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D E M O C RA C I A V I VA 42

MAIO 2009
ENTRE ENTREVISTA

VISTA
Manoel da
Conceição
Ele é uma dessas figuras com quem desejamos passar a tarde toda
proseando. Cheio de causos e bom humor, transmite a imagem
de um homem tranquilo, daqueles que ficam sentados na
frente da casa vendo a vida passar. Lêdo engano. Mané, como
gosta de ser chamado, é cabra forte. Muito
politizado, tem sua vida perpassada
por lutas fundamentais, como pela
reforma agrária e pelos direitos dos
trabalhadores. Foi perseguido
político durante a ditadura, fundou
cooperativas, construiu escolas,
participou da criação da Central
Única dos Trabalhadores (CUT).
Sua maior convicção é a
necessidade de capacitação dos
trabalhadores, algo pelo qual
arriscou sua vida mais de uma vez.
“Sem o autoempoderamento
coletivo dos trabalhadores do
campo e da cidade não haverá
grandes mudanças neste
país. A mudança só vai
acontecer quando a massa
de trabalhadores e
trabalhadoras entender
que o enfrentamento
deve ser coletivo
e não individual.”

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Democracia Viva (DV) – Onde você me ajoelhei no meio do povo dizendo que,
nasceu e como foi sua infância até aquele dia, eu tinha os latifundiários
e juventude? como meus inimigos, mas, agora, eles é que
Manoel da Conceição – Eu nasci no Mara- tinham um inimigo para o resto da vida, e
nhão, no município de Coroatá, próximo ao até hoje estou aqui.
rio Itapecuru. Meus pais eram uma mistura de DV – E aí, você começou
gente. A descendência da minha mãe é portu- a sua luta...
guesa. O meu avô por parte de mãe é de origem Mané – Sim, aí começou a minha trajetória.
indígena e meu pai era descendente de escra- Desde a época de Coroatá até 1962, eu era
vos, minha bisavó era escrava. Meu sangue está apenas um revoltado, quase um “Lampião”,
todo misturado: índios, negros e portugueses. ninguém podia falar de fazendeiro, dono de
Toda minha família era de lavradores. Eu tinha terras, que eu tinha ódio. Mas eu comecei a
seis irmãos e o pedaço de terra onde eu morava participar de um curso de formação do MEB
foi herdado dos meus avós e ficava no meio [Movimento de Educação de Base ] sobre sin-
da terra do Luís Soares, patrão do meu pai. dicalismo, cooperativismo e política. O curso
Meus pais consideravam que ele era um bom era da igreja e durou 13 dias, em Santa Inês.
homem, pois, todo ano, ele liberava a venda Quando o curso acabou, saí com a missão
fiado para ser paga na colheita. de fazer um trabalho nas comunidades. Como
DV – É nesse lugar de origem que 99% da população era analfabeta, a primeira
começa a sua luta pela terra? coisa que fiz foi incentivar a criação de escolas
Mané – Sim, um dia, o Luís Soares chegou nas comunidades. Criamos 28. Quem sabia
na minha casa perguntando se meu pai tinha ler, passou a ser professor e nós recolhíamos
os documentos da terra. Ele queria fazer um dinheiro na comunidade para gratificá-los. Pela
trato: registrar a terra como se fosse dele, pro- manhã, eles davam aulas às crianças e, durante
metendo a moradia da nossa família para a noite, aos adultos. Depois, a escola ganhou
sempre. Meu pai aceitou o trato. Isso foi em o nome de Escola João-de-barro. E foi essa
1952. Só que, em 1955, o patrão morreu e a escola que nos ajudou a entender de sindica-
família dele quis a terra. Invadiram a terra e nos lismo porque até o significado de sindicato
colocaram para fora. Eu estava na casa dos 20 aprendemos fazendo. Em 18 de agosto de
anos e, nessa época, me rebelei, cheguei até 1963, fundamos o primeiro sindicato de traba-
a brigar, mas fomos expulsos. Fui parar em lhadores rurais do Maranhão, o Sindicato de
Mearim, município de Bacabal, em terra de pos- Trabalhadores Autônomos, em Pindaré-Mirim.
seiros. Nesse mesmo lugar, dois anos depois, DV – Como você se envolveu
apareceu um homem que disse que havia com- com o movimento de resistência
prado as terras, o Manacé Castro, filho do à ditadura?
delegado de polícia. Tinha mais de 20 famí- Mané – Eu nunca me envolvi com eles, eles
lias nesse lugar. é que se envolveram comigo. Quando baixou
DV – Vocês aceitaram? a ditadura, nosso sindicato estava em uma
Mané – Não concordamos, nos rebelamos, briga danada por causa de terras e do gado
mas não houve briga. Falei com as autoridades que comia a nossa produção. Tentamos solu-
e me disseram que tínhamos de estar organi- cionar, procuramos até a Secretaria de Segu-
zados. Falaram que a gente tinha de criar uma rança Pública, mas nada foi resolvido. Fizemos
associação. Na nossa primeira reunião para criar uma assembleia, em janeiro de 1964, e deci-
a associação rural de agricultores, o Manacé dimos que o gado que comesse nossa produ-
chegou em um caminhão com uns jagunços e ção, comia bala. Se o dono viesse negociar o
disse: ‘Não corre ninguém, senão morre’. Eles prejuízo, fazíamos acordo. Se o dono viesse
entraram na casa e mataram três rapazes a com brabeza, pegava bala também.
facadas. Os rapazes eram todos casados e Após o golpe, em abril de 1964, o nosso
com filhos. Uma velhinha de 65 anos foi esfa- sindicato foi ocupado militarmente e nos dis-
queada nas costas e ficou rodando no chão; seram que se fizéssemos reunião com mais de
uma criança, que gritava a morte de seu pai, cinco pessoas, iríamos presos por subversão.
foi jogada contra a parede, o crânio rachou Eu fiquei refugiado até julho daquele ano, com
e os miolos caíram na sala. Eu levei um tiro o apoio da Igreja Católica. O gado estava aca-
na perna, mas me livrei. Caí no mangueiral e bando e as pessoas estavam com raiva, revol-
eles não conseguiram me achar. Nessa época, tadas. As pessoas, também de outras comuni-
eu era evangélico, da Assembleia de Deus, e dades, iam para a minha casa, na calada da

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noite, querendo saber o que era golpe, o que que eu imaginei? Não sou cangaceiro e nunca
estava acontecendo. E eu começava a explicar fui, mas vou passar pelo menos um dia sendo
o que acontecia no país. A existência dessas um. Fui para um lugar chamado Carú, que fica
conversas correu como fumaça até chegar à lá para as matas de Pindaré-Mirim. Lá, comecei
delegacia de Pindaré-Mirim. Tentaram me a juntar uns companheiros que estavam revol-
prender, mas tive a sorte de, nesse dia, ter 300 tados. Durante um ano, tudo o que fiz foi juntar
pessoas sentadas na minha casa que impedi- dinheiro para comprar arma de caça e fazer
ram isso de acontecer. Diziam: ‘Mané, preso? um barco gigante. Ao final disso, convoquei a
Daqui não vai, não’. Foi uma confusão, mas a comunidade para voltar a Pindaré-Mirim e pe-
polícia acabou indo embora. gar o delegado de surpresa, prender, amarrar,
Nessa reunião, tinha muitos comerciantes raspar a cabeça de todo mundo da delegacia
que começaram a ficar no meu pé. Diziam: e, no outro dia, soltá-los no meio da rua para
‘Rapaz, esses homens vieram aqui te prender, pagar a humilhação que me fizeram passar.
não deixaram isso acontecer, você não se entre- DV – Foi aí que começou sua
gou. Isso não vai dar certo daqui pra frente’. relação com a Ação Popular (AP)?
Eles queriam que eu fosse na polícia explicar Mané – Sim, antes dessa ação contra o
os meus motivos. Fui conversar sobre isso delegado, chega em minha casa o companheiro
com os meus companheiros que foram contra de sindicato Antônio Lisboa Brito, dizendo que
essa ideia. O pessoal do campo não queria havia alguém do MEB – que também fazia parte
que eu fosse, mas fui. Peguei um barquinho da AP, da qual Betinho era integrante – que-
até Pindaré-Mirim, saí de madrugada e che- rendo conversar e retomar a luta. Foi quando
guei nove da manhã na delegacia de polícia, e voltei para Pindaré-Mirim sozinho, sem família,
disse: ‘Bom dia, sargento!’. Ele me perguntou sem nada. Lá encontrei Rui Frazão, que não era
quem eu era e eu disse que queria saber o do MEB. Eu contei para ele o que estava pen-
motivo da minha prisão. Ao tentar me expli- sando fazer. Ele disse: ‘Rapaz, não faz isso, é
car, me deram voz de prisão. muito arriscado. O governo de São Luís [Mara-
Fiquei 30 dias na cadeia. Toda semana, nhão] vai mandar prender você de qualquer
eles me liberavam um dia e, quando estava jeito’. Conversa vai, conversa vem, eu, que
quase saindo daquela cidade, me prendiam sempre gostei de acatar a decisão do coletivo,
novamente, me chicoteavam alegando que eu optei por não fazer. Foi aí o começo da minha
estava fugindo. A raiva, que já estava passando, militância política. Até então, minha primeira
voltou. A partir dessa ação da polícia, sabe o militância foi nervosa, a segunda foi a do MEB

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e a terceira etapa foi essa do rolo de gado. disso, discordava de implantar o modelo deles
Na AP, como militante, passamos a criar grupos no Brasil, tinha visto as diferenças. Depois de
de produção, organização política. Fui para São uma longa conversa, Mao Tse Tung continuou:
Paulo e trabalhei criando comissões de fábrica ‘Mané, só faltam três coisas que preciso falar.
e, de algumas, surgiu a CUT. Criei tanto comis- Se você achar por bem, leve para seu país’.
sões de campo nas comunidades como essas Ele me disse que tudo que eu tivesse aprendido
comissões de fábrica nas cidades, que serviam na China sobre a revolução chinesa deveria
de oposição sindical à ditadura. Fazia isso na ser enterrado lá mesmo. ‘Cava um buraco e
clandestinidade. Cheguei a ser do comitê cen- enterra tudo o que você aprendeu do que foi
tral e da executiva nacional da AP. feito na China, você faz isso?’. Aí, eu respondi,
DV – Como foi a experiência ‘Mas eu vim aqui para aprender’. Ele disse que,
de ir à China? para aprender melhor, era preciso deixar na
Mané – Fui para a China em outubro de caixola, não levar para o Brasil, essa seria a
1969 e voltei em julho de 1970. Eu aprendi primeira lei do materialismo dialético. Segundo,
muito. Fui em uma delegação de 12 pessoas e chegando de volta ao Brasil, era preciso estudar
eu não era dirigente. Fomos para uma escola a realidade do país e fazer um trabalho pro-
fazer curso político e de guerrilha. Lá, foi dis- fundo. A terceira era que, baseado nessa rea-
cussão que não tinha fim. A maioria dos com- lidade, eu precisaria definir quem eram mesmo
panheiros entendia que a revolução chinesa era os inimigos a serem enfrentados. A disputa
o nosso modelo de fazer revolução. Foi nisso era baseada em saber como tirar do inimigo e
que começou a minha divergência com a AP. trazer aos aliados. Ele me ensinou também a
Discordava que a revolução chinesa fosse um nunca ser o primeiro a declarar ruptura polí-
modelo para ser aplicado no Brasil. Essa diver- tica, econômica ou ideológica. E não é isso
gência amigável, fraterna, chegou ao Mao Tse o que está sendo feito aqui no Brasil, preci-
Tung. Quando fui receber uma perna mecâ- samos aprender mais sobre isso. Esses são
nica no hospital chinês, recebi um recado pra pontos que guardei até hoje da minha con-
eu ir a um lugar com uma pessoa. Era para versa com ele.
encontrar com o Mao Tsé Tung! Na conversa, DV – Onde você mora hoje?
ele perguntou como estava o curso. Eu falei Mané – Eu moro em João Lisboa [a 650 qui-
que estava uma beleza! Mas ele responde: lômetros da capital, São Luís], onde temos uma
‘Não está ótimo, está acontecendo algum mal- escola de formação e capacitação dos trabalha-
entendido, não está? Principalmente com dores. Minha casa fica ao lado dessa escola.
você’. A AP tinha uma crítica à China sobre o Eu vivo com minha segunda mulher, Denise. Tive
programa da Rádio Pequim feito para o Brasil, três filhas e um filho. Mariana nasceu na Suíça,
e isso foi colocado no papel. Só que, na hora onde fiquei três anos e meio como exilado,
de assinar a crítica, o pessoal colocou o Mané mora comigo, e é agrônoma. O Manoelzinho
para assinar e não o dirigente da organização. é professor e a Raquel é sindicalista. A Rosinha
Era uma crítica coletiva, mas ficou como se morreu em um acidente com um caminhão na
fosse minha. Também tinha essa divergência estrada, em 1º de novembro de 2002.
sobre a revolução que contei. DV – Você já foi evangélico,
Depois de duas horas de conversa, ele falou: e agora qual a sua religião?
‘Rapaz, eu estive no Partido Comunista sozi- Mané – Eu tenho uma crítica muito forte
nho, quase isolado, durante 15 anos, por causa aos evangélicos e aos católicos, porque falar
de uma divergência mais ou menos desse tipo. da morte de Jesus e que ele queria só o céu
Os companheiros de partido achavam que a depois de morto é deturpar a história, levando
revolução chinesa devia seguir os mesmos a morte de Jesus a quase nada. Nos meus
caminhos da União Soviética e eu era o único estudos, ele não morreu só porque queria o
que era contra, porque lá a revolução tinha céu para os pobres, mas porque queria uma
acontecido da cidade para o campo, e aqui vida digna para todos os seres da sociedade.
isso é impossível. A grande massa na China é Para mim, quem cria a vida é o universo.
de camponeses. Logo, a força principal dessa Na minha cabeça, não se usa este nome, Deus.
revolução deve ser do campo’. O universo, que é material e ao mesmo tempo
DV – E isso foi algo que marcou espiritual, que é capaz de criar as coisas. Quem
a sua vida... não tem espírito, não cria. Só cria aquele que
Mané – Eu passei três meses pelas bases tem um espírito no seu corpo material, do
de apoio da revolução na China. Por causa contrário, não tem criatividade.

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DV – O que você imagina para um investimento muito grande na questão do


o Brasil em termos de modelo conhecimento científico e tecnológico. Se isso
de desenvolvimento? Que papel não acontece, o processo acontece, mas não
as iniciativas de economia cresce. Precisamos substituir essa produção em
solidária devem ter? grande escala que só serve para exportação.
Mané – Eu trabalho no Maranhão, em uma Há, também, a questão do veneno e dos
região de agricultura familiar, onde tem grandes agrotóxicos. É preciso uma produção orgâ-
produtores de soja, eucalipto, carvão, e sei que nica, que respeite a natureza e, sobretudo, a
essa produção não tem diversificação. Isso cria vida de cada ser que gera aquela produção.
muitas dificuldades de sobrevivência porque Não adianta ter um pinto que, em cinco dias,
toda produção, quando sai para o mercado, é vira um galo gigante e não presta. Um boi que
deles, não nossa. Produzimos, mas não apren- antes não dava nem 500 quilos, hoje pesa mais
demos a gerenciar o negócio, por isso, hoje, de mil! Gera riquezas, mas não gera produtos
discutimos a necessidade de pensar no auto- de qualidade. Essa produção excessivamente
empoderamento coletivo dos trabalhadores. comercial só tem gerado fome, desigualdade.
Não adianta falar de economia solidária se não Nossos rios não têm mais peixes, por conta da
existe um ser humano solidário. poluição, e nossas florestas já não estão, nem
A primeira coisa a se pensar é como cons- de longe, como eram antes.
truímos essa organização coletiva e solidária O Maranhão era um estado pobre, mas não
que gera uma produção coletiva e solidária, de famintos. Uma coisa é ser pobre, e outra é
porque, se cada um produz para si, ninguém ser faminto. Com isso, aumentou a violência.
vai a lugar algum. Nós precisamos ter a terra Qual é a alternativa? Ser um marginal para
para produzir com quantidade e qualidade, ter tomar de quem tem? O Bolsa Família, que
o controle da nossa produção, a industrializa- devia ser uma coisa boa, pelo menos em nosso
ção dessa produção. Precisamos, também, de estado, não está sendo.
uma produção diversificada, que contemple a DV – Por quê?
especialidade de cada um. E isso uma família Mané – Porque o processo de capacitação,
sozinha não consegue fazer. conscientização para que as pessoas gerem
Tudo isso é importante, mas o mais impor- novos caminhos, criem autonomia, não acon-
tante nesse processo é: como nós consegui- tece. Não existe um acompanhamento sistemá-
mos tomar posse do conhecimento científico tico e o que acaba acontecendo é que quanto
e tecnológico para não ficarmos reféns daque- mais bolsas, mas famintos aparecem.
les que têm o conhecimento de transformar DV – O Bolsa Família deveria ter,
a produção em mercadoria cara. Precisamos então, uma segunda etapa que
conseguir assegurar esses princípios ou se consistisse na implantação
torna muito difícil. É nesse campo que está a de escolas técnicas, cursos etc.
nossa grande guerra. É isso isso que está faltando?
DV – Você acha que já se caminhou Mané – Não só isso, mas o entendimento
rumo a esse empoderamento de que é necessário haver uma formação
ou ainda há muito o que fazer? mais consciente e mais solidária, tanto na
Mané – Estamos indo muito devagar. educação básica quanto nas universidades.
A maioria dos trabalhadores se encarregou, Se a escola não assume isso, uma nova cultura
antes de tudo, de odiar os ladrões, mas só ter não surge. Para surgir uma nova cultura, é
raiva não adianta. É necessário ter coragem, preciso que haja análise, estudos, a visualiza-
sabedoria, conhecimento e, também, o que se ção do que acontece. Hoje não vemos nada
chama de amor ao próximo. Essa relação amo- disso na televisão. Como ela é um dos principais
rosa é muito importante para a sociedade andar. meios de comunicação, é preciso que também
É preciso ter muito amor com o que se faz. esteja na televisão. É preciso haver acompa-
DV – As iniciativas de economia nhamento dos instrumentos, e não é isso que
solidária vêm se fortalecendo na acontece. Sem isso, fica muito difícil. Enquanto
sociedade brasileira. Como você eu falo com 20, eles falam com 1 milhão, 3
avalia esse processo em relação, milhões, como eu vou vencer? Desde 1980, eu
por exemplo, há dez anos? estou no Maranhão junto com o movimento,
Mané – Está muito devagar, mas está acon- para conseguir terra para trabalhar. Nos mobi-
tecendo. Porém, acredito que, para andar mais lizamos e fizemos centenas de acampamentos
rapidamente, a economia solidária necessita de gigantes, com até 15 mil famílias. Conseguimos

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até que Fernando Henrique Cardoso começou DV – Você acredita que nenhum
a governar... e como os trabalhadores não têm governo teria destaque nesse
essa cultura coletiva de controle da produção, sentido, focado essa questão
de industrializar e colocar no mercado, ficaram com um pouco mais de respeito?
pobres, desgraçados! Mané – Dizer que não tem, não é verdade.
Nunca conseguimos colocar a importância Eu acredito que o governo federal que temos
do corporativismo, da vida coletiva. Mas cente- hoje, o governo Lula, dos que eu tenho conheci-
nas, milhares de trabalhadores acham melhor mento, é o governo mais próximo da sociedade.
vender a terra e montar um boteco para vender Porém, falta muita coisa para darmos um salto
besteira. Vendem a terra depois de tanta luta, da quantidade para a qualidade.
terra que custou até vidas. Passa um tempo, DV – Você gostaria de ressaltar
vendem e querem de novo. Não melhorou a algum aspecto no qual o governo
vida, inventam mentiras, acham que vão ganhar Lula deveria estar investindo,
dinheiro com cachaça. Essa é a cultura que está e não está?
na cabeça do pessoal. Quem não rouba e não Mané – Aí temos umas questões graves.
herda, segundo meus avós diziam, fica na merda. Quem determina a cultura, e até a política,
Essa é a cultura que predomina na sociedade. de um modo geral, é quem tem o controle
DV – Então a educação é o hegemônico da riqueza principal do país.
principal elemento que falta? Para trazer investimentos com mais força, com
Mané – Não vai haver mudanças signifi- mais garra, teremos de enfrentar os ricões
cativas com qualidade e quantidade se nós, e que estão por aí, no Brasil e no mundo. Esse é
o governo, não investirmos na escola. Temos o credo de um povo. Aí, se esse povo não
os meios de comunicação de massa que o povo coloca isso como alvo de ataque, fica difícil de
escuta e assiste a toda hora e nos quais só resolver. Isso pode acontecer desde que se
se fala besteira o tempo todo. Só se fala de trace um caminho prolongado e se busque
roubo, sacanagens. Veja o exemplo das nove- sempre investir na organização dos trabalha-
las, todo mundo quer ver novelas, mas existe dores coletivos e intensificar a questão cultural,
algo de educativo nelas? Nós podemos vencer, acompanhando o plano de produção, indus-
desde que o governo federal e os governos trialização e distribuição.
estaduais e municipais se preocupem com O governo Lula investiu, mas foi pouco.
essa questão muito mais do que estão preo- No Maranhão, por exemplo, tem uma família
cupados hoje. chamada Sarney que, durante a ditadura, esteve

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dentro. Esse pessoal é muito rico. No Maranhão, a deputado federal. Eu entendo que o poder
o povo é pobre. Menos eles. É uma oligarquia de alguém que chega lá sozinho não pode ser
poderosa. Nós [o PT, partido do qual Mané é o mesmo de alguém que chega com o apoio
um dos fundadores] disputamos três vezes o de todo mundo, como o Lula. Mas parece que
governo federal, ganhamos na quarta, e o José ele chegou lá sozinho. Não há uma discussão
Sarney estava dentro, apoiando, lutando, defen- coletiva para decidir quem tem capacidade para
dendo. Ele é o nosso maior intermediário entre auxiliar, os companheiros não são educados a
o governo federal e o estado da oligarquia entender que o mandato é dele para o povo.
Sarney. Eles têm apoio, poder. Nós, trabalha- Existe um coletivo por trás da pessoa eleita.
dores, de todas as cores, amarelo, branco, ver- DV – Essa mudança passa por
melho, negro, como queiram chamar, perdemos uma reforma política no Brasil?
no Maranhão nosso alvo de ataque. O que seria uma reforma eficaz?
DV – Você já se candidatou Mané – Não sei se precisa de uma reforma.
alguma vez? Porque a reforma política imposta não vai levar
Mané – Fui candidato três vezes no Brasil a lugar nenhum. As pessoas têm de entender
e nunca reivindiquei ser candidato a nada. que, do jeito que está, é impossível continuar.
Acho que foi por isso que não ganhei. Mas Por isso, muitas revoluções feitas no mundo
toda vez que tínhamos uma candidatura que todo não deram certo. O que era visto como
não era para ganhar, o pessoal me indicava. principal instrumento de construção de uma
Assim, fui candidato ao governo, a senador e nação, a ditadura, não era nada construtiva.
As pessoas precisam reagir. Se a consciência
for transformada em cultura, em prática de
trabalho e de vida, é possível melhorar. Mas
para isso acontecer, tem de haver um grande
investimento. Volto a falar, o governo precisa
divulgar as coisas públicas, tornar o governo
realmente público, aberto ao coletivo.
DV – Você aponta a necessidade
de rede coletiva, atuação em
conjunto. O governo Lula, desde
que começou, busca uma
aproximação com os movimentos
sociais, pelo menos na teoria.
Quais são os pontos negativos
ou positivos dessa aproximação?
Mané – Não vejo pontos negativos. Até
hoje, o melhor governo que já vi no Brasil é o do
Lula. Digo sem medo de errar. Mas há limites
para dizer que vai ajudar na mudança. Todos
eles têm esses limites, ninguém quer se deparar
com esse enfrentamento mais forte.
DV – Dizem que, de alguma
forma, a sociedade civil acabou
cooptada e se enfraqueceu,
não fez a pressão necessária.
Você concorda com isso?
Mané – Concordo, assino embaixo. Nós lu-
tamos vários anos para criar uma central única
dos trabalhadores neste país. Hoje, nós temos
cinco ou seis. Cada uma criticando a outra.
Eu pergunto o seguinte: nós temos um estado
que está dividido em municípios, você já viu
um município com dois prefeitos, um estado com
dois governadores e um país com dois presi-
dentes da República ao mesmo tempo? E nós
temos três, quatro centrais de trabalhadores.

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MANOEL DA CONCEIÇÃO

Enfraquece-se o movimento. O inimigo nú- cortados são os destinados ao social, eles são, Participaram desta
mero um das nossas centrais é justamente então, colocados no etanol, no petróleo etc. entrevista
essa divisão. E isso se reproduz em todo o país. Faríamos uma feira em Imperatriz, uma feira Ana Bittencourt
Diego Santos
Se você observar o PT, verá que a guerra está de economia solidária, e com a crise, sem Flávia Mattar
lá dentro. Como vai dar certo se os movimen- nenhuma conversa, o apoio financeiro foi cor- Jamile Chequer
tos brigam entre si? tado. Foi nos dada a desculpa de que a con-
DV – Então, você acha que parte juntura estava exigindo essa posição. Se não Realização
dos problemas está dentro dos conseguirmos andar com os nossos pés, não Decupagem e fotos
Diego Santos
próprios movimentos? teremos sustentabilidade. Ela passa pela união
Edição
Mané – Nós mesmos, trabalhadores e tra- consciente. Afinal de contas, qual sociedade
Jamile Chequer
balhadoras, não nos libertamos daquilo que queremos construir? Uma sociedade capitalista,
Produção
havíamos adquirido ao longo da nossa história, socialista, misturada? Como é isso? Podem
Geni Macedo
influência ideológica e cultural. Nós estamos construir o que quiserem e, com o passar do
estruturados neste sistema capitalista. As pes- tempo, volta tudo.
soas podem até pensar que estou falando DV – Você estava falando da crise.
besteira, mas veja bem: houve um tempo em O que significa para você a eleição
que só se falava de mensalão, não é? Mensalão de Barack Obama como presidente
era algo fora de moda? Não era. Companheiros dos Estados Unidos?
nossos aderiram a isso. E não aconteceu nada! Mané – Eu vejo a situação do Barack Obama
Ninguém falou nada! Precisamos de instrumen- muito parecida com a que vivemos aqui com
tos, novas práticas, uma nova vida. Precisamos o Lula. Ele pode melhorar muitas coisas, mas
admitir que alguém faça o que o sistema faz. uma transformação, como a que eu sonho há
Qual a minha moral política, cultural e ideoló- mais de 50 anos, não vai acontecer a curto
gica para enfrentar o que prejudica a socie- prazo. O grande problema é ter a paciência de
dade? Essas coisas não são tratadas e, quando construir e andar junto. É fundamental ter esse
são, as pessoas querem mudança. Mas como? amor solidário em que o saber não é mono-
Se nós mesmos lidamos com elas, passamos a pólio, mas coletivo. Isso custa para acontecer.
mão por cima? Não dá, e é isso que dificulta DV – Você acredita que a reforma
qualquer ação fraterna, solidária e democrá- agrária vai acontecer?
tica de qualquer governo que queira mudar Mané – Eu acredito que saia. E tenho cer-
alguma coisa, pois, na sua base, tem gente teza que é importante. Mas o que a reforma
que diz que não faz, mas faz. Podemos chamar agrária traz de benefícios à sociedade pre-
na teoria de economia solidária, mas a nossa sente nos centros urbanos? A terra sempre foi
prática é balela, papo furado. Quando temos vista como coisa de pobres. Até quem está
uma coisa no sangue, nem que morramos, no campo quer sair de lá. Precisamos mudar
vamos até o fim. essa cultura. A questão da reforma agrária
Como se muda isso sozinho? Você acha que não é só terra e pobreza. As pessoas preci-
Jesus Cristo foi morto porque ele queria o céu sam entender que terra nunca foi mercadoria.
para todos após sua morte? Não. Ele queria O sol não é, o ar não é. Se bem que, até hoje,
aqui o céu para que vivêssemos bem na terra. o sol só não virou mercadoria ainda porque
Céu não é condição de quem não peca depois não conseguiram prendê-lo. Tudo vira mercado-
da morte. Aqui está o céu e o inferno. Falta ria nessa sociedade do dinheiro. Essa mudança
generalizar muito mais esse sentimento de de cultura é necessária. O debate da reforma
libertação e é necessário assumirmos. Mas não agrária começou no governo João Goulart,
basta culparmos alguém. O problema está quando nós começamos a criar coragem para
em como, coletivamente, nos organizamos, ocupar as terras. Foi em uma ocupação em
trabalhamos para colocar freio nessas coisas 1968, quando eu perdi minha perna, 13 de
que são terríveis. julho de 1968, ano em que completei 33 anos.
DV – Você acha que a produção do Foi quando conheci o primeiro assentamento do
etanol vai prejudicar ou beneficiar Maranhão. A revolta foi surgindo em todas as
o trabalhador rural? esferas e foram surgindo novas ocupações que
Mané – Como já disse, é necessário todo só foram reconhecidas depois da ditadura.
um trabalho de capacitação, reeducação e No dia em que tivermos uma força invencível
implantação da economia solidária. Temos visto para tomar posse desses instrumentos, que não
a crise do capitalismo no mundo inteiro e, com estão nas nossas mãos, conseguiremos ver a
certeza, os primeiros investimentos a serem reforma agrária acontecendo.

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