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Entrevista com Antonio Negri, por Thiago Fonseca e Giuseppe Cocco, em 17/11/13, em São
Paulo | Tradução: Thiago Fonseca | Revisão: UniNômade
Versão integral da entrevista, publicada parcialmente na Revista Cult deste mês, em que Antonio
Negri, durante viagem ao Brasil, desenvolve a relação entre os conceitos de multidão, comum,
trabalho e classe, explica a potência de Spinoza para o pensamento político, comenta os
protestos no Brasil inseridos num ciclo global e em termos de produção de subjetividade, faz
referência à Marilena Chauí (que o citou numa entrevista anterior à mesma revista) e a importância
de construir instituições, com a aliança entre os diferentes, como resposta ao vazio da
representação.
Thiago Fonseca: A primeira pergunta é a respeito da sua presença no Brasil. Do que eu sei da sua
agenda, o senhor vai falar aqui em São Paulo sobre revoltas globais e a constituição do comum, a
construção do comum, um tema político muito atual. Eu entraria por aí: o que é o comum, e como
ele se constrói?
Antonio Negri: Trabalhei com Michael Hardt num livro que, a propósito, se
chama Commonwealth (Harvard Press, 2009), no qual o tema do comum figura como objeto
central da pesquisa. O conceito de comum resulta da série de estudos que fizemos a partir
de Império (Record, 2001). É, por assim dizer, o último volume, não porque se trate de uma trilogia
– “o três é o número perfeito”, realmente não –, mas porque com Império tínhamos realizado uma
análise radical das categorias do pensamento político, não simplesmente ligadas ao conceito de
soberania, mas todas as categorias que dele derivavam, e que deveriam ser modificadas a partir
da globalização. Dessa maneira, a globalização funciona como elemento central, não somente
para a construção de conceitos referentes ao mercado mundial, mas também para a destruição
de condições conceituais e discursivas vinculadas ao quadro precedente, o dos Estados-nação.
Antonio Negri: O conceito de multidão pode compreender, sem dúvida, os movimentos nos quais
as singularidades se combinam a partir de expressões de desejo, como complexos afetivos,
como encontros de corporeidades postas em jogo. Mas o que me parece mais importante é
sublinhar que não se trata nem de um processo indiferenciado nem indistinto, ou seja, que não
lhe faltam qualificações. O processo que reúne multidão e comum é qualificado, é um processo
ontológico. É qualificado pela produção de comum e é algo que não diz respeito somente à
fenomenologia das manifestações dos movimentos sociais, mas, sim, à própria ontologia desse
processo. É isso que arranca, por exemplo, cada expressão multitudinária (que comporta –
mediante a afirmação do comum – um crescimento do ser) de qualquer interpretação que queira
reduzir tais movimentos de multidão a experiências reacionárias ou mesmo fascistas. Temos aqui
um conceito de bem, pela comunidade, pela totalidade das singularidades que estão em jogo, e
que é qualificador. Do meu ponto de vista, a relação comum-multidão não pode, em caso algum,
ser interrompida ou dissolvida, se for considerada do ponto de vista ontológico.
Reafirmar isso me parece importante também para responder a algumas afirmações que foram
feitas recentemente acerca das potencialidades simplesmente subversivas ou mesmo
reacionárias dos movimentos multitudinários que se deram no Brasil a partir de junho [de 2013].
Isso não impede que, como em cada realidade, multitudinária ou não, o quadro possa ser
invertido pela intervenção de outros poderes.
Ao falar de multidão, não estamos descrevendo um processo teleológico. Esses processos são
sempre atravessados por liberdades, por escolhas, pela capacidade de ruptura e
descontinuidade, por obstáculos, em suma, por tudo que caracteriza a sua aleatoriedade – mas
uma aleatoriedade potente. Não se trata de condições necessárias ao desenvolvimento da
multidão, mas de condições sempre ditadas pelas decisões subjetivas, produções que se dão no
interior desse desenvolvimento (construção multitudinária).
Thiago Fonseca: Essa é inclusive a minha segunda pergunta. No seu vocabulário há essa
terminologia de Spinoza: ser, potência, desejo. O quanto é importante o pensamento de Spinoza
no seu próprio trabalho? qual a sua experiência como um marxista leitor de Spinoza?
Antonio Negri: Aqui a resposta deverá ser um pouco biográfica, não? Venho de uma experiência
marxista muito determinada, a do operaísmo italiano, que, se se quiser apreender de maneira
ampla, se põe no quadro das transformações do marxismo ocidental e se insere em sua crise,
revisão, reconstrução, que ocorrem no segundo pós-guerra, particularmente entre 1953 e 1956,
com o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética e a revolta operária de
Budapeste, na Hungria. Estamos, por assim dizer, no mesmo grupo em que se encontra o
pensamento de Hannah Arendt e os últimos desenvolvimentos da Escola de Frankfurt. Estamos
também no quadro de pensamento em que se encontram Foucault e o pós-estruturalismo
francês, onde surgem temas como: produção de subjetividade, resistência, corporeidade etc –
temas que passam a ser tomados pela temática filosófica e absorvidos na temática do marxismo
ocidental.
Acredito também que o princípio posto por Tronti (“as lutas vêm sempre antes do
desenvolvimento capitalista, antes da decisão capitalista de reestruturar o seu desenvolvimento”)
seja uma afirmação que toma esse contexto histórico como condição fundamental. Para mim,
como para muitos outros companheiros, foi extremamente importante aprofundar as condições
ontológicas dessa afirmação: “as lutas vêm antes do desenvolvimento do capital”. Foi importante
para nós naquela fase a leitura de Lukács e de Merleau-Ponty, que nos parecia, de fato, que
aprofundavam uma fenomenologia ontológica da historicidade. Tratava-se de uma tentativa de
imersão no ser, tentativa de reencontrar a densidade, a intensidade, a qualidade da produção,
quebrando a tensão fraca da fenomenologia ontológica. O que aconteceu a seguir me parece
verdadeiramente central.
A partir de tudo isso, e eu poderia continuar por infinitos conceitos mais, vemos o quanto Spinoza
é central. Spinoza é uma antecipação desse desenvolvimento conceitual. Comigo o encontro se
deu em meados dos anos 70, que depois se beneficiou do muito tempo à disposição quando
estive preso: tive a possibilidade de desfrutar Spinoza para ocupar um tempo que, de outra
forma, seria vazio. Foi a partir daí que assumi uma terminologia spinozista.
Sempre preferi pensar fora dos termos prescritos pela história da filosofia. Sempre pensei que a
história da filosofia, como dizia o bom Deleuze, fosse o ópio do povo; que, enfim, a história do
pensamento que, a partir de uma obscura ilha grega, e se retoma coerentemente até hoje, é uma
narrativa sem sentido. A filosofia é a cada vez um aprofundamento de uma realidade que temos
diante de nós, uma relação sempre nova com a realidade, com os outros, um discutir contínuo. A
historicidade filosófica é sempre uma criação. Contudo, ao invés disso, ela foi reduzida a um
manual, a uma repetição, a uma contínua tentativa de redução à ordem. Ora, Spinoza foi para
mim uma tentativa de dar sistematização a uma série de pensamentos que nasceram
fundamentalmente dentro de uma experiência de reflexão e de ação política. O que, de todo
modo, já vinha sendo preparado pelo meu trabalho precedente, no sentido de que já nos anos 60,
portanto, uma boa década antes, tinha começado a trabalhar sobre aquilo que eu chamava de
“alternativas da modernidade”, por um lado, configurando uma linha de Descartes a Hegel,
passando por Rousseau e pelo pensamento idealista da modernidade, enquanto, de outra parte,
encontrei em Spinoza, assim como em Maquiavel, uma profunda originalidade subversiva, que
poderia se vincular ao pensamento marxiano e ao pensamento pós-estruturalista francês.
Giuseppe Cocco: Há no seu primeiro livro sobre Spinoza, A anomalia selvagem, essa antecipação
como anomalia, e depois no livro O poder constituinte, que tem como subtítulo As alternativas da
modernidade. Qual é a relação entre esses dois livros?
Antonio Negri: Creio que seja uma relação de continuidade. O livro sobre o poder constituinte saiu
uma década depois, no início dos anos 90. É uma continuidade, precisamente. A minha formação
filosófica se dá na passagem entre a filosofia e as ciências jurídicas, e, portanto, para mim,
reencontrar a potência dentro do direito, do direito constitucional, era fundamental. E era
fundamental também com relação a uma série de polêmicas que, à época, se desenrolaram com
meus ex-companheiros – como Tronti, Cacciari e outros, com os quais havia construído o
operaísmo. A ideia fundamental era a de reencontrar o poder constituinte como poder positivo e
não como poder de exceção, como poder determinado pelas condições de classe. Em essência,
o pensamento do comum. Por outro lado, ao contrário, punham o poder constituinte, ou de
maneira mais geral, o poder soberano, como poder de exceção schmittiano, e assim a política
como autonomia do político, autonomia na construção de seu próprio esquema de
desenvolvimento.
Para mim, o conceito de poder, e mesmo o de poder constituinte, era continuamente dialetizado,
ou melhor, com uma palavra mais correta, des-dialetizado, encarnado com os movimentos
sociais concretos que o faziam desenvolver-se. Não há poder constituinte se não como potência
de um conteúdo específico, de uma determinação histórica forte. Deste ponto de vista, o
conceito de poder constituinte se opõe completa e radicalmente à definição schmittiana de poder
constituinte como poder soberano: é a exceção que cria o direito? Não!
Antonio Negri: Sim, exatamente. De fato a crítica de Agamben a Poder constituinte – em Homo
Sacer – é a crítica ao fato que o poder constituinte, de qualquer maneira, ainda se trate de poder.
E é uma crítica absolutamente equivocada.
Thiago Fonseca: Eu penso que o senhor já respondeu a minha pergunta seguinte, que era
justamente sobre a relação entre teoria e prática, e a história da filosofia não ser uma história
ideal, mas uma história criativa de filosofia. A minha pergunta seria: como o senhor entende a
relação entre teoria e prática e se essa maneira, como o senhor já falou, do Deleuze, é uma forma
já materialista de juntar teoria e prática, de não fazer algo no plano das ideias?
Antonio Negri: Sim, creio que essa pergunta já esteja esclarecida. A única coisa que se poderia
acrescentar é que não se trata simplesmente de uma relação filosófica, objetiva, geral. É também
uma relação ética que me parece fundamental: teoria e prática não são simplesmente vinculadas
no pensamento, são também vinculadas na ação. Esta é uma resposta, se quiser, gramsciana – o
pouco de Gramsci que me resta é fundamentalmente esse, e não creio que seja pouco
importante.
Thiago Fonseca: Uma das perguntas que eu tinha preparado diz respeito ao texto da Marilena
Chauí [NR: Entrevista à Cult n.º 182, Pela responsabilidade política e intelectual, em que a filósofa
uspiana critica intelectuais brasileiros que citam Negri, Foucault e Agambem, no contexto das
manifestações e de sua criminalização, também respaldada por parte da esquerda]. Não sei se o
senhor quer responder.
Antonio Negri: A única coisa que posso dizer é que não consigo compreender como Marilena,
pessoa extremamente culta, tenha podido confundir Agamben, Foucault e Negri numa
interpretação de direita da multidão. Para mim, as turbas de direita, quando falo com propriedade
de linguagem, e sem fórmulas retóricas de provocação, se chamam, por exemplo, “Aurora
Dourada”, na Grécia. Isto é, são grupos especificamente nazistas ou similares. Não se pode fazer
um discurso assim genérico da multidão. É claro, como se disse, que o conceito de multidão é
contraditório, falamos dele como uma relação de forças. Dentro do capital há, por um lado, o
mando e, por outro, a multidão dos trabalhadores, das singularidades sociais colocadas para
trabalhar. É claro que nessa relação, quando a multidão é fraca, seu conceito pode tornar-se
equívoco, mas quando a multidão é forte, essa é precisamente a multidão do comum.
Antonio Negri: Conforme disse antes a propósito do poder constituinte, as lutas, esse tipo de luta,
sempre se ligam a conteúdos, e os conteúdos são sempre determinados no interior da
historicidade, de uma historicidade específica. Essas lutas nascem através de uma demanda de
maior representação – como sempre nascem as revoluções. A revolução francesa nasce
demandando a convocação dos Estados Gerais; a revolução russa é, em parte, luta pela paz (pão
e paz), e em parte demanda uma constituinte; a revolução inglesa nasce da recusa do poder
absoluto, mas também por uma nova legislação sobre a propriedade da terra e uma nova
representação; também a revolução americana etc etc. Toda revolta nasce no interior de um
quadro historicamente fixado e de uma demanda determinada de representação.
Todavia, nas revoluções, na luta e, portanto, na elaboração das demandas, das reivindicações, o
quadro político se especifica. Michael Hardt e eu estamos convencidos que o quadro específico
da representação democrática, da maneira como está configurado nas constituições
representativas liberal-democráticas, esteja profundamente esgotado, exausto. Por quê? Porque,
poderia dizer teoricamente, as constituições burguesas liberal-democráticas não compreendem o
comum. Em nenhuma constituição do pós-guerra, há o reconhecimento do direito de acesso ao
comum. Existe o direito da propriedade privada, existe o direito da propriedade pública, com
funções mais ou menos amplas, mas não existe o direito de acesso ao comum. Não existe. Em
segundo lugar, a liberdade de expressão está determinada em termos puramente formais. Dessa
maneira, pode-se chegar ao paradoxo de eleições, de processos democráticos de escolha de
representantes, completamente sobrepujadas pelo poder do dinheiro. A última decisão da Corte
Suprema dos Estados Unidos é de não por limites ao financiamento dos candidatos.
Antonio Negri: Estamos, portanto, numa situação anormal e paradoxalmente contraditória no que
diz respeito a uma leitura elementar dos direitos do homem. Em terceiro lugar, ainda, a máquina
democrático-representativa é uma máquina incapaz de conter e desenvolver um mecanismo
democrático de decisão. As próprias estruturas parlamentares são fundamentalmente corruptas –
não corruptas moralmente, não corruptas simplesmente nos indivíduos que as compõem:
corruptas como sistema, mesmo quando compostas por pessoas excelentes – porque a
corrupção é uma corrupção do poder do dinheiro que sobrecarrega tudo.
Ora, para voltar ao tema dos movimentos, é claro que se eles querem ser eficazes e construir o
comum, ou seja, tornar-se ontologicamente positivos, devem submeter à crítica a série de
temáticas que começamos a sugerir. Trata-se de ajudar, melhor, de inventar novas formas de
instituições, que nós chamamos de instituições do comum e, assim, conseguir fazer valer a
horizontalidade do fazer político, do estar junto, do construir multidão. Mas também aqui é
preciso estar muito atento, porque são coisas que se constroem, que não se pode antecipar com
o cérebro. A relação entre sujeitos agentes na horizontalidade, por exemplo, da comunicação, da
informação, hoje é possível, através de tecnologias específicas – e provavelmente mesmo os
processos de decisão: mas é algo extremamente difícil de propor. São temas de dificílima solução
que se apresentam, mas que, no entanto, representam problemas reais.
Thiago Fonseca: O senhor adiantou uma pergunta que eu ia fazer, sobre a crítica à representação,
se significaria uma crítica às instituições. O senhor está falando que não, que as instituições do
comum precisam ser construídas pela multidão, correto? Com relação ao tema das instituições e
ao trabalho, do qual o senhor já falou. O senhor escreve com Hardt, em Commonwealth, um
argumento que acho interessante, que é como se fosse o de advogado do diabo: “vamos dizer ao
capitalismo o que ele precisa fazer para aumentar a sua produtividade”. Precisa dar acesso ao
comum para as pessoas, dar direitos de cidadania e de movimentação, e daí em diante. Nisso,
parece que a educação tem um papel fundamental. Quanto mais as pessoas tiverem acesso ao
conhecimento e à educação, mais elas têm acesso ao comum. Aqui em São Paulo, quando os
estudantes querem democratizar a universidade, eles são reprimidos, pela polícia, por exemplo.
Essa repressão do interesse de democratizar o acesso ao conhecimento não é de certa forma
contraditória aos interesses do capital, nesse sentido de fazer o papel do advogado do diabo,
dando acesso ao comum?
É claro que, na universidade, não se quer que essa inversão da autonomia do saber seja
reconhecida. Reconhecer o General Intellect seria reconhecer um poder subversivo. As
universidades poderiam se tornar o ponto de referência e de organização que hoje nos falta. Os
elementos cognitivos, hoje, tornam-se cada vez mais fundamentais para definir a transformação
do trabalho. Quem poderia ter imaginado que os professores em greve no Rio constituiriam uma
aliança com os jovens que foram chamados de “black blocs” (mas que não têm nada a ver com a
ideologia dos black blocs mundiais), reconhecendo na pobreza destes um saber sobre a
cooperação social que os professores vinham descobrindo? Ora, esse tipo de aliança
provavelmente constrói um primeiro elemento daquilo que nós chamamos de “institucionalidade
do comum”.
Giuseppe Cocco: Eu queria aproveitar uma pergunta para ele. Uma pergunta que há algum tempo
queria fazer, ou talvez uma crítica. Na transformação do trabalho, do trabalho material que se
torna imaterial…
Antonio Negri: Sim, sim, dizemos sempre que “imaterial” é uma palavra horrível…
Giuseppe Cocco: Quero perguntar outra coisa. De fato essa transformação do trabalho que se
torna subjetividade, que se torna principalmente autônoma…
Antonio Negri: Que assume características autônomas…
Giuseppe Cocco: Exatamente. Não é mais organizado pelo capital e de fato é aquele trabalho que
se explora na subjetividade e em todo tempo de vida, quer dizer, biopoder e biopolítica. Você
continua a usar o termo “força-trabalho”. Para mim, o termo “força-trabalho”, que talvez ajude a
manter a ligação com a tradição marxista, a força-trabalho é organizada fundamentalmente ao
redor da divisão da liberdade em dois momentos: tempo de trabalho e tempo de não trabalho.
Nas características do trabalho hoje, está a de não ser mais uma força-trabalho, mas de ser
diretamente a vida. Portanto a pergunta é: não seria necessário usar menos o termo “força-
trabalho” quando se fala de trabalho hoje?
Antonio Negri: Não, mas veja, a solução é aquela arendtiana: falarmos em vez disso de trabalho e
atividade.
Antonio Negri: Mas também essa distinção é facilmente criticável, sobretudo nos termos nos
quais foi definida por Hannah Arendt quando falava de atividade. Paolo Virno, por exemplo, foi
muito ambíguo sobre essa passagem: quando falava de atividade, falava na verdade de uma
atividade livre, de uma atividade de não-trabalho. Mas falar de atividade como se esta fosse
desligada do trabalho é um equívoco. Trata-se aqui de falar de atividade como atividade
cooperativa, arrancando o conceito de trabalho do individualismo. O individualismo era muito
forte na acepção de “atividade” dada por Arendt. Paolo, quando começou com a história da
“obra-prima”, da virtuosidade no trabalho, que ainda por cima é um conceito fundamental para a
descrição da nova figura do trabalho, também havia, no entanto, de alguma maneira, isolado o
conceito de trabalho de sua dimensão cooperativa, porque religava ao tema da classe, coletiva.
Dizer “força-trabalho” é provavelmente equivocado, porque o faz relacionar à classe, a trabalho
coletivo, antes de esclarecer-se o que é isso. Mas, por sua vez, falar somente de “atividade”
mantém uma ambiguidade que liga o trabalho à alienação, à degradação ontológica. Talvez eu
seja irremediavelmente marxista.
Thiago Fonseca: Eu vou aproveitar isso que o Giuseppe disse a respeito de o trabalho ter se
expandido para todo o tempo da vida. Às vezes, eu fico com essa questão: o senhor não fala, por
exemplo, de ideologia, não é um conceito que o senhor usa. Mas essa dispersão do trabalho na
vida, e às vezes a não-percepção de que se esteja trabalhando, não dá espaço para algum tipo
de conformismo ou de não-resistência, para as pessoas?
Antonio Negri: Pode ocorrer, é possível. Por exemplo, isso se verificou nos primeiros anos de
experiência daquilo que Sergio Bologna chamou de “autônomos de segunda geração”.
Autônomos de segunda geração eram aqueles que começavam a ter uma atividade de trabalho
separada da fábrica (sem que fossem profissionais liberais, como os autônomos da primeira
geração). Eles punham no mercado sua atividade – um desenhista, um tradutor, um montador
mecânico muito qualificado, um carpinteiro etc.
Tratava-se de trabalho autônomo de segunda geração porque não estava separado da
cooperação global e, sim, principalmente, no interior da subsunção real do trabalho, de uma
direção social direta sobre o trabalho. Nisso, havia sem dúvida a ilusão de ser livre. A ilusão que
Marx tratava com tanta violência, a ilusão do “trabalho livre” proudhoniano.
Mas eu tenho muitas reservas em usar o termo “ideologia”, porque creio que hoje o problema de
uma definição do real se resolva de forma direta, imediata, em termos de verdade/não-verdade,
de verdade/falsidade. Não creio que a ideologia tenha hoje mais a capacidade de construir
horizontes fetichistas globais. Lembro-me, por exemplo, da discussão tida com Derrida a
propósito dos “Espectros de Marx”. Eu lhe dizia francamente: o problema hoje é de verdade/não-
verdade. A falsidade é algo imediatamente culpável, deplorável, não detém a ilusão da verdade.
Há maldade na falsidade. Naquela polêmica, havia algo que me agrada recordar, um episódio que
eu tinha lido nos dias em que discutia com Derrida, a história nos diários de Tocqueville de um dia
de junho em 1848.
Antonio Negri: À mesa de Tocqueville, de uma família burguesa, da grande burguesia no sexto,
sétimo arrondissement de Paris, na margem esquerda do rio Sena, ouviam-se os disparos de
canhão contra os operários em junho de 1848. Todos estavam muito preocupados com isso à
mesa, salvo a criada, que quando entra no salão e ouve os disparos e vê o mal-estar de seus
patrões, sorri. E é imediatamente demitida. Aqui é a verdade que salta imediatamente aos olhos.
Eu punha esse episódio como uma crítica da ideologia, porque a ideologia é um fantasma que
recobre cada verdade, e era forte nos períodos em que a luta operária era fraca. Mas hoje mais e
mais pessoas trabalham, sofrem por trabalhar, resistem ao trabalho e o contestam, dizem ao
patrão: “quero que meus transportes sejam pagos, porque também o transporte é trabalho”.
Thiago Fonseca: Vou voltar à questão da Declaration. Vocês afirmam que “a democracia se
realiza quando um sujeito capaz de apreendê-la tiver emergido”. Nesse sentido, existe algo em
que a gente pode pensar sobre como esses sujeitos emergem? Em que momento se sente a
necessidade de resistir? É um tipo de tomada de consciência, um despertar, uma passagem da
passividade à atividade? Aqui se falou muito que “o gigante acordou”, “o povo acordou”. Esse
acordar, esse despertar, ele pode ser acelerado? Há mecanismos para acelerar esse “despertar”?
Antonio Negri: Aqui no Brasil houve efetivamente uma aceleração da produção de subjetividade
resistente. Por quê? Como? Não sei dar uma resposta. Posso dizer genericamente: há um ciclo
de lutas global que se desenrola, mas seria uma resposta genérica. Aqui voltamos às razões do
político, quer dizer, à experiência política, ao testemunho ético, à atividade militante, ao
reconhecimento que se vive entre outros, que somente com outros se pode construir algo de
justo, de correto. É, em suma, um retorno a Spinoza a resposta a essa pergunta. Retornar a
Spinoza quer dizer que somente o comum constrói o comum.
Thiago Fonseca: O senhor tem essa experiência de escrever a quatro mãos: escreveu com o
Giuseppe, escreveu com o Michael, escreveu com Felix… Eu lembro de ter lido em Mil platôs que
a experiência que Deleuze e Guattari tiveram era de, apesar de serem duas pessoas, já eram
muitas pessoas, pois cada um deles já era muitos. Eu gostaria de ouvir do senhor qual é a sua
experiência de escrita colaborativa. Escrever com outra pessoa já é constituir uma pluralidade?
Antonio Negri: Creio que essa seja a resposta. Cada um de nós é de fato uma multidão, e é
multidão porque não é uma identidade, mas porque é uma singularidade em uma mar de
relações. Uma singularidade é um conjunto, uma multidão, um conjunto de relações. Assim, cada
afirmação de multidão (e de singularidade) é imediatamente uma crítica da identidade, da
autorreflexividade, e com isso de cada instância transcendental.
Antonio Negri: Não quero ser sarcástico e chamar a reflexão identitária de “umbiguismo”:
certamente deve haver sarcasmo neste caso, mas não se pode esquecer que essa atitude tem
uma origem filosófica profunda. Para nós, trata-se da recusa radical do “penso, logo existo”. Com
essa atitude, pensamos que o homem não tem uma alma, mas que sua singularidade é
construída na relação com os outros. E já que essas afirmações parecem quase metafísicas,
melhor é reencontrar no concreto sua vivacidade: e essa de fato consiste no trabalhar junto, no
construir junto. Portanto, implicitamente, há uma ética que não se pode separar da física dos
corpos e do pensamento, que não se pode separar da ontologia do estar junto e da
interdependência. É uma ética profunda.
Quero dar apenas um exemplo. Tim Murphy publicou seis ou sete artigos em comemoração aos
meus 80 anos. Entre eles, há um de Michael Hardt que achei muito bonito, no qual ele explica
como trabalhamos juntos, como fazemos para trabalhar em dupla. Diz ele: “Na verdade, jamais
pensei nisso, mas acho que em Negri já havia essa disponibilidade antes de eu conhecê-lo, pois
ele já tinha tido essa experiência com outros. É alguém que cresceu, tornou-se grande fazendo
política, e fazer política, principalmente fazer política com os trabalhadores, é um estar junto, um
construir junto, um percorrer dos caminhos que te fazem tornar-se singular”. Um pensamento é
sempre algo que se pensa ao menos em dois, não?
Antonio Negri, 80, é filósofo e militante, escreveu vários livros sobre as lutas, Spinoza, Marx,
Descartes, Lênin, Leopardi, tendo sido publicado, em português, com Poder constituinte, Alma
Vênus Kairós, O trabalho de Dioniso, O trabalho de Jó, Exílio, Cinco lições sobre o Império e, com
Michael Hardt, os clássicos Império e Multidão.
Thiago Fonseca é mestrando em filosofia pela USP e organizou o dossiê Negri para a a revista
Cult.