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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS


FACULDADE NACIONAL DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM DIREITO

URGÊNCIA PUNITIVA E TRÁFICO DE DROGAS:


AS PRISÕES CAUTELARES ENTRE PRÁTICAS E DISCURSOS NAS VARAS DE
TÓXICOS DE SALVADOR

ANA LUISA LEÃO DE AQUINO BARRETO

Rio de Janeiro
2017
ANA LUISA LEÃO DE AQUINO BARRETO

URGÊNCIA PUNITIVA E TRÁFICO DE DROGAS:


AS PRISÕES CAUTELARES ENTRE PRÁTICAS E DISCURSOS NAS VARAS DE
TÓXICOS DE SALVADOR

Dissertação apresentada como requisito parcial


para a obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Direito, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação da
Professora Doutora Luciana Boiteux de
Figueiredo Rodrigues

Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação

Barreto, Ana Luisa Leão de Aquino


B273u Urgência punitiva e tráfico de drogas: as
prisões cautelares entre práticas e discursos nas
Varas de Tóxicos de Salvador / Ana Luisa Leão de
Aquino Barreto. -- Rio de Janeiro, 2017.
144 f.

Orientadora: Luciana Boiteux de Figueiredo


Rodrigues.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Direito,
Programa de Pós-Graduação em Direito, 2017.

1. Prisões Cautelares . 2. Tráfico de Drogas .


3. Criminologia Crítica. 4. Salvador. 5. Decisões
Judiciais. I. Rodrigues, Luciana Boiteux de
Figueiredo , orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).
ANA LUISA LEÃO DE AQUINO BARRETO

URGÊNCIA PUNITIVA E TRÁFICO DE DROGAS:


AS PRISÕES CAUTELARES ENTRE PRÁTICAS E DISCURSOS NAS VARAS DE
TÓXICOS DE SALVADOR

Dissertação de Mestrado em Direito apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Direito.

Aprovada em: 03/04/2017

_______________________________________
Prof. Drª Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues (orientadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________
Prof. Drª Vera Malaguti de Souza Weglinsk Batista
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

________________________________________
Prof. Dr. Salo de Carvalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Para o meu avô Aquino, eterno mestre e professor,
Presença constante mesmo na imensidão da sua ausência.
AGRADECIMENTOS

“E é tão bonito quando a gente entende


Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar”

A escrita da dissertação é uma tarefa, infelizmente, muito solitária. Mas o período de


dois anos em que a pesquisa de mestrado se constrói só se torna possível com discussões
intensas, debates acalorados, reflexões sobre o tema, indicações de leitura, troca de ideias e
muitos momentos em que simplesmente é necessário espairecer. E nada disso – felizmente! –
se faz sozinha. Este trabalho não seria possível sem essas pessoas. Vai aqui o meu singelo
agradecimento:

À minha mãe e meu pai pelo apoio incondicional, por entenderem as minhas escolhas,
pelo carinho, pela formação política, por terem sido os primeiros a me mostrarem um olhar
crítico sobre o mundo. À minha mãe um agradecimento especial pela leitura atenta deste
trabalho e todas as dicas valiosas e enriquecedoras. À minha irmã por tudo aquilo que jamais
poderá ser colocado suficientemente em palavras. Ao meu irmão pelo carinho e amor sempre.

Ao grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisão, surgido de encontros –


políticos, afetivos e teóricos – na aridez da Faculdade de Direito da UFBA, agregou diferentes
pessoas com uma forma similar de inquieta e criticamente olhar o mundo. Por todos os debates,
pelo carinho e apoio, por todas as conversas em mesa de bar, seguiremos juntas e juntos para
atingir as coisas inatingíveis, pois seriam muito tristes os caminhos sem a presença distante das
estrelas. Do grupo, um agradecimento especial aos/as mestrandos/as: Marcelo, Bruna, Isadora
e – na minha reta final – Vinícius, por ajudarem a tornar o Rio de Janeiro um pouquinho mais
baiano.

A minha orientadora, Luciana Boiteux, por ter embarcado na minha viagem, por todas
as inquietações despertadas em aula e as produtivas sessões de orientação e do grupo de
pesquisa; agradeço ainda pela oportunidade em aceitar ser a minha orientadora e pela confiança.

Ao Programa de Pós-Graduação em Direito e seu quadro de professoras e professores


críticos e combativos. Um agradecimento especial ao professor Geraldo Prado pelos constantes
estímulos em sala de aula e pelas contribuições inestimáveis na qualificação. Agradeço ainda
ao PPGD pela oportunidade de conviver com um grupo de alunos com uma acurada visão crítica
do mundo e que foram grandes companhias nessa jornada. Um agradecimento especial à
Fernanda pela amizade e pelo carinho desde o início.

Aos professores Salo de Carvalho e Vera Malaguti, grandes referências teóricas deste
trabalho. Agradeço à Salo, ainda, pela oportunidade de construir o GCCRIM, pela leitura atenta
deste trabalho desde a qualificação e pelos debates enriquecedores no grupo de pesquisa. À
professora Vera pelas aulas incríveis, pelo acolhimento e incentivo e por ter aceitado compor a
banca de defesa.

Às novas amizades feitas no Rio, por tornarem essa cidade também um lar, por toda a
cerveja, karaokê e jukebox. Um agradecimento especial a João, que, em pouco tempo, se tornou
um amigo querido e grande companheiro.

As amigas “gatas garotas” pelo apoio sempre. Em especial, Jú, Fau, Bruna e Quel pela
preocupação e carinho constantes e à Rebecca, por todas as longas horas de conversa, pelas
deliciosas visitas, e por todo o apoio, companheirismo e amor.

À família Vianna Matos por todo o carinho e acolhimento; à Tata, Milinha e Lili, em
especial, por encherem o mundo com um pouco mais de ternura e afeto.

E, por fim, mas, certamente, não menos importante, agradeço a Lucas que foi o grande
companheiro desta jornada. Obrigada por dividir e multiplicar sonhos, pelas longas conversas
na madrugada, por todas as discussões acaloradas e divergências teóricas, pela leitura atenta
deste trabalho e, acima de tudo, por todo o carinho e amor.
“O ser humano é descartável no Brasil.
Como modess usado ou bombril.
Cadeia? Guarda o que o sistema não quis.
Esconde o que a novela não diz.”
Diário de um Detento, Racionais MC’s
RESUMO
Este trabalho busca, a partir do horizonte da Criminologia Crítica brasileira, articular o delito
de tráfico de drogas e a prisão cautelar como eixos centrais do poder punitivo no capitalismo
neoliberal brasileiro, com o objetivo de avançar na interpretação sobre como a prisão cautelar
em casos de tráfico de drogas se insere nas dinâmicas de controle social autoritário, racista e
classista, a partir do olhar crítico sobre o discurso judicial. Para isso, foi realizada pesquisa
empírica tendo como objeto 604 processos criminais com 928 réus, todos os processos que
tiveram sentenças proferidas pelas três Varas de Tóxicos existentes na cidade de Salvador-BA
no ano de 2015. O trabalho empírico se divide em dois momentos: análise da situação prisional
no curso do processo e o respectivo resultado da persecução penal para os 928 réus; e análise
das decisões interlocutórias decretadoras/mantenedoras de prisão preventiva dos acusados que
passaram todo o processo preso (203 pessoas), buscando apreender e tecer reflexões sobre os
discursos da prática judiciária em relação às prisões cautelares nos casos que envolvam
acusação de tráfico de drogas.
Palavras Chave: Prisões Cautelares, Tráfico de Drogas, Criminologia Crítica, Salvador,
Decisões Judiciais.
ABSTRACT
This work seeks, from the perspective of Brazilian Critical Criminology, to articulate drug
trafficking and pretrial detention as central issues of punitive power in Brazilian neoliberal
capitalism, with the objective of advancing the interpretation of how the use of the pretrial
detention in cases of drug trafficking is embedded in the dynamics of authoritarian, racist and
classist social control, from the critical view on judicial discourse. For that, an empirical
research was carried out with 604 criminal cases involving 928 defendants, all sentences given
by the three “Toxic Specialized Courts” that exist in the city of Salvador-BA in the year 2015.
The empirical work is divided in two moments: analysis of the prison situation during the
proceedings and the respective outcome of the criminal prosecution of the 928 defendants;
analysis of the decree that ordered the defendants' pretrial detention, only in the cases that the
person was imprisoned the entire process (203 cases), seeking to understand and reason on the
discourses of the judicial practice in relation to the precautionary prisons in cases that involve
the alleged practice of drug trafficking.
Key Words: Pretrial Detention, Drug Trafficking, Critical Criminology, Salvador, Court
Decision
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12

1. A QUEM SERVE A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL?................17

1.1 Delimitando o Objeto........................................................................................................17

1.2 Da Criminalidade à Criminalização................................................................................21

1.3 Historicizando a Questão Criminal.................................................................................28

1.3.1 As Demandas por Ordem no "Lado de Cá" da Margem..................................................28

1.3.2 Um Poder Punitivo à Brasileira.......................................................................................30

1.4 As Demandas por Ordem no Grande Encarceramento................................................37

1.4.1 A Questão Penal no Estado Neoliberal............................................................................37

1.4.2 O Sistema Penal no Brasil Neoliberal..............................................................................40

2. TRÁFICO DE DROGAS E PRISÕES CAUTELARES: UMA ANÁLISE DOS


PROCESSOS...........................................................................................................................47

2.1 Duas Chaves de Leitura....................................................................................................47

2.1.1 O Tráfico de Drogas.........................................................................................................49

2.1.2 As Prisões Cautelares.......................................................................................................57

2.2 Salvador e a Questão Criminal........................................................................................59

2.3 Antecipando a Pena? Os achados de Pesquisa e Algumas Reflexões...........................64

2.3.1 Notas sobre a Pesquisa Empírica.....................................................................................64

2.3.2 Os Achados......................................................................................................................74

2.3.2.1 Um Parênteses Necessário: as Mulheres e o Tráfico de Drogas..................................83

2.3.2.2 “Uma Política Criminal com Derramamento de Sangue”...........................................88

3. “IN DUBIO PRO SOCIETATE”: A PRISÃO COMO REGRA....................................94

3.1 A Neutralidade e a Dogmática.........................................................................................94

3.2 O Que (Não) Dizem Os Discursos?................................................................................102


3.3. “A Prisão Preventiva ‘é uma Dessas Dolorosas Necessidades Sociais perante as quais
Somos forçados a nos inclinar’”...........................................................................................103

3.3.1 "Soltos, os indiciados oferecem risco à ordem pública": o Periculum Libertatis..........103

3.3.2 Evitando a Reiteração Criminosa: a Periculosidade e a Prática Contumaz de Delitos..108

3.3.3 Tráfico, Medo e Violência: “O fato noticiado nos autos é de extrema gravidade (...)
causando o aumento da violência e a destruição de inúmeras famílias pelo vício por ele
estimulado”.............................................................................................................................118

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................131

ANEXOS................................................................................................................................139
INTRODUÇÃO

Este trabalho busca, a partir do horizonte da Criminologia Crítica brasileira, articular o


delito de tráfico de drogas e a prisão cautelar como eixos centrais da atuação do poder punitivo
no capitalismo neoliberal brasileiro. A partir dessa perspectiva, o problema da pesquisa parte
de inquietações sobre como o uso da prisão cautelar em casos de tráfico de drogas se insere nas
dinâmicas de controle social autoritário, racista e classista, a partir do olhar crítico sobre o
discurso judicial, com o objetivo de avançar nas possibilidades de interpretação desse processo.

Contrariando as expectativas de muitos que apostavam que a ruptura com um modelo


autoritário implicaria mudanças nos rumos das políticas de repressão penal no Brasil, a virada
política do final da década de 1980 veio acompanhada da consolidação – agora “democrática”
– do paradigma bélico em matéria punitiva1. Ao sair da Ditadura e entrar em um dos breves
intervalos democráticos2, um novo inimigo foi politicamente construído: o traficante de drogas.

Nesse contexto, o Brasil se insere no cenário mundial de “guerra às drogas” e, em


compasso com diversos outros países do mundo, viu suas taxas de encarceramento crescerem
de forma vertiginosa e progressiva nos últimos vinte e cinco anos 3. Um fenômeno relevante
ocorre no final desse processo: pela primeira vez, em 2014, o tipo penal responsável pelo maior
número de encarceramentos, deixou de ser um crime contra a propriedade, passando a ser o
delito de tráfico de drogas4.

Este único tipo penal - dentre os milhares de delitos existentes no arcabouço legislativo
brasileiro - corresponde atualmente a 28% dos crimes cometidos por aqueles que se encontram
no sistema prisional, contra 25% de roubo, o segundo delito mais representado nas prisões
brasileiras. Em 2005 esse mesmo delito - ainda sob a vigência da Lei n. 6.368/1976 -

1
A Constituição Federal de 1988, por exemplo, em que pese os avanços na positivação de direitos sociais e
políticos, mantém a estrutura policial e de segurança pública - historicamente conservadora - praticamente
inalterada. Além disso, prevê em meio aos direitos e garantias individuais previstos no art. 5º a hediondez do
tráfico de entorpecentes.
2
Vera Batista (2016a) fala de como na longa duração do autoritarismo no Brasil, a democracia “é um intervalo de
nossa história” (p.06).
3
De acordo com o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), o Brasil teve um aumento em sua taxa de
aprisionamento de 136% entre os anos de 1995 e 2015, a segunda maior do mundo. A Indonésia que ocupa o
primeiro lugar (145%), entretanto, tem uma taxa de aprisionamento de 66 presos por cem mil habitantes, enquanto
o Brasil tem quase 300 presos por cem mil (INFOPEN, 2014).
4
Os principais crimes contra a propriedade (roubo e furto, simples e qualificado) somados são maioria, mas não
individualmente considerados. O tipo autônomo que mais encarcera no Brasil, entretanto, é o art. 33 da Lei n.
11.343/2006.
11
representava 14% dos crimes, contra 22,6% de roubo5 (INFOPEN, 2014). Nos estabelecimentos
prisionais femininos, esse número é ainda mais expressivo, pois o tráfico de drogas responde
por 58%6 (INFOPEN Mulher 2014) dos delitos que levam as mulheres à prisão.

A ideia em si de “guerra” é emblemática, não casual. Uma guerra é sempre contra


alguém e não contra algo; a afirmação alardeada de que seria “guerra contra às drogas” busca
esconder os verdadeiros significados deste modelo bélico de lidar com a repressão ao tráfico de
drogas7. O “traficante-herege” (BATISTA, 2002a) mistificado pela mídia hegemônica, parece
bem diferente daqueles capturados nas ruas e vielas das cidades brasileiras em “atitude
suspeita”: são os pequenos traficantes não violentos, primários, presos em flagrante sozinhos e
desarmados (BOITEUX, 2014, p. 84), em geral, jovens, negros e pobres8.

A centralidade da droga quando se discute a questão criminal no Brasil contemporâneo


parece inegável, razão pela qual ela foi estabelecida como um dos eixos que orientam este
estudo. A política criminal de drogas é hoje o carro-chefe das políticas criminais brasileiras e o
"traficante de drogas" tem sido, nos últimos anos, alçado ao papel de principal "inimigo interno"
no discurso belicoso do poder punitivo na América Latina e no Brasil (BOITEUX, 2006). O
“traficante”, assim, é o alvo preferencial no sistema penal (BOITEUX et al, 2009), afirmação
que se ilustra nas estatísticas acima apontadas9.

Por outro lado, parece inegável também a relevância que o aprisionamento cautelar10
assume nesse contexto. Os presos provisórios correspondem no Brasil a 40% da totalidade de
presos; nesse sentido, Zaffaroni (2011) destaca que o aprisionamento cautelar é a característica
mais destacada do poder punitivo latino-americano. A partir de uma previsão legal fica

5
Os dados aqui utilizados foram retirados do Relatório “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias”
(INFOPEN, 2014). Os dados, portanto, são de dezembro de 2014, pois este é o levantamento mais atualizado
disponibilizado de forma oficial.
6
De acordo com o Infopen (2014), comparando dados do ICPS, o Brasil é o quarto país com o maior número
absoluto de presos do mundo. Entretanto, se EUA, China e Rússia tem reduzido suas taxas de encarceramento, o
país tem uma taxa de crescimento da população prisional de 7% ao ano. Entre as mulheres essa taxa chega a 10,7%.
7
Agradeço aqui a contribuição do professor Salo de Carvalho por lembrar que uma guerra é sempre contra alguém.
8
De acordo com o Infopen (2014): 55% da população prisional brasileira tem menos de 30 anos, 62% são negros
e apenas 9,5% concluiu o ensino médio.
9
É relevante destacar o deslocamento que se verifica em diversos países do mundo a partir de meados da década
de 70 nas "ilegalidades populares", que, de acordo com o que observa Foucault (1987) - e as estatísticas de diversos
países corroboram sua afirmação - tinha, desde o século XVIII, como alvo principal os bens, para os crimes
relacionados às drogas.
10
Os nomes “prisão cautelar”, “provisória”, “preventiva” e “antecipada” neste trabalho foram utilizados como
sinônimos, para toda aquela prisão decretada pelo juízo no curso do processo criminal. Ressalto, entretanto, que
não trabalhamos aqui com nenhum caso onde foi aplicada “prisão temporária” e por isso este conceito não será
aqui trabalhado ou utilizado.
12
autorizado o encarceramento de quem ainda é – constitucionalmente – inocente, consolidando
o duvidoso brocardo in dubio pro societate.

A opção de restringir o estudo aos casos que envolvam processos por tráfico de drogas,
nesse sentido, não é acidental: é nesse crime e na sua multiplicidade de verbos que o arbítrio
punitivo encontra ainda mais respaldo legal para a sua atuação. Do cidadão parado e revistado
pela polícia por uma suposta “atitude suspeita”, ao juiz que decreta a prisão provisória para
“garantir” – uma suposta - “ordem pública”, culminando com – talvez - uma condenação dentre
a diversidade de condutas possíveis11, o espaço para uma atuação arbitrária é inegavelmente
amplo.
A perspectiva teórico-metodológica do trabalho, orientada pela tradição da crítica
criminológica, me levou a pensar o problema de pesquisa a partir do diálogo entre a abordagem
empírica, “adotada para delimitar objetos específicos de indagação”, com “uma perspectiva
macrossociológica, adotada para definir um horizonte explicativo e interpretativo” mais amplo
(BARATTA, 2011, p. 26-27).
Para isso, foram selecionados todos os processos que tiveram sentença publicada no ano
de 2015 no Diário Eletrônico de Justiça da Bahia, nas três Varas de Tóxicos existentes na cidade
de Salvador, resultando em um volume de 604 processos e 928 réus. O trabalho foi dividido em
dois momentos: no primeiro momento, em uma perspectiva quantitativa, foi analisada a
situação prisional dos réus no curso da persecução penal e o resultado final do processo,
articulando ambas as questões. Numa segunda etapa, foi realizado um estudo qualitativo das
decisões interlocutórias decretadoras ou mantenedoras de prisão preventiva relativas aos casos
em que os réus ficaram presos durante todo o processo.
A opção metodológica por selecionar processos conclusos deriva do meu interesse em
indagar não apenas sobre o aprisionamento cautelar dos réus, mas também sobre qual o
resultado do processo; os réus permaneceriam presos após a sentença? Observar se eles
seguiriam ou não encarcerados me pareceu necessário para avançar em uma maior compreensão
sobre a funcionalidade das prisões cautelares.
Em relação ao recorte temporal, o ano de 2015 foi escolhido para possibilitar uma visão
mais atualizada sobre o tema, diante do período que a pesquisa foi realizada (março/2015 a

11
“importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda
que gratuitamente”.
13
março/2017). A opção por um período completo de 12 meses buscou evitar eventuais distorções
que podem ocorrer ao longo do ano12.
Conforme explanei acima, me interessava estudar os processos que tivessem como
objeto condutas relacionadas a suposta prática de tráfico de drogas. Nesse sentido, Salvador se
apresentou como um lócus de pesquisa ideal por possuir varas criminais especializadas no
julgamento desse delito. Foram coletados processos em todas elas, de modo a permitir uma
visão ampla do objeto, buscando evitar distorções que poderiam ocorrer se ficasse vinculada a
postura de um ou dois juízes
Além disso, escolho Salvador por alguns motivos: primeiro, por compreender que, no
campo do direito, as pesquisas empíricas que versam sobre a questão criminal têm como
enfoque privilegiado o eixo Rio-São Paulo, estando o tema longe do esgotamento em outras
cidades do país. Além disso, Salvador tem vivenciado, nos últimos anos, um importante
processo de recrudescimento penal, especialmente em relação à política de drogas, em modelos
muito similares aos que vêm passando – já há mais tempo – as cidades acima mencionadas,
conforme será explanado no trabalho.
Portanto, esse estudo que tem por objeto os modos de inserção da prisão cautelar por
tráfico de drogas nas dinâmicas de controle social autoritário, racista e classista, se organiza em
três capítulos.
No primeiro são estabelecidas as bases teórico-metodológicas deste trabalho que
encontra seu principal aporte na Criminologia Crítica, que evidencia a seletividade do sistema
penal (classista e racista) garantida pelo discurso jurídico e “sua íntima conexão com o poder”
(ZAFFARONI, 1988, p. 8). É importante ressaltar ainda que, justamente por suas bases
histórico-dialéticas, procurei fazer uma interpretação criminológica da questão criminal
considerando os aspectos sócio históricos específicos da nossa região marginal, buscando a
todo o momento compreender as específicas demandas por ordem que orientam a aplicação
concreta do poder punitivo no Brasil.
Já no segundo capítulo busquei relacionar especificamente tráfico de drogas e prisão
cautelar, partindo de uma discussão teórica e depois com a análise das sentenças. Delas foram
coletados dados sobre aprisionamento cautelar e o resultado do processo13, sendo que ambas as

12
Pressões do Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, para o cumprimento de determinadas metas, fazem com
que alguns meses sejam recheadas de sentenças extintivas da punibilidade, mais rápidas e simples de serem
julgadas por exigirem um mero cumprimento objetivo de uma questão (a prescrição, por exemplo).
13
Os dados do capítulo 2 advieram em sua maioria das sentenças com algumas ressalvas colocadas no próprio
capítulo.
14
informações foram articuladas com o intuito de aprofundar as discussões acerca do uso das
prisões cautelares como instrumento de controle social em casos que envolvam acusação de
prática de tráfico de drogas14.
Por fim, no terceiro capítulo, a análise teve por foco os casos em que o réu ficou preso
durante todo o processo, um universo de 203 réus, para então fazer uma análise mais
aprofundada das decisões decretadoras/mantenedoras de prisão. Foram analisadas decisões
referentes a 183 réus (em relação a 20 réus não foi possível achar qualquer decisão). Buscamos
encontrar os elementos discursivos não-dogmáticos e não jurídicos, que parecem orientar de
fato as decisões e as representações estigmatizantes, os estereótipos, os pré-conceitos, que
permitem agregar mais elementos para a compreensão das funções reais da prisão cautelar e do
papel do Judiciário no panorama do superencarceramento.

14
Foi uma opção metodológica não discutir aqui dados como quantidade de drogas apreendidas e outras
informações similares, não porque não se considere tais informações relevantes, mas porque o recorte do objeto
foi necessário em razão do volume amplo de processos.
15
1. A QUEM SERVE A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL?

1.1 Delimitando o Objeto

Diante do contexto apresentado, o problema da pesquisa se debruça sobre as reais


funções cumpridas pelas prisões cautelares nos processos criminais que envolvem uma
acusação por tráfico de drogas, com o objetivo de avançar na interpretação de como o uso da
prisão cautelar em tais crimes se insere nas dinâmicas de controle social autoritário, racista e
classista no Brasil – e especificamente em Salvador -, a partir do olhar crítico sobre o discurso
judicial.

A escolha desses eixos não é casual: as prisões cautelares, de um lado, por representarem
a possibilidade do encarceramento sem processo com poucas exigências formais; o tráfico de
drogas, por outro, pela centralidade assumida nos últimos anos como carro-chefe da política
criminal brasileira. A intenção aqui foi articular uma discussão teórica com um objeto empírico,
construído a partir de processos que tramitaram nas três varas especializadas em tóxicos15
existentes na cidade de Salvador e que tiveram sentença proferida no ano de 2015.

O município de Salvador, no Estado na Bahia, cidade de ampla maioria negra, tem


sentido de maneira notadamente forte a repressão penal nos últimos anos, em especial nos
bairros populares, sob uma suposta alegação de "combate à criminalidade". O discurso de
"retomada da vocação turística" da cidade pela atual Prefeitura16, é potencializado por intensas
políticas de higienização das áreas centrais da cidade e de intensa repressão policial nas regiões
periféricas17.

Portanto, Salvador tem se inserido na lógica de “cidade-empreendimento” ou “cidade-


mercadoria”, já aplicado em outras grandes cidades, como um produto “que não se vende (...)
se não se fizer acompanhar por uma adequada política de image-making.” (ARANTES, 2000,

15
Sobre as Varas de Tóxicos ver capítulo 2.
16
O prefeito atual, Antônio Carlos Magalhães Neto (ACM Neto), foi eleito em 2012, e é neto de Antônio Carlos
Magalhães que ficou conhecido em todo o país por suas práticas truculentas e coronelistas. A gestão de ACM Neto
tem se distinguido por uma intensa privatização e controle dos espaços públicos, representando o ingresso
definitivo de Salvador no modelo de cidade neoliberal.
17
Essa diferença nas formas de atuação do poder punitivo é visível em diversas cidades se reflete nos distintos
órgãos que são direcionados para intervir nessas áreas: nas regiões periféricas prevalece a atuação da Polícia
Militar, enquanto nas regiões centrais a Guarda Municipal atua como mantenedora da "ordem pública"
(BARRETO; MATOS, 2015). A atuação da Guarda Municipal, então, se direciona as "pequenas ilegalidades"
realizadas pela população "não-adequada" às áreas centrais, a partir do modelo da "tolerância zero" (BELLI, 2004).
Em Salvador, a criação da "Secretaria de Ordem Pública", pela atual prefeitura, com o objetivo principal de
"manutenção da ordem", atuando - a partir de diversos agentes, entre eles a própria guarda municipal - contra os
trabalhadores excluídos do mercado formal - no Brasil, a partir de uma lógica de inegável viés racista - reflete a
consolidação definitiva na cidade deste modelo.
16
p. 17). A ideia de “revitalização urbana” é usada como um eufemismo que esconde as políticas
de gentrificação já operadas em alguns dos principais centros urbanos do mundo. A título de
“requalificação”, “revitalização” e com um suposto “resgate” cultural do espaço, se operam
políticas orientadas pelo mercado (ARANTES, 2000) que permitem a expulsão – de forma
direta ou indireta – das pessoas “indesejadas”, por meio do reforço do controle social formal
punitivo.

Por outro lado, também o Governo Estadual tem ocupado uma posição de destaque no
processo de recrudescimento penal. Em especial a política criminal de drogas na Bahia, onde
uma suposta "guerra"18 ao tráfico tem servido para legitimar a atuação truculenta da Polícia
Militar nos bairros periféricos. Uma campanha lançada em 2010 pelo Governo da Bahia - e
com curta duração devido a uma intensa repercussão negativa - chamava-se: "Crack: Cadeia ou
Caixão"19, ilustra bem esse processo. Nesse sentido, fica clara a articulação entre um sistema
penal “legítimo” - que prende - e outro subterrâneo - responsável pelo extermínio - (ANIYAR
DE CASTRO, 2005; ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011), que tem nos homens, jovens e
negros seus alvos privilegiados.20

A ideia de me concentrar em processos já sentenciados veio de uma afirmação de


Eugênio Zaffaroni (2011) de que embora a maior parte dos presos latino americanos sejam
presos preventivos, boa parte deles não ficará preso após a sentença, seja por ter sido absolvido,
seja por já ter cumprido o tempo da pena cautelarmente, constituindo o que o autor chamará de
sistema “invertido”. Além disso, no Brasil, em relação ao crime de tráfico, essa afirmação
parecia ser reforçada pelo parágrafo 4º do art. 33 da Lei de Drogas, que, autorizando uma alta
causa de diminuição de pena ao “pequeno traficante”, garante que muitas vezes os juízes se
vejam obrigados a aplicar penas baixas de prisão, sendo que estas, por sua vez, poderão em
alguns casos serem substituídas por restritivas de direitos.21

Nesse sentido, optei por fazer mais um recorte: estudar as decisões interlocutórias
decretadoras de prisões cautelares e seus discursos fundamentadores. Se o suposto combate ao
tráfico de drogas legitima muitas mortes em nome da lei, de traficantes, ele parece autorizar

18
Diversos/as autores/as criticam e apontam as razões históricas e de política criminal para a utilização de termos
bélicos para se referir à temática das drogas ilícitas (BOITEUX, 2006; CARVALHO, 2016; BATISTA, 1998).
19
Fonte: <http://www.bahianoticias.com.br/2011/imprime.php?tabela=principal_noticias&cod=107328>
20
Cerca de 96% da população prisional baiana é constituída por homens, quase 50% do total de presos do Estado
tem entre 18 e 29 anos e 70% é de pretos ou pardos (INFOPEN, 2014)
21
Esta possibilidade de substituição, destaque-se, não era permitida originalmente na lei. Entretanto, com o
julgamento do habeas corpus 97.256 pelo STF foi declarado a inconstitucionalidade desta previsão, vez que
restava violada o princípio da individualização da pena previsto na Constituição Federal (BOITEUX, 2010).
17
também a antecipação da pena por meio da prisão cautelar, que se fundamenta em uma suposta
“necessidade” do processo, em geral para “garantir” (?) a ordem pública.

Os discursos jurídicos que se escondem sobre a manta do tecnicismo deixam assim


entrever mais do que a priori gostariam de mostrar, como verificamos na análise que será
apresentada mais adiante: a “periculosidade” como fundamento da manutenção da custódia
cautelar, a necessidade de se restaurar uma suposta “ordem pública” que foi violada e as mortes
– muitas mortes – ao longo dos processos que com uma frase (“julgo extinta a sua
punibilidade”) deixam entrever os diversos corpos de jovens-homens-negros (REIS, 2005)22
caídos pelo caminho.

As chacinas são assim um quadro comum na cidade de Salvador. A Chacina do Beiru23,


Chacina do Calabetão24, Chacina do Bairro da Paz25, Chacina do Alto de Coutos26 e mais
recentemente a Chacina do Cabula – que resultou na morte de 13 pessoas -, que ficou marcada
por uma emblemática afirmação do governador baiano à época27. Segundo o Anuário Brasileiro

22
Essa categoria que agrega idade, gênero e raça, percebendo nos jovens-homens-negros alvos preferenciais da
seletividade penal é percebida também nos EUA, como aponta, por exemplo, a pesquisa de Curry e Corral-
Camacho (2008) que identificou a maior probabilidade de alguém receber uma pena de prisão em sendo um homem
negro entre 22 e 30 anos.
23
Ocorrida em 1996, essa chacina foi fruto de uma operação policial que resultou na morte de vinte homens, todos
negros e entre 15 e 35 anos (REIS, 2005).
24
http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1285942-testemunhas-da-chacina-do-calabetao-sao-ouvidas;
http://www.redecontraviolencia.org/Documentos/191.html; http://www.global.org.br/blog/chacina-do-calabetao-
e-denunciada-a-onu/; http://www.global.org.br/blog/chacina-do-calabetao-na-bahia-e-denunciada-a-onu/;
http://www.palmares.gov.br/?p=2237;
25
http://www.correio24horas.com.br/detalhe/salvador/noticia/suspeito-de-participar-de-chacina-no-bairro-da-
paz-e-preso-em-forum/?cHash=90ef91a45840af4bdd439d6032ee0980
26
http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/08/chacina-em-festa-de-aniversario-mata-seis-em-salvador-e-deixa-2-
feridos.html
27
A chacina do Cabula teve grande repercussão no Estado, não apenas pelo horror causado pelo alto número de
mortos, mas também pela declaração da pelo Governador do Estado, Rui Costa, ao comparar a atuação da polícia
com a de um artilheiro em frente ao gol: "Segundo Rui Costa é preciso, em poucos segundos, "ter a frieza e a
calma necessárias para tomar a decisão certa". "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns
segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol", comparou. "Depois que a jogada termina,
se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na
televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado
daquele outro, a bola teria entrado", continuou." (Fonte: <http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/e-
como-um-artilheiro-em-frente-ao-gol-diz-rui-costa-sobre-acao-da-pm-com-treze-mortos-no-
cabula/?cHash=29aec7dc0780c803119bd08a679425a9>). Posteriormente, ainda o "julgamento-relâmpago" de
múltiplos réus em uma caso com múltiplas vítimas, com a absolvição de todos os envolvidos sem que o caso fosse
levado sequer ao Tribunal do Júri, serviu para agravar a sensação de desamparo e revolta dos populares (Fonte:
<http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/justica-absolve-pms-envolvidos-na-morte-de-12-pessoas-no-
cabula/?cHash=bde438611e0dd947cdd39addea098de4>;
<http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/25/politica/1437834347_077854.html>).
18
de Segurança Pública (2016) a polícia baiana é a terceira que mais mata em números absolutos28
e a sétima em números relativos29, em comparação aos demais Estados da federação30.

Com base em dados como esse, Ana Flauzina (2008) afirmará a existência de um
verdadeiro projeto genocida do Estado brasileiro, racialmente orientado31. No mesmo sentido,
para Darcy Ribeiro (2010), o Brasil é historicamente, “um moinho de gastar gentes”32, orientado
por uma política econômica genocida, a “matança intencional do povo brasileiro, que é o que
está em curso” (p. 37). Nesse contexto, acredita-se que a prática judicial é um campo possível
de observação para ampliar as possibilidades de compreensão do problema.

Busca-se interligar as práticas discursivas presentes nas decisões judiciais com análises
teóricas mais amplas sobre a questão criminal no Brasil e em Salvador, na tentativa de
compreender o papel que a dogmática e a técnica jurídica – consubstanciadas na prática judicial
– têm cumprido: para além das funções que declaradamente dizem cumprir, elas possuem
também importantes funcionalidades ocultas e não ditas. Este papel não declarado,
acompanhando o recrudescimento penal vivido no país nos últimos anos, tem se mostrado de
forma cada vez mais explícita e o processo e o direito penal que deveriam ser barreiras ao
exercício do poder punitivo estatal, passam cada vez mais a ocupar o lugar de "mecanismos
agregadores de beligerância" (CARVALHO, 2016, p. 119)

No caso dos crimes de tráfico de drogas, esta lógica parece estar ainda mais reforçada
em razão do papel de “inimigo” da sociedade atribuído a todos aqueles que podem se enquadrar
no perfil de “traficante” (BOITEUX et al, 2009). Além disso, a intencionalmente falha
diferenciação típica entre usuário e traficante acentua a distinção entre consumidores falhos e
não-falhos: a classificação em uma ou outra categoria parece se basear em critérios como renda,
classe social e/ou cor (BOITEUX, 2010). Compreender os discursos judiciais, por conseguinte,
me pareceu um caminho possível para agregar elementos que auxiliem na análise da política
criminal de drogas no Brasil.

28
Foram computadas 299 mortes em 2015; Rio de Janeiro registrou 645 mortes e São Paulo 848, no mesmo período
(FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2016, p. 17).
29
A Bahia registrou 2,0 mortes por policias por 100 mil habitantes, ficando atrás de Goiás (2,1), Pernambuco (2,2),
Pará (2,2), Rio Grande do Norte (2,2), Alagoas (2,9) e Rio de Janeiro (3,9).
30
Os jovens negros das áreas periféricas da capital baiana têm sido alvos de uma política duramente repressiva,
que tem sido por vezes denunciada como genocida (REIS, 2005). Nesse sentido, Ana Flauzina (2008) também
denuncia o caráter genocida da política criminal brasileira.
31
A questão do genocídio será desenvolvida no último tópico do segundo capítulo.
32
“(...) o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios.
Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços
brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.” (RIBEIRO,
2010, p. 25).
19
1.2 Da Criminalidade à Criminalização

Este trabalho toma como base teórica a Criminologia Crítica, afirmação ampla, que
pouco ou nada quer dizer, quando falamos “deste movimento tudo menos que homogêneo do
pensamento criminológico contemporâneo” (BARATTA, 2011, p.159), por isso tratarei aqui
de delinear onde este estudo se posiciona.

A Criminologia tradicional situa-se no paradigma etiológico e tem a busca das causas


do crime como sua principal característica. É apresentada como um saber acessório ao Direito
Penal, o que, entretanto, não é por acaso: por não ser capaz de autonomamente definir seus
objetos de estudo, torna-se subserviente aos interesses do Direito Penal sem ter a possibilidade
de questioná-lo. Seriam as correntes criminológicas que "não questionam o poder"
(ZAFFARONI, 1988), ao deixar de fora do seu objeto de estudo não apenas o direito penal,
mas as leis penais e o sistema penal como um todo, tomando como objeto somente o “crime” e
o “criminoso”, ambos ontologicamente considerados.

Começo, então, por dizer que oriento o meu olhar neste trabalho a partir de um discurso
criminológico que não quer legitimar o poder punitivo, mas compreendê-lo, para dar
visibilidade às suas funções ocultas e, por fim, poder desestabilizá-lo e deslegitimá-lo. Com as
rupturas "sem solução de continuidade" (BARATTA, 2011) ocorridas durante um longo tempo
“(...) a criminologia estende seu âmbito ao ‘sistema penal’ e com isso põe em evidência o
funcionamento seletivo do sistema penal, o classismo, o racismo, sua irracionalidade quanto
aos fins que lhe assinala o discurso jurídico e, por fim, a sua íntima conexão com o poder”
(ZAFFARONI, 1988, p. 8).33

Possivelmente o marco inicial de uma ruptura com a criminologia tradicional foi dado
por Georg Rusche34 com a obra "Punição e Estrutura Social" que começou a ser escrita na

33
Tradução nossa; no original: "(...) la criminologia extiende su ámbito al 'sistema penal' y con ello pone de
manifiesto el funcionamento selectivo del sistema penal, el clasismo, el racismo, su irracionalidad em cuanto a los
fines que le asigna el discurso jurídico y, en definitiva, la intíma conexión con el poder." (ZAFFARONI, 1988, p.
08)
34
Antes dele, dois outros autores podem ser citados como tendo feito aproximações marxistas da questão criminal:
William Bonger, que, em 1905, pesquisou a relação entre criminalidade e condições econômicas (BATISTA, V.,
2011), e Evgeny Paschukanis que “foi o crítico mais radical do ponto de vista jurídico, entendendo as leis penais
como falsa consciência e fetichismo do capitalismo.” (BATISTA, V., 2011, p. 85). Ambos tiveram destinos
trágicos: o primeiro se suicidou com a invasão da Holanda pelos nazistas e o segundo foi fuzilado nos anos 1930
na URSS (ANITUA, 2008). É importante destacar ainda a contribuição de dois outros autores da Escola de
Frankfurt: Franz Neumann e Erich Fromm, ainda pouco conhecidos no Brasil em relação as suas contribuições
sobre a questão criminal.
20
década de 1930.35 Neste trabalho, o autor propôs uma análise sócio histórica e estrutural do
poder punitivo, associando as penas aos modelos econômicos de modo de produção36, a partir
de uma análise marxista, tendo como base a teoria crítica da Escola de Frankfurt37.

Nesse sentido, é importante destacar a influência da Escola de Frankfurt e das “teorias


críticas” para a conformação do que viria a ser conhecido como “Criminologia Crítica”. O
termo "teoria crítica" aparece com Max Horkheimer em 1937, na "Revista de Pesquisa Social"
publicada pelo "Instituto de Pesquisa Social" ligado à Universidade de Frankfurt (NOBRE,
2004). Este instituto - que ficou conhecido como "Escola de Frankfurt" - tinha como objetivo
desenvolver pesquisas que tinham como base comum as ideias de Karl Marx. A teoria
apresentada por Horkheimer tem como eixo central procurar desconstruir a separação - nem um
pouco ontológica ou neutra - entre teoria e prática.

A partir do "diagnóstico do presente" - ver as coisas como elas são - seria possível,
então, fazer um prognóstico do futuro - como as coisas deveriam/poderiam ser -, a partir da
ideia marxiana de que o capitalismo imporia uma série de obstáculos à realização das ideias de
"liberdade" e "igualdade" - que ele mesmo cria - e que só seriam realizáveis com a superação
das classes sociais. Nessa perspectiva, só seria possível de fato mostrar "como as coisas são" a
partir de como elas "deveriam ser" (NOBRE, 2004), com a importante ressalva de que:

(...) não se trata de um ponto de vista utópico, no sentido de irrealizável ou


inalcançável, mas de enxergar no mundo real as suas potencialidades
melhores, de compreender o que é tendo em vista o que ele traz embutido em
si. (NOBRE, 2004, p. 9-10)
A análise do existente na teoria crítica permite ver "as coisas como são" como obstáculos
à emancipação da dominação vigente, se propondo a buscar oportunidades através de
tendências emancipatórias nessa realidade (NOBRE, 2004). Assim, se mostra indissociável a

35
A concepção original da obra é de Georg Rusche que publicou sua tese principal ("Mercado de trabalho e
execução penal") em 1933, na conceituada Revista do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt.
Já com boa parte dos colaboradores da Escola de Frankfurt exilados nos EUA decidiu-se pela publicação da obra
em inglês e ficou a cargo de Otto Kirchheimer as análises mais recentes, localizadas na parte final do livro
(NEDER, 2004). Rusche viria a se suicidar no exílio (BATISTA, V., 2011).
36
“(...) o desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique inaplicável.
Somente um desenvolvimento específico das forças produtivas permite a introdução ou rejeição de penalidades
correspondentes.” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 20-21)
37
Destaque-se que sua obra só seria efetivamente lida a partir da década de 60, com a retomada do texto por
Kirchheimer nos EUA (BATISTA, V., 2011). O trabalho destes autores teria um grande impacto na obra de Michel
Foucault, merecendo até um destaque expresso em “Vigiar e Punir”, que dizia que: “Do grande livro de Rusche e
Kirchheimer podemos guardar algumas referências essenciais.” (FOUCAULT, 1987, p. 27).
21
teoria - intensamente contextualizada e historicizada38 - de uma prática efetivamente
emancipatória.

Nesse sentido, a teoria crítica é o estudo das estruturas sociais na sociedade capitalista
e dos obstáculos à sua transformação. Ela pode ser aplicada em diferentes campos de saber das
ciências humanas - ciência política, economia, direito, sociologia, etc... -, tendo-se sempre em
conta a necessidade de um "materialismo interdisciplinar": o campo escolhido deve levar em
conta os conhecimentos produzidos nos outros campos para que nunca se perca de vista a
importância do todo para as análises no campo da teoria crítica.

Em meio ao desenvolvimento da teoria crítica em diversos campos do conhecimento,


do aparecimento da Sociologia Radical e dos movimentos de lutas emancipatórias por parte das
"minorias marginais", "não era difícil que aparecessem as primeiras críticas ao sistema de
controle estabelecido pela ordem social questionada." (BERGALLI, 2015, p. 268). Nesse
contexto, é que aparecem as primeiras experiências da Criminologia Crítica.

Entretanto, é com o interacionismo simbólico que "este conjunto de correntes"


denominadas criminologia crítica, radical ou nova (ZAFFARONI, 1988), efetivamente se inicia
com "um autêntico salto qualitativo na disciplina" (BERGALLI, 2015, p. 265). Esses
movimentos que começam a se contrapor à criminologia tradicional irão compor o que
Zaffaroni (1988) chamaria de "anticriminologia" em uma espécie de paralelo com a
antipsiquiatria, movimentos que encontram diversos pontos em comum, entre eles a dura crítica
às instituições totais e a busca do seu fim.

O interacionismo se insere no paradigma do labeling approach ou rotulacionismo


(BARATTA, 2011) que, de acordo com Aniyar de Castro (1983), pode ser incluído dentro do
gênero “Criminologia da Reação Social”, o qual estaria em contraposição à criminologia
tradicional (e incluiria, inclusive, a Criminologia Crítica)39. De acordo com Baratta (2011) as
pesquisas que se inserem na perspectiva do rotulacionismo se orientam em duas direções: uma
mais focada nos efeitos do etiquetamento de “criminoso” no indivíduo, e outra que tem como
enfoque o estudo das agências de controle social (e, portanto, da distribuição de poder).

38
"Na medida em que o conceito de teoria é independentizado, como que saindo da essência interna da gnose (...),
ou possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria coisificada (...) e, por isso,
ideológica." (HORKHEIMER, 1983, p. 121)
39
Nesta obra, Lola Aniyar de Castro (1983) faz um importante estudo sobre o que ela abarca em uma mesma
categoria que ela chama de “Criminologia da Reação Social”, apresentando as sucessivas rupturas (desde o
interacionismo – alemão e americano -, passando pelo trabalho de Austin Turk, a tese de Denis Chapman até os
movimentos radicais) que culminaram com a Criminologia Crítica ou “Nova Criminologia”.
22
Entretanto, mesmo esse segundo enfoque ainda se encontra nas chamadas “teorias de médio
alcance”, por se proporem apenas a descrever as relações de poder e não a sua efetiva
interpretação, e ao se restringir a superfície empiricamente verificável dos fenômenos, sem se
aprofundar para a observação das desigualdades objetivas e estruturais (BARATTA, 2011).

A "passagem da criminologia liberal à criminologia crítica" (BARATTA, 2011, p. 159)


se tornará possível a partir da conjuntura específica da década de 60, com os intensos
movimentos de luta de jovens, mulheres e negros, as reações antimilitaristas, a exemplo dos
jovens que se opunham a Guerra do Vietnã nos EUA40, e com a inserção do enfoque marxista
sobre a questão criminal.

Desse modo, embora o sistema penal não tenha sido abordado detidamente por Marx, é
também ele um importante aspecto da estrutura social, bem como um obstáculo à emancipação,
que merece sim ser analisado a partir da perspectiva marxiana e da aplicação do método do
materialismo histórico (ANIYAR DE CASTRO, 1983). Vale destacar que, na década de 70, -
quando a criminologia crítica aparece de fato como tal em uma roupagem assumidamente
marxista41 - muito se discutiu sobre ser a criminologia – e o seu objeto, a questão criminal –
compatível com a estrutura conceitual do marxismo.

Um importante teórico inglês do marxismo Paul Q. Hirst defendia a completa


incompatibilidade entre elas42. De acordo com este autor, crime e desvio não poderiam figurar
dentro do campo científico marxista que possui objetos específicos: “o modo de produção, a
luta de classe, o estado e a ideologia” (HIRST, 1980, p. 251). O autor traz ainda o conceito de
“lumpenproletariado” formado pelos “criminosos” e “mendigos”, que teriam “interesses de
classe (...) diametralmente opostos àqueles dos trabalhadores” (p. 267) e que “ganham sua vida
recolhendo às migalhas das relações capitalistas de troca, e sob o socialismo eles seriam
colocados fora da lei ou forçados a trabalhar” (p. 267-268)

Uma resposta a ele foi então formulada por Ian Taylor e Paul Walton (1980), tendo
como eixo fundamental de discordância com a própria noção de marxismo apresentada por
Hirst, que seria “muito controvertida” (p. 288) e baseada em uma “estreita concepção de

40
“(...) os protestos colocariam em evidência as injustiças e aberrações aos direitos humanos que, na realidade,
eram uma forma de manter um tipo de sociedade baseada nos delitos do capitalismo industrial, bélico e
farmacêutico.” (ANITUA, 2008, p. 571)
41
Nesse sentido, é relevante destacar os trabalhos “A Nova Criminologia” e “Criminologia Critica”, ambos
organizados por Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young, publicados respectivamente em 1973 e 1975.
42
“Não existe ‘nenhuma teoria marxista do desvio’, nem desenvolvida nem que possa ser desenvolvida dentro do
marxismo ortodoxo.” (HIRST, 1980, p.250)
23
ciência” (p. 289). O marxismo de Taylor e Walton “(...) estaria preocupado em assumir, e
revelar, a natureza ideológica da ciência social e, nesta batalha, convencer pessoas a lutarem
contra a opressão, em vários aspectos” (TAYLOR, WALTON, 1980, p. 289). Portanto, estudos
sobre a sexualidade, a família, a escola e o crime seriam compatíveis com um “enfoque
marxista”, contrapondo-se à expressa afirmação de Paul Hirst. Apresentam então uma síntese
do que pensam como uma criminologia crítica:

O que muitos teóricos radicais do desvio, marxistas e outros, estão tentando


fazer é mover a criminologia para fora de um enfoque sobre a “criminalidade”
do pobre, a patologização do comportamento “desviante” em categorias
derivadas da biologia, psicologia ou sociologia positivista, e abolir a distinção
entre o estudo do desvio humano e o estudo do funcionamento de Estados, e
de ideologias de classes dominantes, como um todo. (TAYLOR, WALTON,
1980, p. 288)
Assim, sustentam a possibilidade de se construir novas posições teóricas “através de
uma leitura de Marx, e aquela seção da população que está sentindo a violência da opressão, na
forma de sanção criminal” (p. 291).

Ignorar as funções cumpridas pelo sistema penal é ignorar a dupla função que ele
cumpre: a primeira – e mais visível - de repressão direta dos “indesejados”43; a segunda –
certamente mais sutil – é sua atuação nos processos de socialização buscando formar consensos
(ANIYAR DE CASTRO, 2005), de modo a manter a ordem estabelecida. A separação entre
“bons” e “maus” pobres orquestrada pela mídia e pelas agências de controle é talvez uma das
faces mais perversas dessa função, quando nos jornais televisivos vemos mães, irmãs, filhas e
companheiras devastadas apresentando carteiras de trabalhos e boletins escolares dos seus
mortos, alvos da polícia44.

Não se pode ignorar, então, a afirmação de Aniyar de Castro (1983) quando diz que a
“escassa criminologia que fez Marx era antimarxista.” (p. 151) No contexto brasileiro,

43
O sistema penal trabalha com “alvos preferenciais”, os praticantes das “ilegalidades populares” de que fala
Foucault (1987). Essas figuras variam espaço e temporalmente, mas no Brasil o perfil desse alvo é claro e tem sido
constante ao longo da nossa história – com alguns momentos excepcionais -: os jovens, negros e pobres, e que
hoje habitam as periferias das grandes cidades.
44
Apenas a título de exemplo trazemos algumas reportagens onde essa questão fica evidente: "Família diz que
jovem (...) era entregador de pizza." (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/familia-diz-que-jovem-
morto-na-coroa-no-rio-era-entregador-de-pizza.html); “Ele sempre falava que queria ser bombeiro. Ele estudava o dia
inteiro, participava de projeto na escola, só tirava notas boas." (http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2015/04/mae-de-morto-no-alemao-acusa-nunca-vou-esquecer-o-rosto-do-pm.html); "Pai de uma
das vítimas, Carlos Henrique diz que o filho Carlos Eduardo tinha acabado de concluir um curso de Petróleo e Gás e se
preparava para tentar concurso para a Marinha." e "Era um menino extremamente carinhoso e estudioso."
(http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/cinco-jovens-sao-mortos-no-rio-e-parentes-das-vitimas-culpam-
pm.html)
24
destaque-se ainda a excelente assertiva de Vera Batista (2011) sobre o lugar ocupado pela classe
trabalhadora:

No Brasil, a classe trabalhadora sempre foi constituída pelo sentido


pejorativo que a palavra lumpen (farrapo) significava. O proletariado
organizado, acalentado na densa e vigorosa obra de Marx como aquela força
social capaz de deter a barbárie do capital, era concentrado no parque
industrial de algumas grandes cidades brasileiras, em especial São Paulo. Mas
nossa força de trabalho é constituída também pelos sobreviventes da
colonização exterminadora, pelos escombros das civilizações indígenas, dos
africanos e seus descendentes, dos cafuzos, mamelucos, polacas, francesas da
belle époque, gatunos e demais descartáveis.45 (p. 83)

Desse modo, o enfoque marxista sobre a questão criminal foi essencial para permitir um
giro importante no campo da criminologia, conforme já dissemos. É a partir da Criminologia
Crítica e, portanto, deste enfoque marxista que se repolitizou a questão criminal (BATISTA,
V., 2011), que passa então a ser encarada como um objeto muito mais complexo, histórico, e
inserido em uma estrutura social, sendo que todos esses elementos passam a ser indispensáveis
para uma análise orientada pela criminologia crítica. Dessa forma, não se trata de estudar a
questão criminal no Brasil – por exemplo-, mas estudar o Brasil através da questão criminal
(BATISTA, V., 2011).

A Criminologia Crítica seria, na concepção de Baratta (2011), uma teoria de longo


alcance, justamente por avançar o olhar – em relação ao paradigma do labeling approach – e
enxergar as estruturas sociais e as relações de poder por trás da rotulação de determinadas
condutas e indivíduos; mais do que o rótulo em si, se interessa também pelo próprio poder de
rotular. É ela ainda que nos permite compreender as funções ocultas cumpridas pelo sistema
penal por trás das funções declaradas.

Apesar da heterogeneidade do movimento da criminologia crítica, conforme pontua


Baratta (2011), dois elementos são essenciais como demarcadores da ruptura com o paradigma
anterior: o deslocamento do estudo do autor do delito para o estudo das "condições objetivas,
estruturais e funcionais, que estão na origem do fenômeno do desvio" (BARATTA, 2011, p.
160), e o deslocamento da busca das "causas" do desvio para "os mecanismos através dos quais

45
Ainda no Brasil, destaque-se que aqueles que em uma concepção marxiana dura e descontextualizada seriam
rotulados como “lumpenproletariado” protagonizaram algumas das principais lutas de resistência e tentativas de
subversão da ordem estabelecida, a exemplo das inúmeras revoltas organizadas pelos/as negros/as escravizados/as
entre os séculos XVI e XIX. Para uma compreensão mais aprofundada autores como os historiadores João José
Reis e Joel Rufino dos Santos, por exemplo, possuem uma vasta obra sobre o assunto.
25
são criadas e aplicadas as definições de desvio e da criminalidade e realizados os processos de
criminalização." (idem).

A Criminologia Crítica se faz essencial para o que pretendo com este trabalho
principalmente em quatro frentes. A primeira é a possibilidade de uma compreensão
historicizada do poder punitivo e da questão criminal como um todo. Opondo-se à perspectiva
a-histórica e universalizante do positivismo, esta busca antes de tudo contextualizar, historicizar
e, mais que tudo, desontologizar. O poder punitivo tampouco é um poder isolado e a-histórico
e a sua compreensão pressupõe um olhar macro sobre a sociedade em que está inserido. No
contexto específico de um trabalho pensado desde a América Latina, ressalte-se, o resgate
histórico se faz ainda mais importante: romper com a ideia de que não possuímos um passado
e com isso garantir a nossa efetiva libertação da condição de dominação ainda existente entre
centro e periferia.

Em uma segunda frente, será essencial o conceito de “seletividade”, trabalhado e


desenvolvido pela Criminologia Crítica. Essa seleção dos indivíduos operaria em duas etapas
de criminalização: uma primária, momento em que ocorre a seleção dos "bens jurídicos" a
serem "protegidos" pelo Direito Penal, que seriam supostamente os bens jurídicos mais
importantes para toda a comunidade; e uma secundária, "(...) a seleção dos indivíduos
estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente
sancionadas" (BARATTA, 2011, p. 161), a partir da atuação concreta das agências do sistema
penal.

Na terceira frente, a Criminologia Crítica permite desvelar as funções ocultas (por trás
das declaradas) dos discursos punitivos. Essa concepção é essencial para ajudar a "dissolver as
névoas de ideologia" dos discursos, seja em uma análise macro - as políticas criminais e a
legislação - seja em uma perspectiva micro com as decisões judiciais que analisaremos.

Por fim, na quarta frente, é a partir da Criminologia Crítica que se torna possível tomar
o sistema penal como um objeto de um estudo criminológico, entendido de forma ampla, que
inclui, inclusive, a própria dogmática penal como objeto, conforme será apresentado no terceiro
capítulo.

Compreender a estrutura social e, ao mesmo tempo, usar a análise microssociológica


para entender os elementos da criminalização secundária seria, de acordo com Melossi (2012),
um problema central para a criminologia hoje e o que tentaremos fazer neste trabalho. Usar,
portanto, uma perspectiva microssociológica, por meio da pesquisa empírica, sem perder de
26
vista a estrutura social como um todo em que a questão criminal se insere. Conforme pontuou
Baratta (2011), considerar como antíteses as análises micro e macrossociológicas como
princípio metodológico na sociologia jurídica é um "perigoso equívoco".

1.3 Historicizando a Questão Criminal

1.3.1 As Demandas por Ordem no "Lado de Cá" da Margem

Conforme já dito, a historicização da questão criminal é uma das principais


contribuições operadas pela Criminologia Crítica. Ao desontologizar o crime e o criminoso,
essa vertente criminológica abriu espaço para a compreensão da questão criminal a partir da
estrutura social, rompendo com os modelos que tinham no próprio fenômeno criminal o início
e o fim de sua análise.

Entretanto, a criminologia crítica é um saber historicamente construído nos países


centrais, por isso precisamos contar a história da nossa margem, da periferia (ZAFFARONI,
1988). Essa contextualização é importante, pois, em um trabalho que pretende falar sobre
aspectos ligados diretamente à questão criminal no Brasil contemporâneo, não é possível
compreender o que ocorre hoje como um fato isolado, mas é necessário pensar a história como
uma “longa duração” (BATISTA, 2003a); ou seja, só é possível entender o hoje, entendendo o
passado, inclusive porque a maneira de “pensar e sentir a questão criminal” é uma grande
permanência em nossa história, que encontra suas origens no genocídio colonizador
(BATISTA, 2016a).

Será feito um resgate a partir do período colonial-escravocrata por entender que é já


desde este momento que começa a se conformar o poder punitivo contemporâneo no Brasil.
Angela Davis46 afirma que a política de encarceramento, hoje no Brasil, e nos EUA, bem como
a violência policial, expressam um racismo estrutural, que encontra sua raiz no fracasso da
abolição da escravatura nestes países. Semelhantes são as constatações de Nilo Batista (2011)
quando pontua que as “práticas escravistas produziram no Brasil um “estilo” punitivo que
sobreviveria à abolição do escravismo, como se o próprio escravismo se prorrogasse numa
exploração capitalista igualmente controladora e dura” (p. 12)47.

46
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/09/1816391-brasil-e-eua-fracassaram-em-abolir-
escravidao-afirma-angela-davis.shtml.
47
Também Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Starling (2015), se posicionam de forma semelhante: “Como se fosse
um verdadeiro nó nacional, a violência está encravada na mais remota história do Brasil, país cuja vida social foi
marcada pela escravidão. Fruto da nossa herança escravocrata, a trama dessa violência é comum a toda a sociedade,
27
Assim, é necessário compreender as implicações desse período hoje, com todas as
rupturas e permanências ocorridas desde então. O conceito trabalhado por Pavarini (2002) de
“demandas por ordem” é relevante para auxiliar no que se está fazendo nesse trabalho. De
acordo com este autor, para compreender o objeto-criminologia precisamos compreender as
“demandas por ordem” da nossa conformação histórico-social. Essas demandas por ordem, não
são demandas meramente punitivas, mas têm ligação direta com a ordem socioeconômica em
vigor.

Queremos articular tal conceito com outro proposto por Eugênio Raul Zaffaroni (1988),
ao pensar a criminologia “da nossa margem”. Para ele, a criminologia se confunde com política
criminal, já que esta deve ser compreendida como “(...) a ideologia política que orienta o
controle punitivo.” (p. 21)48. Nesse sentido, em um controle penal genocida como o existente
no contexto latino-americano, torna-se necessária uma resposta marginal (ZAFFARONI,
2001). A morte acompanha a história do poder punitivo da nossa margem desde os tempos
coloniais, perpetradas por agentes do Estado em ditaduras ou democracias constitucionais.
Nossos "fenômenos", como afirmou Zaffaroni (1988), "são qualitativa e quantitativamente
diferentes daquele que procuram explicar os marcos teóricos ordenadores dos países centrais.”
(p. 2)49.

A Criminologia Crítica "por motivos imanentes à metodologia que lhe é própria, (...)
deve necessariamente construir-se em e para cada sociedade, em cada momento histórico, em
cada conjuntura específica." (ANIYAR DE CASTRO, 2005, p. 21). E, na América Latina, pela
constituição específica de violência do sistema penal isso se faz ainda mais imprescindível: é
necessário buscar as demandas de ordem que orientaram – e orientam – as nossas políticas
criminais. As práticas discursivas judiciais – objeto deste trabalho - só poderão ser
compreendidas de fato se tal questão for levada em conta.

O que me parece um eixo central quando falamos das demandas por ordem no Brasil é
que estamos falando de um genocídio em curso. Um genocídio que se iniciou em 1500 e não
mais parou. Conforme alerta diversas vezes Zaffaroni (1988, 2001, 2012), o nosso sistema penal
é genocida. Ana Flauzina (2008) afirmará ainda que o genocídio é racialmente orientado. A

se espalhou pelo território nacional e foi assim naturalizada. Se a escravidão ficou no passado, sua história continua
a se escrever no presente. A experiência de violência e dor se repõe, resiste e se dispersa na trajetória do Brasil
moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação.” (p. 14).
48
Tradução nossa; no original: “ideologia política que orienta al control social punitivo.” (grifos no original).
49
Tradução nossa; no original: “son cualitativa y cuantitativamente diferentes de los que procuran explicar los
marcos teóricos ordenadores de los países centrales."
28
partir disso – e notando a carência de trabalhos criminológicos que tomem isso como central –
a autora propõe “tomar o racismo como variável substantiva da constituição do sistema penal
brasileiro.” (p. 18). A intensa violência de hoje nos países marginais não é por acaso, e as altas
taxas de prisionalização e mortes encontram suas raízes na nossa própria história.

1.3.2 Um Poder Punitivo à Brasileira

O século XIII representa um período importante para os estudos sobre o poder punitivo;
é o século dos primórdios do capitalismo, dos primeiros esboços dos Estados modernos e o
começo do processo de centralização da Igreja Católica (no qual a inquisição assumirá um papel
central). Embora todos esses elementos sejam fundamentais para a compreensão da
configuração do poder punitivo moderno – inclusive no Brasil -, o breve panorama histórico
aqui construído será iniciado no século XVI.

Nesse sentido, é importante destacar a centralidade das colônias no processo de


acumulação de capital dos países centrais50. O capitalismo em sua primeira fase – mercantil –
se configurou a partir dessa intensa relação de exploração51. No Brasil, os primeiros habitantes
externos foram mercadores, agraciados com terras, com o objetivo de acumular o pau-brasil e
explorar aquele território até então desconhecido pelos portugueses. Para isso, foi instaurado o
modo de produção escravista - "inexoravelmente acompanhado de um direito penal doméstico"
(ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011, p. 412). As especificidades exigidas pelo modo de
produção e a dificuldade de implantação da burocracia portuguesa nas terras brasileiras
(ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011)52 levou, portanto, a que as primeiras experiências do
poder punitivo europeu aplicado na colônia fossem de caráter privado.

50
“(...) o Brasil colônia foi um entreposto comercial, puramente capitalista, quando a Europa ainda se debatia com
as limitações impostas pelo regime feudal, que custaria a morrer de todo.” (SINGER; LOUREIRO, 2016, p.09)
51
A expansão comercial e demográfica vivenciada na Europa a partir do século XI começou a dar sinais de
esgotamento no século XIII; a fome (questões climáticas levaram a escassez agrícola, em especial no início do
século XIV), a peste (a peste negra ocorrida entre os anos de 1347-1351 foi responsável por uma importante
retração demográfica na Europa, número que se avalia em 1/3 da população da época) e as guerras (com destaque
para a Guerra do Cem Anos entre França e Inglaterra) marcam o fim da Idade Média, abrindo espaço para um
novo modo de produção que já não cabia no modelo medieval (AQUINO et al, 2006). A necessidade de expandir
as áreas comerciais, ampliar o número de consumidores e aumentar a acumulação de matérias primas e metais
preciosos, fazem da expansão comercial para novos territórios uma via essencial (AQUINO et al, 2006).
52
Não desconhecemos, entretanto, a existência de experiências públicas de punição - tais como a implantação do
Tribunal da Relação na Bahia entre os anos de 1609-1626, as Ouvidorias-Gerais existentes no Estado do Brasil,
repartição do Sul e Estado do Maranhão ou a experiência holandesa em algumas regiões do nordeste de
centralização da punição -, embora as práticas privadas de punição tenham se mantido de maneira destacada no
país até ao menos o século XIX (ZAFFARONI et al, 2011). Também não desconhecemos as tentativas de
29
Os donos de terra - com destaque para os capitães donatários - eram os responsáveis
pela aplicação do poder punitivo, por autorização direta da coroa portuguesa53 (ZAFFARONI,
BATISTA et al., 2011; AQUINO et al, 2006). E a forma extremamente violenta da aplicação
desse poder era uma característica central: enquanto Foucault (1987) retrata a passagem do
suplício para a disciplina a partir do século XVI, no Brasil tínhamos a centralidade do corpo na
aplicação das penas. Eram açoites, mutilações, queimaduras e mortes (ZAFFARONI,
BATISTA et al, 2011; SANTOS, 2015), para aqueles considerados “menos humanos”54.
Destaque-se ainda que a lógica das penas cruéis – inclusive de morte - segue vigente ainda hoje,
“tanto no exercício de poder policial quanto nas masmorras prisionais brasileiras” (ANDRADE,
2012a, p. 289)

Também é relevante pensar a colônia como a maior das “instituições de sequestro” 55,
conforme propõe Zaffaroni (2001)56. Nas colônias, o controle total era aplicado a uma massa
de indivíduos muito maior do que as sonhadas por escolas ou fábricas; tratava-se de uma
população inteira que precisava conformar a sua vida a um outro modo de existência,
legitimando, inclusive, o genocídio de diversas populações, fossem elas os povos originários
ou os africanos escravizados57. Se nos países centrais os desviantes eram minoria e, portanto,
podiam ser contidos em instituições de sequestro menores, nas colônias, com uma maioria de

centralização do poder público, através, por exemplo, da instituição do Governo Geral de Tomé de Souza,
instituindo a primeira capital da colônia com a fundação de “São Salvador” (AQUINO et al, 2006).
53
Note-se, entretanto, que os capitães donatários estavam sujeitos ao poder do Rei e, em especial, da inquisição,
como ilustra o caso de Pero do Campo Tourinho, capitão donatário que em 1543 foi levado de volta a Portugal
para ser julgado pela Inquisição – acusado de blasfêmia e desrespeito aos dias santificados – e, mesmo absolvido,
ficou proibido de voltar ao Brasil (AQUINO et al, 2006).
54
“Havia inclusive manuais – verdadeiros modelos de aplicação de sevícias pedagógicas, punitivas e exemplares
– que instruíam, didaticamente, os fazendeiros sobre como submeter os escravizados e transformá-los em
trabalhadores obedientes. Um exemplo regular era o famoso quebra-negro, castigo muito utilizado no Brasil para
educar escravos novos ou recém-adquiridos e que, por meio da chibatada pública e outras sevícias, ensinava os
cativos a sempre olhar para o chão na presença de qualquer autoridade.” (SCHWARCZ, STARLING, 2015, p.91)
55
Esse termo foi extensamente trabalhado por Foucault (2002) para caracterizar instituições como fábricas,
escolas, prisões e hospitais, que teriam como principal característica comum a busca por um controle total da
existência dos seus habitantes, funcionando a partir do binômio inclusão-normalização (em oposição ao modelo
de reclusão de período anterior). Para Zaffaroni, o filósofo francês teria deixado de considerar aquela que, em sua
opinião, teria funcionado como a maior e mais violenta instituição de sequestro: a colônia.
56
"Não é possível considerar alheio a esta categoria foucaultiana, apesar de sua imensa dimensão geográfica e
humana, um exercício de poder que priva da autodeterminação, que assume o governo político, que submete os
institucionalizados a um sistema produtivo em benefício do colonizador, que lhe impõe seu idioma, sua religião,
seus valores, que destrói todas as relações comunitárias que lhe pareçam disfuncionais, que considera seus
habitantes como sub-humanos necessitados de tutela e que justifica como empresa piedosa qualquer violência
genocida, com o argumento de que, ao final, redundará em benefício das próprias vítimas, conduzidas à 'verdade'
(teocrática e científica)." (ZAFFARONI, 2001, pp. 74-75)
57
Também Euclides da Cunha já em 1902, ao tratar sobre o início do povoamento português nas futuras terras
"brasileiras" afirmava que "O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e
os relapsos" (CUNHA, 2000, p.64) (grifos aditados).
30
“selvagens”, era necessária uma instituição de sequestro que condissesse com tais proporções
(ZAFFARONI, 2001). No mesmo sentido, Schwarcz e Starling (2015) afirmam que:

(...) a escravidão foi mais que um sistema econômico: ela moldou condutas,
definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferenças
fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma
sociedade condicionada pelo paternalismo e uma hierarquia estrita. (p. 96)

No século XIX, a transição do regime colonial para o Império e posteriormente para a


República, e o fim do regime escravocrata, impuseram que se pensassem novas formas de
controle da população58. A revolução do Haiti povoava o imaginário da população branca
gerando o medo nas elites de que uma situação similar acontecesse nas terras brasileiras59,60
(AZEVEDO, 1987; BATISTA, 2003a).

O que fazer com os negros libertos era uma preocupação constante entre os donos do
poder61. As teorias raciais que aportavam no Brasil no século XIX, agregaram-se a esse
arcabouço de modo a legitimar a continuação das práticas discriminatórias. Nesse sentido:

Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação ao mundo


ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade. Negros,
africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos – “classes perigosas” a
partir de então – nas palavras de Silvio Romero transformavam-se em
“objetos da sciencia” (...). Era a partir da ciência que se reconheciam
diferenças e se determinavam inferioridades. (SCHWARCZ, 2012, p. 38)
(grifos nossos)

58
"(...) os livros publicados neste período de previsões do fim da escravidão deixam entrever a ansiedade dos
'homens bons' do Brasil em regularizar gradualmente as relações sociais entre brancos e negros, ou entre
proprietários e não-proprietários, preparando o país para um futuro de trabalho livre, ordem e progresso."
(AZEVEDO, 1987, p.33)
59
"Ora, perguntavam-se alguns assustados 'grandes' homens que viviam no Brasil de então, se em São Domingos
os negros finalmente conseguiram o que sempre estiveram tentando fazer, isto é, subverter a ordem e acabar de
vez com a tranquilidade dos ricos proprietários, por que não se repetiria o mesmo aqui? Garantias de que o Brasil
seria diferente de outros países escravistas, uma espécie de país abençoado por Deus, não havia nenhuma, pois
aqui, assim como em toda a América, os quilombos, os assaltos às fazendas, as pequenas revoltas individuais ou
coletivas e as tentativas de grandes insurreições se sucederam desde o desembarque dos primeiros negros em
meados de 1500." (AZEVEDO, 1987, p.35)
60
Nesse sentido, as inúmeras revoltas, manifestações e rebeliões que marcam a história do país, contribuíam ainda
mais para aumentar o estado de tensão. A Revolta dos Malês, por exemplo, ocorrida em 1835 em Salvador causou
temor nos brancos do país: “Uma atmosfera de medo envolveu a Bahia após a derrota da rebelião nas ruas, medo
que orientou a perseguição e a violência contra os africanos. O clima beirava a histeria. ‘A população branca por
pouco escapou de um grande desastre’, comentou o cônsul britânico, John Parkinson, após mencionar que os
senhores de engenho ainda temiam um grande levante no Recôncavo” (REIS, 2003, p.421). É comum a ideia de
que somos um povo pacífico e cordial, como uma forma de mascarar a tensão permanente e omitir as inúmeras
manifestações, revoltas e rebeliões da nossa história (SCHWARCZ; STARLING, 2015).
61
“Nos jornais, nos censos, os dados quantitativos reafirmavam as apreensões teóricas. Enquanto o número de
cativos reduzia-se drasticamente – em 1798, a população escrava representava 48,7% ao passo que em 1872
passava a 15,2% -, a população negra e mestiça tendia a progressivamente aumentar, correspondendo, segundo o
censo de 1872, a 55% do total.” (SCHWARCZ, 2012, p. 18)
31
O positivismo criminológico ocuparia então uma posição central para legitimar o
tratamento diferenciado entre negros e brancos e agudizar os abismos sociais (ZAFFARONI et
al, 2011; BATISTA, 2016a). Nesse sentido, Vera Batista (2016a) destaca que o maior objetivo
dessa corrente criminológica era “a manutenção da ordem social projetada da escravidão para
a República”, mas que, travestida de técnica, encobria “com o fetiche criminal sua natureza
política” (p. 10). Assim é que, na “visão da época, a explicação para a falta de sucesso
profissional ou social dos negros e mestiços estaria na biologia; ou melhor, na raça, e não numa
história pregressa ou no passado imediato.” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 343).

Na busca de descobrir quem seriam os “delinquentes”, a partir da recepção da


criminologia positivista na América Latina, a questão racial se apresentaria como central:
seriam aqueles que não descendiam da “raça” branca, como afirma Rosa Del Olmo (2004):
“Curiosamente, então, a parte patológica seria a maioria da população, em muitos países da
América Latina” (p. 174).

Mesmo os negros livres durante o regime escravocrata viviam sob uma série de
restrições legais e sociais (AZEVEDO, 1987); o fim da escravidão, entretanto, poderia
significar - ao menos formalmente - uma mudança nessas relações. A pena pública que até o
fim da escravidão conviveu com uma pena privada - o direito do senhor de escravos de punir -
(BATISTA, 2006) foi aos poucos tornando-se exclusiva e tinha como função precípua controlar
esse "excesso" de liberdade.

Era necessário organizar a punição pública, até então menos interessante e até mesmo
custosa, pois implicava aos senhores o risco de perderem suas propriedades (BATISTA, 2006)
e é nesse momento que a pena de prisão passa a ocupar posição central (NEDER, 2012). Não é
de se estranhar, nesse contexto, que o Código Penal republicano tenha sido promulgado trinta
anos antes do Código Civil e, inclusive, antes da Constituição62.

As normas jurídicas atuariam, então, como a forma de controlar os "desvios" e ditar a


"normalidade", de modo a organizar a sociedade para perpetuar as relações de dominação, ao
mesmo tempo em que buscava adestrar a população para novas formas de relação de trabalho63

62
"Nesse clima de temor e instabilidade, deu-se a promulgação do Código dos Estados Unidos do Brasil, em 1890.
É oportuno sublinhar o fato de esse instrumento normativo ter sido instituído antes mesmo de outorgada a
Constituição republicana. O fim do regime de trabalhos forçados reclamou prioritariamente um instrumento de
repressão, deixando para segundo plano uma carta de declaração de direitos e princípios que regulamentassem a
vida em sociedade." (FLAUZINA, 2008, p. 82)
63
Já em 1924, baseado em Marx, Pachukanis (1988) afirmava a função cumprida pelo direito penal “na
manutenção da disciplina pública, ou seja, no domínio de classe” (p. 124)
32
(NEDER, 2012). A historiadora Gizlene Neder (2012), ao trabalhar o processo de
ideologização, que acompanha a passagem para o capitalismo na sociedade brasileira, afirma
que a mudança jurídica nesse período: "é fruto do conflito de classes sociais que tentam adequar
as instituições de controle social aos seus fins, impor e manter um sistema específico de relações
sociais." (p. 18).

A República brasileira, assim, embora se fundamente formalmente em certos princípios


do liberalismo, nasceu alicerçada no autoritarismo. Neder (2012) defende que o autoritarismo
no Brasil não foi fruto de um Estado excessivamente forte frente a uma burguesia fraca, mas,
ao contrário, atendeu aos interesses dessa mesma burguesia. Aqui não teria ocorrido uma
revolução burguesa, portanto, que pressuporia uma ruptura com o período anterior, mas uma
"transformação" burguesa (ou transição para o capitalismo pela "via prussiana"). O direito
cumpriria nesse contexto um importante papel64.

O direito penal, destacadamente, teria a relevante função de controle social formal,


instrumentalizando a repressão estatal (NEDER, 2012), de modo a perpetuar a segregação -
racial e social - por outros mecanismos mais sutis, uma vez que a escravidão tinha chegado ao
seu fim (FLAUZINA, 2008).

A Revolução de 1930 representou outro marco importante na sofisticação do discurso


penal (ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011) dessa década em diante, o processo de
centralização - em contraposição ao vigoroso federalismo que vigorava até então - se
intensifica, diminuindo o poder das esferas "privadas" de governadores e coronéis
(FLAUZINA, 2008). Potencializa-se a industrialização, bem como a urbanização. A polícia se
especializa. Em 1940 é publicado o Código Penal, por meio de um decreto-lei, estando ainda
fechado o Parlamento, que ainda hoje está em vigor tendo sobrevivido a cinco constituições e
a uma ditadura civil-militar. Influenciada fortemente pelo tecnicismo e positivismo jurídico,
este Código, de acordo com Flauzina (2008), “caminha de mãos dadas com os propósitos da
democracia racial, à medida que promove a assepsia completa da raça no texto legal” (p. 89).

É nesse mesmo período, portanto, que aparece a “ideologia da democracia racial”, que,
no fundo, funcionou como uma política de invisibilização e silenciamento dos negros
brasileiros, inclusive por grupos de esquerda que acreditavam que “a interação de classe contém

64
“Além de encaminhar o projeto de construção da "nação", o discurso jurídico promove o processo de
ideologização que acompanha a constituição do mercado de trabalho no Brasil. Através do processo de
criminalização, este discurso jurídico encaminha a apropriação da ideologia burguesa de trabalho, aspecto
importante na passagem para o capitalismo na formação histórica brasileira.” (NEDER, 2012, p.65)
33
e esgota a interação racial” (SANTOS, 2015, p. 18). A ideia de que a nossa escravidão foi
“benigna” e de que haveria uma relação harmônica entre as raças, foi extensamente propagada
nesse período (SANTOS, 2015). É relevante apontar, então, como a negação do preconceito e
da discriminação é uma constante na história brasileira65 (SANTOS, 2015).

Posteriormente, é ainda relevante destacar que, em 1964, o Brasil vivenciou um golpe


de Estado que resultou na ditadura civil-militar que duraria 21 anos. Esse período ficou
caracterizado por uma íntima relação entre governo e setor empresarial, orientada por um
projeto econômico que pretendia “facilitar o investimento estrangeiro, reduzir o papel ativo do
Estado e elevar o ritmo de crescimento.” (SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 451).

O período ditatorial se caracterizou por uma especial virulência nos meios repressivos
e pela sofisticação dos aparatos penais, com a criação de uma extensa rede burocrática de órgãos
responsáveis por diferentes momentos de exercício do poder punitivo. Além disso, se a tortura
já era largamente aplicada nas delegacias brasileiras, é na ditadura que ela se torna uma política
de Estado66 (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 460). Aqui também houve um deslocamento
- ainda que provisório e sempre parcial - no alvo preferencial do sistema penal, dos negros para
os "comunistas subversivos".

O fim da Ditadura – uma abertura política “lenta, gradual e segura” – embora tenha
ficado marcado como um “era de direitos” – alcançando o ápice na nossa Magna Carta -, não
alterou de maneira substantiva a truculência punitiva de nossas agências de controle. Sobre isso,
Vera Malaguti Batista (2011) tece as seguintes conclusões:

Na transição da ditadura para a "democracia" (1978-1988), com o


deslocamento do inimigo interno para o criminoso comum, e com o auxílio
luxuoso da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacto a estrutura de controle
social, com mais e mais investimentos na 'luta contra o crime'. E, o que é pior,
com as campanhas maciças de pânico social, permitiu-se um avanço sem
precedentes na internalização do autoritarismo. Podemos afirmar sem medo
de errar que a ideologia do extermínio é hoje muito mais massiva e introjetada
do que nos anos imediatamente posteriores ao fim da ditadura. (p. 134)

65
Alexander (2012), afirma que os EUA vive a era da “colorblindness”, a cegueira de cor, que, de acordo com a
autora, é essencial para a manutenção do viés racista da seletividade penal, justamente por encobrir tal realidade.
66
“No Brasil, a prática da tortura política não foi fruto de ações incidentais de personalidades desequilibradas, e
nessa constatação residem o escândalo e a dor. Era uma máquina de matar concebida para obedecer a uma lógica
de combate: acabar com o inimigo antes que ele adquirisse capacidade de luta. Atuava de maneira metódica e
coordenada, variando em termos de intensidade, âmbito e abrangência geográfica. Nos primeiros anos de ditadura,
o alvo prioritário foram as forças de esquerda que tinham conduzido as lutas sociais do governo Goulart. Mas, a
partir de 1966, os estudantes retomaram as manifestações de rua que desaguaram-se em foco de oposição direta
ao governo dos militares.” (SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 461)
34
Desse modo, entre rupturas e permanências, constituiu-se o moderno poder punitivo
brasileiro, marcado por uma violência tão extrema que torna o uso de tortura nas delegacias e a
aplicação da pena de “morte extralegal” pela polícia, cenas comuns do cotidiano. Essas
permanências são visíveis na nossa escravidão mal abolida, e que, como afirmaram os presos
grevistas nos EUA, está viva e “passa bem no sistema carcerário”67 e no racismo que “não
existe”, demonstrando o sucesso alcançado pelo mito da democracia racial. Entretanto, é
importante destacar que não são poucas as vozes – especialmente dentro de grupos do
movimento negro – que há muitas décadas vêm gritando, no Brasil, acerca da existência e
permanência de um racismo estrutural e institucionalizado.

As permanências estão no positivismo criminológico como uma verdadeira “cultura”


que mais do que apenas uma forma de pensar, construiu nossa maneira de “sentir a questão
criminal” e de sentir o povo “sempre inferiorizado, patologizado, discriminado e, por fim,
criminalizado” (BATISTA, 2016c, p. 11). Na colônia como instituição de sequestro, temos a
maioria – as classes populares – como classes perigosas, continuamente em “atitude suspeita”
e sob a estrita vigilância policial.

Temos a permanência ainda no público que se confunde com o privado (ANDRADE,


2012a), um verdadeira “continuidade” que “permite um trânsito de práticas penais do espaço
do senhor ao espaço do juiz.” (BATISTA, 2002b, p. 150). No mesmo sentido, Schwarcz e
Starling (2015) destacam o “familismo” como uma característica definidora da nacionalidade
brasileira: “o costume arraigado de transformar questões públicas em questões privadas”
levando a um “impressionante descompromisso com a ideia de bem público” e a uma “aversão
às esferas oficiais de poder” (p. 17).

Tudo isso agregado a contínuas políticas de “esquecimento” e de omissão deliberada de


grandes partes da nossa história. Políticas sucessivas porque não silenciamos apenas sobre a
ditadura – caso recente e bastante emblemático -, mas também sobre outros momentos de
intensa violência e brutalidade, como a escravidão. Sucessivas, porque ainda hoje seguimos
silenciando sobre os nossos mortos.

67
Fonte: http://emporiododireito.com.br/este-e-um-chamado-a-acao-contra-a-escravidao-na-america-traducao-
de-aline-passos-e-fernando-henrique-cardoso/
35
1.4 As Demandas por Ordem no Grande Encarceramento

1.4.1 A Questão Penal no Estado Neoliberal

A segunda metade do século XX representou um peculiar período na história do poder


punitivo nos países do mundo ocidental. Por um lado importantes teóricos do centro refletiam
sobre a questão criminal e previam o fim da prisão enquanto modelo punitivo hegemônico68 em
razão da sua decrescente utilização69. De outro, a partir de meados da década de 70 o número
de pessoas encarceradas passou a crescer de forma destacada em vários países do mundo
(WACQUANT, 2007), caracterizando o que alguns/mas autores/as denominam de período do
"grande encarceramento" (WACQUANT, 2007, BATISTA, V., 2011).

Diversos são os fatores que podem ajudar a compreender esse fenômeno, dentre eles
destacando-se o desenvolvimento do neoliberalismo, que ampliou os abismos sociais,
impulsionou o endurecimento das leis criminais e contribuiu com a progressiva instalação de
um modelo penal de Estado em diversos países do mundo, tendo os Estados Unidos como
epicentro deste processo70 (WACQUANT, 2007).

Dardot e Laval (2016) propõem pensar o neoliberalismo como uma racionalidade que
molda uma determinada razão de mundo e, de acordo com esses autores, o Estado tem uma
função central na construção dessa “nova razão de mundo”. O neoliberalismo prega uma nova

68
Cohen (1988) aduz que na década de 60 havia quase um consenso na crítica à prisão; o entendimento dominante
é que não se tratava de um problema momentâneo e conjuntural, mas que as prisões eram estruturalmente um
“fracasso total”. Thomas Mathiesen (2003) também afirma que nas décadas de 60-70 era possível imaginar um
mundo sem prisões e como o progressivo aumento no número de presos a partir dos fins da década de 70
demonstrou o erro de tais previsões. Em sua obra "Vigiar e Punir", escrita em 1975, Michel Foucault afirmava que
a prisão perdia em nossa sociedade atual "sua razão de ser", devido à expansão de outras formas de controle social
mais espraiadas. De fato, essa rede de controle se expandiu, embora, nesse processo, o uso da prisão tenha se
reintensificado, contrariando as expectativas de muitos dos pensadores sobre a questão criminal.
69
Autores como Wacquant (2007; 2012), Nils Christie (2011), Thomas Mathiesen (2003) e Garland (2008)
apresentam dados que demonstram esse decréscimo. Nesse sentido: "Durante a maior parte do período pós-guerra,
as taxas de encarceramento nos EUA e na Grã-Bretanha diminuíram em comparação com o número de crimes
registrados e de pessoas condenadas. No sistema de bem-estar do pós-guerra, a prisão era vista como uma
instituição problemática, necessária como último recurso, porém contraproducente e desorientada com relação aos
objetivos correcionais. (...) Na maior parte do século XX, aparentemente, existiu um movimento secular de
distanciamento da prisão, no sentido de aplicação de penas pecuniárias, do livramento condicional e de muitas
outras formas de supervisão comunitária." (GARLAND, 2008, p. 59)
70
É importante sinalizar o papel dos Estados Unidos neste processo, uma vez que, além de ter sido o palco
privilegiado das principais políticas de cunho especialmente repressivo e autoritário na esfera penal e das políticas
neoliberais como um todo, foi também o catalisador da implantação de tais políticas ao redor do mundo
(WACQUANT, 2007). A cidade de Nova York, especialmente, se tornou uma referência em segurança pública,
após uma suposta queda da "criminalidade" depois da aplicação das políticas de tolerância zero, tendo recebido
representantes do governo e autoridades de diversas parte do mundo - inclusive do Brasil -, no intuito de divulgar
essa política (BELLI, 2004, GARLAND, 2008, WACQUANT, 2011). Além disso, os Estados Unidos foram
também pioneiros na criação da concepção bélica de trato ao problema social das drogas (o que fica evidente nas
concepções de "guerra às drogas", "inimigo número um"), conforme discorreremos mais adiante.
36
racionalidade que se vende como neutra – não ideológica – e como um “fato consumado” (p.
237). Desse modo, cabe aos governos – sejam de direita ou esquerda –, bem como aos
indivíduos, se adaptarem a essa nova realidade. É importante, nesse sentido, considerar que ele
deve ser analisado não apenas pelos seus aspectos negativos – o que ele destrói, sejam normas,
instituições, etc. -, mas também sobre o aspecto do que ele produz, “certos tipos de relações
sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 16)71.

O neoliberalismo nega-se enquanto ideologia e aparece como uma “técnica de gestão”


neutra que tem nos Estados um aporte central para moldar essa nova racionalidade. Não há,
portanto, qualquer contradição em afirmar que há uma importante intervenção estatal em
diversas frentes em um modelo que supostamente seria apenas uma nova roupagem do
liberalismo – e pregaria, então, menos intervenção do Estado.

Desse modo, para uma compreensão aprofundada do neoliberalismo – e sua correlação


com o “grande encarceramento” – é central compreender que uma noção essencialmente
econômica do neoliberalismo é “incompleta”, sendo necessário pensar em uma noção
socioeconômica. Isso significa pensar o neoliberalismo como um “projeto político
transnacional que visa a refazer o nexo entre mercado, estado e cidadania a partir de cima”
(WACQUANT, 2012, p. 31).

Para a difusão desse projeto as políticas criminais assumem um papel central, de


“disciplinar as frações precarizadas da classe trabalhadora” (WACQUANT, 2012, p. 11),
precarização potencializada por este modelo. Se Dardot e Laval (2016) identificam o Estado
como um personagem ativo na conformação do modelo neoliberal, Wacquant (2012) atribuirá
uma função central ao aparato penal para a constituição dessa “mova razão de mundo”,
afirmando que:

(...) o aparato penal é um órgão essencial do estado, expressão da sua


soberania e fundamental na imposição de categorias, na sustentação de
divisões materiais e simbólicas e na modelagem de relações e comportamentos
através da penetração seletiva do espaço físico e social. A polícia, os tribunais
e a prisão não são meros apêndices técnicos, destinados ao cumprimento da
ordem legal (...), mas sim veículos para a produção política da realidade e para
a vigilância das categorias sociais desfavorecidas e difamadas e dos territórios
que lhe são reservados. (WACQUANT, 2012, p. 29) (grifos no original)

71
“O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades
que as seguem no caminho da “modernidade”. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de
competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros,
ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais
profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa.”
(DARDOT, LAVAL, 2016, p. 16)
37
As políticas criminais e o sistema penal como um todo, cumprem um duplo papel de
controlar as massas e conformar a realidade: “o atual ativismo penal (...) é um aspecto rotineiro
e permanente do neoliberalismo” (WACQUANT, 2012, p. 35). A “penalidade neoliberal” é
assim apenas um aparente paradoxo, de acordo com Wacquant (2008a), no sentido de demandar
mais Estado no domínio “da polícia, justiça criminal e prisão” para dar conta do crescimento
geral de insegurança causado por “menos Estado” nas áreas econômicas e sociais. E isso não é
uma coincidência: uma coisa é consequência direta da outra. No mesmo sentido, Nilo Batista
(2002b) afirma que: “(...) o empreendimento neoliberal precisa de um poder punitivo
onipresente e capilarizado, para o controle penal dos contingentes humanos que ele mesmo
marginaliza” (p. 03)

Essa lógica punitiva rotineira e espraiada tem como importante consequência a


invisibilização dos conflitos sociais e das populações problemáticas (COIMBRA,
SCHEINVAR, 2012), individualizando problemas de cunho social, e retirando as
possibilidades de responsabilização do Estado72, sem buscar efetivamente alterar de maneira
estrutural o cenário73. A subjetividade penal torna-se articuladora do pensamento social e a
“demanda é por punição generalizada – signifique isto coação, repressão ou extermínio”
(COIMBRA, SCHEINVAR, 2012, p. 65).

Se em um primeiro momento, portanto, a ideia de expansão de uma faceta – a penal –


de um Estado que se propõe mínimo possa parecer contraditória, ela é rapidamente superada
quando, pensando a partir de Foucault (2008), temos que a lógica da segurança é inerente ao
Estado liberal. No neoliberalismo, essa ideia atinge níveis extremos, seja pela intensa
desregulamentação econômica e vulnerabilização do trabalhador, seja pela intensificação dos
processos de consumo, e da posição estratégica que assume o Estado na construção dessa nova
“razão de mundo”.

72
Vide por exemplo os inúmeros casos de pessoas mortas pela polícia: se o caso não é completamente abafado
sob o título de “confronto entre policiais e bandidos” – que é a regra -, temos processos criminais contra policiais
específicos, havendo um afastamento da responsabilização estatal. Além disso, ao se atribuir os atos de violência
a determinados indivíduos – um policial que “se excedeu”, por exemplo – perde-se a possibilidade de analisar o
que parece se configurar como uma efetiva política genocida por parte do Estado.
73
“Assim acontece com o desaparecimento e o extermínio ostensivo de pobres, em um país que nem sequer
contempla a pena de morte. Da mesma forma ocorre com a tortura que é prescrita em lei, embora seja uma prática
assumida publicamente. Ainda podemos falar da omissão de serviços decretados essenciais como ‘direito público
subjetivo’ que inexistem ou, quando existem, são impostos de forma coativa, em favor da institucionalização
compulsória” (COIMBRA, SCHEINVAR, 2012, p.62)
38
1.4.2 O Sistema Penal no Brasil Neoliberal

O modelo neoliberal, bem como as políticas criminais a ele associado, foi importado
dos EUA para diversos países do mundo. O Brasil, neste contexto, foi um dos países que
importou e aderiu a este modelo, com destaque principal para a ampliação da lógica punitiva
que parece acompanhar esse momento histórico: a intensificação do controle penal com o
endurecimento das leis penais, a crença de que punir mais é punir melhor e a centralidade da
prisão como espaço preferencial de punição.

Entretanto, se é certo que em nosso país se vivenciou um aumento no número de pessoas


presas nos últimos vinte anos - acompanhando uma tendência mundial -, os modelos teóricos
concebidos nos países centrais não são completamente adequados para explicar esse fenômeno
em nosso lado da margem. Se, na década de 60, os Estados Unidos, o Canadá e diversos países
europeus vivenciaram um certo período de "crise" relativa à questão criminal, que culminou
com importantes formulações teóricas e experiências práticas "desestruturadoras" do sistema
penal moderno (COHEN, 1988), o Brasil entrava na ditadura civil-militar que duraria 21 anos.

Nesse contexto, embora os Estados Unidos tenham um importante papel para a


configuração do poder punitivo hoje no Brasil - e na América Latina como um todo -, não
podemos desconsiderar que, em nosso lugar de margem, uma exacerbada violência e
truculência dos autoritários sistemas punitivos sempre foi uma nota distintiva desde os tempos
coloniais.

Desse modo, é essencial para que possamos compreender as reverberações do “Estado


Penal” característico do neoliberalismo que busquemos compreender a nossa própria história e
as demandas por ordem que caracterizaram a construção do poder punitivo brasileiro, conforme
se tentou fazer no tópico anterior. O controle das classes ditas “perigosas” – aquelas
consideradas “capazes de ameaçar o status quo e as elites hegemônicas” (MACRAE, 2016, p.
24) – são uma constante ainda mais acentuada na nossa história.

É essencial, então, a compreensão de que, no Brasil, tais políticas características desse


novo modelo socioeconômico apenas cumprem a função de potencializar um modo já
autoritário de lidar com a faceta punitiva do Estado. Nesse sentido, Wacquant (2008a) ao
discutir o processo de penalidade neoliberal no Brasil, afirma que:

Mais significativo ainda, a penalidade neoliberal é mais sedutora, assim como


mais nociva, quando se infiltra em países atravessados por profundas
desigualdades de condições sociais e escolhas de vida, desprovido de tradições
democráticas e de instituições públicas capazes de amortecer os choques
39
desencadeados pelas transformações concomitantes no trabalho, no vínculo
social e do eu no limiar do novo século. (p. 57)74

No processo de importação do modelo estadunidense pelos países do sul – recém


industrializados e historicamente autoritários – a situação pode ser ainda mais dramática que
nos países centrais, conforme pontua o autor francês. Nesse sentido ainda, Carvalho (2013)
aponta que:

As políticas criminais se adaptam às especificidades regionais (centrais e


periféricas), aumentando ou diminuindo sua letalidade conforme o nível de
resistência ao punitivismo presente em cada cultura. Culturas autoritárias
tendem a aderir explicitamente ao punitivismo, enquanto sociedades
democráticas são, no mínimo, mais reticentes em legitimar políticas de
encarceramento massivo. (...) No caso brasileiro, a relegitimação da prisão
adquire funções instrumentais na nova lógica do capitalismo. No entanto,
diferentemente de outros países latino-americanos, a vulnerabilidade ao
encarceramento atinge grupos muito particulares, ou seja, os grupo-alvo
identificados como desajustados que necessitam ser neutralizados possuem
uma especificidade ímpar, normalmente associada aos rótulos atribuídos à
juventude negra, pobre e socialmente marginalizada, vinculada, direta ou
indiretamente, ao comércio varejista de drogas ilícitas das grandes periferias
urbanas (p. 135)

Embora a entrada definitiva do Brasil no neoliberalismo tenha ocorrido na década de


1990, é possível perceber o início da sua estruturação já no período da ditadura civil-militar,
que, nas palavras de Singer e Loureiro (2016), permitiu a consolidação de um “capitalismo
bruto, ainda que tecnologicamente avançado” no país (p. 11). O “canal absolutamente aberto”
que havia entre os militares e o setor empresarial era uma característica central dessa ditadura
civil-militar. O período da ditadura brasileira é conhecido pelas suas políticas econômicas
caracterizadas por uma “modernização conservadora”: o país enriquece, mas a custa de
ampliação dos abismos sociais (SINGER, LOUREIRO, 2016).

O “milagre econômico” vivenciado no país nesse período – que, entretanto, ampliou a


concentração de renda -, foi possível, dentre entre outras coisas, devido a um “aumento
vertiginoso da dívida externa” que tornou o “país mais vulnerável às alterações do cenário
internacional (SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 453). Com isso, a crise do petróleo de 1973

74
Tradução nossa; no original: “More significantly yet, neoliberal penality is more seductive as well as noxious
when it seeps into countries traversed by deep inequalities of social condition and life chances, shorn of democratic
traditions, and devoid of the public institutions capable of cushioning the shocks unleashed by the concurrent
transformations of work, social bond, and self on the threshold of the new century” (p.57).
40
foi sentida de forma bastante forte no país75 (idem). A partir de 1975 começa o longo período
de “descompressão do sistema político” orquestrado “pelos generais Ernesto Geisel e Golbery
do Couto e Silva, ambos convencidos de que a ditadura deveria fazer suas escolhas e definir o
momento mais conveniente para revogar os poderes de exceção.” (SCHWARCZ, STARLING,
2015, p. 467). Nesse sentido, ainda:

A política de abertura controlada, iniciada em 1975 pelo governo do general


Geisel, também poderia ser a solução para manter a oposição longe do
Executivo, de modo a garantir que a alternância de poder se realizasse de
maneira tutelada, restrita aos círculos civis aliados e sem riscos institucionais.
(SCHWARCZ, STARLING, 2015, p. 468)

O governo de João Baptista de Figueiredo marca a continuidade do processo de abertura


e de acentuação da crise econômica, “sucedendo-se a falência de empresas, o aumento do
desemprego e o crescimento da dívida externa”, potencializada por uma severa “recessão
econômica” (AQUINO et al, 2007, p. 777). É justamente nesse contexto de crise econômica
aguda e de forte pressão popular pelo fim do regime, que a “violência urbana” começa a ser
construída como um problema social76 (PASTANA, 2003). No mesmo sentido, Ruben Oliven
(2010), afirma que:

De fato a violência é alçada ao status de “questão nacional” entre nós, quando


o modelo econômico entra em crise e torna-se difícil continuar lançando mão
do discurso da segurança nacional porque não existe mais a ameaça da
guerrilha. Com o recrudescimento da inflação, do desemprego e da crise
política é preciso criar um novo bode expiatório. Este é o “marginal”, figura
que é utilizada para exorcizar os fantasmas de nossa classe média, tão
assustada com a perda de seu status, com a sua crescente proletarização e com
a queda de seu poder aquisitivo, alcançado nos anos do “milagre”. (p. 12)

É justamente nesse período que o mito do brasileiro pacífico – reforçado pela ditadura
porque funcional ao regime – é substituído pela ideia de um brasileiro violento77 (PASTANA,

75
“No final do governo do general Geisel, o Brasil possuía um dos maiores e mais bem integrados complexos
industriais entre os países periféricos, mas sofria o choque do aumento nos preços do petróleo e de sua comprida
fila de consequências: crescimento lento nas exportações, aceleração nas taxas de juros internacionais, aumento
da dívida externa. A inflação seguiu ascendente, chegou a 211% ao ano em 1983, 223% em 1984, no final do
governo do general Figueiredo, e bateu forte no bolso e no cotidiano do trabalhador e da classe média assalariada:
descontrole nos preços, contas públicas deterioradas, recessão e desemprego.” (SCHWARCZ; STARLING, 2015,
p.470-471)
76
“De fato em 1980, no governo do General João Baptista de Figueiredo, foi instaurada uma CPI para debater as
causas da violência urbana. O seu objetivo era também propor sugestões para uma nova reforma penal. Começava
ali a exteriorização da preocupação estatal com a violência criminal. Essa preocupação logo deixou de ser apenas
estatal para se tornar social, transformando-se em motivo de alarme e criando um ambiente propício para novas e
velhas arbitrariedades estatais.” (PASTANA, 2003, p. 43).
77
“(...) mesmo no auge da repressão militar o Estado preocupava-se em divulgar uma imagem do Brasil como
sendo uma ilha de tranquilidade num mundo conturbado. O Brasil era um ‘país que ia pra frente’ e tratava-se de
41
2003, OLIVEN, 2010). Compreender esse período é, portanto, essencial para entender esse
aparente paradoxo: por um lado a transição democrática, por outro a entrada do país no modelo
de Estado Penal78. Nesse sentido, Pastana (2003) pontua que:

Mais do que isso, observa-se a utilização político-ideológica da violência


surgindo exatamente no momento de reabertura política. Com a anunciada
‘escalada da criminalidade’ pelo governo e pela imprensa, a segurança
nacional deu lugar a segurança pública e o que antes incomodava o cidadão,
ou seja, a violência institucional, passou a ser mostrada como a única forma
de proteção. O cidadão passou a aceitar um controle mais ostensivo temendo
não mais o Estado opressor, mas sim o marginal, o bandido. (p. 45)

É assim que o “medo” – do caos especificamente (BATISTA, 2001)79 - é utilizado em


um período de crise, que levou a uma importante ruptura política, permitindo a permanência –
com algumas modificações - de um modelo autoritário de controle social. É essa crise, que foi
também econômica, que marca o fim deste rompante “desenvolvimentista” levado pelo regime
ditatorial, e o início do modelo socioeconômico neoliberal, que vinha se estabelecendo no
restante do mundo ocidental.

É na década de 1990, entretanto, que o neoliberalismo se instala definitivamente no


Brasil, que significou também a adesão explícita do país ao “populismo punitivo”, o que,
conforme afirmado no tópico anterior, não se trata de uma contradição. O marco dessa adesão
é identificado por Salo de Carvalho (2015) na Lei de Crimes Hediondos de 1990 que representa
ainda “o marco simbólico do ingresso do Brasil no cenário internacional do grande
encarceramento.” (p. 09). É nessa década que se inicia, então, o explosivo aumento do sistema
carcerário brasileiro, paradoxalmente com base jurídica na Constituição dita democrática de
1988.

‘amá-lo ou deixa-lo’ como a AERP se encarregava de doutrinar. Quando começa a abertura, o mito da índole
pacífica do brasileiro é relegado a um segundo plano no discurso oficial e a ‘violência urbana’ é alçada a posição
de ‘problema nacional’” (PASTANA, 2003, p. 41)
78
“Assim, no que se refere à criminalidade, pode-se afirmar que o ‘cenário do medo e insegurança parece ter se
agravado durante a transição do regime autoritário para a democracia.’ (...) Não que antes não houvesse suficientes
crimes ou semelhante insegurança, no entanto naquele momento tornava-se oportuno para a elite dominante criar
um clima de neurose coletiva e social em relação à segurança da população. Uma postura severa, autoritária,
brutalizada num primeiro momento poderia servir para impressionar e atemorizar os criminosos, funcionando
assim como atitude tranquilizadora da sociedade, porém, num segundo momento, funcionaria para calar qualquer
oposição política democrática” (PASTANA, 2003, p. 45)
79
“O genocídio inicial, presente no primeiro encontro entre os dois mundos na América, é recorrente na História
do Brasil. O nosso genocídio diário, trabalhado pelo medo como metamercadoria, obriga-nos a transcender, pela
história, a política e o imaginário no presente. O medo do caos é trabalhado a cada ameaça de chegada ao poder
das forças populares. Foi assim em 1964 e em 1994. A história continua. A difusão do medo é mecanismo indutor
e justificador de políticas autoritárias de controle social.” (BATISTA, 2001, p. 01).
42
Teixeira (2006) aponta conclusão semelhante assinalando que a sua aprovação redefiniu
as práticas legislativas, que passaram a ser pautadas mais na urgência e na exceção, do que na
discussão com a sociedade civil, como uma forma de “proporcionar uma resposta rápida e de
aparente eficácia ao problema do crime” (p. 101)80. A década de 1990 é marcada por um lado
pela difusão de práticas de flexibilização trabalhista81 e por outra pelo recrudescimento
punitivo, típico do período do grande encarceramento.

Conforme já discutimos, não há qualquer contradição entre neoliberalismo e o


recrudescimento de práticas punitivistas. Wacquant (2012), nesse mesmo sentido, ao analisar a
difusão do modelo neoliberal nos países do sul, afirma que:

(...) o neoliberalismo está intimamente associado à difusão internacional de


políticas punitivas, tanto no domínio da assistência social quanto no domínio
criminal. Não é por acaso que os países avançados que importaram primeiro
as medidas de trabalho social projetadas para apoiar o disciplinamento do
salário dessocializado e depois as variantes de medidas de justiça criminal no
estilo estadunidense são as nações da Commonwealth. (...) Do mesmo modo,
sociedades do Segundo Mundo – como o Brasil, a Argentina e a África do Sul,
que adotaram plataformas penais superpunitivas, inspiradas pelos
acontecimentos estadunidenses nos anos 1990 e, como resultado, viram sua
população carcerária disparar – fizeram isso não apenas porque tinham
finalmente alcançado o estágio da ‘modernidade tardia’, mas porque tinham
trilhado o caminho da desregulamentação do mercado e da retração do estado.
(p. 30)

Os quatorze anos do governo petista tampouco barraram a inserção brasileira no


neoliberalismo. O período é caracterizado por uma intensa ambiguidade, uma vez que se buscou
avançar “sem fazer transformações estruturais” (SINGER, LOUREIRO, 2016, p. 12), incluindo

80
Destaque-se ainda que a Lei de Penas Alternativas e os Juizados Especiais Criminais criados nesse período não
enfraquecem a ideia aqui presente: a tendência de recrudescimento do poder punitivo. Conforme pontuam
Zaffaroni, Batista et al (2011): “(...) a programação criminalizante neoliberal tem dois caminhos conflitantes, duas
inspirações antagônicas, que conduzem a convivência de dois subsistemas penais com regras e procedimentos
distintos para duas clientelas de extrações socialmente distintas” (p. 487). No mesmo sentido: “A hipótese de que
o sistema penal do empreendimento neoliberal, vertido para o controle dos contingentes humanos por ele mesmo
marginalizados, opera mediante uma dualidade discursiva que distingue os delitos dos consumidores ativos (aos
quais correspondem medidas despenalizadoras em sentido amplo) dos delitos grosseiros dos consumidores falhos
(aos quais corresponde uma privação de liberdade neutralizadora) pode ser experimentado num rápido exame de
dois grupos de leis penais extravagantes.” (ZAFFARONI et al, 2011, p. 484 – 485).
81
Uma espécie de “nova” precarização do trabalho é um fenômeno que vem sendo percebido nas duas últimas
décadas no Brasil. Graça Druck (2013) aponta que a “institucionalização da flexibilização e da precarização
modernas do trabalho” renovam e reconfiguram “a precarização histórica e estrutural do trabalho no Brasil, agora
justificada – na visão hegemonizada pelo capital -, pela necessidade de adaptação aos novos tempos globais,
marcados pela inevitabilidade e inexorabilidade de um processo mundial de precarização, também vivido a passos
largos pelos países desenvolvidos.” (p.55)
43
“vastos setores no processo violento de valorização do capital, implicando uma integração”
que, não necessariamente, significava cidadania. (idem, p. 13).

Nesse sentido, Dardot e Laval (2016) apontam que o grande sucesso do neoliberalismo
se deu não apenas pela adesão da direita ao seu projeto, mas também pela extrema porosidade
da esquerda a essa nova racionalidade82. De acordo com esses autores, a mudança do significado
de política social seria a melhor ilustração dessa virada neoliberal, afirmando que “A luta contra
as desigualdades, que era central no antigo projeto socialdemocrata, foi substituída pela ‘luta
contra a pobreza’, segundo uma ideologia de ‘equidade’ e ‘responsabilidade individual’” (p.
233).

Nesse contexto, dois eixos parecem centrais como base de sustentação dessa lógica
punitivista: o uso das prisões cautelares – para funções que parecem ir para além da mera
instrumentalidade processual - e a política criminal de drogas. A primeira, porque parece se
desenhar como uma possibilidade de punição instantânea e antecipada em um momento em que
a mídia e a população clamam por mais punição e a segunda porque parece legitimar uma
atuação extremamente violenta pelo Estado, desrespeitando as garantias liberais mais básicas,
se tornando o carro chefe da política criminal no mundo ocidental, pós-guerra fria, só
recentemente superada, em alguns países do mundo, pelo mal afamado “terrorismo” 83. Nesse
sentido, Freitas e Flauzina (2015) apontam que:

(...) a caricatura do traficante, com seus fortes ranços racistas, vai


especialmente se destacar como legitimadora das investidas belicosas que
tudo justificam: políticas de encarceramento desenfreadas de mulheres negras
consumadas em sua invisibilidade ostensiva; autos de resistência, validados
por decisões judiciais acompanhados do atestado de antecedentes criminais da
vítima e silencia com relação às mortes de policiais expostos em “guerra”; leis
penais que instituem práticas de vigilantismo em detrimento da intimidade dos
apenados; práticas processuais de caráter inquisitorial, sem ampla defesa e
contraditório, amplamente utilizadas como expressão do “moderno processo
penal”; escolhas jurisprudenciais assentadas nos discursos hegemônicos de
castigo, sem conexão com os reais interesses e necessidades das vítimas.

82
A tendência da centralidade da política criminal como eixo de partidos situados no campo da esquerda ou direita,
foi verificada também por Campos (2010), em uma pesquisa que analisou as leis criminais aprovadas entre 1989
e 2006. É significativo, nesse sentido, que os dois anos que mais tiveram legislação em segurança pública e justiça
criminal aprovada foram 1995 (11 leis) e 2003 (10 leis), respectivamente primeiro ano do governo FHC (que marca
a entrada definitiva do país no modelo neoliberal) e do governo Lula, que marca a chegada do PT no governo
federal. Também é o PT o partido com segunda maior propositura de leis aprovadas em matéria de segurança
pública e justiça criminal (08), no período analisado, atrás apenas do PMDB (10).
83
Ao discorrer sobre terroristas e traficantes apontados como o “eixo do mal” pelo Bush filho, Vera Batista (2016a)
aponta de forma precisa: “Curiosamente, os primeiros vivem em terras aonde abunda o petróleo, e os segundos
detêm as áreas de produção da principal mercadoria ilícita, a cocaína” (p. 19)
44
A ineficácia retumbante “em atingir as metas declaradas de preservar a saúde e a ordem
pública” fazem pensar que existem metas ocultas frente à “obstinada insistência na manutenção
dessas medidas” (MACRAE, 2016, p. 24). Conforme coloca Nilo Batista (2011): “A política
criminal de drogas é um fracasso, mas o duro poder punitivo que ela concede às agências
policiais é um trágico sucesso.” (p. 15-16).

45
2. TRÁFICO DE DROGAS E PRISÕES CAUTELARES: UMA ANÁLISE DOS
PROCESSO

2.1 Duas Chaves de Leitura

Conforme já dito antes, este trabalho parte da perspectiva de que a política criminal de
drogas em suas interfaces com o encarceramento cautelar configura o eixo central para a
compreensão da atuação do poder punitivo no Brasil contemporâneo. Nesse sentido, a “guerra
às drogas” aparece como o “carro chefe” da política criminal brasileira, legitimando a punição
antecipada através de prisões cautelares, sendo o encarceramento preventivo, por sua vez, a
resposta rápida e imediata às demandas punitivas oriundas do pânico moral84 criado em torno
da questão das drogas.

Este é um trabalho que tem a Criminologia Crítica como base teórica, mas também
metodológica: é ela, portanto, que orienta o olhar e ajuda a traçar o caminho a ser seguido.
Nesse contexto, Salo de Carvalho (2016) destaca que:

Se a criminologia etiológica mantém diversas pesquisas voltadas à resposta da


indagação “por que determinadas pessoas usam drogas?”, a crítica perguntará
“por que certas substâncias são consideradas lícitas e outras ilícitas?”. A
mudança na forma de questionamento permitirá à criminologia, ao direito
penal e processual penal e às políticas criminais absterem-se do papel
meramente descritivo das funções oficiais (declaradas) do sistema penal das
drogas para descortinar os efeitos de sua programação no incremento e na
manutenção dos processos criminalizadores. (p. 37)

Quando falamos da política de drogas brasileira é preciso orientar o olhar para além das
funções declaradas e procurar aquelas funções cumpridas pela política, ainda que não ditas.
Desse modo, se, por um lado, em relação a suas funções declaradas não há “fracasso mais
estrondoso e reconhecido” (BATISTA, N., 2011, p. 15), por outro, “não há instrumento jurídico
que permita mais amplamente a violação de domicílios e da privacidade, a aterrorização de
comunidades inteiras e a execução sumária de infratores do que a legislação que exprime aquela
política” (idem).

84
O conceito de “pânico moral” aparece pela primeira vez no vocabulário criminológico com Stanley Cohen em
1972 na obra “Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and Rockers”. “Mods” e “Rockers” eram
grupos de jovens que apareceram na Inglaterra na década de 1960, causando incômodo na população interiorana
inglesa que passou a demandar a intervenção policial para o controle desses jovens. A mídia passou a escrever
sobre o fato o que gerou mais ansiedade e medo em torno da questão, levando a mais pedidos de intervenção
policial, o que por sua vez deu mais substrato para a mídia seguir alardeando o problema. Estava criado o que
autor denominaria de “pânico moral”.
46
É necessário sinalizar que a política de drogas em sua função oculta cumpre um
importante papel de controle das classes populares, processo que no Brasil se inicia de maneira
tímida ainda no século XIX (MOREIRA, 2015, MACRAE, 2016)85, mas que assume principal
destaque na política criminal brasileira no fim do século XX. Assim, por meio de uma legislação
marcada por uma multiplicidade de verbos e condutas criminalizáveis, a droga vai se
convertendo no “mais imperturbavelmente plástico” eixo (BATISTA, 1998, p. 89), que autoriza
uma ampla margem de discricionariedade na atuação de diferentes agentes do sistema penal –
da polícia aos juízes –, incrementando a seletividade inerente a esse sistema86.

Entretanto, é importante destacar que em um país marcado por uma escravidão “mal
abolida” a questão racial deve ser colocada como um eixo estruturante para a compreensão de
qualquer política criminal e marcadamente da política de drogas. Ao discutir a política
repressiva de drogas nos EUA, Michelle Alexander (2012) ressalta que uma suposta política de
“guerra” às drogas tem sido usada como uma ferramenta de manutenção de controle social, que
tem no homem negro seu foco principal. O “grande encarceramento”87– resultante dessa
suposta “guerra” às drogas - retroalimentaria o racismo estrutural, ao permitir a continuação de
um estado de negação (denial) deste mesmo racismo: não haveria uma guerra contra os negros,
diriam os defensores das políticas repressivas, mas uma guerra contra o crime.

Além disso, essa política também cumpre o papel de retroalimentar o racismo ao


assegurar que a maioria dos condenados não vai conseguir acessar o mainstream social,
permitindo uma forma de discriminação perfeitamente “legal”. Conforme colocado pela autora
“uma vez varrido para dentro do sistema” a chance de sair dele é mínima, ou até mesmo
inexistente (ALEXANDER, 2012, p. 16-17).

Na perspectiva da crítica criminológica, desde o importante trabalho formulado por


Rusche – e terminado por Kirchheimer –, é importante compreender os métodos punitivos a

85
Através de legislações municipais que criminalizavam o uso do “pito de pango” – nome conferido a maconha
no século XIX -, por exemplo.
86
“(...) a muito limitada capacidade operativa das agências de criminalização secundária não tem outro recurso
senão proceder sempre de modo seletivo. Desta maneira, elas estão incumbidas de decidir quem são as pessoas
criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas potenciais protegidas. (...) Isto corresponde ao fato de que as
agências de criminalização secundária, tendo em vista sua escassa capacidade perante a imensidão do programa
que discursivamente lhes é recomendado, devem optar pela inatividade ou pela seleção. Como a inatividade
acarretaria seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda burocracia e procedem à seleção” (ZAFFARONI,
BATISTA et al, 2011, p .44-45)
87
Preferimos aqui o termo “grande encarceramento”, usado por Wacquant (2007) e Vera Malaguti Batista (2011),
do que aquele utilizado por Alexander (2012) de “encarceramento em massa”. Nesse sentido, concordamos com
Wacquant, que o termo “em massa” pode não deixar claro a extrema seletividade do sistema penal, que não atua
de forma massificada, mas escolhe seus alvos.
47
partir da ordem histórico-social em que eles estão inseridos, pois para além da “mera” função
de reprimir, eles cumprem a importante função de moldar, reproduzir e conservar essa ordem
social (RUSCHE, KIRCHHEIMER, 2004). Assim é que, na ordem social capitalista, “a prisão
vai estigmatizar e perpetuar os indivíduos no status social onde eles se encontram”
(ANDRADE, 2012b, p. 307). E no Brasil – tal como nos EUA, ambos historicamente fundados
em uma ordem escravocrata – esses presos não tem só classe definida, mas também cor.

É possível, então, a partir da Criminologia Crítica enxergar para além do discurso oficial
da programação criminalizante em relação às drogas e tentar compreender as funções reais
exercidas pelas agências do sistema penal que, conforme pontua Batista (1998), implementam
critérios diretivos, sejam os enunciados em nível normativo, sejam “outros critérios, silenciados
ou negados pelo discurso jurídico, porém legitimados socialmente pela recorrência e
acatamento da sua aplicação” (p. 77).

2.1.1 O Tráfico de Drogas

A ideia da “droga” como um problema social é um fato relativamente recente na história


moderna e conforme observam diversas/os autoras/es ao discorrer sobre o assunto as drogas
sempre existiram - possuindo diferentes usos - e nem sempre foram consideradas uma questão
problemática (DEL OLMO, 1990, BOITEUX, 2006). Elas teriam se convertido “(...) em
‘problema’ quando deixaram de ter exclusivamente valor de uso para adquirir valor de troca e
converterem-se, assim, em mercadorias sujeitas às leis da oferta e da procura” (DEL OLMO,
2002, p. 65)88. Seria a partir desse momento que, segundo Rosa Del Olmo (2002):

(...) começa a preocupação dos governos em controlar e regular a produção, o


tráfico e o consumo de determinadas plantas e seus derivados, embora com
curiosas mudanças ao longo da história, como resultado de uma série de
variáveis econômicas, políticas e sociais. A lei entraria em ação timidamente,
até afirmar-se de maneira sólida no século XX. (p. 65)

De pronto, é importante destacar, em concordância com Zorilla (2015), que “a


consideração legal de cada uma destas substâncias pouco ou nada tem a ver com a
periculosidade derivada de seu uso, nem pelos efeitos inerentes a cada uma delas, nem pela

88
Foucault (1987) ressalta ainda que: “Os tráficos de armas, os de álcool nos países de lei seca, ou mais
recentemente os de droga mostrariam (...) esse funcionamento da ‘delinquência útil’; a existência de uma proibição
legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro
ilícito por meio de elementos ilegais, mas tomados manejáveis por sua organização em delinquência. Este é um
instrumento para gerir e explorar ilegalidades” (p. 246)
48
importância social de seu consumo” (p. 267). Dessa maneira, uma breve contextualização
histórica ajuda a compreender os deslocamentos de aceitação, proibição ou mesmo incentivo89
do uso de determinadas substâncias, até chegarmos ao panorama atual. Conforme afirmou Nilo
Batista (1998) o “dogma da ilicitude ontológica”, no caso das drogas, funciona como uma
importante propaganda – realizada não só pela mídia, mas também pela elaboração conceitual
teórica – “para colocar o povo de acordo com o governante” (p. 90).

Moreira (2015) identifica evidências de que a droga já era encarada como um problema
social no Brasil desde o século XIX, com algumas tentativas de controle de “substâncias
venenosas” ou pela proibição de uso do “pito de pango”, por exemplo, através de legislações
municipais90 (p. 08-09). Entretanto, é só no começo do século XX que “algumas substâncias
começaram a aparecer como portadoras de potencialidades maléficas constituindo uma questão
em si” (p. 09).

É nesse período que começam as primeiras discussões em nível internacional a respeito


da repressão da circulação e do uso de entorpecentes91 (BOITEUX, 2006). É interessante
pontuar que já nesse momento é possível identificar “o protagonismo dos Estados Unidos na
ascensão dessa repressão mundial” (MOREIRA, 2015, p. 73, BOITEUX, 2006), destacando
ainda que: “o modelo repressivo adotado internacionalmente nesse período teria sido resultado,
ao mesmo tempo, do desenvolvimento doméstico do controle social estadunidense e da sua
crescente política de intervenção sobre os outros países” (MOREIRA, 2015, p. 73).

89
Por exemplo, pelo largo uso de propagandas de cigarro tão comuns ao longo do século XX, e da publicidade de
cerveja, ainda hoje, que fazem do uso de tais drogas uma conduta extremamente desejável pelas “benesses” ou
vantagens – em geral de caráter extremamente machistas - que supostamente propiciam.
90
Importante reforçar que a criminalização da maconha nesse período está essencialmente ligada ao fato de que
seu uso era mais comum entre as classes populares sendo “associado, desde os primórdios da colonização e do
tráfico negreiro, à população de origem africana e indígena e era voltada para finalidades medicinais, lúdicas,
religiosas e de resistência cultural” (MACRAE, 2016, p. 25)
91
Em 1909, a Conferência Internacional do Ópio em Xangai pode ser identificada como um marco nesse sentido
(BOITEUX, 2006), seguida já em 1911 por uma segunda conferência sobre o ópio, desta vez realizada em Haia,
que deu origem a um importante protocolo sobre o assunto, assinado pelas 12 potências participantes. É
interessante o que pontua Moreira (2015) sobre este documento: “O protocolo de encerramento da conferência
realizada em Haia oferece elementos que ajudam a entender como, naquele momento, o consumo e a circulação
de algumas substâncias foram transformadas em um problema social de proporção mundial. O motivo declarado
pelos países como propulsor das negociações era o consumo abusivo de um conjunto de substâncias. O que está
indicado por essa iniciativa é que os excessos dos referidos produtos se constituíam um problema social ao qual o
poder estatal poderia e deveria intervir. Tratava-se de levar para a esfera política, hábitos de consumo, que até
então pertenciam ao âmbito da escolha individual. Este é o cerne do qual se desdobravam todas as outras medidas”
(p. 77). Embora não tenha estado em nenhuma das conferências, o Brasil assinou este tratado (MOREIRA, 2015).
Entretanto, se é possível já nesse período perceber um “aumento da preocupação política nacional”, inclusive dos
jornais que “focavam os abusos cometidos em território nacional, cuja principal expressão eram os altos índices
de suicídios relacionados à morfina e à cocaína” (MOREIRA, 2015, p. 83), a legislação penal aplicável ao tráfico
de drogas continuava sendo o art. 159 do CP de 1890, que criminalizava a conduta de “expor à venda ou ministrar
substâncias venenosas, sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas nos regulamentos sanitários”.
49
Essa conjuntura é marcada por um modelo que pode ser conceituado como “sanitário”
no tratamento dado à questão. Esse paradigma assume essa designação de acordo com Nilo
Batista (1998) porque “(...) se pode perceber claramente o aproveitamento de saberes e técnicas
higienistas, para as quais as barreiras alfandegárias são instrumento estratégico no controle de
epidemias, na montagem de tal política criminal” (p. 81).

Essa colocação é importante, pois mesmo neste modelo de caráter “mais” médico, o
controle das classes populares é um elemento central. O uso da maconha, por exemplo, no início
do século XX, era “mais ou menos restrito a estratos populares nortistas e nordestinos,
geralmente formado por negros e mestiços” (MACRAE, 2016, p. 26), razão pela qual Macrae
(2016) afirma que a criminalização da erva na Bahia, já nesse período, “além de servir como
pretexto para a manutenção do preconceito racial, desenvolveu um discurso salvacionista que
fortalecia a discriminação de classe e fornecia pretextos para planos de intervenção disciplinar
no modo de vida dos subalternos” (p. 27).

Entretanto, é só na segunda metade do século XX que o traficante de drogas vai ser


alçado ao lugar de inimigo interno “número um” – dos Estados Unidos e de boa parte do mundo
ocidental – e que o tráfico se tornará o objeto principal das políticas criminais de diversos países.
É durante o governo Nixon que os EUA explicitamente declaram “guerra às drogas”, por meio
de um processo de intensificação do proibicionismo a partir da década de 1960.

No Brasil, Nilo Batista (1998) identifica que que no ano de 1964 há uma inflexão do
“modelo sanitário” para o “modelo bélico”, pois na nossa margem, será esse golpe de estado
que dará “as condições para a implantação do modelo bélico” (p. 84). O conceito de “inimigo
interno” formulado no contexto da doutrina da Segurança Nacional “transbordará para o sistema
penal em geral, e sobreviverá à própria guerra fria” (idem, p. 85). A recepção nos países latino-
americanos do modelo bélico significou também transformar a guerra externa promovida nos
EUA – contra os imigrantes advindos dos países produtores – em uma guerra interna,
instaurando um verdadeiro “modelo genocida de segurança pública” (CARVALHO, 2016, p.
61). Sobre a “guerra às drogas” no contexto das ditaduras latino-americanas, é relevante a
seguinte colocação de Zaffaroni (2011):

A administração norte-americana (...) pressionou para que estas ditaduras


declarassem guerra à droga, numa primeira versão vinculada estreitamente à
segurança nacional: o traficante era um agente que pretendia debilitar a
sociedade ocidental, o jovem que fumava maconha era um subversivo,
guerrilheiros eram confundidos com e identificados a narcotraficantes (a
narcoguerrilha) etc. À medida que se aproximava a queda do muro de Berlim,
tornou-se necessário eleger outro inimigo para justificar a alucinação de uma
50
nova guerra e manter níveis repressivos elevados. Para isso, reforçou-se a
guerra contra a droga. (ZAFFARONI, 2011, p. 51)

A “guerra às drogas” funcionava, desse modo, de maneira coordenada com os objetivos


das ditaduras latino-americanas; no Brasil, por exemplo, a equalização das penas de traficantes
e usuários – entre 1968 e 1976 - propiciava uma ampla possibilidade de controle de jovens
potencialmente “subversivos” das classes médias e altas, legitimando uma intervenção penal
em nome dessa suposta “guerra”.

A transição para a democracia em meados da década de 1980 não alterou os paradigmas


repressivos em matéria de drogas. Na verdade, ocorreu um movimento inverso, como vimos no
primeiro capítulo, quando a “violência urbana” foi alçada à posição de importante problema
social e a “violência institucional” colocada como a grande resposta a esse problema. Nesse
contexto, o “traficante de drogas” viria a ocupar o lugar ideal no imaginário social 92 e como
coloca Salo de Carvalho (2016), nos “países periféricos” a política criminal de drogas assumiu
“o papel significativo de definição dos horizontes de punitividade” (p. 35).

Na década de 1990 o Brasil entra no “cenário internacional do grande encarceramento”


(CARVALHO, 2015, p. 09), tendo na Lei de Crimes Hediondos um marco simbólico desse
movimento. Nesse cenário, o tráfico de drogas equiparada constitucionalmente aos crimes
hediondos, se tornou a força motriz do boom carcerário do período (BOITEUX, 2014).

Se em 1990, a taxa de aprisionamento era de 60 presos por cem mil habitantes 93, este
número atingiu a marca de 137,1 em 2000, chegando a impressionantes 299,7 presos por cem
mil habitantes em 2014 (INFOPEN, 2014). Completando 10 anos em 2016, a nova Lei de
Drogas mudou em definitivo o cenário prisional brasileiro: em 200594, o delito de tráfico era
responsável por 14% dos tipos penais pelas quais as pessoas encontravam-se encarceradas,
incluindo delitos tentados e consumados e pessoas ainda sem condenação. Em 2014, esse delito

92
“Para pensarmos nossa "torturante contemporaneidade" nos remetemos ao momento de transição da ditadura
civil-militar quando estava disseminada uma resistência às práticas do Estado de exceção. Foi naquele momento
histórico que os meios de comunicação começaram a esculpir cotidianamente o novo inimigo público, aquele
que vai ensejar desejos de extermínio: o traficante. Quero dizer com isso que a política criminal de drogas
que nos é imposta no auge da ditadura pelos estadunidenses seria o grande vetor de extermínio e
encarceramento no período democrático” (BATISTA, 2016a, p. 06) (grifos aditados)
93
Esse dado foi calculado por mim com base na população prisional da época (90.000 de acordo com o INFOPEN,
2014) e na população total do país (150.310.243 pessoas de acordo com o IBGE).
94
Usa-se o ano de 2005 pois este além de ser o ano exatamente posterior a promulgação da “nova” lei de drogas é
o primeiro ano em que o Ministério da Justiça passou a divulgar dados mais completos sobre o sistema penal.
51
passou a representar 28% do total de tipos penais, sendo que entre as mulheres esse delito
representa 58% dos tipos penais responsáveis pelo encarceramento (INFOPEN Mulher, 2014)..

Essa lei representa também aquilo que Nilo Batista (2002c) chamou de “dualidade
perversa” do capitalismo tardio: “para os consumidores, mil expedientes para evitar a
institucionalização; para os consumidores frustrados, encarceramento neutralizante duradouro”
(p. 275). Enquanto a pena aumentava para o traficante, desprisionalizava-se o usuário. Para
além disso, Batista (1998) assinala que:

A severidade da nossa legislação (...) exprime não somente a síndrome dos


governos latino-americanos de serem “mais drásticos que o próprio governo
norte-americano”, mas também a funcionalidade mítica da droga para o
exercício daquele controle social penal máximo sobre as classes
marginalizadas, cujos filhos são recrutados para trabalhar nos arriscados
estágios da produção e comercialização de um produto cujo mercado está
condicionado por sua criminalização e cujos preços oscilam na razão direta da
maior ou menor eficiência das agências de repressão penal. (p. 89)

O estereótipo criado em torno da figura do “traficante de drogas”, de ente acima de tudo


perigoso, tem, entretanto, uma importante razão de ser, sendo útil às instâncias de controle que
se valem dessa suposta periculosidade inerente para legitimar uma atuação de controle
altamente seletiva e racializada. O peso dos estereótipos é central no processo de criminalização
secundária operado pelas concretas agências de controle – após a criminalização primária que
seleciona os tipos penais criminalizados – para a seleção daqueles que, concretamente, cairão
no filtro do sistema penal (ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011).

Desse modo, embora representados pela mídia como a personificação do “mal”, são os
“pequenos traficantes não violentos, primários, presos em flagrante sozinhos e desarmados”
(BOITEUX, 2014, p. 84) que lotam as prisões brasileiras. São, em sua maioria, “jovens-
homens-negros” (REIS, 2005), que ocupam as posições das franjas do tráfico, os que
massivamente lotam as prisões.

Parece ser relevante destacar que boa parte dos processos criminais que tem como objeto
o art. 33 da Lei 11.343/2006 começam com uma “atitude suspeita”. Ou assim relatam os
policiais que não precisam aprofundar no assunto95; em uma determinada rua – em geral em
um bairro popular -, um indivíduo – que podia estar andando, correndo, parado ou sentado –
estava em uma “atitude suspeita” o que levou os policiais a imaginar que deviam revistá-lo,

95
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/09/1816049-definicao-vaga-de-lei-brasileira-da-margem-a-abusos-
em-revistas-policiais.shtml
52
encontrando então uma determinada – e na maior parte dos casos pequena – quantidade de
drogas.

Não é difícil imaginar o quanto dessa “atitude suspeita” está carregada de marcadores
de classe e cor; tampouco, é difícil não pensar na “estratégia de suspeição generalizada”, que
Sidney Chalhoub (2011) destaca como a maneira utilizada para o controle da população negra,
no fim do século XIX, havia pouco tempo liberta da escravidão. Vera Malaguti Batista (2003b)
ao estudar processos relativos a adolescentes apreendidos pela suposta prática da conduta de
tráfico de drogas entre 1968 e 1988 no Rio de Janeiro, conclui que: “analisando a fala dos
policiais o que se vê é que ‘atitude suspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é
atributo de ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social; é
isso que desperta suspeitas automáticas” (p. 103).

No caso dos delitos de tráfico de drogas, que incluem condutas tão díspares como
“importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda,
oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a
consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente”, o filtro da seletividade parece ter campo
de atuação ainda mais amplo e arbitrário, do que em outros tipos penais.

A criminalização contemporânea do tráfico de drogas encarna o direito penal autoritário


de que fala Zaffaroni (2009) em diversos aspectos. Isso se dá seja pelo fenômeno da
“multiplicação dos verbos”, resultando em que “o caráter mágico e fetichista da nossa política
criminal de drogas vai demonizando tudo à sua volta” (BATISTA, 2016b, p. 17), seja pelo
“cancelamento da exigência de lesividade” por intermédio dos tipos de “perigo sem perigo”
(ZAFFARONI, 2011, p. 14), ou, ainda, por se tratar essencialmente de uma lei penal em branco,
que delega à ANVISA o poder de determinar quais são as substâncias ilícitas ou não, que serão
passíveis de criminalização pela Lei 11.343/200696, incidindo com isso em “tipos confusos e
vagos e [n]a delegação de função legislativa penal” (ZAFFARONI, 2011, p. 15).

Essas características, portanto, permitem que a criminalização secundária – operada


primeiro pela Polícia e depois pelo Judiciário -, ocorra de modo ainda mais arbitrário e
autoritário que para os demais tipos penais: a “atitude suspeita” parece ser um importante

96
Sobre isso, é importante destacar que o absurdo ainda é maior quando o Superior Tribunal de Justiça no seu
Informativo 582 autoriza a classificação como “’droga’, para fins da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), a
substância apreendida que possua canabinóides – característica da espécie vegetal Cannabis sativa -, ainda que
naquela não haja tetrahidrocanabinol(THC)” (grifos aditados), quando a portaria n. 344 da ANVISA apenas
classifica como “substância de uso proscrito no Brasil” o THC.
53
ilustrativo de um longo caminho – que segue do flagrante a um processo criminal e, por fim, a
uma sentença – enquadrado nessa lógica. Quando “trazer consigo” é uma conduta por si só
criminalizável, parece importante compreender quem está – ou não – acima de qualquer
suspeita.

É interessante trazer o que colocam Zaffaroni, Batista et al (2011) sobre o poder das
agências do sistema penal: muito mais do que um controle negativo ou repressivo, essas
agências exercem verdadeiro “poder configurador positivo da vida social” (p. 52), poder este
que é o verdadeiro instrumento de controle social disposto por tais agências. Nesse sentido
afirmam que:

a detenção arbitrária de suspeitos, a identificação de qualquer pessoa que lhes


chame a atenção, a detenção por supostas contravenções, o registro das
pessoas identificadas e detidas, a vigilância sobre locais de reunião e de
espetáculos, de espaços abertos, o registro da informação recolhida durante a
tarefa de vigilância, o controle alfandegário, o fiscal, o migratório, o veicular,
a expedição de documentação pessoal, a investigação da vida privada das
pessoas, os dados pessoais recolhidos no decorrer de investigações distintas,
a informação sobre contas bancárias, patrimônio, conversas privadas,
comunicações telefônicas, telegráficas, postais, eletrônicas etc. – tudo sob o
argumento de prevenir e vigiar para a segurança ou investigação com vistas à
criminalização -, constituindo um conjunto de atribuições que podem ser
exercidas de um modo tão arbitrário quanto desregrado e que proporcionam
um poder muitíssimo maior e enormemente mais significativo que o da
reduzida criminalização secundária. (p. 52)

Ao estudar a construção do “suspeito” na atividade policial, Duarte et al (2014)


enfatizam que os marcadores de classe e raça são centrais para a distinção de quem será ou não
considerado suspeito, ou de forma mais direta, “morar na periferia, ser negro e pobre já é
suspeito” (SILVA, 2000, p. 117).

Não tive a pretensão neste trabalho de analisar o local – tanto o bairro quanto se o
flagrante se deu na rua ou em um local fechado - onde se deu a prisão daqueles que responderam
os processos aqui estudados. Entretanto, foi impossível não notar que a imensa maioria das
prisões se deu em áreas pobres da cidade e, nos raríssimos casos onde esta se deu em local
diferente, tratava-se de alguém que não “pertencia” àquela paisagem, ou de casos resultantes
de grandes operações policiais que, em geral, geraram grande repercussão nos meios midiáticos,
justamente por se destacarem dos demais casos. Além disso, afora essas grandes operações
realizadas pelo “Departamento de Narcóticos” da Polícia Civil baiana, a grande maioria das
pessoas foi presa na rua, após serem paradas por policiais simplesmente por essa alegada
“atitude suspeita”. Esse quadro é notado por Duarte et al (2014) ao afirmarem que:
54
a divisão geográfica, a demarcação social do espaço urbano, contribui para a
construção do suspeito e para o direcionamento das ações policiais. Desse
modo, ações de controle social e de “higienização” são realizadas
racionalmente em diferentes lugares com diferentes indivíduos. (p. 84)

Um dos casos, dentre os processos analisados, que se destacou – justamente por tratar-
se de uma absoluta exceção - envolveu a prisão de cinco pessoas em um apartamento no Imbuí
– bairro de classe média de Salvador – após uma longa investigação do Departamento de
Narcóticos (DENARC)97. O desconcerto do magistrado é evidenciado na sentença ao fazer
questão de ressaltar que o tráfico de drogas era realizado por “pessoas de classe média e tendo
como público consumidor pessoas dessa mesma classe”. Além disso, refere-se reiteradamente
ao homem de 45 anos – apontado pela investigação policial como o “líder” do grupo – como
um “jovem de classe média”. Usando os nomes dos réus como palavras-chaves, uma pesquisa
no sistema de busca “Google” sobre o caso também revelou o embaraço da mídia frente à
situação. É notável a matização dos discursos ao tratar do tema: em nenhum momento os
acusados recebem o rótulo de “traficantes”, sendo referidos dentre outras coisas como o
“desempregado”, o “homem”, a “sogra”, a “companheira”98.

Em outro caso, também destoante, um universitário de 21 anos foi preso dentro de uma
boate, em um bairro de classe média de Salvador99. Nesse caso, a polícia foi chamada para
resolver uma briga que ocorria dentro do estabelecimento e lá uma jovem, também
universitária, comunicou à polícia que um rapaz estaria comercializando drogas no local. A
PM, portanto, só estava dentro de uma boate de classe média por acaso. No caso em tela, o
rapaz respondeu o processo todo em liberdade e foi absolvido ao final.

Por outro lado, a maior parte dos casos começa do mesmo modo: um jovem em um
bairro popular é avistado pela polícia em uma suposta “atitude suspeita”, surpreendido com
uma pequena quantidade de drogas. Zaccone (2004), a partir de Nils Christie (1998), define que
eles são os “acionistas do nada”:

Ocupando a ponta final do comércio de entorpecentes, os “esticas”, “mulas”


e “aviões” ficam tão-somente com uma parcela ínfima dos lucros auferidos no
negócio, quantia esta que nunca os levará a ter participação real nas empresas
que atuam no mercado ilegal das drogas. (p. 187-188)

97
Processo n. 0398481-53.2013.8.05.0001
98
http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/homem-e-preso-apos-transformar-imovel-da-sogra-em-
ponto-de-trafico-no-imbui/; http://www.tribunadabahia.com.br/2013/05/14/apartamento-da-sogra-no-imbui-era-
usado-como-ponto-de-venda-de-drogas
99
Processo n.0372438-79.2013.8.05.0001.
55
Na grande maioria dos casos, portanto, esses jovens são apenas figuras “certas” – porque
encaixáveis no estereótipo – andando em lugares errados (ou seriam também certos100?). A
“guerra às drogas”, mas do que uma guerra contra a produção e consumo das substâncias ditas
“ilícitas”, parece ser um instrumento de controle das “classes perigosas”101 (CHRISTIE, 1998).

2.1.2 As Prisões Cautelares

Nesse ponto é possível destacar as prisões cautelares como instrumento central nesse
processo de controle social das classes populares. Pois se o traficante de drogas é o “grande
mal” da contemporaneidade brasileira, o direito penal e processual penal tornam-se verdadeiros
obstáculos para a garantia da punição “adequada”. No mesmo sentido, Zaffaroni (2011)
argumenta que isso leva à construção da ideia de que para um “ente perigoso ou daninho” não
é necessário que a privação de um direito como a liberdade, seja realizada como resultado de
uma pena, após o devido processo legal, com o respeito de garantias, o central é a mera
contenção do indivíduo, sendo irrelevante saber porque nome – se pena ou qualquer outra coisa
- isso foi feito.

Conforme discute o autor argentino, o sistema penal latino-americano caracteriza-se por


um elevado número de presos cautelares – que muitas vezes estão em maior número que os
presos condenados - atuando de uma maneira que poderia ser vista como “invertida”, mas que
na realidade há muito tempo – ou seria desde sempre? – opera a partir de medidas de contenção
provisórias “apenas por presunção de periculosidade” (ZAFFARONI, 2011, p. 70). Nesse
sentido:

De toda a forma, é configurado um sistema penal cautelar diferente do sistema


penal de condenação, no qual operam como pautas a seriedade da suspeita de
cometimento de um delito (o direito penal entra apenas como critério para a
qualificação cautelar) e considerações de periculosidade e dano, provenientes
do positivismo do século XIX, ou seja, da individualização ôntica do inimigo.
(p. 110)

100
Nesse mesmo sentido, em relação aos EUA, Wacquant (2008b) afirma que: “(...) apenas 11% dos condenados
por VLN [Violação da lei de narcóticos] pelos tribunais federais são “peixes grandes” e 55% “pequenos
contraventores”, cujo único pecado talvez tenha sido o de estar no “lugar errado na hora errada”, como se diz no
gueto” (p.109)
101
“Na prática, a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as pessoas tidas como menos úteis e
potencialmente mais perigosas da população (...). Elas mostram que nem tudo está como devia no tecido social, e
ao mesmo tempo são uma fonte potencial de perturbação” (CHRISTIE, 1998, p. 65)
56
Embora prevista em diversos outros sistemas penais – inclusive nos países do centro –
a medida cautelar de “prisão” se tornou regra, e não exceção, na América Latina, levando
Zaffaroni (2011) a afirmar a existência de uma “sistema penal cautelar latino-americano”. A
questão que parece emergir dessa inferição é a seguinte: em um espaço que se constituiu a partir
de uma lógica de “instituição de sequestro” – conforme discutido no primeiro capítulo – em
que, portanto, há uma “maioria” de desviantes constituída por um extenso grupos de pessoas,
que passaram por boa parte da nossa história destituídos de suas condições de “pessoas”, é certo
que o sistema penal precisará de um modelo adequado para lidar com essa questão, no sentido
que postula Zaffaroni (2011):

Na medida que se trata um ser humano como algo meramente perigoso e, por
conseguinte, necessitado de pura contenção, dele é retirado ou negado o seu
caráter de pessoa, ainda que certos direitos (por exemplo, fazer testamento,
contrair matrimônio, reconhecer filhos etc.) lhe sejam reconhecidos. (p. 18)

A estrita medida da necessidade utilizada para legitimar essa “pura contenção” não
conhece nem lei nem limites; “o grau de periculosidade do inimigo – e, portanto, da
necessidade de contenção – dependerá sempre do juízo subjetivo do individualizador, que não
é outro senão o de quem exerce o poder”102 (ZAFFARONI, 2011, p. 25).

Nesse sentido, não surpreende a afirmação de Zaffaroni (2011) de que a “característica


mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação ao aprisionamento é que a
grande maioria (...) dos presos está submetida a medidas de contenção, porque são processados
não condenados” (p.70).

As prisões cautelares sintetizam, dessa maneira, uma espécie de “urgência” punitiva,


que parece caracterizar a dinâmica da punição hoje, ao mostrar ao mundo o “cumprimento”
imediato da “lei”. Nesse sentido, é relevante conjugar esse fenômeno com outro importante
fenômeno da modernidade: a mídia. Nilo Batista (2002c) – a partir de Zaffaroni – propõe pensar
a mídia como uma das agências executivas do sistema penal103. O autor constrói ainda uma
importante relação entre a mídia e a flexibilização do devido processo legal ao sinalizar o:

(...) incômodo gerado pelos procedimentos legais que intervêm para a


atestação judicial de que o delito efetivamente ocorreu e de que o infrator deve

102
Discutirei no próximo capítulo de forma mais detida as fundamentações de tais decisões, entre elas a
“periculosidade” que aparece como um dos eixos centrais de argumentação legitimadora da medida.
103
Em sentido similar, Wacquant (2012) afirma que: “A Place de Grève, onde o regicida Damiens foi esquartejado
de forma memorável, foi suplantada não pelo Panóptico, mas pela justiça televisiva e pela profusão de reality
shows tipo “crime e castigo” que inundaram a televisão (...), para não mencionar o uso da justiça criminal como
material para os noticiários diários e os seriados dramáticos (...).” (p.23)
57
ser responsabilizado penalmente por seu cometimento. Tensões graves se
instauram entre o delito-notícia, que reclama imperativamente a pena-notícia,
diante do devido processo legal (apresentado como um estorvo), da plenitude
de defesa (o locus da malícia e da indiferença), da presunção da inocência
(imagine-se num flagrante gravado pela câmera!) e outras garantias do Estado
democrático de direito, que só liberarão as mãos do verdugo quando o delito-
processo alcançar o nível do delito-sentença (= pena-notícia). Muitas vezes
essas tensões são resolvidas por alguns operadores (...) mediante
flexibilização e cortes nas garantias que distanciam o delito-notícia da pena-
notícia. No processo de minimização do Poder Judiciário, o neoliberalismo se
vale de instrumento análogo aos empregados na sua obra econômico-social
(p. 273-274)

Por outro lado, a mídia também tem um papel central na construção e divulgação da
imagem do traficante como o portador e causador de todos os males contemporâneos. Nesse
sentido, Zaccone (2004) afirma que:

O “traficante” é sempre um ser perigoso e seu encarceramento se justifica para


além da realização do direito, como uma verdadeira necessidade, diante de sua
natureza de “fera”. O discurso do medo ganha retoques inquisitoriais com a
“demonização” do traficante, fato esse que encontra na mídia a força do
verdadeiro “empresário moral”. (p. 191)

Desse modo, a articulação desses dois eixos parece central para ampliar as
possibilidades de compreensão do fenômeno de recrudescimento do poder punitivo no Brasil
contemporâneo.

2.2 Salvador e a Questão Criminal

O espaço escolhido para a realização da pesquisa empírica foi a cidade de Salvador,


pelos motivos apresentados na introdução. As possibilidades de pesquisa empírica na região
Norte-Nordeste do país sobre a questão criminal ainda estão longe do esgotamento pelo enfoque
preferencial dado ao eixo Rio-São Paulo na tradição de pesquisa acadêmica neste campo. Além
disso, especificamente em relação a Salvador, a cidade passa por dois importantes processos
intrinsicamente relacionados: por um lado processos higienistas sob o falso pretexto de uma
“revitalização”, como apontado brevemente no primeiro capítulo, e de outro um importante
processo de recrudescimento penal. Nesse contexto, a política repressiva em relação às drogas
aparece como um dos elementos centrais desse processo.

58
Cidade de absoluta maioria de população negra (os pretos e pardos somados totalizam
cerca de 80% da população)104, constituiu-se como um importante palco de conflitos e rebeliões
ao longo da sua história tendo como protagonista as classes populares negras 105. O “medo
branco” da “onda negra” ainda mais reforçada após a revolta do Haiti (1791 – 1804) e da
Revolta dos Malês (1835), não diminuiu com o fim da escravidão. O historiador João Reis
(1988) adverte que nos primeiros estudos sobre a “questão negra”, na Bahia, em fins do século
XIX as “revoltas de muitas décadas atrás eram como metáforas de um perigo ainda fora de
controle” (p. 89).

A economia baseada na produção da cana de açúcar deu as bases de sustentação para


elementos que se refletem até hoje: os grandes latifúndios monocultores, dependentes quase
exclusivamente de uma mão de obra escravizada – o que no Brasil Colônia queria dizer mão de
obra negra – e orientados por um poder – punitivo inclusive – precipuamente privado. A
escravidão no Brasil – e especialmente na Bahia que recebeu boa parte dos escravizados vindos
da África – é central para compreender o longo processo de desumanização que ainda hoje
parece se associar – ainda que de forma mais furtiva – as negras e os negros brasileiros.

A entrada na “modernidade” na Bahia, ocorrida no regime ditatorial, integrou a lógica


de “modernização conservadora” do período. Conforme pontua Nelson de Oliveira (2000),
“tudo aconteceu sem que uma viga sequer do antigo sistema latifundiário tenha sido afetada ou
atingida por qualquer reformulação mais significativa” (p. 14). Sobre a violência que marcou
esse período o autor também destaca que:

Numa Bahia demarcada pela forte presença política e cultural de uma


oligarquia escravocrata e de uma classe média que, a rigor, jamais deixou de
cotejá-la, estranho seria tivesse sido diferente. Não por acaso, todas as forças
políticas que se identificaram com o tipo de modernidade que paulatinamente
foi sendo imposta, de modo algum abdicaram, ou sequer chegaram a estranhar
o uso da força e da violência desmedida como verificadas. Do ponto de vista
da ética predominante, raciocinava-se como se os antigos moradores e
posseiros, urbanos e rurais, estivessem impondo obstáculos a uma expansão,
pelo seu caráter de necessidade, justificava o grau de intensidade conferida ao
que compreendiam como medida de superação. (p. 14-15)

104
É comumente referida como a maior cidade negra fora da África:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-03/os-467-anos-de-salvador-cidade-mais-negra-fora-da-africa
105
“Quando os primeiros pesquisadores se debruçaram sobre a história do negro na Bahia, foi inevitável o
confronto com uma singular tradição rebelde. Nenhuma outra região do país havia experimentado, no curto período
de 30 anos (1807 – 1835), um número tão formidável de revoltas e conspirações escravas. Isso despertou, além de
curiosidade, uma espécie de preocupação retrospectiva. Com efeito, ao longo dos 20 anos que se seguiram à
abolição apareceram vários trabalhos sobre as revoltas baianas, alguns inclusive publicados na imprensa nacional”
(REIS, 1988, p. 89).
59
Tudo isso conduz à conclusão de que os processos de integração da Bahia a um
capitalismo mais “contemporâneo” só serviram para perpetuar relações de dominação, acentuar
as desigualdades e os processos de concentração de renda e aprofundar as diferenças entre
brancos e negros. Conforme coloca Bairros (1988): “A manutenção da divisão racial do trabalho
é, a cada momento, garantida pela criação e recriação de lugares subordinados dentro da
estrutura produtiva, essenciais ao processo de exploração, no qual se baseia a sociedade de
classes” (p. 302).

Por boa parte dos primeiros anos do novo regime democrático no país, o Estado foi
governado por um mesmo grupo político (entre 1991 e 2006), movimento que ficou conhecido
como “carlismo”, em razão da influência direta de Antônio Carlos Magalhães. Esse período é
marcado por importantes rearranjos espaciais na cidade, com a consolidação de um novo centro
financeiro e crescimento das regiões populares conhecidas como “Miolo” e “Subúrbio
Ferroviário”. Essas mudanças tiveram um forte impacto para a população habitante do Centro
Antigo, por exemplo, que viu boa parte dos empregos – formais e informais – desparecer (REIS,
2005).

Esse momento político também é marcado por um modelo de segurança pública que
“assumiu uma performance considerada muito violenta pelos especialistas da área de
segurança”106 (REIS, 2005, p. 102). A autora afirma, entretanto, a existência de uma
característica dual em tais políticas, que se por um lado, perpetuam práticas conservadoras de
controle social, por outro adotam práticas de políticas de segurança pública já em curso nos
países do centro.

Desde 2007, entretanto, o Estado é governado pelo Partido dos Trabalhadores, que
ganhou de maneira surpreendente o governo no primeiro turno das eleições 107, sendo essa
vitória sentida por diversos grupos de esquerda como uma derrota nas forças coronelistas que
tradicionalmente detinham o poder. Entretanto, o PT baiano não promoveu rupturas importantes
em relação às suas políticas criminais e, pelo contrário, os últimos anos não viram esmorecer a
truculência dos agentes do Estado.

106
“Esse período se caracterizou pela continuidade e reforço de práticas atrasadas e conservadoras em relação ao
judiciário e segurança pública – e a burocracia estatal como um todo –, como a referência por parte dos
governadores ao “meu juiz” ou ao “meu chefe de polícia” que mantém uma lógica do “uso privado das forças de
segurança e da parcialidade estatal” (REIS, 2005, p. 102).
107
http://eleicoes.uol.com.br/2006/estados/bahia/ultnot/2006/10/01/ult3752u69.jhtm;
http://eleicoes.uol.com.br/2006/estados/bahia/ultnot/2006/10/01/ult27u58102.jhtm;
http://csbh.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/bahia-cronica-de-uma-
vitoria-nao-anunciada;
60
Embora a Bahia não apresente, em definitivo, as piores taxas de encarceramento - com
uma taxa de 103 presos por 100 mil habitantes, fica a frente apenas de Piauí e Maranhão, e bem
atrás da média nacional de 300 presos por cem mil -, possui, entretanto, a terceira maior
proporção de encarceramento cautelar: 64% dos presos baianos, situação que coloca o Estado
atrás apenas do Maranhão (65%) e Tocantins (75%) (INFOPEN, 2014, p. 25). Isso significa
que apenas 36% dos presos baianos é um preso efetivamente condenado, ou seja, o sistema
“invertido” de que fala Zaffaroni (2011), não poderia estar mais evidente.

A Bahia possui também algumas das maiores taxas de ocupação de prisões108. Na CPI
carcerária de 2008 a Penitenciária Lemos de Brito – principal presídio do Estado – ficou em 4º
lugar no ranking das piores unidades prisionais do país e, dentre outras violações, a saúde dos
internos foi definida como um “caos” (p. 175), com diversos casos de HIV e tuberculose109.

A polícia baiana é também a terceira que mais mata em números absolutos - atrás apenas
de Rio de Janeiro e São Paulo - e a sétima em números relativos (ficando atrás de Rio de Janeiro,
Alagoas, Rio Grande do Norte, Pará, Paraná e Goiás). O alto número relativo de mortos pela
polícia – 2,0 por cem mil habitantes - a coloca bem acima da média nacional – de 1,6 mortes
por cem mil – de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2016, p. 25).

Em uma cidade de maioria negra as demandas por ordem têm na questão racial um eixo
central110. Vilma Reis (2005) aponta que a instituição policial na Bahia surge em 1825 com o
intuito de conter e destruir rebeliões escravas e quilombos. A autora afirma ainda que a atuação
da polícia baiana é marcada, ainda hoje, por três eixos: um racismo institucional, que tem como
consequência uma atuação baseada em um filtro racial, ignorado pelos poderes públicos em
razão de uma cegueira racial111. As “classes perigosas”, conforme afirmo no primeiro capítulo,

108
A Bahia está em 5º lugar na taxa de ocupação de vagas de presos provisórios com 285% (bem acima da média
nacional de 179%), 2º lugar na taxa de ocupação de vagas do regime semiaberto com 300% (enquanto o Brasil
tem uma taxa de ocupação desse regime de 156%) e possui o trágico 1º lugar na taxa de ocupação de vagas do
regime fechado (também bem abaixo da média nacional de 145%); o Estado não possui vagas específicas
destinadas ao regime aberto, ao menos de acordo com os dados relatados no Infopen, 2014 (p. 31). Isso
possivelmente faz do Estado uma das possíveis bombas relógio em um cenário de absoluta crise carcerária e
continuados massacres.
109
O problema da tuberculose nos presídios brasileiros tem sido reiteradamente denunciado por organizações e
pesquisadores/as ligados à área da saúde, em especial da saúde pública. Enquanto o Brasil apresenta uma
incidência de tuberculose de 33 casos por cem mil habitantes (o que já coloca o país entre os 20 países com mais
alta carga da doença no mundo), os presídios brasileiros possuem a absurda e alarmante cifra de 932 casos por
cem mil habitantes. Fonte: Fiocruz. Disponível em: < http://periodicos.fiocruz.br/node/399>.
110
"à tradição baiana na criminalização negra, percebo que de Nina Rodrigues, no final do século 19, ao Carlismo
dos anos 1990-2000, é recorrente a criminalização dos negros, o que fortalece a histórica política de suspeição
policial baseada no perfil racial" (REIS, 2005, p. 17)
111
Michelle Alexander (2012) ao falar da realidade norte-americana, afirma que se vive uma era de “color
blindness” que permite esconder, por exemplo, a alta seletividade racial do sistema penal. Essa “cegueira racial”
também é trabalhada por Bairros (1988) a partir do mito da democracia racial que “impede que percebamos as
61
tem no Brasil – e especialmente na Bahia – cor definida. Reis (2005) afirma que na capital
baiana:

raça parece ter um forte impacto na implementação das políticas de segurança


pública, uma vez que a maioria das vítimas das ações violentas do Estado e de
grupos tolerados pelo Estado, denominados em alguns estudos internacionais
de paramilitares, tem sido jovens-homens-negros. (p. 65).

Em 2011, a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia lançou a cartilha


“Tatuagens: Desvendando Segredos”. O objetivo deste trabalho - que teria envolvido oito anos
de “pesquisa” - seria o de dar mais elementos incriminantes aos policiais em sua atividade
cotidiana, trazendo diversas fotos de tatuagens e o suposto crime a qual ela corresponderia. De
acordo com Capitão Alden, idealizador da cartilha, ela “é apenas mais uma ferramenta que
poderá dar, ao policial, elementos inicialmente, subjetivos. É uma cartilha de orientação. A
partir dela, o policial tem que buscar mais informações na rede Infoseg e buscar as fichas
criminais”112.

Já no endereço eletrônico da Secretaria de Segurança Pública da Bahia também um outro


elemento chama a atenção: o “Baralho do Crime”, uma ferramenta “lúdica” criada pela SSP/BA
em 2011, em que cada carta de um baralho comum possui a foto dos supostos - ou nem tão
supostos assim - criminosos mais "perigosos" do Estado113. O objetivo é fazer com que a
população memorize as fotos dos “criminosos”, para denuncia-los. E se isso tudo não fosse o
bastante, o referido Portal ainda anuncia de forma orgulhosa: desde 2011, quando foi
implementado o programa, denúncias da população contribuíram para "tirar de circulação" –
incluindo presos e mortos -, 82 “criminosos”114.

A evolução do orçamento do Estado da Bahia de 2014 para 2015 deixa entrever as


prioridades governamentais: enquanto a educação teve um aumento de 1,7% e a saúde de 6,1%,
a área de segurança pública viu seu orçamento subir 16,0%115. Em 2016, uma notícia anuncia

atitudes discriminatórias no recrutamento e seleção de pessoal” (p. 319), ao tratar das diferenças raciais percebíveis
na força de trabalho da Bahia.
112
Disponível em: <http://www.bahianoticias.com.br/noticia/147232-cartilha-da-pm-ba-que-associa-tatuagens-a-
crimes-e-apresentada-a-guarda-municipal-de-salvador.html>. Acesso em: 07/06/2014.
113
O baralho possui fotos de pessoas condenadas, mas também de réus em processos criminais e pessoas que sequer
foram denunciadas pelo Ministério Público. Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, disponível
em: <http://www.pactopelavida.ba.gov.br/servicos/mais-procurados/>. Acesso em: 25/06/2014.
114
Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, disponível em:
<http://www.ssp.ba.gov.br/2016/12/1647/Baralho-do-Crime-ja-tirou-de-circulacao-82-bandidos-.html>. Acesso
em: 25/01/2017.
115
http://www.aratuonline.com.br/blogdepabloreis/2015/01/24/maiores-orcamentos-da-bahia-educacao-e-saude-
seguranca-foi-a-mais-beneficiada-inchaco-da-maquina-continua/
62
que a maior parte do orçamento do Estado iria para área social (63%), esta, entretanto inclui
além de educação, saúde e previdência social, segurança pública116.

A “guerra às drogas” aparece nesse contexto, tal como no resto do país, como um
importante instrumento de legitimação da atuação violenta da polícia. Em junho de 2006, do
total de crimes praticados pelos quais as pessoas encontravam-se presas na Bahia, 15%
correspondiam ao crime de tráfico de drogas; já em junho de 2014 o crime de tráfico
correspondia a 32% do total117, número superior à média nacional (27%).

O governo baiano veiculou em 2010 diversas mensagens publicitárias em outdoors que


afirmavam que “80% das mortes [sem especificá-las] estariam relacionadas com o crack. As
fotos mostravam pés com etiquetas claramente relacionada à morte violenta e ao Instituto
Médico-Legal, ou então uma mãe lamentado a morte do seu filho(a) pelo crack”118. A
mensagem não podia ser mais clara como a veiculada outra peça publicitária veiculada na
mesma época, na Bahia “Crack é cadeia ou caixão”119.

2.3 Antecipando a Pena? Os Achados de Pesquisa e Algumas Reflexões

2.3.1 Notas sobre a Pesquisa Empírica

Uma vez delineados os eixos centrais, bem como o local estudado, apresento agora a
análise realizada com base nos dados coletados ao longo da pesquisa de modo a interligar esse
“horizonte interpretativo” mais amplo, que tentei construir ao longo dessas páginas, com um
objeto empírico, de modo a tentar ampliar as possibilidades de análise.

O objeto empírico estudado são os processos concluídos em primeira instância no ano


de 2015, nas três Varas de Tóxicos da capital baiana, em especial as sentenças e decisões
interlocutórias relativas a prisão/liberdade aí proferidas.

As Varas de Tóxico aparecem já na Lei de Organização Judiciária baiana de 1979, onde


consta que dentre as varas criminais deverá constar uma vara “privativa dos feitos relativos a

116
http://www.secom.ba.gov.br/2015/09/128291/Proposta-orcamentaria-da-Bahia-para-2016-preve-aumento-de-
65.html
117
Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-
22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7B42EF698F-6383-4685-B544-
EFFBB8766A98%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 10
jul. 2015.
118
https://conversandocomnery.wordpress.com/2010/09/14/crack-e-cadeia-ou-caixao-%E2%80%93-uma-
proposicao-indecente/
119
Fonte: <http://www.bahianoticias.com.br/2011/imprime.php?tabela=principal_noticias&cod=107328>
63
Tóxicos”120. Embora não tenha conseguido encontrar informações sobre quando esta vara foi
de fato implementada, o certo é que não é por acaso que ela aparece neste momento. Conforme
discutido na primeira parte deste capítulo, o fim da década de 1970 representa o período em
que o tráfico de drogas vai sendo alçado à posição de um dos grandes problemas nacionais.
Também, destaque-se que a Lei de Drogas de 1976 (n. 6.368/76) estabelece que “os Tribunais
de Justiça deverão, sempre que necessário e possível (...) instituir juízos especializados para o
processo e julgamento dos crimes definidos nesta Lei”.

A Lei de 1979 foi revogada pela Lei de Organização Judiciária de 2007, que prevê a
existência de 5 Varas de Tóxicos dentre as varas criminais baianas. No ano da promulgação da
referida lei já havia a existência de duas varas especializadas em tóxicos no Estado e em 2014
foi implementada a 3ª Vara de Tóxicos de Salvador121.

Tendo buscado em diferentes fontes informações sobre o histórico da criação das varas
de tóxicos (ou ainda vara de drogas/entorpecentes/tráfico de drogas) não só na Bahia, mas no
Brasil como um todo, apenas encontrei referência a varas criadas recentemente e, mais relevante
que isso, encontrei pouca discussão – seja no âmbito acadêmico ou no próprio judiciário –
acerca da criação dessas varas, seus significados simbólicos e a relação – ou não – com o
expressivo número de encarcerados por esse delito no Brasil. Em Valois (2017) encontramos
uma crítica relevante a essas varas no sentido de que “as varas especializadas em crimes de
tráfico de drogas que, assim como varas de combate, dão ao magistrado, conforme indicam os
nomes dessas varas, o simbolismo, a função de combatente” (p.431).

Entretanto, a discussão que parece dominar o debate sobre o tema foi se essas varas dão
celeridade ou não ao julgamento de tais delitos que representam um grande número – e em
muitos Estados a maioria – dos processos criminais. A cidade de Recife, por exemplo,
recentemente criou mais duas varas de entorpecentes122 para dar conta da grande quantidade de
processos criminais de tráfico de drogas julgados na capital pernambucana. De acordo com o
Presidente do Tribunal de Justiça desse Estado, tal medida foi necessária “porque estamos
convencidos que a droga é responsável pelo crescimento da violência em Pernambuco”123.

120
A Lei de Organização Judiciária de 1966 não faz referência a existência de uma vara privativa de tóxicos.
121
http://www.bahiatodahora.com.br/noticias/criacao-de-vara-especializada-em-presos-envolvidos-com-toxicos-
visa-acelerar-processos-em-salvador
122
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2016/01/24/interna_politica,623103/o-tribunal-
nao-pode-se-fechar-em-copas-diz-presidente-do-tjpe.shtml
123
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2016/01/24/interna_politica,623103/o-tribunal-
nao-pode-se-fechar-em-copas-diz-presidente-do-tjpe.shtml
64
Em Teresina, por sua vez, os juízes locais demandam a criação de varas especializadas
já que aumentaria a “celeridade” dos julgamentos, ajudando a desafogar as varas criminais. De
acordo com o presidente do Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas do Piauí “a
criação de uma Vara exclusiva propiciaria um combate mais efetivo ao tráfico de drogas”124. A
ideia, de acordo com um juiz piauiense, é dar uma resposta rápida ao crime de tráfico que hoje
é a “mãe de todos os delitos”125.

Por outro lado, Fortaleza recentemente extinguiu suas três “Varas de Delitos sobre
Tráfico e Uso de Substâncias Entorpecentes”. Segundo o Tribunal havia uma ideia inicial de,
ao contrário, serem criadas mais duas varas especializadas, mas, em razão da grande demanda,
optou-se pela extinção das varas, com a consequente distribuição desse delito entre todas as
varas criminais comuns. A ideia, portanto, de dar “mais celeridade”, seria alcançada não com a
criação de mais varas, mas com o processamento das condutas relativas ao delito de tráfico em
todas as varas criminais126.

Em uma das decisões interlocutórias objeto do próximo capítulo, o magistrado, em


resposta à defesa que afirma haver um excesso de prazo na medida (o réu se encontrava preso
há 6 meses e a instrução penal sequer havia sido iniciada), utiliza o seguinte argumento para
fundamentar a manutenção do réu em custódia preventiva:

Convém pontuar que a Bahia, apesar de ser o terceiro maior Estado do País,
possui, em sua capital, apenas duas varas de tóxicos, enquanto o artigo 130,
da LOJ/BA, prevê a existência de cinco unidades. Segundo relatório do
SECODI, vinculado à CGJ/BA, publicado no DPJ, esta vara recebeu, em
maio/2014, 157 processos novos, enquanto as varas criminais comuns da
capital receberam, em média, cerca de 50 a 60 processos no mesmo período
(processo n. 0501763-73.2014.8.05.0001).

De toda maneira, o que parece prevalecer é um discurso onde o Judiciário é visto não
como um órgão que deve se manter imparcial nos julgamentos de processos criminais, mas
deve assumir uma verdadeira postura de “combate” ao tráfico de drogas, claramente

124
http://www.portalodia.com/noticias/piaui/tj-quer-vara-exclusiva-para-julgar-crimes-do-trafico-de-drogas-
165436.html
125
http://cidadeverde.com/noticias/217824/juiz-faz-apelo-para-que-7-vara-seja-exclusiva-para-julgar-trafico-de-
drogas; http://cidadeverde.com/noticias/147589/juiz-diz-que-uso-de-drogas-e-febre-no-pi-e-que-tj-cochilou;
http://www.meionorte.com/blogs/saviabarreto/tj-pi-quer-vara-exclusiva-para-crimes-de-trafico-241143
126
“De acordo com o juiz Eduardo de Castro Neves, coordenador das Varas Criminais do Fórum Clóvis Beviláqua,
a mudança foi feita para dar maior celeridade aos processos. ‘Há 1.400 processos para dois juízes, que agora serão
distribuídos por 21 Varas Criminais. Chegamos a pensar na criação de mais uma ou duas Varas de Delitos sobre
Tráfico e Uso de Substâncias Entorpecentes, mas não iria atender à demanda. Quando há concentração demais,
tende a estrangular o fluxo’, comentou o coordenador”. Disponível em: < http://www.tjce.jus.br/noticias/justica-
extingue-as-varas-de-toxicos/>
65
inquisitorial. Geraldo Prado (2005) chama a atenção que em um sistema acusatório as ações de
introduzir e valorar provas devem ser mantidas rigidamente separadas, aduzindo que:

A ordem das coisas colocadas no processo permite, pragmaticamente,


constatarmos que a ação voltada à introdução do material probatório é
precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado
material possa determinar, se efetivamente incorporado ao processo. (p. 218)

Em resumo, um breve levantamento entre as capitais dos 26 Estados brasileiros e


Distrito Federal apontou que pelo menos 12 delas possuem varas especializadas no julgamento
dos delitos da Lei 11.343/2006, sendo elas Rio Branco, Manaus, Boa Vista, Porto Velho, São
Luís, João Pessoa, Recife, Maceió, Salvador, Cuiabá, Belo Horizonte e Distrito Federal.

No caso de Salvador, a existência das varas especializadas me propiciou um privilegiado


campo de pesquisa, já que não precisei realizar uma triagem dos delitos ali julgados, uma vez
que as três varas de tóxicos do Estado julgam apenas aquelas condutas tipificadas no art.33 da
Lei n. 11.343/2006. Não quis me vincular a uma única vara de modo a poder ter acesso a
diferentes juízes, permitindo ampliar as possibilidades de análise.

Destaco que as sentenças analisadas no capítulo 2 foram proferidas por 14 juízes


diferentes. Para evitar estigmatizações, eles serão chamados de juiz/a A, B, etc., quando houver
necessidade de nominá-los. Apenas para demonstrar que a amostra é de fato representativa é
relevante apontar que: o/a juiz/a A proferiu 34 sentenças, o/a juiz/a B 2 sentenças, o/a juiz/a C
9 sentenças, o/a juiz/a D 108 sentenças, o/a juiz/a E 114 sentenças, o/a juiz/a F 67 sentenças,
o/a juiz/a G 3 sentenças, o/a juiz/a H 23, o/a juiz/a I 99, o/a juiz/a J 34, o/a juiz/a K 1, o/a juiz/a
L 36 sentenças, o/a juiz/a M 17 sentenças e o/a juiz/a N 57 sentenças.

Pontuo, ainda, que, não interessa aos propósitos deste trabalho demonizar determinados
juízes e/ou criticar posturas individuais, mas fazer um panorama das posições e discursos do
judiciário frente a uma determinada questão, razão pela qual não houve uma preocupação em
apontar quantas condenações proferiu o/a juiz/a A ou quantas pessoas responderam o processo
presas em processos julgados pelo/a juiz/a G, por exemplo. Destaco ainda que dentre os/as
juízes/as haviam 6 homens e 8 mulheres. A mesma observação deve ser feita em relação as
decisões interlocutórias que foram analisadas de maneira mais detida no capítulo 3; estas foram
proferidas por 30 juízes diferentes.

Optei por processos findos, pois me pareceu que seria importante verificar não só se os
réus respondiam ao processo criminal presos – como demonstram a maior parte das pesquisas

66
nesse sentido e as estatísticas oficiais -, mas também – e isso é muito relevante – o que ocorreria
após a sentença. Seriam eles de fatos condenados, e, em caso positivo, essa condenação
implicaria em uma pena de prisão? Uma observação superficial e sem qualquer preocupação de
rigor científico, durante uma experiência de estágio em uma dessas varas no período de
graduação, me levava a crer que um número relevante desses réus não ficaria preso após a
sentença. Não só pela possibilidade de absolvição, mas, mesmo em caso de condenação, pela
possibilidade de fixação do regime aberto, pela conversão da pena de prisão em uma pena
restritiva de direitos, ou ainda por já terem cumprido a totalidade da pena presos.

Zaffaroni (2011) observou situação semelhante na América Latina, sugerindo que boa
parte dos presos cautelares será absolvido ou liberado por ausência de provas – o que no Brasil,
em razão do inciso VII do art. 386 do CPP implica a mesma coisa – ou já terá cumprido a
totalidade da pena preso provisoriamente. Desse jeito, os processos já sentenciados poderiam
me dar mais elementos para compreender as funções ocultas – para além das declaradas –
cumpridas pelas prisões cautelares.

O trabalho de coleta de dados começou com a leitura do Diário Eletrônico de Justiça da


Bahia127 – de livre acesso ao público -, pela internet, onde estão disponíveis todas as edições
deste Diário desde 11 de maio de 2009128. Optei por selecionar todas as sentenças - pois como
já expliquei me interessavam os processos conclusos - proferidas pelas três varas especializadas
em tóxicos de Salvador no ano de 2015. O ano foi escolhido para que a análise fosse a mais
atualizada possível129.

“Sentença” é aquela decisão que põe fim ao processo, podendo ter caráter condenatório,
absolutório (próprio ou impróprio) ou declaratório (de extinção de punibilidade) (LOPES JR.,
2013). Coletei, então, toda a decisão que encerrou o processo para pelo menos um dos réus,
mesmo que, em caso da existência de corréus, tenham determinado a continuidade do feito para
os demais.

Tendo iniciado a coleta de dados tomando por base as sentenças publicadas no Diário
Eletrônico de Justiça da Bahia de 2015, busquei complementar esta coleta inicial, por meio da
“consulta processual” do sítio eletrônico do Tribunal da Justiça da Bahia, acessando a

127
http://www.tjba.jus.br/diario/internet/pesquisar.wsp#
128
Os diários antes dessa data não eram disponibilizados por meio eletrônico pelo que pude constatar, já tendo
parte deles – a partir de 2007 – sido digitalizados. O acesso é possível por meio de outra base de dados.
129
Visto que este trabalho foi iniciado em 2016 e me interessava o acesso a um período anual completo, de modo
a evitar eventuais discrepâncias que podem ocorrer com algum eventual “aperto” do CNJ, por exemplo, para o
cumprimento de determinadas metas.
67
“movimentação processual” desses processos (também de livre acesso ao público)130. Isso me
permitiu, por exemplo, descartar alguns processos cuja sentença já havia sido anteriormente
publicada, mas por erro teve sua publicação repetida131. Descartei também os processos em que
os réus foram denunciados nos Juizados Especiais pelo delito do art. 28 – porte para uso pessoal
-, mas que em razão de necessidade de citação por edital, por exemplo, foram mandados para
as Varas Criminais. Também foram descartadas as sentenças que extinguiram a pretensão
executória de processos já sentenciados. Foram em síntese selecionados 604 processos, com
928 réus.

Dividi minha análise em dois momentos, um de caráter quantitativo e um qualitativo.


No primeiro momento me debrucei essencialmente nas sentenças coletadas, e a partir das quais
montei uma base de dados utilizando o programa “Excel”.

Na planilha inclui os dados referentes as seguintes variáveis: número do diário132;


número da vara (1ª/2ª/3ª); número do processo; nome do réu; sexo (F/M); preso provisório
(Sim/Não); duração da prisão (parcial/total/NSA); resultado do processo
(absolvição/condenação/desclassificação art. 28/extinção da punibilidade); artigo e pena (em
caso de condenação/NSA para os demais casos)133; regime de cumprimento de pena
(Fechado/Semiaberto/Aberto/NSA); substituição da pena de prisão por pena restritiva de
direitos (Sim/Não/NSA); fundamento da absolvição (dentre os incisos do art. 386 do
CPP/NSA); fundamento da extinção de punibilidade (dentre os incisos do art. 107 do CP/NSA);
condenação por arma (Sim/Não)134. Os dados foram analisados com as ferramentas disponíveis
no próprio programa “Excel”.

Além disso, optei por classificar a prisão apenas em “total” ou “parcial” em relação ao
tempo do processo pois os dados da prisão muitas vezes estão dispersos e às vezes sequer o/a
magistrado/a tem certeza se o réu está preso, ou não, no curso do processo. Isso tornaria muito
difícil obter dados mais detalhados que permitissem reconstruir o período exato de prisão de
cada um dos réus, exceto para aqueles que ficaram presos totalmente, pois isso é, em geral,
informado na própria sentença. Infelizmente os dados sobre prisão muitas vezes foram difíceis

130
Em alguns (poucos) casos, foi necessário também procurar no sistema de busca “google”, usando como palavra-
chave os nomes dos réus, de modo a através de sites de busca jurídica como o jusbrasil encontrar informações
como o Auto de Prisão em Flagrante ou processos de Liberdade Provisória, etc.
131
Fiz isso para que, por exemplo, uma pesquisa que estude as sentenças publicadas em 2014, por exemplo, não
use um mesmo processo que utilizei como publicado em 2015, afinal já publicado anteriormente.
132
Número da edição do Diário da Justiça do Estado da Bahia onde a sentença foi publicada. As sentenças
proferidas em 2015 estão nos diários de n.1346-1579.
133
Esse dado não foi analisado para este trabalho.
134
NSA ou “Não Se Aplica” foi utilizado para preencher os casos não aplicáveis.
68
de conseguir ou conseguidos de maneira incompleta135. Para 61 réus (6,6% do total) não obtive
informações suficientes para afirmar se ficaram presos por aquele processo e o período136.

Importante frisar ainda que não considerei como “preso cautelar” os réus presos em
flagrante que não tiveram essa modalidade de prisão convertida em preventiva. Destaco ainda
que dentre aqueles que responderam o processo todo em liberdade – 124 pessoas -, 93% foram
presos em flagrante. Assim, mesmo que não tenham tido o flagrante convertido em preventiva
– critério aqui utilizado para classificar se o acusado ficou preso no processo ou não –é certo
que também esses indivíduos sofreram as agruras da prisão até o julgamento do Auto de Prisão
em Flagrante. Entretanto, optei por só considerar preso preventivo aquele que teve o flagrante
convertido em preventiva ou que teve a prisão preventiva decretada por um juiz137.

Sobre o resultado dos processos, algumas considerações são necessárias: só considerei


como “absolvição” aqueles que não tiveram qualquer condenação; aqueles réus absolvidos de
um dos tipos penais presentes na denúncia, mas condenados por outros, foram considerados
condenados. Também em relação ao resultado do processo foram feitas algumas subdivisões;
para os condenados algumas variáveis foram consideradas: o tipo de regime aplicado (isso era
essencial para saber se ficariam efetivamente presos ou se foram condenados ao regime aberto,
por exemplo) e se a pena de prisão foi convertida para uma restritiva de direitos (o que significa
que o réu não ficou preso após a sentença). Para os que tiveram a punibilidade extinta, foi
destacado qual o inciso do art. 107 do CP que fundamentou essa extinção.

135
Alguns dos dados relativos à prisão foram complementados com os dados publicamente disponíveis na
“movimentação processual” do referido processo, acessado por meio da “consulta processual” do sítio eletrônico
do Tribunal de Justiça da Bahia, também disponível ao público, não se restringindo aos dados disponíveis nas
sentenças, muitas vezes insuficientes.
136
Dentre esses, 23% foram absolvidos, 13,1% tiveram o delito de tráfico desclassificado para o art.28 e 44,3%
tiveram a punibilidade extinta. Apenas 19,7% foram condenados (11,5% ao regime aberto, 4,9% ao regime
semiaberto e 3,3% ao regime fechado).
137
É importante, ainda, fazer uma observação: como este trabalho teve como objeto processos sentenciados em
2015, as audiências de custódia não fizeram parte da análise, uma vez que só foram implantadas na cidade de
Salvador em 28/08/2015. Entretanto, algumas pesquisas iniciais tem apontado que estas “prendem mais do que
soltam” (http://g1.globo.com/politica/noticia/audiencias-de-custodia-prendem-mais-do-que-soltam-em-23-dos-
estados.ghtml). Relatórios já foram produzidos em alguns Estados (como São Paulo e Rio de Janeiro), mas ainda
não haviam informações mais detalhadas da situação das audiências em Salvador até o momento de término deste
trabalho. Entretanto, muitas são as críticas que a mídia hegemônica tem feito em relação as audiências de custódia
realizadas na capital baiana, reiterando-se constantemente a ideia de que a “polícia prende mas a justiça solta”
(http://www.correio24horas.com.br/detalhe/salvador/noticia/policia-prende-justica-liberta-casos-de-presos-
soltos-apenas-24h-depois-somam-13-mil-em-seis-meses/?cHash=f89ed5ae016281fcc40243e3d68a9946). Além
disso, o próprio Governador do Estado (Rui Costa do PT) fez um apelo ao Judiciário alguns dias antes do carnaval
de 2017, “a fim de flexibilizar o procedimento para que os detidos não sejam soltos imediatamente”, pois, segundo
ele “o processo de soltura apenas 24 horas após o delito vai acarretar em reincidência” (Disponível em:
http://www.bahianoticias.com.br/noticia/203230-para-rui-soltura-imediata-de-presos-pode-aumentar-delitos-de-
reincidentes-no-carnaval.html)
69
Já em um segundo momento aprofundei as análises sobre os réus que ficaram presos
durante todo o processo, 203 pessoas (21,9% do total), adotando uma estratégia qualitativa
sobre as decisões interlocutórias decretadoras/mantenedoras da situação de prisão. Boa parte
dos argumentos se repetiam ao longo das decisões – não obstante as diferenças existentes entre
as situações concretas – conforme será apresentado no terceiro capítulo.

Nessa segunda parte da pesquisa, cujos resultados serão apresentados no terceiro


capítulo, comecei a análise de forma exploratória, sem um questionário pré-definido, mas
sabendo que gostaria de discutir quais os fundamentos que se faziam presentes naquelas
decisões; foi possível perceber, então, que muitos dos argumentos que se repetiam ao longo
delas nada tinham que ver com a suposta função instrumental cumprida pelas medidas
cautelares. É Marc Bloch (2001) quem observa que textos e documentos “não falam senão
quando sabemos interroga-los”, apontando a necessidade de um questionário – ainda que
instintivo e flexível - “suscetível de agregar, no caminho, uma multiplicidade de novos tópicos,
e aberta a todas as surpresas”, de modo que “possa desde o início servir de imã às limalhas do
documento” (p. 79) e de se estar atenta aos vestígios pois são por meio deles que “conseguimos
(...) saber (...) muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer” (BLOCH, 2001, p.
78).

Ginzburg (1989) também sugere a necessidade do uso de indícios e vestígios. Se o


processo judicial é, essencialmente, uma versão “oficial” dos fatos e, portanto, a versão dos
“vencedores”, é necessário buscar as pistas, sinais e indícios que permitem ajudar a “dissolver
as névoas da ideologia” (p. 177) que marcam o discurso oficial, especialmente aquele que,
conforme já afirmei, se propõe neutro. Conforme destaca o autor: “Se a realidade é opaca,
existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifrá-la” (idem).

Por fim, utilizo também algumas das ferramentas da técnica da análise do discurso. O
discurso a ser analisado dentro dessa concepção teórica é entendido como um "objeto cultural,
produzido a partir de certas condicionantes históricas" (FIORIN, 2007, p. 10), elemento
particular da materialidade ideológica, ou seja, o discurso é a materialidade específica da
ideologia (ORLANDI, 2012, GOMES, 2013).

A análise do discurso será utilizada como um instrumental relevante na área jurídica


"para aprofundar como decidem e justificam suas decisões os juízes" (GOMES, 2013, p. 44),
“revelar qual ou quais ideologias de fizeram presentes [nas decisões judiciais]” (idem, p. 47) e
auxiliar na compreensão não só do que os discursos jurídicos professam, mas também o que

70
eles escondem (BATISTA, 2003b). Como observou Nilo Batista (2004), a análise do discurso
pode ser utilizada para tentar “(...) surpreender os sentidos do silêncio na prática judiciária”.

Fiorin (2007) ao discutir a relação entre linguagem e ideologia, a partir da análise do


discurso, afirma que “o conjunto de elementos semânticos habitualmente usado nos discursos
de uma dada época constitui a maneira de ver o mundo numa dada formação social”. Assertivas
como “os homens são desiguais por natureza” ou “na vida vencem o mais forte” são
“assimilados (...) pelo homem ao longo da sua educação, constituem a consciência e, por
conseguinte, a sua maneira de pensar o mundo” (p. 19).

Assim, em um mundo moldado na lógica punitiva, onde o tráfico de drogas é


transformado na causa dos grandes malefícios da sociedade, os juízes que não podem se despir
das suas próprias opiniões no ato de julgar e expressam também em suas decisões sua “maneira
de pensar o mundo”. Repetidas vezes frases como “o tráfico de drogas estimula a violência”,
ou que ele “tem um grande impacto nas comunidades locais, destruindo lares e famílias”, ou
ainda de que é “preciso a atuação do Poder Judiciário” para “retirar de circulação as pessoas
que se envolvem na prática de tais delitos, sob pena de o sentimento de impunidade desencadear
uma série de novos delitos e aumentar a sensação de insegurança dos cidadãos” revelam uma
forma de ver, pensar e sentir a questão criminal e a conflitividade social como um todo.

Fiorin (2007) observa que é a partir do nível fenomênico – aparência – que se constroem
as ideias dominantes numa dada formação social e estas se transformam em “racionalizações
que explicam e justificam a realidade” (p.28). Assim, em uma sociedade capitalista aparecem
ideias que reforçam a naturalização das desigualdades sociais; em tempos do Estado penal se
reforça a ideia da “criminalidade” como uma questão ontológica, e não uma construção social
orientada por processos de criminalização.

O objeto do terceiro capítulo são, então, as decisões interlocutórias


decretadoras/mantenedoras de prisão nos casos em que o réu ficou preso todo o processo.
Inicialmente pensei em analisar as decisões interlocutórias de todos os processos nos quais o
réu ficou preso, fosse parcialmente ou totalmente. Entretanto, diante do excessivo volume de
decisões – tratam-se de 743 réus - isso não foi possível, razão pela qual restringi a análise apenas
para os casos em que o réu passou todo o processo preso (203 réus).

O acesso ao conteúdo de cada processo se deu através da “consulta processual” do site


do TJ-BA e, em seguida, foi feita a busca das decisões na “movimentação processual” (tudo de
livre acesso ao público). Algumas decisões foram encontradas diretamente na movimentação
71
do processo principal. Outras foram encontradas na “movimentação processual” dos processos
apensos ao processo principal, seja o “auto de prisão em flagrante”, sejam processos específicos
para requerer a liberdade provisória do réu. Em 11 casos, ainda, a decisão foi retirada de
processo de habeas corpus – tendo como autoridade coatora o juiz de primeira instância -, pois
não foi possível encontrar nenhuma decisão em primeira instância. Para 20 réus não foi possível
encontrar qualquer decisão138.

Para quase todos os réus só encontrei uma decisão interlocutória relativa a prisão, casos
em que não foi necessário ser feita nenhum tipo de seleção. Para os poucos casos onde foi
possível encontrar mais de uma, foi dada prioridade aquelas decisões que discorriam mais sobre
seus fundamentos, aprofundando-os, sendo descartadas decisões como “reitero os argumentos
da decisão de fls. [tal]” pela simples razão de que elas não permitiriam avançar na discussão.

Ainda no início da minha coleta de processos (quando estava montando a minha base
de 928 réus) pude perceber, de forma preliminar, que boa parte das decisões se articulavam
sobre alguns eixos que permitiriam fomentar a discussão sobre as funções reais da prisão
cautelar, para além dessa suposta função instrumental.

Após essa análise exploratória foi possível montar um formulário simples em forma de
tabela no programa “Excel”, onde além dos dados identificadores da decisão (como nome do
réu e número do processo) pude organizar os eixos argumentativos que me interessavam
estudar. Se em sua função declarada as prisões antecipadas cumprem uma função
“instrumental”, de apoio, ao processo principal, me interessava buscar os argumentos não
instrumentais e não jurídicos que permeavam esses documentos.

Uma questão final metodológica merece destaque por sua relevância: os dados sobre
raça não são disponibilizados nas sentenças e nas decisões interlocutórias o que me impediu de
trazer isso em números. Entretanto, vim tentando construir ao longo de todo o trabalho o
argumento de que a questão racial é um eixo estruturante do sistema penal brasileiro em razões
que encontram raízes na nossa própria história. Além disso, em uma cidade de 80% de
população negra, que possui 87,82% de negros em seu sistema prisional (INFOPEN, 2014, p.
31), a raça é elemento constitutivo e presente, mesmo quando não é possível acessá-la através
de dados estatísticos.

138
Isso aconteceu nos casos em que a decisão que converteu o flagrante em preventiva foi feita em autos físicos,
e, após essa primeira decisão, o réu foi simplesmente mantido preso sem que a sua situação fosse analisada
novamente até o momento da sentença.
72
Dessa maneira é que, como apontei no primeiro capítulo, pretendo articular os dados
estatísticos aqui apresentados com um horizonte teórico mais amplo, conjugando estratégias
qualitativas e quantitativas, esperando com isso conseguir agregar mais um instrumento que
ajude na aproximação dessa realidade, que exprime um fenômeno tão complexo e tantas vezes
encoberta pelas “névoas da ideologia” (GINZBURG, 1989) que marcam o discurso oficial.

2.3.2 Os Achados

No meu Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação139 tive a oportunidade de refletir


sobre o papel cumprido pelas prisões cautelares. Me parecia, então, que o papel instrumental
supostamente cumprido por “medidas cautelares”, não tinha nada a ver com a efetiva aplicação
da medida de aprisionamento provisório.

No presente trabalho, entendi que, ao relacionar um estudo sobre prisões cautelares com
as políticas proibicionistas em matéria de drogas, teria dois elementos que, sob um manto de
suposta legalidade, autorizam uma atuação arbitrária das agências do sistema penal. Seja por
intermédio dos policiais - que realizam uma primeira etapa da criminalização secundária,
identificando aqueles em “atitude suspeita” em meio à totalidade dos cidadãos -, sejam os juízes
que podem punir sem processo – através das prisões cautelares – deixando entrever nos seus
discursos muito mais do que gostariam mostrar sobre suas próprias opiniões e preconceitos.

Minha ideia em estudar processos já sentenciados em primeira instância era poder


articular a relação entre a prisão provisória – instrumento que permite uma ampla margem de
arbitrariedade na aplicação pelo julgador – e o resultado final do processo – momento balizado
por mais regras formais -, para saber quantos dentre os presos provisórios efetivamente ficariam
presos após a sentença.

Os primeiros dados coletados foram relativos à prisão provisória. Em 21,9% dos casos
analisados o réu ficou preso durante todo o processo, 58,2% ficaram presos parte do processo;
13,4% responderam a todo o processo em liberdade. Em 6,6% dos casos não conseguimos
encontrar informações suficientes sobre prisão para poder saber com certeza como elas
responderam ao processo, conforme expliquei no tópico anterior.

139
Bem como no artigo publicado na Revista Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 184-210, jan./jun. 2016, sob o título
“Cautelaridade penal ou controle social? Um olhar crítico sobre as prisões cautelares no Brasil”, formulado a partir
das reflexões do TCC.
73
Já quanto ao resultado do processo, temos o seguinte cenário: 34,3% dos réus foram
absolvidos, 44,1% foram condenados, 7,8% tiveram a conduta desclassificada do art. 33 para o
art. 28, e 13,9% dos réus tiveram a punibilidade extinta. No caso da extinção da punibilidade
uma questão se destacou e foi impossível ignorá-la: dos 129 réus que tiveram a punibilidade
extinta, apenas 31 (24%) foram em razão da prescrição; os outros 98 réus (76%) tiveram a
punibilidade extinta em razão do art. 107, I, ou seja, em caso de morte do agente. Pela especial
relevância do absurdo número de mortos no curso do processo optei por discutir essa questão
de maneira independente no próximo tópico.

Quando cruzamos os dados, o que emerge é o seguinte panorama: dentre os que NÃO
ficaram presos em nenhum momento do processo (ou seja, responderam todo o processo em
liberdade), num total de 124 pessoas, 41,9% foram absolvidos, 29,8% condenados, 10,5%
tiveram a conduta imputada de tráfico desclassificada para o art. 28 e 17,7% tiveram a
punibilidade extinta, conforme gráfico abaixo:

GRÁFICO 01: RESULTADO DO PROCESSO DE


RÉUS QUE RESPONDERAM A TODO O
PROCESSO EM LIBERDADE

Absolvição Condenação
Desclassificação art. 28 Extinção da punibilidade

18%
10% 42%
30%

Dentre os que ficaram presos parcialmente (540 pessoas), 35,9% foram absolvidos,
42,2% condenados, 7,4% tiveram o delito desclassificado para o art. 28 e 14,4% tiveram a
punibilidade extinta:

GRÁFICO 02: RESULTADO DO PROCESSO DOS


RÉUS QUE FICARAM PARCIALMENTE PRESOS

Absolvição Condenação Desclassificação art. 28 Extinção da punibilidade

15%
7% 36%

42%

74
Por fim, dentre os que ficaram presos durante todo o processo (203 pessoas) 28,6%
foram absolvidos, 65% condenados, 5,4% tiveram o delito desclassificado para o art. 28 e 1%
tiveram a punibilidade extinta, conforme o gráfico abaixo:

GRÁFICO 03: RESULTADO DO PROCESSO DE


RÉUS QUE RESPONDERAM TODO O
PROCESSO PRESOS

Absolvição Condenação
Desclassificação art. 28 Extinção da punibilidade

1%
5%
29%

65%

É relevante destacar que as menores taxas de condenação estão entre os réus que
responderam o processo em liberdade (30%); por outro lado entre os que responderam ao
processo todo privados de sua liberdade, a condenação corresponde a grande maioria dos casos
(65%). Isso ajudaria a reforçar a ideia de que a prisão cautelar é vista antes de tudo como uma
forma de punição antecipada, ou seja, por meio dela o juiz já deixa entrever o que pensa sobre
aquele réu e aquela determinada situação.

Ou seja, se para decretar a prisão preventiva o juiz precisa registrar a existência de fortes
indícios de materialidade e autoria – além de outros requisitos -, ele parece indicar, ainda no
curso da instrução probatória, ou antes mesmo do seu início, que acredita haver fortes indícios
de que aquele réu de fato cometeu o crime. A análise dos principais argumentos utilizados na
fundamentação da decretação/manutenção da prisão preventiva permitirá trazer mais elementos
para essa análise.

No mesmo sentido, a “ordem” das absolvições tampouco se altera: é maior entre os que
responderam o processo em liberdade (42%), seguida por aqueles que responderam parte do
processo em liberdade (36%) e, por fim, por aqueles que respondera todo o processo preso
(29%). Destaque-se que mesmo “menor”, o número de absolvições entre os que responderam a
todo o processo preso (29%) é um número bastante alto, considerando o alto impacto que tem
o aprisionamento na vida de um indivíduo.

É relevante o que destaca Zaffaroni (2011) acerca das absolvições nos sistemas penais
latino-americanos: nesses casos, para ele, “a arbitrariedade é evidente e incontrastável, pois só

75
se decide favoravelmente ao preso quando o tribunal não encontrou nenhuma possibilidade de
condenação” (p. 71). De fato, em 71% das absolvições o fundamento foi pelo art. 386, VII do
CPP, ou seja, no caso de “não existir prova suficiente para a condenação”, quase como se o juiz
lamentasse esse fato.

De tal modo, o que parece se construir é que o magistrado já decide a priori quando
julga condutas tipificáveis como tráfico de drogas, diante de sua “grande repercussão social”
ou pelo fato de que este “maior malefício ocasiona” à sociedade. Há menções, ainda, de que tal
crime que “figura como o responsável por grande parte dos homicídios verificados nesta capital,
segundo revelam as estatísticas policiais” – como repetido diversas vezes nas decisões
interlocutórias e sentenças –, o que justificaria a antecipação da pena, execitada por meio da
prisão cautelar. Como apontou Zaffaroni (2011), sobre o “sistema cautelar latino-americano”:

A medida cautelar é pena cautelar, ou seja, por precaução, o poder punitivo é


exercido condenando-se materialmente todos os acusados a uma medida e
revisando-se com grande parcimônia essas condenações, num processo que se
arrasta anos a fio, com o intuito de verificar se corresponde a uma pena formal.
O desencarceramento ou a cessação da prisão preventiva ou provisional
representa uma absolvição, pois corresponde a quase todos os seus efeitos.
(ZAFFARONI, 2011, p. 70) (grifos aditados)

No panorama apresentado, temos que dos 928 réus, 743 (80%) responderam ao processo
total ou parcialmente preso, mas apenas um pouco mais de metade do total (409 ou 44,1%) foi
efetivamente condenada. Entretanto, a análise das condenações permitiu revelar que, mesmo
dentre os condenados, nem todos efetivamente seriam submetidos a uma pena de prisão.

Cabe sinalizar que foi fixado o regime aberto em 53,1% das condenações, semiaberto
em 31,8% e fechado em apenas 15,2% (regime que corresponde ao da prisão provisória). Dentre
os condenados, ao final 55,3% tiveram a pena de prisão convertida em restritiva de direitos,
conforme os gráficos abaixo:

GRÁFICO 04: REGIME APLICADO GRÁFICO 05: PENA DE PRISÃO


SUBSTITUÍDA POR PENA
AOS RÉUS CONDENADOS
RESTRITIVA DE DIREITOS
60,0%
SIM NÃO
40,0%

20,0%
45%
55%
0,0%
Aberto Semiaberto Fechado

76
Tem-se, portanto, que, dentre as 409 pessoas condenadas, 226 pessoas (55%) o foram a
uma pena diferente de prisão (restritiva de direitos). Apenas 183 réus (45%) foram efetivamente
condenados a uma pena de prisão; desses somente 62 tiveram efetivamente fixado o regime
fechado.

Relacionando a prisão provisória com o regime de cumprimento de pena temos o


seguinte: dentre os que responderam o processo em liberdade, 70,2% não foram condenados140,
23,4% foram condenados ao regime aberto, 4,8% ao regime semiaberto e 1,6% ao regime
fechado. Dentre aqueles que ficaram parcialmente presos, 57,8% não foram condenados, 23%
foram condenados ao regime aberto, 14,8% ao regime semiaberto e 4,4% ao regime fechado.
Dentre os que responderam ao processo todo preso, 35% não foram condenados, 28,1% foram
condenados ao regime aberto, 20,2% ao regime semiaberto e 16,7% ao regime fechado 141.

Assim, temos um panorama no qual o processo impõe uma medida mais rigorosa do que
aquela que efetivamente será aplicada na sentença ao final. No caso dos réus que estiveram
presos durante todo o curso do processo, por exemplo, apenas 34 dos 203 réus (16,7%) foram
condenados ao regime fechado, o que aponta para o fato de que para 169 pessoas uma sentença
condenatória foi mais benéfica do que sua situação durante o curso do processo criminal.

É relevante trazer aqui ainda alguns estudos que tiveram objetos similares para efeitos
de comparação. Beatriz Vargas (2011) ao estudar 622 réus em processos criminais de tráfico
de drogas no Distrito Federal encontrou um percentual de condenação de 85,5%, destacando
que em 48,3% a pena aplicada foi abaixo do mínimo legal (abaixo de 5 anos) e que em 49%
das condenações foi aplicada a causa de diminuição de pena prevista no parágrafo 4º142.

Na pesquisa de Boiteux et al (2009), que coletou 1001 sentenças no Distrito Federal e


Rio de Janeiro, temos um total de condenações de 73%, sendo que destas 46,3% tiveram a apena
cominada abaixo do mínimo legal. Já em relação a situação prisional, 96% dos réus ficaram
presos ao menos parte do processo.

140
Ou seja, foram absolvidos, tiveram a conduta do art. 33 desclassificada para o art. 28, ou tiveram a punibilidade
extinta.
141
Destaque-se que, como já afirmado, em relação a 61 réus não obtivemos informações sobre prisão o suficiente.
Dentre esses, 80,3% não foi condenado, 11,5% foi condenado ao regime aberto, 4,9% ao regime semiaberto e
3,3% ao regime fechado.
142
Embora não deixe claro o regime aplicado, a autora tinha como enfoque as razões que levaram à condenação,
não apresentando, por exemplo, a situação prisional do réu no curso do processo (apenas apontando se o início da
persecução penal se deu por flagrante ou não).
77
Na investigação realizada pelo Núcleo de Estudos de Violência (NEV-USP) que
acompanhou 604 processos criminais decorrentes dos autos de prisão em flagrante sem
testemunhas civis em São Paulo, houve condenação em 91% dos casos, 6% tiveram a conduta
desclassificada para o art. 28 e em 3% dos casos o réu foi absolvido. Em quase 95% dos casos
analisados, a pena imposta foi de prisão143.

Já na pesquisa realizada por Lemgruber et al (2013) que buscou monitorar os efeitos da


nova Lei de Medidas Cautelares no Rio de Janeiro, foi analisada a situação processual de 4.859
acusados (de diferentes crimes), constatando-se que a medida cautelar de prisão foi aplicada
em 72% dos casos (p.12). Ao relacionar esses dados com o resultado do processo temos que a
condenação foi imposta em 70% dos casos, destacando-se que em apenas 30% no regime
fechado (p.15). Nos casos de tráfico de drogas, a condenação em regime fechado se deu em
64% dos casos antes da nova lei e em 52% dos casos, após a entrada em vigor da nova lei das
cautelares.

Entretanto, esses dados não enfraquecem o que se apresenta aqui. Primeiro, porque os
dados de prisão cautelar nos Estados estudados nas pesquisas acima citadas não apresentam o
modelo invertido apresentado na Bahia, pois enquanto este Estado tem 64% de presos
provisórios, o Rio de Janeiro apresenta 42% de presos nessa situação, São Paulo 29% e o
Distrito Federal 28% (INFOPEN, 2014), o que pode indicar diferentes posturas da polícia e
Judiciário em relação ao aprisionamento cautelar e condenação.

Por outro lado, a única pesquisa que encontramos que foi realizada na Bahia e fez uma
análise parecida com a que foi feita aqui, apresentou resultados similares. Santos et al (2015)
estudaram processos criminais de furto, roubo e tráfico de drogas transitados em julgado entre
os anos de 2008 e 2012 na Bahia e Santa Catarina. Na Bahia, 92% dos réus cumpriram, ao
longo processo, alguma medida de prisão (p. 37) e considerando-se os três crimes, 36,1% dos
processos neste Estado acabaram em condenação, 21,9% em absolvição, 20,6% em prescrição
e 21,4% em “outros” (p.78).

143
Destaque-se ainda que o estudo realizado por Luis Carlos Valois (2017) foi focado nos autos de prisão em
flagrante de cinco Estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte e Porto Alegre). Assim, embora
apresente dados e reflexões relevantes acerca da prisão em flagrante em caso de crime de drogas e a importância
da polícia para a estruturação do processo criminal (vez que as provas, em caso de persecuções penais que tem
como objeto a suposta prática de tráfico de drogas, baseiam-se quase que exclusivamente na palavra dos policiais),
não traz dados relativos a situação prisional do réu e o resultado do processo, o que não permite comparar
conclusões.
78
As altas taxas de processos encerrados por prescrição na Bahia também podem indicar
alguma questão específica. Na mesma pesquisa (SANTOS et al, 2015), os processos encerrados
por prescrição em Santa Catarina foram apenas 1,1% do total. Isso pode indicar não apenas que
os processos baianos duram mais tempo, mas também a questão dos processos encerrados por
morte do agente, que serão tratados de maneira específica ao fim deste capítulo, em razão da
alta representatividade encontrada nos processos estudados em Salvador.

O ponto de partida de que as prisões cautelares estariam sendo utilizadas para algo além
da mera função "instrumental" ao processo, sua função declarada, assim, parece se confirmar a
partir da análise dos dados empíricos de Salvador. Ao negar certos direitos e garantias básicos
inerentes ao processo penal liberal – como a presunção de inocência -, impondo uma verdadeira
pena antecipada, a prisão provisória parece funcionar como uma forma direta de controle social
sobre parte da população.

Uma forma direta de controle que não se submete ao direito penal do fato – já que
características do autor parecem pesar mais que o fato em si -, não se submete a culpabilidade
– pois, conforme será trabalhado no próximo capítulo, a “periculosidade” aparece
reiteradamente como fundamento -, nem sequer se submete a parâmetros formais rígidos de
controle em sua aplicação, não há prazo máximo para a manutenção da medida e não há uma
definição segura do que seja a tão citada “garantia de ordem pública”.

Ao legitimar uma punição instantânea, valida-se uma forma de controle imediato sobre
parte da população preferencialmente (e previamente) selecionada pelo direito penal
(ZAFFARONI et al, 2011). No mesmo sentido Salo de Carvalho (2010) aponta a “utilização do
processo penal como efetiva (antecipação de) pena contra os grupos vulneráveis
criminalizados” (p. 70) por meio da prisão cautelar (com respaldo jurídico, portanto).

No sistema inquisitório, de acordo com Geraldo Prado (2005), o poder de punir do


Estado é o “objetivo primordial” (p. 173), ou, em uma linguagem mais direta, “o juiz cumpre
função de segurança pública no exercício do magistério penal” (p. 173). Em um sistema penal
essencialmente inquisitório “o resultado do processo inquisitivo é determinado ex ante, pois a
conclusão posta em sentença deriva de prova antecipada à sua realização, concebida
previamente à sua produção” (CARVALHO, 2010, p. 83).

O que se quer dizer é que não parece haver uma mera má atuação dos juízes quando
aplicam a prisão cautelar em “excesso”, mas sim que esta integra parte das funções não-

79
declaradas do sistema penal, função positiva-configuradora de um controle de classe. De acordo
com Rodríguez Alzueta (2014):

(...) a regularidade da prisão preventiva, nos convida a pensar sobre o uso


estratégico tem a contenção cautelar e a postular como uma prática sistemática
desta medida cautelar, sistematicidade que se constata nos altos percentuais,
estão nos informando que não se trata de uma medida excepcional que se
aplica quando há risco processual, mas como uma medida de polícia para
defesa social. A prisão preventiva continua a ser a regra geral (p. 280)144

Prevalece, de acordo com Rodríguez Alzueta (2014), não uma presunção de


culpabilidade, mas de periculosidade. É dessa maneira que “a prisão preventiva constitui uma
pena antecipada e, por outro lado, dirigida não apenas a obstar a lentidão do processo, mas
também a encobrir o caráter classista da justiça” (p. 281)145.

Por sua vez, Baratta (2003) aponta para a existência de um direito penal do autor cujo o
objetivo é o controle das “classes perigosas”146. No mesmo sentido, Vera Andrade (2012b)
propõe substituir a questão de “para que foi feita a prisão?” por “para quem foi feita a prisão?”:
a primeira pergunta estaria dentro do horizonte da criminologia etiológica, e de todo discurso
oficial, a exemplo das funções declaradas da prisão e das teorias da pena. Já a segunda estaria
em um segundo eixo, das funções reais da prisão.

Se a “prisão está a serviço da reprodução da desigualdade específica de classe no


capitalismo” (ANDRADE, 2012b, p. 306), em nosso “sistema cautelar latino-americano”
fomos além, substituindo a prisão-pena – que depende de um processo penal – pela prisão-
cautelar, imediatamente decretável – de ofício inclusive -, e que se fundamenta em argumentos
que pouco, ou nada, fundamentam, como discutirei no próximo capítulo. Esse sistema
“invertido” – onde a prisão cautelar tem mais importância punitiva que a prisão pena – se
legitima na e é potencializado pela política de drogas, conforme defende Batista (1998):

O modelo bélico da política criminal imprime suas marcas também no


procedimento judiciário, a começar pela contradição de julgar alguém que, por
constituir-se num inimigo, deve ser implacavelmente abatido (= condenado).
Tal contradição ficará exposta nas múltiplas tolerâncias para com violações

144
Tradução nossa. No original: “(...) la regularidad de la prisión preventiva, nos invita a pensar el uso estratégico
que tiene la contención cautelar y a postularla como una práctica sistemática de esta medida cautelar,
sistematicidad que se constata en los altos porcentajes, nos está informando que no se trata de una medida
excepcional que se aplica cuando existe riesgo procesal sino como medida de polícia para la defensa social. La
prisión preventiva sigue siendo la regla geral” (RODRIGUEZ ALZUETA, 2014, p.280)
145
Tradução nossa. No original: “La prisión preventiva constituye una pena antecipada y, por otro lado, dirigida
no solo a obviar la lentitud del proceso sino a ocultar el carácter clasista de la justicia.” (p.281)
146
“Do ponto de vista das elites brasileiras, as massas urbanas de trabalhadores, em sua maioria negros, vivendo
nos morros, quilombados, constituem contingente perigoso” (BATISTA,. 2003b, p.36)
80
ao devido processo penal, no preconceito generalizado contra as garantias
constitucionais dos acusados por tráfico de drogas (p. 91)

É importante o que destacam Zaffaroni, Batista et al (2011) no sentido de que o poder


exercido no âmbito da criminalização secundária não tem uma mera função negativa ou
repressiva, mas também positiva-configuradora147. Os autores formulam essa ideia a partir de
Foucault (1987) que argumenta – este por sua vez com base em Rusche e Kirchheimer – que
“as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’ que permitem reprimir,
impedir, excluir, suprimir; mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e
úteis que elas têm por encargo sustentar” (p. 27).

Assim, é importante destacar que, se pelo lado das suas funções declaradas, a prisão “é
um fracasso, é uma falência porque não consegue combater a criminalidade” (portanto, função
“negativa”), do ponto de vista das suas funções ocultas – função configuradora e reprodutora
de um dado sistema social - a “prisão é um sucesso” (ANDRADE, 2012b, p. 308).

De acordo com Zaffaroni (2001) existe uma grande margem do poder configurador ou
positivo que ocorre “à margem da legalidade, de forma arbitrariamente seletiva” (p. 25). A
violação da legalidade é intrínseca ao sistema penal pois este não pode dispor do poder que
apenas supostamente possui, qual seja, o de criminalizar todas as condutas, e oculta o
verdadeiro poder que exerce (configurador), estando estruturalmente montado para atuar de
forma seletiva, sendo esta seleção voltada – em uma sociedade de classes – para as camadas
vulneráveis. Ao fornecer exemplos de violação dessa legalidade o autor aduz que:

a duração extraordinária dos processos penais provoca uma distorção


cronológica que tem por resultado a conversão do auto de prisão em flagrante
ou do despacho de prisão preventiva em autêntica sentença (a prisão
provisória transmuta-se em penal), a conversão do despacho concessivo de
liberdade provisória em verdadeira “absolvição” e a conversão da decisão
final em recurso extraordinário. (p. 27)

No caso em tela, o uso das prisões cautelares como instrumento de antecipação de uma
pena – de prisão esta que, na maior parte das vezes, não se confirmará na sentença - não se

147
De acordo com Zaffaroni (2001) ainda: “todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias
de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua essência,
não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência,
a criação das condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a
verticalização social e destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais,
mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais” (p.15)
81
trataria de uma mera distorção conjuntural, mas de um caractere estrutural (e configurador) que
cumpre uma importante função de controle de classe.

É o controle da ilegalidade de bens – em contraposição a uma ilegalidade de direitos


vigente no feudalismo – surgida com o “novo estatuto da propriedade” (FOUCAULT, 1987, p.
79) que passará a definir os novos horizontes de punibilidade na sociedade de classes. Nas
sociedades periféricas, colonizadas, fundadas em fortes raízes escravocratas, essa ilegalidade
ganhará seus próprios contornos que tem na especial desumanização dos corpos uma marca da
sua violência.

2.3.2.1 Um Parênteses Necessário: as Mulheres e o Tráfico de Drogas

Conforme registrado anteriormente, o número de presos no Brasil tem crescido de forma


marcante nos últimos anos. Esse fenômeno chama especial atenção entre as mulheres, pois se
estas representam apenas 6,4% da população prisional (INFOPEN MULHER, 2014), o ritmo
de crescimento do encarceramento feminino supera em muito o masculino. Entre 2000 e 2014
enquanto a média do crescimento dos homens foi de 220,2%, a das mulheres foi de 567,4%
(INFOPEN MULHER, 2014).

Em relação ao crime de tráfico de drogas, se este representa 28% dos delitos pelos quais
as pessoas se encontram encarceradas no Brasil, entre as mulheres esse número é de 58%
(INFOPEN MULHER, 2014). Na Bahia temos a proporção de 64%, sendo que, entre os homens
o tráfico representa 29% dos delitos. Relevante ainda destacar que, de acordo com o Ministério
da Justiça, em 2005 (antes da nova Lei de Drogas, portanto) esse mesmo delito no Estado da
Bahia representava 16% dos delitos entre os homens presos e 36% entre as mulheres.

Conforme afirma Del Olmo (1996) as mulheres não podem ser ignoradas quando se
estuda a questão da criminalização das drogas, uma vez que esta é uma categoria chave para a
compreensão do tema. Entretanto, esse segmento tem sido continuamente ignorado, inclusive
porque o campo do delito como um todo e também o negócio/comércio das drogas têm sido
constantemente considerados espaços essencialmente masculinos.

Historicamente, de acordo com a criminóloga venezuelana, as mulheres têm


representado um número bastante pequeno dentre os presos, pois, comumente, as principais
formas de controle da mulher se passam por outras instâncias que não a penal, a exemplo da

82
família, da Igreja e da psiquiatria. Essa questão também é observada por Vera Andrade (2012b)
quando afirma que:

(...) o mecanismo de controle dirigido às mulheres, enquanto operadoras de


papéis femininos na esfera privada, tem sido nuclearmente o controle informal
materializado na família (pais, padrastos, maridos), dele também
coparticipando a escola, a religião e a moral. Paradoxalmente, a violência
contra a mulher (crianças, jovens e adultas), dos maus-tratos à violação e ao
homicídio, reveste-se muitas vezes, aqui, de pena privada equivalente à pena
pública. (p. 145)

O número de mulheres presas e sua proporção na totalidade de presos, entretanto, têm


sofrido uma progressiva modificação desde a década de 1970, quando o fenômeno da
criminalização das drogas se intensificou em boa parte dos países do mundo ocidental.

Chernicharo (2014) chama a atenção que, até este momento, as mulheres eram
criminalizadas por “delitos relacionados à sua condição de gênero, como o aborto, o
infanticídio, a prostituição e os crimes passionais” (p. 16). Entretanto, o aumento progressivo
das mulheres encarceradas, em especial no que concerne ao delito de tráfico, confirma uma
maior inserção das mulheres no mercado das drogas ilícitas. Ao refletir sobre esta tendência,
Del Olmo (1996) afirma que:

Na América Latina, as mulheres são maioria em quase todas as categorias de


desempregados e subempregados, aumentando cada vez mais na maioria dos
países, ainda que uma em cada três famílias no mundo seja chefiada por
mulheres. Diante dessa realidade, não é de se estranhar que, por exemplo, as
mulheres na América Latina se vejam diante da opção de incluir dentro do
espectro de alternativas que desenvolvem para sobreviver a de escolher um
tipo de trabalho atualmente considerado como crime, como é sua participação
no comércio de drogas. A necessidade econômica, que é maior para as
mulheres que para os homens, em tempos de crise e desemprego, lhes
proporcionará maiores oportunidades no trabalho ilegal do que no trabalho
legal (p. 11)148

Assim como outras atividades, o tráfico de drogas também está estruturado a partir de
uma divisão sexual do trabalho, cabendo às mulheres atividades, em geral, distantes da cadeia
de comando (BOITEUX, PÁDUA, 2013). Às mulheres, tal como aos jovens, cabem as funções

148
Tradução nossa; no original: En América Latina, as mujeres son mayoritarias en casi todas las categorías de
desempleados y subempleados, aumentando cada vez más en la mayoría de los países, a pesar de que uno de cada
tres hogares en el mundo esta dirigido por mujeres. Ante esta realidad, no es extraño que por ejemplo, la mujer en
América Latina se vea ante la opción de incluir, dentro de su margen de adaptaciones que desarrolla para sobrevivir
la de escoger un tipo de trabajo actualmente considerado criminal, como es el de su participación en el negocio de
las drogas. La necesidad económica, que para la mujer es mayor que para el hombre, en momentos de crises y
desempleo, le ofrecerá mayores oportunidades para el trabajo ilegal que para el trabajo legal. (p .11)
83
ligadas às franjas do tráfico, em geral, inclusive, mais vulneráveis à criminalização (DEL
OLMO, 1996). Em recente pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro com mulheres-mães
encarceradas, Boiteux et al (2015) ressaltaram que dentre as 41 entrevistadas (grávidas e
puérperas) apenas uma afirmou ter sido “gerente de boca”, enquanto as outras ocupavam
funções subalternas ou pontuais. Isso confirma o que é constatado por Del Olmo (1996):

No entanto, aqui também [a mulher] é objeto de discriminação por parte do


homem, especialmente quando trabalha por conta própria. A mulher não vai
ocupar postos de gestão, nem mesmo intermediários, já que sua participação
será limitada a funções secundárias: trabalhar como transportadora de
pequenas quantidades de drogas, muitas vezes dentro de seu próprio corpo, o
que comumente é conhecido como trabalho de mulas, em troca de uma
quantidade insignificante de dinheiro, caso se considere a magnitude dos
lucros deste negócio. (p.12)149

Sobre isso, foi possível notar que em muitos casos, nos flagrantes, quando presas
conjuntamente com algum homem, as mulheres de fato portavam a droga ou esta era guardada
em sua casa, mas em diversas vezes estas afirmaram estar fazendo isso como um favor – em
razão de vínculos familiares e/ou afetivos – e que não tinham qualquer relação com a efetiva
atividade de mercancia. Entretanto, o fenômeno da “multiplicação de verbos” parece ser
especialmente danoso em relação às mulheres que, muitas vezes, não obtém lucro direto com a
atividade comercial150, mas são criminalizadas em razão de condutas como “ter em depósito”
ou “trazer consigo”.

Conforme já afirmei, não tive condições neste trabalho de coletar dados acerca do
momento do flagrante – onde ocorreu, etc. – entretanto, não passou despercebido que as
mulheres são muitas vezes presas em contextos que envolvem seus parceiros ou familiares,
conforme já constatado em pesquisas anteriores (BOITEUX, PÁDUA, 2013; DEL OLMO,
1996). Nesse sentido, não foi incomum identificar casos de mulheres presas em flagrante junto
com namorados e companheiros ou – e esses casos são emblemáticos – presas ao entrar em
presídios masculinos para fornecer drogas aos seus parceiros ou familiares encarcerados.

149
Tradução nossa; no original: “Sin embargo, aquí también es objeto de discriminación por parte del hombre,
sobre todo cuando trabaja por su cuenta. La mujer no va a ocupar lugares gerenciales ni siquiera intermedios sino
que su participación va estar limitada a papeles secundarios: trabajar como transportista de pequeñas cantidades
de drogas, en muchas ocasiones dentro de su proprio cuerpo, lo que comúnmente se conoce como trabajo de mulas,
a cambio de una insignificante cantidad de dinero si se tome en consideración la magnitud de las ganancias de este
negocio” (p. 12)
150
Com direto queremos dizer que podem obter benefícios indiretos em razão deste ser o meio de obtenção de
renda dos seus parceiros, por exemplo.
84
Os casos das mulheres presas entrando nos presídios masculinos é especialmente
relevante, não apenas pela alta incidência de ocorrência, mas também por outros dois aspectos:
o primeiro é que, nesses casos, as mulheres estão sujeitas à causa de aumento prevista no art.
40, inciso III da Lei de Drogas, caso em que as penas são aumentadas de 1/6 a 1/3 se “a infração
tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais”.

Essa situação parece confirmar uma das críticas da relação da mulher e o sistema penal
realizada por Elena Larrauri (2008), a qual aponta que, muitas vezes, o problema não é apenas
a mentalidade machista dos juízes, mas a própria norma (mesmo as não obviamente sexistas),
uma vez que são pensadas por homens e para homens. Assim, essa causa de aumento
certamente não leva em conta a extrema vulnerabilidade em que podem se encontrar essas
mulheres que muitas vezes relatam – conforme pude observar nas sentenças, inclusive – ou
serem ameaçadas pelos seus companheiros, ou temerem pela integridade física destes, se não
ingressarem com as drogas dentro dos estabelecimentos prisionais. Nesse sentido, merece
destaque o fato de que a legislação da Costa Rica, com recorte de gênero, reduziu a pena e
diferenciou a conduta de mulheres que tentam entrar com drogas no presídio (ato típico de
mulheres), com o objetivo de reduzir o contingente carcerário feminino no país.151

Nos casos em que as mulheres levam drogas aos seus companheiros nos presídios, sem
fim comercial, poderia ser aplicado o parágrafo 3º do art. 33, que prevê pena de 6 meses a 1
ano para quem “oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu
relacionamento, para juntos a consumirem”, como ocorreu em um único caso – dentre os
processos analisados -, onde a juíza entendeu que embora não fosse o caso de consumo conjunto
da substância, não era possível a aplicação do caput do art. 33, vez que a ré não tinha qualquer
intenção de lucro152. Nos demais casos, entretanto, não só o caput foi aplicado, como também
a referida causa de aumento do art. 40.

Nos processos analisados, da totalidade de réus 89% (829 réus) eram homens, e apenas
11% - ou 99 – mulheres. Esse número é compatível com demais pesquisas que relacionam

151
A Costa Rica, em julho de 2013 promulgou a “Ley 9161”, que incorporou a perspectiva de gênero com a
modificação do artigo 77 da “Ley 8204”, para reduzir as penas do delito de introduzir drogas em penitenciárias.
Vide: Mujeres, Politica de drogas y Encarcelamiento: una guia para reformas de políticas en América Latina y el
Caribe. Disponível em: https://www.wola.org/sites/default/files/Guia.FINAL_.pdf. Acesso em 20.03.2017.
152
Processo n. 0561141-57.2014.8.05.0001. Nesse caso, foi aplicada uma pena de 10 meses e 20 dias de prisão,
que foi substituída por uma pena restritiva de direitos. A ré confessou a conduta de transporte da droga na delegacia
e em juízo afirmou que seu namorado já havia pedido mais de uma vez que transportasse drogas para o
estabelecimento prisional, mas que ela sempre negara, “sendo aquela a primeira investida, porque ‘sofreu pressão
do namorado’”. As testemunhas de defesa (amigas da ré) relataram que ela estava com “muito medo”, mas que
fizera isso “por conta da paixão, muito amor”.
85
gênero e crime: a alta incidência de mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas faz
aumentar a proporção de mulheres presas em relação aos homens.

No que concerne às prisões cautelares, dentre as mulheres, 13% responderam ao


processo todo em liberdade e 64% estiveram parte do processo presas, enquanto 18%
responderam ao processo totalmente privadas de liberdade. Em 5% dos casos não conseguimos
obter informações. Dentre os homens, os números não divergem muito: 13% responderam ao
processo todo em liberdade, 58% estiveram presos parcialmente, 22% ficaram presos durante
todo o processo e, em 7% não encontramos informação.

GRÁFICO 06: MULHERES GRÁFICO 07: HOMENS


PRESAS PRESOS

Parcial Total NSA Sem Informação Parcial Total NSA Sem Informação

5% 7%
13% 13%

18% 58%
64% 22%

Não foi verificado, portanto, nos casos analisados, diferenças substanciais entre o
aprisionamento cautelar de homens e mulheres. Sobre o resultado do processo, temos o seguinte
panorama: dentre as mulheres, 39% foram absolvidas, 52% condenadas, 5% tiveram a denúncia
reclassificada para o art. 28 e 4% a punibilidade extinta. Dentre os homens, 34% foram
absolvidos, 43% condenados, 8% tiveram sua conduta desclassificada para o art. 28 e 15%
tiveram a punibilidade extinta:

GRÁFICO 08: RESULTADO DO PROCESSO - MULHERES

Extinção da punibilidade

Desclassificação art. 28

Condenação

Absolvição

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

86
GRÁFICO 09: RESULTADO DO PROCESSO - HOMENS

Extinção da punibilidade

Desclassificação art. 28

Condenação

Absolvição

0% 10% 20% 30% 40% 50%

Temos então que, nos casos estudados, as mulheres, no crime de tráfico de drogas, são
proporcionalmente mais condenadas que os homens e tem menos casos de extinção de
punibilidade. Conforme aponta Chernicharo (2014), a mulher criminosa viola não apenas a lei
penal, mas também as regras sociais associadas ao seu papel de gênero; assim, não parece haver
necessariamente um tratamento mais benéfico em relação a elas, em razão da sua condição de
mulheres.

2.3.2.2 “Uma Política Criminal com Derramamento de Sangue”

Em um texto central sobre política de drogas, Nilo Batista (1998) afirma que as políticas
criminais não abarcam apenas os critérios diretivos explicitamente proclamados no âmbito da
justiça criminal, mas também aqueles “outros critérios, silenciados ou negados pelo discurso
jurídico, porém legitimados socialmente pela recorrência e acatamento de sua aplicação” (p.
77). O exemplo emblemático trazido pelo professor se refere justamente às mortes:

Quando a polícia mensalmente executa (valendo-se de expedientes


encobridores os mais diversos, da simulação de confronto ao chamamento à
autoria de gangues rivais) um número constante de pessoas, verificando-se
ademais que que essas pessoas tem a mesma extração social, faixa etária e
etnia, não se pode deixar de reconhecer que a política criminal formulada para
e por essa polícia contempla o extermínio como tática de aterrorização e
controle do grupo social vitimizado – mesmo que a Constituição proclame
outra coisa. (p. 77-78)

No sistema penal brasileiro é central a “intervenção física para o controle dos corpos”
(FLAUZINA, 2008, p. 99), portanto, se o neoliberalismo implicou no mundo ocidental em
“mais leis penais, mais criminalizações e apenamentos, mais polícias, mais viaturas, mais
algemas, mais vagas nas prisões, mais prisões provisórias, RDD”, no Brasil deve ser
acrescentado que levou também a “MAIS mortes e vagas no cemitério, e sobre isso tem que

87
haver muito mais do que mediana clareza” (ANDRADE, 2012b, p. 290). Central o que aponta
Batista (1998) quando afirma que:

Imaginemos a surpresa do pesquisador que um dia comparar o número de


pessoas mortas pelas drogas, por overdose, debilitação progressiva ou
qualquer outro motivo, com o número de pessoas mortas pela guerra contra as
drogas. No Brasil (...) aquele pesquisador perceberá que as vítimas da guerra
contra a droga, além da extração social comum, são jovens – tal como na
guerra convencional – e será tentado a tomar uma vereda psicanalítica para
concluir que ao sistema penal a nova ordem internacional reservou as tarefas
do filicídio, antes cumprida pela guerra. (p. 91)

Se este trabalho tem como um dos seus eixos a política repressiva de drogas no Brasil,
não poderia silenciar acerca das muitas mortes legitimadas por essa política, uma que o rótulo
de “traficante” parece funcionar como uma espécie de autorizador dessas mortes. Ou como
colocou Zaffaroni (2012): “(...) como se pelo simples fato de lhes colocar outra etiqueta
deixassem de ser cadáveres que gritam que estão mortos” (p. 29)

Assim é que, ao tratar do tema na Bahia, Reis (2005) afirma que para a polícia, os
jovens-homens-negros “configuram como uma ameaça permanente” (p. 55), e que uma imagem
estereotipada da pessoa negra é construída na vida cotidiana a partir da esfera pública (formada
majoritariamente por grupos de elite), que dá margem a que:

(...) quando um jovem-homem-negro é assassinado, quase sempre a sua morte


é atribuída ao envolvimento com o tráfico ou consumo de drogas, o que
comunica uma regra seguinte, qual seja, esta morte não precisa ser
investigada. E, no imaginário coletivo, o mesmo assassinato se resolve com o
sentido de que morreu “porque devia” ou “bandido tem mesmo é que morrer”,
como pude ouvir de mães de jovens assassinados pela polícia ou por grupo
tolerados, durante a pesquisa sobre a Operação Beiru. Trata-se da
representação sobre esses próprios jovens, no imaginário da população. (p. 69)

Ao me deparar com os 98 mortos nos processos criminais ora estudados, em casos em


que foi julgada extinta a punibilidade pela morte do agente não pude ignorar esse fato. A relação
entre a guerra às drogas e um importante número de jovens-homens-negros mortos é apontado
por Vilma Reis (2015) que afirma que:

Neste lastro, a chamada “guerra às drogas”, que se desenhou nos anos de 1990
e virou política de Estado no século XXI, no Brasil, sustenta o que vou
denominar de Sistema Colonial Atualizado de Vingança Contra Negros e
Negras, que o estado brasileiro se arvora a chamar de Sistema Prisional e
Sistema de Justiça Criminal. De fato, esses artefatos funcionam como álibis
institucionalizados para matar e prender em massa, exatamente nesta ordem,
nos levando à hipótese a priori de que, quem não é preso, já foi morto. Muito
bem definida pelo neurocientista afro-americano Carl Hart, a “guerra as
88
drogas” é, na verdade, a expressão mais covarde de uma “guerra aos negros e
guerra aos pobres”, que, nos últimos 25 anos, tem sido o álibi oficial de Estado
para matar e encarcerar em massa. (p. 05-06) (grifos aditados)

Assim, se por um lado discuto aqui as prisões cautelares – e as possibilidades de punição


sem processo a ela associadas -, não pude deixar de tecer considerações sobre este outro lado
da moeda, pois, conforme aponta a socióloga baiana, parece que “(..) quem não é preso, já foi
morto”.

A questão racial aqui parece ter especial relevância e centralidade, em razão do que
algum tempo tem sido apontado como uma verdadeira política genocida em relação à população
negra. Embora aja divergências sobre a possibilidade do uso do termo “genocídio” para o que
ocorre nas periferias do capitalismo, este tem sido reivindicado por diversos grupos do
movimento negro.

Ferreira e Cappi (2016) apontam para a importância do uso do termo já que o ato de
nomear e conceituar um fenômeno “constitui a primeira modalidade de seu enfrentamento” (p.
544). Os autores fazem uma importante discussão acerca da possibilidade do uso do termo para
os homicídios no Brasil, concluindo no sentido de que o termo é plenamente aplicável ao Estado
brasileiro que – seja por meio da ação ou da omissão – é sujeito ativo de um processo que tem
contribuído para um contínuo de mortes da população negra no país.

Na criminologia crítica a ideia de se pensar um genocídio já aparece na década de 1980,


com Zaffaroni (1989) que aponta as constantes práticas genocidas ocorridas nos países da
margem ao longo da nossa história. A “magnitude do fato morte” (2001, p. 39) é, conforme
aponta o autor, uma característica do exercício de poder dos nossos sistemas penais.

Por outro lado, o genocídio do negro brasileiro vem sendo apontado por importantes
pensadores da questão racial no Brasil. Abdias Nascimento (2016), em obra seminal sobre o
tema no Brasil escrita em 1976, aponta que o genocídio brasileiro combina a obliteração física
do negro com a cultural, através dos constantes apagamentos de todo um povo da nossa história.
O autor traz como questão emblemática o próprio mito da democracia racial, bem como as
tentativas de branqueamento da população através de políticas migratórias, assim como as
tentativas de apagamento ou embranquecimento da cultura negra.

Entretanto, esse genocídio não ocorre apenas no seu aspecto simbólico, mas também
físico, no “moinho brasileiro de gastar gentes” (RIBEIRO, 2010, p. 49), que já desgastou tantos
“índios caçados nas matas” e “negros trazidos da África”, o projeto genocida segue matando
89
nosso povo – de fome ou de bala, conforme aponta Darcy Ribeiro (2010) -, e de acordo com
Ana Flauzina (2008) encontra no sistema penal a garantia das “portas abertas” para esse projeto:

(...) seja pela ação da polícia, dos grupos de extermínio, dos agentes
penitenciários e dos próprios presidiários, seja pela estigmatização imposta
aos indivíduos após a passagem pelo aparelho penal – as promessas de
vingança levadas a efeito entre grupos de jovens traficantes e tantas outras
cenas para as quais já sinalizamos em outra oportunidade -, o fato é que (...) o
sistema penal é, certamente, o aparelho que dá sustentação a essa amostra
significativa do campo minado construído em torno da juventude negra
brasileira. (p. 131)

No “Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil”, Waiselfisz aponta que
os marcadores de idade, raça e gênero são centrais na compreensão das mortes violentas no
Brasil, no mesmo sentido da categoria “jovens-homens-negros”153 usada por Vilma Reis
(2005). Waiselfisz aponta que, entre 2002 e 2010, a diferença nas mortes entre negros e brancos
pulou de 42,9% para 149% e que entre os jovens essa diferença passou de 65,8% para 205,1%
(p. 10). Na Bahia, no mesmo período, o índice de vitimização negra dentre a população total
ficou em 303,8%154, e o índice de vitimização de jovens em 311,8%155 (WAISELFISZ, 2013).

Destaque-se que, conforme apontam Calazans et al (2016), em um estudo realizado


sobre homicídios de jovens em Salvador entre 2010 e 2015, há também um padrão espacial
nestas mortes, o que aponta para “uma necropolítica estatal de gestão do espaço urbano e
controle da população, seja por omissão, seja por cumplicidade, com os padrões mórbidos de
relações raciais no Brasil” (p. 568). As regiões com maior número de homicídios em Salvador
são aquelas que concentram a maior parte da população negra e pobre da cidade; os jovens
representam quase 80% das vítimas das mortes violentas no período estudado.

No mesmo sentido, ao discutir o sistema penal brasileiro, Ana Flauzina (2008) identifica
um verdadeiro projeto genocida do Estado brasileiro, sendo um dos ângulos de análise a
segregação espacial, podendo ser observado que “o segmento negro está cercado por uma rede
de desestruturação que, na precariedade dos espaços a ele reservados, tem como pilar
fundamental a produção da morte física e simbólica” (p. 116).

153
Importa destacar que sobre a questão do gênero a sobrerrepresentação dos homens no caso de mortes violentas,
pode muitas vezes deixar passar despercebida as mortes violentas de mulheres. Estas, entretanto, tem ganhado um
destaque especial, em razão, inclusive, de uma diferença central nessas mortes: enquanto os homens morrem na
rua, as mulheres são mortas muitas vezes por parceiros ou familiares.
154
O que a coloca em 6º lugar no ranking dos Estados, ficando atrás de Paraíba, Alagoas, Pernambuco, Distrito
Federal e Amazonas (p.15)
155
Colocando a Bahia em 4º lugar nas taxas de homicídio juvenil, neste período.
90
Nesse contexto, conforme já pontuamos a política repressiva de “guerra às drogas”
aparece como mais um elemento que legitima os atos de violência e dessensibiliza a população
para a gravidade da situação. Zaffaroni et al (2011) assinalam que “Os números chocantes do
narcogenocídio, dispersos nas páginas policiais em breves notas necrológicas de confrontos
policiais, não sensibilizam perante o medo diariamente alavancado para a sua legitimação” (p
.487). No imaginário social baiano, crack é cadeia ou caixão.

Assim, a partir da asséptica expressão “julgo extinta a sua punibilidade” proferida nas
sentenças, temos declarada a morte desses jovens-homens-negros. Não obtive acesso aos laudos
de exame cadavérico, mas, embora algumas vezes a causa da morte fosse apontada na própria
decisão156, consegui obter algumas informações utilizando os nomes dos réus como palavras
chaves no sistema de buscas “Google”.

Em um mesmo processo, por exemplo, quatro réus foram assassinados em diferentes


circunstâncias157 e, por outro lado, dois réus que respondiam a diferentes processos foram
“executados” em um mesmo episódio “com um tiro na cabeça”158. Outro réu 159, que ocupava
a posição do oito de espadas no infame “Baralho do Crime”, e integrava, portanto, “o grupo de
homens mais procurados do estado” teve a cabeça encontrada na região conhecida como
Estrada Velha do Aeroporto160.

Em outro caso, três réus em um mesmo processo tiveram a punibilidade extinta em razão
da morte161, por coincidência ou não, eram suspeitos de terem assassinado o filho de um
delegado baiano em 2011, ainda que, na época do assassinato, não tenha sido encontrado
qualquer resíduo de pólvora em nenhum deles...162. Todos os réus mortos são homens, exceto
uma, supostamente assassinada pelo companheiro a facadas no bairro em que ambos
moravam163.

156
“"Quanto ao indiciado (..,), vulgo "BA", observa-se, às fls. 133/139, como já dito pela Dra. Promotora de Justiça,
que o mesmo veio à óbito, após confronto com a polícia no dia 14/03/2015” (Processo n.0100217-
58.2008.8.05.0001)
157
Processo n. 0100217-58.2008.8.05.0001.
158
http://www.bocaonews.com.br/noticias/policia/policia/66276,execucao-no-costa-azul-jovens-sao-
assassinados-a-tiros-nesta-madrugada.html
159
Processo n. 0181131-12.2008.8.05.0001
160
http://www.correio24horas.com.br/detalhe/salvador/noticia/cabeca-encontrada-na-estrada-velha-do-aeroporto-
era-de-integrante-do-baralho-do-crime/?cHash=b8aa3f0ee93a5e82b21b1c99d472fb5a
161
Processo n.0303498-33.2011.8.05.0001
162
http://admin.bocaonews.com.br/noticias/policia/policia/19482,acusados-de-matar-filho-de-delegado-nao-
tinham-polvora-nas-maos.html
163
http://www.atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/homem-que-matou-companheira-com-facada-no-
pescoco-e-preso-1614059
91
Dois dos casos encontrados na busca do “Google” aparecem como supostos suicídios.
Em um deles, um dos réus mortos no curso do processo, teria se matado após matar a
companheira164 (novamente a violência de gênero aparece quando falamos da morte de
mulheres). Em outro, um réu165 que se encontrava em prisão preventiva foi encontrado
enforcado dentro da cela: este é apontado nas notícias de jornal e em outras publicações
(LOURENÇO, ALMEIDA, 2013) como um “criminoso” de “alta periculosidade”166. Além
disso, seria um dos supostos líderes do tráfico da Bahia, sendo apontado como tendo
orquestrado diversos ataques a polícia em 2009167.

Todos esses casos apenas permitem ilustrar superficialmente essa “política criminal com
derramamento de sangue”, que a partir de uma política criminal proibicionista em relação as
drogas, assume na periferia contornos genocidas; Achille Mbembe (2011) ao estudar a noção
de biopoder em Foucault - o exercício de poder que se dá pela gestão da vida a partir do século
XVIII -, propõe que nos espaços surgidos de colônias se fale em um “necropoder”. Nestes
países o poder se exerce historicamente a partir da violência a pretexto de civilizar, não havendo
que se falar “em fazer viver e em deixar morrer” (FOUCAULT, 2010, p.207), mas em fazer
morrer e deixar viver.

164
Processo n. 0318800-05.2011.8.05.0001. Notícia disponível em:
http://www.correio24horas.com.br/detalhe/salvador/noticia/homem-mata-mulher-e-depois-se-mata-na-fazenda-
grande-do-retiro/?cHash=2bc9b63f363a2e5cab5b0cd4bd4f8162.
165
Processo n.0146384-02.2009.8.05.0001.
166
http://bahia.ig.com.br/2010/05/29/aladim-e-encontrado-enforcado-em-cela-federal
167
http://www.correio24horas.com.br/detalhe/brasil/noticia/traficante-baiano-aladim-e-encontrado-morto-em-
cela-de-penitenciaria-do-parana/?cHash=41be4a29a5f97ca68f803773f7d50cd0
92
3. “IN DUBIO PRO SOCIETATE”: A PRISÃO COMO REGRA

3.1 A Neutralidade e a Dogmática

A ideia da neutralidade insiste em figurar no imaginário do processo judicial, em que


pese a consolidação da crítica epistemológica a esse mito fundador do direito moderno. Casara
(2015), nesse sentido, aponta ser este um mito que não se sustenta, formulado, entre outras
coisas, com o objetivo de “ocultar o funcionamento ideológico do Estado” (p. 148). Acreditar
no mito da neutralidade, assim, não é apenas ingênuo como perigoso. Ele contribui para
perpetuar a lógica que entende como neutro tudo aquilo que reproduz o status quo.

A ideia de neutralidade, no campo penal, se materializa em outro mito: o tratamento


igualitário da justiça criminal. O mundo jurídico reproduz constantemente a ideia de que,
norteado por alguns princípios chaves como “segurança jurídica” e tratamento igualitário para
todas as partes, o discurso dogmático será pautado na neutralidade e, portanto, justo. As
primeiras construções acerca da cifra oculta e dos processos seletivos de criminalização,
entretanto, permitiram desnudar o caráter mitológico do princípio da igualdade no campo penal.

A constatação da existência de uma cifra oculta da criminalidade, bem como o conceito


de "crime de colarinho branco" (termo cunhado por Edwin Sutherland em 1949168), permitiu
fazer notar a atuação seletiva do sistema penal, o que levou ao enfraquecimento do mito da
igualdade da aplicação da lei (BARATTA, 2011). Entretanto, se um novo paradigma
criminológico permitiu trazer à tona diversas fragilidades do discurso penal, não conseguiu
superá-lo. O sistema penal segue vigente alardeando suas funções de “combate” e repressão à
“criminalidade” e não são poucos os que acreditam nesse “papai noel” (ANDRADE, 2012b).

Diante desse contexto, a dogmática penal é o saber que orienta e legitima o exercício do
poder punitivo, pois, conforme afirmam Zaffaroni, Batista et al (2011) “sem discurso o poder
se desintegra” (p. 72). Esta “representa, precisamente, o paradigma científico que emerge na
modernidade, prometendo assegurar este equilíbrio, limitando aquela violência e promovendo
a segurança jurídica” (ANDRADE, 2015, p. 34). De acordo com Zaffaroni, Batista et al (2011),
o método dogmático é “construído racionalmente, partindo do material legal, a fim de
proporcionar aos juízes critérios não-contraditórios e previsíveis de decisão dos casos
concretos” (p. 64). Entretanto, ainda de acordo com esses autores:

168
Embora o termo tenha sido usado pelo americano pela primeira vez em 1938, ele só teria definido o conceito
em 1949 (ANIYAR DE CASTRO, 1983).
93
Esta metodologia foi se desviando, até perder de vista, do fato de que um saber
tão aplicado ao poder, por mais que, como todo programa, se refira ao dever
ser, deve incorporar certos dados do ser, que são indispensáveis para seu
objetivo. Esta omissão de informação indispensável não só ocorreu, como foi
também teorizada até pretender construir um saber do dever ser separado de
qualquer dado do ser, e considerou-se um mérito deste saber sua sempre
crescente pureza ante o risco de contaminação com o mundo real. (p. 64)

Os autores apontam ainda que essa forma de pensar levou à construção da lógica de que
“o dado social só interessa ao jurista (e, portanto, ao juiz) à medida que o legislador o tenha
previamente incorporado, e qualquer outra incorporação deveria considerar-se como
ideologização política do saber penal” (ZAFFARONI, BATISTA et al, p. 66). Essa ideia
reforça o mito da neutralidade, toma o “legislador” como sujeito a-histórico e a-político, para
então compreender a atividade judicial como não criadora. Em várias das decisões estudadas,
por exemplo, a gravidade do crime de tráfico de drogas é considerada “inconteste” porque
“equiparado pelo próprio legislador como crime hediondo”. Se o “legislador” – essa figura
quase mítica – equipara um crime a hediondo, não há o que questionar acerca da gravidade –
em abstrato – do delito, o que apareceu como fundamentação de decretação/manutenção da
prisão preventiva em 18 das decisões estudadas.

Essa suposta neutralidade na aplicação da lei permite encobrir diversos elementos da


realidade, tais como a seletividade do sistema penal – seja através da criminalização primária
ou secundária – e eventuais funções ocultas – ou reais – cumpridas por trás das suas funções
declaradas. Além disso, ela permite criar e reforçar “a ilusão de sua capacidade para resolver
os mais complexos problemas e conflitos sociais” (ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011, p. 67).
Zaffaroni, Batista et al apontam ainda que, embora a “mera observação leiga da realidade
social” seja passível de comprovar que “o poder punitivo opera de modo exatamente inverso ao
descrito pelo discurso penal tradicional”, é comum a defesa que atribui isso “a distorções
conjunturais do poder punitivo, ocultando que se trata de caracteres estruturais, sendo
conjuntural unicamente o seu grau” (p. 68).

Assim é que, se em sua função declarada, a dogmática penal serve a uma suposta
“função instrumental racionalizadora/garantidora” (ANDRADE, 2015), garantindo “a maior
uniformização e previsibilidade possível das decisões judiciais e, consequentemente, uma
aplicação igualitária (decisões iguais para casos iguais) do Direito Penal” (ANDRADE, 2015,
p. 130), esta possui uma função oculta que não é só distinta da declarada, mas de acordo com
Vera Andrade (2015), diametralmente oposta. A sua função real – e essencial – é, assim, de dar

94
legitimidade à violência institucional operada pelas agências do sistema penal, ao atuar no
último filtro – o Judiciário – por meio de um discurso supostamente racional e científico, que
permite encobrir a altíssima seletividade do sistema, inclusive a seletividade operada pelo
próprio Judiciário.

E essa função já estaria inscrita em sua própria gênese, pois se a dogmática surge, por
um lado, para limitar o arbítrio estatal, surge também como “um novo modelo de controle penal
inserido numa nova lógica de dominação” (ANDRADE, 2015, p. 257), a partir das exigências
de controle típicas da forma social capitalista. Vera Andrade (2009), aponta ainda que:

Todos esses argumentos concorrem para uma conclusão genérica


fundamental: entre a evidência empírica de que o código tecnológico da
dogmática tem sido utilizado para fundamentar juridicamente e justificar a
legalidade das decisões judiciais e a evidência empírica de sua incapacidade
racionalizadora (pautadora do conteúdo decisório) para a gestação de decisões
igualitárias (soluções iguais para casos iguais) seguras e justas, somente resta
a hipótese de que tem concorrido para instrumentalizar e racionalizar as
decisões seletivas, acabando por fornecer a elas uma justificação técnica de
base científica, legitimando-as e, na sua esteira, a totalidade do exercício de
poder do sistema penal, pois é em virtude mesmo da pré-programação
legislativa e dogmática da ação jurisdicional que o sistema penal se legitima
pela legalidade. (p. 163)

A dogmática é assim – longe de um saber neutro e desvinculado do poder – um saber


necessário à legitimação do poder punitivo. Foucault (1987) ao trabalhar a relação saber-poder
propõe o abandono de uma concepção tradicional que entende que o saber só pode se
desenvolver fora do poder, “de suas injunções, suas exigências e seus interesses” (p. 29), para
ao contrário:

(...) admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o


porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua
ao mesmo tempo relações de poder. (p. 30)

No caso específico do direito penal, o poder do discurso é central, pois todo o poder
“condiciona as pessoas para que só o conheçam através desse discurso e de acordo com o
mesmo” (ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011, p. 72):

Daí o fato de que o direito penal tenha criado seu mundo, pretendido conhecer
a operatividade criminalizante segundo este seu mundo, e querido impedir o
ingresso no discurso jurídico-penal de todo dado social que pudesse
questioná-lo. Com isso exerce o poder que lhe confere proporcionar o discurso

95
legitimador de todo o poder direto das demais agências do sistema penal.
(ZAFFARONI et al, 2011, p. 72)

Assim é que, através de uma suposta neutralidade, que inclui ignorar os dados sociais,
a dogmática consegue legitimar a atuação seletiva do direito penal – sob um manto da suposta
igualdade de aplicação da lei -, ignorando os aspectos de criminalização primária e secundária,
sob a ontologização da “criminalidade”. Além disso, encobre as funções positivas cumpridas
pelo poder punitivo, destacando apenas as funções repressivas.

Foucault (1987) em “Vigiar e Punir” irá apontar que a justiça penal deve ser encarada
como “um instrumento para o controle diferencial das ilegalidades” (p. 248). A penalidade, para
o autor não serviria, nesse sentido, para reprimir ilegalidades, mas sim para geri-las, sendo uma
maneira “de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros,
de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles” (p.
240), organizando “a transgressão das leis numa tática geral de sujeições” (p. 240).

Essa gestão diferencial das ilegalidades permite a imposição de certos valores caros à
classe dominante daquela sociedade. Como pontua Baratta (2003): “o sistema de justiça
criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar despossuídos, para constrange-los a
aceitar a ‘moral do trabalho’ que lhes é imposta pela posição subalterna na divisão do trabalho”
(p. 15). Desse modo, o garoto sem casa, sem profissão formal – vivendo de bicos e, portanto,
sem “uma individualidade devidamente fixada” (FOUCAULT, 1987, p. 255) –, apresentado
pelo autor, é condenado a dois anos por vadiagem na França do século XIX. No Brasil do século
XXI, a Lei n. 7.960/1989 (lei que regula as prisões temporárias) há a expressa previsão de que
caberá prisão temporária169 “quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer
elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade”.

Em uma das decisões interlocutórias estudadas, a prisão se fundamenta essencialmente


no fato de o réu não possuir “ocupação lícita”, “vivendo às custas da parca pensão da sua
genitora que ainda arca com as despesas da sobrevivência da sua companheira e de sua filha
menor”. O/a juiz/a170 ainda vai além ao afirmar que:

169
Essa situação é apresentada de maneira ilustrativa, uma vez que as prisões temporárias não são objeto deste
trabalho.
170
Conforme já afirmado não temos interesse neste trabalho em condenar determinada postura de juiz A ou B, mas
sim discutir a postura do judiciário em um panorama mais geral. As decisões ora estudadas foram proferidas por
30 juízes diferentes e apenas para deixar claro que os trechos selecionados foram proferidos por magistrados
distintos (e evidenciar que são posturas que se repetem no judiciário não sendo a atuação de apenas um juiz fora
do padrão), identificaremos eles por letras. A referida decisão, por exemplo, foi proferida pelo/a juiz/ U.
96
Diga-se que dos autos de prisão em flagrante resta evidenciado (...) ser o
flagranteado pessoa sem a menor tendência para a cadeia produtiva de
forma legal, não tendo disposição para o trabalho com tendência a pratica
da vadiagem, mesmo gozando de boa saúde física e mental, reunindo
condições de ser pessoa de capacidade produtiva útil e lícita. (Processo
n.0564534-87.2014.8.05.0001 [decisão proferida em 08/08/2014 pelo/a juiz/a
U]) (grifos aditados).

Fica evidenciado aqui o incômodo do/a magistrado/a com a pretensa “tendência à


vadiagem” daquele que possuindo “boa saúde física e mental” reuniria “condições de ser pessoa
de capacidade produtiva útil e lícita”. O jovem V.V.S.O.171, então com 19 anos à época da
decisão, morador do bairro da Liberdade em Salvador, não possui “tendência para a cadeia
produtiva”, na visão do/a magistrado/a. Não possui trabalho ilícito e vive as custas da “parca
pensão da sua genitora”. Foi preso com 3,62 gramas de crack no bairro onde mora, alegando –
em interrogatório policial – ser usuário da substância. Ao fim do processo, foi condenado a uma
pena de prisão de 01 ano e 08 meses, em regime aberto, convertida em duas penas restritivas
de direito172, “na busca da reintegração do sentenciado à comunidade e como forma de lhe
prover a auto estima e compreensão do caráter ilícito de sua conduta” (trecho da sentença).

Não sabemos o que o/a juiz/a, neste caso, julga ser uma atividade “produtiva útil e lícita”
para V.V.S.O. Vera Malaguti Batista (2003b) analisando processos da juventude criminalizada
por tráfico de drogas entre 1968 e 1988 no Rio de Janeiro apontou que “nas muitas vezes que a
resposta era ‘não trabalha’ víamos depois, no corpo do processo, informações relativas a
trabalhos no setor informal, não consideradas como trabalho” (p. 121). Um trecho apresentado
pela autora é emblemático “‘O menor diz que exerce as funções de vendedor de jornais e
engraxate, profissão que alegam todos os menores que não podem provar o exercício da
profissão’” (idem).

Qual trabalho deve cumprir V.? Possivelmente algo que lhe pague um salário mínimo e
que lhe confira um padrão de vida que o/a magistrado/a julga adequado a um garoto pobre – e
talvez negro – morador do bairro da Liberdade. Temos, nesse caso, a criminalização da
“vadiagem” e da pobreza em essência. Se V. respondeu a todo o processo preso por não
comprovar uma “ocupação lícita”, Vera Batista (2003b) assinala conclusão semelhante ao
estudar a criminalização da juventude pobre do Rio de Janeiro na segunda metade do século
XX: o “olhar moral” lançado pelos juízes sobre esses jovens condicionava a aplicação – ou não

171
Embora nas decisões e sentenças conste o nome do réu, aqui optou-se por referenciá-los por meio de siglas de
modo a diminuir a sua exposição.
172
Os dados sobre o réu, local da prisão, a quantidade de drogas e a condenação foram obtidos na sentença.
97
– da liberdade assistida, demonstrando “não ser a liberdade assistida medida jurídica para
determinado tipo de ato infracional, mas, sim, medida de controle social para setores sociais
explicitamente determinados” (p. 120).

Em outra decisão, o juiz fundamenta a prisão com base no argumento de que: "Frise-se,
pois, subsistir também a garantia da instrução criminal, visto que não há nos autos qualquer
comprovante de que possuam residência fixa e trabalho lícito"173. A “questão do trabalho” é um
campo central de onde emerge “representações reveladoras de uma visão de mundo muito
estruturada na mentalidade desses operadores sociais” (BATISTA, 2003b, p. 121). Assim, se
os criminosos se localizam precipuamente na base social é:

hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome
de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e
se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se
dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que,
ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não
se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade inteira
que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da
ordem sanciona outra fadada à desordem (FOUCAULT, 1987, p. 243).

É na passagem para a modernidade que se constitui a justiça criminal nos moldes que a
conhecemos para gerir todo um conjunto de novas ilegalidades populares que passam a
representar uma nova ameaça; pois é nesse momento de acordo com Foucault (1987) que as
ilegalidades passam a ter uma dimensão política, na medida em que:

práticas até então localizadas e de certo modo limitadas a elas mesmas (...)
resultaram durante a Revolução em lutas diretamente políticas, que tinham por
finalidade, não simplesmente fazer ceder o poder ou transferir uma medida
intolerável, mas mudar o governo e a própria estrutura de poder. (p. 241)

Se antes, a própria estrutura da sociedade se encarregaria de manter as pessoas em seus


devidos lugares, a partir das revoluções burguesas a mobilidade social passa a ser – em tese –
possível e todos são supostamente iguais. O controle social operado por meio da justiça
criminal, a partir da gestão diferencial das ilegalidades, permite assim impor limites a essa
suposta igualdade. O autor aponta ainda que:

Esses processos não seguiram sem dúvida um desenvolvimento pleno;


certamente não se formou no começo do século XIX uma ilegalidade maciça,
ao mesmo tempo política e social. Mas em sua forma esboçada e apesar de sua
dispersão, foram suficientemente marcados para servir de suporte ao grande

173
Processo n. 0520455-23.2014.8.05.0001(decisão proferida no processo apenso n. 0310850-37.2014.8.05.0001,
em 24/03/2014, pelo/a juiz/a S)
98
medo de uma plebe que se acredita toda em conjunto criminosa e sediciosa,
ao mito da classe bárbara, imoral e fora da lei (...). (FOUCAULT, 1987, p.
242)

E é desse medo da “plebe” – que no Brasil e América Latina não tem só classe, como
também cor – que surge a necessidade de controle por meio do sistema penal que, destaque-se,
mais que apenas reprimir, exerce uma função de configuração das relações sociais. É, portanto,
a partir da criminologia crítica – “nesse baião de Marx com Foucault” (BATISTA, V., 2011, p.
23) – que foi possível avançar na compreensão de que as funções do sistema penal são muito
mais positivas que negativas; ou seja, muito mais de “reprodução das relações sociais e de
manutenção da estrutura vertical da sociedade” (BARATTA, 2011, p. 175) que a função de
reprimir delitos.

E se a polícia assume protagonismo nesse contexto diante de seu papel de vigilância e


fiscalização, e, portanto, seleção, também os juízes “são os empregados, que quase não se
rebelam, desse mecanismo” contribuindo – de forma nada desprezível - “na medida de suas
possibilidades a constituição da delinquência, ou seja, a diferenciação das ilegalidades”
(FOUCAULT, 1987, p. 248).

Pois se os juízes não podem cumprir seu papel de maneira neutra, é certo que em sua
atividade criadora poderão contribuir ou não com a reprodução do status quo. Nesse sentido:

(...) a lei penal configura tão só um marco abstrato de decisão, no qual os


agentes do controle social formal desfrutam ampla margem de
discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma atividade
criadora proporcionada pelo caráter “definitorial” da criminalidade. Nada
mais errôneo que supor (como faz a Dogmática Penal) que, detectando um
comportamento delitivo, seu autor resultará automática e inevitavelmente
etiquetado. Pois, entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada pela
lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de
criminalização secundária, medeia um complexo e dinâmico sistema de
refração. (ANDRADE, 2015, p. 259)

Tal atividade criadora parece encontrar ainda mais espaço nos dois objetos aqui
recortados: “a vagueza e ambiguidade” que caracterizam a lei de drogas, são preenchidas pelo
judiciário “por punitividade” (CARVALHO, 2015, p. 632). Se as cinco condutas tipificadas no
art. 28 se repetem no art. 33, cabe aos juízes formularem as regras limitadoras que permitirão
fazer uma diferenciação segura entre o usuário e o traficante. Entretanto:

Os espaços de ambiguidade são tão grandes que é evidente perceber como a


espécie de imputação será definida pelas metarregras que compõem os
quadros mentais dos agentes do sistema punitivo, ou seja, pela pré-
99
compreensão e pela representação que os intérpretes-atores (policial,
promotor ou juiz) têm sobre quem é o traficante e quem é o usuário de drogas.
(CARVALHO, 2015, p. 633)

Além disso, as prisões cautelares, por exigirem menos critérios formais para a sua
aplicação que uma sentença condenatória, dão ampla margem de atuação arbitrária ao
judiciário. Diversos são os elementos “não-jurídicos” que orientam essa atividade criadora dos
juízes e, dentre eles, os estereótipos tem um papel central. Desde a seleção operada pela polícia
e legitimada judicialmente pela vaga e recorrente afirmação de “atitude suspeita” – e que
conforme aponta Vera Batista (2003b) “não é atributo de ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser,
pertencer a um determinado grupo social” (p. 103) – até a própria atividade judicial.

Conforme coloca Salo de Carvalho (2006) os estereótipos “não apenas modelam o agir
dos agentes da persecução, sobretudo das polícias, como direcionam o raciocínio judicial na
eleição das inúmeras variáveis entre as hipóteses condenatórias ou absolutórias e à fixação da
quantidade, qualidade e espécie de sanção” (p. 263-264). Carvalho (2015) aponta ainda a
decisiva contribuição do judiciário no encarceramento da juventude negra – sendo raça
elemento central na construção estereótipo criminal, conforme discuto nos capítulos 1 e 2 – a
partir de uma atuação “seletivamente racista” (p. 630):

Na hipótese, é muito provável que a “cor da pele” não seja um critério de


definição da conduta que aparecerá como elemento fático de fundamentação
da decisão. Mas, com muita frequência, pela experiência acadêmica e
profissional na análise do funcionamento do sistema punitivo, nota-se como,
na maioria das vezes, a “cor” do “suspeito” é encoberta ou mascarada por
outros standards decisionais (atitude suspeita, presença em área de tráfico,
antecedentes criminais) que definirão o sujeito como “traficante” ou
“usuário”. (CARVALHO, 2015, p. 633)

O second code judicial – código ideológico latente – seria o que efetivamente regularia
as decisões judiciais, sendo que o código dogmático serviria apenas para legitimar
juridicamente uma decisão tomada com base em estereótipos (ANDRADE, 2009). Conforme
aponta Nilo de Bairros Brum (1980) “chegado o momento de prolatar a sentença penal, o juiz
já se decidiu se condenará ou absolverá o réu. Chegou a essa decisão (ou tendência a decidir)
por vários motivos, nem sempre lógicos ou derivados da lei” (p. 72).

100
3.2 O Que (Não) Dizem os Discursos?

Compreendendo, então, o discurso jurídico como um discurso que, pautado em uma


suposta neutralidade, encobre suas verdadeiras funções, tento utilizar algumas ferramentas úteis
ao objetivo de “dissolver as névoas da ideologia” (GINZBURG, 1989, p. 177). É importante,
como coloca Vera Batista (2003b), “explicar não somente o que esses discursos proclamam,
mas o que escondem” (p. 62).

Nilo de Bairros Brum (1980) afirma que “toda a atividade jurídica é uma prática
ideológica” (p. 11) e que os métodos que se supõem possam controlar ou diminuir as
“influências ideológicas” cumprem um papel inverso de “camuflagem ou escamoteamento das
ideologias” (p. 11). A dogmática jurídica tradicional comumente tentou nos convencer de que
a interpretação da lei pode ser feita de maneira mecânica, o que permitiria extrair dela seu
verdadeiro sentido. Entretanto, conforme coloca Brum (1980) “o simples fato de afirmar-se que
a lei possui um sentido exclusivo e verdadeiro já é uma confissão do formalismo, uma profissão
de fé que visa a segurança e reprodução de uma ordem jurídica estabelecida” (p. 12).

José Rodrigo Rodríguez (2013) afirma ainda que os juristas brasileiros assumem uma
postura “personalista” ao decidir casos concretos e, por outro lado, naturalizam os seus
conceitos ao refletir sobre o direito em abstrato “apresentando-os como a única solução possível
para o problema que os ocupa com a utilização de argumentos de autoridade e erudição
histórica para justificar sua posição” (p.07), deixando entrever suas opiniões pessoais, situação
que pôde ser percebida nas decisões analisadas, conforme será apresentado.

Considerando, portanto, que não há nada neutro em um discurso jurídico, escolhi por
tomar as decisões interlocutórias decretadoras/mantenedoras de prisão provisória como objeto.
Optei pelas decisões interlocutórias e não sentenças, por entender, conforme já afirmei, que
nelas há um espaço maior para que os juízes professem as suas opiniões e pré-conceitos, uma
vez que das sentenças são exigidos maiores rigores formais.

Neste capítulo, a escolha das decisões interlocutórias como objeto deveu-se justamente
pela compreensão de que esse second code tem mais espaço para aparecer justamente nas
decisões, mais que nas sentenças. Nas decisões interlocutórias é possível ver mais elementos
explícitos “não-judicias” que fundamentam a segregação cautelar; obviamente muitos deles
apareceram também nas sentenças, mas estas, ao contrário das decisões
decretadora/mantenedora de prisão, são menos porosas e exigem um maior rigor formal. Nas
sentenças, o código dogmático – que aparece após a tomada da decisão pelo juiz – precisa fazer-
101
se mais evidente “permitindo recolocar normas e ‘conceitos’ no lugar daqueles preconceitos,
operando como uma cobertura decisória do (contra) Direito penal do autor” (ANDRADE, 2009,
p. 177). Dos decretos prisionais se exige muito menos cobertura.

Desse modo, optei por estudar qual o fundamento da prisão cautelar – dentre aqueles
previstos no art.312 – fundamentava a decisão e quais as definições seriam dadas a cada um
desses fundamentos. A partir desses eixos pude construir minha argumentação, apresentada no
próximo tópico.

Assim que, a partir de indícios, sinais, vestígios, discursos encontrados no objeto


empírico - as decisões judiciais nas varas de tóxicos - tentei ampliar um pouco a compreensão
sobre funções reais cumpridas pelas prisões antecipadas, fazendo as interligações possíveis
entra uma análise micro e um horizonte teórico mais amplo.

3.3. “A Prisão Preventiva ‘é uma dessas Dolorosas Necessidades Sociais perante as quais
somos forçados a nos inclinar’”174

3.3.1. O Periculum libertatis e os riscos dos indiciados à Ordem Pública"175

O sistema processual penal brasileiro estabelece como requisito da prisão preventiva o


fumus commissi delicti, ou seja, “prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria”.
Além disso, estabelece como fundamento da medida o periculum libertatis, “o perigo que
decorre do estado de liberdade do sujeito passivo” (LOPES JR., 2013, p .836), que o artigo 312
do CPP estabelece como sendo os casos onde seja necessário garantir a ordem pública, garantir
a ordem econômica, para conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da
lei penal.

Se as prisões cautelares funcionam como pena antecipada, parece que alguns elementos
presentes na própria legislação brasileira ajudam a potencializar essa função. É o que ocorre
com a famigerada “garantia da ordem pública”. Patrick Mariano Gomes (2013) aponta que as
decisões de prisão embasadas neste fundamento são as mais difíceis de serem atacadas, pois
muitas vezes se trata “de argumentação não vinculada, concretamente, ao quanto colhido nos

174
Processo n. 0565186-07.2014.8.05.0001 (Decisão proferida no processo apenso n. 0337775-70.2014.8.05.0001,
em 10/10/2014, pelo/a juiz/a C)
175
Processo n. 0554281-40.2014.8.05.0001 (Decisão proferida em 27/08/2014 pelo juiz/a E)
102
autos, nem tampouco às ações tidas por criminosas” e, ainda, que, comumente, essas decisões
silenciam “quanto a alguma ação concreta daqueles que se visava encarcerar” (p. 15).

O autor, que estudou decisões proferidas pelo STF buscando os second codes aplicados
aos sujeitos criminalizados, aponta para “a dificuldade de questionar uma decisão judicial
baseada tão somente em conjecturas e análises políticas sobre uma determinada realidade dada,
puro discurso em essência” (p. 16). As medidas cautelares penais visam – ao menos em suas
funções declaradas – “garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência,
a eficaz aplicação do poder de penar” (LOPES JR., 2013, p. 786). Possuem, assim, uma função
instrumental ao processo, buscando garantir o bom andamento do processo e da instrução
criminal e/ou assegurar a aplicação de lei penal em caso de condenação.

Entretanto, justamente a “garantia de ordem pública” pelo alto grau de indeterminação,


vagueza e abertura – e sem função instrumental sequer aparente - surge como “o fundamento
preferido” (LOPES JR., 2013, p. 836) nas decisões judiciais estudadas, referentes a 183 réus.
Neste universo, a garantia de ordem pública foi usada como fundamento em 152 decisões; nelas
eventualmente apareceram os demais fundamentos previstos no art. 312. Nas 31 decisões
restantes os fundamentos foram baseados exclusivamente em “não haver excesso de prazo” na
prisão ou “não haver fatos novos” em relação à decisão anterior; estas foram, então, descartadas,
por não haver o que analisar. Entretanto, é importante destacar a existência delas para reforçar
o argumento de que a prisão é a regra e a liberdade é exceção, já que uma prisão pode ser
mantida por pouco ou nenhum fundamento.

Maria Ignez Kato (2005) afirma que a função real das prisões provisórias é “assegurar
o controle social finalístico exercido pelo Direito Penal” (p. 01), ou seja, a prisão provisória
parece se apresentar como a rápida e imediata resposta ao clamor punitivo em tempos de Estado
penal. Em relação à ordem pública a autora afirma que:

A prisão como garantia de ordem pública rompe com o princípio da


legalidade, pelo seu conceito indefinido, subjetivo, vago e amplo. É
exatamente nesse conceito de conteúdo ideológico que se verifica a
possibilidade do exercício arbitrário das prisões, em desrespeito aos direitos
fundamentais, tornando legítimas decisões injustas e ilegais. (p. 117)

Os demais fundamentos presentes no art. 312 – a conveniência da instrução criminal e


a asseguração da aplicação da lei penal176 - foram utilizados poucas vezes e sempre em conjunto

176
O fundamento “garantia da ordem econômica” é utilizado como fundamento apenas em crimes que violem a
ordem econômica.
103
com o coringa “garantia da ordem pública”, conforme já dissemos. A conveniência da instrução
criminal apareceu como fundamento 24 vezes e a garantia da aplicação da lei penal em 28 vezes.
Embora ambas sejam aparentemente revestidas da suposta função instrumental necessária às
medidas cautelares, também foram utilizadas nas decisões de forma vaga e sem fundamentação
adequada.

Se, em tese, a garantia de aplicação da lei penal exige risco concreto de fuga, os juízes
pouco ou nenhum esforço fizeram para demonstrar haver esse risco efetivo. Apenas em um
caso, em que o réu era estrangeiro, o juiz buscou efetivamente discorrer sobre o fundamento de
garantia de aplicação da lei penal:

uma vez que se tratando de nacionalidade "estrangeira" a aplicação da Lei


Penal mostra-se ameaçada e não se converter em prisão preventiva é exemplo
de impunidade a práticas criminosas, ou seja, condutas permissivas a
estrangeiros e restritivas a nacionais(...) necessitando-se assim preservar a
instrução do processo evitando-se a fuga do agente delituoso e evitando que a
pena não seja aplicada caso venha a ocorrer uma sentença condenatória,
levando-se ainda em conta interesse de respeito a segurança pública nacional
que influi na formação da opinião pública, facilmente manipulada pelos meios
de comunicação, pondo em risco a credibilidade da Justiça Brasileira e o
respeito as normas por aqueles que vem a este país com a ideia de que aqui
não existe leis e nem regras a serem observadas. (Processo n.0561136-
35.2014.8.05.0001 [Decisão proferida no processo apenso n. 0332347-
10.2014.8.05.0001, em 04/09/2014, pelo/a juiz/a U])

Em um outro caso, o fato de dois dos réus do processo estarem foragidos é considerado
pelo juiz como razão suficiente para a utilização deste fundamento em relação aos demais
réus177. Nos demais casos, entretanto, não houve qualquer preocupação em explicar qual seria
o risco concreto de não aplicação da lei penal – em caso de condenação – como uma real
possibilidade de que o réu fugisse do país, por exemplo.

Maria Ignez Kato (2005) aponta que, originalmente, essa foi a primeira função da prisão
– garantir a aplicação da pena ao final de uma investigação – o que “condicionou a concepção
da prisão cautelar como instrumento da antecipação da pena na modalidade de garantia da
aplicação da mesma” (p. 15). Assim, é que esse fundamento ainda mantido na legislação acaba
por significar uma legitimação do “acautelamento provisório vinculado ao cumprimento da
pena” (p. 123).

Por outro lado, também a conveniência da instrução criminal exige que se apontem as
razões para que se possa dizer que o réu em liberdade colocaria em risco a instrução criminal.

177
Processo n. 0347993-60.2014.8.05.0001 (decisão proferida em 07/04/2015, pelo/a juiz/a D)
104
Nesse caso, os juízes utilizaram esse fundamento com argumentos vagos como “a instrução
criminal sequer foi iniciada”178 ou “Registre-se que nenhuma prova fora judicializada, até então,
sendo certo que a liberdade prematura do réu poderia, também, comprometer a lisura e a higidez
da instrução criminal”179. Além disso, “os vínculos seguros que o flagranteado possui com o
tráfico”180 foi utilizado como um argumento de que a instrução criminal poderia restar
obstaculizada.

O argumento de não haver comprovação nos autos de que os réus possuem “trabalho
lícito” e “residência fixa” também foi utilizado para embasar a decretação prisional, sob uma
suposta “garantia da instrução criminal”. Em uma cidade como Salvador conhecida como a
“capital do desemprego”181,182 e que possui a segunda maior taxa nacional em “aglomerados
subnormais” (26%)183, temos uma norma que impõe a criminalização da pobreza em essência.

Assim, mesmo nos casos em que se utilizaram fundamentos “instrumentais” em relação


ao processo – a tutela da prova e garantia da aplicação da lei – a ampla margem de
discricionariedade concedida aos juízes nesse momento processual, os autorizaram a utilizar
tais argumentos de forma vaga. Sob o manto de um suposto tecnicismo legal, temos uma
decisão previamente tomada – independentemente de qual será o fundamento legal utilizado –
em que parecem imperar elementos muito mais “subjetivos”, tais como pela “extensão da folha
de antecedentes do réu” ou “repugnância que determinado delito (em si) provoca no espírito do
juiz” (BRUM, 1980, p. 72).

Entretanto, a “garantia de ordem pública” é o fundamento preferido na grande maioria


das decisões, o que evidencia a extrema porosidade do conceito que se presta a fundamentar
casos bastante distintos. Interessante notar que a “porosidade” do conceito foi reconhecida
expressamente em uma das decisões, na qual foi dito que “a expressão ordem pública há de ser

178
Processo n. 0542750-54.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0325922-64.2014.8.05.0001,
em 20/11/2014, pelo/a juiz/a H).
179
Processo n. 0570309-83.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0570309-83.2014.8.05.0001,
em 24/02/2015, pelo/a juiz/a H)
180
Processo n.0564534-87.2014.8.05.0001 (decisão proferida em 08/08/2014 pelo juiz U)
181
Salvador apresenta historicamente algumas das mais altas taxas de desemprego e de trabalho informal do país.
Em pesquisa recente divulgada pelo IBGE, entretanto, a capital baiana passou a ocupar o segundo lugar com 17%
de pessoas desocupadas procurando emprego, atrás de Aracaju que possui uma taxa de 18,3%. A média nacional
é de 11,8%. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/161219_cc33_mercado_trabalho.pdf
182
Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/blog-da-garoa/o-drama-dos-sem-trabalho-em-
salvador-a-capital-do-desemprego/>
183
A cidade só fica atrás de Belém que possui uma taxa de 53%,
105
tomada como ‘porosa’, ou seja ‘posta para absorver qualquer situação alargando-lhe, sem
medida, a interpretação, a qual, por sua natureza, precisa emergir estrita’”184.

Essa citação retirada de uma decisão excepcionalmente longa aponta para ao que
realmente serve o conceito de ordem pública. Nessa mesma decisão, são apresentados diversos
conceitos de ordem pública formulados pela doutrina, seguido pela seguinte conclusão:

Por conseguinte, a partir das perspectivas acima apresentadas e mesmo que


não se tenha, por definitivo, um conceito jurídico para o termo ordem pública,
poderíamos identificar, com algum grau de certeza, fatores que colocariam em
risco tal estado de tranquilidade social: a) a periculosidade do agente, que,
voltando a delinquir, provocaria graves perturbações sociais, levando à
sociedade a uma sensação de insegurança generalizada; b) a gravidade do
delito; e c) a sua repercussão no meio social, instando o Poder Judiciário a
uma resposta célere e adequada.

Os três pontos acima listados, apareceram de maneira reiterada em diversas decisões,


que afirmavam a necessidade da prisão provisória para a “garantia da ordem pública,
visualizada pelo trinômio gravidade da infração, repercussão social e perigosidade [sic] do
agente”185.

Após a leitura cuidadosa das 152 decisões, concluí que esse trinômio poderia na verdade
ser organizado em dois grandes eixos: o primeiro incluiria as ideias de “evitar a reiteração
criminosa”, periculosidade e “prática contumaz de delitos”, todos voltados, assim, para um
direito penal do autor, importando muito mais quem é o réu do que a conduta a ele imputada.

Um segundo eixo abarcaria tanto a “gravidade da infração” como a “repercussão social”


desse mesmo crime, pois notei que, ao menos em relação ao delito de tráfico, ambas as questões
são diretamente interligadas como fundamentos. A gravidade – abstrata – do crime aparece
comumente ligada à “insegurança e indignação” que traz “ao meio social”, porque aqui tanto o
abalo social quanto a gravidade do crime são considerados de forma abstrata e não relativa ao
caso concreto. Estas se referem, portanto, aos sentimentos trazidos pelo delito de tráfico de
drogas abstratamente considerado e a suposta repercussão negativa que causa no meio social.

Boiteux (2015) aponta que a opinião pública brasileira é bastante conservadora em


relação à temática das drogas e “atribui efeitos simbólicos à lei penal na sua suposta capacidade
de reduzir o consumo e proteger as pessoas dos ‘malefícios’ das drogas” (p. 143). Essa ideia

184
Processo n. 0567416-22.2014.8.05.0001(decisão proferida no processo de Habeas Corpus n.0021077-
65.2014.8.05.0000, em 05/02/2015, pelo/a juiz/a T)
185
Processo n. 0371802-16.2013.8.05.0001(decisão proferida em 06/06/2014 pelo/a juiz/a B)
106
parece transparecer também nas decisões – supostamente tecnicamente neutras – aqui
estudadas.

A “ordem pública” se enquadra, assim, naquela categoria de “palavras perigosas” de


que falou Nilo Batista (2012) ao discutir o conceito de “segurança pública”. Se as palavras
possuem uma “estranha potência”, o autor se questiona se aquelas palavras comprometidas com
a imposição de penas poderiam ser potencialmente perigosas. A vagueza do conceito de “ordem
pública” parece ampliar as suas possibilidades “perigosistas”.

E o que seria a ordem pública? Nas decisões elas aparecem conceituadas a partir de um
conceito negativo: o que não é ordem pública, ou seja, o que naquele caso restou violado por
uma determinada conduta, que deve então ser assegurada e reestabelecida prendendo-se
cautelarmente o réu. Em uma decisão, inclusive, o magistrado afirma que a prisão cautelar com
fundamento na garantia da ordem pública é necessária para "que não se impere na sociedade o
sentimento de impunidade do ilícito, pois ela não se permite tolerar o retorno dos flagrados ao
seu convívio ao menos temporariamente"186.

As definições variam de “evitar reiteração criminosa”, a “gravidade do crime”, passando


por outros argumentos bastante díspares entre si. Parece não haver na doutrina ou na
jurisprudência uma concepção unitária sobre o significado da ordem pública. E talvez seja
interessante que não haja, pois é justamente na sua extrema ambiguidade, que se legitima
formalmente a prática de aprisionamento cautelar. Afinal, de acordo com Pachukanis (1988),
“(...) a defesa dos chamados fundamentos abstratos da ordem jurídica é a forma mais geral de
defesa dos interesses da classe burguesa” (p. 09).

3.3.2 Evitando a reiteração criminosa: a periculosidade e a prática contumaz de delitos

Conforme acima observado, a garantia de ordem pública nas decisões analisadas se


articula essencialmente sob dois eixos. O primeiro liga-se diretamente ao réu em si mesmo
considerado, o que permite evidenciar que se a lei prevê formalmente um direito penal do fato,
mas ao menos na prática dos decretos prisionais sobressai um direto penal do autor187. De

186
Processo n. 0520455-23.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0310850-37.2014.8.05.0001,
em 24/03/2014, pelo/a juiz/a S) (grifos aditados)
187
Apenas à título de observação, e em comparação com um direito fundado nas bases anglo-saxônicas, é
interessante observar que nos EUA até 1984, os juízes poderiam considerar como relevante para a sentença
qualquer circunstância relativa ao réu, o que deixa entrever um direito penal do autor autorizado por lei; a partir
da década de 1970, entretanto, os próprios juízes começaram a notar que para situações idênticas, as sentenças
apresentavam distinções importantes, que pareciam levar mais em conta características como raça, classe e gênero
107
acordo com Zaffaroni, Batista et al (2011) este “direito penal supõe que o delito seja sintoma
de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais” (p. 131).
Esse primeiro eixo apareceu como definição de ordem pública em 133 decisões; em 90
conjuntamente com a ideia de tráfico abstratamente considerado e em 43 como a única
definição. Um dos magistrados, inclusive, pontua que:

A expressão 'ordem pública' pode trazer, em si mesma, características de


generalidade, subjetividade e abstração, a depender de como é empregada no
seu contexto. Porém, não é essa a situação do presente feito, já que a
necessidade da medida constritiva, ora impugnada, foi firmada com base em
situações que revelaram a periculosidade do agente, e não por afirmações
vagas, impressões pessoais ou suposições inconsistentes. (Processo n.
0543470-21.2014.8.05.0001 [decisão proferida em 20/10/2014 pelo/a juiz/a
G])

Embora em um Estado que se diz Democrático de Direito o direito penal se apresente –


em suas funções declaradas - como um direito penal do ato (o que significa dizer que o seu
desvalor se esgota no próprio ato ilícito), ao menos em relação às prisões cautelares temos a
explicitação de um modelo em que “o ato é apenas uma lente que permite ver alguma coisa
daquilo onde verdadeiramente estaria o desvalor e que se encontra em uma característica do
autor” (ZAFFARONI, BATISTA et al, 2011, p. 131). Esse indivíduo apresenta-se em estado
de periculosidade e é preciso contê-lo.

É importante destacar que, embora aparentemente incompatíveis, a racionalização e


codificação modernas do saber penal serão rapidamente seguidas pela preocupação com a
individualização da pessoa criminosa a partir do desenvolvimento da Criminologia Positivista.
Foucault (1987) afirma que:

Vemos aí ao mesmo tempo a necessidade de uma classificação paralela dos


crimes e dos castigos e a necessidade de uma individualização das penas, em
conformidade com as características singulares de cada criminoso. Essa
individualização vai representar um peso muito grande em toda a história do
direito penal moderno; aí está sua fundamentação; sem dúvida em termos de
teoria do direito e de acordo com as exigências da prática cotidiana, ela está
em oposição radical com o princípio da codificação; mas do ponto de vista de
uma economia do poder de punir, e das técnicas através das quais se pretende
pôr em circulação, em todo o corpo social, sinais de punição exatamente
ajustados , sem excessos nem lacunas, sem ‘gasto’ inútil de poder mas sem

do infrator do que a conduta ilícita em si mesma considerada. Uma importante reforma no procedimento de
sentenciar neste ano de 1984 (“The Sentencing Reform Act”) buscou restringir a discricionariedade judicial,
impondo que a partir de então os juízes só poderiam decidir a partir de argumentos legais relevantes. Entretanto,
o que se tem apontado é que se essa reforma certamente levou a sentenças mais punitivas (ao estabelecer as penas
mínimas obrigatórias, por exemplos), ainda há dúvidas se ela efetivamente deixou os julgamentos mais justos e
igualitários (HARTLEY, 2008).
108
timidez, vê-se bem que a codificação do sistema delitos-castigo e a modulação
do par criminoso-punição vão a par e se chamam um ao outro. A
individualização aparece como objetivo derradeiro de um código bem
adaptado. (p. 90)

De acordo com Foucault (1987), ainda, no final do século XVIII as “formas de


individualização antropológica estavam (...) se constituindo de maneira ainda muito
rudimentar” (p .91). Entretanto, é só no século XIX que a individualização da pena baseada na
pessoa concreta do criminoso encontrará sua forma mais acabada na Criminologia Positivista.
No mesmo sentido, Vera Andrade (2015) coloca que:

Desta forma, junto a um saber fundado na racionalidade das ações criminais


(livre-arbítrio) e do controle igualitário, sobre o qual se edificaram as
codificações penais, desenvolve-se um saber do criminoso como homem
privado de vontade, desigual e perigoso; desenvolve-se um saber do controle
diferencial. (p. 249)

Isso nos leva a concluir que não há incompatibilidade entre o direito penal moderno –
supostamente orientado para ser um direito penal do ato – e um direito penal que – orientado
pela criminologia positivista – entenda que o desvalor do ato revela na realidade um desvalor
do autor. A seletividade do sistema penal, não é assim, conjuntural, mas estrutural aos sistemas
penais; também não é um problema de má atuação policial e judicial e encontra guarida no
próprio saber penal. Como coloca Vera Andrade (2015):

Enquanto do saber jurídico o sistema recebe o instrumental conceitual para


delimitar as decisões judicias em torno da conduta do autor em relação ao fato-
crime e o discurso da legitimação pela legalidade; do saber criminológico
recebe o instrumental conceitual para as decisões judicias e penitenciárias
fundadas na pessoa do autor e o discurso da legitimação científico-utilitarista,
isto é, da defesa social contra a delinquência. O exercício de poder do sistema
– a seleção de pessoas – não se desenvolve, portanto, não obstante esta
contradição, mas desde o seu interior, isto é, através dela. (p. 255)

A ideia de “periculosidade” é desenvolvida pelos criminólogos positivistas (o termo será


cunhado por Garófalo, mas a ideia será também extensamente desenvolvida por Ferri) a partir
das construções de Cesare Lombroso. Ferri identificava que o crime era determinado por
múltiplos fatores “que conformam a personalidade de uma minoria de indivíduos como
‘socialmente perigosa’” (ANDRADE, 2015, p. 73), com isso condenando “o erro metódico do
classicismo em ignorar que a personalidade antissocial do delinquente deve estar na primeira
linha porque o crime é sobretudo sintoma revelador da personalidade perigosa de seu autor”
(ANDRADE, 2015, p. 74). Em Foucault (1987) temos que:
109
Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a
responsabilidade de um delito, revela-se o caráter delinquente cuja lenta
formação transparece na investigação biográfica. A introdução do
“biográfico” é importante na história da penalidade. Porque ele faz existir o
“criminoso” antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste. E porque a
partir daí uma causalidade psicológica vai, acompanhando a determinação
jurídica da responsabilidade, confundir-lhe os efeitos. Entramos então no
dédalo “criminológico” de que estamos bem longe de ter saído hoje em dia:
qualquer causa que, como determinação, só pode diminuir a responsabilidade,
marca o autor da infração com uma criminalidade ainda mais temível e que
exige medidas penitenciárias ainda mais estritas. À medida que a biografia do
criminoso acompanha na prática penal a análise das circunstâncias, quando se
trata de medir o crime, vemos os discursos penal e psiquiátrico confundirem
suas fronteiras; e aí, em seu ponto de junção, forma-se aquela noção de
indivíduo “perigoso” que permite estabelecer uma rede de causalidade na
escala de uma biografia inteira e estabelecer um veredito de punição-correção.
(p. 224)

Formulada no século XIX, entretanto, a “periculosidade” permanece nas mentalidades


dos atores jurídicos e na legislação. Ele é fundamento nas medidas de segurança aplicáveis aos
inimputáveis, e embora no sistema penal conferido aos imputáveis não possa ser fundamento
da pena, foi fartamente utilizado como definição de ordem pública nas decisões ora estudadas.

Em 47 decisões o termo “periculosidade” apareceu expressamente ou ainda


“perigosidade” (04 decisões). Mesmo quando não apareceu, entretanto, a ideia de que o réu
possui “comportamento voltado à prática de crimes” (termo que apareceu 14 vezes) ou que a
“conduta, no dia do crime, não foi algo isolado” (10 vezes), ou ainda de que possuiria uma
“personalidade delitiva” (06 vezes) apareceram reiteradamente188.

Não é possível ignorar o quanto dos elementos não apenas de classe, mas também racial
devem estar ligadas a tal definição, pois, conforme afirmou Zaffaroni, a “periculosidade” é
“cônjuge inseparável e legítimo do racismo” (ZAFFARONI, 2011, p. 54). Se a polícia cumpre
um importante papel de seleção concreta dos sujeitos “perigosos” nas ruas através da “atitude
suspeita”, o Judiciário cumpre a função de legitimar tal medida ao negar “a possibilidade de
observar os padrões cotidianos de violência” (DUARTE et al, 2014, p. 111) e ao permitir
amplos espaços de discricionariedade conferidos por termos vagos e ambíguos. Vale destacar
ainda que um “modelo de convivência entre padrões jurídicos ambíguos (liberais e autoritários)

188
Zaffaroni (2011) aponta a centralidade da “periculosidade” para embasar a decretação desta pena antecipada:
“Em síntese, pode-se afirmar que o poder punitivo na América Latina é exercido mediantes medidas de contenção
para suspeitos perigosos, ou seja, trata-se, na prática, de um direito penal de periculosidade presumida, que é a
base para a imposição de penas sem sentença condenatória formal à maior parte da população encarcerada”
(ZAFFARONI, 2011, p.71)
110
(...) decorre de uma historicidade concreta do controle social em que o racismo institucional é
um elemento central das políticas públicas empreendidas pelo Estado” (DUARTE et al, 2014,
p. 111).

A ideia de que a existência de “sérios indícios de que se tratam de pessoas com


comportamento voltado à prática de tráfico de drogas (...) não só autoriza, como determina a
custódia cautelar” permeou diversas decisões189. Os magistrados passam a ideia de que estariam
cumprindo uma obrigação em manter o réu preso, vez que “se solto, o segregado estará exposto
aos mesmo estímulos que o fizeram delinquir”190. Em determinada decisão o decreto prisional
é fundamentado no seguinte argumento:

Cabe salientar que nenhuma das medidas cautelares recentemente


introduzidas em nosso ordenamento jurídico teria eficácia em face do crime
de tráfico de entorpecentes, por consistir este em negócio altamente rentável,
sendo improvável que o requerente, em liberdade, deixasse de exercer tal
nefasta atividade comercial. (Processo n. 0300119-45.2013.8.05.0250
[decisão proferida no processo apenso n. 0303306-95.2012.8.05.0250, em
18/12/2012, pelo/a juiz/a Z1]) (grifos aditados)

Neste caso, o réu V.J.G. foi parado por uma suposta “atitude suspeita” na localidade
conhecida como “invasão do Iraque” no município de Simões Filho (região metropolitana de
Salvador) e, revistado, teria sido encontrado com ele, de acordo com a polícia, 7 cigarros de
maconha, 28g de maconha prensada, 12 papelotes de cocaína (com 2,5g cada) e 11 pedras de
crack, além de “de R$364,00 (trezentos e sessenta e quatro reais) em dinheiro, cinco aparelhos
de telefone celular, uma caderneta com anotações sobre venda de drogas, dentre outros objetos
de valor, como pulseira, anel e óculos de sol”. Destaca o Ministério Público:

que, não só a quantidade de droga apreendida e a forma de sua embalagem,


como também a diversidade e o fato de terem sido encontrados, juntamente
com a droga, dinheiro e outros objetos de valor, os quais são normalmente
de origem ilícita, transformados em moeda de troca por usuários e dados
como pagamento pelas drogas, são indicativos da venda de drogas pelos
denunciados. (grifos aditados)

Ao fim do processo, foi condenado a uma pena de prisão de 01 ano e 10 meses, em


regime aberto, convertida em duas penas restritivas de direito191. A prisão ao longo de todo o

189
Ao menos em 13 decisões essa frase apareceu nesses exatos termos.
190
Processo n. 0551709-14.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0545055-11.2014.8.05.0001,
em 09/12/2014, pelo/a juiz/a G).
191
Os dados sobre o réu, local da prisão, a quantidade de drogas e a condenação foram obtidos na sentença; não
foi encontrada na sentença ou decisão uma qualificação mais detalhada do réu.
111
processo (02 anos e 06 meses) foi mantida por ser o tráfico um negócio altamente rentável,
“sendo improvável que o requerente, em liberdade, deixasse de exercer tal nefasta atividade
comercial”. São os “difíceis ganhos fáceis” de que falou Vera Batista (2003b, p. 127): para o
“menor” que se sentia “atraído por uma vida de ganhos fáceis”, “mais um ano de prisão e mais
dois anos de liberdade assistida”. Para V.J.G. o “negócio altamente rentável” que dificilmente
deixaria de exercer, lhe garantiu mais de dois anos de prisão cautelar.

Em outra decisão temos o seguinte trecho bastante emblemático:

No aspecto pessoal, os históricos dos conduzidos mostra processos criminais


anteriores, ainda em andamento, denotando, para a maioria deles, que apesar
de conduções pretéritas ainda não adequaram seu modo de viver à
sociedade, sendo, pois, amplamente descabidas meras medidas cautelares
como alternativa à prisão. (Processo n. 0520455-23.2014.8.05.0001
[decisão proferida no processo apenso n. 0310850-37.2014.8.05.0001, em
24/03/2014, pelo/a juiz/a S) (grifos aditados)

No caso acima, apesar do histórico de processos criminais anteriores e “de conduções


pretéritas” –, os réus ainda “não adequaram seu modo de viver à sociedade”. Como poderia
esses réus adequarem seu “modo de viver à sociedade”? Aqui o magistrado está falando apenas
da atividade criminal ou essa adequação vai além disso? E ainda: é papel do Judiciário impor a
alguém um modo de viver? Conforme destaca Brum (1980) na decisão proferida por um juiz
“influirão sua formação jurídica, suas crenças políticas e religiosas, seu caráter e temperamento,
sua condição econômica e os interesses dos grupos sociais com os quais se identifica” (p. 09).
O “modo de viver”, portanto, está violado aos olhos do juiz e a única solução possível (já que
todas as outras são “amplamente descabidas”) é a imposição da prisão cautelar. É a
neutralização dos indesejáveis.

Em outra decisão temos um réu que destoa da maioria: L.A.B.X., então com 24 anos,
era universitário e morava em um bairro de classe média alta de Salvador (Stella Maris)192. Para
o/a juiz/a, entretanto: "foi possível vislumbrar uma acentuada gravidade na conduta, vez que,
malgrado seja universitário e receba pensão do seu genitor, inclinou-se ao cometimento de
delito." Assim, o réu que tendo condições de “adequar seu modo de viver à sociedade” – vez
que universitário e tendo um pai que o sustente -, não o fez (inclinando-se ao cometimento do
delito), merece ficar preso, ainda que apenas de maneira provisória, uma vez que L.A.B.X. foi
condenado a uma pena restritiva de direitos. Vale lembrar que aqui, o magistrado não vê

192
Processo n. 0532088-31.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0548670-09.2014.8.05.0001,
em 11/09/2014, pelo/a juiz/a I).
112
problema que L. seja sustentado por seu genitor, enquanto isso foi uma das razões para a
manutenção de V.V.S.O. (morador de um bairro popular) em prisão preventiva.

Em outra decisão, temos um decreto prisional fundamentado em uma suposta


demonstração de “falta de temor a lei penal e sentimento de impunidade” por parte do acusado
que “visando lucro com a atividade criminosa de mercancia de entorpecentes” sobrevivia “da
desgraça alheia sem o mínimo de sensibilidade com a destruição moral e material de seus
semelhantes”193.

Nesse caso, A.L.S.C.C. foi preso também em “atitude suspeita”, em local que, de acordo
com a polícia, é conhecido como “sendo frequente a prática de pequenos delitos”. Próximo a
ele – “em uma área circunferente onde eles estavam”, de acordo com o testemunho policial -
foram encontradas 46g de crack, 21g de maconha e 200 reais. Ao final do processo, as frágeis
provas colacionadas aos autos não foram suficientes para sustentar uma condenação e o réu foi
absolvido. No entanto, ele passou 09 meses em prisão cautelar - todo o tempo de duração do
processo – e foi uma prisão imposta por uma visão moralista do juiz sobre o delito de tráfico e
o acusado que, supostamente, sobrevivia “da desgraça alheia sem o mínimo de sensibilidade
com a destruição moral e material de seus semelhantes”.

É comum aparecer o “comportamento voltado à prática delitiva” – e frases relacionadas


-, tendência esta geralmente “comprovada” por meio de outras ações penais – sem trânsito em
julgado – ou “notícias” – em geral, por parte da polícia – de que o acusado é envolvido com o
tráfico de drogas ou outros crimes. Os juízes muitas vezes reconhecem de maneira expressa que
outras ações penais não transitadas em julgado não podem ser levadas em conta para “exasperar
a pena”, para logo em seguida afirmarem que, por outro lado podem sim ser considerados para
“eventual receio concreto de reiteração delitiva”194.

“Evitar reiteração criminosa/delitiva”, inclusive, é um dos termos recordes em número


de aparecimento nas decisões como definição de “garantia de ordem pública”, presentes em 83
decisões. Em geral, por terem outras ações penais – normalmente em aberto – ou por terem
confessado em delegacia atuar com o tráfico de drogas, aos réus é atribuída esta “inclinação à

193
Processo n. 0550670-79.2014.8.05.0001(decisão proferida no processo apenso n. 0330608-02.2014.8.05.0001,
em 26/08/2014, pelo/a juiz/a U).
194
Processo n. 0542750-54.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0325922-64.2014.8.05.0001,
em 20/11/2014, pelo/a juiz/a H)
113
criminalidade”195, que necessita ser contida por meio da prisão cautelar, como revela, por
exemplo, a decisão a seguir:

Em se tratando de prisão preventiva destinada à garantia da ordem pública,


cuida-se de medida que obsta a prática de novos crimes, quer porque o
indivíduo é propenso à prática delituosa, quer porque, em liberdade,
encontrará os mesmos estímulos relacionados coma infração cometida.
(Processo n. 0526366-79.2015.8.05.0001 [decisão proferida em 25/04/2015
pelo/a juiz/a Z6)

Nesse caso, R.V.M. foi perseguido por policiais depois que uma “denúncia anônima”
alertou para ocorrência de prática de tráfico de drogas na região de Periperi – bairro popular na
região do subúrbio ferroviário em Salvador – e por isso eles o seguiram até uma residência.
Lá, dentro de um urso de pelúcia, foram encontradas 50g de maconha. A defesa sustentou a
nulidade das provas colhidas, obtidas ilegalmente após a – suposta? – violação de domicílio,
argumentação não acolhida pelo juiz. Segundo o magistrado, nesse caso, estava clara a situação
de flagrante, afinal que jovem pobre não correria ao ser perseguido pela polícia?

No fim do processo, o réu foi condenado a uma pena de prisão de 01 ano e 08 meses,
em regime aberto, convertida em duas penas restritivas de direito196. Ficou preso, entretanto,
por mais de 06 meses, porque em liberdade “encontraria os mesmo estímulos” para “delinquir”
novamente.

Em outra decisão, temos que “o requerente não é nenhum neófito no mundo da


marginalidade, eis que responde a outras duas ações penais por porte ilegal de arma,
demonstrando sua periculosidade, audácia e temibilidade social”197. Neste caso, A.B.C. foi
parado em uma motocicleta portando 16 porções de maconha (que ele alegou ser para uso
próprio), um revólver (que ele alegou não estar com ele no momento da prisão) e 21 reais. O
fato de possuir duas ações penais e não ter parado quando demandado pela polícia aparecem
para o magistrado como prova incontestável da sua “periculosidade” e “temibilidade social” e
os antecedentes criminais (duas ações penais em curso) garantem ao juiz que este “não é
nenhum neófito no mundo da marginalidade”. Ao final do processo (depois de 09 meses preso),
A.B.C. foi absolvido em relação ao tráfico de drogas, tendo sido condenado a 03 anos pelo
porte ilegal de arma, pena de prisão esta substituída por pena restritiva de direito.

195
Processo n. 0561324-28.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0334071-49.2014.8.05.0001,
em 10/12/2014, pelo/a juiz/a H)
196
Os dados sobre o réu, local da prisão, a quantidade de drogas e a condenação foram obtidos na sentença.
197
Processo n. 0542750-54.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0325922-64.2014.8.05.0001,
em 20/11/2014, pelo/a juiz/a H) (grifos aditados).
114
Em outro caso, temos o réu J.H.S.S., cujo o fato de responder uma outra ação penal por
tráfico demonstra, para o/a juiz/a que o réu possui “péssima conduta social e a prática delitiva
contumaz” e a necessidade da prisão se mostra clara vez que o acusado possui “uma vida
anteacta prenha de deslizes”198. Ao fim do processo J.H.S.S foi absolvido, após quase 11 meses
de prisão.

Já sobre outro réu que responde a três ações penais de homicídio concluiu-se que “tais
elementos constroem o liame necessário para se evidenciar que o acusado não possui qualquer
autodeterminação ou freio inibitório, sendo excessivamente perigoso ao meio social”199.
B.R.C apreendido com “pequena quantidade de maconha” (nem a decisão nem a sentença
especificam a quantidade exata) teve a conduta desclassificada para aquela do art. 28 (uso de
drogas), após 10 meses de prisão.

Os juízes, assim, têm claramente estabelecida “uma linha divisória entre o mundo da
criminalidade – composta por uma ‘minoria’ de sujeitos potencialmente perigosos e anormais
– e o mundo da normalidade – representada pela ‘maioria’ na sociedade.” (ANDRADE, 2015,
p. 74).

Essa minoria “anormal” revela ainda mais sua periculosidade quando já dentro do
sistema criminal – seja respondendo outro processo em liberdade, seja em livramento
condicional – reitera – ainda que supostamente – a conduta delitiva. Em uma decisão, o fato de
o réu ter sido preso por suposta prática de tráfico de drogas, enquanto em liberdade condicional,
é confirmação de que é uma pessoa “perigosa e temível socialmente, sem qualquer freio
inibitório”200. Em outra, o fato de o réu ter sido preso “pouco mais de um mês de haver cumprido
medida socioeducativa” é utilizado como elemento para mantê-lo preso201. No primeiro caso,
A.C.S, depois de 10 meses preso, foi condenado a uma pena de 06 anos e 03 meses em regime
semiaberto; no segundo E.M.V., depois de quase 08 meses preso, teve a pena de prisão
convertida para uma pena restritiva de direitos. Em ambos os casos, uma condenação se mostrou
mais benéfica que um processo criminal.

198
Processo n. 0562537-69.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0509450-67.2015.8.05.0001,
em 01/04/2015, pelo/a juiz/a H).
199
Processo n. 0561324-28.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0334071-49.2014.8.05.0001,
em 10/12/2014, pelo/a juiz/a H)
200
Processo n. 0570309-83.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0570309-83.2014.8.05.0001,
em 24/02/2015, pelo/a juiz/a H)
201
Processo n. 0525825-46.2015.8.05.0001 (decisão proferida em 22/07/2015 pelo juiz F)
115
Baratta (2003) afirma que ideias como “’Recuperação’, ‘ressocialização’, ‘reeducação’
são eufemismos que escondem objetivos e instrumentos de contenção social claros e explícitos
em sua seletividade” (p. 21). Assim, a ideia de “evitar a reiteração criminosa” parece entrever
a uma outra: de que aquela pessoa não adequou seu modo de viver à sociedade, como afirmado
por um dos magistrados.

De acordo com Foucault (1987) é a partir do fim do século XVIII que a reincidência
“tende a tornar-se uma qualificação do próprio delinquente, susceptível de modificar a pena
pronunciada” (p. 91), assim, “através da reincidência, não se visa o autor de um ato definido
pela lei, mas o sujeito delinquente, uma certa vontade que manifesta seu caráter intrinsecamente
criminoso” (p. 91). Zaffaroni (2007) aponta que: “(...) a segurança com relação à nossa conduta
futura, como se sabe, não é nada além de um pretexto a mais para legitimar o controle social
punitivo” (p. 21).

Baratta (2003) observa criticamente em sua materialidade que o direito penal do fato
sempre carrega elementos do direito penal do autor, que por meio de estereótipos bem definidos.
O que move a ação do sistema penal assim “não é propriamente a realização do delito descrito
pelas leis ou a defesa dos bens jurídicos, mas o controle ou a destruição dos grupos mais pobres
da população, aqueles percebidos e definidos como ‘classes perigosas’” (p. 16). De acordo com
Nilo Batista:

No século XIX a política criminal europeia, após breve e incendiada lua de


mel com o princípio da legalidade (aquela inesquecível mistura da vadiagem
com a criminalização da greve), se dava conta de que a ordem burguesa-
industrial podia expor-se a perigos sem que (ou antes que) um crime fosse
cometido: a invenção, no final daquele século, da periculosidade criminal e de
sua resposta – as medidas de segurança – seria a melhor demonstração de
que, para os medos burgueses, existe crime além da lei. (BATISTA, 1996,
p. 68) (grifos aditados)

Assim, embora hoje as medidas de segurança restrinjam-se aos inimputáveis (com o fim
do sistema duplo-binário em 1984), as prisões cautelares representam uma outra permanência
deste “crime além da lei” como resposta aos “medos burgueses” de que fala Nilo Batista.
Quando as prisões cautelares encontram o delito de tráfico de drogas com sua “multiplicidade
de verbos” e todo o pânico criado pela mídia no senso comum o campo de arbítrio fica ainda
mais ampliado.

116
3.3.3 Tráfico, Medo e Violência: “O fato noticiado nos autos é de extrema gravidade (...)
causando o aumento da violência e a destruição de inúmeras famílias pelo vício por ele
estimulado”202.

Afirmações como a que aparece no título deste tópico são bastante comuns e compõem
o que nomeei de segundo eixo de definição da garantia de ordem pública nas decisões
estudadas. O tráfico de drogas - abstratamente considerado -, a violência que gera, os delitos
que estimula e o abalo social que causa foram argumentos que apareceram em 108 das 152
decisões estudadas (em 90 conjuntamente com a periculosidade e em 18 como a única definição
de ordem pública).

O que foi possível observar é que muitas vezes o caso concreto não é tão importante
quanto o “pânico social” causado pelo tráfico em geral. Embora, algumas vezes, também seja
feita referência à situação concreta – aparecendo como fundamento “as circunstâncias da
prisão” e a “quantidade de drogas” -, essa aparece de forma vaga, merecendo pouco
aprofundamento por parte do juiz.

Por outro lado, quando o assunto é o “tráfico de drogas” que “ceifa vidas”, “alicia
jovens” e “estimula a prática de outros crimes” – frases repetidas reiteradamente e, em geral,
sem ligação com os casos concretos – parece haver muito o que ser dito.

Conforme discuto no capítulo 2, o tráfico de drogas hoje se tornou o “carro-chefe” da


política criminal de drogas no país, situação que, entretanto, vem se construindo desde meados
da década de 1960. Apresentando um apanhado de visões de juristas deste período acerca do
“problema das drogas”, Nilo Batista (1998) afirma que:

Essa amostragem é suficiente para constatar que a produção jurídico-penal


daquela conjuntura absorveu a ideia de que a generalização do contacto de
jovens com drogas devia ser compreendida, no quadro da guerra fria, como
uma estratégia do bloco comunista para solapar as bases morais da
civilização cristã ocidental, e que o enfrentamento da questão devia valer-
se de métodos e dispositivos militares. A reunião do elemento bélico e do
elemento religioso-moral resulta na metáfora da guerra santa, da cruzada, que
tem a vantagem – extremamente funcional – para as agências policiais – de
exprimir uma guerra sem restrições, sem padrões regulativos, na qual os fins
justificam todos os meios. (p. 87)

Se, entretanto, a queda do muro de Berlim se aproxima do seu trigésimo aniversário, a


ideia de que as drogas ainda visam “solapar as bases morais da civilização cristã ocidental”

202
Processo n. 0520980-68.2015.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0307547-78.2015.8.05.0001,
em 19/03/2015, pelo/a juiz/a P)
117
parece seguir inalterada para boa parte do senso comum, inclusive aquele expresso pelo
Judiciário. O “pânico moral” causado pela ideia da “droga” e do “tráfico” aparece
reiteradamente nas decisões, a exemplo do trecho abaixo:

O tráfico de drogas é uma das mais graves chagas da sociedade atual, sendo
causador de diversos estigmas como a desestabilização da estrutura
familiar, o recrudescimento do número de dependentes químicos e
fomento à prática de outros crimes, a exemplo de roubos, furtos e tráfico ou
porte ilegal de arma de fogo (Processo n. 0301148-67.2014.8.05.0001
[decisão proferida no processo apenso n. 0529562-91.2014.8.05.0001, em
21/07/2014, pelo/a juiz/a I])203

No caso em tela, M.S.B, foi preso com uma pedra de crack, 44 porções de maconha e
22 porções de “pó branco”, no bairro de Santo Antônio Além do Carmo (região que passa por
um grande processo de “revitalização”). Ao fim do processo, foi condenado a uma pena de
prisão de 01 ano e 08 meses, que foi convertida em uma pena restritiva de direitos. Ficou,
entretanto, preso cautelarmente por 01 ano e 03 meses por ter – no momento da decretação da
preventiva, supostamente – praticado um crime que “é uma das mais graves chagas da
sociedade atual”204. Como não pensar na ideia de que é um crime que visa “solapar as bases
morais da civilização cristã ocidental”?

A “gravidade do crime/delito” de tráfico de drogas apareceu como fundamento de


maneira expressa em 51 decisões. Também foi recorrente a “necessidade de se acautelar o meio
social”, abalado por conta do crime, frase repetida em 46 delas. No mesmo sentido a
“repercussão social” (aparece em 17 decisões) e o impacto gerado nas comunidades ou na
sociedade (em 14 decisões), foram utilizados como argumentos para decretar ou manter o réu
em prisão preventiva, assim como a “sensação de insegurança” (12 vezes) e de “indignação”
(10 vezes) causado no meio social, conforme trecho da decisão abaixo:

Pontue-se, por oportuno, que as transgressões supostamente cometidas pelos


requerentes são daquelas que mais trazem insegurança e indignação ao meio
social, haja vista que as substâncias entorpecentes, quando disseminadas,
quase sempre desencadeiam outros tipos de delitos, muitas vezes,
praticados com emprego de violência ou grave ameaça, ceifando vidas e
destruindo famílias. (Processo n. 0501763-73.2014.8.05.0001 [decisão

203
É relevante notar que as decisões comumente se utilizam de um procedimento apontado por Fiorin (2007): a
substituição da primeira pela terceira pessoa em frases que sintetizam muito mais a opinião do julgador que
verdades universais. O autor afirma que: “O uso da primeira pessoa cria um efeito de sentido de ‘subjetividade’,
enquanto sua não utilização produz um efeito de sentido de ‘objetividade’. Se um cientista dissesse ‘Eu afirmo que
a Terra é redonda’, isso poderia ser entendido como um ponto de vista pessoal. Entretanto, quando ele diz “A Terra
é redonda”, é como se o próprio fato se narrasse a si mesmo. Nesse caso, temos a impressão de que uma verdade
objetiva se estabeleceu” (p.17)
204
Frase, inclusive, que apareceu em três diferentes decisões.
118
proferida no processo apenso 0410026-23.2013.8.05.0001, em 14/01/2014,
pelo/a juiz/a B])

Além disso, o tráfico de drogas aparece ainda como a “grande mola propulsora da
esmagadora maioria de outros ilícitos” (8 vezes), um delito que estimula a violência e outros
delitos (ideia que apareceu em 33 decisões) e que ainda é responsável por “ceifar vidas” (10
vezes) e destruir lares e famílias (25 vezes). É certo, assim, que nessas frases ficam evidenciados
os pensamentos dos magistrados sobre determinadas questões. E que mais do que o pensamento
individual dos juízes expõe as “racionalizações que explicam e justificam a realidade” – de
maneira coletiva - de que falou Fiorin (2007)205.

Boiteux (2015) estudando a formação da opinião pública brasileira sobre a temática de


drogas, aponta que 75% dos entrevistados declarou ter o hábito de se informar sobre drogas por
meio da televisão. Assim, temos, portanto, que a mídia ocupa um papel central na formação do
pensamento hegemônico acerca da temática das drogas, inclusive no pensamento hegemônico
do judiciário. Conforme sintetiza Zaccone (2004):

Associando a imagem do “traficante” à de um ser violento e cruel, ao contrário


da real dimensão daqueles que são selecionados para ingressar no sistema
penal pela prática do delito de tráfico, a mídia passa a exercer um papel
relevante no sistema penal. Enquanto a imensa maioria de traficantes
desarmados e não violentos são encarcerados, os veículos de comunicação
justificam as ações do sistema penal através do chamado “combate à
violência”. Cria-se assim uma verdadeira presunção de violência, sem
previsão legal, para aqueles autuados no art.12 da lei 6.368/76. (....)
A relação entre o tráfico de drogas e violência é um sentido construído pelos
media, produzindo a ideia de que todas as pessoas envolvidas no comércio de
drogas ilícitas são “bárbaros” e insuscetíveis de recuperação, sendo o
recrudescimento penal o único caminho possível para o Estado na questão das
drogas. (p. 191-192)

Christie (2000) aponta que as drogas são utilizadas “para justificar por qué las cosas van
mal em la sociedad”, funcionando como um importante instrumento de controle, não só
material, mas também ideológico. Desse modo, as drogas aparecem com o “causador de
diversas chagas da sociedade contemporânea”, o estimulador da violência “em grandes

205
No mesmo sentido: “o conjunto de elementos semânticos habitualmente usado nos discursos de uma dada época
constitui a maneira de ver o mundo numa dada formação social. (...) Esses elementos semânticos, assimilados
individualmente pelo homem ao longo da sua educação, constituem a consciência e, por conseguinte, sua maneira
de pensar o mundo. Por isso certos temas são recorrentes na maioria dos discursos: os homens são desiguais por
natureza; na vida, vencem os mais fortes; o dinheiro não traz felicidade etc. A semântica discursiva é o campo de
determinação ideológica propriamente dita. Embora esta seja inconsciente, também pode ser consciente.”
(FIORIN, 2007, p. 19)
119
capitais” e “nas pequenas cidades” e “causador de vários estigmas sociais”. Nesse sentido, o
trecho da decisão a seguir é bastante exemplificativo:

Como é cediço por todos, o tráfico de drogas estimula a violência, seja nas
grandes capitais, seja nas pequenas cidades. A violência que está relacionada
com as drogas é um desafio nacional particularmente sério, que tem um grande
impacto nas comunidades locais, destruindo lares e famílias e impactando
principalmente a população mais jovem que á absorvida pelo tráfico, sob a
falsa promessa de dinheiro fácil, mas que, na verdade, as grandes
consequências herdadas pelo delito ora sob apuração são os enormes prejuízos
não só materiais, como também institucionais, gerando instabilidade no meio
social. (Processo n. 0566759-80.2014.8.05.0001 [decisão proferida no
processo apenso n. 0341305-82.2014.8.05.0001, em 20/02/2015, pelo/a juiz/a
H])

Assim, temos que o impacto que causa às comunidades, a destruição de lares e famílias,
e ainda as “nocivas consequências à sociedade” (a palavra nociva/o apareceu em 11 decisões)
e o fomento de outros delitos (ideia que apareceu em 42 decisões), propiciado pelo tráfico de
drogas, bem como o fato de que, em razão do tráfico, a sociedade “se sente desprovida de sua
tranquilidade” são apresentados como fundamentos hábeis a ensejar um decreto prisional. E
mais: inegável que “a ordem pública se vê ameaçada e o Poder Judiciário descredibilizado caso
o réu não esteja submetido à custódia do Estado”. A prisão que deveria ser exceção é entendida
como regra, sendo necessária a submissão imediata do réu à custódia do Estado sob pena de um
completo descrédito da Justiça. Em um caso onde o réu estava sendo processado por porte de
armas, além de tráfico de drogas, temos que:

De fato, o porte de arma quando associado ao tráfico intensifica ainda mais a


periculosidade de ambos os crimes, sendo esta combinação uma das causas
que contribui, exmpli gratia, para o elevado número de homicídios
verificados atualmente revelando acentuada gravidade e reprovação à
conduta protagonizada pelo agente, a ensejar uma resposta estatal mais
severa, como a restrição da liberdade de locomoção. (Processo n. 0541040-
96.2014.8.05.0001 [decisão proferida em 13/04/2015 pelo/a juiz/a H])

Em outra decisão, um trecho bem emblemático explicita tautologicamente que: "A


necessidade da prisão é absolutamente necessária, pois além de todas as circunstâncias acima
sopesadas, o tráfico de drogas estimula a violência, seja nas grandes capitais, seja nas pequenas
cidades”206. A necessidade da prisão é, assim, absolutamente necessária.

206
Processo n. 0569090-35.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0342415-19.2014.8.05.0001,
em 24/02/2015, pelo/a juiz/a H).
120
Diante desse panorama até aqui construído, fica evidenciada que, em se tratando de
delito de tráfico de drogas, a regra é a prisão antecipada e a liberdade uma exceção. Se a
Constituição Federal brasileira de 1988 tem na presunção de inocência direito fundamental (art.
5º, LVII), o que obriga os juízes a aplicar o “in dubio pro reo”, no momento de prolação da
sentença, parece não haver tal aplicação quando o assunto é prisão antecipada. Aqui impera o
brocardo “in dubio pro societate”. Em uma das decisões temos a seguinte elucubração por parte
do juiz:

Com esse posicionamento, todavia, é totalmente possível que, após o desfecho


da instrução probatória oral, sob o crivo do contraditório, outras provas
possam modificar o quadro que, até o momento, foi produzido, e
condicionar a soltura do indiciado, afinal de contas em matéria de prisão
preventiva vigora a cláusula da imprevisão (Processo n.0572950-
44.2014.8.05.0001)

A violência – em abstrato – e os delitos que estimula – também em abstrato – aparecem


como alguns dos elementos centrais nas decisões. Conforme coloca Zaccone (2004):

No Brasil, a “guerra contra as drogas” é o carro-chefe da criminalização da


pobreza, através dos discursos de lei e ordem disseminados pelo pânico. Bala
perdida, roubo de veículos, queima de ônibus e até o comércio de produtos
por camelôs são diferentes práticas ilícitas imputadas aos “traficantes”, que
passam a constituir “uma categoria fantasmática, uma categoria policial que
migrou para a academia, para o jornalismo, para a psicologia e que não tem
cara, não é mais humana. É uma coisa do mal” (p. 189)

Por outro lado, se o bem jurídico protegido pela criminalização de condutas ligadas a
drogas ilícitas é a “saúde pública”, essa, entretanto, parece não ser a maior preocupação dos
juízes nas decisões analisadas. A afirmação de que “o crime imputado ao acusado é de alta
ofensividade à saúde e à ordem pública” – e em razão disso a prisão preventiva deve ser
decretada - apareceu em 10 decisões.

No mesmo sentido temos outras 10 decisões que apontam como fundamento para a
decretação/manutenção do réu na prisão o fato do delito de o tráfico de drogas ser “considerado
pela lei como grave”, sendo “equiparado ao hediondo, face às consequências tão nocivas à
saúde e à segurança públicas, já que o traficante dissemina o uso da droga na sociedade,
principalmente entre pessoas jovens” (grifos aditados).A saúde, quando aparece, não poder
estar dissociada da segurança e ordem públicas. Boiteux (2015) aponta que a estratégia
proibicionista iniciada no século XX busca efetivar o controle penal:

121
(...) por meio de um discurso moralista, baseado na alegada necessidade de
proteção da saúde pública. Tal distinção entre drogas lícitas e ilícitas se deu
por pura conveniência política, sem avaliação empírica ou científica dos riscos
de cada substância a ser controlada. No entanto, na linha oposta a política
oficial atual, estudos recentes apontam para uma total incongruência na escala
de riscos entre drogas consideradas lícitas e ilícitas (...). Ao contrário de um
sistema que deveria ser baseado em evidencias de danos e riscos à saúde, o
modelo proibicionista se funda em preconceitos e presunções pouco afeitas a
questionamentos e verificações concretas. (p. 144)

A autora aponta ainda que “nenhuma pessoa ousaria contestar a legitimidade do Estado
de proteger a saúde pública”, mas que essa não é a verdadeira função desse discurso, que
“preconiza a abstinência ao uso de drogas e o problema de saúde pública, mediante a utilização
de meios (prisão e interferência do sistema penal) que não tem condições de solucioná-lo” (p.
146-147). A saúde pública parece ser, desse modo, um argumento completamente esvaziado de
sentido.

Os “jovens” também aparecem como uma “preocupação” constante, tendo aparecido


referências a eles em 24 decisões, assim, como um suposto “envolvimento, cada vez maior, de
menores e crianças nesta prática” (que aparece em 04 decisões). No trecho a seguir temos que:
“violência que está relacionada com as drogas é um desafio nacional particularmente sério, (...)
destruindo lares e famílias e impactando principalmente a população mais jovem que é
absorvida pelo tráfico, sob a falsa promessa de dinheiro fácil”207, ideia que aparece em 13
decisões. Nestas decisões específicas, ao menos 3 réus tinham menos de 30 anos (em relação
aos outros 10 réus não havia qualificação na sentença). Um inclusive havia acabado de ser
liberado de medida socioeducativa, indicativo de que seria bem jovem. Todos responderam a
todo o processo preso, não obstante a suposta preocupação do juiz com os jovens impactados
pelo tráfico.

Considerando, ainda, que 55% da população prisional brasileira é constituída por


pessoas com menos de 30 anos (INFOPEN, 2014) – número que chega a 60% na Bahia - esses
“jovens” que tanto preocupam os magistrados não se adequam ao estereótipo dos jovens que
são a eles apresentados durante os processos criminais, os quais precisam ser punidos e não
protegidos. Destaque-se que especificamente em relação ao crime de tráfico a pesquisa
apresentada por Santos et al (2015) apontou que a média de idade dos réus por esse crime na
Bahia é de 26 anos (p. 35).

207
Processo n. 0540137-61.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0549965-81.2014.8.05.0001,
em 23/09/2014, pelo/a juiz/a F).
122
A “preocupação” com os jovens dependentes aparece em algumas decisões. Uma delas
aponta que o tráfico de drogas é “delito de extrema gravidade, com nocivas consequências à
sociedade, em especial a jovens que se encontram na triste situação de dependência”208; ou
que trata-se de crime grave uma vez que “o traficante dissemina o uso da droga na sociedade,
principalmente entre pessoas jovens” (frase repetida literalmente em 10 decisões). A distinção
entre usuários e traficantes, em propostas que visam descriminalizar o uso e aumentar as penas
do tráfico de drogas, por exemplo, “deixam ainda mais expostos à demonização e
criminalização as principais vítimas dos efeitos perversos do controle social globalizado: a
juventude pobre de nossas cidades” (BATISTA, 2003b, p. 13).

Essa distinção traficantes e usuários ofusca muitas vezes a distinção entre


“consumidores” e “consumidores frustrados” (BATISTA, 2002c) vigendo para os primeiros o
paradigma médico e para os segundos o paradigma bélico. Entretanto, dentre os usuários é
possível também perceber uma distinção que tem no viés de classe e raça eixos centrais; existem
aqueles que efetivamente merecem um tratamento médico humanizado e existem aqueles para
quem o paradigma médico é utilizado como verdadeiro instrumento de controle social. A
internação psiquiátrica utilizada para usuários adolescentes assim, por exemplo, “mecanismo
privilegiado de exercício de um poder de normalização (...) se constitui como lugar de destino
e de manutenção desta ‘adolescência drogadita’, forjando a existência e naturalização dessa
ordem social e a estabilidade de um sistema de Governo” (REIS, GUARESCHI, CAVALHO,
2014, p.70)

O crime de tráfico de drogas, desse modo, parece ser o delito que permite o maior campo
de arbitrariedade seja policial, seja judicial209. Em uma das decisões aqui estudadas, o juiz
utiliza como principal argumento para a manutenção do acusado em prisão cautelar, a seguinte
afirmação: “Especialmente em relação ao delito de tráfico, verifica-se a necessidade de sua forte

208
Processo nº. 0300242-14.2013.8.05.0001 (decisão proferida no processo n. 0305234-18.2013.8.05.0001, em
31/01/2013, pelo/a juiz/a Y) (grifos aditados)
209
Essa questão vem sendo bastante discutida, por autores/as americanos/as a exemplo de Michelle Alexander
(2012). O “stop-and-frisk” aplicado pelas polícias americanas209 (Possibilidade conferida a polícia de parar alguém
na rua, desde que haja uma “suspeita articulada e razoável” de que essa pessoa está envolvida em uma atividade
criminal e perigosa [ALEXANDER, 2012, p. 63]; na prática pouco ou nada parece diferir da “atitude suspeita”
utilizada como argumento para as revistas policiais no Brasil.) é a “arma favorita das forças da lei na Guerra contra
às Drogas” (ALEXANDER, 2012, p. 67); por outro lado, “casos judiciais envolvendo a aplicação da lei de drogas
quase sempre envolve pessoas culpadas” (p.69). Hartley (2008) ao discutir as práticas de tomada de decisão
judicial nos EUA aponta que a maior parte das críticas acerca da injustiça de decisões judiciais neste país é relativa
a violações da lei de drogas.
123
repressão (...) inclusive como forma de apoio ao trabalho que vem sendo desenvolvido pelas
Polícias Civil e Militar”210.

A necessidade de “apoiar” o trabalho da polícia aparece aqui como justificativa, talvez


em uma tentativa de rebater ao argumento de “que a polícia prende, a justiça solta”, repetido
comumente pelo senso comum e os programas policialescos. Gerivaldo Neiva, juiz estadual do
interior da Bahia, conhecido por suas posições contra majoritárias escreveu um texto em que
procura responder justamente esse questionamento, que, segundo ele, lhe é constantemente
endereçado. Embora a citação seja longa, parece relevante trazer o posicionamento de um juiz
progressista sobre o tema:

Voltando ao tema inicial, no Estado Democrático de Direito, a polícia militar


tem função de policiamento ostensivo nas ruas e, neste papel,
evidentemente, seus agentes podem e devem efetuar prisões em flagrante de
quem esteja cometendo crime. Feito isso, o preso é encaminhado,
garantindo-se sua integridade física, à Delegacia de Polícia para lavratura do
Auto de Prisão em Flagrante. Aqui, exatamente, está encerrado o papel
constitucional do policial militar, ou seja, prender em flagrante e assinar o
auto como condutor ou testemunha. O que vai acontecer em seguida não diz
respeito à atividade policial militar e o soldado pode até expressar sua
vontade pessoal em conversas reservadas ou em redes sociais, mas tem a
obrigação de se curvar ao que a ordem jurídica vigente destina à pessoa que
ele prendeu em flagrante. Pode ser, por exemplo, que o Delegado de Polícia,
sendo o caso, arbitre fiança e libere o preso ou pode ser que represente pela
prisão preventiva, mas o representante do Ministério Público pode entender
que não seja o caso de prisão preventiva e requerer ao Juiz o deferimento da
liberdade provisória ou nulidade do flagrante, por exemplo. Da mesma
forma, pode ser que o Juiz, apesar do requerimento do Ministério Público,
entenda que não seja o caso da prisão preventiva e liberte o preso, aplicando
medidas cautelares. Por fim, pode ser que o Juiz entenda, assim como o
Delegado e o representante do Ministério Público, que seja o caso,
realmente, de decretação da prisão preventiva do preso. No final, não é o
Juiz que solta, mas é o preso que tem o direito de responder em
liberdade e o papel do Juiz é, simplesmente, garantir este direito.”211
(grifos aditados)212

Essa posição é amplamente contra majoritária, e os juízes muitas vezes parecem ver a
si mesmos como um órgão essencialmente repressivo, que precisa atuar para conter a
“criminalidade”, como inclusive apareceu de forma reiterada nas decisões. Valois (2017), no
mesmo sentido, afirma que em relação à “guerra às drogas” o Judiciário tem tido um importante

210
Processo n.0567794-75.2014.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0509075-66.2015.8.05.0001,
em 06/03/2015, pelo/a juiz/a J).
211
https://jean2santos.jusbrasil.com.br/artigos/120001502/a-policia-prende-e-a-justica-solta
212
http://www.gerivaldoneiva.com/2014/05/a-policia-prende-e-justica-solta.html
124
papel complementar “relativizando princípios, adotando teorias, criando dogmas e ignorando
situações de fato, tudo em favor de um bom combate às drogas” (p. 419).

Os juízes se veem assim como parte de um órgão que tem como função dar resposta ao
“sentimento da insegurança” sentido pela população. E a prisão cautelar aparece como a
“resposta estatal mais severa” que deve ser concedida em razão da gravidade – normalmente
em abstrato – do crime cometido. O trecho da decisão a seguir é bastante emblemático:

A violência em Salvador está em índice alarmante. Constantemente as pessoas


estão tendo a vida ou o patrimônio prejudicado por motivos simples ou banais.
É preciso a atuação do Poder Judiciário visando retirar de circulação as
pessoas que se envolvem na prática de tais delitos, sob pena de o sentimento
de impunidade desencadear uma série de novos delitos e aumentar a sensação
de insegurança dos cidadãos. (...) Esses meliantes precisam ser retirados de
circulação para que as pessoas de bem deixam de estar presas em suas
próprias residências.213

Aqui temos explicitados a ideia de “nós” e “outros”. De um lado as “pessoas de bem


(...) presas em suas próprias residências” e, de outro, “esses meliantes” que “precisam ser
retirados de circulação”, retirada que será realizada por meio da prisão cautelar. Neste caso,
G.G.P.S. foi “retirado de circulação” por 01 ano e 05 meses, até que adviesse a sua sentença de
09 anos e 06 meses (o réu foi condenado por roubo e tráfico). É o inimigo/meliante/outro que
precisa ser contido, neutralizado, tirado de circulação.

213
Processo n.0408916-86.2013.8.05.0001 (decisão proferida no processo apenso n. 0404638-42.2013.8.05.0001,
em 03/12/2013, pelo/a juiz/a Z).
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alguns dias antes do carnaval em Salvador, o Governador da Bahia deu uma polêmica
declaração em torno da questão criminal em Salvador: Rui Costa (PT) criticou um recente
mutirão – organizado pelo TJ/BA – instaurado com o objetivo de acelerar o julgamento de réus
presos e afirmou que a realização de audiências de custódia pode ser “problemática” durante o
carnaval. O Governador enviou secretários do governo para “conversar com o Tribunal de
Justiça, a fim de tentar “flexibilizar” o procedimento para que os detidos não fossem soltos
imediatamente. Ele afirmou ainda que “o processo de soltura apenas 24 horas após o delito vai
acarretar em reincidência” e o mutirão “contribuirá para o aumento de furtos no Carnaval“214.

Embora estas declarações, proferidas sem nenhum tipo de pudor ou constrangimento,


versem especificamente sobre a questão das audiências de custódia, o que não foi objeto deste
trabalho, elas permitem entrever – ou seria escancarar? – uma determinada visão sobre a
questão criminal, as prisões cautelares e as garantias processuais que tem se mostrado
hegemônica. O criminoso é um “outro”, que por não possuir “qualquer freio inibitório”215 em
relação a prática de crimes, precisa ser, acima de tudo, contido.

A partir de uma “estratégia de suspeição generalizada” – que remonta aos tempos de


escravidão - sobre um determinado grupo, que possui classe e cor, a polícia atua orientada por
um modelo bélico de política criminal, que ganha seus contornos definitivos a partir do período
ditatorial iniciado na década de 1960. Mas esse modelo bélico não imprime sua influência
apenas no aparato policial, pois também o Judiciário atua a partir desse mesmo referencial. E
aqui encontramos uma contradição, a “contradição de julgar alguém que, por constituir-se num
inimigo, deve ser implacavelmente abatido” (BATISTA, 1998, p. 91).

Com a construção de um novo “inimigo” do direito penal a partir de meados da década


de 1970, o “traficante de drogas” vai progressivamente ocupando o lugar de causador de todos
os males sociais. É o tráfico de drogas que “estimula a violência”, “ceifa vidas” e destrói
famílias”.

Entretanto, a criminalização do tráfico de drogas parece se constituir como apenas mais


um argumento legitimador para que se prendam os “suspeitos de sempre”. Na multiplicidade e
vagueza dos verbos e condutas proibidas vão se encarcerando milhares de jovens-homens-

214
http://www.bahianoticias.com.br/noticia/203230-para-rui-soltura-imediata-de-presos-pode-aumentar-delitos-
de-reincidentes-no-carnaval.html
215
Decisão proferida em 24/02/2015 no processo apenso n. 0570309-83.2014.8.05.0001 (processo principal n.
0570309-83.2014.8.05.0001).
126
negros. Conforme já apontado, hoje, esse delito, isoladamente considerado, responde por 28%
dos crimes cometidos pelas pessoas encarceradas, segundo o Infopen 2014.

Nesse contexto, as prisões cautelares vão se apresentando como o instrumento


preferencial de controle social utilizado pelo Judiciário. Assim é que, no segundo capítulo, foi
montado um panorama em que, de um total de 928 réus, 80% (743 pessoas)216 responderam ao
processo todo ou em parte presos. Entretanto, apenas 44,1% (ou 409 pessoas) foram
efetivamente condenadas ao fim da persecução penal. Dentre os condenados, 55% (ou 226
pessoas) tiveram a pena de prisão convertida em restritiva de direitos. Dentre os que
efetivamente foram condenados a uma pena de prisão apenas 62 réus (15,2% dos condenados)
tiveram fixado o regime fechado em sentença!

Ou seja, enquanto 743 réus responderam o processo preso (total ou parcialmente) – dos
quais 203 responderam a todo o processo preso - apenas 62 foram condenados ao regime
fechado (regime correspondente a situação do preso provisório). Para a maioria absoluta dos
presos, portanto, uma sentença condenatória se mostrou mais benéfica que responder ao
processo criminal. A prisão cautelar nos casos estudados se mostrou como a antecipação de
uma pena de prisão que na maior parte dos casos não veio.

A análise das decisões interlocutórias decretadoras ou mantenedoras da prisão também


se mostrou bastante reveladora. No terceiro capítulo foram estudadas 183 decisões relativas aos
réus que passaram todo o processo presos217, sendo analisadas as práticas discursivas
ideológicas que revelaram muito sobre a forma com que é utilizada a prisão cautelar.

A ordem pública apareceu como o fundamento central na busca do periculum libertatis,


o perigo que decorreria do estado de liberdade do réu, aparecendo em 152 decisões218.
Conforme apresentado, esta “necessidade de garantia da ordem pública” se estruturou
basicamente em dois eixos nas decisões analisadas: por um lado em uma suposta
“periculosidade” inerente ao réu (termo que, inclusive, apareceu de maneira expressa, em 47
decisões) ou argumentos similares (como uma tendência a delinquir), aparecendo como
definição de ordem pública em 133 decisões. De outro lado, o tráfico de drogas abstratamente

216
Alertando-se para o fato de que sobre a situação prisional de 61 réus não obtivemos informações suficientes
que permitissem afirmar com certeza se ficaram ou não presos.
217
Lembrando que em relação a 20 réus não foi possível achar qualquer decisão.
218
Conforme destacado no referido capítulo nas outras 31 decisões a fundamentação de manutenção da prisão
preventiva baseou-se essencialmente na argumentação de que não haveria excesso de prazo na medida ou que não
haveria fatos novos em relação a decisão anterior. A análise se fundamentou essencialmente nas outras 152
decisões que efetivamente apresentaram argumentos – ainda que pouco concretos e/ou não jurídicos – para a
manutenção ou decretação da medida.
127
considerado, a violência que gera, os delitos que estimula e o abalo social que causa, foram
argumentos que apareceram em 108 das 152 decisões estudadas.

Nas decisões, uma questão se mostrou ainda mais clara: adotando um discurso raso
sobre a questão criminal (o mesmo propagado pela “criminologia midiática), que não possui
qualquer embasamento teórico ou empírico, os juízes – além de reproduzir esses discursos sem
qualquer pudor – veem o Judiciário como um órgão essencialmente repressivo. Cabe ao
Judiciário atuar para “conter” o tráfico de drogas, o que quase sempre significou impor uma
“pena” antecipada de prisão.

O medo, portanto, do “traficante” – sujeito perigoso e tendente à prática criminosa – e


do tráfico – “crime que gera diversas chagas na sociedade contemporânea”219 –, ambos
considerados de forma abstrata, serve de base para conter e neutralizar o réu. Os requisitos
formais, o devido processo legal e a presunção de inocência são afastados pela influência que
o réu, o delito em abstrato e os pré-conceitos causam ao juiz.

Não pretendo com isso fazer generalizações maiores do que permitem um objeto de
estudo empírico limitado. Mas todos esses elementos articulados com um “horizonte teórico e
interpretativo” mais amplo parecem permitir avançar na interpretação de como o uso da prisão
cautelar em casos de tráfico de drogas se insere nas dinâmicas de controle social autoritário,
racista e classista.

O uso indiscriminado das prisões cautelares, sem necessidade sequer de se recorrer às


aparentes formalidades jurídicas, dialoga com um ambiente – e contribui para ampliá-lo - já
propício à atuação de um controle social autoritário que não demonstra mais ter qualquer
vergonha ou necessidade de se esconder sob falsos pretextos. Assim é que se antes a invasão
de casas em comunidades populares pela polícia se dava sem respaldo legal – sem cumprimento
de quaisquer das formalidades legal como a exigência de mandado judicial, por exemplo -, hoje
a Justiça expede um mandado coletivo de busca e apreensão “para todas as residências das
favelas Nova Holanda e Parque União” no Rio de Janeiro220. Ou um governador de Estado se
sente à vontade para fazer afirmações como as apresentadas no início deste tópico.

219
Decisão proferia em 11/09/2014 no processo apenso n. 0548670-09.2014.8.05.0001 (Processo principal n.
0532088-31.2014.8.05.0001)
220
http://extra.globo.com/casos-de-policia/justica-expede-mandado-coletivo-policia-pode-fazer-buscas-em-todas-
as-casas-do-parque-uniao-da-nova-holanda-12026896.html
128
Além disso, se os criminosos, com sua “periculosidade inerente”, precisam ser
imediatamente neutralizados ou “tirados de circulação”221, “bandido bom” mesmo “é bandido
morto” e os absurdos e chocantes massacres prisionais que marcaram o início do ano de 2017
já foram praticamente esquecidos. Para os 56 mortos no Amazonas, 33 mortos em Roraima e
os 26 mortos no Rio Grande do Norte222 o fato de possuírem a etiqueta de “criminosos”, o rótulo
de criminosos faz com que deixem de “ser cadáveres que gritam que estão mortos”
(ZAFFARONI, 2012, p. 29).

Nos processos criminais aqui estudados, para 98 réus o fim da persecução penal se deu
por “morte do agente”, a “guerra às drogas” seria o álibi institucionalizado “para matar e
prender em massa, exatamente nesta ordem, nos levando à hipótese a priori de que, quem não
é preso, já foi morto” (REIS 2015, p. 05-06).

E nessa “guerra” vão ficando os jovens-homens-negros pelo caminho, a ponto de termos


a cínica e bárbara declaração do então Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro em
2013 de que talvez fosse necessário perder uma geração inteira para mudar o quadro de
violência223. Ou a lamentável declaração do Governador da Bahia frente a uma chacina policial
que resultou em 13 mortos no Bairro do Cabula em Salvador, quando ele comparou a atuação
da polícia com a de um “artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como
é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol"224. É o genocídio como política de
Estado.

O aprisionamento cautelar é, assim, apenas um dos instrumentos utilizados como


ferramenta de controle social autoritário, racista e classista, no contexto do capitalismo
neoliberal brasileiro, mas que conjugado com a guerra às drogas e a atuação de caráter
explicitamente repressivo do Judiciário, tem ocupado um nefasto papel na neutralização das
“classes perigosas”.

221
http://www.ssp.ba.gov.br/2016/12/1647/Baralho-do-Crime-ja-tirou-de-circulacao-82-bandidos-.html
222
http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2017/01/mortes-em-presidios-do-pais-em-2017-ja-superam-o-
massacre-do-carandiru.html
223
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2013/11/19/violencia-vai-continuar-nas-comunidades-
pacificadas-do-rio-diz-beltrame.htm
224
"É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola
dentro do gol, pra fazer o gol", comparou. "Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da
arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro
vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado",
continuou." (Fonte: <http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/e-como-um-artilheiro-em-frente-ao-gol-
diz-rui-costa-sobre-acao-da-pm-com-treze-mortos-no-cabula/?cHash=29aec7dc0780c803119bd08a679425a9>
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137
ANEXO 01: PROCESSOS ANALISADOS
Diário Vara Número do Processo Diário Vara Número do Processo
1351 1 0311476-90.2013.8.05.0001 1375 1 0001901-05.2011.8.05.0001
1351 1 0533762-44.2014.8.05.0001 1375 1 0054925-45.2011.8.05.0001
1351 2 0524311-92.2014.8.05.0001 1375 1 0380337-31.2013.8.05.0001*
1351 2 0517123-48.2014.8.05.0001* 1377 2 0556419-77.2014.8.05.0001
1352 2 0011062-44.2008.8.05.0001 1381 1 0317633-16.2012.8.05.0001
1352 2 0038444-46.2007.8.05.0001 1381 2 0364709-02.2013.8.05.0001
1353 2 0520913-40.2014.8.05.0001* 1381 2 0385241-94.2013.8.05.0001
1354 1 0393347-45.2013.8.05.0001* 1382 1 0095580-64.2008.8.05.0001
1354 1 0519241-94.2014.8.05.0001* 1382 1 0534408-54.2014.8.05.0001*
1356 2 0501763-73.2014.8.05.0001* 1382 2 0146717-85.2008.8.05.0001
1356 2 0517785-12.2014.8.05.0001* 1383 2 0320263-79.2011.8.05.0001
1359 1 0376047-70.2013.8.05.0001 1384 1 0301148-67.2014.8.05.0001*
1359 1 0400889-17.2013.8.05.0001* 1385 1 0300243-96.2013.8.05.0001
1359 1 0410635-06.2013.8.05.0001 1385 1 0532088-31.2014.8.05.0001*
1359 1 0512127-07.2014.8.05.0001* 1385 2 0543471-06.2014.8.05.0001*
1360 2 0345891-02.2013.8.05.0001 1386 2 0093321-28.2010.8.05.0001
1360 2 0530299-94.2014.8.05.0001* 1387 1 0527429-76.2014.8.05.0001
1362 1 0157889-87.2009.8.05.0001 1387 2 0300335-11.2012.8.05.0001
1362 1 0302807-19.2011.8.05.0001 1388 3 0535107-45.2014.8.05.0001*
1363 1 0063897-14.2005.8.05.0001 1389 1 0376743-09.2013.8.05.0001
1363 1 0311401-85.2012.8.05.0001 1389 1 0397978-32.2013.8.05.0001
1363 1 0312735-57.2012.8.05.0001 1389 1 0410754-98.2012.8.05.0001
1363 2 0363813-90.2012.8.05.0001 1390 1 0403507-66.2012.8.05.0001
1364 2 0310772-14.2012.8.05.0001 1391 1 0503735-78.2014.8.05.0001*
1365 2 0366441-52.2012.8.05.0001 1391 1 0509853-70.2014.8.05.0001
1366 1 0355223-27.2012.8.05.0001 1393 1 0411762-13.2012.8.05.0001
1366 2 0506826-79.2014.8.05.0001* 1393 1 0527416-77.2014.8.05.0001
1366 2 0511994-62.2014.8.05.0001* 1393 1 0530050-46.2014.8.05.0001
1366 2 0158431-47.2005.8.05.0001 1393 1 0562890-12.2014.8.05.0001
1368 2 0094033-28.2004.8.05.0001 1394 1 0510296-21.2014.8.05.0001
1368 2 0100217-58.2008.8.05.0001 1394 1 0511996-32.2014.8.05.0001*
1368 2 0519489-60.2014.8.05.0001 1394 2 0309951-39.2014.8.05.0001*
1369 1 0519296-45.2014.8.05.0001 1395 1 0522935-71.2014.8.05.0001*
1370 1 0336505-45.2013.8.05.0001 1395 3 0538501-60.2014.8.05.0001*
1370 1 0503521-87.2014.8.05.0001 1395 3 0569090-35.2014.8.05.0001*
1370 3 0546360-30.2014.8.05.0001* 1397 2 0531791-24.2014.8.05.0001*
1371 1 0391989-45.2013.8.05.0001 1398 1 0359937-93.2013.8.05.0001
1372 1 0532954-39.2014.8.05.0001* 1399 1 0335043-53.2013.8.05.0001
1372 2 0163525-10.2004.8.05.0001 1400 1 0501041-39.2014.8.05.0001*
1372 2 0333101-83.2013.8.05.0001 1401 1 0092843-20.2010.8.05.0001
1373 1 0404207-08.2013.8.05.0001 1401 1 0185325-89.2007.8.05.0001
1374 1 0017170-84.2011.8.05.0001 1401 1 0329535-29.2013.8.05.0001
1374 1 0318800-05.2011.8.05.0001 1401 1 0567416-22.2014.8.05.0001*
1374 1 0322105-60.2012.8.05.0001 1401 2 0370027-63.2013.8.05.0001
1374 1 0344785-39.2012.8.05.0001 1401 2 0507585-43.2014.8.05.0001

138
1401 2 0529654-69.2014.8.05.0001* 1417 1 0342109-21.2012.8.05.0001*
1401 2 0321995-27.2013.8.05.0001 1418 2 0092128-75.2010.8.05.0001
1402 1 0045269-35.2009.8.05.0001 1418 2 0525311-30.2014.8.05.0001
1402 1 0313331-41.2012.8.05.0001 1419 1 0364254-71.2012.8.05.0001
1402 1 0336201-80.2012.8.05.0001 1419 2 0316558-73.2011.8.05.0001
1402 1 0379838-47.2013.8.05.0001 1420 1 0003599-51.2008.8.05.0001
1402 1 0563032-16.2014.8.05.0001 1420 1 0521231-23.2014.8.05.0001
1402 3 0569858-58.2014.8.05.0001* 1420 2 0103749-69.2010.8.05.0001
1403 1 0517616-25.2014.8.05.0001* 1422 1 0504224-18.2014.8.05.0001
1403 2 0361960-12.2013.8.05.0001* 1422 3 0551865-02.2014.8.05.0001*
1403 2 0532143-79.2014.8.05.0001 1423 1 0515725-66.2014.8.05.0001*
1404 1 0005201-43.2009.8.05.0001 1425 1 0502786-54.2014.8.05.0001
1405 1 0307396-49.2014.8.05.0001 1425 1 0572985-04.2014.8.05.0001*
1405 1 0316353-73.2013.8.05.0001 1425 2 0522309-18.2015.8.05.0001
1405 1 0548756-77.2014.8.05.0001* 1426 1 0310347-21.2011.8.05.0001
1406 1 0301166-88.2014.8.05.0001 1426 1 0403991-81.2012.8.05.0001
1406 1 0328642-38.2013.8.05.0001 1426 2 0077239-19.2010.8.05.0001
1406 1 0350282-97.2013.8.05.0001 1426 2 0408916-86.2013.8.05.0001*
1406 1 0359853-92.2013.8.05.0001 1426 2 0389588-73.2013.8.05.0001
1406 1 0363520-86.2013.8.05.0001 1427 1 0394169-68.2012.8.05.0001
1406 1 0506477-76.2014.8.05.0001 1427 2 0300256-95.2013.8.05.0001
1406 2 0307363-59.2014.8.05.0001 1427 2 0526791-43.2014.8.05.0001
1407 2 0410725-14.2013.8.05.0001 1428 1 0081746-23.2010.8.05.0001
1408 1 0554281-40.2014.8.05.0001* 1429 1 0078529-06.2009.8.05.0001
1408 3 0540137-61.2014.8.05.0001* 1429 2 0325509-56.2011.8.05.0001
1409 1 0311679-52.2013.8.05.0001 1430 2 0528445-65.2014.8.05.0001
1409 1 0410749-76.2012.8.05.0001 1431 1 0525317-37.2014.8.05.0001
1409 1 0502014-91.2014.8.05.0001 1434 1 0054943-66.2011.8.05.0001
1409 1 0505238-37.2014.8.05.0001 1436 1 0555496-51.2014.8.05.0001
1409 1 0517363-37.2014.8.05.0001 1437 1 0551751-63.2014.8.05.0001*
1409 1 0531084-56.2014.8.05.0001* 1438 3 0561136-35.2014.8.05.0001*
1410 2 0533555-45.2014.8.05.0001 1439 2 0536467-15.2014.8.05.0001*
1412 1 0022399-25.2011.8.05.0001 1440 2 0359281-39.2013.8.05.0001
1412 1 0300059-14.2011.8.05.0001 1441 2 0399335-47.2013.8.05.0001
1412 1 0300999-71.2014.8.05.0001 1441 2 0531792-09.2014.8.05.0001
1412 1 0359828-79.2013.8.05.0001 1442 3 0543470-21.2014.8.05.0001*
1412 1 0518405-24.2014.8.05.0001* 1443 2 0300119-45.2013.8.05.0250*
1412 2 0128848-75.2009.8.05.0001 1443 2 0520610-26.2014.8.05.0001
1413 1 0342902-23.2013.8.05.0001 1444 1 0555070-39.2014.8.05.0001
1413 2 0032798-84.2009.8.05.0001 1444 2 0323709-22.2013.8.05.0001
1413 2 0119799-73.2010.8.05.0001 1444 2 0346204-94.2012.8.05.0001
1414 2 0501420-77.2014.8.05.0001* 1444 2 0375120-07.2013.8.05.0001*
1414 3 0533609-11.2014.8.05.0001 1444 2 0501952-51.2014.8.05.0001
1416 1 0009021-12.2005.8.05.0001 1444 2 0522966-91.2014.8.05.0001
1416 2 0384836-58.2013.8.05.0001* 1445 2 0106234-42.2010.8.05.0001
1416 3 0540348-97.2014.8.05.0001 1445 2 0303634-30.2011.8.05.0001
1416 3 0542750-54.2014.8.05.0001* 1445 3 0550670-79.2014.8.05.0001*

139
1446 2 0062435-46.2010.8.05.0001 1467 1 0569104-19.2014.8.05.0001*
1446 2 0090026-80.2010.8.05.0001 1468 1 0303815-60.2013.8.05.0001
1447 2 0511115-55.2014.8.05.0001 1468 1 0502660-67.2015.8.05.0001*
1448 2 0065082-82.2008.8.05.0001 1468 1 0503531-34.2014.8.05.0001
1449 1 0076143-66.2010.8.05.0001 1468 1 0511393-22.2015.8.05.0001
1449 1 0302246-92.2011.8.05.0001 1468 1 0564277-62.2014.8.05.0001
1449 1 0342139-56.2012.8.05.0001 1468 2 0371802-16.2013.8.05.0001*
1449 2 0396179-51.2013.8.05.0001* 1468 2 0508900-09.2014.8.05.0001*
1449 2 0503527-94.2014.8.05.0001 1468 2 0512736-87.2014.8.05.0001*
1449 3 0537443-22.2014.8.05.0001* 1469 1 0123644-50.2009.8.05.0001
1450 2 0305283-59.2013.8.05.0001 1469 1 0311087-08.2013.8.05.0001
1450 2 0354695-90.2012.8.05.0001 1469 3 0561324-28.2014.8.05.0001*
1451 2 0084953-64.2009.8.05.0001 1471 1 0030909-32.2008.8.05.0001
1452 2 0546933-68.2014.8.05.0001* 1471 1 0535057-19.2014.8.05.0001
1452 3 0545178-09.2014.8.05.0001 1472 2 0145814-84.2007.8.05.0001
1453 2 0148423-06.2008.8.05.0001 1472 2 0511944-02.2015.8.05.0001
1453 2 0322135-61.2013.8.05.0001 1472 2 0518654-72.2014.8.05.0001
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140
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1521 2 0530370-96.2014.8.05.0001* 1536 2 0386774-25.2012.8.05.0001
1521 2 0568642-62.2014.8.05.0001* 1536 2 0404205-38.2013.8.05.0001
1521 2 0347992-75.2014.8.05.0001 1536 2 0542262-65.2015.8.05.0001*
1521 2 0384413-98.2013.8.05.0001 1536 2 0024757-65.2008.8.05.0001
1522 1 0116349-06.2002.8.05.0001 1537 1 0300681-54.2015.8.05.0001
1522 3 0572950-44.2014.8.05.0001* 1537 2 0300321-90.2013.8.05.0001
1523 1 0151383-32.2008.8.05.0001 1537 2 0509858-92.2014.8.05.0001
1523 1 0161303-30.2008.8.05.0001 1537 2 0555467-98.2014.8.05.0001

142
1539 1 0565478-89.2014.8.05.0001 1549 2 0181069-69.2008.8.05.0001
1539 2 0034938-57.2010.8.05.0001 1549 2 0317290-83.2013.8.05.0001
1539 2 0526688-02.2015.8.05.0001* 1549 2 0355284-48.2013.8.05.0001
1540 2 0501668-43.2014.8.05.0001 1549 2 0399192-58.2013.8.05.0001
1541 1 0020241-94.2011.8.05.0001 1549 2 0518400-02.2014.8.05.0001
1541 1 0521411-05.2015.8.05.0001* 1549 2 0570321-97.2014.8.05.0001*
1541 1 0532091-83.2014.8.05.0001 1550 1 0126215-67.2004.8.05.0001
1541 2 0337826-18.2013.8.05.0001 1550 1 0549786-16.2015.8.05.0001*
1541 2 0398436-83.2012.8.05.0001 1550 2 0050965-81.2011.8.05.0001
1541 2 0501468-36.2014.8.05.0001 1550 2 0543032-92.2014.8.05.0001
1541 2 0505138-48.2015.8.05.0001* 1551 1 0174006-90.2008.8.05.0001
1542 3 0546656-52.2014.8.05.0001 1551 2 0511391-52.2015.8.05.0001*
1542 3 0500421-90.2015.8.05.0001 1552 1 0524598-21.2015.8.05.0001*
1543 2 0084816-48.2010.8.05.0001 1552 2 0360837-76.2013.8.05.0001
1543 2 0334038-93.2013.8.05.0001 1552 3 0348186-75.2014.8.05.0001
1543 2 0504688-08.2015.8.05.0001 1552 3 0541061-72.2014.8.05.0001
1543 2 0507039-85.2014.8.05.0001 1553 2 0008308-61.2010.8.05.0001
1543 2 0540359-92.2015.8.05.0001* 1553 2 0069789-25.2010.8.05.0001
1544 1 0076399-09.2010.8.05.0001 1553 2 0136940-42.2009.8.05.0001
1544 1 0366721-23.2012.8.05.0001 1553 2 0326938-24.2012.8.05.0001
1544 1 0372438-79.2013.8.05.0001 1554 1 0036496-35.2008.8.05.0001
1544 1 0551525-24.2015.8.05.0001* 1554 2 0099631-60.2004.8.05.0001
1544 1 0555979-47.2015.8.05.0001* 1555 2 0317148-16.2012.8.05.0001
1545 1 0004218-44.2009.8.05.0001 1555 2 0332040-27.2012.8.05.0001
1545 1 0054273-96.2009.8.05.0001 1555 2 0348172-91.2014.8.05.0001*
1545 2 0106230-05.2010.8.05.0001 1555 2 0387689-40.2013.8.05.0001
1545 2 0378473-89.2012.8.05.0001* 1555 3 0570231-89.2014.8.05.0001
1545 2 0526366-79.2015.8.05.0001* 1556 3 0509390-94.2015.8.05.0001
1546 1 0519561-47.2014.8.05.0001 1556 3 0541035-74.2014.8.05.0001
1546 1 0559701-89.2015.8.05.0001 1556 3 0542508-95.2014.8.05.0001
1546 2 0113734-96.2009.8.05.0001 1556 3 0567793-90.2014.8.05.0001
1547 2 0025628-95.2008.8.05.0001 1557 2 0347993-60.2014.8.05.0001*
1547 2 0044646-34.2010.8.05.0001 1558 2 0522061-86.2014.8.05.0001
1547 2 0096091-62.2008.8.05.0001 1560 1 0399419-82.2012.8.05.0001
1547 2 0313326-19.2012.8.05.0001 1560 2 0007210-07.2011.8.05.0001
1547 2 0335030-54.2013.8.05.0001 1560 2 0042034-89.2011.8.05.0001
1547 2 0338718-24.2013.8.05.0001* 1560 2 0062682-90.2011.8.05.0001
1547 2 0532108-22.2014.8.05.0001 1560 2 0074038-24.2007.8.05.0001
1547 2 0554438-13.2014.8.05.0001 1560 2 0084480-20.2005.8.05.0001
1548 1 0521768-82.2015.8.05.0001 1560 2 0093004-30.2010.8.05.0001
1548 2 0502659-19.2014.8.05.0001 1560 2 0161239-20.2008.8.05.0001
1549 1 0318800-05.2011.8.05.0001 1561 1 0003536-26.2008.8.05.0001
1549 2 0028856-10.2010.8.05.0001 1561 1 0080126-44.2008.8.05.0001
1549 2 0094166-02.2006.8.05.0001 1563 1 0347997-97.2014.8.05.0001
1549 2 0096706-18.2009.8.05.0001 1563 2 0046387-17.2007.8.05.0001
1549 2 0102086-22.2009.8.05.0001 1563 2 0172727-45.2003.8.05.0001
1549 2 0135886-75.2008.8.05.0001 1564 2 0531849-90.2015.8.05.0001*
1549 2 0169839-98.2006.8.05.0001 1564 3 0547768-56.2014.8.05.0001
143
1565 1 0319787-41.2011.8.05.0001 1571 1 0404857-89.2012.8.05.0001
1565 1 0379831-89.2012.8.05.0001 1571 2 0300994-49.2014.8.05.0001
1566 1 0562895-34.2014.8.05.0001 1571 2 0505437-59.2014.8.05.0001
1566 2 0015178-98.2005.8.05.0001 1571 2 0530365-74.2014.8.05.0001
1566 2 0558426-42.2014.8.05.0001* 1571 2 0537805-87.2015.8.05.0001
1566 2 0564530-50.2014.8.05.0001 1571 3 0506329-31.2015.8.05.0001*
1567 2 0333101-20.2012.8.05.0001 1572 1 0311476-90.2013.8.05.0001
1567 2 0372680-38.2013.8.05.0001 1572 1 0544549-98.2015.8.05.0001
1567 2 0525825-46.2015.8.05.0001* 1572 3 0558073-65.2015.8.05.0001*
1568 2 0024712-61.2008.8.05.0001 1572 3 0541040-96.2014.8.05.0001*
1568 2 0320620-25.2012.8.05.0001 1572 3 0545859-76.2014.8.05.0001*
1568 2 0388078-59.2012.8.05.0001 1573 1 0341689-16.2012.8.05.0001
1568 2 0561276-69.2014.8.05.0001 1573 1 0398567-24.2013.8.05.0001
1569 2 0070292-46.2010.8.05.0001 1573 1 0507565-52.2014.8.05.0001
1569 2 0321544-36.2012.8.05.0001 1573 1 0529466-42.2015.8.05.0001
1569 2 0530100-72.2014.8.05.0001 1573 3 0521767-97.2015.8.05.0001
1570 1 0531787-84.2014.8.05.0001 1574 1 0135632-68.2009.8.05.0001
1570 1 0539285-03.2015.8.05.0001* 1574 1 0410259-20.2013.8.05.0001
1570 1 0548555-51.2015.8.05.0001* 1574 1 0572503-56.2014.8.05.0001
1571 1 0040677-74.2011.8.05.0001 1574 2 0552265-79.2015.8.05.0001*
1571 1 0391603-15.2013.8.05.0001 1574 3 0538799-18.2015.8.05.0001

Obs.: Os processos com um asterisco (*) ao lado foram aqueles que tiveram decisões analisadas
no terceiro capítulo.

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