, pela primeira vez,
pensei seriamente em pedir a mão de uma mulher. Até então, estivera tão
convencido da minha incapacidade para o casamento, que me tinha entregue a
ela com mordente ironia. Eu era um poeta, caminheiro, bebedor e solitário!
Agora, julgava reconhecer o meu destino que, na possibilidade de um
casamento por amor, me queria lançar a ponte para o mundo dos homens. Tudo
parecia tão atraente e firme! Eu sentira e vira que Elisabete me oferecia
simpatia; e também que possuía uma natureza sensível e nobre. Relembrei
como aquando da conversa sobre San Clemente e depois, diante do Segantini,
a sua beleza se avivara. Por meu lado, a partir da arte e da natureza, eu
acumulara uma riqueza interior; ela aprenderia comigo a ver a beleza por toda a
parte adormecida, e eu envolvê-la-ia de tal forma com beleza e verdade, que o
seu rosto e a sua alma esqueceriam todas as perturbações e poderiam
desenvolver-se até ao florescer das suas virtualidades. Estranho é que eu não
tenha notado a singularidade da minha súbita transformação. Eu, solitário e
extravagante, transformara-me de um dia para o outro num enamorado pueril,
que sonha com a felicidade do casamento e a construção do seu lar.
Apressei-me a procurar a hospitaleira casa, e fui recebido com admoestações
amigáveis. Fui ali diversas vezes e, após algumas visitas, encontrei lá de novo
Elisabete. Oh, que bela estava! Mostrava-se como eu imaginara a minha amada:
estava bela e feliz. E durante uma hora,

92

saboreei a alegre beleza da sua presença. Ela cumprimentou-me amavelmente,


cordialmente mesmo, e com uma amizade confiante que me tornava ditoso.
Recordais ainda aquela noite do lago, no barco, a noite com os lampiões de
papel vermelhos, com a música, com a minha declaração de amor abafada à
nascença? Essa foi a triste e ridícula história de um rapaz enamorado.
Mas mais ridícula e triste é a história do homem Peter Camenzind enamorado.
Vim a saber casualmente que Elisabete noivara há pouco tempo. Felicitei-a,
conheci o seu noivo, que a foi buscar, e felicitei-o também a ele. Durante todo o
serão, poisou sobre o meu rosto um sorriso benevolente de amigo, como uma
máscara, que me era penoso. Depois, não corri para a floresta, nem para a
taberna, mas sentei-me na minha cama olhando a candeia, estupefacto e
boquiaberto, até ela deitar mau cheiro e se extinguir e, por fim, a minha
consciência despertar. Então, a dor e o desespero abriram as suas asas negras
sobre mim, e eu jazi pequeno, frágil e destroçado, e solucei como um garoto.
De seguida, arrumei o saco, dirigi-me de manhã para o comboio e viajei para
casa. Tinha necessidade de trepar uma vez mais ao Sennalps-tock, de pensar
na minha infância e verificar se o meu pai era vivo ainda.
Tornáramo-nos estranhos um ao outro. O pai estava completamente encanecido,
um pouco curvado e um tanto apagado. Tratou-me com brandura e timidez, não
perguntou por nada, queria ceder-me a sua cama e pareceu ficar não menos
confundido que surpreso pela minha visita. Possuía a casita ainda, mas havia
vendido os pastos e o gado, recebia uma pequena renda e fazia, aqui e além,
trabalhos leves.
Quando ele me deixou a sós, cheguei-me ao local onde antes estivera a cama
de minha mãe, e o passado perpassou por mim como uma corrente extensa e
calma. Eu já não era um jovem, e pensei como os anos se escoariam rápido;
também eu seria, então, um homenzinho alquebrado e encanecido e me deitaria
para uma morte amarga. No velho quarto, quase nada transformado e miserável,
onde eu fora pequeno, onde aprendera latim e havia presenciado a morte da
mãe, estes pensamentos tinham uma naturalidade pacificante. Com gratidão,
recordei toda a riqueza da minha juventude, e vieram-me então à mente os
versos de Lorenzo Medici, que aprendera em Florença:

93

Quant'è bella giovinezza,


Ma si fugge tuttavia.
Chi vuol esser lieto, sia:
Di doman non c'è certezza. (1)

Ao mesmo tempo, admirei-me de trazer recordações de Itália, da história e do


grande reino do espírito, para este velho quarto familiar.
Depois, dei algum dinheiro ao meu pai. À noite, fomos à taberna e, ali, estava
tudo como dantes, salvo que fui eu a pagar o vinho, e o pai, ao falar do vinho
que fazia estrelas e do Champanhe, reportava-se a mim, além de que, agora, eu
podia suportar mais que o velho. Perguntei pelo camponês encanecido sobre
cuja calva eu vertera o vinho. Ele era um galhofeiro, um génio na batota, mas já
havia falecido há muito e as suas facécias iam caindo no esquecimento. Eu bebi
o vinho de Vaud, escutei as conversas, contei qualquer coisa e, quando
regressava a casa com o meu pai sob o luar e ele, na embriaguês continuava a
falar e a gesticular, tive uma tão estranha sensação de encantamento como
nunca. As imagens dos tempos passados envolviam-me continuamente, o tio
Conrado, Rosa Girtanner, a mãe, Ricardo e a Aglietti; olhei-as como a um belo
livro de gravuras, pelo qual nos maravilhamos de nos surgirem ali, tão belas e
magníficas, todas as coisas que, na realidade, nem de perto nem de longe são
tão belas. Tudo isto passara por mim com grande fragor, ficara para trás, quase
esquecido e, contudo, estava registado clara e nitidamente em mim: metade de
uma vida que, sem a minha vontade, fora conservada na minha memória.
Só após chegarmos a casa e o meu pai, já tarde, se calar e adormecer, voltei a
pensar em Elisabete. Ontem apenas, ela cumprimentara-me, eu admirara-a e
desejara felicidades ao seu noivo. Parecia-me ter decorrido longo tempo desde
então. Mas a dor acordou, misturou-se com a torrente de recordações
revolvidas, e sacudiu o meu coração egoísta e mal resguardado, como o foehn
sacode uma cabana de colmo vacilante e arruinada. Não suportei permanecer
em casa. Saltei pela janela baixa e dirigi-me para o lago, atravessando o
jardinzito, soltei o descuidado barquito

*1. Como é bela a juventude / mas vai-se, contudo. / Quem quiser ser folgazão,
seja: / o amanhã não é certo. (N. T.).

94

e remei sem ruído pelo pálido lago nocturno. Em redor, os montes prateados
mantinham-se num silêncio solene, a lua quase cheia pendia da noite azulada, e
quase era tocada pelo cume do Schwarzenstock. Era tal o silêncio, que ouvia
rumorejar levemente a distante queda de água do Sennalpstock. Os espíritos da
terra natal e os espíritos da minha juventude tocavam-me com as suas asas
pálidas, enchiam o meu pequeno bote e acenavam-me suplicantes, de mãos
estendidas e gestos dolorosos e incompreensíveis.
Que significado tivera a minha vida, para que haviam passado por mim tantas
alegrias e dores? Por que tinha eu a sede do verdadeiro e do belo, se hoje
continuava mais sequioso ainda? Por que tinha eu, com pertinácia e em
lágrimas, sofrido o amor e a dor por aquelas admiráveis mulheres - eu que hoje,
de novo, deixava pender a cabeça, de vergonha e lágrimas, por um amor infeliz?
E por que razão tinha o imperscrutável Deus colocado no meu coração a
ardorosa ânsia de amor, se me destinara uma vida de solitário e mal amado?
A água rumorejava surda no casco e gotejava prateada dos remos, os montes
erguiam-se em redor, próximos e silentes, sobre a névoa das gargantas
espraiava-se a luz fresca do luar. E os espíritos da minha juventude erguiam-se
mudos em meu redor, e olhavam-me silenciosos e inquiridores, com um olhar
profundo. Parecia-me que entre eles eu via a bela Elisabete, e que ela me teria
amado e sido minha se eu tivesse chegado a tempo.
Parecia-me também que o melhor seria afundar-me, em silêncio, no lago pálido,
e ninguém perguntaria por mim. Contudo, remei mais depressa, quando notei
que o reles barquito metia água. De súbito, senti frio, e apressei-me a entrar em
casa e meter-me na cama. Jazi ali, fatigado e desperto, a meditar na minha vida,
procurando descobrir o que faltava e o que seria necessário para viver mais feliz
e com maior autenticidade e aproximar-me mais do coração da existência.
Eu bem sabia que o centro de toda a bondade e alegria era o amor, e que eu
teria de começar, apesar da minha recente dor por Elisabete, a amar
verdadeiramente os homens. Mas como? E a quem?
E eis que recordei o meu pai e, pela primeira vez, notei que nunca o amara de
forma correcta. Em rapaz, havia-lhe amargurado a vida, depois partira, e
deixara-o só, mesmo após a morte da mãe, irritara-me muitas vezes

95

por sua causa e, por fim, quase o esquecera. E veio-me a imagem de que ele
jazia no leito de morte e eu, só e órfão a seu lado, via evolar-se a sua alma que
permanecera estranha para mim e por cujo amor eu nunca lutara.
Assim, comecei a aprender aquela dura e doce arte, não numa bem amada, bela
e admirada, mas num velho e rabugento bêbedo. Não mais lhe retorqui com
respostas rudes, ocupei-me dele sempre que possível, li-lhe histórias de
almanaques, e falei-lhe dos vinhos que se produziam e se bebiam em França e
na Itália. O pouco trabalho que fazia, não podia tirar-lho, pois sem ele ficaria
desamparado. Também não consegui habituá-lo a beber o seu quartilho do
serão em casa, comigo, e não na taberna. Tentámo-lo durante algumas noites.
Trouxe vinho e cigarros e esforcei-me por matar o tempo ao velho homem. Na
quarta ou quinta noite ficou silencioso e casmurro e, por fim, quando o
interroguei, explicou, gemendo, o que lhe pesava:
- Acho que nunca mais queres deixar o teu pai ir à taberna.
- Nada disso - respondi - tu és o pai e eu o garoto, e como tudo deverá
continuar, tu é que decides.
Olhou-me de olhos reluzentes, depois, contente, pegou no seu gorro, e
marchámos lado a lado para a taberna.
Estava bem de se ver que o meu pai seria contra uma longa permanência em
conjunto, apesar de nada dizer acerca disso. Também eu me sentia impelido a
aguardar algures, lá longe, o apaziguamento do meu estado de espírito cindido.
- Que te parece se um destes dias eu partisse de novo? - perguntei ao velho.
Ele coçou a cabeça, encolheu os ombros minguados e sorriu, matreiro,
aguardando:
- Como queiras!
Antes de partir, procurei alguns vizinhos e as gentes do mosteiro e pedi-lhes que
o tivessem debaixo de olho. Também guardei ainda um belo dia para escalar o
Sennalpstock. Do seu cimo arredondado e largo, olhei as montanhas e os vales
verdejantes, as águas luzentes e as distantes cidades na névoa. Tudo isto me
preenchera, quando rapaz, com uma poderosa atracção, eu partira para
conquistar o belo e vasto mundo, e agora, ali jazia ele de novo ante mim, tão
belo e estranho como então,

96

e eu estava pronto a partir outra vez para lá e, uma vez mais, buscar a terra da
felicidade.
Por causa dos meus estudos, há muito que havia decidido ir passar um período
a Assis. Primeiro, viajei até Basileia, tratei das coisas indispensáveis, emalei os
meus poucos haveres e despachei-os antecipadamente para Perúsia. Porém,
viajei apenas até Florença, e peregrinei a partir dali, lenta e calmamente, em
direcção ao Sul. Lá em baixo, para ter um contacto amigável com o povo, não
necessitamos de conhecer qualquer espécie de artes; a vida desta gente está
permanentemente à superfície, e é tão simples, livre e ingénua que, de cidade
em cidade, firmamos cândida amizade com imensas pessoas. Eu sentia-me de
novo acolhido e em casa, e decidi que, mesmo mais tarde em Basileia,
procuraria o calor humano não na alta sociedade, mas entre o povo simples.
Em Perúsia e Assis, o meu trabalho histórico recobrou interesse e vitalidade. E
pois que o dia-a-dia era ali um prazer, em breve o meu ser enfermo começou a
sanar e a lançar novas pontes para a vida. A minha hospedeira em Assis, uma
vendedeira de hortaliças, conversadora e piedosa, em virtude de algumas
conversas acerca do santo, travou uma profunda amizade comigo e fez-me fama
de sólido católico. Conquanto imerecida, esta honra trouxe-me, todavia, a
vantagem de poder relacionar-me com maior intimidade com as pessoas, pois
estava livre da suspeita de paganismo que, de uso, pende sobre os estranhos. A
mulher chamava-se Annunziata Nardini, tinha 34 anos e era viúva, de
corpulência colossal e muito boas maneiras. Aos domingos, num vestido
alegremente florido, parecia a personificação do dia de festa; por cima, para
além dos brincos de argola, usava também um cordão de ouro ao peito, do qual
pendiam, tilintando e fulgindo, uma série de medalhas de ouro. Nessa altura,
trazia também um breviário guarnecido a prata, cuja utilização lhe seria difícil, e
um belo terço preto e branco de cadeias de prata, que ela sabia manejar tanto
mais expeditamente. Quando depois, entre duas visitas à igreja, se sentava na
loggetta e apontava às vizinhas espantadas os pecados das amigas ausentes,
poisava sobre o seu rosto redondo e piedoso o comovente reflexo de uma alma
reconciliada com Deus.
Como o meu nome era impossível de pronunciar para aquela gente, chamavam-
me simplesmente Signor Pietro.

97

Nas belas tardes douradas, sentávamo-nos juntos na minúscula loggetta,


vizinhos, crianças e gatos, ou na loja, entre as frutas, cestos de hortaliças,
caixas de sementes e os chouriços defumados pendentes, contávamos uns aos
outros as nossas experiências, discutíamos as colheitas, fumávamos um charuto
ou cada qual chupava sua talhada de melão. Eu falava de São Francisco,
contava a história da portiuncula e da igreja do santo, de Santa Clara e dos
primeiros irmãos. Escutavam gravemente, faziam mil pequenas perguntas,
louvavam o santo, e passavam à narrativa e discussão de acontecimentos mais
recentes e sensacionais, entre os quais eram especialmente apreciadas as
histórias de ladrões e rixas políticas. No meio de nós, brincavam e brigavam os
gatos, as crianças e os cachorros. Por prazer e para manter o meu bom nome,
rebusquei a lenda à procura de histórias edificantes e comoventes, e alegrei-me
de, entre os parcos livros, ter levado também a «Vida dos Padres da Igreja e
Outras Pessoas Piedosas» de Arnold, cujas anedotas ingénuas eu traduzi com
pequenas variações para um italiano vulgar. Os passantes paravam, escutavam,
conversavam um pouco e, não raro, os convivas mudavam assim três ou quatro
vezes numa tarde; só a senhora Nardini e eu é que nos mantínhamos e nunca
faltávamos. Eu tinha junto a mim o vinho tinto no frasco e impunha-me àquele
povo de vida parca ou mediana, pelo meu substancial consumo de vinho. Aos
poucos, as tímidas moças da vizinhança tornaram-se também mais confiantes,
participavam nas conversas da soleira da porta, queriam que lhes oferecesse
pequenas gravuras, e começavam a crer na minha santidade, uma vez que eu
não fazia brincadeiras picantes nem aparentava tentar conquistar a sua
confiança. Entre elas, havia algumas de grandes olhos, beldades sonhadoras,
que pareciam saídas de quadros de Perugino. Eu gostava de todas, agradava-
me a sua presença bem disposta e folgazona, mas nunca me enamorei de
nenhuma, pois as mais belas eram tão semelhantes entre si, que a sua beleza
me surgia sempre como uma raça e nunca como uma qualidade individual.
Frequentes vezes, aparecia também Matteo Spinelli, um jovem, filho do mestre-
padeiro, um moço ladino e cómico. Sabia imitar uma série de animais, estava
informado acerca de todos os escândalos, e não parava de inventar actos
atrevidos e astutos. Quando eu narrava lendas, ele escutava com uma devoção
e humildade sem igual mas, depois, gozava colocando questões maldosas
acerca dos Santos Padres, fazia comparações e conjecturas, tudo com um ar
ingénuo,

98

para escândalo da mulher da fruta e contentamento dissimulado da maioria dos


ouvintes.
Muitas vezes também, eu sentava-me sozinho junto da senhora Nardini,
escutava os seus discursos edificantes e divertia-me impiamente com as suas
inúmeras singularidades cómicas. Não lhe escapava nenhuma falha ou vício do
seu próximo, calculando previamente, com meticulosidade, os seus lugares no
fogo do Inferno. Mas a mim, tinha-me em grande estima, e confiava-me as mais
pequenas experiências e as coisas que observava, abertamente e com a maior
minúcia. Depois de cada pequena compra, perguntava-me quanto tinha eu pago,
e cuidava que não fosse logrado. Queria que lhe contasse as vidas dos santos
e, em compensação, punha-me a par dos segredos da compra da hortaliça e do
comércio de fruta e da cozinha. Certa tarde, estávamos sentados no
estabelecimento miserável. Para total enlevo das crianças e raparigas, eu
cantara uma canção suíça e soltara um iodler. Eles aproximaram-se de prazer,
imitaram o som da língua estranha e mostraram-me como, ao soltar o iodler, a
minha laringe andava para cima e para baixo. E eis que alguém começou a falar
de amor. As moças sussurravam, a senhora Nardini revirava os olhos e
suspirava sentimentalmente e, por fim, fui instigado a contar as minhas próprias
histórias amorosas. Nada contei sobre Elisabete, mas narrei o meu passeio de
barco com a Aglietti e a minha malograda declaração de amor. Tive um
sentimento estranho ao contar esta história - da qual, à excepção de Ricardo, eu
nunca confiara uma palavra a ninguém - a esta gente da Úmbria, diante
daquelas ruelas estreitas e pedregosas, e dos montes do Sul, sobre que pairava
o aroma do entardecer rubro e dourado. Contei, sem muito reflectir, à maneira
das antigas novelas e, contudo, estava ali o meu coração; receava secretamente
que os ouvintes se rissem e zombassem de mim.
Mas quando terminei, todos os olhos estavam postos em mim, tristes e com
comiseração.
- Um homem tão belo! - exclamou uma das raparigas com vivacidade. - Um
homem tão belo, e com um amor infeliz!
A senhora Nardini, por seu lado, passou cuidadosamente a mão macia e
rubicunda sobre o meu cabelo e disse:
- Poverino!
Uma outra rapariga ofereceu-me uma grande pêra, e como eu lhe pedisse para
lhe dar a primeira dentada, ela recusou.

99

- Não, coma-a o senhor! Ofereci-lha porque nos contou a sua amargura.


- Mas, com certeza, ama outra - disse um vinhateiro moreno.
- Não - respondi.
- Oh, ainda ama essa maldosa Hermínia?
- Agora, amo São Francisco, e ele ensinou-me a amar toda a gente, a vós e à
gente de Perúsia, e a todos os meninos daqui, e até ao amante de Hermínia.
Surgiu, no entanto, uma certa confusão e perigo nesta existência idílica, quando
descobri que a senhora Nardini ardia de desejos por que eu ficasse ali
definitivamente e casasse com ela. Esta situação delicada fez de mim um
diplomata sagaz, porque não era nada fácil destruir esses sonhos sem destroçar
a harmonia ou arruinar a agradável amizade. E tinha também de pensar no meu
regresso. Não fora o sonho do meu futuro poema e a minha caixa que
ameaçava ficar vazia, eu teria permanecido ali. Talvez eu tivesse também,
precisamente devido à caixa vazia, casado com a Nardini. Mas não, o que me
impediu foi a ferida por Elisabete ainda não cicatrizada, e o desejo de voltar a
vê-la.
A rotunda viúva, contra toda a expectativa, aceitou o irrevogável, e não se
vingou pela sua desilusão. Quando parti, talvez a despedida me tenha sido mais
penosa do que a ela. Eu deixava muito mais do que alguma vez abandonara na
minha terra, e pela minha partida, nunca a mão me fora apertada tão
calorosamente por tanta gente amiga. As pessoas ofereciam-me frutas, vinho,
licor, pão e um chouriço para levar no carro, e tive a inusitada sensação de me
separar de amigos aos quais não era indiferente eu partir ou ficar. A senhora
Nardini, essa deu-me à despedida um beijo nas duas faces com lágrimas nos
olhos.
Antigamente, eu julgara que deveria ser um prazer singular ser amado sem
amar. Eu experimentara agora como pode ser penoso um amor que assim se
oferece sem que o possamos retribuir. E contudo, eu sentia algum orgulho no
facto de uma mulher estrangeira me amar e desejar para marido. Esta pequena
vaidade representou uma semicura para mim. A senhora Nardini fazia-me pena
e, contudo, eu não desejava que isso não tivesse sucedido. Aos poucos,
compreendia também que a felicidade pouco tinha a ver com a satisfação de
desejos exteriores, e que os sofrimentos de jovens amantes, por mais dolorosos
que sejam, nada têm de trágico.

100

Doeu-me não poder ficar com Elisabete. Todavia, a minha vida, a minha
liberdade, trabalho e modo de pensar ficaram intactos e, de longe, eu podia
continuar a amá-la como antes, quanto quisesse. Estes pensamentos, e mais
ainda a ingénua felicidade da minha existência durante os meses na Úmbria,
haviam sido sobremaneira salutares para mim. Eu tivera desde sempre um sexto
sentido para todo o ridículo e burlesco, e estragara com isso a minha própria
alegria por causa da ironia. Agora, aos poucos, abriam-se-me os olhos para o
humor da vida, e parecia-me cada vez mais possível e fácil reconciliar-me com a
minha estrela e saborear ainda um ou outro petisco do festim da vida.
Certamente que quando regressamos a casa vindos de Itália, é sempre assim.
Troçamos de princípios e preconceitos, sorrimos pensativamente, enfiamos as
mãos nos bolsos, e julgamo-nos verdadeiros mestres da vida. Durante algum
tempo, nadámos no calor agradável da vida do povo do Sul; julgamos, então,
que em casa, isso terá necessariamente de continuar assim. Também a mim me
sucedeu isso após cada regresso de Itália e, desta vez, mais ainda. Quando
cheguei a Basileia e deparei ali com a antiga vida rígida, não rejuvenescida e
imutável, fui descendo das alturas da minha alegria, degrau a degrau, até ao
fundo, deprimido e contrariado. Todavia, algo do que eu conquistara continuou a
germinar e, desde então, o meu bote não mais navegou por águas turbulentas
sem ao menos deixar adejar ao vento uma pequena flâmula, atrevida e
confiantemente.
Também no restante as minhas concepções se haviam alterado lentamente.
Sem grande pena, sentia-me deixar os anos da juventude e amadurecer rumo
aos tempos em que a pessoa aprende a ver a própria vida como um curto
caminho, e a si mesmo como um caminheiro, cujos trilhos e desaparição final
não suscita grande emoção nem preocupação no mundo. Mantemos em mira
um objectivo para a vida e um sonho acalentado, mas nem sempre nos julgamos
imprescindíveis e, pelo caminho, não raro nos damos ao lazer para, sem peso
na consciência, deixarmos de fazer a caminhada de um dia, nos estendermos
sobre a erva, assobiarmos um verso e alegrarmo-nos do presente amado sem
pensamentos reservados. Até agora, e sem que alguma vez houvesse orado a
Zaratustra, eu tinha sido de facto uma pessoa arrogante e não fora parco nem
em auto-adulação nem em desprezo para com gente mais humilde.

101

Agora, e aos poucos, via cada vez melhor que não há fronteiras rígidas, e que
no círculo dos pequenos, dos oprimidos e dos pobres, a existência não só é
igualmente variada, como geralmente mais quente, mais verdadeira e exemplar
que a dos favorecidos pela sorte e os grandes.
Eu regressei a Basileia precisamente a tempo de participar na primeira recepção
em casa de Elisabete, entretanto casada. Eu estava bem disposto, ainda fresco
e moreno da viagem, e trazia inúmeras pequenas recordações caricatas. A bela
mulher tinha gosto em me distinguir com uma delicada confiança, e todo o serão
me alegrei com a minha sorte que, em tempos, me poupou a um pedido de
casamento tardio. É que apesar das experiências feitas em Itália, eu tinha ainda
uma leve desconfiança ante as mulheres, como se elas tivessem um secreto
prazer nos tormentos sem esperança dos homens por elas enamorados. Uma
pequena história da vida escolar infantil que em tempos ouvi da boca de um
rapaz de cinco anos, servia-me de ilustração viva de uma situação igualmente
humilhante. Na escola infantil em que andava, reinava um uso estranho e
simbólico. Se um rapaz tivesse cometido alguma grande falta e, por isso,
devessem chegar-lhe a roupa ao pêlo, ordenava-se a seis meninas que
segurassem o transgressor sobre o banco, na desagradável posição necessária
à aplicação daquele correctivo. Como o facto de poder segurar era considerado
um grande prazer e elevada honra, eram sempre as seis raparigas mais bem
comportadas que participavam no cruel prazer daquele temporário prodígio de
virtude. Esta engraçada história infantil deu-me que pensar, e chegou mesmo a
introduzir-se algumas vezes nos meus sonhos, de forma que, ao menos por
experiência onírica, sei como uma pessoa se pode sentir desditosa em tal
situação.

102

7.

Ante os meus escritos, como sempre acontecera, eu não sentia respeito algum.
Eu podia viver do meu trabalho, pôr de lado pequenas economias e, de vez em
quando, enviar até algum dinheiro a meu pai. Contente, ele levava-o para a
taberna, cantava ali os meus louvores em todos os tons e pensava mesmo em
prestar-me algum serviço como paga. Eu dissera-lhe, certa vez, que ganhava o
meu pão principalmente com artigos em jornais. Ele considerava-me um
redactor ou correspondente, como os têm os jornais dos distritos rurais, e por
três vezes ditou cartas paternais dirigidas a mim, nas quais me comunicava
acontecimentos que lhe pareciam importantes e que julgava me dariam assunto
e trariam dinheiro. Uma vez foi um incêndio num palheiro, depois a queda de
dois turistas nos montes, e o terceiro a eleição de um regedor. Estas narrativas
estavam já redigidas num estilo jornalístico, de sabor grotesco, e trouxeram-me
verdadeira alegria, porque eram sinal de uma ligação de amizade entre ele e eu
e, desde há anos, as primeiras cartas recebidas da terra. Agradaram-me
também como involuntário escárnio dos meus escritos; porque, mês após mês,
eu discutia certos livros cuja publicação ficava muito aquém daqueles
acontecimentos rurais, tanto em importância como em consequências.
Surgiram precisamente naquela altura duas obras de autores que eu conhecera
em Zurique como jovens líricos extravagantes. Um deles vivia agora em Berlim e
sabia retratar muita podridão que ia pelos cafés e bordéis da grande cidade. O
outro tinha construído para si, nas proximidades de Munique, um sumptuoso
eremitério, e vacilava, abjecto e desesperado, entre introspecções neurasténicas
e excitações espiritistas.

103

Eu tinha de fazer a crítica aos livros, e naturalmente que pus ambos a ridículo,
sem segundas intenções. Do neurasténico, chegou-me uma carta desdenhosa,
num estilo verdadeiramente principesco. Pelo contrário, o berlinense fez
escândalo num jornal, achou-se incompreendido na sua verdadeira intenção,
invocou Zola, e a partir da minha crítica incompreensiva, invectivou-me não
apenas a mim, mas ao espírito presumido e prosaico dos suíços. O homem tinha
tido então, em Zurique, talvez o único período de algum modo saudável e digno
da sua vida literária. E sendo certo que eu não era um grande patriota, aquilo
pareceu-me berlinense em demasia, e respondi ao descontente com uma longa
epístola na qual, no meu desdém, não deixei de dizer certas verdades aos
inchados modernistas das grandes cidades.
Esta querela fez-me bem e forçou-me a debruçar de novo sobre a minha
concepção da vida cultural moderna. O esforço foi penoso e demorado, e
apresentava poucos resultados compensadores. O meu livro nada perde por não
falar dele.
Ao mesmo tempo, contudo, estas meditações forçaram-me a pensar
profundamente sobre mim próprio e o trabalho da minha vida longamente
planeado.
Como é sabido, eu tinha o desejo de, num poema de vulto, mostrar aos homens
actuais e tornar-lhes querida a generosa e silenciosa vida da natureza. Queria
ensiná-los a escutar o pulsar da terra, a participar na vida do todo e, na pressão
da sua vida mesquinha, não esquecer que não somos deuses criados por nós
mesmos, mas filhos e parte integrante da terra e do todo cósmico. Queria
recordar que, tal como os cantos dos poetas e os sonhos das nossas noites,
também as correntes, os mares, as nuvens que correm e as tempestades, são
símbolos e depositários daquela aspiração que estende as suas asas entre o
céu e a terra, cujo objectivo é a indubitável certeza do direito de cidadania e da
impericibilidade de tudo quanto vive. O núcleo mais íntimo de cada ser está
ciente destes direitos, é filho de Deus e repousa sem temor no seio da
eternidade. Pelo contrário, tudo quanto em nós trazemos de mau, doente e
corrupto, contradi-lo e crê na morte.
Mas eu queria também ensinar os homens a, através do amor fraterno à
natureza, encontrar a fonte da alegria e as torrentes da vida; queria pregar a arte
do contemplar, do caminhar, do fruir, pregar o gozo pelo presente.

104

Queria fazer as montanhas, mares e ilhas verdejantes falar-vos numa linguagem


aliciantemente poderosa, e queria forçar-vos a ver que vida
incomensuravelmente múltipla e viçosa floresce diariamente e jorra fora de
vossas casas e cidades. Eu queria conseguir que vos envergonhásseis de saber
mais das guerras estrangeiras, da moda, aplausos, literatura e artes, do que da
primavera desdobrando o seu indómito brotar ante vossas cidades, do que da
corrente fluindo sob vossas pontes, e do que das florestas e maravilhosas
campinas através das quais corre o vosso comboio. Queria narrar-vos a corrente
dourada de prazeres inesquecíveis que eu, solitário e desajeitado para a vida,
encontrara neste mundo, e queria que vós, talvez mais felizes e alegres que eu,
com maior alegria ainda, descobrísseis este mundo.
E queria, principalmente, depositar nos vossos corações o belo mistério do
amor. Eu esperava ensinar-vos a serdes verdadeiros irmãos de tudo quanto
vive, tão repletos de amor, que não receásseis já nem a dor nem a morte, mas
que, como verdadeiras irmãs, as recebêsseis verdadeira e fraternalmente
quando elas se aproximassem de vós.
Tudo isto, eu esperava apresentá-lo não em hinos e em altos cânticos, mas com
simplicidade, veracidade e objectividade, com seriedade e graça, tal como, ao
regressar, um caminhante fala aos seus camaradas do exterior.
Eu queria - eu desejava - eu esperava - tudo isto parece agora efectivamente
ridículo. Eu esperava ainda o dia em que, para este querer, se formasse um
plano e um esboço. Mas, pelo menos, eu recolhera muitas coisas. Não só na
cabeça, mas também numa série de pequenos livrinhos que trazia no bolso em
viagens e caminhadas, dos quais todos os quinze dias um ficava cheio. Ali, eu
escrevera notas curtas e resumidas sobre tudo o que é visível no mundo, sem
reflexões nem ligação entre si. Eram cadernos de esboços como os de um
desenhador e, em curtas palavras, continham imensas coisas reais: imagens de
ruelas e estradas, silhuetas de montanhas e cidades, conversas entre
camponeses, moços artífices, vendedeiras de mercado, a par de observações
sobre o tempo, notas sobre luminosidades, ventos, chuvas, rochas, plantas,
animais, o voo das aves, a formação de ondas, o jogo de cores no mar e formas
das nuvens. Uma vez por outra, construíra a partir delas também curtas histórias
que publicara, como estudos da natureza e de caminhos, todavia, tudo sem
ligações ao humano.
105

Para mim, a história de uma árvore, a vida de um animal ou a viagem de uma


nuvem era suficientemente interessante, mesmo sem adornos humanos.
A ideia de que um grande poema em que não entrassem absolutamente
nenhumas figuras humanas era um absurdo, já me tinha passado diversas
vezes pela cabeça, todavia, persegui anos a fio este ideal, e acalentava a
obscura esperança de que talvez um dia uma grande inspiração viesse a
superar este impossível. Agora, eu reconhecia definitivamente que tinha de
povoar as minhas belas paisagens de pessoas, e que estas jamais poderiam ser
representadas com suficiente naturalidade e fidelidade. Aqui, havia imenso a
recuperar, e ainda hoje continuo a recuperar neste aspecto. Até então, os
homens em geral haviam sido um todo e, no fundo, estranhos para mim.
Recentemente, aprendi como vale a pena, em vez de uma humanidade
abstracta, conhecer e estudar indivíduos, e encher o meu livrinho de notas e a
minha memória com imagens inteiramente novas.
O início destes estudos foi muito agradável. Saí da minha tola indiferença e
ganhei interesse por diversas pessoas. Vi quantas coisas evidentes me tinham
escapado, mas reconheci também como o muito caminhar e olhar me haviam
aberto e aguçado o sentido da observação. E como desde sempre uma
predilecção me impelia para as crianças, eu dava-me com elas com especial
prazer e frequência.
Ainda assim, a observação das nuvens e ondas foi mais agradável que o estudo
dos homens. Com espanto, apercebi-me de que o homem se diferencia da
restante natureza, especialmente por uma escorregadiça gelatina de mentira
que o envolve e protege. Em breve observei em todos os meus conhecidos este
mesmo fenómeno: o resultado da circunstância de cada qual ser forçado a
representar uma personalidade, uma figura nítida, enquanto, de facto, nenhum
conhece o mais fundo do seu ser. Com estranhos sentimentos, reconheci o
mesmo em mim próprio, e desisti então de pretender penetrar no fundo das
pessoas. Na maioria delas, a gelatina era muito mais importante. Deparei com
ela por toda a parte, até nas crianças que sempre, consciente ou
inconscientemente, preferem representar um papel a apresentar-se inteiramente
sem reservas e instintivamente.
Ao cabo de algum tempo, pareceu-me que não fazia já quaisquer progressos e
me perdia em jogos de minúcia.

106

Primeiro, procurei a falha em mim próprio, mas em breve não podia já ocultar-
me que estava desiludido e que o meu meio envolvente me não oferecia as
pessoas que eu procurava. Não precisava de pessoas interessantes, mas de
tipos. E isto, nem o grupo dos académicos nem o círculo das gentes de
sociedade me ofereciam. Com saudade, pensei em Itália, e com saudade
recordei os poucos amigos e companheiros nas minhas caminhadas, os
artífices. Eu caminhara muito na sua companhia, e encontrara entre eles muitos
moços excelentes.
Seria inútil procurar a pensão da minha terra e algumas espeluncas. A multidão
dos errantes não me servia. E assim, fiquei uma vez mais indeciso por algum
tempo, chegava-me às crianças e estudava muito pelas tabernas, onde, claro
está, nada havia que buscar. Vieram algumas semanas tristes em que perdia a
confiança em mim, achava ridículas e descomedidas as minhas esperanças e
desejos, andava muito ao ar livre e queimava noites no vinho.
Sobre as minhas mesas, haviam-se acumulado nessa altura algumas pilhas de
livros que gostaria de conservar, em lugar de os deixar no antiquário; no entanto,
não havia já lugar nos meus armários. Como solução, dirigi-me a uma pequena
carpintaria e pedi ao mestre que fosse a minha casa para fazer as medições
para uma estante.
Ele veio, um homem pequeno, calmo, de gestos compassados, mediu a sala,
ajoelhou no chão, estendeu o metro até ao tecto; deitava um pouco de cheiro a
cola, e anotava, número após número, com algarismos garrafais, no seu bloco
de notas. Sucedeu por um acaso que, ao mover-se, embateu num cadeirão
cheio de livros. Caíram alguns volumes e ele curvou-se para os apanhar. Entre
os livros, havia um pequeno léxico da gíria dos artífices. O pequeno volume
cartonado pode encontrar-se em quase todos os albergues para artífices, um
livrinho bem feito e delicioso.
O carpinteiro, quando viu o volumezinho que bem conhecia, virou-se para mim
com olhar curioso, meio divertido, meio desconfiado.
- O que há? - perguntei.
- Com a sua licença, vejo ali um livrinho que também eu conheço. Estudou
aquilo realmente?
- O que eu estudei foi a linguagem dos bandidos, pelas estradas - respondi. -
Mas, uma vez por outra, gosta-se de ir procurar uma expressão.

107

- Não me diga! - exclamou ele. - Então, o senhor também andou na vadiagem?


- Não assim como está a pensar. Mas caminhadas, fiz muitas, e pernoitei em
certas espeluncas.
Entretanto, havia empilhado de novo os livros e fazia menção de ir.
- Por onde é que andou a trabalhar no seu tempo? - perguntei-lhe.
- Daqui até Coblença e, mais tarde, até Génova, lá em baixo. Não foram os
piores tempos da minha vida.
- Também esteve preso?
- Uma vez apenas, em Durlach.
- Tem de me contar isso, se lhe agradar. Podemos encontrar-nos para um copo?
- Isso não me agrada, senhor. Mas se um dia, após o trabalho, quiser ir ter
comigo e me perguntar - como vai a vida? - cá por mim está bem. Isto, se a sua
intenção não for apenas vexar-me.
Alguns dias mais tarde, havendo recepção em casa de Elisabete, parei na rua a
pensar se não seria preferível ir ter com o meu carpinteiro. Voltei para trás,
deixei em casa a sobrecasaca, e fiz uma visita ao carpinteiro. A oficina estava já
fechada e escura, eu tropecei ao longo de um corredor escuro e um pátio
estreito, trepei a escada das traseiras acima e abaixo e, por fim, encontrei numa
porta um letreiro com o nome do mestre. Ao entrar, vi-me de imediato numa
cozinha muito pequena, onde uma mulher franzina preparava a ceia e ao
mesmo tempo tinha de vigiar três crianças que enchiam a apertada divisão de
vida e grande algazarra. Surpresa, a mulher conduziu-me à salita seguinte onde
o carpinteiro, sentado à janela, lia o jornal à luz do crepúsculo. Ele resmungou
desagradado quando, na penumbra, me tomou por um cliente importuno, mas
depois reconheceu-me e estendeu-me a mão.
Como ele ficara surpreendido e embaraçado, dirigi-me às crianças; fugiram de
mim para a cozinha, e eu segui-as. E ao ver ali a dona de casa a preparar uma
refeição, acordaram em mim as recordações da cozinha da minha padrona
úmbrica, e auxiliei no cozinhado. Entre nós, usualmente, o belo arroz é
impiedosamente cozido até formar uma espécie de grude, que não sabe a
absolutamente nada e é repelente. Também aqui o desastre estava a caminho, e
eu apenas consegui salvar a refeição no último momento; precipitando-me para
a panela e a escumadeira, prontamente tomei eu mesmo conta da confecção.

108

A mulher acedeu, espantada, o arroz ficou aceitável, servimo-lo, acendemos o


candeeiro e também eu recebi o meu prato.
Nessa noite, a mulher do carpinteiro envolveu-me em conversas tão minuciosas
acerca de questões de cozinha, que o marido quase não pôde tomar a palavra,
e tivemos de protelar a narrativa das suas aventuras de caminheiro para uma
outra vez. Aliás, estas gentes em breve sentiram que só exteriormente eu era
um senhor e, no fundo, filho de camponês, descendente do povo humilde; logo
na primeira noite, ficámos amigos e confidentes. É que, tal como eles
reconheceram em mim uma pessoa de igual nascimento, também eu pressenti
na humilde vida caseira a atmosfera cálida das gentes simples. Aqui, as pessoas
não tinham tempo para finezas, para poses, para comédias, para eles, mesmo
sem o manto da erudição e interesses superiores, a vida agreste e pobre era
amável e boa em demasia para ser atapetada com belos discursos.
Regressei com cada vez maior frequência e, junto do carpinteiro, esqueci não
apenas as nojentas questões de sociedade como também a minha tristeza e
infortúnios. Sentia como se encontrasse aqui um pouco de infância preservada
para mim, e continuei aqui aquela vida que em tempos os padres haviam
interrompido, quando me enviaram para as escolas.
Sobre um mapa amarelado pelo suor e ameaçando desfazer-se, o carpinteiro
seguiu comigo as suas e as minhas viagens, e sentíamos alegria por cada porta
de cidade e cada rua que ambos conhecíamos, reavivámos as anedotas dos
artífices e, certa vez, cantámos até várias das sempre jovens canções dos
caminheiros. Conversámos acerca dos problemas do trabalho dos artífices, da
manutenção da casa, das crianças, de coisas da cidade e, aos poucos, sucedeu
que o mestre e eu, lentamente, trocávamos de papel, que eu era o devedor e ele
quem oferecia e ensinava. Aliviado, sentia que aqui, em lugar das músicas dos
salões, me envolviam realidades.
Entre os filhos dele, havia uma menina de cinco anos que sobressaía pela sua
delicada singularidade. O seu nome era Agnes, mas chamavam-lhe Agi, era
loura, pálida e de membros franzinos, tinha olhos muito grandes e assustadiços
e possuía uma suave timidez. Certo domingo em que eu queria ir buscar a
família para dar um passeio, Agi estava doente.

109

A mãe ficou junto dela, e nós caminhámos lentamente até fora da cidade. Por
detrás de Santa Margarida, sentámo-nos num banco; as crianças corriam em
busca de pedras, flores e escaravelhos, e nós, homens, olhávamos os prados
estivais, o cemitério de Binning e a bela cadeia azulada dos Jura. O carpinteiro
estava fatigado, deprimido e silencioso, e parecia preocupado.
- Que há, mestre? - perguntei, quando as crianças estavam a distância
suficiente.
Ele olhou-me face a face, vago e triste.
- Não vê? - começou ele. - A Agi quer-me morrer. Já sei isso há muito, e admirei-
me de ter chegado a esta idade, que ela sempre trouxe a morte nos olhos. Mas
agora temos de a aceitar.
Comecei a consolá-lo, mas em breve acabei por desistir.
- Bem vê - riu ele tristemente - nem você mesmo acredita que a criança se
venha a salvar. Não sou nenhum beato, sabe, e só vou à igreja quando o rei faz
anos, mas sinto bem que agora, o Senhor quer ter uma conversinha comigo. Ela
não passa de uma criança, e nunca foi saudável, mas Deus sabe quanto eu lhe
queria mais do que aos outros dois juntos.
Com gorgeios e mil perguntas, as crianças chegaram a correr, rodearam-me,
pediram que lhes dissesse os nomes das flores e das ervas e, por fim, quiseram
que lhes contasse histórias. Expliquei-lhes então que as flores, as árvores e
arbustos, tal como as crianças, também têm cada um a sua alma e o seu anjo. O
pai também escutava e, aqui e além, dava em voz baixa a sua anuência. Vimos
os montes tornarem-se mais azuis, escutámos as Avé-Marias da tarde e
regressámos a casa. Sobre os prados, estendia-se uma neblina avermelhada,
as longínquas torres das catedrais erguiam-se, pequenas e delgadas, na
atmosfera quente, o azul estival do céu passava a uma cor esverdeada e
dourada, as árvores lançavam longas sombras. Os pequenos estavam fatigados
e mantinham-se silenciosos. Pensavam nos anjos das papoilas, dos cravos e
das campainhas, enquanto que nós, os mais velhos, pensávamos na pequena
Agi, cuja alma estava prestes a tomar asas e a deixar-nos a nós, pequeno
rebanho temeroso.
Nas duas semanas seguintes, tudo correu bem. A menina parecia curar-se,
conseguia deixar a cama por horas e nas suas almofadas frias parecia mais
linda e bem disposta que nunca. Seguiram-se algumas noites febris, e vimos
então, sem tornar a falar nisso,

110
que a criança só por mais algumas semanas ou dias continuaria a ser nosso
hóspede. Apenas uma vez o seu pai voltou a tocar no assunto. Foi na oficina. Vi-
o remexer na sua reserva de tábuas, e soube desde logo que ele tinha intenção
de procurar algumas para um caixão de criança.
- Tem de se fazer rápido - disse ele - e prefiro fazê-lo sozinho, depois de fechar.
Sentei-me sobre um dos bancos de trabalho, enquanto ele trabalhava no outro.
Depois de as tábuas estarem bem aplainadas, mostrou-mas com uma espécie
de orgulho. Era uma bela madeira de abeto, sã e sem defeito.
- Também não quero pregar-lhe nenhum prego, mas emarchetar bem as peças,
para ficar uma boa peça duradoira. Mas por hoje basta, vamos lá para cima ter
com a minha mulher.
Os dias corriam, quentes, fabulosos dias de Verão, e todos os dias eu passava
uma ou duas horas sentado junto da pequena Agi, falava-lhe dos belos prados e
florestas, segurava-lhe a mão infantil, leve e delgada, na minha mão larga, e
aspirei com toda a alma o querido e leve encanto que, até ao último dia, se
manteve em torno dela.
Depois permanecemos de pé, receosos e tristes, observando como o pequeno e
frágil corpo, uma vez mais, recobrava forças para lutar contra a potente morte,
que rápida e facilmente a venceu. A mãe manteve-se silenciosa e forte; o pai
debruçava-se sobre a armação da cama e despediu-se um cento de vezes,
afagando os cabelos louros e acariciando a sua predilecta falecida.
Veio a cerimónia simples e curta do funeral, e os serões de angústia em que as
crianças choravam nas suas camas ali ao lado. Vieram os belos passeios ao
cemitério em que plantávamos flores sobre o túmulo fresco e, juntos, sem
conversar, nos sentávamos no banco nas alas frescas, a pensar na Agi, e com
outros olhos, observávamos a terra onde jazia a nossa querida, e as árvores e a
relva que sobre ela cresciam, e os pássaros cujo canto alegre e descontraído
soava pelo cemitério.
A par disto, decorria o árduo dia de trabalho, as crianças cantavam de novo,
bulhavam entre si, riam e queriam escutar histórias, e todos nos habituámos,
sem o notar, a não mais ver a nossa Agi e a ter no céu um belo anjinho.
Enquanto isto, eu não mais visitara a casa do professor, e poucas vezes a casa
de Elisabeth, onde o tíbio fluir das conversas me deixava desconcertado e
opresso.

111

Eu procurei ambas as casas e em ambas deparei com portas cerradas, porque


há muito que todos tinham partido para o campo. Só agora notava com espanto
que, devido à amizade com a família do carpinteiro e a doença da criança,
esquecera de todo a estação quente e as férias. Antes, ter-me-ia sido de todo
impossível permanecer na cidade durante os meses de Julho e Agosto.
Despedi-me por pouco tempo, e encetei uma caminhada a pé pela Floresta
Negra, Bergstrasse e Odenwald. Pelo caminho, encontrei um prazer inusitado
em enviar aos filhos do carpinteiro, em Basileia, postais ilustrados de lugares
bonitos, e imaginar por toda a parte como, mais tarde, lhes contaria a viagem, a
eles e ao pai.
Em Francoforte, decidi fazer mais alguns dias de viagem. Em Aschaffenburg,
Nuremberga, Munique e Ulma, apreciei com prazer renovado as obras de arte
antiga e, por fim, fiz ainda uma paragem inteiramente inocente em Zurique. Até
aqui, todos estes anos evitara esta cidade como um túmulo, agora, deambulava
pelas ruas conhecidas, visitei as antigas tabernas e jardins e, sem dor, pensei
nos belos anos decorridos. A pintora Aglietti tinha casado e deram-me o seu
endereço. Pelo serão, fui lá, li à porta o nome do marido, levantei o olhar para as
janelas, e hesitei entrar. Nesse momento, os velhos tempos começaram a
avivar-se em mim, e o meu amor da juventude semidespertou do seu sono com
uma leve dor. Voltei costas, e não destruí em mim a bela imagem da bem-amada
mulher romanda com um reencontro inútil. Continuando as deambulações, visitei
o jardim do lago onde, naquele tempo, os artistas haviam dado a sua festa, ergui
os olhos para a casita em cuja mansarda eu habitara três curtos e belos anos e,
acima de todas as recordações, aflorou aos meus lábios, inopinadamente, o
nome de Elisabete. O novo amor era de facto mais forte que os seus irmãos
mais velhos. Era também mais calmo, mais modesto e grato.
Para preservar a minha boa disposição, tomei um barco e remei com deleitosa
lentidão sobre o lago quente e luminoso. Estava a entardecer e no céu havia
uma única nuvem branca de neve. Mantive-a continuamente no meu olhar e
acenei-lhe, pensando no amor pelas nuvens da minha infância e em Elisabete, e
ainda naquela nuvem pintada de Segantini, diante da qual vira certa vez
Elisabete, tão bela e extasiada. Esse amor para com ela, nunca turvado por
qualquer palavra ou desejo impuro,

112

jamais o havia sentido tão afortunado e purificador como agora, em que, olhando
a nuvem, calmamente e grato, eu via todo o bem na minha vida, e em lugar dos
antigos tumultos e paixões, sentia apenas a velha ânsia dos tempos de criança -
também ela mais amadurecida e calma.
Desde sempre me habituara a acompanhar com uma melodia ou canção, o
calmo ritmo do bater dos remos. Também agora eu cantava baixinho de mim
para mim, e só ao cantar notei que eram versos. Ficaram-me na memória, e em
casa escrevi-os, como recordação do belo serão do lago em Zurique.

Como uma nuvem branca


no alto céu se queda,
tão clara, bela e longe
estás tu, Elisabete.
A nuvem vai, caminha
mal tu a apercebeste
e logo nos teus sonhos
vai pela noite agreste.
Vai e brilha tão serena
que d'então e sem repouso
terás pela nuvem branca
um doce anelo ditoso.

Em Basileia, encontrei uma carta de Assis para mim. Era da senhora Annunziata
Nardini, e vinha repleta de boas notícias. Ela sempre acabara por encontrar um
segundo marido! Aliás, melhor será eu apresentá-la inalterada.

Digníssimo e muito caro Senhor Peter!

Permita que a sua fiel amiga tome a liberdade de lhe escrever uma carta.
Aprouve a Deus oferecer-me uma grande felicidade, e desejo convidá-lo para o
dia doze de Outubro para o meu casamento.

113

Ele chama-se Menotti e tem pouco dinheiro, mas ama-me muito e já antes
comerciou frutas. É bonito, mas não tão alto como o senhor Peter. Ele irá vender
fruta na Piazza, e eu fico na loja. A linda Marietta do vizinho casará também,
mas com um pedreiro estrangeiro.
Todos os dias pensei em si e falei de si a muitas pessoas. Tenho-lhe grande
afecto e também ao santo ao qual acendi quatro velas em sua memória.
Também Menotti terá muito gosto em que venha ao casamento. Se ele for
antipático para consigo, proibir-lho-ei. Infelizmente, confirmou-se que o pequeno
Mateo Spinelli era, de facto, como eu sempre disse, um malvado. Ele roubou-me
várias vezes limões. Agora, levaram-no porque roubou doze liras ao seu pai, o
padeiro, e porque envenenou o cão do mendigo Giangiacomo.
Desejo para si a bênção de Deus e do santo. Tenho grandes saudades suas.
A vossa serva e fiel amiga
Annunziata Nardini.

P.S.
A nossa colheita foi razoável. As uvas estiveram muito más e pêras também não
as houve suficientes; os limões foram muito abundantes, mas tivemos de vendê-
los muito baratos. Em Spello, sucedeu uma desgraça terrível. Um homem novo
matou o irmão com um ancinho, não se sabe porquê; na certa teria inveja dele,
apesar de ser seu irmão.

Infelizmente, não pude aceitar o sedutor convite. Enviei-lhe as minhas


felicitações e perspectivei a minha visita para a Primavera seguinte. Depois, com
a minha carta e a prenda para as crianças que trazia de Nuremberga, fui ter com
o meu mestre carpinteiro.
Ali, encontrei uma grande e inesperada alteração. Afastado da mesa, junto à
janela, uma figura humana grotesca e retorcida estava sentada sobre um
assento que, como uma cadeira para crianças, estava munida de um parapeito.
Era Boppi, o irmão da mulher do mestre, um pobre estropiado meio paralítico,
para quem, após a morte recente da sua velha mãe, não se encontrara lugar em
sítio algum. Contra vontade, o carpinteiro recebera-o em sua casa
provisoriamente, e a constante presença do doente estropiado pairava como um
pavor sobre a vida doméstica perturbada. Ninguém se havia ainda habituado a
ele; as crianças tinham medo,

114

a mãe sentia compaixão, constrangimento e opressão, e o pai estava


manifestamente desagradado. Sobre uma feia corcunda dupla, sem pescoço,
Boppi tinha uma cabeça de contornos maciços, com uma fronte larga, um nariz
adunco e uma bela boca sofredora; os olhos eram límpidos mas parados e um
pouco temerosos, e as mãos, notavelmente pequenas e belas, estavam brancas
e quietas, constantemente poisadas sobre o parapeito. Também eu fiquei
perturbado e indisposto por causa do pobre intruso e, ao mesmo tempo, senti-
me pouco à vontade por ouvir o carpinteiro contar a curta história do doente,
estando ele sentado ali ao lado, olhando as mãos, sem que ninguém lhe falasse.
Estropiado fora ele desde a nascença, contudo, tinha feito a escola e, durante
anos, pôde ser de alguma utilidade como empalhadeiro, até que crises
sucessivas de artrite o paralisaram parcialmente. Há muito tempo que se
mantinha ou na cama ou na sua estranha cadeira, apoiado entre almofadas. A
mulher pretendia saber que, em tempos, ele cantara de si para si, mas há anos
que já não o ouvia e, ali em casa, nunca havia cantado. E enquanto tudo isto era
contado e discutido, ele estava sentado ali, com um olhar fixo. Não me senti à
vontade, e em breve saí de novo; nos dias seguintes, mantive-me afastado da
casa.
Toda a minha vida eu fora forte e saudável, nunca tivera uma doença séria, e
olhara sempre com compaixão os enfermos, especialmente os estropiados, mas
também com um certo desprezo; agora, não me agradava nada encontrar a
minha vida pacata e feliz na família do artífice, perturbada pelo incómodo peso
desta existência miserável. Por isso, protelei uma segunda visita de dia para dia,
e em vão cogitava como poderíamos ver-nos livres do paralítico Boppi. Devia
haver alguma possibilidade de, com baixos custos, o internar num hospital ou
hospício. Por diversas vezes quis procurar o carpinteiro para lhe falar sobre o
assunto, mas sentia vergonha de encetar essa conversa sem ser questionado, e
do encontro com o doente, tinha um asco pueril. Sentia horror de vê-lo
constantemente e de lhe ter de estender a mão.
E assim deixei passar um domingo. No segundo domingo, estava já pronto a
fugir para o Jura no comboio da manhã, mas acabei por me envergonhar da
minha cobardia e fiquei, e após a refeição, fui a casa do carpinteiro.
Foi com repulsa que estendi a mão a Boppi. O carpinteiro estava irritável e
propôs que déssemos um passeio;

115
conforme me contou, estava farto daquela permanente miséria, e alegrei-me de
o ver aberto às minhas propostas. A mulher queria ficar, mas o aleijado pediu-lhe
que fosse, porque bem podia ficar só. Bastava ter a seu lado um livro e um copo
de água, e poderíamos deixá-lo fechado em casa, inteiramente descansados.
E nós, que nos considerávamos todos gente decente e de bom coração,
deixámo-lo fechado em casa e fomos passear! Andávamos contentes, fizemos
as nossas brincadeiras com as crianças, gozámos do belo sol outonal dourado,
e nenhum de nós se envergonhou e a nenhum se apertou o coração por ter
deixado o paralítico sozinho em casa! Estávamos, sim, contentes por, durante
algum tempo, nos vermos livres dele; respirámos aliviados o ar límpido e quente
do sol, dando a impressão de sermos uma família grata e íntegra, que goza do
domingo do Senhor com compreensão e gratidão.
Somente quando já havíamos entrado na pensão do Corno, em Grenzach, para
tomar um copo de vinho, e nos encontrávamos sentados à mesa, é que o pai
falou de Boppi. Queixava-se do hóspede importuno, suspirava por causa da
exiguidade e o aumento das despesas em sua casa, e terminou rindo com o
comentário:
- Aqui fora, enfim, podemos estar em paz pelo menos uma hora, sem que ele
nos mace!
Com esta frase irreflectida, eu vi de súbito o pobre paralítico ante mim,
implorante e sofrendo, aquele a quem não queríamos, de quem intentávamos
livrar-nos e que, agora, abandonado e encerrado por nós, só e triste, ficara
sentado no quarto que escurecia. Recordei que em breve cairia o lusco-fusco, e
ele não seria capaz de acender a luz ou aproximar-se mais dela. E então, poria
o livro de lado, e teria de ficar na semi-escuridão, só, sem uma conversa ou
ocupação para o seu tempo, enquanto nós, aqui, bebíamos vinho, nos ríamos e
divertíamos. E recordo como, em Assis, eu falara aos vizinhos de São Francisco,
e como me vangloriara de que ele me havia ensinado a amar todos os homens.
Para que tinha estudado a vida do santo e aprendido de cor o seu maravilhoso
cântico do amor, procurado os seus vestígios nas colinas úmbricas, se agora um
pobre homem indefeso jazia para ali, sofrendo, quando eu sabia disso e podia
confortá-lo?
A mão de um poder invisível poisou sobre o meu coração, comprimiu-o e
encheu-o de tanta vergonha e dor, que eu vacilei e sucumbi. Sabia que, agora,
Deus queria dizer-me umas palavras.

116

- Ó poeta! - dizia ele - tu, o discípulo do úmbrio, tu, o profeta que pretende
ensinar e dar a felicidade aos homens! Ó sonhador que pretendes escutar a
minha voz nos ventos e correntes! Tu amas uma casa - continuava ele - onde as
pessoas são amáveis para contigo, onde passas horas aprazíveis! E no preciso
dia em que essa casa se tornava digna da minha entrada, tu foges e pensas em
expulsar-me! Ó santo! Ó profeta! Ó poeta!
Sentia-me como se tivesse sido colocado diante de um espelho límpido,
verdadeiro, e me visse ali como um mentiroso, um fanfarrão, como um cobarde
e perjuro. Isto dói, isto é amargo, torturante e terrível; mas aquilo que em mim se
desmoronava e sofria tormentos e se revoltava de ferido, isso merecia
desmoronar-se e ser arruinado.
Com brusquidão e pressa, despedi-me, deixei o vinho no copo e o pão partido
sobre a mesa, e regressei à cidade. Na minha excitação, sentia-me mortificado
pelo pavor insuportável de que se teria dado algum desastre. Poderia ter
deflagrado o fogo, o pobre Boppi poderia ter caído da cadeira, jazer no chão
com dores ou mesmo morto. Via-o estendido, julgava-me a seu lado obrigado a
ver a silenciosa acusação no olhar do aleijado.
Ofegante, alcancei a cidade e a casa, precipitei-me pela escada acima, e só
então me veio à ideia que estava diante da porta fechada e não possuía
nenhuma chave. Mas logo afastei o meu medo. É que, antes ainda de alcançar a
porta da cozinha, escutei lá dentro um cantar. Foi um momento estranho. Com o
coração a bater e completamente esbaforido, encontrava-me de pé sobre o
negro lance das escadas e, acalmando-me lentamente, escutava o cantar do
paralítico encerrado. Ele cantava em voz baixa, branda e um pouco dolente,
uma canção popular de amor, sobre «A florzinha branca e vermelha». Eu sabia
que há muito ele não cantara, e agora sentia-me sensibilizado por estar a
escutá-lo, no momento em que ele aproveitava aquela hora sossegada para, de
novo e à sua maneira, se alegrar.
E é realmente assim: a vida gosta de colocar o ridículo a par de acontecimentos
sérios e emoções profundas. Também eu senti ao mesmo tempo o ridículo e
humilhante da minha situação. O meu medo súbito levara-me a correr uma hora
pelos campos fora até aqui para, agora, sem chave, ficar diante da porta da
cozinha. Ou me ia embora de novo,

117

ou teria de gritar ao paralítico as minhas boas intenções através de duas portas


fechadas. Ali estava eu sobre a escada, com o meu propósito de consolar
aquele pobre, manifestar-lhe compaixão e ajudá-lo a passar o tempo, e ele, sem
nada suspeitar, lá dentro a cantar; e certamente teria ficado apenas assustado
se eu manifestasse a minha presença batendo à porta ou gritando. Nada mais
me restava que ir-me de novo. Vagueei durante uma hora pelas ruas, com o
movimento domingueiro, e encontrei depois a família já em casa. Desta vez,
nada me custou estender a mão a Boppi. Sentei-me a seu lado, comecei uma
conversa e perguntei-lhe o que havia lido. Oferecer-lhe leituras, era uma coisa
de todo natural, e ele ficava grato por isso. Quando lhe recomendei Jeremias
Gotthelf, descobri que conhecia quase todos os seus escritos. No entanto,
Gottfried Keller era-lhe ainda desconhecido, e prometi emprestar-lhe os seus
livros.
No dia seguinte, quando trouxe os livros, tive oportunidade de ficar a sós com
ele, porque a mulher queria sair e o homem se encontrava na oficina. Então,
confessei-lhe quanto me envergonhava de, no dia anterior, tê-lo deixado só, e
que muito me agradaria poder sentar-me, uma vez por outra, junto dele e ser
seu amigo.
O pequeno aleijado voltou um pouco a enorme cabeça para mim, olhou-me e
disse:
- Obrigado.
E foi tudo. Mas este movimento da cabeça custara-lhe esforço e, assim, tinha
muito maior valor que dez abraços de alguém saudável, e o seu olhar era tão
claro e infantilmente belo que, de vergonha, o sangue me aflorou ao rosto.
Agora, faltava ainda o mais difícil, que era falar com o carpinteiro. Pareceu-me
melhor confessar-lhe abertamente o meu medo e vergonha da véspera.
Infelizmente, não me compreendeu, mas admitiu que conversássemos sobre
ele. Aceitou manter o doente como hóspede dele e meu, de forma que
dividíamos entre nós as poucas despesas do seu sustento, e me era dada
permissão de entrar ou sair quando quisesse e considerá-lo meu irmão.
O Outono manteve-se inusitadamente quente e belo. Por isso, a primeira coisa
que fiz por Boppi foi arranjar-lhe uma cadeira de rodas e, diariamente, quase
sempre na companhia das crianças, levá-lo para o ar livre.

118

8.

Foi sempre destino meu receber da vida e dos meus amigos muito mais do que
podia oferecer. Com Ricardo, com Elisabete, com a senhora Nardini e com o
carpinteiro, fora assim que sucedera, e agora vivia a experiência de, na idade
madura e possuindo grande consciência de mim próprio, me tornar no discípulo
atónito e grato de um pobre paralítico. Se realmente vier alguma vez a suceder
que eu termine e entregue o meu poema há tanto iniciado, pouco haverá ali que
não tenha aprendido com Boppi. Iniciou-se um tempo bom e agradável ao qual,
durante toda a vida, poderei ir beber abundantemente. Foi-me concedido olhar,
clara e profundamente, o íntimo de uma alma humana maravilhosa, pela qual a
doença, a solidão, a pobreza e as incompreensões apenas haviam passado
como leves nuvens soltas.
Todos os pequenos fardos com que amarguramos e corrompemos a vida bela e
curta, a cólera, a impaciência, a desconfiança, a mentira... estas pústulas
dolorosas e imundas que nos desfeiam, haviam sido consumidas neste homem
em meio de dores, por um longo e profundo sofrimento. Ele não era nenhum
sábio, nem santo, mas um homem cheio de compreensão e dedicação que,
através de grandes e terríveis sofrimentos, aprendera a sentir-se fraco e
entregar-se nas mãos de Deus sem vergonha.
Certa vez, perguntei-lhe como conseguia ele conformar-se sempre com o seu
corpo dorido e sem forças.
- É muito simples - riu, afavelmente. - No fundo, é uma eterna guerra entre mim
e a doença. Agora ganho uma batalha, logo perco outra, e assim continuamos a
luta; por vezes, mantemo-nos ambos quietos,
119

fazemos tréguas, acomodamo-nos um ao outro e ficamos à espreita até que um


de nós se atreve de novo, e a guerra recomeça.
Até então, eu julgara sempre possuir um olhar infalível e ser bom observador.
Mas também nisto Boppi se tornou um mestre admirável. Como tinha grande
prazer na natureza e nos animais, eu levava-o com frequência ao jardim
zoológico. Passámos ali horas deliciosas. Ao fim de pouco tempo, Boppi
conhecia cada um dos animais, e como trazíamos sempre pão e açúcar,
também alguns animais nos conheciam e criámos todo o tipo de amizades.
Tínhamos uma predilecção especial pelo tapir, cuja única virtude é um asseio
que falta ao resto da sua espécie. Em tudo o mais, achávamo-lo vaidoso, pouco
inteligente, antipático, ingrato e extremamente glutão. Havia outros animais,
nomeadamente o elefante, as corças e camurças, e até mesmo o grosseiro
bisonte, que mostravam sempre alguma gratidão pelo açúcar recebido, quer
olhando-nos confiantemente, quer deixando que eu os afagasse. Mas quanto ao
tapir, nem o mais pequeno vestígio disso. Mal nos aproximávamos dele,
acercava-se da rede, comia lentamente e com cuidado o que lhe oferecíamos, e
afastava-se outra vez sem tugir nem mugir quando percebia que nada mais
tínhamos para lhe dar. Encontrámos nisso um sinal de orgulho e carácter, e
como ele nem pedia nem agradecia o que lhe destinávamos, senão que o
recebia jovialmente como um tributo natural, chamámos-lhe o cobrador de
impostos. Como Boppi não pudesse, usualmente, dar ele mesmo o alimento aos
animais, levantava-se de vez em quando uma discussão sobre se o tapir já tinha
recebido o suficiente ou se teria ainda direito a mais um pedaço. Sopesávamos
isso com grande pragmatismo e minúcia, como se fosse uma questão
governamental. Certa vez, tínhamos já avançado para além do tapir, quando
Boppi comentou que deveríamos ter-lhe dado mais um pedaço de açúcar.
Voltámos para trás, no entanto o tapir, que entretanto regressara à sua cama de
palha, olhou-nos sobranceiramente e não se aproximou da rede.
- Faça o favor de desculpar, senhor glutão - gritou-lhe Boppi - acho que nos
enganámos num pedaço de açúcar.
E seguimos para o elefante, que já andava de um lado para o outro, cheio de
impaciência, e nos estendia a sua tromba quente e muito móvel. A este, podia o
próprio Boppi dar de comer, e ele observava com infantil deleite como o gigante
curvava a tromba até si, retirava o pão da palma da sua mão,

120

e nos olhava com esperteza e amizade com o seu olhinho fiel e minúsculo.
Combinei com um guarda que, quando não tivesse tempo para ficar junto dele,
poderia deixar Boppi sentado na sua cadeira de rodas no jardim, de forma que
também nesses dias podia permanecer ao sol e ver os animais. Depois, ele
contava-me tudo quanto tinha visto. Impressionava-o, muito especialmente, ver
como o leão tratava cortesmente a sua consorte. Mal esta se deitava para
repousar, ele dava ao seu eterno andar de um lado para o outro uma tal
orientação, que não lhe tocava, nem a incomodava ou passava por cima dela.
Mas onde Boppi se distraía mais, era junto da lontra. Não se cansava de
observar as contorções nos exercícios de natação e ginástica daquele activo
animal, e de se deliciar com isso, porquanto ele próprio permanecia imóvel na
sua cadeira e, para cada movimento da cabeça e dos braços, tinha de fazer
grande esforço.
Estava um dos mais belos dias do Outono quando contei a Boppi as minhas
duas histórias de amor. Tínhamos criado uma tão grande confiança entre nós,
que não podia já continuar a ocultar-lhe estas minhas experiências sem fortuna
nem glória. Ele escutou com amabilidade e seriedade, sem nada dizer. Mais
tarde, confessou-me o seu desejo de ver um dia Elisabete, a nuvem branca, e
pediu-me que pensasse bem nisso para o caso de alguma vez a encontrarmos
na rua.
Como tal não sucedesse e os dias começassem a tornar-se frios, fui ter com
Elisabete e pedi-lhe que desse essa alegria ao pobre corcunda. Ela era bondosa
e fez-me a vontade e, no dia aprazado, permitiu que a fosse buscar e a levasse
ao jardim zoológico, onde Boppi aguardava na cadeira de rodas. No momento
em que a bela e distinta dama, muito bem vestida, estendeu a mão ao aleijado e
se curvou um pouco sobre ele, e em que o pobre Boppi, com o rosto brilhando
de alegria, ergueu os olhos bondosos e quase ternos para ela, eu não seria
capaz de decidir qual dos dois, naquele momento, era mais belo e mais querido
ao meu coração. A dama disse algumas palavras amáveis, o corcunda não
retirava o olhar brilhante dela, e eu, ali ao lado, maravilhava-me de, por um
momento, ver ante mim, em tão bom entendimento, os dois seres que mais
amava e cujas vidas estavam separadas por um fosso profundo. Durante toda a
tarde, Boppi não falou de mais nada que não fosse Elisabete, louvava a sua
beleza, a sua elegância, a sua bondade, os seus fatos,

121

as luvas amarelas e os sapatos verdes, o seu andar e o olhar, a sua voz e o seu
belo chapéu, ao passo que a mim me doeu e pareceu estranho observar como a
minha amada dava uma esmola ao meu grande amigo.
Entretanto, Boppi lera «Henrique, o Verde» e «As Gentes de Seldwyl» e estava
tão à vontade no mundo destes livros únicos que ambos encontrávamos
grandes amigos no Pancrácio Carrancas, no Alberto Zwiehan e nos justos
fazedores de pentes. Durante algum tempo, hesitei em dar-lhe ainda alguns dos
livros de Conrad Ferdinand Meyer, mas pareceu-me que ele não apreciaria a
precisão quase latina da sua linguagem concisa, e também tive escrúpulos em
desvendar a estes olhos silenciosos o abismo da história. Em lugar disso, falei-
lhe de São Francisco e dei-lhe a ler as narrativas de Moerike. Eu estranhei a sua
confissão de que não teria podido apreciar grande parte da história da bela Lau,
se não tivesse estado tantas vezes junto ao tanque da lontra, entregando-se,
então, a inúmeras fantasias aquáticas fabulosas.
Engraçado foi como, aos poucos, acabámos por nos tratar por tu. Eu nunca lho
havia proposto, e ele também não o teria aceite; assim, sucedeu que nos
tratávamos naturalmente por tu com cada vez maior frequência; quando, certo
dia, o notámos, sentimos vontade de rir e deixámos que assim continuasse para
sempre.
Quando o Inverno, que se aproximava, tornou impossíveis as nossas saídas e
eu passava de novo tardes inteiras na sala do cunhado de Boppi, apercebi-me
então de que a minha nova amizade ainda me exigia sacrifícios. O carpinteiro
estava sempre mal humorado, irritável e parco em palavras. Com o passar do
tempo, aborreceu-o não apenas a maçadora presença do comensal inútil, como
igualmente o meu comportamento para com Boppi. Chegou a suceder eu
conversar animadamente uma tarde inteira com o paralítico, enquanto o dono da
casa, irritado, se mantinha sentado ali ao lado a ler o jornal. E também se
desentendia com a mulher, normalmente tão paciente, porque agora ela
sustentava firmemente a sua vontade, e não admitia de forma nenhuma que
Boppi fosse instalado noutro lugar. Por diversas vezes procurei transmitir-lhe
sentimentos mais conciliadores, ou propor-lhe novos empreendimentos, mas
não era possível fazer nada com ele. Começou mesmo a tornar-se mordaz, a
escarnecer da minha amizade com o aleijado e a tornar difícil a vida deste. É
certo que o doente e eu, que diariamente passava longo tempo junto dele,

122

éramos um fardo pesado para a apertada economia do lar, mas continuava a


alimentar esperanças de que o carpinteiro acabasse por aliar-se a nós,
ganhando amizade ao doente. Por fim, já me era impossível fazer ou deixar de
fazer o que quer que fosse que não magoasse o carpinteiro ou prejudicasse
Boppi. E como detesto todas as decisões rápidas e prementes - já durante o
período em Zurique Ricardo me apelidara de Petrus Cunctator - eu deixei passar
várias semanas, sofrendo continuamente com receio de perder a amizade de
algum deles ou talvez de ambos.
O mal-estar crescente desta relação dúbia levava-me com maior frequência às
tabernas. Certa noite, depois de esta malfadada história me ter irritado
particularmente, dirigi-me a uma pequena taberna de vinhos de Vaud e ataquei o
mal emborcando vários litros. Pela primeira vez desde há dois anos, tive de novo
dificuldade em ir de pé para casa. No dia seguinte, como sempre após uma
grande bebedeira, eu estava de bom humor e fresco; tomei coragem e fui ter
com o carpinteiro, para pôr ponto final naquela comédia. Propus-lhe que me
entregasse completamente Boppi, ao que ele não mostrou desacordo e, após
alguns dias de reflexão, acabou por aceder.
Pouco tempo depois, eu, mais o meu pobre corcunda, instalávamo-nos numa
casa acabada de alugar. Sentia-me como se tivesse casado porque, agora, em
lugar do meu habitual quarto de solteiro, eu devia iniciar uma verdadeira vida
familiar a dois. Mas tudo correu bem, apesar de no início ter feito algumas
experiências infelizes. Para fazer arrumações e lavar, veio uma criada;
mandávamos trazer a comida a casa, e em breve ambos nos sentíamos numa
convivência calorosa e acolhedora. A necessidade de renunciar futuramente às
minhas caminhadas despreocupadas, as grandes e as pequenas, não me
assustava por enquanto. Nos trabalhos, achava até tranquilizadora e estimulante
a presença silenciosa do amigo. Os pequenos serviços prestados ao doente
eram novos para mim e pouco agradáveis de início, muito especialmente o
despir e vestir; mas o meu amigo era tão paciente e grato que eu me
envergonhava e esforçava para o servir atenciosamente.
Poucas mais vezes eu fora a casa do meu amigo professor, mas ia à de
Elisabete, cuja casa, apesar de tudo, me atraía com uma constante magia. Eu
sentava-me ali, bebia chá ou um copo de vinho, e via-a fazer de anfitriã;

123

por vezes, tinha acessos de sentimentalismo, apesar de, armado de escárnio,


travar um combate permanente contra todos os eventuais sentimentos
wertherianos em mim. O lânguido e juvenil egoísmo do amor, tinha-me
abandonado definitivamente. Assim, a verdadeira relação era um elegante e
confiante estado de guerra entre nós e, de facto, poucas vezes nos juntávamos
sem que discutíssemos amigavelmente. O espírito perspicaz da inteligente
mulher, um pouco esquivo à maneira feminina, não dava mal com o meu ser a
um tempo enamorado e rude; e como no fundo nos estimávamos, podíamos
tanto mais energicamente entrar em guerra por qualquer miudeza insignificante.
Eu achava estranho nomeadamente, defender contra ela o celibato - contra a
mulher com quem eu, do fundo do coração, teria casado. Podia até troçar dela e
do seu marido, que era um bom rapaz, orgulhoso da sua espirituosa mulher. Em
silêncio, o velho amor continuava inflamado, no entanto, não era já o antigo fogo
de artifício pretensioso, mas uma brasa benéfica e duradoura, que mantém
jovem o coração, e na qual o celibatário, uma vez por outra, em noites invernais,
pode aquecer as mãos. Desde que Boppi estava de todo comigo e me envolvia
com uma maravilhosa sabedoria e uma constante consciência de ser amado, eu
podia sem perigo deixar o meu amor viver em mim como um pedaço de
juventude e poesia.
Aliás, Elisabete, aqui e além, com a sua malícia muito feminina, oferecia-me
ocasião para me arrefecer e, de todo o coração, alegrar-me pelo meu celibato.
Desde que o pobre Boppi partilhava comigo a minha morada, eu descurava
também cada vez mais a casa de Elisabete. Com Boppi, lia livros, folheava
álbuns de viagens e diários, jogava dominó; para nos distrairmos arranjámos um
cão-de-água, observávamos da janela o início do Inverno, e todos os dias
tínhamos imensas conversas inteligentes e tolas. O doente tinha adquirido uma
excelente concepção do mundo, uma compreensão da vida realista e adoçada
por um humor bondoso, na qual eu diariamente tinha algo que aprender. Quando
caíram fortes nevões e, diante da janela, o Inverno desdobrou a sua mais pura
beleza, criámos com um prazer infantil um acolhedor idílio caseiro junto do
fogão. A arte do conhecimento humano, pela qual eu tão longamente gastara
solas em vão, aprendi-a nesta altura sem dar por isso.

124
De facto, Boppi, como observador silencioso e perspicaz, estava repleto de
imagens dos ambientes em que estivera inserido, e quando começava, sabia
contar maravilhosamente. Na sua vida, o aleijado não conhecera mais de três
dúzias de pessoas, nunca estivera imerso nas grandes correntes e, todavia,
conhecia a vida muito melhor que eu, porque estava acostumado a ver até
mesmo o mais minucioso, e em cada pessoa encontrar uma fonte de
experiências, alegrias e conhecimentos.
O nosso maior divertimento, agora como antes, era o prazer no mundo animal.
Com os animais do jardim zoológico que não podíamos já visitar, inventávamos
agora histórias e fábulas de todo o género. Na sua maioria, não as contávamos,
mas representávamo-las de improviso em diálogos. Por exemplo, uma
declaração de amor entre dois papagaios, desavenças familiares entre os
bisontes, conversas de serão entre javalis.
- Como tem passado, senhora Marta?
- Obrigada, senhora Raposa, vai-se vivendo. Bem sabe, quando fui capturada
perdi o meu querido marido. Chamava-se Cauda de Pincel, como já tive a honra
de lhe contar. Era uma pérola, asseguro-lhe, uma...
- Ah, deixe lá essas velhas histórias, senhora vizinha, já me contou isso da
pérola por diversas vezes, se me não engano. Santo Deus, afinal vivemos uma
vez apenas e não podemos estragar o pouco de prazer que nos cabe.
- Por favor, senhora Raposa, se tivesse conhecido o meu marido, compreender-
me-ia melhor.
- Por certo, por certo. Então, ele chamava-se Cauda de Pincel, não é? É um belo
nome, mesmo para afagar! Mas o que lhe queria dizer... notou, decerto como a
molesta praga de pardais tem aumentado? Eu tenho um plano.
- No tocante aos pardais?
- No tocante aos pardais. Sabe, engendrei-o assim: colocamos um pouco de pão
diante da rede, deitamo-nos sossegadas, e esperamos que eles apareçam.
Seria o diabo, se não conseguíssemos apanhar umas bestas daquelas. Que lhe
parece?
- Formidável, senhora vizinha.
- Tenha então a bondade de colocar aqui um pouco de pão... assim, óptimo! Mas
talvez empurrá-lo um pouco mais para a direita, que já serve às duas. Na
verdade, infelizmente, estou sem qualquer provisão.

125

Assim, está bem. Então, atenção! Deitamo-nos agora, e fechamos os olhos -


psst, ali vem já um! (Pausa.)
Então, senhora Raposa, ainda nada?
Que impaciente que é! Como se fosse a primeira vez que anda à caça! Um
caçador tem de saber esperar, esperar, e esperar mais uma vez. Portanto,
vamos de novo!
Ah, mas onde está o pão?
Perdão?
O pão, já não está aqui.
Não é possível! O pão? De facto... desapareceu! Com mil raios! Com certeza foi
outra vez o maldito vento.
Ah, tenho cá as minhas desconfianças. Pareceu-me há pouco que a ouvi a
comer qualquer coisa.
Como? Eu a comer? Mas o quê?
O pão, naturalmente.
É ofensivamente explícita nas suas suspeitas, senhora Marta. Dos vizinhos,
sempre temos de saber ouvir certas palavras, mas isto é demais. Isto é demais,
sempre lho digo. Compreendeu-me? ... e agora, eu é que comi o pão! Que é que
pretende afinal? Primeiro, tenho de ouvir a enfadonha história da sua pérola pela
milionésima vez, depois tenho uma boa ideia, colocamos o pão...
Isso fui eu! Eu é que o dispensei.
...colocamos o pão, eu deito-me a tomar atenção, tudo está a correr bem, depois
vem daí com a sua conversa... os pardais, claro, põem-se a mexer, a caçada
estragada e, agora, até fui eu que comi o pão! Bem pode esperar que torne a
falar consigo.
E nisto, as tardes e os serões passavam fáceis e rápidos. Eu estava de muito
boa disposição, trabalhava com prazer e rápido, e admirava-me de antigamente
ter sido tão indolente e carrancudo e encarar a vida com tanta dificuldade. Os
tempos mais belos com Ricardo não haviam sido mais belos que estes dias
calmos e alegres; lá fora, os flocos volteavam e, junto ao fogão, nós dois mais o
cão-de-água deixávamo-nos estar confortavelmente.
E precisamente então, o meu pobre e querido Boppi tinha de fazer a sua
primeira e última patetice. Eu, na minha satisfação, estava cego, naturalmente, e
não via que ele sofria mais que de costume. Mas ele, de tanta humildade e
amor,

126

mostrava-se mais bem disposto que nunca, não se queixava, e nem sequer me
impediu de fumar; depois, de noite, jazia para ali, e sofria e tossia, gemendo
baixinho. Por puro acaso, certo dia em que fiquei a escrever pela noite fora na
sala ao lado, e ele me julgava na cama há muito, ouvi-o gemer.
O pobre ficou muito assustado e contristado quando, de súbito, com o meu
candeeiro, entrei no seu quarto de dormir. Pousei a luz ao lado, sentei-me na
sua cama e encetei um interrogatório. Ele procurou esquivar-se durante muito
tempo mas, por fim, lá confessou.
- Não é assim tão grave - disse timidamente. - Só em alguns movimentos é que
vem aquela sensação de aperto no coração e, por vezes, também ao respirar.
Desculpou-se logo como se o facto de adoecer fosse um delito!
Na manhã seguinte, fui ter com o médico. Era um gélido dia, bonito e límpido;
pelo caminho, a minha opressão e preocupação desanuviaram-se, recordei
mesmo o Natal e pensava em como poderia preparar uma alegria a Boppi. O
médico ainda estava em casa, e em face das minhas instantes súplicas,
acompanhou-me. Fomos no seu cómodo automóvel, subimos a escada,
entrámos no quarto de Boppi, e começou um tactear, um martelar, um escutar, e
quando o médico se tornou um pouco mais sério e a sua voz um pouco mais
bondosa, a minha alegria desvaneceu-se.
Artrite, fraqueza de coração, um caso grave... escutei e registei tudo, e fiquei
espantado comigo mesmo por nem sequer me rebelar quando o médico ordenou
o internamento no hospital.
À tarde, veio a ambulância e, depois do meu regresso do hospital, senti-me
tremendamente desconfortável em casa, com o cão-de-água a meter-se-me
debaixo dos pés, a grande cadeira do doente posta para o canto e o quarto ao
lado vazio. É assim o amor. Traz consigo a dor e eu sofri muito nos tempos que
se seguiram. Mas tem tão pouca importância se sofremos dores ou não!
Conquanto haja uma forte convivência e se sinta o estreito e vital laço que liga a
nós tudo o que é vivo, e o amor não arrefeça! Eu daria todos os dias alegres que
jamais vivi, e todos os meus amores, e ainda todos os planos poéticos se, em
troca, pudesse olhar de novo o interior do Santo dos Santos como naquele
tempo. Dói amargamente aos olhos e ao coração, e o doce orgulho e a vaidade
recebem os seus duros golpes,

127

mas, em seguida, fica-se tão calmo, tão humilde, muito mais maduro e, no
fundo, mais vivificado!
Já com a pequena Agi, morrera uma parte do meu velho ser. Agora, eu via sofrer
o meu corcunda a quem havia dedicado todo o meu amor e com quem tinha
partilhado toda a minha vida, e lentamente, muito lentamente, via-o morrer;
todos os dias sofria com ele e tive o meu quinhão em todos os horrores, em toda
a santidade da morte. Eu era ainda um novato na ars amandi, e tinha já de
iniciar-me com um capítulo sério da ars moriendi. Sobre este tempo, não
silenciarei como silenciei sobre Paris. Dele, quero falar bem alto, como uma
mulher do seu noivado e um velho dos seus tempos de rapaz.
Eu via morrer uma pessoa cuja vida fora apenas dor e amor. Ouvia-o brincar
como uma criança, enquanto sentia a morte trabalhar em si. Eu via como, entre
fortes dores, o seu olhar me buscava, não para mendigar junto de mim, mas
para me reerguer e mostrar-me que esses espasmos e sofrimentos tinham
deixado intocado o que havia de melhor no seu íntimo. Então, os seus olhos
ficavam enormes, e já se não via o seu rosto emurchecido, mas apenas o brilho
dos seus grandes olhos.
Que posso fazer por ti, Boppi?
Conta-me alguma coisa. Talvez sobre o tapir. Falava-lhe do tapir, ele cerrava os
olhos, e eu tinha de fazer esforço para falar como de costume, pois as lágrimas
estavam continuamente prestes a saltar. E quando julgava que ele me não ouvia
já ou dormia, calava-me. Ele reabria então os olhos.
E depois?
Eu continuava a falar do tapir, do cão-de-água, do meu pai, do maldoso pequeno
Mateo Spinelli, de Elisabete.
- Sim, ela casou com um rapaz tolo. É assim a vida, Peter!
Frequentemente, ele começava de súbito a falar da morte.
- Não é fácil, Peter. Por mais duro que seja o trabalho, não é tão difícil
como morrer. Mas sempre o passamos.
Ou então:
- Quando os tormentos passam, já consigo rir. Para mim, vale a pena
morrer, livro-me de uma corcunda, de um pé curto e de uma anca paralisada.
Quanto a ti, vai ser pena, com esses teus ombros largos e boas pernas
saudáveis.

128

E certa vez, nos últimos dias, ele acordou de um curto sono e disse bem alto:
- Não há nenhum céu como o de que o pároco fala. O céu é muito
mais belo. Muito mais belo.
A mulher do carpinteiro vinha frequentes vezes e mostrava-se inteligentemente
participativa e solícita. O carpinteiro, com grande pena minha, não apareceu
nunca.
- Que te parece - perguntou Boppi certa vez - no céu também haverá um tapir?
- Oh, sim - disse eu, acenando afirmativamente. - Há lá toda a espécie de
animais, até a camurça.
Veio o Natal, e fizemos uma pequena celebração junto à cama dele. Veio uma
grande geada, voltou a degelar, e nova neve caiu sobre o gelo, mas eu de nada
me apercebi. Ouvi dizer que Elisabete havia tido um rapaz, e esqueci-o de novo.
Chegou uma carta tola da senhora Nardini; li-a de fugida e pu-la de lado. Os
meus trabalhos, fazia-os a correr, com a permanente consciência de estar a
roubar cada hora a mim próprio e ao doente. Depois, corria assediado e
impaciente até ao hospital, onde havia um silêncio alegre, e sentava-me metade
dos dias junto à cama de Boppi, envolto numa profunda paz maravilhosa.
Pouco antes do fim, teve ainda alguns dias de melhoras. Era notável como o
tempo acabado de decorrer parecia desvanecer-se na sua memória, e como
vivia nos seus anos de juventude. Durante dois dias, não parou de falar da mãe.
Não podia falar durante muito tempo, mas via-se que até nas pausas, que
podiam durar horas, ele pensava nela.
- Contei-te muito pouco acerca dela - lamentava-se - tu não podes
esquecer nada do que lhe diz respeito, senão, em breve deixará de haver
alguém que saiba alguma coisa dela e lhe seja grato. Seria bom, Peter, se
toda a gente tivesse uma mãe assim. Ela não me pôs num hospício, quando
deixei de poder trabalhar.
Ele jazia ali, respirava com dificuldade. Passou uma hora, e recomeçou:
- Era a mim que ela queria mais entre todos os filhos e manteve-me
junto a si até morrer. Os meus irmãos partiram para longe, a minha irmã
casou com o carpinteiro, mas eu permaneci lá em casa, e embora fosse
muito pobre, nunca mo fez sentir. Não podes esquecer a minha mãe, Peter.

129
Ela era muito pequena, talvez ainda mais pequena que eu. Quando me dava a
mão, era como se um passarito poisasse sobre ela. Basta um caixão de criança,
disse o carpinteiro quando ela morreu.
Também para ele teria chegado um caixão de criança. Estava tão sumido e
pequeno na sua cama limpa do hospital, e agora, as mãos dele pareciam mãos
doentes de mulher, longas e estreitas, brancas e um pouco disformes. Quando
deixou de sonhar com a mãe, veio a minha vez. Falava de mim como se eu não
estivesse sentado ali ao lado.
É um azarado, é certo, mas não lhe fez nenhum mal. A mãe morreu-lhe
demasiado cedo.
- Ainda me reconheces, Boppi? - perguntei.
- Claro, senhor Camenzind - disse ele brincando, e riu baixinho.
- Se ao menos pudesse cantar - comentou logo de seguida.
No último dia, perguntou ainda:
- Olha, fica-te muito caro aqui o hospital? Podia tornar-se demasiado
dispendioso.
No entanto, não esperou resposta. Um delicado rubor subiu-lhe ao rosto lívido,
cerrou os olhos e, durante algum tempo, parecia uma pessoa extremamente
feliz.
- Está a chegar o fim - disse a irmã.
Mas ele abriu de novo os olhos, olhou-me com um ar travesso e moveu as
sobrancelhas, como se quisesse acenar-me. Ergui-me, coloquei a mão sob o
seu ombro esquerdo e, com cuidado, levantei-o um pouco, o que lhe fazia
sempre bem. Assim deitado sobre a minha mão, contorceu uma vez mais os
lábios numa breve dor e, depois, voltou a cabeça um pouco e estremeceu como
se tivesse frio de repente. Foi a libertação.
- Estás bem, Boppi? - perguntei ainda. Mas ele estava já livre dos
seus sofrimentos e arrefecia na minha mão. Foi no dia sete de Janeiro,
uma hora depois do meio-dia. Pela tardinha, arranjámos tudo, e o pequeno
corpo disforme jazia pacificamente e limpo, sem outras deformações, até que
chegou o momento de o levar e enterrar. Durante estes dois
dias, admirei-me continuamente de nem estar demasiado triste nem indeciso, e
nem sequer ter necessidade de chorar. Eu experimentara a separação e a
despedida tão profundamente durante a doença que, agora,
pouco restava, e o prato oscilante da minha dor, aos poucos, aliviado,
voltou a subir.

130

No entanto, pareceu-me chegado o momento de deixar a cidade em silêncio, de


ir repousar algures, talvez no Sul, e montar, enfim, no tear a teia apenas
grosseiramente urdida do meu poema. Restava-me ainda algum dinheiro,
portanto, suspendi as minhas obrigações literárias e preparei-me para, nos
primeiros inícios da Primavera, fazer as malas e partir. Primeiro para Assis, onde
a vendedora de hortaliças aguardava a minha visita, depois, para um trabalho
sério nalguma aldeia o mais sossegada possível. Parecia-me que o pedaço da
vida e da morte que tinha visto era já suficiente para poder pretender que outras
pessoas me ouvissem discorrer um pouco acerca disso. Numa impaciência
agradável, eu esperava o mês de Março; os meus ouvidos estavam já de
antemão repletos de pragas italianas e, no nariz, comichava-me um cheiro
picante de Risotto, laranjas e vinho de Chianti.
O plano era perfeito, e sentia tanto maior alegria quanto mais pensava nele.
Entretanto, eu fazia bem em alegrar-me de antemão pelo Chianti, pois tudo veio
a suceder de forma bem diversa.
Num estilo magnífico, uma carta patética do estalajadeiro Nydegger anunciava-
me, em Fevereiro, que havia grande quantidade de neve e, na aldeia, tanto com
os animais como entre as pessoas, nem tudo andava bem; nomeadamente o
estado do senhor meu pai era inquietante e, em resumo, seria bom que eu
enviasse dinheiro ou fosse lá pessoalmente. Como o envio de dinheiro não me
agradava e o ancião me causava sérias preocupações, tive mesmo de partir.
Cheguei num dia inóspito, a queda de neve e o vento não permitiam que se
vissem nem montes nem casas, e foi-me muito útil o facto de eu conhecer o
caminho até de olhos fechados. Contra as minhas conjecturas, o velho
Camenzind não estava de cama, pelo contrário, encontrava-se sentado, frágil e
abatido, ao canto da lareira, e era assediado por uma vizinha que lhe havia
trazido leite e não cessava de descompô-lo por causa da sua má conduta na
vida, no que nem com a minha chegada se perturbou.
- Veje, o Peter 'stá i - exclamou o pecador encanecido, piscando--me o olho
esquerdo.
Mas ela continuou imperturbavelmente o seu discurso. Sentei-me, aguardei que
o seu amor ao próximo se esgotasse, e encontrei no seu arrazoado alguns
capítulos que também a mim me assentavam. Entretanto, eu ia observando
como a neve do meu sobretudo e das botas ia derretendo,

131

formando primeiro em redor da minha cadeira uma mancha húmida e, depois,


um calmo regato. Só quando a mulher terminou, pôde cumprir-se o ritual do
reencontro, em que ela participou muito amigavelmente.
O pai havia perdido muitas forças. Recordei-me do meu antigo e breve esforço
para cuidar dele. Nessa altura, a partida não havia solucionado nada, e eu bem
podia, agora que ele estava visivelmente mais necessitado, beber o cálice até ao
âmago.
No fundo, não pode esperar-se de um velho camponês endurecido, que nem
nos seus tempos mais florescentes fora um modelo de virtudes, que nos dias de
doença da velhice se torne dócil e se sinta tocado pela cena do amor filial.
Também o meu pai o não fez, e quanto mais doente mais voluntarioso se
tornava; ele fez-me pagar tudo aquilo com que em tempos o atormentara, se não
com juros, pelo menos até ao último tostão. Nas palavras, todavia, ele era parco
e comedido frente a mim, mas dispunha de grande quantidade de meios
drásticos para, sem palavras, se mostrar descontente, amargo e grosseiro. Por
vezes, perguntava-me a mim mesmo, hesitante, se também eu, com a idade,
viria a dar uma coruja tão desagradável e insuportável. No tocante à bebida,
para ele, estava tudo praticamente arrumado, e o copo de bom vinho do Sul que
eu lhe servia duas vezes por dia, saboreava-o de má cara, porque eu levava
logo a garrafa para a cave vazia, nunca lhe entregando a chave.
Só pelos finais de Fevereiro chegaram aquelas semanas claras que tornam o
inverno nas altas montanhas tão maravilhoso. As altas escarpas dos picos
surgiam nítidas contra um céu azul de loio, e naquele ar transparente, surgiam
inacreditavelmente próximas. Os prados e encostas estavam cobertos de neve -
a neve do inverno de montanha, como tão branca e cristalina e de aroma tão
forte nunca se encontra nas terras baixas. Ao meio-dia, sobre pequenas
elevações, a luz do sol celebra festejos esplendorosos, nos vales e vertentes há
sombras de um azul saturado e, após a queda de neve durante semanas, o ar
está tão puro que cada inspiração ao sol é um prazer. Nos declives menos
íngremes, os jovens dedicam-se ao esqui, e na hora após o meio-dia, vêem-se
velhinhos nas ruas deliciando-se ao sol, ao passo que à noite, os barrotes do
telhado estalam com o gelo. Ao centro dos brancos campos de neve, jaz o lago
calmo e azul, que nunca gela, mais belo do que no Verão.

132

Todos os dias antes do almoço ajudava o meu pai a ir até à porta, e ficava a
observar como ele estendia os dedos tisnados e nodosos ao calor benfazejo do
sol. Mas após algum tempo, ele punha-se a tossir e a queixar do frio. Era um
dos seus truques inocentes para me exigir um copo de aguardente; porque nem
a tosse nem o frio eram para tomar a sério. Então, ele recebia um copito de
Genciana ou um pouco de Absinto, deixava de tossir numa gradação artificiosa
e, às ocultas, alegrava-se de me ter enganado. Após o almoço, eu deixava-o a
sós, punha as polainas e caminhava umas horas pelos montes acima, até onde
calhava, e fazia o caminho de retorno, sentado sobre uma mochila que levava, à
maneira de desporto, a escorregar pelas encostas de neve abaixo.
Quando chegou a época em que pretendera viajar para Assis, ainda havia neve
com alguns metros de profundidade. Só em Abril começou a Primavera a
manifestar-se, e a nossa aldeia foi avassalada por um degelo maligno como há
anos não o havia. Ouvia-se o foehn uivar dia e noite, o rugir de longínquas
avalanchas, e o rugir ameaçador das enxurradas que lançavam sobre os nossos
pobres e estreitos terrenos e pomares, grandes blocos de rocha e árvores
partidas. A febre do foehn não me deixava dormir, noite após noite, escutava
impressionado e receoso, o gemer da tempestade, o ribombar dos aludes e o
lago furioso bramir contra as margens. Neste tempo febril das terríficas batalhas
primaveris, fui de novo tão poderosamente avassalado pela doença do amor já
superado, que me levantei durante a noite, me debrucei no postigo da porta e,
entre dores amargas, gritei à tempestade palavras de amor por Elisabete. Desde
a noite quente em Zurique, em que eu correra para as colinas além do casario,
fugindo por amor da pintora romanda, nunca mais a paixão tomara posse de
mim tão tremenda e irresistivelmente. Era como se a linda mulher estivesse
muito perto, diante de mim, me sorrisse e, todavia, retrocedesse a cada passo
que eu dava para me aproximar. Os meus pensamentos, viessem eles de onde
viessem, regressavam irresistivelmente a esta imagem e, tal como um ferido, eu
não podia deixar de coçar continuamente o abcesso que me causava prurido.
Tinha vergonha de mim próprio, o que era tão vexante como inútil, amaldiçoava
o foehn e, secretamente, a par de todos os tormentos, sentia um oculto e cálido
prazer, como nos tempos da juventude, quando pensava na bela Rosa e aquela
vaga quente e turva me assaltava.

133

Compreendi que era por causa desta doença que nenhuma erva tinha crescido,
e procurei trabalhar ao menos um pouco. Comecei a tomar entre mãos a
edificação da minha obra, desenvolvi alguns estudos, mas em breve reconheci
que o momento não era propício. Entretanto, surgiam de toda a parte más
notícias sobre o foehn, e na nossa própria aldeia instalou-se a miséria. As
represas dos ribeiros estavam semidestruídas, algumas casas, celeiros e
estábulos tinham sofrido graves danos e, dos casais afastados, chegava gente
sem abrigo; por toda a parte havia lamentos e miséria, e em parte alguma
dinheiro. Foi nestes dias que, para felicidade minha, o regedor me mandou
chamar ao seu escritoriozinho de conselheiro e me perguntou se eu estaria
disposto a participar numa junta de auxílio à miséria geral. Julgavam-me capaz
de defender os interesses da comunidade junto do cantão e, nomeadamente
através dos jornais, mover o país à comiseração e a conceder auxílio monetário.
Convinha-me, precisamente naquela altura, poder esquecer o meu inútil amor
próprio com um assunto mais sério e digno, e lancei-me desesperadamente ao
trabalho. Em Basileia, por meio de cartas, consegui logo algumas pessoas
dispostas a fazer a colecta. O cantão, como sabíamos já de antemão, não tinha
dinheiro, e podia apenas enviar alguns trabalhadores. Voltei-me então para os
jornais com apelos e crónicas; recebíamos cartas, doações e pedidos de
informação, e eu, a par da escrita, tinha ainda de travar batalhas com os
caturras dos camponeses.
As poucas semanas de trabalho ininterrupto fizeram-me bem. Quando, aos
poucos, a questão foi entrando na ordem e eu me tornava menos necessário,
verdejavam já os prados em redor, e o lago mostrava-se azul, inocente e
soalheiro às vertentes libertas de neve. O meu pai passava dias suportáveis e os
meus sofrimentos de amor haviam-se esvanecido e esfumado, quais restos
sujos de aludes. Por esta época, em tempos idos, o meu pai envernizava o
barco, a mãe olhava-o do jardim, e eu observava os movimentos do velho, as
nuvens do seu cachimbo e as borboletas amarelas. Agora não havia já nenhum
barco para pintar, a mãe havia morrido há muito, e o pai sentava-se pela casa
descuidada, enfadado. Também o tio Conrado me recordava os tempos antigos.
Frequentes vezes, sem que meu pai visse, levava-o comigo para um copito, e
escutava-o a contar e recordar os seus inúmeros projectos com um riso bondoso
e, contudo, não sem orgulho. Novos, já os não tinha,
134

e também no resto a idade havia-o marcado muito, todavia, nas expressões e,


por vezes, no riso tinha algo de rapaz e moço, que me fazia bem. Era amiúde o
meu consolo e passatempo, quando eu não suportava mais permanecer em
casa junto do velho. Levava-o para o vinho e, então, ele trotava esbaforido a
meu lado, esforçando-se temerosamente por manter as suas pernas magras e já
recurvadas no mesmo passo que eu.
- Tens de pôr a vela, tio Conrado - estimulava-o, e a partir da vela acabávamos
sempre por falar do nosso velho barco que já não existia, e que ele lastimava
como um amigo falecido. E como também a mim aquele velho objecto me fora
querido e me fazia agora falta, recordávamo-lo e a todas as histórias passadas
com ele até ao mínimo pormenor.
O lago estava tão azul como nessa altura, o sol não menos festivo e quente, e
eu, um homem, olhava muitas vezes as borboletas amarelas e tinha a sensação
de que, desde então, pouco se modificara afinal, e podia, da mesma forma,
estender-me nos prados a maquinar sonhos de rapaz. Que assim não era e que
eu havia já gasto boa parte dos meus anos, podia vê-lo todos os dias ao lavar-
me quando, do alguidar de lata ferrugenta, me olhava a minha cabeça com o
nariz adunco e a boca amarga. Melhor ainda cuidava o Camenzind sénior de
que me não esquecesse do decorrer dos tempos; e quando eu pretendia voltar
inteiramente ao presente, bastava-me abrir a gaveta perra do meu quarto onde
jazia e dormia uma obra futura, constituída por um monte de rascunhos já com
anos, e seis ou sete projectos feitos em folhas in-quarto. Mas eu raramente abria
a gaveta.
A par dos cuidados com o velho, a manutenção da nossa casa degradada dava-
me bem que fazer. Nos soalhos, abriam-se abismos, a lareira e o fogão estavam
danificados, deitavam fumo e mau cheiro, as portas não fechavam, e a escada
do sótão, o antigo palco das punições paternas, estava muito perigosa. Mas
antes que pudesse fazer-se algo, o machado tinha de ser afiado, a serra
remendada, havia que pedir emprestado um martelo, procurar os pregos e,
depois, preparar pedaços aproveitáveis dos restos apodrecidos da antiga
reserva das madeiras. Na reparação das alfaias e da velha pedra de amolar, o
tio Conrado dava-me uma pequena ajuda, no entanto, estava demasiado velho e
recurvado para ser de grande auxílio. Assim, rasguei as minhas mãos macias de
escritor na madeira rebelde,

135

dei ao pedal da bamboleante pedra de amolar, subi ao telhado roto por toda a
parte, preguei, martelei, cobri de tábuas e cortei a madeira, fazendo o meu Adão
um pouco anafado escorrer umas quantas gotas de suor. Por vezes, parava
também, nomeadamente durante o aborrecido remendar do telhado;
suspendendo uma martelada, sentava-me comodamente, chupava de novo o
cigarro meio apagado, olhava o azul profundo do céu, e gozava da minha
indolência na alegre consciência de que, agora, o pai não podia já instigar-me
nem descompor-me. Se alguém passava por perto, mulheres, velhos ou
crianças, para dissimular o ócio, eu encetava amigáveis conversas de vizinhos
com eles e, aos poucos, fui adquirindo a reputação de um homem com quem se
podem trocar umas palavras ajuizadas.
Vai quent'o dia, Beta?
É verdade, Peter. Que é a lida?
Ver se remendo o telhado.
Ora bem, há muito que tinha precisão.
Pois é.
Como vai o velho? Já há-de ir nos seus setenta.
Oitenta, Beta, oitenta. Que tal, quando lá chegarmos? Não é brinquedo.
Tem razão, Peter, mas tenho de ir indo, que o meu homem quer comer. Até mais
ver!
Adeus, Beta.
E enquanto ela continuava o caminho com a malga no pano, eu atirava nuvens
para o ar, ficava a olhá-las e pensava por que seria afinal que toda a gente
andava tão atarefada com os seus afazeres, enquanto eu passava dois dias
inteiros a martelar na mesma tábua. Mas, por fim, o telhado lá ficou remendado.
Contra o costume, o meu pai interessou-se por isso, e como de forma alguma eu
poderia carregá-lo até ao telhado, tinha de dar-lhe completa satisfação por cada
tabuinha, sem me incomodar com as suas bazófias.
- 'stá bom - admitiu ele - .'stá bom, má julgue que nã terminavas
esti ano.
Agora, ao olhar e meditar nas minhas viagens e tentativas na vida, sinto alegria
e irritação por viver também em mim a velha experiência de que os peixes
pertencem à água e os camponeses à terra,

136

e que um Camenzind de Nimikon, apesar de todas as artes, não pode ser


transformado num homem da cidade ou do mundo. Vou-me habituando a
considerar que isso está bem, e alegro-me de a minha falhada caça à felicidade
do mundo, contra minha vontade, me haver trazido de novo ao velho recanto,
entre o lago e a montanha, onde é o meu lugar, e onde as minhas virtudes e os
meus vícios, mas especialmente os vícios, são algo de comum e tradicional. Lá
longe, teria esquecido a terra-mãe e, por pouco, não acabei por considerar-me
uma planta rara e exótica; reconheço agora que era apenas o espírito de
Nimikon o que em mim se revoltava e não podia adaptar-se aos usos do
restante mundo. Aqui, ninguém se lembra de ver em mim um ser à parte, e
quando olho o meu velho papá ou o tio Conrado, acho que dei um bom filho e
sobrinho. Os meus poucos voos ziguezagueando pelo reino do espírito, e aquilo
que se denomina erudição, bem podem comparar-se à famosa viagem em barco
à vela do tio, simplesmente, ficaram-me mais dispendiosos no tocante a
dinheiro, esforço e belos anos. Também exteriormente, desde que o meu primo
Kuoni me apara a barba, uso outra vez calções com suspensórios e ando em
mangas de camisa, me tornei inteiramente num autóctone, e quando me tornar
grisalho e velho, tomarei imperceptivelmente o lugar de meu pai e o seu
insignificante papel na vida da aldeia. As pessoas sabem apenas que passei
muitos anos lá fora, e eu guardo-me de lhes dizer que trabalho miserável exerci
e em quantos lodaçais me atolei; de outro modo, em breve ficaria sem alcunha
nem apelido. Sempre que falo da Alemanha, da Itália ou de Paris, enfatuo-me
um pouco, e até mesmo nas passagens mais verdadeiras duvido eu próprio, por
vezes, da minha sinceridade.
E que acabaram por dar tantas viagens errantes e anos desperdiçados? A
mulher que eu amava e amo ainda, educa em Basileia os seus dois lindos filhos.
A outra, que me amava, consolou-se e continua a vender fruta, hortaliça e
sementes. O meu pai, por causa de quem regressei ao ninho, nem morreu nem
sarou, e senta-se diante de mim, sobre a sua caminha de preguiçoso, olha-me e
inveja-me pela posse da chave da cave.
Mas isto não é tudo. Para além da minha mãe e do amigo de juventude afogado,
tenho a loira Agi e o meu pequeno corcunda Boppi como anjos no céu. E eu vi
as casas da aldeia serem arranjadas de novo e ambos os diques reerguidos.

137

Se quisesse, estava também sentado no Conselho Municipal. Mas ali, já há


Camenzind de sobra.
Há pouco tempo, porém, abriu-se para mim uma nova perspectiva. O
estalajadeiro Nydegger, em cuja sala o meu pai e eu bebemos uns quantos litros
de vinho de Valtellina, de Valais ou de Vaud, começa a afundar-se e já não sente
prazer no negócio. Um destes dias, queixou-se-me do desgosto. O pior é que se
não se encontrar ninguém da povoação para o substituir, alguma cervejaria de
fora acabará por comprar o estabelecimento e, então, tudo ficará estragado e
em Nimikon deixará de haver uma hospedaria acolhedora. Será colocado ali
qualquer locatário de fora, que preferirá tirar cerveja a servir vinho, o qual
deixará a bela cave do Nydegger maltratada e envenenada. Desde que sei disto,
não consigo ficar em paz; em Basileia, ainda tenho algum dinheiro no banco, e o
velho Nydegger não me acharia a pior pessoa para o suceder. O problema é
apenas que não quero tornar-me estalajadeiro enquanto o meu pai viver.
Porque, por um lado, já não conseguiria manter o velho afastado da batoqueira
e, além disso, ele não deixaria de cantar vitória por eu, com todo o latim e
estudos, acabar como estalajadeiro de Nimikon e não ter chegado mais longe.
Isto não pode ser e, assim, começo a desejar o apagar do velho, não com
impaciência, mas por amor de uma causa nobre.
O tio Conrado caiu de novo numa sede de invenções, após longos anos de
adormecimento, e isso não me agrada. Traz constantemente o indicador na boca
e uma ruga de concentração na fronte, dá pequenos passos nervosos pelo
quarto e, quando o tempo está limpo, olha muito para a água.
- Quer-me cá parecer que quer construir barcos outra vez - disse a sua velha
Cenzine.
De facto, ele tem um ar tão activo e temerário como há muitos anos não
mostrava, e traz uns traços de tanta esperteza e superioridade no rosto, que
parece saber precisamente como desta vez terá de começar. Mas eu acho que
não se trata de nada disso, e que é apenas a sua alma cansada que agora
anseia por ganhar asas e, em breve, regressar à pátria. Tens de pôr a vela, caro
tio! Mas quando for a hora dele, então os senhores de Nimikon presenciarão
algo de nunca visto. É que decidi cá para mim proferir algumas palavras junto ao
seu túmulo, depois do padre, como aqui nunca foram ditas. Recordarei o tio
como um bem-aventurado

138

e favorito de Deus e, a esta parte edificante, seguir-se-á uma boa mão cheia de
sal e pimenta para os queridos enlutados que me não esquecerão nem
perdoarão tão cedo. Oxalá o meu pai o veja ainda.
Na gaveta, estão os inícios do meu grande poema. «A obra da minha vida',
poderia eu dizer. Mas parece demasiado patético e prefiro não me expressar
assim, porque tenho de reconhecer que a sua continuação e conclusão estão
ambas muito periclitantes. Talvez chegue outra vez o tempo em que a tornarei a
iniciar, em que a continuarei e concluirei; nessa altura, a ânsia da minha
juventude terá tido razão, e eu terei sido realmente um poeta.
Isso valeria para mim tanto ou mais ainda que ser conselheiro ou que os diques
de pedra. Mas ao passado da minha vida que, contudo, se não desperdiçou,
incluindo todas as imagens de entes queridos, desde a elegante Girtanner até
ao pobre Boppi, a esses, não os contrabalançaria.

Prémio Nobel da Literatura em 1946, Herman Hesse (1877-1962) é um dos mais


célebres e importantes escritores alemães contemporâneos. De entre as suas
obras, destacam-se, para além dos romances O Jogo das Contas de Vidro,
Demian e Peter Camezind, editados nesta colecção, Sidarta, O Lobo das
Estepes e Narciso e Goldmundo.

Data da Digitalização

Torres Vedras, Amadora, Dezembro de 2005

Potrebbero piacerti anche