Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Herman Hesse
Digitalização e Arranjo
Júlia Vieira
Agostinho Costa
«Agora, ao olhar e meditar nas minhas viagens e tentativas na vida, sinto alegria
e irritação por viver também em mim a velha experiência de que os peixes
pertencem à água e os camponeses à terra, e que um Camenzind de Nimikon,
apesar de todas as suas artes, não pode transformar-se num homem da cidade
ou do mundo.»
Assim se conclui a história da formação do jovem Peter Camenzind, um aldeão
à descoberta das glórias e misérias da vida moderna, até ao momento em que o
círculo se fecha e ele regressa, num derradeiro apaziguamento, à sua terra
natal.
«Em Peter Camezind Herman Hesse justapõe à parábola do filho pródigo o mito
da viagem iniciática. Uma história inspirada, contada num tom de rara beleza do
grande escritor alemão que foi Prémio Nobel de Literatura 1946.»
HERMAN HESSE
PETER CAMENZIND
3ª EDIÇÃO
No princípio, era o mito. E assim como o grande Deus fazia poesia na alma dos
hindus, gregos e germanos, procurando expressar-se, assim de novo ele faz
poesia, dia após dia, na alma de cada criança. Então, eu ainda não sabia como
se chamavam o lago, os montes e ribeiros da minha terra; mas olhava a
vastidão lisa, verde-azul do lago ao Sol, recamada de pequenas luzes, as
montanhas abruptas em redor, como uma corda espessa, nas gargantas mais
elevadas, as falhas reluzentes de neve e as pequenas, minúsculas quedas de
água, e no sopé as luminosas veigas salpicadas de árvores de fruto, cabanas e
vacas cinzentas dos Alpes. E estando a minha pobre pequena alma tão vazia,
silenciosa e anelante, os espíritos do lago e das montanhas escreveram nela os
seus belos e ousados feitos. As hirsutas escarpas e rochas falavam, insistentes
e plenas de respeito, dos tempos de que descendem e trazem as cicatrizes.
Falavam do tempo em que a Terra quebrava e vergava e, do seu seio
atormentado, gemendo nas dores do parto, fazia irromper picos e cristas.
Montanhas de rocha erguiam-se bramindo e retumbando e, aguçando-se sem
medida, partiam; montes gémeos lutavam desesperadamente por espaço, até
que um deles vencia, e se elevava, e lançava o seu irmão para o lado,
despedaçando-o. Desde esses tempos, nos desfiladeiros, jaziam ainda aqui e
além, cumes partidos, rochas expelidas e fendidas, e de cada vez que a neve
derretia, a queda das águas lançava para baixo blocos tão grandes como casas,
estilhaçava-os como vidro ou, com golpes colossais, cravava-os profundamente
em veigas macias.
Estes blocos de rocha diziam sempre o mesmo. E era fácil compreendê-los,
*1. Vento quente e seco dos Alpes Suíços e Austríacos. (N. da T).
10
Aprendi assim a olhar os homens como árvores ou rochas, a pensar sobre eles,
a respeitá-los, nem menos, nem mais que aos silentes pinheiros.
A nossa aldeiazinha de Nimikon fica situada numa faixa triangular junto ao lago,
entalada e pendente entre dois flancos de montes. Um caminho conduz ao
convento próximo, um outro a uma aldeia vizinha, distante quatro horas e meia;
as outras aldeias junto ao lago alcançam-se pela água. As nossas casas são de
madeira, construídas no velho estilo, e não têm idade determinada; quase não
aparecem construções novas, e as velhas casinhas são reparadas por partes,
segundo as necessidades, este ano os soalhos, noutra vez um pedaço do
telhado; e alguma metade de viga ou prancha que pertencia, talvez, à parede do
quarto, encontra-se agora de reserva no forro, e ainda que não mais sirva para o
mesmo, sendo boa em demasia para queimar, usar-se-á no próximo arranjo do
estábulo ou do palheiro, ou como travessa na porta da casa. O mesmo se passa
com os que habitam lá dentro: cada qual desempenha o seu papel enquanto
pode, entra depois, renitentemente, no círculo dos inúteis, e mergulha por fim
nas trevas, sem que isso provoque grande alarido. Aquele que, após uma
ausência de anos, regressa para junto de nós, não encontra maiores mudanças
que uns telhados velhos renovados e outros novos envelhecidos; os antigos
anciãos finaram-se, mas há outros anciãos que habitam o mesmo casebre,
usam os mesmos nomes, olham pelo mesmo rancho de crianças de cabelos
escuros, os quais, no rosto e nos modos, mal se distinguem dos entretanto
falecidos.
A nossa freguesia carecia de um afluxo mais frequente de sangue fresco e vida
do exterior. Os habitantes, uma raça aceitavelmente robusta, são quase todos
estreitamente aparentados, e uns bons três quartos usam o nome Camenzind.
Ele enche as páginas do livro de registo paroquial e vê-se nas cruzes do
cemitério, sobressai nas casas a tinta de óleo, ou num grosseiro trabalho de
talha, e lia-se no carro do carroceiro, nos baldes dos estábulos e nos barcos do
lago. Também sobre a porta da casa de meu pai estava pintado: «Esta casa foi
construída por Justo e Francisca Camenzind», contudo, isso não se referia a
meu pai, mas ao seu avô, o meu bisavô; e ainda que eu, como é provável,
venha a morrer sem deixar filhos, sei que de novo um Camenzind ocupará o
velho ninho, se acaso estiver de pé ainda e tiver um telhado a cobri-lo.
11
mas era-lhe imputado como singularidade ridícula, pelo que ficava incluído entre
os bufões gratuitos da comunidade. A relação de meu pai com ele era de um
constante oscilar entre a admiração e o desprezo. Cada projecto novo do seu
cunhado, colocava-o num estado de violenta curiosidade e excitação, que em
vão procurava ocultar sob perguntas e alusões irónicas com que o espiava.
Quando o tio se julgava certo do seu êxito e começava a fazer-se de
espertalhão, ele deixava-se convencer e associava-se ao génio em especulativa
fraternidade, até que chegava o impreterível malogro, a que o tio encolhia os
ombros, ao passo que o pai, cheio de cólera, o cobria de desdém e injúrias, e
durante meses a fio não lhe concedia nem mais um olhar ou palavra.
Era a Conrado que a nossa aldeia devia a primeira visão de um barco à vela, e
foi o barquito de meu pai que teve de prestar-se a isso. A vela e o cordame
foram executados com perfeição pelo tio segundo xilogravuras de calendários, e
o facto de o nosso barquito ter sido construído demasiado estreito para um
barco à vela, no fundo, não era culpa de Conrado. Os preparativos demoraram
várias semanas; o meu pai ficou sobre brasas pela excitação, ansiedade e
medo, e até no resto da aldeia se falava essencialmente do novo projecto de
Conrado Camenzind.
Foi para nós um dia memorável aquele em que o barco, numa manhã ventosa
de fins de Verão, pela primeira vez, seria lançado ao rio. O meu pai, no receoso
pressentimento duma possível catástrofe, manteve-se afastado, e a mim, para
minha grande desolação, proibiu-me de ir no barco. O filho do padeiro, Fuessli,
acompanhou sozinho o mestre de vela. Mas a aldeia estava toda sobre a nossa
praia de cascalho e no pequeno jardim, e presenciou o inaudito espectáculo.
Soprava um vento rápido de Leste, lago abaixo. De início, o padeiro teve de
remar até o barco entrar na brisa, enfunar a vela e desaparecer orgulhosamente,
a toda a brida. Maravilhados, vimo-lo sumir-se por detrás do flanco do monte
seguinte, e preparávamo-nos para felicitar como vencedor o astuto tio aquando
do seu regresso e envergonhar-nos dos nossos pensamentos maldosos.
Contudo, quando o barco regressou, à noite, já não tinha vela, os barqueiros
estavam mais mortos que vivos, e o filho do padeiro tossiu e disse:
- Perdeste uma boa festança; por um triz, não houve dois banquetes de funeral
neste domingo.
13
O meu pai teve de colocar duas pranchas novas no barco e, desde então, nunca
mais uma vela se espelhou na superfície azul. Durante muito tempo, sempre que
Conrado tinha pressa nalguma coisa, atiravam-lhe:
- Tens de pôr a vela, Conrado.
O meu pai engoliu a fúria e, durante longo tempo, sempre que o pobre cunhado
passava por ele, olhava para o lado e cuspia num grande arco, em sinal de
indizível desdém. Isso durou até que, certo dia, Conrado lhe apresentou o seu
projecto de forno à prova de fogo, que trouxe ao inventor enorme troça e custou
ao meu pai quatro sonantes táleres. Ai de quem ousasse recordar-lhe esta
história dos quatro táleres! Muito mais tarde, quando, certa vez, houve de novo
carências em casa, a mãe comentou que seria bom que o dinheiro gasto
pecaminosamente ainda ali estivesse. O pai ficou vermelho-escuro até ao
pescoço, mas dominou-se e disse apenas:
- Prouvera que os tivesse bebido num só domingo.
No final daquele Inverno, veio o foehn com o seu rugido cavo, que o alpino ouve
com tremor e horror, e pelo qual, estando longe, anseia com pungente saudade.
Quando o foehn se avizinha, sentem-no muitas horas antes os homens e
mulheres, montes, animais bravios e gados. A sua chegada, quase sempre
anunciada por frios ventos contrários, prenuncia uma ventania profunda e
quente. O lago
azul-esverdeado torna-se, por momentos, negro como breu, e ergue, de súbito,
irrequietas cristas brancas de espuma. Pouco depois, aquele que há minutos
ainda jazia pacífico e silencioso, ruge com exasperada ressaca, como o mar
contra a costa. Logo toda a natureza se encolhe amedrontada. Nos cumes que,
normalmente, tostavam ao longe, podem agora contar-se as rochas, e nas
aldeias que habitualmente se avistavam à distância, apenas como manchas
cinzentas, distinguem-se agora telhados, empenas e janelas. Tudo se achegava,
montes, veigas e casas, como um rebanho assustado. E então, começa o
ribombar rancoroso, o estremecer do chão. As ondas do lago, fustigadas, são
levadas pelo ar como fumo e, sem cessar, especialmente durante a noite, ouve-
se o combate desesperado entre a tempestade e as montanhas. Pouco tempo
mais tarde, espalha-se então pelas aldeias a notícia de ribeiros que
transbordaram, casas abatidas, botes desfeitos e pais e irmãos desaparecidos.
14
Nos meus tempos de infância, eu receava o foehn, odiava-o mesmo. Mas com o
despertar do furor da juventude, comecei a amá-lo, àquele rebelde, o
eternamente jovem, o lutador insolente que trazia a Primavera. Era maravilhoso
como ele, pleno de vida, de exaltação e esperança, iniciava a sua batalha
selvática, trovejando, rindo e gemendo, como ele passava uivando pelos
desfiladeiros, devorava a neve dos montes e, com mãos rudes, vergava os
tenazes pinheiros velhos fazendo-os gemer. Mais tarde, aprofundei o meu amor
e, no foehn, eu saudava então o doce, belo e superabundante Sul, de onde
brotavam renovadas torrentes de desejo, calor e beleza, para se despedaçarem
nas montanhas e, por fim, emurchecerem no Norte plano e frio. Não há coisa
mais estranha e maravilhosa que a doce febre do foehn, que a seu tempo
assalta as gentes das montanhas, especialmente as mulheres, que rouba o sono
e com um afago inflama todos os sentidos. Isto é o Sul que, intempestivo e
flamejante, se lança sempre de novo ao peito do áspero e pobre Norte, e
anuncia às aldeias dos Alpes cobertas de neve, que já nos lagos purpúreos das
terras do Romando, as prímulas, os narcisos e os ramos de amendoeira
florescem de novo.
Depois, quando o foehn deixou já de soprar e os últimos aludes sujos
terminaram de rolar, vem então o mais belo. Por todos os lados, estiram-se,
montanha acima, as floridas veigas amareladas e, nos cumes, puros e felizes,
os picos de neve e glaciares; o lago torna-se azul e quente, e espelha de novo o
Sol e o passar das nuvens.
Tudo isto pode preencher já uma infância e, se necessário, uma vida até. Porque
tudo isto proclama, alto e com vigor, a voz de Deus, como nunca ela perpassou
pelos lábios de um humano. Quem assim a escutou na sua infância, ouvi-la-á
ecoar pela vida fora, doce, vigorosa e terrível, e nunca escapará ao seu
encantamento. Quem seja natural das montanhas, poderá, durante anos,
estudar filosofia ou história natural, e pôr de lado o velho Deus: se de novo ele
sentir ou escutar um alude romper por entre as árvores, o coração estremecer-
lhe-á no peito e pensará em Deus e na morte.
Junto à casita de meu pai havia um minúsculo jardim vedado. Crescia ali uma
alface áspera, cenouras e couves. Além disso, a mãe tinha plantado um alegrete
perfumado e enternecedoramente estreito para flores onde estiolavam,
miseravelmente e sem esperança, dois pés de rosas estivais, um pé de dália e
umas quantas resedas. Com o jardim, confinava uma faixa de cascalho ainda
mais estreita, que ia até ao lago.
15
16
Sempre que, em anos posteriores, eu ouvia falar do destino cego, estas cenas
misteriosas vinham-me à memória e pareciam-me uma representação
sobremaneira plástica deste conceito. Sem o saber, o bom do meu pai seguia
aqui a pedagogia simples que a própria vida costuma usar para connosco, ao
fazer cair, de um céu estrelado, raios e coriscos sobre nós, deixando à nossa
conta o meditar sobre com que delitos, afinal, provocámos os poderes
supremos. Infelizmente, esta meditação nunca, ou só raras vezes, se iniciava
em mim, antes eu aceitava resignadamente aquele castigo a goles, sem a
desejável autocrítica ou mesmo com obstinação; em tais noites, alegrava-me
sempre por, uma vez mais, estar saldado o meu tributo, e ter diante de mim duas
semanas livres de punição. Mas foi com muito maior independência que
enfrentei os esforços do meu velho para me iniciar no trabalho. A natureza
incompreensível e esbanjadora havia reunido em mim dois dons contraditórios:
uma força física incomum e uma não menor repulsa pelo trabalho. O pai
envidava todos os esforços para fazer de mim um filho útil e um colaborador,
mas eu esquivava-me com todas as trapaças ao trabalho que me era imposto;
mesmo no liceu, não havia herói da antiguidade pelo qual eu sentisse tanta
comiseração como por Hércules, por ele ter sido forçado àqueles famosos
trabalhos árduos. Entretanto, eu não conhecia nada de mais belo que vaguear
ociosamente por sobre as rochas e veigas, ou junto à água.
Montanhas, lago, tempestade e Sol, eram esses os meus amigos, que me
falavam e educavam, e durante longo tempo me foram mais caros e mais
profundamente conhecidos que qualquer pessoa ou destino humano. Os meus
eleitos, todavia, os que eu preferia ao lago espelhado e aos tristes ventos
quentes e rochas ensolaradas, eram as nuvens.
Mostrai-me por esse vasto mundo o homem que melhor conheça ou mais ame
as nuvens que eu! Ou mostrai-me a coisa deste mundo que seja mais bela que
as nuvens! Elas são brinquedo e consolo do olhar, são bênção e dom de Deus,
são a cólera e o poder da morte. Elas são delicadas, suaves e calmas como as
almas dos
recém-nascidos, são belas, ricas e dispensadoras como anjos bons, são negras,
irrevogáveis e fatais como os mensageiros da morte. Elas pairam prateadas em
ténues camadas, vogam ridentes, brancas com bordos doirados, elas param
para repousar com cores amarelas, vermelhas e azuladas. Elas avançam
soturnas e lentas como assassinos, galopam desenfreadas, de cabeça erguida,
como cavaleiros loucos, pendem tristes e sonhadoras em pálidas alturas como
melancólicos eremitas.
17
18
Nesta história, havia algo de tão nobre, algo de tão espiritual, de triunfo da
beleza, que me encantava e tocava o meu pequeno coração como um alegre
mistério.
Em breve veio o tempo em que também eu pude aproximar-me das nuvens,
andar entre elas e contemplar de cima parte do seu rebanho. Tinha dez anos
quando subi ao primeiro cume, ao Sennalpstock, em cujo sopé jaz a nossa
aldeiazinha de Nimikon. Foi então que, pela primeira vez, vi os terrores e as
belezas das montanhas. Gargantas profundamente rasgadas, repletas de neve e
águas do degelo, glaciares com um vidrado verde, asquerosas morenas e, por
cima de tudo, como um sino, alto e redondo, o céu. Uma pessoa que tenha
vivido durante dez anos entalado entre uma montanha e um lago, assediada a
toda a volta por picos próximos, não esquecerá o dia em que, pela primeira vez,
teve por cima de si um céu extenso e, pela frente, um horizonte sem limites.
Logo durante a subida, fiquei espantado por as escarpas e superfícies de rocha
que tão bem conhecia lá de baixo, me surgirem tão desmesuradamente
grandes. E eis que, inteiramente subjugado por aquele momento, cheio de medo
e júbilo, via, de súbito, a tremenda vastidão penetrar em mim. Que
fabulosamente grande era, de facto, o mundo! Toda a nossa aldeia, perdida
agora lá no fundo, era apenas uma pequena mancha clara. Os cumes que de lá
de baixo se julgavam bem vizinhos, ficavam a muitas horas de distância.
Comecei então a pressentir que apenas tivera um pequeno vislumbre, que não
havia tido ainda uma visão alargada do mundo, e que, lá longe, se erguem
montes, e caem, e sucedem grandes coisas de que jamais chegará a mais leve
notícia ao nosso isolado buraco de montanha. E logo em mim algo estremeceu
como a agulha da bússola, com uma inconsciente atracção poderosa por
aquelas grandes distâncias. Só então compreendi também inteiramente a beleza
e a melancolia das nuvens, pois via que infindáveis distâncias elas percorriam.
Os meus dois acompanhantes adultos louvaram a minha boa escalada,
repousaram um pouco sobre o cume gélido, e riram com a minha alegria
desconcertante. Eu, porém, depois de passado o primeiro grande assombro, de
alegria e excitação, berrei alto como um touro pelos ares límpidos. Foi o meu
primeiro canto, inarticulado, à beleza. Esperava um eco estrondeante, mas o
meu grito soou nas alturas calmas sem deixar sinal, como um fraco pipilar.
19
20
Na semana seguinte, ao chegar certo dia a casa, encontro ali sentado um padre
à espera daquele que escrevera a linda carta. Eu sentia algum receio, mas ele
louvou-me e procurava convencer o meu velho a deixar-me ir aprender junto
dele. O tio Conrado, precisamente nessa ocasião, estava de novo em boas
graças e pediram-lhe opinião. Claro que ficou imediatamente entusiasmado com
a ideia, que eu tinha de ir aprender e mais tarde ser estudante e tornar-me num
sábio e num senhor. O pai deixou-se convencer e, assim, o meu futuro passou a
incluir-se entre os perigosos projectos do tio, tal como o forno à prova de fogo, o
barco à vela e inúmeras quimeras similares.
Demo-nos logo a um enorme estudo, nomeadamente em latim, história bíblica,
botânica e geografia. Tudo isto me entusiasmava muito, e eu nem pensava que
aquelas coisas latinas me custariam, talvez, a terra natal e belos anos. E decerto
não foi apenas o latim. O meu pai ter-me-ia feito um camponês, ainda que eu
soubesse de cor todo o De viris illustribus de trás para diante e de diante para
trás. Mas aquele homem inteligente havia-me perscrutado até ao âmago do meu
ser onde, como centro de gravidade e virtude cardeal, residia a minha invencível
indolência. Eu furtava-me ao trabalho onde quer que ele estivesse prestes a
iniciar-se e, em seu lugar, corria para os montes ou o lago, ou estendia-me
longe, escondido na encosta, lia, sonhava e preguiçava. Reconhecendo isto,
acabou por me deixar ir.
É ocasião de dizer umas curtas palavras acerca de meus pais. A mãe fora bonita
em tempos, mas disso apenas restava o porte firme e escorreito e os graciosos
olhos escuros. Ela era alta, muito vigorosa, trabalhadora e silenciosa. Apesar de
ser tão inteligente quanto o meu pai e o exceder em força física, não era quem
reinava na casa, senão que deixava o governo ao seu marido. Ele era de
estatura mediana, tinha membros delgados e quase delicados, e uma cabeça
casmurra e esperta com um rosto de cor clara, repleto de pequenas rugas
extremamente móveis. A estas, juntava-se ainda uma curta ruga perpendicular
na fronte, que escurecia sempre que ele movia as sobrancelhas, causando-lhe
um soturno ar sofredor; dava então a impressão de procurar lembrar-se de
alguma coisa muito importante, sem que ele mesmo tivesse esperanças de
jamais vir a recordá-lo. Poder-se-ia aperceber nele uma certa melancolia,
21
mas ninguém prestava atenção a isso, pois os habitantes da nossa região são
quase todos tomados de um leve e permanente abatimento de ânimo cuja causa
são os longos Invernos, os perigos, o esforço do dia-a-dia e o isolamento do
mundo.
Recebi de ambos os pais traços importantes do meu ser; da mãe, um discreto
sentido prático, um quanto de confiança em Deus e um modo de ser silencioso,
parco em palavras; do pai, pelo contrário, um receio das decisões firmes, a
incapacidade de administrar o dinheiro e a arte de beber muito e bem. Este
último traço, porém, não se manifestava ainda naquela tenra idade.
Externamente, tenho do pai os olhos e a boca, da mãe o andar e a constituição
física pesados e robustos, e a vigorosa força muscular. Do pai e da nossa raça
em geral, recebi na vida uma inteligência esperta de camponês, mas também a
turbação de espírito e o pendor para a melancolia sem fundamento. Estando eu
destinado a debater-me por longo tempo entre estranhos, longe da minha terra,
melhor fora que, em lugar disso, eu trouxesse alguma vivacidade e um pouco de
alegre leviandade.
Assim equipado e provido de um fato novo, encetei a viagem para a vida. Os
dons paternos comprovaram o seu valor, pois eu andei pelo mundo e por lá me
mantive pelos meus próprios meios. Todavia, algo deve ter faltado, que nem
mesmo a ciência e a vida no mundo jamais me deram. É que hoje, tal como
nesse tempo, eu posso vencer um monte, marchar ou remar durante dez horas
e, em caso de necessidade, matar um homem apenas com as mãos, mas para
saber viver falta-me, hoje ainda, tanto como então. A familiaridade precoce e
exclusiva com a terra e as suas plantas e animais fizera desenvolver em mim
poucas aptidões sociais, e ainda hoje os meus sonhos são uma prova notável de
quanto eu, infelizmente, tenho tendência para uma vida puramente animalesca.
De facto, sonho com frequência que estou deitado na praia, à beira-mar, que sou
um animal, normalmente uma foca, e sinto nisso um tão grande agrado que, ao
acordar, de forma alguma experimento a reassunção da minha dignidade de
humano com alegria ou orgulho, mas, pelo contrário, com tristeza apenas.
Eu fui educado num liceu da forma habitual, com ensino e alimentação gratuitos,
e estava destinado a ser filólogo. Ninguém sabe porquê.
22
Não há disciplina mais inútil e enfadonha nem estudo que menos me quadrasse.
Os anos de estudante passaram-se rapidamente. Por entre brigas e escola,
vieram horas plenas de saudade, horas cheias de atrevidos sonhos de futuro,
horas repletas de respeitosa veneração da ciência. De tempos a tempos,
também aqui a minha natural indolência vinha ao de cima, trazia-me todo o tipo
de aborrecimentos e castigos e dava, assim, lugar a qualquer novo entusiasmo.
- Peter Camenzind - dizia o meu professor de grego - tu és um casmurro, um
intratável, ainda hás-de rachar a cabeça contra as paredes.
Eu observava o rubicundo caixa-de-óculos, escutava as suas palavras e achava-
o grotesco.
- Peter Camenzind - dizia o professor de matemática - és um génio na preguiça,
e tenho pena que não haja uma nota mais baixa que o zero. Ao teu trabalho de
hoje avalio-o em menos dois e meio.
Eu olhava-o, lamentava-o por se zangar, e achava-o muito enfadonho.
- Peter Camenzind - disse, certa vez, o professor de história - tu não és bom
aluno, mas, apesar disso, hás-de vir a ser um bom historiador. És preguiçoso,
mas sabes distinguir entre o que é válido e o que é insignificante.
Também isto foi para mim extremamente importante. Todavia, eu tinha respeito
pelos professores, pois pensava que eles estavam na posse da ciência, e ante
ela, eu sentia uma enorme e obscura veneração. E apesar de, quanto à minha
preguiça, todos os professores estarem de acordo, sempre ia avançando,
situando-me acima da média. Eu bem notava que a escola e o saber escolar
eram fragmentários e insuficientes; contudo, aguardava o que havia de vir. Por
detrás destes preparativos e maçadas escolares, entrevia o puramente
espiritual, uma ciência segura, incontestável, da verdade. Ali, eu viria a saber
qual o significado da obscura confusão da história, das lutas dos povos e do
angustiante enigma de cada alma.
Mas havia em mim uma outra ânsia ainda mais forte e viva: eu gostaria de ter
um amigo.
Havia lá um rapaz de cabelos castanhos, sério, dois anos mais velho que eu,
chamado Gaspar Hauri. Tinha uma forma de andar e de estar segura e calma,
caminhava de cabeça firme e ar grave, como um homem,
23
e não falava muito com os camaradas. Durante vários meses, eu olhei-o com
grande veneração, nas ruas, mantinha-me atrás dele, e esperava ansiosamente
que me notasse. Sentia inveja de todo o burguês que ele cumprimentava e de
toda a casa onde o via entrar ou sair. Mas eu estava duas classes abaixo e,
provavelmente, ele sentir-se-ia superior até à sua. Nunca trocámos uma palavra
entre nós. Em lugar dele, ligou-se a mim, sem que eu fizesse algo por isso, um
rapaz enfezado. Este era mais novo que eu, tímido e pouco dotado, mas tinha
uns belos olhos e traços dolentes. Como era fraco e um pouco deformado, sofria
na sua classe muitas faltas de educação, e procurava em mim, que era forte e
considerado, um protector. Em breve ficou tão doente que deixou de poder
frequentar a escola. Não me fez falta e depressa o esqueci.
Mas na nossa classe havia um louro folgazão, capaz de mil habilidades, músico,
mimo e bobo. Conquistei a sua amizade, não sem esforço, e o pequeno folgazão
comportava-se sempre para comigo com certa superioridade. Em todo o caso,
sempre tinha agora um amigo. Eu visitava-o no seu quartito, lia alguns livros
com ele, fazia-lhe os trabalhos de grego e, em paga, ele auxiliava-me na
matemática. Por vezes, também íamos passear juntos; devíamos parecer o urso
e a doninha. Era sempre ele quem falava, sempre alegre, galhofeiro, jamais se
embaraçava, e eu escutava, ria e sentia-me contente por ter um amigo tão
folgazão.
Certa tarde, porém, inopinadamente, eu aproximei-me no momento em que o
pequeno charlatão, à porta da escola, apresentava a alguns camaradas uma das
suas representações cómicas preferidas. Ele acabara de imitar um professor, e
gritou:
- Adivinhem quem é este! - e começou a ler alto alguns versos de Homero.
Ele imitava-me com grande minúcia: a minha postura acanhada, a leitura
receosa, a pronúncia rude de montanhês e também o meu permanente
gesticular provocado pela concentração, o piscar e cerrar do olho esquerdo.
Tinha um ar muito cómico e mostrava-se tão burlesco e ridículo quanto possível.
Quando fechou o livro e recebia o justo aplauso, cheguei-me a ele por trás e
vinguei-me. Palavras, não as achei, mas expressei toda a minha indignação,
vergonha e cólera, concentradas num único e gigantesco bofetão.
24
25
No fundo, não se tratava já de leitura - nos versos vazios, eu verti o meu coração
repleto, sofria com eles, fazia poesia com eles, e acabei num delírio lírico que
provavelmente me quadrava como um peitilho a um porco. Até então, eu não
fizera a menor ideia do que fossem as «belas letras». Agora, seguia-se-lhe
Lenau, Schiller, depois Goethe e Shakespeare, e a pálida ideia da literatura
transformou-se em mim numa grande divindade.
Com um doce arrepio, eu sentia fluir ao meu encontro, a partir destes livros, o
condimentado ar fresco de uma vida que nunca houve sobre a Terra, e todavia
existia de facto, e queria agora rebentar as suas ondas e viver os seus destinos
no meu coração arrebatado. No meu canto de leitura do quarto do sótão, onde
só chegavam o soar das horas do relógio da torre próxima e o bater seco dos
bicos das cegonhas que nidificavam ali ao lado, as personagens de Goethe e
Shakespeare entravam e saíam. Eu descobri o lado divino e o ridículo do ser
humano: o enigma do nosso coração cindido e indómito, a profundidade do ser
da história mundial, a poderosa maravilha do espírito que transfigura os nossos
curtos dias e, por meio da força do conhecimento, eleva a nossa pobre
existência à esfera do necessário e do eterno. Quando eu metia a cabeça pela
estreita frincha da janela, via o Sol brilhar sobre os telhados e ruelas, escutava
maravilhado os pequenos ruídos do trabalho e do dia-a-dia subirem confusos, e
sentia a solidão e o mistério do meu recanto do sótão, repleto de grandes
espíritos, envolver-me como um conto maravilhosamente belo. E aos poucos,
quanto mais eu lia, quanto mais maravilhosa e estranha me tocava a visão sobre
os telhados, as ruas e o dia-a-dia, tanto mais frequentemente surgia em mim,
hesitante e opressiva, a sensação de que também eu seria, talvez, um vidente; e
o mundo que diante de mim se estendia, aguardava que eu elevasse parte dos
seus tesouros, os libertasse do véu do acaso e da mediocridade, e que o assim
descoberto, pela força da poesia, o viesse a arrancar à destruição, eternizando-
o.
Timidamente, comecei a fazer alguma poesia e, aos poucos, fui enchendo
alguns cadernos com versos, com projectos e pequenos contos. Eles perderam-
se, e provavelmente teriam pouco valor, mas proporcionaram-me grande e
sincera excitação e um secreto prazer.
26
27
2.
No que respeita ao amor... nisso, toda a minha vida permaneci um garoto. Para
mim, o amor pela mulher sempre foi uma adoração purificadora, uma chama
erguida libertando-se do meu coração turvado, mãos postas levantadas para o
céu azul. Devido à minha mãe, e também por um sentimento impreciso
proveniente de mim próprio, eu venerava as mulheres em geral como um sexo
diferente, belo e enigmático, que nos é superior em beleza e unidade do ser, que
devemos considerar santo porque, quais estrelas e cumes dos montes, se acha
distante de nós e parece mais próximo de Deus. Como as agruras da vida lhe
ajuntaram abundantemente o seu condimento, o amor pela mulher trouxe-me
tanta amargura como doçura; permanecendo elas embora no seu alto pedestal,
para mim, o festivo papel do sacerdote adorador transformou-se facilmente
naquele outro, penoso e cómico, do tolo troçado. Rosa Girtanner encontrava-me
quase todos os dias quando eu ia comer. Era uma moça de dezassete anos, rija
e ágil. No rosto oblongo, moreno e viçoso, ressaltava a beleza silenciosa e viva
que a sua mãe possuía ainda nessa altura e, antes dela, a sua avó e bisavó
haviam tido. Desta antiga casa distinta e abençoada saiu, geração após
geração, uma garbosa série de mulheres, todas elas silenciosas e distintas,
todas viçosas, nobres e de imaculada beleza. Há um quadro de uma jovem da
família Fugger, pintado por um mestre desconhecido no século dezasseis, um
dos quadros mais maravilhosos que os meus olhos jamais viram. Assim eram as
mulheres Girtanner e assim era Rosa também.
Tudo isto, é certo, eu ainda não o sabia. Eu via-a apenas caminhar na sua
dignidade silenciosa e alegre, e sentia a nobreza do seu ser simples.
29
30
*1. Edelweiss - planta de flor prateada e aveludada típica dos Alpes. (N. T.)
31
Diante das janelas, deslizavam, uma após outra, as alegres e limpas povoações,
com torres esguias e empenas brancas, e as pessoas subiam e desciam do
comboio, conversavam, cumprimentavam, riam, fumavam e diziam gracejos -
tudo gente alegre das terras baixas, gente ágil, franca e de boas maneiras - e
eu, rapaz taciturno das terras altas, mantinha-me sentado em silêncio, triste e
crispado entre elas. Sentia que já não estava na minha terra. Senti que fora
arrancado para sempre às montanhas e, contudo, nunca viria a ser como a
gente das terras baixas, nunca seria tão alegre, tão ágil, afável e seguro. Gente
como aquela, sempre se riria de mim, um como aqueles viria um dia a casar
com a Girtanner, e alguém como aqueles sempre estaria no meu caminho e um
passo à minha frente.
Cheguei à cidade com tais pensamentos. Ali, após os primeiros cumprimentos,
subi ao sótão, abri a minha caixa e retirei de lá uma grande folha de papel. Não
era do melhor, e quando enrolei nele as minhas rosas dos Alpes e atei o
embrulho com um fio trazido especialmente de casa, não se parecia nada com
um presente de amor. Com grande seriedade, levei-o até à rua onde vivia o
advogado Girtanner e, no primeiro momento propício, penetrei pelo portal
aberto, olhei em redor o vestíbulo na semi-obscuridade do lusco-fusco, e poisei
o meu ramo pouco convencional sobre a larga escada senhorial.
Ninguém me viu, e eu nunca vim a saber se Rosa chegou a ver a minha
saudação. Mas eu trepara escarpas rochosas e arriscara a vida a fim de poisar
um ramo de rosas sobre a escada de sua casa, e nisso havia algo de doce, de
tristemente alegre, de poético, que me era benfazejo e que ainda hoje sinto. Só
em horas de descrença em Deus me parece por vezes que aquela aventura das
rosas, como todas as minhas histórias amorosas posteriores, não passou de um
acto quixotesco.
Este meu primeiro amor nunca teve uma conclusão, apagou-se, interrogador e
sem resolução, nos meus anos de juventude, e a par dos meus amores
posteriores, prosseguia silencioso como uma irmã mais velha. Ainda hoje não
posso imaginar nada de mais nobre, puro e belo que aquela jovem patrícia bem
nascida e de olhar calmo. E quando, alguns anos mais tarde, numa exposição
em Munique, vi aquele quadro anónimo, enigmático e encantador da filha dos
Fugger, pareceu-me que tinha diante de mim toda a minha juventude
apaixonada e triste, olhando-me imperscrutável, profunda e absortamente.
32
33
34
porque estavam já tão estranhamente fatigadas e sem acção, como nenhum ser
vivo as tem. Esqueci a minha sede, ajoelhei junto ao leito, coloquei a mão sobre
a fronte da moribunda, e procurei-lhe o olhar. Quando este me encontrou, era
bondoso e sem tormento, mas prestes a extinguir-se. Não me veio à ideia que
deveria acordar o pai a dormir ao lado com uma respiração profunda. Assim,
mantive-me ajoelhado quase duas horas, e olhei a minha mãe sucumbir à morte.
Ela aceitava-a em silêncio, com gravidade e coragem, como era de sua índole, e
ofereceu-me um bom exemplo.
O quartinho estava em silêncio e enchia-se lentamente com a claridade da
manhã nascente; a casa e a aldeia repousavam no sono, e eu dispus de tempo
para acompanhar em pensamentos a alma de um moribundo, por sobre a casa e
a aldeia, o lago e os cumes de neve, pela fresca liberdade de um céu puro de
madrugada adentro. Dor, mal a senti, pois estava repleto de espanto e
veneração por me ser dado ver como se desvanecia um grande enigma, e como
o anel de uma vida se cerrava com um leve estremecer. A coragem sem
queixume da moribunda era tão nobre que, da sua acerba glória, recaiu também
sobre a minha alma um raio refrigerante e límpido. Que o pai dormia ali ao lado,
que não havia ali um padre, que nem um sacramento ou a oração santificadora
acompanharam a alma que voltava à pátria, nada disso eu notei. Eu sentia
apenas um arrepiante sopro de eternidade inundar o quartito obscuro e misturar-
se com o meu ser. No último momento, os olhos já extintos, beijei pela primeira
vez na vida a boca fria e emurchecida de minha mãe. Depois, o estranho frio do
contacto causou-me um súbito calafrio, sentei-me na borda da cama, e senti
que, lentas e hesitantes, uma após outra, grandes lágrimas me corriam pelas
faces, o queixo e as mãos.
Pouco depois, o pai acordou, viu-me ali sentado e perguntou-me, bêbedo de
sono, o que havia. Eu queria responder-lhe, mas não pude dizer nada, saí do
quarto, entrei como que em sonhos no meu e, com lentidão e sem consciência,
vesti as minhas roupas. Em breve o velho apareceu junto de mim.
- A mãe está morta - disse ele. - Já sabias? Eu acenei afirmativamente.
- Por que me deixaste dormir? E nem sequer esteve um padre presente! Que
te...
35
36
tudo a um só tempo, e contudo, cada coisa de per si e nítida, e por trás de tudo,
a ilimitada lonjura de um horizonte límpido, recortado de nuvens esfumando-se.
Estudar, criar, observar, caminhar - toda a plenitude da vida refulgia diante do
meu olhar, numa fugaz visão argêntea, e uma vez mais, como nos tempos de
criança, algo em mim estremeceu com uma inconsciente e poderosa atracção
pelo grande e vasto mundo.
Fiquei silencioso e deixei o pai falar, meneei a cabeça e aguardei, até que o seu
ímpeto amainou. Isto deu-se apenas pela noite. Então, expus-lhe a minha firme
decisão de ir estudar e procurar a minha pátria futura, possuidor já da riqueza do
espírito, sem pretender dele qualquer apoio. Ele deixou de insistir, e olhou-me
apenas tristemente, abanando a cabeça. Também ele compreendia que, a partir
desse momento, eu seguiria o meu próprio caminho, e rápido me tornaria
inteiramente estranho à sua vida. Quando hoje, ao escrever, recordei este dia, vi
de novo o meu pai, da forma como nessa tarde estava sentado na cadeira junto
à janela. Uma cabeça de camponês, arguta, inteligente, imóvel, sobre um
pescoço delgado, o cabelo curto que começa a encanecer, e nos traços duros e
austeros, o sofrimento e a idade que avança e luta com a tenaz masculinidade.
Dele e do período dessa minha estada sob o seu tecto, resta-me contar ainda
um curto acontecimento, não de todo sem importância. Na última semana antes
da minha partida, em dado serão, o meu pai pôs o seu barrete e colocou a mão
na maçaneta da porta.
- Onde vais? - perguntei.
- Que tens a ver com isso? - respondeu.
- Sempre mo podias dizer, se não é nada de mal - comentei eu.
Então, ele riu e exclamou:
- Podes vir também, já não és nenhum garoto.
E fui com ele para a taberna. Havia ali alguns camponeses sentados diante de
uma caneca de Hallau, dois condutores de fora que bebiam absinto, e uma
mesa cheia de rapazes novos a jogar às cartas, em grande alarido.
Eu estava habituado a beber um copo de vinho, uma ocasião por outra, mas era
a primeira vez que, sem necessidade, penetrava numa taberna. Que o meu pai
era um bêbedo inveterado, já o sabia de ouvir dizer. Ele bebia muito e de boa
qualidade, daí que a economia do lar se
37
*1. Rappe - moeda da Suíça alemã, que a partir de meados do século XIX
correspondia ao cêntimo francês. (N. T.)
38
39
3.
41
Zurique foi a primeira cidade que eu, jovem inexperiente, tive ensejo de ver, e
durante algumas semanas permaneci extasiado. Não me pus a admirar
realmente ou a invejar a vida citadina - que nisso, de facto, eu era um
camponês; mas sentia grande alegria na multiplicidade de ruas, de casas e
gentes. Eu olhava as ruas pululantes de automóveis, os embarcadouros, as
praças e jardins, os edifícios majestosos e as igrejas; vi gente ocupada correr
em bandos para o trabalho, vi estudantes a vaguear, pessoas distintas saindo a
passeio, peraltas pavoneando-se, estrangeiros deambulando. Elegantes e à
moda, quais senhoras da corte, as mulheres dos ricos pareciam-me pavões na
capoeira, lindas, orgulhosas, e um tanto ridículas. Eu não era realmente tímido,
apenas rígido e teimoso, e não duvidava de todo que seria capaz de conhecer a
fundo essa vida activa das cidades e, mais tarde, vir mesmo a encontrar ali um
lugar decisivo.
A juventude apresentou-se-me na figura de um belo jovem que estudava na
mesma cidade e alugara dois belos quartos no primeiro andar da minha casa.
Todos os dias o ouvia tocar piano lá em baixo, e senti, então, pela primeira vez,
um pouco da magia da música, a mais feminina e doce das artes. Depois, vi o
esbelto rapaz sair de casa, com um livro ou caderno de notas na mão esquerda
e, na direita, um cigarro, cujo fumo ficava a voltear por trás do seu andar
elegante e elástico. Senti-me atraído por ele, com um amor tímido; todavia,
mantive-me à distância, receando estabelecer contacto com uma pessoa ao lado
de quem a minha pobreza e falta de maneiras só poderiam humilhar-me, face ao
seu ser despreocupado, livre e abastado. Então, veio ele mesmo ter comigo.
Certa tarde, bateu à minha porta, e fiquei um pouco assustado; é que nunca
tinha recebido uma visita. O belo estudante entrou, estendeu-me a mão, disse o
seu nome e mostrou tanta liberdade e boa disposição que mais parecíamos
velhos conhecidos.
- Queria perguntar-lhe se não gostaria de fazer um pouco de música comigo -
disse ele amavelmente.
Mas eu nunca na vida tinha mexido num instrumento. Disse-lho, e ajuntei que,
para além do iodler, não conhecia nenhuma arte; contudo, a sua música ao
piano, por diversas vezes me soara lá em cima, bela e sedutora.
- Como podemos enganar-nos! - exclamou ele, divertido. - Pelo seu aspecto
exterior, poderia jurar que era músico. Admirável! Mas sabe cantar iodler! Por
favor, cante iodler. Gosto imenso de ouvir.
42
43
44
e toda essa tralha muito melhor que eu, porque é mais profundo e mais
inteligente. Mas gosto de si precisamente como é. Não conhece Nietzsche nem
Wagner, mas andou muito sobre montanhas nevadas e tem um rosto de
montanhês inteligente. E de certeza que também é poeta. Vejo-lho no olhar e na
fronte.
Também o facto de ele me olhar tão francamente e à vontade, e expressar a sua
opinião, me deixava maravilhado e parecia estranho.
Mas muito mais espantado e feliz fiquei quando, oito dias depois, numa
cervejaria muito frequentada, bebeu comigo à amizade, se ergueu diante de
toda a gente, me beijou e abraçou e, comigo, dançou em redor da mesa.
- Que pensarão as pessoas?! - adverti, envergonhado.
- Vão pensar: aqueles dois estão extraordinariamente contentes ou
extremamente bêbedos; mas a maioria não vai pensar nada.
Ricardo, por vezes, apesar de mais velho, mais inteligente, mais bem educado e
em tudo mais versado e requintado que eu, parecia-me ser uma verdadeira
criança em comparação comigo. Na rua, ele fazia a corte, meio cerimonioso,
meio trocista, a raparigas da escola ainda adolescentes; inesperadamente,
interrompia as peças de piano mais sérias com brincadeiras absolutamente
infantis e, certa vez que, quase por brincadeira, entrámos numa igreja, disse de
súbito, em plena prédica, pensativamente e com seriedade:
- Olha, não achas que o pároco tem um ar de coelho velho?
A comparação era acertada, mas eu achei que ele poderia tê-lo comentado
depois, e disse-lho.
- Mas se era aquilo mesmo! - amuou ele. - Mais tarde, tê-lo-ia já esquecido.
Que as suas anedotas nem sempre eram espirituosas e, por vezes, não
passavam da citação de um verso de Busch, isso não me perturbava a mim nem
aos outros, porque aquilo que apreciávamos e admirávamos nele, não eram
nem as anedotas nem o seu espírito, mas a indestrutível alegria do seu ser
ingénuo, que irrompia a cada momento e o envolvia numa atmosfera leve e
jubilosa. Podia expressar-se num gesto, num leve riso ou num olhar jovial, mas
ocultá-lo por muito tempo é que ele não conseguia. Estou convencido de que até
durante o sono, por vezes, ele teria de rir ou fazer um gesto de alegria.
45
46
47
48
Ricardo teceu-lhe rasgados elogios sobre o quadro exposto. Ela riu-se dele e
não os aceitou.
- Mas, menina, eu poderia ter intenção de comprar o quadro! A propósito, as
vacas são de uma autenticidade...
- São cabras - disse ela, calmamente.
- Cabras? Cabras, está claro! Queria eu dizer que são um estudo que me
impressionou. São cabras, exactamente como na realidade, é mesmo o jeito das
cabras. Pergunte ao meu amigo Camenzind, que é ele próprio um filho das
montanhas; ele dar-me-á razão.
Naquele momento, e enquanto escutava perturbado e divertido a conversa,
senti-me percorrer pelo olhar da pintora que me inspeccionava. Observou-me
longamente e com à-vontade.
- É natural das montanhas?
- Sou sim, menina.
- Vê-se. Bem, e que lhe parecem as minhas cabras?
- Oh, são com certeza muito boas. Pelo menos, não as tomei por vacas, como o
Ricardo.
- É muito amável. É músico?
- Não, sou universitário.
Ela não trocou comigo nem mais uma palavra, e tive então tempo para a
observar. A figura estava encoberta e deformada pelo longo avental, e o rosto
não me pareceu bonito. Tinha um recorte nítido e singelo, os olhos um pouco
austeros, o cabelo abundante, negro e macio; mas o que me perturbava e quase
causava repulsa era a cor do rosto, Recordava-me grandemente o gorgonzola, e
não me admiraria por encontrar nele traços verdes. Eu nunca tinha visto aquela
palidez romanda e, agora, à desfavorável luz matinal do atelier, ela tinha um ar
assustadoramente pétreo, não como mármore, mas como uma pedra muito
descorada pelas intempéries. Eu não estava habituado a analisar o rosto de uma
mulher segundo as suas formas, senão que costumava procurar nelas, de forma
ainda um pouco pueril, mais a doçura, o rosado, a graça.
Também Ricardo ficou indisposto com a visita desse dia. Tanto mais espantado
e assustado fiquei quando, após algum tempo, ele me comunicou que a Aglietti
gostaria de poder desenhar-me. Tratava-se apenas de alguns esboços, que ela
não necessitava do rosto, mas a minha figura larga tinha algo de típico.
49
Antes de se falar mais nisto, surgiu outro pequeno acontecimento que alterou
toda a minha vida e, durante anos, determinou o meu futuro. Certa manhã, ao
acordar, tinha-me tornado escritor.
Incitado por Ricardo, eu descrevera ocasionalmente, puramente como exercício
de estilo, alguns tipos da minha terra, pequenos acontecimentos, conversas e
outras coisas, esboçados e representados com o máximo de fidelidade, e
escrevera também alguns ensaios sobre literatura e história.
Certa manhã, então, estando eu ainda na cama, Ricardo entrou no meu quarto e
depôs trinta e cinco francos sobre a coberta da minha cama.
- Isto pertence-te - disse ele, em tom de homem de negócios.
Por fim, tendo eu já esgotado com perguntas todas as conjecturas possíveis, ele
retirou uma folha de jornal do bolso e mostrou-me, impressa, uma das minhas
pequenas novelas. Ele havia copiado alguns dos meus manuscritos, tinha-os
levado a um redactor seu amigo e, sem nada dizer, tinha-os vendido por mim.
Eu tinha agora entre as mãos o primeiro a ser impresso e os respectivos
honorários.
Nunca sentira uma impressão tão estranha. De facto, os esforços de Ricardo
para me dirigir irritavam-me, mas o doce primeiro orgulho do escritor, o metal
sonante e ainda a ideia de uma eventual fama literária foram mais fortes e
prevaleceram finalmente.
Num café, o meu amigo fez-me encontrar o redactor. Este solicitou-me licença
para ficar com os outros trabalhos que Ricardo lhe mostrara, e convidou-me a
enviar-lhe outros de vez em quando. Que havia um tom muito próprio nas
minhas coisas, especialmente nas históricas, que gostaria de receber mais e me
pagaria bem. Só então me dei conta da seriedade do assunto. Não só poderia,
diariamente, comer em condições e pagar as minhas pequenas dívidas, como
também pôr de lado o estudo que fazia por obrigação, e talvez em breve,
trabalhando no meu campo preferido, pudesse viver do meu ganho.
Entretanto, recebi em casa um monte de livros novos enviados por aquele
redactor, para fazer recensões. Eu devorei-os e tive bem que fazer durante
semanas; mas como os honorários só eram pagos ao fim do trimestre, e eu
havia vivido melhor que de costume à conta deles, vi-me, certo dia, sem o meu
último rappe; tive, então, de iniciar de novo uma cura de fome.
50
Durante alguns dias, mantive-me a pão e café no meu quarto, depois, a fome
levou-me a um restaurante. Levei comigo três dos livros para recensão, a fim de
os deixar ali como fiança para a conta. Já os tinha tentado deixar no alfarrabista,
mas em vão. A refeição foi deliciosa mas, ao tomar o café, senti um aperto no
coração. Hesitante, confessei à empregada que não tinha dinheiro, mas que
queria deixar ali os livros como penhor. Tomou um deles na mão, um volume de
poesia, folheou-o com curiosidade, e perguntou se poderia lê-lo. Ela gostava
tanto de ler, mas nunca conseguia comprar livros. Senti que estava salvo, e
sugeri-lhe que guardasse os três pequenos volumes como pagamento da
refeição. Ela concordou e, uns após outros, ficou-me com livros a dezassete
francos cada. Por volumes de poesia mais pequenos, eu pedia, por exemplo,
queijo com pão, por romances, o mesmo com vinho, e as novelas isoladas
valiam apenas uma chávena de café com pão. Tanto quanto recordo, eram em
geral coisas de pouca importância, num estilo crispado à maneira moderna, e a
bondosa rapariga deve ter ficado com uma impressão estranha acerca da
literatura alemã moderna. Lembro com satisfação aquelas tardes em que eu,
com grande esforço, acabava de ler mais um volume a galope e escrevia umas
linhas acerca dele, a fim de o ter terminado até ao meio-dia e conseguir, em
troca, algo que se comesse. Eu procurava ocultar cuidadosamente a Ricardo as
minhas dificuldades económicas porque, embora sem necessidade,
envergonhava-me diante dele, e era com desagrado e sempre por períodos
muito curtos que aceitava o seu auxílio.
Eu não me considerava um escritor. O que escrevia, ocasionalmente, eram
folhetins, e não literatura. Mas em segredo, acalentava a secreta esperança de
um dia me ser dado escrever um poema, um grande e ousado poema à
nostalgia e à vida.
O espelho alegre e límpido da minha alma era de vez em quando ensombrado
por uma espécie de melancolia mas, nessa altura, não estava seriamente
turbado. Ela surgia aqui e além, por um dia ou uma noite, como uma tristeza
sonhadora de solitário, mas desaparecia de novo sem rasto, regressando após
semanas ou meses. Eu habituara-me a ela aos poucos como a uma amiga
íntima, e não a sentia como atormentadora, mas apenas como uma inquietude e
um cansaço que possuíam a sua Própria doçura. Quando me acometia à noite,
em vez de dormir,
51
52
53
- A rivederla - disse eu como despedida, fazendo uma vénia tão pronunciada
quanto possível.
- A rivederci domani - sorriu ela acenando.
Saindo de sua casa, caminhei sempre em frente, até que a estrada chegou ao
alto de uma colina e, de repente, a paisagem escura se estendeu bela e
majestosa ante mim. Um único barco deslizava sobre o lago e lançava algumas
faixas escarlate tremeluzindo sobre a água negra, da qual só aqui e além
sobressaía uma delgada crista de onda com uma silhueta estreita e prateada.
Num jardim próximo, ouviam-se o toque do bandolim e risos. O céu estava meio
encoberto, e sobre as colinas corria um vento forte e quente.
E assim como o vento acariciava os ramos das árvores de fruto e as copas
negras dos castanheiros, assim como as fustigava e vergava fazendo-as gemer
e rir e estremecer, assim também brincava comigo a paixão. Ajoelhei sobre o
cume da colina, estendi-me sobre o solo, ergui-me de um salto, bati os pés
contra o chão, lancei o chapéu para longe, esfreguei o rosto contra a erva,
abanei os troncos das árvores, chorei, ri, solucei, vociferei, envergonhei-me,
sentia-me ditoso e mortalmente angustiado. Após uma hora, tudo em mim
estava descontraído e abafado num sombrio torpor. Não pensei nada, não decidi
nada, não senti nada; andando como em sonhos, desci a colina, vagueei por
meia cidade, vi numa rua apartada uma pequena taberna ainda aberta, entrei
maquinalmente, bebi dois litros de Vaud e, pela manhã, voltei a casa
tremendamente bêbedo.
Na tarde seguinte, a menina Aglietti ficou muito assustada quando fui ter com
ela.
- Que tem? Está doente? Tem um ar completamente transtornado.
- Nada de grave - disse eu. - Parece-me que esta noite estive muito bêbedo, e é
tudo. Por favor, comece.
Fui conduzido a uma cadeira, pediram-me que me mantivesse quieto. E assim
fiz, porque em breve caía num sono profundo, passando toda a tarde a dormir
no atelier. Certamente em virtude do cheiro a terebintina das oficinas de pintura,
eu sonhei que o nosso barquito, lá em casa, estava a ser pintado de fresco. Eu
estava estendido sobre o cascalho ali ao lado, a manejar a lata e o pincel; a mãe
também ali estava, e quando lhe perguntei se não havia morrido, ela disse
baixinho:
54
- Não, porque se não estivesse aqui, tu acabarias por dar num pobre diabo como
o teu papá.
Quando acordei, caí da cadeira abaixo e, espantado, dei comigo na oficina da
Hermínia Aglietti. A ela, não a vi, mas ouvi-a a fazer tilintar chávenas e talheres
na salita ao lado, e depreendi daí que deveriam ser horas do jantar.
- Já acordou? - gritou-me ela.
- Já sim. Dormi muito tempo?
- Quatro horas. Não tem vergonha?
- Tenho sim. Mas tive um sonho lindíssimo.
- Conte lá!
- Conto, se sair daí e me perdoar.
Ela saiu, mas queria guardar o perdão até eu lhe narrar o sonho. Contei então, e
com a narrativa do sonho mergulhei profundamente na época da infância;
quando me calei e já a noite estava cerrada, tinha-lhe contado, a ela e a mim
próprio, toda a história da minha infância. Ela deu-me a mão, endireitou-me o
casaco amarrotado, convidou-me a voltar amanhã para o desenho, e senti que
tinha compreendido também e perdoado a minha falta de cortesia de hoje.
Nos dias seguintes, posei para ela hora após hora. Quase não falávamos, eu
permanecia ali sentado ou de pé, quieto e como que encantado, escutava o
roçar macio do carvão de esboço, aspirava o leve cheiro a tintas de óleo, e não
tinha outra sensação que saber-me junto à mulher que amava, com o olhar dela
permanentemente poisado em mim. A luz branca do atelier derramava-se pelas
paredes, algumas moscas sonolentas zuniam nos vidros e, na salinha ao lado,
cantava a chama de álcool, pois após cada sessão era-me servida uma chávena
de café.
Em casa, pensava frequentemente em Hermínia. Não me incomodava nem
minorava a minha paixão, o facto de não poder reverenciar a sua arte. Ela, de si,
era tão bela, bondosa, límpida e segura; que me interessavam os seus quadros?
Pelo contrário, eu encontrava no seu trabalho aplicado algo de heróico. A mulher
em luta pela vida, uma corajosa heroína, silenciosa e paciente. Aliás, não há
nada de mais vão que meditar sobre alguém que se ama. Essas correntes de
pensamento são como certos cantos populares e guerreiros onde surgem
milhares de coisas, mas cujo refrão regressa, contumaz, mesmo quando ele em
nada vem a propósito.
55
É também assim, pois, a imagem da bela italiana que trago na memória, a qual
não sendo embora vaga, carece, todavia, das inúmeras pequenas linhas e
traços que usualmente vemos muito melhor nos estranhos do que naqueles que
nos são próximos. Já não sei que penteado ela usava, como se vestia, e assim
por diante, nem mesmo se tinha uma estatura alta ou baixa. Quando penso nela,
vejo uma cabeça de mulher de cabelos negros, de formas nobres, um par de
olhos penetrantes e não muito grandes num rosto pálido e vivo, e uma boca de
um belo arco perfeito, estreita, de severa maturidade. Quando penso nela e
nesse tempo de paixão, recordo sempre e apenas aquela tarde sobre a colina
em que o vento cálido corria sobre o lago, em que eu chorei, rejubilei e
estrebuchei. E uma outra noite que vou agora narrar.
Foi organizada uma pequena festa estival por artistas e seus amigos. Era junto
ao lago, num jardim bonito, um serão em pleno estio, brando e quente.
Bebíamos vinho e água gelada, escutávamos música e observávamos os
lampiões de papel vermelho que pendiam entre as árvores, em girândolas.
Cavaqueou-se, fez-se chacota, houve risos e por fim cantou-se. Um miserável
aprendiz de pintor dava-se ares de romântico; usava barrete ousado, encostava-
se à balaustrada deitado de costas, e tocava qualquer coisa numa guitarra de
braço comprido. A meia dúzia de artistas mais importantes não se encontrava ali,
ou então estavam à parte, ocultos entre o círculo dos mais velhos. Quanto às
mulheres, apareceram algumas jovens em vestidos claros de verão; as outras
andavam por ali com os habituais fatos desleixados. Notei, designadamente,
uma estudante um pouco mais velha e feia que me repugnou; usava um chapéu
de palha masculino sobre os cabelos curtos, fumava charuto, excedia-se no
vinho e falava alto e muito. Ricardo, como de costume, estava com as raparigas
novas. Eu, apesar de toda a excitação, permanecia frio, bebia pouco e esperava
pela Aglietti, que prometera ir comigo num passeio a remos. E veio realmente,
ofereceu-me algumas flores e entrou comigo no pequeno barco.
O lago tinha uma superfície lisa como óleo, e estava escuro, sem cor. Impeli
rapidamente o pequeno barco pelo quieto lago adentro, bem para longe, vendo
sempre diante de mim aquela mulher elegante comodamente recostada e
satisfeita no banco do leme. O céu estava alto e ainda azul e fazia surgir
lentamente, baça, uma estrela após outra; na margem,
56
aqui e além, havia música e divertimentos nos jardins. A água calma envolvia os
remos, num ou noutro ponto vogavam barcos, negros e quase invisíveis já sobre
a superfície quieta, mas eu mal os notava; fixava a mulher ao leme sem desviar
o olhar e levava a planeada declaração de amor oprimindo-me o coração como
uma tenaz. Todo o cenário belo e poético do serão, o passeio no barco, as
estrelas, o lago tíbio e sossegado, tudo isto me atemorizava, pois me parecia um
belo cenário teatral em cujo centro eu devia desempenhar um papel sentimental.
Na minha angústia, opresso pelo profundo silêncio pois ambos nos
mantínhamos calados, eu remava com vigor.
- Que forte que é! - disse a pintora, pensativa.
- Quer dizer gordo? - perguntei.
- Não, refiro-me aos músculos - riu ela.
- Sim, lá forte, sou eu.
Não era um bom começo. Triste e irritado, continuei a remar. Após um pedaço,
pedi-lhe que me contasse alguma coisa da sua vida.
- Que deseja ouvir?
- Tudo - disse eu. - Preferivelmente, uma história de amor. Depois, eu conto-lhe
a minha, a única. É muito curta e bela, e vai diverti-la.
- Que coisas diz! Conte lá!
- Não, primeiro você! Aliás, já sabe muito mais acerca de mim que eu de si.
Desejo saber se já alguma vez esteve realmente enamorada, ou se, como
receio, é demasiado inteligente e altiva para isso.
Hermínia meditou durante algum tempo.
- Isto é mais uma das suas ideias românticas - disse ela - durante a noite, aqui
sobre as águas negras, pedir a uma mulher que lhe conte histórias. Mas
infelizmente, não sou capaz. Vós, os escritores, estais habituados a ter lindas
palavras para tudo, e a supor que aqueles que falam pouco dos seus
sentimentos não têm coração. Quanto a mim, enganou-se, pois não creio que
alguém possa amar com maior paixão e vigor que eu. Amo um homem que está
ligado a outra mulher, e ele não me ama menos; contudo, nenhum de nós sabe
se alguma vez será possível virmos a unir-nos. Escrevemo-nos e, por vezes,
também temos encontros...
- Posso perguntar-lhe se esse amor a faz feliz, miserável, ou ambas as coisas?
57
- Ah, o amor não existe para nos fazer felizes. Acho que ele existe para nos
mostrar quão fortes podemos ser no sofrimento e na paciência.
Eu compreendi isto, e não pude impedir que me saísse da boca um leve gemido
em lugar de uma resposta. Ela ouviu.
- Ah - disse - você também já conhece isto? Ainda é tão novo! Também quer
confessar-se a mim? Mas só se o quiser realmente...
- Noutra altura, talvez, menina Aglietti. Hoje sinto o espírito agitado e pesa-me
que talvez lhe tenha perturbado também a si a boa disposição. Vamos voltar?
- Como queira. A que distância estamos?
Não dei mais resposta, senão que finquei os remos na água com grande
marulhar, virei e puxei, como se o vento norte ameaçasse. O barco deslizava
rapidamente sobre a superfície, e em meio do turbilhão de desolação e
vergonha oculto dentro de mim, eu notava o suor a escorrer-me pelo rosto em
grossas bagas, ao mesmo tempo que sentia frio. Quando pensava bem em
como estivera prestes a fazer o papel do suplicante que se prostra e do amante
maternal e amigavelmente repelido, um arrepio percorria-me a espinha. Isso, ao
menos, fora-me poupado, e quanto à restante desolação, tinha agora de
resignar-me. Remei para casa como um possesso.
A bela menina estava um pouco desconcertada quando me despedi dela
rapidamente e a deixei só. O lago estava tão liso, a música tão alegre e os
lampiões de papel tão festivos como antes, mas a mim, tudo isso me parecia
agora tolo e ridículo. Muito especialmente a música. O que mais me apetecia era
desfazer o fulano do casaco de veludo que ostensivamente continuava a segurar
a guitarra pela larga banda de seda. Além disso, o programa previa ainda fogo-
de-artifício. Era tudo tão pueril!
Pedi emprestados alguns francos a Ricardo, atirei o chapéu sobre a nuca e
comecei a marchar pela cidade fora e mais além, hora após hora, até sentir
sono. Deitei-me sobre o prado mas, uma hora depois, acordei de novo
encharcado de orvalho, hirto e enregelado, e fui até à aldeia mais próxima. Era
manhã cedo. Cegadores de trevo avançavam pelos caminhos poeirentos,
criados ensonados espreitavam de olhos esbugalhados à porta dos estábulos, a
actividade estival do campo anunciava-se por toda a parte. Devias ter
permanecido lavrador, dizia para comigo,
58
59
4.
Aquilo que meu pai não conseguira naquela altura, conseguiu-o agora esta
angústia amorosa. Fez de mim um bebedor. Para a minha vida e o meu carácter,
isto foi mais importante que tudo o mais que até agora contei. Deus, poderoso e
amoroso, foi para mim um amigo fiel e é-o ainda hoje. Quem haverá tão
poderoso como ele? Quem haverá tão belo, fantástico, entusiasta, tão alegre e
melancólico? Ele é um sedutor, um irmão de Eros. Ele consegue o impossível;
enche pobres corações humanos de belos e maravilhosos poemas. De mim,
solitário e camponês, fez um rei, um poeta, um sábio. Às barcas vazias da vida,
ele carrega-as de novos destinos e, às encalhadas, lança-as de novo para
rápidas torrentes da vida.
E assim é também o vinho. Mas quanto a este, passa-se o mesmo que com
todos os dons e artes preciosos. Ele quer ser amado, procurado, compreendido
e conquistado com esforço. Poucos o conseguem, e ele leva milhares e milhares
à morte. Ele torna-os velhos, ele mata-os ou apaga neles a chama do espírito.
Mas aos seus eleitos, ele convida-os para festas e constrói-lhes pontes de arco-
íris para ilhas bem-aventuradas. Quando estão cansados, coloca almofadas sob
as suas cabeças e abraça-os, quando se tornam presas da tristeza, num
amplexo suave e bondoso como um amigo ou uma mãe consoladora. Ele
transforma a confusão da vida em sublimes mitos e com possante harpa toca o
cântico da criação.
E logo ele é uma criança, de sedosos caracóis, ombros estreitos e membros
delicados. Ele encosta-se ao teu coração e ergue o estreito rosto para o teu, e
olha-te espantado e sonhador com enormes olhos amorosos, no fundo dos
quais, em toda a sua frescura e esplendor,
61
pairam um paraíso e uma infância divina não perdida, como um manancial que
acaba de brotar na floresta.
E o bom Deus assemelha-se também a uma torrente que atravessa, profunda e
rumorejante, uma noite primaveril. E assemelha-se a um mar que embala o sol e
a tempestade sobre as frescas ondas.
Quando fala com os seus dilectos, então, com um marulhar, uma embriaguês
arrepiantes, inunda-os no mar tumultuoso dos mistérios, da recordação, da
poesia, do pressentimento. O mundo conhecido torna-se pequeno e perde-se e,
com temerosa alegria, a alma lança-se na vastidão sem trilhos do desconhecido,
onde tudo é estranho, tudo é familiar, e onde se fala a linguagem da música, dos
poetas e do sonho.
Mas, primeiro, terei de contar.
Acontecia que eu, esquecido de mim e bem disposto, conseguia passar horas a
estudar, a escrever e a escutar a música de Ricardo. Mas não se escoava dia
algum sem dor. Por vezes, ela sobrevinha só à noite, na cama, e fazia-me
gemer, revoltar e adormecer já tarde em lágrimas. Ou então ela despertava se
encontrava a Aglietti. Mas, usualmente, surgia à noitinha, quando começavam os
belos, cálidos e fatigantes serões estivais. Então, eu ia até ao lago, tomava um
barco, remava até suar e me cansar, e parecia-me depois impossível regressar a
casa. Ia, pois, para a taberna ou uma cervejaria. Ali, experimentava diversos
vinhos, bebia e meditava e, por vezes, no dia seguinte estava quase doente.
Muitas vezes era acometido de uma angústia tão horrenda, de tal sensação de
nojo, que decidia nunca mais beber. Mas eu voltava e bebia. Aos poucos,
comecei a distinguir os vinhos e a sua acção, e saboreava-os com uma espécie
de discernimento, mas, geralmente, ainda com bastante inconsciência e
ignorância. Por fim, encontrei apoio no vinho vermelho escuro de Valtellina. Ao
primeiro copo tinha um sabor adstringente e excitante, depois toldava-me os
pensamentos até provocar um sonho calmo e constante, e começava então a
sua acção mágica, ele criava, ele próprio fazia poesia. Então, eu via todas as
paisagens que alguma vez me haviam agradado envolver-me em deliciosas
luminosidades, e eu próprio vagueava por elas, e cantava e sonhava, e sentia
uma vida superior e quente rodopiar dentro de mim. E terminava com uma
tristeza extremamente agradável, como se ouvisse tocar músicas populares em
rabecas, como se tivesse a certeza de encontrar algures uma grande felicidade
pela qual tivesse passado sem a notar.
62
63
64
eu vim a conhecer, não sei de nenhum que viesse a dar algo de notável. Entre
eles, havia um alemão do Norte com a mesma idade que eu, uma
personagenzinha simpática, pessoa delicada, amável e sensível em tudo o que
se relacionava com questões artísticas. Era considerado um escritor promissor,
e ouvi ler algumas vezes poemas dele que surgem ainda na minha recordação
como algo de extraordinariamente perfumado, belo e inspirado. Talvez que, de
entre todos nós, ele fosse o único que poderia vir a tornar-se num verdadeiro
poeta. Casualmente, vim mais tarde a conhecer a sua curta história. Perturbado
por um fiasco literário, na sua extrema sensibilidade, afastou-se do público e
caiu nas mãos de um mecenas que, em lugar de o estimular e chamar à razão,
rápido o destruiu por completo. Nas villas daquele senhor abastado, diante das
damas histéricas, ele dava-se a um contínuo enfatuamento e, na sua presunção,
imaginava-se um herói menosprezado e miseravelmente mal conduzido; com o
excesso de música de Chopin e êxtases pré-rafaélicos, levava-se continuamente
à perda da razão. É com horror e tristeza que recordo esta plêiade de poetas e
belas almas de estranhos vestuários e penteados, quase incapazes de voar
ainda, pois só mais tarde compreendi o perigo deste relacionamento. Mas a
minha qualidade de camponês das montanhas preservou-me de tomar parte
naquela embriaguês.
Mas mais nobre e compensadora que a fama e o vinho, que o amor e a
sabedoria, era a minha amizade. No fundo, só ela me auxiliava na minha natural
inaptidão para a vida e mantinha os anos da minha juventude com uma frescura
e alvor íntegros. Ainda hoje não conheço nada de mais excelente no mundo que
uma amizade verdadeira e nobre entre homens, e se alguma vez, em dias de
melancolia, sou dominado por algo como a saudade da juventude, sinto-a
apenas pela minha amizade de estudante.
Desde o meu enamoramento por Hermínia que descuidara um POUCO Ricardo.
De início, isso sucedeu inconscientemente, mas após algumas semanas, a
consciência mordeu-me. Confessei-lhe tudo, e ele desvendou-me que, com
pesar, vira aproximar-se e crescer toda aquela desventura, e eu liguei-me de
novo a ele de todo o coração e com exclusivismo. Tudo quanto aprendi das
pequenas artes alegres e livres da vida, tudo veio dele. Era belo de corpo e
alma, e a vida parecia não ter mistérios para si. Como pessoa inteligente e
activa, ele conhecia bem as paixões
65
e erros dos tempos, que passavam por ele sem lhe causar dano. O seu andar e
a sua linguagem e todo o seu ser eram flexíveis, harmoniosos e amáveis. Oh,
como ele sabia rir.
No tocante ao meu estudo dos vinhos, ele mostrava pouco entendimento. Por
vezes, acompanhava-me, mas dois copos chegavam-lhe, e observava o meu
consumo notavelmente superior com um espanto pueril. Mas quando via que eu
sofria e, impotente, era dominado pela melancolia, fazia música, lia para mim ou
levava-me a um passeio. Nos nossos pequenos giros, não raro íamos
descontraídos como duas crianças pequenas. Certa vez, durante o repouso de
um meio-dia quente, estendemo-nos num vale com um bosque, atirámos com
pinhas um ao outro e cantámos versos de «A Piedosa Helena» com melodias
sentimentais. O ribeiro rápido e límpido rumorejava tão insistente e fresco aos
nossos ouvidos que nos desnudámos e deitámos na água fria. Então, ele teve a
ideia de representar comédias. Sentou-se sobre uma rocha musgosa, fazendo
de Loreley, e eu, lá em baixo, como barqueiro, passava navegando no pequeno
barco. Ele apresentava um ar tão virginalmente puro e fazia tais momices que
eu, que deveria fingir o louco de dor, mal continha o riso. De repente, fizeram-se
ouvir vozes, um grupo de turistas surgiu na vereda, e nós, assim desnudos,
tivemos de ocultar-nos em grande pressa por sob a margem desgastada pela
água, formando um parapeito. Quando o grupo, desprevenido, passou por nós,
Ricardo soltou os mais diversos sons estranhos, grunhindo, chiando e bufando.
As pessoas estacaram, olharam em redor, fixaram a água e estavam prestes a
descobrir-nos. Então, o meu amigo surgiu em meio corpo do seu esconderijo,
olhou o indignado grupo, e disse com voz profunda e gestos sacerdotais:
- Ide em paz!
E desapareceu logo de seguida, beliscou-me no braço e comentou:
- Também isto era uma charada!
- E qual? - perguntei.
- Pá, assusta alguns pastores - riu ele. - Infelizmente, também havia mulheres
entre eles.
Quanto aos meus estudos históricos, ele interessava-se pouco. Mas a minha
predilecção, quase enamoramento, por Francisco de Assis, em breve foi
partilhada por si, muito embora ocasionalmente pudesse fazer larachas que me
deixavam indignado.
66
Víamos o bem-aventurado, amável, entusiasmado e alegre como uma deliciosa
criança grande a vaguear pelas terras da Úmbria, feliz com o seu Deus e repleto
de amor humilde para com todos os homens. Lemos juntos o seu imortal Cântico
ao Sol, e sabíamo-lo quase de cor. Certa vez em que regressávamos de um
passeio de barco pelo lago e o vento da tarde movia a água dourada, ele
perguntou baixinho:
- O que é que o santo diz nesta situação? E eu citei:
- «Laudato si, misignore, per frate vento e per aere e nubilo e sereno e bonne
tempo!»
Quando discutíamos e trocávamos ofensas, ele lançava-me, sempre meio a
brincar, ao modo de um rapazola, tal quantidade de apodos jocosos que em
breve eu era forçado a rir e a irritação perdia a sua agudeza. O meu querido
amigo só estava relativamente sério quando escutava ou tocava os seus
músicos preferidos. Mas ainda assim, ele podia interromper-se para fazer
qualquer brincadeira. Contudo, o seu amor pela arte era repleto de pura e
sincera entrega, e a sua sensibilidade pelo autêntico e mais importante parecia-
me iniludível.
Ele praticava maravilhosamente a subtil e delicada arte do consolo, do
acompanhar no sofrimento ou do alegrar, quando algum dos seus amigos estava
em dificuldades. Quando me encontrava de mau humor, ele conseguia contar-
me grande número de histórias anedóticas de uma graça grotesca, e no seu tom
havia um não sei quê de pacificador e animador a que raro eu podia resistir. Ele
sentia algum respeito para comigo, porque eu era mais sisudo que ele; e muito
mais impressão ainda lhe causava a minha força física. Gabava-a diante dos
outros, e sentia orgulho em ter um amigo capaz de o esmagar com uma só mão.
Ele dava muito valor às capacidades e destreza físicas, ensinou-me ténis,
remava e nadava comigo, levava-me a cavalgadas e não descansou enquanto
eu não soube jogar bilhar quase tão bem como ele. Era o seu jogo preferido, e
não só o praticava artisticamente e com mestria, como costumava mostrar-se
sempre especialmente activo, gracejador e alegre. Frequentemente, dava às
três bolas o nome de pessoas das nossas relações, e a cada tacada, pelo
posicionamento, aproximação e distanciamento, construía verdadeiros romances
plenos de gracejos, alusões e comparações caricaturais.
67
68
Com alguma satisfação, verificámos que não havia que lastimar grandemente as
miseráveis centenas de estátuas de santos sobre os coruchéus porque, na sua
maioria, ou pelo menos todas as novas, se manifestavam como um trabalho
fabril de fraca qualidade. Estivemos estendidos quase duas horas sobre as
largas placas de mármore inclinadas, que o sol de Abril havia aquecido
levemente. Com satisfação, Ricardo afirmou-me:
- Sabes, no fundo, não me importo de sofrer mais decepções como com esta
louca catedral. Durante toda a viagem, tive um certo receio das inúmeras
grandezas que iríamos visitar e nos oprimiriam. E agora, tudo começa de forma
tão agradável e humanamente ridícula!
Depois, aquela multidão confusa de figuras de pedra por entre a qual nos
encontrávamos estendidos, evocou nele imensas fantasias barrocas.
- Provavelmente - dizia ele - ali em cima do torreão do coro, que é o pico mais
alto, deve também estar o maior santo, o mais importante. E como não deve ser
nenhum prazer permanecer eternamente como acrobata petrificado em
equilíbrio sobre aquele torreão pontiagudo, é fácil que, de tempos a tempos, o
santo mais elevado seja liberto e elevado ao céu. Imagina agora a confusão que
se gera de cada vez. É que, com certeza, todos os outros santos, precisamente
pela ordem da sua categoria, terão de avançar um lugar e, com um grande pulo,
cada um terá de saltar para o coruchéu do seu predecessor com grande rapidez,
cada qual com inveja de todos os que ainda partirão antes dele.
A partir daquela altura, sempre que passava por Milão, recordava aquela tarde e,
com um riso pesaroso, via as centenas de santos de mármore a dar os seus
ousados saltos.
Em Génova, enriqueci-me de mais um grande amor. Era um dia claro e ventoso,
pouco depois do meio-dia. Eu apoiara os braços sobre um largo parapeito de
mármore, por detrás de mim estendia-se a colorida Génova e, mais abaixo,
avolumava-se e animava-se a vastidão azul: o mar. Num obscuro marulhar e
desejo incompreendido, o eterno e imutável estendia-se para mim, e eu sentia
que no meu interior algo firmava amizade para a vida e para a morte com esta
imensidão azul e espumosa.
Com igual vigor me impressionou o largo horizonte do mar. Eu via de novo,
como nos tempos da infância, um portal aberto aguardando-me. E uma vez mais
me subjugou o sentimento de que não havia nascido
69
70
Esta foi a história da minha juventude. Ao revê-la, parece-me que foi curta como
uma noite de verão. Um pouco de música, um pouco de espírito,
71
um pouco de amor, um pouco de vaidade - mas foi bela, rica, colorida como uma
festa de Elêusis.
E apagou-se rápida e pobremente como uma luz ao vento.
Em Zurique, Ricardo despediu-se. Por duas vezes, desceu da carruagem do
comboio para me beijar, e acenou-me ainda carinhosamente da janela enquanto
foi possível.
Duas semanas depois, afogou-se em Baden num pequeno riacho ridículo do Sul
da Alemanha. Não tornei a vê-lo, nem estive presente quando foi sepultado, pois
apenas tive conhecimento disso alguns dias mais tarde, quando já se
encontrava no caixão e debaixo da terra. Então, estendido no chão do meu
quartinho, maldisse Deus e a vida com perversas e horríveis pragas, chorei e
revoltei-me. Até então, nunca compreendera que o único bem sólido durante
estes anos fora a minha amizade. Isso estava agora acabado.
Não suportei permanecer por mais tempo na cidade onde, diariamente, uma
imensidade de recordações se colava a mim e me sufocava. Pouco me
importava o que agora surgiria; estava doente no âmago da minha alma e tinha
horror a tudo o que era vivo. Por enquanto, pareciam pequenas as hipóteses de
o meu ser transtornado se reerguer e, com novas velas enfunadas, vogar ao
encontro da felicidade acre dos anos da maturidade. Quis Deus que eu ofertasse
o melhor do meu ser a uma amizade pura e feliz. Como dois barcos velozes,
lançávamo-nos em frente; o de Ricardo era o lenho colorido, leve, feliz e amado
a que se agarrava o meu olhar, ao qual me confiava, que me arrastaria para
belos propósitos. Agora, com um grito, afundara-se, e eu errava sem timão em
águas subitamente enegrecidas.
Seria meu dever superar esta dura prova, orientar-me pelas estrelas e, numa
nova viagem, lutar pela coroa da vida e buscá-la. Eu crera na amizade, no amor
feminino, na juventude. Pois que um após outro me haviam abandonado, por
que não cria eu em Deus e não me abandonava à sua forte mão? Mas eu fora
desde sempre indeciso e teimoso como uma criança, esperava sempre pela vida
autêntica, que ela caísse sobre mim como uma tempestade, me tornasse
sensato e rico e, sobre grandes asas, me conduzisse a uma felicidade plena.
A sapiente e sóbria vida, porém, mantinha-se silenciosa, e deixava-me errar.
Não enviou tempestades nem estrelas, senão que aguardava até
72
73
5.
Chega agora o período da minha vida que, aparentemente, foi mais
movimentado e colorido que o passado e que, em todo o caso, daria um
pequeno romance à moda. Eu teria de narrar como fui chamado para redactor
de um jornal alemão, como dei demasiada liberdade à minha pena e à minha
boca maldosa e, por isso, fui chicaneado e censurado, como em seguida ganhei
fama de bêbedo e, por fim, depois de querelas maledicentes, deixei o cargo e fiz
com que me enviassem para Paris como correspondente, como eu errei nesse
ninho maldito, como levei vida desregrada e, em diversos campos, provei a
devassidão.
Não é por cobardia que desprezo os meus eventuais leitores obscenos, e passo
sobre este curto período. Reconheço que, um após outro, percorri maus
caminhos, vi toda a espécie de podridão e nela me atolei. Desde então, perdi o
gosto pelo lado romântico da vida boémia, e tereis de permitir-me que me
atenha ao mais limpo e bom que também existiu na minha vida, e que, ao tempo
de perdição, o deixe perdido e liquidado.
Certa tarde, sentado só no Bois, meditava se deveria deixar Paris ou mesmo a
vida de uma vez. Assim, em pensamentos, pela primeira vez desde há muito
tempo, eu revi a minha vida, considerando que não teria muito a perder.
Mas eis que, de súbito, numa recordação pungente, eu vi um dia passado e
esquecido de há muito - uma manhã do início do Verão, na minha terra, nas
montanhas, e vi-me ajoelhado junto a uma cama, e sobre ela jazia a minha mãe
em agonia.
Estremeci e envergonhei-me de tão longamente ter podido não mais recordar
essa manhã. Os loucos pensamentos de suicídio desvaneceram-se.
75
É que eu penso que nenhum homem sério e inteiramente dissoluto será capaz
de tirar a si mesmo a vida, se alguma vez tiver presenciado o apagar de uma
vida sadia e boa. Vi de novo a minha mãe morrer. Vi de novo no seu rosto o
silencioso e grave trabalho da morte que o enobrecia. A morte tinha um aspecto
rude, mas era tão magnificente e também tão bondosa como um pai cauteloso
que traz o filho perdido de regresso a casa.
De súbito, eu sabia outra vez que a morte era a nossa irmã inteligente e boa que
conhece a hora adequada, e que podemos aguardá-la confiadamente. E
comecei também a compreender que o sofrimento, as desilusões e a melancolia
não existem para nos deixar contrariados e fazer-nos perder o valor e a
dignidade, mas para nos amadurecer e transformar.
Oito dias mais tarde, as minhas caixas foram enviadas para Basileia, e percorri a
pé uma bela parte do Sul da França; sentia de dia para dia os funestos tempos
parisienses, cuja lembrança me perseguia como um fedor, dissipar-se e
enevoar-se. Assisti a uma «Cour d'Amour». Dormi em castelos, em moinhos, em
palheiros e com moços morenos e palradores, bebi o seu vinho quente e
luminoso.
Andrajoso, emagrecido, bronzeado e transformado interiormente, cheguei a
Basileia ao cabo de dois meses. Foi a primeira vez que fiz uma viagem a pé tão
longa, a primeira de entre muitas. Entre Locarno e Verona, entre Basileia e
Briga, de Florença a Perúsia, poucas serão as povoações por onde não haja
peregrinado duas e três vezes de botas empoeiradas - perseguindo sonhos dos
quais nenhum se realizou ainda.
76
77
mas não tinha gostado delas. Ela pareceu-me inteligente, mas um tanto em
demasia, e em breve regressei a casa.
Entretanto, haviam descoberto aos poucos que eu andava muito pelas tabernas
e que, na realidade, às ocultas, eu era um bebedor. Isto não me espantou,
porque era precisamente na sociedade académica, entre homens e mulheres,
que os mexericos floresciam com maior viço. A indecorosa descoberta não
perturbou os meus relacionamentos, antes pelo contrário, tornou-me desejado,
porque havia um entusiasmo precisamente pela temperança, homens e
senhoras pertenciam a comissões de ligas de temperança e alegravam-se com
todo o pecador que lhes caía nas mãos. Num determinado dia, deu-se o primeiro
ataque amável. Incitaram-me a meditar na ignomínia da vida de taberna, na
maldição do alcoolismo, e tudo isso sob o ponto de vista sanitário, ético e social,
e fui convidado a participar nos festejos de uma liga. Fiquei extremamente
surpreso, pois até essa altura não tinha conhecimento de todas aquelas ligas e
movimentos. A sessão da liga, com música e uma nota de religião, era
penosamente ridícula, e eu não dissimulei esta impressão. Semanas a fio, fui
massacrado com importuna amabilidade, tudo aquilo se me tornou
extremamente enfadonho e, certa noite, quando me cantavam a mesma música
e ansiosamente esperavam a minha conversão, fiquei desesperado e supliquei
energicamente que finalmente me poupassem àquela choradeira. A jovem
estava de novo presente. Escutou-me atentamente e disse com grande
cordialidade:
- Bravo!
Mas eu estava demasiado indisposto para o notar.
Com tanto maior satisfação presenciei um pequeno e cómico desaire que
sucedeu numa enorme festividade dos abstinentes. A grande liga, mais os
inúmeros convidados, banqueteava-se e convivia na sua sede; proferiram-se
discursos, firmaram-se amizades e cantaram-se coros, e o progresso da boa
causa era celebrado com um grande hossana. Mas para um dos porta-
estandartes contratados, os discursos sem álcool pareceram-lhe demasiado
longos, e refugiou-se numa taberna próxima. Quando o cortejo festivo de
manifestação pelas ruas se iniciou, pecadores maldosos puderam desfrutar do
divertido espectáculo de ver, à cabeça dos grupos entusiastas, um alegre
condutor bêbedo e, nos seus braços, a bandeira da Cruz Azul baloiçar como o
mastro de um navio prestes a naufragar.
78
O empregado bêbedo foi afastado; mas o que não foi afastado foi o tropel de
vaidades humanas, de invejas e intrigas que se ergueu no seio das diversas
ligas e comissões concorrentes e que vicejava cada vez mais num alegre brotar.
O movimento dividiu-se, alguns ambiciosos desejavam toda a reputação apenas
para si, e invectivavam todos aqueles bebedores que não se haviam convertido
em seu nome; abusou-se indignamente dos não poucos colaboradores nobres e
abnegados e, em breve, as pessoas mais próximas tiveram oportunidade de
observar como também ali, sob uma etiqueta idealista, o fedor de toda a sorte de
podridões humanas subia ao céu. Eu tive conhecimento casual de todas estas
comédias, por terceiros, senti um prazer silencioso nelas, e imaginei certos
regressos nocturnos dos beberetes: «Olhai, nós, os libertinos, sempre somos
melhor gente.»
No meu pequeno quarto, alto e com vista desafogada sobre o Reno, eu
estudava e meditava muito. Estava inconsolável por a vida passar por mim
assim, de não ser arrastado por nenhuma torrente forte, de nenhum forte
entusiasmo ou interesse me animar e arrancar ao sonho sombrio. É certo que, a
par do quotidianamente indispensável, eu trabalhava nos preparativos de um
trabalho que deveria descrever a vida dos primeiros menoritas; mas isto era um
trabalho pequeno, apenas uma humilde compilação persistente que não
satisfazia o impulso do meu desejo. Recordando Zurique, Berlim e Paris,
comecei a compreender os anseios, paixões e ideais dos meus
contemporâneos. Um ocupava-se a eliminar os móveis, tapeçarias e fatos
usados até então e a habituar as pessoas a ambientes mais livres e bonitos.
Outro esforçava-se por divulgar, em escritos e conferências dirigidos ao povo, o
monismo de Haeckel. Outros achavam digno de esforço promover a eterna paz
mundial. E outro ainda lutava pelas camadas inferiores indigentes, ou fazia
colectas e pregava para que fossem construídos teatros e museus e abertos ao
povo. Aqui, em Basileia, lutava-se contra o álcool.
Em todos estes esforços havia vida, estímulo e acção; mas nenhum deles era
importante e necessário para mim, e não me teria impressionado nem alterado a
minha vida se todos aqueles objectivos tivessem sido alcançados hoje. Sem
esperança, eu afundava-me recostado na cadeira, afastava livros e papéis e
pensava, pensava. Depois, ouvia o Reno a correr defronte da janela, e o vento a
uivar, e escutava extasiado esta
79
80
81
82
83
Estendi-lhe o desenho. Ela segurou a folha, e notei que sabia como pegar numa
coisa daquelas. Disse-lho.
- Louva-me - riu ela - mas como um mestre-escola.
- Não quer também olhar a folha? - perguntei, asperamente. - Senão, posso
arrumá-la.
- Que representa?
- San Clemente.
- Onde?
- Perto de Fiesole.
- Já lá esteve?
- Sim, por diversas vezes.
- Como é o vale? Isto é apenas um pormenor.
Pensei. A severa paisagem, de uma beleza rude, surgiu diante do meu olhar, e
eu semicerrei os olhos para a fixar. Demorou um pouco até que eu começasse a
falar, e soube-me bem que ela permanecesse em silêncio, aguardando.
Compreendeu que eu estava a recordar.
Descrevi-lhe San Clemente, como jaz silente, ressequido e majestoso sob o
braseiro da tarde estival. Ali perto, em Fiesole, há indústria, entretecem-se
chapéus de palha e cestos, vendem-se recordações, ludibriam-se os viajantes
ou mendigam-se-lhes esmolas. Mais abaixo, fica Florença, que encerra uma
torrente de vida antiga e nova. Mas nenhuma delas se pode ver de San
Clemente. Os pintores não trabalharam ali, não houve ali qualquer construção
romana, a história esqueceu o pobre vale. Mas ali, o sol e a chuva lutam contra
a terra, ali, os pinheiros recurvados lutam arduamente pela vida e os poucos
ciprestes palpam os ares com magros cimos, não chegue a tempestade inimiga
que lhes encurta a parca vida a que se agarram com raízes ávidas. Uma ou
outra vez, passa um carro de bois das grandes quintas próximas, ou uma família
de camponeses caminha em direcção a Fiesole, mas não passam de visitantes
ocasionais, e as saias vermelhas das camponesas, normalmente tão mexidas e
alegres, perturbam aqui, e com prazer as dispensamos.
E contei como na juventude passara por ali com um amigo, como me estendera
aos pés dos ciprestes e me recostara aos seus magros troncos; e como a bela
magia melancólica da solidão do estranho vale me recordava os desfiladeiros da
minha terra.
Calámo-nos por algum tempo.
84
85
Saí e durante meses não voltei àquela casa. Por acaso, foi precisamente um
desses dois pintores o primeiro a questionar-me na rua sobre o assunto.
- Por que não vai mais lá?
- Porque não posso suportar a maldita bisbilhotice - disse.
- Pois é, estas mulheres! - riu o patife.
- Não - respondi - refiro-me aos homens, e muito especialmente aos senhores
pintores.
Durante aqueles meses, raramente vi Elisabete na rua, uma vez numa loja e
outra numa galeria de arte. Usualmente, apresentava-se esbelta, mas não
bonita. Os movimentos da sua figura muito delgada tinham algo de singular que,
normalmente, lhe dava garbo e distinção, mas por vezes, mostrava-se um pouco
enfatuada e artificial. Bela, extremamente bela, estava certa altura na galeria.
Ela não me viu. Eu encontrava-me sentado a repousar um pouco à parte e
folheava o catálogo. Ela estava de pé, perto de mim, diante de um grande
Segantini, totalmente imersa no quadro. Representava algumas camponesas
trabalhando num magro prado, por detrás, os montes abruptos e recortados,
recordando talvez o grupo do Stockhorn e por cima, num céu frio e claro, uma
nuvem genialmente pintada, cor de marfim. Ela impressionava logo ao primeiro
olhar pela sua massa enovelada, enrolada sobre si; via-se que acabava de ser
enfunada e encapelada pelo vento e se preparava agora para subir e
desaparecer, voando lentamente. Visivelmente, Elisabete compreendia esta
nuvem, pois estava totalmente entregue à contemplação. E de novo a sua alma,
habitualmente oculta, assomava no rosto, sorria docemente nos olhos
agigantados, a boca demasiado delgada, tornava-a infantilmente macia, e entre
as sobrancelhas, aplanava o sulco de amarga inteligência na fronte. A beleza e
autenticidade de uma obra de arte forçou a sua alma a apresentar-se bela,
autêntica e sem véus.
Eu mantinha-me sentado ali ao lado, em silêncio, observava a bela nuvem de
Segantini e a bela rapariga encantada com ela. Depois, receei que se voltasse,
me visse e falasse, e perdesse de novo a sua beleza, e deixei a sala
rapidamente e sem ruído.
Por aquela época, a minha alegria pela natureza silenciosa e a minha relação
para com ela começou a transformar-se. Passeava muitas vezes pelas
maravilhosas imediações da cidade, preferivelmente pelo Jura.
86
87
te canta a mesma canção que os frescos de Pisa. Por que razão Ticiano, o
amigo do tangível e do corporal, deu por vezes aos seus quadros claros e
materiais, aquele fundo do mais maravilhoso azul profundo? É apenas uma
pincelada de azul profundo, e quente, não se percebe se pretende representar
montanhas distantes ou apenas o espaço ilimitado. Ticiano, o realista, nem ele
próprio o sabia. Ele não o fazia, como os historiadores de arte pretendem saber,
por razões de harmonia de cores, era antes o seu tributo ao insaciável que,
oculto, habitava também a alma deste ser alegre e feliz. Assim, parecia-me, a
arte esforçara-se em todos os tempos por nos ofertar na sua linguagem, a
silente necessidade do divino.
Mas com maior maturidade e beleza e, todavia, mais ingenuamente, expressava
isto São Francisco. Foi então que o compreendi inteiramente. Ao englobar toda a
terra, as plantas, as estrelas, os animais, ventos e águas no seu amor para com
Deus, ele transmitiu-o à Idade Média, mesmo a Dante, e descobriu a linguagem
do eternamente humano. Ele chama a todas as potências e manifestações da
natureza seus amados irmãos e irmãs. Quando, em anos posteriores, foi
condenado pelos médicos a deixar queimar a fronte com ferro em brasa, em
meio do seu pavor de enfermo atormentado, saudou neste terrível ferro «o seu
amado irmão, o fogo».
Ao começar agora a amar a natureza como pessoa, a escutá-la como camarada
e companheira de viagem que fala uma língua estrangeira, a minha melancolia,
embora não curada, ficava enobrecida e purificada. O meu ouvido e olho
aguçavam-se, aprendia a compreender delicadas tonalidades e diferenças, e
ansiava por escutar cada vez mais perto e claro o pulsar de toda a vida e, talvez
um dia, participar do dom de, em palavras poéticas, dar-lhe expressão, para que
também outros se aproximassem dele, e o visitassem com melhor compreensão
das fontes de todo o refrigério, purificação e ingenuidade. Por enquanto, isso
não passava de um desejo, de um sonho... eu não sabia se alguma vez poderia
realizar-se, e ative-me ao que me era mais fácil, oferecendo a todas as coisas
visíveis o meu amor, e habituando-me a não mais olhar o que quer que fosse
com indiferença ou desprezo.
Não me é possível dizer como isto actuou de forma renovadora e consoladora
sobre a minha vida obscurecida!
88
Não há no mundo nada de mais nobre que faça maior felicidade que um amor
sem palavras, constante e desapaixonado, e nada desejo mais profundamente
que entre aqueles que lerem as minhas palavras, alguns, ou mesmo apenas
dois ou um só, por meu incitamento, quisesse iniciar-se nesta arte pura e
abençoada. Alguns possuem-na por natureza e praticam-na toda a vida
inconscientemente, são os preferidos de Deus, os bons, as crianças entre os
homens. Outros aprenderam-na com grande sofrimento: nunca vistes entre os
aleijados e os miseráveis, alguns de olhos meditativos, silenciosos e brilhantes?
Se não quiserdes escutar-me e às minhas pobres palavras, ide ter com aqueles
nos quais um amor sem avidez superou o sofrimento e o transformou.
Desta plenitude que eu louvei em certos pobres sofredores, ainda hoje me
encontro miseravelmente distante. Mas ao longo destes anos, raras vezes careci
da consoladora fé de conhecer o caminho para ela.
Não posso dizer que também eu o tenha trilhado, antes me sentei pelo caminho
em todos os bancos e não deixei de seguir certos desvios perversos. Havia duas
tendências egoístas e poderosas que em mim lutavam contra o amor verdadeiro.
Eu era um bebedor e um solitário. É certo que cortei substancialmente a minha
porção de vinho mas, semana sim semana não, o deus bajulador adulava-me e
eu lançava-me nos seus braços. Só muito raramente, porém, sucedeu eu ficar
jazendo pelas ruas ou fazer cenas nocturnas, porque o vinho ama-me, e só me
atrai até ao ponto onde os seus espíritos se relacionam com o meu num diálogo
amigável. No entanto, após cada bebedeira, a má consciência perseguia-me
durante longo tempo. Mas, no fundo, não podia retirar o meu amor ao vinho,
para o qual herdara de meu pai grande inclinação. Durante anos, acarinhara
esta herança, cuidadosa e piedosamente, e havia-me apropriado dela
profundamente; por isso, tirei-me de apuros, e estabeleci um acordo meio a
sério meio a brincar entre o meu vício e a minha consciência. Incluí no cântico
do Sol do santo de Assis «o meu amado irmão, o vinho».
89
6.
Muito pior era o meu outro defeito. Eu sentia pouco prazer no convívio, vivia
como um solitário, e ante as coisas humanas, estava sempre pronto a usar de
escárnio e desprezo.
No início da minha nova vida, ainda não pensava nisso. Achava correcto deixar
os homens entregues uns aos outros e reservar o meu carinho, dedicação e
simpatia apenas para a natureza silenciosa. E esta, de início, também me
preenchia inteiramente.
À noite, quando me preparava para ir para a cama, recordava de repente uma
colina, uma orla de floresta, uma única árvore preferida que há muito não
visitara. Agora, ela erguia-se ao vento durante a noite, sonhava, passava talvez
pelo sono, gemia e movia os ramos. Que aspecto teria? E eu deixava a casa,
procurava-a e via um vulto indistinto na escuridão, observava-o com espantoso
carinho e trazia dali, em mim, a sua imagem na escuridão.
Vós ris disto. Talvez este amor fosse mal orientado, mas não era esbanjado.
Mas, como haveria eu de encontrar a partir daqui o caminho que conduzia aos
homens?
No entanto, quando o primeiro passo está dado, o prémio surge sempre por si
mesmo. A ideia do meu grande poema surgia-me cada vez mais próxima e
possível. E ainda que o meu amor me levasse alguma vez, como poeta, a falar a
linguagem das florestas e das torrentes, para quem seria? Não apenas para os
meus bem amados, mas principalmente para os homens, para quem eu queria
ser um condutor e professor no amor. E para com essas pessoas, eu era rude,
sarcástico e insensível. Senti a discrepância e a imperatividade de lutar contra o
meu isolamento,
91
e manifestar também amizade fraternal para com os homens. Isso era difícil
porque, precisamente nesse ponto, a solidão e o destino haviam-me tornado
duro e irascível. Não bastava esforçar-me por, em casa e na taberna, ser menos
rude e, pelo caminho, acenar amavelmente a alguém que encontrava. Aliás, já
aqui eu via o quão profundamente havia acerado a minha relação com as
pessoas, pois as minhas tentativas amigáveis eram recebidas com desconfiança
ou tomadas como escárnio. E o pior era que, há quase um ano, eu evitava a
casa daquele letrado, a única das minhas relações, e reconhecia que tinha de ir
lá bater de novo à porta e procurar algum caminho naquela forma de
convivência.
Sucede que, neste ponto, a minha própria humanidade escarnecida me auxiliou
sobremaneira. Mal pensara de novo naquela casa, logo vi em mente Elisabete,
bela como a vira diante da nuvem de Segantini, e notei de súbito quanto ela
partilhara a minha ansiedade e melancolia. E sucedeu que, pela primeira vez,
pensei seriamente em pedir a mão de uma mulher. Até então, estivera tão
convencido da minha incapacidade para o casamento, que me tinha entregue a
ela com mordente ironia. Eu era um poeta, caminheiro, bebedor e solitário!
Agora, julgava reconhecer o meu destino que, na possibilidade de um
casamento por amor, me queria lançar a ponte para o mundo dos homens. Tudo
parecia tão atraente e firme! Eu sentira e vira que Elisabete me oferecia
simpatia; e também que possuía uma natureza sensível e nobre. Relembrei
como aquando da conversa sobre San Clemente e depois, diante do Segantini,
a sua beleza se avivara. Por meu lado, a partir da arte e da natureza, eu
acumulara uma riqueza interior; ela aprenderia comigo a ver a beleza por toda a
parte adormecida, e eu envolvê-la-ia de tal forma com beleza e verdade, que o
seu rosto e a sua alma esqueceriam todas as perturbações e poderiam
desenvolver-se até ao florescer das suas virtualidades. Estranho é que eu não
tenha notado a singularidade da minha súbita transformação. Eu, solitário e
extravagante, transformara-me de um dia para o outro num enamorado pueril,
que sonha com a felicidade do casamento e a construção do seu lar.
Apressei-me a procurar a hospitaleira casa, e fui recebido com admoestações
amigáveis. Fui ali diversas vezes e, após algumas visitas, encontrei lá de novo
Elisabete. Oh, que bela estava! Mostrava-se como eu imaginara a minha amada:
estava bela e feliz. E durante uma hora,
92
93
*1. Como é bela a juventude / mas vai-se, contudo. / Quem quiser ser folgazão,
seja: / o amanhã não é certo. (N. T.).
94
e remei sem ruído pelo pálido lago nocturno. Em redor, os montes prateados
mantinham-se num silêncio solene, a lua quase cheia pendia da noite azulada, e
quase era tocada pelo cume do Schwarzenstock. Era tal o silêncio, que ouvia
rumorejar levemente a distante queda de água do Sennalpstock. Os espíritos da
terra natal e os espíritos da minha juventude tocavam-me com as suas asas
pálidas, enchiam o meu pequeno bote e acenavam-me suplicantes, de mãos
estendidas e gestos dolorosos e incompreensíveis.
Que significado tivera a minha vida, para que haviam passado por mim tantas
alegrias e dores? Por que tinha eu a sede do verdadeiro e do belo, se hoje
continuava mais sequioso ainda? Por que tinha eu, com pertinácia e em
lágrimas, sofrido o amor e a dor por aquelas admiráveis mulheres - eu que hoje,
de novo, deixava pender a cabeça, de vergonha e lágrimas, por um amor infeliz?
E por que razão tinha o imperscrutável Deus colocado no meu coração a
ardorosa ânsia de amor, se me destinara uma vida de solitário e mal amado?
A água rumorejava surda no casco e gotejava prateada dos remos, os montes
erguiam-se em redor, próximos e silentes, sobre a névoa das gargantas
espraiava-se a luz fresca do luar. E os espíritos da minha juventude erguiam-se
mudos em meu redor, e olhavam-me silenciosos e inquiridores, com um olhar
profundo. Parecia-me que entre eles eu via a bela Elisabete, e que ela me teria
amado e sido minha se eu tivesse chegado a tempo.
Parecia-me também que o melhor seria afundar-me, em silêncio, no lago pálido,
e ninguém perguntaria por mim. Contudo, remei mais depressa, quando notei
que o reles barquito metia água. De súbito, senti frio, e apressei-me a entrar em
casa e meter-me na cama. Jazi ali, fatigado e desperto, a meditar na minha vida,
procurando descobrir o que faltava e o que seria necessário para viver mais feliz
e com maior autenticidade e aproximar-me mais do coração da existência.
Eu bem sabia que o centro de toda a bondade e alegria era o amor, e que eu
teria de começar, apesar da minha recente dor por Elisabete, a amar
verdadeiramente os homens. Mas como? E a quem?
E eis que recordei o meu pai e, pela primeira vez, notei que nunca o amara de
forma correcta. Em rapaz, havia-lhe amargurado a vida, depois partira, e
deixara-o só, mesmo após a morte da mãe, irritara-me muitas vezes
95
por sua causa e, por fim, quase o esquecera. E veio-me a imagem de que ele
jazia no leito de morte e eu, só e órfão a seu lado, via evolar-se a sua alma que
permanecera estranha para mim e por cujo amor eu nunca lutara.
Assim, comecei a aprender aquela dura e doce arte, não numa bem amada, bela
e admirada, mas num velho e rabugento bêbedo. Não mais lhe retorqui com
respostas rudes, ocupei-me dele sempre que possível, li-lhe histórias de
almanaques, e falei-lhe dos vinhos que se produziam e se bebiam em França e
na Itália. O pouco trabalho que fazia, não podia tirar-lho, pois sem ele ficaria
desamparado. Também não consegui habituá-lo a beber o seu quartilho do
serão em casa, comigo, e não na taberna. Tentámo-lo durante algumas noites.
Trouxe vinho e cigarros e esforcei-me por matar o tempo ao velho homem. Na
quarta ou quinta noite ficou silencioso e casmurro e, por fim, quando o
interroguei, explicou, gemendo, o que lhe pesava:
- Acho que nunca mais queres deixar o teu pai ir à taberna.
- Nada disso - respondi - tu és o pai e eu o garoto, e como tudo deverá
continuar, tu é que decides.
Olhou-me de olhos reluzentes, depois, contente, pegou no seu gorro, e
marchámos lado a lado para a taberna.
Estava bem de se ver que o meu pai seria contra uma longa permanência em
conjunto, apesar de nada dizer acerca disso. Também eu me sentia impelido a
aguardar algures, lá longe, o apaziguamento do meu estado de espírito cindido.
- Que te parece se um destes dias eu partisse de novo? - perguntei ao velho.
Ele coçou a cabeça, encolheu os ombros minguados e sorriu, matreiro,
aguardando:
- Como queiras!
Antes de partir, procurei alguns vizinhos e as gentes do mosteiro e pedi-lhes que
o tivessem debaixo de olho. Também guardei ainda um belo dia para escalar o
Sennalpstock. Do seu cimo arredondado e largo, olhei as montanhas e os vales
verdejantes, as águas luzentes e as distantes cidades na névoa. Tudo isto me
preenchera, quando rapaz, com uma poderosa atracção, eu partira para
conquistar o belo e vasto mundo, e agora, ali jazia ele de novo ante mim, tão
belo e estranho como então,
96
e eu estava pronto a partir outra vez para lá e, uma vez mais, buscar a terra da
felicidade.
Por causa dos meus estudos, há muito que havia decidido ir passar um período
a Assis. Primeiro, viajei até Basileia, tratei das coisas indispensáveis, emalei os
meus poucos haveres e despachei-os antecipadamente para Perúsia. Porém,
viajei apenas até Florença, e peregrinei a partir dali, lenta e calmamente, em
direcção ao Sul. Lá em baixo, para ter um contacto amigável com o povo, não
necessitamos de conhecer qualquer espécie de artes; a vida desta gente está
permanentemente à superfície, e é tão simples, livre e ingénua que, de cidade
em cidade, firmamos cândida amizade com imensas pessoas. Eu sentia-me de
novo acolhido e em casa, e decidi que, mesmo mais tarde em Basileia,
procuraria o calor humano não na alta sociedade, mas entre o povo simples.
Em Perúsia e Assis, o meu trabalho histórico recobrou interesse e vitalidade. E
pois que o dia-a-dia era ali um prazer, em breve o meu ser enfermo começou a
sanar e a lançar novas pontes para a vida. A minha hospedeira em Assis, uma
vendedeira de hortaliças, conversadora e piedosa, em virtude de algumas
conversas acerca do santo, travou uma profunda amizade comigo e fez-me fama
de sólido católico. Conquanto imerecida, esta honra trouxe-me, todavia, a
vantagem de poder relacionar-me com maior intimidade com as pessoas, pois
estava livre da suspeita de paganismo que, de uso, pende sobre os estranhos. A
mulher chamava-se Annunziata Nardini, tinha 34 anos e era viúva, de
corpulência colossal e muito boas maneiras. Aos domingos, num vestido
alegremente florido, parecia a personificação do dia de festa; por cima, para
além dos brincos de argola, usava também um cordão de ouro ao peito, do qual
pendiam, tilintando e fulgindo, uma série de medalhas de ouro. Nessa altura,
trazia também um breviário guarnecido a prata, cuja utilização lhe seria difícil, e
um belo terço preto e branco de cadeias de prata, que ela sabia manejar tanto
mais expeditamente. Quando depois, entre duas visitas à igreja, se sentava na
loggetta e apontava às vizinhas espantadas os pecados das amigas ausentes,
poisava sobre o seu rosto redondo e piedoso o comovente reflexo de uma alma
reconciliada com Deus.
Como o meu nome era impossível de pronunciar para aquela gente, chamavam-
me simplesmente Signor Pietro.
97
98
99
100
Doeu-me não poder ficar com Elisabete. Todavia, a minha vida, a minha
liberdade, trabalho e modo de pensar ficaram intactos e, de longe, eu podia
continuar a amá-la como antes, quanto quisesse. Estes pensamentos, e mais
ainda a ingénua felicidade da minha existência durante os meses na Úmbria,
haviam sido sobremaneira salutares para mim. Eu tivera desde sempre um sexto
sentido para todo o ridículo e burlesco, e estragara com isso a minha própria
alegria por causa da ironia. Agora, aos poucos, abriam-se-me os olhos para o
humor da vida, e parecia-me cada vez mais possível e fácil reconciliar-me com a
minha estrela e saborear ainda um ou outro petisco do festim da vida.
Certamente que quando regressamos a casa vindos de Itália, é sempre assim.
Troçamos de princípios e preconceitos, sorrimos pensativamente, enfiamos as
mãos nos bolsos, e julgamo-nos verdadeiros mestres da vida. Durante algum
tempo, nadámos no calor agradável da vida do povo do Sul; julgamos, então,
que em casa, isso terá necessariamente de continuar assim. Também a mim me
sucedeu isso após cada regresso de Itália e, desta vez, mais ainda. Quando
cheguei a Basileia e deparei ali com a antiga vida rígida, não rejuvenescida e
imutável, fui descendo das alturas da minha alegria, degrau a degrau, até ao
fundo, deprimido e contrariado. Todavia, algo do que eu conquistara continuou a
germinar e, desde então, o meu bote não mais navegou por águas turbulentas
sem ao menos deixar adejar ao vento uma pequena flâmula, atrevida e
confiantemente.
Também no restante as minhas concepções se haviam alterado lentamente.
Sem grande pena, sentia-me deixar os anos da juventude e amadurecer rumo
aos tempos em que a pessoa aprende a ver a própria vida como um curto
caminho, e a si mesmo como um caminheiro, cujos trilhos e desaparição final
não suscita grande emoção nem preocupação no mundo. Mantemos em mira
um objectivo para a vida e um sonho acalentado, mas nem sempre nos julgamos
imprescindíveis e, pelo caminho, não raro nos damos ao lazer para, sem peso
na consciência, deixarmos de fazer a caminhada de um dia, nos estendermos
sobre a erva, assobiarmos um verso e alegrarmo-nos do presente amado sem
pensamentos reservados. Até agora, e sem que alguma vez houvesse orado a
Zaratustra, eu tinha sido de facto uma pessoa arrogante e não fora parco nem
em auto-adulação nem em desprezo para com gente mais humilde.
101
Agora, e aos poucos, via cada vez melhor que não há fronteiras rígidas, e que
no círculo dos pequenos, dos oprimidos e dos pobres, a existência não só é
igualmente variada, como geralmente mais quente, mais verdadeira e exemplar
que a dos favorecidos pela sorte e os grandes.
Eu regressei a Basileia precisamente a tempo de participar na primeira recepção
em casa de Elisabete, entretanto casada. Eu estava bem disposto, ainda fresco
e moreno da viagem, e trazia inúmeras pequenas recordações caricatas. A bela
mulher tinha gosto em me distinguir com uma delicada confiança, e todo o serão
me alegrei com a minha sorte que, em tempos, me poupou a um pedido de
casamento tardio. É que apesar das experiências feitas em Itália, eu tinha ainda
uma leve desconfiança ante as mulheres, como se elas tivessem um secreto
prazer nos tormentos sem esperança dos homens por elas enamorados. Uma
pequena história da vida escolar infantil que em tempos ouvi da boca de um
rapaz de cinco anos, servia-me de ilustração viva de uma situação igualmente
humilhante. Na escola infantil em que andava, reinava um uso estranho e
simbólico. Se um rapaz tivesse cometido alguma grande falta e, por isso,
devessem chegar-lhe a roupa ao pêlo, ordenava-se a seis meninas que
segurassem o transgressor sobre o banco, na desagradável posição necessária
à aplicação daquele correctivo. Como o facto de poder segurar era considerado
um grande prazer e elevada honra, eram sempre as seis raparigas mais bem
comportadas que participavam no cruel prazer daquele temporário prodígio de
virtude. Esta engraçada história infantil deu-me que pensar, e chegou mesmo a
introduzir-se algumas vezes nos meus sonhos, de forma que, ao menos por
experiência onírica, sei como uma pessoa se pode sentir desditosa em tal
situação.
102
7.
Ante os meus escritos, como sempre acontecera, eu não sentia respeito algum.
Eu podia viver do meu trabalho, pôr de lado pequenas economias e, de vez em
quando, enviar até algum dinheiro a meu pai. Contente, ele levava-o para a
taberna, cantava ali os meus louvores em todos os tons e pensava mesmo em
prestar-me algum serviço como paga. Eu dissera-lhe, certa vez, que ganhava o
meu pão principalmente com artigos em jornais. Ele considerava-me um
redactor ou correspondente, como os têm os jornais dos distritos rurais, e por
três vezes ditou cartas paternais dirigidas a mim, nas quais me comunicava
acontecimentos que lhe pareciam importantes e que julgava me dariam assunto
e trariam dinheiro. Uma vez foi um incêndio num palheiro, depois a queda de
dois turistas nos montes, e o terceiro a eleição de um regedor. Estas narrativas
estavam já redigidas num estilo jornalístico, de sabor grotesco, e trouxeram-me
verdadeira alegria, porque eram sinal de uma ligação de amizade entre ele e eu
e, desde há anos, as primeiras cartas recebidas da terra. Agradaram-me
também como involuntário escárnio dos meus escritos; porque, mês após mês,
eu discutia certos livros cuja publicação ficava muito aquém daqueles
acontecimentos rurais, tanto em importância como em consequências.
Surgiram precisamente naquela altura duas obras de autores que eu conhecera
em Zurique como jovens líricos extravagantes. Um deles vivia agora em Berlim e
sabia retratar muita podridão que ia pelos cafés e bordéis da grande cidade. O
outro tinha construído para si, nas proximidades de Munique, um sumptuoso
eremitério, e vacilava, abjecto e desesperado, entre introspecções neurasténicas
e excitações espiritistas.
103
Eu tinha de fazer a crítica aos livros, e naturalmente que pus ambos a ridículo,
sem segundas intenções. Do neurasténico, chegou-me uma carta desdenhosa,
num estilo verdadeiramente principesco. Pelo contrário, o berlinense fez
escândalo num jornal, achou-se incompreendido na sua verdadeira intenção,
invocou Zola, e a partir da minha crítica incompreensiva, invectivou-me não
apenas a mim, mas ao espírito presumido e prosaico dos suíços. O homem tinha
tido então, em Zurique, talvez o único período de algum modo saudável e digno
da sua vida literária. E sendo certo que eu não era um grande patriota, aquilo
pareceu-me berlinense em demasia, e respondi ao descontente com uma longa
epístola na qual, no meu desdém, não deixei de dizer certas verdades aos
inchados modernistas das grandes cidades.
Esta querela fez-me bem e forçou-me a debruçar de novo sobre a minha
concepção da vida cultural moderna. O esforço foi penoso e demorado, e
apresentava poucos resultados compensadores. O meu livro nada perde por não
falar dele.
Ao mesmo tempo, contudo, estas meditações forçaram-me a pensar
profundamente sobre mim próprio e o trabalho da minha vida longamente
planeado.
Como é sabido, eu tinha o desejo de, num poema de vulto, mostrar aos homens
actuais e tornar-lhes querida a generosa e silenciosa vida da natureza. Queria
ensiná-los a escutar o pulsar da terra, a participar na vida do todo e, na pressão
da sua vida mesquinha, não esquecer que não somos deuses criados por nós
mesmos, mas filhos e parte integrante da terra e do todo cósmico. Queria
recordar que, tal como os cantos dos poetas e os sonhos das nossas noites,
também as correntes, os mares, as nuvens que correm e as tempestades, são
símbolos e depositários daquela aspiração que estende as suas asas entre o
céu e a terra, cujo objectivo é a indubitável certeza do direito de cidadania e da
impericibilidade de tudo quanto vive. O núcleo mais íntimo de cada ser está
ciente destes direitos, é filho de Deus e repousa sem temor no seio da
eternidade. Pelo contrário, tudo quanto em nós trazemos de mau, doente e
corrupto, contradi-lo e crê na morte.
Mas eu queria também ensinar os homens a, através do amor fraterno à
natureza, encontrar a fonte da alegria e as torrentes da vida; queria pregar a arte
do contemplar, do caminhar, do fruir, pregar o gozo pelo presente.
104
106
Primeiro, procurei a falha em mim próprio, mas em breve não podia já ocultar-
me que estava desiludido e que o meu meio envolvente me não oferecia as
pessoas que eu procurava. Não precisava de pessoas interessantes, mas de
tipos. E isto, nem o grupo dos académicos nem o círculo das gentes de
sociedade me ofereciam. Com saudade, pensei em Itália, e com saudade
recordei os poucos amigos e companheiros nas minhas caminhadas, os
artífices. Eu caminhara muito na sua companhia, e encontrara entre eles muitos
moços excelentes.
Seria inútil procurar a pensão da minha terra e algumas espeluncas. A multidão
dos errantes não me servia. E assim, fiquei uma vez mais indeciso por algum
tempo, chegava-me às crianças e estudava muito pelas tabernas, onde, claro
está, nada havia que buscar. Vieram algumas semanas tristes em que perdia a
confiança em mim, achava ridículas e descomedidas as minhas esperanças e
desejos, andava muito ao ar livre e queimava noites no vinho.
Sobre as minhas mesas, haviam-se acumulado nessa altura algumas pilhas de
livros que gostaria de conservar, em lugar de os deixar no antiquário; no entanto,
não havia já lugar nos meus armários. Como solução, dirigi-me a uma pequena
carpintaria e pedi ao mestre que fosse a minha casa para fazer as medições
para uma estante.
Ele veio, um homem pequeno, calmo, de gestos compassados, mediu a sala,
ajoelhou no chão, estendeu o metro até ao tecto; deitava um pouco de cheiro a
cola, e anotava, número após número, com algarismos garrafais, no seu bloco
de notas. Sucedeu por um acaso que, ao mover-se, embateu num cadeirão
cheio de livros. Caíram alguns volumes e ele curvou-se para os apanhar. Entre
os livros, havia um pequeno léxico da gíria dos artífices. O pequeno volume
cartonado pode encontrar-se em quase todos os albergues para artífices, um
livrinho bem feito e delicioso.
O carpinteiro, quando viu o volumezinho que bem conhecia, virou-se para mim
com olhar curioso, meio divertido, meio desconfiado.
- O que há? - perguntei.
- Com a sua licença, vejo ali um livrinho que também eu conheço. Estudou
aquilo realmente?
- O que eu estudei foi a linguagem dos bandidos, pelas estradas - respondi. -
Mas, uma vez por outra, gosta-se de ir procurar uma expressão.
107
108
109
A mãe ficou junto dela, e nós caminhámos lentamente até fora da cidade. Por
detrás de Santa Margarida, sentámo-nos num banco; as crianças corriam em
busca de pedras, flores e escaravelhos, e nós, homens, olhávamos os prados
estivais, o cemitério de Binning e a bela cadeia azulada dos Jura. O carpinteiro
estava fatigado, deprimido e silencioso, e parecia preocupado.
- Que há, mestre? - perguntei, quando as crianças estavam a distância
suficiente.
Ele olhou-me face a face, vago e triste.
- Não vê? - começou ele. - A Agi quer-me morrer. Já sei isso há muito, e admirei-
me de ter chegado a esta idade, que ela sempre trouxe a morte nos olhos. Mas
agora temos de a aceitar.
Comecei a consolá-lo, mas em breve acabei por desistir.
- Bem vê - riu ele tristemente - nem você mesmo acredita que a criança se
venha a salvar. Não sou nenhum beato, sabe, e só vou à igreja quando o rei faz
anos, mas sinto bem que agora, o Senhor quer ter uma conversinha comigo. Ela
não passa de uma criança, e nunca foi saudável, mas Deus sabe quanto eu lhe
queria mais do que aos outros dois juntos.
Com gorgeios e mil perguntas, as crianças chegaram a correr, rodearam-me,
pediram que lhes dissesse os nomes das flores e das ervas e, por fim, quiseram
que lhes contasse histórias. Expliquei-lhes então que as flores, as árvores e
arbustos, tal como as crianças, também têm cada um a sua alma e o seu anjo. O
pai também escutava e, aqui e além, dava em voz baixa a sua anuência. Vimos
os montes tornarem-se mais azuis, escutámos as Avé-Marias da tarde e
regressámos a casa. Sobre os prados, estendia-se uma neblina avermelhada,
as longínquas torres das catedrais erguiam-se, pequenas e delgadas, na
atmosfera quente, o azul estival do céu passava a uma cor esverdeada e
dourada, as árvores lançavam longas sombras. Os pequenos estavam fatigados
e mantinham-se silenciosos. Pensavam nos anjos das papoilas, dos cravos e
das campainhas, enquanto que nós, os mais velhos, pensávamos na pequena
Agi, cuja alma estava prestes a tomar asas e a deixar-nos a nós, pequeno
rebanho temeroso.
Nas duas semanas seguintes, tudo correu bem. A menina parecia curar-se,
conseguia deixar a cama por horas e nas suas almofadas frias parecia mais
linda e bem disposta que nunca. Seguiram-se algumas noites febris, e vimos
então, sem tornar a falar nisso,
110
que a criança só por mais algumas semanas ou dias continuaria a ser nosso
hóspede. Apenas uma vez o seu pai voltou a tocar no assunto. Foi na oficina. Vi-
o remexer na sua reserva de tábuas, e soube desde logo que ele tinha intenção
de procurar algumas para um caixão de criança.
- Tem de se fazer rápido - disse ele - e prefiro fazê-lo sozinho, depois de fechar.
Sentei-me sobre um dos bancos de trabalho, enquanto ele trabalhava no outro.
Depois de as tábuas estarem bem aplainadas, mostrou-mas com uma espécie
de orgulho. Era uma bela madeira de abeto, sã e sem defeito.
- Também não quero pregar-lhe nenhum prego, mas emarchetar bem as peças,
para ficar uma boa peça duradoira. Mas por hoje basta, vamos lá para cima ter
com a minha mulher.
Os dias corriam, quentes, fabulosos dias de Verão, e todos os dias eu passava
uma ou duas horas sentado junto da pequena Agi, falava-lhe dos belos prados e
florestas, segurava-lhe a mão infantil, leve e delgada, na minha mão larga, e
aspirei com toda a alma o querido e leve encanto que, até ao último dia, se
manteve em torno dela.
Depois permanecemos de pé, receosos e tristes, observando como o pequeno e
frágil corpo, uma vez mais, recobrava forças para lutar contra a potente morte,
que rápida e facilmente a venceu. A mãe manteve-se silenciosa e forte; o pai
debruçava-se sobre a armação da cama e despediu-se um cento de vezes,
afagando os cabelos louros e acariciando a sua predilecta falecida.
Veio a cerimónia simples e curta do funeral, e os serões de angústia em que as
crianças choravam nas suas camas ali ao lado. Vieram os belos passeios ao
cemitério em que plantávamos flores sobre o túmulo fresco e, juntos, sem
conversar, nos sentávamos no banco nas alas frescas, a pensar na Agi, e com
outros olhos, observávamos a terra onde jazia a nossa querida, e as árvores e a
relva que sobre ela cresciam, e os pássaros cujo canto alegre e descontraído
soava pelo cemitério.
A par disto, decorria o árduo dia de trabalho, as crianças cantavam de novo,
bulhavam entre si, riam e queriam escutar histórias, e todos nos habituámos,
sem o notar, a não mais ver a nossa Agi e a ter no céu um belo anjinho.
Enquanto isto, eu não mais visitara a casa do professor, e poucas vezes a casa
de Elisabeth, onde o tíbio fluir das conversas me deixava desconcertado e
opresso.
111
112
jamais o havia sentido tão afortunado e purificador como agora, em que, olhando
a nuvem, calmamente e grato, eu via todo o bem na minha vida, e em lugar dos
antigos tumultos e paixões, sentia apenas a velha ânsia dos tempos de criança -
também ela mais amadurecida e calma.
Desde sempre me habituara a acompanhar com uma melodia ou canção, o
calmo ritmo do bater dos remos. Também agora eu cantava baixinho de mim
para mim, e só ao cantar notei que eram versos. Ficaram-me na memória, e em
casa escrevi-os, como recordação do belo serão do lago em Zurique.
Em Basileia, encontrei uma carta de Assis para mim. Era da senhora Annunziata
Nardini, e vinha repleta de boas notícias. Ela sempre acabara por encontrar um
segundo marido! Aliás, melhor será eu apresentá-la inalterada.
Permita que a sua fiel amiga tome a liberdade de lhe escrever uma carta.
Aprouve a Deus oferecer-me uma grande felicidade, e desejo convidá-lo para o
dia doze de Outubro para o meu casamento.
113
Ele chama-se Menotti e tem pouco dinheiro, mas ama-me muito e já antes
comerciou frutas. É bonito, mas não tão alto como o senhor Peter. Ele irá vender
fruta na Piazza, e eu fico na loja. A linda Marietta do vizinho casará também,
mas com um pedreiro estrangeiro.
Todos os dias pensei em si e falei de si a muitas pessoas. Tenho-lhe grande
afecto e também ao santo ao qual acendi quatro velas em sua memória.
Também Menotti terá muito gosto em que venha ao casamento. Se ele for
antipático para consigo, proibir-lho-ei. Infelizmente, confirmou-se que o pequeno
Mateo Spinelli era, de facto, como eu sempre disse, um malvado. Ele roubou-me
várias vezes limões. Agora, levaram-no porque roubou doze liras ao seu pai, o
padeiro, e porque envenenou o cão do mendigo Giangiacomo.
Desejo para si a bênção de Deus e do santo. Tenho grandes saudades suas.
A vossa serva e fiel amiga
Annunziata Nardini.
P.S.
A nossa colheita foi razoável. As uvas estiveram muito más e pêras também não
as houve suficientes; os limões foram muito abundantes, mas tivemos de vendê-
los muito baratos. Em Spello, sucedeu uma desgraça terrível. Um homem novo
matou o irmão com um ancinho, não se sabe porquê; na certa teria inveja dele,
apesar de ser seu irmão.
114
115
conforme me contou, estava farto daquela permanente miséria, e alegrei-me de
o ver aberto às minhas propostas. A mulher queria ficar, mas o aleijado pediu-lhe
que fosse, porque bem podia ficar só. Bastava ter a seu lado um livro e um copo
de água, e poderíamos deixá-lo fechado em casa, inteiramente descansados.
E nós, que nos considerávamos todos gente decente e de bom coração,
deixámo-lo fechado em casa e fomos passear! Andávamos contentes, fizemos
as nossas brincadeiras com as crianças, gozámos do belo sol outonal dourado,
e nenhum de nós se envergonhou e a nenhum se apertou o coração por ter
deixado o paralítico sozinho em casa! Estávamos, sim, contentes por, durante
algum tempo, nos vermos livres dele; respirámos aliviados o ar límpido e quente
do sol, dando a impressão de sermos uma família grata e íntegra, que goza do
domingo do Senhor com compreensão e gratidão.
Somente quando já havíamos entrado na pensão do Corno, em Grenzach, para
tomar um copo de vinho, e nos encontrávamos sentados à mesa, é que o pai
falou de Boppi. Queixava-se do hóspede importuno, suspirava por causa da
exiguidade e o aumento das despesas em sua casa, e terminou rindo com o
comentário:
- Aqui fora, enfim, podemos estar em paz pelo menos uma hora, sem que ele
nos mace!
Com esta frase irreflectida, eu vi de súbito o pobre paralítico ante mim,
implorante e sofrendo, aquele a quem não queríamos, de quem intentávamos
livrar-nos e que, agora, abandonado e encerrado por nós, só e triste, ficara
sentado no quarto que escurecia. Recordei que em breve cairia o lusco-fusco, e
ele não seria capaz de acender a luz ou aproximar-se mais dela. E então, poria
o livro de lado, e teria de ficar na semi-escuridão, só, sem uma conversa ou
ocupação para o seu tempo, enquanto nós, aqui, bebíamos vinho, nos ríamos e
divertíamos. E recordo como, em Assis, eu falara aos vizinhos de São Francisco,
e como me vangloriara de que ele me havia ensinado a amar todos os homens.
Para que tinha estudado a vida do santo e aprendido de cor o seu maravilhoso
cântico do amor, procurado os seus vestígios nas colinas úmbricas, se agora um
pobre homem indefeso jazia para ali, sofrendo, quando eu sabia disso e podia
confortá-lo?
A mão de um poder invisível poisou sobre o meu coração, comprimiu-o e
encheu-o de tanta vergonha e dor, que eu vacilei e sucumbi. Sabia que, agora,
Deus queria dizer-me umas palavras.
116
- Ó poeta! - dizia ele - tu, o discípulo do úmbrio, tu, o profeta que pretende
ensinar e dar a felicidade aos homens! Ó sonhador que pretendes escutar a
minha voz nos ventos e correntes! Tu amas uma casa - continuava ele - onde as
pessoas são amáveis para contigo, onde passas horas aprazíveis! E no preciso
dia em que essa casa se tornava digna da minha entrada, tu foges e pensas em
expulsar-me! Ó santo! Ó profeta! Ó poeta!
Sentia-me como se tivesse sido colocado diante de um espelho límpido,
verdadeiro, e me visse ali como um mentiroso, um fanfarrão, como um cobarde
e perjuro. Isto dói, isto é amargo, torturante e terrível; mas aquilo que em mim se
desmoronava e sofria tormentos e se revoltava de ferido, isso merecia
desmoronar-se e ser arruinado.
Com brusquidão e pressa, despedi-me, deixei o vinho no copo e o pão partido
sobre a mesa, e regressei à cidade. Na minha excitação, sentia-me mortificado
pelo pavor insuportável de que se teria dado algum desastre. Poderia ter
deflagrado o fogo, o pobre Boppi poderia ter caído da cadeira, jazer no chão
com dores ou mesmo morto. Via-o estendido, julgava-me a seu lado obrigado a
ver a silenciosa acusação no olhar do aleijado.
Ofegante, alcancei a cidade e a casa, precipitei-me pela escada acima, e só
então me veio à ideia que estava diante da porta fechada e não possuía
nenhuma chave. Mas logo afastei o meu medo. É que, antes ainda de alcançar a
porta da cozinha, escutei lá dentro um cantar. Foi um momento estranho. Com o
coração a bater e completamente esbaforido, encontrava-me de pé sobre o
negro lance das escadas e, acalmando-me lentamente, escutava o cantar do
paralítico encerrado. Ele cantava em voz baixa, branda e um pouco dolente,
uma canção popular de amor, sobre «A florzinha branca e vermelha». Eu sabia
que há muito ele não cantara, e agora sentia-me sensibilizado por estar a
escutá-lo, no momento em que ele aproveitava aquela hora sossegada para, de
novo e à sua maneira, se alegrar.
E é realmente assim: a vida gosta de colocar o ridículo a par de acontecimentos
sérios e emoções profundas. Também eu senti ao mesmo tempo o ridículo e
humilhante da minha situação. O meu medo súbito levara-me a correr uma hora
pelos campos fora até aqui para, agora, sem chave, ficar diante da porta da
cozinha. Ou me ia embora de novo,
117
118
8.
Foi sempre destino meu receber da vida e dos meus amigos muito mais do que
podia oferecer. Com Ricardo, com Elisabete, com a senhora Nardini e com o
carpinteiro, fora assim que sucedera, e agora vivia a experiência de, na idade
madura e possuindo grande consciência de mim próprio, me tornar no discípulo
atónito e grato de um pobre paralítico. Se realmente vier alguma vez a suceder
que eu termine e entregue o meu poema há tanto iniciado, pouco haverá ali que
não tenha aprendido com Boppi. Iniciou-se um tempo bom e agradável ao qual,
durante toda a vida, poderei ir beber abundantemente. Foi-me concedido olhar,
clara e profundamente, o íntimo de uma alma humana maravilhosa, pela qual a
doença, a solidão, a pobreza e as incompreensões apenas haviam passado
como leves nuvens soltas.
Todos os pequenos fardos com que amarguramos e corrompemos a vida bela e
curta, a cólera, a impaciência, a desconfiança, a mentira... estas pústulas
dolorosas e imundas que nos desfeiam, haviam sido consumidas neste homem
em meio de dores, por um longo e profundo sofrimento. Ele não era nenhum
sábio, nem santo, mas um homem cheio de compreensão e dedicação que,
através de grandes e terríveis sofrimentos, aprendera a sentir-se fraco e
entregar-se nas mãos de Deus sem vergonha.
Certa vez, perguntei-lhe como conseguia ele conformar-se sempre com o seu
corpo dorido e sem forças.
- É muito simples - riu, afavelmente. - No fundo, é uma eterna guerra entre mim
e a doença. Agora ganho uma batalha, logo perco outra, e assim continuamos a
luta; por vezes, mantemo-nos ambos quietos,
119
120
e nos olhava com esperteza e amizade com o seu olhinho fiel e minúsculo.
Combinei com um guarda que, quando não tivesse tempo para ficar junto dele,
poderia deixar Boppi sentado na sua cadeira de rodas no jardim, de forma que
também nesses dias podia permanecer ao sol e ver os animais. Depois, ele
contava-me tudo quanto tinha visto. Impressionava-o, muito especialmente, ver
como o leão tratava cortesmente a sua consorte. Mal esta se deitava para
repousar, ele dava ao seu eterno andar de um lado para o outro uma tal
orientação, que não lhe tocava, nem a incomodava ou passava por cima dela.
Mas onde Boppi se distraía mais, era junto da lontra. Não se cansava de
observar as contorções nos exercícios de natação e ginástica daquele activo
animal, e de se deliciar com isso, porquanto ele próprio permanecia imóvel na
sua cadeira e, para cada movimento da cabeça e dos braços, tinha de fazer
grande esforço.
Estava um dos mais belos dias do Outono quando contei a Boppi as minhas
duas histórias de amor. Tínhamos criado uma tão grande confiança entre nós,
que não podia já continuar a ocultar-lhe estas minhas experiências sem fortuna
nem glória. Ele escutou com amabilidade e seriedade, sem nada dizer. Mais
tarde, confessou-me o seu desejo de ver um dia Elisabete, a nuvem branca, e
pediu-me que pensasse bem nisso para o caso de alguma vez a encontrarmos
na rua.
Como tal não sucedesse e os dias começassem a tornar-se frios, fui ter com
Elisabete e pedi-lhe que desse essa alegria ao pobre corcunda. Ela era bondosa
e fez-me a vontade e, no dia aprazado, permitiu que a fosse buscar e a levasse
ao jardim zoológico, onde Boppi aguardava na cadeira de rodas. No momento
em que a bela e distinta dama, muito bem vestida, estendeu a mão ao aleijado e
se curvou um pouco sobre ele, e em que o pobre Boppi, com o rosto brilhando
de alegria, ergueu os olhos bondosos e quase ternos para ela, eu não seria
capaz de decidir qual dos dois, naquele momento, era mais belo e mais querido
ao meu coração. A dama disse algumas palavras amáveis, o corcunda não
retirava o olhar brilhante dela, e eu, ali ao lado, maravilhava-me de, por um
momento, ver ante mim, em tão bom entendimento, os dois seres que mais
amava e cujas vidas estavam separadas por um fosso profundo. Durante toda a
tarde, Boppi não falou de mais nada que não fosse Elisabete, louvava a sua
beleza, a sua elegância, a sua bondade, os seus fatos,
121
as luvas amarelas e os sapatos verdes, o seu andar e o olhar, a sua voz e o seu
belo chapéu, ao passo que a mim me doeu e pareceu estranho observar como a
minha amada dava uma esmola ao meu grande amigo.
Entretanto, Boppi lera «Henrique, o Verde» e «As Gentes de Seldwyl» e estava
tão à vontade no mundo destes livros únicos que ambos encontrávamos
grandes amigos no Pancrácio Carrancas, no Alberto Zwiehan e nos justos
fazedores de pentes. Durante algum tempo, hesitei em dar-lhe ainda alguns dos
livros de Conrad Ferdinand Meyer, mas pareceu-me que ele não apreciaria a
precisão quase latina da sua linguagem concisa, e também tive escrúpulos em
desvendar a estes olhos silenciosos o abismo da história. Em lugar disso, falei-
lhe de São Francisco e dei-lhe a ler as narrativas de Moerike. Eu estranhei a sua
confissão de que não teria podido apreciar grande parte da história da bela Lau,
se não tivesse estado tantas vezes junto ao tanque da lontra, entregando-se,
então, a inúmeras fantasias aquáticas fabulosas.
Engraçado foi como, aos poucos, acabámos por nos tratar por tu. Eu nunca lho
havia proposto, e ele também não o teria aceite; assim, sucedeu que nos
tratávamos naturalmente por tu com cada vez maior frequência; quando, certo
dia, o notámos, sentimos vontade de rir e deixámos que assim continuasse para
sempre.
Quando o Inverno, que se aproximava, tornou impossíveis as nossas saídas e
eu passava de novo tardes inteiras na sala do cunhado de Boppi, apercebi-me
então de que a minha nova amizade ainda me exigia sacrifícios. O carpinteiro
estava sempre mal humorado, irritável e parco em palavras. Com o passar do
tempo, aborreceu-o não apenas a maçadora presença do comensal inútil, como
igualmente o meu comportamento para com Boppi. Chegou a suceder eu
conversar animadamente uma tarde inteira com o paralítico, enquanto o dono da
casa, irritado, se mantinha sentado ali ao lado a ler o jornal. E também se
desentendia com a mulher, normalmente tão paciente, porque agora ela
sustentava firmemente a sua vontade, e não admitia de forma nenhuma que
Boppi fosse instalado noutro lugar. Por diversas vezes procurei transmitir-lhe
sentimentos mais conciliadores, ou propor-lhe novos empreendimentos, mas
não era possível fazer nada com ele. Começou mesmo a tornar-se mordaz, a
escarnecer da minha amizade com o aleijado e a tornar difícil a vida deste. É
certo que o doente e eu, que diariamente passava longo tempo junto dele,
122
123
124
De facto, Boppi, como observador silencioso e perspicaz, estava repleto de
imagens dos ambientes em que estivera inserido, e quando começava, sabia
contar maravilhosamente. Na sua vida, o aleijado não conhecera mais de três
dúzias de pessoas, nunca estivera imerso nas grandes correntes e, todavia,
conhecia a vida muito melhor que eu, porque estava acostumado a ver até
mesmo o mais minucioso, e em cada pessoa encontrar uma fonte de
experiências, alegrias e conhecimentos.
O nosso maior divertimento, agora como antes, era o prazer no mundo animal.
Com os animais do jardim zoológico que não podíamos já visitar, inventávamos
agora histórias e fábulas de todo o género. Na sua maioria, não as contávamos,
mas representávamo-las de improviso em diálogos. Por exemplo, uma
declaração de amor entre dois papagaios, desavenças familiares entre os
bisontes, conversas de serão entre javalis.
- Como tem passado, senhora Marta?
- Obrigada, senhora Raposa, vai-se vivendo. Bem sabe, quando fui capturada
perdi o meu querido marido. Chamava-se Cauda de Pincel, como já tive a honra
de lhe contar. Era uma pérola, asseguro-lhe, uma...
- Ah, deixe lá essas velhas histórias, senhora vizinha, já me contou isso da
pérola por diversas vezes, se me não engano. Santo Deus, afinal vivemos uma
vez apenas e não podemos estragar o pouco de prazer que nos cabe.
- Por favor, senhora Raposa, se tivesse conhecido o meu marido, compreender-
me-ia melhor.
- Por certo, por certo. Então, ele chamava-se Cauda de Pincel, não é? É um belo
nome, mesmo para afagar! Mas o que lhe queria dizer... notou, decerto como a
molesta praga de pardais tem aumentado? Eu tenho um plano.
- No tocante aos pardais?
- No tocante aos pardais. Sabe, engendrei-o assim: colocamos um pouco de pão
diante da rede, deitamo-nos sossegadas, e esperamos que eles apareçam.
Seria o diabo, se não conseguíssemos apanhar umas bestas daquelas. Que lhe
parece?
- Formidável, senhora vizinha.
- Tenha então a bondade de colocar aqui um pouco de pão... assim, óptimo! Mas
talvez empurrá-lo um pouco mais para a direita, que já serve às duas. Na
verdade, infelizmente, estou sem qualquer provisão.
125
126
mostrava-se mais bem disposto que nunca, não se queixava, e nem sequer me
impediu de fumar; depois, de noite, jazia para ali, e sofria e tossia, gemendo
baixinho. Por puro acaso, certo dia em que fiquei a escrever pela noite fora na
sala ao lado, e ele me julgava na cama há muito, ouvi-o gemer.
O pobre ficou muito assustado e contristado quando, de súbito, com o meu
candeeiro, entrei no seu quarto de dormir. Pousei a luz ao lado, sentei-me na
sua cama e encetei um interrogatório. Ele procurou esquivar-se durante muito
tempo mas, por fim, lá confessou.
- Não é assim tão grave - disse timidamente. - Só em alguns movimentos é que
vem aquela sensação de aperto no coração e, por vezes, também ao respirar.
Desculpou-se logo como se o facto de adoecer fosse um delito!
Na manhã seguinte, fui ter com o médico. Era um gélido dia, bonito e límpido;
pelo caminho, a minha opressão e preocupação desanuviaram-se, recordei
mesmo o Natal e pensava em como poderia preparar uma alegria a Boppi. O
médico ainda estava em casa, e em face das minhas instantes súplicas,
acompanhou-me. Fomos no seu cómodo automóvel, subimos a escada,
entrámos no quarto de Boppi, e começou um tactear, um martelar, um escutar, e
quando o médico se tornou um pouco mais sério e a sua voz um pouco mais
bondosa, a minha alegria desvaneceu-se.
Artrite, fraqueza de coração, um caso grave... escutei e registei tudo, e fiquei
espantado comigo mesmo por nem sequer me rebelar quando o médico ordenou
o internamento no hospital.
À tarde, veio a ambulância e, depois do meu regresso do hospital, senti-me
tremendamente desconfortável em casa, com o cão-de-água a meter-se-me
debaixo dos pés, a grande cadeira do doente posta para o canto e o quarto ao
lado vazio. É assim o amor. Traz consigo a dor e eu sofri muito nos tempos que
se seguiram. Mas tem tão pouca importância se sofremos dores ou não!
Conquanto haja uma forte convivência e se sinta o estreito e vital laço que liga a
nós tudo o que é vivo, e o amor não arrefeça! Eu daria todos os dias alegres que
jamais vivi, e todos os meus amores, e ainda todos os planos poéticos se, em
troca, pudesse olhar de novo o interior do Santo dos Santos como naquele
tempo. Dói amargamente aos olhos e ao coração, e o doce orgulho e a vaidade
recebem os seus duros golpes,
127
mas, em seguida, fica-se tão calmo, tão humilde, muito mais maduro e, no
fundo, mais vivificado!
Já com a pequena Agi, morrera uma parte do meu velho ser. Agora, eu via sofrer
o meu corcunda a quem havia dedicado todo o meu amor e com quem tinha
partilhado toda a minha vida, e lentamente, muito lentamente, via-o morrer;
todos os dias sofria com ele e tive o meu quinhão em todos os horrores, em toda
a santidade da morte. Eu era ainda um novato na ars amandi, e tinha já de
iniciar-me com um capítulo sério da ars moriendi. Sobre este tempo, não
silenciarei como silenciei sobre Paris. Dele, quero falar bem alto, como uma
mulher do seu noivado e um velho dos seus tempos de rapaz.
Eu via morrer uma pessoa cuja vida fora apenas dor e amor. Ouvia-o brincar
como uma criança, enquanto sentia a morte trabalhar em si. Eu via como, entre
fortes dores, o seu olhar me buscava, não para mendigar junto de mim, mas
para me reerguer e mostrar-me que esses espasmos e sofrimentos tinham
deixado intocado o que havia de melhor no seu íntimo. Então, os seus olhos
ficavam enormes, e já se não via o seu rosto emurchecido, mas apenas o brilho
dos seus grandes olhos.
Que posso fazer por ti, Boppi?
Conta-me alguma coisa. Talvez sobre o tapir. Falava-lhe do tapir, ele cerrava os
olhos, e eu tinha de fazer esforço para falar como de costume, pois as lágrimas
estavam continuamente prestes a saltar. E quando julgava que ele me não ouvia
já ou dormia, calava-me. Ele reabria então os olhos.
E depois?
Eu continuava a falar do tapir, do cão-de-água, do meu pai, do maldoso pequeno
Mateo Spinelli, de Elisabete.
- Sim, ela casou com um rapaz tolo. É assim a vida, Peter!
Frequentemente, ele começava de súbito a falar da morte.
- Não é fácil, Peter. Por mais duro que seja o trabalho, não é tão difícil
como morrer. Mas sempre o passamos.
Ou então:
- Quando os tormentos passam, já consigo rir. Para mim, vale a pena
morrer, livro-me de uma corcunda, de um pé curto e de uma anca paralisada.
Quanto a ti, vai ser pena, com esses teus ombros largos e boas pernas
saudáveis.
128
E certa vez, nos últimos dias, ele acordou de um curto sono e disse bem alto:
- Não há nenhum céu como o de que o pároco fala. O céu é muito
mais belo. Muito mais belo.
A mulher do carpinteiro vinha frequentes vezes e mostrava-se inteligentemente
participativa e solícita. O carpinteiro, com grande pena minha, não apareceu
nunca.
- Que te parece - perguntou Boppi certa vez - no céu também haverá um tapir?
- Oh, sim - disse eu, acenando afirmativamente. - Há lá toda a espécie de
animais, até a camurça.
Veio o Natal, e fizemos uma pequena celebração junto à cama dele. Veio uma
grande geada, voltou a degelar, e nova neve caiu sobre o gelo, mas eu de nada
me apercebi. Ouvi dizer que Elisabete havia tido um rapaz, e esqueci-o de novo.
Chegou uma carta tola da senhora Nardini; li-a de fugida e pu-la de lado. Os
meus trabalhos, fazia-os a correr, com a permanente consciência de estar a
roubar cada hora a mim próprio e ao doente. Depois, corria assediado e
impaciente até ao hospital, onde havia um silêncio alegre, e sentava-me metade
dos dias junto à cama de Boppi, envolto numa profunda paz maravilhosa.
Pouco antes do fim, teve ainda alguns dias de melhoras. Era notável como o
tempo acabado de decorrer parecia desvanecer-se na sua memória, e como
vivia nos seus anos de juventude. Durante dois dias, não parou de falar da mãe.
Não podia falar durante muito tempo, mas via-se que até nas pausas, que
podiam durar horas, ele pensava nela.
- Contei-te muito pouco acerca dela - lamentava-se - tu não podes
esquecer nada do que lhe diz respeito, senão, em breve deixará de haver
alguém que saiba alguma coisa dela e lhe seja grato. Seria bom, Peter, se
toda a gente tivesse uma mãe assim. Ela não me pôs num hospício, quando
deixei de poder trabalhar.
Ele jazia ali, respirava com dificuldade. Passou uma hora, e recomeçou:
- Era a mim que ela queria mais entre todos os filhos e manteve-me
junto a si até morrer. Os meus irmãos partiram para longe, a minha irmã
casou com o carpinteiro, mas eu permaneci lá em casa, e embora fosse
muito pobre, nunca mo fez sentir. Não podes esquecer a minha mãe, Peter.
129
Ela era muito pequena, talvez ainda mais pequena que eu. Quando me dava a
mão, era como se um passarito poisasse sobre ela. Basta um caixão de criança,
disse o carpinteiro quando ela morreu.
Também para ele teria chegado um caixão de criança. Estava tão sumido e
pequeno na sua cama limpa do hospital, e agora, as mãos dele pareciam mãos
doentes de mulher, longas e estreitas, brancas e um pouco disformes. Quando
deixou de sonhar com a mãe, veio a minha vez. Falava de mim como se eu não
estivesse sentado ali ao lado.
É um azarado, é certo, mas não lhe fez nenhum mal. A mãe morreu-lhe
demasiado cedo.
- Ainda me reconheces, Boppi? - perguntei.
- Claro, senhor Camenzind - disse ele brincando, e riu baixinho.
- Se ao menos pudesse cantar - comentou logo de seguida.
No último dia, perguntou ainda:
- Olha, fica-te muito caro aqui o hospital? Podia tornar-se demasiado
dispendioso.
No entanto, não esperou resposta. Um delicado rubor subiu-lhe ao rosto lívido,
cerrou os olhos e, durante algum tempo, parecia uma pessoa extremamente
feliz.
- Está a chegar o fim - disse a irmã.
Mas ele abriu de novo os olhos, olhou-me com um ar travesso e moveu as
sobrancelhas, como se quisesse acenar-me. Ergui-me, coloquei a mão sob o
seu ombro esquerdo e, com cuidado, levantei-o um pouco, o que lhe fazia
sempre bem. Assim deitado sobre a minha mão, contorceu uma vez mais os
lábios numa breve dor e, depois, voltou a cabeça um pouco e estremeceu como
se tivesse frio de repente. Foi a libertação.
- Estás bem, Boppi? - perguntei ainda. Mas ele estava já livre dos
seus sofrimentos e arrefecia na minha mão. Foi no dia sete de Janeiro,
uma hora depois do meio-dia. Pela tardinha, arranjámos tudo, e o pequeno
corpo disforme jazia pacificamente e limpo, sem outras deformações, até que
chegou o momento de o levar e enterrar. Durante estes dois
dias, admirei-me continuamente de nem estar demasiado triste nem indeciso, e
nem sequer ter necessidade de chorar. Eu experimentara a separação e a
despedida tão profundamente durante a doença que, agora,
pouco restava, e o prato oscilante da minha dor, aos poucos, aliviado,
voltou a subir.
130
131
132
Todos os dias antes do almoço ajudava o meu pai a ir até à porta, e ficava a
observar como ele estendia os dedos tisnados e nodosos ao calor benfazejo do
sol. Mas após algum tempo, ele punha-se a tossir e a queixar do frio. Era um
dos seus truques inocentes para me exigir um copo de aguardente; porque nem
a tosse nem o frio eram para tomar a sério. Então, ele recebia um copito de
Genciana ou um pouco de Absinto, deixava de tossir numa gradação artificiosa
e, às ocultas, alegrava-se de me ter enganado. Após o almoço, eu deixava-o a
sós, punha as polainas e caminhava umas horas pelos montes acima, até onde
calhava, e fazia o caminho de retorno, sentado sobre uma mochila que levava, à
maneira de desporto, a escorregar pelas encostas de neve abaixo.
Quando chegou a época em que pretendera viajar para Assis, ainda havia neve
com alguns metros de profundidade. Só em Abril começou a Primavera a
manifestar-se, e a nossa aldeia foi avassalada por um degelo maligno como há
anos não o havia. Ouvia-se o foehn uivar dia e noite, o rugir de longínquas
avalanchas, e o rugir ameaçador das enxurradas que lançavam sobre os nossos
pobres e estreitos terrenos e pomares, grandes blocos de rocha e árvores
partidas. A febre do foehn não me deixava dormir, noite após noite, escutava
impressionado e receoso, o gemer da tempestade, o ribombar dos aludes e o
lago furioso bramir contra as margens. Neste tempo febril das terríficas batalhas
primaveris, fui de novo tão poderosamente avassalado pela doença do amor já
superado, que me levantei durante a noite, me debrucei no postigo da porta e,
entre dores amargas, gritei à tempestade palavras de amor por Elisabete. Desde
a noite quente em Zurique, em que eu correra para as colinas além do casario,
fugindo por amor da pintora romanda, nunca mais a paixão tomara posse de
mim tão tremenda e irresistivelmente. Era como se a linda mulher estivesse
muito perto, diante de mim, me sorrisse e, todavia, retrocedesse a cada passo
que eu dava para me aproximar. Os meus pensamentos, viessem eles de onde
viessem, regressavam irresistivelmente a esta imagem e, tal como um ferido, eu
não podia deixar de coçar continuamente o abcesso que me causava prurido.
Tinha vergonha de mim próprio, o que era tão vexante como inútil, amaldiçoava
o foehn e, secretamente, a par de todos os tormentos, sentia um oculto e cálido
prazer, como nos tempos da juventude, quando pensava na bela Rosa e aquela
vaga quente e turva me assaltava.
133
Compreendi que era por causa desta doença que nenhuma erva tinha crescido,
e procurei trabalhar ao menos um pouco. Comecei a tomar entre mãos a
edificação da minha obra, desenvolvi alguns estudos, mas em breve reconheci
que o momento não era propício. Entretanto, surgiam de toda a parte más
notícias sobre o foehn, e na nossa própria aldeia instalou-se a miséria. As
represas dos ribeiros estavam semidestruídas, algumas casas, celeiros e
estábulos tinham sofrido graves danos e, dos casais afastados, chegava gente
sem abrigo; por toda a parte havia lamentos e miséria, e em parte alguma
dinheiro. Foi nestes dias que, para felicidade minha, o regedor me mandou
chamar ao seu escritoriozinho de conselheiro e me perguntou se eu estaria
disposto a participar numa junta de auxílio à miséria geral. Julgavam-me capaz
de defender os interesses da comunidade junto do cantão e, nomeadamente
através dos jornais, mover o país à comiseração e a conceder auxílio monetário.
Convinha-me, precisamente naquela altura, poder esquecer o meu inútil amor
próprio com um assunto mais sério e digno, e lancei-me desesperadamente ao
trabalho. Em Basileia, por meio de cartas, consegui logo algumas pessoas
dispostas a fazer a colecta. O cantão, como sabíamos já de antemão, não tinha
dinheiro, e podia apenas enviar alguns trabalhadores. Voltei-me então para os
jornais com apelos e crónicas; recebíamos cartas, doações e pedidos de
informação, e eu, a par da escrita, tinha ainda de travar batalhas com os
caturras dos camponeses.
As poucas semanas de trabalho ininterrupto fizeram-me bem. Quando, aos
poucos, a questão foi entrando na ordem e eu me tornava menos necessário,
verdejavam já os prados em redor, e o lago mostrava-se azul, inocente e
soalheiro às vertentes libertas de neve. O meu pai passava dias suportáveis e os
meus sofrimentos de amor haviam-se esvanecido e esfumado, quais restos
sujos de aludes. Por esta época, em tempos idos, o meu pai envernizava o
barco, a mãe olhava-o do jardim, e eu observava os movimentos do velho, as
nuvens do seu cachimbo e as borboletas amarelas. Agora não havia já nenhum
barco para pintar, a mãe havia morrido há muito, e o pai sentava-se pela casa
descuidada, enfadado. Também o tio Conrado me recordava os tempos antigos.
Frequentes vezes, sem que meu pai visse, levava-o comigo para um copito, e
escutava-o a contar e recordar os seus inúmeros projectos com um riso bondoso
e, contudo, não sem orgulho. Novos, já os não tinha,
134
135
dei ao pedal da bamboleante pedra de amolar, subi ao telhado roto por toda a
parte, preguei, martelei, cobri de tábuas e cortei a madeira, fazendo o meu Adão
um pouco anafado escorrer umas quantas gotas de suor. Por vezes, parava
também, nomeadamente durante o aborrecido remendar do telhado;
suspendendo uma martelada, sentava-me comodamente, chupava de novo o
cigarro meio apagado, olhava o azul profundo do céu, e gozava da minha
indolência na alegre consciência de que, agora, o pai não podia já instigar-me
nem descompor-me. Se alguém passava por perto, mulheres, velhos ou
crianças, para dissimular o ócio, eu encetava amigáveis conversas de vizinhos
com eles e, aos poucos, fui adquirindo a reputação de um homem com quem se
podem trocar umas palavras ajuizadas.
Vai quent'o dia, Beta?
É verdade, Peter. Que é a lida?
Ver se remendo o telhado.
Ora bem, há muito que tinha precisão.
Pois é.
Como vai o velho? Já há-de ir nos seus setenta.
Oitenta, Beta, oitenta. Que tal, quando lá chegarmos? Não é brinquedo.
Tem razão, Peter, mas tenho de ir indo, que o meu homem quer comer. Até mais
ver!
Adeus, Beta.
E enquanto ela continuava o caminho com a malga no pano, eu atirava nuvens
para o ar, ficava a olhá-las e pensava por que seria afinal que toda a gente
andava tão atarefada com os seus afazeres, enquanto eu passava dois dias
inteiros a martelar na mesma tábua. Mas, por fim, o telhado lá ficou remendado.
Contra o costume, o meu pai interessou-se por isso, e como de forma alguma eu
poderia carregá-lo até ao telhado, tinha de dar-lhe completa satisfação por cada
tabuinha, sem me incomodar com as suas bazófias.
- 'stá bom - admitiu ele - .'stá bom, má julgue que nã terminavas
esti ano.
Agora, ao olhar e meditar nas minhas viagens e tentativas na vida, sinto alegria
e irritação por viver também em mim a velha experiência de que os peixes
pertencem à água e os camponeses à terra,
136
137
138
e favorito de Deus e, a esta parte edificante, seguir-se-á uma boa mão cheia de
sal e pimenta para os queridos enlutados que me não esquecerão nem
perdoarão tão cedo. Oxalá o meu pai o veja ainda.
Na gaveta, estão os inícios do meu grande poema. «A obra da minha vida',
poderia eu dizer. Mas parece demasiado patético e prefiro não me expressar
assim, porque tenho de reconhecer que a sua continuação e conclusão estão
ambas muito periclitantes. Talvez chegue outra vez o tempo em que a tornarei a
iniciar, em que a continuarei e concluirei; nessa altura, a ânsia da minha
juventude terá tido razão, e eu terei sido realmente um poeta.
Isso valeria para mim tanto ou mais ainda que ser conselheiro ou que os diques
de pedra. Mas ao passado da minha vida que, contudo, se não desperdiçou,
incluindo todas as imagens de entes queridos, desde a elegante Girtanner até
ao pobre Boppi, a esses, não os contrabalançaria.
Data da Digitalização