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Transversais
Caminhos de inclusão nas políticas públicas para
crianças e adolescentes – contribuições para os
profissionais da assistência social
» Deficiência
» Gênero
» Raça e etnia
1
Terra dos
Homens
Temas
Transversais
Caminhos de inclusão nas políticas públicas
para crianças e adolescentes – contribuições
para os profissionais da assistência social
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» Raça e etnia
Temas transversais: caminhos de inclusão nas políticas públicas para crianças e adolescentes – contribuições
para os profissionais da assistência social
Realização: Associação Brasileira Terra dos Homens / Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)
Coordenação editorial: Claudia Cabral
Redação: autores convidados
Edição: Carolina Silveira, Leornado Leal e Raum Batista
Revisão: Fábio Carneiro
Capa/Diagramação: Neilton Lima
As opiniões e análises que integram a presente publicação são da responsabilidade dos autores e não refletem
necessariamente as opiniões do UNICEF e da ABTH.
Rio de Janeiro, junho de 2013
Este livro pode ser acessado em formato DAISY no endereço eletrônico: www.terradoshomens.org.br. Esse formato per-
mite ao leitor visualizar o conteúdo do texto em vários níveis de ampliação e ouvir simultaneamente em voz sintetizada,
permitindo o acesso das pessoas que apresentam algum tipo de limitação à leitura.
Dados internacionais para catalogação da publicação (CIP)
T278
Temas transversais : caminhos de inclusão nas políticas públicas
para crianças e adolescentes : contribuições para os
profissionais da assistência social. – Rio de Janeiro :
Associação Brasileira Terra dos Homens, 2013.
64 p. ; 22 cm.
ISBN 978-85-61181-08-6
1. Assistência social – Brasil. 2. Direitos fundamentais.
3. Integração social. 4. Brasil – Política social. I. Associação
Brasileira Terra dos Homens.
CDD- 361.981
DEFICIÊNCIA
Sou Humano...........................................................................................................................................10
Claudia Werneck
Crianças e adolescentes com deficiência: o papel da proteção especial na assistência social............15
Ana Rita de Paula
GÊNERO
Reflexões sobre a centralidade na família desde o paradigma de gênero...........................................28
Jalusa Silva de Arruda
A importância do conceito de gênero na transversalidade das políticas públicas..............................34
Breno Cypriano
RAÇA E ETNIA
Desigualdades raciais, atuação profissional e formação em raça/gênero...........................................46
Maria Nazaré Mota de Lima
Potencializando atendimentos sociais mais humanos e não racistas..................................................51
Silvia Ignez Silva Ramos
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Povos indígenas: as proteções sociais afiançadas de assistência social e a comunicação
multicultural...........................................................................................................................................55
Marlene Veiga Espósito
Infância e adolescência feliz e sem racismo..........................................................................................58
Lúcia Xavier
Apresentação
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança inaugurou uma nova era globalmente relativa à prote-
ção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes, atribuindo, para o efeito, responsabilidades à família,
à sociedade e ao Estado. O Brasil, que foi pioneiro na integração dos princípios da Convenção à legislação e
políticas nacionais e impulsionou a adoção de parâmetros internacionais das Nações Unidas para cuidados
alternativos de crianças, adotou diretrizes locais e tem implementado, desde 2006, um Plano Nacional de
Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.
UNICEF que recebeu o mandato das Nações Unidas para acompanhar e apoiar em nível global a apli-
cação da Convenção sobre os Direitos da Criança, em parceria com a Associação Brasileira Terra dos
Homens, apresenta a publicação Temas Transversais (Caminhos de inclusão nas políticas públicas para
crianças e adolescentes – contribuições para os profissionais da assistência social).
A mesma foi preparada por um grupo de especialistas e pesquisadores brasileiros de diferentes regiões
e saberes que foram convidados, por meio da parceria acima identificada, a preparar um conjunto de textos
sobre temas como raça e etnia, gênero, deficiência, no âmbito das políticas públicas. As reflexões trazidas
traçam alguns caminhos para um tratamento mais inclusivo e igualitário na aplicação destas políticas parti-
cularmente aquelas rotas que visam garantir o direito de cada criança e cada adolescente a nascer, crescer e
se desenvolver numa família, livre de violência e discriminação.
Promover o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes com direitos vio-
lados, investindo na valorização e no fortalecimento de suas famílias e comunidades e no apoio ao forta-
lecimento das capacidades dos atores do Sistema de Garantias de Direitos, tem sido um dos objetivos da
parceria entre o UNICEF no Brasil e a Associação Brasileira Terra dos Homens. Essa parceria vem sendo
concretizada por meio de um trabalho com o Grupo de Trabalho Nacional (GT Nacional) Pró-convivência
Familiar e Comunitária. O GT Nacional, que envolve instâncias governamentais e não governamentais com
atuação em 26 Estados brasileiros e no Distrito Federal, tem promovido uma articulação em prol de uma
cultura de promoção, proteção e defesa do direito à convivência familiar e comunitária, por meio de publi-
cações, debates, oficinas, desenvolvimento de capacidades e partilha de experiências.
Muitos avanços se verificaram no País, em relação à implementação das diretrizes e do Plano Nacional de 7
Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.
Terra dos
Contudo, tratar desse tema numa perspectiva de direitos humanos não é tarefa fácil, pois exige assegurar a Homens
TODAS e CADA criança e adolescente, independentemente do seu gênero, raça, etnia, condição física, lugar
de moradia etc., o direito a ter e viver numa família, não obstante a organização, o contexto e a história desta,
reconhecendo o seu papel na construção de significados, de aprendizagem afetiva e de reconhecimento da
identidade individual e coletiva. E isso passa necessariamente pelo reconhecimento e aceitação das diferen-
ças, enfrentamento dos preconceitos, discriminação e violência numa perspectiva de mudança cultural.
Consciente do quanto as crianças podem ser afetadas pelo rompimento dos vínculos afetivos e familia-
res e os efeitos perversos que podem resultar da aplicação equivocada de políticas de acolhimento institu-
cional, o UNICEF, por intermédio do programa Crescer sem Violência, junta-se aos esforços da Associação
Brasileira Terra dos Homens e do GT Pró-convivência Familiar e Comunitária para apoiar os atores e agen-
tes que estão comprometidos com a afirmação dessa nova visão do direito à convivência familiar e comu-
nitária de todas as crianças e adolescentes, em especial aqueles cujos direitos estejam sendo discriminados,
ameaçados ou violados. Os profissionais da Assistência Social, entre outros, estão na vanguarda da materia-
lização desse compromisso, buscando as competências e qualificação para dar concretude a essa aspiração.
O conteúdo desta publicação afigura- se de extrema importância e pertinência, pois é oferecido num
momento particular da história internacional da afirmação dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Líderes em nível mundial atualmente se mobilizam para, em outubro de 2013, fazer em Nova Iorque um
compromisso e uma chamada à ação nacional visando à desinstitucionalização de crianças com menos de 3
anos de idade, garantindo a cada uma delas o direito a crescer e se desenvolver num ambiente familiar e pro-
tetor. O Brasil, que já tem uma tradicional liderança internacional no tratamento dessa temática, associa-se
a esta mobilização e a publicação que aqui apresentamos pode contribuir para dar concretude a essa ação.
Cientes de que este documento é apenas um instrumento que pode ser útil para o debate nacional, ele
pretende contribuir também como ferramenta para o desafio da formação de um novo estado de consci-
ência, com uma mudança de cultura, promovendo relações mais equitativas e inclusivas, numa sociedade
cada vez mais democrática.
Por isso desejamos que essa obra possa ser útil para todos aqueles que se dedicam ao trabalho de superar
esse desafio, em seu dia-a-dia, dentro do tema da Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.
8 Casimira Benge
Chefe da área de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente
Terra dos
Homens UNICEF, Brasil
DEFICIÊNCIA
Dados do IBGE (Censo 2010) apontam No âmbito da atenção básica, por exem-
que mais de 45 milhões de brasileiros, ou plo, as atividades são planejadas de forma
23,9% da população total, têm algum tipo a permitir efetivamente a participação de
de deficiência - visual, auditiva, física, in- qualquer indivíduo? Para além da própria
telectual ou múltipla. Mas como lidamos assistência social, as atividades culturais,
com essa realidade em nosso dia a dia? As de lazer, de esporte e de profissionalização
ações, serviços e projetos no campo da as- estão preparadas para a diversidade? Qual
sistência social estão preparados para per- pode ser o papel da assistência social na
mitir e favorecer o acesso de tantas crian- articulação dessa rede? Quando considera-
ças, adolescentes, jovens, adultos e idosos mos a atenção especializada, como a defici-
com deficiência? E não estamos falando ência se relaciona com os fatores que apa-
de iniciativas voltadas exclusivamente a recem nos casos de violação de direitos?
esse público, mas da necessidade de refle- Os materiais educativos e preventivos, que
tir sobre a acolhida que as diversas ações tratam da violência sexual, do trabalho in-
no campo da assistência social têm dado a fantil e de tantas outras violações, dialo-
pessoas com deficiência. gam com todos?
Sou Humano Pode ser uma prótese no lugar do olho, um bra-
ço que não existe mais, a mancha grande e cabeluda
Claudia Werneck1 na face. O quanto revela de nós esse nosso olhar, que
ao mesmo tempo é analítico, julgador e envergonha-
do? Envergonhado porque tenta apagar vestígios do
obscuro ritual que se passa em nosso íntimo. Não
Do livro: Você é gente? O direito de nunca que esse processo de avaliar quem é mais ou menos
ter questionado o seu valor humano2 humano, mais ou menos normal, seja consciente,
1 Prêmio Direitos Humanos 2011 da Secretaria de Direitos Humanos da presidência da República em nome da ONG Escola de Gente –
Comunicação em Inclusão, que fundou em 2002, entre outros, Claudia Werneck é pioneira na disseminação do conceito de sociedade inclusiva
disposto pela ONU na América Latina. Ativista e liderança pelos direitos humanos, especialmente da população que é pobre e tem deficiência,
integra a Ashoka Empreendedores Sociais. Consultora, articulista e palestrante internacional, é autora de 14 livros sobre diversidade e inclusão
para adultos e crianças, muitos traduzidos para o espanhol e o inglês. Jornalista formada pela UFRJ com pós-graduação em Comunicação e
10 Saúde pela FIOCRUZ, foi a primeira autora brasileira – e talvez a única – a ter suas obras recomendadas simultaneamente por UNESCO e
UNICEF. De 1978 a 1998, foi redatora, chefe de reportagem e editora de revistas como PAIS&FILHOS e PAIS&FILHOS Família, escrevendo
também para jornais de circulação nacional como O Globo. Em 1999, recebeu o título de “Jornalista Amiga da Criança” da ANDI, Fundação
Terra dos ABRINQ e UNICEF.
Homens 2 Claudia Werneck, 2003, 2º edição, WVA Editora
tornarem girafas, moscas, plantas carnívoras? Uma fala que diferencia o ser humano de um animal ir-
pessoa cega seria menos gente se analisada sob um racional? Não é a inteligência que nos distingue dos
hipotético “Quadro Classificatório de Condições animais?”.
Humanas”? Jovens surdos/as, principalmente aque- Em que medida este discurso atenta contra a
les/as que se expressam unicamente pela Libras, a concepção de direitos humanos? Atenta ao con-
Língua de sinais brasileira, têm menos valor huma- siderar a fala e a palavra como pré-requisitos para
no do que os/as demais, jovens ouvintes que falam pertencer ao conjunto Humanidade. Atenta ao con-
apenas o português? siderar que pessoas com deficiência intelectual, por
Embora a tendência seja a de responder um não terem todos os recursos do que se convencionou
NÃO categórico e ofendido a essas perguntas, nossas chamar de inteligência, não são seres tão humanos.
práticas diárias denunciam o contrário. Refiro-me a Como denunciar que essa campanha, pelos di-
formas sutis de discriminação que, mesmo com o reitos humanos, foi discriminatória em relação a
propósito de valorizar pessoas com deficiência, aca- pessoas que não têm seu intelecto preservado ou a
bam segregando-as cada vez mais. O simples fato de quem se utiliza apenas da Libras para se comunicar?
considerá-las especiais já as distancia da garantia in- Caberá, então, a quem não fala, lutar desesperada-
condicional dos direitos humanos. mente para falar, como a única saída para pertencer
É aflitivo constatar a naturalidade com que nos ao conjunto Humanidade e, assim, consequente-
exercitamos em atribuir um sinal “positivo” ou “ne- mente, ao conjunto Sociedade? Deverão as pesso-
gativo” para diferentes condições e características as com comprometimento intelectual manter uma
humanas. Isso até em pronunciamentos públicos eterna sensação de débito, de menos valia em relação
considerados meritórios e consequentes pela popu- a quem tem um intelecto que se manifesta de forma
lação. Por exemplo: como nos posicionamos diante considerada plena?
de relatos como o que vem a seguir? No começo da É justamente tudo isso que o senso comum pres-
guerra dos Estados Unidos e da Inglaterra contra supõe. Por isso a força do conceito de inclusão, que
o Iraque, em março de 2003, a televisão brasileira desconstrói essa trajetória de iniquidades no modo
veiculou uma campanha a favor dos direitos huma- como percebemos a espécie humana, a nossa!
nos. Vários/as artistas se expressavam contra a guer- Essa conversa está longe de ser uma abstração.
ra contundentemente. Um homem dizia algo mais Muito além da ética, é possível para a sociedade
ou menos assim: “Eu sou contra a guerra, nós não
precisamos da guerra, nós devemos resolver nossos
brasileira, e outras, respaldadas por garantias cons-
titucionais e tratados internacionais de direitos hu-
11
conflitos através da palavra, da inteligência. Não é a manos, enfrentar impasses como esses. Uma fala tão Terra dos
Homens
“adequada” como a utilizada na campanha recém- Diante dessa plataforma de direitos humanos é
citada pode, sim, ser entendida como um atentado preciso se lançar a um novo tempo e ganhar lucidez
ao direito que toda pessoa tem de não ser submetida para refletir sobre os nossos ultrapassados modos de
a uma ofensa ou criminalização em função de sua perceber a humanidade.
deficiência. Quem nasce de um ser humano é necessaria-
É o que garante a Convenção Interamericana para mente um ser humano de idêntico valor. Nascemos,
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação portanto, incluídos/as no conjunto homo sapiens.
Contra Pessoas com Deficiência da Organização Algo pode ser mais simples de ser entendido?
dos Estados Americanos (OEA), de 1999, conhecida Sistematicamente, entretanto, por termos uma
como Convenção da Guatemala. O Brasil é signatário concepção atrofiada de ser humano, tomamos deci-
da Convenção da Guatemala, sões inadequadas - corriqueiras e estruturais.
Quem nasce de um ser documento aprovado pelo Mesmo a área social brasileira tem avançado
humano é necessariamente Congresso Nacional por pouco quando o assunto é gente.
um ser humano de idêntico meio do Decreto Legislativo Pergunto...
valor. Nascemos, portanto,
nº 198, de 13 de junho de Quem costuma avaliar se pelo menos um dos
incluídos/as no conjunto
homo sapiens. Algo pode 2001, que deu origem ao banheiros das organizações que dirige é apropriado
ser mais simples de ser Decreto Federal nº 3.956, para uso por pessoas usuárias de cadeira de rodas?
entendido? de 08 de outubro de 2001, Que organizações têm a preocupação de garantir
portanto, da presidência da que seus sites sejam construídos com acessibilidade
República. Pela primeira vez, de modo que leitores de tela utilizados por pessoas ce-
então, foi explicitado em lei o que é discriminar com gas e analfabetas, entre outras, consigam navegar por
base na deficiência. É possível dizer que por se refe- eles para obter informações? E eu não estou aconse-
rir a direitos e garantias fundamentais, a Convenção lhando, aqui, que cada organização tenha dois sites:
da Guatemala complementa a Constituição Federal, um comum (inacessível...) e outro apenas para pes-
estando acima de leis, resoluções e outros decretos. soas cegas, pois isso não é o que pressupõe a inclusão.
Mesmo a Convenção sobre os Direitos das Pessoas Que agências financiadoras, nacionais e interna-
com Deficiência da Organização das Nações Unidas, cionais, pelo menos hesitam em apoiar projetos de
de 2006, a primeira a ser ratificada no Brasil com educação que não incluam, explicitamente, todos/
1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), é consultora de diversas organiza-
ções não-governamentais e órgãos públicos municipais, estaduais e federais. Recebeu, entre outros, o Prêmio Direitos Humanos da Universidade
de São Paulo, em 2001 e o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, outorgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
15
República, em 2004. Há 30 anos faz parte da liderança do movimento pela defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Autora de diversos Terra dos
livros e artigos. Homens
carência de estimulação nos casos de pouco conta- Muitos casos de deficiência por carência cultural
to com a criança e utilização mínima de linguagem e afetiva têm sido identificados em lares e, sobretu-
dirigida a ela, insuficiência de vínculos afetivos e do, em instituições de abrigo. Nesses casos, a atenção
atmosfera emocional inadequada. Estas variáveis necessária é comumente denominada “estimulação
podem dificultar as experiências necessárias ao pro- psicossocial”, referente às experiências e vínculos
cesso evolutivo da criança. que incentivam o desenvolvimento, especialmente
Segundo dados estimados da ONU, das pessoas na área de linguagem.
com deficiência, cerca de 50% é constituída daque- Dessa forma, fica clara a necessidade de uma po-
las com deficiência intelectual (DI) por etiologias lítica urgente de caráter intersetorial voltada à pre-
variadas, a maioria delas ligada a fatores socioeco- venção, detecção precoce e assistência comum e es-
nômicos e de saúde pública, a saber: (Fisberg, in pecializada nas diferentes áreas das políticas públicas.
Nóbrega) carência protéico-calórica, prematurida- Há que se considerar, ainda, que o número de
de, Erros Inatos de Metabolismo, anóxia Peri natal pessoas envolvidas com esta questão é, na verdade,
e desidratação. muito maior, já que para cada pessoa com deficiên-
A maioria das causas de deficiências pode ser cia, há pelo menos mais duas a três pessoas afeta-
evitada se houver prevenção. Como exemplos de das diretamente pela situação, ou seja, os familiares
medidas nesse sentido destacam-se: as ações de mais próximos.
promoção da saúde (saneamento básico, nutrição
balanceada, fortalecimento dos vínculos familiares,
Considerações gerais sobre a proteção
etc.) e a proteção específica (aconselhamento genéti-
co, acompanhamento pré-natal, vacinação, cuidados
social a crianças e adolescentes com
de puericultura, controle de gestações de alto risco, deficiência
atenção à desnutrição da gestante e da criança, etc.). A autonomia e independência são construídas
Reconhecidamente tornam-se essenciais medidas desde a primeira infância, na relação da criança com
como a detecção precoce e procedimentos imediatos o adulto, geralmente aquele que dela cuida. Essa inde-
e específicos para evitar ou minimizar sequelas, com- pendência, no fundo, pode significar a capacidade da
preendendo intervenção em berçários junto a bebês criança, em particular aquela com deficiência, de con-
de alto risco e em creches e unidades de saúde que
16 atendam crianças de até três anos de idade, bem como
seguir e aceitar ajuda ou cuidado de outros adultos,
que não exclusivamente por parte da mãe ou do pai.
Terra dos
o acompanhamento do desenvolvimento infantil e A entrada de um terceiro elemento, externo à fa-
Homens pronto atendimento adequado às emergências. mília, pode contribuir para o rompimento da relação
simbiótica da mãe com seu filho, favorecendo o cres- Atualmente, os estudos da Psicologia Social
cimento pessoal e o amadurecimento emocional de aproximam o conceito de holding com a ideia de
ambas as partes. Assim, a criança é cuidada por uma suporte comunitário, originando a concepção de
“equipe” que, por sua vez, deve cuidar-se entre si. “holding social”. Esta concepção reconhece as ne-
Winnicott (1983), na elaboração da sua teoria cessidades comunitárias dos agentes “cuidadores” da
sobre desenvolvimento infantil, reitera a impor- infância e/ou de pessoas fragilizadas, bem como as
tância do ambiente para o crescimento e a saúde possibilidades de apoio por parte da comunidade.
física e mental do bebê. O ambiente, nos primei- O termo “holding social” refere-se a relações in-
ros meses de vida, pode ser representado pela fi- terpessoais, grupais ou comunitárias que emprestam
gura materna ou por quem desenvolve este papel. ao indivíduo um sentimento de proteção e apoio ca-
Assim, Winnicott cunha o termo “holding”, que se paz de propiciar bem estar psicológico e redução do
constitui no conjunto de cuidados que o ambiente estresse. Dito de outra forma, o “holding social”, em-
dispensa ao bebê. bora inserido em redes mais amplas, é vivido no âm-
Ampliando o conceito e transferindo-o para a bito de relações interpessoais próximas, geradoras
figura materna, ou seja, reconhecendo a importân-
cia de oferecer suporte à figura materna, o pai, avós
e demais membros da família ou, na ausência destes, São características do “holding social”:
pessoas da comunidade, passam a representar o am-
• trocas afetivas,
biente de holding à mãe. Esta também, por sua vez,
apresenta fragilidades e imaturidades, necessitando • cuidados mútuos, constantes e continuados,
que alguém cuide dela, particularmente durante a • comunicação franca e precisa,
gestação e nos primeiros meses de vida do bebê. • papéis definidos baseados na solidariedade.
As mães em condições de vulnerabilidade,
como aquelas que apresentam drogadição, alcoo- Possui como elementos essenciais:
lismo etc., necessitam mais ainda do holding, que • no âmbito emocional – sentimento de ser
prevenirá problemas de transtornos emocionais amado, cuidado e protegido;
nas crianças pequenas sob sua responsabilidade. • no âmbito valorativo – ser reconhecido e
O mesmo ocorre quando do nascimento de uma
aceito;
criança que apresente atraso, déficit, transtorno do
desenvolvimento ou deficiência, ou, ainda, em situ- • no âmbito comunicacional – ser compreen- 17
ações onde o vínculo pais/filhos esteja fragilizado dido e compartilhar informações.
Terra dos
ou em risco. Homens
de vínculos capazes de contribuir para a integridade Situação atual dos serviços de Proteção
do indivíduo. Social Especial de Média Complexidade às
A importância do “holding social” é cada vez pessoas com deficiência
maior se considerarmos que a família contempo-
rânea, segundo Carvalho (1997), responsável pela Quando consideramos a história do desenvol-
formação de cidadãos, tanto influi como sofre as vimento da atenção às pessoas com deficiência em
influências da sociedade, vem sentindo os efeitos da nosso país, podemos compreender melhor a situa-
ção atual da Assistência Social a este segmento da
globalização e das crises econômicas que acarretam
população, tanto no que diz respeito à proteção bási-
o desemprego e o subemprego, acentuando suas fra-
ca, quanto à proteção especial.
gilidades. A influência histórica e social sobre a fa- A sociedade brasileira, antigamente, concebia
mília contemporânea tem gerado núcleos familiares que as necessidades das pessoas com deficiência res-
cada vez menores e isolados. Desse modo, o preceito tringiam-se ao campo da Assistência Social, que de-
da centralidade na família da Política Nacional de veria garantir o atendimento especializado, por meio
Assistência Social é mais ainda justificável no con- de convênios com entidades filantrópicas, geral-
texto atual. A sua importância é reconhecida tanto mente organizadas pelos pais e/ou familiares dessas
pela Declaração dos Direitos Humanos, que a consi- pessoas. O governo limitava-se a conceder recursos
dera como sendo o núcleo natural e fundamental da financeiros a estas entidades, na maioria das vezes,
sociedade, tendo direito à proteção da sociedade e com valores insuficientes para a manutenção dos
do Estado, como também pelas legislações específi- atendimentos, obrigando as entidades a desenvolve-
rem campanhas de arrecadação de fundos, apelando
cas da Assistência Social – Estatuto da Criança e do
à caridade da sociedade, reforçando, assim, o cará-
Adolescente (ECA), Estatuto do Idoso e na própria
ter de assistencialismo que, infelizmente, ainda hoje
Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). contamina e dificulta o reconhecimento dos direitos
Portanto, o papel precípuo da assistência social de cidadania das pessoas com deficiência.
no campo da atenção às pessoas com deficiência é Mudanças sociais dessa magnitude requerem
primeiramente acolher essas famílias e promover, tempo e, ainda hoje, temos a Proteção Social Especial
por meio de trabalho com a comunidade, o “hol- de Média Complexidade caracterizada pela oferta de
ding social”. Estas ações caracterizam-se basica- atendimentos de saúde, reabilitação, educação es-
18 mente pela prevenção ao risco social, competindo pecial e preparação para o trabalho, prestados sem
à proteção social básica, por meio dos Centros de discriminação das políticas setoriais, por entidades
Terra dos
Homens Referência de Assistência Social (CRAS). filantrópicas conveniadas com o Sistema Único de
Assistência Social – SUAS. A assunção do efetivo pa- Ao finalizarmos este texto, pretendemos que o
pel da Assistência Social implica que o público que leitor possa lançar um olhar para o futuro, vislum-
esteja indevidamente sendo assistido pelas institui- brando as possibilidades de ampliar os limites da
ções conveniadas com o SUAS, especializadas e vo- atual compreensão e da política vigente em relação
cacionadas para outras áreas, seja transferido para os às pessoas com deficiência, para além de considerá-
serviços das demais políticas setoriais, consolidando -las como alvo de uma atuação somente em situa-
o princípio da inclusão social, ou seja, que as pessoas ções de risco e violação de direitos. Dentro de uma
com deficiência tenham atendidas suas necessidades propositura de garantia de qualidade de vida e de
nos sistemas públicos voltados a todos. prevenção ao risco social, propomos uma reflexão
A criação e consolidação da identidade da sobre a viabilidade de construção de uma Política de
Assistência Social, neste campo, passa, necessaria- Vida Independente.
mente, pelo CREAS – assumir seu papel de atendi- No que consistiria uma Política de Vida
mento e coordenação da Proteção Especial. Independente?
Busca-se atualmente um novo contexto de vida
Considerações finais para a população com deficiência, calcada em novos
pressupostos: a qualidade de vida, a inclusão social e
A própria presença da deficiência é considerada a filosofia de vida independente.
um fator de vulnerabilidade social que, associada Um dos principais objetivos da vida indepen-
ao estado de pobreza, gera situações de risco social. dente é possibilitar que as pessoas com deficiência
Quando as pessoas com deficiência ainda experi- ou com qualquer outra limitação
mentam a insegurança ou a ausên- funcional saiam das situações de
cia de moradia podemos afirmar Pretendemos que o leitor submissão que estejam vivenciando
que já existe uma grave situação de possa lançar um olhar e rompam com a tutela de algumas
violação de direitos. para o futuro, vislumbran- entidades prestadoras de serviços
Acreditamos que o paradigma do as possibilidades de na área. Há serviços assistenciais
de suporte, base do princípio da ampliar os limites da atual que adotam posturas e atitudes que
Inclusão Social, na verdade propõe compreensão e da política mantêm as pessoas com deficiência
que os contextos e ambientes sociais vigente em relação às isoladas e segregadas, desencoraja-
pessoas com deficiência,
sejam inclusivos, isto é, permitam o para além de considerá-las
das de manifestar seus desejos ou
acesso e a permanência das pesso- como alvo de uma atuação opiniões, submetidas às decisões de
as com deficiência nos espaços pú- seus pais, médicos e cuidadores.
blicos e, para tal, a sociedade deve
somente em situações
de risco e violação de Para se alcançar um cotidia- 19
lançar mão de apoios para que este direitos. no que favoreça a vida indepen Terra dos
acesso e permanência ocorram. dente é necessário que haja a Homens
disponibilização de apoios para o exercício da auto- concorrência de várias áreas, há a necessidade de ar-
nomia e da independência. Os objetivos dos apoios ticulação das diferentes políticas setoriais.
são: incrementar o nível de habilidades adaptativas/ Qual o papel da política de Assistência Social
capacidades funcionais; fomentar a aquisição dos nesse campo?
objetivos de habilitação relacionados com o bem- Além de capitanear a articulação com as demais
-estar físico, psicológico e com políticas públicas na atenção a esse público, deve
o bom funcionamento da pes- voltar-se para oferecer: suporte e orientação à famí-
Busca-se atualmente um soa; potencializar as caracte- lia; cuidadores domiciliares profissionais; benefícios
novo contexto de vida financeiros e materiais e serviços específicos.
rísticas do meio relacionadas
para a população com
deficiência, calcada em com a presença na comunida- A formação de redes comunitárias de apoio tam-
novos pressupostos: a de, a escolha, a competência, o bém é vocação da Assistência Social e deve basear-se
qualidade de vida, a inclu- respeito e a participação. no conceito de “holding social”, ou seja, a construção
são social e a filosofia de Para cada uma das áreas da de malhas de sustentação e apoio desenvolvidas pela
vida independente. vida cotidiana é possível deter- comunidade a seus membros em situação de maior
minar a intensidade dos apoios, vulnerabilidade social.
que atuam reduzindo as dis- A elaboração e execução de um Plano Nacional de
crepâncias e exercendo as seguintes funções: ensino, Desinstitucionalização de Pessoas com Deficiência,
ajuda de amigos, planejamento financeiro, ajuda no com a concorrência dos estados e municípios são
emprego, apoio comportamental, ajuda na vida do- outras tarefas imprescindíveis e urgentes. Este Plano
méstica, acesso e uso da comunidade e assistência à deve ser concebido no sentido de, primeiramente,
saúde. Esses apoios podem ser naturais ou de serviços prevenir o asilamento para depois, se necessário,
(proporcionados por profissionais e/ou agências). implantar serviços de abrigamento tipo Residências
Qual o público alvo desta política? As pessoas Inclusivas ou Residências Autogeridas como alter-
com deficiência e, na realidade, os idosos e todas as nativas à moradia de pessoas com deficiência sem
demais que, de uma forma ou de outra, encontram- ou com retaguarda familiar insuficiente. O proces-
se alijadas socialmente, em razão da falta de acessi- so de desinstitucionalização deve iniciar-se com um
bilidade, em sentido amplo, a locais públicos, servi- trabalho no interior das instituições asilares, criar
ços e produtos básicos, além de estarem vivenciando mecanismos que priorizem a volta para casa das pes-
restrições de autonomia e independência em função
20 do contexto no qual estejam inseridas.
soas institucionalizadas, além, obviamente, da cria-
ção dos serviços de abrigamento e dos Escritórios de
Dado que a concepção e o desenvolvimen- Apoio à Vida Independente.
Terra dos
Homens to de apoio à vida independente pressupõem a
Referências
APAE-SP. Projeto TODOS PELOS DIREITOS: Assistência Social. Política Nacional da Assistência
Deficiência Intelectual, Cidadania e Combate à Social. Brasília, 2005.
Violência, Violência e Deficiência Intelectual: O ______, Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, Lei
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_______, Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome, Secretaria Nacional de
21
Terra dos
Homens
Dicas e subsídios
22
municipais.
Terra dos
Homens
Organizações que representam a sociedade civil no Conade no biênio 2013/2015:
Outras organizações
Além das organizações que integram o Conade, há uma série de outras instituições que atuam na área.
Listamos a seguir algumas delas. Nos sites, é possível encontrar publicações, materiais didáticos, vídeos,
artigos e uma série de outros materiais relacionados ao tema.
26
Terra dos
Homens
GÊNERO
ARRUDA, Jalusa S. Defesa dos Direitos Sexuais e PEREIRA-PEREIRA, Potyara Amazoneida. Mudanças
Reprodutivos de Crianças e Adolescentes. Material estruturais, política social e papel da família: crítica
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cias sexuais. São Paulo: Anced, 2009. Especializado de Assistência Social (CREAS). Brasília:
MDS, 2011.
33
Terra dos
Homens
A importância do conceito de gênero na
transversalidade das políticas públicas
Breno Cypriano1
34 1 Breno Cypriano (brenocypriano@yahoo.com.br) é graduado em ciências sociais, mestre em ciência política e, atualmente, doutorando em ciên-
cia política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG. Está vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher
Terra dos (NEPEM/UFMG) e realiza atividades de investigação sobre Teoria Política Feminista, Pensamento Político Feminista na América Latina e
Homens Mulheres e Política/Políticas Públicas
Considerando os profissionais políticas” sob uma mesma ótica. A
Esse debate provoca a
que atuam na assistência social, esse refletir sobre a forma
última questão ressaltada pela autora
debate provoca a refletir sobre a for- como a perspectiva de é que gênero é uma concepção que
ma como a perspectiva de gênero gênero perpassa todos ultrapassa o conceito de “mulheres”.
perpassa todos os planejamentos, os planejamentos, ser- Porém, como Woodward acrescenta,
viços e ações, inclusive
serviços e ações, inclusive naqueles naqueles voltados espe-
muitas políticas e relatorias de trans-
voltados especificamente para o aten- cificamente para o aten- versalidade de gênero vão entender
dimento às mulheres. dimento às mulheres. este conceito como o problema da
Mas cabe destacar que tal pers- mulher, ou como outra questão que
pectiva é fortemente contestada não diz sobre as desigualdades entre
por analistas e teóricas. De acordo com Alyson homens e mulheres, e isso é um problema primário.
Woodward (2008), as contestações surgem porque a Desta forma, compreender as origens, problemas e a
transversalidade de gênero é uma novidade, sendo compreensão do conceito de gênero faz-se necessá-
uma técnica e uma prática advinda da governança ria para a proposição de políticas públicas e sociais
global. As contestações também são decorrentes, com este enfoque.
para a autora, da popularidade da ideia, já que o ter-
mo “transversalidade” tem sobrevivido enquanto a
discussão em torno da noção de “gênero”, propria- O conceito de gênero
mente, tem se perdido. Eric Hobsbawm (1995 [1994], p. 533) apontou:
A partir da noção de transversalidade, a revivescência do movimento feminista contribuiu
Woodward (2008) problematiza alguns pontos in- para os questionamentos diante da ciência, ao for-
teressantes. O primeiro deles é que o debate sobre çarem a substituição do termo “sexo” por “gênero”.
“igualdade de gênero” retomaria as discussões sobre Dessa forma, as pesquisas que envolviam a discus-
igualdade versus diferença, que ficaram conhecidas são sobre a diferença sexual tornaram-se um ver-
como o “Dilema de Wollstonecraft”. A autora ressal- dadeiro campo minado político. O debate natureza
ta que, paradoxalmente, homens e mulheres, devem versus cultura já podia ser observado em 1935, nos
ser tratados como iguais diante da lei, por buscarem trabalhos de campo antropológico de Margareth
os mesmos direitos, porém eles ainda manteriam Mead, realizado em três sociedades primitivas da
suas diferenças. Outro ponto-chave para a auto- Nova Guiné, conforme descrito por Rosaldo (1979).
35
Terra dos
ra seria o gesto ambicioso de se “integrar todas as Numa dessas sociedades, a autora percebeu que os
Homens
homens tinham um temperamento considerado fe- Gênero é um complexo conjunto de instituições
minino, sendo relacionado à passividade e ao cuida- sociais, formais e informais, que organizam a
maioria dos aspectos de grande parte da vida das
do com as crianças. Assim, a partir deste trabalho, pessoas, tanto homens quanto mulheres, de acor-
pode-se dizer que surgia nos estudos feministas um do com seus/suas alocações sociais do sexo. Gênero
interesse maior sobre as diferenças de “gênero”. simultaneamente modela e é modelado por outras
Algumas transformações teóricas ocorreram categorias sociais incluindo raça, etnicidade, idade,
religião, nacionalidade, etc. (JAGGAR, 2008a, p.
desde o debate fervoroso até a incorporação defini- 127, tradução nossa).
tiva do conceito de “gênero” pelo feminismo, como
indicam Oakley (1972) e, posteriormente, Matos Mas há ainda questionamentos a esse conceito,
(1999). Partiu-se da questão conceitual sobre “pa- inclusive em relação à própria nomenclatura. Por
peis de gênero” por John Money (1973 [1955]); pas- exemplo, enquanto as feministas de tradição anglo-
sando pela constatação por Robert Stoller (1968) da norte-americana destacariam a distinção entre sexo
experiência do gênero como diferenciada dos sexos e gênero, as da tradição europeia detém-se sobre a
biológicos; a constituição teórica do conceito de “gê- diferença entre sexualidade e diversidade sexual. Em
nero” por Oakley (1972); precedida pela distinção “Problemas de gênero”, Judith Butler (2003 [1990])
do ”sistema sexo/gênero” por Rubin (1993 [1975]); critica que o conceito de gênero leva ao que se temia:
incorporada nos documentos oficiais das Nações “nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna
Unidas, na Conferência Mundial da Mulher, em o destino” (BUTLER, 2003 [1990], p.26). Partindo
Nairóbi (1985); até chegar a noção de gênero como da emblemática afirmação “Não se nasce mulher,
”uma categoria útil para a análise histórica” feita por torna-se mulher”, Butler aponta para o fato de que
Scott (1990 [1986]). “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que
Gênero seria, assim, uma forma de organização garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessa-
social que definiria a diferença sexual a fim de ser riamente fêmea” (BUTLER, 2003 [1990], p. 27).
um conhecimento que estabelece significados para Apesar das críticas, o termo gênero foi assu-
as diferenças corpóreas, além de ser uma categoria mindo um papel central tanto na esfera local, como
que entrelaça quatro elementos substantivos: (i) no plano internacional. Diante de uma concepção
símbolos culturais; (ii) conceitos normativos; (iii) bem articulada do conceito de gênero e também
36 instituições sociais; e, (iv) subjetividade (SAFFIOTI,
2004; SCOTT, 1990 [1986]). Uma maneira mais ins-
da questão do alto grau de reconhecimento da po-
lítica de transversalidade de gênero, principal-
Terra dos titucional pela qual o conceito pode ser entendido mente entre as organizações internacionais como
Homens hoje é:
na Organização das Nações Unidas (ONU), na Aportes para la construcción de contextos familiares
Organização Internacional do Trabalho (OIT), na y comunitarios favorables al desarrollo integral de
União Europeia, pode-se dizer que há certo suces- niños y niñas”conduzido pelo Programa Nacional de
so dessa política, principalmente por ter alcançado Desarrollo Infantil “Primeros Años”.
um alto grau de institucionalidade da política e ter A experiência brasileira vem conseguindo inte-
desenvolvido outras ferramentas de governança em grar as políticas sob a ótica de gênero desde 2003,
diversos cenários (WOODWARD, 2008). quando o Estado brasileiro assume essa perspecti-
va como uma das políticas de governo. Assim, o
Considerações Finais Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) já
C omo considerações finais, propõe-se que se apre- no seu próprio desenho buscou integrar a diversi-
sente uma das experiências brasileiras exitosa dade dos formuladores de política, pois é composto
na prática da transversalidade de gênero. Em 2011, por: um/a representante de cada órgão diretamen-
a Área de Prática de Gênero do Centro Regional do te envolvido na implementação do PNPM – atual-
PNUD para América Latina e Caribe selecionou as mente são 22 ministérios, secretarias e outros órgãos
“Experiências exitosas de transversalidade de gênero do governo federal; três representantes da socieda-
na América Latina”, e as cinco propostas considera- de civil, eleitas entre as conselheiras do Conselho
das como boas práticas foram: no Chile, “Estrategias Nacional dos Direitos da Mulher; e por último dois/
de Transversalización de Género en las políticas duas representantes de organismos estaduais de po-
líticas para as mulheres e dois/duas de organismos
públicas” apresentado pelo Servicio Nacional de la
municipais. Segundo a SPM/PR (2011), a transver-
Mujer (SERNAM); no Brasil “Comitê de Articula-
salidade de gênero pelo Estado brasileiro se daria da
ção e Monitoramento do Plano Nacional de Políti-
seguinte forma:
cas para as Mulheres” apresentado pela Secretaria de
Políticas para as Mulheres/Presidência da República No caso da transversalização horizontal, trata-se
do Brasil; no Peru, “Políticas de Igualdad de Opor- de articular para que os órgãos setoriais da mesma
tunidades ENTRE Mujeres y Hombres con Equidad esfera federativa atuem a partir de uma perspec-
de Género” pelo Ministerio de la Mujer y Desarrollo tiva que incorpore a dimensão de gênero em suas
Social – MIMDES; no México, “Programa de Cultu- iniciativas. Já a vertical refere-se ao impulso dado
ra Institucional en la Administración Pública Fede-
37
pelo governo federal para que governos estaduais
ral de México” pelo Instituto Nacional de las Mujeres e municipais atuem também a partir deste ponto
(INMUJERES); e, por último, na Argentina, a nível de vista.
Terra dos
municipal o programa “Salud sexual y reproductiva. Homens
Assim, além de buscar garantir a implementação família e à subordinação patriarcal. Como Carloto e
das demandas feministas e de mulheres incluídas no Mariano (2010, p. 469) ressaltam, as usuárias das po-
Plano Nacional, o Comitê por si só líticas de assistência no Brasil mui-
cria uma articulação e discussão tas vezes são colocadas ainda nos
Como Carloto e Mariano
entre os diversos setores respon- papeis tradicionais e “não partici-
(2010, p. 469) ressaltam,
sáveis pela formulação de políti- as usuárias das políticas de pam dos debates e das deliberações
cas públicas, tanto a nível federal assistência no Brasil muitas sobre as ações que influem em suas
como também a nível estadual e vezes são colocadas ainda vidas, nem mesmo sobre as formas
local. O que a noção de gênero sob nos papeis tradicionais e “não de execução dos programas e dos
esta perspectiva traz é um posicio- participam dos debates e das serviços dos quais são ‘alvo’, e não
deliberações sobre as ações
namento mais crítico diante das que influem em suas vidas, sujeitos”. Dessa forma, como se
demandas das mulheres, ainda que nem mesmo sobre as formas tentou problematizar neste texto,
não se problematizem questões so- de execução dos programas perceber o enfoque do conceito de
bre masculinidades. Nesse caso, no e dos serviços dos quais são gênero e a tentativa de transversa-
Brasil optou-se por tratar a questão ‘alvo’, e não sujeitos”. lização, nesse caso da problemática
de “mulheres”, porém procuran- de gênero, poderia ser uma forma
do fugir de visões essencialistas que as cristalizam emancipatória que visa buscar garantir minimamen-
em papeis femininos tradicionais voltados para a te a justiça social.
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Homens
Dicas e subsídios
1. Legislação e política pública 2. Alguns atores
Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Secretaria de Política para as Mulheres (SPM)
contra as Mulheres www.sepm.gov.br
www.spm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2011/ Via N1 Leste S/nº, Pavilhão das Metas,
pacto-nacional Praça dos Três Poderes - Zona Cívico-Administrativa
Política Nacional de Enfrentamento à Violência CEP 70150-908 - Brasília/DF
contra as Mulheres Tel: +55 61 3411-4246 / Fax: +55 61 3327-7464
www.spm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2011/ E-mail: spmulheres@spmulheres.gov.br
politica-nacional Solicitação de publicações: + 55 61 3411-4220
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres E-mail: sonia.galdino@spmulheres.gov.br
www.sepm.gov.br/pnpm/livro-ii-pnpm-comple- Ouvidoria: + 55 61 3411-4298 / + 55 61 3411-4299
to09.09.2009.pdf E-mail:ouvidoria@spmulheres.gov.br
Rede de Enfrentamento à Violência contra Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)
Mulheres www.sepm.gov.br/conselho
spm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2011/ Secretaria de Políticas para as Mulheres da
rede-de-enfrentamento Presidência da República
Via N1 Leste s/nº, Pavilhão das Metas,
Praça dos Três Poderes
CEP 70150-908 - Brasília-DF - Brasil
Tel: +55 61 3411-4234 |Fax: +55 61 3223-0165
E-mail: cndm@spmulheres.gov.br
Fundo das Nações Unidas para a Igualdade de
Gênero e o Empoderamento das Mulheres – ONU
MULHERES
www.unifem.org.br
QSW 103/104 Lote 01 Bloco C - Sudoeste
CEP 70670-350 - Brasília, DF - Brasil
Tel: +55 61 3038-9280 / Fax: + 55 61 3038-9289
E-mail: onumulheres.conesul@unwomen.org
Organizações da sociedade civil que integram o CNDM 2010-2013:
www.equit.org.br
Instituto Equit – Gênero, Economia e Cidadania Global equit.@equit.org.br
Rio de janeiro/RJ – (21) 2221-1182 / (21) 2215-9510
www.redesaude.org.br/home
Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos e Sexuais redesaude@redesaude.org.br
Florianópolis/SC – (48) 3025-4998
www.ubmulheres.org.br/
União Brasileira de Mulheres (UBM) ubm@uol.com.br
São Paulo/SP – (11)3005-8216
Outras organizações
www.agenciapatriciagalvao.org.br
Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos contato@patriciagalvao.org.br
São Paulo/SP – (11) 3266-5434
42 Instituto Promundo www.promundo.org.br
Rio de Janeiro/RJ – (21) 2215-5216
Terra dos
Homens
3. Sites, blogs e outras referências
4. Filmes e documentários
Vídeo da Campanha Mulheres e Direitos: • Conexão Futura 16/01/2013 – “Auxílio à mulher
www.youtube.com/user/UNAIDSBR agredida”
• Conexão Futura 29/06/2011 – Entrada 2 - “Direitos
Instituto Promundo – www.promundo.org.br sexuais e reprodutivos das mulheres”
• Minha vida de João • Jornal Futura Reportagem Rede Mulher 11.01 – “Uma
• Não é fácil não experiência de enfrentamento em São Gonçalo”
• Era uma vez outra Maria
43
Meninos não choram (1999) – drama: Relata a juven-
tude de uma garota que decide assumir sua sexualidade,
Canal Futura – www.futura.org.br/videos
mas que para fugir do preconceito adota a identidade de
• Violência contra mulher Terra dos
um garoto. Homens
Vida Maria (2006) – animação: Maria José, uma menina Elvis e Madona (2011) – comédia brasileira: Conta
de cinco anos de idade, é levada a largar os estudos para a história de um casal formado por uma lésbica e um
trabalhar. Ela cresce, casa, tem filhos, envelhece e repro- travesti.
duz esse ciclo. Tomboy (2012) – drama: Conta a história de uma meni-
XXY (2007) – drama – Narra a história de um (a) jovem na de 10 anos que, após a mudança para um novo bair-
hermafrodita. ro, passa a se identificar como menino perante os novos
Silêncio das inocentes (2010) – documentário brasilei- amigos.
ro: Retrata a triste realidade da violência doméstica no
Brasil.
44
Terra dos
Homens
RAÇA E ETNIA
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Terra dos www.seppir.gov.br/publicacoes/documentofinal_confe-
Homens renciadurban.pdf
Potencializando atendimentos sociais mais
humanos e não racistas
Silvia Ignez Silva Ramos1
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho2
P ara falarmos sobre relações étnico-raciais, pre- Inicialmente, o sentido do termo “não apresentava
cisamos entender o significado que as palavras um viés biológico, mas étnico. O que caracterizava
etnia e raça carregam, analisando se são sinônimas. uma raça não era um estigma de tipo biológico, mas
Assimilamos muitos valores e fatos sociais da cultu- uma tradição, um costume, um passado comparti-
ra desde crianças, que reproduzimos de forma dita e lhado” (p. 65). Depois, o termo raça3 passou a repre-
não dita no trabalho, no amor, na família, nas rela- sentar uma diferenciação por tipo de pele, tipo de
cabelo, conformações fenotípicas, enfim, e etnia es-
ções com o outro em geral, enfim, na vida. Pensemos
taria se referindo a grupos que têm a mesma língua,
um pouco sobre essas palavras, para depois proble-
valores, crenças, e que compartilham de uma mesma
matizarmos o que podem implicar em nossa atuação
estrutura territorial e sócio-política.
cotidiana no Sistema de Garantia dos Direitos da
A construção sócio-histórica desses conceitos
Criança e do Adolescente (SGD).
contribui para entendermos que qualquer das duas
Que visão de mundo temos sobre as relações expressões – raça ou etnia – remete a algum tipo de
étnico-raciais? exclusão. Se nos apoiarmos nas palavras de Farhi
1 Psicóloga da Divisão de Perícias Judiciais do Tribunal de Justiça do Estado do RJ, professora de psicologia jurídica em graduação e pós-graduação
e Doutoranda em Psicologia pela UFRJ. [psilig@gmail.com]
2 Professor Adjunto no Instituto de Psicologia da UFRJ e Coordenador da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de
3
Psicologia. [ppbicalho@ufrj.br]
No Brasil, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), o censo demográfico do ano 2000 investigou a raça ou cor da 51
população brasileira através da autoclassificação em: branco, preto, pardo, indígena ou amarelo. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Censo demográfico 2000. Disponível em: www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/censo2000_populacao. Terra dos
pdf. Acesso em 10 de julho de 2012. Artigo 140 do Código Penal: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.” Homens
Neto, podemos pensar que o racismo envolve rejei- Comecemos pelas análises de nossas
ção às aparências que não atendam a um tipo pa- implicações...
drão. Mas a injúria4 também é chamada de racismo.
De acordo com a Lei nº 10.741/2003, a injúria é a Temos que tentar compreender o que repre-
ofensa em razão da cor, da cultura e da religião, mas sentam esses preconceitos étnico-raciais se “os bra-
também em razão da condição de pessoa idosa ou sileiros afro-descendentes constituem a segunda
maior população negra do mundo (atrás somente da
com deficiência. Diversas ofensas podem preencher
Nigéria): são 87,3 milhões de pessoas corresponden-
o chamado “tipo penal” da injúria.
do a 48% dos habitantes do Brasil.”7 Trabalhar essas
Para nos ajudar a continuar pensando, vejamos
questões representa investigar a própria origem do
o depoimento de Fernando José de Moura Neto, 16
povo brasileiro e de sua aceitação de si. Como se
anos, da comunidade indígena Pitaguary, no Ceará. constrói a autoestima?
Racismo para ele é: Como agentes sociais, temos que pensar quais
[...] uma forma de exclusão da sociedade. Só porque ferramentas usar para atender as pessoas que che-
você não tem um celular da moda, [...] porque você gam a nós. As escolhas dos brinquedos em nossos
não fala do jeito que a sociedade recomenda. Tudo locais de trabalho, por exemplo, têm relação com o
isso é racismo. Não é só você chamar uma pessoa que nos identificamos, o “como” nos vemos, e tam-
de negra. Racismo é também você acabar com os bém reforçam nossas escolhas no mundo. O pesqui-
costumes tradicionais de um povo e de uma raça.5 sador da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Auterives Maciel Júnior (2005), nos provoca ao dizer
É muito importante pensarmos nossas práticas que “quando escolhemos não levamos em conside-
cotidianas e observar se contribuímos ou não para ração o fato destas alternativas terem sido produzi-
o racismo. Desde os não ditos institucionais até arti- das em nós” (p. 54), pois escolhemos entre “possíveis
culações com a rede de atendimento e os conselhos já determinados” (idem). Esses possíveis são fixados
setoriais são analisadores6 para pensarmos o pre- pelas práticas sociais e pelas instituições, pela famí-
conceito étnico-racial. lia, pela televisão, pelos equipamentos de Estado,
Referências
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre MONTEIRO, J. P. Hume e a epistemologia. Lisboa:
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providências. Diário Oficial [da] República Federativa RESOLUÇÃO nº 113 de abril de 2006. Dispõe sobre os
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Janeiro: Martins Fontes, 2008.
1 Professora. Gestora de Ações Sociais e Coordenadora de Proteção Social Especial da SETAS/MS. Mestranda em Ciências da Cultura, pela
55
Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro – Portugal, com a tese Sustentabilidade das Políticas Culturais: Crianças de Povos e Comunidades Terra dos
Tradicionais e a Interlocução Multicultural. Representante do GT-Nacional em Mato Grosso do Sul. Homens
Os Povos Indígenas A maior parte dos indígenas que habitavam o lito-
ral do Brasil na época do descobrimento pertencia ao
grupo linguístico tupi. O indígena brasileiro encontra-
No Brasil, a diversidade étnica e linguística das do pelos portugueses vivia num regime de comunida-
populações indígenas é imensa. São cerca de 460 de primitiva, ou seja, uma forma de organização social
mil indígenas, distribuídos em 215 sociedades fa- onde a ausência da propriedade privada e dos meios
lantes de 180 línguas, pertencentes a trinta famílias de produção resulta numa economia comunitária.
linguísticas diferentes. Usando-se critérios linguísti- Na época do descobrimento, a população indí-
cos, podemos dividir os índios do Brasil em quatro gena do Brasil era de mais de dois milhões de pes-
nações: os Caraíbas, encontrados no norte da bacia soas. Os primeiros contatos entre brancos e índios
Amazônica; os Nuaruaques, encontrados da bacia foram amigáveis. Mais tarde, quando teve início a
Amazônica até os Andes; os Jês ou Tapuias, en- exploração, os índios passaram a ser um obstáculo
contrados no Planalto Central brasileiro; os Tupis- para os colonizadores, que precisavam de suas terras
guarani, encontrados por toda a costa atlântica e al- e de seu trabalho. Muitos índios foram massacrados
gumas áreas do interior. (Assis: 2009, p. 209) ou escravizados pelo colonizador, que lhes roubava
A antropologia social chegou à conclusão de a terra e atacava suas mulheres. A escravidão dos
que os grupos étnicos só podem ser caracterizados indígenas acontecia principalmente nas áreas mais
pela própria distinção que eles percebem entre eles pobres, onde havia poucos recursos para a compra
de escravos negros. O maior exemplo disso foi a
próprios e os outros grupos com os quais interagem,
Capitania de São Vicente (São Paulo), nos séculos
considerando a distinção que se manifesta ou não
XVI e XVII; de lá partiam as bandeiras, em busca do
em traços culturais. E, quanto ao critério individual
índio para servidão.
de pertinência a tais grupos, ele depende somente O índio que sempre esteve em harmonia com o
de uma autoidentificação e do reconhecimento pelo meio ambiente sofreu muito com a chegada do ho-
grupo de que determinado indivíduo lhe pertence. mem branco. Ele saiu do isolamento em que vivia,
De acordo com esse critério, um grupo de indivídu- esse convívio trouxe novos costumes, o que desca-
os pode ou não ser considerado indígena. racterizou muito a sua cultura. O contingente po-
O fundamental, portanto, é considerar-se e ser pulacional indígena era em torno de 2 a 5 milhões
considerado índio; para isso, pouco importa o fato de na época do descobrimento do Brasil. Atualmente,
usar relógio e roupas, ou falar português. Resumindo,
56 a identidade étnica de um grupo indígena é função de
de acordo com dados fornecidos pela FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), essa população está
Terra dos sua autoidentificação e da identificação pela socieda- reduzida a 220 mil habitantes concentrados princi-
Homens de envolvente (Carneiro da Cunha, op., cit., p. 118). palmente nas regiões centro-oeste e norte do país.
Conclusão Referências
Para que se efetive na sociedade o potencial da ASSIS, Simone Gonçaves de (org.). Teoria e prática dos
conselhos tutelares e dos conselhos dos direitos da crian-
diferença, temos que reconhecer nossas próprias
ça e do adolescente. Rio de Janeiro, RJ: Fundação
diferenças e incorporar esse conhecimento em nos- Oswaldo Cruz. Editora Fiocruz. 2010.
sas práticas cotidianas. É instaurar, em definitivo, a CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil
harmonia nas relações, praticar a arte do diálogo e - Mito, história, etnicidade. São Paulo. Brasiliense,
recuperar a dignidade de nossa espécie, que é a úni- 1986.
ca, entre os animais, apta a compreender e ser com- GOMES, Mércio P. Os índios e o Brasil. Petrópolis, Vozes,
preendido. A diversidade cultural e étnica não pode 1988.
ser vista como uma ameaça para a identidade de um GRUPIONI, Luís Donisete B. “El Brasil i Els Drets
povo e sim como um compartilhamento de valores. Indígenes”, Esrpurnall Internacional, edicióany VI,
(Assis: 2010. p. 125). num. 13. Barcelona, 1992. . (org.) índios no Brasil.
As políticas públicas, em especial a Assistência Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, São
Social, precisam promover o atendimento necessário Paulo, 1992.
e adequado, reconhecendo e respeitando o contexto GUIMARÃES, Paulo M. Legislação indigenista brasileira
(coletânea). São Paulo, Loyola, 1989.
cultural de onde vêm as famílias. Os gestores e téc-
nicos especializados que atuam nos CREAS devem LOPES DA SILVA, Aracy. Índios. São Paulo, Ática, 1988.
buscar a identificação e o reconhecimento de que LOPES DA SILVA, Aracy & GRUPIONI, Luís Donisete B.
A temática indígena na escola - Novos subsídios para pro-
“em todas as unidades da federação há tribos indí-
fessores de 1- e 2- graus. Brasília, MEC/ Mari/Unesco,
genas, o que aponta para a necessidade de investi- 1995.
mentos e esforços para obter uma visão mais ampla MELATTI, Júlio César. índios do Brasil. São Paulo/
da diversidade” (Assis: 2010, p.127). Desconhecer Brasília, Hucitec/Edunb, 1993.
as características culturais da realidade local, gera SANTOS, Leinad & ANDRADE, Lúcia. As hidrelétricas do
desconforto e encaminhamentos equivocados que Xingu e os povos indígenas. São Paulo, Comissão Pró-
não garantem a proteção que os usuários precisam Indio de São Paulo, 1988.
e merecem. SOUZA FILHO, Carlos Marés (org.). Textos clássicos
sobre o direito e os povos indígenas. Curitiba, NDI/
Juruá, 1992. 57
Terra dos
Homens
Infância e adolescência feliz e sem racismo
Lúcia Xavier1
58 vam em grave condição de vulnerabilidade social. mize ou ignore o problema. Apóie a pessoa
Terra dos
Homens 1 Assistente social, coordenadora do CRIOLA – organização de mulheres negras no Rio de Janeiro.
discriminada, discuta o problema e mostre que enriquecem a nossa vida e o nosso conhecimento.
as pessoas são diferentes e que essa diferença não Também é preciso mudar a forma de atuação dos
é um defeito. Mas não deixe de denunciar. Busque serviços públicos, bem com das ações não gover-
orientação junto ao Conselho Tutelar, às organiza- namentais. Olhar essa realidade considerando os
ções que defendem os direitos da criança e do ado- efeitos do racismo possibilita criar outras condições
lescente e às organizações do Movimento Negro e para o enfrentamento das desigualdades e para a va-
de Mulheres Negras. Você também pode levar este lorização de cada criança e adolescente a partir da
debate para a escola, para as unidades de saúde, de sua experiência como negros e negras.
assistência social, para os clubes. Propostas de intervenção que visem a garantir
Para romper com as desigualdades raciais e o direito da criança e do adolescente precisam des-
promover os direitos é preciso estabelecer políticas construir as representações negativas que reforçam
públicas equânimes; que valorizem as culturas e as o lugar de inferioridade dos negros e das negras.
identidades étnico/raciais, especialmente aquelas li- Precisam deixar de fortalecer os papéis sociais de su-
gadas à população negra e aos povos indígenas. bordinação destinados aos negros, por meio do de-
Educar a criança e o adolescente para respeitar sestímulo aos estudos e da negação da importância
a diferença é fundamental. Respeitar a diferença da sua cultura como um bem, patrimônio de toda a
passa por reconhecer a diferença física, de culturas, sociedade. E, sobretudo, garantir a sua condição de
religiosidades, habilidades, linguagem, sotaques e sujeito de direitos.
na origem racial e étnica de cada um. As diferenças
59
Terra dos
Homens
Dicas e subsídios
www.issuu.com/andi_midia/docs/
Terra dos Imprensa e racismo - ANDI imprensa-e-racismo_final_14dez-2012/5
Homens
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Valer! / Discriminação não é legal / Rap- Ritmo e São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
poesia / Xamego / Aganju / Fala Zumbi.
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63
• Brasília: MEC/SEC, 2005. guia_racas.pdf Acesso em 10/08/12. Terra dos
Homens
O trabalho para fortalecer vínculos famili-
ares e comunitários exige considerar cada
Temas Transversais
sujeito – crianças, adolescentes, jovens,
adultos e idosos – de maneira integral e
relacional. Isso significa lidar com uma
grande variedade de desafios. E o maior
deles está em dar conta de campos de
Caminhos de inclusão nas políticas públicas para crianças e adolescentes –