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literatura do presente
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Susana Scramim
Federal University of Santa Catarina
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All content following this page was uploaded by Susana Scramim on 31 January 2015.
Associação Brasileira de
Editoras Universitárias
SUSANA SCRAMIM
LITERATURA DO PRESENTE:
história e anacronismo dos textos
Chapecó, 2007
REITOR: Gilberto Luiz Agnolin
VICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSÃO
E PÓS-GRADUAÇÃO: Maria Assunta Busato
VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Gerson Roberto Röwer
VICE-REITOR DE GRADU AÇÃO
AÇÃO:: Odilon Luiz Poli
GRADUAÇÃO
Scramim, Susana
S433p Literatura do presente: história e anacronismo dos textos / Susana
Scramim. – Chapecó: Argos, 2007.
190 p.
CDD 801
O que é o presente?
dos atos criativos dada pelos estratos de tempo que neles encontramos. No
entanto, segundo Didi-Huberman, em seu livro Devant le temps, o princípio
de síntese é ilusório tanto na disciplina história da arte como na história da
literatura. Na modernidade, o saber histórico se vê confrontado com as
questões fundamentais da disciplina, que são o anacronismo e o eterno
retorno. Segundo Huberman, com isso estamos no “pliegue exacto de la
relación entre tiempo e historia. Cabría preguntar ahora a la misma disciplina
histórica qué quiere hacer de este pliegue: ¿ocultar el anacronismo que
emerge, y por eso aplastar calladamente el tiempo bajo la historia – o bien
abrir el pliegue y dejar florecer la paradoja?” (Huberman, 2006, p. 31). Esse
é um aspecto fundamental para refletir sobre a categoria de presente, isto é, a
densidade de tempo histórico que “pervive”1 nas obras, a absorção das afecções
que as obras produzem, isto é, o seu “efeito”, a sua “duração”2. Raúl Antelo,
em seu ensaio O arquivo e a política do anacronismo, ressalta que graças ao
anacronismo o tempo passa a ser definido como “tempo-com”. Retomando a
reflexão de Giorgio Agamben de que a imagem pertence a um tempo no
qual os homens encontram-se ou perdem-se, Antelo propõe que o anacronismo
é a “con-temporização” ou temporalização do acontecido, é o tempo posicionado
na diferença e no “diferimento”. Antelo ainda ressalta que:
1
Walter Benjamin desenvolve o conceito de pervivência, Fortleben, como algo que faz com que
alguns elementos ou mesmo as obras de arte sobrevivam para além da época que as viu nascer. Na
argumentação que Benjamin constrói do conceito de Fortleben ou da “pervivência” da obra na
memória coletiva sobressaem as observações sobre “transformação” (Wandlung) e sobre “renovação”
(Erneuerung), a isso o filósofo alemão chama o “pós-amadurar” (Nachreife) da linguagem da obra,
“um dos processos históricos mais fecundos” (Benjamin, 2001).
2
Gilles Deleuze em seu trabalho sobre Spinoza ressalta que a característica do signo para o filósofo
da Ética era a de ser sempre um efeito. O efeito num primeiro momento é um vestígio de um corpo
sobre outro, é o estado de um corpo que sofreu a ação de outro corpo. Dessa forma, segundo Deleuze,
em Spinoza é o efeito de uma “affectio”. As afecções são conhecidas pelas idéias que temos, pelas
sensações ou percepções. Porém, essas afecções não são efeitos instantâneos de um corpo sobre outro,
mas são, especialmente, efeitos sobre a própria duração. Deleuze dirá que esses efeitos pensados,
enquanto duração, não podem mais ser chamados de afecções, mas antes devem ser pensados como
“afectos” propriamente ditos, pois indicam que as durações constituem “passagens, devires, ascensões
e quedas, variações contínuas de potência que vão de um estado a outro” (Spinoza, 1997, 2002).
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paixões e dos afetos dos corpos que se manifestam nos valores de uma
determinada época. Essa economia das paixões promove uma mímica de
determinadas formas cujos modelos encontram-se sob a forma de ruínas,
objetos destruídos e depositados nas camadas de tempo das obras criativas
daquilo que chamamos de história. No entanto, os modelos selecionados
mediante as “affectios” de uma época são carregados de novos sentidos,
polarizando-se muitas vezes com o seu sentido original3. Com esse
procedimento, mais do que uma atualização de uma forma, o que se opera
é uma apropriação crítica de um meio, descobrindo não somente os estratos
de tempo ali presentes, mas despertando a sua temporalidade, isto é, sua
capacidade de intervir, sua potência crítica. Dessa maneira, chegamos a
uma definição possível de temporalidade do presente. As obras que
consideraremos portadoras desses estratos de tempo “presente” serão aquelas
que lograram selecionar os valores que se encontram formalizados numa
economia dos afetos, que não são precisamente uma forma, mas antes
maneiras de combinar os efeitos do processo de “vir-a-ser” e extinguir-se
das obras. Daí que o presente seja uma categoria que não esteja na obra
senão como traço de sua vida, aquilo que Walter Benjamin denominou
como vida natural da obra. Vida natural das obras, isto é, o seu processo de
“vir-a-ser”e de seu declinar.
3
O conceito de origem aqui empregado é o desenvolvido por Walter Benjamin em seu trabalho
sobre o Barroco. Para Benjamin no processo de transmissão da tradição ou na leitura histórica do
legado cultural o conceito de “origem” não pode ser lido sem o de destruição. “O termo origem”,
lê-se na tradução daquele trabalho de Benjamin feita por Sérgio Paulo Rouanet, “não designa o vir-
a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do “vir-a-ser” e da extinção.” Segundo a reflexão
que Walter Benjamin propõe, para que o presente possa apropriar-se da lição do passado seria
necessário que ela fosse destruída, transformando sua vida em algo diferente, mas que não cessa de
passar. Assim que a origem (Die Ursprung) para Benjamin, mesmo sendo uma categoria histórica,
não se refere à genese (Die Entstehung). Não se objetiva com a reflexão sobre a origem descrever o
processo pelo qual o existente veio a ser, mas antes contemplar o que emerge do processo de “vir-a-ser”
e desaparecer. Dessa maneira, ao discutirmos a origem como efeito, como “duração” do processo de
“vir-a-ser” e desaparecer, estamos discutindo também a potência das formas primordiais, digam-se
originárias, que são produzidas nesse processo, estamos discutindo as categorias de presente que
emergem da observação da “pré” e “pós-história” daquilo que estamos a contemplar.
|15|
uma vez que obras serão justamente analisadas com base em um “querer
ser” e não efetivamente em um “ser” arte. É daqui que surge a posição
política de algumas obras do presente de abdicarem definitivamente da
característica de “ser arte”. Esse “abandono” pode levar a uma ultrapassagem
dos limites de mediação entre a realidade e a ficção nos quais a arte modernista
se situa, assumindo-se como uma prática fluida que promove o trânsito
entre as fronteiras dos gêneros da crítica e da ficção ou ainda levando à
enunciação de uma forte negatividade ativa. Nesse sentido, a arte do presente,
ou ainda, a literatura do presente é ficção no mesmo momento em que é
ensaio ou crítica, no entanto, sendo ao mesmo tempo todas essas modalidades
discursivas, não é nenhuma delas autonomamente.
Essa atitude afirmativa frente ao “ser” arte que se manifesta apenas
em “querer ser arte” acontece justamente quando se arrisca com desconhecido
para se chegar a outros lugares igualmente desconhecidos e assim produzindo
uma “modulação”, um “movimento” que não é de ruptura e tampouco é de
continuidade, ao contrário, pertence a uma deriva da tradição moderna. A
modernidade com sua tradição caracterizada pela ruptura revelou-se incapaz
de elaborar um pensamento para o tempo presente, bem como para o de
literatura do presente. A literatura do presente que envolve uma noção muito
maior do que a noção de contemporâneo é aquela que assume o risco inclusive
de deixar de ser literatura, ou ainda, de fazer com que a literatura se coloque
num lugar outro, num lugar de passagem entre os discursos, entre os lugares
originários da poesia, e que não devem ser confundidos com o espaço, com a
circunscrição de um território para a literatura. Escrever literatura do presente
hoje tem a função de fazer coincidirem duas coisas que a modernidade esgotou
há muito: a possibilidade do conhecimento e da experiência.
O problema é como fazer experiência poética e ao mesmo tempo
produzir conhecimento se nosso presente está saturado de memória. Nietzsche
já falava da hipertrofia da memória em Considerações extemporâneas, essa
superabundância que paralisa a ação, elimina o futuro e promove a
|17|
toma posse da sua experiência e tampouco a reproduz com base num cânone,
portanto, não produz o conhecimento mediante a construção de um caminho
certo, de um “méthodos”, ou seja, de um ABC da literatura em direção ao
valor máximo da construção lingüístico-discursiva. Ao invés disso, o
procedimento de Dom Quixote se baseia em um caminho paralelo que é o
caminho da “quête” medieval, o caminho dos heróis que ele recorda em sua
relação de desvio da tradição. Ao contrário de todo experimentalismo
possuidor de conhecimento seguro, é o reconhecimento da ausência de
caminho (“a-poria”), de método, que fundamenta a única experiência possível
para uma literatura do presente. Pelo mesmo motivo a “quête” é o oposto da
aventura que na idade moderna se apresenta com o último refúgio da
experiência. Poderíamos com isso sublinhar que Jorge Luis Borges, ao
reciclar o valor de Quixote em Pierre Menard, el autor del Quijote se mostra
também um produtor da literatura do presente, pois Pierre Menard arrisca
com o desconhecido retomando e ao mesmo tempo abandonando a noção
do autor na modernidade.
Essa relação experimental teleológica que envolve toda aventura na
modernidade, isto é, a vivência e como conseqüência a autoridade exemplar
dela decorrente, como procedimento franqueador do conhecimento, conduz
toda experiência artística na modernidade ao cansaço. A aventura gera
cansaço, gera a fatiga nas retinas do poeta, relembrando aqui o poema, “No
meio de caminho” (1928)4, de Carlos Drummond e que teve seu valor
reciclado pelo poema “Fractal” (1991)5, de Carlito Azevedo. Devemos estar
4
No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no
meio do caminho tinha uma pedra.//Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas
retinas tão fatigadas./Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra/tinha uma
pedra no meio do caminho/no meio do caminho tinha uma pedra. (Drummond, Revista de
Antropofagia, n. 3, 1928. In: Alguma poesia, 2001).
5
No meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um/[mineral da natureza das rochas duro
e sólido/tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido no/[meio da faixa de terreno
|19|
destinada a trânsito/tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido/no meio da faixa de
terreno destinada a trânsito tinha um/[mineral da natureza das rochas duro e sólido.//Nunca me
esquecerei deste acontecimento/Na vida de minhas membranas oculares internas em que/[estão as
células nervosas que recebem/[estímulos luminosos e onde se projetam/[as imagens produzidas
pelo sistema/[ótico ocular, tão fatigas. [...] (Azevedo, 1991, p. 32).
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meio que abandona o seu fim, e isso deve ser entendido na sua ambigüidade,
ou seja, ela é um meio sem finalidade. Penso que há textos que podem
demonstrar essa opção pelo abandono do projeto como possibilidade da
literatura continuar existindo em seu processo, em sua vida, e não como peça
que pertence a um museu de inutilidades. Transcrevo aqui alguns versos do
poema “Sigo”, da poeta portuguesa Adília Lopes, de seu último livro Le
vitral de la nuit. A árvore cortada (2006). O poema constrói fortemente essa
política da poesia do presente como acumulação sem dono, direção sem rumo,
isto é, a experiência produzida pelo poema tomada como “aporia”.
Sigo
o meu caminho
que é torto
Um corvo
me acompanha
e um porco
Passo
pela árvore
e pela forca
Passo
pela igreja
ao abandono
Não abandono
a igreja
ao abandono
(Lopes, 2006, p. 74).
[...]
Hablo en lo transitorio, busco en lo transitorio
y las señas pasan por el silencio de las cicatrices.
Nesses poemas não há lugar para o cansaço, uma vez que todos
esses temas tão fervorosamente trabalhados pelas imagens modernas são
tomados em seu aspecto tão fresco e ao mesmo tempo tão passado de si
mesmos, a bela imagem de Liliana de buscar o transitório no silêncio das
cicatrizes fala por si mesma. A “quête” não gera fadiga uma vez que nela
vive-se o ordinário e o familiar como extraordinário e o extraordinário como
familiar e nisso reside o seu valor que não é da ordem das grandezas e nem
pode, porque ela pode ser chamada ainda uma vez mais de literatura menor.
É literatura do presente, é literatura ordinária, isto é, de todas as ordens,
envolve todos os tempos, pois é anacrônica já que trata o extraordinário
como ordinário e vice-versa. Não provoca fadiga como na aventura
|23|
O anacronismo como
método para produzir o presente
6
Em A ideologia da estética, Terry Eagleton opera uma leitura da concepção de tempo em Walter
Benjamin que contrasta à formulação de uma de suas teses feita pelo próprio Benjamin. No capítulo
ironicamente intitulado “O Rabino Marxista”, Eagleton afirma categoricamente que o tempo na
leitura messiânica da história de Benjamin fica reduzido a um espaço de repetição. Diz Eagleton: “O
tempo, nessas condições, é reduzido ao espaço, limitado a uma repetição tão agonizantemente vazia
que deve pôr a tremer na sua fronteira uma epifania salvífica.” Se retomamos a tese Sobre o conceito da
História de número 14 poderemos verificar que explicitamente Walter Benjamin diz que a história
não é o lugar de um tempo homogêneo e vazio, mas sim de um tempo heterogêneo. “A história é
objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de
‘agoras’”. Portanto, para Benjamin o tempo histórico nunca se reduz a um espaço, a um território, ele
sempre será tempo e, mais, um tempo que se constitui com base em acúmulos de ruínas de outros
tempos, dessa forma, então, um tempo como lugar, no entanto, um lugar mais originário que o espaço.
|25|
Cânone esse, por sua vez, fundado mediante o critério de seleção que
pressupunha um estar de acordo das obras literárias com os temas e assuntos
da nacionalidade, no caso do Brasil, citemos, apenas para efeito de exemplo,
o destaque dado ao tema da exuberância da natureza local, dos problemas
de adaptação do ser humano a esse meio que apesar de maravilhoso era
adverso, o problema do subdesenvolvimento social, bem como da
cordialidade brasileira e seu avesso superficialismo de ritual, entre outros.
Esses parâmetros, digamos, não deixaram de estar presentes no momento
em que a rediscussão do papel da literatura é proposta, isto é, após as guerras
na Europa e após os fracassos na consolidação das repúblicas democráticas
na América Latina. Ainda valorizávamos nas nossas metodologias os critérios
autonômicos da língua nacional, dos meios de produção especificamente
literários e nacionais e de um público receptor nacional. Contudo, o que
estava em discussão era: qual o papel que a literatura teria na nova tentativa
de construir o futuro? Qual seria sua função? Detectar a função de algo
significa compreender a sua experiência com a história e com o tempo.
7
Para uma melhor compreensão do procedimento de captura de nossa subjetividade operada pelos
dispositivos conferir: “O que é um dispositivo?” (Agamben, 2006).
|29|
Referências
ANTELO, Raúl. Maria con Marcel. Duchamp en los trópicos. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Editores, 2006.
_______ (Org.). Crítica e ficção, ainda. Santa Maria: Palloti; CAPES, 2006.
_______. Origem do drama barroco alemão. Tradução Sergio Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.
34, 1997.
ESPINOSA. Filosofia prática. Tradução Daniel Lins e Fabien Pascal. São Paulo:
Escuta, 2002.
|35|
LOPES, Adília. Le vitral de la nuit. A árvore cortada. Lisboa: & etc, 2006.
PONCE, Liliana. Teoría de la voz y el sueño. Buenos Aires: Tsé Tse, 2001.
VIRNO, Paolo. Il ricordo del presente. Saggio sul tempo storico. Torino: Bollati
Boringhieri, 1999.
SPINOZA e as três éticas. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. São
Paulo: Ed. 34, 1997.
PRESENTE
I ANACRÔNICO
POESIA
E
PENSAMENTO
INFÂNCIA, ARQUIVO E EXPERIÊNCIA1
1
Este texto foi apresentado como intervenção no seminário Archivo & Experiencia, coordenado pela
professora Dra. Luz Carranza-Rodríguez, na Universiteit Leiden, Holanda, em fevereiro de 2007.
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algo mais além das categorias modernas. Para construir uma reflexão sobre
isso escolhi dois poemas que me pareceram estar em sintonia com o
pensamento do presente. Em seu livro Enigmas, Mario Perniola define o
pensamento do presente como algo que, sendo mais que um objeto do
pensamento, está marcado por um pensar-se a si mesmo que é operado por
um anular-se para poder escutar o presente em todo seu não-sentido, o
pensamento do presente cala seus próprios desejos, suas próprias afecções
desordenadas, suas próprias opiniões íntimas, portanto, não o projeto está
ausente, para não antepor obstáculos e esquemas que impeçam a compreensão
da história. O pensamento do presente posiciona-se como lugar de trânsito,
como passagem e ainda como limiar em relação aos fenômenos que nos
surpreendem e nos perturbam. O pensamento do presente parece possuir
uma tarefa distinta daquela que tinha a experiência moderna. Este parece
ter que se apropriar de uma experiência que não pode mais ser compreendida
de forma exclusiva, isto é, não pode lançar mão de um repertório original,
inicial, fundador de uma comunidade delimitada seja por uma experiência
linear e subjetiva com a tradição que ele mesmo construiu, seja delimitada
por uma vontade de aproximação não-crítica com outras tradições que, por
sua vez, são frutos também de uma experiência de resgate de origens originais.
Proponho, nesse sentido, a análise de dois poemas que apresentam
experiências diferentes frente aos arquivos modernos, quer sejam, “La
inocencia”, de Arturo Carrera e “Hiléias”, de Josely Vianna Baptista. A
primeira delas se caracteriza pelo desnudamento, pela deserção de toda
pretensão de originalidade fundadora do arquivo, e a outra pela vestidura
por meio da superposição de variadas peles, vários tecidos, formando com
isso um tipo de sítio arqueológico onde as camadas fazem a vez dos arquivos
originais.
|43|
O desnudamento
2
Pode-se desenhar uma órbita para paradiso, esse significante poderoso, potens, o que tem virtude
e eficácia, que inclua aquela faculdade a que se refere Giorgio Agamben como “potenza de
parlare”, a que é capaz de articular a gramática do verbo poder. Sendo assim, acontece uma
articulação de sentidos para esse significante, articular uma língua com a qual se construam as
relações entre a imagem do passado e a imagem do futuro (Agamben, 2001, p. XII).
|45|
La inocencia
rayada,
o apenas
¿hablé, yo
con las ácidas sustancias que lo
conmovían?: allá,
conjunciones,
sicigias […]
(Carrera, 2005, p. 39).
|50|
A vestidura
O outro poema proposto para esta análise foi escrito pela poeta
brasileira Josely Vianna Baptista, que nasceu em Curitiba, no Paraná, em
1957. A poesia de Josely traz consigo os traços do arquivo ao qual recorre e,
também sob o mesmo princípio da poesia de Arturo Carrera, desdobra o
arquivo, porém, no lugar de minimizá-lo, o sobrepõe a outros arquivos.
Com Francisco Faria desenvolveu um projeto de superposição da poesia à
arte visual. Desse trabalho surgiu o livro Corpografia (1992). O projeto
continuou sendo executado com a série Os poros floridos (2003). Superpõe-se
também ao trabalho poético de Josely sua atividade de tradutora. Desde
1985, com a tradução de Los pasos perdidos, de Alejo Carpentier, sua intensa
atividade como tradutora de língua espanhola ao português – traduziu uma
série de obras como as de Lezama Lima, Severo Sarduy, Néstor Perlongher,
Simón Bolívar y Borges – nos permite refletir sobre sua obra como frutos
de eleições que produzem efeitos de superposição e mobilidade entre
distintos arquivos do mosaico latino-americano. O poema que proponho
para a análise da potencialidade do arquivo no nosso presente, arquivo este
composto de imagens anacrônicas que se encontram todas ao alcance da
mão, isto é, imagens que compõem um tempo pleno, foi escrito por Josely
Vianna Baptista no começo da década de 1990 e tem como título “Hiléias”.
Sabemos que o termo “hiléia” vem de hylaia, da floresta, e que foi
usado pelos viajantes naturalistas dos séculos XVIII e XIX para designar a
floresta selvagem. Na “hiléia” da poeta Josely Baptista se sobrepõem os
arquivos de Humboldt, de Buffon e de Góngora. De Humboldt, a própria
formulação do vocábulo hylaia utilizada para designar a floresta amazônica,
de Buffon, a idéia de que na América prevalecia um estado de evolução
retardada tanto para as plantas e animais como para o ser humano, os
indígenas, e, por fim, de Góngora, sua visão pessimista do império
ultramarino espanhol, entendido como uma desgraça e fruto de vaidade
|52|
[...] que pulse, repulse sóis, tufos, violetas sob um céu pedrento,
de chuva ou de vento, e traduza os fólios da imagem da pele em
nuvem lazúli, bulbo de veludo e pulse, repulse sóis, tufos, lilases
ao ler os infólios da imagem da pele em palimpsestos [...] (Baptista,
1992, p. 39).
q u a n d o a a l m a n u a s e v e s t e d e a r e s
(Baptista, 1992, p. 39).
César Aira percebe em Arturo Carrera frente ao barroco. Aira não encontra
as ruínas barrocas em Carrera; no texto “Epílogo-haiku” que compôs para
um breve livro chamado Carpe Diem Aira comenta que em todos os livros
do ciclo que vai de 1984 até 2003 se reafirma:
Referências
AIRA, Cesar. Epílogo Haiku. In: CARRERA, A. Noche y día. Buenos Aires:
Losada, 2005.
1
Este texto foi apresentado como intervenção no Simpósio Topologias da Poesia na Modernidade,
organizado pelos professores doutores Marcos Siscar e Fabio Akcelrud Durão no âmbito do X
Congresso da ABRALIC, em 2006, no Rio de Janeiro. Foi publicado posteriormente em versão
eletrônica no número 45/1, dossiê “Poesia e Cultura no Contemporâneo”, da revista de Letras da
Universidade Estadual Paulista. Disponível em: <http://www.fclar.unesp.br/seer/index.php?journal
=letras&page=issue&op=view&path[]=1>.
|60|
como fruto de uma singularidade que não tem mais nome, embora não se
confunda com outros lugares discursivos. Pensar a poesia como imanência
pura significa compreender que ela existe em toda parte, em todos os
momentos, não realizando nenhuma aproximação que lhe permitiria
individualizar-se em outro discurso. Sua existência seria somente possível
nos entre-lugares e nos entre-tempos de sua passagem.
Poderíamos, nesse sentido, compreender a linguagem poética de
Mallarmé como imanente a si-mesma. Isso significa dizer que a poesia de
Mallarmé não contentará com a topografia que a modernidade lhe havia
legado, isto é, o livro impresso. Benjamin dirá que Mallarmé, “no mais
íntimo recesso de seu estúdio, porém em preestabelecida harmonia com
todos os eventos decisivos de seu tempo na economia e na técnica”, lança a
poesia de volta “à rua, arrastada pelos reclames, submetida à brutal
heteronomia do caos econômico” (Benjamin, 1994, p. 28). Esse retorno à
vida cotidiana da cidade retira a poesia de qualquer pretensão de autonomia
em relação ao mundo e à vida, pois como imanente a si-mesma ela será o
próprio mundo e a própria vida. No entanto, ela permanecerá neste projeto
sem lugar, a-tópica, ou melhor, u-tópica. O projeto poético de Mallarmé era
gráfico, baseado numa nova discursividade cujo fundamento era o de uma
escrita icônica. A poesia não seria definida por um sujeito e tampouco por
um objeto, ao contrário, o lugar da poesia seria definido por sua
impropriedade frente ao que lhe é interior e exterior. Diferentemente do
que uma posição autônoma ou mesmo autotélica poderia acarretar, o retorno
da poesia para a rua não marca uma topografia, mas, como analisou
Benjamin, deixa entrever sua posição de transpasse, um lugar de passagem,
onde ela se deixa permear pela caótica heteronomia moderna.
|64|
Poesia e utopia
que se tenha, de alguma maneira, rompido com ela. Assim, resulta impossível
tomar, conquistar, dividir e ordenar, isto é, ter ou pertencer a um lugar sem
que sejam expostas as muitas contradições desse ato.
Na reflexão sobre o lugar da poesia, como vimos, deve-se incluir o
pensamento sobre os seus limites e os paradoxos que isso gera. Sem lugar
próprio, ou ainda, com base em sua impropriedade, a poesia usa sua potência
para questionar seus limites discursivos, ciente de que isso é o que lhe resta
fazer, como ato.
Confins da poesia I
arruinados pelo tempo, isto é, que mesmo arruinadas essas linhas divisórias
que se colocam diante de nossa visão continuam a se mostrar como algo
sagrado. Contudo, a noção de confim que nos interessa aqui é aquela que,
ainda segundo Cacciari, funciona como um nome próprio que exprime
nosso próprio lugar, o nosso próprio corpo. O que define um lugar é
justamente o ponto em que se toca o outro. E é graças a esta relação que nós
nos definimos. Esse confim constitui uma exposição ao perigo de tocar e
ser tocado, de ferir e ser ferido. Dessa forma, o confim não será mais visto
como aquilo que divide, mas, ao contrário, será sempre isso que em nós – o
lugar que somos – é sempre o outro. Esse confim pode resultar em amor ou
inimizade, no entanto, Cacciari dirá que somente os organismos condenados
à morte poderão esquecê-lo ou removê-lo. Nesse sentido, aqui ressoa o
pensamento de Deleuze para quem a noção de vida implica estar em uma
situação limite, estar entre a vida e a morte, como aquele malvado e odiado
personagem de Dickens. A situação limite depreende um evento de
singularização que não é subjetivo nem objetivo; significa localizar-se para
além do bem e do mal.
Contudo, surge uma questão: esse confim, esse estar em uma posição
limite pode conduzir-nos ao fim da história? Ou pelo menos à redução de
nossa história social à história natural? Quando levantamos a hipótese de
que o fim da história coincide com a animalização do homem, isto é, a sua
transformação em vida nua normatizada, o fim da política, o estado de
exceção planificado, não devemos nos esquecer de que também o fim do
poema conduz ao silêncio, isto é, o enjambement, conforme a análise de
Agamben, como dispositivo que garante à poesia sua característica mais
própria: de encadear dois fluxos discursivos, quer seja, um sintático e outro
semântico. Se o enjambement é o fim do verso, de acordo com o pensamento
de Cacciari, ele, então, conduz o verso ao seu confim. Não o seu fim ou à sua
separação em dois fluxos discursivos, mas à sua possibilidade de estar sempre
podendo definir-se em relação a um outro. Em sua radicalidade a poesia de
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para o semântico. Mas isso não seria o que define o limite do poema em relação
à prosa? O tropo “orquídea rara, góngora buffonia” aparece como resultado de
um dispositivo sintático, o aposto, em que um termo é agregado a outro que
exerce a mesma função sintática e que no poema em questão é marcado pelo
entre vírgulas. Desse modo a figura de similaridade ocorre mediante uma relação
de imanência absoluta, uma vez que se situa em um confim. Só é possível perceber
a relação do poema com essa concepção de história circular na observação e
análise do modo como foi construída esta figura.
Se entendermos “tropo” com base em sua etimologia, isto é, como
desvio que se faz mediante o uso de linguagem figurada, poderíamos dizer
que “Hiléias” confina e desvia de seus outros discursivos. Confina e desvia de
Soledad, de Luis de Góngora, e da História Natural, de Buffon. Mas ainda
resta perguntar-nos sobre o que resulta dessa ubiqüidade imanente da poesia,
no poema que se enrosca nos ramos da vegetação. Por que ele dança entre os
móbiles da poeira refletida nos raios de sol? Por que se escora nos frisos do
granito da Vila Velha e da Ponte Vecchio? E por que coleciona fósseis marinhos
para compor as fronteiras da floresta? Que resta de tudo isso?
Para encontrar algumas das respostas a essas questões, desviemo-
nos de nossa floresta, confinemo-nos com um novo “tropo”.
Confins da poesia II
não foi sem uma fina ironia e uma grande capacidade de pensar por meio de
figurações que Melville tenha se referido a Galápagos como ilhas “Encantadas”.
No entanto, sua visão tem algo do sublime poético, pois que esse encantamento
se encontra em uma zona de indistinção entre um sentimento de terror e de
ternura. Em 1840, Melville esteve no arquipélago situado a um passo da
latitude 0°, ponto zero entre os dois hemisférios, aqui uma outra zona de
indistinção, a geográfica; aquele lugar o impressionou profundamente, tanto
que escreveu posteriormente uma série de esboços intitulada “The encantadas”.
Na visão de Melville havia algo de aterradoramente inumano naquelas ilhas,
visão muito próxima daquela em que ele criaria dois de seus interessantes
personagens: o atormentado capitão Ahab e seu espelho natural: o não menos
perturbado cachalote branco, Moby Dick, aliás, esses dois personagens que
terão seu encontro final justamente ali em algum lugar naquelas mesmas
latitudes do oceano Pacífico onde está situado o arquipélago de Galápagos.
Melville descreve as ilhas por meio de figuras que nos apresentam um lugar
inóspito e inabitável ao ser humano e onde mudanças jamais ocorriam.
Cut by the Equator, they know not autumn, and they know not
spring; while already reduced to the lees of fire, ruin itself can
work little more upon them. The showers refresh the deserts;
but in these isles, rain never falls. Like split Syrian gourd left
withering in the sun, they are cracked by an everlasting drought
beneath a torrid sky. ‘Have mercy upon me’, the wailing spirit of
the Encantadas seems to cry, ‘and send Lazarus that he may dip
the tip of his fingers in water and cool my tongue, for I am
tormented in this flame’. (Melville, 1975, p. 132).
Charles Darwin visitou essas ilhas como uma das escalas que o Beagle faria
em sua viagem ao redor do mundo. A visão do naturalista inglês se conforma
no seu modo de refletir sobre os dados que vinha coletando em sua viagem
ao redor do mundo. Sua visão era a de um comparatista europeu que
interessado em comprovar sua teoria de que a evolução das espécies ocorre
em função da necessidade que as mesmas têm em relação ao ambiente em
que vivem nas ilhas Encantadas encontra um lócus propício e esclarecedor
de suas hipóteses. Nesse arquipélago se tem a impressão, do mesmo modo
que nos recônditos da floresta tropical, de se estar no segundo dia da criação
do mundo. Encontramo-nos novamente em uma zona limítrofe, um confim
entre história social e história natural.
O livro de poemas Las encantadas, de Daniel Samoilovich, está
divido em cinco partes: 1. El sueño; 2. En las islas; 3. Tortugas, Lagartos,
Iguanas; 4. Cómo llegamos a bañarnos entre los tiburones; 5. La tormenta.
Há uma pequena introdução em cada uma das partes, localizando o leitor
no percurso da viagem proposta pelo grande poema. Na primeira parte já
somos informados de que há um narrador e que ele é o sujeito das ações
mínimas que irá narrar. Não sem ironia, também somos informados de que
esta viagem nos será narrada com base nas memórias de um viajante. Esse
ex-viajante está em um quarto de hotel, desperta exatamente à meia-noite e
se põe a rememorar os eventos que, segundo o próprio narrador, se
configuram como não-ações; portanto, encontramo-nos novamente em uma
zona de indistinção, só que agora estamos na zona de confinamento entre a
poesia lírica e a épica. Quando Emil Staiger aborda a poesia lírica como
rememoração a operação analítica que o conduz a essa concepção passa pela
constatação de que no lírico reside uma lógica que é sempre idêntica a si
mesma e que não há distanciamento entre sujeito e objeto. Supera-se na
poesia lírica a distância entre obra e leitor, bem como entre o poeta e aquilo
de que ele fala. Daí que o poeta lírico diz quase sempre “eu”. No entanto,
não se emprega esse “eu” da mesma forma que se faz em uma autobiografia,
|73|
[...]
No parece - parece - no parece
Parece- no parece - puro seca
escam - asuperfí - ciecá - paboca.
[...]
que diríase... que parece...no parece...
[...]
No parece...parece...no parece,
[...]
(Samoilovich, 2003, p. 16).
|74|
[...]
Como si a los ángeles se pudiera
burlar, y a sus espadas encendidas,
y volver al Edén, y el Edén fuera
un infierno, me asalta una fatiga
horrible: y mi andar es arrastrarse
sobre esta superficie: un lagarto.
(Samoilovich, 2003, p. 18).
acrescenta a reflexão sobre outros sinais como o hífen e os dois pontos. Para
o filósofo italiano o hífen é o “mais dialético dos sinais de pontuação, porque
une só na medida em que distingue e vice-versa.” (Agamben, 1996, p. 171).
Nesse sentido, interessa neste momento relembrarmos como a analogia entre
o procedimento de Darwin, do narrador viajante do livro de poemas Las
encantadas e de Melville é construída no poema, isto é, interessa observarmos
a construção sintática baseada no uso de hífens, No parece - parece - no parece,
bem como no uso de reticências, No parece...parece...no parece. Uma
construção que em si mesma já expressa sua dialética, a do hífen, e outra
construção que, igualmente imanente a si, propõem sua virtualidade e,
portanto, sinal de indeterminação, as reticências. Contudo, voltemos aos
dois pontos da comparação entre o lagarto e o sujeito viajante. Para Agamben
que analisa a utilização dos dois pontos no título do texto de Deleuze, “A
imanência: uma vida...”, este sinal gráfico não significa ali uma relação de
identidade e apresenta algo mais que uma relação de agenciamento, “um
agenciamento de espécie particular, algo como um agenciamento absoluto,
que inclui também a não-relação, ou a relação que deriva da não-relação
[...] Neste sentido, os dois pontos representam o deslocamento da imanência
em si mesma, a abertura a um outro que, porém, permanece absolutamente
imanente.” (Agamben, 1996, p. 172). Tanto é assim que poderíamos ler
essa analogia entre sujeito e animal no poema “El islote Chanthan” como
ponto de passagem, de movimento entre lugares, deslocamentos,
desterritorializações que o poema efetua sem, entretanto, realizar a ação,
como era de se esperar se o verso fosse composto por uma metáfora. A
apresentação da sinédoque que toma o andar do sujeito por ele mesmo no
verso, mi andar es arrastrarse sobre esta superfície: un lagarto, não constitui
ação e tampouco estado, simplesmente toma um pelo outro e também toma
o lugar da metáfora, “eu sou um lagarto”.
Perpassa pelos poemas o intenso tema da concepção “da” e “de”
vida. Assim como em Deleuze o conceito de vida passa, como vimos, por
|76|
uma indefinição, “essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos,
por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos,
entre-momentos” (Deleuze, 2002, p. 14). No poema “Como si entre «vos »
y «yo »” uma terceira dimensão de vida é apresentada como existente entre
o animal e o homem e o homem e a mulher. Essa outra dimensão de vida
entre “vos” y “yo”, entre sujeito e objeto, aparece como zona de
indeterminação, isto é, como aquele lugar em que não se é possível decidir
sobre nada.
2
A reflexão de Agamben encontra no conceito de profanação, cujo significado está na passagem de
mão dupla do sagrado ao profano, o ponto em que se distanciará da reflexão sobre a soberania de
Bataille, que não é o único dos pensadores da soberania escolhidos pelo filósofo italiano para compor
a enunciação de sua tese da “vida nua do homo sacer”. Isso está claro num ensaio de 1987, Bataille e
il paradosso della sovranità, no qual Agamben já assinalava que percebia a dificuldade de Bataille em
levar até as últimas conseqüências o projetado trabalho sobre a soberania. “Procurando pensar além
do sujeito, procurando pensar o êxtase do sujeito, ele pensou, na verdade, somente o seu limite
interno, a sua antinomia constitutiva: a soberania do sujeito, o estar sobre do que está sob. [...] Mas – e a
impossibilidade de levar ao fim o projetado trabalho sobre a soberania é prova disso – ele não
conseguiu chegar até o fim.” Agamben enuncia preliminarmente nesse texto a sua tese de que o
paradoxo se dá justamente na transposição da reflexão para o campo do político pois que já faz menção
à definição de Carl Schmitt, base sobre a qual se assenta a sua reflexão acerca da exceção como
estrutura do poder soberano, ou seja, a suspensão da lei, “a lei está fora de si mesma, está fora da lei;
ou: eu, o soberano, que estou fora-da-lei, declaro que não há fora da lei.” Sabemos que essa tese seria
estendida e aprofundada no Homo Sacer onde o filósofo apontará explicitamente que Bataille, ao
ponderar sobre a vida nua (ou vida sacra) em sua relação de bando como constituinte da soberania,
procurou fazer valer a própria vida nua como figura soberana e errou por não se ter dado conta de que
há um caráter “eminentemente político (aliás, biopolítico)” na estrutura da soberania. “Ele [Bataille]
inscreve sua experiência, por um lado, na esfera do sagrado, que confunde, segundo os esquemas
dominantes na antropologia do seu tempo e retomados pelo amigo Caillois, como sendo originariamente
ambivalente, puro e imundo, repugnante e fascinante, e, por outro, na interioridade do sujeito, ao
qual ela se dá por vezes em instantes privilegiados ou miraculosos. Em ambos os casos, no sacrifício
ritual, assim como no excesso individual, a vida soberana se define para ele através da transgressão
instantânea da interdição de matar.” Em vez de inscrever a vida nua e sua figura soberana na reflexão
sobre o político preferiu conservar inteiramente a reflexão no círculo ambíguo do sacro. Com isso,
para Agamben a consideração sobre a vida permanece como que enfeitiçada entre o sagrado e o
profano e por esse caminho não haveria outra possibilidade que não a repetição. Assim é que
|78|
O mapa é quem diz à ilha que ela é ilha, o mapa revela seu tamanho –
os seus confins – e seu tamanho lhe diz quem é. Conforme a análise de
Cacciari, um confim funciona como um nome próprio que exprime nosso
próprio lugar, nosso próprio corpo. Por isso, a ilha se confunde com seu
mapa, bem como é o mapa que permite o passear-se da ilha por si mesma,
numa operação de autoconhecimento. Ilha: Poema, sem nenhuma relação
analógica. Agamben nos diz que os dois pontos podem funcionar como
“um agenciamento absoluto, que inclui também a não-relação, ou a relação
que deriva da não-relação. [...] Neste sentido, os dois pontos representam o
deslocamento da imanência em si mesma, a abertura a um outro que, porém,
permanece absolutamente imanente” (Agamben, 1996, p. 172). Sendo assim,
não há a metáfora dizendo que a ilha é o poema, também não se diz que ela
é tal qual ele, e tampouco há construções de imagens que culminam no
final, afirmando que esta ilha é feita de palavras; porém, os dois pontos
permitem aproximá-los sem ao menos mantê-los como vizinhos. A ilha e o
poema se espelham, pois ambos se confundem com seu mapa; o poema e a
ilha vivem de uma forma, estão dobrados nela, e a própria limitação de seu
tamanho impõe a consciência de ser forma. O mapa de certa maneira
proporciona ao poema a potencialidade de executar uma ação sem ato, uma
ação referida ao mesmo agente, uma ação em que agente e paciente entraram
em uma zona de absoluta indistinção, aquela que Deleuze lê em Espinosa,
a do passear-se a si, ou seja, constituir-se a si visitante, mostrar-se a si visitante.
Nessas expressões em que a potência coincide com o ato e a inoperosidade
|80|
Referências
______. Espinosa. Filosofia prática. Tradução Daniel Lins e Fabien Pascal Lins.
São Paulo: Escuta, 2002.
MELVILLE, Herman. The Encantadas. Billy Budd, Sailor and others stories.
Middlesex: Pinguin Books, 1975.
1
Este texto foi parcialmente apresentado com intervenção no Colóquio “Pós-Crítica”, organizado
pelo professor Dr. Raúl Antelo, na Universidade Federal de Santa Catarina, em dezembro de
2006. Posteriormente, foi parcialmente publicado no livro organizado por Maria Lúcia de Barros
Camargo e Raúl Antelo (2007), Pós-crítica, que reuniu as contribuições apresentadas no colóquio.
|84|
Desta janela
domou-se o infinito a esquadria:
desde além, aonde a púrpura sobre a serra
|87|
A via-láctea se despenteia.
Os corpos se desgastam contra a luz.
Sem artifícios, a pedra
|88|
Os pés premindo
a inexistente relva do asfalto
duro da rua sem vida a não ser a
que lhe dás quando subitamente cruzas
o espaço e somes num átimo deixando
entretanto no ar qualquer coisa de tão
botticelliano quanto num crepúsculo mediterrâneo
uma colhedora de mimosas a que um
homenzinho cedesse a passagem
à espera (desesperada)
de um sorriso
(Azevedo, 1991, p. 13).
|89|
1. Sobre
esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
– sem esquecer entanto
a boca: um
ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)
2. talvez
um poeta afogado num
danúbio imaginário dissesse
que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
– mas eu que venero (mais que o ouro
verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos, sei que
tua pele pálida de papel
pede palavras
de luz
|91|
3. algum
mozárabe ou andaluz
decerto
te dedicaria
um concerto
para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)
(Azevedo, 1991, p. 50-51).
um lapso de vida:
collapsus linguae?
o vivente morrente:
torrente e clepsidra
(Azevedo, 1991, p. 28).
[...] e não deve ser entendida como algo de infinito, e sim como algo
relacionado com o essencial, cuja pré e pós-história ela permite
conhecer. A pré e a pós-história de tais essências, testemunhando
que elas foram salvas ou reunidas no recinto das idéias, não são
|95|
história pura, e sim história natural. A vida das obras e formas, que
somente com essa proteção pode desdobrar-se com clareza, não-
contaminada pela vida dos homens, é uma vida natural. [...] Porque
o conceito de Ser da ciência filosófica não se satisfaz com o fenômeno,
mas somente com a absorção de toda a sua história. O aprofundamento
das perspectivas históricas em investigações desse tipo, seja tomando
como objeto o passado, seja o futuro, em princípio não conhece
limites. Ele fornece à idéia a visão de totalidade. E a estrutura dessa
idéia, resultante do contraste entre seu isolamento inalienável e a
totalidade, é monadológica. A idéia é uma mônada. O Ser que nela
penetra com sua pré e pós-história traz em si, oculta, a figura do
restante do mundo das idéias, da mesma forma que segundo
Leibniz, em seu “Discurso sobre a Metafísica”, de 1686, em cada
mônada estão indistintamente presentes todas as demais. [...] A
idéia é mônada – isto significa, em suma, que cada idéia contém a
imagem do mundo. (Benjamin, 1984, p. 69-70).
Referências
ANDRADE, Mário. Oswald de Andrade: Pau Brasil, Sans Pareil, Paris, 1925.
In: ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2003.
_______. Dos ensayos sobre Goethe. Barcelona: Editorial Gedisa S.A., 1996.
_______. Spinoza e as três éticas. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart.
São Paulo: Editora 34, 1997.
VIRNO, Paolo. El recuerdo del presente. Ensayo sobre el tiempo histórico. Buenos
Aires: Paidós, 2003.
A LITERATURA E O MAL.
O ARCO FLORAL TORQUATO
NETO E MARCOS SISCAR1
1
Este texto foi inicialmente apresentado como intervenção no Seminário “Políticas do Anacronismo”
organizado pelo professores doutores Raúl Antelo e Susana Scramim, na Universidade Federal de
Santa Catarina, em agosto de 2007.
|104|
entre a vida e a morte, entre a natureza e a abstração da vida. Daí que nesse
lugar de passagem o angélico adquira a leveza de uma linha e a pura inflexão
rítmica de uma borboleta. Se associados à natureza, anjos passam de seres
intermediários imortais e atemporais a seres sujeitos às metamorfoses da
natureza, portanto, passam a ser compreendidos em seu constante “vir-a-
ser” e declinar. A natureza nesse modo de tratamento artístico incorpora os
atributos daquilo que antes estava limitado apenas ao devir histórico. Passa
a ser pensada com os parâmetros de uma história que age mais por
combinação de elementos do que por evolução. Se, de seu lado, o
conhecimento produzido no evento com a natureza doa impessoalidade às
abordagens do evento humano na modernidade, um recurso muito
freqüentemente utilizado pelos críticos do paradigma modernista e, portanto,
vanguardista, para desviar do dualismo radical entre o abstrato e o figurativo,
por outro lado, o conhecimento produzido pelo evento histórico doa à
natureza a historicidade.
Em 1972, no ano seguinte à publicação do primeiro número do
semanário Flor do Mal, com sua imagem do feminino maldito, o poeta
piauiense compunha para ser musicado por Jards Macalé o poema “Let’s
play that”.
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
2
“[...] Imbecil! – se de teu retiro/ Te liberássemos um dia,/ Teu beijo ressuscitaria/ O cadáver de
teu vampiro”, em As Flores do Mal (1985, p. 181).
|108|
Bem como um Mallarmé e sua pesquisa por uma sintaxe poética impura
está no que o poema “A matéria. O material, 3 estudos de som, para ritmo”:
3
Interessante lembrar que, em 1864, Baudelaire promove uma exposição em Bruxelas “de suas
obras nos salões de Prosper Crabbe, agente de câmbio e colecionador. Ainda que convidados como
das vezes anteriores, os editores Lacroix e Verboeckhoven não tiveram a delicadeza de comparecer.
|113|
Essa decepção, somada à que provocou a ridícula quantia enviada ao poeta por suas conferências
e ao materialismo que ele via então embrutecer a Bélgica, faz nascer em Baudelaire um ódio
inaudito contra esse país.” Ver “Calendário Baudelairiano”, em As Flores do Mal (1985, p. 35).
4
Célia Pedrosa já analisou as imagens de fluxo armadas em Metade da arte, chamando a atenção
para a metáfora do rio repetida de maneira intensa nesse livro. Ver: em “Versos que correm entre
a margem e o fluxo, a linha e o corte”, disponvível em:<http://jbonline.terra.com.br> (30 out.
2004).
|114|
O amor tem cheiro de morte. Parece, de fato, que o desejo nada tem
a ver com a beleza ideal ou, mais exatamente, que ele se exerce
unicamente para macular e murchar esta beleza que, para tantas
|116|
O arco floral mais uma vez posto em cena: o século XVII, Baudelaire,
Bataille, Mario de Andrade5, Torquato, Siscar. Em seu último livro, O
roubo do silêncio, não somente estão apresentadas ali as flores do mal como
construção anagramática de si mesmo como a própria concepção de tempo
que organiza essa experiência floral é repensada. O poema “As flores do
mal” que abre este livro de Siscar afirma que o mal é gerado por uma força
passiva inerente à atitude de sua poesia frente ao tempo: uma contemplação
ativa da vida.
5
Sobre o problema da flor como informe, isto é, sobre a posição de Mário de Andrade em contraste com
a visão de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade com relação à imagem da flor como
elemento não sublime na literatura brasileira modernista conferir ensaio de Raúl Anelo, “A aporia da
leitura” (p. 31-35), em Ipostesli, revista de estudos literários, Juiz de Fora (v. 7, n. 1, p. 31-45).
|117|
intemporal do amor, que tem que morrer para germinar, assim como alcança
também o estatuto do íris, que mesmo sob o vidro do quadro provoca o afeto.
[...] O carrapicho,
por exemplo, essa flora incisiva, nasce no centro de um
círculo raiado e vai expandindo seus dedos, até entre-
gar o bago louro do trigo ruim. Visto de cima, ele
tem a forma exata de uma íris. Pelo menos é a forma
que enxergo quando fecho os olhos.[...]
(Siscar, 2006, p. 17).
É uma noção de tempo que se arma aqui, pois a flor mesmo seca,
mesmo emoldurada e imobilizada pelo quadro no museu de arte ou de
história natural, germina. Não aquece os dedos dos amantes, mas provoca o
|118|
[...]
e eu no espinheiro, sem rumo
longe, o chão de pedregulhos
a flor essência saxátil
(Roquette-Pinto, 1993, p. 6).
Ó jardins enfurecidos,
pensamento palavras sortilégio
sob uma lua contemplada;
jardins de minha ausência
imensa e vegetal;
ó jardins de um céu
viciosamente freqüentado:
[...]
(Cabral, 2003, p. 51).
|120|
Referências
CABRAL, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
FOUCAULT, Michael. Des espaces autres. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1984.
IIANACRÔNICO
DERIVAÇÃO
E
PROCEDIMENTO NARRATIVO
WILSON BUENO E A “SINTESIS MISTERIOSA”
Sobretudo, ... o que leva a cabo uma análise deveria indagar, ou melhor,
fixar sua atenção na questão de que se efetivamente se trata de uma síntese
misteriosa, ou se aquilo de que se ocupa é só um agregado, uma mera
conjunção de elementos díspares...,
ou inclusive como poderia tudo isso ser modificado. (p. 29).
Walter Benjamin, O conceito de crítica no romantismo alemão, 1920.
COLIBRIS
ANJOS
ARANHA
As yararás
[...]
É com eles (nossos sonhos) que os rememorantes se
refestelam, gordas jibóias de nossa talvez mais sublime
quimera.
(Bueno, 1999, p. 65-66).
constitui apenas um cenário para ela [...] Daí deriva, para o filósofo, a tarefa:
compreender toda a vida natural a partir dessa vida mais vasta que é a história. E
não será ao menos a continuação da vida das obras incomparavelmente mais
fácil de reconhecer do que as criaturas?” (Benjamin, 2001, p. 193).
Os fragmentos dos animais que compõem o jardim não são passíveis
de uma classificação científica, tornando ainda mais complicado pensar no
jardim zoológico moderno cujo princípio organizador é a catalogação em
espécies, subespécies, famílias etc. O procedimento de composição desses seres
imaginários é o da montagem. Nesse procedimento articulam-se paradoxos
concretos feitos de montagem visual com paradoxos teóricos de montagens
temporais por meio dos quais se pode perceber uma concepção de tempo,
cuja característica maior é a de pertencer a todos os tempos, isto é, ao tempo
anacrônico. Essa visualidade do trabalho de Wilson Bueno pode ser lida
também à luz de uma convivência do autor com a forte prática de trato com as
imagens da literatura produzida no Paraná, que vai da intensa atividade dos
poetas simbolistas até as interessantes revistas ali editadas, nas quais a visualidade
contribui e constitui as próprias revistas. Entre essas revistas encontramos
Joaquim, editada pelo escritor Dalton Trevisan na década de 40, a revista Nicolau,
editada pelo próprio Wilson Bueno na década de 80, no fim da década de 90
a revista Medusa, editada pelo poeta Ricardo Corona, assim como a revista
Coyote, editada desde 2002 pelo poeta Rodrigo Garcia Lopes, e a revista Oroboro,
editada por Ricardo Corona e pela artista plástica Eliana Borges desde 2004,
todas elas operando sobrevivências dessa história natural, isto é, dessa história
imagética na cultura produzida no Paraná.
Em entrevista recente ao “Diário Catarinense”, em 2 de junho de
2007, Wilson Bueno se refere tanto ao Manual de Zoofilia quanto ao Jardim
Zoológico como bestiários. Os bestiários como eram produzidos na Idade Média
se compunham por descrições detalhadas do mundo natural e essencialmente
animal. Tal como os herbários, que consistiam em listas de ervas, flores e
plantas, e os lapidários, que eram compilações de pedras e de fósseis, os bestiários
|137|
Os lazúlis
[...]
Os lazúlis são cubos perfeitos com uma gargalhada dentro
e desenvolveram de tal modo a sincronicidade que, pânico
espanto, enfileiram-se no horizonte, boêmios e dançantes,
àquela precisa hora da noite sem testemunhas, um cubo
encaixando-se ao outro feito vértebras que se ajustassem –
flexíveis bailarinas.
(Bueno, 1999, p. 83).
1
O jesuíta Baltasar Gracián, personagem inominado no estudo de Walter Benjamin sobre o barroco,
resgatou o uso da agudeza no século XVII reivindicando para ela a função de produzir no discurso a
experiência prática da Beleza como um caminho inexorável para o conhecimento (Gracián, 2001, p.
49). A agudeza produz uma beleza aguda, afiada como uma espada, com base nas correspondências
entre objetos díspares. Ainda é interessante ressaltar que Gracián diz que a produção da agudeza é
trabalho de um anjo (Gracián, 2001, p. 49), e que o discurso agudo, além de situar-se nesse campo
conceitual teológico, encontra-se envolvido no conceito de que a palavra, o gesto e inclusive o silêncio
são entendidos como uma arma e o homem de letras como um combatente, um guerreiro, um herói. Um
herói que luta para produzir atos de entendimento, conhecimento ativo, que exprimem a correspondência
que se encontra entre os objetos (Gracián, 2001, p. 55). Walter Benjamin, no último e escuro fragmento
do livro Origem do drama barroco alemão, intitulado Ponderación Misteriosa, no qual o autor defende a
monstruosidade antiartística do barroco que converge no Mal-em-si da figura alegórica, há uma
descrição do movimento executado na obra barroca: um milagre flutuante traz de volta pelas alegorias
o anjo caído e fixa-o no céu pela ponderación misteriosa. E o movimento será iniciado novamente quando
esse anjo, que é ninguém menos que Lúcifer, voltar a cair. A ponderación misteriosa é uma das formas da
agudeza tratadas por Gracián em seu Agudeza y arte de ingenio: “quien dice misterio, dice preñez, [...]
Las contingencias son la ordinaria materia de los misterios [...] Fúndase el misterio tanto en lo positivo
como en lo negativo de las circunstancias, y hácese el reparo, así en la que concurre como en la que faltó,
sí bien es menester más fundamento cuando se forma por carencia” (Gracián, 2001, p. 89). Ver Baltasar
Gracián (2001), Agudeza y arte de ingenio. O milagre na obra barroca resgata e ao mesmo tempo impede
a experiência do saber prático porque o anjo melancólico volta a cair.
|139|
Referências
BORGES, Jorge Luis. El libro de los seres imaginários. Madrid: Alianza Editorial,
1998.
enuncia uma verdade, a clave para a forma do conto. Para Piglia ambas as
histórias são mimeses do real, real esse compreendido como verdade, como
informação, e não como problema que não cessa de derivar-se. As histórias
nas teses do conto de Piglia, conforme ressaltou Raúl Antelo, são também
“simultâneas e a alegoria é usada como um procedimento de desarticulação
da forma, dos valores do relato” (Antelo, 2005, p. 36), no entanto, estão ali
para a enunciação de outro valor, o valor da história como representação
ideológica. No relato de Bernardo Carvalho, cuja estrutura sempre está de
acordo com o procedimento de dobragem e desdobragem da trama, a história
dobrada não se constitui apenas como uma desarticulação da forma da
primeira para a valorização da segunda, mesmo que seja para valorizar o
seu poder de desarticulação. A segunda história também será desarticulada
e nesse caso não por uma terceira história, o que implicaria a manutenção da
estrutura da narrativa como representação. A segunda história desconstrói a
primeira e a primeira a segunda, não restando nenhum sentido que possa
ser reconstruído após o seu dobramento.
Não há segredos a serem desvendados no relato de Bernardo
Carvalho porque o que existe na narrativa está ali como cenário repleto de
elementos à disposição do desenvolvimento da ação. O livro Os bêbados e os
sonâmbulos é dedicado à mãe do autor que lhe contara uma história pedindo,
mesmo sabendo que ele não cumpriria a promessa, que não a recontasse a
ninguém. Conhecer a história que fez um filho trair a confiança de uma
mãe e o fato terrível e abominável que estrutura o livro. Porém, o segredo
que constituiria essa história jamais será revelado na narrativa, não
configurando nem a traição e tampouco a história. O livro é povoado de fait
divers, que configuram séries de não-acontecimentos, os quais não fazem
senão configurar a cena da história e seu segredo, mas não o seu
desvendamento. O livro constrói as séries baseado na dobragem, na
duplicação dos pequenos e insignificantes eventos: num deles o personagem-
narrador descobre que tem uma doença hereditária e incurável cujo sintoma
|155|
Referências
_______. O desafio inicial de Piglia. Mais!, Folha de São Paulo, 3 ago. 1997.
FOUCAULT, Michael. A vida dos homens infames. Ditos e Escritos IV. Tradução
Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
_______. Escala & ventríloquos. Mais!, Folha de São Paulo, 23 jul. 2000.
A PLENITUDE DO TEMPO E A PRÁTICA
DO DESVIO NO RELATO DE CÉSAR AIRA
1
“La solución al problema principal no me vino de inmediato. Durante dos o tres horas no supe
que estaba elaborándose en mi cerebro, mientras daba un paseo, subía a mi habitación a escribir
un rato, miraba el mar por la ventana, y volvía a salir, en el tedio de la espera. Durante ese lapso
tuve tiempo de observar las evoluciones de unos niños que se zambullían al mar desde unas rocas
a unos veinte metros de la costa. Esto ya es la ‘pequeña historia’, y en realidad no tiene interés más
que para mí. Pero de esas piezas inenarrables y microscópicas está hecho el rompecabezas. Porque
en realidad no existe el ‘mientras tanto’. Por ejemplo, en mi distracción consideraba el juego de
|172|
por isso não podemos deixar de pensar que o drama En la corte de Adán y
Eva, encenado durante o congresso durante o qual será processada a clonagem
de Carlos Fuentes, e o gênio que irá criar o clone de Carlos Fuentes, que
com isso deixa de ser um fato histórico-linear para ser transformado num
evento sem causa, um efeito-rum, participam de uma mesma temporalidade.
Dessa forma, retornamos: não existe o “mientras tanto”, o que há é a
temporalidade do “aí-desde-sempre”. “Enquanto isso”, na novela Parmênides
o personagem de Perinola entra num tipo de passividade fundamental, isto
é, ingressa na irredutibilidade de um “aí-desde-sempre” quando se embriaga
e se empanturra com a pouca a comida que come na taverna justamente na
noite em que termina o livro cujo efeito era o de duplicar o pensamento do
patriarca Parmênides na sua própria escrita.
esos chicos como un artefacto humilde hecho con elementos naturales, uno de los cuales era el
reconocimiento del placer cinético de la zambullida, el shock muscular, la natación-respiración...
¿Cómo hacían para esquivar esas aristas de piedra traspapeladas en el oleaje? ¿Cómo se las
arreglaban para pasar a milímetros de la roca que los habría matado con su caricia de medusa
rígida? Por el hábito. Debían de hacerlo todas las tarde. Lo cual le daba al juego la materia
necesaria para volverse una leyenda. Esos niños eran un hábito de la costa de Macuto, pero la
leyenda también es un hábito. Y la hora, la hora que era precisamente entonces, el crepúsculo tan
adelantado en los trópicos y a la vez tan demorado y majestuoso en sus acordes, la hora participaba
del hábito... De pronto, todo caía en su lugar. Yo, que nunca comprendo nada si no es por
cansancio, por renuncia, de pronto lo comprendía todo. Pensé en tomar una nota, para una
novelita, pero ¿por qué no hacerlo, por una vez, en lugar de escribirlo?” César Aira (2007).
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Referências
Aquilo que é ‘tido como faculdade’, dessa forma, não é uma simples
ausência, mas tem na realidade a forma de uma privação (no vocabulário
de Aristóteles, steresis, privação, está estrategicamente relacionado com
exis), ou seja, de algo que atesta a presença daquilo que falta no ato. Ter
uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação. Por isso
a sensação não sente a si mesma, da mesma forma que o combustível
não queima a si mesmo. A potência é, portanto, a exis de uma steresis:
‘às vezes’, lê-se em Met. 1019 b, 5-8, “o potente é tal porque tem algo,
às vezes porque lhe falta algo. Se a privação é de uma certa forma uma
exis, o potente é tal ou porque tem uma certa ‘exis’, ou porque tem a
‘steresis’ dela.” (Agamben, 2006, p. 3).
1
Para a compreensão do que se quer propor com o conceito escritor-disjunto, conferir neste livro
o ensaio “A plenitude do tempo e a prática do desvio no relato de César Aira”.
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Foi nesse instante que a coisa aconteceu com uma precisão incrível;
mal posso afirmar se houve um intervalo de um átimo entre as
pancadas do relógio da copa e o trinado do telefone. Os dois sons
surgiram ao mesmo tempo, e pareciam pertencer à mesma fonte
sonora. A coincidência de sons durou alguns segundos; no
momento em que o telefone emudeceu, a criança arremessou a cabeça
da boneca de encontro às hastes do relógio, provocando uma
seqüência de acordes graves e desordenados, como os sons de um
piano desafinado. As duas hastes ainda se chocavam quando ouvi a
última pancada do sino da igreja. Só então corri para atender o
telefone, mas nada escutei senão ruídos e interferências. (Hatoum,
1989, p. 12).
que um dos anjos de pedra do pátio da casa exercia sobre Soraya Ângela é
compreendido como uma forma de comunicação.
Ao ler o destino das pessoas a partir dos traços deixados pelos resíduos
de café numa xícara emborcada na bandeja evoca-se, não da técnica, que
está na superfície do ato de produção da imagem, mas das longínquas forças
da magia de que nos fala Walter Benjamin. No ensaio Sobre la faculdad
mimética, Benjamin analisa o processo de descrever imagens, criar
significação, a partir da leitura das linhas traçadas na palma de uma mão.
Esse procedimento suporia que a língua seria um estágio superior do
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pode ser encontrada na fotografia que o tio Hanna envia a seus parentes no
Líbano, despertando o interesse do pai da narradora a viajar para a Amazônia.
Emir, descrito pela fotografia que Donner tirou dele pouco antes de seu
suicídio no rio Negro, a morte de Emilie também não será enfocada
diretamente. No fim das contas, será preciso convir que, para além da morte
como figura iconográfica, é de fato a sua ausência que rege esse balé
desconcertante de imagens sempre interditas. A ausência é considerada aqui
como motor tanto do desejo – da própria vida – quanto do luto – que não
possui o mesmo sentido que a morte. A morte não importa, ela nada produz,
contudo, o luto desencadeia um trabalho psíquico naquele que se confronta
com a morte e movimenta o olhar com esse confronto. Dessa forma, o relato
da perda, os seus volumes vazios – os túmulos vazios – transformam-se em
figuras, em objetos doadores de sentidos. Sendo assim, quando se opera a
leitura desses volumes, encontra-se neles uma fenda por onde algo olha
para o leitor.
Referências
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 1. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução Maria Carlota Gomes.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
Título Literatura do presente: história e anacronismo dos
textos
Formato 16 X 23 cm
Tiragem 800