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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

ABIGAIL SILVESTRE TORRES

Segurança de convívio e de convivência:

direito de proteção na Assistência Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2013
1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Abigail Silvestre Torres

Segurança de convívio e de convivência:

direito de proteção na Assistência Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica
como exigência parcial para a obtenção
do título de DOUTORA em Serviço
Social, sob a orientação da Professora
Doutora Aldaíza Sposati.

SÃO PAULO

2013
2

Abigail Silvestre Torres

Segurança de convívio e de convivência:

direito de proteção na Assistência Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica
como exigência parcial para a obtenção
do título de DOUTORA em Serviço
Social, sob a orientação da Professora
Doutora Aldaíza Sposati.

Aprovada em: _____________

Banca Examinadora

Profa. Dra. Aldaíza Sposati (orientadora)


Instituição: PUC-SP Assinatura______________________

Prof. Dr.____________________________________________________
Instituição: ____________________Assinatura_____________________

Prof. Dr.____________________________________________________
Instituição: ____________________Assinatura_____________________

Prof. Dr.____________________________________________________
Instituição: ___________________Assinatura______________________

Prof. Dr.____________________________________________________
Instituição: ____________________Assinatura______________________
3

DEDICATÓRIA

Aos meus pais pela presença amorosa


que produz em mim autoconfiança e
sentimento de proteção.
4

AGRADECIMENTOS

Ao término desse percurso é imprescindível reconhecer que ele foi rigorosamente


realizado em parceria e que é fruto de uma mobilização coletiva, que possibilitou a
superação de limitações e de inseguranças que a construção científica expõe. Assim,
quero expressar minha sincera gratidão,

À Profa. Dra. Aldaíza Sposati, orientadora desse trabalho, por aportar saberes e por
valorizar e tornar visível para mim linhas de força a serem exploradas que seriam
ignoradas não fosse essa oportunidade de diálogo. Mas, essencialmente agradeço a
acolhida generosa e carinhosa, as constantes manifestações de confiança e de
valorização que produziram em mim a segurança necessária para realização do
percurso.

À Maria Julia Azevedo Gouveia (Maju), que num encontro potente, afetivo e motivador
colocou à minha disposição suas elaborações e convicções sobre o tema, de modo
que eu pudesse dar continuidade à nossa construção conjunta, respeitando nossos
achados e escolhas.

À Stela Ferreira, por sua parceria dedicada e motivadora em todas as fases desse
projeto, colocando à disposição seus saberes e suas convicções éticas e políticas
sobre o lugar e o papel da política de Assistência Social na atenção aos cidadãos. Mas
também, por sua presença afetiva que me transmite certeza de companhia e
segurança de proteção em todos os momentos e em quaisquer circunstâncias.

Aos profissionais e especialistas que contribuíram com esse trabalho, dispondo-se ao


diálogo, expondo suas reflexões, dúvidas e suas práticas profissionais, contributo
essencial para garantir a proximidade entre a elaboração e o debate programático.

Às professoras do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da PUC-


SP e aos amigos do NEPSAS e NEXIN, pela disponibilidade para o diálogo e pelo
estímulo para a investigação.

À Aidê Cançado, Adriana Pereira e técnicos e gestores do MDS, que interessados se


mobilizaram para assegurar as condições para o desenvolvimento autônomo da
pesquisa empírica.

Às profas. Carla Bronzo e Bader Sawaia pelas contribuições na banca de qualificação


que alertaram para pontos a serem adensados na continuidade da produção.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao


Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio ao
desenvolvimento desta tese.
5

À She Nilson, Sheila Marcolino, Kelly Mellati e Stefânia Heren, pela disponibilidade
para construção conjunta, por visualizar elementos a serem explorados no material
bruto e pelo compromisso de corresponsabilidade expresso na disponibilidade
constante para leitura e revisão do texto em toda a sua construção.

À Dora Utescher, massoterapeuta, que de forma dedicada, buscou aliviar dores e


desatar nós, possibilitando a oxigenação e circulação das ideias.

À Cristina Fernandes e Eveline Denardi pela prontidão e presença solidária na


finalização do trabalho.

Às amigas Marô Gomes, Neiri Chiachio, Vânia Nery e Silvia Britto, pelas muitas
reflexões sobre o cotidiano profissional na Assistência Social, desenvolvidas por meio
de presença “saltitante”, afetiva e festiva.

À Rose Ferreira, parceira amiga com quem tenho partilhado projetos profissionais e
pessoais, pela construção conjunta sempre respeitosa e pela certeza de afeto.

Ao Paulo Sérgio, parceiro de mais de duas décadas cujos vínculos de afeto e o


diálogo instigante me estimularam a assumir esse e outros desafios profissionais e
pessoais.

Aos meus pais, irmãos, sobrinhos, amigas irmãs (Neide Russo, Rosimeire Morgado e
Tânia Barros), pela rede de proteção e pelas muitas e constantes manifestações de
afeto e admiração que me tornam autoconfiante e me transmitem a certeza de que sou
estimada e reconhecida.
6

RESUMO

O presente estudo se ocupou de investigar a convivência social, enquanto um


processo sociorrelacional que contem possibilidade de ampliar a proteção
social de sujeitos, famílias, grupos e segmentos populacionais, mais
particularmente foi conduzido a partir da afirmativa da convivência social como
ação programática da política de assistência social na garantia de uma
segurança social. A partir da teoria do reconhecimento e da teoria dos vínculos,
busca apontar como as relações podem produzir proteção e reconhecimento,
mas também podem produzir humilhações, desqualificação e subalternização.
Por se tratar de situações impossíveis de serem enfrentadas pelos sujeitos que
as sofrem, defende o trabalho que a presença do Estado e mais
especificamente da politica de assistência social para atuar nessas relações é
imprescindível, o que requer um fortalecimento do trabalho social nesta política
numa direção democrática que respeita a autonomia dos sujeitos na tomada de
decisão e oferece oportunidades de viver a experiência de convívio social como
proteção. Neste fortalecimento é necessário o desenvolvimento de
conhecimentos sobre situações de sofrimento, para toma-las como demanda
na atenção do trabalho e a superação de práticas conservadoras que ao
desvalorizar o sujeito terminam por se constituir como expressão de
segregação e não de proteção.
7

Palavras-chave: Política de Assistência Social. Convivência social.


Reconhecimento. Vínculos Sociais.

ABSTRACT

This study is focused on investigating social life, as a socio-relational process,


which has the possibility to increase the social protection of subjects, families,
groups and segments of population. It departs from the assumption of social life
as a programmatic action of social service policy in order to assure social
security. Drawn upon theory of recognition and theory of social bonds, this
study seeks to point out how relationships may promote protection and
acknowledgment, although it also may create humiliation, undervaluation, and
subordination. Due to these situations are harsh to be coped with by the
subjects who suffer them, this study defends the crucial role of the State and
specifically the social service policy to act upon these relationships. This
requires strengthening social service policy towards a democratic mode which
respects the autonomy of the subjects in taking decisions and offers
opportunities to living the experience of social life as social protection. In order
to strengthen social service policy it is necessary the production of knowledge
on situations of suffering to take them as demanding social work attention and
to overcome conservative practices which devalues the subject and
consequently constitutes an expression of segregation rather than protection.

Keywords: social service policy, social life, acknowledgment, social bonds.


8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 VÍNCULOS E RECONHECIMENTO: RELAÇÕES QUE PROTEGEM 41

1.1 Convívio social fator de transformação dos indivíduos e da


sociedade 46
1.2 Reconhecimento e proteção como resultante de convivências
protetivas 54
1.2.1 Autoconfiança: reconhecimento produzido pelos vínculos nas
relações primárias 59
1.2.2 Autorrespeito: reconhecimento decorrente dos vínculos de
cidadania 69
1.2.3 Estima social o reconhecimento das diferenças como valores
positivos dos sujeitos 85

2 DESPROTEÇÕES DECORRENTES DAS RELAÇÕES SOCIAIS


A ESPECIFICIDADE BRASILEIRA 97

2.1 Barreiras institucionais: a produção de subalternidade e


segregação na atenção em serviços 120
2.2 Vulnerabilidade civil urbana: o território vivido como produtor de
estigma e apartação 130
2.3 A vivência familiar como experiência de desproteção 137

3 POLÍTICAS DE SEGREGAÇÃO VERSUS POLÍTICAS DE


CONVIVÊNCIA: UMA BREVE ABORDAGEM DA AÇÃO ESTATAL 144

3.1 Institucionalização: manifestação de práticas de segregação 146


3.2 Práticas de convivência social: breve caracterização 156
3.3 Convivência Social na Política de Assistência social:
desafios do presente 162
3.3.1 Sobre imprecisão conceitual 168
3.3.2 Sobre conhecimento limitado da realidade e baixo
reconhecimento de desproteções do campo relacional 176
3.3.3 Sobre indicadores de resultados do trabalho social voltado
ao convívio 188
3.3.4 Permanência de conservadorismo no âmbito da assistência social 192
3.4 Convivência social e proteção: identificando elementos na
intervenção da política de assistência social 197
3.4.1 Vozes e silêncios: escuta e diálogos produzindo horizontalidade
entre sujeitos 208
3.4.2 Vivência de situações de convívio protetivo: a experiência
ressignificando a trajetória dos sujeitos 216
9

4 CONCLUSÕES 223

REFERÊNCIAS

ANEXO A – Termo de consentimento livre e esclarecido (entrevistas)


ANEXO B – Termo de consentimento livre e esclarecido (grupos)
ANEXO C – Roteiro para entrevistas
ANEXO D – Roteiro para visitas técnicas (observação e grupos focais)
ANEXO E – Reconhecimento de desproteções do campo relacional
10

INTRODUÇÃO

Essa exigência de passar da hipótese racional para a análise da


sociedade real e de sua história vale com maior razão hoje, quando as
exigências, provenientes de baixo em favor de uma maior proteção de
indivíduos e de grupos aumentaram enormemente e continuam a
aumentar. (...) O fato mesmo de que a lista desses direitos esteja em
contínua ampliação (...) nos deveria tornar conscientes de que o mundo
das relações sociais de onde essas exigências derivam é muito mais
complexo, e de que, para a vida e para a sobrevivência dos homens,
nessa nova sociedade, não bastam os chamados direitos
fundamentais, como os direitos à vida, à liberdade e à propriedade
(BOBBIO, 1992, p.75, grifo meu)

É a convivência social, como um processo sociorrelacional que


contem possibilidade de ampliar a proteção social de sujeitos, famílias, grupos
e segmentos populacionais, que este estudo se dedica, mais particularmente à
convivência social como uma ação programática da política de assistência
social e garantia de uma segurança social que o tema é aqui conduzido. A
proteção social humana não resulta apenas de uma capacidade individual em
dar conta de necessidades e superar fragilidades, mas de um conjunto de
relações e acessos aos bens coletivos que constroem a superação da
desproteção através de múltiplas formas. Entre elas, se destaca o convívio
social. A proteção social, como condição coletiva, supõe um pacto para garantir
medidas de prevenção e apoio baseado na solidariedade social e no processo
de reconhecimento da dignidade do outro e da preservação da dignidade
humana.
A convivência social supõe relações entre sujeitos (individuais e
coletivos), tempos (cotidiano e eventual), espaços (contíguos e virtuais) nos
quais se expressam concretamente para cada pessoa “com quem e com o que
pode contar” em situações de fragilidades e desproteções sociais. Por isso, a
convivência social não pode se dissociar do campo de interesse e de cognição
das pessoas, como também não se separa dos fenômenos macrossociais de
suas expressões nas relações cotidianas, sob pena de generalizações que
pasteurizam modos de vida e colocam as soluções para vivências degradantes
e desumanas no campo do impossível, como se fossem produzidas numa
11

esfera abstrata, longe de nossos domínios e da ação política de sujeitos


concretos que a vivenciam.
É sabido e constantemente afirmado que o ser humano é um ser
social, sua condição gregária é inexorável e necessária não só para sua
sobrevivência, mas para seu bem-estar. Todavia, olhar para essa condição de
ser social exige considerar os modos de viver e conviver que, em sua
diversidade, são atravessados por questões culturais, econômicas e políticas.
Poder-se-ia dizer então que a convivência social sinaliza um dado padrão
civilizatório de relações que influenciam e são influenciadas por dinâmicas
macrossocietais, mas que se expressam na complexidade das relações
cotidianas. Há elementos da sociabilidade contemporânea que se expressam
nas formas de convivência os quais sinalizo aqui na perspectiva de explicitar o
contexto no qual os diálogos sobre a convivência social e a proteção social se
estabelecem.
O modo contemporâneo de viver e de conviver é notadamente
marcado por uma dinâmica de relações presenciais e virtuais, próximas ou
distantes na contiguidade do espaço local e global. Marcam o tempo presente
as inseguranças e as incertezas decorrentes da organização econômica e
social em uma sociedade de mercado (HOBSBAWN, 2000; CASTEL, 2010).

Isso que se convencionou chamar de desregulação neoliberal em


tempos de globalização, financeirização da economia e revolução
tecnológica fez por desestabilizar as referências e parâmetros pelos
quais pensar a cidade (e o país) e suas questões, ao mesmo tempo
em que as realidades urbanas se modificam em ritmo acelerado. Se
as conexões que antes articulavam trabalho, cidade e política foram
desfeitas, é como se, agora, cada um desses termos passasse a
polarizar outros feixes de questões e compor outras relações que
escapam do espaço conceitual no qual o debate dos anos 80 se
processava. (TELLES, 2006, p.14)

O olhar para o novo tempo exige atenção para compreender as


dinâmicas estabelecidas, as formas de expressão de desigualdades e os
desafios de viver em um momento no qual as mudanças ocorrem de forma
acelerada e simultânea. Para o recorte desse estudo interessa analisar como
são produzidas, simultânea e paradoxalmente, fortalezas e subordinações nas
relações sociais.
12

As mudanças contemporâneas geram tensões entre os


indivíduos, o Estado e a sociedade, e os limites entre espaço público e privado
estão cada vez mais confusos e difusos (DUPPAS: 2003). A sociabilidade
contemporânea é atravessada por uma série de particularidades que a
diferenciam de momentos históricos anteriores, dentre os quais NOGUEIRA
(2005) destaca o processo de mercadorização geral, ou seja, há uma
predominância do mercado como resposta para tudo. Sendo assim, espalha-se
a compreensão de que tudo pode ser comprado1, bens materiais e imateriais,
inclusive os direitos. O cidadão reduzido a consumidor passa a ter equivalência
do seu poder de compra e a desproteção é então considerada tão só pelo
aspecto que envolve a renda. Este contexto traz um forte impacto sobre o
consenso em torno do que deve ser foco da atenção pública coletiva não
mercadorizada.
O avanço tecnológico atual alterou significativamente a
capacidade produtiva, que é potencializada alcançando patamar muito superior
ao observado no século passado, embora com redução significativa do
emprego da força de trabalho. A tecnologia alterou significativamente as formas
de comunicação e de conexão entre as pessoas. E nesse contexto, os espaços
virtuais de contatos e diálogos se multiplicam2 .
A produção de informação ocorre por meio cibernético, o que
termina por superar a prática de construção de significados compartilhados. As
informações são produzidas e circulam automaticamente e em tempo real.
Convocam-se os que partilham de uma rede social para a manifestação

1
SANDEL (2012, p.10), aponta que atualmente são poucas coisas que o dinheiro não compra, pois há
preço fixado para situações as mais distintas, tais como: upgrade em cela carcerária, acesso às pistas de
transporte solidário para fugir do rush, barriga de aluguel indiana, direito de ser imigrante nos Estados
Unidos, direitos de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção, celular exclusivo para acesso ao
médico em qualquer momento, direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera,
matrícula do filho numa universidade de prestígio, dentre outras. Assim, observa-se que a lógica de
compra e venda não está restrita apenas a bens materiais. In: SANDEL, M. O que o dinheiro não
compra: os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
2
Em notícia divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo em fev/2012, o Brasil é o 4º país do mundo com
maior presença de redes sociais. Cerca de 97% dos internautas brasileiros frequentam redes sociais. No
mundo, a comunicação virtual alcança cerca de 1 bilhão de pessoas, segundo os dados dessa mesma
pesquisa. In: Brasil é o 4º país do mundo em usuários de redes sociais. Disponível em
http://www.agenciars.com.br/blog/brasil-e-o-4-pais-em-numero-de-usuarios-nas-redes-sociais/. Acesso
em: 05 nov.2012.
13

imediata sobre alguma ocorrência sem haver tempo para construir a


argumentação. Pretende-se uma mobilização imediata, assinando listas,
reenviando manifestos, promovendo manifestações, pressionando autoridades
por meio de redes de contatos. Assim, discutir sociabilidades na
contemporaneidade exige considerar diversas formas, espaços de
manifestação e de produção de vinculações e de desvinculações, a começar
pelas redes virtuais. Essa discussão também suscita o modo como os juízos
coletivos são formulados, onde e como são construídos os valores políticos e a
opinião pública.
Outra aspecto da sociabilidade contemporânea diz respeito ao
lugar da performance (DUPPAS, 2003). Na contemporaneidade vale muito o
desempenho social e a demonstração de sucesso, agora vale “identificar-se-
com-quem-parece-ser-ou-ter”, tão importante quanto ser ou ter. A performance
define o lugar social de cada um e o desempenho individual é o critério de
sucesso. Todavia há cada vez menos oportunidades para o cidadão comum
alcançar esse sucesso individual. De outro lado, ampliam-se os processos de
vigilância das pessoas, as câmeras de vídeo registram imagens não raras
vezes sem o conhecimento “dos vigiados”, os bancos de dados trazendo
informações pessoais circulam por toda a parte, os “olhos eletrônicos”
invadiram portas, elevadores e espaços coletivos. É elevada a audiência de
programas televisivos voltados aos reality shows, um modelo globalizado de
diversão, cujo mote central é observar o comportamento das pessoas em
situação de pressão, valorizando a performance e a vigilância coletiva.
Exige-se cada vez mais, que o indivíduo seja capaz de conduzir-
se, de gerir a própria carreira, ser empreendedor, autônomo e capaz de tomar
decisões. Deve sustentar-se e ainda oferecer contrapartidas quando se é
atendido em serviços sociais públicos. Há reiteradamente a menção a projetos
e planos individuais.
A medicalização e pressão pela felicidade são aspectos muito
importantes na contemporaneidade. A indústria farmacêutica desenvolveu
novas drogas que visam melhorar a produtividade, combater insônia,
angústias, depressão e as diferentes síndromes desencadeadas pela vivência
14

em situação de extrema pressão e ansiedade. Assim, há uma frenética busca


por felicidade e a medicação passa a ser um recurso largamente utilizado para
controlar as emoções e os comportamentos sociais considerados inadequados
para manutenção de bem-estar.

O avanço fantástico da tecnobiologia e da neurociência decretou o


fim da velhice e da tristeza, mas, em lugar de potencializar o corpo e
os afetos, instrumentalizou-os. Saúde e felicidade são mercadorias
compradas em prateleiras, sob receita médica. A tristeza, eliminada
pelo ombro amigo é substituída pela angústia biológica, curada na
solidão do indivíduo com ele mesmo. (SAWAIA, 2004, p.106)

A sociabilidade contemporânea é, portanto, repleta de


singularidades possibilitadas pelo desenvolvimento tecnológico. A decorrente
rapidez e fluidez da comunicação são potencializadas de forma inédita na
história da humanidade. Em todo esse conjunto está presente, nas diferentes
análises sobre a contemporaneidade, a supervalorização do indivíduo em
detrimento das formas coletivas de produção, convívio e sociabilidade. A lógica
que impera é a seguinte: “o indivíduo responsável se protege a si mesmo,
assume os riscos que toma e se constrói mobilizando seus próprios recursos”.
(CASTEL3, 2010, p.193).
O impacto dessas marcas contemporâneas nos sistemas de
proteção social tem sido analisado por pesquisadores europeus e brasileiros.
Observa-se nos países europeus, uma redução de regulações coletivas e a
intensificação da responsabilidade individual. Por decorrência, há cada vez
mais a arbitragem profissional e o aumento de exigências e critérios para
garantir acessos com a exigência de contrapartidas pelos indivíduos. Estes
devem se mobilizar para usarem os benefícios e serviços pelo menor tempo

3
Falecido em março desse ano, o sociólogo francês Robert Castel era diretor da Escola de altos Estudos
de Ciências Sociais (EHESS), desde 1990. Durante sua trajetória acadêmica, dirigiu o Centro de Estudos
dos Movimentos Sociais (EHESS-CNRS). Nos anos 1970, começou sua carreira com estudos sobre a
psiquiatria e a doença mental, na linha de Michel Foucault e Franco Basaglia. Mas foi sua análise da
formação do mundo de trabalho assalariado, as transformações trabalhistas e as políticas sociais o que
lhe rendeu amplo reconhecimento. Estudou as consequências do trabalho assalariado sobre as relações
sociais e o indivíduo contemporâneo devido ao surgimento de um mundo de precariedade, flexibilização e
desemprego. Utilizou o conceito de “desfiliação” — exclusão do mundo do trabalho e isolamento social—
para designar os novos excluídos do contrato social. In:
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=208320&id_secao=10. Acesso em: 10 jun. 2013.
15

possível. A lógica da cidadania é substituída pela lógica mercantil do “toma lá


da cá” (CASTEL, 2010, p.28) e só se ajuda a quem quer ajudar-se. A
irregularidade do acesso aos serviços públicos e a descontinuidade da atenção
corroboram para construir a insegurança, posto que a certeza do acesso ou do
ganho seria um atestado para acomodação de determinados grupos sociais.
Há aqui uma perversidade pela qual não são consideradas as diferenças
severas dos indivíduos; todos são tratados como se estivessem em iguais
condições. Trata-se de um falso igualitarismo que não incorpora as
desigualdades da sociedade de classes nem a ausência da redistributividade e
da distributividade.
Nessa lógica individualizante está proposta a redução das
garantias e provisões coletivas públicas, que passam a ser oferecidas
prioritariamente, e quiçá exclusivamente, pelo mercado. Aos cidadãos pobres
garante-se a transferência direta de recursos financeiros para enfrentar os
riscos e as incertezas, FAGNANI (2012). Reafirma-se assim a presença e a
hegemonia da lógica economicista e mercadológica pela qual supõe-se que
todas as demandas de proteção podem ter respostas no mercado. As ações do
Estado, ao invés de regulação social a favor do cidadão e da cidadania,
subordinam-se ao suposto da mercadorização. Mas, paradoxalmente, quanto
maior a incerteza tanto mais necessária a presença estatal para garantir
proteção social, ampliar e diversificar os compromissos coletivos legitimadores
dessas garantias.

La movilizacion del individuo es uma empresa muy costosa y muy


aleatória cuando no es apoyada por soportes colectivos. (...) La
obligación de conducirse como um individuo, de manejar uno mismo
su vida em um mundo social desestabilizado, se vuelve entonces
contra él y lo invalida socialmente. (...) Pedrile, por ejemplo, a alguien
que no tiene trabajo y se encuentra em uma situación familiar y social
muy difícil que reconstruya um proyecto de existência, ? no es exigir
demasiado de él? Observar que, si recurren a ello, es porque no
tienen por si mismos los recursos suficientes para salir de su
situación no es precisamente demonstrar desprecio hacia la mayoría
4
de los usuários de los servicios sociales. (CASTEL, 2010:184) .

4
(...) A mobilização do indivíduo é um empreendimento muito custoso e muito aleatório quando não está
apoiado por suportes coletivos. (...) a obrigação de conduzir-se como um indivíduo, de manejar ele
mesmo sua vida em um mundo desestabilizado, se volta então contra ele e o invalida socialmente. (...)
Pedir, por exemplo, a alguém que não tem trabalho e se encontra em uma situação familiar e social muito
16

Uma questão a ser abordada é o que Castel considera um difícil


equilíbrio entre o que pode ser demandado dos sujeitos como de sua
responsabilidade individual, o que deve depender da solidariedade social,
nacional e aquilo que é pactuado como cobertura de fragilidades e riscos
sociais. A necessidade de explicitar essa dimensão contraditória e paradoxal é
fundamental, posto que é falacioso exigir cada vez mais dos indivíduos que
assumam responsabilidades quando, em direção inversamente proporcional,
são reduzidas as proteções e as coberturas coletivas.

(...) La bela consigna de tener que comportarse como um individuo


responsable corre entonces el riesgo de convertirse em lo contrario,
para hacer responsables – pero com el objeto de condenarlos y
culpabilizarlos – a todos aquellos que están por debajo de esa
exigência simplesmente porque son incapaces de assumirla, sin por
5
ello merecer el desprecio com que se los atavia. (CASTEL, 2010: 40)

Há um aumento de incertezas associadas à redução de proteção


estatal, o que exige rediscutir os compromissos de solidariedade coletiva
estatal. Das mudanças sociais econômicas e políticas em curso, decorrem
riscos sociais que embora não sejam novos, mesmo na Europa, estão se
intensificando com a crise do capital restringindo padrões de proteção
anteriormente conquistados. No caso brasileiro, essa incerteza se materializa
ao não se efetivarem os princípios da seguridade social, conquistada na
Constituição Federal de 1988 ou mesmo de sua frágil institucionalização.
Reconhecer compromissos coletivos rebate diretamente no grau
de cobertura e nos padrões de qualidade dos serviços sociais públicos. Em
contraponto a essa lógica, há que se insistir constantemente para que não se
busque nos indivíduos as razões da situação nas quais se encontram ou os
recursos para superá-la, especialmente porque as dinâmicas sociais e
econômicas que as desencadeiam não são de sua responsabilidade individual

difícil que reconstrua um projeto de existência, não é exigir demais dele? Observar que, se recorrem ao
serviço, é porque não têm por si mesmo os recursos suficientes para sair de sua situação não é
precisamente demonstrar desprezo para a maioria dos usuários dos serviços sociais. (Tradução livre).
5
A bela consigna de ter que comportar-se como um indivíduo responsável corre então o risco de
converter-se ao contrário, para fazer responsáveis – porém com o objetivo de condená-los e culpabilizá-
los – a todos aqueles que estão abaixo dessa exigência simplesmente porque são incapazes de assumí-
la, sem que por isso mereçam o desprezo com quem tem sido tratados. (Tradução livre).
17

ou direta. É necessário tornar visíveis e objetivas as múltiplas causas e os


impactos dessas dinâmicas, de modo a contrapor-se aos caminhos de
patologização e criminalização, que ignoram os amplos processos que
desqualificam e destituem direitos tanto nos países centrais quanto naqueles
em desenvolvimento.
Enxergar as desproteções sociais como déficits individuais que
podem ser superados com mais autoestima ou com uma pequena ajuda
monetária estatal, esconde os processos de produção da desigualdade e da
subalternidade que afetam e definem os lugares dos indivíduos na sociedade.
Esses lugares não são estáticos, imutáveis e tampouco arquitetados fora do
viver cotidiano. É urgente e necessário recuperar a noção do âmbito público
como promotor do bem coletivo6:

Nos países industrializados, passou-se a denegrir as instituições


públicas enquanto se louvava e idealizava os mercados globais. A
eliminação progressiva dos direitos sociais, o apelo à
responsabilidade individual e à austeridade fiscal dos governos eram
justificados como condição para uma economia saudável. Nesse
contexto, a cidadania redefiniu-se como escolha privada do
consumidor em vez de participação cívica, causando a erosão do
conceito e da prática da vida pública. (DUPAS, 2003, p.41)

A hipótese que orienta esse estudo parte dos elementos da


sociabilidade contemporânea e seus efeitos na conformação da convivência
social e na direção política da proteção social estatal. Por isso exige considerar
esse cenário marcado pela individualização exacerbada no qual as superações
devem ser produzidas pelo próprio indivíduo, desobrigando o Estado de
assegurar proteção numa sociedade marcada pelo aumento das inseguranças

6
Analisando essa questão NOGUEIRA (2004) identifica uma campanha contra o Estado, pela qual há um
entendimento de que tudo aquilo que é público é ruim ou de má qualidade se comparado ao que é
vendido em uma empresa particular. De certo que há motivos para a avaliação negativa da atenção
pública em muitas localidades e no Brasil em especial, mas não é somente em relação à vivência
concreta de atendimento inadequado a que o autor está se referindo, mas sim e principalmente a uma
campanha deliberada de desqualificação. Registra ainda que o efeito é de desinteresse pelo Estado e de
procura do mercado. Quando o cidadão sofre uma decepção ou tem um desgaste, ao não ser
adequadamente atendido, não há uma insistência ou manifestação exigindo a atenção, mas sim um
abandono, uma desistência. O cidadão desiludido não tem força para buscar essa atenção, ele
“simplesmente” deseja ter recursos e busca reuni-los para adquirir atenção no mercado. É o ideário de
uma classe consumidora que vai se forjando pelo econômico destituindo o social do âmbito de relações
não mercantis.
18

e incertezas. Paradoxalmente essa realidade se contrapõe aos movimentos e


dispositivos marcados pela ampliação dos direitos, com a inserção de “novos”
direitos na agenda pública, como é o caso da convivência familiar e
comunitária. É fundamental compreender as marcas economicistas e
individualizantes que caracterizam o contexto contemporâneo para
compreendemos a tensão que envolve o objeto deste estudo. Ao afirmar aqui a
convivência social como segurança de assistência social, conforme disciplina a
Política Nacional de Assistência Social de 2004 e seus dispositivos
reguladores, provocou-se o alargamento da responsabilidade estatal pela
proteção social, adensando o princípio da solidariedade que rege a Seguridade
Social brasileira.
Colocar a convivência social no campo da responsabilidade
pública significa confrontar o olhar centrado no indivíduo isoladamente, pois
põe em questão o próprio processo de construção desigual das relações
sociais. Tem como efeito nos sujeitos que a vivenciam o isolamento, o
abandono, a discriminação, a segregação e a apartação social. Entende-se que
as mesmas características sociais e culturais que são desvalorizadas ou
discriminadas, podem se constituir em novas forças, quiçá no formato de
vínculos sociais que fortalecem aqueles que dela participam de forma a se
tornarem um elemento de proteção social. Este movimento, que decorre de
lutas por reconhecimento e pelo direito à diferença, constitui-se em processo
de afirmação da identidade e exige a inclusão de grupos que historicamente
foram esquecidos e invisibilizados na agenda de responsabilidades estatais.
Examinar essas possibilidades é o propósito deste estudo.
O objeto desta pesquisa é investigar os elementos constitutivos
da convivência social e suas possíveis implicações no que tange ao conteúdo
programático da política de assistência social em sua especificidade na
seguridade social brasileira.
Ao considerar que o convívio social é parte da agenda pública
afirma-se que não são os indivíduos isoladamente os únicos responsáveis em
ampliar sua rede de relações e convívio, ou seja, sua rede de proteção.
Haveria algo no campo da responsabilidade de Estado capaz de incidir em
19

processos relacionais e, portanto, de tornar a convivência como objeto político


de transformação dos sujeitos, espaços e tempos? A investigação dessa
hipótese visa aportar referências teóricas metodológicas e conhecer a
percepção de atores estratégicos sobre as linhas programáticas hoje atinentes
a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em âmbito
nacional Com isso pretendemos adensar a base científica no que se refere à
construção social das demandas de proteção de assistência social, as
situações que a legitimam, sua natureza, incidência e limites. Essa hipótese se
desdobra em algumas questões: caberia ao Estado promover o convívio em
toda e qualquer situação? Seria essa decisão uma arbitrariedade face à
liberdade humana? A ação do Estado no convívio social é de natureza
suplementar ou complementar? Teria ela graus de presença diferenciados?
Seria obrigatória a um idoso ou a uma pessoa que por deficiência não tem
independência e vive só? Seria necessária em alguns momentos do ciclo de
vida humana? Seria preventiva em algumas situações nas quais o
relacionamento familiar tem centralidade?
Estas indagações exigem adentrarmos na dimensão da ética
social e pública, uma vez que parte-se do princípio de que a convivência social
como proteção pública não pode em quaisquer circunstâncias traduzir-se em
ações compulsórias ou coercitivas, que anulam vontades e a livre manifestação
do sujeito usuário. É preciso identificar dimensões do convívio e com ele da
sociabilidade, para delimitar em quais dimensões o Estado, oferecendo
proteção social, tem um campo possível de ação. Isto significa que a
segurança de convívio não tem por significado ou método a coerção, mas o
exercício da produção de sujeitos sociais com a ampliação de suas referências
de pertencimento individual e reconhecimento coletivo. Esclarecer o campo da
responsabilidade de provisão de atenções de política pública de assistência
social visa fortalecer, restituir, ampliar e diversificar as formas de convívio
social capazes de adensar as redes de proteção social.
Desde logo é importante ressaltar que ao abordar a convivência
social como uma proteção não se está defendendo uma sociedade harmônica
na qual não existam conflitos, diferenças e disputas de classes. Trata-se da
20

defesa de uma sociabilidade alargada na qual as pessoas, suas opiniões e


escolhas são valorizadas coletivamente. O debate se instala na discussão de
padrões de civilidade nos quais diferenças são valorizadas e respeitadas,
reconhecendo porém que provocam conflitos e disputas. A perspectiva não é
eliminá-las, mas sinalizar que esses conflitos podem ocorrer num campo de
mútuo respeito e em perspectiva de igualdade de condições para defesa de
possibilidades e pontos de vista diferentes e para viver as experiências
decorrentes dessas escolhas.
Pode-se inclusive caminhar para um outro olhar. Afinal, qual é de
fato, o efeito do convívio para a proteção social? No que se baseia essa
afirmação? Resgatamos a epígrafe de Bobbio, segundo o qual “o mundo das
relações sociais é complexo” e dele emergem demandas de proteção dos
indivíduos que certamente ultrapassam a segurança da vida e do patrimônio
como objeto de ação da segurança social pública.
Embora a convivência social, em sentido mais amplo, possa ser
objeto de diferentes políticas sociais (educação, saúde, lazer) na assistência
social ela tem o estatuto de segurança, o que exige delimitar com mais
precisão o campo da ação estatal, seu método e o resultado para o cidadão. O
foco de análise no qual este estudo orbita – em que pese a clareza de que a
temática do convívio social extrapole uma política setorial – recai sobre as
ações e regulações da política setorial de Assistência Social como parte
integrante da Seguridade Social.
Diferentes áreas do conhecimento têm produzido estudos e
referências relevantes para desenvolver a questão. Há nas práticas e saberes
do Serviço Social um conhecimento produzido sobre o fortalecimento de
relações grupais fundadas na construção da identidade individual e coletiva
que estabelece relações e vínculos. Pode-se recorrer ainda à Psicologia na
qual também está aberto um acervo de conhecimentos e práticas de terapias
grupais e individuais mostrando o processo relacional como um fator de
descoberta, crescimento, apoio e proteção, entre tantos outros.
Tratar da convivência social como responsabilidade programática
em âmbito estatal e mesmo reconhecê-la no âmbito religioso ou privado não é
21

novidade. A vastidão de estudos sobre essa questão e a farta regulação


historicamente adotada demonstram que o tema já foi bastante explorado.
Todavia, avaliamos que uma inflexão importante se estabelece no momento
em que a convivência social é afirmada como direito, expressão que
comparece na Lei Orgânica de Assistência Social (Lei 8742/93, atualizada pela
Lei 12.435/11), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.699/90) e no
Estatuto do Idoso (Lei 10.471/2003). Em outras legislações há dispositivos que
sinalizam para relações mais democráticas, mas nessas três a expressão
convivência familiar e comunitária como um direito é explícita. Observa-se a
exemplo, a expressão da Lei Orgânica de Assistência Social, a LOAS de 1993,
que em seu artigo 4º, afirma como um de seus princípios:

III- respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito


a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência
familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória
de necessidade;

Considero que esse reconhecimento traz uma novidade


importante para o trato da convivência social no âmbito das políticas sociais e
que, embora a legislação mencionada tenha sido aprovada há duas décadas,
essa questão permanece um desafio. A novidade a qual me refiro, diz respeito
à responsabilidade pública pelo fomento a uma sociabilidade democrática e
fortalecedora dos sujeitos. Desde logo avalio necessário explicitar que esse
entendimento não se enclausura à ideia de controle do Estado sobre as
relações entre as pessoas, tampouco de interferência nas escolhas de com
quem e como se relacionar, mas refere-se à obrigatoriedade de que, no âmbito
estatal, sejam oferecidas oportunidades de convivência social protetiva e
promotora do desenvolvimento humano. As experiências de convivência social
não estão restritas às oferecidas nos serviços públicos, mas essa experiência
coletiva e pública deve ser capaz de trazer elementos positivos e protetivos que
ao serem experimentados e vividos serão levados para outras relações, em
outros espaços de sociabilidade. Esta questão ainda não é suficientemente
consolidada na intervenção pública pelo que depreendo da minha intervenção
profissional e do diálogo com especialistas no campo da assistência social.
22

Um breve olhar para a realidade nacional de proteção social como


área programática pública permite afirmar que a convivência social concebida
como direito não está consolidada. Infelizmente, práticas segregadoras estão
muito presentes na intervenção estatal junto aos diferentes públicos,
considerados subcidadãos ou subgente. Afirmar a convivência social como
uma responsabilidade estatal é constituir um contraponto à política de
segregação que se expressa, tradicionalmente, na institucionalização de
pessoas, mantendo-as em unidades fechadas, longe do contato com o coletivo
da sociedade e impedindo sua livre circulação, assim como se manifesta em
práticas “docilizadas”, regidas por princípios de homogeneização de
comportamentos e atitudes, desconsiderando experiências e saberes do
cidadão usuário de serviços. Aqui ocorre a limitação de oportunidades, a
desvalorização de capacidades, o desconhecimento das condições concretas
de vida e o sequestro da capacidade de decidir sobre a própria vida, entre
outros efeitos. É possível afirmar que o desafio posto é dar consequência ao
reconhecimento da convivência social como direito, o que deve repercutir no
banimento de práticas segregadoras e na definição de ações voltadas para
ampliar a sociabilidade e o reconhecimento social, tal como expresso nos
enunciados da política de assistência social ao tratar do convívio social como
segurança social:

A segurança da vivência familiar ou a segurança do convívio (...) supõe


a não aceitação de situações de reclusão, de situações de perda das
relações. (...) A dimensão societária da vida desenvolve
potencialidades, subjetividades coletivas, construções culturais,
políticas e, sobretudo, os processos civilizatórios. As barreiras
relacionais criadas por questões individuais, grupais, sociais por
discriminação ou múltiplas inaceitações ou intolerâncias estão no
campo do convívio humano. A dimensão multicultural, intergeracional,
interterritoriais, intersubjetivas, entre outras, devem ser ressaltadas na
perspectiva do direito ao convívio. (PNAS, 2004, p.26).

Minha intenção é que este estudo, ao recuperar análises críticas


que apontam a dinâmica e a reiteração de práticas segregadoras, destaque
elementos e conteúdos que possibilitem ampliar a discussão da convivência
social como direito de cidadania. A dimensão valorativa que subjaz a essa
23

busca pressupõe construir respostas sociais superadoras de valores morais de


ordem privada ou religiosa, bem como garantir a isonomia nas atenções
prestadas, duas pré-condições obrigatórias para a vivência do direito ao
convívio social como uma proteção social.
Adensar a discussão do tema a partir da reflexão de vários
autores e dos debates da política de assistência social tem como ponto de
partida constatar na prática um desconhecimento no âmbito das políticas
sociais públicas, das condições objetivas de viver a que está submetida ampla
parcela da população brasileira. Para além da difundida ideia de baixa renda,
esta convivência cotidiana nos territórios vividos, nos ambientes de trabalho e
familiar, nas relações vicinais, é permeada por vivências de humilhação,
desqualificação, discriminação e apartação. Desse desconhecimento decorre
uma invisibilidade e a banalização dessas situações de sofrimento. A
consequência é a redução do respeito à dignidade humana daqueles
submetidos a estas condições, pois suas necessidades, desejos, vontades são
desconsiderados ao se reduzir a proteção social à garantia da sobrevivência
material como principal concentração de energia e esforços das ações estatais.
Afirmar o desconhecimento sobre condições de vida não é uma
novidade. O documento da Política Nacional de Assistência Social já o fez em
2004, ao desenvolver uma análise situacional e afirmar que naquele momento
não havia estudos sobre a quantidade e os locais nos quais estão os usuários
da assistência social. Assim, partiu de um marco situacional no qual a análise
do real foi qualitativa, e não quantitativamente, expressa numa dimensão ética
de “incluir ‘os invisíveis’, os transformados em casos individuais, enquanto de
fato são parte de uma situação social coletiva; as diferenças e os diferentes, as
disparidades e as desigualdades”. (MDS, 2004, p.10)
Afirmou ainda a PNAS a necessidade de estudos e pesquisas no
âmbito dessa política para superar a generalização das informações.

O conhecimento existente sobre as demandas por proteção social é


genérico, pode medir e classificar as situações do ponto de vista
nacional, mas não explicá-las. Este objetivo deverá ser parte do
alcance da política nacional em articulação com estudos e pesquisas.
(PNAS)
24

As situações que afetam o convívio social e seus rebatimentos na


sociabilidade, nas possibilidades de desenvolvimento humano, permanecem e
podem ser identificadas em diversos planos, que são mutuamente
interdependentes: no social mais abrangente, nas classes sociais e suas
relações, na história do trato ente as classes sociais no Brasil, na produção e
reprodução de desigualdades, nas relações que se estabelecem a partir dos
territórios nos quais se vive, nas relações genéticas e de trabalho, de lazer e de
opções de vida. Todos esses elementos devem ser considerados no âmbito da
intervenção estatal, especialmente na política de assistência social. Portanto,
embora não seja nova, entendo essa discussão pertinente e em razão disso,
será resgatada.
Põem-se em questão a relevância da dimensão relacional para a
proteção social o que sugere um conflito com a visão que aliança proteção com
o poder de consumo, pertinente em uma sociedade de mercado. Garantir
condições de sobrevivência material sugere que a aposta na resposta buscada
é de que quanto maior a capacidade de consumo maior a proteção. Por outro
lado, ampliar a renda, mediante benefícios do Estado, é apontada como
mantenedora de situações de discriminação, apartação, submissão e tutela, o
oposto de uma política de convívio social na perspectiva de liberdade,
autonomia e emancipação.
O ponto que se adota nesta reflexão parte da compreensão de
que desenvolver um modo de olhar a convivência social como uma “atenção
cívica”7, pressupõe um olhar intrometido, metido no que normalmente se
“desolha”, mas também comprometido, com a desocultação e o desvelamento.
(PAIS, 2006, p.34).
Para tanto uma primeira escolha nesse trajeto foi a recuperação
de estudos voltados aos processos de produção e reprodução de
subalternizações tanto como processo social quanto como um sentimento de
humilhação, afastamento e apartação que permite atestar que a vivência de

7
José PAIS esclarece que o conceito de “desatenção cívica” foi desenvolvido por Erving Goffman, em
1961, na obra Encounters.Two Studies in the Sociology of Interaction. NY: MacMillan.
25

situação de desprestígio, desqualificação e humilhação não é superada pela


garantia de renda e tampouco apagada da trajetória dos sujeitos por apropriar-
se de novos bens. Defendo que é esse entendimento que deve orientar não só
as práticas, mas a construção do conhecimento no campo da política de
assistência social.

O que se espera da proteção social aos cidadãos? Em uma


sociedade de mercado a resposta mais usual tem sido a que
relaciona, mecanicamente, o acesso à renda como condição para
“estar protegido”. Por outras palavras, ter renda seria o
suficiente para resolver situações que fragilizam as famílias e
seus membros. (...) Por essa via, o acesso ao mercado por meio do
consumo seria a única resposta possível de garantia ou restauração
da automanutenção. Duas realidades são ocultadas por esse modo
de pensar. Primeiro a de que a proteção social é mais do que um
objeto de compra e venda; segundo, que ela ultrapassa o campo
individual. A produção da segurança social é efeito de um pacto
coletivo, que estabelece os patamares dignos e indignos de viver e de
lidar com as incertezas e inseguranças geradas pela própria dinâmica
da sociedade de mercado. Portanto, sentir-se seguro não é uma
decisão pessoal, posto que diz respeito ao campo das
responsabilidades púbicas e coletivas. (SPOSATI, 2010: 6 – grifo
meu)

Associa-se ao desconhecimento que mantém invisibilidade, uma


tradição na intervenção estatal de políticas segregadoras que concorrem para
ampliar desigualdades ao reduzir possibilidades e assentar-se na disciplina e
no controle de condutas e comportamentos além de negar a escuta do outro
quando da tomada de decisão sobre sua vida e produzir subalternizações nas
relações entre o agente público e o cidadão usuário. Enfim, ao provocar
isolamento e desproteção. Essa realidade requer uma ação programática
voltada para a convivência social, cujo conteúdo esteja informado dessas
dinâmicas e que, fundado em princípios da democracia social, assegure
visibilidade individual e coletiva, a busca de ruptura da segregação e de seus
fatores motivadores e ainda a ruptura com o isolamento. Portanto supõe uma
proposta de segurança social fortalecedora da sociabilidade e do
reconhecimento social.
Pode-se afirmar que práticas ou procedimentos segregadores são
processos de interdição do acesso ao direito, posto que a vivência e a garantia
do direito não se esgotam na inscrição de responsabilidades e obrigações no
26

campo do ordenamento jurídico. A vivência do direito exige um


reposicionamento dos lugares, uma revisão de condutas e procedimentos e o
debate se instala sob outra regência. Voltarei ao diálogo sobre o
reconhecimento de direitos em alguns momentos no texto, por ora friso que em
se tratando da tradição política nacional, declarar direitos na formalidade legal
não tem sido uma condição efetiva de garanti-los na prática das atenções
públicas.

O social para vingar em nossa sociedade precisa de convenções,


normas e leis que o sustentem, e mesmo assim, sabemos o quanto é
difícil efetivar a pleno uma legislação social. Criar a cultura da lei é
uma luta quase tão forte quanto aprovar a lei. (SPOSATI, 2009)
Há, no campo dos direitos sociais, um maior grau de defasagem entre
a norma jurídica e a sua efetiva aplicação. Trata-se de uma
defasagem comum a todas as áreas, mas que, na área social, parece
ser maior, basicamente porque os direitos sociais dependem
muito, para serem efetivamente usufruídos, de decisões políticas
cotidianas, tomadas no dia-a-dia, em função de mil e uma
contingências políticas, econômicas ou financeiras. Os direitos
sociais trazem consigo, como sabemos, a necessidade de alocações
expressivas de recursos. (...) Como são recursos de natureza ampla,
quase sempre mexem com interesses estabelecidos, e por isso
acabam ficando na dependência de acertos, acordos, pactos
societais, decisões de natureza governamental e política, que muitas
vezes comprometem a efetiva aplicação, implementação e proteção
desses direitos. (NOGUEIRA, 2004)

Assim, essas três linhas de raciocínio resumidas em: necessidade


de compreender que processos de subordinação e os sentimentos e
interdições deles decorrentes não estão restritos a ter ou não renda; que a
ação estatal desinformada sobre os modos de vida é produtora de
subordinação e segregação, e ainda, que declarar um direito exige revisar a
intervenção estatal, é que orientam o diálogo e as escolhas metodológicas
deste estudo que se configurou como uma análise conceitual do tema
proposto.
Trata-se de desenvolver uma análise que permita maior domínio
de conteúdos presentes na segurança de convívio e convivência social,
atribuída como uma responsabilidade programática da política de assistência
social de modo a colocar a temática num patamar que assente referências
conceituais e metodológicas e abra caminhos para novas investigações.
27

A análise conceitual desenvolvida a partir de fontes distintas


exigiu adotar procedimentos metodológicos de coleta diferentes para cada uma
delas. A primeira fonte utilizada para adensar o debate conceitual foi um
diálogo com autores. Priorizei aqueles vinculados à teoria crítica que buscam
compreender e explicar as dinâmicas relacionais de forma a desnaturalizá-las e
contextualizá-las historicamente. As produções de referência se concentram no
campo das ciências sociais e da filosofia, dos quais destaco Axel Honneth,
Norbert Elias, Robert Castel e José Machado Pais; em âmbito nacional, o
principal autor de referência neste estudo é o sociólogo Jessé de Souza.
Também para adensar o debate conceitual, utilizei como fonte
entrevistas a especialistas da política de assistência social. O objetivo dessa
estratégia foi abordar entendimentos sobre a concepção de convívio no âmbito
da assistência social, identificar os elementos conceituais e programáticos que
compõem a visão desses especialistas sobre a temática e o alcance dessa
discussão no cotidiano do trabalho profissional.
Para ampliar o debate extrapolando a dimensão conceitual e
adentrando na análise da intervenção programática, selecionei algumas
dissertações e teses que têm maior proximidade com a temática. Assim
busquei trabalhos que analisam a intervenção pública na convivência social
tanto em seus aspectos metodológicos quanto em relação aos pressupostos
conceituais que a orientam. Nesse caso, predominam produções no âmbito do
serviço social. Por fim consideramos também os documentos norteadores da
política de assistência social que são referências nacionais para o
desenvolvimento de serviços voltados ao desenvolvimento da convivência
social8.
Este processo de consulta foi em grande parte desenvolvido como
uma das ações de consultoria ao Ministério do Desenvolvimento Social e

8
Nesse caso priorizei o Caderno de Orientações do PAIF (MDS, 2012) e o documento de concepção e
traçado metodológico do Serviço Projovem Adolescente (MDS, 2008). As razões dessa escolha vinculam-
se ao fato de que a construção das orientações do trabalho com adolescentes e jovens para o
PROJOVEM tem inspirado outras publicações posteriores, inclusive para faixas etárias distintas. Já o
Serviço PAIF configura-se como o principal serviço de atenção à família ao qual pela proposição de
organização do SUAS, todos os serviços de convivência deveriam estar vinculados. Logo, sua dimensão
estratégica no sistema é evidente.
28

combate à fome no âmbito do Projeto BRA/04/069, que teve por objeto o


desenvolvimento de estudos técnicos para concepção de convivência e do
fortalecimento de vínculos no âmbito da proteção social básica10.
Ao explorar as práticas desenvolvidas, adotei como estratégia o
diálogo com profissionais que atuam diretamente em serviços de convivência, e
aqueles que tem se notabilizado por constituir referências para esses trabalhos
em âmbito nacional e municipal. Para expressar diferentes reflexões e criar um
diálogo propulsionador, a técnica utilizada com esses sujeitos é a que Gil
(1999) denomina entrevista por pauta11. No roteiro desenvolvido12 há questões
que buscavam apurar como a temática da convivência se constituiu um foco
para a política de assistência social, elementos específicos que constituem
resposta da assistência social na provisão dessa segurança, efeitos/resultados
possíveis de serem produzidos no trabalho profissional, recomendações e
condicionantes para que ele promova os resultados apontados como
possibilidades.
A escolha dos sujeitos da pesquisa teve como critério a
experiência e produção na política de assistência social. Definiu-se o grupo a
ser entrevistado13, considerando pessoas que têm sido protagonistas nas
decisões dessa política e na construção das referências teóricas que a
orientam, por mesclarem simultaneamente experiência de gestão com a

9
O BRA/04/046 é um instrumento de cooperação entre o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD e o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS que está
em vigor desde 01/10/2004 e tem como objetivo contribuir para o fortalecimento institucional da Secretaria
de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do MDS com vistas ao alcance da efetividade dos
programas e políticas sociais, promovendo uma melhor aplicação dos recursos públicos. Nesse sentido,
tem a finalidade de fortalecer a SAGI, dotando-a das condições necessárias para: desenvolver processos
de avaliação e monitoramento, instituir sistemas de informação, capacitar agentes em políticas públicas,
instituir mecanismos de acesso público às informações referentes às políticas e programas sociais.
Disponível em: http://www.pnud.org.br/Projetos.aspx?BRANUM=BRA04046. Acesso em: 23 jul.2012.
10
A consultoria foi desenvolvida em parceria com a Psicóloga Maria Júlia Azevedo Gouveia, que
responsabilizou-se pela sistematização final dos subsídios coletados da qual resultou o documento
técnico que apresenta a concepção de convivência e fortalecimento de vínculo para a proteção social
básica de assistência social.
11
Para Antonio Carlo Gil, a entrevista por pauta “apresenta certo grau de estruturação, já que se guia por
uma relação de pontos de interesse que o entrevistador vai explorando ao longo de seu curso. (...) O
entrevistador faz poucas perguntas diretas e deixa o entrevistado falar livremente à medida que refere às
pautas assinaladas”. (Gil, 1999, p.120).
12
O roteiro foi construído em diálogo com Maria Júlia Azevedo e Adriana Pereira – Diretora Técnica do
MDS, de modo a levantar elementos necessários para a construção da concepção de convivência social
no âmbito da política de assistência social.
13
Essa definição foi feita entre consultoras e equipe do MDS, sendo que as entrevistas à Aldaíza Sposati,
Ana Lígia Gomes e Denise Colin foram realizadas em parceria com Maria Julia Azevedo Gouveia.
29

atuação na pesquisa e na docência. Assim, chegou-se a um grupo de


especialistas, com intervenções e reflexões complementares sobre a temática.
Busquei desenvolver um diálogo fluído e aberto, assim algumas
interlocutoras inseriram outros elementos na reflexão o que se mostrou
bastante oportuno, pois se tratou da escuta a especialistas considerados
referência no debate da assistência social no país e que possuem focos
distintos e complementares nessa discussão.
Um primeiro grupo de entrevistados foram gestoras no âmbito
federal que estão atualmente em funções de direção ou ocuparam cargos
estratégicos da gestão no período de aprovação da Política Nacional de
Assistência Social. Assim foi possível refletir com as profissionais que
participaram das decisões que consolidaram a expressão da convivência como
uma segurança social na assistência social. São elas:

Marcia Helena Carvalho Lopes: Ex-Ministra do Ministério de


Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no qual exerceu
anteriormente os cargos de secretária Nacional de Assistência Social
e Secretária Executiva. Assistente Social mestre em Serviço Social
pela PUC/SP. Foi Secretária Municipal de Assistência Social de
Londrina (1993-96), Conselheira Municipal de Assistência Social e
dos Direitos da Criança e do Adolescente em Londrina e Conselheira
Estadual de Assistência Social do Paraná por duas gestões. Foi
vereadora em Londrina (2000-04). Foi Conselheira Nacional de
Assistência Social - CNAS e dos Direitos da Criança e do
Adolescente - CONANDA (2004). É professora há mais de 30 anos
do curso de Serviço Social na UEL. Entrevista realizada em Londrina
em 05/03/2012.

Ana Lígia Gomes: Ex-Secretária Nacional de Assistência Social do


Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Atual
Secretária de Assistência Social do Governo do Distrito Federal.
Assistente Social pela UNB, Mestre em Serviço Social pela PUC-SP,
ex-Conselheira Nacional de Assistência Social, ex-diretora do
Conselho Federal de Serviço Social, servidora de carreira no Governo
do Distrito Federal. Entrevista realizada em Brasília em 08/03/2012.

Denise Collin: é a titular da Secretaria Nacional de Assistência Social


do MDS. Assistente social formada pela PUC-PR. Mestre e doutora
em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem
experiência em Serviço Social, atuando principalmente na política
pública de assistência social e em temas como gestão,
financiamento, controle social, serviços socioassistenciais e direitos
humanos. Entrevista realizada em Brasília em 08/03/2012.

Simone Albuquerque: Diretora do Departamento de Gestão do


SUAS - DGSUAS. Assistente Social, tem larga experiência na gestão,
exercendo cargos de direção no MDS desde 2003. Foi conselheira
30

nacional de assistência social em vários mandatos. No âmbito


municipal, atuou como diretora técnica na Secretaria de Assistência
de Belo Horizonte, tendo sido também presidente do Conselho
Municipal de assistência social naquela cidade. Entrevista realizada
em Brasília em 26/05/2012.

Cabe ainda destacar que o diálogo no Ministério do


Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS – órgão gestão da Política
de Assistência Social no âmbito federal), diversificado e incluindo vários
agentes institucionais, com destaque para as reflexões com Adriana Pereira,
Diretora dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Aidê
Cançado e Eutália Barbosa Rodrigues. Ambas ocuparam o cargo de Diretora
da Proteção Básica. Neste caso, não se trata de realização de entrevistas, mas
de momentos de reflexões e análises mais dialogadas sobre os desafios da
Política Nacional de Assistência Social.
Um segundo bloco de entrevistas foi realizado com profissionais
mais diretamente vinculadas à carreira acadêmica e que têm atuado como
consultoras no âmbito da política de assistência social, a ela contribuindo com
pesquisas, análises e produção de textos de referência para definir diretrizes e
orientações para todo território nacional. Nesse caso, cabe destacar que a
experiência de Aldaíza Sposati não se esgota na trajetória da pesquisa e
produção acadêmica, mas advém de sua larga vivência na gestão municipal de
São Paulo. Segue, na sequência, uma breve apresentação desse grupo de
interlocutoras:

14
Aldaíza Sposati : Doutora em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (1986). Pós-doutora pela
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Professora titular
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo onde é responsável
pela disciplina Assistência Social: Política e Gestão I e II, do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social onde Coordena o
NEPSAS – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e
Assistência Social e do CEDEST – Centro de Estudos das

14
A despeito da Profa. Dra. Aldaíza Sposati ser a orientadora desta pesquisa, e portanto, corresponsável
por essa produção, optou-se por entrevistá-la para registrar sua contribuição para o tema que decorre de
sua trajetória profissional como gestora e pesquisadora.
31

Desigualdades Socioterritoriais. Tem experiência em Gestão Pública,


Gestão Social com ênfase em Política da Assistência Social, atua
principalmente nos seguintes temas: assistência social, proteção social,
seguridade social, política social, políticas públicas, gestão pública e
estudos socioterritoriais de necessidades e serviços. Foi Secretária
Municipal das Administrações Regionais (1989/1990) e da Assistência
Social da cidade de São Paulo (2002/2004). Vice-Reitor Comunitário da
PUC-SP (1988). Vereadora da Cidade por três mandatos consecutivos
(1993-2004). Consultora em projetos para ONU – Habitat na
Nicarágua, para UNICEF em Angola, e participante de diversos
projetos de agências internacionais como UNESCO e PNUD. Docente
em cursos pós-graduação stricto e lato sensu na Argentina e em
Portugal. Entrevista realizada em São Paulo em 19/04/2012.

Carla Bronzo Ladeira Carneiro: Graduada em Ciências Sociais pela


Universidade Federal de Minas Gerais (1987), mestre em Sociologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994) e doutora em
Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2005), com tese sobre o tema da pobreza e políticas de proteção
social. Pesquisadora e professora da Escola de Governo/Fundação
João Pinheiro/MG, nos cursos de graduação, especialização e
mestrado em administração pública. Leciona disciplinas de sociologia,
metodologia, desenho e avaliação de políticas sociais, bem estar e
proteção social. Desenvolve pesquisas no campo das políticas para
infância e juventude e no campo das políticas de proteção social,
principalmente relacionadas com o tema da pobreza, vulnerabilidade e
proteção social não contributiva. Desenvolve ações de estudos e
pesquisas no campo da gestão social e na formulação, monitoramento
e avaliação de programas e projetos sociais. Pesquisa e uso de
metodologias de pesquisa na perspectiva de actionresearch, buscando
conexões entre teoria e prática, conhecimento e ação. Entrevista
realizada em Belo Horizonte em 14/02/2012.

Dirce Harue Ueno Koga: possui graduação em Serviço Social pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, mestrado em
Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1995) e doutorado (2001) e pós doutorado (2009) em Serviço Social
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é
pesquisadora e professora titular da Universidade Cruzeiro do Sul -
Programa de Mestrado em Políticas Sociais. Tem experiência na área
de Serviço Social, com ênfase em Serviço Social Aplicado, atuando
principalmente nos seguintes temas: inclusão social, exclusão social,
políticas públicas, território e desigualdade social. Entrevista realizada
em São Paulo em 15/03/2012.

Um terceiro grupo de especialistas consultadas refere-se a


profissionais que participaram, em distintos períodos históricos, da elaboração
de parâmetros para o trabalho de convivência no âmbito da política de
32

assistência social15 que se constituíram em uma base de diálogo para construir


orientações programáticas no campo da assistência social. Esse grupo é
composto por profissionais com diferentes formações e trajetórias. Todas
participaram desse estudo em diferentes momentos e as estratégias adotadas
em relação a elas foram diversificadas e incluíram entrevistas e grupo focal.

Maria Julia Azevedo Gouveia: Psicóloga pela UNESP, Mestre em


Educação e Psicologia pela Universidade de São Paulo (2003).
Experiência de 20 anos na área Socioeducacional, desempenhando
funções de docência, supervisão e coordenação de equipes
multiprofissionais. Nestas funções trabalhou com processos de
formulação e implantação, sistematização, avaliação e
monitoramento e gestão da aprendizagem em projetos
socieducacionais e assistenciais. Atualmente é consultora prestando
serviços de gestão de projetos na Empresa Diagonal - Transformação
de Territórios. Assessorou processos de monitoramento na Secretaria
de Educação do Município de Santos, e atuou junto ao MEC na
produção de diretrizes do Programa Mais Educação, especialmente
em sua dimensão intersetorial.

Stela Ferreira: Atual Coordenadora Geral do Espaço do Aprender


Social da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
social de São Paulo. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
de São Paulo (1998), mestre em Serviço Social pela PUC-SP (2010).
Doutoranda em Serviço Social pela PUC-SP. Pesquisadora do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Seguridade e Assistência
Social (NEPSAS-PUCSP). Atuou como pesquisadora na área de
direitos sociais, trajetórias e mobilidades urbanas na Universidade de
São Paulo. Tem como campo de atuação profissional e de pesquisa
os seguintes temas: política pública de assistência social, capacitação
de agentes públicos, trabalho socioeducativo, direitos de cidadania e
controle social. Atuou como consultora do MDS e CNAS em temas
como controle social, NOB-RH, Capacitação Nacional dos
Trabalhadores do SUAS. Compôs o Grupo de Trabalho responsável
pela revisão da Política Nacional de Capacitação do SUAS.

Rose Ferreira: Mestre em Serviço Social pela PUC-SP. Consultora


em política pública de assistência social e de direitos de crianças e
adolescentes. Foi membro da equipe de assessoria do Instituto Pólis
de Estudos, Formação e Assessoria para a construção da Política
Nacional e do Plano Decenal de Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes – CONANDA/SNDH. Coordenou a elaboração de fluxos
operacionais sistêmicos de direito a convivência familiar e comunitária
junto a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores. Foi
técnica e chefe do Escritório Regional São Paulo do Centro Brasileiro
para Infância e Adolescência do Ministério da Previdência e
Assistência Social, presidente da Fundação Criança de São Bernardo

15
Nesse caso, embora a atuação dessas profissionais tenha sido prevalecente na cidade de São Paulo,
não se esgota nessa localidade e tampouco limita-se à assistência social, tendo atuado várias delas na
política de educação também.
33

do Campo, assessora de gabinete da Secretaria Municipal de


Assistência Social de São Paulo, gerente da área de proteção integral
da Fundação Abrinq, dentre outras atividades.

Lúcia Helena Nilson: Psicóloga, psicodramatista, educadora.


Consultora na formulação de propostas pedagógicas no campo
socioeducativo e de processos de formação de agentes públicos
educadores utilizando o psicodrama como referência de
aprendizagem. Facilitadora em processos de formação em municípios
e em capacitações nacionais para conselheiros, gestores e
trabalhadores da política de assistência social e de educação.
Assessorou processos de monitoramento na Secretaria de Educação
do Município de Santos e atuou junto ao MEC na produção de
diretrizes do Programa Mais Educação, especialmente em sua
dimensão intersetorial.

Isaura Isoldi de Mello Castanho e Oliveira: Possui graduação e


mestrado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Foi coordenadora do Curso de Serviço Social da Faculdade
de Ciências Sociais da PUCSP entre 2009 e 2011. É professora
assistente mestre do Curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências
Sociais da PUCSP e pesquisadora do Instituto de Estudos Especiais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É uma das
coordenadoras do Núcleo de Justiça e Violência do mesmo Curso e
membro do Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas para a Violência,
cadastrado no CNPq/PUC-UNIFESP-USP. Tem experiência na área de
Serviço Social, com ênfase em Justiça e Violência, em prática
profissional e formação de assistentes sociais. Trabalha
principalmente com os temas: justiça e violência, educação,
assistência social, prática do serviço social, instrumentos técnico
operativos e avaliação de políticas sociais. Entrevista realizada em São
Paulo, em 27 nov. 2012.

Tratar de convivência social como segurança social, comunitária e


familiar no contexto da política de assistência social aplicada em múltiplos
municípios e quase todos estados, poderia contar com uma base empírica
bastante extensa. Todavia não existe um processo de monitoramento que
permita tal avaliação; os dados estão aliançados com o controle financeiro,
portanto se referem a unidades, atendimentos e volume de recursos financeiros
e humanos. Contudo isso não nos permite ter nem o perfil dos usuários nem
conhecimento sobre a metodologia adotada.
Para suprir a lacuna desta informação, busquei contato direto com
profissionais que atuam nos municípios, como também visitei algumas
experiências de serviços de convivência, consideradas referência para
construir parâmetros nacionais para o Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. Pretendi nessas visitas observar as práticas desenvolvidas
34

no âmbito da assistência social voltadas ao fortalecimento de vínculos sociais e


ao fomento da convivência, seguindo diretriz orientadora formulada por PAIS
(2006):

Muitas vezes as entrevistas são usadas para desvendar práticas. Mas


quando as práticas dizem exatamente o que fazem, é
metodologicamente sensato observá-las. (PAIS, 2006, p.46).

Visitei serviços de convivência que atuam com grupos distintos no


que se refere à faixa etária prioritária em três municípios: CRAS Alterosa e
CRAS Vila Recreio em Betim (MG); Centro de Convivência Intergeracional Zoé
Gueiros em Belém (PA) e Centro de Orientação Socioeducativa (COSE)
Riacho Fundo I no Distrito Federal. As técnicas utilizadas foram as mesmas em
todas as unidades visitadas, inicialmente uma observação simples16 do
trabalho desenvolvido, entrevistas com profissionais e grupos focais.
A escolha pelo grupo focal vincula-se ao fato de que esta
estratégia permite que as reflexões coletivas inspirem as formulações de todos
os presentes, permitindo ainda surgirem questões que em entrevistas
individuais não ganham relevância e intensidade. Nessa direção o consenso
não é a centralidade, posto que a preocupação é assegurar um ambiente
propício para surgirem diferentes concepções. Segundo Neto, Moreira e
Sucena (2002, p.5), grupo focal consiste em:

Uma técnica de pesquisa na qual o pesquisador reúne, num mesmo


local e durante em certo período, uma determinada quantidade de
pessoas que fazem parte do público alvo de suas investigações,
tendo como objetivo coletar a partir do diálogo e do debate com e
entre eles, informações acerca de um tema específico.

Ainda segundo estes autores, o discurso dos grupos focais não é


meramente descritivo ou expositivo; é uma fala de debate, pois todos os pontos
de vista expressos devem ser discutidos pelos participantes.

16
Por observação simples entende-se aquela em que o pesquisador, permanecendo alheio à comunidade,
grupo ou situação que pretende estudar, observa de maneira espontânea os fatos que aí ocorrem. Neste
procedimento, o pesquisador é muito mais um espectador do que um ator. (Gil, 1999, p.111).
35

Optei por desenvolver o mesmo roteiro com distintos


participantes, tanto para fomentar o diálogo nos grupos quanto para as
entrevistas. Considerando as condições para o desenvolvimento dos grupos,
realizei simultaneamente as funções de mediação, relatoria e observação, o
que foi possível com o uso de recursos de gravação das falas de maneira que
a atenção pudesse ser mais dedicada ao que se dizia e como era dito em
detrimento do registro de conteúdos. Ao todo participaram desse diálogo 38
pessoas, distribuídas em quatro diferentes grupos, dos quais dois realizados
em Brasília, um em Betim e outro em Belém.
O roteiro das visitas técnicas buscou apurar os procedimentos
cotidianos, a trajetória do trabalho, os elementos que no tempo favoreceram
decisões e escolhas das equipes, as expectativas de resultado em relação ao
trabalho desenvolvido, as condições necessárias para realiza-lo e outros
similares em distintas localidades além da leitura que os agentes possuem dos
impactos que a ausência do serviço provocaria na vida dos usuários que
usufruem dele.
Para além das contribuições de especialistas e das visitas
técnicas, busquei estabelecer um amplo diálogo com trabalhadores do SUAS
que atuam diretamente em municípios. Destes interlocutores destaco as
assistentes sociais Sheila Marcolino, Stefânia Heren Chocair e Kelly Rodrigues
Mellati, que participaram das minhas reflexões e com elas colaboraram em
vários momentos do percurso.
Assim, além de grupos focais durante as visitas técnicas, realizei
outros grupos em momentos distintos do desenvolvimento do estudo para
captar a ressonância dos elementos e argumentos ainda em elaboração com o
cotidiano dos profissionais da assistência social. Nesse sentido, desenvolvi
grupos em três municípios do Estado de São Paulo: Franca, Santos e Salto17,
totalizando 156 participantes em 05 grupos de discussão18.

17
As três cidades têm porte distinto e estão localizadas em diferentes regiões administrativas do Estado.
Santos localiza-se no litoral Sul paulista e é sede de região; Franca está na região centro-oeste do Estado
e Salto compõe a região metropolitana de Campinas, distante pouco mais de 100 km da Capital paulista.
18
A moderação desses grupos foi desenvolvida em parceria com Stela Ferreira e Sheila Marcolino.
36

A partir dessas distintas e complementares estratégias foi


possível acumular um material diversificado e captar as reflexões dos sujeitos
implicados com a temática da convivência social no campo de
responsabilidades da política pública de assistência social em diferentes
espaços e com distintas atribuições.
A inspiração para abordar o objeto, a partir do diálogo com
diferentes sujeitos com ele implicado, vem da escolha metodológica apontada
por TELLES (2006), que suscita o desejo de poder identificar na prática e no
debate da politica de assistência social as linhas de força que favorecem a
ampliação dos seus compromissos e potencializam a possibilidade de
implantar e intensificar práticas protetivas.

Trata-se, antes e sobretudo, de fazer da investigação uma


experiência de conhecimento capaz de deslocar o campo do já-dito,
para formular novas questões e novos problemas. Ao invés de dar um
salto nas alturas e se agarrar em alguma teoria ou conceito geral,
prospectar as linhas de força dessas realidades em mutação. (...)
Essa é uma sugestão forte a ser seguida e que coloca o plano no
qual uma investigação pode se dar, fazendo surgir feixes de questões
que permitam modificar problemas previamente colocados. (p.54).

Organizar todo esse material a partir de uma lógica que permitisse


traduzir o momento atual do debate e as possibilidades de adensá-lo a partir
das contribuições de especialistas e de estudos já desenvolvidos. Este foi o
desafio que procurei assumir ao elaborar os capítulos desta pesquisa. Assim,
os seus resultados são apresentados na sequência que passo a expor:
Inicio o diálogo acentuando como a convivência social pautada no
reconhecimento e nos vínculos de pertencimento pode promover proteção.
Busco aqui trazer alguns elementos que asseguram essa proteção, enfatizando
que somente a presença em espaços comuns não é suficiente para esse
qualificativo. Relações que valorizam as pessoas e suas possibilidades são
impulsionadoras da ação, por um efeito que produzem na razão e no
entendimento que têm de si e do mundo (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.15). A
base para essa discussão está especialmente na produção de Axel Honneth
em sua teoria do reconhecimento e de Serge Paugam na teoria dos vínculos.
37

Assim, a finalidade desse capítulo é demonstrar como as relações


sociais, familiares e nas políticas públicas podem produzir reconhecimento e
proteção social, que se expressam em autoconfiança, autorreconhecimento e
estima social. Trata-se de um reconhecimento que afeta as pessoas, é
essencial para uma vida boa e as impulsiona para a ação e para a vivência
como sujeito de direitos.
A abordagem desse capítulo se assenta na qualificação da
convivência social como uma responsabilidade programática da intervenção
estatal e como resposta de proteção social de base relacional. A perspectiva é
alargar a sociabilidade e oferecer oportunidades de viver experiências de
convívio respeitosas que valorizam as pessoas.
O capítulo dois pretende contribuir para demonstrar como a
convivência social pode ser promotora de subordinações e desencadear
sentimentos de humilhação. Nesse caso, a preocupação é recuperar
especificidades da organização social brasileira que permite afirmar que entre
nós, brasileiros, a produção da invisibilidade de alguns grupos, seu sofrimento
e desqualificação das pessoas têm sutilezas que de tão banalizadas são
reproduzidas nas diferentes relações sociais como naturais, imperceptíveis e
não intencionais.
A escolha das situações que ganham relevo nessa reflexão está
baseada no objetivo de demonstrar como diferenças são desvalorizadas e
transformadas em fonte de discriminação e preconceito. Portanto, nessas
circunstâncias exemplificadas, é o desrespeito às escolhas, às características e
ao modo de viver do outro, a força motriz para a sua desqualificação. Assim,
busco demonstrar como isso pode se dar na intervenção das políticas públicas,
no âmbito familiar e no território vivido, ou seja, nas relações sociais alargadas.
A lógica aqui é dialogar sobre vinculações negativas, respeitando a tipologia
criada por Serge Paugam (2008) quanto aos vínculos eletivos, orgânicos, de
filiação e cidadania. Trata-se de uma lógica de espelho na qual no primeiro
capítulo discuto as relações como fator de proteção e, no segundo, como fator
de desproteção.
38

Os processos de subordinação e de desqualificação são


reiterados e produzidos na atenção pública. Esse é um dos aspectos trazidos
nesse capítulo, pois quando se desconsidera os cidadãos usuários e as formas
de tratamento anulam vontades, desejos e implicam práticas moralizadoras que
interditam e controlam ao invés de expandir e desenvolver os cidadãos,
estamos diante de práticas segregadoras e não fortalecedoras da convivência
social.
O apoio para desenvolver esse raciocínio, que tem por objetivo
também organizar conhecimentos existentes sobre as formas de convivência
social como um modo de contribuir com as formulações no âmbito da política
pública está na produção de autores19 que priorizaram em suas pesquisas o
diálogo com os sujeitos que vivem essas situações, para que suas expressões
sejam asseguradas e o sentido que tais vivências produz seja visibilizado,
reconhecido e valorizado. Assim, ampliar essa visibilidade é a principal
finalidade desse capítulo.
No terceiro e último capítulo recupero a presença da convivência
social na intervenção e na regulação estatal. O objetivo é demonstrar, ainda
que brevemente, o que qualifica práticas segregadoras e, portanto que não se
trata exclusivamente de discutir-se o contraponto entre atenção em instituições
fechadas e permanência na família ou no território. Afinal, a perspectiva
segregadora pode estar presente até mesmo quando o trabalho é desenvolvido
no domicílio, na rua, enfim, no lugar onde as pessoas estão.
É também nesse capítulo que destaco alguns desafios para a
intervenção pública que assumir a convivência social como uma segurança de
assistência social representa. Para isto recupero diálogo com especialistas que
realizaram um balanço dessa temática e destacaram aspectos estratégicos
para avançar compromissos e respostas públicas. Assim, nesse capítulo trago
elementos para demarcar especificidades da discussão da convivência social
no campo programático estatal e apontar que, embora as ações voltadas ao

19
As principais referências utilizadas nesse capítulo provêm da produção de Jessé de Souza, Lucio
Kowarik e Vera Telles.
39

convívio estejam presentes há anos, suas finalidades e modos de execução


são distintos do exigível a partir do seu reconhecimento como direito.
Por meio de subsídios coletados ao observar algumas
experiências no âmbito da política de assistência social e, portanto, por meio
de exemplos de práticas em desenvolvimento, busco acentuar como a
intervenção programática pode adotar mecanismos de valorização de sujeitos
para produzir efeitos de segurança e proteção. Em outras palavras, pretendo
demonstrar como as relações entre profissionais e usuários no interior da
política produz referências e vínculos de proteção.
Desse modo a convivência social é abordada na pesquisa sob
duas perspectivas complementares. Uma a define como campo programático
de responsabilidade estatal e para tanto busco bases teóricas para sustentar o
compromisso público na produção de oportunidades de viver experiências de
proteção de base relacional. Esta discussão está mais presente no Capítulo 1.
Já a segunda perspectiva aborda a convivência social como um método no
trabalho social a ser provido pela Política de Assistência Social, presente no
Capítulo 3 do estudo. Nesse sentido, busco materializar a convivência social
como direção, mas também como prática no trabalho social a ser desenvolvido
e parto da premissa que na assistência social a convivência social é
segurança, logo é direção, é método, é conteúdo do trabalho para ampliar,
diversificar e sustentar vínculos como resultado.
Ao concluir esta pesquisa, resgato as linhas de força exploradas
no estudo, para apontar desafios contemporâneos que constituam de fato e de
direito a convivência social como segurança social da política de assistência
social.

Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa,


representação de um todo estático – é um desenho que acompanha e
se faz, ao mesmo tempo, que os movimentos de transformação da
paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A
cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o
desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a
formação de outros mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes
tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 2011)
40
41

1 VÍNCULOS E RECONHECIMENTO: RELAÇÕES QUE PROTEGEM

É necessário discutir que tipo de convivência protege, queremos uma


convivência que desrespeita? Em que homens desrespeitam mulheres,
mulheres desrespeitam crianças, crianças desrespeitam idosos? Nós
queremos uma convivência pautada na falta de acesso à informação,
baseada no preconceito? Enfim, é necessário discutirmos a
convivência porque ela não se estabelece de forma mágica, ela
não nasce com as pessoas, ela é construída. Há convivências mais
protetoras ou menos protetoras, que desenvolvem mais ou
desenvolvem menos as habilidades e potencialidades. É possível por
meio de estudos já desenvolvidos, identificar esses movimentos.
É necessário ainda identificar em que momento deve haver uma
intervenção para prevenir o confinamento; é possível criar um padrão
de convivência? Quais são as evidências que indicam a necessidade
de intervenção da política pública? É a ausência de diálogo, por
exemplo? (Simone Albuquerque- grifo meu)

Nesse capítulo pretendo dialogar com essa reflexão trazida por


Simone Albuquerque, buscando destacar o que caracteriza uma convivência
que protege e qual é o “lugar” da ação estatal para assegurar a convivência
social. Lembro que falar de convivência social no campo programático e com o
status de direito declarado em lei, pressupõe inicialmente um entendimento de
que há responsabilidade pública sobre essa questão. Assim importa destacar
como ela pode ganhar materialidade e que experiências em curso podem
sinalizar para parâmetros de ação pautados na concepção de direito.
Para refletir sobre essas questões valho-me principalmente da
contribuição de dois autores contemporâneos, o sociólogo francês Serge
Paugam, que menciono a seguir, e o filósofo alemão Axel Honneth20, que em
seus estudos tem se dedicado a compreender como se dão os processos de

20
O filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth é considerado o principal representante contemporâneo da
tradição da teoria crítica da “Escola de Frankfurt”, sendo o atual diretor do Instituto para Pesquisas Sociais
de Frankfurt, ligado à Universidade, cuja tradição em síntese vincula-se ao desafio de assumir a tarefa de
mais do que descrever a realidade, compreender o seu funcionamento à luz de uma perspectiva de
emancipação apostando que essa emancipação é possível embora bloqueada pela própria organização
social vigente. Desse posicionamento decorre não só uma orientação para os estudos e debates, mas
também um comportamento em relação ao conhecimento produzido. Ex-assistente de Jürgen Habermas
com quem trabalhou até 1990, Axel Honneth aponta em sua tese de livre-docência que se tornou o livro
Luta por reconhecimento, por mim utilizado nesse estudo, que a teoria dos seus antecessores tinha
impasses, que denominou déficit sociológico. O principal impasse apontado é que esses teóricos não
analisaram as atividades cotidianas, tarefa a que se propõe de modo a inovar o debate sobre a
construção social da identidade pessoal e coletiva, que na sua formulação passa por processos de luta
por reconhecimento. É a contundência de sua obra que o torna reconhecido hoje como o maior
representante da terceira geração de Frankfurt. (NOBRE, 2011).
42

reconhecimento social, os padrões de reconhecimento possíveis e como a


vivência de experiências de desrespeito podem desencadear processos de luta
por reconhecimento, cuja característica tanto pode ser de disputa física
propriamente dita, por meio de guerra ou violência, como por estratégias
políticas mais pacíficas ou por meio das resistências cotidianas a
constrangimentos decorrentes de desrespeito, reivindicando tratamento distinto
e respeitoso.
Todavia, independente da estratégia, o fundamental nessa lógica
de raciocínio é que a vivência de experiências de humilhação e desvalorização
são motivadoras de luta e conflito social, sendo, uma condição para tal,
explicitar que determinadas experiências de desrespeito não afetam somente
uma pessoa mas um coletivo de pessoas nas mesmas condições ou com as
mesmas características. Dessa elaboração, destacarei principalmente sua
argumentação quanto aos padrões de reconhecimento, por considerar que
esse raciocínio contribui para compreendermos como as relações e as
experiências vividas são potencialmente produtoras de autonomia e
valorização pessoal.
Um segundo autor que serviu como referência nesse capítulo é o
sociólogo francês Serge Paugam21, especialmente em sua elaboração acerca
de tipologia de vínculos sociais. Para esse autor “a expressão ‘vínculo social’ é
atualmente empregada para designar todas as formas de viver em conjunto, a
vontade de religar os indivíduos dispersos, a ambição de uma coesão mais
profunda da sociedade no seu conjunto.” Desenvolve uma tipologia de vínculos
sociais que se expressam, em síntese, a partir da formulação de que os
vínculos caracterizam um movimento que se estabelece em duas direções. A
primeira é o “contar com”, expressão que traduz o que o indivíduo pode esperar

21
O sociólogo francês Serge Paugam é o atual Diretor de Pesquisa da Escola de Autos Estudos em
Ciências Sociais da França e diretor de pesquisa no CNRS. Dirige a equipe de pesquisadores sobre as
desigualdades sociais do Centro Maurice Halbawachs, a coleção Le lien social, da PUF e também a
revista Sociologie. Sua tese de doutorado, defendida em 1988, tratou dos processos de desqualificação
social. Seu programa de pesquisa se inscreve nas análises comparativas, qualitativa e quantitativa, das
formas elementares da pobreza nas sociedades modernas, notadamente na Europa e na América Latina.
Tem desenvolvido a análise da reprodução e da renovação das desigualdades, como também vem
estudando os fundamentos dos vínculos sociais a partir dos quais é possível definir e conceituar
diferentes tipos de rupturas sociais. Disponível em http://www.serge-paugam.fr/. Acesso em: 10 jun. 2013.
43

das relações por ele estabelecidas; a outra, o “contar para”, que expressa a
expectativa e o reconhecimento ao materializar o que as pessoas esperam
daquele indivíduo.
Para contribuir com a identificação dos tipos de relação que
produzem reconhecimento, recupero alguns argumentos utilizados em cada um
desses padrões para explicitar melhor a tese de Axel Honneth. Com isso a
intenção é demonstrar como essas distintas teorias se complementam e se
reforçam na ideia de que a dimensão relacional é fundamental para
compreensão da sociedade e das possibilidades de atuação sobre ela,
buscando mudar sua forma de organização ou desorganização. Para Bernardo
Toro trata-se de ordens/desordens criadas pelas pessoas e só modificáveis por
elas.
Cabe ressaltar que a teoria do vínculo desenvolvida por Serge
Paugam dialoga com a formulação de Honneth, conforme ele mesmo aponta,
no que tange ao conceito de reconhecimento, mas estabelece outra dimensão
para os vínculos, que é a proteção. Dessa forma, as relações produzem ao
mesmo tempo reconhecimento, expresso na consigna “contar para”, e
proteção, que se manifesta na lógica de “contar com”. Portanto os vínculos
respondem a todas as demandas dos indivíduos para sua existência. Nas
palavras do autor:

La protection renvoie à l’ensemble des supports que l’individu peut


mobilisier face aux aléas de l avie (ressources familiales,
communautaires, professionnelles, sociales...), la reconnaissance
renvoie à l’interaction sociale qui stimule l’individu em lui fournissant
la preuve de son existence et de as valorisation par le regard de
l’autre ou des autres. L’expression “compter sur” résume assez bien
ce que l’individu peut espérer de as relation aux autres et aux
institutions em termes de protection, tandis que l’expression “compter
pour” exprime l’attente, tout aussi vitale, de reconnaissance.
22
(PAUGAM, 2008: 63)

22
A proteção remonta ao conjunto de suportes que o indivíduo pode mobilizar face aos riscos da vida (
recursos familiares, comunitários, profissionais, sociais...), o reconhecimento refere-se à interação social
que estimula o indivíduo fornecendo a prova de que sua existência tem valor para o olhar de outro ou de
outros. A expressão “ contar com” resume bem o que o indivíduo pode esperar de sua relação com outros
e com instituições em termos de proteção, enquanto a expressão “contar para” exprime a expectativa,
igualmente vital, de reconhecimento. (tradução livre)
44

O esforço que se pretende aqui é, ao analisar essas duas teorias,


observar complementariedades que permitam identificar nessas formulações a
força das relações interpessoais para produzir proteção e segurança. Para
permitir uma visualização ainda que esquemática do que será tratado neste
capítulo, apresento no Quadro 1 uma proposta de diálogo entre as duas
teorias, de modo a possibilitar a visualização da abordagem desenvolvida no
decorrer do texto.

Quadro 1: Relação entre teoria do vínculo e teoria do reconhecimento


Tipo de vínculo Potência de proteção/reconhecimento Formas de desrespeito

Vínculos afetivos AUTOCONFIANÇA Maus-tratos e violação


(filiação, eletivo) “Sou digno de ser amado” Ameaças à
integridade física

Vínculos de cidadania AUTORRESPEITO Privação de direitos e


“Valho tanto quanto os demais” exclusão
Fere a integridade social

Todos (orgânicos, AUTOESTIMA Degradação e ofensa


eletivos, filiação, “Minhas particularidades são admiradas” Fere a honra e a dignidade
cidadania)

Serge Paugam ao descrever os vínculos sociais termina por lhes


atribuir duas faces, uma de proteção e a outra de reconhecimento social que é
fonte da identidade humana. Para Serge Paugam há diferentes modalidades de
vínculos. Essa é a sua contribuição. Eles podem ser de filiação, eletivos,
orgânicos ou de cidadania, modalidades de relação que compõem a trajetória e
a identidade dos sujeitos. E afirma:

Les sociologues savent que la vie em societe place tout être humain
dès as naissance dans une relation d’interdépendance avec les
autres et que la solidarité constitue à tous les stades de la
socialisation le socle de ce que l’on pourrait appeler l’homo
sociologicus, l’homme lié aux autres et à la société, no seulement
pour assurer as protection face aux aléas de l avie, mais aussi pour
45

satisfaire son besoin vital de reconnaissance, source de son identité


23
et de son existence em tant qu’homme. (PAUGAM, 2008, p.4) .

Essa formulação de Paugam é fundamental para o que pretendo


discutir, pois se há interdependência dos seres humanos em relação à
sociedade, então há demandas para provisão coletivas que não terão solução
ou resposta no próprio indivíduo. A interdependência induz as relações
cotidianas, pois os indivíduos estão constantemente sob o olhar do outro
(PAUGAM, 2008) o que os obriga a respeitar regras e a buscar reconhecimento
e valorização. Nesse sentido empresto os argumentos de Norbert Elias 24 ao
discutir a relação entre sociedade e indivíduos e afirmar que não se trata de
oposição entre um conceito e outro, afinal, a sociedade não é um somatório de
indivíduos. Há um amalgamento relacional que leva os indivíduos, em razão
das suas relações, se transformarem e transformarem a sociedade
simultaneamente.

Assim, cada pessoa singular está realmente presa; está presa por
viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo
nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais,
direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que a prendem. Essas
cadeias não são visíveis e tangíveis, porém não menos reais, e
decerto não menos fortes. E é essa rede de funções que as pessoas
desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que
chamamos “sociedade”. (ELIAS, 1994, p.23)

Trago essa análise porque entendo que ela tem uma direção
importante para pensar a convivência social e alguns de seus elementos, pois

23
Os sociólogos sabem que a vida em sociedade coloca todo ser humano desde o nascimento numa
relação de interdependência com os outros e que a solidariedade constitui a todos os estados de
socialização a base do que se poderia denominar homo sociologicus, o homem ligado aos outros e à
sociedade, não somente para assegurar sua proteção face aos males da vida, mas também para
satisfazer suas necessidades vitais de reconhecimento, fonte de sua identidade e de sua existência
enquanto homem. (Tradução livre)
24
O sociólogo alemão de origem judaica Norbert Elias (1897-1990), notabilizou-se pela preocupação em
retratar a relação dos indivíduos com a sociedade. Para Renato J. Ribeiro o que diferencia esse autor é
sua preocupação com as formas de sentir e de imaginar como tema de estudo. Seus estudos são sobre o
pormenor, a minúcia, para a partir dessas manifestações enxergar a ação e a força que vai constituindo a
sociedade, a cultura, os costumes. Para Renato J. Ribeiro, sua obra revoluciona a psicologia, a sociologia
e a história, pois põe em xeque varias verdades aceitas. Na obra a sociedade dos indivíduos, utilizada
nesse estudo e citada por vários autores renomados como CASTELL, PAUGAM e PAIS, dentre outros,
reconhece-se uma mudança significativa na maneira como a sociedade é compreendida eliminando a
oposição entre sociedade x indivíduo. (RIBEIRO, R.J, 2011).
46

se os indivíduos se transformam nas relações e transformam a sociedade


nesse movimento, então, fomentar experiências de convivência numa
perspectiva de fortalecimento dos indivíduos, de reconhecê-los como sujeitos e
diversificar e sustentar seus vínculos é possível e desejável para se
estabelecerem outros padrões de civilidade.

Promover bons encontros, que fortaleçam a potência de agir pode


impulsionar a ação para enfrentar situações conflituosas, alterar
condições de subordinação, estabelecer diálogos, desejar e atuar por
um mundo mais digno e mais justo. Enfim, promover mudanças em
que haja corresponsabilidade entre a ação das políticas sociais e os
sujeitos usuários. (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.19)

1.1 Convívio social fator de transformação dos indivíduos e da


sociedade

Toda ordem social é criada por nós. O agir ou não agir de cada um
contribui para a formação e consolidação da ordem em que vivemos.
Em outras palavras, o caos que estamos atravessando na atualidade
não surgiu espontaneamente. Esta desordem que tanto criticamos
também foi criada por nós. Portanto e antes de converter a discussão
em um juízo de culpabilidades- se fomos capazes de criar o caos,
também podemos sair dele. Bernardo Toro

Para Norbert Elias não há um eu, se destituído de um nós. Ao


tomar como verdadeira essa reflexão torna-se necessário considerar que não é
possível compreender os indivíduos por características que lhes são
intrínsecas ou natas, pois há várias explicações que estão fora dele. Para o
autor não é fundamental identificar o que vem antes na determinação das leis
autônomas que regem as relações entre os indivíduos e deles com a
sociedade. Os indivíduos não são postes sólidos nas quais vão se pendurando
relacionamentos, não existem antes e independente da sociedade; como
também as relações sociais não estão dadas, determinadas ou construídas
sem os indivíduos. Afirma: “Não se compreende uma melodia analisando cada
uma de suas notas separadamente, sem relação com as demais.”

(...) o modo como os indivíduos se portam é determinado por suas


relações passadas ou presentes com outras pessoas. Ainda que eles
47

se afastem de todas as outras pessoas como eremitas, os gestos


executados longe dos outros, assim como os gestos a eles dirigidos,
são gestos relacionados com os outros. (...) O que as liga à
sociedade é a propensão fundamental de sua natureza. (ELIAS,
1994, p.26)

A compreensão dos indivíduos a partir dessa elaboração não é


possível se dissociados de suas relações e dos vínculos por ele criados, até
mesmo com quem já não está vivo ou próximo, mas permanece em sua
memória física e afetiva. Essas relações não se explicam por raciocínios
simplistas ou binários, posto que há complexas funções e construções que se
produzem nelas. Trata-se de uma lógica reticular, pela qual é possível afirmar
que diferentes conexões compõem a estrutura do indivíduo. Na continuidade
dos argumentos Elias destaca que: “a formação individual de cada pessoa
depende da evolução histórica, do padrão social, da estrutura das relações
humanas”, o que exige considerar as condições objetivas da vida que
interferem diretamente na forma como as pessoas se constituirão como
sujeitos sociais.
O autor usa a imagem de um tecido para ilustrar esse processo e
ao analisá-lo, observa que não resulta da sobreposição de diferentes fios e
tampouco esses isolados fornecem a característica ou propriedades do tecido,
ele só é compreensível em termos da maneira como os fios se ligam, ou seja,
suas relações recíprocas, a trama. Mas, reconhecendo o limite dessa imagem,
o autor aponta que para entender as relações humanas é útil pensarmos que
essa trama faz-se e desfaz-se várias vezes em diferentes redes. O indivíduo
cresce numa rede de pessoas que existiam antes dele e estabelece a partir
dessas relações outras redes. Assim, não existe um marco zero sem nenhuma
vinculação, pressupondo que aos poucos as relações vão se configurando
numa somatória de vínculos. Isto porque, desde a gestação o indivíduo está
em relação com sua mãe25, por quem é alimentado por meio do sangue e
depois pelo leite produzido no corpo.

25
Para Paugam e Honneth, as relações humanas estabelecidas no início da vida são fundamentais para
o desenvolvimento de seus estudos. Destacarei essa particularidade mais adiante. Quero somente
mencionar que para Paugam estamos aqui nos referindo a vínculos de filiação, e para Honneth trata-se
48

Para exemplificar essa forma reticular, o autor analisa o processo


que se estabelece durante uma conversa ou um diálogo e identifica o rumo que
vai tomando a partir da interação entre os indivíduos; é estabelecida uma
interdependência contínua entre as ideias e o que pensavam inicialmente pode
mudar. É o que ocorre, por exemplo, quando há o convencimento de um pelo
outro, momento em que a elaboração de um ficou no outro. Durante a conversa
pode haver uma discordância. Nesse caso, o outro é reconhecido como
adversário o que impulsiona a construção de outros argumentos para sustentar
um posicionamento contrário. De todo modo, mesmo para manter o
posicionamento inicial, as mudanças são processadas nesse diálogo, pois a
manutenção de posição exige novos argumentos.
Assim, importa destacar que as pessoas vão mudando, formando
novas ideias e não é possível ou compreensível analisar respostas ou
intervenções de cada uma delas isoladamente, como uma unidade
independente em si, sem inseri-las nesse diálogo com o outro. E é nesse
diálogo que ocorre um crescimento contínuo dos indivíduos, característica que
para Elias é essencial e não pode ser ignorada. Assim,

(...) cada um dos interlocutores formam ideias que não existiam antes ou leva
adiante ideias que já estavam presentes. Mas a direção e a ordem seguidas
por essa formação e transformação das ideias não são explicáveis unicamente
pela estrutura de um ou outro parceiro, e sim pela relação entre os dois. E é
justamente esse fato de as pessoas mudarem em relação umas às outras e
através de sua relação mútua, de se estarem continuamente moldando e
remoldando em relação umas às outras, que caracteriza o fenômeno reticular
em geral. (ELIAS, 1997, p.29)

São esses diálogos e movimentos constantes que vão


construindo os sujeitos. Portanto, não há um eu verdadeiro, apartado das
relações com as pessoas como se essas fossem uma roupagem externa, que
não corresponde a essa pureza e singularidade e que exerce uma influência
boa ou ruim sobre o “seu eu”, como se estivesse fora dele. Para ELIAS essa é

de um dos padrões de reconhecimento que ele denomina como o amor, que é responsável pela produção
de autoconfiança nos sujeitos que vivenciam essa experiência amorosa de reconhecimento recíproco,
especialmente, entre mãe e filho.
49

uma interpretação estática e absolutamente inadequada das relações entre


seres humanos. Não é possível compreender ou conhecer os indivíduos, suas
motivações, desejos e ações fora de seus contextos e das suas relações, pois
para esse autor não há uma fratura entre externo e interno, mas um
“entrelaçamento constante e irredutível” entre os seres. Até mesmo o
autocontrole adquire conformações específicas na relação com outros.

As ideias, convicções, afetos, necessidades e traços de caráter


produzem-se no indivíduo mediante a interação com os outros, como
coisas que compõem seu “eu” mais pessoal e nas quais se expressa,
justamente por essa razão, a rede de relações de que ele emergiu e
na qual penetra. E dessa maneira esse eu, essa “essência” pessoal,
forma-se num entrelaçamento contínuo de necessidades, num desejo
e realização constantes, numa alternância de dar e receber. É a
ordem desse entrelaçamento incessante e sem começo que
determina a natureza e a forma do ser humano individual. Até mesmo
a natureza e a forma de sua solidão, até o que ele sente como sua
“vida íntima”, traz a marca da história de seus relacionamentos – da
estrutura da rede humana em que, como um de seus pontos nodais,
ele se desenvolve e vive como indivíduo. (ELIAS, 1997, p.36)

Dando continuidade ao raciocínio, destaca ELIAS que o corpo


humano tem duas áreas com funções diferentes, mas totalmente
interdependentes. Uma parte são órgãos e funções que servem para manter e
reproduzir o próprio organismo, como o estômago, por exemplo, e outra
formada por órgãos e funções que servem às relações do organismo com o
mundo, como é o caso do aparelho fonético. O indivíduo pode ter esse
aparelho desenvolvido organicamente, mas o idioma que irá falar é
determinado socialmente. Portanto, isso configura uma maleabilidade e uma
liberdade em relação a constrangimentos hereditários e é justamente essa
liberdade que assegura maior força às leis e constrangimentos decorrentes das
relações entre os indivíduos.

Por natureza, [o ser humano] é feito de maneira a poder e necessitar


estabelecer relações com outras pessoas e coisas. E o que distingue
essa dependência natural de relações amistosas ou hostis, nos seres
humanos (...) não é outras coisa senão sua maior flexibilidade, sua
maior capacidade de se adaptar a tipos mutáveis de relacionamentos,
sua maleabilidade e mobilidade especiais. (ELIAS, 1997, p.37).
50

A potência da linguagem26e sua especificidade na compreensão


das particularidades humanas estão presentes nos estudos de Norbert Elias
sobre indivíduo e sociedade. O autor ressalta que ainda não há estudos
científicos que identifiquem as circunstâncias peculiares pelas quais os seres
humanos são a única espécie que tem uma estrutura orgânica que permite
associá-la ao grupo. Esse é o seu principal instrumento de comunicação. Ou
seja, ao usar um determinado idioma o sujeito assume uma identidade coletiva,
seu corpo permite e evoluiu para isso. Tampouco é possível depreender como
ao longo da evolução humana chegou-se a particularidades de composição
muscular e óssea do rosto que apontam especificidades e singularidades a
cada sujeito.
Assim, ao discutir a formação orgânica, pretende reforçar essa
ideia de que indivíduo e sociedade são uma totalidade, não é possível apartá-
los e as características orgânicas ajudam a entendê-la. Refuta o pensamento
que predominou num dado período, de que a vida social não era natural, mas
tolerada por questão de sobrevivência. Destaca ainda que é por meio da
linguagem que o ser humano é capaz de transmitir um registro simbólico de
conhecimento social de uma geração a outra, e é também por meio dessa
presença de vida comunitária e dessa aprendizagem adquirida que são
mudadas as relações e se desenvolvem outras formas de viver e conviver. É
somente convivendo com outros que se percebe distinto dos demais e se tem
consciência dessa percepção pelos outros.
Os seres humanos são os únicos organismos até hoje conhecidos a
usarem um meio de comunicação primordial que é específico da
sociedade e não específico da espécie, e são também a única
espécie, dentre as que conhecemos, dotada de uma parte do corpo
tão apta a trazer uma marca individual diferente que, por meio dela,
centenas de indivíduos são capazes, por longos períodos, e muitas
vezes pela vida inteira, de reconhecerem uns aos outros como tais,
como indivíduos diferentes. (ELIAS, 1997, p.158)

26
Para Axel Honneth, só o gesto vocal é capaz de promover uma interação imediata entre os sujeitos
como também produz mudanças no próprio sujeito falante, visto que esse ao ouvir sua própria
expressão/manifestação coloca-se para si, como um estímulo externo. Nesse sentido, é importante
destacar que somente o animal humano pode estimular-se a si mesmo do mesmo modo que aos outros e
reagir aos seus estímulos da mesma maneira que aos estímulos dos outros.
51

Reconhecer a direção reticular, a força do diálogo e a


necessidade dos seres humanos de estabelecerem relacionamentos são
aspectos fundamentais dessa elaboração. Eles ajudam a afirmar que na
convivência social se processa movimentos de aprendizagens e trocas que vão
compondo os sujeitos e estabelecendo novas leituras da realidade e das
formas de viver. Pressupõe também pensar que se as relações constituem a
identidade do sujeito e produzem nele mudanças ao longo da vida, então novas
e diferentes relações interferem em suas escolhas que não são dirigidas por
uma força interior que o indivíduo desenvolve por si só27. A capacidade e
possibilidade de mudança estão associadas às conexões que a pessoa vai
fazendo. De outro lado, porém, não se trata de uma determinação social, na
qual o indivíduo não tem nenhuma gestão ou vontade, posto que é também
nessas relações que ele se constrói. Para exemplificar esse movimento Elias
fala em um “entrelaçamento incessante e sem começo” entre o indivíduo e a
sociedade. Sinaliza-se aqui um aspecto a ser pensado no fortalecimento da
convivência social como proteção visto que não é possível considerar
trajetórias e sofrimentos dos indivíduos dissociados de suas relações e de seus
vínculos, sob pena de análises limitadas e imprecisas.
Compreender as questões relacionais nessa perspectiva torna
essa análise mais complexa porque as falas, representações e construções
não podem ser compreendidas descontextualizadas.
Outra lógica que dessa formulação deriva, é que nenhuma
relação é imutável, por mais cristalizada que possa parecer, portanto há
sempre possibilidade de mudanças. Como se trata de construções históricas e
relacionais, geradoras de sofrimento, perda ou exclusão, é no processo
histórico e na construção de outras relações que as anteriores se alteram.
Conforme acentua Elias, nem o indivíduo é um poste no qual fatos vão se
sobrepondo e nem a sociedade está conformada sem a intervenção/atuação
dos indivíduos.

27
Até mesmo a solidão é fruto dessas relações e quando sozinho, reproduzo gestos comportamentos
aprendidos na relação com outros. Afirma: “ninguém se sente em solidão se não sente a necessidade da
presença de alguém”. (PAIS, 2006, p.19)
52

Exige também pensar que as classificações e categorizações que


por vezes são feitas dos pobres, dos ricos, dos negros, dos homossexuais, das
mulheres ou dos jovens, são enquadramentos insuficientes para explicar essa
trama complexa. Os indivíduos não estão/são determinados por um único
aspecto de sua trajetória, mas sim por essas distintas, variadas e complexas
relações que se dão por vezes simultaneamente. As funções psíquicas, afirma
ELIAS, não se desenvolvem naturalmente com o crescimento físico, mas são
construídas a partir do entrelaçamento da “natureza” de muitas pessoas.
Em que pese o caráter amplo dessa análise, que traz uma
concepção mais alargada da convivência no âmbito das diferentes relações
sociais, quis aqui sinalizar a dinâmica relacional, constituída por ELIAS, por
entender que ela traz indicativos para a ação programática no âmbito do
convívio. A começar por indicar a perspectiva de decifrar as redes que
compõem o campo relacional das pessoas com as quais se lida como um
conhecimento que permite perceber pontos de sustentação, de proteção e de
interdependência.
O reconhecimento da maleabilidade dos processos de
relacionamento humano atribui certo caráter de inovação e criação aos
encontros. Há uma imprevisibilidade e novas histórias surgem nesse processo.
Existe aqui também uma pista a ser explorada ao pensar em experiências de
convivência fortalecedoras dos sujeitos: os encontros são sempre uma porta
aberta para distintas experiências de aprendizagem e vinculação. Assim, são
relevantes as formas de intervenção que promovem encontros afetando
pessoas, mobilizando-as e provocando transformações.
Outro aspecto importante deste vasto estudo de ELIAS, diz
respeito ao que se denomina, nas sociedades modernas, o avanço da
individualização ligado à ascensão social e econômica, por serem mais
competitivas e valorizadoras como desempenhos individuais, ocorrem com
maior frequência, ou maior probabilidade. São as relações não-permanentes.
Constantemente estão sendo compostas novas relações. A vivência de
diferentes relações, por sua vez, exige do indivíduo novos aprendizados,
constantes decisões sobre continuidade e término de relacionamentos e
53

mesmo certo inventário, como denominou ELIAS, pois é necessário testar se


os relacionamentos estão fluindo na direção desejada. Há um campo de
incerteza e a necessidade de testar os relacionamentos, o que significa testar a
si mesmo.

Eles têm que se perguntar com mais frequência: como estamos em


relação uns aos outros? (...) Essa estrutura de relações requer do
indivíduo maior circunspecção, formas de autocontrole mais
conscientes e menor espontaneidade dos atos e do discurso no
estabelecimento e na administração das relações. (ELIAS, 1997,
p.167)

Há que se considerar, porém, e Norbert Elias lembra essa


peculiaridade, que essa conformação mutável e dinâmica das relações não
eliminou uma necessidade humana fundamental que é o anseio do calor
afetivo, a certeza de afeição dos outros por si, o desejo de compromisso nas
relações com outros e a vida vivida em companhia daqueles que se gosta.
Segurança fundamental para o ser humano. A individualização exacerbada
compromete essa dimensão, na medida em que a competitividade ou a
dedicação à ascensão pessoal termina por restringir ou impedir a construção
desses vínculos. O indivíduo continua buscando e desejando essa vivência,
mas perde a capacidade de retribuir com a mesma espontaneidade quando se
depara com essas oportunidades de construção e vivência afetiva.
O ser humano tem uma necessidade natural de afirmação afetiva
por parte de outros, de ser amado, de companhia humana. O dar e receber que
as relações asseguram é uma das condições fundamentais da existência
humana. “aquilo de que parecem sofrer os que carregam em si a imagem
humana de um eu desprovido do nós é o conflito entre seu desejo de relações
afetivas com outras pessoas e sua incapacidade de realizar esse desejo”
(ELIAS, 1997, p.165). Nos dizeres de Axel Honneth o ser humano tem
necessidade de reconhecimento.
54

1.2 Reconhecimento e proteção como resultante de convivências


protetivas

Na sociedade moderna, as condições para a autorrealização individual


só estão socialmente asseguradas quando os sujeitos podem
experienciar o reconhecimento intersubjetivo não apenas de sua
autonomia pessoal, mas também de suas necessidades específicas e
capacidades particulares. (Honneth, 2003b, p.189)

Baseado nos estudos dos filósofos americano George Mead e


alemão Georg Hegel, o também alemão Axel Honneth aprofundou seus
estudos na identificação dos processos desencadeadores da “luta por
reconhecimento” e de como essa luta pode representar uma evolução moral da
sociedade. Sua preocupação central é observar como o desrespeito social
provoca sofrimento, como também mecanismos de resistência e de ação para
buscar a restauração de um reconhecimento mútuo. Na leitura desses dois
autores, Honneth identifica teses complementares que permitem afirmar a
importância de redes de distintas relações de reconhecimento de maneira que
os sujeitos se sentirão confirmados, fortalecidos e autônomos por meios da
vivência de relações positivas. O suposto é que a identidade do sujeito humano
é fruto do reconhecimento intersubjetivo.
Para Honneth é a autoconfiança – sentimento que resulta do
reconhecimento dos vínculos nas relações primárias – o autorrespeito possível
quando são reconhecidos os vínculos de cidadania. Assim, a autonomia
jurídica é preservada e há segurança sobre o valor das próprias capacidades,
que ele denomina como estima social. O sentimento que decorre das
diferenças como valores positivos dos sujeitos possibilita a autorrealização, um
processo de realização espontânea de metas da vida eleitas de forma
autônoma, sem constrangimentos, influências externas ou bloqueios internos
provocados por inibições psíquicas e por angústias. O indivíduo que goza
dessa condição expressa com facilidade suas necessidades e sente-se seguro
para aplicar e usufruir de suas capacidades. A chave do raciocínio do autor
está no fato de que essa realização é obrigatoriamente fruto das suas
interações positivas, dos padrões de reconhecimento e da vivência da
55

experiência de ser reconhecido, portanto não é algo disponível internamente no


sujeito.

A despeito de todas as diferenças, ambos [Hegel e Mead] tiveram em


mente o mesmo ideal de uma sociedade em que as conquistas
universalistas da igualdade e do individualismo se sedimentaram a tal
ponto em padrões de interação que todos os sujeitos encontram
reconhecimento como pessoas ao mesmo tempo autônomas e
individuadas, equiparadas e, no entanto, particulares. (HONNETH,
2011, p.275)

Para ele os padrões de reconhecimento desencadeiam nos


indivíduos atitudes positivas para com eles mesmos, que decorre de suas
relações imediatas e se configuram em amor, direito e estima. Tais formas de
reconhecimento, quando ocorrem, asseguram a vivência da autonomia e a
valorização pessoal. Por outro lado, para cada situação de reconhecimento, o
autor estabeleceu uma correspondente forma de desrespeito pessoal e social.
Assim, o inverso de uma dedicação emotiva, que está afeta ao amor, é a
vivência de maus-tratos e de violência. O inverso do respeito cognitivo possível
por meio do reconhecimento do direito é a vivência da privação de direitos e
exclusão. E, por fim, o inverso da estima social ou da solidariedade é a
degradação e a ofensa. Mais adiante, a vivência/experiência de situações de
desrespeito será abordada. Interessa-me aqui focar as situações de
convivência fortalecedoras e produtoras de reconhecimento, na direção de
sinalizar elementos a serem potencializados na ação pública.
Sobre as relações de reconhecimento, o estudo de Honneth
estabelece três padrões relacionais. O amor que produz a autoconfiança e a
certeza que os indivíduos possuem de que suas carências terão atenção e
dedicação de outro, ainda que não imediatamente ou à distância, é a certeza
do afeto que produz autoconfiança. O direito e o sentimento de autorrespeito
ou respeito social, pelo qual o sujeito se reconhece digno do respeito de outros.
Esta relação só é possível quando o sujeito pode reclamar direitos que
permitem uma expressão simbólica pela qual é reiterada sua condição e os
outros a reconhecem. O terceiro padrão relacional de reconhecimento é o da
estima social ou da solidariedade. Nesse caso associa-se à ideia de partilha de
56

valores comuns e ao reconhecimento de que as ações dos sujeitos contribuem


de alguma maneira para implementar a prática dos valores coletivos, ou seja,
suas ações estão assentadas nesses valores, os fortalece e os legitima.
Ressalte-se que, se no reconhecimento de direitos há uma
dimensão mais igualitária e universal, na estima social há maior valor às
características e particularidades de cada sujeito. Registra-se aqui, portanto a
valorização das diferenças.
Observe-se que essas distintas formas de reconhecimento
ocorrem e decorrem de diferentes vínculos relacionais que, por consequência,
se estabelecem em diferentes relações. Axel Honneth e Serge Paugam
identificam particularidades nas relações firmadas pelos sujeitos que
impulsionam distintos sentimentos.
Para Paugam, é possível depreender quatro modalidades de
vínculos que constituem a trama social, são complementares e entrecruzados,
o que permite afirmar que o padrão máximo desejável de proteção social é
aquele no qual todos os vínculos estão fortalecidos na trajetória dos sujeitos. É
por esses vínculos que o indivíduo sente pertencer à sociedade, o que lhe
assegura também definir sua identidade e reforçar a lógica de interdependência
entre os indivíduos. Lembrando que para Paugam a importância de discutir os
vínculos refere-se simultaneamente à sua capacidade de indicar condições de
reconhecimento e de proteção social ou de desrespeito e de desproteção
quando esses vínculos não existem ou estão fragilizados. Observa-se no
Quadro 2, as tipologias de vínculos identificadas por Paugam.
57

Quadro 2: Definição dos diferentes tipos de vínculos em função das


formas de proteção e de reconhecimento

STipos de vínculo Formas de proteção Formas de


reconhecimento
Vínculos de filiação Contar com solidariedade Contar para seus pais e
(entre pais e filhos) intergeracional filhos
Proteção fechada Reconhecimento afetivo
Vínculos de Contar com a Contar para entre si
participação eletiva solidariedade entre si Reconhecimento afetivo
(entre grupos, amigos, Proteção fechada ou por similitude
escolhidos, próximos...)
Vínculos de Emprego estável Reconhecimento pelo
participação orgânica Proteção contratual trabalho e a estima
(entre atores da vida social que dele decorre
profissional)
) Vínculos de cidadania Proteção Jurídica (direitos Reconhecimento do
(entre membros de civis, políticos e sociais) indivíduo soberano.
uma mesma sob o princípio de
comunidade política) igualdade

(Fonte: PAUGAM, 2008)

Observando os tipos de vínculos, identifica-se num primeiro grupo


os vínculos de filiação que se referem àqueles estabelecidos nas relações
primárias e familiares por consanguinidade ou adoção. Afirma Paugam que são
esses o fundamento absoluto do pertencimento social.
Outra modalidade de vínculos são os de participação eletiva, que
derivam da socialização extrafamiliar, o que permite ao indivíduo entrar em
contato com outros indivíduos com os quais aprende a conhecer grupos e
instituições diversas. Os vínculos dessa socialização são inúmeros: o bairro, os
grupos de amigos, as comunidades locais, as instituições religiosas, esportivas,
culturais, etc. O principal destaque de Serge Paugam para essa modalidade de
vínculos é justamente sua característica de estabelecer-se a partir de escolhas
dos sujeitos, portanto são frutos do exercício libertário dos indivíduos de
estabelecer relações interpessoais “segundo seus desejos, suas aspirações e
seus valores emocionais”.
58

O terceiro tipo destacado por Paugam é o vínculo de participação


orgânica, caracterizado pela aprendizagem e o exercício de uma função
determinada na organização do trabalho. Por esse vínculo o indivíduo goza da
proteção legal e financeira que advém das relações contratuais de trabalho,
como também da estima social que decorre do valor social que a atividade
profissional desempenhada possui. Esse vínculo começa na escola e se
prolonga até o mundo do trabalho.
A última modalidade de vínculo, segundo Paugam, é o de
cidadania, fundado sobre o reconhecimento da soberania do cidadão. Por essa
vinculação é possível reconhecer a responsabilidade estatal para dar
condições de exercício dos direitos produzindo condições de vivência
autônoma. Ressalte-se que a vivência desses vínculos é distinta na trajetória
dos sujeitos mas não só no campo individual. Na história de cada sociedade, a
importância atribuída a esses vínculos é também distinta.

Dans chaque société, ces quatre types de liens constituent la trame


sociale qui préexiste aux individus et à partir de laquelle ils sont
appelés à tisser leurs appartenances au corps social par le processus
de socialisation. Si l'intensité de ces liens sociaux varie d'un individu à
l'autre en fonction des conditions particulières de sa socialisation, elle
dépend aussi de l'importance relative que les sociétés leur accordent.
Le rôle que jouent par exemple les solidarités familiales et les attentes
collectives à leur égard est variable d'une société à l'autre. Les formes
de sociabilité qui découlent du lien de participation élective ou du lien
de participation organique dépendent en grande partie du genre de
vie et sont multiples. L'importance accordée au principe de
citoyenneté comme fondement de la protection et de la
reconnaissance n'est pas la même dans tous les pays. (PAUGAM,
28
2008, p.77)

28
Em cada sociedade, os quatro tipos de vínculos constituem a trama social que pré-existe aos indivíduos
e a partir dos quais eles são convocados a tecer seus pertencimentos ao corpo social para o processo de
socialização. Se a intensidade desses vínculos sociais varia de um individuo para outro em função das
condições particulares de socialização, eles dependem também da importância relativa que as
sociedades lhes concedem. O papel que desempenha, por exemplo, a solidariedade familiar e as
expectativas coletivas a seu respeito são variadas de uma sociedade para outra. As formas de
sociabilidade que decorrem do vínculo de participação eletiva ou do vínculo de participação orgânica
dependem, em grande parte, dos gêneros de vida e são múltiplas. A importância atribuída ao princípio de
cidadania como fundamento da proteção e de reconhecimento não é o mesmo em todos os países.
59

1.2.1 Autoconfiança: reconhecimento produzido pelos vínculos nas


relações primárias

Uma primeira modalidade de reconhecimento na teoria de


Honneth é aquele possível nas relações amorosas. E nesse caso é importante
explicitar que não se trata somente da relação erótica e amorosa entre dois
parceiros, mas vai para além dessas. Trata-se de todas as relações primárias
que se definem por ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, podem ser
de amizade, entre pais e filhos e entre parceiros – que constituem vínculos de
filiação ou eletivos na teoria de Paugam. Nessas relações há a necessidade de
manter-se o equilíbrio entre a autonomia e a ligação e uma particularidade de
reconhecimento recíproco, pelo qual as demandas dos indivíduos são
claramente manifestas e acolhidas como importantes pelo destinatário dessa
ligação afetiva.
Os estudos psicanalíticos sobre o desenvolvimento infantil,
especialmente na primeira infância, são uma grande contribuição para
compreender como essa interação se estabelece. Honneth afirma que o bebê
humano tem alta predisposição para o contato físico, destacadamente com a
mãe. Nos primeiros meses de vida há uma relação simbiótica entre ambos,
denominada por alguns autores, como Winniccot, de “dependência absoluta29”.
É uma etapa curta, embora intensa, sendo que o fundamental na teoria do
reconhecimento é identificar o momento em que se dá a ruptura dessa
simbiose, demarcada em geral pela necessidade da mãe de dedicação a
outras tarefas sociais que não o cuidado do bebê. A partir desse momento
começa uma dependência relativa, pela qual não permanecem juntos durante
todo o tempo, mas é sabido por ambos a importância daquele afeto, não sendo
necessária uma fusão simbiótica para vivê-lo. Ou seja, mesmo quando está só,
a criança tem confiança na disposição da mãe para amá-la e atender às suas
carências e é o retorno e atenção da mãe após esses intervalos de separação
que produz tal sentimento.

29
Gastão Wagner, ao abordar a autonomia afirma que a dependência nessa fase da vida é biológica e
psicológica: “Pensem, se alguém consegue trocar parte de nossa dor e de nossa fome por alívio e prazer
é, então, compreensível que rapidamente sejamos tomados de amor por essa pessoa”. (2006: 671).
60

Esse é o princípio no reconhecimento amoroso. Mesmo estando


sós ou não estando na presença das pessoas amadas, é sabido que elas estão
dispostas, disponíveis e interessadas em nos ofertar acolhida física e
emocional. Essa segurança dos indivíduos de que têm um valor único para as
pessoas amadas é sintetizada no sentimento de autoconfiança. Nota-se que há
uma relação de dependência do afeto do outro, mas há um reconhecimento
recíproco de mútua importância da qual decorrerá uma dedicação amorosa de
ambos.
Uma convivência promotora de autoconfiança nas relações
amorosas caracteriza-se pela certeza de reciprocidade de afetos e cuidados,
que são manifestos mesmo na ausência das pessoas amadas, seja ela
temporária ou mais alongada. Nessas circunstâncias é a certeza do retorno e
de que há um mútuo desejo de estarem próximas, que torna as circunstâncias
da distância toleráveis. Dessa forma, é a reciprocidade a principal propriedade
das relações afetivas que tornam os sujeitos seguros e autoconfiantes. Essa
certeza é chave para o desenvolvimento da identidade do indivíduo em todas
as suas outras relações. Segundo Honneth,

Essa relação de reconhecimento prepara o caminho para uma


espécie de autorrelação em que os sujeitos alcançam mutuamente
uma confiança elementar em si mesmos, ela precede, tanto lógica
como geneticamente, toda outra forma de reconhecimento recíproco:
aquela camada fundamental de uma segurança emotiva não apenas
na experiência, mas também na manifestação das próprias carências
e sentimentos, propiciada pela experiência intersubjetiva do amor,
constitui o pressuposto psíquico do desenvolvimento de todas as
outras atitudes de autorrespeito. (HONNETH, 2003, p.177)

Torna-se relevante apontar que as relações de parentesco oferecem


uma dimensão afetiva e apoiadora no cotidiano capaz de proteger indivíduos e
grupos.
Há aqui o reconhecimento de que não são todas as relações
familiares que são capazes de proteger, e que aquelas que
apresentam laços positivos e presença afetiva e ordinária precisam
ser identificadas e valorizadas. Evidencia-se que os elementos
fortalecedores são o gostar e apreciar o outro, além de contar com
ele para questões prosaicas do cotidiano. (TORRES e GOUVEIA,
2012: 33)
61

Observou-se na pesquisa de campo que, mesmo não mencionando a


lógica da teoria de reconhecimento, os profissionais identificam em algumas
experiências de trabalho situações que promovem a autoconfiança ou
autoestima como denominaram, por meio do estreitamento de vínculos entre
mães e crianças pequenas. Pode-se observar uma potência da intervenção da
política de assistência social para esse reconhecimento, por meio do
mapeamento das relações familiares de modo a verificar quais devem ser
fortalecidas e quais precisam ser restringidas, e na oferta de oportunidades de
convivência intergeracional que fortaleça vínculos de proteção e afeto na
família:
Uma vez a família incluída(...) a gente começa a observar mesmo, a
gente espera uma coisa mas começa a captar outra, e o que eu
venho captando, o encontro daquele filho com aquela mãe, está ali
com um propósito, em casa eles não se encontram, então eu vejo
que eles se relacionam, e eu percebo também que a autoestima
começa a ser elevada, a criança começa a se reconhecer, eu
acredito nisso, porque eles chegam meio bichinho do mato, meio sem
lugar, eles não tem um lugar ali. (Psicóloga, CRAS Alterosa, Betim)

A oportunidade de convivência e de atenção afetiva à criança é


também valorizada pelas mães que participam desse serviço realizado pela
Prefeitura de Betim, em Minas Gerais. Foram comuns os relatos,
especialmente de mães adolescentes como as atendidas pelo CRAS Vila
Recreio, de que viver a experiência de atenção diretamente com o filho muda a
forma de relacionamento entre ambos, condição facilitada pela oferta dessa
oportunidade na política pública e acompanhada por profissionais.

É bom estar aqui, porque quando a gente tá em casa, mesmo que ele
esteja perto, sempre estamos fazendo outra coisa, nunca temos um
momento de atenção só para o filho como temos aqui. (Usuária –
CRAS Alterosa- Betim)

Venho conversando com ele sobre o que fizemos no dia anterior


[referindo-se ao trajeto até o CRAS], quando voltamos conversamos
sobre o que a gente gostou mais e aí vou sempre conversando com
ele, com meu outro filho nunca conversei tanto como com esse.
(Usuária – CRAS Alterosa - Betim)

Meus filhos gostam muito quando eu brinco com eles, mas em casa
não é possível fazer o que fazemos aqui, porque temos muito
trabalho nos outros dias em que não estamos trabalhando fora, então
62

aqui brincamos, corremos juntos, sinto que sou mais próxima


deles, mais amiga. (...) Algumas vizinhas acham um absurdo e coisa
de quem não tem o que fazer, vir ao CRAS para brincar com o filho,
mas eu gosto muito e aos finais de semana, participo das atividades
na escola com meu filho mais velho. Meu marido também me apoia e
acha importante. (Usuária – CRAS Vila Recreio- Betim)

Na teoria dos vínculos desenvolvida por Serge Paugam, a


dimensão afetiva reforça as interdependências humanas e transforma o “eu”
em “nós”. É por essa constituição de nós que a pessoa sabe que pode contar
com o outro. Nas modalidades de vínculos identificadas e tipificadas pelo autor,
os decorrentes de reconhecimento afetivo são de duas modalidades: os
denominados vínculos de filiação e os de participação eletiva.
Como já apontado, os vínculos de filiação referem-se mais
diretamente às relações familiares, que pode tanto ser de consanguinidade
como de família adotiva. Nessa modalidade de vínculo há, para além de
proteção do campo material, a relevância do afeto para assegurar a
socialização, a construção da identidade e o equilíbrio do indivíduo. Em que
pese ser possível, cada vez mais, a sobrevivência fora do grupo familiar – que
por vezes inclusive é desejável quando esses vínculos de proteção e
reconhecimento não se estabelecem – o fato é que a família tem uma
importância fundamental de solidariedade intergeracional que exige um
elevado investimento afetivo de seus membros e que lhes assegura
autoconfiança. Sentir-se amado por esse grupo de pessoas mais próximas é
fundamental para as demais relações a serem estabelecidas ao longo da vida.
Também no campo afetivo encontram-se os vínculos de
participação eletiva. Como vimos, para Paugam, esses se referem à
socialização extrafamiliar e podem ser de distintas naturezas, com o bairro,
com amigos, com instituições religiosas, culturais, etc.30 Embora, nem todos os
vínculos eletivos se estabeleçam em campos afetivos, seguramente as
relações de amizade e a formação de casais ou parcerias são

30
Ao discutir as formações de redes de indivíduos, MARQUES (2010), baseado nos estudos de Simmel,
aponta que há maior pertinência nesse tipo de análise para a vida nas metrópoles modernas, onde há
liberdade de circulação e escolha social, diferentemente dos padrões característicos do mundo rural e das
cidades pequenas. (MARQUES, 2010, p.45).
63

predominantemente decorrentes e sustentadas por afetos. Retomo que a


característica destacada pelo autor é justamente a dimensão eletiva, ou seja, a
escolha do sujeito de com quem deseja se relacionar, e essa eleição de
pessoas e instituições refere-se aos “seus desejos, suas aspirações e seus
valores emocionais”. Não há imposições aqui, o sujeito expande suas relações
autonomamente. Não se configura como os vínculos de filiação, por exemplo,
nas quais o indivíduo nasce ou se insere em um grupo já existente.
Mas essa autonomia de escolha está dirigida e influenciada por
constrangimentos sociais31. Ao abordar essa questão, Paugam identifica a
tendência a relações entre indivíduos que se reconhecem como da mesma
origem social, tanto no que se refere às escolhas de amizade quanto para a
composição de parcerias amorosas.
Em seu estudo sobre redes, MARQUES (2010) também identifica
uma tendência de indivíduos com características similares de se relacionarem
entre si. A esse mecanismo associa o conceito de homofilia. Mas ressalta que:
“se a homofilia é produzida e mantida por dimensões intrínsecas da
sociabilidade – práticas, gosto e linguagem, entre outros – ela tende a ser
reforçada pelo espaço e pela segregação”. Mais adiante destaca ainda que as
dificuldades de manutenção de vínculos por questões de localização e de
disponibilidade financeira para deslocamento nas cidades, também impactam
nessas redes mais homogêneas e menos diversificadas. (MARQUES, 2010,
p.40-41). Ressalte-se que há aqui um ciclo vicioso, ao reduzir as relações, pois
quanto mais diversificada a rede de relações e os vínculos, maior a
sustentação e os pontos de proteção dos indivíduos.
Identifica-se aqui uma potência na política de assistência social de
oferecer oportunidades e experiências de convivência diversificada em espaços
da cidade, com pessoas moradoras em distintos territórios, entre grupos e
pessoas de diferentes faixas etárias e com trajetórias pessoais distintas. A
lógica é de que a expansão e diversificação de relações amplia a segurança de
proteção e oferece oportunidades de desenvolvimento. Essa é uma

31
Lembremo-nos das afirmativas de ELIAS quanto ao amálgama entre indivíduo e sociedade, de modo a
se constituir uma condição em que não se distingue o inicio.
64

propriedade possível de ser observada na intervenção da política, conforme


depoimento de uma das profissionais entrevistadas:

Eu acho que a gente contribuiu nesse efeito aí, na superação de


conflitos, de traumas, de perdas, eu acho que a gente conviveu com
perdas de pessoas do próprio grupo, mas essas pessoas que
perderam filhos, mães, familiares, e o grupo foi assim extremamente
importante, e a gente não coloca isso centrado na pessoa que está
na frente, mas o grupo em si, de receber, de ser afetuoso, caloroso,
de trazer suas experiências, então são contribuições. (Assistente
Social, Centro Intergeracional Zoé Gueiros, Belém)

Ainda quanto às particularidades e à possibilidade de proteção


nos vínculos de participação eletiva, é importante destacar a distinção entre
relações de parceria conjugal e as relações de amizade32. Nas primeiras há
maior institucionalidade na relação, inclusive por vezes com vínculos formais e
legais. Já as relações de amizade não têm essa institucionalização, mas
melhor representam a lógica de proteção, pois partem do suposto do
desinteresse e da libertação de contingências sociais. Ter garantia de ajuda e
proteção ao enfrentar problemas é traduzida como sinônimo de amizade.

As relações entre pessoas que se aproximam por contingências da


vida e que estabelecem afinidades eletivas, interesses comuns e um
cotidiano partilhado, são capazes de constituir proteção. A amizade é
um tipo de relação sempre positivada, pois quando algo rompe este
laço, as pessoas não se reconhecem mais como amigas. Os
elementos que fortalecem os laços são o gostar e apreciar o outro,
gostos e interesses comuns e o prazer de gostar e ser gostado,
admirar e ser admirado por um outro, ou seja, um conjunto de
evidências de reciprocidade. Reconhecer e valorizar as relações de
amizade em situações de vulnerabilidade pode ser uma oportunidade
de redução de risco e ampliação de proteção. (TORRES e GOUVEIA,
2012: 34)

Esses apoios que se materializam na certeza de proteção não se


vinculam somente à provisão/suporte material, mas principalmente a uma
relação de confiança, assentada em valores como franqueza, sinceridade,
honestidade, desinteresse e abstenção de inveja. Ou seja, a convivência entre

32
PAUGAM refere-se a pertencimento a grupos e bandos também como vínculos eletivos, mas tratarei
dessa modalidade mais adiante ao discutir a estima social e a solidariedade como modalidades de
reconhecimento, aproximando assim a elaboração dos dois autores principais desse capítulo.
65

amigos pressupõe oportunidades de dialogar sobre sofrimentos, aflições,


planos, dúvidas, desejos, enfim sobre sentimentos que no diálogo entre amigos
são sempre considerados como muito importantes, o que amplia a confiança
do valor que se tem para o outro, situação similar à provocada pela convivência
conjugal.
(...) l’amitié implique de pouvoir se confier à l’autre et d’accepter les
confidences de l’autre. Comme dans la relation de couple, ele repose
sur le sentimento de pouvoir compter pour l’utre au-delá de ses
propres limites. Il convient de souligner que l’amitié constitue chez
certaines personnes um lien plus fort que le lien de filiation.
33
(PAUGAM, 2008, p.70) .

Cabe ressaltar que não se está buscando afirmar uma visão


idealizada da convivência social, mas mostrar sua potência como proteção de
indivíduos e como vivência da experiência de valorização e de respeito.
Naturalmente muitas dinâmicas e mudanças ocorrem na vida das pessoas e
alteram suas relações, como já apontado anteriormente pelas afirmativas de
ELIAS. É o fato de essas mudanças ocorrerem, que justifica a intervenção nas
relações de convivência quando elas se configuram em desrespeito e
desproteção (tema tratado adiante no capítulo dois). Sinalizar modos de
convivência protetivos e fortalecedoras exige que não se ignore a relevância do
convívio familiar, entre amigos, ou a garantia de parcerias conjugais para
enfrentar sofrimentos ou partilhar conquistas e sucessos.
Em sua pesquisa de doutorado, COELHO (2008, p.10-16)
contribui para demonstrar a possibilidade que a intervenção da política pública
tem para a expansão do campo relacional e para produzir proteção dos sujeitos
atendidos. Verificou na pesquisa uma mudança de sentimento em três
temporalidades distintas. Antes de iniciar o trabalho social observou a presença
de sentimentos como medo, tristeza, vergonha e isolamento que perpassavam
a relação na vida pública e o espaço de intimidade. Quando da inserção nos

33
A amizade implica em poder se confiar a outro e aceitar as confidências de outro. Como na relação de
casais, ela responde ao sentimento de poder contar com o outro para além de seus próprios limites.
Convém destacar que a amizade constitui em algumas pessoas um vinculo mais forte que o vínculo de
filiação. (Tradução livre)
66

trabalhos em grupos de convivência, registrou uma passagem da indiferença


para a construção de relações de intimidade e segurança.
As reuniões adquiriram significado de amizade e apoio,
evidenciando para cada participante múltiplos sentidos como lugar de
conversar, de desabafar, de enfrentar problemas e de aprendizagem. Ao
retomar o contato com as participantes, cinco anos após a vivência dessa
experiência, num serviço voltado a famílias, observou no relato das informantes
que ocorreram mudanças relacionadas ao âmbito da vida pessoal como não
sentir mais vergonha de falar, não se deixar humilhar, enfrentar as coisas,
sentir-se com ânimo para lutar e sensibilizar-se com o sofrimento do outro. No
âmbito familiar foi evidenciada uma mudança de sociabilidade das mulheres
com relação aos filhos ao desenvolverem maior habilidade para conversar, ser
paciente e saber enfrentar problemas.
Concluiu seu estudo afirmando que o grupo representou uma
experiência de bons encontros, promotores de paixões alegres, nos dizeres do
filósofo Baruch Espinosa, propiciando prazer e mobilizando a necessidade do
outro como uma experiência de convivência e amizade. Embora não tenha
observado experiências no âmbito público, distintas em relação ao ponto inicial,
especialmente no que se refere à participação do cidadão ou a vínculos de
cidadania, afirma que as repercussões dessa experiência indicam para uma
sociabilidade voltada ao âmbito doméstico e da vida privada em família,
reforçando assim, o fortalecimento da mulher no convívio familiar e, por
consequência, o seu lugar como gestora no grupo familiar.

A experiência construída pelo programa, segundo as avaliações,


permitiu que os sujeitos participantes fossem percebidos para além
de indicadores numéricos, estatísticos, mas a partir de suas histórias,
de seus desejos, de suas necessidades. A intervenção parece ter
atingido áreas de fronteiras de sensibilidade através dos encontros e
das histórias, da explicitação do conflito e do exercício do diálogo,
permitindo o contato do sujeito com dimensões da sua história e da
história do outro. (...)Em última instância, a experiência construída
demonstra ter um caráter político importante por ter estimulado o
exercício da relação dos sujeitos nos territórios. (COELHO, 2008,
p.16)

A ação pública estatal não substitui as relações de caráter eletivo,


que são geralmente em número reduzido na trajetória dos indivíduos. Na
67

verdade a proteção pública se complementa às redes afetivas e pode na sua


ação, como no exemplo citado, oferecer oportunidades de que essas relações
ocorram, como também pode favorecer que os sujeitos compreendam
motivações e fatos que interferem nas relações e que por vezes são externas a
elas. Pode estimular o desenvolvimento de padrões de civilidade que ajudem a
compreender e lutar para enfrentar rejeições, desprezo, interrupções ou ainda
deve interferir quando as relações primárias não são protetivas mas
promotoras de subalternização. Mas, seguramente é na expansão das
relações34, e na vivência de outras experiências de convívio social, que se
pode contribuir para minimizar os impactos da ausência de reconhecimento ou
de proteção nas relações primárias.
Para Axel Honneth, essa modalidade de reconhecimento, quando
desrespeitada, não resulta na luta coletiva como as demais modalidades que
aponta na sua teoria. Mas considerar os vínculos primários e estudá-los é
fundamental na intervenção programática. Primeiro para considerar que a
constituição da identidade se dá essencialmente na relação com outro, logo, há
que se repensar explicações que atribuem ao caráter atitudes e
comportamentos que são, na verdade, advindos das relações estabelecidas e
da forma como se é tratado. Nessa direção é relevante a defesa de Bader
Sawaia (2003, 2004, 2009) sobre a importância de estudar as emoções. Para
ela é fundamental considerar-se as emoções na atividade humana, o que
significa também utilizá-la como ferramenta na intervenção das políticas. Não

34
Para MARQUES (2010) as políticas sociais (...) podem produzir efeitos ao incentivar os indivíduos a
interagir e a construir laços, expandindo suas redes. (...) De forma geral, os elementos que devem ser
incentivados estão associados a sociabilidade menos homofílicas e locais, que possam gerar contatos
com indivíduos diferentes do ego (em várias dimensões). [Os resultados de pesquisas] destacam as
vantagens de contextos sociais em que os contatos entre os indivíduos são frequentes e nos quais grupos
sociais diversos convivem cotidianamente. Em termos amplos, isso indica uma direção oposta à dos
contextos sociais e urbanos isolacionistas e segregadores que produzem o empobrecimento dos espaços
públicos. (p.192). Trata-se de um aspecto tangencial a essa discussão, posto que não é foco desse
trabalho, mas que cabe aqui destacar visto a relevância da intervenção estatal nesse campo que diz
respeito às intervenções urbanísticas. Pois por vezes é a vivência em territórios isolados ou de baixa
acessibilidade que reduz a diversificação de relações entre as pessoas, ou mesmo impede a manutenção
de vínculos pelo custo monetário que representa o deslocamento na cidade. Em seus estudos sobre
vínculos, PAUGAM aponta, especialmente para a França. Como essa intervenção estatal é relevante,
advoga a implantação de políticas de miscigenação social na gestão do espaço urbano, de modo que
favoreça a aproximação de diferentes categorias sociais no mesmo lugar. Afirma que isso não garante
uma convivência social positivada, mas é uma estratégia desejável para limitar o risco de segregação
espacial, promovendo a mobilidade urbana e o acesso a equipamentos e serviços centrais.
68

há cisão entre biológico e emocional nessa formulação, pois a necessidade de


reconhecimento e de expansão da vida manifestas na felicidade e na liberdade
são tão relevantes quanto a sobrevivência biológica.

A exclusão vista como sofrimento de diferentes qualidades recupera o


indivíduo perdido nas análises econômica e política, sem perder o
coletivo. Dá força ao sujeito, sem tirar a responsabilidade do Estado.
É no sujeito que se objetivam as várias formas de exclusão, a qual é
vivida como motivação, carência, emoção e necessidade do eu. Mas
ele não é uma nômada responsável por sua situação social e capaz
de, por si mesmo, superá-la. É o indivíduo que sofre, porém, esse
sofrimento não tem a gênese nele, e sim em intersubjetividades
delineadas socialmente. (SAWAIA, 2004, p.98)

Nessa dimensão pública do reconhecimento é importante


destacar que para Paugam, não basta só constatar que são distintos os
vínculos, mas é fundamental pensar que eles compõem um sistema relacional
que protege e reconhece, pois cria condições para a vivência de outros
vínculos. Em outras palavras, embora as relações amorosas não sejam de
âmbito público e nunca serão estabelecidas por meio dos seus instrumentos
regulatórios e normativos, é importante reconhecê-las e estudá-las, pois
potencializam a capacidade de se estabelecerem outras relações entre os
sujeitos que ancoram integridade pessoal. Honneth afirma inclusive que a
autoconfiança, que decorre do reconhecimento pelo amor, é a base
indispensável para a participação autônoma na vida pública. Não se pode
obrigar que um indivíduo seja amado, mas é possível oferecer experiências e
ampliação de relações de modo a que essas vivências se mostrem em
oportunidades de vínculos.

(...) Ces liens sont entrecroisés et chacun d’eux apporte sa


contribution au tissage qui enveloppe les mebres d’une société.
Renforcer ou renouer le lien social revient alors à renforcer chaque
type de liens sociaux de façon à ce que chacun d’entre eux
s’entrecroise réellement avec les autres et permette ainsi l’integration
35
solidaire de tous les mebres de la société. ( PAUGAM, 2008: 122)

35
Estes vínculos são interligados e cada um deles contribui para a tecelagem que envolve os membros
de uma sociedade. Reforçar ou renovar o vínculo social é, então, reforçar cada tipo de laço social de
modo a que cada um dentre eles se entrecruze realmente com os outros e permita assim a integração
solidária de todos os membros da sociedade. (tradução livre)
69

1.2.2 Autorrespeito: reconhecimento decorrente dos vínculos de


cidadania

Ter direitos nos capacita a “manter-nos como homens”, a olhar os


outros nos olhos e nos sentir, de uma maneira fundamental, iguais a
qualquer um. Considerar-se portador de direitos não é ter orgulho
indevido, mas justificado, é ter aquele autorrespeito mínimo,
necessário para ser digno do amor e da estima dos outros. De fato, o
respeito por pessoas [...] pode ser simplesmente o respeito por seus
direitos, de modo que não pode haver um sem o outro. (Feinberg
apud Honneth, 2003, p.197)

Uma primeira tese desenvolvida por Axel Honneth, ao aprofundar


a discussão sobre o reconhecimento pelo direito, é que esse só pode se dar na
perspectiva de uma evolução histórica. Portanto é a evolução das relações, dos
modos de viver e de conviver em cada período, que faz com que uma dada
questão ou demanda de grupos mude de estatuto e passe a ser considerada
como direito. Para NOGUEIRA (2005, p.7), em direção similar36, os direitos
“são uma prova cabal de que a humanidade tem sabido construir, ao lado da
exacerbação do mercado, da competição, da violência e da exploração
capitalista, formas mais dignas de convivência”.
Outra ideia central é que atribuir direitos a alguém tem a ver com
reconhecê-lo como parte de uma coletividade. Dessa maneira, quando o
indivíduo é compreendido como membro de uma sociedade, são reconhecidos
seus direitos, que podem ser reclamados a uma autoridade quando
desrespeitados. Segundo Honneth, na teoria de Mead esse reconhecimento
está associado diretamente ao papel social desempenhado pelo indivíduo na
divisão social do trabalho, ou seja, depende da valorização, status social ou
estima social que aquele indivíduo goza na sociedade para que seu direito seja
reconhecido. Essa é a expressão do direito na pré-modernidade, portanto aqui
já se revela a dimensão histórica e evolutiva do conceito de direitos.

36
Esse autor também identifica uma luta por direitos e aponta que há na contemporaneidade alguns
“novos direitos” impensáveis antes da evolução tecnológica ou mesmo antes do desenvolvimento
econômico, como é o caso de questões relacionadas ao meio-ambiente, à sexualidade e à bioética.
Afirma ainda que essa luta por direitos tem uma dimensão de certo modo inesgotável e ineliminável: “Em
boa medida, a questão dos direitos espelha o mundo em que vivemos, com suas injustiças, suas
desigualdades, seus dilemas e suas contradições”. (NOGUEIRA, 2005, p.17)
70

Honneth destaca que para Hegel, porém, há uma lógica distinta,


pois afirma que é somente quando uma premissa pode ser aplicada como um
princípio moral universal que pode ser entendida como direito, ou seja,
independe do papel social desempenhado pelos sujeitos. Deste modo, uma
norma, para ser reconhecida como direito, requer sua aplicação para todos os
membros da sociedade, não sendo admissíveis exceções ou privilégios.
Decorre daí o sentimento de igualdade e de reciprocidade, pelo qual,
obedecendo às mesmas leis “os sujeitos de direitos se reconhecem
reciprocamente como pessoas capazes de decidir com autonomia individual
sobre normas morais”. (HONNETH, 2003, p.182). Pressupõe igualmente uma
disposição individual para respeitar a norma, um acordo livre dos sujeitos
implicados de que essas normas são justas. Daí deriva a ideia de
imputabilidade moral.
Todavia essa não é uma relação estática. A partir de lutas por
reconhecimento, novas propriedades dos sujeitos vão se agregando, novas
normas vão se estabelecendo e novos sujeitos são inseridos nas normas e
reconhecidos como pessoas de igual valor numa coletividade, o que materializa
o alargamento histórico de direitos e o crescimento dos membros da sociedade
por eles contemplados. Essa dinâmica, na teoria de T.H. Marshall, ganha uma
elaboração fartamente conhecida e que registra, simplificadamente, que no
século XVIII avança o reconhecimento das liberdades individuais e dos direitos
civis. No século XIX há um avanço no sentido de reconhecer também os
direitos políticos, mas é no século XX que os direitos sociais ou de bem-estar
social adquirem debate e ganham a cena pública. Para Honneth esses últimos
são os direitos que asseguram condição concreta para a vivência dos outros
direitos.
Decorre dessa máxima uma relação convocatória: não se está
tratando de uma questão afetiva ou emocional, pautada em sentimentos de
simpatia em relação a determinados grupos sociais ou em estima por
realizações das pessoas ou por seu caráter, mas de uma dimensão objetiva e
cognitiva para as quais há barreiras para emoções, opiniões individuais ou
julgamento moral.
71

Desse modo, todos os sujeitos são reconhecidos como portadores


daqueles direitos declarados em dado momento histórico e em determinadas
localidades, o que, por consequência, também dirige seus comportamentos
individuais e em grupo. Assim, baseado na elaboração de Rudolph Von
Lhering, Honneth destaca que há uma distinção entre reconhecimento jurídico
e social. No primeiro, o ser humano é considerado um fim em si mesmo; é essa
condição que lhe assegura o direito. Já no reconhecimento social, o que está
em jogo são os valores daquele indivíduo, suas condutas, modos de viver, suas
realizações que são mais reconhecidas quanto mais consideradas como
relevantes pela sociedade37; há aqui um sentimento de estima social.
Aponta ainda Honneth que o reconhecimento jurídico exige
considerar a liberdade da vontade da pessoa, nos termos de Kant, ou seja,
independe de suas condutas. O reconhecimento de sujeito de direitos é
inerente aos indivíduos daquela coletividade e às atitudes dirigidas às pessoas.
Entre as pessoas, devem ser pautadas por esse entendimento, o que
pressupõe também analisar e ponderar se todos na sociedade gozam dos
mesmos direitos. Quando isto não acontece é que se estabelece a disputa e a
luta para que esses direitos lhes sejam estendidos, bem como é possível
depreender o que configura o entendimento dos atributos de pessoa para
aquela coletividade em determinado período histórico.
Em outros termos, se todas as pessoas da coletividade são
portadoras de direitos, aqueles que não os possuem não gozam desse mesmo
estatuto. É necessário então compreender e caracterizar em cada localidade, e
em cada momento histórico, os elementos que qualificam um indivíduo como
cidadão. A luta por reconhecimento jurídico se estabelece pela pressão, de
diferentes naturezas, para ser reconhecido como portador desses elementos.

37
Para SAVEDRA e SOBOTKA (2008), ao fazerem uma introdução da teoria de Axel Honneth afirmam
que “[Ele] procura mostrar que, junto com o surgimento de uma moral oude uma sociedade pós-
tradicional, houve também uma separação da função do direito e daquela do juízo de valor
(Wertschätzung). Na teoria de Ihreringe na tradição kantiana de diferenciação de duas formas de
Respeito (Achtung), principalmente com base na pesquisa de Darwall, ele encontra elementos para
determinar a diferença entre direito e juízo de valor. Para o direito, a pergunta central é: como a
propriedade constitutiva das pessoas de direito deve ser definida; no caso do juízo de valor: como se
pode desenvolver um sistema de valor que está em condições de medir o valor das propriedades
características de cada pessoa”.
72

Para Honneth, a periodização das conquistas de direitos, tal como apontada


por Marshall, é fruto dessa exigência para ser compreendido como membro
com igual valor da coletividade.
Por consequência, a legitimidade da ordem jurídica vincula-se ao
fato de que todos os sujeitos racionalmente e autonomamente entendem as
normas como válidas e por isso pautam seu comportamento por elas. Devem
ainda os sujeitos de direitos ter possibilidade de interferir na definição das
normas, devendo ser assegurada sua participação no processo público de
formação da vontade38.
A vivência da experiência de ser considerado um cidadão
portador de direitos é expressa, na teoria de Axel Honneth, pelo
reconhecimento jurídico que provoca no cidadão o sentimento de autorrespeito.
Assim, se na experiência da relação amorosa pode-se associar ao sentimento
de autoconfiança, a relação jurídica tem como consequência direta o
autorrespeito. Isto porque o reconhecimento jurídico provoca um sentimento de
respeito a si próprio, possível a partir do merecimento do respeito de todos os
outros. Relembro o que afirma o autor, ou seja, a condição para esse
sentimento se dá somente quando os direitos universais são conferidos
igualmente a todos os membros de grupos sociais independente de seu status.
Somente nessas condições é possível que as pessoas, por meio do
reconhecimento jurídico, conquistem o autorrespeito.
Nessa mesma direção, afirma Serge Paugam que os vínculos de
cidadania são superiores a todos os outros porque esses vínculos extrapolam
oposições e rivalidades. E é por meio desses vínculos que se estabelece uma
igualdade democrática que não só reconhece, mas protege o cidadão, posto
que estabelece obrigações para que a vivência de igualdade seja assegurada,
para que ele possa usufruir da capacidade de ser autônomo. Assim, é somente
quando os meios necessários para a vida autônoma estão assegurados que se

38
Para Bobbio (1986), participação está diretamente vinculada à tomada de decisão, situação em que os
atores contribuem direta ou indiretamente para uma decisão. Descarta, portanto, práticas que nomeadas
como de participação relegam atores a uma participação marginal, na qual o indivíduo é espectador das
decisões, mas sem contribuir pessoalmente no seu encaminhamento, e a ativação que caracteriza como
uma participação eventual em que o sujeito exerce funções que lhe foram confiadas por delegação, de
que é incumbido de vez em quando ou que ele mesmo pode promover.
73

pode afirmar que o indivíduo está protegido por vínculos de cidadania. Pode-se
dizer que a vivência da cidadania está diretamente vinculada às oportunidades
de participar autonomamente das decisões que lhe diz respeito.
Inserir a participação como um elemento no debate sobre
fortalecimento de vínculos associa-se à ideia de ampliação de
relações na perspectiva da vivência da cidadania, pressupõe
compreender que a participação exige que condições sejam criadas
para favorecê-la e essas condições têm relação com acesso à
informação e com formação para participar. Para Muñoz (2004, p.57)
participação não se improvisa e não se aprende de imediato, requer
reconhecer que não se está no lugar do outro, mas que é possível
fazer perguntas inteligentes e respeitosas que permitam que o outro
expresse suas características, o que e como pensa, o que e como
sente e deseja. Para esse autor participação é sinônimo de
compartilhamento de poder às pessoas e só aquele(a) que participa
pode ser e sentir-se cidadão (ã), sentir a cidade como sua, sentir-se
orgulhoso/a de viver em “sua” cidade. (TORRES e GOUVEIA, 2012,
p.19)

Portanto a participação, ou estar ativo e mobilizado nos processos


societários de seu tempo, é um elemento fundamental para o reconhecimento
como cidadão. A luta por espaços de participação e sua criação são também
um importante instrumento de educação política, chegando mesmo autores
como Pateman (1992) a afirmar que esta é a função central para o fomento de
processos participativos. O conceito de educação aqui empregado é bastante
amplo, pressupõe a busca de uma “ação responsável, individual, social e
política como resultado do processo participativo” (PATEMAN, 1992, p.38). O
mecanismo pelo qual se instala a relação entre cidadão participativo e
processo de decisão é gradual e “autossustentado”, no sentido de que quanto
mais o cidadão participa, mais ele se torna capacitado para fazê-lo.
No Caderno do Traçado Metodológico do Serviço Projovem
Adolescente (MDS, 2009) há relatos de experiências de jovens e uma
valorização da potência que a participação representa para o seu
desenvolvimento. A ideia é favorecer a atuação dos jovens em seus territórios
para fortalecer sua mobilização para questões coletivas que estão no seu
campo de interesse, mas também como uma forma de valorizar as
capacidades, reconhecer e valorizar as temáticas que realmente os mobilizam.
74

Por aqui as coisas estão caminhando. O CJ – Caiçara está


acompanhando a proposta de construção de um mega complexo
portuário aqui em Peruíbe. (...) Algo que somou à luta já encampada
pelo CJ Caiçara, em Cananéia, em favor do Rio Ribeira de Iguape
livre de barragens.
Eles são grandões, mas estamos indo pras cabeças acreditando na
mobilização popular. Um processo que tem se mostrado importante e
coerente para o fortalecimento de autoafirmação enquanto
movimento social que é o de Juventude e Meio Ambiente.
Nesse contexto de militância, acompanhado das mudanças nas vidas
da galera, o CJ Caiçara continua na mesma pegada, acreditando que
“o processo é lento e o desapego do resultado é importante”.
Infelizmente, os meios que temos de avaliar os avanços qualitativos,
não dão conta de uma evolução orgânica”. (Relato de jovem
39
frequentador do CJ Caiçara em Itanhaém)

Nessa mesma publicação, outro relato contribui para ilustrar como


o processo de participação desenvolve os sujeitos e muda a
autorrepresentação e as formas de diálogo com os demais.

Quando apresentamos os dados nos encontros regionais do Comitê


foi um murmúrio e cochichos de vozes que concordavam e
discordavam e em alguns momentos o silêncio ao reconhecer uma
ação que não produzia cidadãos. Isso nos deu mais autonomia,
reconhecimento e conquistas profissionais. O melhor foi ver muitos
revendo suas ações como o jeito de nos tratar como ‘coisas’. Não sou
coisa sou sujeito de direitos e não de análise eterna. (Jovem
40
participante da Rede TXAI Jovem – Acre)

Essa capacitação adquirida diz respeito não só à diferenciação


entre os interesses privados e públicos, individuais e coletivos, mas também
aos efeitos psicológicos sobre os sujeitos, alterando significativamente a sua
inter-relação e compreensão quanto às instituições das quais participam (1992,
p.35). Baseada em J.S. Mill, afirma Pateman, o critério a ser usado na
avaliação das instituições é “o grau em que elas promovem o avanço mental
geral da comunidade, entendendo-se por isto o avanço em intelecto, em virtude
e em atividade prática e eficiência”. (Pateman, 1992, p.43)
Além da educação do cidadão e da garantia de legitimidade das
decisões, a participação tem ainda uma terceira função que é a de conferir ao
indivíduo o sentimento de pertencimento àquela instituição da qual participa

39
Experiência disponível In: MDS/ Projovem Adolescente. Caderno do Orientador Social: Ciclo II:
Percurso Socioeducativo V: coletivo articulador-realizador. Brasília, MDS, 2009.
40
Idem, 2009.
75

com poder decisório. Assim, para o fortalecimento dos vínculos de cidadania é


necessário garantir espaços participativos na tomada de decisão e fomentá-los
como estratégia educativa a ser ampliada nas unidades da política de
assistência social e fora dela.
A esse respeito ressalte-se um alerta de Aldaíza Sposati41, ao
mencionar que observa certo reducionismo no debate sobre participação. Ela
questiona a visão limitada desse conceito por entender que a forma em que ele
aparece em muitos debates e produções dá a impressão de que já existe algo
constituído e que a pessoa vai se inserir naquele contexto, como se fosse “um
clube” ou um grupo ao qual se associa. A participação deve ser maior que essa
concepção, ou seja, pressupõe o compartilhar, o pôr-se em movimento, o que
exige a motivação para um objetivo. A lógica de participação a partir da
inserção em um grupo pode ser mais associada a uma lógica disciplinar e
coercitiva, pois só reconhece se a pessoa estiver naquele contexto. Ela em si,
não é o movimento que provoca alterações. Pode até ser uma forma de
paralisação.

Ter experiências de usufruir igualmente de direitos no cotidiano e


identificar demandas compartilhadas/coletivizadas agrega sentimento
de pertencimento. Compartilhar questões comuns, na maior parte das
vezes de dificuldade, mas também de sonho e, coletivamente lutar
por isto permite que as pessoas aprendam umas com as outras,
exercitem o diálogo e se entendam e também conquistem aquilo que
desejam. Estes processos de luta por demandas/interesses comuns e
de ver-se como igual são capazes de proteger indivíduos e/ou grupos
etc. (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.35)

Ao tratar dessa participação nos serviços, Stela Ferreira aponta


que por vezes participar está restrito a escolher um tema de interesse a ser
debatido ou inserido nas atividades a serem realizadas. Todavia, esse é
somente um elemento, há que se considerar o que esse interesse mobiliza nas
relações com os outros, nos espaços, na cidade e ainda o que essa

41
Uma formulação que se aproxima dessa discussão apontada por Aldaíza Sposati é a trazida no
Caderno de Concepções do Projovem Adolescente (MDS, 2009) que entende participação como um
qualificativo da convivência e tem uma visão ampliada para além da participação no serviço, pressupondo
participação nas decisões que lhe diz respeito.
76

manifestação de interesse compõe o processo de decisão. Portanto há aqui


uma dimensão política. Essas manifestações, embora aparentemente miúdas,
podem ser catalisadoras de processos propulsionadores de ação. Para ela, a
motivação para agir envolve o interesse, mas também pressupõe uma
dimensão afetiva expressa no sentimento que motiva a querer conhecer ou
alcançar uma dada condição. Por fim, há uma tensão e uma disputa para que
aquele objeto de interesse seja incluído nas decisões que orientarão o trabalho.

Participar supõe modos de se expor, de ver e ser visto, de criticar e


ser criticado, ser capaz de argumentar, colocando em circulação
diferentes saberes e modos de produção de conhecimento. Tomados
em sua igualdade, estes conhecimentos podem circular sem reafirmar
hierarquias, podem ser questionados sem ser desqualificados. (MDS,
2009, p.44).

Ao analisar a teoria de Honneth, Tereza Ventura afirma que há


um duplo efeito ao assegurar o direito, pois ao receber o serviço, o benefício, a
atenção profissionalizada, o cidadão recebe também a oportunidade de escuta,
o reconhecimento, a valorização e o respeito:

O reconhecimento jurídico atribui existência pública e instrumentaliza


o acesso à visibilidade, conferindo aos seus agentes e à subjetividade
um meio de expressão simbólica, cuja efetividade empírica torna o
agente dotado de auto-respeito e detentor de uma propriedade que o
capacita a participar da ordem pública. (VENTURA, 2009, p.160)

Ressalte-se ainda que na teoria do reconhecimento é


imprescindível a relação com outros sujeitos, o autorrespeito decorrente do
reconhecimento jurídico só é possível quando, ao olhar nos olhos dos outros o
indivíduo se sente respeitado e não subordinado ou inferiorizado42. Nessa
lógica, portanto, a dimensão relacional é eixo fundante da possibilidade e
vivência de experiência de ter uma vida boa. Ao tratar da teoria de Honneth,

42
Honneth procura mostrar que uma experiência social de desrespeito atua como uma forma de freio
social que pode levar à paralisia do indivíduo ou de um grupo social. Por outro lado, ela mostra o quanto o
ator social é dependente do reconhecimento social. Honneth sustenta que o indivíduo está sempre
vinculado em uma complexa rede de relações intersubjetivas e que, consequentemente, ele é dependente
estruturalmente do reconhecimento dos outros indivíduos. (SAAVEDRA e SABOTTKA, 2008, p.15)
77

Mendonça (2009) afirma que sua essência é a concepção de uma luta


intersubjetiva:
Admitir que se trata de uma luta intersubjetiva é assumir que ela se
constrói na relação com o outro. É perceber que os objetivos, as
estratégias e as próprias identidades não estão postos de antemão,
mas se constroem na ação conjunta. A ideia chave para a teoria do
reconhecimento é, portanto, a de relação e não as de
autodeterminação e soberania. (MENDONÇA, 2009, p.147)

Os padrões de reconhecimento em debate nessa teoria são


também as condições intersubjetivas que asseguram novas formas de relações
positivas às quais são capazes de produzir mudanças no indivíduo e em toda a
sociedade. Para Honneth, os acontecimentos históricos decorrem de processos
morais de luta por reconhecimento e por introdução de novas demandas por
valorização, assim, as mudanças podem ser observáveis por meio da
identificação das lutas sociais e do processo de desenvolvimento moral.
(SAAVEDRA e SOBOTTKA, 2008, p.17).
Nessa perspectiva há uma superação da ideia da autorreferência
ou da autoajuda, os indivíduos constroem suas identidades em suas relações
com outros e não por atributos que portem e carreguem geneticamente. Nessa
lógica as pessoas são construídas por suas relações, buscam ser valorizadas e
se sentir importantes para outras pessoas e, portanto, estão em constante
mudança em decorrência das dinâmicas de suas relações.

O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação


consigo próprio, resulta da estrutura intersubjetiva da identidade
pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente
porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam,
aprendem a se referir a sim mesmos como seres a que cabem
determinadas propriedades e capacidades. (HONNETH, 2003, p.272)

Assim, se no reconhecimento advindo de relações primárias, a


intervenção da política pública é complementar, atuando especialmente, mas
não exclusivamente, no fomento para ampliar as relações e na retirada de
indivíduos de situações de violência provocada por responsáveis, no
reconhecimento jurídico a qualidade da atenção pública é fundamental para a
vivência do autorrespeito. É central para assegurar esse sentimento e essa
78

segurança. A experiência de ser tratado com respeito e dignidade por agentes


públicos é a certeza de que se é portador de um direito, o que exige nas
relações cotidianas e nos serviços, formas de relação assentadas nesses
princípios.
Os dois elementos – certeza e satisfação de necessidades sociais -
nos ajudam a responder para quem vale a referência que as equipes
de profissionais do SUAS constroem: são referências de proteção
social para as famílias e indivíduos, que têm nas equipes a certeza de
que encontrarão respostas qualificadas para suas necessidades.
Uma referência, portanto, construída a partir de conhecimentos
técnicos específicos e de uma postura ética que, ao acolher as
necessidades sociais dos cidadãos como direito, acenam em direção
a horizontes mais acolhedores, compartilhados e de maior autonomia.
(FERREIRA, 2011, p.25)

É possível afirmar que para reconhecer cidadãos é imprescindível


reconhecer sujeitos, ou seja, olhar e relacionar-se com as pessoas respeitando,
valorizando e fomentando sua autonomia, sua experiência, seus saberes, sua
capacidade de decisão sobre sua própria vida. Em termos simplificados, pode-
se afirmar que uma boa definição de sujeito é aquela que advém da análise
sintática. Sujeito é aquele que tem o verbo, ou seja, tem capacidade de ação 43.
Tomar a pessoa como sujeito significa, portanto, lidar com sua autonomia, não
reduzir suas necessidades, tomá-lo como protagonista.

Eu gosto de dar o exemplo da saúde, na Saúde o velho é idoso, aqui


é um mestre, entendeu, na Saúde uma criança é um paciente, aqui é
um educando, a questão da valorização também. (...) Isso valoriza,
isso é bom, a gente convida a família pra vir aqui, tinha uma mãe que
tem três filhos, o ex-marido é traficante, a gente falou “Vem aqui
trabalhar com a gente e vem falar da sua experiência.” e ela “Eu não
tenho exemplo pra dar, meu exemplo é horrível.” Eu disse: “Pelo
contrário, a senhora é muito boa, a senhora cria três crianças
sozinha”, e são três crianças fantásticas. E ela veio aqui, no maior
receio, mas na fala dela as crianças quase choravam, hoje ela passa
aqui na frente esperando ser convocada novamente. [Para mim isso
é] Centro de Convivência, fortalecimento de vínculos e valorização,
com certeza. (Educador Social – esporte e lazer- Governo do Distrito
Federal).

43
Essa elaboração está presente no Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (CNAS e
CONANDA, 2006) ao afirmar que a palavra “sujeito” traduz a concepção da criança e do adolescente
como indivíduos autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que, na sua relação
com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou meros “objetos”, devendo
participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo ouvidos e considerados em conformidade com
suas capacidades e grau de desenvolvimento.
79

Entender o outro como sujeito pressupõe alterar o discurso e o


modo de dirigir-se ao cidadão usuário dos serviços. Requer a valorização das
pessoas e a superação da visão do outro como “coitado” ou “carente”,
percebendo e valorizando suas potencialidades e possibilidades. O olhar não é
centrado nas fragilidades embora não as ignore, mas nas capacidades a serem
fortalecidas. As trajetórias pessoais são valorizadas, os diferentes saberes e
experiências também. Essa é uma direção presente nas orientações técnicas
dos serviços, que traz indicações diretas para a ação profissional na política,
convocando para que a intervenção profissional seja ampliadora e
multiplicadora de saberes e oportunidades. Todavia, um olhar ainda em desuso
nas políticas públicas como um todo. Decorre dessa constatação a reflexão de
CAMPOS e CAMPOS (2006) ao discutir a intervenção profissional na saúde:

Em inúmeros relatos de casos, temos tido a oportunidade de refletir


sobre como certa fixação nos significantes ‘pobres’, ‘coitados’,
‘carentes’ opera uma desvitalização das intervenções clínicas (...). É
como se uma representação congelada a respeito de quem são
esses outros aos quais assistimos não nos deixasse jamais ver a
quantidade de força vital que portam e da qual sua própria
sobrevivência em condições tão adversas é a prova mais cabal.
Assim, quando enxergados e (não) escutados apenas como pobres-
carentes-que-nada-possuem, transformam-se, por obra e graça de
nossas percepções cristalizadas, em objetos de intervenção. Ou
serão até chamados de sujeitos, porém serão sujeitos passivos que
devem mudar em função de parâmetros estranhos, que têm de
incorporar novos estilos de vida, mais civilizados e mais de acordo
com o cientificamente correto. Mas quais estilos de vida? Os
nossos? Se tivessem feito isso, já teriam sido exterminados.
(CAMPOS & CAMPOS, 2006, p.685 – grifo nosso).

Ao considerar, tal como formulado por Honneth, que a luta por


direitos coloca na cena pública demandas de indivíduos e grupos que foram
desconsideradas ou desrespeitadas historicamente, é fundamental observar
que de imediato isso reposiciona as relações entre as pessoas, especialmente
no que se refere aos serviços criados ou reformulados para dar concretude ao
direito naquele momento reconhecido. Esse movimento é bastante complexo e
não se estabelece por automático; é eivado de resistências e de conflitos
constantes.
80

Afirma Vera Telles (2003) que o reconhecimento do direito


reposiciona as relações na sociedade, afirma que da cultura da dádiva e da
atenção como um favor deriva o imobilismo do outro, visto que ao que é dado
não cabe reclamação. Mas quando publicamente se reconhece um direito, há
uma exigência para mudanças de lugar, há um reposicionamento nas relações
e na atenção àquela dada questão que agora adquire outra visibilidade.
Todavia, a linguagem do direito social se expressa por meio da prática
cotidiana dos profissionais, pois o discurso do direito ganha concretude nessa
atenção, logo, se as práticas não forem alteradas, essa dimensão não se
consolida.

A gente não trata eles com dó, com pena, você é capaz, é forte, a
gente procura já ver além, ele já fazendo o que a gente quer que ele
faça, e aí ele vai caminhando. (Educadora social – artes- Governo do
Distrito Federal).
Fica claro na fala deles que as crianças não vêm aqui porque elas
gostam de jogar bola né, elas gostam de estar aqui porque elas são
reconhecidas enquanto sujeito, enquanto autores da história de vida
delas, da comunidade né, é subjetivo, ninguém precisa dizer pra elas:
“Você vai mudar sua vida!”, eles não entram na oficina pra ouvir isso,
mas por meio do trabalho eles recebem isso e se entendem dessa
forma. (Coordenadora técnica de unidade – Governo do Distrito
Federal).

Esse reposicionamento estabelece medidas de igualdade entre os


profissionais e a população, pois é necessário que aqueles reconheçam que
estão a serviço do direito do outro e que os conhecimentos que possuem não
são hierarquicamente mais importantes que os conhecimentos de vida trazidos
pelos usuários. Assim, precisa haver uma medida de igualdade entre esses
saberes, e a compreensão de que a fala de um é tão legítima como a do outro.

(...) Aí está também o lado mais importante dos direitos, quando


vistos pelo prisma dos “sujeitos falantes” que se apresentam na cena
pública. Essa presença desestabiliza consensos estabelecidos e
permite alargar o “mundo comum”, fazendo circular na cena pública
outras referências, outros valores, outras realidades, que antes
ficavam ocultados ou então eram considerados irrelevantes,
desimportantes para a vida em sociedade. (TELLES, 2003, p.69).

Na elaboração do educador Paulo Freire, o reconhecimento do


outro como sujeito adquire significado histórico e político singular para as
81

práticas profissionais cotidianas e para as relações estabelecidas nos serviços


públicos. O método revolucionário criado por esse educador tem como uma de
suas perspectivas o princípio de que o aprendizado se dá no processo coletivo
e que mutuamente se aprende diferentes saberes igualmente importantes.
Portanto, não há hierarquia entre o saber da experiência vivida e o saber
acadêmico44; assim, o valor do conhecimento trazido deve ser reconhecido e
nessa relação, educandos e educadores são sujeitos.

Uma das tarefas mais importantes da prática educativa-crítica é


propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns
com os outros e todos com o professor ou professora ensaiam a
experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e
histórico como ser pensante, comunicante, transformador,
criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de
amar. (...) A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos
outros. É a “outredade” do “não eu”, do tu, que me faz assumir a
radicalidade de meu eu. (FREIRE, 2002, p.41)

O assumir-se aqui apontado por FREIRE e que se traduz nos


elementos que colocam as pessoas em construção conjunta de suas próprias
identidades e singularidades, pressupõe reconhecer a capacidade, o direito e o
estatuto do outro de fazer escolhas. Essa é outra questão fundamental a
direcionar uma convivência que protege, pois coloca as pessoas no leme de
sua própria vida e exige que na intervenção se reconheça que as pessoas
pensam, desejam e projetam horizontes para si e para aqueles que estão
próximos, que há um campo coletivo de responsabilidades por prover
oportunidades e acessos para alcance desses sonhos, mas sem retirar do
sujeito a responsabilidade por suas escolhas. “Parece óbvio, mas devemos
destacar, então, que isso pressupõe que os usuários ‘farão escolhas’. E os
trabalhadores (...) idem. Ao final caberia a pergunta: nos co-responsabilizamos
em relação ao quê?” (CAMPOS & CAMPOS, 2006, p.679).
Cabe ressaltar que reconhecer o sujeito e seu direito à escolha,
não significa não se responsabilizar em relação a essas decisões, ao contrário,
indica uma corresponsabilização tanto do usuário quanto do serviço. Essa é

44
Essa referência inspira a concepção de trabalho socioeducativo presente no Caderno Projovem:
concepções e fundamentos. (MDS, 2009).
82

uma dimensão essencial na convivência que protege, pois ela não substitui o
outro no rumo da sua vida, não toma para si essas decisões, pois estabelece
uma prática social que cria condições e abre oportunidades para a vivência
dessas escolhas. As experiências observadas no âmbito da pesquisa de
campo foram sinalizando em pequenas e simbólicas atitudes – e em diferentes
“modos” de fazer a prática social nessa política – que essa direção ganha
materialidade no cotidiano. Reconhecer essa construção supera o saber pré-
existente. Não é um saber que eu tenho, mas sobre o qual aprendo no diálogo
com o outro.
Na elaboração de profissionais e usuários, esse elemento
essencialmente ético-político, assim aparece:

Antes nós fazemos uma reflexão, o porquê, porque tudo tem uma
razão. Nós levantamos a situação, problematizamos com eles a partir
dos exemplos que eles têm, pra depois nós construirmos algo da
parte que a gente tem, não é nada assim: vamos fazer. Não! É tudo
comentado, por isso a gente senta, se reúne, planeja, porque na
verdade é mais importante eles falarem do que a gente, a gente
pensa em completar alguma informação que às vezes é
curiosidade, passa despercebido, pra pontuar, mas quando eles
falam é importante mesmo. (Educadora Social – dinamização-
Governo do Distrito Federal).
Quando tem uma atividade que a gente não gosta nós falamos: Ah!
Isso é chato, e aí podemos fazer outra coisa. (Criança de 10 anos,
Usuária do COSE – Governo do Distrito Federal)

Poder-se-ia então afirmar que as normas sociais têm sua validade


não pelo escrito e registrado, mas pelo vivido nas relações cotidianas45; é na
particularidade das relações que é possível afirmar o padrão de civilidade e a
qualidade de vida alcançada aos membros de cada coletividade. Na sua
elaboração, Norbert Elias afirma que quanto mais desenvolvida uma
sociedade, tanto menos a garantia de proteção estará assentada em
estratégias privadas. Assim, as garantias oferecidas pelo Estado, se centradas

45
Para VENTURA (2009, p.161): “São os contextos particulares da vida cotidiana, intersubjetivamente
construídos, que asseguram e encorajam os indivíduos ao autocontato com suas próprias necessidades e
habilidades pessoais, pelo qual exteriorizam conflitos e articulam e expressam suas necessidades na vida
cotidiana e no espaço público”. E é por meio dessas relações cotidianas e de suas formas de expressão
que os indivíduos se sentem encorajados para exigir e lutar por condições mais adequadas de vida, de
respeito e de valorização pelos outros.
83

no direito e não no mérito são uma condição libertária na garantia de proteção.


Elas asseguram a desvinculação de relações de subordinação ou de
desrespeito ao obter oferta estatal para reparar essa vivência, oferecer outras
referências relacionais e ainda, combater politicamente e juridicamente, quando
necessário, as práticas sociais que violentam e desqualificam as pessoas

Nas sociedades mais desenvolvidas – o que significa não apenas as


mais ricas em sentido estrito, mas as que são mais ricas sobretudo
em capital social –, o nível de integração do Estado absorve cada vez
mais essa função de último refúgio na necessidade extrema. Mas, em
relação ao cidadão individualmente considerado, o Estado tem uma
função dupla muito peculiar que, à primeira vista, parece
contraditória. Por um lado, ele elimina as diferenças entre as
pessoas.(...) Embora o aparelho de Estado assim introduza o
indivíduo numa rede de normas que é basicamente idêntica para
todos os cidadãos, a moderna organização estatal não se relaciona
com as pessoas como irmãs ou tios, como membros de um grupo
familiar ou de uma das outras formas pré-nacionais de integração, e
sim com as pessoas como indivíduos. (ELIAS, 1997, p.149).

Assim, é essencialmente a garantia de atenção pela ação pública


estatal que libera o indivíduo de constrangimentos que a dependência de
determinados grupos e relações representa. Assim, se o indivíduo não mais
depende da família ou de sua “tribo” para a sobrevivência material e afetiva, ele
pode escolher se quer permanecer vinculado a esses grupos ou se prefere
vincular-se a outros e estabelecer novas relações, o que em alguma medida,
pode representar a possibilidade de superar relações de subordinação e
violência.
Tal perspectiva obriga a analisar as relações entre os sujeitos e
deles com as instituições tendo como referência o padrão de autonomia e de
individualização possível em cada sociedade.
Em sua formulação sobre autonomia CAMPOS & CAMPOS
(2006) destacam não como uma condição contrária à dependência, mas como
a capacidade do sujeito de lidar com sua rede de dependências. A autonomia
não é uma condição interna, mas depende de fatores externos. É sempre uma
dimensão relativa e depende do acesso dos sujeitos à informação, e mais do
que isso, da sua capacidade de utilizar esse conhecimento para o exercício
crítico de interpretação.
84

Autonomia poderia ser traduzida, segundo esta concepção, em um


processo de co-constituição de uma maior capacidade dos sujeitos
compreenderem e agirem sobre si mesmo e sobre o contexto
conforme objetivos democraticamente estabelecidos. A co-
constituição de autonomia depende, portanto, de um conjunto de
fatores. Depende sempre do próprio sujeito, do indivíduo ou
coletividade. Por este motivo nos referimos sempre a co-produção de
autonomia, co-constituição de capacidades ou co-produção do
processo de saúde/doença. O sujeito é sempre co-responsável por
sua própria constituição e pela constituição do mundo que o cerca.
No entanto, a autonomia depende de condições externas ao sujeito,
ainda que ele tenha participado da criação destas circunstâncias.
Depende da existência de leis mais ou menos democráticas.
Depende do funcionamento da economia, da existência de políticas
públicas, de valores veiculados por instituições e organizações.
Depende da cultura em que está imerso. (Campos e Campos, 2006,
670).

Portanto a concepção de autonomia presente nessa formulação


não se refere tão somente à declaração moral das capacidades dos sujeitos,
mas às condições concretas de vivência dessa autonomia. Para Honneth, é
captar essa concretude que oferece o fundamento à norma e até mesmo à sua
teoria, pois é a partir das relações que o indivíduo se valoriza ou desvaloriza.

(...) a autoimagem normativa de cada ser humano, de seu “Me”, como


disse Mead, depende da possibilidade de um resseguro constante no
outro, vai de par com a experiência de desrespeito o perigo de uma
lesão, capaz de desmoronar a identidade da pessoa inteira.
(Honneth, 2003, p.214)

Nota-se que o autor fala em resseguro decorrente da relação com


o outro, portanto a vinculação respeitosa oferece segurança e proteção. Essa é
uma chave importante para configurar a convivência social como fator de
proteção, pois se as situações de desrespeito podem desmoronar identidades,
é a vivência de relações respeitosas que as constrói e reconstrói. Assim, numa
associação entre a teoria do reconhecimento e a teoria de vínculos, poder-se-ia
dizer que a busca de reconhecimento é também a busca de estabelecimento
de vínculos com outros. Para Paugam, é importante lembrar, ser reconhecido
não é necessariamente estar protegido. Ao ser reconhecido, o indivíduo sabe e
sente que sua existência é importante para outras pessoas. Já a proteção
refere-se a suportes aos quais o indivíduo vai mobilizar para enfrentar riscos da
85

vida. Assim, o vínculo produz simultânea e complementarmente a proteção e o


reconhecimento.
Outro destaque é que a individualização mencionada aqui não é
aquela da atomização ou exacerbação da perspectiva individual destacada nos
estudos de Castel e Elias, entre outros, cuja tônica visa analisar e
problematizar a exigência de produção de respostas aos problemas
enfrentados, pelo próprio indivíduo. Trata-se de uma perspectiva
absolutamente distinta pela qual se destaca como relevante as formas de
tratamento e a expectativa do sujeito de não só ser tratado como igual, mas
também ser respeitado em suas diferenças.
Para Boaventura de Souza Santos (2005), a perspectiva de
igualdade e de diferença simultaneamente e complementarmente está presente
em todas as culturas. A perspectiva de igualdade se assenta na relação
cidadãos do país versus estrangeiros, por exemplo, enquanto a perspectiva de
diferença se estabelece entre os cidadãos do mesmo país quanto a gênero,
orientação sexual, raça, idade, entre tantas outras:

(...) uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e


grupos de acordo com dois princípios concorrentes de pertença
hierárquica, e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade
e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais
quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a
igualdade os descaracteriza. (Santos, 2005, p.13)

Esse desejo por viver a diferença sendo reconhecida em suas relações


sem que isso torne o sujeito inferior é o que Honneth caracteriza como a
terceira forma de reconhecimento, denominada estima social.

1.2.3 Estima social o reconhecimento das diferenças como valores


positivos dos sujeitos

De pouco ou nada vale a tolerância se a satisfação que dela resulta


assenta apenas na presunção de que a presença do “outro” não é
ameaçadora. Em contrapartida, a solidariedade apela a uma
predisposição para lutar a favor da diferença alheia, e não apenas da
própria. Estar aberto ao outro, no domínio da vida interpessoal, é uma
condição de solidariedade social. Enquanto que a tolerância é
86

egocêntrica e contemplativa, a solidariedade é socialmente orientada


e militante. (PAIS, 2006, p.352)

Para Honneth, a estima social se estabelece nas relações entre


as pessoas e se dá quando o sujeito se sente valorizado pela sua forma de
viver, por suas capacidades, por suas particularidades, singularidades,
realizações e contribuições sociais. Ou seja, nessa categoria está em evidência
o indivíduo e sua trajetória. Assenta-se a ideia da estima social na necessidade
das pessoas de serem consideradas em sua particularidade, sabendo-se
únicas e sendo respeitadas por isso. Assim,

A relação jurídica não pode recolher em si todas as dimensões da


estima social, antes de tudo porque esta só pode evidentemente se
aplicar, conforme sua função inteira, às propriedades e capacidades
nas quais os membros da sociedade se distinguem uns dos outros:
uma pessoa só pode se sentir ‘valiosa’ quando se sabe reconhecida
em realizações que ela justamente não partilha de maneira indistinta
com todos os demais. (HONNETH, 2003, p.204)

A autorrealização associa o sentimento de dignidade de ser


reconhecido como sujeito portador de direitos e pertencente a um grupo, com o
sentimento de estima e valorização pessoal que o torna singular aos olhos das
pessoas com as quais se relaciona. Destaca Honneth, que a estima social está
associada a uma comunidade de valores orientados por concepções e
objetivos comuns estabelecidos em cada sociedade. Assim, poder-se-ia dizer
que quanto mais essas concepções se abrem a diversos valores no interior da
sociedade, mais “a organização hierárquica cede a uma concorrência
horizontal.”
Como no caso das relações jurídicas, nessa forma de
reconhecimento, Honneth também identifica transformações históricas,
especialmente na passagem para a modernidade. Honneth afirma que numa
sociedade estamental, em que não há mobilidade social, há uma escala
hierárquica pela qual se estabelecem comportamentos de maior ou menor
valor. Nesse sentido, quanto mais a pessoa se pauta pelos valores elevados da
hierarquia, tanto mais ela é reconhecida e estimada socialmente. Associa-se à
87

essa racionalidade a categoria da honra, ou seja, as pessoas que respeitam


determinados valores e se pautam por eles são considerados membros
honrados da sociedade. Nessa estrutura hierárquica, os valores não são
questionados e a luta é para honrá-los e mantê-los. Cada grupo busca ser mais
amplamente reconhecido como detentor e mantenedor desses valores, como
também cada grupo empenha-se para que os valores que defendem sejam
assimilados por todos como os mais positivos e importantes.
Já na modernidade, o conteúdo que começa a ser considerado
como merecedor de estima social se altera, especialmente em virtude da luta
da burguesia contra as coerções comportamentais e contra o status pré-
definido pelo nascimento ou pela adesão a grupos sociais. Em decorrência
disso, a estima social passa a vincular-se a capacidades desenvolvidas por
indivíduos e suas realizações, o que leva à substituição do conceito de honra
pelo de prestígio social. Nessa substituição, o indivíduo passa a ser
reconhecido como merecedor de estima social quando suas ações indicam que
contribuiu com a implementação dos objetivos e valores da sociedade.
(HONNETH, 2003, p.205-206)

Honneth parte do princípio que uma pessoa desenvolve a capacidade


de sentir-se valorizada somente quando as suas capacidades
individuais não são mais avaliadas de forma coletivista. Daí resulta
que uma abertura do horizonte valorativo de uma sociedade às
variadas formas de autorrealização pessoal somente se dá com a
transição para a modernidade. Em função dessa mudança estrutural
existe, porém, no centro da vida moderna uma permanente tensão,
um permanente processo de luta, porque nesta nova forma de
organização social há, de um lado, uma busca individual por diversas
formas de autorrealização e, de outro, a busca de um sistema de
avaliação social. (SAAVEDRA e SOBOTTKA, 2008, p.13)

Essa dinâmica exige considerar que há uma pluralidade de


valores e de modos de vida em constante disputa para serem reconhecidos
como importantes pelos demais, mais do que aceitáveis ou toleráveis. A
perspectiva da estima social implica, ou pressupõe, que esses modos de viver
sejam entendidos como importantes e admiráveis. Ressalte-se ainda que para
Honneth esse processo se dê em decorrência de vivências morais
88

diferenciadas. Ou seja, antes de uma prática ser considerada valorizável, ela


precisa ser vivida por alguns membros da coletividade que disputaram com os
demais a importância dessa vivência e o valor das capacidades a ela
associadas até que se configure como um objeto de estima social. Aponta
Honneth, que o ápice dessa disputa se estabelece no momento em que os
grupos conseguem chamar a atenção da esfera pública para a relevância, até
então negligenciada, de suas capacidades e de suas propriedades. Assim,
quando seus modos de viver e seus valores passam a ser apreciados não só
no plano normativo, mas nas atenções públicas, pode-se afirmar que os
movimentos alcançaram seus objetivos de reconhecimento.
Ressalte-se, porém, que a vivência do desrespeito, depreciação e
insultos é a principal motivação para o desencadeamento dessas lutas. Assim,
na teoria de Honneth, é a vivência de injustiças que desencadeia formas de
resistência coletivas e individuais de distintas naturezas e modalidades para
provocar o reconhecimento de suas culturas e de seus direitos a viverem suas
diferenças.

Honneth busca explicitar como na interioridade (innermorality) dos


indivíduos historicamente excluídos e desprovidos de autoconfiança,
autoestima e autorrespeito, ainda pulsa uma consciência capaz de
tornar visível o desrespeito e a exploração. Daí a sua ênfase em uma
Teoria Crítica que seja capaz de sustentar objetivos que não
necessariamente estejam publicamente articulados pelos movimentos
sociais identitários, mas que esteja comprometida a desvendar
“experiências de injustiça como um todo”. (VENTURA, 2011, p.163)

Embora em sua teoria Axel Honneth considere a dimensão


individual da vivência de sofrimento como condição desencadeadora da luta e
resistência, é somente quando essas vivências individuais se transformam em
demanda e expressão coletiva que se estabelece a possibilidade de mudar as
estruturas existentes, o que simultaneamente impacta também na
autocompreensão dos sujeitos, de suas capacidades e possibilidades.

O autorrespeito só se torna uma categoria perceptível quando as


pessoas em conjunto sofrem de maneira visível com o desrespeito e
a exploração, de modo que possam, dentro de suas experiências
comuns, articular publicamente suas reivindicações. Trata-se para
Honneth de um processo prático moral em que as experiências são
89

interpretadas coletivamente de modo a motivar a reivindicação do


reconhecimento. Esse processo prático moral inscreve uma relação
com o próprio self cuja força psíquica impulsiona o indivíduo à ação
sempre localizada no interior de um processo de socialização e
aprendizado moral. (VENTURA, 2011, p.164)

É importante salientar que para Honneth as transformações da


modernidade, que produzem processos de individualização, também valorizam
os sujeitos pelas suas realizações e por suas capacidades. E esse é o desejo
dos indivíduos. Portanto, os sentimentos de valorização e de autoestima
decorrem da valorização e da estima social gerada pela maneira como as
pessoas são vistas e tratadas nas suas relações cotidianas. É o sentimento de
que as capacidades que possui são valiosas para os demais membros da
sociedade que faz com que o sujeito tenha consciência de seu valor e é capaz
de se autoestimar.
Por meio das entrevistas realizadas com educadores sociais
observei como esses processos se dão no âmbito da intervenção da política de
assistência social. As expressões usadas reforçam essa lógica de que a
autoestima é produzida e construída a partir da relação com o outro e do olhar
com o qual o sujeito é visto, e que o autorreconhecimento como sujeito
portador de direitos, advém necessariamente da vivência de relações
sustentadas por uma lógica de valorização e cuidado para desencadear a
autovalorização e o autocuidado.

Então quando você coloca a convivência, você coloca muita coisa,


você resume que ele tem que conviver bem com ele mesmo, que ele
tem que ter o que a gente chama de autoestima, que ele tem que
desenvolver a capacidade de olhar para ele e dizer “nossa eu sou
bonito!” E é uma coisa que falta muito, porque a gente vive numa
sociedade que tem um estereótipo de beleza e, [quando] a criança
não se enquadra, e naquilo que ela não se enquadra ela se sente mal
e quando vira adolescente fica pior, a aceitação dele e a aceitação do
outro, às vezes ele critica no outro uma característica que ele também
tem e aí ele não convive bem com ele, ele não convive bem com o
colega, ele não convive na família, não convive bem com o vizinho,
ele não convive bem com a professora, ele odeia os colegas da
sala... E você vai aos poucos desconstruindo isso, através de quê?
Através de desenvolver essa questão do respeito, (...) essa questão
dos direitos, (...) essa questão do cuidado, essa questão do
autocuidado, autorrespeito, da sua autoconsciência enquanto pessoa,
enquanto cidadão. (Educadora de Meio Ambiente, Distrito Federal)
90

A gente vive em uma sociedade que já tem tudo tão padronizado que
eu vejo oportunidade de discutir e enfrentar isso na minha oficina.
Quando fazemos algo e uma criança diz: “Ah, não quero, ficou feio.”
[Eu respondo] “Feio? Quem é que falou? O que é o feio? Você fez, é
impossível estar feio.” Se ele diz: “Vou jogar fora.”, eu digo: “Você não
vai jogar fora”, aí eu faço drama, faço palhaçada, eu vou morrer, eu
vou me jogar junto, e de repente ele já tá mostrando pros outros e
dizendo “Olha, fui eu que fiz.”, porque a gente vive em uma sociedade
crítica, a criança acaba reproduzindo muito isso, eles são alvo disso,
do que é feio, do que é belo, do que é certo, o que é errado...
(Educadora de artes plásticas, Distrito federal)

Essa valorização do indivíduo e de suas realizações pressupõe


uma simetria nas relações e na valorização das diferentes capacidades e
propriedades de cada pessoa. Para Honneth, essa simetria pode ser
denominada “solidariedade” porque está pautada não na tolerância com a
particularidade das outras pessoas, mas no interesse genuíno e afetivo por
essa particularidade, no respeito a elas e no investimento para expandi-las ao
invés de neutralizá-las, excluí-las ou torná-las invisíveis.

Simétrico significa que todo sujeito recebe a chance, sem graduações


coletivas, de experienciar a si mesmo, em suas próprias realizações e
capacidades, como valioso para a sociedade. É por isso também que
só as relações sociais que tínhamos em vista com o conceito de
“solidariedade” podem abrir o horizonte em que a concorrência
individual por estima social assume uma forma isenta de dor, isto é,
não turvada por experiências de desrespeito. (HONNETH, 2003,
p.211)

Atuar com diferenças numa perspectiva simétrica é um elemento


indispensável para os agentes que lidam com a política pública. Essa atitude
define a possibilidade de que as relações estabelecidas na atenção ao cidadão
sejam de fato protetivas. Se essa é uma condição na ação pública, nas
intervenções voltadas ao fortalecimento de convívio, mais ainda é exigível a
adoção desse princípio. Relações simétricas pressupõem que as explicações
da realidade não estão dadas a priori e que há outras formas de enxergar o
mundo, as relações, a história, as pessoas e essas formas são tão legítimas e
verdadeiras quanto as que eu acredito. Nesse sentido, a contribuição de
ARENDT (2007) é fundamental. Para ela:
91

Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas,


numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que
os que estão à sua volta sabem que veem o mesmo na mais
completa diversidade, pode a realidade do mundo manifestar-se de
maneira real e fidedigna. (ARENDT, 2007, p.67)

O convívio com a diferença é vastamente discutido em vários


estudos, especialmente ao analisar as situações em que o desejo de conviver
entre iguais gera preconceitos e no limite, sociedades apartadoras e
exterminadoras daqueles que consideram diferentes. A necessidade de
pertencer a um grupo,de ser por ele reconhecido, e ainda contar com seu apoio
em situações difíceis ou de vulnerabilidade, faz com seus membros busquem
igualar-se em comportamentos e formas de pensar46, afirma SAWAIA (2001,
p.105) “a discriminação está sempre acompanhada de profunda antipatia entre
as raças, ódio pela alteridade, juntamente com amor e simpatia pelo igual”.
O convívio entre diferentes tem consequências do ponto de vista
da organização programática da assistência social, pois sinaliza para uma
capacidade de ampliar as relações entre os usuários dessa política. Associa-se
que ampliação também guarda relação com diversificação das pessoas com
quem se tem contato. Uma ação que visa fortalecer a convivência deve ser
capaz de fomentar, promover e fortalecer contatos com diferentes pessoas.
Sobre essa questão, afirma o Caderno de Concepção do Projovem
Adolescente (2009):

O primeiro diferencial que podemos destacar das ações


socioeducativas é a valorização dos encontros entre as gerações. (...)
Diferencial importante quando se deseja ampliar a relação dos jovens
e adolescentes com outras gerações, sobretudo reconhecendo o
potencial educativo das famílias, dos vizinhos, das lideranças
populares, dos amigos, dos artistas populares, dos professores, dos
agentes de saúde etc. (MDS, 2009, p.44)

46
Para BAUMAN (2010, p.44), embora seja verdade que os grupos treinem e controlem as condutas de
seus membros, disso não decorre necessariamente que eles tornem essas condutas mais humanas e
morais. Isso significa apenas que, como resultado dessa vigilância e dessa atitude correcional, a conduta
se adapta melhor aos parâmetros considerados aceitáveis em um dado tipo de grupo social.
92

Podem ser consideradas manifestações de diferenças as


dimensões étnicas, de gênero, de condição física e mental, culturais e
intergeracionais. E, nesse sentido, há várias reflexões das especialistas
entrevistadas sobre estratégias que possam fomentar uma convivência social
diversificada. Elas pressupõe desenvolver o trabalho social com grupos de
composição intergeracional, com pessoas provenientes de diferentes regiões
da cidade que tenham histórias distintas de vivência de violação, dentre outras
possibilidades de diversificação de convívios no interior da política de
assistência social.
Todavia, para além da possibilidade de diálogo de usuários de um
serviço entre si, a diferença entre profissionais e usuários deve especialmente
ser levada em conta de modo que a perspectiva que reconhece que há
diferentes formas de enxergar uma mesma realidade, é uma direção essencial
para o trabalho profissional em oposição às práticas segregadoras e
limitadoras da expressão dos usuários. Essa é uma discussão mais avançada
no debate sobre o trabalho profissional no Sistema Único de Saúde 47 e tem
como pressuposto o fato de que a atenção de saúde e os processos de
tratamento estão diretamente vinculados às relações entre profissionais e
pacientes, devem ser menos verticalizadas e mais pautadas no respeito aos
estilos de vida, aos valores e modos de interpretar a realidade. Nas duas
citações a seguir pode-se observar como o assunto vem sendo abordado na
saúde e como é possível olhar para essas relações a partir de uma das
profissionais entrevistadas.

A promoção à saúde tem receitado mudanças no “estilo de vida”.


Realizam-se intervenções ditas “educativas”, ou preventivas, ou até
chamadas de promoção à saúde, que operam como se houvesse
somente saberes técnicos e objetivos em jogo, cujo sucesso
dependesse de uma simples “aplicação”. Novos valores e estilos de
vida são tratados, nesses casos, como algo a ser enxertado na
população. (CAMPOS e CAMPOS, 2006, p.280).

Eu fico pensando como a gente tem que ficar definindo tudo, como se
a gente manipulasse as pessoas assim. Sabe, eu quero que chegue
aqui, vamos trabalhar para que chegue aqui, e não deixa a coisa

47
Vide produção de Gastão Wagner, Emerson Merhy, Rosana Onoko, dentre outros.
93

acontecer mais naturalmente, você proporciona experiências


diferentes pra aquela família e ela vive aquilo da forma como ela
consegue aprender e vai aprofundando. (Psicóloga – CRAS Bom
Alterosa – Betim)

Nas práticas observadas foi possível identificar que a ideia da


diversidade está mais afeta à dimensão intergeracional em Betim e no Distrito
Federal, incluindo usuários de distintas regiões da cidade e origem social. Na
experiência de Belém que, embora seja denominado um Centro
Intergeracional, é predominantemente destinado a atenção aos idosos, a
diversidade aparece mais com relação aos distintos territórios de moradia, pois
os frequentadores do serviço são provenientes de diferentes regiões da cidade,
visto que sua abrangência é municipal. Tais iniciativas, ainda embrionárias, já
atestam uma perspectiva de não homogeneização de públicos quando se
estabelece estratégias para fomentar convivência.

(...) Entendo que há outros grupos possíveis que não o etário, como é
o caso, de grupos de homens ou de mulheres, dos quais a política
não tem se ocupado e tem pouca clareza do que fazer, embora essas
pessoas tenham um papel fundamental nas relações e laços
familiares, por exemplo, na dinâmica e sustentação da família. Assim,
definir, antecipadamente, grupos etários termina engessando e induz
que o serviço seja provido sem dizer necessariamente para que.
Enfim, entendo que não há necessidade de definição antecipada de
que os grupos devem ser organizados dessa ou daquela maneira.
(Carla Bronzo)

No Distrito Federal, observa-se um passo adicional, que é o de


atender num mesmo serviço, pessoas que tenham distintas vivências de
violação de direitos, riscos e vulnerabilidades. Assim, a definição da atenção e
nucleação das pessoas está mais afeta à proximidade ou não do serviço. Para
Ana Lígia Gomes, essa direção é essencial para combater a formação de
“guetos” na política de assistência social. O entendimento é que não devem ser
separados adolescentes que tenham vivência de ato infracional, pessoas que
tenham sofrido violência ou crianças retiradas do trabalho infantil, das demais
crianças e adolescentes atendidas no serviço. Orientação que vem sendo
seguida para definir grupos de trabalho nas unidades do governo distrital e cujo
94

relato profissional atesta que essa estratégia produz uma boa dinâmica de
trabalho e se revela em momento prazeroso para quem os vivencia.

Misturamos todo mundo... não pode ter gueto. Temos meninos que
passaram no vestibular e estão estudando junto com meninos que
cumprem medida socioeducativa e estão com dificuldades de
frequência escolar. Não isolamos os idosos entre eles. Os
adolescentes, por exemplo, gostam de conviver com os idosos, às
vezes têm problema em casa com a mãe ou com a avó, mas com
outros idosos não têm dificuldade. Os idosos se divertem com as
“doidices” e brincadeiras deles. Mas isso é a presença dos
profissionais é a referência que eles criam que favorece essa relação.
O grupo tem força e eles torcem uns pelos outros. É fundamental o
vínculo e a mobilização dos afetos,eles estão ali porque querem,
porque gostam do lugar e das pessoas e é isso que permite que o
trabalho seja planejado e desenvolvido. (Ana Lígia Gomes,
Subsecretária de Assistência Social, GDF).

Nessa aproximação à teoria do reconhecimento de Axel Honneth,


constata-se a presença de elementos que contribuem para caracterizar o
caráter protetivo das relações de convivência. A contribuição de Honneth
permite inserir um novo elemento a essa caracterização que é o respeito à
diferença, aos modos de vida das pessoas, aos seus padrões estéticos, suas
escolhas, seus valores morais e cognitivos, o que implica não em ações de
tolerância, mas no desenvolvimento de valores que permitem viver relações
simétricas e igualitárias entre diferentes. Numa perspectiva que visa ampliar
aprendizados e multiplicar referências em pessoas e instituições.
Trata-se da defesa de uma sociabilidade alargada na qual as
pessoas, suas opiniões e escolhas são valorizadas coletivamente. Todavia não
se trata de uma visão idealizada e harmônica da sociedade. Ao contrário,
reconhece-se que a diferença provoca conflitos e disputas. E não há uma
perspectiva de eliminá-las, mas de sinalizar que esses conflitos podem ocorrer
num campo de mútuo respeito e numa perspectiva de igualdade de condições
para a defesa de perspectivas e de pontos de vista diferentes.

L’existence humaine en effet ne fait sens, ne vaut d’etre vécue, que si


chacun est reconnu non seulement comme member d’un groupe,
comme participant d’une identité collective, mais aussi dans son
identité particulière, en tant que member d’un sous-groupe, et dans
son identité singulière, comme sujet. Identité différente de toutes les
autres et donc, partiellement, en opposition avec les autres sujets
puisque cette identité singulière doit être conquise et affirmée. Nous
95

n’accédons à l’estime de soi que par la reconnaissance que les autres


veulent bien nous accorder, mais aussi en conflit potential avec eux
aussi longtemps qu’ils peuvent craindre que la valeur qu’ils nous
reconnaissent ne vienne en soustraction de la leur. Comme les
joueurs, nous nous reconnaissons-nous memes, nous valorisons et
donnons du sens à notre existence avec nos partenaires et rivaux,
amis-ennemis. Avec eux, grâce à eux, mais, en meme temps, contre
eux. Contr’avec. Drame et charme de la pauvre et de la riche vie des
hommes! Nous ne savons être différents, et reconnus comme tels,
48
que dans le différend. (CAILLÉ, 2011, p.20)

Tratar das distintas modalidades de reconhecimento supõe olhar


o conflito e a luta social na perspectiva dos valores morais em disputa e exige
considerar-se a relevância da dimensão relacional como um elemento
essencial para discutir que é uma vida boa e segura. Não se está com isso,
naturalmente, ignorando a relevância das desigualdades econômicas ou das
relações de classe que na sociedade capitalista têm uma conformação intensa.
Trata-se, porém, de apontar que as situações cotidianas de desprestígio,
humilhação, sofrimento, não decorrem somente da ausência de renda ou baixa
capacidade de consumo, mas também por uma desvalorização de
características e propriedades de grupos e indivíduos que são restrições para o
desenvolvimento e para a vida pautada na experiência da justiça.
Em sua análise sobre a teoria do reconhecimento, Mendonça
(2009) aponta que para Honneth, as relações têm uma força emancipatória,
pois é nos processos de luta por reconhecimento que está depositada a
possibilidade de transformar a realidade. Essas lutas não se dão somente por
meio de movimentos sociais organizados, mas expressam uma busca coletiva
e política de valorização e reconhecimento. Outras expressões de luta se
estabelecem no cotidiano, decorrentes de situações de humilhação e

48
A existência humana só faz sentido, só vale a pena ser vivida, se cada um é reconhecido não somente
como membro de um grupo, como participante de uma identidade coletiva, mas também na sua
identidade particular, como membro de seu grupo, e na sua identidade singular, como sujeito. Identidade
distinta de todas as outras e cuja, particularidade, está em oposição com os outros sujeitos porque esta
identidade singular deve ser conquistada e afirmada. Nós não só acessamos a autoestima a partir do
reconhecimento que os outros estão dispostos a nos oferecer, mas também em conflito potencial com
eles, pois eles podem temer que o valor que nos reconhecem somente é possível em decorrência da
subtração do seu. Como os jogadores, nós nos reconhecemos a nós mesmos, nós nos valorizamos e
atribuímos sentido à nossa existência com nossos parceiros e rivais, amigos e inimigos. Com eles, graças
a eles, mas, ao mesmo tempo, contra eles. Contra/com. Drama e charme da pobreza e da riqueza da vida
dos homens! Nós somente sabemos ser diferentes, e nos reconhecemos como tais, na diferença.
(tradução livre)
96

desrespeito que impulsionam o sujeito a resistir, a refletir e a se insubordinar.


Assim, aponta Honneth, a relevância de que as relações cotidianas sejam
visíveis, observadas e teorizadas para que essas vivências permitam identificar
focos de resistência e de luta.
No contraponto à emancipação possível nas relações de
convivência social com caráter de proteção e reconhecimento, há aquelas que
produzem subordinação, embotamento, interditos e restrições ao
desenvolvimento humano. Assim, com vistas a melhor explicitar como as
relações expressam formas de subordinação e segregação, mas ao mesmo
tempo desencadeiam lutas cotidianas de resistência e insubordinação, é que
tratarei a seguir da convivência social como desproteção. O objetivo é
essencialmente dar visibilidade às situações de desproteção e de
desvalorização que advém das características das pessoas e que são
expressas na forma pela qual são vistas e tratadas em suas relações
cotidianas.

Essa é a nossa verdadeira “luta de classes” intestina, cotidiana,


invisível e silenciosa, que só ganha as manchetes sob a forma
“novelizada” da violência transformadas em espetáculo e alimentada
pelos interesses comerciais da imprensa. (...) Deixamos de ver a “luta
de classes”, cotidiana, mais invisível e menos barulhenta, mas não
menos insidiosa, que se reproduz sem que ninguém se dê conta,
tanto para os algozes quanto, muito especialmente, para suas
próprias vítimas. (SOUZA, 2011, p.24).
97

2 DESPROTEÇÕES DECORRENTES DAS RELAÇÕES SOCIAIS – A


ESPECIFICIDADE BRASILEIRA

Quando você for convidado pra subir no adro


Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
Não importa nada:
(...) Ninguém, ninguém é cidadão
49
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os
50
pretos (VELOSO e GIL, 1993 – grifo meu)

Tratar de convívio em uma política pública significa e supõe


buscar razões que justifiquem a regulação estatal em uma situação que em
princípio seria normal na relação entre os cidadãos ou não-cidadãos. Mas se é
necessária a presença do Estado, isto encontra razão no fato de um direito que
está sendo violado ou de que o convívio contém um potencial de superação de
determinadas condições, e por isso, deve ser fortalecido pela ação estatal.
Pretendo nesse capítulo trazer situações de barreiras ao convívio
que demonstram a necessidade da presença do Estado e a implicação do
tratamento e significado do convívio como política pública. Se há barreiras, não
há liberdade de conviver, inclusive pelos sentimentos que elas geram e que
são relevantes para o trabalho social no âmbito da política. O raciocínio é
complementar ao capítulo anterior, pelo qual busquei demonstrar a força que o

49
KOWARICK (2009) ao citar CALDEIRA (2000, p.94), lembra que a morte de 111 presos no Carandiru
teve anuência do Governo do Estado e que “esse acontecimento assume sua plena significação quando
se sabe que 33%, segundo a Folha de S.Paulo, e 44%, segundo pesquisa realizada pelo jornal O Estado
de S.Paulo, dos habitantes da cidade apoiaram o massacre, cujas fotos foram estampadas na imprensa
escrita e televisionada”.
50
Escrita nos anos 1990 a música “O Haiti é aqui. O Haiti não é aqui” é de autoria de Caetano Veloso e
Gilberto Gil. Nesse período desenvolveram-se no país campanhas humanitárias para apoiar o Haiti, que
havia sofrido com um tremor de terra, fato desencadeador da composição. In: Tropicália 2, 1993.
98

convívio social representa para a proteção, o que justifica e exige a intervenção


estatal para produzir e ampliar essa proteção.
Valho-me de alguns estudos desenvolvidos com sujeitos que
vivendo situações de subordinação, buscam expressar os sentimentos
decorrentes dessa condição, motivadas em geral em virtude de características
pessoais, do lugar em que vivem, da origem regional, das escolhas religiosas,
dentre outras questões. O principal autor aqui mencionado será Jessé de
Souza51e sua contribuição para caracterizar como vive a ralé brasileira. Sua
contribuição decorre da coordenação de um grupo de pesquisa multidisciplinar
que vem se debruçando sobre essa questão e que, ao longo de quatro anos,
realizou trabalhos de campo voltados a conhecer a perspectiva dos sujeitos
sobre as situações que vivenciavam. Utilizarei também os estudos
coordenados por Lucio Kowarick52, também advindos dos trabalhos de campo
de um grupo de pesquisadores, mais voltados a observar vulnerabilidades
decorrentes dos lugares nos quais as pessoas vivem.
Outros estudos também serão mencionados como os
coordenados pela socióloga Vera Telles, relacionados a trajetórias e às
dimensões e configurações territoriais, os de Eduardo Marques, que busca
qualificar processos de segregação intraurbanos e o papel das redes para
enfrentar essas situações, os estudos coordenados pelas historiadoras Izabel
Marson e Marcia Naxara, em Minas Gerais, que discutem o lugar dos

51
Graduado em Direito e mestre em sociologia pela Universidade de Brasília, doutor em Sociologia pela
Karl Ruprecht Universität Heidelberg, Alemanha (1991) e livre docência em sociologia pela Universität
Flensburg, Alemanha (2006). Escreveu como autor e organizador 23 livros, em diversas línguas, sobre
teoria social, pensamento social brasileiro e estudos teórico/empíricos sobre desigualdade e classes
sociais no Brasil contemporâneo. Atualmente é Professor titular de sociologia da UFJF e coordenador
geral do CEPEDES/UFJF (Centro de pesquisa sobre desigualdade social). Neste instituto coordena duas
pesquisas: 1)uma pesquisa nacional sobre a "sociodicéia do privilégio" cuja finalidade é analisar a
especifiicidade das classes dominantes e da dominação social no Brasil. 2) Outra pesquisa, esta
internacional, em conjunto com colegas alemães e indianos, acerca das formas de classificação e
legitimação social prevalecentes no Brasil, na Alemanha e na Índia. Disponível em:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4781769T1. Acesso em:
10 jun. 2013.
52
Lucio Kowarick possui graduação em Ciências Políticas e Sociais pelo Fundação Escola de Sociologia
e Política de São Paulo(1961), mestrado em Ciências Sociais pela Diplôme D'études Approfondies En
Sciences Sociales(1967) e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo(1973). Atualmente é
professor titular da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase
em Estado e Governo. Atuando principalmente nos seguintes temas: Dependência, Marginalidade,
Urbanização. Disponível em:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4727402Z5. Acesso em
10 jun.2013.
99

sentimentos e sensibilidades na história, com destaque para o significado da


humilhação para quem a vive, objeto de estudo também da médica Margarida
Barreto que pesquisa essa questão no ambiente de trabalho e na atenção à
saúde. Essas são as principais referências utilizadas nessa construção. Outras
aparecem ao longo do texto para auxiliar na compreensão do sentimento que a
vivência de relações de subordinação e segregação representa.
Assim a busca é ressaltar processos de socialização redutores de
aprendizados e limitadores de horizontes, traduzidos em experiências que
marcam trajetórias de vida, formas de expressão, compõem lembranças e
definem possibilidades de desenvolvimento. São vivências que não se apagam
ou não se alteram com maior possibilidade de consumo, pois são reiteradas
cotidianamente nas relações institucionais, vicinais e familiares.
O capítulo tem por objetivo dar visibilidade aos impactos que a
vivência de situações de subordinação geram nos sujeitos que a vivem e os
sentimentos que os acomete quando submetidos a essa condição. Assim, as
relações familiares, sociais e nas instituições públicas são analisadas para
demonstrar como podem se constituir em dominação e subordinação.
Conforme afirmado, sigo a mesma lógica adotada para o capítulo anterior ao
discutir vínculos e reconhecimento. Essas mesmas relações são agora
analisadas na sua face de desrespeito e desqualificação para buscar dialogar
com as questões trazidas por Simone Albuquerque no início do capítulo um,
especialmente quando afirma que “Há convivências mais protetoras ou menos
protetoras, que desenvolvem mais ou desenvolvem menos as habilidades e
potencialidades. É possível por meio de estudos já desenvolvidos, identificar
esses movimentos”. A aposta é que de fato isso é possível e que a intervenção
da política pública deve se dar a partir de um maior conhecimento de como
esses movimentos se dão, para conseguir se antecipar a eles, combatê-los e
ainda restaurar trajetórias após essas vivências.
A desigualdade brasileira tem sido objeto de vários estudos e
debates; as contradições de um país que avança do ponto de vista econômico
sem alçar a totalidade dos brasileiros a um patamar mínimo de dignidade e
civilidade revela uma face perversa que a análise da evolução do PIB nacional
100

não permite explicar. Se os processos de individualização analisados por


Castel e já apontados desencadeiam amplos debates entre pesquisadores e
analistas, especialmente pelo fato de demonstrarem uma culpabilização das
vítimas, em países de larga tradição de democracia social e política que dirá
num país cuja sociabilidade esteve assentada no privilégio de poucos em
detrimento do acesso da esmagadora maioria53.
Persiste, uma vez que é reproduzida de diferentes formas e
níveis, a concepção de que com esforço pessoal são obtidos bons resultados,
progresso e superação. Alguns exemplos isolados entre artistas, na classe
política, no empresariado e até mesmo na Suprema Corte e na Presidência da
República, são usados como estímulos e como situações emblemáticas e
comprobatórias de que basta esforço pessoal para a ascensão social. A
precarização seria resultante de conduta pessoal e não da vivência em
condições escassas, instáveis e adversas. Registra-se uma face discriminadora
que ignora e camufla o significado da vivência em precárias condições, na
incerteza da garantia de alimento, vestuário e abrigo até o final do dia, na
constante humilhação de ser visto, taxado e desqualificado como vagabundo,
ladrão, violento, sujo e mal cheiroso. Mais ainda, como se viver nessas
condições não significasse esforço, mas fosse resultante de acomodação e
imobilismo.
A face discriminadora, conservadora, produtora de estigmas,
violências e apartações que demarcam a trajetória cotidiana de um vasto
contingente de brasileiros persiste. As expressões são imprecisas e genéricas
no que se refere a quantidades justamente porque são de pouco domínio e
pouca visibilidade nessas situações. Nesse sentido, é fundamental destacar
desde logo que a subordinação é fruto de relações, é criada, forjada e mantida
por elas. Não se dá de forma natural ou por uma obra do destino, o que soa
óbvio quando se está lidando com a questão no campo analítico, mas menos

53
Um privilégio é sempre particular e específico, não pode generalizar-se num interesse comum nem
universalizar-se num direito sem deixar de ser privilégio. A democracia funda-se na criação,
reconhecimento, garantia e consolidação de direitos. O autoritarismo social e a divisão econômica sob a
forma da carência e do privilégio bloqueiam a emergência de uma sociedade democrática”. (Chauí, 1994,
p.28)
101

óbvio quando se define a atenção coletiva a ser destinada a essa classe


subordinada.
O miserável e sua miséria são sempre percebidos como contingentes
e fortuitos, um mero acaso do destino, sendo a sua situação de
absoluta privação facilmente reversível, bastando para isso uma
ajuda passageira e tópica do Estado para que ele possa “andar com
as próprias pernas”. (SOUZA, 2011, p.17)

Pode-se afirmar, e não sem razão, que já se sabe dessa intensa


dominação, tão alardeada e demonstrada na literatura, no cinema, na produção
acadêmica, na imprensa e que há pouco ainda a ser dito, diante da vasta
profusão de estudos sobre pobreza, desigualdade e exclusão no país. Todavia,
entendo que há algumas linhas a serem exploradas na abordagem sobre
produção de subordinação e que pretendo explicitar brevemente mesmo
reconhecendo as limitações deste estudo e o fato de não se tratar de uma
abordagem inédita visto que me valho de caminhos já percorridos por
pesquisadores e analistas desta questão.
As linhas afirmadas são complementares entre si, não há uma
gradação hierárquica e tampouco se poderia analisá-las de forma estanque. A
primeira linha a ser afirmada é que não se trata de desigualdade de renda,
compartilhando da lógica de que não é a renda que define classe social54.
Dessa definição decorre uma segunda linha para reflexão, o entendimento de
que se estamos tratando de uma questão de classe, essa é uma temática a ser
debatida no campo político e não no da solidariedade individual, logo há
responsabilidades coletivas nos processos de subordinação. A tensão que se

54
Para SOUZA (2013) A classe social implica uma forma específica de perceber e atuar no mundo em
todas as dimensões, ou seja, o pertencimento de classe constrói uma "condução da vida” muito singular,
e isso não pode jamais ser inferido a partir do nível de renda. É claro que indivíduos que estejam em
uma mesma "situação de classe” vão tender – longe de ser verdade em todos os casos – a ter um padrão
de renda semelhante. É isso que vai explicar o fato de que as "fantasias sociais”, como a associação de
classe, a renda, antes de serem "mentiras”, sejam "meias-verdades” Afinal, alguma espécie de
ancoragem no mundo real elas têm que ter para nos convencer (...). E como o "mistério” da produção e
reprodução das classes sociais (ou seja, a produção e reprodução de indivíduos desigualmente
aparelhados para a competição social) é o segredo mais bem guardado de toda sociedade moderna cuja
legitimação fundamental é precisamente a "igualdade de oportunidades”, ou seja, a "igualdade” básica
entre todos, isso explica por que essas "meias-verdades” são repetidas tão exaustivamente por tudo e
todos que possuem interesse na reprodução do mundo tão injusto como ele é. Sem elas não poderíamos,
por exemplo, pensar em "mérito individual” quando nos comparamos com pessoas que não tiveram as
mesmas oportunidades que tivemos e preservar, ao mesmo tempo, nossa "boa consciência” e nosso
sentimento de "superioridade” em relação a elas. (SOUZA, 2013, p.5 – grifo meu)
102

pretende provocar é de que a produção da subalternidade ocorre em diferentes


relações e permanentemente, portanto ela não é algo estático, uma
determinação histórica inexorável sobre a qual refletimos impotentes sobre sua
dimensão. O ponto de partida é que também somos sujeitos nesta produção,
especialmente ao desconhecê-la e não tomá-la como referência para produzir
atenções públicas. Logo estamos diretamente implicados com a questão. Não
somos neutros e tampouco impotentes. Uma terceira linha de reflexão para
além de reconhecer que não estamos tratando de desigualdade de renda e
tampouco de questão a ser equacionada no campo individual é compreender
que se trata de relações produzidas cotidianamente por sujeitos vivos, cujas
decisões impactam na vida das pessoas. Não há um agente causal externo a
essas relações a quem se possa atribuir a responsabilidade pela produção e
manutenção da subalternidade. Postas as linhas, meu desejo é que a
elaboração facilite explicitá-la.

A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e


desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de
todos, por todos remexida e temperada. (Guimarães Rosa)

A contribuição de Jessé de Souza (2011 e 2012) para a leitura


dessa realidade vivida pelos subalternos a quem provocativamente vem
denominando de ralé55, é aqui recuperada por trazer uma perspectiva

55
O autor localiza a origem da ralé no “dependente” ou “agregado”, grupo formalmente livre e que na
sociedade escravocrata não tinha nenhuma função econômica importante, visto que a atividade produtiva
principal era sustentada pela mão de obra escrava. Assim, sobreviviam nas franjas do sistema como
“homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade” e que para
sobreviver não só desenvolvem atividades de natureza esporádica e diversa como também lançavam
mão de práticas violentas para sobreviver no sertão e na cidade, mas essencialmente dependiam de
favores e de concessões dos senhores para desenvolverem essas atividades esporádicas. E é essa
dependência informal e camuflada que configura a dominação. Para Caio Prado Júnior (2000) a escala
social brasileira no período colonial é marcada por dois extremos: os senhores e os escravos, entre essas
duas categorias, localiza várias subcategorias que vão se avolumando: “Entre essas duas categorias
nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização comprime-se o número, que vai avultando
com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos
incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. (...) Compõe-se sobretudo de pretos e mulatos forros ou
fugidos da escravidão; índios destacados de seu hábitat, (...),; mestiços de todos os matizes e categorias,
que, não sendo escravos e não podendo ser senhores, se veem repelidos de qualquer situação estável,
ou pelo preconceito ou pela falta de posições disponíveis; até brancos, brancos puros, e entre eles até
rebentos de troncos portugueses ilustres, (...) os nossos poor whites, detrito humano segregado pela
colonização escravocrata e rígida que os vitimou”. (p. 288-289). Após a abolição da escravatura os negros
ex-escravos passam também a compor essa categoria de pessoas sem ‘meio conhecido de subsistência’.
(SANTOS, 2003, p.73)
103

fundamental de que a visibilidade social, analítica e política dessa classe tem


sido reprimida e obscurecida. O autor destaca que se sabe muito pouco da
subalternidade no Brasil e de como ela é produzida, legitimada e reiterada por
humilhações cotidianas que implicam uma violência simbólica.
Ao apoiar-me no argumento de que essas vivências configuram
uma relação de classe, reitero a lógica de que o seu enfrentamento é de
responsabilidade coletiva. Não são enredos construídos na vida desse ou
daquele sujeito, são trajetórias marcadas por vivências constantes que afirmam
seu desvalor e suas incapacidades.
A humilhação é o sentimento que mais comparece no relato de
sujeitos em condição de subalternidade. Ao conceituar esse sentimento
ANSART-DOURLEN (2005, p.85) a descreve da seguinte forma:

O sentimento de humilhação surge como um movimento emocional


doloroso que pode ser provocado por um incidente ou um
acontecimento anódino, que afeta pontos vulneráveis da afetividade,
ou, ao contrário, por um traumatismo cujos efeitos podem,
posteriormente, se manifestar e desestabilizar o indivíduo. Quaisquer
que sejam as repercussões atinge a representação (consciente ou
inconsciente) que o indivíduo possui de si mesmo. Ele é o sintoma de
uma ferida narcisista que significa uma diminuição da estima de si, do
sentimento de unidade interior, de integridade; é capaz de desintegrar
a vida psíquica, desvelando a vulnerabilidade do indivíduo.

Nessa mesma direção, Axel Honneth aponta em seus estudos a


experiência de humilhação e desrespeito como uma vulnerabilidade particular e
exclusiva dos seres humanos, pois dessa experiência pode resultar uma lesão,
capaz de destruir a identidade de uma pessoa. Há tanta relevância no
sentimento gerado pela humilhação nos estudos de Honneth que ele afirma
que, por vezes, os atos de violência física tornam-se ainda mais degradantes
justamente por representarem uma posse do corpo do outro, sujeitando sua
vontade, minando suas forças humilhando e rebaixando-o até o ponto de ferir a
compreensão do sujeito sobre si mesmo. Esse dano é maior do que a dor física
104

gerada pela tortura ou pela violação56. Destaca ainda que a humilhação e o


rebaixamento representam ameaças à vida tal como o sofrimento gerado por
doenças. Portanto, se é possível atuar para evitar a instalação de doenças com
procedimentos de saúde preventiva, no campo relacional a garantia de
relações respeitosas tem essa mesma característica preventiva, que evita e
protege os sujeitos de sofrimento.

(...) Essa interpretação (...) contém duas indicações implícitas, ambas


oportunas para as finalidades que perseguimos. Por um lado, a
comparação com a enfermidade física nos estimula a nomear
também para o sofrimento do desrespeito social a camada de
sintomas que de certa maneira chama a atenção do sujeito atingido
para o seu próprio estado; aos indícios corporais correspondem aqui,
é o que se pode supor, as reações emocionais negativas que se
expressam nos sentimentos de vergonha social. Por outro, porém, a
comparação empregada dá também a possibilidade de extrair da
visão geral sobre as diversas formas de desrespeito ilações acerca
do que contribui, por assim dizer, para a saúde ‘psíquica’, para a
integridade dos seres humanos: à evitação providente de doenças
corresponderia, como foi visto, a garantia social de relações de
reconhecimento capazes de proteger os sujeitos do sofrimento de
desrespeito da maneira mais ampla. (HONNETH, 2009, p.219).

Portanto, Honneth (2009, p.214) afirma que o sofrimento gerado


pelo desrespeito gera uma lesão psíquica no sujeito que a vive e que interfere
na sua identidade e na sua representação de si. Observa, porém, que há
intensidades distintas nessa lesão causada pelo sofrimento da humilhação cuja
intensidade também é distinta e nem sempre está visível, transitando, por
exemplo, da negação do direito que é um rebaixamento palpável até a
humilhação sutil que acompanha a alusão pública ao insucesso de uma
pessoa.
Ao estabelecer essa gradação para formas de desrespeito, Axel
Honneth observa que o desrespeito aos direitos representa uma violenta
limitação da autonomia pessoal associada ao sentimento de desvalor, gerando
uma perda do autorrespeito, por não poder referir-se a si próprio como parceiro

56
Na sabedoria popular, por vezes, essa intensidade se manifesta por expressões como: “Doeu mais do
que um tapa na cara”, pois a agressão física vem acompanhada da humilhação, que gera sofrimento
ainda maior.
105

em pé de igualdade na interação com todos os próximos. Assim, nestas


situações o que é subtraído da pessoa, é o respeito cognitivo de imputabilidade
moral e esse sentimento e compreensão de si como pessoa de menor valor
frente aos outros é o que melhor caracteriza o sentimento que a vivência da
violação desencadeia. Ressalte-se ainda que nesse tipo de desrespeito há uma
variação histórica considerável. Conforme vimos no Capítulo 1, o conteúdo do
reconhecimento das pessoas como sujeitos de direitos se altera
significativamente em cada período histórico, em conformidade com o avanço
das relações jurídicas.
O rebaixamento produzido a partir do valor social negativo de
indivíduos e grupos é, para Axel Honneth, um modo de tratamento decorrente e
que degrada algumas formas de vida ou modos de crença, retirando do sujeito
atingido a possibilidade de atribuir um valor social às suas próprias
capacidades.

A degradação valorativa de determinados padrões de autorrealização


tem para seus portadores a consequência de eles não poderem se
referir à condução de sua vida como a algo que caberia um
significado positivo no interior de uma coletividade; por isso, para o
indivíduo, vai de par com a experiência de uma tal desvalorização
social, de maneira típica, uma perda de autoestima pessoal, ou seja,
uma perda de possibilidade de se entender a si próprio como um ser
estimado por suas propriedades e capacidades características.
(HONNETH, 2009, p.217).

Em seu estudo sobre humilhações sofridas por trabalhadores


doentes em decorrência das condições de trabalho, Margarida Barreto (2006)
aponta a persistência de vivência de situações de humilhação, definindo a
forma de sociabilidade e relacionamentos futuros, afirma:

Predomina as emoções tristes que despotencializam e submetem,


persistindo no tempo. Muitas vezes, eles vêem como única saída a
solidão, situação mais frequente entre os homens. Deprimidos e
desvalorizados, sentem-se impotentes para agir; a vida
gradativamente perde o sentido, e eles já não acreditam em sua
capacidade. A recordação do vivido toma conta dos pensamentos e
não se consegue esquecer a violência sofrida. São situações que
persistem por longo período em alguns, chegando a interferir no sono
e na memória.” (Barreto, 2006, p.192)
106

Cabe aqui relembrar que na teoria de Axel Honneth, são os


sentimentos decorrentes das situações de desrespeito que possibilitam e
desencadeiam a luta por reconhecimento e os conflitos sociais a ela
associados. Afirma o autor que as situações de desrespeito relacionadas ao
direito e à estima social configuram-se como campo de luta coletiva, quando as
experiências pessoais de desrespeito “podem ser interpretadas e apresentadas
como algo capaz de afetar potencialmente outros sujeitos”. (HONNETH, 2009,
p.256)
Quando isso ocorre, pode desencadear processos de luta e
resistência política que se configuram por manifestações violentas ou não-
violentas, ou seja, diferentes formas em que grupos com vivências de
discriminação buscam reclamar contra os desrespeitos e lesões sofridos. Para
Honneth, a relevância de estudar esses processos de luta por reconhecimento
está no fato de que essa ação permite ao indivíduo convencer-se de seu valor
moral e social, pois mesmo vivendo a situação de desrespeito, ao inserir-se
numa luta política é possível restituir ao indivíduo parte do respeito perdido,
pois justamente o motivo desencadeador da discriminação é agora tornado
público combatendo a vergonha e o vexame. Além disso, a luta produz no
próprio grupo uma estima mútua, provocada pela solidariedade entre si,
portanto uma forma de reconhecimento ao se contrapor ao desrespeito e à
injustiça.
Retomo esse movimento e essa elaboração para sinalizar que os
sujeitos estão em constante ação e resistência para enfrentarem a injustiça e a
precarização da vida, ainda que não exista uma organização num movimento
político mais coletivo. A própria sobrevivência, conforme já apontado, é uma
expressão dessa resistência. Logo, não se trata de acomodação ou falta de
empenho, mas de oportunidades injustamente distribuídas. Trata-se também
de compreender que humilhações e vergonha são impulsionadoras de
resistência e luta, tanto quanto a precariedade econômica. Aliás para Axel
Honneth, as lutas por reconhecimento são desencadeadas pela humilhação
que a precariedade econômica gera, mais do que por ela em si.
107

Ao considerarmos a especificidade nacional de como se dá os


processos de desrespeito aos direitos e de discriminação social é necessário
refletir que esse modo de operar faz da luta por reconhecimento algo ainda
mais complexo. Tal complexidade associa-se ao fato de que na sociedade
brasileira é considerado normal e natural que ela seja dividida em “gente e
subgente”. Essa naturalização, segundo a elaboração de Jesse de Souza e
outros pesquisadores, é sustentada a partir de “consensos sociais
inarticulados”. Não é na linguagem, na forma de se referir que as nossas
desigualdades se expressam, mas sim nas práticas cotidianas.
Não necessariamente há consciência desses consensos,
tampouco se encontrarão políticos, intelectuais, agentes públicos ou membros
da sociedade defendendo a desigualdade; mas a naturalização e a justificação
da violência contra os subalternos, ou mesmo a banalização de chacinas,
atropelamentos, agressões e homicídios na rua e a forma depreciativa pelas
quais são tratados em serviços públicos, atestam esses consensos latentes
pelos quais algumas vidas têm menos valor.
Na leitura dos autores, é esse consenso que legitima a
dominação57 e que encobre a intensidade do conflito social instalado no país.

57
Ao discutir as singularidades da constituição das sociedades modernas, SOUZA (2012) recupera o
conceito de “imaginário social” presente em Charles Taylor, pelo qual ele identifica que há uma ordem
moral que estabelece obrigações e direitos que configuram e organizam as relações entre as pessoas.
Essa ordem moral pode até ter sido originada em lideranças políticas ou religiosas, mas, a partir da
influência desses líderes passa a compor o imaginário social de parte da sociedade ou de sua totalidade.
Não se trata de uma teoria, mas o que as pessoas comuns percebem como sendo seu ambiente social e
que se manifesta sob a forma de imagens, estórias, lendas, piadas, anedotas, etc, Essa percepção está
construída e prescinde de fatos para explicá-los, ou seja não se sustenta ou se apoia em fatos, ela
antecede a eles, o que legitima a ordem social. Ao reconhecer a presença do imaginário social e de sua
força para explicar os fatos, a questão é identificar como se dão as mudanças sociais que permitem a
transformação de um imaginário em outro.
Na continuidade de sua análise SOUZA apoiado nos estudos de Max Weber destaca que nas grandes
civilizações orientais e ocidentais, a concepção de mundo estava fortemente e predominantemente
assentada em explicações religiosas, é o caso por exemplo, da influência hindu no oriente e protestante
na Inglaterra e EUA. Esse processo é distinto em sociedades como a brasileira, pois nestas não havia
uma visão de mundo articulada institucional e simbolicamente por meio da religião, constituída
antecipadamente e autônoma em relação a outras estruturas de poder, portanto não foi por meio de uma
pré-concepção religiosa que as diferenças e hierarquias foram explicadas, embora posteriormente
servissem para mantê-las. Assim, destaca essa lógica peculiar para ressaltar que disso decorre que as
práticas institucionais se impõem e se reproduzem sem uma articulação com valores que lhe dão
finalidade e articulam intencionalidades, como exemplo cita: “a legitimação das relações hierárquicas e
desiguais era conseguida a custo da violência física aberta, no pior dos casos, ou da violência psíquica
encoberta da cooptação implícita na relação de dependência pessoal, nos outros casos”. (SOUZA, 2012,
p.95).
108

Nessa linha refutam teorias que valorizam o “jeitinho brasileiro”58 e que


destacam a brasilidade como marca de um povo feliz, alegre, que
malandramente desenvolve estratégias para viver na adversidade e que apesar
dela tem orgulho de si e do seu país. Afirmam ainda que tais análises não
contribuem para compreender a intensidade do sofrimento de quem está
fadado ao fracasso, é culpabilizado e se sente culpado por isso. Esses
pesquisadores, ao tratarem da construção da subalternidade brasileira criticam
a comparação com outros países que vivem guerras civis ou conflitos de
apartação interna muito severa, pois entendem que tais comparações
pretendem demonstrar o quão brando é o convívio nos trópicos e que o
preconceito racial ou a discriminação contra mulheres, para ficar somente em
dois exemplos, são quase banais perto da violência e de conflitos vividos na
África, nos países árabes ou no sul dos Estados Unidos, especialmente até
meados do século passado. Todavia, tal comparação em nada ajuda a
descortinar o que a discriminação representa para quem é ofendido. (ROCHA,
2011, p.372)
A sociedade brasileira convive com essas situações como se
fossem naturais e definidas por forças espirituais que proporcionam a sorte de
ter nascido numa classe ou em outra59. Àqueles que tiveram o azar de nascer
na pobreza, resta a vivência sempre precarizada no limite entre o legal/ilegal,
requerendo estratégias as mais diversas por manterem-se abandonadas à sua
sorte pelo Estado e pela sociedade. Portanto, como já citado, o conflito social
no Brasil se manifesta entre uma classe totalmente excluída de oportunidades
e de reconhecimento social e as demais classes sociais. O desafio é
compreender essas pessoas como classe, o que requer entender suas
relações para além do vínculo com o trabalho, posto que não se amoldam à
clássica definição de proletariado. Trata-se de discutir o Brasil não somente
pelo seu PIB ou pela linha de miséria, mas sim “pela forma como nos tratamos
uns aos outros”.

58
Dialoga especialmente com o antropólogo Roberto da Matta e com o sociólogo Gilberto Freyre.
59
A esse respeito afirma KOWARICK (2009, p.100) (...) estar desempregado, morar em favela ou ser
assassinado pela polícia ou por bandidos é equacionado como uma sina que cai sobre os deserdados da
sorte: trata-se, enfim, de um “coitado”.
109

Humilhações, extorsões, agressões, espancamentos e outras formas


de violência, que podem chegar a homicídio, praticadas pela polícia e
pelos bandidos, constituem atos cotidianos que não fazem parte das
estatísticas, pois as pessoas, por medo de represálias, se calam.
Estes atos só podem se tornar poderosas formas de controle e
acomodação social, pois acabam fazendo com que os subalternos
conheçam os riscos de sair de seus lugares: “[...] este brasileiro faz
parte da comunidade política nacional apenas nominalmente. Seus
direitos civis são desrespeitados sistematicamente. Ele é culpado até
prova em contrário. Às vezes mesmo após provar em contrário”
(CARVALHO, s.d. apud KOWARIK, 2009, p.101)

Assim, existe nesses “consensos sociais articulados” a lógica da


meritocracia60 como ideia predominante a justificar a dominação e a
subalternização. Nessa lógica, privilégios são percebidos como conquista e
esforço individual, o que torna legítima e justa a sua manutenção pois afirma-
se: “as pessoas fizeram por merecer”. Assim, não é incomum ao abordar
trabalhadores subalternizados, por exemplo, observar sua autoavaliação
quanto a seu desinteresse pela escola ou sua incapacidade para estudar como
o fator desencadeador da precária situação em que vive, como se o
desempenho escolar fosse resultado única e exclusivamente de esforço
individual sem a necessidade de investimento e condições coletivas para tal.

Eu tenho medo. Esse que é o problema, eu tomei medo, entendeu?


Foi um trauma. Esse que é o problema, eu já não sei qual que é a
diferença entre o difícil e o medo. (...) [ a escola deve mesmo
selecionar e ajudar os alunos] que têm a mente um pouco melhor e
eu não sou um desses. Minha memória é muito ruim, eu tenho a
cabeça muito ruim para guardar as coisa. Pra cálculos também eu
tenho a cabeça muito ruim...Eu acho que eu tenho mesmo. (...) O
meu sonho é...Eu queria...Se eu fosse pedir alguma coisa para mim
ter, se eu tivesse um sonho para mim ter é que eu tivesse do nada
um estalo e eu [ele estala os dedos]... Ficasse finalmente bom pra
estudar. (Anderson entrevistado por FREITAS (2011) ao descrever
momentos de sua trajetória escolar)

O julgamento de si, a autopunição e desqualificação são também


formas de legitimar a dominação vivida, numa atitude de conformação para

60
Jessé de Souza com base em Charles Taylor afirma que caracteriza a sociedade moderna duas fontes
morais, a ideia de que elas estão pautadas no princípio de justiça social, pelo qual cada cidadão é tratado
de acordo com seu mérito e a expressividade do indivíduo singular, que se materializa na liberdade
individual de procurar a felicidade. Mas, afirma, “na realidade, a transformação e o amesquinhamento de
escolhas morais – no caso, a da busca da felicidade – em escolhas que se reduzem, todas elas, à
expressão quantitativa em dinheiro, é uma das formas principais de legitimação de todas as sociedades
ocidentais”. (SOUZA, 2011, p.388-391)
110

seguir vivendo, posto a impotência para enfrentar medos, agressões e


humilhações isoladamente.
Para Souza, o que uma visão pautada no “mérito” ignora, de
forma intencional ou não, é que há uma transferência de valores imateriais na
reprodução das classes sociais e de seus privilégios no tempo. Isso se dá tanto
nas classes mais altas, que ensinam aos seus descendentes, modos de
comportamento e “estilos de vida”, quanto nas classes médias, nas quais há
uma transmissão afetiva, invisível e cotidiana das condições necessárias para
competir, que passa pela reprodução do capital cultural. (SOUZA, 2011, p.20,
45-121). Assim, a criança na classe média, vai sendo estimulada a valorizar os
estudos, a leitura, a competência e a dedicação ao trabalho, dentre outros
valores. Essa criança é ainda vista como alguém importante, simplesmente por
ter nascido e fazer parte daquele grupo familiar, o que também favorece o
desenvolvimento da autoconfiança e do reconhecimento do valor de si61.
Os valores relativos à educação e ao trabalho são transmitidos
para as classes subalternas, por meio da mídia, das instituições e até mesmo
no contato direto interclasses como se todos estivessem nas mesmas
condições de vivê-los e realizá-los, como se a escola fosse a mesma e o
trabalho realizado estivesse nas mesmas condições62. Assim, a lógica de que
as coisas são conquistadas com esforço e empenho passa a ser verdadeira e
legitimada. Assim, quem vive numa boa condição é porque fez por merecer;
nessa direção, aqueles que fracassam são culpabilizados, discriminados,

61
Ao discutir as redes relacionais de indivíduos de diferentes classes sociais, MARQUES (2010, p.188)
aponta que as redes, num movimento circular e cumulativo, reproduzem as desigualdades e variam
substancialmente de uma classe para outra e também dentro de uma mesma classe, assim, indivíduos de
classe média possuem redes mais diversificadas, amplas e menos localizadas, para ele, “essas variações
ajudam a explicar uma parcela importante das condições sociais e da pobreza, visto que o acesso a bens
e serviços é mediado pelas redes, tanto no mercado quanto fora dele”.
62
Ao analisar o trabalho e as formas de sociabilidade dele advindas nas classes subalternas, YAZBECK
afirma que: “Chama a atenção no conjunto dos depoimentos o sofrimento moral advindo da falta de
trabalho, da instabilidade nos empregos, das precárias opções dos desempregados, dos rendimentos
insuficientes, do desamparo dos doentes e deficientes e seus trabalhos desqualificados.(...) O
descompasso entre o que aspiram obter como o trabalho e a realidade de exploração que permeia suas
trajetórias como trabalhadores leva-os a uma relação de sujeição e de antagonismo com a experiência de
trabalho. (YAZBECK,1996, p.98-103). MARQUES (2010) também discute o trabalho e nesse caso o
acesso a ele como decorrente de diferentes condições e oportunidades. Assim, a trajetória escolar e a
vivência da imigração são componentes que interferem na possibilidade de inserção no mercado de
trabalho e na qualidade do trabalho que poderá desenvolver, aponta ainda a relevância da rede de
relações para garantir esse acesso.
111

violentados emocionalmente. Portanto, aos valores de classe, transmitidos


como herança familiar intergeracional, estão associadas condições concretas
para o desenvolvimento de projetos familiares aos seus membros, condição
que não está universalizada e que é ignorada nas explicações da realidade e
na atenção institucional aos subalternos como a depender somente de
vontade, disposição e empenho.
A lógica da meritocracia não é exclusividade nacional, ela está
presente na sociedade moderna (DUPPAS e CASTEL). Todavia, numa
sociedade como a brasileira, essa situação é ainda mais perversa porque não
atenta para as precondições sociais, familiares e emocionais que permitem e
asseguram no tempo o privilégio de classe. Nosso processo de modernização
produziu uma classe inteira de indivíduos, desprovidos das precondições
sociais, morais e culturais que permitem a apropriação de capital cultural e
econômico63.
A análise de como o processo de modernização nacional produz a
subcidadania, é feita, dentre outros autores, por Jessé de Souza (2012) a partir
da produção de Florestan Fernandes, especialmente na obra A integração do
negro na sociedade de classes, que estuda a cidade de São Paulo de 1880 a
1960. Para ele, a análise de Florestan Fernandes permite identificar um padrão
institucional que não explica somente a condição do negro – embora essa
questão seja agravada em virtude do racismo. Esse padrão é caracterizado
pelo abandono e esquecimento daqueles que não são prioritários no processo
produtivo, a exemplo dos escravos libertos, que não receberam nenhuma
indenização. Não houve uma política específica para assegurar terras ou
moradia, simplesmente foram desocupando fazendas e ocupando os lugares
mais degradados das cidades, sobrevivendo de pequenos ‘bicos’ e exercendo
atividades fortuitas.

63
Em outro trabalho sobre a construção social da subcidadania, SOUZA (2012, p.102-104) lembra a
emblemática atitude de Rui Barbosa que para esquecer a violência da escravidão, ordena que todos os
arquivos relativos à ela sejam queimados. Relembra o autor que a “real superação de traumas se resolve
estimulando-se a ‘lembrança’ e não o ‘esquecimento’. O esquecimento da instituição da escravidão no
Brasil e sua especificidade e singularidade em terras tropicais é para esse autor uma lacuna importante
que ajuda a compreender a sociabilidade aqui construída.
112

Florestan identifica um “desespero mudo” nesses sujeitos que


passam a se concentrar em favelas e na lavoura de subsistência porque não
houve interesse em utilizar essa mão de obra na indústria. Por outro lado, eles
também resistiram a serem enquadrados no trabalho industrial, para o qual não
tinham experiência e estabelecia modos de relação totalmente desconhecidos
para os libertos. Assim se configura os “serviços de negro”64, perigosos e
humilhantes, restando a quem não queria realizá-los, especialmente por ver
ressurgir as marcas da escravidão, a vagabundagem, os pequenos furtos e a
baixa prostituição, já que a alta prostituição era restrita às mulheres brancas.
As mulheres negras tinham ainda como “opção” os serviços domésticos, nos
quais não havia concorrência das europeias e representavam uma
possibilidade mais estável de trabalho.
Mas, para Jessé de Souza (2012, p.21), esse padrão analisado
por Florestan Fernandes para os libertos é também estendido aos dependentes
rurais brancos, que passam a compor um conjunto, a “gentinha” ou a “ralé”
nacional. Portanto o que configura a relação central com essas pessoas, que
vai se manter por todo o século passado e na atualidade, é a lógica do
abandono à sua própria sorte ou azar. Para ele, esse abandono não está
referido ao fato de serem ou não negros, mas à sua inutilidade para o sistema
produtivo.

(...) o abandono social e político, “consentido por toda a sociedade”,


de toda uma classe de indivíduos “precarizados” que se reproduz há
gerações enquanto tal. Essa classe social, que é sempre esquecida
enquanto uma classe com uma gênese e um destino comum, só é
percebida no debate público como um conjunto de indivíduos
carentes ou perigosos, tratados fragmentariamente por temas de
discussão superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o
problema real, tais como “violência”, “segurança pública”, “problema
da escola pública”, “carência de saúde pública”, “combate à fome”,
etc.

64
Para SANTOS (2003, p.163) havia uma dupla determinação nessa classificação de serviços de negro,
que na verdade não eram realizados exclusivamente por estes: Cabe ponderar que a desvalorização de
certas ocupações não ocorria apenas por causa do tipo de serviço considerado pesado, grosseiro, sujo e
mal remunerado. Possivelmente havia uma estreita relação entre as pessoas que costumeiramente os
exerciam, geralmente apontadas como brutas, feias, perigosas, ignorantes, possuindo uma maneira de
viver bárbara, expressa por suas vestimentas e comportamentos, assim como pela desqualificação
dessas atividades. Em outras palavras, se as pessoas eram julgadas pelas ocupações que possuíam, o
inverso também ocorria: as ocupações eram qualificadas pelas pessoas que as desempenhavam.
113

Ressalte-se que não se trata de um “exército industrial de


reserva” que poderia ser inserido em alterações sazonais da relação
emprego/desemprego, mas de trabalhadores que não têm qualificações
exigidas pelo mercado de trabalho, logo, sua possibilidade de inserção se dá
exclusivamente pela venda da mão-de-obra braçal, advinda da sua capacidade
muscular. É a venda do próprio corpo representado pelo trabalho doméstico
feminino, pelo trabalho braçal masculino na construção civil, na manutenção
predial, na catação de resíduos pelas ruas, entre outros, ou ainda a
prostituição. Trata-se portanto da venda e exploração do corpo e da força
muscular.
Por fim, a meritocracia que se assenta na separação entre
indivíduo e sociedade, logo, os processos sociais e as precondições que
asseguram e explicam o comportamento prático de cada indivíduo se tornam
invisíveis e “esquecidos”, o que permite em última instância que seja atribuída
à família a responsabilidade pelo fracasso ou sucesso dos seus membros. É
dela que se cobra a resistência ou a mobilização para o alcance de direitos ou
de condições para o seu próprio desenvolvimento.
Afirma ainda Jessé de Souza (2011) que, por não ser estendida
essa reflexão sobre toda a cadeia causal, a família é considerada causa central
das desigualdades. Assim, recai sobre ela a responsabilidade pela reprodução
da desigualdade, de injustiças e privilégios. A desigualdade fica assim reduzida
à capacidade das famílias de transmitirem valores e protegerem seus
membros, mas tanto uma questão quanto outra estão diretamente associadas
às condições concretas e experiências vividas, se a pessoa desenvolve um
trabalho aviltante e degradante que coloca a sua vida em risco e pelo qual se
sente envergonhada é difícil, senão impossível, afirmar o valor do trabalho para
o desenvolvimento humano e para o reconhecimento social, por exemplo. Mas
ao desconsiderar essas condições reais, o discurso que predomina é que a
educação não tem melhor qualidade porque os pais não educam seus filhos
em casa e não acompanham os deveres escolares; a saúde não tem sucesso
porque as mães são analfabetas e não adotam práticas adequadas de
cuidados, como por exemplo, o respeito ao calendário vacinal; as crianças
114

ficam sozinhas por longos períodos sem cuidados porque as mães são
negligentes, adolescentes cometem atos infracionais porque a família não lhes
ensinou valores como honestidade e respeito ao próximo, e por aí vão as
explicações às situações de conflito e violação como decorrentes da
incapacidade das famílias e não das condições concretas que possuem.
Portanto, ainda que a educação, seja também valorizada pelas
classes subalternas, sabe-se que esse é um investimento custoso e de longo
prazo para as famílias, que pode ser ameaçado ou suspenso a qualquer tempo
por circunstâncias as mais diversas. Desse modo, há uma dissociação entre o
projeto e as possibilidades reais de concretizá-lo. Os estudos de MARQUES
(2010, p.179) dão conta de que a trajetória educacional interrompida antes do
ensino universitário é uma questão crucial para compreender a trajetória de
socialização e a possibilidade de inserção no trabalho dos pobres. Isto porque
é no ambiente universitário que começa a construção de uma rede profissional.
A duração da vida escolar mais curta e a superposição com eventos da vida
adulta como o casamento e a gravidez são elementos a serem considerados
para analisar as relações e as oportunidades para jovens subalternizados.
Logo, uma condição para melhor compreender a complexidade dessa
subalternização é não separar o indivíduo e a sociedade, ou seja, não se pode
“esquecer” o pertencimento e as especificidades de classe.

O que é escondido pela ideologia do mérito é, portanto, o grande


segredo da dominação social moderna em todas as suas
manifestações e dimensões, que é o “caráter de classe” não do
mérito, mas das precondições sociais que permitem o mérito.
(SOUZA, 2011, p.121)

Uma concepção que naturaliza a dominação e atribui ao mérito


individual o sucesso ou fracasso é construída por diferentes mecanismos de
cunho ideológico que se associam a interesses da ordem econômica. Não se
pretende aqui avançar na análise da dominação ideológica e dos diferentes
instrumentos dos quais se vale para manter essa dominação. Trata-se mais de
dar visibilidade a essa trama para demonstrar sua permanência e prevalência
nas explicações sobre a realidade e na atenção aos subalternos. Para Jessé
115

de Souza, Mercado e Estado “criam” certo tipo de indivíduo e de


comportamento esperado e condenam todas as outras formas ao
esquecimento, assim, ressalta que há uma extraordinária influência dessas
instituições sobre a dimensão moral – estabelecendo o que é bom ou ruim, o
que tem valor e o que não tem – que é naturalizada porque não há reflexão
sobre essa concepção. (SOUZA, 2011, p.108-109).
Compreender como esses elementos se complementam e se
conformam na produção da subalternidade e dominação brasileira e na
explicação de suas causas é fundamental, o que exige também observar o tipo
de resposta construída para enfrentá-la e o grau de extensão do pacto coletivo
para proteger essas classes subalternizadas e subcidadãs (SOUZA, 2012;
KOWARICK, 2000a).

Como estender e consolidar os direitos de cidadania em uma


sociedade onde o sistema escravista sedimentou as relações
socioeconômicas até épocas tardias do século XIX, ao mesmo tempo
em que a população livre e pobre era tida e havida como vadia, carga
inútil para o trabalho disciplinado e regular verdadeira ralé que
perambulou por séculos às margens das dinâmicas produtivas
básicas da Colônia ou do Império? Na visão dos potentados da
época, essa massa de desclassificados constituía “uma outra
humanidade”, expressão aplicada à pobreza mineira do século XVIII
e, diz respeito ao processo de exclusão na acepção plena do termo: o
não reconhecimento do outro, tido como subalterno e inferior, diverso
e adverso. (KOWARICK, 2009, p.97)

A subalternização aqui tratada se refere à uma dimensão


existencial e moral. Trata-se de dominação e desqualificação que se expressa
no valor atribuído às pessoas65, ao seu modo de ser e de viver, na visão que se
tem sobre suas capacidades e possibilidades, mais do que se possuem
capacidade de consumir. Em que pese, naturalmente, que a incerteza da
possibilidade de sobrevivência é um agravante nessa situação. Logo, para o

65
Jessé de Souza afirma que é a separação entre alma e corpo, a primeira tomada como elemento
superior que deve guiar o corpo - morada de paixões animalescas e insaciáveis -, que justifica interpretar
a ralé brasileira como a classe do corpo por excelência não só porque é por ele que é vista como
instrumento de trabalho, mas também porque estão associadas a ausência de disciplina, autocontrole,
pensamento prospectivo. Assim, quem é só corpo não tem a mesma dimensão de humanidade que os
demais. (SOUZA, 2011, p. 398-399).
116

convívio social, essa dimensão é fundamental, porque é ela que vai definir as
relações e as formas de reconhecimento ou de desrespeito que delas derivam.

Os excluídos, como todos os homens, têm fome de dignidade. Eles


desejam ser reconhecidos como “gente”, como seres humanos.
Necessitam de afeto, de atenção, de sentir que realmente são únicos
e que, ao mesmo tempo, são iguais aos seus semelhantes, o que
lhes é negado nas relações sociais injustas e discriminadoras. Suas
necessidades e desejos não se esgotam na luta pela
sobrevivência biológica. O impulso natural de conservação da vida
exige a expansão de suas possibilidades, que é o fundamento do
processo de humanização. A alegria, a felicidade e a liberdade são
necessidades tão fundamentais quanto aquelas, classicamente,
conhecidas como básicas: alimentação, abrigo e reprodução.
(SAWAIA, 2003, p.55 – grifo meu)

Abordar a subalternidade considerando essa dimensão afetiva,


existencial e moral e reconhecer desejos e capacidades dos sujeitos vai na
contramão de uma tendência predominante na sociedade moderna. Jessé de
Souza, a partir da elaboração de Max Weber e Georg Simmel identifica como
uma “ambiguidade” que constitui a sociedade ocidental, expressa por uma
concepção de que a razão instrumental é a principal virtude humana. Assim, o
mundo fica reduzido tanto social quanto individualmente à linguagem do
dinheiro e do prestígio, ou seja, é a partir da inserção no trabalho e do tipo de
atividade produtiva que desenvolvem que as pessoas são mais ou menos
valorizadas. Para Simmel essa relação se estabelece porque o dinheiro tornou-
se um mediador universal, a busca central das pessoas, inclusive porque é
também por meio dele que é possível o desenvolvimento individual e
autônomo. Por essa lógica, todas as dimensões da vida ficam secundarizadas
e as necessidades afetivas são ignoradas, inclusive pelos próprios indivíduos.
O reconhecimento e a distinção social ocorrem, por decorrência, por meio do
exercício cotidiano de um trabalho útil ao progresso de toda a sociedade.

Como o dinheiro passa a ser o meio universal (o meio por excelência


na medida em que vai mediar todas as relações sociais), ganha-se a
“impressão” de que sua aquisição já é em si o fim e o objetivo de
todas as atividades humanas. (...) como as próprias necessidades e
desejos pessoais só são percebidos pelas pessoas por sua
expressão monetária, ocorre um extraordinário empobrecimento de
tudo aquilo que não é passível de ser exprimido monetariamente,
117

como sentimentos, afetos, valores, convicções morais, etc. (SOUZA,


2011, p. 393)

Assim uma dimensão fundamental que precisa ser explicitada e


compreendida tem a ver com a relação da sociedade com o trabalho e o valor
que ele possui para estabelecer o julgamento das pessoas. Na modernidade o
trabalho é elemento de reconhecimento social dos indivíduos, o valor e o
respeito destinado às pessoas dependem do que fazem e da importância
relativa de seu trabalho. A relação é imediata entre o reconhecimento social e o
tipo de trabalho desenvolvido, o que pressupõe também uma expectativa de
apresentação e comportamento pessoal compatível com o trabalho que se
realiza. Essa é uma questão que adquire particular relevância na análise da
sociedade brasileira, pois não se alcançou historicamente a universalização do
trabalho produtivo, legal e protegido para todas as classes sociais.
É fundamental destacar que no âmbito legal a sociedade
brasileira buscou expressar e reconhecer o direito à igualdade, reconheceu
como crime a discriminação das pessoas (Lei 7716/1998) e também
modalidades específicas de violência como a praticada contra mulheres (Lei
11340/2006). Todavia, como já é conhecido, não basta o reconhecimento legal
para que essas desigualdades sejam eliminadas, mas é fundamental que os
sujeitos sejam reconhecidos como tal, o que pressupõe favorecer a fala, dar
consequência ao que se diz e “redescrever” a realidade a partir dessa
narrativa, ou seja, é necessário compromisso com a implementação do direito.
Agrava, nesse caso, a violação praticada nas instituições públicas por sua
obrigação de zelar e executar a lei, o fato é que em sua vivência institucional
muitos desses sujeitos se sentem mais ameaçados e violentados do que
propriamente protegidos e valorizados.
Não temos formas de medição ou métrica que dê visibilidade à
violência cotidiana que o processo de dominação representa. É uma violência
suavizada a ponto de ser suportada, aceita e justificada até mesmo pelas suas
maiores vítimas, que lançam mão de recursos psíquicos defensivos para
suportar a condição que vivem. Ocorre nas mais diversas relações, nas formas
118

de ver e ser visto e é legitimada e por vezes reiterada, também na intervenção


de agentes institucionais.
Todavia ao explicar esse processo exclusivamente pela dimensão
material da pobreza, essas experiências de violência e desproteção são
ignoradas e, novamente banalizadas ou naturalizadas. O que ressalto é que
tratar da segurança de convívio numa política pública como uma dimensão de
segurança e de proteção requer compreender essas relações cotidianas,
desmistificar como elas se manifestam, reconhecer que elas estão presentes
na atenção dos serviços, nas relações sociais e no âmbito familiar. Entendo
que essa é uma condição essencial para que outras experiências e novas
formas de relação se estabeleçam para que a desproteção não seja reiterada,
mas substituída por relações de proteção. Incluir o tema na política supõe
pautar na agenda do Estado a responsabilidade pública pela reiterada restrição
ao convívio.
Para uma política pública que pretenda promover o
desenvolvimento humano e social, e que tem como um princípio o respeito à
dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços
de qualidade, essas questões não podem ser ignoradas. Afirmar princípios tem
consequência nas práticas sociais e institucionais. Pode-se ponderar que tal
realidade tão próxima dos serviços de assistência social, localizados em áreas
de vulnerabilidade territorial, já é conhecida, todavia como pretendo demonstrar
no próximo capítulo66, um olhar mais atento para as questões com as quais os
agentes dessa política estão envolvidos no cotidiano permite demonstrar que,
surpreendentemente, pouco se acumulou de conhecimento sobre essas
questões além de não haver uma priorização de informações a respeito que
permitam problematizar e refletir sobre o impacto dessas vivências, reconhecer
sua relevância e intensidade, o que significa assumir responsabilidades para
enfrenta-las e usar os recursos políticos/institucionais e profissionais para
combatê-las.

66
Se tomarmos por base a reflexão de Dirce Koga, é possível constatar que instalar serviços em
territórios de vulnerabilidade, não significa ter o eixo territorial como orientador da ação.
119

Mas assumir responsabilidades por questões dessa ordem parece


ainda algo muito distante. Por vezes, as explicações para a subordinação são
atribuídas a uma elite insensível ou mesmo a um Estado corrupto (SOUZA,
2011). Todavia, ainda que a desigualdade abissal tenha gerado mundos
absolutamente distintos, tornando a elite ignorante a essas situações, e ainda
que as denúncias constantes de corrupção estatal demonstrem desvios
significativos de recursos públicos, essas “entidades” distantes e abstratas não
explicam suficientemente a expressão da desigualdade brasileira. Ela se
assenta na maneira como alguns são vistos e reduzidos à sua dimensão física
e corpórea, como se sua dimensão moral e espiritual não existisse, o que gera
sofrimento e sensação de desprestígio e desvalor. Transferir a
responsabilidade por essas relações para “outros” sujeitos abstratos ou
distantes só fortalece a incapacidade de enfrentar essas situações e produzir
respostas pautadas na perspectiva de desnaturalização da subordinação. E
exige, como vimos, reconhecer e valorizar o sofrimento por ela gerado.

O sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e


da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela
maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a
face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são
determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-
político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes
em cada época histórica, especialmente a dor que surge da
situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem
valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da
vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta
socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção
material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço
público e de expressar desejo e afeto. (SAWAIA, 2004, p.105 – grifo
meu)

Ao tomar como verdadeira a afirmativa de que é no cotidiano que


as situações de violação e de humilhação se manifestam, é também nesse
âmbito que elas precisam ser enfrentadas. Portanto, não se está aqui falando
de um Estado abstrato distante das relações das pessoas, mas daquele que
comparece ao se manifestar por meio da ação dos seus agentes atuando nos
serviços públicos, que atendem a população, que faz escolhas (conscientes ou
não) sobre quem e como será atendido, que define responsabilidades e
120

contrapartidas para acessar direitos, sabendo, por vezes, que as precondições


para cumprir esses pactos não estão dadas e não serão alcançadas nos
prazos firmados.
O Estado aqui também se materializa por sua intervenção na vida,
nos locais de moradia e trabalho das pessoas, quer como agente de repressão
ou como responsável por proteção. Portanto, o diálogo e a reflexão se
estabelecem sobre formas de relação que, embora tenham um elevado grau de
espontaneidade e fluidez são automatizadas sem reflexão sobre o que é dito e
por vezes perguntado, são construídas por pessoas vivas e em movimento. É
por isso mesmo que podem ser alteradas e para tanto é fundamental
compreendê-las.

2.1 Barreiras institucionais: a produção de subalternidade e segregação


na atenção em serviços

Alguns estudiosos registram o autoritarismo institucional como


uma forma de manifestação de violência e o classificam como uma modalidade
das mais perversas, justamente por ser executada por instituições que
deveriam oferecer proteção e acolhimento. O conceito aqui utilizado é o
adotado por Faleiros e Faleiros (2008) e tem uma interpretação alargada de
práticas que se configuram como violência. Para eles, a violência institucional
se manifesta por agressões físicas, psicológicas ou sexuais. Para além dessas
manifestações mais evidentes da violência, embora de difícil apuração, outras
questões como a ausência de estrutura de pessoal e material também são
modalidades de violência ao resultarem no não atendimento ou no atendimento
precário das demandas dos cidadãos usuários dos serviços.
Mas é na análise de como o método e os procedimentos de
trabalho podem se configurar em formas de subordinação que quero me deter,
pois para esses autores negligência profissional, recusa da informação,
lentidão deliberada no atendimento, excesso de exigências burocráticas,
desprezo, descaso, desinteresse e omissão também são formas de
121

manifestação de violência e violação de direito que geram graves danos físicos


e psicológicos.
A linha aqui adotada é a de acentuar que os agentes públicos são
responsáveis por definir procedimentos e ritos no trato da população, mas
como há uma notável hierarquia e relação de poder, especialmente fortalecida
pela dependência dos cidadãos em relação aos serviços, isso não é apurado,
denunciado e por vezes tampouco problematizado no diálogo sobre os
serviços. Observa-se inclusive um desconforto ao tratar da questão das
responsabilidades dos agentes, tanto por eles próprios quanto ao dialogar com
usuários, a precariedade das condições de trabalho traduzidas por instalações
inadequadas, salários baixos e insuficiência de material, dentre outras
questões, predomina no debate sobre o cotidiano institucional, dificultando que
as situações de violação sejam explicitadas, debatidas e reconhecidas como
tal. De seu lado, há ainda uma forte predominância – por parte do cidadão
usuário e até dos profissionais que atuam nos serviços – de uma visão de que
a atenção é uma dádiva do Estado e, portanto, ao que é dado cabe somente o
agradecimento não havendo porque criticar ou exigir outra atenção.
É possível afirmar que há uma escala de aceitação das formas de
tratamento da população, de modo que a violência física é facilmente
condenável, já a violência verbal, a omissão, o descaso, o sarcasmo, a ironia
geram menos julgamentos condenatórios e encontram mais facilmente
justificativas e explicações que isentam os agentes por tais atitudes. Mas, para
a pesquisadora Alba Zaluar (2011), as práticas autoritárias que desconsideram
o outro, que calam os subalternos e que por meio da linguagem e da norma
exercem sobre eles poder, também se configuram como manifestações de
desrespeito e de agressão.

Do ponto de vista institucional, a violência tem sido definida como a


afirmação de força física, por imposição legal de armas, ou jurídica,
por imposição da norma que não é discutida nem modificada aberta e
democraticamente, o que lhe confere um caráter de normatização,
uma expressão excessiva ou autoritária de poder que impede o
reconhecimento do outro. (ZALUAR, 2011, p.1)
122

Estudos sobre a atenção em políticas sociais públicas estão


repletos de relatos de práticas autoritárias e desrespeitosas exercidas por
profissionais. Quero destacar aqui os registros que afirmam humilhações e
tratamento desrespeitoso, justamente por se constituírem em atitudes de
menor visibilidade e de certa forma de maior naturalização no trato dos
subalternos.
Para ilustrar a incidência dessa questão, destaco pesquisa
realizada pela Fundação Perseu Abramo, no ano de 2010, sobre o atendimento
a mulheres durante o parto. Os resultados da pesquisa apontam que 15% das
mulheres que tiveram seus filhos por meio de parto natural sofreram algum
desrespeito ou maltrato; quando estimuladas a identificar situações de violência
institucional esse percentual sobe para 25%, o que indica que algumas
situações não são consideradas violência ou maltrato, interpretação que pode
estar vinculada à naturalização desse tipo de tratamento ou pode ser
decorrente da frequência com que ocorrem. As situações de violência mais
citadas na pesquisa foram:

exame de toque doloroso (10%), negativa para alívio da dor (10%),


não explicação para procedimentos adotados (9%), gritos de
profissionais ao ser atendida (9%), negativa de atendimento (8%) e
xingamentos ou humilhações (7%). (Fundação Perseu Abramo,
2010).

Quando instigadas a reproduzirem as formas de tratamento e as


falas que lhes são dirigidas pelos profissionais, 23% das mulheres pesquisadas
responderam que já ouviram expressões como:

“não chora que ano que vem você está aqui de novo” (15%);
“na hora de fazer não chorou, não chamou a mamãe” (14%);
“se gritar eu paro e não vou te atender” (6%);
“se ficar gritando vai fazer mal pro neném, ele vai nascer surdo” (5%).

Essa mesma pesquisa registrou o atendimento recebido por


mulheres que provocaram aborto e, nesses casos, as expressões são mais
agressivas. Foram narradas situações nas quais profissionais mostraram
pedaços de feto à paciente, afirmando algo como “olha o que você fez”. Ao
123

menos 5% das mulheres pesquisadas e que provocaram aborto, relatam terem


vivido esse tipo de constrangimento.
Ao analisar expressões de subalternização e segregação no
sistema de saúde (LUNA, 2011) afirma que a forma de organização do sistema
propicia a instauração de um padrão de “má-fé institucional”, que a autora
identifica por meio de dois elementos principais: a abdicação de realizar ações
que fazem parte de sua competência e a exposição de pacientes e
profissionais a constantes conflitos de classe. Assim, ao deixar de oferecer
atenção de qualidade, a saúde produz e reproduz subalternidades. É o caso,
por exemplo, da atenção dedicada às patologias tidas como “doença de pobre”,
caso da malária e tuberculose. Para essa autora o “SUS real”, ao se distanciar
do “SUS constitucional”, reitera a desigualdade que retira da ralé o controle o
poder sobre sua própria vida. (LUNA, 2011, p.327)
Antes de continuar explorando o argumento da autora, cabe
destacar que estou ressaltando o estudo no campo da saúde para, em seguida,
fazer o mesmo em relação à educação com o objetivo de ilustrar e exemplificar
como as práticas autoritárias se manifestam no cotidiano institucional. Tal
escolha se deu porque essas áreas têm maior profusão de pesquisas que
apontam suas relações internas, o que torna mais acessível mencionar esses
estudos. No entanto, tais padrões também estão presentes na política de
assistência social; são emblemáticas a atenção voltada à população em
situação de rua e os serviços para adolescentes autores de ato infracional.
O interesse aqui é apontar, ainda que brevemente, situações que
afetam as pessoas e se configuram como desproteção no campo relacional
para destacar que também devem compor uma leitura das violações do
convívio como segurança. Logo, devem se constituir em campo de
conhecimento a ser aprofundado no âmbito da assistência social, para
estabelecer na política pública atenções que se contraponham a esse tipo de
vivência. Na parte inicial desse item, ao retomar o processo histórico de
constituição dessa classe de invisíveis, o objetivo foi contribuir para perceber
permanências de valores e formas de atenção a essa classe, de modo a se
configurar uma relação que tem dimensão estrutural e é voltada a um amplo
124

coletivo de pessoas e não a esse ou a aquele indivíduo excepcionalmente.


Posteriormente, o objetivo é acentuar que a forma pela qual são tratados em
diferentes espaços e instituições demonstram a produção cotidiana de um
“lugar no mundo”.

Do ponto de vista da exclusão e da subalternidade, a experiência da


pobreza constrói referências e define “um lugar no mundo”, onde a
ausência de poder de mando e decisão, a privação de bens materiais
e do próprio conhecimento dos processos sociais que explicam essa
condição ocorre simultaneamente a práticas de resistência e luta.
(YAZBEK, 1996, p.63)

Trata-se de afirmar que nessa forma de proceder e de entregar


seus serviços e atenções, políticas sociais não são instrumento de proteção e
garantia de direitos, como declarado em seu arcabouço jurídico e institucional,
mas se traduzem em um instrumento de reprodução e produção de
subalternidade. São, portanto, expressão de violação de direitos.
Essa produção de subalternidade e de dominação é mais
diretamente observável no discurso dos usuários dos serviços. Isto se reflete
nos estudos da médica Margarida Barreto (2006, p.38), que em sua pesquisa
de mestrado dialogou com centenas de trabalhadores afastados por problemas
de saúde e destacou relatos nos quais a humilhação estava presente não só
por chefias imediatas nos locais de trabalho, pelos departamentos médicos das
empresas, mas também por profissionais dos serviços de saúde e da
previdência. O trabalho é inundado de depoimentos que vão demonstrando
como humilhações nas relações com médicos geram sobrecarga e sofrimento,
muitas vezes mais difíceis de serem suportadas do que a própria doença.
Assim, ao perder a saúde perde-se também a dignidade. Além disso, doenças
decorrentes da condição de trabalho são muitas vezes interpretadas como
descuido, “corpo mole” ou preguiça. Afirma a médica que

profissionais que sequer os/as examinam ou escutam suas queixas


concluem pela inexistência de doença ou designam seus males de
formas arbitrárias e pejorativas: é nervosismo, “finginite”, doença de
velhos, são hipocondríacos, histéricos, simuladores(...)
125

Para melhor explicitar a materialização dessa relação, seguem


dois registros do tratamento que desprestigia, desqualifica e desumaniza o
outro:

Uma vez eu fui ao médico do INPS e ele nem me examinou e deu


alta. Eu disse: mais doutor... Ele disse... O que é? Você está de unha
pintada... de batom e acha que tá doente? Quem tá doente, não pinta
as unhas. (Mulher negra, hérnia de disco, ind. Plástica) (BARRETO,
2006, p.173)
Eu procurei o médico do INPS e ele disse pra mim: “O que você veio
fazer aqui? Se nem a firma sua atesta que você está doente, agora
você quer dizer que está doente? Você não sabe ler? Está escrito
aqui nesse papel: APTA”. Ele disse isso bem alto e faltou letra por
letra. E disse: “Saia da minha sala”. E chamou outra. Que humilhação
eu passei! Aquilo me deu vontade de desistir de tudo. Aí eu pensei: tô
doente e não tô maluca. Chorei muito! (Mulher, parda, asma
ocupacional, ind. Cosmética) (Barreto, 2006, p.173)

Assim, para a autora, esses relatos permitem afirmar uma


intencionalidade em desqualificar, desmoralizar e demarcar um “autoritarismo
relacional”, desencadeador de um ambiente de “terror psicológico”. Portanto,
discutir a atenção a esses cidadãos adoecidos pela condição de trabalho que
se agrava e se potencializa pela forma com a qual são tratados, exige
considerar as emoções e a afetividade ao refletir-se e debater-se sobre
cidadania, ética, dignidade e poder.

Perguntar por sofrimento e por felicidade no estudo da exclusão é


superar a concepção de que a preocupação do pobre é unicamente a
sobrevivência e que não tem justificativa trabalhar a emoção quando
se passa fome. Epistemologicamente, significa colocar no centro das
reflexões sobre exclusão, a ideia de humanidade e como temática o
sujeito e a maneira como se relaciona com o social (família, trabalho,
lazer e sociedade), de forma que, ao falar de exclusão, fala-se de
desejo, temporalidade e de afetividade, ao mesmo tempo que de
poder, de economia e de direitos sociais. (SAWAIA, 2004, p.98).

Não vou enveredar e aprofundar a discussão sobre processos de


adoecimento no trabalho e tampouco sobre a atenção na política de saúde.
Ressalto que meu objetivo é “tão somente” acentuar que as formas de
relacionamento são produtoras de subordinação e não só decorrentes delas.
Logo, é vital que esses processos sejam conhecidos e reconhecidos para se
126

estabelecer relações que promovam segurança, proteção e reconhecimento


dos sujeitos.
Uma prática bastante comum e que traduz a expressão do
autoritarismo relacional nas instituições diz respeito a não informar as pessoas
sobre as decisões tomadas que impactam em sua vida, o tratamento que está
sendo ministrado e até mesmo sobre os locais para os quais estão sendo
levadas. A ausência de informação repercute como uma desqualificação das
pessoas, que são tratadas como “coisas” sem vontades, aspirações ou
desejos, logo, são destituídas do estatuto de pessoas. No diálogo com usuários
de serviços é possível apurar esse tipo de prática que parece ser quase usual.
Negar a informação reafirma uma hierarquia nos serviços pela
qual o domínio da vida do outro está sob controle dos profissionais. Aos
usuários cabe apostar que “quem estudou pra isso” vai adotar os melhores
procedimentos e tomar as decisões mais acertadas. Evocar o conhecimento
acadêmico para justificar práticas autoritárias também não é incomum. Assim,
a quem ignora esse conhecimento resta somente a resignação:

Minha filha, já morreu, eu não tenho mais que explicar nada não.
(Resposta de um médico a Aline estagiária de Serviço Social que lhe
solicitava para explicar à família de uma paciente a razão de seu
falecimento). LUNA, 2011, p.319.

Os estudos sobre relações no âmbito escolar também apontam


como a escola pode ser o primeiro lugar na qual a sensação de fracasso e de
inadequação é intensamente sofrida pelos subalternos. Relatos de medo,
vergonha e frustração não são incomuns, o que denota uma possível leitura de
que a escola – pública especialmente – está longe do real, idealizando seus
alunos e suas famílias e se tornando, muitas vezes, o principal obstáculo para
o desenvolvimento educacional de crianças e adolescentes. Para Zaluar (2011)
as relações na escola podem ser categorizadas como expressão de violência
simbólica que “se exerce também pelo poder das palavras que negam,
oprimem ou destroem psicologicamente o outro”.
127

As práticas de autoritarismo relacional na escola podem ocorrer


por meio de agressores externos, por conflitos entre os pares, agressões a
professores e pelos docentes. Sua gravidade se instala ainda pelo fato de se
voltar a crianças e adolescentes, o que pode representar marcas importantes
na sociabilidade, tanto no que se refere à autoimagem como na sua
capacidade de conviver e se relacionar com grupos. Essa marca na
sociabilidade e na autorrepresentação foi observada por LEÃO (2006, p.39) ao
pesquisar a trajetória escolar de jovens em Belo Horizonte. Ele observou que
idas e vindas, distorção idade-série e abandono da escola eram questões
frequentes na experiência educacional de jovens frequentadores de um projeto
social. Para um dos sujeitos pesquisados, ele afirma:

Ronie tinha apenas a 3ª série do ensino fundamental. Depois de


sucessivas reprovações, abandonou a escola. A irmã mais velha
concluiu a 3ª série do ensino médio e trabalhava como estagiária no
posto de saúde do bairro. A irmã mais nova, com 17 anos, estava na
2ª série do ensino médio e também trabalhava como estagiária na
secretaria da escola municipal onde estudava. Assim, Ronie
carregava o estigma do fracasso: não estudou e não conseguia um
emprego. De personalidade tímida, Ronie mostrava-se mais
retraído ainda quando falava da escola e da possibilidade de
voltar a estudar. (grifo meu)

Nessa mesma pesquisa, é indagado dos jovens os motivos de


abandonarem os estudos. Embora reconheçam dificuldades de aprendizagem
em algumas disciplinas esse não é o principal motivo alegado para não mais
frequentar a escola mas questões como o ambiente escolar e atritos com
profissionais. Os jovens apontaram sensação de desânimo e descrença em
relação à escola, além de experiências de injustiça e humilhação decorrentes
de práticas autoritárias de professores e diretores.

A única coisa de que eu me lembro é que no último ano que estudei


naquele colégio a aula que mais detestei foi a de literatura. Porque a
professora me botava abaixo de cachorro. Aí eu peguei raiva daquela
matéria e não gosto dela até hoje. Da professora e da matéria. Falava
que eu não tinha capacidade, que eu era bobo, que eu não devia
estar estudando. Altas coisas. Falava muita coisa sobre mim. E eu
era bobinho na época e eu aceitava tudo. Ficava só calado. Deixava
tudo na calada. Aí, depois disso eu não quis nem saber mais. (Luís
Alberto – LEÃO, 2006, p.42)
128

A experiência desse e de outros pesquisadores sobre a relação


entre escola e subalternidade aponta que há necessidade de analisar essa
instituição para além dos seus limites e muros. Observa-se que nela são
reproduzidas situações de abandono, discriminação, desqualificação e
culpabilização dos sujeitos, pois, “as relações corriqueiras entre os indivíduos
dentro da instituição já são previamente determinadas pela posição desses
indivíduos na hierarquia social (FREITAS, 2011, p.299)”. Experiências de
exposição pública ante colegas, demais docentes e familiares não são raras e
marcam sujeitos que passam a acreditar que realmente são incapazes, pouco
inteligentes e que a escola foi feita para outras pessoas e não para si. É o que
afirma Anderson, entrevistado por FREITAS (2011), cujo depoimento foi
inserido anteriormente. Ele se considera incapaz de estudar, afirma que não
tem as características necessárias para um bom desempenho escolar, mas
afirma, tristemente e de forma constrangida, que seu maior desejo é ser capaz
de aprender, relembro o depoimento para recuperar suas expressões:

Minha memória é muito ruim, eu tenho a cabeça muito ruim para


guardar as coisa. Pra cálculos também eu tenho a cabeça muito
ruim... Eu acho que eu tenho mesmo. (...) O meu sonho é... Eu
queria...Se eu fosse pedir alguma coisa para mim ter, se eu tivesse
um sonho para mim ter é que eu tivesse do nada um estalo e eu [ele
estala os dedos]... Ficasse finalmente bom pra estudar. (Anderson
entrevistado por FREITAS (2011) ao descrever momentos de sua
trajetória escolar)

Para FREITAS (2011) é possível afirmar que há um fracasso em


massa da ralé, que passa a ser culpabilizada individualmente. Ele afirma que é
isso que configura a não visualização de classe, pois a escola exige uma
prontidão que os alunos não tem. Assim, deixa-os permanecer por longos
períodos já sabendo de antemão que não conseguirão o desempenho
necessário para a aprendizagem. Também de antemão, já se sabe qual será a
explicação utilizada que associa o desinteresse, a falta de motivação dos
alunos às condições precárias de salário e jornada de trabalho dos docentes.
Nessa equação, a permanência na escola é quase uma formalidade que pouca
diferença representa para aqueles que não mais a frequentam, mas que se
129

traduz em intenso sofrimento para os que fracassam, pois estes sabem que
não serão dignos do reconhecimento e da valorização social destinados aos
que possuem maior escolaridade. Os pesquisadores citados (FREITAS e
LEÃO) entrevistaram esses jovens e descrevem em seus relatos posturas
envergonhadas, olhares baixos, falas intimidadas que traduzem a frustração
que muitas vezes é estendida aos seus familiares.
A reflexão de DUBET (1998) para a realidade francesa cria uma
tipologia que sintetiza a experiência de diferentes alunos com a escola e o
impacto que essa vivência tem em suas trajetórias:

Conhecemos todos estes alunos que se colocam como parênteses,


que desenvolvem condutas ritualísticas, sem verdadeiramente jogar o
jogo. Mas existem também aqueles que não podem jamais construir
sua experiência escolar; que aderem com frequência aos julgamentos
escolares que os invalidam e os conduzem a perceber, a si mesmos,
como incapazes. Neste caso, a escola não forma indivíduos, ela
os destrói. Enfim, alguns resistem aos julgamentos escolares,
querem escapar e salvar sua dignidade, reagir ao que percebem
como uma violência, retornando-a contra a escola. Eles se subjetivam
contra a escola. (Dubet,1998, p.31 apud LEÃO, 2006, p.37- grifo
meu)

Axel Honneth, ao discutir o sentimento de vergonha, destaca que


ela representa um rebaixamento do sentimento do próprio valor. O indivíduo
envergonhado sabe-se como alguém de valor social menor do que havia
suposto previamente, o que desencadeia opressão e frustração, pois ele
próprio não é capaz de atender às expectativas que estabeleceu para si.
(HONNETH, 2011, p.223-224). Este sentimento de isolamento e de redução
frente a outros do seu próprio grupo de relações afeta gravemente a
compreensão dos processos de injustiça vividos e retardam, quando não
impedem, a compreensão dessas injustiças para a elas resistir e contra elas
lutar.
Abordar mecanismos de desproteção em serviços que deveriam
proteger, valorizar e reconhecer cidadãos usuários é necessário para dar
visibilidade ao que é naturalizado e considerado, por vezes, característica
isolada desse ou daquele profissional. Os pactos corporativos e os silêncios
frente a práticas segregadoras faz crer que a atitude não é tão isolada e há
130

pouca preocupação com os sentimentos produzidos nos sujeitos que vivem tais
humilhações e os impactos em sua identidade e imagem.
Reafirmo que não houve destaque para a política de assistência
social simplesmente porque há maior profusão de pesquisas com usuários no
âmbito da educação e da saúde. Todavia, o diálogo com profissionais e a
associação entre essas práticas e a de outras políticas permite afirmar que
também nesse âmbito são registradas práticas autoritárias e violentas que
reduzem, subordinam e oprimem os cidadãos, o que exige um olhar mais
atento para o cotidiano institucional de modo a não naturalizar e banalizar
essas práticas.

2.2 Vulnerabilidade civil urbana: o território vivido como produtor de


estigma e apartação

Detenhamo-nos, com efeito, nesta simples constatação: se o


quotidiano é o que se passa quando nada se passa – na vida que
escorre, em efervescência invisível – , é porque “o que se passa” tem
um significado ambíguo próprio do que subitamente se instala na
vida, do que nela irrompe como novidade ( “o que se passou?”), mas
também do que nela flui ou desliza (o que se passa...) numa
transitoriedade que não deixa grandes marcas de visibilidade. (PAIS,
1993, p.108)

Na mesma linha de recuperação de estudos que priorizam o olhar


do sujeito sobre a situação que vive, as reflexões a seguir estão afetas à
dimensão relacional e decorrente inclusive da dinâmica territorial. Os estudos
sobre a produção e formas de ocupação do espaço urbano apontam a
intensificação da concentração populacional nas franjas das grandes cidades,
adensando e avolumando territórios que passam a compor outras cidades e as
regiões metropolitanas. A densidade populacional e as dinâmicas
desencadeadas pelo processo de urbanização desenham um cotidiano que é
marcado por relações contraditórias de conflito, disputa, mas ao mesmo tempo
de proteção, apoios e solidariedades.
A população brasileira está concentrada nas grandes cidades,
mas a vivência em territórios rurais distantes e isolados também define
sociabilidades e formas de relacionamento que são reduzidas em número, e
131

por vezes, em intensidade temporal. O fato é que o lugar no qual se vive é fator
a ser considerado quando se discute a dimensão relacional e as proteções e
desproteções dela decorrentes. Todavia, é fundamental compreender que não
se trata de uma situação estática que possa ser tipificada para cada diferente
território mas de dinâmicas que se constroem e descontroem na trajetória dos
sujeitos nessas localidades. Desse modo, eventos de diferentes intensidades e
gradações como a chegada ou a saída de parentes do bairro67, o rompimento
de relações com um amigo ou parente, a substituição de uma chefia do tráfico,
o envolvimento de um membro da família com práticas ilegais ou até mesmo o
avanço da faixa etária alteram totalmente a rede de relações.

As relações, portanto, fazem parte do conjunto de elementos que


constrói as condições de vida dos indivíduos em sentido
multidimensional, produzidas de forma paulatina, tanto na
constituição dos seus padrões de relação, quanto na aquisição de
grande parte dos seus atributos. O resultado desses processos se
acumula no tempo ao longo das trajetórias de vida e constitui os
indivíduos como são em um dado momento. Na produção de tais
processos, combinam-se estratégias norteadas por várias
racionalidades, acaso, decisões de outros indivíduos e
constrangimentos relacionais provocados por processos mais amplos
como a migração, a mudança de endereço, a frequência a certos
locais e determinadas práticas, entre outros. (MARQUES, 2010,
p.188)

Recupero aqui, muito brevemente, algumas ênfases presentes em


estudos territoriais naquilo que eles ajudam a entender e explicitar as formas
de viver e de conviver nessas distintas, dinâmicas e heterogêneas localidades.
Desde logo é importante destacar que estou apontando especificidades das
relações que se dão em diferentes instituições e grupos. No entanto, essas

67
No estudo de MARQUES dois processos são especialmente importantes para a constituição das redes.
O primeiro deles é justamente a saída ou entrada de pessoas em função de mudanças geográficas da
residência. Esse fator é especialmente importante nas relações entre os pobres, pois os custos
financeiros e de tempo para deslocamentos tornam oneroso manter vínculos com pessoas distantes,
especialmente se essas mudanças se associam a locais diferenciados estruturalmente em relação ao
bairro de origem, visitar um parente ou amigo que se mudou para um bairro melhor pode também ser
constrangedor. Como consequência desse custo observou que uma parcela significativa das redes de
indivíduos pobres é abandonada periodicamente, ou seja, as relações são mais instáveis, menores e
menos duradouras, o que também interfere na questão da confiança e na possibilidade de contar com
apoio. Outro motivo de alteração da rede pode estar associado a conflitos e brigas ou ainda pela dinâmica
de organizações ou instituições em que se está inserido, por exemplo, mudança de turno na escola ou
alteração de local de trabalho. (MARQUES, 2010, p.175-177)
132

distintas vivências se sobrepõem, complementam e intensificam


simultaneamente, por vezes na trajetória dos mesmos sujeitos. Ressalto, ainda,
que não estou considerando estudos centrados em aspectos econômicos da
conformação do território, mas essencialmente as formas de relacionamento
que decorrem de morar em alguns locais da cidade e os preconceitos em
relação a essas localidades transferidos automaticamente para seus
moradores, ainda que a dimensão econômica seja o fator determinante da
“escolha” de onde morar68.

Quem mora aqui não é bem-visto. Na última empresa em que


trabalhei, só depois de dois anos souberam que era favelada. Não
desconfiaram porque sou branca, loura e tenho olhos azuis. Tenho
conhecidos que moravam aqui e agora não querem que os filhos
morem na favela. No começo, não prestava atenção a essa conversa,
mas faz três anos teve uma discussão na firma. Sabe do que me
chamaram? Me chamaram de favelada. (Isaura em Kowarick, 2009,
p.253)

A perspectiva do sujeito, sua leitura da cidade, os sentimentos


que decorrem do fato de por vezes morar em áreas distantes e violentas são
foco nos estudos escolhidos para o diálogo nessa reflexão, com destaque para
TELLES (2006 e 2010); KOWARICK (2009) e MARQUES (2010). Importa
conhecer não os indicadores territoriais, em que pese sua relevância e avanço
cada vez maior para mostrar as distâncias econômicas e sociais intracidades,
mas o território vivido ou usado por sujeitos vivos69 e em movimento. Esse é
um conhecimento que KOGA e RAMOS advogam necessário para pensar a
ação e a gestão pública.

A perspectiva do território usado se coloca como emblemático nessa


busca por compreender a articulação entre território e condições de
vida, pois remete aos aspectos relacionais e, portanto, dinâmicos que

68
Em seu trabalho KOWARICK (2009, p. 290-291) aponta as vantagens e desvantagens de três tipos de
moradia: cortiços, favelas e autoconstrução em loteamentos periféricos, que são “as três principais formas
de alojar a população pobre” e afirma que todas essas são opções espoliativas com muitas
desvantagens, mas as possíveis em virtude da inexistência de políticas públicas habitacionais
universalizadas. (p. 290-291).
69
Para TELLES o território não é um objeto do qual se possa fazer o inventário das características,
variáveis e determinações. “Não se confunde com o perímetro espacial dos locais de moradia, tampouco
se reduz às “comunidades” de referência. É sobretudo um plano de referência que permite colocar a
cidade em perspectiva”. (TELLES, 2006, p.16).
133

perpassam a constituição do território, incluindo aqui as relações de


poder. (KOGA e RAMOS, 2011, p.357)

Uma das questões essenciais para compreender a sociabilidade


urbana contemporânea diz respeito à elevada incidência de situações de
violência. Quase sempre associada aos pobres, a violência provoca medo,
insegurança, mas também alimenta preconceitos, apartações e covardias.
Assim, a cor da pele, a forma de vestir-se, a idade e o sexo faz alguns sujeitos,
especialmente adolescentes negros, serem olhados como potencialmente
violentos e ameaçadores, sempre suspeitos de que cometerão algum ato
violento. Por isso mesmo, atitudes violentas impetradas contra eles nem
sempre são vistas como inadequadas e injustas, mas como medidas
preventivas e necessárias.

Esses “elementos” são parte da comunidade política nacional apenas


nominalmente. Na prática, ignoram seus direitos civis ou os têm
sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo,
pela polícia. Não se sentem protegidos pela sociedade e pelas leis.
Receiam o contato com agentes da lei, pois a experiência lhes
ensinou que ele quase sempre resulta em prejuízo próprio.
(CARVALHO, 2001, p.217)

Para Kowarick (2009, p.92) a violência acentua um imaginário


social que associa a vivência em moradias precárias e o aumento da pobreza à
criminalidade. Assim, moradores dessas localidades são vistos como
ameaçadores, o que favorece e estimula uma mentalidade exterminatória.
Logo, ser morador de cortiços ou favelas é ser sempre visto como um potencial
agressor ao mesmo tempo em que se é também vítima constante de atos
violentos, especialmente quando se pretende livremente circular pela cidade, o
que indica, pelo uso exemplar da força, que é desejável que cada um
permaneça em seu lugar. Para Kowarick, é essa equação que alimenta um
princípio de exclusão social que se expressa na negação do direito a ter
direitos e que sustentam “múltiplas práticas sociais de caráter defensivo,
repulsivo ou repressivo”.
De outro lado, a vivência nas proximidades de situações de
violência, especialmente associadas ao tráfico de drogas, exige dos moradores
134

distintas estratégias para não serem confundidos e para também se


protegerem. Essa proximidade cotidiana exige o estabelecimento de hábitos e
rotinas que têm por objetivo evitar presenciar – testemunhas de atos violentos
também se colocam em condição de risco, o que exige por vezes a mudança
de local de moradia para não voltar a se confrontar com o autor da violência – e
se expor à violência. Assim, aponta ainda Kowarick que, embora se perceba a
violência como algo rotineiro, não significa que as pessoas se acostumaram
com essas situações e que isso seja um acontecimento banal. Ao contrário, as
pessoas têm medo, sentem-se vulneráveis, se obrigam a calar face à violência
e demonstram indignação frente a injustiças.
O registro fotográfico dos espaços pesquisados no trabalho de
Lucio Kowarick está repleto de grades e altos portões70, por vezes mais
resistentes do que a própria moradia. Registra-se portanto a tentativa de
isolamento e de separação das pessoas nesses espaços apertados e
opressores, o que interfere não só nas formas de convívio, mas também nas
possibilidades de apoio e de vínculos de proteção. A essas estratégias
Kowarick denomina “sociabilidade do distanciamento”: “As pessoas perderam a
confiança para se conhecer. Antes convidava-se o vizinho para ser padrinho,
hoje é cada um para si, a gente tem receio, tem muita gente envolvida com
droga”. (Morador da Favela do Jaguaré/SP - KOWARICK, 2009, p.272)
Assim, é importante destacar que proximidade ou contiguidade
espacial não significa necessariamente conexão social ou sentimento de
comunidade. O estudo de MARQUES (2010) demonstra que nem sempre viver
em determinadas localidades está associado a sentimentos de pertencimento,
reconhecimento e valorização do lugar.
Destacar essa especificidade, para evitar análises ingênuas de
que a vivência em situações precárias está associada a sentimentos de
solidariedade e comunidade, não significa desconsiderar a importância das

70
Em pesquisa realizada pelo NEPSAS-PUCSP em 12 diferentes territórios da cidade de São Paulo sob
coordenação da profa. Aldaíza Sposati, da qual participei, foi possível apurar que de 510 famílias
entrevistadas somente 7% não tinha algum mecanismo de segurança em sua moradia, sendo muros e
portões o tipo de mecanismo mais comumente utilizado e presente em 62,4% das moradias pesquisadas.
(SPOSATI, 2011)
135

redes relacionais para assegurar a sobrevivência em situações adversas. Ao


contrário, a perspectiva aqui é demonstrar que há uma diversidade de relações
que se estabelecem em cada espaço e não raramente com as mesmas
pessoas, de maneira que por vezes é o mesmo traficante de quem se tem
medo que socorre a mulher grávida na hora do parto. Depois dessa ocorrência,
os cuidados imediatos após o parto serão comumente dispendidos por pessoas
de confiança e proximidade, sejam elas parentes ou vizinhos.
Entre vizinhos se estabelecem relações de cooperação, confiança
e proteção que asseguram socorro em caso de acidentes e doenças, ajuda na
migração para colocação em emprego, cuidados de crianças pequenas e até
acesso e informação sobre funcionamento de políticas públicas, cuja linguagem
complexa e atenção burocratizada exigem, por vezes, interpretação e até
acompanhamento à unidade para assegurar atendimento. Portanto, à distância
e utilizando-se de tipologias externas, não é possível compreender a dinâmica
relacional e marcadamente contraditória dos indivíduos nos territórios vividos,
tampouco com quem contam e para que contam, quando demandam proteção.
Estão presentes também nos territórios e alteram as relações ali
estabelecidas os circuitos do mercado e grandes equipamentos de consumo.
Para TELLES (2006), sua presença no território opera mudanças importantes
nas práticas urbanas e nas formas de sociabilidade. Como também estão
presentes as igrejas, as associações comunitárias, os projetos sociais e atores
em diálogo, o que exige entender essas dinâmicas e colocá-las em
perspectiva, para captar seu movimento e observar como as relações se
estabelecem.
Para ilustrar essa diversidade, uma importante contribuição se
encontra no estudo de KOWARICK. A pesquisa aponta que a vivência em
cortiços tem outras especificidades que não existem nas favelas ou nos
loteamentos periféricos. Trata-se especialmente da convivência muito próxima
em espaços exíguos e de uso coletivo, o que define modos de relacionamento
muito peculiares. Nesses ambientes “é absolutamente necessário se relacionar
com os outros para produzir um clima de cooperação e simpatia”. Mas aqui
também o distanciamento é necessário para evitar conflitos, mexericos e a
136

invasão de intimidades, já tão expostas pelo uso de banheiros, cozinhas e


lavanderias coletivos. Viver em cortiços é também viver em meio a gritarias e
brigas constantes, requer ainda suportar a humilhação de cheirar o repulsivo
exalado pela sujeira e por dejetos que não raras vezes se espalham em
diferentes espaços do cortiço e não somente nos banheiros.

São frequentes os momentos em que o “autorespeito” das pessoas é


colocado em xeque. Não é por outra razão que o termo “humilhação”
está presente nas falas, pois estão sistematicamente vivenciando
“experiências de desrespeito”, seja quando moram em locais
insalubres e promíscuos, quando a casa corre o risco de desabar ou
quando devem se calar diante da presença de bandidos e da
truculência da polícia. (...) Trata-se, em última instância, de um
reconhecimento individual e social denegado, baseado em formas
sistemáticas de privação-violação de direitos básicos de cidadania.
(KOWARICK, 2009, p.301)

Assim, cabe reafirmar a necessidade de que o território, e as


relações nele estabelecidas, sejam tomados como um campo a ser conhecido
e desvendado para se pensar a convivência como uma segurança social
pública, pois o local em que se vive e circula na cidade tem forte influência em
como as pessoas se veem e são vistas, bem como nas relações que
estabelecem cotidianamente. Para isso, a análise de indicadores territoriais
pode ser um ponto de partida, insuficiente porém para entender essas
dinâmicas, conhecimento possível a partir da narrativa dos sujeitos e do
aprofundamento de estudos sobre a diversidade de suas relações e sua
trajetória nas cidades.
Para Vera TELLES (2006), a intensa modificação das cidades
processada nas últimas décadas leva a pensar que se conhece pouco das
cidades e do impacto que tais mudanças trazem para a vida das famílias que
nela vivem, além dos sentidos decorrentes de viver em meio à incerteza e
violência. Há procedimentos cotidianos necessários para sobreviver na
adversidade e violência. Isso é pouco conhecido e pouco retratado. Somente
os próprios sujeitos têm esse domínio e esse conhecimento; são, portanto,
lutas cotidianas de resistência e sobrevivência nem sempre dignas.
137

2.3 A vivência familiar como experiência de desproteção

Dentre as modalidades de relações que configuram desproteção,


produzem e reproduzem subalternidades talvez seja sobre as relações
familiares o campo em que se tem maior domínio sobre como se manifestam
situações de violência e subordinação. Ainda assim, também é possível afirmar
que o domínio está afeto muito mais a situações de violência física e sexual do
que propriamente às situações de violência psíquica, expressas por
discriminações, subordinações e humilhações que se processam no interior
das famílias, por vezes com alguns membros em especial.
Indivíduos dependentes, que requeiram cuidados ou considerados
mais frágeis ou menos importantes na hierarquia familiar podem ser preteridos
e humilhados pelos demais. Situação que também pode decorrer de intensas
disputas internas entre os membros que compõem o núcleo familiar. Sabe-se
pela experiência de atenção a mulheres e crianças e pela vasta produção
existente que as relações familiares podem ser fator de desproteção de seus
membros. No entanto, ainda é necessário dar uma atenção para isso e
conhecer na trajetória dos sujeitos a incidência, a causalidade, os impactos e
as formas de superação. Mesmo quando se trata de violência de gênero, que já
é mais amplamente discutida, problematizada e com políticas específicas,
existe uma banalização. Por vezes, posturas conservadoras e autoritárias
terminam por desmotivar queixas e provocar a perpetuação das situações de
violação.

Apesar da elevada frequência, a violência de gênero não é visível na


sua totalidade, tanto pela subnotificação de casos quanto pela sua
desvalorização, enquanto problema social, transgressão aos direitos
das mulheres e como contexto instaurador de danos à saúde. A
subnotificação acontece pela dificuldade de diagnosticar e registrar
essa violência. Num dos estudos, dos registros de agressão, 68,75%
deles foram achados casuais. (FANZOI et al, 2011, p.2)

Não pretendo aqui estabelecer uma revisão bibliográfica dessa


questão na qual há uma profusão de estudos dos quais se destacam os
trabalhos inaugurais de Viviane Guerra, Elieth Safiotti e Alba Zaluar, para ficar
em algumas poucas referências. O propósito é dar visibilidade ao debate sobre
138

formas de desproteção no campo relacional para indicar conhecimentos a


serem aprofundados no âmbito da política pública, em especial no
desenvolvimento da convivência como segurança. Para tanto, seguindo a
mesma abordagem estabelecida para a reflexão sobre as relações
institucionais e territoriais, valho-me igualmente de estudos que recuperam a
fala dos sujeitos que vivem as situações de subalternidade na família e podem
ser expressas por humilhações, isolamento, discriminação e abandono.
Os estudos sobre relações familiares apontam a sua
complexidade, posto a ambiguidade que nela se estabelece. Há expectativa de
que em seu âmbito se desenvolva laços afetivos e de proteção, todavia, não
raras vezes, são reproduzidas nas famílias as relações hierárquicas e
autoritárias presentes na sociedade. Quando isso ocorre, as possibilidades de
desenvolvimento dos membros que sofrem discriminações ou violências são
intensamente reduzidas. A complexidade da questão reside não só nas suas
diferentes modalidades de subordinação, mas também no fato de se
estabelecer em espaços privados nos quais por vezes depende dos próprios
envolvidos romper padrões de relacionamento violentos e humilhantes. Por fim,
a complexidade da questão está na sua naturalização e na redução da
violência à sua manifestação em maus tratos físicos, desconsiderando o
impacto dos maus tratos relacionais.
Nos estudos de COELHO (2008), há uma busca para identificar
os afetos presentes no relato das informantes e como foram trabalhados nos
serviços. As relações familiares são exploradas e o pesquisador observa que
nesses relatos aparecem situações de discriminação vivida no âmbito familiar.
É o caso, por exemplo, de Vânia, uma adolescente que engravida e começa a
ser tratada de forma preconceituosa pelos familiares mais próximos. Afirma a
autora que a presença de afetos como medo, tristeza, vergonha e isolamento
perpassam o espaço de intimidade das informantes. A situação de Vânia é
exemplar mas está longe de ser uma exceção nessas circunstâncias. Nesse
sentido, cabe aqui um destaque para os estudos sobre gravidez na
adolescência, que além de considerarem o risco à saúde, o prejuízo na
continuidade da escolarização ou ainda a alteração na configuração econômica
139

da família, apontam a relevância dos conflitos71 e constrangimentos


decorrentes desta situação visto que são causa de grande sofrimento e, por
vezes, de abandono dessas jovens mães.
Em pesquisa feita no Estado do Ceará, em serviço específico
para a atenção a adolescentes grávidas, MOREIRA et.al (2008, p.317) colheu
depoimentos que demonstram a reação imediata à comunicação da gravidez, a
experiência da rejeição e brutalidades presentes em vários relatos.

O meu pai me botou pra fora de casa [...] (Margarida, 15 anos);


Não contei pra minha mãe, até que ela descobriu, ficou muito
magoada comigo e hoje não me considera mais como filha [...]
(Amélia, 16 anos);
O pai foi no meu trabalho e me deu uma surra na frente de todo
mundo e me disse muita coisa humilhante [...] (Girassol, 15 anos);
[...] minha tia disse que eu ia ter que tirar essa criança [...] (Copo-de-
leite, 14 anos).

Situação similar pode ocorrer com mulheres que sofrem violência


por parte do parceiro e se mantém a eles vinculadas, dependendo de apoio de
familiares. MARQUES (2010, p.172) observou situações dessa natureza e
apontou para o caso de Cristina (jovem de 24 anos que residia com três filhos
na casa de seus pais) que embora a família assegurasse abrigo e alimentação,
a situação de isolamento e desprezo vivida por essa informante era tão intensa
que ela parecia “às portas do desespero”.

(...) ela perdeu completamente o crédito com a família em termos


morais, resultando em uma situação em que os vínculos ainda
existem, mas os conteúdos esperados foram esvaziados. Assim,
apesar de morar hoje na casa dos pais, a entrevistada nem mesmo
fala com a maior parte das pessoas da família, que a tratam com
visível desprezo. (grifo meu)

Registre-se nesses casos que o foco da discussão diz respeito à


desproteção do campo relacional. As necessidades de alimentação, abrigo e

71
HOGA et al.apontam por exemplo que há uma forte tendência a responsabilizar a mãe pela gravidez da
adolescente, atribuindo a essas a função de orientar as filhas em suas práticas sexuais. In: HOGA, Luíza,
BORGES, Ana; REBERTE, Luciana. Razões e reflexos da gravidez na adolescência: narrativas dos
membros da família. Revista de Enfermagem da Escola Anna Nery. São Paulo, USP: 2010. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v14n1/v14n1a22.pdf.Acesso em: 10 jun.2013.
140

manutenção estavam asseguradas pela família, mas o isolamento e o


abandono vivido são marcas fortes na sociabilidade. No caso de Vânia,
mencionada no trabalho de Rejane Coelho, o constrangimento estava
associado ao fato de ter insistido em dar continuidade na gravidez, não
interrompê-la, como solicitado pela família, e ainda insistir em permanecer com
a filha e não entregá-la à adoção.

No que eu cheguei em casa não fui bem recebida. Todo mundo me


xingou, não quis ver a criança, nem me ver, era muito xingo sabe,
puta, galinha, sabe, era muita humilhação mesmo, muita. Eu sofri
muito. Minha criança não tinha roupa, eu saía de porta em porta
pedindo. Eu fiz tudo, vamos dizer. Agora depois que a criança foi
crescendo é que foi pegando amor, que eles foi gostando, né.
(COELHO, 2006, p.99)

Ao analisar essa relação, a autora destaca que os sentimentos


provocados pela mãe de Vânia eram de medo e culpa, o que terminava
gerando submissão e passividade, ou paixões tristes, nos dizeres de Baruch
Spinosa, referência teórica desse estudo. É somente a partir de outras
experiências, no grupo de mulheres do qual participava, que essa atitude
passou a ser ativa e questionadora dos julgamentos e impedimentos morais
que lhe eram colocados, situação que gerou reações da família e culminou com
a saída de Vânia de casa para viver somente com sua filha.
O julgamento moral está muito presente na relação das mulheres
com suas famílias. O machismo é um valor nessas relações e não é incomum
que homens da família ou as mulheres mais velhas adotem atitudes
repressoras e condenatórias em relação ao comportamento feminino,
especialmente das mais jovens. É o caso, por exemplo, de mulheres que
trabalham como prostitutas; em sua narrativa é comum o fato de serem as
responsáveis pelo sustento da família, mas ainda assim terem que esconder
seu trabalho, ou quando essa atividade é conhecida, serem desprezadas por
seus familiares. A mãe de Flávia – prostituta entrevistada por MATTOS (2011,
p.184) – com orgulho afirma “sou pobre, mas sou honesta. Já fiz de tudo nessa
vida, mas nunca vendi meu corpo”, numa clara atitude provocativa e
condenatória da profissão da filha, embora seja por ela mantida. A associação
entre delinquência, desonestidade e prostituição está presente no universo da
141

própria Flávia que também afirma com orgulho que sua mãe nunca se
prostituiu.
Outras formas de discriminação se estabelecem no interior do
ambiente familiar, como a diferenciação entre filhos de distintos casamentos,
especialmente se isso representa diferenças étnicas, se o companheiro anterior
esteve envolvido com criminalidade ou tem uma inserção no trabalho mais
precária que o atual.
Cabe aqui um destaque para a discriminação racial que aparece
em alguns estudos, especialmente em casais mistos quando um dos cônjuges
é negro. Os relatos de dores de cabeça decorrentes de tentativas de alisar
cabelos crespos, crianças que tomam “banhos de cândida” para tentar
branqueamento e crianças negras que evitam o sol para ficarem mais claras
aparecem no estudo de ROCHA (2011) sobre o racismo no Brasil. Dessa
análise pareceu-me especialmente importante considerar o que o autor
chamou de “racismo doméstico”, presente na expectativa de que os filhos
nasçam com traços predominantemente brancos ou mesmo na aversão,
comentários e “piadinhas de mau gosto” que os brancos expressam em relação
aos filhos ou companheiros negros, uma questão mais presente na composição
“mulher negra casada com homem branco”. Nos casos pesquisados, observou-
se também outro aspecto relevante. As mulheres casadas com homens
brancos possuíam maior escolaridade e por vezes trabalhos melhor
reconhecidos socialmente, mas ainda assim sofriam discriminação do seu
companheiro.

A fé no “rigor” estatístico dos “dados” muitas vezes nos faz esquecer


que a pesquisa é insensível a tudo aquilo a que o pesquisador, no
qual todos os conhecimentos e teorias efetivamente vivem e atuam
no mundo, é insensível. Como pesquisas quantitativas não vêm
verificando a frequência com a qual esse tipo de racismo doméstico
ocorre entre nós, deve haver resistência para se considerar
cientificamente significativos muitos dos fatos que narramos aqui.
Mas pode ser que o racismo doméstico seja, na verdade, uma dessas
formas de sofrimento muito difundidas e comuns na nossa realidade,
às quais, simplesmente, todas as instituições que produzem o saber
oficial sobre a “sociedade” (os órgãos que encomendam a pesquisa e
a sociologia que a produz) são insensíveis. (ROCHA, 2011, p.362)
142

Enfim, essas situações de sofrimento e de subalternização foram


aqui destacadas na perspectiva de ilustrar e exemplificar expressões de
desproteção no campo relacional, mas outras tantas poderiam ser elencadas.
Não tive nenhuma pretensão de esgotá-las, mas creio que é fundamental
destacar que subalternidade e segregação não é algo etéreo, distante ou
abstrato; é concreto, cotidiano, vivido e construído por todos nós, nas nossas
relações. Não é somente no campo da política pública que se combate a
subalternidade, mas ela não pode se permitir reproduzi-las e tampouco ignorá-
las. Assim, quando na Política Nacional de Assistência Social afirma-se a
convivência como uma segurança, é necessário, por consequência, conhecer
quando ela se torna insegura. O fato de estar junto, viver em grupo familiar,
trabalhar, frequentar um serviço de assistência social, saúde, educação ou
qualquer outra política, não significa que os sujeitos estão vivenciando relações
que protegem e esse foi o esforço aqui implementado.
O intento é contribuir para abordar a convivência no âmbito da
política pública que dê consequências aos seus enunciados. Adotei como
ponto de partida o entendimento de que ocupar o tempo das pessoas,
desenvolver atividades manuais ou aumentar minimamente sua renda são
medidas insuficientes para lidar com sofrimentos que têm tal dimensão e
integram a trajetória dos sujeitos.
Na Política Nacional de Assistência Social de 2004 estão
enunciados que sustentam e expressam compromisso com uma “visão social
inovadora”, que afirma a necessidade de conhecer o cotidiano e não se limitar
à leitura macrossocial ou somente aos dados estatísticos secundários, associa-
se a estes a necessidade de conhecer o cotidiano, a premente obrigatoriedade
ética de atuar na perspectiva de fortalecimento dos sujeitos e não produzindo
novas subordinações. Uma possibilidade nessa direção é produzir e ampliar
oportunidades de viver relações que valorizam as diferenças numa perspectiva
de igualdade. Assim, as discriminações e preconceitos por vezes entendidos
como banais passam a ser desnaturalizados; novas relações se estabelecem,
novas possibilidades de proteção se descortinam e novos vínculos passam a
ser possíveis.
143

A política de assistência social pode construir sua intervenção de


forma a oferecer em seus serviços a vivência dessas experiências, ao mesmo
tempo em que busca conhecer situações de sofrimento, sem banalizá-las. Por
consequência, isto contribuirá para os sujeitos desnaturalizá-las e
reconhecerem-se dignos de serem tratados de forma mais respeitosa em todos
os espaços pelos quais circulam. Tal sentido para a própria vida não se
constrói de dentro para fora, mas na vivência de relações que protegem,
valorizam e reconhecem.
144

3 POLÍTICAS DE SEGREGAÇÃO VERSUS POLÍTICAS DE CONVIVÊNCIA:


UMA BREVE ABORDAGEM DA AÇÃO ESTATAL

Nesse capítulo pretendo me deter nas particularidades da


convivência social no âmbito estatal público, buscando qualificar como a ação
estatal rebate diretamente nos modos de convivência e diferenciar políticas
estatais segregadoras daquelas voltadas ao fortalecimento do convívio social.
Naturalmente que essa abordagem também orientou a elaboração dos
capítulos anteriores, posto que é a intervenção programática estatal no âmbito
da convivência social o foco desse trabalho. A pretensão aqui portanto é
aprofundar a leitura da materialidade da intervenção, distinguir e dialogar sobre
os elementos que compõem uma convivência social que fortalece a proteção
social.
Para tanto, algumas linhas orientam a organização do capítulo: a
primeira delas é que procuro demonstrar que a retirada do convívio social é
uma diretriz na ação do Estado do século passado, com forte permanência
ainda em seus agentes e na população na atualidade. Essa é a melhor
expressão de uma política segregadora, embora seja possível identificar
características segregadoras em diversas modalidades de atenção, portanto,
não exclusivamente na institucionalização. Em alguns campos essa prática
segregadora incidiu mais intensamente, voltada para alguns públicos
específicos, como é o caso de crianças e adolescentes, idosos, pessoas com
deficiências e doentes mentais. Recuperarei brevemente esse histórico para
exemplificar como essa direção/intencionalidade se manifestou.
Uma segunda linha no desenvolvimento dessa qualificação da
ação estatal pretende nomear as políticas segregadoras desvinculadas dos
espaços nas quais ocorrem, mas ligadas às formas de atenção, aos objetivos
implícitos ou explícitos que possuem. Assim, desde logo afirmo que na ação
nos territórios vividos, no ambiente doméstico e mesmo em instituições
abertas, há princípios de segregação que orientam a forma de intervenção,
portanto conflitam com propostas para fortalecer o convívio social como
proteção.
145

A terceira linha desse capítulo refere-se às especificidades do


debate sobre convivência social no campo da assistência social. A partir da
leitura de profissionais, especialistas, pesquisadores e docentes, busquei
sistematizar as reflexões sobre os impactos e ressonâncias do reconhecimento
da convivência social como segurança de assistência social que se afirma na
Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004. Entendo, como já
venho sinalizando nesse estudo, que esse reconhecimento estabelece um
campo de especificidade nas responsabilidades e na intervenção da política de
assistência social que exige pensar nas demandas prioritárias a serem
enfrentadas, nas metodologias do trabalho profissional e nos seus resultados.
A afirmativa da convivência social como segurança na PNAS convoca para o
debate sobre a convivência social de forma central, um objetivo da intervenção
e não de forma acessória ou complementar para contribuir no processo de
trabalho ou para produzir outro tipo de resposta como a geração de renda ou a
ocupação de tempo ocioso.
Por fim, aponto elementos que configuram a intervenção
programática da assistência social para garantir convivência como proteção,
particularidades observadas no diálogo com estudos que se debruçaram sobre
serviços de convivência e ao longo da pesquisa empírica, por meio de
observação de práticas e diálogos com profissionais e pesquisadores da área.
Estes foram os elementos levantados nesse momento, que representam
vivências e experiências em curso. Ou seja, há também nesse capítulo uma
leitura mais contextualizada que busca identificar as especificidades do debate
conjuntural sobre convivência social no âmbito da assistência social.
Entendo que a abordagem da convivência social deve se dar sob
dois aspectos distintos e complementares: como uma resposta de proteção da
política de assistência social, portanto, como uma segurança social específica
dessa política setorial e como método de intervenção do trabalho social nesta
política pública. Entendo que essas dimensões não podem ser separadas,
logo, é amalgamadas que comparecem nesse estudo, posto que na política
social, mais do que a declaração de direitos, é a entrega da atenção que dá
materialidade e objetividade aos princípios manifestos na lei, é ela que traduz
146

sua densidade institucional e explicita o alcance dos direitos pelo cidadão


usuário. Afora isso, estamos somente no campo da idealização, conforme
afirmou Evaldo Vieira: “Não é um bom caminho fazer a separação entre
direitos, vida dos direitos, proteção dos direitos e a realização deles. De fato,
não há direito sem sua realização”. (VIEIRA, 2004, p.29)

3.1 Institucionalização: manifestação de práticas de segregação

A institucionalização de pessoas e a retirada do convívio social foi


prática corrente e reiterada até o final do século passado no Brasil. Assim,
eram retiradas de suas moradias ou das ruas e colocadas compulsoriamente
em abrigos, orfanatos, hospitais ou asilos, pessoas nas mais distintas
situações: crianças, idosos, pessoas com deficiência, deficientes mentais,
pessoas com doenças contagiosas ou que se suspeitava contágios. Elas
permaneciam nessas instituições por longo período, quando não por toda a
vida.
Assim, o recolhimento de pessoas nas ruas foi prática fartamente
adotada no século passado e ainda permanece em várias localidades
brasileiras, inclusive previsão legal no Decreto- Lei 3.688 de 03/10/1941 que
institui a Lei de Contravenção Penal e considera a ociosidade ou permanência
nas ruas passível de pena de prisão72. Observe-se que os ventos da
democracia que provocaram a revisão de vasta legislação nacional não foram
suficientes para revogar a autorização para agentes públicos removerem
pessoas dos espaços coletivos, confrontando com o direito de livre circulação
que orienta outros dispositivos constitucionais. Segue a íntegra do artigo 59
que assim define o que é considerado como vadiagem:

Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o


trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de
subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação
ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses.

72
É interessante destacar que, mais de vinte anos da aprovação da Constituição Federal, esse artigo
ainda está em debate para sua revogação, tendo já sido aprovada sua extinção na Câmara Federal
estando ainda em tramitação no Senado, no aguardo de parecer da Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania desde 2010, conforme informa o site oficial do Senado. Acesso em: 09 jul.2013.
147

Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure


ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena.

Esse debate parecia adormecido e esquecido; serve apenas


como objeto de atenção da imprensa, quando uma ou outra situação isolada de
conflito se instala com população em situação de rua. Entretanto, mais
recentemente o tema voltou ao debate especialmente pelas polêmicas medidas
adotadas pelo governo do Estado de São Paulo que em 2012 adotou uma
política de recolhimento das ruas, com forte repressão, pessoas dependentes
de substâncias psicoativas e sem tratamento, que permaneciam na região
central da cidade de São Paulo, capital onde mais intensamente se aplica a
política estadual antidrogas. Portanto, a discussão sobre segregação e convívio
não está de modo algum superada. A esse respeito, o Conselho Nacional de
Saúde assim se manifestou:

Longe de expressar a criação de um novo serviço, a ação realizada


em São Paulo cria, na prática, um tribunal de exceção que distorce e
contraria a lógica dos serviços de saúde, acarretando sérios prejuízos
no processo de implantação da rede de serviços territoriais
qualificada para atenção aos usuários de álcool e outras drogas.O
Conselho Nacional de Saúde defende que a implantação de uma
política que cuide dos usuários e suas famílias e, portanto, repudia a
implantação de serviços para internação compulsória e involuntária,
deixando claro que estas não se constituem como serviços e tem
servido para limpar as cidades e não para cuidar dos usuários.
Reconhecemos que a situação requer cuidados e medidas capazes
de promover acesso à cidadania e reafirmamos que o recolhimento
forçado viola direitos humanos e sociais. E o que violenta não trata
73
nem inclui. (grifo meu)

Cabe destacar que, dentre os públicos para os quais as políticas


de institucionalização foram usadas, a questão da atenção aos loucos e
doentes mentais teve uma importância diferenciada em razão da repercussão
do debate. Ao analisar a Reforma Psiquiátrica, o movimento que ganha
intensidade no final dos anos 1970 em meio a outras manifestações de
enfrentamento à Ditadura Militar e de pressão pela democratização do país,

73
Disponível em: http://www.idisa.org.br/site/documento_8753_0__cns-repudia-pratica-da-internacao-
compulsoria-e-involuntaria.html. Acesso em: 03 fev. 2013.
148

Amarante ( 1997) aponta que a Reforma se configurou como uma estratégia de


desinstitucionalização no âmbito das políticas públicas. Estas estratégias
estavam associadas à denúncia de médicos sobre as precárias condições do
atendimento a pacientes dos hospitais psiquiátricos, encontros de articulação
dos trabalhadores de saúde e também deflagração de greves simultâneas em
todo o território nacional. Portanto localiza esse autor que a discussão da
desinstitucionalização adquire um caráter eminentemente político, que no caso
da Reforma Psiquiátrica extrapola, em sua repercussão, ao âmbito da saúde.

O debate sobre a loucura saía do interior dos muros do hospício para


o domínio público. A loucura/doença mental deixava de ser objeto de
interesse e discussão exclusiva dos técnicos e alcançava as
principais entidades da sociedade civil (ABI, OAB, CNBB, CONTAG,
FETAG, etc), e a grande imprensa, que noticiava, com destaque e
ininterruptamente por cerca de quase um ano, as condições relativas
aos hospitais psiquiátricos e às distorções da política nacional de
assistência psiquiátrica: a “questão psiquiátrica” tornara-se uma
questão política. (AMARANTE, 1997, p.164)

Esse mesmo autor identifica um importante deslocamento


produzido por este debate. Ao tornar pública a forma de tratamento a pacientes
em hospitais psiquiátricos e manicômios, especialmente por meio de
reportagens na grande imprensa, o que dantes era debate restrito ao campo
técnico científico, passa a ser de domínio coletivo, gerar denúncias e
indignações. Assim, afirma Amarante (1997), o objeto em questão não é mais a
doença, mas o sofrimento do sujeito doente mental submetido a tratamentos
que não resolvem o seu mal mas perversamente e não raras vezes, agravaram
seus sintomas.
Ressaltar esse deslocamento é fundamental para o debate que
pretendo acentuar. O que se quer aqui enfocar não são as medidas de gestão
necessárias à desinstitucionalização, embora sejam relevantes e demonstram
as intencionalidades governamentais no cumprimento de seus deveres e
responsabilidades legais. Todavia, por ora, o que se quer explicitar é que ao
ganhar a cena pública, a discussão da desinstitucionalização dá visibilidade a
uma situação “controlada” entre muros e exige reposicionamentos de toda a
sociedade sobre a temática; o cidadão comum identifica o tratamento
149

desumano, humilhante e degradante e sobre ele obriga-se a refletir. Trata-se


portanto de uma verdadeira revolução na qual o “louco”, comumente entendido
como perigoso para si e para a sociedade, passa a ser visto como uma pessoa
que tem direito a ser tratado com dignidade.

Se fosse oportuno, neste contexto complexo, questionar-se quanto ao


principal objetivo da Reforma Psiquiátrica, talvez fosse possível
responder que seria poder transformar as relações que a sociedade,
os sujeitos e as instituições estabeleceram com a loucura, com o
louco e com a doença mental, conduzindo tais relações no sentido da
superação do estigma, da segregação, da desqualificação dos
sujeitos ou, ainda, no sentido de estabelecer com a loucura uma
relação de coexistência, de troca, de solidariedade, de positividade e
de cuidados. (AMARANTE, 1997, p.165)

Portanto, nesse percurso, o objetivo imediato é sinalizar que o


debate sobre a desinstitucionalização provoca uma importante inflexão que
exige configurar os impactos dessa vivência na trajetória de vida de crianças,
idosos, doentes74e autores de crimes e infrações; obriga a construir
argumentos que refutem as práticas de institucionalização, ao mesmo tempo
que exige a construção de bases conceituais para atenção fora dos muros
institucionais. Recuperar esses conceitos é o que pretendo fazer a seguir, de
modo a ir consolidando diferenciações e particularidades nas práticas
governamentais valendo-me dessa construção para exemplificar práticas e
intervenções de políticas fortalecedoras do convívio social.
Para BORGES (2007) a proposta de distanciar do campo
institucional a saúde mental esteve baseada em quatro conceitos: cuidado,
autonomia, acessibilidade e integralidade. Ao discutir o cuidado neste
processo, o raciocínio desenvolvido fortaleceu a exigência de uma
horizontalidade e escuta do paciente, compreendendo-o como o principal
interlocutor do cuidador e por ser quem melhor pode expressar os sintomas

74
Ao analisar a política pública para tratamento de hanseníase COSTA e CAVALIERE (2011, p.2),
apontam que a institucionalização para esses pacientes foi compulsória, mediante constrangimento
violento e não raras vezes com a aprovação da própria população, movida por várias motivações, dentre
as quais o medo do contágio. E afirmam: No sentido de controlar e abolir a “lepra” no país, o isolamento
compulsório representou a principal estratégia, e um conjunto de práticas com esse sentido irá perdurar
entre início e meados do século XX. A partir de 1924, o governo decidiu pela internação compulsória de
portadores de hanseníase: retira-os do convívio público, admitindo que isolar o doente resguardaria a
sociedade sadia. Muitos dos “suspeitos de lepra”, em geral, por denúncia de vizinhos, foram capturados
em seus lares, tiveram suas casas queimadas e sofreram constrangimentos provocados pela internação.
150

que sente. O entendimento é que o paciente é sujeito corresponsável no


processo de tratamento, pois também precisa cuidar-se. Assim, a lógica é de
que a saúde é um processo construído por profissionais e pacientes. Um
segundo conceito diz respeito à autonomia75 que, nessa perspectiva, não está
associada à autossuficiência, mas qualifica uma relação de mútua dependência
entre paciente e profissional, de modo a definirem contratos e decisões sobre
como encaminhar o tratamento:

(...) Numa relação de cuidado, as propostas de tratamento e as


decisões clínicas e terapêuticas requerem sujeitos com autonomia
para a condução da ação direcionada para um objetivo comum, mas
não isento de negociações e incertezas. E ainda, se
compreendermos a autonomia como um processo de construção de
normas em espaço de troca e de conflito, e, por conseguinte, como
um produto do exercício de normatividade, o que encontramos nesse
conceito é ao mesmo tempo produção e condição para a construção
de saúde. (BORGES, 2007, p.63)

O terceiro conceito que sustenta o debate é o de acessibilidade,


que refere-se ao grau de ajuste entre as necessidades da população e as
formas de organização do serviço, à capacidade e possibilidade real de utilizar
serviços e não somente à sua distribuição regional/territorial. Nesse sentido, o
conceito de acessibilidade também é radical pela qual cabe uma negociação
entre pacientes e serviços para estes últimos se amoldarem às necessidades e
demandas daqueles e não dos profissionais ou de seus familiares. Nesse
sentido, o momento de entrada no sistema “é determinante do vínculo de
cuidado, pois desde então é possível iniciar o movimento de construção de
saúde favorecendo a expressão da pessoa que sofre e/ou convocando-a a
posicionar-se como interlocutor privilegiado do serviço de saúde mental.
(BORGES, 2007, p.70).
Acessibilidade, autonomia e cuidados são mencionadas pela
autora como conceitos auxiliares agregados ao orientador de integralidade,
aqui entendida como a atenção diversificada, interdisciplinar e em diferentes
níveis de respostas da saúde. Isto exige não só atender ao paciente, mas

75
Já abordei esse conceito de autonomia ao fazer referência à teoria do reconhecimento no capítulo 1.
Reproduzo aqui esses elementos para contextualizar o momento em que esse debate se intensifica.
151

pesquisar a doença para antecipar-se a elas, logo, vai além da demanda e


extrapola o conceito de acessibilidade. Por integralidade, entende-se também o
reconhecimento das práticas de saúde como práticas sociais que agenciam
saberes que ultrapassam a racionalidade médico-científica.
Esses e outros conceitos, embora mais amplamente debatidos no
âmbito da saúde, são inspiradores e podem servir como referência para a
análise de políticas voltadas ao convívio social, o que pressupõe formas de
relacionamento que ampliem e diversifiquem vínculos de referência no interior
dos serviços e valorizem conhecimentos e sentimentos dos usuários. É uma
perspectiva muito distinta das adotadas na institucionalização cuja marca é
justamente ignorar a vontade do outro.
Mas, avançando um pouco mais para estabelecer e explicitar as
particularidades de políticas segregadoras e seu diferencial em relação a
políticas que fortalecem o convívio, é importante observar que outro grupo para
o qual as práticas de institucionalização também foram amplamente utilizadas,
são crianças e adolescentes abandonados ou autores de ato infracional. Nesse
caso, a motivação é distinta, mas a lógica de usar a institucionalização como
estratégia para proteger a sociedade de indivíduos que podem ameaçá-la –
ainda que não imediatamente e mesmo quando não há nenhuma vivência
factual que sustente tal sentimento – também está presente.

Uma história de internações para crianças e jovens provenientes das


classes mais baixas, caracterizados como abandonados e
delinquentes pelo saber filantrópico privado e governamental –
elaborado, entre outros, por médicos, juízes, promotores, advogados,
psicólogos, padres, pastores, assistentes sociais, sociólogos e
economistas -, deve ser anotada como parte da história da caridade
com os pobres e a intenção de integrá-los à vida normalizada. Mas
também deve ser registrada como componente da história
contemporânea da crueldade. (PASSETI, 2007, p.350 – grifo meu)

Ao considerar as especificidades desse segmento populacional,


nota-se que os estudos sobre a história da atenção a crianças e adolescentes
152

no Brasil76, registram a institucionalização como uma das principais medidas


adotadas desde o período da colonização. Tais estudos revelam que

as crianças nascidas em situação de pobreza e/ou em famílias com


dificuldades de criarem seus filhos tinham um destino quase certo
quando buscavam apoio do Estado: o de serem encaminhadas para
instituições como se fossem órfãs ou abandonadas (RIZZINI e
RIZZINI, 2004).

Esta prática foi tão difundida que alguns autores denominam que
existe no Brasil uma cultura de institucionalização, firmada no entendimento de
que as famílias pobres eram incapazes de proteger e educar seus filhos.
Assim, o Estado e predominantemente as organizações sociais, quase sempre
de cunho religioso, assumam essa responsabilidade77.
Cabe aqui um destaque. A institucionalização justifica-se por um
posicionamento de que o Estado tem melhores condições de cuidar e proteger
do que a família e a sociedade e, por sua vez, a entrega de um membro ao
cuidado estatal representava a abnegação do direito de interferir sobre as
formas de tratamento e a renúncia ao contato, ainda que esporádico. Trata-se
de uma destituição do vínculo e do poder da família sobre aqueles membros.
Assim, as formas de organização dessas instituições foram
historicamente marcadas pelo atendimento em grandes grupos, com elevada
disciplina, restrição de contato com o mundo externo, comportamentos
homogeneizados e forte rotina voltada a assegurar condições para o
desenvolvimento dos procedimentos profissionais. Há também relatos de
violência nas instituições provocada por funcionários e entre os próprios
internos.

Ao escolher políticas de internação para crianças abandonadas ou


infratoras, o Estado escolhe educar pelo medo. Absolutiza a
autoridade de seus funcionários, vigia comportamentos a partir de
uma idealização das atitudes, cria a impessoalidade para a criança e

76
Além do trabalho de Rizzini e Rizzini e sem nenhuma pretensão de aprofundar-se nesse aspecto do
tema, há registros desse processo de institucionalização. In: PRIORE, M. (2007), FREITAS (1997) e
ZOLA (2011), PEREIRA (1998), dentre outros.
77
A internação em unidades educacionais também foi modelo utilizado por famílias abastadas, prática
que só caiu em desuso a partir da segunda metade do século XX. (RIZZINI e RIZZINI, 2004).
153

o jovem vestindo-os uniformemente e estabelece rígidas rotinas de


atividades, higiene, alimentação, vestuário, ofício, lazer e repouso.
(PASSETI, 2007, p.356)

A institucionalização e por decorrência a convivência segregada,


marcada por regras disciplinares que não fogem aos princípios dos presídios,
mas ao contrário são neles inspirados, constitui-se em estratégia utilizada
indistintamente a crianças abandonadas por terem sido geradas fora do
casamento, entregues por suas famílias para internação por dificuldades
financeiras ou de disciplinamento78, autoras de ato infracional, “recolhidas” nas
ruas, trabalhadoras, órfãs, com deficiência física e mental, e filhos de escravos
e indígenas.
Nessas unidades, desenvolvia-se a atenção a crianças e
adolescentes por longos períodos e em grandes grupos, separados por sexo
ou faixas etárias com propostas de formação para o trabalho, marcadamente
distintas para meninos e meninas. No caso das meninas era comum o regime
claustral, limitado contato com o mundo exterior e formação voltada
prioritariamente para trabalhos domésticos em detrimento da base educacional.
Aos meninos a proposta de formação esteve vinculada ao aprendizado de
ofícios mecânicos (sapateiro, marceneiro, alfaiate, carpinteiro) além de serem
frequentemente utilizados como mão-de-obra na Marinha e no Exército,
especialmente no período imperial.
Durante todo o século XX, amplas discussões e estudos foram
feitos sobre esse modelo de atenção à infância e adolescência, que a partir de
1927, tem sua primeira regulação específica denominada Código de Menores,
ocasião em que passou a ter institucionalidade oficial nas instâncias jurídica e
executiva. A incapacidade da família permaneceu como uma ideia-força que
ganhou nova roupagem a partir de estudos e formulação de teorias a respeito

78
Para ilustrar essa situação, RIZZINI e RIZZINI (2004, p.31) apresentam um levantamento realizado pelo
Juizado de Menores do Distrito Federal em 1939, pelo qual se pode observar que “ 60% dos
requerimentos eram por internações. A grande maioria dos requerentes de internações era de mulheres
sem companheiro (viúvas, solteiras e separadas, em ordem decrescente). Cerca de 80% eram
empregadas domésticas. Menores de idade também solicitavam internação e não eram poucos. Foram
quase 600 pedidos, sendo apenas 21% do sexo feminino, o que sugere a requisição de internação para si
próprio, pois os pedidos (de adultos) geralmente partiam de mulheres, principalmente das mães.”
154

da incapacidade de educar e disciplinar os filhos. De outro lado, as famílias


passaram a lançar mão da estratégia de institucionalização como forma de
assegurar educação e alimentação para os seus filhos.
Destacam-se essas duas linhas centrais do movimento de
desinstitucionalização, inclusive porque são sobre esses dois sujeitos –
crianças e doentes mentais – aos quais mais fortemente incidiu a política de
confinamento e institucionalização. As diretrizes dessa discussão no que se
refere ao reconhecimento do sujeito, ao combate ao estigma e à associação
automática entre pobreza-periculosidade/delinquência são fundamentais para o
debate mais recente sobre a convivência no campo programático. Tema que
ganhou densidade na década de 1980, com os movimentos de abertura política
que se avolumam no país, e acompanhando discussões internacionais de
revisão das instituições tanto para atenção a crianças e adolescentes quanto
aos doentes mentais.
Mas, antes de enveredar pela reflexão sobre o que representa o
reconhecimento da convivência social como um direito e as consequências
desse ato para a organização da atenção, ou melhor, os efeitos que tal
reconhecimento deve suscitar, é oportuno destacar que ações fomentadoras de
convivência comparecem no âmbito público em período anterior ao debate da
desinstitucionalização. Na verdade, a convivência social como uma prática
coletiva e pública remonta ao início do século passado.
Mas ao retomar as primeiras propostas estatais voltadas à
convivência, Aldaíza Sposati79 rememora a primeira experiência de criar
espaços de convivência se deu na década de 1930, no âmbito da cultura e
voltada para crianças. Naquele período, o escritor Mario de Andrade, quando
Secretário Municipal de Cultura, criou os Parques Infantis, espaço que reunia
crianças de 4 a 12 anos, em atividades centradas no lúdico e propostas para
distintas faixas etárias, pois tinha como objeto o estímulo ao aprendizado entre
crianças de diferentes idades simultaneamente.

79
Relato registrado por meio de entrevista concedida em Maio de 2012.
155

Ao analisar a experiência dos parques infantis em São Paulo, a


pesquisadora Ana Lúcia Goulart de Faria afirma que:

Os parques infantis criados por Mário de Andrade em 1935 podem


ser considerados como a origem da rede de educação infantil
paulistana (Faria 1995) – a primeira experiência brasileira pública
municipal de educação (embora não-escolar) para crianças de
famílias operárias que tiveram a oportunidade de brincar, de ser
educadas e cuidadas, de conviver com a natureza, de
movimentarem-se em grandes espaços (e não em salas de aula) (...).
Lá produziam cultura e conviviam com a diversidade da cultura
nacional, quando o cuidado e a educação não estavam
antagonizados, e a educação, a assistência e a cultura estavam
macunaimicamente integradas, no tríplice objetivo parqueano:
educar, assistir e recrear (FARIA, 1999, p.61) .

Destaca Faria o ineditismo dessa experiência e a inovação que


representou ao adotar a concepção do lúdico como um elemento integrante da
cultura dos povos e por associar em sua prática o cuidado, a educação e a
cultura.
A experiência perdurou por alguns anos mas seu caráter inovador
não teve continuidade nas intervenções estatais posteriores. Estas ações
visavam produzir respostas para públicos específicos e embora oferecidas sem
restrição de mobilidade e sem utilizar o deslocamento de casa para o serviço,
também expressam práticas segregadoras, pela força do enquadramento, pela
perspectiva homogênea e disciplinar de comportamento.
Desse modo, os serviços voltados à convivência social ou mesmo
abordagens profissionais nas ruas ou nos locais de residência das pessoas,
podem também ser tipificadas como práticas de segregação. O que as qualifica
como tal é o modo como se estabelece a relação profissional/usuário; é o
estatuto que se atribui à opinião, demandas e sofrimentos desse usuário que
permite observar mais atentamente a entrega da política e não o local na qual
acontece. Pode-se afirmar, portanto, para permitir uma análise dessas
intensidades que são formas mais brandas de segregação, pois não interditam
a circulação e as relações, mas estão distantes do paradigma da convivência
social como garantia de proteção, cuja melhor expressão é justamente
156

reconhecer o sujeito como ativo no processo de atenção do serviço e no


diálogo com o profissional.
Nessa perspectiva entende-se que sempre que a atenção ao
cidadão se expressar por meio de punições e restrições em virtude de
comportamentos esperados e não cumpridos forem tomadas decisões
baseadas no senso dos profissionais sem consultar os interesses e decisões
dos usuários; negadas informações sobre aspectos que lhe diz respeito;
atitudes discriminatórias e desqualificadoras das pessoas e a obrigatoriedade
de comparecimento sob pena de perda de benefícios, entre outras práticas,
estamos falando de uma política de segregação, portanto, contrária à uma
política de convivência social na perspectiva do direito e com vistas a garantir
segurança.

3.2 Práticas de convivência social: breve caracterização

A forma de inserir uma questão nas preocupações públicas é


importante para entendermos as motivações e finalidades da atenção. Em que
pese que nem sempre essas reais motivações estarão explícitas nos discursos,
vão compor um imaginário coletivo que orientará a ação80. É a partir dessa
lógica que insiro alguns destaques sobre os serviços de convivência social do
século passado, lembrando que é a sua presença antiga nas intervenções
públicas a base para inserção dessa pauta no ordenamento institucional em
vigor.
Em entrevista concedida em 2012, Aldaíza Sposati afirma que no
campo da assistência social, as experiências de espaços de convivência social
são desencadeadas nas grandes cidades por diferentes motivações 81, que vão
desde a necessidade de oferta de local para crianças permanecerem - em
virtude do processo de urbanização e industrialização que passa a demandar,

80
Já mencionei esse processo de construção do imaginário coletivo, tendo como referência a reflexão de
Jessé de Souza sobre a produção de Charles Taylor ao dialogar sobre consensos firmados sobre classes
subalternas no capítulo dois do nosso estudo.
81
Em publicação do Governo federal de 1998, afirma-se que: “os serviços assistenciais mais significativos
nos municípios ainda são as creches, os plantões de atendimento emergenciais às famílias, os centros de
apoio socioeducativo a crianças e adolescentes no período complementar a escola, os projetos de
enfrentamento coletivo da pobreza e geração de renda”. (GUARA, 1998: 30)
157

mais intensamente, mão-de-obra feminina - até a oferta de espaços para a


permanência de crianças como alternativa à sua presença nas ruas. Estas
modalidades se intensificaram na década de 1970.
A ocupação do tempo e uma atitude preventiva frente à
“potencial” delinquência de crianças e adolescentes, evitando a ociosidade foi
uma força motriz para o estímulo de serviços de convivência social. Associa-se
a essa motivação a preparação para o mundo do trabalho, por meio do
desenvolvimento de atividades que pudessem gerar alguma renda imediata e
uma intervenção compensatória em relação à política de educação.82

Na cidade mais importante do país, o Rio de Janeiro, capital federal,


parte da população era retratada como constituindo verdadeiras
hordas de desocupados e desclassificados a ameaçarem a paz
social. Muitos dos chamados “populares” eram menores acusados de
se instruírem nos descaminhos da ociosidade e do crime. Era preciso
pôr o povo a trabalhar “livremente”, ou seja, em troca de um salário.
Tornar o indivíduo propenso e habituado ao trabalho desde a infância.
(RIZZINI, 2008, p.123)

Se esse é um direcionamento, lembra Aldaíza Sposati a iniciativa


do Prefeito Figueiredo Ferraz, na cidade de São Paulo, que em resposta à
presença de crianças vendendo limões nas ruas convoca a então Secretaria de
Bem-Estar Social para desenvolver algum trabalho com esse público. Nesse
momento identifica o início de uma política municipal de convívio que se
consolidou por meio da oferta de uma Casa Aberta na área central da cidade.
Todavia, observou-se no início que as crianças que ali trabalhavam vinham dos
bairros periféricos. Seria, portanto, mais racional implantar as unidades
próximas aos locais de moradia das crianças. Destaca ainda que essa história
é também registrada nos estudos de Rosemary Pereira, que assim a relata ao
entrevistar Cecília Ziliotto:

82
A já referida publicação do Governo Federal de 1998, em nota anterior, destacava que as atividades
realizadas para crianças de 7 a 14 anos associavam-se ao reforço escolar, nutricional, atividades lúdicas,
dentre outras, cumprindo uma função compensatória em relação à educação. Para os adolescentes de 14
a 18 anos predominavam atividades de iniciação profissional, acompanhadas de atividades lúdicas ou
esportivas. E afirmam: “o curto espaço de tempo que a criança passa na escola é insuficiente para a
apreensão dos conhecimentos básicos do currículo e também para a diversificação dos conteúdos
complementares exigidos pela modernidade”. (GUARÁ, 1998: 30)
158

Cecília Ziliotto, também como agente institucional, coloca “(...)que a


sociedade civil teve fundamental importância em todo processo de
busca dos direitos da criança e que esta preocupação começou no
final dos anos 60 e início dos anos 70.” Em sua entrevista relata
que nessa época já havia “(...) programas nucleares e pontuais que
foram implementados como resposta ao “fenômeno” meninos de rua
[e que] estes programas surgiram em decorrência da força das
denúncias contra a institucionalização da violência, em particular da
violência policial.” Esclarece ainda que “(...) os meninos eram da
periferia da cidade, destacando-se a necessidade de construir
programas o mais próximo possível dos seus locais de moradia, para
que eles não viessem para o centro. O ganho dessa ação foi que
possibilitou à Secretaria de Bem-Estar Social do Município de São
Paulo - SEBES detectar a problemática que envolvia essas crianças,
ou seja, a luta pela sobrevivência, a expulsão das crianças de casa, a
violência contra as crianças na periferia das cidades.” (PEREIRA,
1998, p.108)

Relembra Aldaíza que nesse momento se inicia um estímulo às


organizações não-governamentais, especialmente religiosas, propondo que
reunissem crianças e adolescentes dos bairros e paróquias para iniciar um
trabalho de convivência social83. Destaca que, naquele momento, esse serviço
era um mix de diferentes ações, desde um lugar para crianças ficarem durante
o dia nos horários alternativos ao da escola, até o desenvolvimento de
atividades de reforço escolar ou de extensão da jornada da escola.
O conteúdo desenvolvido nesses núcleos era diverso e difuso.
Realizado principalmente por unidades conveniadas e, nas quais as atividades
eram desenvolvidas em conformidade aos espaços físicos. Como era comum a
falta de quadras, piscinas e espaços mais amplos, as propostas eram bastante
limitadas. Subordinada à estrutura disponível, associada a diferentes entidades
sociais, organizadas e geridas por distintos princípios e finalidades os núcleos
não tinham um padrão quanto à qualidade da atenção e de suas respostas.
Houve, porém, uma regulação para fins de financiamento.
Agrava o cenário o fato do financiamento destinado pelo poder
público às organizações conveniadas ter se transformado em recurso residual
insuficiente para assegurar o padrão de qualidade de funcionamento em todas

83
PEREIRA (1998) afirma que é dessa iniciativa que se inicia o atendimento dos OSEMS – Orientação
socioeducativa ao menor, na cidade de São Paulo, voltada ao atendimento de crianças e adolescentes.
159

as unidades. Assim, se formou um conjunto de serviços de caráter


socioeducativo para crianças de diferentes faixas etárias, especialmente de 7 a
12 anos, mais voltados à ocupação do tempo no período inverso ao escolar.
Portanto, embora houvesse uma relação com o poder público por meio do
financiamento não havia uma direção pública no desenvolvimento do trabalho
para assegurar padrões de atenção. Isaura Isoldi, em entrevista, ressalta que a
relação de Supervisão Técnica dos agentes públicos em relação aos serviços
prestados pelas organizações sociais na cidade de São Paulo, por exemplo,
foram especialmente para verificar despesas ou fiscalizar a aplicação dos
recursos, desacompanhada de diálogos voltados à qualidade de atenção e aos
resultados do trabalho profissional.
Ao refletir sobre os desafios da atenção de assistência social na
cidade de São Paulo, no início da década de 1990, a ex-secretária municipal e
pesquisadora Marta Campos, apresenta uma reflexão similar a de Aldaíza
Sposati ao reconhecer que não houve ao longo daquela gestão um
investimento para desenvolver conhecimento específico para os serviços de
convivência84. Por consequência, também não houve avaliação nem
reordenamento desses serviços. A cidade possuía no início da década de
1990, 314 Centros de Convivência, como eram denominados à época,
mantidos em convênio com organizações sociais. Ela afirma:

A flexibilidade da programação dos Centros de Convivência, aliada à


inexistência de uma infra-estrutura de recursos materiais e humanos
adequados à natureza do serviço, que deveria mesmo estender o
atendimento a criança moradora de rua, impediu uma verdadeira
consolidação do programa até o final da gestão. (CAMPOS, 1994,
p.96)

84
É no início dos anos 2000 quando Aldaíza Sposati foi secretária municipal e já sob a regulação da
LOAS que a cidade de São Paulo faz um amplo investimento para definir percursos de trabalho e de
supervisão de serviços socioeducativos. Essa experiência foi sistematizada por FERREIRA (2004) que
registra a busca de padronização das atividades, a direção das ações em conformidade com o público e
portanto com suas demandas e particularidades e ainda o investimento em educadores para que se
constituíssem em multiplicadores e formadores de outros profissionais. Registre-se, ainda que, à época a
cidade de São Paulo possuía 536 núcleos socioeducativos voltados a crianças e adolescentes de 6 a 15
anos e que normativas para funcionamento já estavam em vigor.
160

Atividades de convivência em grupo como uma forma de


intervenção no trabalho com famílias é outra presença constante nas práticas
de assistência social e uma intervenção bastante anterior ao reconhecimento
da convivência social como um direito. No que se refere às famílias, ou mais
predominantemente ao trabalho com mulheres, a preocupação tem se voltado
mais à realização de atividades informais que possam gerar renda associadas
ao desenvolvimento de palestras voltadas à orientação para mudar
comportamentos quanto à educação dos filhos, hábitos de higiene, educação
sexual, prevenir doenças sexualmente transmissíveis, adotar métodos
contraceptivos e ter um bom aproveitamento alimentar. Assim, ressalta-se uma
perspectiva de normatização da vida, de modo a enquadrar comportamentos e
ajustá-los a um modelo considerado adequado e esperado85.

As discussões teóricas no campo da Assistência Social vieram


propondo – formatando, conceituando e ensinando – práticas
socioeducativas voltadas à promoção de mudanças de
comportamento do trabalhador e de sua família no sentido de
adequá-las aos novos padrões de produção e de relações sociais
requeridas pela emergente sociedade urbano-industrial. A tentativa
era a de incentivar – e mesmo exigir – mudanças de hábitos, atitudes
e comportamentos do trabalhador, em atenção às necessidades da
política de dominação e controle das classes subalternas, sob a égide
do Estado. Os grupos de mães – intensamente desenvolvidos no
trabalho das entidades sociais – constituíam-se sob essa ótica, do
ensinar a ‘ser mãe’, habilitar no tricô e no crochê como forma de
sobrevivência e emancipação, exigir presença, porque ali se
encontrava a possibilidade de superação da situação de exclusão e
pobreza experimentadas. (MDS, 2009, p.42).

Nessa modalidade de atenção, também são fartos os estudos e


debates86 acerca da leitura e concepção que os profissionais têm das famílias
que orientam sua intervenção no âmbito da política de assistência social. Como
este estudo não se ocupa do aprofundamento do resgate histórico, o que se faz

85
MIOTO (2004, p.44) ao refletir sobre os programas de orientação e apoio familiar, destaca que há uma
forte presença de princípios assistencialistas e normatizadores da vida familiar nessas ações ainda na
contemporaneidade e, paradoxalmente, assentados no discurso “homogêneo” da justiça e cidadania.
86
Dentre esses inúmeros estudos, destaco a publicação Política Social, família e juventude: uma
questão de direitos, organizado por Mione Sales et al. , em 2004, e Família: redes, laços e políticas
públicas, organizado por Ana Rojas Acosta e Maria Amalia Vitale, ambos publicados pela Editora Cortez.
Como também destacam-se as várias publicações das pesquisadoras Marta Campos e Regina Célia
Mioto que abordam a relação entre políticas públicas e famílias.
161

é explicitar, ainda que de forma tangencial, os conteúdos das práticas e as


tradições que envolvem a convivência no âmbito público e sinalizar que
serviços voltados para a ocupação do tempo, portanto com foco na oferta de
atividades, voltados à geração de renda, baseados em orientações e condições
enquadradoras das condutas das pessoas, ainda estão muito presentes87.
Poder-se-ia dizer então que são desenvolvidas a atenção de
forma mais adequada à estrutura da unidade e aos objetivos pré-definidos pela
equipe profissional, do que à demanda dos sujeitos usuários, seus sofrimentos,
interesses e suas vivências; condicionar acesso a direitos, a condutas e
comportamentos definidos como adequados e corretos pelo senso do agente
profissional, adotar condutas fiscalizadoras em relação às pessoas são todas
políticas de segregação, embora seus dispositivos sejam mais brandos em
relação aos presentes na trajetória de institucionalização.
Assim, nessa brevíssima recuperação dos elementos presentes
nas experiências e nos debates sobre a convivência familiar e comunitária
entende-se importante ressaltar que o reconhecimento do direito ao convívio se
estabelece numa matriz distinta da que deu sustentação às experiências de
atividades de convivência no campo público até então. E identifica-se essa
diferenciação essencialmente na matriz de sustentação de uma e outra
questão. Nas atividades de convivência, desenvolvidas historicamente, em que
pese sua diversidade de origens e de práticas, sua sustentação está mais
assentada na lógica de enquadramento e padronização de comportamentos,
ou seja, na premissa de ajuste de grupos populacionais à sociedade em franco
progresso. Já a força propulsora do debate sobre desinstitucionalização e
posteriormente o reconhecimento da convivência familiar como direito, assenta-
se no combate ao estigma, confinamento, isolamento e no reconhecimento de

87
Para ilustrar ressalte-se pesquisa desenvolvida por NERY (2009, p.213) nos Centros de Referência de
Assistência Social, em que observa que o trabalho com famílias apresenta duas tendências distintas de
intervenção profissional uma que reedita práticas conservadoras por meio de oficinas ou grupos voltados
ao ensino de atividades, quase sempre manuais ou com instrumento de baixo custo, voltadas à geração
de renda, embora sem nenhuma perspectiva de aferição se há realmente algum impacto na renda
decorrente dessa atividade e tampouco sem compromisso em prover condições para que a habilidade
aprendida possa ser replicada na residência e, ao mesmo tempo, práticas e concepções assentadas na
ideia do desenvolvimento do indivíduo e da família como estratégia para superar desproteções sociais,
embora nesse último caso com “tendências vinculadas à escala individual, com frágil aderência coletiva”.
162

que a convivência familiar e comunitária expressa a corresponsabilidade da


sociedade e do Estado pela proteção de todos os cidadãos. Da nominação de
uma situação a ser enfrentada no campo político e o reconhecimento de que os
sujeitos a elas submetidos têm direitos, decorre uma determinação essencial
na ação pública que dá visibilidade a questões dantes desconsideradas ou
secundarizadas.
A melhor expressão desse compromisso é a forma que se
anuncia a responsabilidade pública pela convivência na Política Nacional de
Assistência Social de 2004 (PNAS/2004). Nesse documento, a convivência
social é entendida como uma segurança a ser provida por essa política e,
sendo assim, trata-se de uma responsabilidade pública com definição de locus
institucional de atribuição regida pelos princípios públicos, dentre os quais o da
obrigatoriedade de condições de igualdade de acesso e publicidade da atenção
no contraponto aos valores morais de ordem religiosa ou privada.

3.3 Convivência Social na Política de Assistência social: desafios do


presente

O salto histórico que provoco nesta reflexão deve-se ao fato de


que minha intenção foi somente sinalizar os contextos nos quais a convivência
social se inseriu na ação programática, quer pela restrição do convívio social
quer para incentivá-lo. Não houve, naturalmente, pretensão de esgotar as faces
diversas dessas práticas que remontam há mais de um século, tampouco
pretendi demonstrar suas muitas inflexões ao longo desses anos, movimentos
que acompanharam os debates das políticas setoriais públicas. Para tanto,
seria necessário maior fôlego de pesquisa e uma motivação de inventariar
experiências, diretrizes de orientação, concepções que as norteiam.
Reconhecendo a relevância de um estudo que recupere as experiências de
fomento ao convívio social no âmbito da política pública e indicando a
pertinência que tal objeto seja explorado, quero frisar que a força motriz da
minha reflexão se assenta mais na direção de considerar os desafios
presentes, o estágio desse debate, a potência das experiências em curso.
Desejo que outras pesquisas possam recuperar tais trajetórias e que a
163

ausência desse levantamento não prejudique a reflexão que agora


desencadeio.
Parto da formulação presente na PNAS/2004, que deriva da
construção do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência
Social da PUC-SP (NEPSAS), que na década de 1990 aprofundou a reflexão
para contribuir com uma definição de quais riscos e coberturas deve se ocupar
a proteção de assistência social no âmbito da seguridade social. (SPOSATI,
1997). O estudo partiu das ações realizadas por organizações sociais88 e
inspirou-se em pesquisa, também desenvolvida pelo Núcleo, sobre padrões de
inclusão/exclusão do qual decorreu o Mapa da Exclusão/Inclusão Social
inicialmente desenvolvido para a cidade de São Paulo e posteriormente
replicado em outras cidades brasileiras.
O raciocínio estabelecido definiu um ponto de mutação pelo qual
se reconheceu coletivamente que a condição vivida pela pessoa expressa, a
partir daquele parâmetro, uma condição de civilidade e de atenções às suas
necessidades desejável diante do padrão de riqueza social, econômica e
cultural construído coletivamente. Portanto, trabalha tendo como referência a
melhor condição de inclusão territorial num extremo, e no outro, a pior condição
de exclusão territorial. Assim, as seguranças de assistência social
representariam esse ponto de mutação que ao serem garantidas, expressariam
um padrão de dignidade e de condição de desenvolvimento a todos os
cidadãos. Previu-se ainda que, em cada uma dessas seguranças houvesse
definição de padrões de inclusão, parâmetros e indicadores que expressam
que aquela condição está assegurada. A proposta do NEPSAS envolvia cinco
seguranças para a política de assistência social incorporadas parcialmente na
PNAS/2004. Nesse documento foram definidas as seguranças relativas à

88
O relato dessa experiência por Aldaíza Sposati, coordenadora do NEPSAS, registra que a busca inicial
era construir um cadastro da rede de serviços socioassistenciais, o que foi feito por uma pesquisa de
campo. A análise dos resultados possibilitou identificar que, após a atenção de provisão do acolhimento, a
atividade mais incidente no campo socioassistencial era a que proporcionava o convívio social. Muitas
das iniciativas pesquisadas ofereciam espaços ou centros de convivência para crianças, adolescentes e
jovens. Assim, em sua elaboração inicial os pesquisadores do NEPSAS denominaram essa área como
segurança de convívio em contraponto à insegurança de isolamento, ou fortalecendo a perspectiva de
vínculos e coesão própria do campo social. (Entrevista concedida em 19 abr.2012).
164

segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida e


convívio ou vivência familiar89.
A formulação inicial do NEPSAS/PUC-SP assim definia as
seguranças de assistência social:

Segurança do convívio social, inclusive o familiar, devendo, para isso


instalar condições para uma política de convivência familiar e
comunitária.
Segurança de acolhida, inclusive aos abandonados, tanto pela via
familiar como a comunitária institucionalizada, por meio de uma
política de acolhida;
Segurança de rendimento como condição de satisfação de
determinado padrão de atenção às necessidades sociais. Aqui os
programas de renda mínima se mostram uma alternativa;
Segurança de equidade como condição de atendimento aos que têm
necessidades especiais, entre os quais os portadores de risco por ma
fragilidade biológica, econômica, etária, social, etc.;
Segurança da travessia, isto é , de construção de possibilidades de
tornar o cidadão alcançável pelas várias políticas sociais,
econômicas, etc. isto significa um conjunto de políticas de apoio”.
(SPOSATI, 1997, p.34)

Ao definir o convívio como uma segurança afiançada pela Política


de Assistência Social, estabelece o compromisso de não aceitar situação de
reclusão e de perda de relações, ou seja, não aceitar situações de isolamento
que configurem desproteção. Assenta-se na afirmativa de que o
comportamento gregário é próprio da natureza humana e que a dimensão
societária da vida é propulsionadora de seu desenvolvimento ainda que a
dimensão multicultural, intergeracional e interterritorial devam ser ressaltadas
na perspectiva do direito ao convívio. Assim, o primeiro enunciado da Política
Nacional que se ocupa de caracterizar a convivência nessa área o faz
configurando a questão como um direito e explicita por contraponto as
situações de violação com as quais deve se ocupar.
No âmbito dessas reflexões que buscam contextualizar a inserção
da convivência como responsabilidade pública, e as discussões que decorrem
dessa direção visando configurar a pertinência desse debate, é oportuno
destacarmos a relevância da Política Nacional de Assistência Social e da

89
A expressão segurança de convivência aparece de forma distinta nos documentos norteadores da
política, ora como convivência, ora como convívio ou ainda associada aos qualificativos convivência
familiar e convivência comunitária.
165

Norma Operacional Básica de 2005 que instituiu o Sistema Único de


Assistência Social. É um fato largamente reconhecido, por pesquisadores,
gestores e profissionais da área e de outros campos, visto o avanço que esses
documentos significaram ao expressar mais claramente a responsabilidade
pública dos entes federados e a forma de gestão dessa política em todo o país.
A afirmativa das seguranças é considerada um marco na busca de definir as
especificidades da Assistência Social como política de proteção social.
JACCOUD, HADJAB e CHAIBUD (2009) ao analisarem os
desafios da Assistência Social ao final da década passada, apontam a
relevância da PNAS, pois é a partir dela que se estabelecem novas bases de
modelos de gestão e atenção da Assistência Social no Brasil. Para elas esse
documento fixa as bases para consolidar os serviços socioassistenciais,
organiza uma nova sistemática de financiamento, consolida o processo de
descentralização, ao mesmo tempo em que busca definir com maior clareza os
princípios e finalidades da Assistência Social e institui um equipamento público
de base como porta de entrada de acesso à política de modo a ampliar os
acessos da população (CRAS). Especificamente quanto às seguranças sociais,
as autoras afirmam:

Quanto às seguranças a serem garantidas – direitos e proteções ao


conjunto da população – as novas regulamentações da Assistência
Social pretendem superar uma visão centrada apenas no indivíduo,
assim como visam atender a demandas amplas e diferenciadas, cujo
objetivo de proteção não se restringe à temática da pobreza. (...)
Seus objetivos, assim, expandem-se tanto para o campo da garantia
de renda quanto para o da oferta de serviços voltados à socialização,
à integração, ao desenvolvimento de autonomia e a defesa e
proteção em situação de violação de direitos como nos casos de
violência, abandono ou trabalho infantil. (2009, p.190-191).

Pretende-se aqui registrar portanto, a força indutora da PNAS e


captar a direção pretendida ao instituir a convivência como uma segurança da
política de assistência social. Vários documentos orientadores do trabalho
profissional90 e da gestão foram publicados a partir de então, especialmente

90
Refiro-me aqui ao Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária – PNCFC/2006, Caderno de Concepções e
Fundamentos do Serviço Socioeducativo Projovem Adolescente (2008);Tipificação Nacional dos Serviços
166

propondo intervenções específicas por grupos etários e para famílias. Para a


construção desses subsídios e orientações foram realizadas, por iniciativa do
governo federal, algumas pesquisas91 para apurar o desempenho e o impacto
dos programas voltados para a convivência92. Mais recentemente foi formulada
a concepção de convivência no âmbito da política de assistência social.
Mas, se a PNAS de 2004 representa um redirecionamento da
assistência social no Brasil, estabelece novas bases para essa política e está
aprovada há quase dez anos, quais os desafios ainda presentes para que sus
diretrizes quanto à convivência social sejam implementadas? Que
consequências para intervenção ela provoca? Que condições exige para que a
objetivação e a materialidade da atenção esteja assentada na racionalidade
técnica e nos princípios éticos e políticos que ela anuncia? Para uma leitura
desses rebatimentos adotei o procedimento de analisar a realidade em diálogo
com especialistas, trabalhadores e pesquisadores da área. Assim, a intenção
foi estabelecer um panorama daquilo que se considera desafios
contemporâneos para que a convivência social seja um direito de assistência
social.
São alguns elementos conjunturais apontados aqui e que
sinalizam os desafios para que a segurança de convivência se transforme
numa finalidade da ação da política de assistência social. A premissa que
orienta essa discussão ressalta que o reconhecimento do convívio como
resposta de provisão de assistência social deve ter consequências para a
política, o que significa desenvolver mecanismos de gestão (financiamento,
gestão do trabalho, instalações físicas) e procedimentos de trabalho
(levantamento de demandas, metodologia de intervenção, estudos sobre
situações que violam a convivência) voltados a essa questão.

Socioassistenciais (2009); Caderno de Orientação para o Serviço de Convivência e Fortalecimento de


vínculos para crianças de até seis anos e suas famílias (2011); Caderno de orientação para o Serviço de
Convivência e Fortalecimento de vínculos para crianças de 6 a 15 anos (2010); Caderno de Orientação
para o Serviço de Convivência e Fortalecimento de vínculos para idosos (2011), Caderno de orientação
para o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família PAIF (2012).
91
Trata-se aqui do Relatório do Projeto Agente Jovem, Pesquisa Qualitativa e Quantitativa para a
implantação do Serviço Projovem Adolescente, um Estudo sobre os Centros de Convivência para Idosos,
pesquisas realizadas pela Secretaria de Avalição e Gestão da Informação do MDS.
92
Os relatórios qualitativos dessas pesquisas não estão disponíveis pelo MDS. O material publicado e
utilizado aqui refere-se aos sumários executivos.
167

O esforço é, portanto, de apurar o momento da reflexão, seu


estado da arte, as polêmicas e consensos construídos, as tendências no trato
da questão. Assim, é possível observar que a discussão da convivência como
resposta programática da assistência social tem ocupado diferentes espaços
de debate, mas a exemplo de outras temáticas dessa área, requer melhor
precisão conceitual e uma pactuação sobre sua especificidade no campo dessa
política pública.
A necessidade de consolidar conceitos mais precisos no âmbito
da política de assistência social, em que pese o substancial aumento de
pesquisas e estudos sobre essa política registrado nos últimos anos93, tem sido
apontada em diferentes debates. Há ainda um vasto campo a ser construído no
âmbito da assistência social que permita uma pactuação coletiva sobre os
compromissos desta política e a consolidação de uma base científica para
sustentar esses compromissos, o que reflete também no alcance dos diversos
documentos orientadores e que está expressa como uma diretriz no Plano
Decenal SUAS-10, ao afirmar que:

A base científica da assistência social se assenta no conhecimento


produzido sobre a realidade das vulnerabilidades e dos riscos sociais
e pessoais a que estão sujeitos os usuários, bem como nos
conhecimentos que sustentam o trabalho social e socioeducativo de
agentes técnicos institucionais no processo de restabelecimento
sociofamiliar e superação das sequelas desses riscos de vida das
famílias e de seus membros e de redução/eliminação de
vulnerabilidades sociais. O incremento da base científica para a
política de assistência social visa gerar capacidade técnica de
resolutividade e qualidade nas respostas da política a cada usuário.
(MDS, 2007, p.38).

Essa questão é especialmente relevante para a Assistência


Social, pois ao contrário da saúde, a construção do debate político/conceitual

93
Em sua tese de doutorado NERY destaca que em pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos e
Pesquisa em Seguridade e Assistência Social – NEPSAS/PUC-SP, da qual participou, identificou entre
1984 e 2005, 324 trabalhos sobre Assistência Social. Destes, 40% da produção encontra-se na PUC-SP,
dois quais 37% são de mestrado e 52% de doutorado. As fontes dessa pesquisa foram os bancos de
dados da Capes e da PUC-SP, considerando as mais diferentes áreas de conhecimento (NERY, 2011,
p.115). Ressalte-se que, pela mobilização que a aprovação do SUAS representou tanto no debate
acadêmico quanto na implementação de unidades públicas em municípios, é possível estimar que esse
volume seja bastante superior em período mais recente. Ainda há que se reconhecer que a Assistência
Social tem sido objeto de análise por Institutos de pesquisas sobre políticas públicas, como é o caso do
IPEA, além é claro, da ampla produção financiada diretamente pelo MDS.
168

no âmbito da assistência social não antecedeu os compromissos firmados no


ordenamento jurídico, mas sua intensificação ocorre após esse
reconhecimento, portanto simultaneamente aos movimentos institucionais que
implementam e ampliam as atenções dessa política.

A inclusão do campo particular da assistência social, no âmbito da


seguridade social proposto pela Constituição de 1988, não encontrou
interlocutores e interlocuções estruturadas e organizadas na
academia, na sociedade civil e nos movimentos sociais. Diversa
situação ocorreu, a exemplo, no âmbito da Saúde que partiu de uma
proposta estratégica (acadêmica, política, de gestão e de poder)
construída nacionalmente (e com apoio internacional da Conferência
de Alma Ata). (SPOSATI, 2004, p.33).

Ressalto essa dinâmica para afirmar que para além das


especificidades do debate sobre convivência social que, dentre outras
questões, está por vezes permeado pelo entendimento de que ela se dá
naturalmente – sem requerer uma ação estatal – as imprecisões conceituais no
campo da assistência social não estão restritas a essa temática. No entanto,
aqui terão uma problematização especial para que se observe como essa
questão tem sido tratada.

Depressa me dou conta de quão enganadora é a falsa naturalidade


da convivência. Quanto mais me acerco dos sem-abrigo mais me dou
conta da distância que nos separa. Quando mais nos aproximamos
do que nos está distante melhor percepção temos da distância.
(PAIS, 2006, p.67)

3.3.1 Sobre imprecisão conceitual

A convivência social é temática ampla e diversa que tem sido


objeto de estudos em diferentes campos da ciência e também em distintas
áreas das políticas sociais. Esta multiplicidade de abordagens tem gerado uma
característica polissêmica e muitas vezes de aparente consenso sobre o seu
teor. Tal polissemia associada às particularidades históricas da assistência
social, dentre as quais se destaca sua construção fora do campo estatal, e aos
169

aspectos próprios da área quanto à ausência de uma base científica, gera


várias imprecisões, ambiguidades e lacunas conceituais.
É facilmente perceptível o esforço para construir parâmetros e
referências para o trabalho social e para a gestão no âmbito da assistência
social. Registra-se, após a aprovação da PNAS, a intensidade desses esforços
que se traduz, como relacionei, em vários documentos norteadores94 para os
serviços e para o trabalho profissional nele desenvolvido. Todavia, é
fundamental observar o rebatimento desses parâmetros no cotidiano da
atenção ou mesmo a clareza desses instrumentos para induzir alterações na
política95. Ao analisar as concepções que orientam a intervenção de
assistentes sociais e psicólogos nos CRAS, NERY (2009, p.238) investiga se
os conceitos são orientadores dos novos modos de fazer da assistência social
ou se há somente uma mudança de terminologia. Ao se debruçar mais
detidamente sobre essa dinâmica, observa as contradições e ambiguidades
dessa relação:

É preciso desenvolver um processo reflexivo crítico sobre os


discursos profissionais, por expressarem contradições reveladoras de
práticas e concepções tradicionais, porém sob o manto da
verbalização contemporânea da assistência social.

Nessa linha de raciocínio, que identifica uma homogeneização do


discurso, mas uma prática dissociada das formulações inscritas nos
documentos orientadores, as especialistas entrevistadas apontam que ainda
permanece certa generalidade nas definições da política e uma reprodução de
diretrizes e princípios de forma automática, hermética e encapsulada, sem que
os sentidos estejam expressos e compreendidos por todos. Essa é uma
questão presente em formulações distintas e complementares na reflexão de

94
Se considerarmos somente as publicações do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à fome,
diretamente relacionadas com a segurança de convivência chega-se próximo de 10 publicações em
quase uma década. Em alguns casos, essas publicações são compostas de vários cadernos.
95
Ao mencionar a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, aprovada em 2009, Denise Colin
afirma: “Em especial para o serviço de convivência, que é esse momento em que estamos agora, o que
está na tipificação, tem sido apontado como insuficiente, para dar sustentação, compreensão e
reconhecimento desta potencialidade da área da assistência social junto a esse público e nesse campo”.
170

todas as entrevistadas. Elas mencionam dificuldade em precisar resultados e


ações para neles chegar, que os profissionais ao serem indagados das
responsabilidades desse ou daquele serviço reproduzem as diretrizes dos
cadernos orientadores sem, contudo, reconstruir-se a lógica que justifica a
inserção de tais elementos nestes documentos norteadores.
Se a construção é de baixo para cima, então os documentos são um
piso e não um teto. A norma é fundamental, ela foi importante, em
alguns lugares inclusive ela acertou o rumo para tirar a assistência
social da mão do Gabinete do Vereador ou do Gabinete da primeira
dama, mas ela não pode aprisionar. Em alguns lugares as pessoas
se acomodaram em cima do regimento. Mas é fundamental refletir e
pensar sobre o que se está fazendo, inclusive para poder rever as
práticas e o que está instituído na norma. Portanto, ao ser indagado
sobre alguma questão não basta afirmarmos está no caderno, isso
não é suficiente para refletir nosso pensamento sobre o
funcionamento dos serviços. (Ana Lígia Gomes)

Essa constatação não é propriamente uma novidade nos debates


sobre o SUAS. Bem ao contrário, evoco aqui tão somente para sinalizar que
permanece como um desafio que a edição de documentos e de orientações
seja objeto de discussão e reflexão dos trabalhadores, para sobre elas também
exercer-se uma capacidade de inovação e de revisão e não só de reprodução.
Um exemplo dessa distância entre o normatizado e o realizado e a necessária
aproximação entre ambos está em FERREIRA (2010) ao analisar a Norma
Operacional Básica de Recursos Humanos, aprovada em 2006:

O conteúdo da NOB-RH é de grande relevância para adequar os


meios necessários à consecução da finalidade pública que orienta a
ação dos trabalhadores, mas não é, em si mesma, o atestado de que
o seu cumprimento expresse, automaticamente, a realização do
dever do Estado para com o cidadão. Entre as práticas jurídicas e as
práticas profissionais que lhe dão materialidade na relação com os
usuários existem proximidades e distâncias na realização das
possibilidade democráticas da política de assistência social.
(FERREIRA, 2010, p.172).

O desafio nacional de unidade de concepção para a construção


do sistema representa um esforço que não é trivial, não só pela dimensão e
diversidade dos territórios, mas também pela complexidade das questões com
171

as quais se lida. Tão logo foi aprovado o sistema, SPOSATI (2004) identificou a
questão:
Ocorre entre os diversos agentes de assistência social: o
desconhecimento sobre o que é o SUAS; há ausência de consenso
sobre o conteúdo e alcance do SUAS; há ausência de unidade de
compreensão – da e sobre a – assistência social; há ausência de um
sistema de comunicação para troca de experiências e informações
sobre a gestão da assistência social. (SPOSATI, 2004, p.172)

Almeida (2011), em sua dissertação de mestrado, ao entrevistar


assistentes sociais e psicólogos de CRAS da região de Presidente Prudente,
afirma que os relatos demonstraram não haver apropriação das novas
orientações da Política de Assistência Social e constatou desconhecimento
sobre seguranças sociais entre oito das nove entrevistadas. Portanto essa não
é uma questão presente somente à época de aprovação da PNAS, mas
permanece como um desafio. Aponta para uma fragilidade conceitual e
normativa dos pressupostos que orientam o desenho da Política de Assistência
Social, na qual as práticas se mesclam entre paradigmas antigos e novos e
demonstra essa afirmação com as falas de algumas profissionais
entrevistadas, sobre seguranças sociais.

Às vezes a gente ouve falar, mas na prática a gente acaba se


perdendo" (E9)

Não, não sei, não informamos, de forma teórica não, não vejo ainda
esse vínculo com essas seguranças (E2) (ALMEIDA, 2011, p.111).

Para a pesquisadora, esse dado pode indicar que as ações


profissionais possam estar pautadas em práticas antigas com um discurso de
mudança de paradigma do direito, sem contudo, se utilizarem de estratégias
para avaliar seus efeitos. Com base nos estudos, conclui:

(...) a segurança de convivência familiar e comunitária configura-se


ainda um espaço um tanto indefinido, seja no planejamento de ações
pelos profissionais dos CRAS, seja no que concerne aos resultados
dessas ações para o fortalecimento de vínculos familiares e
comunitários, o qual pode e deve avançar em processos coletivos.
(ALMEIDA, 2011, p.153)
172

Para discutir a convivência social, alguns conceitos são


estratégicos, pois sua definição contribui também para definir linhas do trabalho
e para o posicionamento político sobre os objetivos dessa intervenção no
campo da assistência social. Ao ter em conta alguns desses conceitos-chave,
estratégicos e basilares, é necessário considerar o debate sobre território. Para
Dirce Koga, esse é um exemplo de imprecisão conceitual que rebate na
concepção de convivência social como responsabilidade pública estatal. Para
ela, tomar o território como uma referência no desenho da política, ainda é um
desafio que tem impactos na concepção de convivência e no desenvolvimento
de atenções que buscam seu fortalecimento, pois é o olhar para o território que
permite identificar situações de violação de convivência ou de rompimento de
vínculos, o que exige tomar o território em suas dimensões cultural, social,
econômica e política. Nesse sentido, o território precisa ser compreendido e
estudado em suas dinâmicas internas, nas tramas tecidas e práticas nele
vividas quanto ao trabalho, moradia, consumo e uso de serviços, por exemplo.
(TELLES, 2006)
Olhar o território vivido para discutir convivência tem uma força
indutora para apontar situações/condições advindas da própria organização ou
desorganização dos lugares que afetam a convivência, fortalecendo-a ou
violando-a. Mais adiante, pretende-se apontar essa questão como um campo
de conhecimento ainda a ser desenvolvido. Ressalte-se porém que estudos
como os de KOWARICK (2009), TELLES (2006 e 2010) e MARQUES (2010),
sob diferentes perspectivas apontam a necessidade de melhor se conhecer a
dinâmica cotidiana e o impacto que ela tem sobre a sociabilidade. As periferias
das grandes cidades ou os espaços de menor densidade populacional em
áreas rurais têm sofrido alterações significativas se comparados, por exemplo,
com a conformação na década de 1980. Essas mudanças precisam ser
reconhecidas para que seja compreensível as dinâmicas relacionais ali
estabelecidas.
TELLES (2006, p.12) aponta que compõe hoje a paisagem urbana
os grandes equipamentos de consumo, mesmo nas periferias da cidade.
173

Nesses locais há movimentos, forças, processos, tensões, disputas, todos


desencadeados inclusive pelo mercado e que provocam mudanças importantes
“nas dinâmicas familiares e na economia doméstica, nas formas de
sociabilidade e redes sociais, nas práticas urbanas e seus circuitos”. Essas são
questões pouco discutidas ao tratar de convivência na assistência social.
Outro conceito que requer melhor precisão para provocar
entendimentos sobre a concepção de convivência na assistência social diz
respeito às vulnerabilidades para as quais a assistência social tem que produzir
resposta. Essa é outra dimensão importante para fortalecer esse rigor
conceitual. Aldaíza Sposati insiste na necessidade de que a concepção de
vulnerabilidade, como objeto de atenção da assistência social, seja alargada
para além da dimensão material, se reportando a questões afetas à
sociabilidade e à dimensão relacional como igualmente importantes para
configurar demandas que exigem resposta da assistência social. Como tem
sido frisado ao longo desse estudo, apontar tais fontes para avaliar a
vulnerabilidade e as condições de proteção da família face às demandas
associadas ao território no qual vive, remete ao Estado na oferta de política
públicas.
Esta defesa associa-se ao fato de que a concepção de
vulnerabilidade presente na PNAS/2004 não foi completamente desdobrada e
tem gerado discussões e reflexões sobre sua capacidade de melhor explicitar
os compromissos dessa área. Dentre as entrevistadas, Denise Collin, Dirce
Koga e Carla Bronzo destacaram a relevância de que se alcance uma
definição96 mais precisa sobre quais vulnerabilidades estão no campo de
responsabilidades de respostas da assistência social.

96
Outras autoras, também ligadas à área, questionam a adoção desse conceito, por entender que, uma
concepção mais alargada de pobreza que a considere em suas múltiplas dimensões seria mais pertinente
do que adotar-se o conceito de vulnerabilidade. Entendem que a associação do conceito de
vulnerabilidade com o de risco pode ter como implicação a associação às noções de debilidade e
desvantagem, concepções que consideram não capturar as diferenças que marcam a realidade e a
diversidade nas condições de vida da população em geral. (AGUIRRE e WANDERLEY, 2009, p.160 -
162).
174

É fundamental indicar o conjunto de vulnerabilidades que aportariam


a intervenção da política de assistência que seriam assumidas pelos
serviços e que devem responder qualitativamente a essas
vulnerabilidades e prestem essas seguranças e essas garantias.
(Denise Colin)

Ressalte-se que o objetivo aqui, mais do que procurar desdobrar


os debates e buscar afirmar a pertinência desse ou daquele conceito, é apontar
justamente que o campo de imprecisão é grande e que é fundamental “abrir”,
descrever e qualificar conceitos. Para a reflexão sobre convivência social essa
é uma questão importante, pois exige compreender que condições – sejam
decorrentes do lugar em que se vive, das relações de trabalho, de vizinhança,
familiares, entre outras – tornam indivíduos e grupos mais vulneráveis e qual
intervenção é capaz de reduzir, reparar, mitigar ou eliminar os impactos da
vivência nessas condições. Para ilustrar esse desafio, relembramos os
impactos na sociabilidade que a vivência em cortiços representa:

Mais do que nas favelas e nas casas de periferias, viver em cortiço


requer o aprendizado de uma sociabilidade apurada no retraimento,
já que o cotidiano é frequentemente marcado pela proximidade
indesejada do outro: a privacidade constitui algo permanentemente
invadido. Trata-se de um local em que ninguém é de ninguém, pois
“ninguém tem seu espaço”. (KOWARICK, 2009, p.283)

Mas, o próprio conceito de convivência não está suficientemente


explicitado no âmbito da assistência social. Nos documentos oficiais, a menção
à convivência é quase sempre acompanhada da expressão fortalecimento de
vínculos, inclusive na denominação dos serviços de proteção básica que se
voltam a essa finalidade. Mas, para entrevistadas como Carla Bronzo e Aldaíza
Sposati, por exemplo, esses são dois conceitos distintos e que têm por
consequência diferentes orientações programáticas. Ao expressar suas
reflexões sobre a questão da convivência, afirma em entrevista Isaura Isoldi:

Eu me pergunto desde quando discutimos o Plano de Convivência


Familiar e comunitária, o que é trabalhar com convivência? Tem a
convivência que as pessoas constroem no seu dia-a-dia; a familiar,
com os vizinhos, com os equipamentos do bairro, com a escola, com
a igreja - cada vez mais fortemente - e com o trabalho. Dependendo
do território isso é muito diferenciado, quando fizemos a pesquisa
sobre homicídios na periferia da periferia, onde a cidade não tem
mais verde só tem marrom, a vida na rua é extraordinariamente
175

movimentada, porque está todo mundo na rua, sem trabalho, sem


escola e elas convivem parametradas pelas possibilidades locais, que
passa pela falta de equipamentos de todos os tipos, pelo uso da
droga e pelo acesso ao bar. (...) Como construímos a convivência
como direito? O ser humano é gregário, ele convive, o direito à
convivência está dado. Como se quer essa convivência? O trabalho
social tem fomentado possibilidades de convivência? Penso que não
criamos muito em torno disso.

Carla Bronzo retoma a concepção de que convivência é estar com


outros, é propiciar espaços de troca e diálogo. Já o fortalecimento de vínculos
pressupõe uma fragilidade, uma situação na qual os vínculos precisam ser
fortalecidos, mas não é em qualquer circunstância que isso se manifesta. Pode
ser dentro da família, na dificuldade de convivência com seus pares, na escola
ou em quaisquer outras circunstâncias. Essa constatação exige uma
capacidade de diagnosticar como se manifesta a fragilização de vínculos e a
necessidade de dizer como serão fortalecidos.
Ao discutir a especificidade dos vínculos, ela aponta também que
é necessário distinguir e “desempacotar” o que são vínculos. Isto porque, por
exemplo, vínculos familiares e comunitários – duas expressões muito presentes
nos enunciados da política de assistência social – são categorias distintas e
poderiam representar eixos diferentes na organização do trabalho. Para ela, o
vínculo familiar associa-se mais a uma dimensão psicossocial e talvez a
intervenção seja mais orientada numa direção terapêutica. Já nos vínculos
sociais e comunitários a metodologia seria mais para fora, mais coletiva e
menos intrafamiliar. Assim, a conotação e os objetivos do trabalho seriam
distintos.
Para Aldaíza Sposati a relação entre vínculos e convivência se dá
na seguinte dimensão: a convivência é a forma de concretizar o trabalho, é a
metodologia empregada, mas a finalidade é o fortalecimento de vínculos entre
as pessoas, entre elas e o território, entre o território e os serviços, etc. Logo,
nessa concepção, a convivência é forma e vínculos fortalecidos o resultado
esperado da intervenção.
Assim, ao constatar a insuficiente definição conceitual sobre
convivência no âmbito da assistência social afirma Denise Collin, gestora
federal, que ainda que não se chegue a um consenso, é fundamental apontar
176

uma concepção, sustentada em torno da literatura e da discussão acadêmica


inclusive para provocar reflexões que possam gerar uma revisão da concepção
ao longo do tempo.

3.3.2 Sobre conhecimento limitado da realidade e baixo reconhecimento


de desproteções do campo relacional

A população com a qual trabalha a política de assistência social tem


necessidades e características pouco conhecidas ou pouco
incorporadas na produção do conhecimento científico, em virtude das
desigualdades existentes no país e decorrente dos poucos estudos
voltados efetivamente para as condições reais e concretas dessa
população. Assim, o trabalho social produz conhecimento, logo na
gestão da assistência social tem que haver espaços para trabalhar
esse conhecimento gerado pela prática, pois isso é muito pouco
estudado e incorporado. (Aldaíza Sposati)

Outro desafio presente no discurso de especialistas diz respeito à


necessidade de conhecer a realidade para desenvolver metodologias de
fomento ao convívio e que fortalecem vínculos. Essa é uma questão apontada
na PNAS em 2004, ao afirmar que:

A proteção social exige a capacidade de maior aproximação possível


do cotidiano da vida das pessoas, pois é nele que riscos,
vulnerabilidades se constituem. Sob esse princípio é necessário
relacionar as pessoas e seus territórios, no caso os municípios que,
do ponto de vista federal, são a menor escala administrativa
governamental.(...) O conhecimento existente sobre as demandas por
proteção social é genérico, pode medir e classificar as situações do
ponto de vista nacional, mas não explicá-las. Este objetivo deverá ser
parte do alcance da política nacional em articulação com estudos e
pesquisas. (PNAS, 2004, p.10)

Os estudos e pesquisas sobre o trabalho profissional na


assistência social têm reafirmado a necessidade de ampliar o conhecimento
sobre o cotidiano, o que exige uma capacidade de observar, refletir e agir no
tempo presente e quase simultaneamente. Isto porque a realidade não é
177

estática, mas processual. Logo, as explicações de praxe que “enquadram”


situações, antecipam julgamentos ou afirmam como as “coisas funcionam”
antes mesmo de observá-las em funcionamento são insuficientes para dar
conta de um maior domínio sobre as condições de vida da população atendida,
especialmente no que se refere às relações familiares, na vizinhança e nos
serviços utilizados. Assim, em pesquisa já mencionada, Vânia Nery aponta a
fragilidade do trabalho no território, afirma que embora o termo tenha sido
incorporado no discurso profissional não significou sua apreensão a pleno “nem
do ponto de vista conceitual nem do seu significado como ferramenta de
conhecimento e intervenção territorializada da Assistência Social. (PNAS,
2004, p.226).”
Essa limitação do conhecimento do cotidiano tem uma
intensidade importante quando se considera as desproteções do campo
relacional. São situações ainda não suficientemente avaliadas no trabalho
social da política, até porque não há um pleno reconhecimento das
responsabilidades sobre elas. As informações que mais frequentemente os
profissionais levantam no trabalho social se relacionam à condição de renda,
ao número de pessoas morando no mesmo domicílio e à inserção no trabalho,
educação e saúde.
Em pesquisa realizada em 2010 pela FIOCRUZ e o MDS 97 sobre
os instrumentos de trabalho utilizados por CRAS e CREAS, é possível observar
que as informações relacionadas à condição econômica da família são
registradas em 100% dos procedimentos de trabalho e consideradas
importantes pelos profissionais destas unidades públicas estatais. Todavia, a
abordagem não observou, nos instrumentos adotados, campos para registro de
desproteções relacionais. A única exceção diz respeito a eventos de violência
ou negligência registrados em 83,7% nos CRAS e 95,8% nos CREAS, sendo
que nos CRAS todos os profissionais entrevistados consideram essa

97
A pesquisa foi realizada em 20 municípios brasileiros pelo Centro Latino-Americano de Estudos de
Violência e Saúde Jorge Carelli da Fundação Oswaldo Cruz (CLAVES/FIOCRUZ) em parceria com o
MDS, e teve como objetivo “construir uma proposta de padronização nacional dos modelos de registros
dos atendimentos realizados no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) pelos Centros de Referência
de Assistência Social (CRAS) e pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social
(CREAS)”.
178

informação importante; nos CREAS esse percentual é um pouco menor, visto


que 95,8% dos profissionais consideram importante o registro desses eventos.
(MDS, 2011, p.19-25)
Na leitura dos resultados da pesquisa é possível observar um
vasto campo de medidas a serem adotadas para padronizar os instrumentos de
levantamento de informações sobre a realidade e assegurar seu uso na gestão.
Importa aqui destacar, porém, que as informações têm como foco prioritário a
renda e termina por dirigir o trabalho profissional e o relato dos usuários, que
demandam a política naquilo que ela informa oferecer. Assim, é possível inferir
que vulnerabilidades expressas ao longo do ciclo de vida não ganham
relevância para o planejamento do trabalho profissional e, por isso mesmo, não
são registradas nos instrumentos de trabalho, nem tem campo específico para
serem inseridas. Em decorrência pode-se afirmar que essas questões não são
reconhecidas como demanda de proteção a configurar respostas públicas98 no
campo da assistência social.
Essa é uma temática da qual tenho me ocupado em processos de
capacitação de trabalhadores do SUAS. Mais recentemente, para apurar o
reconhecimento dos trabalhadores quanto às responsabilidades da política de
assistência social sobre desproteções no campo relacional, fizemos 99 um
levantamento com um rol de situações analisadas pelos profissionais.
Ele foi preparado com base na PNAS/2004, um instrumento de
pesquisa sobre capacidade protetiva de famílias aplicada pelo NEPSAS em

98
Em um exercício desenvolvido por mim, Stela Ferreira e Neiri Chiachio, e aplicado junto com Rose
Ferreira, Sheila Marcolino e Stela Ferreira em 05 municípios paulistas com pouco mais de 300
trabalhadores do SUAS em processo de capacitação, simulamos situações que exigiram intervenção da
política por um período hipotético de dois anos. Nessas simulações estavam elencadas situações de
conflito, de violência e outros agravos do campo relacional e solicitávamos que propusessem uma
intervenção e relatassem para uma reflexão coletiva o trabalho desenvolvido e os resultados alcançados.
Invariavelmente, o resultado apontado foi a melhora da renda quer seja por inclusão em programas de
transferência de renda ou por inclusão no trabalho e a inserção na educação e saúde, as situações de
conflito “desapareceram” dos relatos quando os profissionais partilharam o trabalho desenvolvido.
Contudo, não há registro/relato do trabalho profissional voltado a essas violações. Tal exercício se
constituiu em um ponto de partida para que nesses encontros pudéssemos dialogar com os profissionais
sobre o trabalho social a ser desenvolvido em serviços.
99
Esse estudo foi desenvolvido em três municípios paulistas, em parceria com Stela Ferreira e Sheila
Marcolino, no âmbito de processos de capacitação voltados aos trabalhadores de proteção básica e
especial. Indagamos de mais de cem profissionais se reconheciam situações de desproteção no campo
relacional como responsabilidade da assistência social; também verificamos a responsabilidade da
assistência social e a presença de instrumento para colher essas informações.
179

2011 e a formulação inicial do Prontuário SUAS, em debate. O exercício se


desenvolveu de maneira que, em grupo, os profissionais foram convidados a
classificar e justificar se o descritor apontado configurava ou não uma demanda
para a assistência social ou se dependia de alguma circunstância agravante
para se configurar como tal.
Em que pese o instrumento (quadro de descritores anexo) não ter
sido aplicado tendo a pesquisa como foco central, mas como ferramenta para
estimular o diálogo com profissionais sobre demandas de proteção de
assistência social, registra-se aqui algumas impressões iniciais que permitem
afirmar que várias situações ao longo do ciclo de vida – que são manifestações
de abandono, isolamento, vivência de discriminação ou de conflito – não têm
sido apuradas pelos profissionais na sua inserção nos territórios,
especialmente na proteção básica, e tampouco no seu diálogo direto com os
usuários. Logo, não são objeto de atenção no trabalho profissional. Cabe
também destacar que na condução do exercício não está em questão as
conexões com a intervenção de outras políticas, mas o reconhecimento dessas
demandas para configurar o campo de responsabilidades de assistência social.
Assim, um primeiro aspecto a apontar diz respeito ao baixo
consenso na classificação das situações mencionadas. Das 22 situações
analisadas, somente quatro tiveram a mesma classificação em todos os
grupos. Trata-se de a) famílias vítimas de violência com adolescentes ou
jovens institucionalizados, b) idoso vítima de maus tratos ou violência em
instituições de abrigo; c) presença de maus tratos/violência no ambiente
familiar e d) vivência de situações de discriminação (ou isolamento social)
relacionada com a cor, origem, religião, local de moradia, sexo, orientação
sexual. Observe-se que três situações imediatamente reconhecidas por todos
os grupos como demanda de proteção de assistência social estão associadas a
situações de violência. Registra-se também um consenso ao analisar a
vivência de situações de discriminação. Nesse caso, os grupos analisaram que
depende de alguns agravantes para se configurar como demanda de
assistência social e o principal deles diz respeito à inexistência de recursos
180

financeiros para o acesso aos mecanismos de defesa ou para enfrentar


agressões.
Em todas as demais situações houve divergências na
classificação. Em algumas delas como paternidade na adolescência; cuidados
com membros da família doentes com algum grau de dependência; famílias
que residem há pouco tempo na cidade; conflitos constantes entre adultos da
família; gravidez na adolescência e jovem em medida de internação foram
classificadas em mais de uma categoria pelo mesmo grupo. Ou seja, o campo
de imprecisão quanto à responsabilidade sob essas situações é ainda maior.
Destaca-se ainda que várias situações foram classificadas, em
pelo menos um dos grupos participantes, como questões que não representam
demanda para a assistência social. É o caso de cuidados com membros da
família em dependência de droga; paternidade na adolescência; conflitos
constantes entre adultos da família; fuga ou desaparecimento de pessoas da
família; famílias residentes há pouco tempo na cidade; presença de pessoas
com deficiência que permanecem períodos do dia em casa sem companhia de
um adulto; momentos de tristeza e desânimo; cuidados de pessoas em
sofrimento mental; adolescente ou jovem membro da família em medida de
internação e gravidez de adolescentes. Nessas situações entendem os
profissionais que a responsabilidade está afeta a outras políticas,
especialmente à saúde, à segurança pública quando se trata de fugas, ou ao
sistema de justiça, quando se trata de adolescentes em medida de internação.
Quando instigados a construírem argumentos para justificar os
motivos que levam ao reconhecimento de uma situação como demanda de
assistência social, o principal argumento diz respeito ao que está previsto na
legislação ou nos documentos orientadores da política, ou seja, acata-se
determinação, mas não se construiu convicção. Em segundo lugar mencionam
a existência de serviços para aquela situação, ou seja, quando uma questão já
é atendida na política ela é legitimada como sua demanda. A esse respeito
cabe ponderar que, se de um lado essa construção demonstra a força indutora
das diretrizes pactuadas no âmbito da política, de outro permite inferir que
esses documentos foram parcialmente incorporados e interpretados, posto que
181

situações também pactuadas como demandas da assistência social e inscrita


em documentos como a tipificação nacional de serviços socioassistenciais são
interpretadas como responsabilidades de outras áreas, como é o caso da
gravidez na adolescência, por exemplo, entendida como uma questão de
saúde, o que desconsidera os impactos da vivência dessa experiência na
convivência familiar e comunitária. Ou mesmo a vivência de situações de
conflito, que nas diretrizes para serviços de convivência estão previstas como
questões a serem abordadas no trabalho profissional.
Para Denise Collin, o campo de responsabilidade da assistência
social sobre situações que afetam a convivência se estabelece ainda que o
fator desencadeante esteja ligado a outra política setorial:

É necessário haver uma atenção para situações que embora não


sejam de responsabilidade direta da assistência social, se associadas
a outras fragilidades, geram uma demanda para a política. É o caso,
por exemplo, do desemprego associado à ausência de família ou
dentro de famílias com vínculos fragilizados ou ainda as situações de
descumprimento de condicionalidades do Programa Bolsa Família,
pois isso significa a ausência de atenção da saúde e educação. Há
ainda outro campo de questões, como as situações de negligência
com pessoas da família que tenham demandas de atenção.

Por outro lado, a análise de responsabilidades a partir da


demanda assumida também representa uma limitação importante, pois se
restringe a reproduzir o que já é feito ou a dar continuidade no atendimento
àqueles que já chegaram aos serviços, não estendendo essa responsabilidade
para situações que não se apresentaram nas unidades e que não estão
incorporadas nas atenções assumidas pelos serviços. O desafio de tornar
visível os invisíveis transformados em casos individuais, assumido na PNAS ao
tratar da necessidade de conhecimento da realidade, não será enfrentado se
esse ciclo restritivo e vicioso for mantido, e, por consequência, cada vez mais
as situações de violação terão que ser resolvidas pelos próprios sujeitos que as
sofrem.
Para ilustrar o baixo reconhecimento das situações para as quais
a política de assistência social deve produzir resposta e, portanto, deve
conhecer e definir metodologia de intervenção, observa-se que quando
instigados a produzirem resposta sobre as situações que dependem de outras
182

circunstâncias para se configurarem como demanda de assistência social, os


profissionais participantes desses processos de capacitação tendem a construir
condicionantes a serem verificados no “caso a caso”. Assim, somente nas
circunstâncias nas quais não há nenhuma outra retaguarda de proteção se
configuraria a responsabilidade pública.
O raciocínio é seletivo e não universalizado. Assim, pela lógica
adotada, uma pessoa que sofre uma discriminação relacionada à sua origem
ou à sua orientação sexual, por exemplo, seria atendida e orientada nos
serviços de assistência social se não tivesse condições financeiras de instituir
uma defesa legal. Ou ainda, crianças pequenas que permanecem períodos do
dia sozinhas em casa, teriam acesso a serviços de convivência se, e somente
se, não houvesse nenhum parente ou vizinho que pudesse ao longo do dia
“passar” na casa para verificar se está tudo transcorrendo bem.
Raciocínio similar se aplica a várias situações. Gravidez e
paternidade na adolescência é uma temática a ser debatida se os futuros pais
forem frequentadores dos serviços; em caso de falecimento de pessoa da
família, cabe orientação somente se essa família for referenciada em serviço.
Nesses casos cabe orientar quanto ao acesso aos benefícios, mas não há
menção ao impacto dessa situação nos vínculos familiares. Se a família não é
referenciada, o atendimento pode ser feito por outros serviços, pois a principal
atenção refere-se aos procedimentos para sepultamento. Assim, o
entendimento estabelecido na reflexão coletiva é que nesses casos não cabe
atenção de assistência social. Em outro exemplo, as famílias recém-chegadas
podem ser orientadas pelos vizinhos, pessoas deficientes que permanecem
sozinhas em casa se têm condições de realizar as atividades de vida diária não
requerem atenção de serviços. E por aí vai, o raciocínio é de restringir
responsabilidade e não alargá-las.
Pode-se afirmar que o princípio da subsidiariedade impera nessa
construção, ou seja, o Estado atua em último caso quando as famílias ou
indivíduos não podem, com seus recursos, assumir as responsabilidades.
Lógica inversa à ideia republicana do Estado como garantidor de direitos, o que
pressupõe que deve a proteção estatal se antecipar à vivência de violências e
183

violações e não só atuar na sua reparação. A manifestação nos enunciados do


SUAS sobre as responsabilidades para alargar acesso vai na direção de
antecipar e não restringir aquele que chega.

A rede de proteção social da assistência social tem por primeiro


objetivo a proteção ao ciclo de vida, isto é, o dimensionamento de
apoios às fragilidades dos diversos momentos da vida humana como
também de apoios aos impactos dos eventos humanos que provocam
rupturas e vulnerabilidades. (SPOSATI, 2004, p.42)

Ressalte-se ainda que a regulação “caso a caso” dá margem à


discricionariedade dos profissionais que num composto de vários elementos
decidem em quais circunstâncias cabe a intervenção pública. Logo, não se
constroem padrões universais nem há previsão e planejamento para assumir
essas demandas.
Se não há reconhecimento da demanda, não há preocupação
para construir o conhecimento sobre essas situações e sobre o trabalho para
enfrentá-las. Para Carla Bronzo é necessário identificar as situações de
fragilização de vínculos, por exemplo, e como são motivadas. Tem relação com
ausência de autoridade ou de afetividade? É preciso saber o que olhar para
saber quais efeitos se pretende criar e como o trabalho está funcionando. Em
sua experiência de pesquisa e de acompanhamento do trabalho nos CRAS,
observa que é muito comum nos usuários dos serviços as dificuldades de
relacionamento (conflitos), de diálogo e de pensar. Essa dimensão precisa ser
olhada a partir de instrumentais que possam registrá-las e indicadores que
permitam demonstrar mudanças desencadeadas pelo trabalho.

(...) Hoje em dia a gente percebe, eles vêm e perguntam quando é o


grupo, o interesse deles pela atividade de grupo, começa a perceber
a importância disso pra eles. Eu achei a aproximação da equipe com
o usuário, até a gente conseguir identificar situações que passava do
nosso lado e a gente não sabia da situação que aquele usuário
estava vivenciando, e através do grupo [isso passou a ser possível].
porque você trabalhar com quinhentas pessoas você não consegue
identificar, faz a entrevista e tudo, mas às vezes nem tudo sai
naquela entrevista, na hora que faz o cadastro. (Coordenadora
Técnica, Centro Intergeracional Zoé Gueiros, Belém)
184

Cabe ressaltar, porém, que na simulação com os profissionais


realizada em espaços de capacitação, foram observadas muitas divergências e
dissensos no debate; portanto, os argumentos muitas vezes foram refutados ao
longo dos encontros pelos próprios participantes. Assim inserimos essa
construção exclusivamente para demonstrar imprecisões, desconhecimentos e
a ausência de reconhecimento sobre situações próprias do ciclo de vida que
podem afetar a convivência, mas que não tem sido suficientemente abordada,
avaliada e analisada pelos profissionais. A esse respeito ressalto que alguns
profissionais mencionam que discutir as demandas sob essa perspectiva
representa uma novidade, posto que não têm observado esses aspectos,
mesmo quando se trata de profissionais que atuam em serviços de
convivência:

Essa discussão ajuda a quebrar nossos preconceitos e parece mais


fácil quando olhamos demandas e vulnerabilidades numa dimensão
coletiva. (Participante G4 )
A discussão permite identificar demandas que por vezes são
ignoradas por nós. (Participante G3 )
Ficou claro que nosso desafio é tornar visível essas situações que
estão no cotidiano do serviço e que não temos olhar para elas, como
vamos identificar e trabalhar com essas questões no cotidiano?
Pudemos viver a situação estando fora do cotidiano e isso foi muito
interessante. (Participante G4 )

Nas entrevistas realizadas para esse estudo, Dirce Koga foi uma
das analistas que mais enfaticamente destacou a necessidade de aprofundar o
conhecimento para o trabalho voltado à convivência social. Ela enfatiza a
importância de sua vinculação com o conceito de território, como uma
estratégia para melhor conhecer a condição vivida pelas pessoas e como
mecanismo para estabelecer pactos coletivos de responsabilidade que
superem a análise caso a caso e a responsabilização individual que decorrem
dessas leituras. Observa que a política está um pouco distante da ideia de
território, aponta que essa categoria precisa ser melhor explicitada,
especialmente ao considerar Milton Santos que afirma o sentido do território se
dar em seu uso e não numa definição conceitual prévia. A partir desse
raciocínio, entende que é “o uso” que está em questão na política, ou seja, as
relações que as pessoas estabelecem no território e como ele pode ser
incorporado à prática profissional.
185

O distanciamento do que seria uma política de proteção social a


partir do território gera, por consequência, uma lacuna do que é pensar uma
convivência e vínculos a partir desta referência. Para fortalecer essa relação
seria necessário conhecer melhor o que acontece nos territórios e os tipos de
convivência, o que exige considerar que nem sempre elas são pacíficas e/ou
harmônicas entre as pessoas, entre as famílias e no interior destas.
Aponta que esse destaque é necessário porque, por vezes,
localiza na discussão sobre a convivência um imaginário de harmonia que é de
certa forma uma idealização do que acontece no território e está distante do
que ela denomina um “embaralhamento” de muitas coisas acontecendo
simultaneamente no território.
Buscando acentuar a importância de ampliar o campo de
conhecimento do território e das situações nele vivenciadas, afirma NERY
(2009, p.222):

Os dados das entrevistas revelam que a função vigilância social


operada através do reconhecimento do território, por meio da busca
ativa ou do acesso e domínio das ferramentas de informação,
encontra-se ainda em estágio inicial, não fazendo parte dos
protocolos profissionais. Do ponto de vista da busca ativa, alguns
fatores desencadeantes são relacionados: falta de recursos humanos,
ausência de veículos para locomoção, e, ainda, certa tendência em
esperar o usuário no CRAS atrás das escrivaninhas.
Ventila-se, desde 2004, que o CRAS é a porta de entrada do SUAS,
todavia, deverá se constituir uma porta de dupla via, uma para a
entrada do usuário e outra para a saída do profissional [também para
favorecer a entrada do usuário] no reconhecimento da dinâmica do
território, o que ainda não se observa ocorrer sistematicamente.

Entender essa dinâmica territorial exige conhecimentos teóricos,


instrumentais e práticos para lidar com distintas questões relacionadas ao
conflito e com o que Vera Telles (2010) chama ilegalismos e informalidades,
que estão longe de uma “normalidade” de convivência. Essas situações
ocorridas nas cidades, mesmo que eventualmente sejam detectadas e
conhecidas, não são vinculadas a respostas que a política pretende prover.
Aparentemente são dois mundos distintos.
Assim, Dirce Koga observa uma distância ou desvinculação entre
respostas e situações concretas a enfrentar. O que para além das situações já
186

mencionadas, pode também ser percebido nos desenhos institucionais da


política e dos programas, no que se refere aos critérios de inclusão ou das
contrapartidas exigidas. Elas partem de um pressuposto de normalidade e de
sedentarismo na contramão do que se observa na atualidade, uma realidade
muito dinâmica na qual as pessoas não têm segurança se estarão amanhã no
mesmo lugar no qual estão hoje. Há pessoas que têm dívidas com o tráfico, por
exemplo ou não têm vínculo com o lugar, como as que estão em situação de
rua. Essa desvinculação de uma moradia não lhes permite dar um endereço,
condição básica para participar dos programas governamentais. Esse é,
portanto, um sintoma desse distanciamento entre a realidade e os critérios de
elegibilidade ou de inclusão dos programas.
Ao reafirmar uma tendência a análises individualizadas das
situações vividas, Dirce Koga aponta que é possível observar que o olhar da
política está muito mais voltado para o perfil das pessoas e das famílias do que
para o perfil dos lugares nos quais as pessoas se encontram,

Estamos mais baseados em quem as pessoas são e do que elas


precisam individualmente ou familiarmente no máximo, e não temos
levado em conta onde as pessoas estão inseridas e as condições em
que se dá essa inserção, entendendo-as como parte da condição de
vida.

Dando continuidade ao raciocínio, Dirce Koga afirma que a


ausência de uma perspectiva territorial gera uma abordagem muito
individualista na política. A proteção tem sido voltada mais para
vulnerabilidades e riscos pessoais e menos sociais. A categoria social ainda é
muito restritiva e limitada, devendo ser alargada, especialmente do ponto de
vista de vínculos com o território, pois isso não é trabalhado. Portanto,
recuperar a ideia de território vivido exige muito avanço no debate, tanto na
proteção básica quanto na proteção especial, porque comumente há uma
referência ao território de moradia.

Mas se considerarmos a dinâmica de vida nas grandes cidades,


observa-se que o território de menor permanência das pessoas é
justamente o território de moradia, pois há necessidade de grandes
deslocamentos na cidade para acessar trabalho e escola, por
exemplo. Assim, o território da moradia é somente um território a ser
187

considerado, os demais territórios vivenciados e que são lugares de


referência, são ainda desconhecidos e precisam ser analisados. É
fundamental identificar quais os territórios usados pelas populações,
pois ruas, praças, instituições, também são territórios e neles também
há códigos de convivência e há vínculos criados. (Dirce Koga)

E mesmo ao tratar exclusivamente com o território de moradia, as


relações nele estabelecidas também não são observadas e reconhecidas pelos
profissionais. Para sobreviver as pessoas estabelecem distintas relações e
vivências que não se limitam a casa ou ao trabalho, há outras redes com as
quais a pessoa precisa estabelecer conexões que envolvem, por exemplo, o
tráfico ou pessoas que comercializam diferentes mercadorias nos territórios
mais distantes. Nesses casos, também se estabelecem vínculos que podem
ser de dependência e de dívida material e social, portanto há aqui uma
convivência fundamental para a sobrevivência e que não tem característica de
proteção exclusivamente e pode até mesmo representar uma ameaça e uma
tensão.

As políticas não estão presentes no território no horário noturno e aos


finais de semana. Elas são diurnas, mas são nesses momentos em
que as maiores demandas para a política estão expressas. Não
conseguiremos conhecer o território se o considerarmos somente em
uso parcial. (Dirce Koga)

Reafirma, portanto, a partir desses exemplos que a discussão do


vínculo e da convivência está assentada numa ideia de sedentarismo do
usuário da política e no pressuposto de harmonia das relações, que é
totalmente contrária ao que se observa quanto às condições e as dinâmicas de
vida das pessoas. Estas se deparam com muitas incertezas, o que obriga a
circulação em diferentes territórios, especialmente considerando a instabilidade
de trabalho e de moradia.
Assim, as ponderações de Dirce Koga reafirmam que construção
da convivência como segurança na assistência social exige desenvolver
conhecimento sobre modos de viver e manifestações de situação de
188

desproteção e de conflito, temáticas ainda insuficientemente reconhecidas no


desenvolvimento do trabalho.
Simone Albuquerque compartilha dessa perspectiva e acrescenta
uma direção que requer estimar os custos sociais e econômicos da ausência
de convivência e da apartação. Isto requer explicitar que essa ausência
representa situações de confinamento territorial, institucional100 ou domiciliar.
Quando esse direito não está garantido, as pessoas estão nas ruas em
completo abandono, em serviços de acolhimento institucional ou confinadas e
trancadas em casa. Portanto, o inverso da convivência é o confinamento e isso
precisa ser explicitado assim como as consequências da ausência de
convivência. São diferentes ângulos que precisam ser explorados e conhecidos
e que convocam para desenvolver maior conhecimento da realidade vivida,
com foco e preocupação nas relações estabelecidas.

Os desenhos do trabalho social não poderiam ser prévios às práticas


sociais presentes no cotidiano das populações envolvidas nos
territórios com os quais se relacionam. Ou seja, o trabalho social
voltado para as vulnerabilidades sociais não pode deixar de
considerar a relação intrínseca existente entre as características dos
grupos sociais com os quais se propõe a atuar e as complexas
dimensões relacionais presentes no cotidiano desses grupos. Talvez,
desse modo, se tome um redimensionamento das próprias “medidas
sociais”, que seja capaz de romper com o confinamento das
características ou tipologias que identificam as vulnerabilidades
sociais. Talvez, nesse deslocamento de ângulo, que privilegia
também as práticas sociais das populações, se vislumbrem mais as
dinâmicas e complexas relações que se dão nos territórios de
vivência. (KOGA, apud ARREGUI, 2008, p.113).

3.3.3 Sobre indicadores de resultados do trabalho social voltado ao


convívio

Ao refletir sobre condições a serem criadas para que o tema da


convivência se configure uma garantia na atenção da assistência social (ou

100
Para RIZZINI e RIZZINI (2004) afirmam que ao observar as tortuosas vias que conduzem crianças e
adolescentes necessitados de proteção à institucionalização é possível entender “porque o abrigo acaba
sendo entendido como um muro que isola e não como um teto que protege”. In: RIZZINI, I; RIZZINI, I. A
institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. São Paulo: Loyola,
2004, p.10.
189

seja se configure como de fato uma segurança) devem ser medidos os


resultados do trabalho social na vida das pessoas. Reside aqui um importante
desafio, pois se há pouco conhecimento sobre as situações de violação do
convívio que se manifestam no cotidiano, por consequência não está
construída uma racionalidade da intervenção que produza resposta a essas
situações, até por desconhecê-las. Afirma Carla Bronzo: “Só somos efetivos
quando partimos do real e a da demanda concreta”.
Ao tratar dos resultados do trabalho, Carla Bronzo faz uma
associação direta entre identificar as situações que tornam os vínculos frágeis
e portanto os indivíduos e grupos mais vulneráveis e a definição de uma
intervenção que permita superar essas situações de fragilização.
Numa reflexão complementar e na mesma direção, Denise Collin
destaca que há um dissenso entre pesquisadores, estudiosos e até gestores da
política de assistência social sobre as possibilidades do trabalho social para
fortalecer a convivência como segurança, especialmente associadas às
dúvidas quanto à capacidade, aos instrumentos e metodologias para identificar
e lidar com fragilização de vínculos e aos resultados desse trabalho. Ela
identifica pouca convicção entre pesquisadores e técnicos sobre a habilidade
técnica no campo da assistência social para desenvolver essa ação. O desafio,
portanto, é aprofundar conceitos e orientações teórico-metodológicas para que
a política atinja o público, adquira reconhecimento e legitimidade para
desenvolver esse trabalho.
A tônica presente na reflexão das entrevistadas, da qual
compartilho, é que conhecer os processos que afetam as relações entre as
pessoas e geram subordinações, humilhações, sofrimentos, interdições,
limitam o desenvolvimento e a vida com autonomia é condição para definir o
trabalho social que enfrentará essas situações e estabelecerá para o sujeito
outras formas de relação que o fortaleçam e o impulsionem para a
autonomia101.

101
Como já apontado anteriormente, o conceito de autonomia que aqui está sendo utilizado, é o adotado
por CAMPOS & CAMPOS (2006, p.670) e essencialmente vincula-se à uma concepção de que autonomia
está associada à capacidade do sujeito de lidar com sua rede de dependências. A autonomia não é uma
190

A relação de causa e efeito no campo da assistência social não é


clara, há uma dificuldade grande em precisar os efeitos e, até mesmo
por isso, terminamos nos esquivando de fazer essa análise. É
necessário que a Assistência Social diga o que quer produzir e para
essa questão as respostas são vagas, retóricas e pouco precisas, há
uma fluidez. Fala-se em inclusão, justiça social, combate à
desigualdades, porém essas são formulações imprecisas. Não
sabemos ainda o que de fato dá certo, há uma multiplicidade de
determinações, qual intervenção é adequada em conformidade com a
família e suas demandas. Ao observarmos as mudanças geradas
pelo trabalho profissional, distintos efeitos podem acontecer, tais
como: acolhimento da família, fortalecimento de sua confiança e
capacidade de enfrentar os problemas, de autoafirmação, de
capacidade de se colocar pro outro, pra outros serviços e políticas,
fomento à participação politica, entre outras questões.(Carla Bronzo)

O trabalho profissional se desconectado das causas geradoras


que justificam e orientam a ação de uma política pública para fomentar a
convivência pode até gerar oportunidades de convívio, sem contudo explicitar
sua intencionalidade, como se a existência do serviço se justificasse por si.
Nesse sentido, numa tautologia, há uma reafirmação constante das atividades
desenvolvidas como se elas sintetizassem o alcance do serviço e as aquisições
dos usuários. Diante disso fica difícil compreender as razões que justificam um
investimento público para fomentar a convivência, visto que por vezes as
atividades oferecidas não são muito distintas das vivenciadas pelas pessoas
com seu próprio repertório ou mesmo daquelas oferecidas em outras políticas
públicas. Uma ação que se desenvolve deslocada de uma finalidade deve ser
questionada, posto que não se trata de “ocupar o tempo das pessoas”, mas de
responsabilizar-se com elas para enfrentar situações de sofrimento e
subalternização.

Na assistência social não há uma capacidade de demonstrar os bons


resultados alcançados. Quando há registro do trabalho ou quando se

condição interna mas depende de fatores externos. Assim, autonomia é sempre uma dimensão relativa e
depende do acesso dos sujeitos à informação, e mais do que isso depende de sua capacidade de utilizar
esse conhecimento em exercício crítico de interpretação. Afirmam que autonomia poderia ser traduzida
na “maior capacidade dos sujeitos de compreenderem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto
conforme objetivos democraticamente estabelecidos”.
191

dá o relato de experiências ele se reduz às atividades, às oficinas de


cultura ou de esporte como se esse fosse o resultado alcançado e
não a estratégia de trabalho. Esses relatos não conseguem traduzir o
que o trabalho altera na vida das pessoas, falta embasamento teórico
e referência para isso. Termina ficando um relato difuso e confuso em
que não é possível identificar o que é a essência do trabalho. Pode-
se dizer que há uma inversão na assistência social. A ênfase é na
estratégia e não nos resultados que ela é capaz de produzir, há
necessidade de profissionalizar o trabalho da convivência e
demonstrar a tecnologia desenvolvida pra fomentá-la. (...) Essa é
uma situação absolutamente distinta da abordagem da Saúde Mental,
por exemplo, que usa muito a estratégia da convivência como uma
modalidade terapêutica, mas consegue priorizar na sistematização do
trabalho os processos inconscientes, mesmo quando há uma
exposição de uma obra de arte produzida por um paciente é possível
analisar o que aconteceu durante aquele processo de produção e seu
significado do ponto de vista do que mobiliza o paciente. (Simone
Albuquerque)

A discussão sobre a qualidade dos serviços e os resultados do


trabalho profissional no âmbito da assistência social é bastante ampla e tem
adquirido maior densidade recentemente. Todavia, ainda está
insuficientemente espraiada e requer maior fomento, especialmente entre os
profissionais que atuam diretamente nos serviços. Stela Ferreira (2010) ao
discutir os desafios para estabelecer uma relação direta entre atuação
profissional e qualidade dos serviços prestados aos usuários, afirma que os
serviços devem responder às necessidades dos usuários e produzir respostas
a elas. E reconhece que se o trabalho profissional fomentar a manifestação de
interesses e de novas demandas coletivas é capaz de produzir o sujeito-
cidadão no ato profissional.

Assumir a democracia como prática política seja em que escala for, e


não apenas como procedimento formal, implica tocar no cerne da
ação profissional, precisamente onde os conhecimentos que aportam
em seu trabalho possam ganhar valor para os usuários. Trata-se,
portanto, de analisar o papel do agente público como capaz de gerar
valor de uso para os serviços públicos de assistência social, ou seja,
o modo como eles ganham sentido e pertinência na vida dos
usuários. (FERREIRA, 2010, p.171)

Para Aldaíza Sposati, desenvolver uma política de convívio


pressupõe um reconhecimento social e, para além da proteção social, oferece
uma oportunidade de discutir e alargar padrões de civilidade e cidadania. Trata-
se de por em questão o padrão de sociabilidade, visto que a
192

convivenciabilidade requer refletir sobre o grau de tolerância/intolerância da


sociedade e a capacidade de, por meio do convívio, agir e reagir aos
tratamentos subalternizantes.
Portanto, discutir indicadores de resultado do trabalho está
diretamente relacionado ao reconhecimento de suas finalidades e
responsabilidades, o que está longe de restringir-se a oferta de espaços de
convívio. Para ilustrar essa distinção, registra-se aqui formulação da equipe
profissional de Belém, ao refletir sobre o processo de reestruturação do serviço
de convivência:

Muitas mudanças ainda se faziam necessárias, como a


desconstrução de um pesado formato de atividades com horários
rígidos e sequenciados que se apropriavam da especificidade de
outras políticas (como o esporte, lazer, cultura, educação, etc.) e
dificultavam um investimento maior na convivência e fortalecimento
de vínculos com autonomia, capaz de identificar riscos, inseguranças
e vulnerabilidades para uma real cobertura da Assistência Social que
corresponde ao objetivo institucional (Prefeitura de Belém, 2012, p.1)

3.3.4 Permanência de conservadorismo no âmbito da assistência social

Ao apontar a necessidade de conhecimento e de reconhecimento


sobre demandas de proteção do campo relacional, é pertinente destacar que
não se trata somente de desenvolvimento de saberes técnico-científicos, mas é
imprescindível um posicionamento político na direção de alargamento das
responsabilidades da assistência social. Essa perspectiva esteve presente na
reflexão das entrevistadas, posto que identificam na intervenção junto aos
usuários práticas que reforçam subalternidades e reduzem acessos e
possibilidades ao invés de ampliá-las.
Para Márcia Lopes, atentar para a postura dos profissionais é
uma condição para o desenvolvimento da política, pois ela pode expandir ou
limitar o atendimento:

É necessário recuperar o ideário que fortaleceu a defesa da


convivência como uma resposta pública a ser provida pelo estado,
para combater práticas invasivas e enquadradoras das pessoas e das
193

famílias, muitas vezes o que se observa é o predomínio da lógica


formal e burocrática na atenção em detrimento da escuta atenta para
produzir alternativas, possibilidades e oportunidades para os
usuários.

Naturalmente não se ignora nessa formulação que a presença do


conservadorismo nas práticas profissionais públicas não se restringe à ação
dos trabalhadores da assistência social, tampouco se pretende reduzir a leitura
da intervenção nesse campo somente a essa dimensão, o que embota práticas
divergentes e esforços de superação que por sua representatividade, mais do
que por sua extensão, precisam ser valorizadas indicando outras
possibilidades. Para saber dessas presenças é fundamental maior
conhecimento sobre práticas.

(...) Quero dizer que as práticas dos trabalhadores precisam ser


efetivamente conhecidas, sob o risco de serem reificadas como se
fossem, necessariamente, democráticas; ou, de outro lado, como
estruturalmente conservadoras, tendo em vista seu caráter reprodutor
da dominação de uma classe sobre a outra. (FERREIRA, 2010,
p.168)

Se conhecer as práticas é fundamental para desmistificá-las, cabe


reconhecer também que a presença de conservadorismos e moralismos no
trato dos cidadãos é um condicionante para o fortalecimento da convivência
social como uma segurança de assistência social. Essa direção exige uma
intervenção que reconhece demandas, altera e inova metodologias de
intervenção, o que exige também que os profissionais compartilhem dessa
direção para incorporarem novos procedimentos, além de novos discursos102.
Estudos como os de NERY (2009) apontam um significativo hiato entre o
discurso do direito e a intervenção profissional e identifica que a prática
centrada ainda fortemente na ajuda ao próximo é reveladora de uma
ambiguidade entre discursos e trabalho profissional.

102
Ressalte-se, porém que, por vezes, nem mesmo os discursos são novos. Isaura Isoldi em sua
experiência de acompanhamento do trabalho com famílias em diferentes municípios aponta que
expressões como “famílias desestruturadas”, “mães preguiçosas e acomodadas”, “eu lutei muito e as
pessoas querem tudo na mão”, “as pessoas não querem aproveitar as oportunidades”, estão mais
presentes nas falas dos profissionais do que se imagina.
194

Nessa direção de melhor conhecer as práticas profissionais, em


pesquisa recente acerca das perspectivas do trabalho profissional com famílias
e da percepção dos profissionais sobre o alcance desse trabalho, SPOSATI
(2012, p.130) afirma que:

Uma ampliação da leitura sobre o cotidiano da política permite atestar


que, por vezes, o discurso do direito está impregnado de concepções
a ele contraditórias e que, ao indicar os caminhos para assegurá-lo,
percebem-se muito mais estratégias reducionistas e redutoras dos
acessos. A falta de conhecimento e a necessidade de capacitação
podem explicar parte dessas dificuldades. Todavia, o
desconhecimento dos compromissos ético-políticos dessa política,
bem como a baixa adesão a eles, são provavelmente razões
motivadoras de práticas conservadoras e desqualificadoras dos
cidadãos usuários.

Marcia Lopes ressalta ainda que o fortalecimento da convivência


como segurança requer recuperar o ambiente histórico que originou essa
discussão, pois o tema da convivência se insere no momento em que se busca
construir novas referências de conteúdos e conceitos para o Estado e políticas
públicas. Este movimento busca superar o paradigma anterior que entendia as
pessoas como incapazes de dar conta de si mesmas e de suas necessidades,
o que pressupunha, por consequência, um Estado reparador, interventor e
tutelador, que usava sistematicamente práticas de institucionalização e
apartação como estratégia para dar respostas às necessidades dos cidadãos.
Corrobora com essas práticas a resposta repressora e policialesca do Estado,
bem como posturas autoritárias e de culpabilização das pessoas pelas
situações vividas. Assim, ao dar outro sentido à convivência familiar abre-se o
diálogo sobre a democratização do Estado e reconhece-se a necessidade do
reordenamento institucional. O debate tem portanto essa origem e se insere
inicialmente nesse contexto.
Assim a discussão sobre a convivência no âmbito da assistência
social passa pelo diálogo sobre o alcance do trabalho social que deve fomentá-
la e fortalecê-la. Isto requer dialogar sobre a visão que os profissionais têm
sobre os usuários da política e sobre o trabalho que desenvolvem, insere-se
num debate político e não somente sobre os instrumentos técnicos. Para
Marcia Lopes, observar essa atenção tem indicado que estamos correndo
195

sérios riscos de adotar práticas persecutórias, conservadoras, abusivas,


invasivas; registra uma ausência de preparo dos profissionais, independente da
área de formação, tanto no que se refere à concepção que os orienta no trato
com os usuários da política quanto na metodologia de trabalho.
As entrevistadas103 observam ainda que houve uma abertura de
campos de trabalho nos municípios, mas os profissionais não estão atualizados
para enfrentar essa realidade e definir procedimentos metodológicos
compatíveis com a complexidade das situações nas quais intervém. Portanto,
ao dialogar sobre convivência e fortalecimento de vínculos, um grande desafio
é romper com as armadilhas aprendidas, com o pensamento conservador, que
tem como uma de suas manifestações a exigência de cumprimento de critérios
formais e, no limite, se manifesta numa atuação com as famílias contaminada
de condutas ameaçadoras e impositivas de comportamentos, sem contudo
conhecer a dinâmica familiar. Atender a situações mais complexas exige que
as políticas definam o grau de compromisso que assumirão na atenção aos
usuários.
Precisamos valorizar a instalação de serviços públicos e o
reordenamento dos serviços, pois esse é um avanço significativo do
ponto de vista político e na relação com as demais políticas e para os
usuários. Mas precisamos qualificar essas atenções e dizer a que
viemos mantendo coerência com tudo o que se defendeu nessa área
e que significa atuar fortalecendo o protagonismo político das
famílias, assegurando a voz das mulheres, assegurando o direito de
participar, se manifestar e de criticar o serviço daquele território, isso
é ainda um caminho longo a percorrer. E, por vezes, por falta de
condições objetivas de trabalho, formação ou de visão, fazemos
desse espaço um ambiente de enquadramento das famílias e isso é
uma questão muito relevante. (Marcia Lopes).

Reafirma-se portanto um desafio para melhor conhecer as


práticas nos serviços de convivência, posto que se imagina bastante provável
as ações ainda serem fortemente influenciadas pela ideia de que a tarefa
desse serviço é desenvolver uma ação educativa para ensinar as pessoas a
enfrentar e superar a situação de pobreza que viviam/vivem. Nesse
entendimento, trata-se de mudar comportamentos, modos de viver, adotando

103
A presença do conservadorismo nas práticas da política de assistência social e o seu impedimento
para consolidação do direito à convivência esteve mais presente na reflexão de Marcia Lopes, Simone
Albuquerque e Isaura Isoldi.
196

outros padrões e valores nas relações cotidianas no interior das famílias e


delas em sua comunidade. Assim, ignorou-se, e ainda se ignora, os processos
de espoliação que geram as intensas desigualdades que destacam o país no
cenário mundial. O ideário inspirador dessa intervenção profissional dentro da
politica de assistência social desenvolve estratégias educativas para promover
consciência de fora para dentro, com fartos mecanismos de monitoramento e
controle de condutas e comportamentos.
Ao analisar a concepção de risco como orientadora da
intervenção na saúde, MITJAVILA (2002) aponta a presença de forte
arbitragem dos profissionais de saúde que deslocam questões de âmbito
coletivo e incidem sobre as condições de vida das pessoas como de
responsabilidade individual. Essa direção é fundamental para analisar o grau
de compromisso que os agentes públicos estão dispostos a assumir em
relação às demandas observadas, pois se a vivência de violações é
permanentemente compreendida como fruto de comportamentos individuais,
não cabe responsabilidade sobre seus impactos, mas convocar o indivíduo e
“conscientizá-lo” das mudanças que deve promover.

A individualização dos riscos supõe o desenvolvimento de técnicas


para incitar, orientar, informar e controlar os indivíduos e as famílias a
respeito das chances de ocorrência de acontecimentos indesejáveis.
(...) Nesse sentido, em nome dos riscos, os árbitros da vida social
podem justificar intervenções dirigidas a vigiar, orientar, controlar,
julgar e, ainda, punir os indivíduos e os setores de população que não
conseguem construir – ou que opõem resistência à construção de –
“estilos de vida saudáveis ou corretos”. (MITJAVILA, 2002, p.139)

Todavia, anunciar que a convivência é segurança da política de


assistência social, além de discutir sobre o trabalho profissional, a gestão do
SUAS e seus resultados – desencadeados especialmente com a aprovação da
NOB/SUAS 2012 e com a escolha do tema da IX Conferência Nacional de
Assistência Social – provocaram a discussão sobre como desenvolver ações
sustentadas para reconhecer e fortalecer os vínculos relacionais.
Assim, na sequência identifico elementos que qualificam e
caracterizam uma convivência social que protege. Meu objetivo é melhor
197

precisar a intervenção estatal no âmbito da assistência social que assegura


proteção no campo relacional.
A formulação está sustentada na observação do trabalho
profissional em serviços visitados, no diálogo com os especialistas e nas
teorias do reconhecimento e dos vínculos sociais, buscando uma abordagem
que referende ampliar e diversificar as formas de convivência de maneira a
estimular outros padrões civilizatórios de diálogo e convívio com as diferenças.

Nas práticas da política pública de assistência social cabe não só


ampliar o repertório e os vínculos relacionais, mas também favorecer
o domínio de estratégias que permita manter os vínculos criados. Em
decorrência, o trabalho deve voltar-se não só para que as pessoas
tenham um maior número de relacionamentos, mas também que eles
sejam diversos do ponto de vista etário, étnico, de gênero. O público
a ser atendido nesta política é definido pela vivência de exclusão
gerada por situações de diferença. Em outros termos, o sentimento
de apartação gerado pela presença de estigma que produz uma
desigualdade de tratamento ou de acesso é uma barreira ao convívio
e configura segregação que é antípoda à política de convívio, essas
práticas não se pautam pela equidade e a repudiam, logo devem ser
enfrentadas na ação da assistência social. (Aldaíza Sposati, 2012)

3.4 Convivência social e proteção: identificando elementos na intervenção


da política de assistência social

A segurança da vivência familiar ou a segurança do convívio (...)


supõe a não aceitação de situações de reclusão, de situações de
perda das relações. (...) A dimensão societária da vida desenvolve
potencialidades, subjetividades coletivas, construções culturais,
políticas e, sobretudo, os processos civilizatórios. As barreiras
relacionais criadas por questões individuais, grupais, sociais por
discriminação ou múltiplas inaceitações ou intolerâncias estão no
campo do convívio humano. A dimensão multicultural, intergeracional,
interterritoriais, intersubjetivas, entre outras, devem ser ressaltadas
na perspectiva do direito ao convívio. (PNAS, 2004, p. 26).

O reconhecimento das responsabilidades de atenção à população


pela política de assistência social no âmbito da Seguridade Social supõe
compromissos com a garantia de condições de vida digna e na atenção aos
direitos. Esse padrão de dignidade implica, não só no acesso a bens materiais,
como a padrões de sociabilidade e usufruto de bens sociais, fortalecendo a
198

capacidade do cidadão de participar ativamente da sociedade e de suas


conquistas civilizatórias, e de definir objetivos e projetos para si e para aqueles
com os quais convive diretamente. Na percepção de SPOSATI, esse
compromisso da assistência social assim se expressa:

A proteção social na assistência social inscreve-se, portanto, no


campo de riscos e vulnerabilidades sociais que, além de provisões
materiais, deve afiançar meios para o reforço da auto-estima,
autonomia, inserção social, ampliação da resiliência aos conflitos,
estímulo à participação, equidade, protagonismo, emancipação,
inclusão e conquista de cidadania. (SPOSATI, 2004, p.43)

A PNAS define que é possível prevenir vulnerabilidades e riscos


sociais “[...] por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o
fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. (PNAS, 2004, p.38)”.
Afirmar tal possibilidade, exige necessariamente desenvolver ações que
assegurem ao usuário a vivência de oportunidades que lhe permita a
realização pessoal e social, como também torne mais forte suas relações,
oferecendo oportunidades de viver o autorrespeito e a estima social. Portanto,
na definição de público sob responsabilidade de atenção dessa política estão
pessoas “cujas características sociais e culturais (diferenças) são
desvalorizadas ou discriminadas negativamente (dimensão relacional da
vulnerabilidade)”. (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.4)
As ações de assistência social têm também como campo de
responsabilidade conhecer e enfrentar as situações de discriminação negativa
geradas pelas mais distintas expressões como os preconceitos de raça, de
origem social, regional, de orientação sexual ou de religião, por exemplo. Como
também devem ser capazes de fomentar experiências de convívio
fortalecedoras de vínculos eletivos, de filiação e de cidadania poder-se-ia dizer
que essa responsabilidade, em síntese, se expressa em duas frentes
principais:
1) compreender os processos sociais e os mecanismos institucionais
que produzem riscos sociais que tornam cidadãos e suas famílias
desprotegidos;
2) assegurar serviços que garantam convivência e fortalecimento de
vínculos. (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.5)
199

A declaração da política reafirma que se está tratando de


questões do âmbito público, posto que proteção não é de responsabilidade
individual, mas sim certeza/garantia que deve ser oferecida a partir da
construção coletiva.

A concepção de proteção social alarga o campo da assistência social


pelo próprio significado preventivo que contém a ideia de proteção.
Estar protegido significa ter forças próprias ou de terceiros, que
impeçam que alguma agressão/precarização/privação venha a
ocorrer, deteriorando uma dada condição. Porém, estar protegido não
é uma condição inata, ela é adquirida não como mera mercadoria,
mas pelo desenvolvimento de capacidades e possibilidades. No caso,
ter proteção e/ou estar protegido não significa meramente portar algo,
mas ter uma capacidade de enfrentamento e resistência. (SPOSATI,
2007, p.42).

Considerando que o convívio social se constitui de um elenco de


vínculos e neles do reconhecimento e que estes fortalecem o campo relacional
do cidadão, trata-se aqui de buscar caracterizar o conteúdo programático da
política de assistência social enquanto fortalecedora de vínculos e
reconhecimento ampliando assim a proteção social com base em uma
sociabilidade alargada.
O conteúdo relacional desta reflexão expressa outra face da
política de assistência social para além do acesso a bens materiais e revela
padrões de sociabilidade e acesso a bens imateriais que expressam outros
padrões civilizatórios.
A abordagem que farei a seguir é um complemento ao primeiro
capítulo cujos elementos que caracterizam a responsabilidade programática
para oferecer uma convivência social como proteção, podem ser sintetizados
em respeito aos usuários como sujeitos de direitos; fomento à sua autonomia
nos momentos de decisão sobre sua vida e daqueles que lhe são próximos ou
ainda dele dependem; fortalecimento de oportunidades de convívio com
diferenças e ampliação das oportunidades de estabelecer novas relações, por
vezes restauradoras das já firmadas ou mesmo superadoras das trajetórias
vividas e a vivência de relações horizontais entre profissionais e usuários dos
serviços de maneira a não reproduzir relações hierárquicas e segregadoras no
trato das pessoas.
200

Nesse item continuarei destrinchando elementos que compõe a


convivência social como proteção, desta feita com foco no trabalho social a ser
desenvolvido na política de assistência social. O entendimento é que a política
pública para ampliar e fortalecer vínculos deve oferecer a experiência de viver
relações mais protetivas. Nesse caso, os elementos que destaco dessas
relações referem-se à escuta e à capacidade de diálogo, que devem ser
orientadores do trabalho social. A aposta é que vivendo essas experiências
estabelece-se oportunidades de expansão das relações para além das vividas
nos próprios serviços, de sorte que esses modos de relacionar permeiem
outras relações e multipliquem outros vínculos de proteção e reconhecimento.
Esses elementos destacados são fruto do diálogo com
pesquisadores e trabalhadores dessa política e da observação de práticas
profissionais executadas em serviços. Por isso mesmo, essas possibilidades
não estão aqui esgotadas, mas sinalizam para direção possível assentada na
reflexão e na vivência profissional nos serviços pesquisados. Trata-se, portanto
de uma recuperação síntese para visualizar o campo de conhecimento e as
estratégias metodológicas a serem fortalecidos na política.
A intenção com essa explicitação é contribuir para a reflexão
sobre os processos de trabalho e suas finalidades na política de assistência
social pautados no reconhecimento dos sujeitos e de suas demandas
individuais e coletivas. Ressalto ainda que a sequência de apresentação
desses elementos que compõem a convivência social como proteção de
assistência social não possui uma ordenação hierárquica de importância e, por
vezes, são tão imbricados que decantá-los para uma análise conceitual pode
parecer arbitrário e artificial, mas ainda assim, entendo que o essencial é
registrar que foi possível abordar essas questões no diálogo e na observação
da intervenção, portanto, quero destacar que são preocupações e debates
contemporâneos dessa política, ao menos no olhar de alguns atores – os
investigados seguramente.
Inspira-me aqui a reflexão de PAIS (2006, p.27) que, ao discutir a
solidão como um objeto de estudo, afirma que não definiria o conceito para não
201

aprisionar suas formas de experiência e para não limitá-la à definições prévias.


Afirma:
Fugindo à redução semântica de uma tal posição metodológica,
interessei-me por apreender a solidão em suas múltiplas
manifestações – sem que isso significasse a pretensão de fazer uma
cartografia alargada dessa multiplicidade de formas.

Caracteriza a solidão portanto como um conceito sensibilizador,


que é aquele que oferece um sentido geral e orientação no estudo de casos
empíricos. Assim, guardando as devidas proporções de fôlego e profundidade
de estudo, diria que também a convivência social como proteção poderia ser
entendida como um conceito sensibilizador, posto que há uma diversidade de
situações e de experiências de sujeitos que em ato produzem e reproduzem a
proteção. Trago aqui alguns elementos que a qualificam no âmbito da
assistência social. Outros tantos a esses podem ser agregados pelas
experiências dos sujeitos e pelos debates que, afortunadamente, se avolumam
sobre essa temática.
Há uma convocação para que na própria intervenção da política
os princípios apregoados sejam vividos, numa perspectiva de aproximação
entre conteúdo e método104. De maneira que a intervenção voltada ao fomento
de convivência protetiva não se dá orientando ou dialogando sobre relações
externas ao âmbito do serviço, mas sim e principalmente na vivência desses
princípios na entrega do serviço. Para o educador Paulo Freire “não há pensar
certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo. (...)
pensar certo é fazer certo”. (2002, p.38). A direção é que, mais do que em
qualquer outra situação, quando se trata de fomento à convivência social, todos
os elementos relevantes devem orientar a prática cotidiana nas atenções
públicas.
Assenta-se nessa lógica o entendimento de que as relações
produzem marcas na trajetória dos sujeitos e algumas inclusive podem se
configurar em cristalizações, especialmente se vividas na primeira etapa da

104
Afirma Jorge Larrosa: A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, ou o que toca.
202

vida (TORRES e GOUVEIA, 2012). Todavia, essas marcas e cristalizações


podem ser superadas pela vivência de outras modalidades de relação, logo, se
a atenção de assistência social volta-se a reparar, mitigar ou combater
situações de sofrimento no campo relacional, ela deve produzir outro tipo de
relação de modo a não reiterar e reproduzir as situações de dominação.

(...) a relevância reside em reconhecer que na convivência se


constituem ligações/vínculos entre as pessoas e que estas vivências
determinam modos de se relacionar, e também, que algo se passa
nestes momentos, da natureza do intangível, que não se pode
controlar, mas que incide na aprendizagem dos sujeitos que
participam deste encontro. Portanto, as cristalizações também podem
ser desarticuladas nas situações de convivência resultando no
estabelecimento de vínculos mais flexíveis. Não apenas repetição,
mas também criação de novos modos de agir e de se relacionar.
Poderia aqui acentuar a dimensão estética, da ordem do sensível e
do criativo. (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.17)

Produzir na ação profissional dentro de uma política pública


modos diferenciados de relação e vinculação entre as pessoas, exige pensar
os conteúdos do trabalho profissional. Nessa direção, ao ser entrevistada,
Aldaíza Sposati afirma a necessidade de aprofundar o debate sobre os
conteúdos a serem trabalhados nas ações para fortalecer a convivência social
na assistência social. Ela afirma que não se tratam de conteúdos do ensino
formal e considera que o trabalho a ser desenvolvido refere-se a aplicativos
que favoreçam entender a sociedade, a cidadania, e o relacionar-se desde o
mais próximo até o mais distante. Esses conteúdos, ressalta, podem ser
trabalhados e discutidos em qualquer faixa etária ou mesmo com a família.
Os diálogos e as formas de desenvolver o trabalho se voltam a
refletir sobre os modos de viver e de conviver, ou seja, dialoga-se sobre as
relações de maneira que ele é em si a vivência de uma experiência horizontal e
democrática de relacionar-se. Pode-se assim, refletir sobre qualquer assunto
ou fato vivenciado sem repressão e sem moralismos. Na visita a serviços105 e
na conversa com educadores sociais, foi possível observar que é fundamental

105
Na visita ao Centro Intergeracional Zoé Gueiros em Belém, observei uma atividade com idosos em que
a profissional refletia com eles, por meio de músicas e poesias, a imagem social que existe da infância,
adolescência, maturidade e velhice e a situação vivida pelo grupo, o que permitiu discutir a vida
idealizada, a vida cotidiana e as relações estabelecidas.
203

a percepção dos propósitos e objetivos das ações desenvolvidas e das razões


que levam a determinadas escolhas no trabalho profissional, além de explicitar
aos sujeitos usuários as razões dessas escolhas.

Eles percebem que as polêmicas são tratadas de uma maneira mais


aberta, a gente aborda muitas questões dentro da sociedade, aborto,
tráfico de adolescentes, drogas e eles estão cansados da palestra de
drogas da escola. Aqui a gente trata esse tema de uma maneira
assim engraçada, sutil e direta, sem fazer muitos rodeios, e qual o
retorno disso? O retorno é, pô,cara, meu vizinho tem um negócio
desse aí, na minha casa tá rolando um negócio desse aí, eu sou o
que você falou, me identifiquei... O retorno é imediato, porque o
nosso objetivo aqui não é estampar o certo e o errado, mas
explicar todos os efeitos daquele movimento lá, daquela situação,
explicar todo o contexto que insere o homoafetivo, a pessoa grávida
na adolescência, o discriminado, explicar tudo aquilo lá, para que com
base nisso eles busquem saber que a questão não está na televisão,
ou não está nos livros, está do lado, a proximidade é muito maior. (
Educador social – esporte e lazer- GDF grifo meu).

Essa perspectiva amoral, mas ética, de reflexão sobre a vida e


sobre os modos de viver e conviver das pessoas, sobre violações decorrentes
das relações entre elas, cuja dinâmica por vezes é tão intensa que as fronteiras
entre autores e vítimas não é facilmente identificável ou até mesmo é
inexistente, exige, para além de versatilidade e da criatividade dos
profissionais, o conhecimento sobre essas dinâmicas e a capacidade de
oferecer a segurança de que todas as situações vivenciadas podem ser
expressas. Com isso ocorre a acolhida na relação com o profissional. Esse é o
retorno a que se refere o educador entrevistado, a garantia de que se
estabeleceu uma confiança e uma certeza de amoralidade de modo que se
tornam mais visíveis e conhecidas as situações vivenciadas pelos usuários dos
serviços.
Cabe também destacar a importância da relação com todos os
profissionais do serviço e com os usuários entre si. A direção do fortalecimento
da proteção deve ser uma finalidade para todos, numa direção técnica, ética e
política clara que radicaliza na consolidação de princípios. No diálogo com Ana
Lígia Gomes foi possível observar seu entendimento sobre as atribuições dos
profissionais da política de assistência social. Ela afirma que aqueles que
204

atuam no âmbito da convivência como proteção social precisam ter certas


características que devem ser desenvolvidas e fortalecidas em processos de
formação permanente e em serviço. Nesse sentido, destaca que é fundamental
que esse profissional esteja predisposto a criar vínculos, referências e que seja
capaz de se pautar por uma ética do cuidado com o outro.
Essa ética do cuidado exige não só domínio de técnicas, mas
essencialmente a compreensão do sentido do trabalho que está
desenvolvendo. Reconhece a linha tênue entre afirmativas que defendem um
dom para o trabalho social em relação a essa necessária postura profissional
que destaca, mas ressalta que são coisas distintas, pois está referida à
profissionalização, ou seja, às habilidades que podem ser desenvolvidas e
aprendidas desde que existam comprometimento e predisposição para isto.
A análise de Emerson Merhy106 (2001) para o trabalho profissional
na saúde permite identificar como os elementos relacionais são definidores na
atenção ao usuário, o que por consequência deve orientar o processo de
formação e capacitação dos profissionais para essa atenção. Portanto, não se
trata de dom ou de sensibilidade, mas de uma postura adequada na
intervenção e de uma tecnologia a ser desenvolvida denominada pelo autor de
levedura.
O que nos permite dizer que há uma tecnologia menos dura do que
os aparelhos e as ferramentas de trabalho e que está sempre
presente nas atividades de saúde, que denominamos de levedura. É
leve ao ser um saber que as pessoas adquiriram e está inscrita na
sua forma de pensar os casos de saúde e na maneira de organizar
uma atuação sobre eles, mas é dura na medida em que é um saber-
fazer bem estruturado, bem organizado, bem protocolado,
normalizável e normalizado”. (MERHY, 1999, p.4)

106
O médico Emerson Merhy é graduado e mestre pela USP e doutor em Saúde Coletiva pela UNICAMP.
Livre-docente em Planejamento e Gestão em Saúde, pela Unicamp. Atualmente é Professor Titular de
Saúde Coletiva da UFRJ. É um dos coordenadores da Linha de Pesquisa Micropolítica do Trabalho e o
Cuidado em Saúde. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase nos processos de Avaliação
da Produção do Cuidado e o Mundo do Trabalho em Saúde, bem como, em Gestão e Planejamento em
Saúde, atuando principalmente nos seguintes temas: trabalho em saúde, medicina social, rede básica,
gestão da mudança e gestão de processo de trabalho, educação permanente e gestão organizacional.
Dedica-se a pesquisa sobre micropolítica do trabalho e o cuidado em saúde e participa do coletivo
micropolítica, instituicão e governo. Como pesquisador atua nas relações intercessoras entre micropolítica
do trabalho, educação permanente e produção de conhecimento, tendo junto ao coletivo desenvolvido
metodologias de investigação pautadas pelos processos de avaliação compartilhadas, nos quais o melhor
avaliador é quem pede, quem faz e quem usa. In:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4787507A3. Acesso em
10 jun.2013.
205

Essa capacidade de construir saberes e interpretações da


realidade a partir da intervenção profissional ao mesmo tempo em que estes
saberes são normatizáveis nas práticas da política, portanto, podem ser
reproduzidas coletivamente. Não são particularidades desse ou daquele
profissional e só é possível se a atenção voltar-se às necessidades, desejos e
expectativas dos usuários em detrimento da centralidade em procedimentos
estabelecidos, o que gera resultados distintos. Essa é a defesa do autor para
quem importa a finalidade da atenção de saúde, que é o cuidado e a garantia
de que o usuário tenha mais autonomia.

Qualquer abordagem assistencial de um trabalhador de saúde junto a


um usuário- paciente, produz-se através de um trabalho vivo em ato,
em um processo de relações, isto é, há um encontro entre duas
“pessoas”, que atuam uma sobre a outra, e no qual opera um jogo de
expectativas e produções, criando-se inter-subjetivamente alguns
momentos interessantes, como os seguintes: momentos de falas,
escutas e interpretações, no qual há a produção de uma acolhida ou
não das intenções que estas pessoas colocam neste encontro;
momentos de cumplicidades, nos quais há a produção de uma
responsabilização em torno do problema que vai ser enfrentado;
momentos de confiabilidade e esperança, nos quais se produzem
relações de vínculo e aceitação. Diante desta complexa configuração
tecnológica do trabalho em saúde, advogamos a noção de que só
uma conformação adequada da relação entre os três tipos é que
pode produzir qualidade no sistema, expressa em termos de
resultados, como: maior defesa possível da vida do usuário, maior
controle dos seus riscos de adoecer ou agravar seu problema, e
desenvolvimento de ações que permitam a produção de um maior
grau de autonomia da relação do usuário no seu modo de estar no
mundo.” (MERHY, 2001, p.3)

Em outra produção, afirma Emerson Merhy (2011) que a prática


de cuidados tem dois desafios essenciais quando se trata da política de saúde,
mas não restritos a ela seguramente. Esses desafios se relacionam à 1) defesa
radical da vida, seja ela de quem for, porque todas as vidas são igualmente
válidas e importantes e 2) o reconhecimento de que a diferença enriquece a
prática de cuidados e as possibilidades de construir apostas e produção de
vida. Entretanto, registra que a cada época a sociedade produz interpretações
de práticas desejantes como anormais e rejeita e criminaliza grupos que
vivenciam essas práticas. Portanto, o que a contemporaneidade considera uma
206

prática anormal é bastante distinto desse enquadramento no século passado


ou em diferentes localidades.
Ao padronizar o “anormal” a sociedade produz, em resposta,
práticas de punição e isso influencia o cuidado profissional, pois essa ação é
realizada por pessoas que também estão inseridas nessa sociedade107. Se na
prática do cuidado os indivíduos são considerados criminosos constrói-se
práticas punitivas, contra o obeso, contra o diabético ou o usuário de drogas;
para ficar nos exemplos mais afetos à saúde, mas que também são
observáveis com gestantes, adolescentes autores de ato infracional ou inativos.
Por consequência, as pessoas são condenadas pelas maneira de viver e no
cotidiano da atenção adotam-se práticas minifascistas de punição reproduzindo
ações cotidianas da sociedade. Considera esse autor, que é absolutamente
revolucionário na sociedade atual apostar que a vida do outro vale a pena e
que a diferença enriquece.
Esse e outros autores que discutem a atenção em saúde,
consideram fundamental observar que, por vezes, a queixa dos usuários não
se refere ao fato de que as tecnologias inovadoras não foram adotadas em seu
caso, mas sim que houve falta de interesse ou de responsabilização por si e
por suas demandas. O avanço tecnológico é fundamental para a precisão do
diagnóstico em saúde e para a intervenção adequada, mas não é suficiente
para o alcance das finalidades de uma política de saúde se a dimensão
relacional for secundarizada e ignorada ou ainda, e principalmente, se o modo
de viver das pessoas for tomado como condenação, e não, como diferenças a
serem respeitadas, cujas motivações devem ser compreendidas e
consideradas na intervenção.
Advogo que tal afirmativa é ainda mais verdadeira quando se trata
da política de assistência social posto o papel fundamental que as relações têm
para o alcance de suas finalidades e para a proteção que está sob sua
responsabilidade específica fomentar e garantir.

107
Os relatos observados no capítulo 2 quanto a barreiras de convivência na intervenção estatal ilustram
como essa interpretação de quem é o anormal se objetiva na ação dos profissionais.
207

A desproteção ocorre pela ausência de reconhecimento social e


formas de discriminação. Assim, uma proposta de proteção social deve
considerar essa realidade e proporcionar experiências que revertam tais
sentimentos e exercitem vivências positivas.
Estas experiências dependem essencialmente dos princípios e
métodos de ação dos agentes nela envolvidos, pois se assim não for será uma
reprodução da desproteção. A inclusão da ação programática no campo do
convívio tem implicação direta com o preparo do profissional que nela atua e
exige uma ressignificação de trajetórias.

São necessárias ações para reduzir o sofrimento humano em ser


excluído, propulsão de forças para restaurar a auto-estima face à
discriminação. [Os usuários] reclamam da necessária humildade dos
agentes institucionais que os tratam como seres desprovidos da
capacidade de saber o que desejam ou do que necessitam. A pessoa
que recorre, [por] exemplo, a um hospital não busca só atendimento
médico. O tratamento que recebe deve reconhecer sua dignidade
humana, sua singularidade individual e sua identidade social.
(Sposati, 2007)

Diante disso pode-se afirmar que o processo e a metodologia de


trabalho devem ser obrigatoriamente fomentadores do convívio social, o que
exige a adoção de algumas atitudes orientadas por uma postura ética, capaz
de escuta comprometida e fortalecedora do interlocutor, práticas horizontais e
dialógicas, capacidade de criar situações que permitam experimentar uma
convivência protetiva entre os próprios sujeitos e entre eles e os profissionais
do serviço.
Estas três linhas que passarei a explorar constam na recente
publicação Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos em
debate no campo da política de assistência social e já foram exploradas em
cadernos de orientação de serviços 108 formulados no âmbito do MDS. Trata-se
de identificar formas de desenvolver o trabalho imbricadas que se
potencializam e se pré-condicionam. Não é possível desenvolver práticas
horizontais sem escuta, como também é pouco provável desenvolver

108
Refiro-me aqui, especialmente ao Caderno de Concepções do Projovem que influenciou outras
publicações dirigidas aos serviços de convivência e os recentemente formulados cadernos de orientação
do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF).
208

experiências de convívio sem estimular o diálogo. Ao reconhecer esse


amálgama considero oportuno abordar esses elementos para melhor explicitar
como no âmbito da política pública é possível fomentar o convívio social e
fortalecer vínculos.

3.4.1 Vozes e silêncios: escuta e diálogos produzindo horizontalidade


entre sujeitos

Soa óbvio mencionar a importância de se perguntar como a própria


família define seus problemas, suas necessidades, seus anseios e
quais são os recursos de que ela mesma dispõe. Menos óbvio é
pensar como ouvimos suas respostas e o estatuto que
atribuímos ao que se diz. (SARTI, 2010, p.34 - grifo meu).

A escuta é uma técnica que tem sido intensamente discutida em


vários campos da intervenção profissional o que inclui a prática de educadores,
terapeutas, profissionais de saúde, e cada vez mais tem sido valorizada nas
atenções prestadas pelo SUAS. Hoje ela está se incorporando e tornando
presente no discurso dos trabalhadores do SUAS. Na literatura a escuta tem
sido acompanhada de adjetivos como escuta atenta, qualificada,
comprometida, ativa, técnica, forte, empática, respeitosa, humanizada,
sensível, dentre outros qualificativos. (TOMAZELLI, 2012; NERY, 2009; MDS,
2009 e MDS, 2012; CARVALHO, 2005; dentre outros)
Está em curso a reflexão sobre a escuta em vários espaços e
serviços da política de assistência social e uma orientação para que ela se
efetive para ampliar o conhecimento sobre os usuários e possibilitar conhecer a
interpretação do sujeito sobre sua própria vida. Reservar espaço na ação
profissional para esse conhecimento e relevante para definir estratégias no
trabalho social109.

109
Ao tratar dos processos de escuta na saúde, CAMPOS (2001, p.101) registra um importante paradoxo
pelo qual o cidadão como conselheiro e, portanto, sujeito político tem oportunidades de fala e é ouvido,
pelos demais atores da saúde. Mas, esse mesmo cidadão, ao viver a condição de paciente, já não terá
essa mesma valorização. E afirma: “Os cidadãos devem ser escutados; os doentes, nem tanto”. (p.101)
Uma hipótese a ser verificada é se reproduz-se situação similar com usuários da política de assistência
social que participam de conselhos, conferências e outros espaços de controle social. Assim como tem
sido protagonista o movimento de defesa da população em situação de rua, caberia averiguar se na sua
209

Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade


auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a
disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para
abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro.
Isso não quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem
realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isto não seria
escuta, mas auto-anulação. A verdadeira escuta não diminui em mim,
em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor,
de me posicionar. Pelo contrário, é escutando bem que me preparo
para melhor me colocar ou melhor me situar do ponto de vista das
ideias. (FREIRE, 2002, p.135)

Nessa direção importa a necessidade de uma intervenção amoral


e que os problemas sejam relevantes, o que exige não só uma confiança para
serem expostos como também soluções e respostas compartilhadas. Nesse
caso, o posicionamento esperado do profissional é que ele seja capaz de se
aproximar mais do usuário, todavia ao fazê-lo não se manifesta afirmando
como agiria naquelas circunstâncias, perspectiva que muitas vezes aparece na
elaboração dos profissionais e que termina dirigindo um rol de providências,
encaminhamentos e orientações muitas vezes desconsiderados pelos usuários
não por serem arbitrárias e descontextualizadas, o que não raras vezes são,
mas essencialmente por estarem dissociadas dos seus desejos e expectativas
em relação àquela questão. Segundo MUÑOS (2004, p.56) há alguns aspectos
a serem considerados nesse momento:

Os profissionais devem levar em conta que:


- Eu não sou a outra, o outro.
- Eu não estou em seu lugar.
- A informação essencial sobre o que a outra, o outro desejam,
sentem, necessitam... eles a têm.
- Eu devo provocar as perguntas oportunas, respeitosas e inteligentes
para que elas, eles, se assim o quiserem, me deem sua informação.

Retomo aqui a concepção do usuário da política pública como


sujeito de direitos. Considero que cabe destacar que a escuta a que me refiro e

condição de usuário dos serviços a atenção para sua fala se dá na mesma direção e com a mesma
atenção que se observa quando exercem o papel de representantes do segmento nos espaços de
participação e controle social.
210

que identifico nessas referências aqui adotadas, implica num movimento e


compromisso do agente que ouve; ela não é descomprometida com o que está
em exposição, como se fosse um momento terapêutico para oportunizar
elaboração do usuário sobre seus problemas, mais vai além disso. A escuta
exige mobilização do trabalhador e do usuário para produzir respostas e
mudanças para as situações narradas, considerando expectativas e desejos
das pessoas, pois essa é a sua força propulsora.110

[A escuta é uma] estratégia que cria uma ambiência e um clima em


que a história do outro é ouvida tanto como realização quanto como
processo que constituiu o sujeito que fala, portanto pertencente a
uma lógica temporal não cronológica. Assim, a narrativa é constituída
a partir do interesse daquele que escuta. As perguntas que animam a
narrativa estão ligadas a elementos da própria fala e não de um
roteiro prévio a ser seguido. Interesse na história e apreço pelo trajeto
vivido pelo sujeito que narra, busca dos motivos e não das
justificativas, busca do entendimento e não do julgamento sobre as
situações são componentes estruturantes desta técnica. (TORRES e
GOUVEIA, 2012, p.38)

Para além de escutar de forma comprometida para construir


soluções, outro elemento fundamental que aparece nessa formulação diz
respeito à facilitação que o interlocutor deve promover para permitir a
elaboração de quem fala. Assim, há uma referência a “perguntas que animam a
narrativa” de modo a explicitar que há uma atenção ao que está sendo dito e
que outros elementos que não aparecem automaticamente no relato podem ser
importantes para investigar e compor o cenário. Um bom ouvinte faz boas
perguntas mais do que afirmativas, e boas perguntas são aquelas que facilitam,
mobilizam e acolhem o narrador. Em sua elaboração a educadora portuguesa
Ana Maria Costa e Silva111 sugere técnicas para facilitar a expressão do

110
Afirma Muños ao refletir sobre processos de escuta e diálogo na educação: “ O ser humano em geral
e, concretamente, as crianças, adolescentes e jovens são seres desejantes, de linguagens e de afetos
múltiplos. O desejo, o sentimento são a base, o ponto de partida de toda intervenção educativa, de toda
ação. O desejo, o sentimento [do usuário e do profissional] que intervém educativamente estão presentes,
incidindo positiva e negativamente em todo momento. Por isso há que incorporá-los, tê-los presentes
quando se intervém. Por isso é preciso estar atento para que o sentir não represente armadilha, garantir
que se realize, o máximo possível, uma utilização positiva dos sentimentos. (MUNOS, 2004, p.53)
111
Ana Maria Costa e Silva é Doutora em Educação, na área de especialização de Desenvolvimento
Curricular, professora e investigadora na Universidade do Minho/Portugal e tem, ao longo da última
década, centrado os interesses de investigação nas questões relativas à formação de adultos e
identidades socioprofissionais. Leciona em cursos de graduação e pós-graduação unidades curriculares
211

cidadão narrador. Sem entrar no detalhamento da prática profissional,


reproduzo suas expressões, sobre a dinâmica desses processos:

Quadro 3: Técnicas para Escuta Ativa

ESCUTA ATIVA
Técnicas Objectivos
Mostrar interesse Transmitir interesse.
Estimular o outro a falar.
Clarificar Tornar claro o que é dito.
Obter mais informação.
Ajudar a ver outros pontos de
vista.
Parafrasear Mostrar que estamos a
compreender o que se passa.
Verificar o significado.
Fazer-se eco Mostrar que se compreendem os
sentimentos.
Ajudar a outra pessoa a ficar
mais consciente daquilo que
sente.
Resumir Verificar o progresso alcançado.
Juntar os factos e as ideias
importantes.

Fonte: Material partilhado em atividade programada coordenado pela profa. Dra. Maria Lúcia
Martinelli.

O momento da narrativa se configura como um diálogo ativo em


que os dois sujeitos interagem. As interrupções propostas visam favorecer essa
narrativa e demonstrar que está sendo afetado e mobilizado por ela, não se
trata de apressar o usuário ou mesmo de “ir direto ao ponto” ou “ao que
interessa”, pois se há interesse em narrar é porque é relevante ouvir. Trata-se,
não de priorizar aspectos da narrativa que sejam diretamente relacionadas ao
cardápio de responsabilidades estabelecidas para aquele profissional ou para
aquele serviço, mas de atribuir um status de importância e legitimidade ao que

associadas a esta temática. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-


40602007000100003. Acesso em 10 jun.2013.
212

se diz de forma a ir compondo um mosaico de fatos e elementos que recupera


trajetórias, compreende motivações e elucida o campo possível mediato e
imediato de transformação.
A aposta é que sentir-se ouvido com interesse é sentir-se
valorizado, perceber que o profissional está considerando seus desejos na
definição dos rumos da intervenção, pensando e construindo soluções oferece
ao usuário segurança e certeza de proteção, especialmente porque se fala de
experiências e eventos que tornam as pessoas vulneráveis e de situações
desencadeadoras de sofrimento. Relembrá-las ou retomá-las exige muita
atenção porque “narrar é também sofrer quando aquele que registra a narrativa
não opera a ruptura entre sujeito e objeto” (Barbosa, 1987, p.13)112. Quando a
relação é de proteção, os fatos ocorridos não podem ser banalizados e/ou
naturalizados; ao contrário, devem ser destacados para reflexão sobre eles
quer seja quando essas situações aparecem em atendimentos individuais quer
seja nos processo grupais.
Em sua elaboração, Mehry analisa processos similares na
atenção em saúde e denomina esses espaços de diálogo, como espaços de
interseção:

O uso desse termo é, portanto, para designar o espaço de relação


que se produz no encontro de “sujeitos”, isto é, nas suas
intersecções, e que é um produto que existe para os “dois” em ato,
não tendo existência sem esse momento em processo, e no qual os
“inter” se colocam como instituintes em busca de um processo de
instituição muito próprio, desse sujeito coletivo novo que se formou.
(MEHRY, 2004, p.11)

Observa-se que se estabelece nesses espaços uma oportunidade


singular só possível pela construção que envolve igualmente os sujeitos, ou
seja, quando se dá um encontro no processo de trabalho, ou na relação em
ato. O processo é eminentemente relacional, não pode ser apartado, nem é
possível que o usuário faça essa interpretação sem o profissional. Tampouco é
possível ao profissional essa leitura da situação sem passar pelo crivo narrativo

112
BARBOSA, João Alexandre. In: Prefácio de BOSI,Ecléa. Lembranças de velhos. 2.ed. São Paulo,
EDUSP, 1987.
213

do usuário. Todavia, aponta esse mesmo autor, quando a escuta não se


estabelece, ou mesmo quando só o profissional detém a fala nessa relação, o
que se registra é a “voz” do profissional e a “nudez” do usuário. Nesse caso,
não se configura a relação entre sujeitos. Ela está mais próxima do que ele
denomina “intersecção objetal” no qual o usuário é colocado na condição de
objeto de intervenção. Não há um encontro mas um desencontro, não se
estabelece escuta mas ruídos. Tal dissociação representa perdas significativas
na atenção ao usuário, na possibilidade de proteção e assertividade das
escolhas e decisões no trabalho profissional.

Quando se intervém educativamente, (...), deve-se levar em conta,


fundamentalmente, entre outros, o “sentimento de ausência”. Isto é:
se é preciso organizar alguma atividade, preparar um planejamento,
elaborar um relatório, fazer uma avaliação...deve-se viver ou, se não,
provocar em si o “sentimento da ausência”, no sentido de incorporar,
o mais cedo possível, a outro, o outro nessas atividades, como um
elemento imprescindível (não só necessário, conveniente, positivo...)
Entendo que os profissionais que não sentem a ausência do outro, da
outra quando sentem, pensam, escrevem, planejam, organizam algo
para eles... também não necessitam do outro, da outra. Acho que
acreditam que seus saberes e fazeres como profissionais são
suficientes. Se assim é, estamos caindo num esquecimento de
graves consequências educativas. (MUÑOS, 2004, p.56)

O processo de escuta é composto por silêncios atentos e diálogos


mobilizadores. Oocorre um imbricamento dos elementos que ora apresento,
pois estou, ao mesmo tempo, falando de escuta e diálogo e isso se dá porque
se está tratando de uma escuta ativa e corresponsável. Em uma escuta ativa, o
profissional não é um ouvinte passivo e anotador contumaz, ele dialoga,
devolve, indaga, facilita e expressa os impactos em si que a narrativa provoca.

O meio básico da comunicação é a conversação, porque a palavra é


um meio de comunicação totalmente autônomo e todos a possuem. A
convivência social requer aprender a conversar. Através da
conversação podemos nos expressar, compreender, esclarecer,
concordar, discordar e comprometer. Em uma conversação
autêntica, cada um busca convencer os outros, mas também aceita
ser convencido; e é nesse propósito mútuo que se constrói a auto-
afirmação de cada um e de todo um grupo. (TORO, 1996, p.58 -
grifos do autor)
214

Raciocínio similar ao de Bernardo Toro está na reflexão de


Norbert Elias sobre o processo reticular que configura as relações humanas. A
conversa nessa construção se estabelece exclusivamente em ato, ou seja, é
durante o momento do diálogo que pensamentos são impulsionados, ideias vão
se constituindo e há uma mútua penetração no pensamento de ideias dos
interlocutores. Ao ouvir, são incorporados os argumentos do interlocutor, ideias
vão penetrando no pensamento do sujeito e alterando sua forma de pensar
uma dada questão. Esse movimento provoca mudanças só possíveis quando
sujeitos estão em interação e se abrem para ouvir os argumentos
considerando-os relevantes, ainda que em discordância. Tal possibilidade só
se materializa e objetiva se de fato o diálogo se der numa relação horizontal e
se as escutas e falas se alternarem de forma respeitosa e de mútuo
reconhecimento. Caso o profissional incorpore a ideia de que detém o
conhecimento e as soluções para a vida das pessoas, e que elas estão ali para
aprender essas respostas e aplicá-las: não se estabelece diálogo. Nessas
circunstâncias o usuário será sempre um ouvinte das recomendações, quase
sempre distantes, inaplicáveis na sua realidade ou ainda desmobilizadoras de
seus interesses.
Uma das entrevistadas por COELHO (2008, p.123), em sua
pesquisa de doutorado, aponta o desconforto que essa relação traduz para os
usuários, afirma ela:

[...] Dava muito sono a aula dele. [ referindo-se ao psicólogo que


coordenava o grupo] Muito [...] porque ele falava muito, com
vocabulário de faculdade, assim, eu chamo de vocabulário de
faculdade, porque era uma forma que a gente não entendia. [...] Só
ele falava e a gente tinha que ouvir, na hora de discutir, já tinha
acabado, né, o horário. Aí comecei a falar pra ele, “a gente também
que falar”, né? Todo mundo começou a falar.

Para que se dê conta da convivência protetiva de modo


programático como política pública, o diálogo radicalmente horizontal é
condição para reconhecer os sujeitos e estabelecer vínculos entre ele e o
serviço. Essa é uma questão bastante explorada nas diferentes intervenções
profissionais em distintas políticas. Portanto, não é propriedade exclusiva do
215

trabalho profissional na assistência social. Todavia, nessa área, é


absolutamente imprescindível posto que são as relações sociais o objeto de
trabalho. Em orientações aos profissionais, de forma contundente se afirma a
importância dessa postura, por exemplo, no trabalho com jovens:

Crie um ambiente de confiança e solidariedade. Iniba manifestações


desrespeitosas. Reafirrme o objetivo da avaliação sempre que
necessário. Abra o debate. O processo avaliativo em grupo deve
buscar soluções coletivas. Não se furte ao diálogo. Faça comentários,
ora problematizando ora destacando a pertinência das análises.
(MDS, 2009ª, p.35)

A experiência do diálogo como estratégia para resolver conflitos


tanto os que se instalam no convívio no próprio serviço quanto os que advém
de outras relações e que no âmbito do serviço aparecem na forma de narrativa
para ponderações de terceiros, permite a capacidade de compartilhamento de
experiências vividas, o que favorece a construção de referências com o
profissional ou com os demais membros do grupo e permite um engajamento
num processo restaurativo e resolutivo (TORRES e GOUVEIA, 2012).
Não são as regras de conduta ou valores do profissional que
serão expressos coletivamente, mas ao contrário, é a versão dos usuários para
sua própria experiência e sobre suas relações que estarão em cena. O
profissional é um ouvinte argumentador, que busca melhor compreender as
motivações que desencadearam tais ações em relato e ao considerá-las, expõe
suas ideias num diálogo que não diz o que deveria ter sido feito, ou tampouco
quais as próximas ações, mas ajuda a refletir sobre o que pode ser feito de
modo diferente para enfrentar esses conflitos, quer tenham surgido no serviço
ou sejam fruto de vivências exteriores.
Na experiência de Belém, os profissionais narram os novos
conhecimentos adquiridos ao estabelecer mais proximamente um diálogo com
os usuários do serviço de convivência, especialmente quando passaram a
realizar atividades de reflexão coletiva em complemento às oficinas de
atividades físicas e manuais. Isto ocorreu quando passaram a estimular que os
idosos falassem de suas experiências e das relações estabelecidas na vida, e
ainda da imagem que possuem da velhice e de suas trajetórias. Foi se
216

estabelecendo um ambiente favorável para que as vivências de violação se


expressassem e as restaurações possíveis fossem construídas. Esse passou a
ser um novo saber, a partir do relato do sujeito submetido à violência. No caso
das mulheres idosas, a profissional afirma que os trabalhadores fingem saber
como essa relação se estabelece, mas ao ouvir a narrativa e estabelecer
referências em grupos com encontros mais contínuos e sistemáticos percebeu-
se o quão pouco conhecia a respeito.

[...] Aí a superação de conflitos eu pude acompanhar no grupo, foi só


acompanhar o grupo, pessoas extremamente ansiosas que
desabafam em qualquer situação, que choravam, que traziam
situações que no grupo a gente teve oportunidade de vencer, como a
violência doméstica em um nível elevadíssimo, coisas que nunca
foram trazidas; a questão da sexualidade, é muito interessante
porque eles falam de uma cultura, de um tempo né, a gente fingia
saber, o homem tinha, a mulher não tinha, a gente fingia, e outras
coisas né, de sentir alívio com a morte; a gente contava nos dedos
uma pessoa que disse que teve satisfação com o casamento, que
tem boas lembranças do casamento, as viúvas todas tinham uma
sensação de alívio, era uma pessoa que espancava, era uma pessoa
que tinha que manter porque meu emprego dependia do casamento,
porque eu era religiosa, se largasse o marido também perdia o
emprego, e uma série de outras coisas. (Psicóloga, Centro
Intergeracional Zoé Gueiros)

Advogo uma máxima explorada por vários autores, dentre os


quais destaco a de Paulo Freire: é no diálogo que os conhecimentos se
colocam à disposição dos sujeitos, se ampliam, se diversificam, se
complementam. Nessa ótica, não há saber hierarquicamente mais importante
ou finalizado, mas há saberes diferentes e em construção constante.

O homem vai para um banco do colégio, ele aprende muita coisa,


mas coisa matuta se aprende no campo, porque vai convivendo, vai
vendo, vai ficando prático, vai conhecendo... “é assim”. (COUTINHO,
2005)

É possível afirmar que é a vivência da experiência de ser ouvido e


de dialogar que produz mudanças e o reconhecimento de ser sujeito de direito
na política de assistência social. Logo, dentre outros atributos do direito, como
a continuidade e a garantia de acesso a todos nas mesmas condições, está a
vivência de ser tratado e valorizado como tal. Nessa perspectiva a experiência
217

da convivência protetiva é atributo obrigatório para a política pública que deve


assegurá-la.

3.4.2 Vivência de situações de convívio protetivo: a experiência


ressignificando a trajetória dos sujeitos

O pressuposto a ser desenvolvido aqui é o de que devem ser


criadas situações de convivência protetiva na proposta programática da política
e oportunidade de vivência da experiência de conviver de forma respeitosa,
horizontal e na diversidade. Essa perspectiva não significa simular situações,
embora seja esta uma estratégia possível e desejável, pois significa que nas
relações estabelecidas na política os elementos de uma convivência protetiva
devem ser a diretriz norteadora, de maneira que as orientações programáticas
sejam próximas da vivência dos sujeitos no interior da política.
A defesa de que é essencial a vivência da experiência se
aproxima do pensamento de Jorge Larrosa.113 Para esse educador espanhol,
há um desafio em pensar a educação a partir do par experiência/sentido. Para
ele, a experiência proporciona um conhecimento que distinto do que
concebemos por saberes na atualidade, uma concepção que está mais
vinculada à quantidade de informação. Afirma que a diferença reside no fato de
que não é tão relevante saber o que acontece no mundo, mas é fundamental
perceber, refletir e valorizar o que nos acontece em nossas experiências e
trajetórias. Essa vivência produz um conhecimento específico, individual e
sensível que não é transmissível, mas que nos marca definitivamente.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos


toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar
para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,

113
Jorge Larrosa Bondía é Doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, Espanha, onde
atualmente é professor titular de filosofia da educação.
218

cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e


espaço. (LARROSA, 2002, p.24)

Viver a experiência de forma programática supõe aguçar o


sentido, e colocar-se na situação vivida e perceber o que ela produz no
profissional e no usuário quanto a construção de outros valores,
conhecimentos, formas de ver e ouvir coisas e situações que por vezes se
considera que já há acúmulo suficiente de informação para construir uma
opinião.
O sujeito que aprende com sua própria experiência deve estar
aberto a vivê-la, receptível, disponível, atento, paciente e ao mesmo tempo
estimulado para viver um acontecimento, um encontro, uma relação, para
experimentar e provar um fato ou uma situação. Para Larrosa, o sujeito que
vive e aprende com a sua experiência, é um sujeito que se expõe, não se opõe,
ou se impõe. A abertura para reconhecer certa vulnerabilidade e fragilidade
diante de uma nova situação é condição imprescindível. Não há segurança ou
possibilidade de antecipação do que acontece ao sujeito antes de viver a
experiência, inclusive pelo fato de que para cada um, a vivência de uma dada
situação representará sentidos e aprendizagens distintas. Baseado em
Heidegger (1987), Larrosa afirma que a experiência nos tomba e nos
transforma, por vezes imediatamente e, portanto, nada é mais poderoso para
nos transformar do que viver uma experiência que nos toca e nos motiva.
“Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós
próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso”.
(HEIDEGGER apud LARROSA, 2002, p.25).
O saber decorrente da experiência é aquele adquirido na medida
em que acontecimentos se sucedem na trajetória do sujeito a partir dos quais
ele vai definindo sentido e relevância para esses acontecimentos. Não importa
a “verdade” do que são as coisas, mas os sentidos que a elas são atribuídos.
Portanto, não é um saber fora do sujeito, que pode ser transmitido a ele pela
narrativa de outro, tampouco, pode ser ensinado por meio de leituras. O saber
da experiência só é possível vivendo-a e tornando-a própria de modo a se
constituir na própria existência do sujeito. A singularidade é constitutiva do
saber adquirido pela experiência, bem como a imprevisibilidade sobre o que
219

produzirá nos sujeitos que a vivem. Por isso é fundamental demorar-se nos
detalhes, refletir sobre o sentimento desencadeado, cultivar a atenção e a
delicadeza que os encontros proporcionam, como afirma Larrosa.

Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo,


relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece,
mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o
mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O
acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua,
singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da
experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo
concreto em quem encarna. (LARROSA, 2002, p.27 – grifo meu)

Parece-me que essa construção é fundamental para se


compreender o que se processa nos encontros e como é possível ser mais
assertivo no fomento à convivência horizontal, quando se criam nos serviços
oportunidades para os usuários aprenderem com suas próprias experiências.
Esse conhecimento pode gerar transformação, pois é o conhecimento que
mobiliza e motiva o sujeito.
Viver situações de produção coletiva, exercitar escolhas, tomar
decisões sobre sua própria vida e de seu grupo, reconhecer limites e
possibilidades das situações vividas, experimentar, reconhecer e nominar suas
emoções nas situações vividas, são algumas das situações identificadas como
possíveis de serem produzidas no âmbito da política e que proporcionam essa
possibilidade de viver a experiência de uma convivência protetiva. (TORRES e
GOUVEIA, 2012)
O envolvimento em um projeto coletivo, a necessária definição de
objetivos a serem atingidos com aquela atividade e a construção de estratégias
para o seu alcance é uma dessas experiências que fomentam novos
aprendizados. Essencial nesse caso é que os lugares de decisão e de
orientação dos rumos do trabalho coletivo sejam alternados e vivenciados por
distintos membros do grupo, que nessas situações experimentarão e provarão
responsabilidades distintas e construirão igualmente distintas formas de
relacionamento. Quando formulada a concepção do serviço Projovem
adolescente, a importância da experiência de realizar projetos coletivos foi
destacada como uma estratégia potente para oferecer oportunidades de
aprendizados distintos e diversos aos jovens participantes.
220

(...) Implica produzir com os jovens um saber prático, um modo de


intervenção na realidade capaz de gerar mudanças na coletividade.
Por meio de projetos voltados à comunidade, podem ser articulados
diversos campos de conhecimento, técnicas, saberes profissionais
capazes de configurar para os jovens as relações entre saber e
intervenção; conhecimento, técnica e trabalho. Os aprendizados
socioeducativos de jovens e adolescentes podem, portanto, ampliar
seus saberes práticos, tanto do ponto de vista do conhecimento de
técnicas específicas, quanto dos aprendizados necessários à
pesquisa e acesso às informações em sentido amplo. Ao lado disto,
os aprendizados socioeducativos no âmbito relacional também são
fundamentais para lidar com conflitos, conviver com as diferenças,
expor ideias, sustentar decisões coletivas. (MDS, 2009: 44)

O exercício de escolhas e de tomada de decisão sobre a própria


vida é outra situação a ser experienciada no âmbito do serviço ou a ser
estimulada por ele e que assegura o aprendizado de conhecimentos
fundamentais para a construção de boas formas de conviver e relacionar-se.
Pela experiência de tomada de decisão, o sujeito passa a responsabilizar-se
pelas escolhas que faz e se obriga a ponderar e refletir sobre elas revendo-as
ou assumindo-as em suas consequências. Na pesquisa realizada por COELHO
(2008), foi possível observar situações concretas de tomada de decisão,
estimuladas pelo trabalho social, que terminaram por transformar
significativamente os modos de convivência entre as pessoas do grupo de
trabalho e da própria família.

Ah, eu acho que eu, eu não vou dizer que eu fiquei independente de
mim mesma, né, que ainda tô dependente, mas eu posso dizer que
eu me tornei uma pessoa mais sábia, pensar bem o que quer,
escolher as coisas certas, que acha certo, o que é melhor para você,
porque antes, eu fazia as coisas para minha família, eu não fazia pra
mim, eu não pensava em mim, mesmo tendo esse receio de família
que não gosta, eu pensava na minha família, não pensava em mim.
(Vânia, entrevistada por Coelho. COELHO, 2008, p.104)

É sempre bom lembrar que ao tratar de uma política de proteção,


entende-se que há uma corresponsabilidade dos serviços pelas escolhas dos
sujeitos e que as condições objetivas para vivência dessas escolhas não estão
asseguradas. Por vezes e, na maior parte das vezes, é responsabilidade
estatal assegurá-las. Nas estratégias de trabalho, essa experiência pode ser
estimulada ou simulada:
221

Organizar encontros com jogos que desafiem as pessoas a terem que


decidir coletivamente, compartilhar motivações, negociar a relevância
dos resultados e consequências ou simular um processo com
questões do cotidiano do grupo constrói repertório e aproxima os
participantes. (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.39)

Quando o exercício da escolha e a tomada de decisão envolve


um coletivo, a experiência se torna ainda mais significativa e complexa, pois
exige cooperação, análise mais aprofundada da situação, explicitação de
desejos, inseguranças e medos, revisão das concepções definidas, ou mesmo,
adiamento ou suspensão de decisões de interesse exclusivamente individual. É
necessário reconhecer que, por vezes, as escolhas coletivas afetam de forma
distinta os membros do grupo e, portanto, todos os interesses precisam,
igualmente, ser considerados e expressos para um entendimento coletivo.
Reconhecer as emoções, e saber nominá-las e expressá-las de
forma compreensível é outro aprendizado importante a ser experimentado nas
ações programáticas da política de assistência social. O repertório linguístico
com o qual se lida é comumente escasso quando se trata de explicitar
sentimentos e emoções desencadeados a partir de fatos e experiências. Essa
dificuldade de explicitação por vezes é um forte obstáculo para a compreensão
por outros do que e como nos afeta. Emoções, dores, prazeres são fragilmente
comunicados em nossas relações, embora já vastamente reconhecido em
vários estudos o poder da linguagem na construção da história da humanidade,
como já aqui apontado pelo pensamento de Norbert Elias.

Nomear o que fazemos, em educação ou em qualquer outro lugar,


como técnica aplicada, como práxis reflexiva ou como experiência
dotada de sentido, não é somente uma questão terminológica. As
palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que
pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que
simplesmente palavras. (Larrosa, 2002, p.21)

O fato é que ao nominar sentimentos e ao ouvir a definição que se


tem deles e das emoções que lhe são próprias é produzido um novo sentido
para si mesmo e para o outro. Essa explicitação favorece maior controle e
autoconhecimento em relação aos sentimentos e pode ser a estratégia
fomentada e experimentada na intervenção dos serviços.
222

(...) os jogos dramáticos podem colaborar, pois exercitar as emoções,


rir, chorar, gargalhar, comemorar, entristecer, enraivescer,
compadecer-se etc. agrega certo domínio sobre as emoções. Incluir
perguntas nos diálogos, como: o que sente quando isto acontece? O
que sentiu quando fez isso? O que sente quando fala sobre isto? E
dizer: quando isto acontece comigo eu choro. Ou, tenho muita
vontade de rir quando alguém fica nervoso. Ou seja, expressar o que
sente e interessar-se pelo o que o outro sente colabora no
estabelecimento de laços. (TORRES e GOUVEIA, 2012, p.40)

A observação de COELHO (2008, p.104) registra a relevância que


a nominação de sentimentos teve para uma das informantes da pesquisa. Ao
expressar seus sentimentos, essa condição favoreceu uma mudança de atitude
em relação à sua experiência de vida, de ser mãe adolescente e solteira:

(...) Vânia com o decorrer da sua participação no grupo, superou a


vergonha e a culpa que sentia por ser mãe solteira, e começou a
assumir a filha. Inicialmente, esse processo foi experimentado na
relação com o grupo, pois as relações que estabeleceu naquele
espaço permitiram a ela vivenciar, sem culpa e vergonha, o prazer de
ser mãe. (...) Eu comecei a falar aqui dentro, da minha filha, eu
comecei a me soltar, falar: “Eu tenho uma filha. Eu sou mãe solteira”.
Assumir mesmo. Na medida em que se apropriou do seu desejo,
passou a ter enfrentamentos no espaço familiar: Aí eu comecei a
assumir minha filha, eu falei: Não, eu não tenho vergonha da minha
filha. Ela é minha filha, eu sou mãe. Eu comecei a disputar, brigar por
isso.

A aposta é que na intervenção da política se viva a experiência de


uma convivência fortalecedora de sujeitos, que os reconhece como seres
desejantes capazes de fazer escolhas e conhecedores da sua própria vida.
Conhecimentos precisam ser ouvidos e considerados em cada etapa da
intervenção profissional. Acredita-se ainda que é possível desenvolver práticas
de convivência que considerem as subjetividades e as emoções que mobilizam
os sujeitos, o que pressupõe reconhecer pessoas na sua dimensão humana e
valorizá-las para produzir autorreconhecimento, autoconfiança e estima social e
para combater desrespeito, violências, abandonos, isolamentos, humilhações e
desvalorização.
Antes de qualquer coisa, a assistência social se alinha como política
de defesa de direitos humanos. Defender a vida, independentemente
de quaisquer características do sujeito, como é o caso da saúde, é
também um preceito que a orienta. No contraponto da desproteção,
está em questão evitar as formas de agressão à vida. Em distinção à
saúde, a vida aqui não está adstrita ao sentido biológico, mas sim ao
sentido social e ético. (SPOSATI, 2009, p.25)
223

4 CONCLUSÕES

Para poder projetar-se no futuro, é preciso dispor no presente de um


mínimo de segurança. Por conseguinte, tratar sem ingenuidade como
um indivíduo uma pessoa em dificuldade, é querer colocar à sua
disposição apoios que lhe faltam para comporta-se como um
indivíduo de plenos direitos. Apoios que não consistem apenas em
recursos materiais ou em acompanhamento psicológico, mas também
em direitos e em reconhecimento social necessários para assegurar
as condições da independência. Robert Castel

O objeto deste estudo é a convivência social concebida como


processo sociorrelacional que contem possibilidade de ampliar a proteção
social de sujeitos, famílias, grupos e segmentos populacionais e, sob essa
concepção, ela pode adquirir a condição de campo programático de política
pública de proteção social, neste estudo examinada no âmbito da assistência
social que no Brasil tem o estatuto constitucional de Seguridade Social. A
convivência social é aqui tratada sob duas perspectivas, como processo
sociorrelacional que compõe a sociabilidade humana e como ação
programática publica de garantia de segurança social na política pública de
assistência social.
O trato da convivência social é o de um processo que se coloca
para além de um fenômeno natural decorrente da natureza e característica
gregária do ser humano e alcança a condição de questão complexa, ao mesmo
tempo, dinâmica e contraditória – que expressa simultaneamente proteção e
desproteção, autonomia ou subordinação, valorização ou desrespeito – que
permite conhecimentos das relações humanas e sociais construção realizada
pelos sujeitos em suas relações. Sob essa questão a convivência social
adquire estatuto de questão para ser problematizada, investigada, analisada é
tema de produção de conhecimento.
Ao longo da análise aponta-se o convívio como expressão da
relação viver com, isto é, não isolado e a convivência enquanto o processo
dessa vivência, suas características, elementos, particularidades. Poder-se-ia
dizer em síntese que a abordagem deste estudo considerou três elementos
centrais ao tratar a convivência social como processo: significa tomar o
224

convívio social enquanto uma relação entre sujeitos que requer considerar que
seu processo supõe vontades, escolhas e desejos distintos em cena. São
relações que se estabelecem em diferentes espaços, contíguo ou próximo,
virtual ou íntimo, privado em família ou em território público e coletivo, em
relações institucionais. São relações que se estabelecem em diferentes
tempos, desde o cotidiano, em contatos eventuais, contínuos ou descontínuos.
Ênfase especial precisa ser dada ao caráter contraditório da
convivência social sob pena de iludir-se pela visão ingênua que pressupõe que
para conviver basta estar junto e, assim, vive-se em harmonia, acompanhado e
protegido. Os estudos tomados como referência e o diálogo com os sujeitos da
pesquisa permitem afirmar que é fundamental olhar mais de perto as relações
entre os sujeitos para observar o significado que as pessoas têm umas para as
outras. Somente aprofundando o conhecimento sobre essas relações é
possível afirmar quando são protetivas ou quando possuem, paradoxalmente,
distância e até mesmo violação. Conflitos e disputas são parte do viver
conjunto e, estar junto, não significa necessariamente um convívio social
agradável e protetivo.

Quando o outro está fisicamente próximo mas socialmente distante,


quando os muros do silêncio não deixam ver nem ouvir o que o outro
tem para dizer, então, o conceito de solidão pode desenhar-se como
apropriado, se expressa uma quebra de laços sociais que afetam o
sentido da vida. (PAIS, 2006, p.19)

Ao considerar que a convivência social é questão processual,


complexa que pode proteger e desproteger simultaneamente justifica-se a
intervenção pública estatal em relações de convivência quando direcionada a
fortalecer relações protetivas e atuar de forma preventiva e restaurativa em
relações violadoras de direitos, de trato subalternizante ou desqualificadoras de
sujeitos, de sua identidade e reconhecimento social.
A intervenção pública estatal no âmbito de convivência social tem
por hipótese desenvolvida neste estudo de que não são os sujeitos
individualmente os únicos responsáveis em ampliar sua rede de relações e
convívio, o que implica em contar com maior possibilidade de proteção social.
Em resposta investiguei se competia dentre as responsabilidades sociais de
225

Estado incidir em processos relacionais e, portanto, tornar a convivência além


de fato humano e social, objeto político de mudança de espaços e tempos, no
sentido de potenciar o conteúdo da solidariedade humana e de cuidados
mútuos para além de expressões de cortesias, gentilezas da sociabilidade em
vínculos protetivos que comportam estima social, identidade e reconhecimento
social.
Ao longo do estudo essa responsabilidade estatal mostrou-se
mais nítida e sua assunção cada vez mais necessária, especialmente ao
perceber situações de violação que não podem ser enfrentadas pelos próprios
indivíduos, posto que são decorrentes de modos complexos de organização da
sociedade e que, por vezes, ocorrem em escalas macrossocietais, mas que se
manifestam em relações cotidianas e em microinstâncias de poder. Observa-se
que se está tratando de impactos nos sujeitos decorrentes de processos
amplos e coletivos de produção de desigualdades e de subordinações. A
responsabilidade pública estatal se justifica também enquanto preservação do
direito a convivência social, familiar e comunitária do cidadão desde sua
infância.
Ressalte-se, porém, que ao reafirmar a responsabilidade pública
estatal a perspectiva não é a de institucionalizar ou “vigiar” o convívio social,
pois a preservação da liberdade e das relações democráticas é fundamento de
direitos do sujeito. Isto significa preservar a dignidade do cidadão como sujeito,
portanto com direito a fazer escolhas sobre suas relações, mesmo quando isso
contrarie um agente estatal. O pressuposto que orienta essa elaboração é que
as relações de proteção não são, em nenhuma circunstância, restritivas e
compulsórias. A intervenção estatal tem limites que não estão dados pelo
espaço em que se estabelece a relação, mas sim pelo pacto legal do que está
reconhecido como direito. Isso significa, o pleno respeito ao direito civil de
liberdade, de privacidade, de acesso à informação, de locomoção e autonomia
sobre si (art 5º da Constituição Federal de 1988). Nessa perspectiva, a ação do
Estado não anula a vontade dos sujeitos e tampouco é substitutiva de relações
construídas em sua trajetória. Não se trata de institucionalização do convívio,
226

mas de compreender que o Estado pode alargar as oportunidades de vivência


de relações protetivas e de reconhecimento dos sujeitos.
Tal perspectiva confronta uma tendência em responder ao
sofrimento humano por meio da medicalização, o que denota compreender as
relações humanas como patologias a serem tratadas com pílulas que
produzem sono tranquilo, bom humor, controle de ansiedades; mas que
também podem produzir apatia e incapacidade de reação a agressões.
Outra distinção a ser sublinhada para além do afastamento do
olhar da medicalização é o afastamento do olhar de associação direta entre
consumo e bem estar, pois há respostas de bem-estar e valorização que o
mercado não produz na medida em que não são mercadorias, as relações de
reconhecimento e valorização, por natureza, são desmercadorizadas.
Estabelece-se, assim, um novo contraponto que pressupõe um Estado mais
alargado, presente na produção da vida social com qualidade e
reconhecimento cidadão. Reconhecimento que nos autores estudados se
constitui em necessidade humana.

(...) a categoria reconhecimento tem assumido caráter de urgência na


sociedade contemporânea e sua importância ganha destaque dado o
vínculo existente entre reconhecimento e identidade, onde a
identidade designa algo como a compreensão de quem somos, de
nossas características definidoras fundamentais como seres
humanos. [A tese de Charles Taylor] é que nossa identidade é
moldada em parte pelo reconhecimento ou por sua ausência, de tal
forma que uma pessoa ou grupo pode sofrer danos reais ou uma real
distorção caso a sociedade da qual faz parte lhe devolver um quadro
de si mesma redutor, desmerecedor, ou mesmo desprezível. Assim, o
devido reconhecimento não seria uma mera cortesia que devemos
conceder às pessoas, mas sim uma necessidade humana vital. Surge
aí um fato importante: quando intentamos compreender o estreito
vínculo entre identidade e reconhecimento, deve-se considerar uma
característica fundamental da condição humana. (PIZZIO, 2008, p.
82)

As produções de Axel Honneth e de Serge Paugam, enfatizadas


neste estudo, dão conta de que as relações sociais produzem mais do que
sobrevivência, na medida em que incluem reconhecimento e proteção. O
conteúdo de suas análises permite identificar três padrões de reconhecimento
e proteção: a autoconfiança, o autorrespeito e a estima social.
227

A autoconfiança é um sentimento decorrente de relações


amorosas pelas quais os sujeitos têm certeza de que suas carências e
necessidades terão atenção e dedicação de outras pessoas, ainda que elas
não estejam presentes em todo o tempo ou que tal atenção se dê à distância. É
a certeza do afeto que produz autoconfiança.
O segundo padrão de reconhecimento está relacionado ao
sentimento de autorrespeito ou respeito social, produzido nas relações de
cidadania, nas quais o sujeito se reconhece digno do respeito de outros. Essa
relação só é possível quando o sujeito pode reclamar direitos e consegue
acessá-los numa perspectiva de igualdade e impessoalidade, situação que
permite uma expressão simbólica pela qual é reiterada sua condição cidadã e
os outros a reconhecem.
O terceiro e último padrão de reconhecimento nos estudos de
Axel Honneth é o da estima social ou da solidariedade. Nesse caso, associa-se
à ideia de partilha de valores comuns e ao reconhecimento de quem são os
sujeitos que em sua ação contribuem para a implementação prática dos valores
coletivos, legitimados e fortalecidos por essas práticas. A estima social destina-
se àqueles sujeitos, cujo modo de viver, capacidades, particularidades são
valorizadas coletivamente. Portanto, o reconhecimento social vai além do
pressuposto de que as pessoas são todas iguais e valoriza características,
particularidades e diferenças.
O reconhecimento e a proteção são decorrentes de variadas e
distintas relações que se complementam na trajetória dos sujeitos. Ao
identificar esse processo, Serge Paugam destaca pelo menos quatro
modalidades de vínculos: os de filiação, produzidos nas relações familiares,
quer biológicas ou adotivas; os eletivos, existentes nas diferentes relações que
ao longo da vida os sujeitos escolhem estabelecer e que se materializam nos
amigos que possuem, nos grupos e associações dos quais fazem parte, dentre
outras possibilidades; os orgânicos, relativos à relação de trabalho e à proteção
e segurança que dela decorre não só pelos ganhos necessários à
sobrevivência, mas também pelo reconhecimento advindo da atividade
profissional e, por fim, os vínculos de cidadania, presentes nas ofertas e
228

atenções dos serviços públicos que oferecem ao sujeito não só atenção às


suas necessidades, mas também o sentimento de pertencimento a uma dada
sociedade.
Esses mesmos autores, especialmente Axel Honneth, alertam que
as relações produzem formas de desrespeito expressas por maus-tratos,
violações, privação de direitos, exclusão, degradação e ofensa. Nesse
movimento o campo de ação se delineia a partir das lutas desencadeadas
pelos sujeitos para restaurar ou assegurar o respeito a suas características e
diferenças, o que no limite também aponta para o alcance de padrões mais
avançados de civilização e de desenvolvimento humano.
Desconhecer as múltiplas faces das relações produtoras de
subordinação não contribui em nada para combatê-las; ao contrário, reforça
sua invisibilidade, legitima e produz subordinação. Para não cair nessa
armadilha, busquei no processo de reflexão sobre o tema reservar um
momento específico para tratar das situações de violação, de modo a não só
afirmar a importância da convivência como proteção, mas também demonstrar
o que representa na trajetória dos sujeitos a vivência do desrespeito e da
desproteção.
Para essa discussão foi fundamental a leitura dos estudos de
Jessé de Souza e dos pesquisadores que com ele têm dialogado para abordar
a subordinação, considerando as especificidades nacionais, bem como
identificar sentimentos decorrentes dessas vivências para não banalizar e
naturalizar processos que geram humilhação, vergonha e que têm sido
enfrentados por grupos populacionais ao longo de várias gerações. São
situações pouco vistas e quando o são, aparecem de forma tão carregada de
preconceitos e moralismos que tornam ainda mais perverso seu
reconhecimento, pela carga de discriminação negativa que possuem.
Humilhações e desrespeitos têm estado presentes na trajetória de
vários segmentos populacionais que sofrem discriminações, apartações,
isolamentos por suas características pessoais, origem regional, escolha
religiosa, vivência de sua sexualidade e até por sua idade. Essas humilhações
estão presentes no modo de relacionar-se e nos vários espaços, nas
229

instituições públicas, no âmbito familiar, nas relações de trabalho, nos


territórios por onde as pessoas circulam.
A presença de humilhações na intervenção estatal pública é a
face perversa desse processo de subordinação, visto que se constitui em uma
intensidade de abandono singular, operada pelos agentes legitimados pela
sociedade para oferecer atenção e proteção. Busquei compreender o que são
práticas segregadoras no âmbito estatal para acentuar que elas tem por base
princípios segregados e de não convívio protetivo quando se fundam em
moralismos, que expressam preconceitos e são enquadradores de
comportamentos, ou ação compulsória, firmada em estruturas hierárquicas
rígidas e que desconsideram vontades do sujeito a quem se destina a ação.
A representatividade do sofrimento como força bloqueadora do
desenvolvimento de capacidades humanas precisa ser considerada quando a
intervenção ocorre no âmbito de relações humanas e sociais. Não se pode
minimizar o impacto de vivências de humilhação e constrangimentos,
especialmente quando a agressão é impingida por quem deveria proteger e
acolher como a família, os agentes institucionais, amigos e vizinhos.
Na produção de Axel Honneth e Serge Paugam, observa-se que a
perspectiva é identificar as particularidades das relações, distinguindo-as em
sua diversidade e impactos que podem promover na trajetória dos sujeitos.
Assim, esse mosaico de relações vai produzindo no sujeito sentimentos que
são transportados de uma relação para outra que podem ser fortalecidos,
potencializados ou anulados a depender dos modos de relacionar-se. A
perspectiva, portanto, é que longe de indicar ausência de conflito, as diferenças
possam ser vividas “isentas de dor, isto é, não turvada por experiência de
desrespeito”. (HONNETH, 2003, p.11) São relações distintas, capazes de
produzir diferentes sentimentos e também capazes de anular-se; para o bem e
para o mal.
A defesa, portanto, é que cabe ao Estado – em contraponto à
mercadorização geral e ao individualismo – prevenir e combater sofrimentos,
desrespeitos, preconceitos, subalternizações e produzir, estimular e valorizar
230

relações pautadas em solidariedade e mútuo reconhecimento, o que Honneth


denominou de estima simétrica:

Estimar-se simetricamente significa considerar-se reciprocamente à


luz de valores que fazem as capacidades e as propriedades do
respectivo outro aparecer como significativas para a práxis comum.
Relações dessa espécie podem se chamar “solidárias” porque elas
não despertam a tolerância para com a particularidade individual de
outra pessoa, mas também o interesse afetivo por essa
particularidade: só na medida em que eu cuido ativamente de que
suas propriedades, estranhas a mim, possam se desdobrar, os
objetivos que nos são comuns passam a ser realizáveis. (HONNETH,
2003, p.211)

O raciocínio decorrente do reconhecimento da responsabilidade


estatal recai sobre a definição do lócus institucional, que dá objetivação e
materialidade a essa responsabilidade por meio da oferta de proteção. Esta
reflexão aproxima-se da segunda perspectiva pela qual o objeto de estudo foi
analisado e decomposto, qual seja, a expressão programática da convivência
social como segurança de assistência social. Advogo aqui, que a convivência
social como objeto do trabalho social no âmbito da política de assistência social
lhe traz uma especificidade que tem a ver com conteúdos a serem
desenvolvidos, com a forma que o trabalho se dá e, portanto, com o método de
intervenção e com os resultados que se pretende alcançar. Nesse sentido, a
partir da formulação de Aldaíza Sposati foi sendo construído um entendimento
– não só meu, mas de alguns interlocutores dessa pesquisa – que na
Assistência Social a convivência social é método de trabalho e o fortalecimento
dos vínculos o resultado dessa intervenção.
Tal reconhecimento já está expresso nos enunciados da Política
Nacional de Assistência Social, aprovada em 2004, como uma das seguranças
a ser garantida por essa política pública. Entretanto, no diálogo com
profissionais e na leitura de teses e dissertações que pesquisam o processo de
implementação dessa política em todo o território nacional, foi possível
depreender que há ainda um percurso a ser intensificado para que a
convivência social seja tomada como objeto de intervenção.
Dentre os elementos a serem desenvolvidos na política de
assistência social está a necessidade de produzir conhecimento sobre as
231

situações de violação e de desrespeito vividas pelas pessoas cotidianamente.


As relações precisam tornar-se mais enfaticamente objeto de estudo e de
intervenção da política de assistência social se houver a pretensão de oferecer
convivência social como segurança de proteção dessa política. Sabe-se pouco
de como os vínculos são construídos e desconstruídos ao longo da trajetória
dos sujeitos, como também são pouco conhecidas as expressões de
subordinação nas relações familiares, institucionais e vicinais no âmbito dessa
política e os sentimentos que geram nos sujeitos que as vivenciam. Chegou-se
ao ponto de uma profissional participante da pesquisa empírica desenvolvida
neste estudo mencionar que “os profissionais fingem que sabem” como as
violações se expressam, mas que percebeu que “sabem pouco sobre como
identificá-las ou sobre como abordá-las no trabalho profissional”. O desafio,
portanto, é tornar sofrimentos visíveis para tomá-los como objeto de
investigação e de intervenção na construção de saberes específicos e
especializados dessa política pública.
O desenvolvimento do estudo colheu considerações e
argumentos de especialistas e de profissionais que atuam com relações de
convívio. Os especialistas entrevistados apontam que falta maior precisão
conceitual no âmbito da política de assistência social. Observa-se que as
normativas legais estão dissociadas da construção de uma base científica que
dê sustentação teórica e oriente metodologicamente as intervenções, de modo
a assegurar padrão de unidade nesta política pública, bem como de modo a
fortalecer parâmetros profissionalizados, científicos e laicos na intervenção em
detrimento de orientações moralistas, pautadas em concepções individuais e
pretensamente bem intencionadas. Para tanto, é necessário multiplicar
oportunidades de debate conceitual e circular mais intensamente as pesquisas
desenvolvidas neste segmento para provocar reflexões e diálogos coletivos
sobre e a partir das normatizações construídas, de modo a não tomá-las como
dogmas, mas como força propositiva e impulsionadora da ação.
A análise empírica permitiu identificar que a construção científica
e profissional da política pública de assistência social precisa traduzir-se em
indicadores que permitam afirmar as demandas coletivas que requeiram sua
232

intervenção, as especificidades desse trabalho nesse âmbito setorial, bem


como os resultados produzidos nessa atenção pública. O fato do objeto em
questão ser relações, sentimentos e subjetividades, não significa que se está
tratando de algo que não possa ser objetivado e materializado. A aposta é que
é possível reconhecer o que as relações produzem nas trajetórias dos sujeitos,
portanto também é possível identificar situações que produzam
reconhecimento e proteção, além de monitorar os resultados e impactos nas
relações existentes e em outras a serem fomentadas.
Ao defender a necessidade de bases científicas e laicas de
caráter profissional e ético na intervenção da política pública de assistência
social, é necessário reconhecer que há ainda forte presença de manifestações
do conservadorismo na atenção pública estatal, produzido pelas normas e
pelos agentes. Embora esse fato não seja exclusividade dessa política, há na
trajetória histórica da assistência social consensos sociais articulados, que
resultam no reconhecimento dos usuários dessa política como pessoas
carentes, coitadas, ignorantes de si e do mundo, incapazes de tomar decisões
ou de tomá-las “acertadamente”, irresponsáveis, acomodadas e outras
adjetivações desqualificantes. A leitura negativa tende a dirigir a ação para
princípios que desrespeitam e não reconhecem o sujeito e suas capacidades,
mostrando-se subordinadora e até mesmo segregadora.
A distância entre o discurso humanitário sobre os “deserdados da
sorte” e a linguagem dos direitos é abismal. Enquanto o primeiro
“constrói a figura do pobre, fraco e sofredor das desgraças da vida”, a
linguagem dos direitos está carregada de possibilidades. É por meio
dela que homens e mulheres se fazem ver e reconhecer na
sociedade, pronunciam-se sobre o que é justo e injusto em suas
vidas e “reelaboram suas condições de existência como questões
pertinentes à vida em sociedade”. (TELLES, 2003, p.68)

Para enfrentar e superar os desafios que se confirmam pela


leitura de especialistas, estudos especializados e nas falas dos profissionais,
busquei adensar linhas de força que sinalizassem para outra direção a ser
implementada na ação estatal. A compreensão do convívio social como um
processo dinâmico, exige vivência de experiências de respeito e valorização
possíveis nas relações existentes ou na oportunidade de viver novas
experiências relacionais.
233

Nessa direção, a ação estatal tem em si uma força que é não só


capaz de produzir reconhecimento e valorização na sua própria intervenção,
como também oferece ao sujeito aprendizados relacionais que podem ser
transportadas para suas outras relações e desse modo diversificar suas
possibilidades de reconhecimento e proteção.
Na observação de práticas profissionais desenvolvida no estudo
empírico e na leitura e análise de estudos sistematizadores de práticas,
mostrou-se como ideia força a unidade entre o conteúdo do discurso e o
conteúdo da ação dos agentes institucionais. É necessário objetivar o que
acontece e sustenta o trabalho social na política de assistência social, como
também os resultados que produz. A dimensão ético-valorativa é central no
trabalho social, pois sua objetivação imprime direção no processo de ação
profissional.
O diálogo com especialistas e profissionais que atuam na atenção
a diferentes públicos na política de assistência social destaca elementos
constitutivos de convivência social como proteção social e foram explorados
em diferentes momentos nesse texto. O respeito à diferença e a valorização de
histórias e trajetórias dos sujeitos ao entender essa diferença como campo de
aprendizado coletivo; a incorporação do usuário como sujeito de direitos e o
respeito à sua autonomia como direção a ser fortalecida.
Quanto às práticas que enfatizam o respeito à diferença,
observou-se que no campo programático é possível criar oportunidades de
ampliação de redes relacionais ao fomentar a convivência entre pessoas de
idades diferentes, moradoras de distintas regiões da cidade, com distintas
vivências de violações e de acessos a políticas públicas, que professam
diferentes religiões, de diferentes gêneros, que têm distintas opções sexuais,
que possuem ou não deficiências físicas e mentais, originárias de distintas
regiões do país, entre outras características. Uma infinidade de situações que
podem e devem conviver, a partir de uma intervenção com essa finalidade
promovida pela política pública. Justifica-se tal estratégia no entendimento de
que viver essa experiência de convívio fortalece e valoriza as características
dos sujeitos e diversifica os seus grupos de pertencimento. A vivência entre
234

sujeitos com distintas trajetórias oferece reconhecimento e oportunidades de


proteção, pois quanto mais diversificada a rede de relações e os vínculos, tanto
mais protegidas estão as pessoas.
Experiências observadas demonstram que a política de
assistência social pode oferecer oportunidades de diversificação do convívio de
sujeitos no sentido de ampliar e sustentar vínculos relacionais. Em Betim, há
fomento ao convívio intergeracional; em Belém, se encontram no centro de
convivência os idosos de diferentes regiões da cidade, com distintas vivências
de violação; no Distrito Federal, serviços intergeracionais acolhem as mais
diversas situações de violação de direitos, sejam de crianças, adolescentes,
jovens e idosos na mesma unidade, vivendo experiências conjuntas de
valorização e reconhecimento.
Quanto às práticas que potencializam a autonomia, registra-se a
concepção de que autonomia vincula-se à compreensão do mundo real em que
se vive e das suas próprias limitações para nele viver, de modo que o sujeito é
autônomo quando compreende regras, contribui com sua formulação e
reconhece que tem múltiplas dependências de outras pessoas, mas lida com
essas dependências racionalmente. Trabalhar na perspectiva do fortalecimento
da autonomia é corresponsabilizar-se pelas escolhas e decisões que os
indivíduos vivenciam ao longo de suas trajetórias e fomentá-las na atuação
profissional no âmbito da política pública. É também fortalecer a participação
das pessoas em processos decisórios, sejam eles vinculados à sua própria
vida, como também aos serviços em que são atendidos. Essa compreensão
põe-se de costas para a noção vulgar de autonomia entendida como
desligamento da atenção pública.
No estudo desenvolvido foi possível observar profissionais que
em diferentes regiões do país estabelecem cotidianamente interação com
sujeitos e buscam construir com eles uma relação de referência e de
corresponsabilidade na produção de mudanças. Foi possível observar ainda
profissionais que fomentam decisões e escolhas dos usuários e que reveem
propostas e percursos para assegurar a realização dessas escolhas.
Profissionais que estão buscando desenvolver maior capacidade de escuta e
235

diálogo horizontal, para aprender sobre e com os sujeitos usuários dos


serviços. Tais experiências são significativas para a direção aqui presente,
embora não possam ser tomadas como amostra das atenções atualmente
desenvolvidas na política de assistência social, como bem atestaram as
analistas entrevistadas.
O trabalho profissional dos agentes da política carece de
centralidade no reconhecimento das capacidades dos sujeitos. Todavia, tal
construção não pode ficar restrita a uma responsabilidade exclusiva dos
profissionais. O fomento à profissionalização e à produção de conhecimento no
âmbito da política de assistência social deve também orientar as decisões de
gestão para produzir condições de qualidade na atenção aos usuários.
A intervenção assentada na escuta, no diálogo, no
reconhecimento das capacidades dos sujeitos, não é somente uma escolha
técnica, é também ética e política, pois oferta oportunidade de criar a
intervenção profissional reconhecendo a trajetória dos sujeitos e a leitura que
possuem desse percurso. Trata-se de uma disponibilidade do profissional de
abrir-se para o outro e com ele estabelecer vínculo que permita uma relação de
confiança e de espontaneidade para expor dores, sofrimentos e incertezas que
compõem trajetórias constantemente desvalorizadas. Quando esse profissional
é movido por sentimentos de discriminação, afastamento, desvalorização, esse
caminho é insustentável.
Ouvir o sujeito implica em presença ativa do profissional,
decodificando e expondo elementos a serem incorporados e somados ao seu
conhecimento, produzindo uma leitura diversa da realidade e dos fatos em
questão. A dinâmica dessa troca produz qualidade na atenção, cria referências
e favorece escolhas mais racionais na continuidade da atenção. Essa forma de
acolher, ouvir, valorizar a narrativa, estabelece uma via de compromisso com
os fatos na sua integralidade ao perceber o sentido e o impacto que provocam
no sujeito. Essa leitura, plena de significados, indica passos possíveis para
transformar ou anular relações violadoras e subalternizantes. A não separação
entre fatos e sentimentos deles decorrentes, no processo de escuta, dá pistas
para captar o que paralisa ou mobiliza os interlocutores e, essencialmente,
236

para valorizá-los. A perspectiva sinalizada reconhece que os profissionais


precisam ampliar seu repertório e estratégias para captar sentimentos,114 o que
requer na intervenção profissional uma postura investigativa.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem


tampouco pode nutrir-se de falsas palavras verdadeiras, com que os
homens transformam o mundo. Existir, humanamente , é pronunciar o
mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta
problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo
pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na
palavra, no trabalho, na ação-reflexão (FREIRE, 2005, p.90)

Para além da escuta, o estudo sinalizou a importância do diálogo


na proteção social materializada no processo de trabalho profissional na
assistência social para que a demanda pronunciada e tornada visível volte
problematizada aos sujeitos pronunciantes, conforme aponta Paulo Freire.
Nesse sentido, a dimensão ética é fortalecida ao valorizar distintos saberes, de
técnicos e de cidadãos usuários, entendê-los como complementares para
produzirem resolutividade e proteção. Pressupõe ainda que os técnicos não
escutarão passivamente, mas dialogarão a partir do que escutam e é nessa
interação que se produz alternância de lugar e de poder. Trata-se, portanto, de
diálogos mobilizadores e que produzem compromissos e corresponsabilidade.
Por fim, para produzir proteção, identifiquei a necessidade da
convivência social na política de assistência social oferecer uma experiência de
reconhecimento e valorização para os cidadãos usuários. A defesa presente no
estudo é de que há um aprendizado específico, individual e sensível que se
abre aos seres humanos ao viver experiências. Tais aprendizados serão muito
mais significantes para os sujeitos do que orientações valorativas que buscam
amoldar e enquadrar comportamentos, posto que estabelecem uma hierarquia
de alguém que sabe mais do outro do que ele próprio. Ademais, apresenta

114
Não me propus a detalhar procedimentos de trabalho, se a intervenção está referida ao
acompanhamento individual ou coletivo, tampouco a quem compete tais atribuições dentre os
trabalhadores do SUAS, por entender que os instrumentos orientadores e normativos da política se
encarregam desse detalhamento, como também a própria sistematização das práticas profissionais no
SUAS ofertarão tais subsídios. Minha intenção foi apontar a postura a ser adotada e fortalecida na
atenção ao cidadão, por entender que reconhecer sujeitos de direitos exige a revisão de lugares e de
modos de relacionar-se na política pública.
237

verdades que, por serem externas ao sujeito, não produzem para ele sentido e
dificilmente o afetará.
No decorrer do estudo, as práticas profissionais analisadas
explicitam oportunidades de viver experiências no cotidiano da política de
assistência social. Estratégias potentes foram narradas, como experiências de
produção coletiva, de exercício de escolhas, de tomadas de decisão sobre sua
própria vida e de seu grupo, de reconhecer limites e possibilidades sobre as
situações vividas e de experimentar, reconhecer e nominar suas emoções.
Experiências estas que poderão ser transportadas para outras relações
estabelecidas e vividas pelos sujeitos. (TORRES e GOUVEIA, 2012).

Verifica-se que a experiência das reuniões representou algumas


mudanças individuais no sentido de superação de sentimentos: como
não sentir mais vergonha de falar, não se deixar humilhar, enfrentar
as situações, (...) sentir-se com ânimo para lutar. (COELHO, 2008,
p.162)

Creio que a síntese da experiência vivida por Angela, entrevistada


no trabalho de COELHO (2008), oferece a direção do que se pretende afirmar
aqui: assegurar as condições necessárias para a convivência social se constitui
em proteção social. O esforço foi decompô-la para localizar alguns elementos
dentre os quais está, fundamentalmente, o reconhecimento do usuário como
cidadão e como sujeito desejante capaz de decidir sobre sua própria vida.

Aprendi a viver, quer dizer: me valorizar. Quando entrei eu tinha


vergonha, me sentia mal, sei que não tenho estudo, que não sei falar,
mas aprendi a pensar, e para isso eu não preciso ter estudo ou saber
falar. Somos todos iguais quando aprendemos a pensar. (Ângela,
entrevistada por COELHO, 2008)

Portanto, a aposta desse estudo é a possibilidade de ampliar as


respostas e compromissos estatais no campo da Assistência Social,
materializando a proteção social no âmbito das relações sociais, a partir da
identificação de situações de sofrimento, humilhação e subordinação advindas
dessas relações; desenvolvendo uma intervenção que enfrente essas
situações e promova como resultado o reconhecimento dos cidadãos usuários
238

e a ampliação, diversificação e sustentação de vínculos relacionais. De tal sorte


que seus relacionamentos sejam tão diversificados, que o indivíduo se
desenvolva por meio dessas relações e, acima de tudo, possa escolher viver
aquelas que lhe oferecem proteção e segurança, enfrentar e negar as que
produzem subordinação e aprisionamento. Para tanto, a presença do Estado é
imprescindível; sem ela, como amplamente discutido, não há possibilidade de
enfrentar violações, não há reconhecimento, corresponsabilidade, pactos
coletivos de solidariedade, proteção pública e coletiva, não há direitos sociais.

Não lhes interessam qualquer sobrevivência, mas uma específica


com reconhecimento e dignidade. Mesmo na miséria, eles não estão
reduzidos às necessidades biológicas, indicando que há um patamar
em que o homem é animal. O sofrimento deles revela o processo de
exclusão afetando o corpo e a alma, com muito sofrimento, sendo o
maior deles o descrédito social, que os atormenta mais que a fome. O
brado angustiante do “eu quero ser gente” perpassa o subtexto de
todos os discursos. E ele não é apenas o desejo de igualar-se, mas
de distinguir-se e ser reconhecido. (Bader Sawaia, 2005, p.115).
239

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PREFEITURA DE BELÉM. Grupos de Convivência e Fortalecimento de


Vínculos com Idosos. Belém: Fundação Papa João XXIII, 2012. Mimeo.
252

ANEXO A

Termo de consentimento livre e esclarecido (entrevistas)

Eu,_____________________________________________,

RG:__________, CPF: _____________, estando devidamente

esclarecida sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa sobre a

segurança de convivência no âmbito da política de assistência social,

realizada pela pesquisadora Abigail Torres, doutoranda em Serviço Social

pela PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Aldaíza Sposati, autorizo o

uso de entrevista por mim concedida para servir como material de análise

do estudo.

_______________, _________de _____________de___________.

_______________________
Assinatura da Entrevistada
253

ANEXO B

Termo de consentimento livre e esclarecido (grupos)

Eu, _____________________________________________,

RG:__________, CPF: _____________, estando devidamente

esclarecida(o) sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa sobre a

segurança de convivência no âmbito da política de assistência social,

realizada pela pesquisadora Abigail Torres, doutoranda em Serviço Social

pela PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Aldaíza Sposati, autorizo o

uso de minhas intervenções em grupo focal para servir como material de

análise do estudo.

_______________, _________de _____________de___________.

______________________________
Assinatura do Participante do Grupo
254

ANEXO C

Roteiro para entrevistas

Política de Convivência na Assistência Social


 Porque e como a política de assistência social está implicada com
a questão da convivência. Como ela se torna um foco para a
assistência social?

 Partindo do suposto de que convivência é resposta a ser provida


pela política de assistência social, embora esteja presente em
outras políticas, quais são os elementos e questões específicas
dessa área?

 Efeitos possíveis a partir da intervenção profissional. O que o


trabalho profissional deveria gerar como resultado e efeito na vida
do usuário?

 Quais recomendações/condicionantes para o desenvolvimento do


trabalho que assegure esses efeitos esperados.
255

ANEXO D

Roteiro para Visitas Técnicas (observação e grupos focais)

Observações: Até 3 pessoas por experiência; registro fotográfico do


local/território, do trabalho e dos entrevistados, ambiência dos espaços para
atendimento coletivo e individual.
 O que se faz e como?
 Trajetória de trabalho, recuperar os elementos que favoreceram
essa construção (decisões e escolhas). Como e porque passou a
fazer assim?
 Expectativas em relação ao trabalho/ resultados esperados.
 Quais as condições necessárias para fazer dessa forma?
 Se não existisse esse trabalho o que aconteceria com as pessoas
que usufruem dele? (expectativa às avessas)
256

ANEXO E

Reconhecimento de desproteções do campo relacional

Situação de desproteção
Internação/abrigamento de membro da família
Cuidados com membros da família em dependência de droga
Paternidade na adolescência
Conflitos constantes entre adultos da família
Família vítima de violência com adolescentes ou jovens institucionalizado
Cuidados com membros da família doentes com algum grau de dependência
Ocorrência de fuga ou desaparecimento de pessoas da família
Idoso que tenha sido vítima de maus tratos ou violência em instituições de abrigo
Famílias que residem há pouco tempo na cidade.
Presença de pessoas com deficiência que permanecem períodos do dia em casa
sem companhia de um adulto.
Falecimento de alguma pessoa da família
Momentos de tristeza ou desânimo
Pessoa com deficiência que tenha sido vítima de maus tratos ou violência em
instituições de abrigo
Famílias que tem membros (crianças ou adultos) que permanecem nas ruas.
Presença de Idosos com dependência que permanecem períodos do dia em casa
sem companhia de um adulto.
Cuidado de pessoas que estão em sofrimento mental
Adolescente ou jovem membro da família em medida de internação
Gravidez de adolescentes
Adolescente ou jovem membro da família em medida socioeducativa de liberdade
assistida ou prestação de serviço a comunidade
Crianças pequenas que permanecem períodos do dia em casa sem companhia de
um adulto
Presença de maus tratos/violência no ambiente familiar
Vivência de situações de discriminação (ou isolamento social) relacionada com a
cor, origem, religião, local de moradia, sexo, orientação sexual.

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