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Índice global

Guião de leitura ................................................................................... 5


Sem paredes, nem portas, nem janelas.............................................. 7
Os 153 Textos de Álvaro Siza ........................................................... 17
Índice geral dos Textos....................................................................405
Índice remissívo dos Textos ............................................................409
Ficha técnica

Copyright© 2009 Civilização Editora


Todos os direitos reservados

Autor Álvaro Siza


Editor de texto Carlos Campos Morais
Coordenação editorial Rita Vanez
Design grãflco Susana de Campos Moraes

Créditos Pormenor de manuscrito na contracapa de Álvaro Siza


Paginação Serviços Técnicos da Civilização Editora
Impressão e acabamento CEM, Artes Gráficas,
para Civilização Editora, em Abril de 2009

CEM, Artes Gráficas


Parque Industrial ACIB -Apartado 28
4750 Barcelos
Tel. 226 050 900
info@cem.pt

Civilização Editora
Rua Alberto Aires de Gouveia, 27
4050-023 Porto
Tel. 226 050 900
geral@civilizacaoeditora.pt
www.civilizacao.pt

ISBN 978-972-26-2923-2
Depósito Legal 291007/09
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1
'I
Guião de leitura

Os 153 textos que se seguem, escritos por Álvaro Siza, entre 1963 e
2008, apresentam-se organizados do seguinte modo:

• Ordenados do mais antigo para o mais recente, são consequente­


mente numerados, para fácil referenciação e datados.
• Através de uma curta transcrição, procura-se introduzir o leitor
no espírito do texto, dando-se antes informação complementar,
quando julgada útil.
• Relativamente aos textos que tinham sido já anteriormente publica­
dos dá-se informação sobre os locais de publicação. A pesquisa a
esse respeito foi abrangente, mas sem garantia de exaustividade.
Alguns dos textos já anteriormente divulgados foram revistos pelo
autor.
• Apresenta-se, ainda na primeira linha, uma identificação da temá­
tica, que consta do índice remissivo final.
• Os textos sem local de publicação são (ou supõe-se serem) inéditos.
• Toda a informação anteriormente referida aparece em fonte de ta­
manho reduzido, acima do início de cada texto, ocupando os três
campos que se descreveram.

Há cinco publicações que, por possuírem um número apreciável de


textos a referenciar, se identificam por um só nome. A saber:

5
[UPC] refere-se a Álvaro Siza, Escrits, Carlos Muro, edição bilingue (portu­
guês/catalão), Edicions UPC, Universitat Politécnica de Catalunya, 1994.

[Electa] refere-se a Álvaro Siza, Obras e Projectos, ed. Electa, 1995.


Catálogo editado por Pedro de Lia no e Carlos Castanheira da Exposição
no Centro Galego de Arte Contemporânea e na Câmara Municipal de
Matosinhos de 6 de Maio a 28 de Julho de 1996.

[Skyra] refere-se a Álvaro Siza, Scritti di Architettura, ed. Skyra e


Gustavo Gilli, 1997.

[Figueirinhas] refere-se a As Cidades de Álvaro Siza, ed. Carlos


Castanheira, Chiara Porcu, Liv. Figueirinhas, Lisboa, Porto, 2001.

[Saint-Étienne] refere-se a Des mots de rien du tout, Palavras sem im­


portância. Textes réunis et traduits par Dominique Machabert. Bilingue.
Publications de L:Université de Saint-Étienne, 2002.

A referenciação dos textosjá publicados faz-se indicando a página, ou pági­


nas em que eles aparecem na publicação. Excepto em [Figueirinhas] visto
no livro As cidades de Álvaro Siza não existirem números de página.

Os 153 textos aqui apresentados remetem para 21 temas: Apresentação,


Arquitectura, Arte, Bibliotecas, Casas, Cidades, Desenho, Design,
Discurso, Diversos, Ensino, Exposições, Família, Homenagem, Móveis,
Museus, Outros Arquitectos, Pedagogia, Poética, Reflexão e Viagens.

6 01 textos por Álvaro Siza


Sem paredes, nem portas, nem janelas...
Carlos Campos Morais

A propósito da arquitectura dos museus, Álvaro Siza diz que deveria ser
idealmente sem paredes, nem portas, nem janelas1, com a brisa medi­
terrânica entrando suavemente e substituindo-se, na pintura, no ferro,
no bronze, na gente, por magia, ao pesadelo opressor e miasmático da
climatização hightech. As pessoas passam de salas a pátios, sobem e
descem escadas normais. As portas estão escancaradas e os faunas
espreitam de cada canto, olham com ironia mais do que piedade.
Em Antibes, no Museu Picasso. Como almejaria um músico venerador
do silêncio: um Músico; ou um poeta adverso à loquacidade: um Poeta;
ou um amador de objectos de colecção: um Amador2 •

Demandas à procura das nascentes do Nilo surgem a cada passo no


ideário de Siza, como, num texto a propósito de Barragan, quando
escreve: Nenhuma inovação abandona a antiquíssima razão. Não
há inovação3 (•• .) Há o reencontrar da inocência, uma conquista do
Estado de Graça, para que se não perca a memória. Ou, quando,
evocando um passeio na cidade de Bogotá, diz: a Arquitectura desa­
parecerá quando a humanidade for feliz, parafraseando Vargas Llosa
1 Texto N º 117.
2 O objecto perfeito será um espelho sem moldura nem lapidado - o fragmento de um espelho - 0 :-­
poisado no chão ou encostado a um muro. Texto N º 031, ponto 4.
3 Texto N º 050. Hoje, a inovação, de tão invocada em vão, como o santo nome de deus, corre o risco
de se tornar numa palavra vazia. A palavra, sem acto.

7
ao referir-se à Literatura4 . Ou, sobre Manuel Gargaleiro, lhe exalta um
gesto de Alegria Origina/5.

Vozes se têm ouvido mostrando a vontade - necessidade - de ler


mais sobre Siza, por Siza6 . Algumas acentuam o valor e o carácter re­
tórico da sua arquitectura, da sua escrita, obras que geram luz, que
nos criam luz. Outras mostram a continuidade entre o que traça, o
que desenha ... o que escreve, como descreve. Retórico7 : expositivo,
discursivo, persuasivo, cortezmente predominante e convincente, ex­
pondo as suas regras de bem dizer. Mas, obviamente, não retórico:
excessivo, empolado, gongórico, vazio.

Assim a sua escrita, escrita. Uma escrita em que se escreve bem.


Para escrever bem é preciso ler bem, em silêncio, usar com parcimó­
nia a pontuação, a ironia, usando-as a cada passo. Aprende-se (caso
se aprenda) a escrever com esta escrita, é retóricaª , no sentido nobre,
coexistindo com uma imensa e belíssima obra.

4 Texto N º 097.
5 A sabedoria técnica, a inteligência e experiência que a obra revela são parte de um gesto que continua
irreprimível, um gesto de Alegria Original. Texto N º 069.
6 E sobre a arquitectura, em geral: a imagem, na sua redundância e carisma, tem substituído a
necessidade do discurso (. ..). Entre o flash das coisas que estão a acontecer, lemos que começar a
falar. Jorge Figueira (A Escola do Porto: um mapa critico. Edição Departamento de Arquitectura da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2002, p. 137)
7 Curt Meyer-Clason, citado por Brigitte Fleck, Alvaro Siza, Relógio d'Agua Ed., 1999, p. 139, diz que,
nos portugueses, a linguagem não é a da retórica, mas é retórica. Ao que B. Fleck acrescenta: A
arquitectura de Siza é retórica.
8 Por exemplo, no Texto N º 006, ponto 6: Não gostaria de executar com as próprias mãos o que
desenho. Nem de desenhar sozinho. Seria: esterilizar. Dois verbos, separados por dois pontos.

8 01 textos por Álvaro Siza


Com ou sem paredes, portas, ou janelas, desdobra-se, sob múl­
tiplas formas. Uma escrita-escrita, um desenho-figurativo, um
desenho-esquisso, um desenho-design, um desenho-escultura, um
desenho-geometria, técnico, projecto, um desenho-volume, casa,
monumento, circulação, passeio, ponte, jazigo... Uma escrita, um de­
senho, um objecto, um fluxo, um continuum9 •

Continuum em que se sucedem questões centrais, sensibilidades, re­


miniscências, que habitam Álvaro Siza: angústia da imaginação, rituais
de invocação10 , soluções que descem subitamente sobre o arquitecto
- confundido nos seus labirintos - fruto da atenção dispersa, circun­
vagante, em diálogo com a ponta da bic, que desenha, o papel, não
substituível, da observação, alimento da intuição11, a pobreza dos ..
olhos que não vêem 12, o (permanente) respeito pelo sítio13 , desde
que-e imaginado (no que foi, no que será) até que (enquanto) é trans­
formado, a prevalência da Arte em todo o processo criativo e assim
na Arquitectura, a apologia (consequente) da única especialidade14
Pontuam o silêncio.
9 O corpo-mão e mente e tudo - não cabe no corpo de cada um. E nenhuma parte é autónoma. Texto
N º 006, ponto 6. Como refere Jorge Figueira (op.cit., p. 35): o corpo e não a máquina o instrumento
fundador do Acto Moderno na Escola do Porto.
10 Os antigos invocavam as Musas, o arquitecto (Pessoa), invoca-se a si mesmo.
11 O exercício da observação é prioritário para um arquitecto. Quanto mais observamos, tanto mais clara (:- .
surgirá a essência do objecto. E esta consolidar-se-á como conhecimento vago, instintivo. Texto Nº 086.
12 Frase de Le Corbusier, de eleição para Álvaro Siza.
13 O mundo inteiro e a memória inteira do mundo continuamente desenham a cidade. Texto N º 038. A 4. - ·
propósito da cidade (Évora), do sítio, lugar (Bairro da Malagueira).
14 O Texto N º 063 fala da ideia primária de especialização, na Arquitectura. O Nº 059, ponto 1, de que
o arquitecto não é um especialista.

9
virtuosa do arquitecto - a de não ser especialista de coisa alguma,
entre especialistas.

Ou, também, referências à família como em Todos os Natais da casa


da Avó15 , com a recordação forte da voz de barítono do Pai entoando o
Prólogo dos Palhaços. Depois, o silêncio das mortes de entes queridos
que o rodeavam: parece que de repente desaparece muita gente. Anos
depois, a sua mulher16 : ao fim de algumas horas a. mesa de vinhático es­
tava cheia das nossas vidas.

Em Viver uma Casa 17 o desabafo irónico: nunca fui capaz de construir


uma casa, uma autêntica casa (. . .) a ideia que tenho de uma casa é a
de uma máquina complícada1 �. Ou a denúncia da originalidade como
a priori, cuja obsessão representa, para Álvaro Siza, um processo in­
culto e primário19 •
Ou a menção às viagens, aos amigos: (...) a experiência da Amizade,
a aproximação a essa ideia latente e mítica da Felicidade (. . .) Recordo

15 Texto N º 017.
16 Texto Nº 030.
17 Texto N º 045.
18 A machine à habitar de Le Corbusier? Mas, sempre presente em toda a obra de Álvaro Siza, a
complementaridade, o cruzamento, entre o trabalho da máquina e o trabalho do artesão. (Texto N º 033,
em que rende homenagem a James Sterling).
19 A necessidade de originalidade e diferença conduz quase sempre a abandonar a essência de um
determinado objecto. Texto Nº 086. Na esteira de Adolf Loos, um pré-moderno, defendendo a modéstia
e a discrição contra o culto da originalidade. (Jorge Figueira, op.cit., p. 34, 35).

10 01 textos por Álvaro Siza


a ausência de ansiedade. Presença dos ausentes20 • Os amigos, num
plano cimeiro.

Também se refere, em vários textos, à �ermanente tensão entre natu­


reza e construído, que se não podem (não devem) dissociar: desenvolver
ujj, projecto
- consiste em ultrapassar a perene oposição entre natureza
e criação humana. Tudo deverá surgir inevitavelmente evidente. O ines­
perado e surpreendente depressa se transforma em ban§J/21• Natureza e
_construído: como metáfora, uma só superfície22 desenvolvendo-se em
dois territórios, que são um só, infindavelmente percorrido, percorrível.
Por palavras do autor, homenageando óscar Niemeyer, numa Exposição
em Milão, em 2005, ou os seus cem anos, em 15 de Dezembro de 2007:
óscar Niemeyer faz da Natureza material da Arquitectura ( ...) [a pro­
pósito da Casa em Canoas] a construção faz Natureza23 . E o Homem,
c_onstrutor do construído, incluído na simbiose: a Natureza - criadora do
Homem - e o Homem - inventor da Natureza - absorvem tudo, incorpo­
rando ou rejeitando o que os afecta.

Em vários textos, em todos os textos, o autor-criador Álvaro Siza se


define e se divisa, nas suas prolíferas-raras obras, nos seus colegas,
amigos, adversários, cidades, viagens, ... Mas é recorrendo à ironia
20 Texto N º 134.
21 Texto N º 121.
22 A de Moebius, certamente. Cujos avisados habitantes têm sempre em mente o conhecido aforismo,'
geralmente expresso em francês, embora em outras circunstâncias: chassez /e naturel, il revient au
galop.
23 Texto N º 147. A citação que se segue é do Texto N º 108.

11
ou à subversão de modos de ver (ou de falar, comunicar) comuns que
ele se apresenta, impressivo, lúcido: no Curriculum em que diz que
tem um pouco secreto desejo de a abandonar [a Arquitectura], para
fazer ainda não sabe o quê24, na confissão (não crível) eu, pessimista­
nato25 , ou na desmistificação, que reporta a anos de chumbo do século
vinte, do vulgar estereótipo patrioteiro do nacionalismo26 : a Tradição é

24 Texto N º 067. Como se não tivesse passado a vida, anterior, futura, a esquivar-se, na Arquitectura,
cingindo-a sempre e mais, pela cintura.
25 Texto N º 039. Ou tentando iludir-nos (Texto N º 070: como sou um pessimista absoluto...).
26 Denunciando, a propósito, o conceito reaccionário de Arquitectura Nacional (Texto N º 077) e
mostrando a situação-limite em que se pode ver como conservador e tradicionalista (Texto N º 006,
ponto 4). Tema candente de um dos vários desdobramentos do Modernismo, no fabuloso cadinho
criativo (Ciência, Arte) que se desprendeu dos anos vinte e trinta, entre o horror de duas guerras
mundiais, o c_ruzamento entre técnica-tecnologia e arte-artífice-cultura vernacular, é, na arquitectura,
congénito, ontológico, filogenético. Com naturais deturpações nacionalistas, paroquiais: é conhecida a
deriva português suave, no pós-guerra português.

Contudo: passado mais de meio século, Dom Duarte Pio, Duque de Bragança, herdeiro e sucessor da
Casa Real Portuguesa, discorre ainda, sobre a matéria, escrevendo com patriótico fervor:
Durante milénios a arquitectura foi fruto da cultura dos povos. (...) Como em outros aspectos da vida,
a industrialização pôs em causa muitos dos valores das sociedades tradicionais e no século XX vimos
desaparecer muitas culturas esmagadas pela globalização.
Alguns intelectuais em Portugal ainda concordam com a globalização em matéria de arquitectura.
Os arquitectos "modernistas" insistem em seguir a moda (como os costureiros) construindo mais do
mesmo por todo o lado.
Sisa criou um molde, inspirado no estilo "Bauhaus" dos anos 30 e por todo o país aparecem clones
dele. (...). Se parte do dinheiro gasto na EXPO ou no CCB tivesse sido investido na recuperação de
Alfama e outros bairros históricos, o impacto económico seria hoje bem diferente. ( ...) Encostada à Sé
do Porto os "responsáveis" pelo nosso património cultural construiram uma torre moderna totalmente
desenquadrada, sendo o pretexto uma suposta "Casa dos 24" que teria aí existido na Idade Média!!
Também a "fortaleza marroquina" vulgo CCB ao lado dos Jerónimos são emblemáticos desta
mentalidade, que considera que a nossa geração tem o direito de destruir a harmonia e as perspectivas
dos monumentos e paisagens que fazem parte do nosso imaginário colectivo.
No próprio Santuário de Fátima, "Altar do Mundo", desfiguraram a bela esplanada onde se podiam

12 01 textos por Álvaro Siza


um desafio à inovação. É feita de enxertos sucessivos. Sou conserva­
dor e tradicionalista, �sto é: movo-me entre conflitos, compromissos,
mestiçagem, transformação. Quem? Este emigrante intermitente, este
nómada bárbaro27, apontado por vezes por não ter teoria28 .
Não escapa, igualmente, ao ataque eco/o e populista que, de quando
em quando, lhe é movido de... se comprazer em deitar árvores abaixo.
Ao preservar um simpático rododendro na construção do Pavilhão
Carlos Ramos29 escreveu, com delícia: É facto extraordinário que este

juntar quase um milhão de pessoas, construindo um edifício monstruoso que impede os ajuntamentos
de mais de quinhentas mil pessoas. (Pedras que choram, Revista Magazine, Julho/Agosto de 2007, pp.
86 a 91. Respeitou-se a redacção e ortografia na transcrição feita).

Este texto de Dom Duarte nem é polémico. Antes enviesado e desfocado. Tem, reconheçamos, pelo
menos uma virtude utilitária: muitos dos Textos de Álvaro Siza com ele se aparentam. A contrario sensu.
Sugere-se a leitura, a propósito, dos que têm os seguintes números: 008, 011, 015, 018, 020, 024, 033,
035, 037, 040, 048, 054, 074, 077, 087, 089, 093, 102, 108, 114, 118, 127, 133, 139, 144. Sobre o CCB,
especialmente o 032. Sobre Fátima e a obra de Alexandros Tombazis, o N ° 151 ou o número especial
da revista Arquitectura Ibérica a elas dedicado. E o 106, sobre a Casa dos 24. De Távora, Fernando
Luís Cardoso Meneses de Tavares e Távora, cuja morte em 3 de Dezembro de 2005 nos roubou um dos
mais prestigiados, influentes e respeitados mestres da Arquitectura Portuguesa do século vinte, com
um contributo ímpar em vários domínios da arquitectura, designadamente na defesa e recuperação
do nosso património arquitectónico. Cordialidade ininterrupta com a História traduzida através de um
conservadonsmo progressista (Jorge Figueira, op.cit.p. 79).
27 Texto N º 103 e Texto N º 045, respectivamente.
28 Dizem-me (alguns amigos) que não tenho teoria de suporte nem método. Que nada do que faço
aponta caminhos (...) Não me atrevo a pôr a mão no leme, olhando apenas a estrela polar. E não
aponto um caminho claro. Os caminhos não são claros. Texto N º 006, ponto 5.Se teoria, falando de
arquitectura, significa um conjunto de regras registáveis e reutilizáveis, então sinto-me bem ao não ter
teoria (como por vezes é dito). Texto N º 145.
29 Da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

13
conhecido arboricida tenha resistido ao seu instinto fatal, cedendo aos
pedidos e instruções dos colegas. Mas assim aconteceu30 •

Centena e meia de textos: arquitectura, arquitectos, cidades, arte - fo­


tografia, pintura, escultura, design; desenho, casas, museus; família,
amigos, viagens; ensino, pedagogia, apresentações, exposições, refle­
xões. Muitos inéditos. Alguns revistos. Não o sumário31 de uma espécie
de catalogue raisonné dos escritos32• De Álvaro Siza: Arquitecto escrito,
descrito33 , também descritor, escritor.
Que crê que não existe uma grande diferença entre o processo de escrita
e o do desenho de tal modo que em definitivo não sou capaz de dizer como
desenho um objecto ou a própria arquitectura34• Sublinhando ainda:
Sempre para mim o exemplo, ao pensar Arquitectura, veio dos escri­
tores, e deles os poetas, artífices competentíssimos do registo e do
sonho, habitantes da solidão35•

O livro Textos 01, sem paredes, nem portas, nem janelas.

Lisboa, Julho de 2008.

30 Texto N º 133.
31 Buraco da fechadura? Abre-te Sésamo? La creme de la creme? Antes apenas um intentado vislumbre.
32 Capítulo indispensável de um Catalogue Raisonne da (ongoing) obra de Álvaro Siza
33 Até proscrito, não poucas vezes, na sombra e no silêncio ...
34 Texto N º 086.
35 Texto N º 051.

14 01 textos por Álvaro Siza


001.1963 1 O 00 Arquitectura: Cooperativa de Lordelo do Ouro

O arquitecto é o observador atento dos problemas a resolver e


das discussões que à volta desses problemas se levantam.
Em vez de ser função duma soma de opiniões, o resultado do
seu trabalho será uma síntese de todos os contributos, depois de
escrupulosamente discutida e verificada a justeza de cada um.

Publicação da Unicoope sobre o 66º Aniversário da Cooperativa de


Lordelo do Ouro, na Pasteleira. Porto, Dezembro de 1963.

A propósito do Edifício...

Numa das minhas muitas visitas de inspecção, ouvi alguém que pas­
sava na rua comparar o edifício da Cooperativa de Lordelo a um
depósito de água.

Num país onde praticamente não existe a crítica de arquitectura, este pro­
cesso de apreciação traduz, pelo menos, o interesse instintivo de cada
um pelo espaço onde vive. Simplesmente, apreciar uma construção habi­
tável pelo aspecto exterior é como saborear uma maçã pela cor da pele.

Usando o mesmo método, mais justo é comparar este edifício (ou qual­
quer outro) a um organismo, com o seu esqueleto, o seu coração, os
seus pulmões, etc.

Da mesma forma que o exterior dum organismo depende da adapta­


ção dos seus órgãos às respectivas funções, assim acontece com o
aspecto exterior duma construção.

Algumas pessoas imaginam um edifício mecanicamente, por associação


de ideias. Imaginam as quatro paredes, com aberturas para deixar entrar
a luz ( janelas) ou os habitantes e os móveis (portas). Imaginam o telhado,
o pavimento, as divisórias, ou melhor, reconstroem imagens anteriores
desses elementos. Dentro dessas imagens arranjam lugar para o fim em
vista - para habitar, para trabalhar, para descansar o corpo ou o espírito.

Mas as paredes são invólucros de espaços adequados a determinadas

15
funções. As janelas e as portas não têm formas assim ou assado - de­
pendem do que e da maneira como se quer iluminar o interior e da
mais apropriada relação com o exterior. Nem as ligações entre es­
paços são tão simples que se possam resumir a portas para a gente
passar duns para os outros.

Sendo assim, é necessário inverter o método de trabalho: conhecer o


que se vai passar dentro dum edifício e o que se passa fora dele.

Assim surge como que o molde que o enformará.

Esse molde não depende, como é evidente, do cérebro duma só pes­


soa. O arquitecto é o observador atento dos problemas a resolver e
das discussões que à volta desses problemas se levantam.

Em vez de ser função duma soma de opiniões, o resultado do seu


trabalho será uma síntese de todos os contributos, depois de escrupu­
losamente discutida e verificada a justeza de cada um.

Daí a desilusão de alguns, quando não vêem totalmente materializada


a sua particular visão dos problemas. Desilusão que pode levar ao ma­
logro a mais bem intencionada iniciativa.

Não sucedeu isto em Lordelo do Ouro. As sessões de trabalho, re­


alizadas ao nível de comissões designadas pelos sócios, ou de
Assembleias Gerais, deram lugar a um enriquecimento gradual da pri­
meira reacção do arquitecto ao programa (apresentado pela Comissão
de Obras, justamente com um metódico estudo de funcionamento, da
autoria do arq.0 Jacobety).

Contribuíram, ainda, para evitar soluções pouco realistas.

O resultado pode parecer estranho para quem passa na rua, apressa­


damente, por vezes de automóvel (somos sempre apressados!).

Mas suponho que não será estranho para quem o use, quotidiana­
mente, com ou sem pressas.

Ou seja, para aqueles por quem e para quem foi construído.

16 01 textos por Álvaro Siza

l
002.1964 00 00 Arquitectura: Casa de Chá/ Restaurante da
Boa Nova (1)

A partir da entrada o tecto de madeira separa e fragmenta a


vista: o encontro céu-mar e céu-terra é visto separadamente.

[traduzido do Inglês] Pub. in World Architecture, editor John Donat,


Studio Books, London, 1964.

Restaurante junto ao mar, Boa Nova

O concurso promovido pela Câmara Municipal de Matosinhos para o


novo restaurante da Boa Nova permitia que o edifício se situasse no
local que os concorrentes escolhessem.
Conhecia bem esta parte muito rochosa da costa: a suave inclina­
ção, um solo despido, com grandes penedos junto ao mar. Fernando
Távora tinha já uma ideia de implantação e de percurso de acesso.
Considerava que a transição repentina entre terra e mar, acentuada
por uma pequena plataforma, seria o local ideal para construir.

Entendi, desde o início, que era necessário evitar a imposição cons­


tante da paisagem - um restaurante não é um belvedere. A partir da
entrada o tecto de madeira separa e fragmenta a vista: o encontro céu­
mar e céu-terra é visto separadamente.
O espaço interior não é o negativo do exterior. O tecto de madeira li­
berta-se, modelando o volume interior, sem contudo romper o exterior.
Há uma tensão visível no encontro do interior com o exterior.

Não consegui controlar por inteiro o espaço da sala principal. O mobili­


ário que neste momento estudo tenta eliminar ou, pelo menos, suavizar
este e outros defeitos.

Durante este trabalho entrei em consideração, como não podia deixar


cfo ser, com a existência próxima de uma capela antiga, estudando o
modo livre e natural como se torna parte determinante da paisagem.
Tomei consciência de como essa simplicidade é hoje rara e de como é
difícil e necessário reencontrá-la.

17
18 01 textos por Álvaro Siza
Não basta não demolir a Torre dos Clérigos, não basta não
demolir o Barredo. Não é necessário destruir para transformar.
P_ara a transformar, é necessário e indispensável não destruir
a cidade.

Pub. in Jornal de Notícias do Porto, ano de 1980 e tb in [Figueirinhas].

A cidade que temos

Não sei como é que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco
a propósito. A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do gra­
nito. Mas o granito é, às vezes, de oiro velho, e outras, azulado, com o
luar escasso que nesta noite de Outono escorre dos telhados. Quando o
sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e tra­
peiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos - o Porto
parece então pintado por Vieira da Silva: e mais imaginário que real.
Para as bandas de S. Lázaro, as ruas estão coalhadas de silêncio-(1 >

Muita coisa torna urgente quebrar o silêncio, para as bandas de S.


Lázaro.
Hitler escreveu que para destruir um povo, para nele apagar a cons­
ciência de si próprio, basta destruir os seus monumentos, o meio
físico a partir do qual ele se identifica. A cidade de Varsóvia, vítima da
aplicação deste «pensamento», sentiu a necessidade imperiosa de re­
construir o seu centro histórico, e nem as dificuldades do pós-guerra
limitaram esta vontade.
Na cidade que temos, de forma insensível, ou quase, para muitos,
lentamente, mas continuamente e em processo de aceleração, o am­
biente com o qual nos identificamos é destruído, como se fosse essa
a condição de o transformar.
A transformação da cidade é fenómeno natural e prova de vitalidade,
se de acordo com as suas necessidades, ou seja, com as necessida­
des colectivas do cidadão.
.. E uma das necessidades colectivas consiste na vivência quotidiana

19
dos resíduos da história de que é feita a cidade, contributo fundamen­
tal à consciência da história e do devir.
Pouco adianta a conservação (a protecção como sintomaticamente se
diz) de alguns monumentos abstractamente isolados do contexto que
os justifica. Imaginemos a Igreja dos Clérigos despojada do abraço do
casario que a envolve, a curva de doirados reflexos que prepara, para­
lelamente ao alçado lateral, a elevação da famosa torre.
Observemos a Avenida da Boavista, despida das árvores que prolon­
gavam o jardim da Rotunda em direcção ao mar. Acompanhemos a
evolução da Praça da Batalha, reduzida, a pouco e pouco, a conduta
de veículos motorizados, com um D. Pedro V impotente sequer para
dirigir o tráfego.
Quem sofre uma dor pode simplesmente recorrer a um analgésico,
mas pode também procurar as causas da dor, e tratá-las então con­
venientemente. De qualquer modo, nada tem a ver com os objectivos
limitados e provisórios de um analgésico a recente operação - Praça
da República. A demolição das construções do tempo dos Almadas,
com a justificação de um novo alinhamento para a Rua de Gonçalo
Cristóvão, e a autorização de construir em altura, destroem escanda­
losamente o espírito e a escala da praça, degradam o perfil da cidade,
dão origem a um acréscimo de afluência de veículos que neutralizaria
as vantagens do alargamento, se as houvesse.
Para além do património cultural que se vai perdendo, que dizer do
valor material nunca contabilizado, dos custos sociais implícitos nas
operações de «renovação», tal como são em geral realizadas (des­
locação das populações, agravamento de problema de transportes,
empobrecimento da vida cívica, etc.)? E que dizer da qualidade de vida
nas novas zonas construídas?
Tudo isto e muito mais se passa na cidade que temos, junto à nossa
porta, na rua ou na praça que percorremos todos os dias, nos dormi­
tórios da periferia. Muitos o sofrem directa e quotidianamente, alguns
não se apercebem do que acontece, o lucro material de outros retira­
lhes a capacidade de sofrer. O granito de «oiro velho», ou «azulado»
não desaparece para que o crepúsculo se encha de outros brilhos.
Não basta não demolir a Torre dos Clérigos, não basta não demolir o
Barredo. Não é necessário destruir para transformar. Para a transfor­
mar, é necessário e indispensável não destruir a cidade.

20 01 textos por Álvaro Siza


Ou ficará apenas um crepúsculo sem olhos de poeta em cada um de
nós - os olhos que trazemos ao nascer.

(1) Eugénio de Andrade. prefácio a Daqui houve nome Portugal.


[Há duas Edições de Daqui houve nome Portugal, Antologia de verso e prosa sobre o Porto, organizada
e prefaciada por Eugénio de Andrade, sendo a selecção artística e direcção gráfica de Armando Alves.
A primeira editada pela Editorial Inova, Lda, no Porto, em Junho de 1968 (encontrando-se o excerto
citado por Álvaro Siza na p. 16). A segunda, com diferente informação gráfica (fotografia e pintura
reproduzida), editada por ASA Editores li, SA, Porto, ano 2000 (excerto na p. 17)].

21
22 01 textos por Álvaro Siza
004.1980 03 00 Arquitectura: Piscina de Leça da Palmeira (1)

Ourante sete anos ainda, como Jacob, o arquitecto estudou os


remates, a norte e a sul, onde era difícil a entrega do que se
fez ao que existia.

Pub. in [Figueirinhas].

Piscina de Leça da Palmeira

Todos os anos, nas marés vivas, o mar leva o que não é essencial.
Naquele sítio, um maciço rochoso interrompe as três linhas paralelas:
encontro do mar e do céu, da praia e do mar, longo muro de suporte
da via marginal.
Alguém pensou em proteger uma depressão desse maciço, utili­
zando-a como piscina de marés.
Mas·o Atlântico não é o Mediterrâneo, nem é simples construir uma piscina
onde poucas se fazem: tratamento da água, captação difícil, regulamen­
tos exigentes, aprovação dependente de uma série de organismos.
"O melhor é chamar um arquitecto".
Nada mudou profundamente.
O edifício dos balneários está ancorado como um barco no muro da
!!larginal.
Dali não sai.
Alguns muros em betão sustentam a cobertura em riga e cobre e
apoiam os percursos de acesso à piscina.
�sses percursos existiam (em terreno difícil, a gente sabe escolher
o sítio onde por os pés), a piscina existia, os muros são paralelos ao
-muro de granito da avenida, do qual apenas se destacam. Aqui e além
pequenas intervenções consolidam as plataformas naturais.
Pouca coisa mudou.
Nas primeiras marés vivas o mar levou um bocado de muro, corrigindo
o que não estava bem.
Durante sete anos ainda, como Jacob, o arquitecto estudou os remates,
a norte e a sul, onde era difícil a entrega do que se fez ao que existia.

23
De tal sorte que daí resultou um plano da marginal, e o entregou e
disso foi pago.
Mas tudo foi considerado inútil: provavelmente se compreenderá que o
arquitecto apenas escolheu onde pôr os pés e aonde não ir, temeroso
dos perigos e das rochas e do mar.
E alguém disse: "qualquer um sabe onde pôr os pés, e é suposto que
um arquitecto ponha os pés em sítios diferentes dos de toda a gente".
E logo o despediram.

24 01 textos por Álvaro Siza


005. 1982 00 00 Reflexão
· O projecto está para o arquitecto como o personagem de um
romance está para o autor: ultrapassa-o constantemente. É
preciso não o perder. O desenho persegue-o. (. . .) O desenho
é o desejo de inteligência.

Revista Daidaluz n.º 5, Set. 1982, ed. Workmedia Comunicação. Pub. tb in


[E/ecta], p. 61, [Skira], p.51, [UPC], p. 23 e [Saint-Étienne], p. 42.

Construir

Construir uma casa tornou-se uma aventura.


É preciso paciência, coragem e entusiasmo.

O projecto de uma casa surge de formas diferentes. Subitamente, por


vezes, às vezes lenta e penosamente. Tudo depende da possibilidade
e da capacidade de encontrar estímulos - bengala difícil e definitiva do
arquitecto.

O projecto de uma casa é quase igual ao de qualquer outra: pare­


des, janelas, portas, telhado. E contudo é único. Cada elemento se vai
transformando, ao relacionar-se.

Em certos momentos, o projecto ganha vida própria.

Transforma-se então num animal volúvel, de patas inquietas e de olhos


inseguros.

Se as suas transfigurações não são compreendidas, ou dos seus de­


sejos é satisfeito mais do que o essencial, torna-se um monstro. Se
tudo quanto nele parece evidente e belo se fixa, torna-se ridículo. Se é
demasiadamente contido, deixa de respirar e morre.

O projecto está para o arquitecto como o personagem de um romance


está para o autor: ultrapassa-o constantemente. É preciso não o perder.

25
O desenho persegue-o.

Mas o projecto é um personagem com muitos autores, e faz-se inteli­


gente apenas quando assim é assumido, é obsessivo e impertinente
em caso contrário.

O desenho é o desejo de inteligência.

26 01 textos por Álvaro Siza


006.1983 09 00 Pedagogia
A Tradição é um desafio à inovação. É feita de enxertos
sucessivos.
Sou conservador e tradicionalista, isto é: movo-me entre confli­
tos, compromissos, mestiçagem, transformação.

Pub. in Quaderns d'Arquitectura i Urbanisme n. 0 159, Out.Nov.Dez 1983.


E tb. in [Electa], p.65, [Skira] p. 203 e [UPC], p.27.

Oito Pontos

Pedem-me um depoimento sobre a minha actividade profissional.


Escrevo algumas linhas, oito pontos ao acaso.

1) Começo um projecto quando visito um sítio (programa e condiciona­


lismos vagos, como quase sempre acontece).
Outras vezes começo antes, a partir da ideia que tenho de um sítio
(descrição, uma fotografia, alguma coisa que li, uma indiscrição).
Não quer dizer que muito fique de um primeiro esquisso. Mas tudo
começa.
U_m sítio vale pelo que é, e pelo que pode ou deseja ser - coisas tal­
vez opostas, mas nunca sem relação.
Muito do que antes desenhei (muito do que outros desenharam) flu­
tua no interior do primeiro esquisso. Sem ordem. Tanto que pouco
aparece do sítio que tudo invoca.
Nenhum sítio é deserto. Posso sempre ser um dos habitantes.
A ordem é a aproximação dos opostos.

2) Ouço dizer que desenho nos cafés, que sou um arquitecto de pe­
quenas obras (como experimentei as outras, penso: oxalá que não;
são as mais difíceis).
É verdade que desenho nos cafés. Não o faço como Toulouse
Lautrec nos cabarés, ou algum Prix de Rome, entre as ruínas.
O ambiente de um café não inspira nem transporta. É um dos pou­
cos - aqui no Porto - a permitir anonimato e concentração.

27
Não se trata de fuga à mesa de reuniões, à interdisciplinaridade, ao
telefone, aos impressos de Regulamentos, aos catálogos de pré-fabri­
cados ou de ferramenta simplificadora, ao computador ou à Assembleia
de Moradores. Trata-se de conquistar - é o termo - bases para traba­
lhar com isso e para isso. (Quantos cafés frequentei; mudo quando
noto especial atenção, à mistura com chá e torradas).

3) Alguns dos meus últimos projectos passaram por longo debate com
grupos organizados de moradores ou futuros moradores.
Nada de muito novo. Trabalhei assim, noutras circunstâncias, ou de­
sejei trabalhar.
No Portugal saído de 74 não se tratava, contudo, de desejar ou não.
A luta pela habitação, no Porto, em Lisboa, ou no Algarve, abertas
as cadeias, ultrapassou os limites da casa, do bairro, da coopera­
tiva. Possuiu a cidade.
Curto episódio. Tomado como método, o que é movimento dege­
nera em cómodo alibi, moderador alienante, renitente a mergulhar
na reformulação do desejo - o nosso e o de outros.

4) Dizem-me de obras minhas, recentes e antigas: baseiam-se na ar­


quitectura tradicional da região.
Também essas obras me fizeram conhecer a resistência de um ope­
rário, a ira de quem passa e de quem julga.
A Tradição é um desafio à inovação. É feita de enxertos sucessivos.
Sou conservador e tradicionalista, isto é: movo-me entre conflitos,
compromissos, mestiçagem, transformação.

5) Dizem-me (alguns amigos) que não tenho teoria de suporte nem mé­
todo. Que nada do que faço aponta caminhos. Que não é pedagógico.
Uma espécie de barco ao sabor das ondas que inexplicavelmente
nem sempre naufraga (ao que me dizem também).
Não exponho excessivamente as tábuas dos nossos barcos, pelo
menos em mar alto. Por demais têm sido partidas.
Estudo correntes, redemoinhos, procuro enseadas antes de (ar)riscar.
Posso ser visto só, passeando no convés. Mas toda a tripulação e
todos os aparelhos estão lá, o capitão é um fantasma.
Não me atrevo a pôr a mão no leme, olhando apenas a estrela polar.

28 01 textos por Álvaro Siza


E não aponto um caminho claro. Os caminhos não são claros.

6) Não gostaria de executar com as próprias mãos o que desenho.


Nem de desenhar sozinho. Seria: esterilizar.
O corpo-mão e mente e tudo - não cabe no corpo de cada um. E ne­
nhuma parte é autónoma.

7) As minhas obras inacabadas, interrompidas, alteradas, nada têm a


ver com a estética do inacabado, ou com a crença na obra aberta.
Têm a ver com a enervante impossibilidade de acabar, com os im­
pedimentos que não consigo ultrapassar.

8) Discuto com um operário como assentar mosaico de 30x30 num


pavimento de geometria irregular: em diagonal (como proponho) ou
paralelamente a uma das paredes. Diz-me: nós, em Berlim, não fa­
zemos como quer.
No dia seguinte volto à obra. "Dou-lhe razão. É mais fácil de execu­
tar" (diz-me o operário).
Encontramo-nos no mesmo interesse: construir da forma mais prá­
tica e racional, como aconteceu - voando - no Parténon, ou em
Chartres, ou na casa Milà.
E hoje: redescobrir a mágica estranheza, a singularidade das coi­
sas evidentes.

29
30 01 textos por Álvaro Siza
007 .1986 09 00 Cidades (Barcelona), Família
Apercebi-me no dia seguinte, de que as estranhas esculturas
eram feitas do que existe em toda a parte: janelas, portas, ro­
dapés, ferragens, lambrins em cerâmica ou pedra, caleiras,
goteiras; tudo bem funcional, adaptado às mãos e aos pés e
aos cinco sentidos. Dentro da casa Milá senti-me em casa:
nada era especial, a não ser na mágica qualidade.

Pub. ln Quaderns d'Arquitectura i Urbanisme, n.º 175, Out.Nov.Dez.


1978. E tb na Exposição Arquitectura e Renovação Urbana em Portugal,
1984, Barcelona, Setembro 1986, in [Skira], p. 122 a 125, in Catálogo
da Exposição As Cidades de A/varo Siza no Porto e em Lisboa e in
City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte Fleck/
Birkhauser Verlag, 1994, p. 202 a 206.

Barcelona

A minha relação com Barcelona é bem antiga; entre quarenta e cinco


e cinquenta e poucos, em cada ano, o meu pai organizava um mês de
férias em Espanha.
Alugava um carro, preparando cuidadosamente o itinerário, com o
mesmo entusiasmo com que mais tarde o recordava.
Pela minha parte, desde que me lembro encorajado a desenhar por
um tio, para além disso, pouco dado às artes, interessava-me pelos
museus e por aquelas perdidas sacristias onde de súbito, entre o pó,
explodia um Greco (o meu tio oferecia-me coisas maravilhosas, lápis
n.0 1, borrachas, caixas de aguarelas, cadernos de papel costaneira,
depois Almaço, depois Whatmam, ou lngres ou Conté; cada melhoria
de qualidade correspondia a uma promoção calculadamente decidida
pelo meu tio que não sabia desenhar).
Não havia Turistas nem auto-estradas; estávamos mais próximos das
casas e das pessoas. A Espanha era pobre; devastada; por toda a parte o
pó encobria a riqueza secular; pó da cor de Toledo, do Alcazar ao Tejo.
O automóvel alugado pelo meu pai fazia grande sucesso; as pessoas
juntavam-se para ver um modelo americano que não conheciam.
A partir de meados de cinquenta deixamos de fazer férias em Espanha.
Os preços haviam subido e o câmbio já não era favorável. O Hosta! de

1
31
,\'
Santiago, rodeado de autocarros franceses, assinalava os novos tempos.
O automóvel alugado já não causava espanto.
No ano destinado à Catalunha, como sempre, o meu pai estudou o que
havia para ver: reunia a família à volta da grande mesa da sala de jan­
tar e fazia planos.
o meu interesse dirigiu-se ao museu de Vich e a Gaudi.
Pouco me interessava a arquitectura; mas aquela parecia escultura, ou
pintura, ou assim era.
Na primeira noite - chegamos tarde - fui com o meu irmão olhar a
Sagrada Família. Estava escuro e sentimos medo. Ninguém nas ruas.
Mas nas Ramblas havia animação e o habitual desfile de gente, como
em todas as cidades e aldeias de Espanha.
Apercebi-me no dia seguinte, de que as estranhas esculturas eram fei­
tas do que existe em toda a parte: janelas, portas, rodapés, ferragens,
lambrins em cerâmica ou pedra, caleiras, goteiras; tudo bem funcional,
adaptado às mãos e aos pés e aos cinco sentidos. Dentro da casa Milá
senti-me em casa: nada era especial, a não ser na mágica qualidade. Não
muito diferente das outras casas dos quarteirões bem alinhados, nas ruas
arejadas onde apetecia passear, cruzando o dia inteiro, um após outro, os
cunhais cortados a quarenta e cinco graus, os cunhais de espaços pro­
fundos que o Federico Correa, mais tarde, me faria conhecer.
Tive o primeiro pressentimento de que talvez a arquitectura me inte­
ressasse mais do que qualquer outra coisa; de que estava ao meu
alcance; bastava pôr a dançar janelas, portas, rodapés, ferragens,
lambrins em cerâmica ou pedra, caleiras, goteiras.
Senti o pulsar dos tubos de secção normal, dos fios de electricidade; e
o movimento do ar através das paredes.
No regresso paramos para almoçar num restaurante dos arredores. Vi
uma tabuleta que indicava: Colonia Güell.
O meu pai estava cansado de arquitectura e de museus; mas acedeu
a que eu fosse com o motorista "ali ao lado".
Quando voltamos acabavam de almoçar. O motorista estava com fome
e zangado; o meu pai fingia que estava zangado; os meus olhos de
quinze anos brilhavam. Costa Brava acima, a benção do Mediterrâneo.
(mais tarde passei por aqui a cem à hora, formosas auto-estradas,
Coderch em dois segundos, uma cidade do Far-West feita de fachadas
em madeira, entusiasmo, entusiasmo, o entusiasmo de que precisava;
mãos, pés, cinco sentidos.)

32 01 textos por Álvaro Siza


008.1987 01 00 Outros Arquitectos: Fernando Távora (1)

Culturalmente, e no que à profissão respeita, Fernando Távora


é um homem da última geração CIAM, formado na admiração
de um Le Corbusier de certezas, imediatamente sensível ao Le
e de viragens desconcertantes, que reabilitam contradições de
formação pré-escolar ou exterior à Escola.

Pub. in Arquitectura, Pintura, Escultura, Desenho. Património da Escola


Superior de Belas Artes do Porto e da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto, ed. Universidade do Porto, Janeiro de 1987.
Exposição organizada pela FAUP com a colaboração da Associação
Portuguesa de Arquitectos, integrada nas Comemorações do 75°
Aniversário da Universidade do Porto; p. 184 a 187. E tb in Desenho de
Arquitectura, mesmo evento, p. 104 a 107.

Fernando Távora

Fernando Luís Cardoso Meneses de Tavares e Távora, filho de José


Ferrão de Tavares e Távora e de Maria José de Lobo Sousa Machado
Cardoso de Meneses, nasce no Porto a 25 de Agosto de 1923. Faz o
seu Curso de Arquitectura na Escola de Belas Artes do Porto (1942-
1947) e obtém o seu diploma em 1950.

Ingressa no corpo docente daquela Escola em 1951, como voluntá­


rio, sendo depois contratado como Segundo-Assistente em 1958. Em
1962 concorre ao Concurso para Professor do 1° grupo sendo classifi­
cado em mérito absoluto e em segundo lugar em mérito relativo.

Professor Agregado é, em 1974, convidado para Professor, passando


à efectividade em 1976. Exerce cargos nos diferentes órgãos de ges­
tão da primeira Secção da Escola Superior de Belas Artes no Porto
e é, actualmente, Presidente da Comissão Instaladora da Faculdade
de Arquitectura da Universidade do Porto e Professor Associado da
mesma Faculdade.

Exerce a sua actividade profissional de Arquitecto e é autor de vários


trabalhos teóricos em matérias da sua formação.

33
Colaborou no Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa, promo­
vido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos.

Participou em Congressos Internacionais de Arquitectura e Urbanismo


e foi membro do CIAM (Porto).

Foi 1 ° prémio de Arquitectura da fundação Calouste Gulbenkian e


Bolseiro da mesma Fundação nos Estados Unidos e no Japão. É
Académico Correspondente da Academia Nacional de Belas Artes.

Numa primeira observação, a obra de Fernando Távora respira tran­


l
quilidade. Nenhum drama afl�-��-:- Resufta·-esffàrif o"o seu fascínio, ou o
da personalidade do Autor.

Culturalmente, e no que à profissão respeita, Fernando Távora é um


homem da última geração CIAM, formado na admiração de um Le
Corbusier de certezas, imediatamente sensível ao L C de viragens
desconcertantes, que reabilitam contradições de formação pré-esco­
lar ou exterior à Escola.

Do último CIAM acompanha o pensamento do Coderch das casas ca­


talãs, e não do Candilis das novas cidades; do Van Eych rebelde e dos
novos italianos, e não Bakema da triunfante reconstrução.

Não admira que a identificação com o novo e ecléctico CIAM dure


menos do que este durou; que a ligação a opostos campos de forma­
ção pessoal atravesse o evoluir da obra e nela se resolva; não admira
que a influência fulminante de Alvar Aalto em toda a Europa seja para
Fernando Távora marginal.

A evidência da importância de Fernando Távora como pedagogo e ca­


talizador de tendências renovadoras, no interior da Escola de Carlos
Ramos e na sua consolidação e evolução, tem de certo modo adiado
a atenção à obra do Arquitecto, colocada com respeito nas prateleiras
das referências indiscutíveis na descrição e compreensão dos cami­
nhos da Arquitectura Contemporânea Portuguesa.

A um olhar mais atento, a obra de Fernando Távora aparece aberta


e carregada de subversão, num país de marasmo ou de sufocada
ansiedade. Subversão, reflexão, continuidade, num contraponto de

34 01 textos por Álvaro Siza


projectos "em estado de felicidade" e de suspensas decomposições. É
nesta óptica que se pode entender a complexa coerência da sucessão
de projectos e construções e também das mais diversas actividades -
do coleccionador ao pedagogo.

A .Ç__�sa Ofir "aparece" em 1956. Não é mais do que outra chaminé


entre as luminosas, essenciais construções do litoral minhoto; pro­
voca, nessa _r,__9turalidade, um autêntico sobressalto renovador; pouca
gente é sensível, na época, ao facto de que utiliza uma estrutura espa­
cial moderna e nórdica.

Sucede aos primeiros projectos "europeus" (Ramalde, Campo Alegre,


Bloco de Habitações da Foz) e à participação no Inquérito à Arquitectura
Regional Portuguesa, precedida pela publicação de "O Problema da Casa
Portuguesa", pequeno texto que anunciava muitos dos temas disciplina­
res dos anos seguintes.

Àquela aproximação do vernáculo litoral "em estado de graça" segue­


se o projecto do P!3Vilhão de ténis da quinta da Conceição, destruição
��composição de elementos e tipos de Arquitectura Tradicional, no in­
terior de uma convergência de distantes vocações de Forma.

A coerente e acabada linguagem "portuense" da Escola do Cedro (1958)


que parece institucionalizar os caminhos da Casa de Ofir, é acompa­
nhada pela singular arquitectura do Mercado de Vila da Feira (1954)
onde a análise e a intuição do uso do espaço se traduzem numa aguda
sensibilidade ao que se transforma - ou se vai transformar - e a uma
continuidade que escapa à descrição; assim se construindo a Forma.

O Bloco de Pereira Reis (1958) devolve à arquitectura os limites de su­


perfície e definição de espaço e de parte constituinte de uma estrutura
superior; enquanto o Edifício Municipal de Aveiro (1964) se desprende
em objecto arquitectónico.

Mais recentemente, na renovação da sua casa de família, em Guimarães,


a mão do autor quase se apaga na renovação exemplar; enquanto no
longo processo da recuperação da Pousada de Santa Marinha um ri­
gorosíssimo estudo arqueológico está na origem da naturalidade e da
heresia da "nova arquitectura", que ultrapassa a condição de acrescento,

35
ascendendo a parte integrante da História de uma poderosa estrutura
em lenta e contínua transformação.

Não é possível, em curto texto, considerar a riqueza e a complexidade


da obra de Fernando Távora; uma obra que invade - discretamente? -
o quotidiano da cultura portuguesa.

Nenhuma tranquilidade subsiste. Sob uma máscara de distância, agitam­


-se - em primeira mão - os grandes temas da nossa transformação.

36 01 textos por Álvaro Siza


009.1987 06 00 Pedagogia, Desenho

A obsessiva especialização atrofia capacidades universais; a


alguns é permitido e imposto desenvolver umas tantas - e não
outras. E no entanto, no respeito ao desenho, qualquer criança
se exprime com frescura e rigor; e os inadaptados e os consi­
derados loucos.

Pub. in catálogo da Exposição Desenho, terceira bienal nacional 1987,


Cooperativa Árvore, Mercado Ferreira Borges, Porto (4 a 27 de Junho de
1987. E tb in [Skira], p. 17.

A importância de desenhar

Falando em termos gerais, quem escolhe fazer arquitectura não pre­


cisa de "saber desenhar", muito menos de "desenhar bem". O desenho,
entendido como linguagem autónoma, não é indispensável ao projecto.
Muita e boa arquitectura se fez e se faz "à bengala".
Só que toda a gente pode e precisa de desenhar.
A obsessiva especialização atrofia capacidades universais; a alguns
é permitido e imposto desenvolver umas tantas - e não outras. E no
entanto, no respeito ao desenho, qualquer criança se exprime com
frescura e rigor; e os inadaptados e os considerados loucos.
Os erros e a submissão de quem ensina levam a que de quase todos
finalmente se diga: não tem "jeito". Ou a que os próprios o digam.
O desenho é uma forma de comunicação, com o eu e com os outros.
Para o arquitecto, é também, entre muitos, um instrumento de traba­
lho; uma forma de aprender, compreender, comunicar, transformar: de
projecto.
Outros instrumentos poderá utilizar o arquitecto; mas nenhum substi­
tuirá o desenho sem algum prejuízo, nem ele o que a outros cabe.
A procura do espaço organizado, o calculado cerco do que existe e do
que é desejo, passam pelas intuições que o desenho subitamente in­
troduz nas mais lógicas e participadas construções; alimentando-as e
delas se alimentando.
Todos os gestos - também o gesto de desenhar - estão carregados de
história, de inconsciente memória, de incalculável, ànónima sabedoria.

37
\ É preciso não descurar o exercício, para que os gestos não se cris­
: pem, e com eles o resto.

38 01 textos por Álvaro Siza


010.1987 12 00 Outros Arquitectos: Le Corbusier

Muito do encanto da Víl/a Savoie - da Arquitectura - tem ori­


gem numa suspensa, precária cumplicidade entre os que a
realizam: promotores, construtores, desenho. (. ..) Não sabe­
mos que Deuses a habitam. Como um templo japonês, é refeita
antes de apodrecer. Evoca saúde, juventude, alegria, higiene,
box - a nobre arte - doirada sob o branco.

Pub. in Sulle Tracce di Le Corbusier, a cura di G. Palazzolo i R Vio,


Arsenale, Venezia, 1989. E tb in [E/ecta], p.68, [Skira], p. 104 e [UPC],
p, 21.

A Villa Savoie revisitada

Picasso dizia que necessitara de dez anos para aprender a desenhar


como uma criança.
Estes últimos dez anos parecem hoje ausentes da aprendizagem da
Arquitectu ra.
O encantamento numa visita à Villa Savoie vem do encontro sempre
presente, inverte a importância dos elementos. Estes podem ser iso­
ladamente banais; acompanharão um habitante de todos os dias sem
sobressalto, apreendidos ou não. Cada invenção gera outra ainda.
Não acabam as possibilidades de descoberta, para a direita, para a
esquerda, para o alto e para o baixo, obliquamente, ortogonalmente. A
expressão directa e quase tosca do pormenor não tem nada de pouco
elaborado ou de priR1itivo; trata-se de uma segunda espontaneidade,
laboriosamente conquistada e também de súbito encontrada, do exer­
cício, acelerado quase até ao sincretismo, da hipótese e da crítica, da
aproximação da essencialidade.

Ao contrário de Chareau, de quem continuamente, ao que parece,


observa as engenhosas descobertas e o emprego de novos mate­
riais, Le Corbusier não tem uma clientela fixa, nem uma equipa de
maravilhosos artesãos. Persegue uma ideia em profundidade e em
extensão; desenhos rigorosos mas não totalmente detalhados, aber­
tos ao conformismo ou à aventura, atravessados de dúvidas, intuições

39
ou influências, no ocaso de um mundo em que projectista e artesão se
entendem directamente, como Chareau, mas sem desânimo.

Nas suas leituras teria sido influenciado pelas ideias de Alexandre


Vaneyre1 , num gesto largo como a viagem ao Oriente apontara à
Suiça, país de confluências e de indecisões, a plástica brancura
Mediterrânica. Não o satisfazia o estilo nacional inventado, misto de
arquitectura de montanha e de Idade Média, de que a aldeia turinense
de Alfredo de Andrade fora oportuno modelo2 •
A prática da pintura, no encontro com Ozenfant, orientara-se a uma as­
sociação linear de objectos banais - a garrafa, a guitarra, o cachimbo,
o copo de todos os dias - formas depuradas em que rectas e curvas,
formando uma meada sem ponta, se potencializam no interior de uma
moldura: alicerces do terraço de Poissy, onde extravasam para o céu.
Este treino de associação e de alargamento vai ramificando raízes e pro­
cura larga copa; avançará das plataformas de La-Chaux-de-Fonds aos
horizontes distantes de Chandigarh, passando por espartilhados lotes
de Paris, pelas extensas cidades da América do Sul - sucessivos quar­
teirões de 144x144 ou grandes plataformas entre rochas colossais.

Estruturas lineares e curvas deslizam vertiginosamente entre as mon­


tanhas da Argélia ou do Rio de Janeiro, aproveitando gargantas ou os
abertos junto ao mar; células compactas articulam-se nos interstícios
dos quarteirões, abrindo pátios, fragmentam-se na conquista da pos­
sibilidade de construir, na Maison du Salut.

No gabinete de 3x3 da Rue de Sévres, onde não é sequer necessária


a luz superior do Hospital de Veneza, Paris é arrasada, para ensaio de
um Esprit Nouveau. A pesquisa não é sempre paciente.
Mas parece Poissy, encontro de procura e de alguma liberdade: cliente
e lareira.
Poderia ser um objecto vindo de outro mundo; à primeira vista assim
parece. Poderia ser construído em ferro e alumínio; a seco.

1 Jacques Gubler, Nationalisme et lnternationalisme dans t:Architecture Moderne de la Suisse,


Lausanne, 1975
2 Paul V. Turner, La Formation de Le Corbusier- ldealisme et Mouvement Moderne, Editions MACULA,
1987

40 01 textos por Álvaro Siza


Mas, ao contrário, o reboco faz contínuas as formas sincopadas, e as
fissuras que nascem cada dia denunciam as indecisões tecnológicas
e as mãos que materializam o desenho.

Junto à rua, semi-encoberta por um muro, a portaria anuncia seca­


mente a linguagem da casa que não se vê. Um sábio percurso articula
as duas construções, tão perfeitamente e completamente relaciona­
das como se se tratasse de um pequeno lote de Paris. Le Corbusier
ocupa o espaço por inteiro, a casa é um pormenor desse espaço.

As formas poderosas, contidas num paralelepípedo elevado sobre pila­


res, anunciam-se aqui e ali, através de uma fenda horizontal contínua,
ou no chão ou no terraço. Os pilares periféricos quase coincidem com
os limites da construção. Perdido o capitel, o encontro com o plano ho­
rizontal é incerto, escassos centímetros recuado do plano da parede. A
caixa poderá sair, deslizando sobre os pilares; às formas em expansão
do terraço mal basta a elevação, tensas e próximas da fractura que a es­
treita padieira de um vão promete.

O aparecimento da casa provoca uma sensação de dureza, os pilares


fundem-se à parede do primeiro piso. É necessário contorná-la, nas res­
tantes três faces a estrutura independente limita uma galeria coberta.
Uma curva de raio calculado torna exteriores outros dois pilares; indica o
acesso à garagem. Algumas vigas aparentes afastam qualquer doçura.
A porta de entrada ocupa a posição central da parede curva, coinci­
dindo com o eixo da malha estrutural, de quatro intercolúneos.

No interior, a estrutura desdobra-se, de modo a enquadrar a porta e o


percurso de penetração, assinalado pela rampa de dois lanços.

Este enquadramento é reforçado com inimaginável economia: uma pa­


rede, equilibrada do lado oposto por uma mesa fixa e um lavatório de
série; dois candeeiros simetricamente colocados junto à porta.
Esta ordem simples é depois e constantemente desmontada: escada
escultural, abertura triangular sobre o pátio, assimetria própria da
rampa, luz, torções de parede.

41
O 2 º piso desenvolve-se em torno de um pátio que o ilumina em condi­
ções ideais. A assimetria é controlada pela rampa axial, que se repete
exteriormente até ao terraço; a violência do percurso é aí contida pelas
curvas sumptuosas dos muros, como num abraço.
Misteriosamente existe calma, feita de saturação de tensões. O largo
desenvolvimento da sala comum domina multiplicadas diagonais, reflec­
tidas no pavimento de mosaico do átrio; o percurso através do quarto
principal - outro U - proporciona uma sensação de profundidade, como
numa velha casa; e de novo liberta a visão do pátio e da clareira.
Cada elemento tem uma vida autónoma, desfoca-se de súbito, como
acontece numa cidade que conhecemos de todos os dias. O encon­
tro entre elementos não é absolutamente perfeito. Os rodapés hesitam
diante de obstáculos, ou os canos de água; falta às molduras das
portas ou às curvas da escada ou da parede do banho um controle in­
discutível. Nada é sistemático. Há erros evidentes de desenho e das
mãos que o executam, cruzam-se as mútuas indecisões e cada erro
gera poesia, ao ensinar a transformar.

O que impressiona neste Le Corbusier, e percorre afinal toda a sua


obra escrita ou desenhada, é a desconcertante recusa do já afirmado,
uma espécie de candura uma inquietação que a capacidade de análise
e de síntese e as convicções não destroem, uma certa insegurança, o
repúdio da auto-suficiência, sob uma aparente arrogância.
O abraço a um operário ante a suposta imperfeição de uma parede.
Muito do encanto da Villa Savoie - da Arquitectura - tem origem numa
suspensa, precária cumplicidade entre os que a realizam: promotores,
construtores, desenho. A sua contínua degradação reflecte a impos­
sibilidade de manter esse encantado equilíbrio, mas também de o
não procurar. Não sabemos que Deuses a habitam. Como um tem­
plo japonês, é refeita antes de apodrecer. Evoca saúde, juventude,
alegria, higiene, box - a nobre arte - doirada sob o branco. Habita-a
uma pesquisa infatigável e infindável, tapetes de Chandigarh desenha­
dos num avião, esculturas modeladas por correspondência, retratos
de Josephine - um sorriso de Eva no paraíso.

42 01 textos por Álvaro Siza


011.1988 01 00 Pedagogia, Família

Ninguém hoje pode ignorar o pluralismo do chamado Mo­


vimento Moderno, a permanente crítica no interior da febril
reconstrução da cidade europeia, os gestos contraditórios,
as desconcertantes, seminais expressões de uma contínua e
multifacetada pesquisa, paralela aos conformismos e aos ma­
nifestos. É assunto solidamente estudado.

Pub. in Revista Crítica das Ciências Sociais, Faculdade de Economia da


Universidade de Coimbra, n. 0 24, Março 1988. Pub. tb in [Electa], p. 68,
[Skira), p. 34 e [UPC], p. 21.

Farmácia Moderna

Pergunta: Considera-se arquitecto post-modernista?


Resposta: Não importa que me chamem post-modernista, se isso con­
correr para que se fale de Arquitectura (Aldo Rossi, debate em Bogotá,
1981).

1.
A casa da minha Avó fica num sítio especial de Matosinhos. Aí pelos
anos 40 encontrava-se na fronteira entre as fábricas de conservas (hoje
abandonadas) e as residências de princípio de século. Em frente havia a
Farmácia Moderna, realmente moderna, no mesmo estilo dos "Mestres
de Traineira" subitamente enriquecidos, que compravam carros de luxo
e bidés onde demolhavam o bacalhau; casas geométricas, depuradas,
de reboco e madeira esmaltada e alguma pedra, quartos de banho em
mármore e algum metal de gosto Deco.

Na casa por cima da Farmácia respirava-se saúde e bons princípios; o


proprietário era escuteiro e partia ao domingo, não se sabe para onde,
armado de calças curtas e de instrumentos fascinantes.
Com o passar dos anos, o nome da Farmácia tornou-se estranho.
Mudaram os proprietários, à volta começaram a demolir prédios e a

43
construir 6 ou 7 pisos. A Farmácia continuava igual e obstinadamente
Moderna; mas o reboco começava a desfazer-se.
Passei por lá há dias. A casa da Avó continua em posição estraté­
gica: à esquerda uma Hospedaria, à direita o Partido Socialista, em
frente a Farmácia, com outra imagem e uma tabuleta nova onde se lê:
Farmácia Moderna.
Fiquei encantado com a perseverança, mas o nome não me fez bater
o coração, como outrora, em sobressalto.

2.
Naqueles anos 40, o sonho de muitos arquitectos portugueses era
construir em betão, teimosamente mais caro do que a pedra, usar
janelas horizontais e terraços que às vezes metiam água. Longas ba­
talhas se travaram, levantaram-se paredes para encobrir o odiado
telhado, a telha de Marselha já não significava progresso. Assim acon­
tecera na Alemanha e na França e noutros países; e assim se fez bela
Arquitectura.

Mas a verdade é que hoje, e de um modo geral, já não nos preocupa isso
de ser moderno. Alguns pensam que é urgente ser post-moderno.
É bom poder construir um telhado ou um terraço, usar pedra ou betão
ou outros materiais, conforme convenha ou apeteça, "ou borracha,
mas isso não passa pela cabeça de ninguém", como dizia o meu pro­
fessor de Estruturas.

É claro que este prazer é pouco compatível com grandes convicções,


arriscamo-nos a construir mesmo com borracha ou cartão, tornamo­
nos indecisos. O heroísmo reaparece quando nos proíbem um terraço,
agora por ser modernista, purista, moralista ou outras coisas horríveis
que não passam pela cabeça de nenhuma tela, asfáltica ou não, que­
ridas telas comuns, honestas e impermeáveis.
De qualquer modo, o desinteresse por ser moderno é um facto.
Podemos dar a qualquer Farmácia um nome menos solene, Real ou
Rocha ou do Adro (não encontrei nenhuma chamada Post-Moderna,
provavelmente por ser conhecida a ambiguidade da tabuleta em frente
à casa da Avó).

44 01 textos por Álvaro Siza


;,,

3.
A menção do termo post-moderno surgiu nos heróicos anos 30,
distante dos escândalos e dos triunfos contemporâneos da arquitec­
tura modernista (a alguma se chamava futurista). A sua aplicação à
Arquitectura chegou tarde e mais "débil" do que o normal. Esse atraso
e outras debilidades explicam talvez a súbita ansiedade em não ficar
excluído da nova classificação.

Estaremos longe da primitiva inocência que manteve o antagonismo


entre Bernini e Borromini, apesar da comum condição de barrocos,
mais tarde e pelos vistos evidente.
Podemos saber e já, através dos críticos ou da própria lucidez, se
somos post-modernistas ou ainda não, tardo-modernistas ou crito­
post-modernistas, ou regionalistas e outras coisas.
Assim podemos encontrar cantos de tranquilidade para as incertezas,
longe que estamos do optimismo e dos claros instrumentos de traba­
lho dos anos 50.

4.
A claridade e a utilidade da Arquitectura dependem do comprometimento
na complexidade das transformações que cruzam o espaço; compro­
metimento que no entanto só transforma a Arquitectura quando, pelo
desenho, atinge a estabilidade e uma espécie de silêncio, o território in­
temporal e universal da ordem.

Complexidade e ordem conferem aos materiais e aos volumes e aos


espaços luminosa vibração e permanente disponibilidade. Por isso a
Arquitectura não condiciona comportamentos de forma significativa;
mas não constitui um quadro neutro.

Quanto mais se compromete com as circunstâncias da sua produção,


mais dela se liberta; "voz" por ser impassível condutor de vozes, me­
dida e não limite da procura de perfeição.

)
45
Quase sempre distante desse comprometimento e dessa autonomia,
a produção actual tende a oscilar entre hermetismo e populismo, entre
kitch e elegância; de uma forma ou de outra, sugere a substituição
do criticado contínuo de "ismos" por um "ismo" único, tão divertida­
mente indiferente que pretende tudo conter, alcançando pluralismo e
sobrevivência através de máscaras e de cenários, invocando simulta­
neamente o gratuito e a história.

Elementos e signos de crise, simplificados e poucos, reciclados em


ondas de rápida e efémera propagação, são exibidos como expressão
de criatividade individual; como imaginativa resposta à progressiva bu­
rocratização e à morte das certezas.

Isto e um toque de ironia denunciado até ao aniquilamento legitimam,


ou pretendem legitimar, a associação de qualquer irresponsabilidade
aos meditados percursos de Rossi ou de Stirling, ou de outros menos
conhecidos.

5.
Estão ultrapassados os códigos do Modernismo? Ou nunca se defini­
ram radicalmente, a não ser em sínteses episódicas, excluindo o que
perturbava a suposta universalidade?
Não faz mal ao Mundo que, por razões de método, se estabeleçam
imaginárias linhas de fronteira. Pode ser fecundo e assim se fez sem­
pre, para logo serem ultrapassados os limites de cada pesquisa.
Ninguém hoje pode ignorar o pluralismo do chamado Movimento
Moderno, a permanente crítica no interior da febril reconstrução da ci­
dade europeia, os gestos contraditórios, as desconcertantes, seminais
expressões de uma contínua e multifacetada pesquisa, paralela aos
conformismos e aos manifestos. É assunto solidamente estudado.
Por isso, como acontece em relação ao modernismo, começa já o
recuo na História, a procura dos Pais do post-modernismo.

46 01 textos por Álvaro Siza


012.1988 02 00 Reflexão

Assim fosse na Holanda, onde montanhas de livros e de ex­


periência e de informação computorizada me abrem mil vias
proibidas. Para tudo tenho mil apoios, mil disciplinas me acom­
panham fraternalmente, a não ser na solidão multiplicada de
ser eu a escolher o que não posso escolher.

Pub. in Álvaro Siza Figures and Configurations: Buildings and Projects


1986-1988, ed. W. Wang, Harvard University Graduate School of Design/
Rizzoli lnternational, New York, 1988. E tb in [Electa] p. 71, [Skira], p.
200, [Figueirinhas], [UPC], p. 47 e [Saint-Étienne], p.72. Versão trilingue
in City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte Fleck/
Birkhauser Verlag, 1994, p. 108.

Materiais

Mal sei que materiais escolher. As ideias vêm-me imateriais, linhas sobre
um papel branco; e quando quero fixá-las tenho dúvidas, escapam, espe­
ram distantes.
Recordo os carpinteiros das primeiras obras, que me ensinaram que as
dobradiças se aplicavam assim no norte e de outra maneira no sul.

Agora que trabalho na Holanda de pouco me servem as dúvidas: isto


custa X e aquilo Y; Z é o limite. Tudo o que seja diferente só na minha
imaginação é possível; custe o que custar.
Aprendi na Holanda, e na Alemanha, a apreciar as minhas dúvidas por­
tuguesas sobre os materiais; no país onde a tradição está moribunda
e a contemporaneidade é o futuro. A oscilante disponibilidade dos ma­
teriais, e indecisa, fracciona o que idealizo e abre diferentes caminhos;
devo percorrê-los, escolher pode ser descobrir.

Assim fosse na Holanda, onde montanhas de livros e de experiência e de


informação computorizada me abrem mil vias proibidas. Para tudo tenho
mil apoios, mil disciplinas me acompanham fraternalmente, a não ser na
solidão multiplicada de ser eu a escolher o que não posso escolher.
Os mais capazes deixam colar as coisas que pensaram - como maté­
ria - sobre a matéria que não pensaram.

47
Aí permanecem, até que as primeiras tempestades põem a nu o que
era de prever: não existem.

48 01 textos por Álvaro Siza


013.1988 04 00 Viagens, Desenho

De súbito o lápis ou a bic começam a fixar imagens, rostos em


primeiro plano, perfis esbatidos ou luminosos pormenores, as
mãos que os desenham.

Escrito em Bóston. Pub. lntrod. Álvaro Siza. in Esquissos de viagem/


Travei Sketches. Documentos de Arquitectura, Porto, 1988. Pub. tb
in [E/ecta], p. 73, [Skira], p. 113, [UPC], p. 59, [Figueirinhas] e [Saint­
-Étiénne], p. 50.

Desenhos de Viagem

Nenhum desenho me dá tanto prazer como estes: desenhos de viagem.

Viajar é prova de fogo, individual ou colectivamente.

Cada um de nós esquece à partida um saco cheio de preocupações,


aborrecimentos, stress, tédio, preconceitos.

Simultaneamente perdemos um mundo de pequenas comodidades e


os encantos perversos da rotina.

Viajantes íntimos ou desconhecidos dividem-se em dois tipos: admirá­


veis ou insuportáveis.

Um bom amigo sofre verdadeiramente porque o Mundo é grande.


Jamais poderá permitir-se - diz - repetir uma visita; abala nervoso,
crispado, olhos a saltar das órbitas.

Por mim gosto de sacrificar muita coisa, de ver apenas o que imedia­
tamente me atrai, de passar ao acaso, sem mapa e com uma absurda
sensação de descobridor.

Haverá melhor do que sentar numa esplanada, em Roma, ao fim da tarde,


experimentando o anonimato e uma bebida de cor esquisita - monu­
mentos e monumentos por ver e a preguiça avançando docemente?

49
De súbito o lápis ou a bic começam a fixar imagens, rostos em pri­
meiro plano, perfis esbatidos ou luminosos pormenores, as mãos que
os desenham.

Riscos primeiro tímidos, presos, pouco precisos, logo obstinadamente


analíticos, por instantes vertiginosamente definitivos, libertos até à em­
briaguez; depois fatigados e gradualmente irrelevantes.

Num intervalo de verdadeira Viagem os olhos, e por eles a mente, ga­


nham insuspeita capacidade.

Apreendemos desmedidamente; o que aprendemos reaparece, dissol­


vido nos riscos que depois traçamos.

50 01 textos por Álvaro Siza


014.1988 1 O 00 Cidades, Viagens

As cidades fundadas pelos Portugueses na América do Sul,


ou na Índia, ou não importa onde, engastam-se em sítios
amáveis e ínexpugnáveís. O que se vai construindo convive
estreitamente com a Natureza. A sua geometria simples é um
complemento rigoroso, dependente e transformador. Não há
grandes caís, nem ruas muito largas, nem praça dos Poderes,
nem fronteiras construídas.

Pub. in [Electa], p. 74, [Skira], p. 120 e [Figueirinhas].

Brasil

Viajo de Buenos Aires a Lisboa, sob a impressão do enorme e compacto


tecido, malha de 144x144 metros poisada na planície, entre o mar e o
Rio da Prata.

Não consigo imaginar fim ou periferia; os limites serão os da necessi­


dade de crescimento. Cada novo quarteirão, clandestino ou planeado,
prolongará ruas igualmente animadas. O Rio da Prata é um espe­
lho grande e preguiçoso, via para a Europa que os Portugueses do
Uruguai não desperdiçaram, num acerto feito de intuição, experiência,
pequeno cálculo; clandestinamente, atribuladamente, de modo bri­
lhante e também precário, arruinando Cartagena das Índias - Veneza
Tropical, poder perdido, beleza asfixiante.

O avião faz escala no Rio de Janeiro. Sobrevoa a cidade o suficiente para


que eu diga: ao diabo os compromissos, é melhor parar. Vi do céu.

Estas cidades são como são pelo primeiro gesto: lugares escolhidos com
sabedoria antiga como a de um desenho espanhol (traçado de que as
regras se perdem no tempo, egípcias, gregas, romanas e medievais, re­
novadas pelo Código Filipino, arranha-céus e fragmentação incluídos sem
sobressalto). O gesto Português é mais brando mas igualmente definitivo.
Menos "construir tudo": o que a Natureza dá não precisa de ser feito.

51
Cálculo, preguiça, comunhão.

As cidades fundadas pelos Portugueses na América do Sul, ou na Índia,


ou não importa onde, engastam-se em sítios amáveis e inexpugnáveis.
O que se vai construindo convive estreitamente com a Natureza. A sua
geometria simples é um complemento rigoroso, dependente e trans­
formador. Não há grandes cais, nem ruas muito largas, nem praça dos
Poderes, nem fronteiras construídas. Os muros de suporte fundem­
se com rochas pontiagudas e enormes, montes sagrados, animais ou
esfinges. As praias são o coração da cidade, nada é sobretudo contí­
nuo, ou fechado, ou sistemático. A cidade é uma serpente em terreno
difícil ou ondulado. Há sempre uma encosta a amparar fragilidades
e arrogâncias da Arquitectura. Vale a pena reestudar esta forma de
construir. E é urgente: a intuição não explica nem ensina.

52 01 textos por Álvaro Siza


015.1988 1 O Arquitectura: Chiado (1)

Recuperação da Área Sinistrada do Chiado: dois meses após


o incêndio de 25 de Agosto de 1988.
Aparentemente não existe, para o Chiado, razão de profunda
mudança; isto é, tratar-se-á de uma recuperação sujeita a cor­
recções e a pormenores transformadores. A vontade de alguns
projectistas não tem possibilidades nem legitimidade para ultra­
passar, significativamente, o ritmo de evolução de uma cidade e
dos seus agentes de transformação, sob pena, bastantes vezes
experimentada, de fracasso ou de sucesso efémero.

Pub. in Revista Confidencial, Lisboa, e tb in [Skira], p. 183.

Pedem-me para falar do Chiado

Pedem-me para falar do Chiado; provavelmente de como deverá ser


- na minha opinião - a reconstrução dos dezoito edifícios destruídos
pelo fogo. Acontece que quase não tenho opinião, como quase não
tenho opinião sobre qualquer obra a realizar cujos problemas não co­
nheça com suficiente rigor.

É certo que um projecto parte sempre de uma ideia intuída, indepen­


dentemente do conhecimento mais ou menos profundo de objectivos e
de condicionantes. Mas dessa intuição só pode nascer uma subjectiva
(imperfeita, ou incompleta) partitura. No desenvolvimento dos temas
se vai conformando um apoio interior, subjacente, ao qual sempre se
regressa, mesmo se por oposição.

Mas não sendo um projecto de Arquitectura o mesmo que um concerto


de jazz - os meus "momentos" não são objectivo, mas meio -, seria
inútil e inconveniente falar de intuições, para lá do que já foi referido
num contexto de debate imediato e distante.

A_parentemente não existe, para o Chiado, razão de profunda mudança;


isto é, tratar-se-á de uma recuperação sujeita a correcções e a por­
_
menores transformadores. A vontade de alguns projectistas não tem

53
possibilidades nem legitimidade para ultrapassar, significativamente,
o ritmo de evolução de uma cidade e dos seus agentes de transfor­
mação, sob pena, bastantes vezes experimentc1pa; _dÉdrc1céls�9pu de
sucesso efémero.

Isto tem pouco a ver com formas, que são coisa que se desprende
sem dificuldade, ainda que com (demasiado) sobressalto; mas muito
com a responsabilidade e a legitimidade das decisões políticas, com a
competência alargada a todas as disciplinas.

No que respeita ao desenho, e como quase sempre acontece em


projectos de âmbito limitado, o essencial da sua d,efiniçã9 depende
das relações com as zonas envolventes, das margens, das zonas de
transição, aí onde se pode encontrar uma multiplicada vocação de
transformações; esses ignorados interstícios dos corpos da cidade.

54 01 textos por Álvaro Siza


016.198811 16 Cidades: Santiago (1), Família, Viagens

Tudo parecia construído para glorificação de dois ou três vultos


paralisados, peregrinos, satélites de movimento imperceptível,
mudos, os pés a dez centímetros do solo, sobre outra capa
provável.

Pub. in [E/ecta]. p. 75, [Skira], p. 127 e [Figueirinhas]

Santiago

A viagem de férias da família (em 1948?) incluiu Santiago.

Irei a Santiago, disse o meu pai. Rodeávamos a Catedral, uma praça e


outra, sequência de espaços e de níveis a descer a colina. Operários
refaziam os pavimentos e eu lamentava as pedras recobertas, in­
cómodas e antigas, cada uma preciosa como um Moore. Desgosto
esquecido, aí está o granito da Galiza, quarenta anos adoçaram ares­
tas e defeitos.

Uma das praças deixou-me transtornado, sem respiração. O que mais


me magoou foi aquela fachada quase sem nada, quase injustamente
magistral (parecia-me, enraivecido, como feita por ninguém). Um muro
enorme com janelas altas repetidas, nem mesmo regulares, grades
salientes, um banco corrido banal a não ser na mágica proporção. Um
muro em frente a preciosidades e preciosidades sobrepostas a não
sei que primeira pedra, parede de limite de praça monótorfa e vibrante,
oscilação entre nada e presença magnética. Tudo parecia construído
para glorificação de dois ou três vultos paralisados, peregrinos, satéli­
tes de movimento imperceptível, mudos, os pés a dez centímetros do
solo, sobre outra capa provável.

55
56 01 textos por Álvaro Siza
017.198811 19 Família

O ponto alto do serão, ano após ano, é a Ceia dos Cardeais. A


família aguarda ansiosamente as passagens arrebatadas que
conhece de cor. Todos os anos o tio solteiro improvisa um tro­
cadilho - igual e na mesma deixa - e a família protesta. (. . .)
Um dia um amigo da mesma idade segreda-me: não existe
Menino Jesus! Ganho um choque e o primeiro segredo, envolto
numa espécie de remorso.

Pub. in [E/ecta], p. 76.

Todos os Natais da casa da Avó

Mesa grande, toalha de linho, canja, bacalhau "inglês" com azeite


fervido, peru recheado, champanhe, fruta cristalizada, pinhões, raba­
nadas, formigas, arroz doce. E tâmaras.

Uma quantidade de tios e primos e irmãos, velas verdadeiras, vidros


autênticos na árvore de Natal, ao pé do presépio todos os anos au­
mentado. Sobressalto.

Depois da ceia e de muita conversa cruzada, a família distribui-se ge­


ometricamente pelas cadeiras da sala de visitas, cortinas vermelho
Ticiano, em frente a uma mesa de toalha especial. A tia professora de
piano - solfejo permanente atravessando as paredes da casa - toca
valsas e nocturnos de Chopin. Palmas. Nós na primeira fila. O Pai
canta o Prólogo dos Palhaços, bela voz de barítono, anima o velho vio­
lino, saído uma vez por ano da caixa cor de rato.

O ponto alto do serão, ano após ano, é a Ceia dos Cardeais. A famí­
lia aguarda ansiosamente as passagens arrebatadas que conhece de
cor. Todos os anos o tio solteiro improvisa um trocadilho - igual e na
mesma deixa - e a família protesta. Nunca saberei se existe indigna­
ção ou jogo de coro de teatro.

Mas os meninos estão encantados com a diferença daquele dia, de

57
vez em quando espreitam as excitantes actividades paralelas da sala
de jantar: apanhar migalhas, levantar toalha, arrumar os restos no
mosqueiro, em recipientes cobertos com panos de tecido branquís­
simo, varrer, cantar.

Na sala de visitas, o irmão mais novo, o menos inibido, declama o


Passeio de Santo António, poemas terríveis de António Nobre e Eugénio
de Castro, ou Almeida Garrett - As Asas Brancas, ainda não perdidas.

Depois, a Missa do Galo, muitos cumprimentos, todos os habitantes de


Matosinhos são vizinhos até metade dos anos quarenta.

No dia seguinte desembrulham-se os presentes do Menino Jesus,


mais almoço, mais jantar, mais visitas.

O médico da família, o senhor da Farmácia Moderna, parentes que


vejo uma vez por ano, amigos dos meus pais muito bem educados
(como estás crescido!).

Um dia um amigo da mesma idade segreda-me: não existe Menino


Jesus! Ganho um choque e o primeiro segredo, envolto numa espé­
cie de remorso.

Depois, parece que de repente, desaparece muita gente, e a mesa


grande, e as empregadas à volta, o segredo, o encantamento, as ca­
deiras alinhadas na sala de visitas e o livro de Júlio Dantas.

58 01 textos por Álvaro Siza


018.1989 04 00 Cidades

Sobre o trabalho no estrangeiro na década posterior ao 25 de


Abril de 1974.
É possível que as cidades que convidam arquitectos estran­
geiros deles esperem o oposto do que aí se faz, exorcizando
o conflituoso e fecundo cruzamento de culturas que o mundo
do trabalho protagoniza. (. . .). Mas tal não concede o desenho,
naturalmente, não lhe sendo possível senão agir nas margens
do que se move.

Pub. in A+U, Architecture and Urbanisme (Álvaro Siza, 1954-1988, Junho


1989. Pub. tb in [Electa], p.78, [Skira], p. 201, [UPC], p. 65, [Figueirinhas]
e [Saint-Étiénne], p. 32.

Outras Cidades

Os últimos dez anos de actividade profissional foram dedicados, pre­


dominantemente, a outras cidades que não a minha.

Cidades bem diferentes.

Rigorosa e variada Berlim - ruas severas de Kreuzberg, pedaços de


nascimento do movimento moderno, algumas obras de síntese bri­
lhante, fábricas monumentais, jardins, lagos, ruínas; Haia feita a régua
e esquadro, onde submersos obstáculos obrigam a torcer a quadrí­
cula, logo atravessada por longas diagonais; Caserta e a cavalgada de
Vanvitelli, estrutura horizontal sobreposta a montes e vales, rodeando
por quilómetros os jardins do Palácio; indescritível Nápoles, beira-mar
deserta nas manhãs de domingo, quando chega o barco de Palermo;
Salzburgo e as legiões de turistas idosos; Salemi, cidade para um filme
de Pasolini; ou Santiago húmida e negra e doirada; longos poentes de
Veneza, onde cada monumento é um detalhe; Macau de antiquíssimos
cruzamentos; Alcoy; Sevilha, eu sei lá.

Leio as críticas. Ouço da estranheza de não se encontrar em Berlim um


só dos delicados trabalhos de madeira de projectos anteriores; ou em

59
Macau os frágeis quarteirões do Porto (sobre que granito?). Por vezes a
culpa é atribuída aos arquitectos estrangeiros que comigo trabalharam,
aos quais, ao contrário, devo muito do que aprendi, e ainda apoio ines­
quecível, paciência no longo processo de um projecto, tradução do que
não se apreende imediatamente, como desejava e necessitava.

Pela minha parte, estranho que a poucos interesse, vindo de mãos de


outras terras, o encantamento dos mil cinzentos de reboco, ou do tijolo
enegrecido, dos grandes muros sem janelas, ou das esquadrias de ma­
deira de pesada secção; dos ritmos invariáveis de janelas, que só se
rompem, explodindo, no dobrar das esquinas, ou onde algo exterior à
Arquitectura acontece. Paciência.

É possível que as cidades que convidam arquitectos estrangeiros


deles esperem o oposto do que aí se faz, exorcizando o conflituoso e
fecundo cruzamento de culturas que o mundo do trabalho protagoniza.
Seria belo fixar as sínteses que se adivinham ou supõem, universalizar
as surpresas de luz que o sol do Sul concede. Mas tal não concede o
desenho, naturalmente, não lhe sendo possível senão agir nas mar­
gens do que se move.

Mantém-se o precário prazer de trabalhar com os maravilhosos arte­


sãos do Norte - estucadores, carpinteiros, pedreiros, esses pedreiros
que levantam padieiras de 5 m com três paus, e as poisam sobre os
vãos, cantando música antiquíssima, como no Egipto cantavam os
construtores de pirâmides. Igualmente satisfaz o trabalho com os me­
ticulosos operários da Holanda, emigrantes ou não, os que juntam
o que de forma programada a indústria produz. Ainda que afecte a
Arquitectura - e os arquitectos - a perda gradual do modo como eles,
com mãos que foram as nossas, lentamente, pacientemente, para
além do desenho transformavam.

A eles a minha homenagem.

60 01 textos por Álvaro Siza


019.1989 04 00 Outros Arquitectos: Gregotti (1)

Retrato breve de Vittorio Gregotti.


Vittorio apreende as coisas - e projecta - com a rapidez do
relâmpago. Depois espera, o corpo inclinado, ligeiramente di­
vertido, ligeiramente irritado com a demora. Cézanne.

Pub. in Gregotti Associalti 1973-1988 a cura di P. Colao i G.Vragnaz,


Electa, Milano, 1990, p. 339. Tb in [Skira), p. 87 e [UPC], p. 101.

Gregotti

Não consigo desenhar um retrato preciso. Só um momento, e outro


momento, em tempo de trabalho de equipa. Vittorio apreende as coi­
sas - e projecta - com a rapidez do relâmpago. Depois espera, o
corpo inclinado, ligeiramente divertido, ligeiramente irritado com a de­
mora. Cézanne.

Levanta o calcanhar de um dos pés, enquanto o outro poisa como a


sapata de um prédio. A perna vibra em oscilações verticais muito rá­
pidas, de ritmo constante, como a biela de uma locomotiva. O soalho
geme, uma vez por outra há um tinir de copos demasiado próximos,
esperamos tudo, um terramoto ou um bater de asas.

Chegamos finalmente a uma conclusão. Levanta-se, dois dedos no ar,


um sorriso de alívio.

61
62 01 textos por Álvaro Siza
020.1989 05 25 Arquitectura: Chiado (2)

É tudo igual? Há gente desiludida, as montras são monótonas,


diz-se, falta um toque de modernismo. Os que melhor vêem,
notam os caixilhos duplos e outras coisas, e mais ainda os que
lá vivem. Quem melhor vive não nota nada. Nem é preciso.

Pub. in Lotus Internacional N.º 64, 1989. E tb in [E/ecta], p.81, in [Skira], p.


185, in [Saint-Étiénne], p. 26, em Álvaro Siza 1986-1995, Editorial BLAU,
Lisboa, 1995 (dist. Portugal e Brasil), Editorial Gustavo Gili (distribuição
internacional) e em City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed.
Brigitte Fleck/Birkhauser Verlag, 1994, p. 158 e 164.

Chiado: O que é, o que será...

O que é
Ruínas. Fachadas descarnadas e buracos que libertam muros de
suporte antiquíssimos, bocas de misteriosas galerias. Um esqueleto be­
líssimo e incompleto, um objecto frio e abstracto, a revelar Lisboa. Uma
espécie de espelho que não reflecte. E gente apressada, ou gente a ver
pedras, gruas, operários.

O que pode ser


Plataforma de distribuição. Um patamar onde é imprescindível passar
e parar, uma aparição de onde se vê a paisagem. Chiado essencial,
enorme, sobre a Rua do Crucifixo.

O que não mais pode ser


Comovente, fascinante máquina onde o passado é presente, onde tudo
tem o encanto de um beco, pó doirado ao entardecer, grafittis desgasta­
dos, brilhos e fracturas, o encanto do kitsch e do fora de moda, do lixo,
dos ambientes asfixiantes, de droga e de uma entrevista sobre o Tejo.
Lápides com nomes esquecidos, colagens de estilo vacilante, saguão
abandonado com bichos e plantas esquisitos, decadência.
Saudade do que mal conheci. O Alçada Baptista vai contar tudo isso e
muito mais.

63
O que será
Igual ao que era? Há um toque de falsidade inevitável. Um ar de ma­
queta exposta ao Tempo, propositado, apto a diluir-se.

Na Rua Garrett, à esquerda e ao chegar ao Hotel do Chiado, nota­


se um portal magnífico em calcário, metal, madeira, vidro e espelhos.
Este portal abre sobre uma alta Galeria, e há luz ao fundo. Apetece
entrar, ainda que estejam ausentes néon, painéis publicitários, altifa­
lantes e marchas populares. Há luz natural, interrompendo a fachada
de sisudo desenho Pombalino, gente cruzando a Galeria, em contra­
luz; penumbra e reflexos.

Ao fundo reaparece a fachada do Hotel, híbrida e de novo alterada,


sem grande convicção, como anos atrás. Abre os braços e ergue a
cabeça que foi Igreja. Adivinham-se os mornos ambientes por de­
trás das cortinas. As janelas repetidas lutam de igual para igual com o
muro revestido a calcário, há porteiros fardados, moradores, homens
de negócio, casais, estrangeiros, vendedores de livros pornográficos,
bares, restaurantes, tapeçarias e doirados, música por detrás do silên­
cio. Nos andares superiores, as janelas nada revelam, a não ser um ou
outro hóspede que afasta a cortina e espreita, olhar inquieto. E esse
olhar enche o espaço.
Na Rua Nova do Almada passam multidões, uma torrente une a Escada
de S. Francisco à Escada Novíssima, desce a Rua do Crucifixo, subdi­
vide-se junto ao portal do Metropolitano - mármore negro e rosa sobre
as janelas libertadas, porta que não parece nova, rapidamente baça
e habitual.

A Rua do Crucifixo é menos cinzenta, há antiquários, barbeiros, bares,


floristas e papelarias. Bazares e, ao fundo, uma entrada do Hotel, auto­
móveis saindo de um parque de estacionamento, e o Grandella onde se
passa tudo, de cima a baixo, de um lado ao outro, até à fachada lumi­
nosa da Rua do Carmo - grandes vitrais entre esculturas refeitas pelos
vizinhos das Belas Artes.

É tudo igual? Há gente desiludida, as montras são monótonas, diz-se,


falta um toque de modernismo. Os que melhor vêem, notam os cai­
xilhos duplos e outras coisas, e mais ainda os que lá vivem. Quem

64 01 textos por Álvaro Siza


melhor vive não nota nada. Nem é preciso. E este portal? Um buraco
violento sem frente nem moldura, um buraco de repente, espécie de
funil incompleto envolvendo uma escada preciosa, antes do grande
desgaste, construtor de baleados incomparáveis e das estranhas man­
chas dos rebocos. No ar a ponte do ascensor, cidade alta adivinhada.
E a luz no fim da Galeria, cheia de verde e lilaz, como num quadro de
Malhoa; e vultos e cadeiras de bambu e bebidas de cor esquisita, o
peso dos muros de suporte.
Ao pôr-do-sol a gente que mora por cima abre as janelas, ou atravessa
o pátio do Carmo, sobe as rampas, pára nos patamares. A cidade vai
subindo devagar, e agora espreita, e logo rasga as cortinas - Tejo,
Paço, pobres quarteirões rigorosos, Castelo, Rossio. Explodem as ogi­
vas do Convento. Alguém recorda divertido, a outra previsão.

65
66 01 textos por Álvaro Siza
021.1989 07 00 Outros Arquitectos: Eduardo Souto de Moura (1)

Por esta e por outras obras, estará Souto de Moura maduro para
integrar o arquivo dos "talentos incomunicantes".
Alguma coisa, contudo, poderá introduzir a dúvida nos apolo­
gistas de uma pedagogia "mais transmissível", na Escola que o
formou: naquele arquivo vai-se reunindo, com excluente aplauso,
um número preocupante de obras de outros mais velhos, de ou­
tros da mesma idade e ainda outros, discípulos.
Parece, afinal, que os incomunicantes comunicam.

Souto de Moura

1. Para a quase totalidade dos membros do júri, contou-me alguém,


o projecto premiado constituía um mistério; poderia ser, dizia-se, de
algum arquitecto portuense anterior ao "lnquérito"1•

Houve perplexidade e alguma inquietação ao surgir, aberto o so­


brescrito, o nome de um recém-diplomado quase desconhecido. No
entanto, Souto de Moura havia já construído uma pequena habitação
no Gerês, obra logo consagrada pela crítica atenta (publicação em 9H
e Obradoiro).

Não surpreende esta reacção a um projecto "singular", atendendo à ideia,


já então bastante generalizada, de uma Escola do Porto caracterizada
pela correcção e pela uniformidade, em doses variáveis e convenientes
ao louvor, ou à condenação. Ideia confortavelmente sumária, que de­
pois viria a incluir a proclamação de algumas excepções, prontamente
arquivadas na gaveta "incomunicante excesso de talento".

1 O Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa foi publicado em 1961 pelo Sindicato Nacional dos
Arquitectos, com o título Arquitectura Popular em Portugal. A realização do trabalho, por encomenda do
Ministério das Obras Públicas, coube a equipas que integravam professores e estudantes das Escolas
de Arquitectura de Lisboa e do Porto. Esta publicação viria a ter grande influência no ensino e prática
da arquitectura em Portugal.

67
2. Enquanto estudante da Escola do Porto, Souto de Moura foi um dos
insatisfeitos com a orientação então dominante, a qual prolongava inde­
finidamente uma suposta ilegitimidade do "desenho", contraposto a uma
prática pedagógica orientada ao impulso de mudança social e política.
Não serei eu a repudiar esse momento da Escola, de que a coerência
escapa facilmente a uma apreciação duplamente distante; nem outros
que o viveram desconhecerão hoje a complementaridade de diferen­
tes vivências, de novo as confundindo com descomprometimento.
A prática dos anos posteriores à Revolução de 74, finalmente e por
instantes, viria a projectar a Forma das Contradições - luminosa, im­
perfeita, fecunda.

Foi então que Souto de Moura passou no meu escritório, colaborando


no projecto SAAL2 de São Victor e outros. Depressa compreendi, com
pérfido desgosto e msiior alegria, que não tinha colaborador para muito
tempo.

3. Observem-se os esquissos feitos por Souto de Moura quando, a


meu pedido, visitámos a obra.
O desenho é firme, esquemático e denso. Traduz a clareza da Ideia
orientadora do Projecto - tal como se apresenta, depois de concluído
este.
Ao desenhar, a sequência de aparecimento dos riscos foi recons­
tituindo, julgo que por ordem inversa, a construção dessa Ideia;
terminando onde havia começado, ao expor dependências e autono­
mia - a ser justa a minha interpretação.

De dimensão aparentemente reduzida, o edifício articula os elementos


contíguos - jardim, muros e casa oitocentista3 , torre de apartamentos
2 O Serviço Ambulatório de Apoio Local foi criado pela Secretaria de Estado da Habitação após a
Revolução de Abril de 1974, sendo Secretário de Estado Nuno Portas, e dissolvido em 1976. Garantia
o apoio técnico e jurídico ás Associações de Moradores então constituídas, para urgente melhoria das
condições de habitação.

3 A casa e o jardim adquiridos pela Secretaria de Estado da Cultura foram desenhados por Marques
da Silva, o mais influente arquitecto portuense da viragem do século. Formado em Paris, Prix de Rome,
Marques da Silva desenhou alguns dos mais importantes edifícios públicos do Porto e foi Director da
Escola de Belas-Artes. Quase todos os protagonistas do Modernismo Portuense foram seus discípulos
e passaram pelo seu atelier.

68 01 textos por Álvaro Siza


de recente construção, muros e espaços que a envolvem - tornando
intencional o que antes não o era.
Comporta, quando se isola em corpo inteiro e composto - do geral ao
particular - a escala apropriada ao desencadear de relações. Exclui
a condição de anexo, sem afectar a presença da casa-mãe; deter­
mina diferentes leituras de preponderância, sucessivamente evidentes
e precárias.

O sentimento que esta Arquitectura transmite é de serenidade. No en­


tanto, e por instantes, revela-se quase insólita. Creio que esta segunda
"natureza" da Arquitectura de Souto de Moura deve muito à comple­
xidade e singularidade da sua materialização: granito do Norte, tijolo
de fabrico artesanal do Sul, perfis de aço inoxidável importados, betão
descofrado de cores inesperadas, madeira africana intensamente
vermelha, equipamentos de iluminação e de condicionamento de ar
distribuídos sem preconceito, estuques com a execução primorosa
dos homens do Alto Minho.

Ninguém mais vejo querer e poder utilizar, em área tão limitada, uma
tão vasta gama de materiais, cores, texturas; multiplicam-se as juntas
- momentos de transformação do desenho.

4. O programa do Centro Cultural distribui-se por dois pisos de igual


superfície e de planta sensivelmente rectangular. O único acidente pla­
nimétrico corresponde à descontinuidade imposta a um dos planos
verticais, a qual determina o acesso ao edifício.

O piso térreo é ocupado pelos espaços de distribuição e de exposição,


em cujos topos se iniciam as rampas dos dois anfiteatros.

O piso inferior é longitudinalmente subdividido e engloba os anfiteatros


de dupla altura e as áreas de serviços. Desta distribuição de programa
resulta um volume contido, que mal se desprende dos muros de ve­
dação do jardim. Sobre este volume explodem os equipamentos. Os
alicerces tomam a forma subterrânea de uma ponte, sente-se, sob os
pés, o percurso das raízes das árvores.

69
Os planos rectangulares verticais e horizontais que modelam volume e
espaços internos relacionam-se por gradual transição, por juntas, por
ruptura, mantendo uma constante capacidade de autonomização.
As tensões resultantes evocam a componente neoplástica de um Mies;
a crítica a isso se tem referido, acentuando a novidade contemporâ­
nea desta influência. Mas evocam igualmente a materialidade e o peso
que, voluntariamente e antes, acompanham o impulso centrifugador
das casas usonianas de Wright.

Contudo, a articulação dos planos geométricos não tem aqui origem


num núcleo interior, como em Wright, a partir do coração - chaminé -
ou, de forma mais fluida, em Mies. Antes reage a episódios exteriores,
remetendo a um Mies contextual, que também existiu, envolvendo as
relações entre este e o Wright de Chicago.

É inevitável reconhecer a singularidade do percurso de Souto de Moura,


e também o que nele se explica pela formação académica, num con­
texto momentâneo de Escola entregue às grandes tarefas da Cidade
do Porto, entre fases intensas de extroversão e de introversão4 •

5. A revisita a Mies não constitui, para Souto de Moura, o simples


alargamento de referências exigido por uma geração mais inquieta e
menos preconceituosa, ou menos "espontaneamente heróica". Nesse
reencontro perpassa um lúcido e apesar de tudo apoiado percurso de
formação, que inclui o assumir de uma sequência de pesquisas indi­
viduais e colectivas, remetendo pelo menos, ou sobretudo, a algumas
obras portuenses do final dos anos 50 - particularmente à obra-chave
daquele período: o Pavilhão de Ténis da Quinta da Conceição de
Fernando Távora.

Por ordem inversa, como nos esquissos que antes referi, reconhecemos
- desmontada - a complexa construção das raízes da contempora­
neidade: internacionalismo proscrito, entusiasticamente apreendido

4 As equipes de arquitectura do SAAL integravam professores e estudantes das Escolas de Arquitectura


de Lisboa e do Porto. Essas equipes iniciaram projectos que, na Cidade do Porto, envolviam vastas
áreas do Centro Histórico e da Periferia.

70 01 textos por Álvaro Siza


dentro e fora da Escola e das fronteiras, ecos e participação no debate
do post-guerra, neorealismo, dissolução do CIAM, redescoberta mara­
vilhada da arquitectura vernacular, de Wright, de Aalto. Fundamentos
de uma arquitectura de ecleticismo comprometido, muito para além do
debate disciplinar, de que um crescente magnetismo potencializa os
fragmentos.

6. Por esta e por outras obras, estará Souto de Moura maduro para in­
tegrar o arquivo dos "talentos incomunicantes".
Alguma coisa, contudo, poderá introduzir a dúvida nos apologistas de
uma pedagogia "mais transmissível", na Escola que o formou: naquele
arquivo vai-se reunindo, com excluente aplauso, um número preocu­
pante de obras de outros mais velhos, de outros da mesma idade e
ainda outros, discípulos.
Parece, afinal, que os incomunicantes comunicam.

71
72 01 textos por AJvaro Siza
022.1990 08 09 Ensino, Desenho

As duas primeiras semanas foram difíceis: o carvão afiadís­


simo parlia, a meia tinta manchava, a bola de miolo de pão
agarrava-se ao papel ou aos dedos; os Deuses troçavam de
nós, distorcendo constantemente o sorriso sereníssimo, au­
mentando a altura da testa ou revolvendo tumultuosamente os
cabelos encaracolados.

Pub. in [Electa], p. 85 e in [Skira], p.18.

Manhãs entre os Deuses

Conheci o lsolino Vaz no verão de 49. A admissão a Belas-Artes passava


então por uma prova de desenho de estátua. Alguém me aconselhara a
tentar um período de aprendizagem no seu estúdio. Desenhava desde
criança, mas a técnica estava limitada ao lápis Viarco sobre papel
Costaneira, Almaço raramente, sob a direcção e ao colo de um tio que
não sabia desenhar. Depois de me exercitar em caixas fechadas e aber­
tas, cavalos de perfil e gatos frontais, sem idade para colo, orientara a
produção ao retrato: família e vizinhos disponíveis.
Confrontava-me subitamente com a obrigatoriedade de um salto qua­
litativo aterrador: do Viarco ao carvão e do Almaço ao lngres. As
primeiras dificuldades começaram com a procura do material acon­
selhável, correndo ao acaso e em vão as papelarias de Matosinhos
e do Porto. Mais tarde experimentei a fragilidade do carvão e a as­
pereza do papel. Definitivamente desmoralizado, apresentei-me no
atelier do lsolino Vaz, em frente à Quinta de Nova Sintra, no sotão de
uma dessas honestas casas portuenses, três pisos em cantaria e re­
boco cinzento, janelas de madeira de perfil elegantíssimo.
Fui admitido e iniciaram-se as aulas. Éramos quatro e passávamos as
manhãs entre Deuses e Imperadores de brancura imaculada. A janela
da sala abria sobre o Rio Douro. O sol, o verde dos campos, e um ou
outro solar semi-arruinado entravam por ali dentro, enquanto o lsolino
Vaz nos ensinava coisas inesperadas: como fixar o papel na pran­
cheta, como apagar traços errados com miolo de pão, como abrir um

73
branco cristalino, como semi-cerrar os olhos ou apreender, braço es­
tendido, as proporções exactas.
Tinha uma técnica de precisão impressionante: figuras nitidamente re­
cortadas sobre o papel, em linhas rectas, zonas de sombra delimitadas
por dois traços finíssimos, logo preenchidos pelo carvão deitado; rá­
pido afago, por vezes com o flanco da mão, produzindo uma meia tinta
de transparência absoluta sobre a textura inalterada do papel lngres.
As duas primeiras semanas foram difíceis: o carvão afiadíssimo par­
tia, a meia tinta manchava, a bola de miolo de pão agarrava-se ao
papel ou aos dedos; os Deuses troçavam de nós, distorcendo cons­
tantemente o sorriso sereníssimo, aumentando a altura da testa ou
revolvendo tumultuosamente os cabelos encaracolados
No fim da segunda semana o lsolino Vaz levou-nos à praia de Leça.
Não se falou em desenho. Jogamos a bola e corremos contra o vento,
até ao limite do fôlego. Deitados na areia, seguimos com olhos es­
pantados as passagens constantes e cadenciadas de um Mestre sem
fadiga, até que o céu e o mar se fizeram lilazes.
Provavelmente este exercício preparava uma nova aprendizagem:
como fixar o carvão, que sempre ameaçava seguir a brisa da janela
sobre o Rio Douro. Compramos um objecto incrivelmente engenhoso:
dois tubos de metal de 3 milímetros de diametro e 100 milímetros de
comprimento, articulados, para mais fácil transporte em caixa de car­
tão branco. Introduzia-se uma ponta no frasco de fixativo Legrand,
comprado na papelaria Azevedo; na outra soprava-se com brandura.
O sopro devia ser contínuo e de igual intensidade. Nas primeiras ex­
periências as superfícies sombreadas do carvão tornavam-se baças,
po�tilhadas por estranhas manchas orgânicas, ou empastadas, ou
brilhantes aqui e ali, ou amareladas, como verniz barato sobre as ma­
deiras da Rua da Picaria, ou como o papel de um cigarro sem filtro e
mal fumado.
O lsolino exemplificava. No contra luz da janela uma fina poeira doirada
poisava, mansamente, sobre Atletas, Imperadores, Deuses e Cortesãs.
Pouco a pouco, quase sem dar por isso, o carvão começou a não par­
tir, o papel a não manchar, o miolo de pão a manter a plasticidade, o
fôlego a aumentar. E a confiança. O Rio Douro tornara-se tranquilís­
simo, e assim a amizade entre nós. Todas as manhãs seguíamos os
altos muros de Nova Sintra, passávamos o posto de transformação

74 01 textos por Álvaro Siza


modernista, as janelas ritmadas da Escola do Barão, entre tílias, japo­
neiras e glicínias, pensando que talvez fossemos Artistas.
No dia do exame o lsolino Vaz levou-nos à Biblioteca de S. Lázaro.,
O Claustro estava cheio de gente "com habilidade". Pela porta entrea­
berta víamos os cavaletes de pinho, dispostos em torno de um tímido
Jovem Augusto.
Tiras pelo menos dezoito - disse-me o lsolino Vaz. Tirei bastante
menos, e também muito mais: ânsia de limpidez.

75
78 01 textos por Íwaro Siza
023.1990 03 00 Arquitectura: Malagueira (1)

Quinta da Malagueira: o que existia, o que poderia vir a existir


quando começassem as obras, à data em que foi escrito.
As coisas em ruínas dão forma às novas estruturas, trans­
figuram-se, modificam-nas. Como a cauda de um cometa
desprendem-se das catedrais. O mundo inteiro e a memória
inteira do mundo continuamente desenham a cidade.

Pub. in Crescer de uma Cidade, Álvaro Siza, esquissos, Roberto


Collovà, fotografias. Catàlogo da exposição na Galeria Labirinto, Porto,
Abril 1990. Pub. tb in [Electa], p.79, in [Skira], p. 177, in [UPC], p. 69, in
[Figueirinhas], in [Saint-Étienne], p. 68 e in L'Architecture d'Aujourd'hui,
Paris, n. 0 278, décembre 1991, p. 67. E in Álvaro Siza, Barrio de la
Malagueira, Évora, Enriço Molteni (Textos i documents d' arquitectura,
Éditions UPC, Universitat Politécnica de Catalunya).

Quinta da Malagueira

O desenho representa o arquitecto encarregado de projectar um ter­


reno contíguo à muralha de Évora. Observa e regista o perfil cristalino
da cidade. Provavelmente reflecte sobre o que irá sobrepor a esse per­
fil, como irá sulcar o solo de ruas, canalizações, energia.

Afluirão famílias, a ténue ordem existente será subvertida, destruídas


as culturas incipientes, ocupados os campos abandonados.

Os operários da construção civil hão-de substituir os grupos de ci­


ganos, desaparecerão da paisagem carcaças de automóveis, carros
obsoletos cobertos de lona esfarrapada, cavalos e cães esqueléticos,
carneiros, montes de lixo. O ruído das betoneiras invadirá os pátios
das ilhas de um só piso e o café, a tabacaria, a mercearia da rua prin­
cipal hão-de encher-se de forasteiros.

O arquitecto imagina o pó e os tripés dos topógrafos, os sobreiros tom­


bando de asas abertas, a crueza dos muros entre jardins e telhados,
mulheres de negro espreitando, sobressaltadas, por trás das gelosias,
mesas de engenheiros, calculadoras e computadores, economistas e

77
outros especialistas, a dor dos arqueólogos e dos historiadores e dos
sociólogos, as visitas dos políticos e dos críticos. O que imagina faz:
se presente e tomba sobre o chão ondulado, como um lençol branco .e.
pesado, revelando mil coisas a que ninguém prestava atenção: rochas
emergentes, árvores, muros e caminhos de pé posto, tanques, depósi-.
tos e sulcos de água, construções em ruínas, esqueletos de animais.

Tudo isto perturba de rugas e de superfícies abauladas as ideias sim­


ples. As coisas pobres e as casas tomam a dimensão de presença
viva, interrompendo os novos alicerces. Há um movimento helicoidal
em que se misturam acampamentos e salões, tudo é incipiente e pro­
visório, os tapumes encurtam a paisagem e as ruas novas são leitos
de lama.

As coisas em ruínas dão forma às novas estruturas, transfiguram-se,


modificam-nas. Como a cauda de um cometa desprendem-se das ca­
tedrais. O mundo inteiro e a memória inteira do mundo continuamente
desenham a cidade

78 01 textos por Álvaro Siza


024.1991 07 11 Reflexão

(. ..) passou de moda falar de "projecto participado", ou admitir


a bondade do conceito.
Não é em Portugal, mas noutros países, que a experiência por­
tuguesa é analisada sem preconceitos, como contributo que
interessa à resolução de problemas concretos e universais da
humanidade, e por isso à Ideia de Arquitectura.

Pub. in [Electa], p. 87

Miragaia

As equipas técnicas do Programa SAAL elaboraram, entre 1974 e


1976, inúmeros planos e projectos de construção e reabilitação de
áreas centrais e periféricas de algumas cidades, assumindo e inte­
grando nos métodos de trabalho adaptados a efectiva participação das
Associações de Moradores então constituídas.

Alguns desses planos e projectos denunciam evidentes fragilidades,


decorrentes das difíceis condições de trabalho e, também por isso, da
pouca experiência das equipas técnicas (a maioria dos intervenientes
era de estudantes ou de muito jovens arquitectos).

Por outro lado, a curta duração do Programa SAAL não permitiu a con­
solidação de um suporte teórico, em paralelo a ajustamentos e a uma
significativa concretização dos estudos em curso (viria a ser suspenso
em 1976, na sequência de violentas acusações, às quais se seguiu um
inquérito de conclusões nunca reveladas).

Pela escassez e pouco brilho das realizações, mas também e sobretudo


por comodismo e hipocrisia, a simples menção de "projecto participado"
é hoje e em geral associada a um juízo de deficiente qualidade, de incom­
petência ou oportunismo ou ingenuidade; decididamente não interessa
ou é considerada com suspeição pelos profissionais bem-pensantes.

79
Em resumo, e por diferentes razões, passou de moda falar de "projecto
participado", ou admitir a bondade do conceito.

Não é em Portugal, mas noutros países, que a experiência portuguesa


é analisada sem preconceitos, como contributo que interessa à reso­
lução de problemas concretos e universais da humanidade, e por isso
à Ideia de Arquitectura.

A divulgação cuidada do exemplar Plano de Miragaia (Porto), elabo­


rado no âmbito do Programa SAAL pela equipa dirigida pelo Arquitecto
Fernando Távora, e inexplicavelmente remetido aos arquivos, cons­
tituiria um oportuníssimo contributo para a divulgação de aspectos
fundamentais do debate cultural contemporâneo; contributo indispen­
sável a arquitectos e não arquitectos que associem transformação da
cidade, criatividade e direitos da totalidade dos cidadãos.

80 01 textos por Álvaro Siza


025.1991 1 O 00 Ensino

Depoimento sobre a imagem exterior da FAUP, Faculdade de


Arquitectura da Universidade do Porto, que se encontra entre
parêntesis no conforto do prestígio conquistado.

FAUP: imagem exterior

P edem-me um depoimento sobre a imagem exterior da FAUP. O pos­


sível relato sobre o que dela conheço.

A imagem é a melhor.

No entanto, em minha opinião, a Faculdade de Arquitectura encontra­


-se entre parêntesis.

É-me ingrato dizer isto, eventualmente menos justo, já que não me con­
sidero suficientemente informado nem estou envolvido no quotidiano da
Faculdade. O meu depoimento não reflecte mais do que uma impres­
são: uma outra imagem do exterior.

A actuação da Faculdade face a um relativamente inesperado sucesso


- sem dúvida conquistado de dentro-, face a uma imagem respeitável
(coisa nova e também respeitável), oscila entre o auto-convencimento
embaraçado e a demagógica auto-crítica (ou melhor, a crítica de cada
um ao "outro"). A Faculdade recebe unitariamente, embora de forma
ambígua, o aplauso e o reconhecimento; divide-se nos momentos de
necessária reflexão e acção.

Há uma clara demarcação de cada um, um incontido mal-estar na luta


pela(s) sobrevivência(s). Importante, aparentemente e colectivamente,
é não pôr em causa aquela imagem de instituição bem comportada,
aceite - não sem reservas - por uma Universidade onde se cruzam
conformismos e preconceitos. Uma boa parte do comportamento re­
cente reflecte a passividade necessária à limpidez daquela imagem.

81
As recentes decisões sobre o curriculum da Faculdade são de recurso
e de adiamento, embora, como seria de esperar, inteligentes1 •

A participação em decisões fundamentais, no que se refere a instala­


ções e à sua inserção no pólo 3 e na cidade, é tão prudente que se
transforma, na prática, em quase ausência, apenas interrompida em
momentos de crise total2.

A recente participação na Bienal de Veneza, como uma das poucas


escolas para isso seleccionadas, foi por demais improvisada e exte­
rior à vida escolar; ou pelo menos envolveu-a de forma extremamente
limitada. O contacto com o exterior, pela aceitação e elaboração de
projectos participados por alunos (alguns e poucos) não chega para
ultrapassar o clima paroquial predominante, contribuindo para agravar
o fosso existente entre eleitos e não-eleitos.

A acção dos estudantes, única constante sólida, porque ultrapassa o


tempo, na contínua corrente das gerações, manifesta-se agora pela
marginalidade, não contaminando a instituição.

Não existe contestação que não percorra os caminhos de um elitismo po­


eticamente distante. O prestígio renova-se pelo improviso, a ausência de
fantasmas transforma-se em fantasma, a facilidade conduz a dificuldades,
e vice-versa, o realismo ao elitismo e a contestação ao conformismo.

Digamos que a Faculdade se encontra entre parêntesis, no conforto


do prestígio conquistado.

1 A passagem do estágio para o 5° ano elimina-o automaticamente, resolvendo por um ano, da forma
mais embaladora os problemas resultantes da falta de docentes e do aumento de discentes evitando
enfrentar o previsível progressivo agravamento dos mesmos.

2 As novas instalações estão em fase de acabamentos. Não se conhece, contudo, o traçado das vias
de acessos e das intra-estruturas, nem os limites do terreno adstrito à Faculdade. É por isso previsível
que, terminado o edifício, ele não possa funcionar em condições normais. É igualmente previsível o
seu incorrecto dimensionamento (programado para um máximo de 500 estudantes, já neste momento
esse número está largamente ultrapassado, sem que haja medidas tendentes a uma possibilidade de
ampliação). A Faculdade de Arquitectura, em tempos chamada a assessorar a Universidade, na sua
especialidade e para o pólo 3, não é ouvida nem se faz ouvir.

82 01 textos por Álvaro Siza


026.1991 12 31 Arte, Apresentação

De tanto sabe, que alguns não acreditam. Um curriculum se


necessário interminável, inacreditável para as Academias.
Paciência.
Mas para além disso desenha - isso sim - como um extra­
-terrestre.

António Quadros

O António Quadros é um desses homens que raramente aparecem. Uma


espécie de extra-terrestre, que enche uma geração, sem a ela pertencer.
Sabe coisas que ninguém imaginaria aprender: de abelhas, veladuras,
poemas épicos virados do avesso, de métodos de ensino, cerâmica, de
como a colorir, e o vidro, de como construir casas, e coisas, etc..

De tanto sabe, que alguns não acreditam. Um curriculum se necessá­


rio interminável, inacreditável para as Academias. Paciência.

Mas para além disso desenha - isso sim - como um extra-terrestre.

Do fundo nebuloso das suas pinturas, lentamente, misteriosamente,


tomam forma rostos, asas, pássaros inteiros, animais nunca vistos, cruza­
dos, como os inventávamos nos anos 60: mochos-gatos, macacos-cães,
que sei eu. Cada fragmento se pode tornar um quadro inteiro, ou logo
voltar à placidez de paisagem.

De novo nos debruçamos sobre o que escreve: denso, e tão simples


que não parece do A. Quadros, o que esconde o que é, sem cálculo,
sob uma ironia ou um sorriso distante.

E enquanto escrevo: que coisa nova terá feito o A. Quadros?

83
84 01 textos por Álvaro Siza
027 .1992 01 00 Reflexão, Outros Arquitectos

O conceito de "orgânico" em arquitectura: relacionamento en­


tre todos os elementos da construção, de tal modo que o todo
e as partes se geram e influenciam mutuamente.

Pub. in [E/ecta]. p. 88 e in [Skira], p. 96.

Frank Lloyd Wright

Interessa-me o conceito de orgânico em arquitectura no sentido que


Frank Lloyd Wright propõe: relacionamento entre todos os elementos
da construção, de tal modo que o todo e as partes se geram e influen­
ciam mutuamente. Sincretismo e não pressupostos formais.

Numa época em que cada vez mais aqueles elementos são norma­
lizados e prefabricados, a arquitectura exige um distanciamento da
continuidade de material, ou das transições suaves. O relacionamento
entre materiais e formas autónomos é sincopado e inclui rupturas,
como acontece em (algumas) arquitecturas ditas desconstrutivistas.

A síntese entre expressionismo e racionalismo alimenta a reflexão e a


produção contemporâneas.

85
86 01 textos por Álvaro Siza
028.1992 03 03 Outros Arquitectos: Pep Bonet

A qualidade do Palau d'Esports de Granollers e os equívocos


da integração.
Pep Bonet propõe, simultaneamente, a concentração no espec­
táculo - através do emocionante e simplíssimo envolvimento do
recinto - e uma ampla margem de liberdade de uso.

Pub. in Palau d'Esports de Granollers, Ayuntament de Granollers,


Granollers, 1992. E tb in [Skira], p.73.

Pep Bonet

1. Deixamos a auto-estrada, entramos numa recta sem fim, ladeada


por construções isoladas de implacável geometria, volumes elemen­
tares ocres que as janelas e as portas não afectam, cobertos por
telhados de duas águas.

Já tinha visto essas casas, dispersas na paisagem. Agora aproximam-se.

Granollers existe no prolongamento dessa dispersão; nasce de um aden­


samento de ruas e de volumes, malha ortogonal sem limites precisos.

2. Alguns equívocos existem quanto ao tema "integração".

Não poucas vezes, a ideia de bondade contextual está ligada à cidade


histórica: diálogo imediato, directo, dentro de um tecido compacto e de
estilos.
Essa ideia não contempla situações de periferia; ou melhor, de recente
nascimento de urbanidade.

No interior desse equívoco poderá ser discutível a proposta de Pep


Bonet. Objectivamente, o aparecimento do compacto, aparentemente
insensível volume do Palau d'Esports, recuado em relação ao alinha­
mento da rua, reactivo ao que o poderia contaminar, e também distante,
é a resposta absolutamente exacta e proporcionada à medida do pro­
grama e à sua capacidade de relacionamento e de singularidade:

87
de regeneração, fixando e dando sentido ao que era simplesmente dis­
perso e denso.

Este é o aspecto fundamental da proposta de Pep Bonet e o que para


mim justificou, antes de mais, o voto de selecção.

É extremamente gratificante ver confirmada a qualidade intuída. Cabe


pois verificar, por leitura do construído e para além daquelas considera­
ções, algo do mais que possa explicar a qualidade do Palau d'Esports
de Granollers

3. É uma dessas plantas que de imediato aparecem como inevitáveis;


nenhuma angulação, ou círculo, ou perfil, aparecem como capricho: aí
estão, longe de qualquer facilidade.

A qualidade do edifício, no que se refere à inserção na cidade, deve­


se, antes de mais, ao assumir da sua autonomia enquanto objecto
singular, compacto volume com três enormes portas sobre a rua.
Revela uma sabedoria tipológica seguramente em crise, mas ainda
assim indispensável; juntamente com uma pesquisa paciente e exi­
gente e secretamente apaixonada, no que se refere às apetências de
comportamento e de utilização.

Pep Bonet propõe, simultaneamente, a concentração no espectáculo


- através do emocionante e simplíssimo envolvimento do recinto - e
uma ampla margem de liberdade de uso. Imaginamos o espectáculo
em curso: gente magnetizada e gente que se distancia e convive nos
claros espaços de distribuição, nos espaços de apoio meticulosamente
colocados e desenhados com a largueza devida.

O fio condutor desta clareza, desta disponibilidade e aparente simplici­


dade, desprende-se do cuidado estudo e coordenação das instalações
complexas que um edifício deste tipo exige.

Percorremos as vias de infraestruturas, sob a cobertura, sobre o tecto,


subterrâneas. Os maravilhosos intestinos, a cabeleira de cabos e de
tubagens deste grande organismo, labirinto iluminado, gerador e de­
pendente da forma.
Deixamos Granollers. Os volumes geométricos afastam-se, diluem­
-se. De novo a auto-estrada.

88 01 textos por Álvaro Siza


029.1992 04 00 Outros Arquitectos: Adalberto Dias (1)

Sobre uma pequena obra-prima (primeira) de Adalberto Dias.


Um "buraco" invisível aos que passam de automóvel, revelado
a alguém que se debruce sobre o parapeito do portão; igual­
mente não visível desde a casa, ou esta inversamente.
Essa incomunicabilidade visual favorece a sensação de espa­
ço amplo e variado, no interior do lote.

Pub. in [Skira], p. 70.

Um primeiro trabalho de Adalberto Dias

1) Consultei as fotografias e desenhos do Arquivo de Adalberto


Dias, as publicações existentes e a memória das visitas a algumas
das suas obras. Senti de imediato o desejo de conhecer esta pe­
quena obra prima, no duplo significado da expressão.

2) A Aguda é uma pequena povoação, integrada no contínuo cons­


truído a Sul do Porto e ao longo da costa, predominantemente
constituído por moradias de veraneio, por pequenos conjuntos agrí­
colas e, mais recentemente, por habitações permanentes.
À margem da Estrada Nacional, num lote de acidentada topografia,
construiu-se em 1960 uma destas habitações.
É obra de desenhador, bem no centro de uma plataforma ajardinada
e ao gosto da época: cobertura em telha com duas águas balança­
das, paredes brancas, cortadas por alguns panos em pedra rústica,
aproveitamento das ondulações do terreno.

Junto à entrada, vinte anos depois redesenhada por Adalberto Dias


- portões em madeira de mutene enegrecida pelo tempo e pela
maresia - o terreno desce subitamente, de um e de outro lado da
estrada. Um viaduto em pedra ultrapassa esta depressão, provo­
cada por uma linha de água que atravessa, em direcção ao mar, os
campos cultivados que restam. No seu percurso, o ribeiro constitui

89
o limite norte do lote; na outra margem, eleva-se de novo e rapida­
mente até à cota da estrada.

3) A intervenção de Adalberto Dias refere-se ao desenho do portão,


à ainda não concluída recuperação e adaptação de um moinho em
granito, há muito desactivado, e ao arranjo do terreno entre a linha
de água e a plataforma da casa.
Uma intervenção delicada e contida, no entanto capaz de regene­
rar um fragmento de paisagem a um tempo dramático e de grande
serenidade.
Um "buraco" invisível aos que passam de automóvel, revelado a al­
guém que se debruce sobre o parapeito do portão; igualmente não
visível desde a casa, ou esta inversamente.
Essa incomunicabilidade visual favorece a sensação de espaço
amplo e variado, no interior do lote.
A depressão transforma-se num refúgio, num recanto secreto, dificil­
mente acessível, de repente longínquo. Neste refúgio há paz e poesia,
desaparece milagrosamente a degradação das cotas altas.

4) O ribeiro divide-se em dois braços, ao encontrar o velho moinho.


Um deles precipita-se em cascata, fazendo-o mover; o outro segue
o escavado leito, sob o viaduto e até ao mar.
O percurso da água, em diferentes leitos, passando pela calma
de um espelho de água, é um dos temas centrais do desenho, e
constitui uma de várias operações rigorosamente delimitadas, com­
plementares e inscritas com admirável essencialidade:
1 ª operação: remoção do aterro que ocultava o moinho e recupera­
ção da respectiva estrutura;
2 ª operação: regularização do terreno e criação de plataformas de
nível, contidas por muros em granito de cuidado e di­
versificado aparelho;
3ª operação: consolidação de um percurso por escadas, vencendo
o desnível entre a cota do curso de água e a plata­
forma superior, correspondente ao acesso ao terreno.
Esta escadaria compreende um amplo patamar inter­
médio, rematando o volume recuperado do moinho:
4ª operação: aproveitamento de água de mina, compreendendo

90 01 textos por Álvaro Siza


fonte desenhada com a mais estrita economia e tan­
que natural, dominado por uma afloração rochosa,
perfurada para não interromper o percurso da água
até ao ribeiro;
ª
5 operação: plantação de árvores, acentuando a delimitação do
lugar, determinada pela sua topografia e pelos ajusta­
mentos realizados;
6ª operação: ligeira modelação da plataforma relvada de maior área,
pelo assentamento de um banco de leitura em granito.

5) Subo a escadaria e torno à estrada. É domingo. As famílias abor­


recem-se, numa longa fila de automóveis, escutando algum relato
de futebol. Tenho a sensação de haver abandonado há muito tempo
um jardim de paraíso, uma miniatura de harmonia entre natureza e
construído, um oásis da regeneração possível. Essa harmonia re­
sulta de um grande sentido de medida, de proporção, de grau de
expressividade; da recusa do excesso ou da timidez.
Qualidades surpreendentes numa obra primeira, que Adalberto Dias
vem confirmando em posteriores projectos.

91
92 01 textos por Af-laro Siza
030.1992 04 00 Arte, Família, Desenho

Sobre os desenhos de Maria Antónia Siza.


(. . .) Nascimento, plenitude, morte (. . .). Risco com gozo e raiva.
(. . .) espera do instante no deserto.

Pub. in Catálogo da Exposição Maria Antónia Siza 1940-1973 desenhos


(oitenta e dois desenhos) 8 a 27 de Novembro de 2002. Ed. Árvore e
ASA Editores li, Porto, 2002, p. 22

Exposição de Maria Antónia Siza

Uma noite, de repente, depois de meses de silêncio, apetecia-lhe dese­


nhar. Tomava uma peninha, a delicada pena de Nankim que então se
usava, uma espécie de bisturi de alta cirurgia, afiado, duro e elementar.
Pressionada, a fenda por onde escorria a tinta abria-se, o traço adqui­
ria inesperada espessura.

Quantidades de folhas A4 enchiam-se de seres maravilhosos, seres


belos e sofredores, ou irónicos, ou simplesmente alegres. Os olhos de
cada um e as mãos, os nervosos tornozelos e a roupagem exposta a
vários ventos - contavam histórias.

Se quisermos fixar esses olhos e esses gestos, então encontramo-nos


a nós próprios, como raramente o desejamos; pois essa é uma experi­
ência tão fascinante quanto dolorosa. Definitivamente reveladora.

Ao fim de algumas horas, a mesa de vinhático estava cheia das nossas


vidas, e as dos outros, de todos os tempos: sofrimento e entusiasmo e
desejo e alegria desbordante, por vezes. Nascimento, plenitude, morte.

Sempre o discurso em torno da criação andou de mãos dadas com a


injustiça, com a incompreensão ou a repressão: seres que exprimem,
e então explicam, aparentemente sem trabalho, quase a brincar, o que
sentimos e o que fazemos.
Risco com gozo e raiva.

93
Esse dom é o resultado de uma concentração total, da espera do ins­
tante, no deserto.

Por vezes esse instante queima.

94 01 textos por Álvaro Siza


031.1986 07 00 Móveis, Design, Desenho

O objecto perfeito será um espelho sem moldura nem lapidado


- o fragmento de um espelho - poisado no chão ou encostado
a um muro.

Pub. in Arquitectura (Madrid), n.º 261, juliol-agost, 1986, p. 80 e Quadems


d'Arquitectura i Urbanisme (Barcelona), n.º 169-170, Abril-setembre 1986,
p. 79. Trad. Alemã in Álvaro Siza, Brigitte Fleck, Basileia, Birkhauser,
1992, p. 42. Pub. tb in (Skira], p.51, (UPC]. p. 37 e [Saint-Étiénne], p. 54.
E in Álvaro Siza, Móveis e Objectos, ed. Figueirinhas, 2003 (bilingue,
português e inglês) (sem numeração de páginas).

Sobre a dificuldade de desenhar um móvel

1) Arquitectura: uma árvore aqui, uma casa acolá, ou um templo, um


monte à direita, ou planície, mar, rio, uma ponte, perfil regular desta
rua, a irregularidade de outra, cor, ritmos, clima, este cliente, fotografia
amarelecida, pergaminho, poder, marginalidade.
Não como matriz. Provocação, logo vocação de distorcer, de
transformar.
Desejo, lentidão, destruição, desprendimento, construção.

2) O desenho de um móvel não pode ser senão definitivo.


Não há referências fixas de escala, de ambiente, de necessidade.
Existe o corpo, que se transforma tão lentamente que pode usar ca­
deira egípcia.
Despidos os objectos, existe a história de meia dúzia de formas.
A imaginação voa entre essas formas, a baixa altura, se descontarmos
aprendizes impacientes.

3) É preciso saturar o desenho de íntima segurança, serenidade, al­


guma coisa do incompleto que é, alguma instabilidade para que algo
receba do que o rodeia - assim se transformando. Para que não se
desfaça e nada desfaça, subitamente inundando o espaço, logo tor­
nando ao anonimato.

95
4) O objecto perfeito será um espelho sem moldura nem lapidado - o
fragmento de um espelho - poisado no chão ou encostado a um muro.
Nele um míope observa formas, sombras em movimento, reflexos de
reflexos.
Assim se alimenta o desenho.

96 01 textos por Álvaro Siza


032.1992 04 01 Outros Arquitectos: Gregotti (2)

Entre as grandes estruturas implantadas ao longo do Rio Tejo,


bem na base das Colinas de Lisboa, o C. C.B. iniciou o seu
discurso.

Pub. in Domus n.º 378, Maio de 1992. E tb in [Skira), p. 87.

Outro italiano em Portugal

1) Vem de séculos a presença de obras de arquitectos italianos em


cidades portuguesas, do Norte ao Sul do País; algo do carácter des­
sas cidades se deve, directa ou indirectamente, a essa presença. Para
mencionar um exemplo evidente, não é possível imaginar o poderoso e
volátil perfil da cidade do Porto sem a participação de Nicolau Nasoni.
Por outro lado - e volta a ser oportuna a referência a Nasoni - o dese­
nho de alguns desses arquitectos, sobretudo os que se instalaram em
Portugal, é claramente sensível ao "meio" e aos meios no interior dos
quais lhes coube actuar; criando escola, precisamente porque nele
souberam incorporar a cultura, os materiais e os hábitos de trabalho
que encontraram.

Parece que não existiam noutros tempos os fantasmas da "perda de


autonomia cultural" que afligem um sem número de europeus.

2) A entrega do Centro Cultural de Belém a uma associação de Gregotti


Associatti e RISCO é feita por concurso, desenvolvido em duas fases
e por escolha de um júri de muito prestígio.

A primeira polémica das muitas que cruzaram o processo de constru­


ção do C.C.B. acontece de imediato, julgo que por um dos equívocos
que persistentemente acompanham o debate contemporâneo em torno
da Arquitectura, a saber: quando se constrói uma grande estrutura ur­
bana, um edifício institucional de potente intervenção na cidade - pelo
significado, pela dimensão e pelas transformações que deve gerar
- desejam alguns que ele seja, tal como o sapatinho de Cinderela,

97
grande por dentro e pequeno por fora. Por vezes os fazem enterrados.
Paradoxalmente, e com bastante aplauso, não poucos arquitectos não
resistem a transformar qualquer "célula de tecido" (por vocação, salvo
momentos de ruptura, oportunidade inestimável de uma reconstrução
do anonimato) em objecto singular, ou pretenso monumento.

Mas não pode haver monumento sem tecido compacto e repetitivo.


Um e outro valem pelo sentido de proporções, pedra de toque da
Arquitectura.

Aí estão os monumentos de Lisboa - grandes estruturas de rigorosa


geometria e vãos de ritmo implacável (monótono?) em enormes pla­
taformas contidas por muros de suporte, erguendo-se de um casario
que acompanha meticulosamente os acidentes topográficos.

3) A disponibilidade de Vittorio Gregotti para o concurso do C.C.B. re­


flecte, como ele próprio destacou em longa entrevista a "Expresso",
um interesse já demonstrado pela cultura portuguesa, um conheci­
mento e uma atracção profundos, não só no que à Arquitectura se
refere. Razões culturais e julgo que também biográficas.

A associação com RISCO, gabinete de Lisboa dirigido por Manuel


Salgado, tinha precedentes num projecto de 1974 para Setúbal, infeliz­
mente interrompido.

Não seria de esperar desta associação, sendo como é conhecida a


actividade dos dois grupos projectistas, uma resposta tímida ao pro­
grama, nenhuma solução de mal compreendido contextualismo ou de
epidérmica exposição de acenos à envolvente.

A implantação adoptada, a compacta volumetria, e a subdivisão em


módulos separados (ou ligados) por arruamentos perpendiculares à
margem do rio; a variação do perfil longitudinal destes arruamentos, de
modo a atingir as cotas necessárias e onde necessário; a interligação
dos módulos por um espaço - percurso, segundo o eixo longitudinal do
complexo e composto de diferentes episódios arquitectónicos; a varia­
ção de cércea apenas onde pudessem coincidir necessidades internas

98 01 textos por Álvaro Siza


e relações urbanas fundamentais; e ainda a equilibrada distribuição de
pátios e lanternins e a sistematização dos vãos de iluminação, são,
entre outras, as opções fundamentais para caracterização do C.C.B..
Estas diferentes opções têm como elemento determinante a implanta­
ção adaptada, a qual alinha a fachada de recepção, a Nascente, pelo
cunhai oeste do Mosteiro dos Jerónimos. O C.C.B. transforma o am­
bíguo vazio da Praça do Império em espaço urbano legível; e é de
esperar que o prosseguimento do trabalho venha a permitir o relacio­
namento e regeneração do fragmentado tecido dos terrenos a Norte.

4) O grande espaço em torno da Fonte Luminosa sobrou do desmonte


da Exposição de 1940, dita do Mundo Português. A Praça do Império
foi então rodeada por edifícios provisórios de grande presença, a
Nascente e a Poente, alinhados pelos cunhais extremos do Mosteiro
dos Jerónimos, de modo a enquadrar a abertura sobre o Rio Tejo.

Não é basicamente diferente a solução agora adaptada; só que com


outra solidez e rigor, como cabe a uma ocupação definitiva. Se a dis­
tribuição dos pavilhões e monumentos de 1940 era fragmentada e
não ultrapassava a condição do que é temporário, a implantação e a
volumetria agora desenhadas procuram um sistema de relações con­
sistente, manifestado não só por alinhamentos de fachada e pelos
enfiamentos das ruas transversais sobre a encosta e o Rio Tejo, mas
ainda e sobretudo pela implantação do único volume que rompe sig­
nificativamente a regularidade da cércea (refiro-me à caixa de palco
do grande auditório, alinhada, segundo uma diagonal, com a Torre de
Belém e uma cúpula do Convento dos Jerónimos).

Para quem não adira às interpretações metafísicas que se manifestaram


negativamente, este alinhamento é legível e eficiente, ao pontuar a massa
construída, agora compacta, com elementos de dimensão e expressão
adequadas, interiores ou exteriores ao projecto.

Igualmente de referir é a composição da frente sobre a Praça do


Império, basicamente simétrica, com duas rampas laterais de acesso
ao terraço de recepção do 2 º piso. Este terraço, que cobre a entrada
ao nível da Praça, está alinhado pela Fonte Luminosa, assim definindo
o eixo longitudinal do complexo.

99
Este eixo interliga os cinco módulos projectados, respectivamente, de
Nascente para Poente:
1 ° módulo: Centro de Congressos, neste momento ocupado pelas ins­
talações da Presidência Portuguesa da Comunidade.
2 ° módulo: auditórios, dos quais um projectado e equipado para repre­
sentação de ópera.
3° módulo: Centro de Exposições.
Estes módulos estão já concluídos, encontrando-se em fase de pro­
jecto os dois restantes, a saber:
4° módulo: Hotel para 150 quartos, integrando um palacete do século
XVIII.
5° módulo: zona comercial e cinemas.

A construção destes dois módulos é sem dúvida fundamental para a


estratégia do projecto, na medida em que completam uma sequência
intencional de temas, contidos numa firme unidade de desenho e dife­
renciados pela intensidade expressiva e pelo grau de relacionamento
com o tecido envolvente.

Assim, o 4° e 5° módulos destinam-se a programas de utilização mais


aberta e integradora, de horários diferenciados, e por isso se carac­
terizam por uma relativa fragmentação, quando comparados com os
três primeiros.

Propõem-se, portanto, dois conceitos diferentes para os limites Nascente


e Poente do complexo, por transformação gradual da ideia geradora do
projecto: a Nascente, uma presença de forte autonomia, determinando
a consolidação do espaço Praça do Império, mas também dele depen­
dente; a Poente, uma articulação com o Bairro do Bom Sucesso que
compreende fragmentação e absorção de um edifício pré-existente.

5) O reencontro da Cidade de Lisboa com a Zona Ribeirinha, tema


urbano emergente, começou com a segurança necessária, com a in­
dispensável capacidade transformadora e contaminadora.
Partindo de um programa pouco definido, talvez inevitavelmente, o
C.C.B. reúne a clareza de expressão, a flexibilidade e a capacidade
de indução.

100 01 textos por Álvaro Siza


As polémicas que acompanharam a obra1 dão lugar à tranquila aceitação
de um monumento na cidade, à descoberta de alguns episódios maio­
res da Arquitectura de hoje: a poderosa torre do auditório, o pátio ou os
luminosos, amplos e ordenadores espaços do Centro de Exposições.
Entre as grandes estruturas implantadas ao longo do Rio Tejo, bem na
base das Colinas de Lisboa, o C.C.B. iniciou o seu discurso.

1 Para além do debate político em torno do C.C.B., muito se falou de desrespeito em relação ao
Mosteiro dos Jerónimos, possivelmente o mais emblemático monumento do património nacional. A
concepção da belíssima Igreja do século XVI, uma igreja-salão de inspiração alemã, é do francês
Boitaca, autor em Portugal de obras notáveis, com posteriores intervenções dos portugueses João de
Castilha e Diogo Torralva, ou de Nicolau Chanterenne e de João de Ruão, ambos de origem francesa.
A destruição provocada pelo Terramoto de 1755 deu lugar á total reconstrução da ala sul, em 1820 e
em Estilo Neo-Manuelino, segundo o tímido desenho do italiano Cinatti e do português Carvalheira. O
Mosteiro dos Jerónimos inclui o muito bom e o muito mau, por adição e alinhamento desamparado; para
além disso, e nos anos dourados do País, é demonstração de desinibida consciência de virtudes e de
carências, de abertura de espírito. De cultura.

101
102 01 textos por Álvaro Siza
033.1992 07 00 Outros Arquitectos: James Sterling, Homenagem

Para James Stirling, o Modernismo era simplesmente um episódio


mais da História da Arquitectura,

Pub. in Jornal deArquitectos, 1992. E tb in [Skira], p. 94 e [UPC], p. 107.

James Stirling

Para James Stirling, o Modernismo era simplesmente um episódio


mais da História da Arquitectura. Na hora da viragem, da ansiosa de­
marcação, ele recolheu minuciosamente, numa síntese brilhante e
instável, os mais diversos elementos da sua herança; a começar pela
complementaridade, pelo cruzamento entre o trabalho da máquina e o
trabalho do artesão.

A obra-prima que é a Biblioteca da Universidade de Cambridge abre


todos os caminhos post-modernos - e fecha qualquer concepção do
Post-modernismo como oposição ou negação do Modernismo.

Demorou tempo a ser compreendida esta mensagem, construída em


autenticidade total.

Durante esse tempo, a obra de Stirling percorreu os caminhos da liber­


dade: da continuidade, ancorada a um Mundo feito de Mudança.

103
104 01 textos por Álvaro Siza
034.1992 09 00 Apresentação

Apresentação de K. Frampton numa Conferência na Faculda­


de de Arquitectura da Universidade do Porto.
O pensamento e a proposta de Frampton têm sido referidos
à designação "regionalismo crítico", atingindo uma dimensão
polémica que atravessa, com energia e continuidade, o debate
arquitectónico contemporâneo.

Pub. in [Skira], p. 92.

Kenneth Frampton

O conferencista de hoje é o Professor Kenneth Frampton, Chairman na


Escola de Arquitectura e Planeamento de Columbia, New York, arqui­
tecto, historiador e crítico de arquitectura.

Frampton é conhecido, entre nós, sobretudo a partir da publicação de


"Modern Architecture -A Criticai History", hoje um clássico de referên­
cia obrigatória.

Aspecto importante desta História da Arquitectura é o alargamento da


informação considerada e a consequente multiplicação das relações
a considerar, para o entendimento e a transformação de uma arqui­
tectura não descomprometida nem apologética. Esse alargamento e a
clarificação dessas relações têm dado lugar a inúmeros textos publi­
cados em revistas e estudos monográficos, ou divulgados através de
uma constante actividade de conferencista e de editor. Têm ainda sido
incluídos na intensa actividade docente de Frampton, nomeadamente
na "Architectural Association" de Londres, escolas de arquitectura de
Princeton, Lausanne, Houston, Pennsylvania, Detroit e outras onde
tem ensinado como Professor Associado ou Convidado.
O pensamento e a proposta de Frampton têm sido referidos à designação
"regionalismo crítico", atingindo uma dimensão polémica que atravessa,
com energia e continuidade, o debate arquitectónico contemporâneo.

Por um !ado, são invocadas as suspeitas conotações do termo


Regionalismo (na realidade historicamente circunstanciais), ou conside­
rado insuficiente ou ambíguo o adjectivo que o acompanha. Por outro
lado, é por demais evidente a sua influência na crescente perda de
atracção de uma ideia da "bondade" da Diferença traduzida, afinal, num
Internacionalismo de pequenos e poucos tiques; e no aparecimento e
participação de contextos culturais esquecidos ou ignorados, dos quais
emergem personalidades tão significativas como Barragan ou Fathy.

A perda da atracção desse Internacionalismo da Diferença corresponde


a uma desmontagem dos mitos da "ironia" e da "referência", os quais
vêm legitimando a supostamente divertida semelhança de um edifício
público em Portugal com um supermercado Francês, ou deste com
um edifício Americano, por sua vez parecido com um templo Inca ou
Egípcio; ou de todos com as Termas de Caracala desmaterializadas.

É menos conhecida entre nós a actividade de Frampton como pro­


jectista, iniciada após a formatura pela "Architectural Association" de
Londres, como arquitecto-associado de Douglas Stephen & Partners.
Recentemente, Frampton retomou essa actividade de projectista como
arquitecto-associado de Richard Meier. Disse-me então que pensava
poder ser tarde. Contudo, como escreveu ele próprio "a história da ar­
quitectura moderna refere-se tanto à consciência e intenção polémica,
como aos próprios edifícios". Não é tarde, pois a claridade da Arquitectura
nasce invariavelmente da clareza das ideias; e as ideias de Frampton
são claras, obstinadamente rigorosas e, sobretudo, universais.

A palavra ao Professor Kenneth Frampton.

106 01 textos por Álvaro Siza


035.1992 12 1 O Arquitectura: Casa de Chá/Restaurante da
Boa Nova (2)

Esse restaurante é antiquíssimo, um objecto obsoleto numa


paisagem degradada (maravilhosa em 1958).(. . .) Envelhecer
é perder a capacidade de concentração, sabendo mais. Ou de
remorso - ou de inconsciência. (Ter a consciência disso).

Pub. in lntroduction a la monografia Álvaro Siza, Obras y Poyectos 1954-


1982. E tb in [E/ecta], p.89 e [Skira], p. 42.

A passagem do tempo

Num hotel de Lisboa encontro um admirador economista.

Diz-me: Vi uma publicação sobre o seu restaurante em Matosinhos. É


muito belo. Dá-me um autógrafo?

Dou o autógrafo e digo: Esse restaurante é antiquíssimo, um objecto


obsoleto numa paisagem degradada (maravilhosa em 1958).

Não parece, responde (talvez ofendido).

Sinto-me contente. Será que um restaurante de 1958, a funcionar em


1992, deve parecer desenhado em 1958? É certo que a apreciação
não vem de um especialista. Um crítico de arquitectura teria adivi­
nhado de imediato a data: 1958. Este detalhe, ou tique, ou aquele; ou
ter-se-ía enganado, eventualmente, não se apercebendo do essencial,
que pouco tem a ver com detalhes, ou tiques, ou exacerbada sensibi­
lidade, ou informação.

Há 34 anos estava envolvido em lutas muito íntimas, ou muito colectivas,


no território meu e dos meus amigos, próximos ou distantes, ou inimigos.

No entanto, quando nos concentramos por inteiro num projecto, as coisas


muito próximas no tempo e no espaço esfumam-se progressivamente.

107
Ou desapareciam para mim, em 1958, com um vago sentimento de re­
morso, quando disso me apercebia.

Envelhecer é perder a capacidade de concentração, sabendo mais.


Ou de remorso - ou de inconsciência. (Ter a consciência disso).

108 01 textos por Álvaro Siza


036. 1992 12 1 O Apresentação

Nesse texto me vou reconhecendo, nem sempre sem surpre­


sa, e ao(s) meu(s) modo(s) de trabalhar.

Pub. in monografia Álvaro Siza, Obra e Método, Jacinto Rodrigues, Liv.


Civilização Editora, Porto, Dezembro 1992, p. 9

Prefácio

É sempre difícil, penoso mesmo, comentar o que a respeito da obra


própria outros escrevem.
A criação arquitectónica nasce de uma emoção, a emoção provocada
por um momento e por um lugar.
O projecto, e a construção, exigem dos autores que se libertem dessa
emoção, num progressivo distanciamento - transmitindo-a inteira e
oculta. A partir daí, a emoção pertence ao(s) outro(s).
O texto de Jacinto Rodrigues desmistifica a ideia da súbita inspira­
ção, como explicação do desenho. Revela o desenho feito de total
concentração, de atenção a todas as coisas, antagónicas e contudo
convergentes; feito de progressiva e interdisciplinar dependência.
Esse parece ser o caminho único para qualquer síntese, compacta
como que para que se torne Forma, isto é, compreensível e funcio­
nal: bela.
Nesse texto me vou reconhecendo, nem sempre sem surpresa, e ao(s)
meu(s) modo(s) de trabalhar.
Tanto bastaria para que me interessasse o escrito de Jacinto Rodrigues.
Mas como isso é feito com a solidez de um conhecimento alargado, espe­
cializado quando necessário, então o resultado pode contaminar o nosso
frágil ambiente académico - o do ensino da Arquitectura também.

109
01 textos por Atvaro Siza
037 .1992 12 25 Outros Arquitectos: Fernando Távora (2),
Pedagogia

Na Arte de Projectar, o que é Obra de Autor, exemplificando


com Fernando Távora.
O Autor constrói movido pela emoção e movido pela necessida­
de, seja erudito ou seja popular(. ..). Constrói igrejas, palácios,
casas de favela. A emoção não compreende prioridades, ou
hierarquias.

Pub. in Fernando Távora, Editorial Blau, Lisboa, Lisboa, 1993, p. 69. E


tb in [Skira), p. 60.

A propósito da arquitectura de Fernando Távora

1) Visito o convento de Refóios. A grande massa de construção, bem


no centro da paisagem; um detalhe de uma paisagem subordinada ao
uso e à glorificação da terra.
Um curso de água orienta e serve a divisão dos campos. Torna-se ar­
quitectura. Procura o fogo, introduz-se no convento.
Uma brisa silenciosa cruza os pátios, percorre os alinhamentos de
portas, agita as copas das árvores e os cortinados dos salões.
Alguns operários movem-se como actores em cena. Vestidos de
branco, raspam os rebocos; queimam os nós de madeiras antiquíssi­
mas, abrem as marmitas do almoço.

2) Novos edifícios desprendem-se do convento. Distanciam-se como


alguém que procura ângulo e olha a montanha. Hesitam, angulam,
procuram o sítio exacto. Repousam sobre caboucos definitivos.
A relação é quase tensa; dessa tensão nasce um Lugar.

3) É difícil conquistar um Lugar novo. É necessário cruzar o curso de


água e este faz-se soleira, submete-se e oferece um novo tanque.
Esse tanque é pedra de fecho de um Espaço.
A brisa prolonga-se, o curso de água continua.

4) Regresso e inicio um texto. Pretendo "escalpelizar" a ideia de um

111
projecto; relacionar soluções com outras de Fernando Távora e de ou­
tros, revelar coisas escondidas, desnudar o corpo construído, quebrar
o silêncio do vale e transformá-lo em literal pedagogia.
Como numa autópsia, falo de um cadáver.

5) A pedagogia de Fernando Távora não tem a ver com modelos, res­


postas sistemáticas, know how. Não exclui ferramenta. Mas tem a ver
com humana condição, abertura, prudência, compreensão, permissi­
vidade por vezes, dúvida, vontade, intransigência.
Um leque de contradições a que não bastam os 180 °, do qual nascem
lições de Arquitectura.

6) A ideia do projecto já aí estava, recortada contra o convento, con­


tra a montanha.
Projectar é captar, num momento exacto, uma ideia perturbadora e er­
rante - e repor a serenidade.
Rasgo a folha de papel.

7) Existe uma Arquitectura que se impõe de imediato e a quase todos,


agradando ou não.
Pode ser de grande ou de pequena dimensão. Relaciona-se com o
que a envolve - construções ou natureza - ou não. Um razoável fotó­
grafo capta o que parece ser. Pode ter qualidade ou pode ser gratuita.
Quando a apreciamos profundamente, numa outra visita ou numa
outra época, já não nos diz nada, ou pouco. Ou diz outras coisas, se
não é gratuita - e então alcança o silêncio da beleza.

Existe outra Arquitectura que impressiona menos, e menos gente.


Pode ser de grande ou de pequena dimensão. Relaciona-se com tudo
que a envolve, ainda que tal não seja aparente, ou evidente, ou por
razão de forma. Pode ter qualidade ou não; raramente é gratuita ou
nunca. Pode ser modesta, se para outra presença não existe razão; ou
difícil, mas não por imodéstia.
Essa Arquitectura habita o mundo da simplicidade e de magia a que
pertence uma igreja românica, perdida entre o milho dos campos do
Minho; ou as favelas nascidas da miséria; ou a casa de Luís Barragan;
ou um monte alentejano que ninguém conhece, os arranha-céus de

112 01 textos por Álvaro Siza


New York nunca estudados; ou a casa de Tzara de Loos; ou o Pátio
Vermelho de Fernando Távora. Obras por igual de Autor.

8) A gestação de uma obra de Autor está para além da tipologia. Nem


sempre o Autor é um arquitecto (falando dos contemporâneos, pois
noutros tempos não existia tão corporativista condição - nem hoje, se
atendermos ao que acontece).
O Autor constrói movido pela emoção e movido pela necessidade, seja
erudito ou seja popular (se alguém assim entender) o que faz e como
o faz.
Constrói igrejas, palácios, casas de favela. A emoção não compre­
ende prioridades, ou hierarquias.
Quanto à necessidade: essa pode ser larga, universal; ou pode nas­
cer da resistência, do desejo de (sobre)viver - o mais universal dos
desejos.
A Arquitectura que não corrói nasce da capacidade de emoção. E
essa, sem dúvida, .é uma capacidade universal.

113
114 01 textos por Álvaro Siza
038.1993 00 00 Arquitectura: Malagueira (2)

Este texto é uma variante do Nº 023, contendo uma primeira


parte descritiva.
As coisas em ruínas dão forma às novas estruturas, trans­
figuram-se, modificam-nas. Como a cauda de um cometa
desprendem-se das catedrais. O mundo inteiro e a memória
inteira do mundo continuamente desenham a cidade.

Pub. in City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte


Fleck/Birkhauser Verlag, 1994, p. 38

Quinta da Malagueira - Évora

1.
Nova área residencial em Évora, cidade de fundação romana (30 000
habitantes, 140 km a Sudeste de Lisboa).

A zona da Malagueira situa-se num terreno de 27 ha, ligeiramente on­


dulado, imediatamente a Oeste da muralha medieval, limitado a Oeste,
Norte e Sul, respectivamente, por uma zona verde, por uma estrada
municipal e pela estrada nacional.

Dois eixos viários perpendiculares, de direcção Oeste-Este e Sul-Norte,


estruturam a distribuição dos lotes (11 x 8 metros e uma só frente).

O primeiro eixo prolonga para Oeste a via que une as portas da mu­
ralha a um bairro clandestino dos anos quarenta, acompanhando e
cruzando a linha de água que percorre o terreno, em diagonal e de
Noroeste para Sudeste.

O segundo eixo acompanha a mesma linha de água, quando esta in­


flecte para Sul e é retida por um dique já construído.

O programa realiza-se por fases a partir de 1977 e consiste em 1 200 habita­


ções (1 000 concluídas) e respectivos equipamentos, comerciais e outros.

O projecto prevê dois tipos de casa (pátio no tardoz ou pátio voltado ao

115
arruamento) com planta em forma de L. Qualquer dos tipos pode evo­
luir de T1 a T5, num máximo de dois pisos.

O abastecimento de água, energia, telefones e televisão é feito a par­


tir de condutas elevadas, as quais constituem cobertura de protecção
das principais vias de peões.

2.
Afluirão famílias, a ténue ordem existente será subvertida, destruídas
as culturas incipientes, ocupados os campos abandonados.

Os operários da construção civil hão-de substituir os grupos de ci­


ganos, desaparecerão da paisagem carcaças de automóveis, carros
obsoletos cobertos de lona esfarrapada, cavalos e cães esqueléticos,
carneiros, montes de lixo. O ruído das betoneiras invadirá os pátios
das ilhas de um só piso e o café, a tabacaria, a mercearia da rua prin­
cipal hão-de encher-se de forasteiros.

O arquitecto imagina o pó e os tripés dos topógrafos, os sobreiros tom­


bando de asas abertas, a crueza dos muros entre jardins e telhados,
mulheres de negro espreitando, sobressaltadas, por trás das gelosias,
mesas de engenheiros, calculadoras e computadores, economistas e
outros especialistas, a dor dos arqueólogos e dos historiadores e dos
sociólogos, as visitas dos políticos e dos críticos. O que imagina faz­
se presente e tomba sobre o chão ondulado, como um lençol branco e
pesado, revelando mil coisas a que ninguém prestava atenção: rochas
emergentes, árvores, muros e caminhos de pé posto, tanques, depósi­
tos e sulcos de água, construções em ruínas, esqueletos de animais.

Tudo isto perturba de rugas e de superfícies abauladas as ideias sim­


ples. As coisas pobres e as casas tomam a dimensão de presença viva,
interrompendo os novos alicerces. Há um movimento helicoidal em que
se misturam acampamentos e salões, tudo é incipiente e provisório, os
tapumes encurtam a paisagem e as ruas novas são leitos de lama.

As coisas em ruínas dão forma às novas estruturas, transfiguram-se, mo­


dificam-nas. Como a cauda de um cometa desprendem-se das catedrais.
O mundo inteiro e a memória inteira do mundo continuamente desenham
a cidade.

116 01 textos por Álvaro Siza


039.1993 03 00 Cidades: Santiago de Compostela (2)

Eu, pessimista-nato( ...) Xerardo com um sorriso inabalável(.. .)


A/varo, este deve ser demolido - falava de construir, é claro.

Xerardo Esteves, Alcalde de Santiago de


Compostela

Qual será o estado de espírito de um Arquitecto-Alcalde?


Experimentará o desencanto de não construir a "sua" Arquitectura, na
cidade que ama? Sentirá a falta do estirador, de dirigir obra? A tentação
de convidar apenas os que se movem numa mesma tendência d,e de­
senho? Ou sentirá o desespero de ver surgir obra que não lhe agrade,
apesar do poder que detém?
Imagino difícil a experiência de um Alcalde-Arquitecto; mas menos di­
fícil para Xerardo.
Nasceu optimista, formou a consciência da dificuldade e da responsa­
bilidade. E continuou optimista.
Eu, pessimista-nato, pensava: isto não se faz, aquilo muito menos,
não há condições para tal ou tal projecto (Xerardo com um sorriso
inabalável).
Depois fui vendo que isto e aquilo se fazia (Álvaro, este deve ser de­
molido - falava de construir, é claro).
Esse Galego total chama a trabalhar os técnicos e os artistas de Galicia
- e os outros: da Alemanha, da Itália, dos Estados Unidos, de outras
regiões de Espanha. E este irmão-português. Gente de toda a parte -
pois não foram os galegos a toda a parte?
Tanto quanto posso ver, o chamamento não se limita a gosto pessoal,
nem obedece a chauvinismo, vontade de protagonismo. Para Xerardo
a escada não é de subir, nem de descer: é de viver. A topografia de
Santiago é assim. Provavelmente tanta energia não caberia num pro­
jecto individual. O projecto de Xerardo é Santiago, dentro e fora dos
muros, de novo fim de caminho, universal por antiquíssima vocação.
A procura da Nova Cidade Histórica explica os apoios e as lutas e os
consumos. E o optimismo. Fragmentos antigos e novos dessa Cidade

117
começam a espreitar aqui e além, aqueles em alvoroço, estes delicada­
mente, quanto muito em bicos de pés, sobre plataforma quando assim
deve ser (é preciso atender ao tecido e aos Monumentos, sem bruta­
lidade nem excesso de mesuras). Esses fragmentos trocam mágicos
sinais. Corrigem-se mutuamente, quando tudo corre bem. Movem ligei­
ramente o pescoço de girafa, ou atam-se ao solo.
Assim o que nos escapa, escapa à ruína: antecede outro sonho.

118 01 textos por Álvaro Siza


040.1993 05 00 Cidades: Santiago de Compostela (3), Viagens

A língua (. . .) é simultaneamente mais áspera e mais terna, não


raro o discurso pautado por diminutivos - adeusinho, A/varino,
Caramonifla ...

Pub. in [E/ecta], p, 90, [Skira] p, 128 e [Figueirinhas],

Na Galiza

1) Para um Português quase minhoto uma viagem à Galiza constitui


experiência singular.
Sente-se em casa. Contudo, tudo é ligeiramente ou mesmo muito dife­
rente. Há essa explosão geográfica das rias, sucedendo-se à faixa de
areia recta e estreita da costa portuguesa.

Há marisco diferente, sobrevivem as ostras e há tapas e o paseo;


muita gente na rua.
A língua tem a mesma origem e as mesmas palavras, mas dela é in­
confundível a música e a expressão; é simultaneamente mais áspera
e mais terna, não raro o discurso pautado por diminutivos - adeusinho,
Alvariíio, Caramoniíia...

Depois a presença do granito, que parece eterna, e as suas texturas,


ou a cor, igualmente um pouco diferentes: mais doirada ou mais esver­
deada ou mais negra.

Quando abandonamos as estradas principais sucedem-se os sítios


mágicos: margens de riachos, canais antiquíssimos em pedra, ramais
do Caminho de Santiago aos quatro ventos, eiras, espigueiros em gra­
nito, com maiores dimensões e mais duramente talhados do que no
Minho, ou talvez não.

Dos muros austeros da cidade saltam os balcões em madeira e cristal.


Na Coruria fazem-se antepassado do "mur rideau", contínuos, pinta­
dos de branco, a brilhar ao sol quando por instantes pára de chover.

119
Nos jardins das casas do século XVIII ou XIX, ou nas fachadas das
igrejas, transparece a obsessão e a nostalgia da viagem - palmeiras
esbeltíssimas rompendo a escala e a paisagem, relevos exóticos e de
significado difícil de compreender, varandas coloniais de sobrado es­
fregado à mão.

A escrita das fachadas das igrejas raramente abandona as formas


geométricas, de sensualidade severamente controlada. Há sempre
qualquer coisa de América do Sul, mas a América do Sul das geomé­
tricas pedras pré-colombianas, de arestas agudas, num mosaico de
superfícies planas, em baixo relevo.
Quando surge - o orgânico é natural: folhas e musgo que nascem do
granito, envolvendo-o finamente, como uma roupagem de Christo, ou
lançando galhos do extremo de alguma pedra de armas, aí onde a de­
coração comunica a história.

2) Quando olhei as escadas e as fachadas em ângulo do Convento


de Santo Domingo, junto ao qual me fora destinado construir o Museu
de Santiago, quando subi as plataformas invadidas pela vegetação e
contidas por muros semi-destruídos, ou quando entrei no cemitério e
vi do alto do carvalhal os telhados e as mil torres de Santiago, senti­
me antes de mais inibido. Molhei os sapatos a roupa e o corpo. A água
corria em desordem por todo o lado.

Mostraram-me documentos preciosos e velhas fotografias. Um es­


cultor arrancava do granito figuras religiosas, como na Idade Média.
Fomos encontrando e desenterrando canais em granito, restos de
tubos carcomidos, caminhos de água e minas e fontes e degraus há
muito encobertos, capitéis de algum convento desaparecido; fomos
encontrando o sítio onde colocar alicerces e onde erguer paredes,
onde cobrir, impermeabilizar e abrir os vãos, deixando entrar a luz.

120 01 textos por Álvaro Siza


041.1993 05 00 Outros Arquitectos: Snozzi (1)

A casa Diener é a casa perfeita; pertence aos clássicos da


arquitectura doméstica contemporânea (. ..)nasce de um raro
momento de consonância entre dono de obra e projectista, o
qual permitiu a optimização de toda a pesquisa anterior.

Pub. in Peter Disch, Luigi Snozzi, Construzione i Progetti / Buildings and


Projects 1958-1993, ADV, Lugano, 1994. E tb in [Skira), p.75.

Impressões de uma viagem ao Ticino, visitando


as casas de Luigi Snozzi

1) Na melhor arquitectura do Ticino as novas tecnologias não prescindem


da convivência com uma preciosa prática artesanal; nem o projecto com
uma longa elaboração, prolongada ao tempo de construção. Mantém-se
em aberto a esperança de uma menos implacável divisão de trabalho -
e menos esterilizante para a Arquitectura.

O que de imediato impressiona nas obras de Snozzi é a racionalidade,


a transparente inteligência, o eficaz sistema ordenador; e apesar disso,
a sobrevivência da frescura, até à naturalidade, a uma espontaneidade
segunda.
Essas características atravessam as diferentes escalas de projectos,
numa calculada medida de afirmação ou de contenção. Tem sido con­
tudo difícil concretizar aqueles projectos com vocação de pólo urbano,
aqueles que por natureza emergem do tecido (seria uma triste ironia
que os celebrados arquitectos do Ticino tivessem de procurar, em terra
alheia - como já vem acontecendo - a possibilidade de materializar a
sua proposta de transformação da cidade).

2) Visito as casas de Snozzi no Ticino.


Casas de encosta, volumes isolados que controlam um território limi­
tado, quase invisíveis da estrada; jóias distantes, pormenores de uma
paisagem maravilhosa.

121
Ou casas de vale, parte de um tecido pouco denso, do qual reforçam
a precária consistência.
Estes dois tipos de intervenção correspondem afinal, no que à casa
respeita, aos dois tipos de que fundamentalmente depende a constru­
ção da paisagem do Ticino.

a) Nos vales estende-se o tecido legível mas ténue dos espaços da co­
munidade, sobre terreno plano, envolvido pela montanha - fechada a
paisagem. Snozzi procura aí, meticulosamente, cada traço no solo e
cada apetite de mudança: fiadas de vinha, muros, fundações de antigos
conventos, hábitos antigos e em transformação. Ajusta o que constrói a
alicerces duplamente firmes: material e historicamente.
As casas erguem-se sobre o já construído, destacam-se, sem prejuízo
de uma estreita relação. A sua aparente arrogância não agride; lançam
olhares de interpretação; pé ante pé procuram onde aterrar. Os símbo­
los sofrem uma torção e o betão preside - garante a continuidade e a
demarcação das superfícies acrescentadas, a nitidez dos volumes.

b) Nas casas de encosta - casas em sítios belíssimos, debruçadas


sobre o lago, como é suposto acontecer no Ticino, as soluções de
Snozzi adaptam como princípios fundamentais a apreensão da totali­
dade do lote e, em geral, a sua ocupação por dois volumes de diferente
escala e de relação visual mutante, em permanente tensão, como cor­
pos magneticamente atraídos.
Retenho, em rápida visita, que essa elástica ligação é representada
pela toalha de água de uma piscina estreita e longa; como se os dois
corpos nos extremos tentassem, em vão, distanciar-se.
Um deles fixa-se na terra, é de uma solidez essencial. Mergulha no
solo e ergue-se bem acima do solo.
O outro parece apoiado num tapete voador, é feito de pórticos, mol­
duras de paisagem, espaços que celebram a Natureza: balneários,
terraços à espera de um jantar, em dia de poente longo. Os bordos da
piscina que os separa, ou une, ou de um relvado, são estreitos, pres­
tes a romper-se.
Vistos do outro lado do lago, os volumes destacam-se com uma nitidez
helénica. Há traços que os unem, sempre prestes a esfumar-se, linhas
horizontais sobrepostas à paisagem, numa visão frontal da encosta

122 01 textos por Álvaro Siza


- muros de suporte dos estreitos terraços que a topografia permite. Há
algumas diagonais, o zig-zag contínuo que prolonga os percursos das
vias secundárias, ou das auto-estradas - muitas vezes pautadas, como
compete à sua escala, por longas colunatas que atravessam a paisa­
gem, defendendo a pista da neve, saltando depressões. Uma espécie
de stoa alpina para automóveis.

3) A casa Diener é a casa perfeita; pertence aos clássicos da arquitec­


tura doméstica contemporânea.
Assenta no que era o último lote disponível no local. É impossível não
subir esta encosta, em zig-zag e sem esforço, entrar, dobrar esqui­
nas, sucessivamente ter por horizonte opostas paisagens, debruçar-se
sobre o aberto do piso. A casa Diener nasce de um raro momento de
consonância entre dono de obra e projectista, o qual permitiu a optimi­
zação de toda a pesquisa anterior.

Nas paredes alguns quadros magníficos e a vitalidade de Le Corbusier.


O soalho escuro e brilhante reflecte a estrutura elementar da cama,
Eillene Gray, China, anos 30 do desenho inovador. Encontra-se como
sempre a tensão entre dois núcleos, mas aqui a casa sofre uma tor­
ção. Abandona a habitual submissão às curvas de nível e lança-se em
direcção ao lago.

Em frente há uma ilha. Choveu. Num dos extremos da ilha existe uma
casa. Dessa casa, subitamente, desprende-se um arco-íris. Perde-se
no céu cor de chumbo. Reaparece, contra o verde da outra margem.
Abraça a paisagem como se fosse a moldura de um quadro, ou a aura
sobre um desenho ideal.

123
01 textos por Alvaro Siza
042.1993 05 11 Discurso (DHC), Ensino

Doutoramento Honoris Causa na Escola Politécnica Federal de


Lausanne.
Nenhum lugar, como uma escola de arquitectura, pode promo­
ver o espírito de resistência e a ânsia de transformação. Numa
escola constantemente se renova o entusiasmo, a generosi­
dade e a apetência de utopia, que lentamente esmorecem ou
tendem a esmorecer dentro de cada um.
(. ..) A universalidade da Suíça, ainda quando ponto de passa­
gem, sempre marcou a cultura da Europa; a razão da geografia
contaminou a história.

Doutoramento em Lausanne

Conheci na Cidade de Lausanne, trabalhando nesta Escola, alguns


dos momentos de maior tranquilidade da minha existência.

A uma primeira visita, durante uma exposição dos meus trabalhos,


apresentada por Mário Botta e organizada por Madame Edith Bianchi,
seguiu-se o convite para dirigir um curso de projecto.

As condições de trabalho eram invulgarmente boas, pelo número equi­


librado de estudantes, pelas instalações, pela assistência de Gérard
Giorla. Jean Paul Rayon ofereceu-me amicíssima hospedagem.

Tive oportunidade de conhecer gente, cidades, arquitecturas, de me


integrar na actividade quotidiana de um corpo de docentes, então pre­
sidido pelo professor Décoppet, ceia na bela casa de Von Meiss, sobre
o Lago Lehman, chez Jacques Gubler, ouvindo as histórias de Le
Corbusier, enquanto os comboios apitavam, passando pontualmente.

Levaram-me a visitar a maravilhosa arquitectura de Gotfried Semper,


Karl Maser, Salvisberg, do jovem Le Corbusier de La Chaux de Fonds,
ou das margens do Lago, de tantos outros. Levaram-me a visitar as vá­
rias escolas de arquitectura e assim conhecer os arquitectos que hoje
transformam a paisagem da Suíça.

125
Nas manhãs de domingo descia à Promenade des Anglais1 • Observava
a partida e chegada dos barcos, não muito diferentes dos que inspira­
ram a Le Corbusier uma arquitectura apropriada ao pensar e ao sentir
dos contemporâneos. Depois do almoço, nalguma esplanada menos
fria, porque o sol brilhava, entregava-me a um dos meus mais ou
menos secretos violons d'lngres: a poesia escrita, na esperança e na
procura da poesia do desenho. Da Arquitectura. Pois na Arquitectura
é difícil a aproximação dos territórios da poesia, distanciados pela ex­
cessiva pressa, pela procura desmedida do lucro ou da novidade e,
quantas vezes, pela promoção do que é medíocre. Assim se explicam
algumas desistências ou desinteresses.

Nenhum lugar, como uma escola de arquitectura, pode promover o


espírito de resistência e a ânsia de transformação. Numa escola cons­
tantemente se renova o entusiasmo, a generosidade e a apetência de
utopia, que lentamente esmorecem ou tendem a esmorecer dentro de
cada um.

Por isso para nós, os que temos a oportunidade, o desejo e o privilé­


gio de ensinar arquitectura, a Escola significa aprendizagem, refúgio,
ponto de partida, eclipse da quebra de vontade. A razão de existên­
cia das escolas sempre se renova, apesar dos professores, se tanto
for preciso.

Quando vim para Lausanne quase não encontrava trabalho, em


Portugal. Atravessava uma espécie de deserto povoado de desânimo
e de incerteza.

Muitos com mais problemas e bem maior mérito aqui encontraram


lugar de reflexão e princípio de acção. A universalidade da Suíça, ainda
quando ponto de passagem, sempre marcou a cultura da Europa; a
razão da geografia contaminou a história.

Estou hoje em melhor condição para compreender quanto devo à minha


passagem pelo Departamento de Arquitectura da Escola Politécnica
de Lausanne. Ainda que nada me devendo, esta Escola encontrou a
1 Engano casual. A referência era Promenade d ·ouchy.

126 01 textos por Álvaro Siza


generosidade suficiente para a ela me ligar. Regresso à memória dos
passeios junto ao Lago Lehman. Que me seja desculpado fazê-lo em
português.

Folhas amarelecidas cobrem a relva dos jardins


O asfalto dos passeios
de guias alinhadas

O reboco dos hotéis tinge-se de tons rosados

o nevoeiro transforma em horizonte


como se houvesse mar
a margem do outro lado

A nascente sobre as nuvens


espreitam os cabeços brancos

partem os barcos no lápis de Corbu


Os barcos belíssimos do Lago
- La Suisse Lehman Helvetie -

Na livraria de Bel Air


compro um livro de Bayati.

A minha gratidão.

127
128 01 textos por Álvaro Siza
043.1993 05 22 Outros Arquitectos: Fernando Távora (3),
Ensino

Fernando Távora foi o primeiro professor que me avaliou por


outras coisas que não o grau de informação e de ingenuidade.

Pub. in Diário de Notícias 19930522, JL n.º 590 19931026 Espontânea


generosidade e Boletim da Universidade do Porto, Outubro/Novembro
1993, p. 44. E tb in [Skira], p. 59, [UPC], p. 113.

Távora

Pedem-me um depoimento sobre o Professor Fernando Távora, agora


que se aproxima o termo do seu magistério.

Fernando Távora iniciou a actividade como professor da Faculdade de


Arquitectura - então Escola de Belas Artes do Porto - em 1950, recém­
formado, sem vencimento e a convite de Mestre Carlos Ramos. Por
militância e solidariedade.

Tive o privilégio de viver a renovação da Escola. Partilhei com outros


estudantes o impulso e a informação que ele e os mais convida­
dos - Carlos Loureiro, Octávio Filgueiras, mais tarde Agostinho Rica
e Mário Bonito - descobriam dentro e fora do país, por igual e sem
preconceitos.

Fernando Távora foi o primeiro professor que me avaliou por outras


coisas que não o grau de informação e de ingenuidade.

Os muitos anos de quase inteira entrega ao ensino limitaram a sua


produção, mas não a importância do que produziu; tiveram outras e
mais profundas consequências, não menos gratificantes para ele e es­
senciais para os muitos discípulos, directos ou indirectos.

Julgo que ele próprio sempre teve consciência disso, sem muito se
preocupar: é de sua natureza a dispersão em espontânea generosi­
dade, sem cálculo ou sensação de sacrifício.

129
Diz-se agora que "se reforma". Mas para quem conhece a personali­
dade e a vitalidade de Fernando Távora - não há reforma possível.

Assisti à distância, espero que discretamente, mas com curiosa aten­


ção, à preparação - talvez inconsciente - dos dias post-reforma.
Renasceu um verdadeiro furor projectual. Nas mesas do atelier foi
aumentando a produção. As últimas obras cruzam, com acuidade e
inovação ainda insuficientemente avaliadas, porque não fáceis, os ca­
minhos da nossa e da nova Arquitectura.
Mantém-se o alheamento a qualquer formalismo, estético ou humano.
De uma forma ou de outra, a docência prossegue.

130 01 textos por Álvaro Siza


044.1994 03 00 Reflexão

Trabalhar em equipa é como trabalhar só, mas com uma capaci­


dade de análise e de invenção multiplicada por x. As descobertas
de cada um, as hipóteses lançadas na co"ente, geram novas hi­
póteses e novas descobertas desse e dos outros.

Seminário em Almeria sobre O Projecto de Autor, em Março de 1994.


Pub. in [Skira], p. 26.

Num Seminário de Projecto em Almeria

Sinto-me em posição incómoda.

Observado atentamente, o meu trabalho revelará todas as fragilida­


des, tudo o que está adiado, uma espécie de suspensão prematura.

Ao mesmo tempo, o ego sente um sobressalto de encantamento, tantas


são as pessoas que prestam atenção a projectos meus. Sobressairá a
fadiga? Ou surgirá alguma segunda espontaneidade? As imagens tornar­
-se-ão doiradas, como para mim em raros instantes? Ou permanecerão
cinzentas, como na lenta construção quotidianamente me aparecem?

Tenho de não ser eu, se quero participar, assim afastando a velha


insegurança que tantas vezes, por fortuna, me levou a trabalhar em
equipa - equipa de autoria.

Trabalhar em equipa é como trabalhar só, mas com uma capacidade


de análise e de invenção multiplicada por x. As descobertas de cada
um, as hipóteses lançadas na corrente, geram novas hipóteses e novas
descobertas desse e dos outros - tal como sucede com as minhas ao
trabalhar só - mas então em ritmo de vertigem.

A fluência de ideias aguça em cada um a capacidade e os instrumen­


tos da crítica, fundamento da invenção e do exercício da Arquitectura.

131
Uma teia de finíssimos fios aprisiona por instantes passado e presente,
vai ganhando a forma do amanhã.
Por isso é penoso construir agora, quando, ao olhar em volta, repetida­
mente se encontra não um coro, não uns solos, mas notas dissonantes,
improvisos sobre uma partitura inexistente.

Se dessas notas dissonantes alguma solicita resposta, então a espe­


rança e a não ansiedade renascem.

Já experimentei esses momentos em espaços insulares.

132 01 textos por Álvaro Siza


045. 1994 03 00 Casas
Por isso considero heróico possuir, manter e renovar uma casa.
Em minha opinião deveria existir a Ordem dos Curadores de
Casas e todos os anos atribuída a respectiva comenda e um
elevado prémio pecuniário.

Pub. in [E/ecla], p. 94, [Skira], p. 94 e [Saint-Étienne], p. 78. E tb in Álvaro


Siza, Casas 1954-2004, Skira Editore, Milano, 2004, p. 9.

Viver uma Casa

Nunca fui capaz de construir uma casa, uma autêntica casa. Não me
refiro a projectar e construir casas, coisa menor que ainda consigo
fazer, não sei se acertadamente.

A ideia que tenho de uma casa é a de uma máquina complicada, na


qual em cada dia avaria alguma coisa: lâmpada, torneira, esgoto, fe­
chadura, dobradiça, tomada, e logo cilindro, fogão, frigorífico, televisão
ou vídeo; e a máquina de lavar, ou os fusíveis, as molas das cortinas
o fecho de segurança.

As gavetas encravam, os tapetes rompem-se, e os estofos do divã da


sala. Todas as camisas, peúgas, lençóis, lenços, guardanapos e toalhas
de mesa, panos de cozinha - jazem rotos junto à tábua de passar a ferro,
cujo pano de protecção apresenta um aspecto lamentável. Igualmente: há
pingos de água caindo do tecto (avariam os canos do vizinho, ou parte­
se uma telha, ou descola a tela). E os algerozes estão cheios de folhas
pardas, os rufas soltos, ou apodrecidos.

Quando há jardim a relva cresce ameaçadoramente, qualquer tempo


livre é insuficiente para dominar a raiva da natureza; pétalas caídas
e legiões de formigas invadem as soleiras das portas, há sempre
cadáveres de pássaros e de ratos e de gatos. O cloro da piscina
esgota, avaria o robot; nenhum aspirador restitui a transparência das
águas ou suga as patas dos insectos, finas como cabelo.

133
O granito das lajes ou das calçadas cobre-se de perigosíssimo limo, o
verniz escurece, películas de tinta desprendem-se e põem a descoberto
os nós de uma madeira reduzida à capa. Qualquer dedo de anciã pode
furar os caixilhos, os vidros estão partidos, caíu o betume, o silicone
desprende-se das superfícies, há mofo nos armários e nas gavetas,
as baratas resistem aos químicos. Sempre terminou a graxa quando
procuramos a lata necessária, os tacos descolam, desprendem-se os
azulejos, primeiro um, logo a parede inteira.

Por aí fora.

Viver numa casa, numa casa autêntica, é ofício a tempo inteiro. O dono
da casa é simultaneamente bombeiro de serviço (as casas ardem cons­
tantemente, ou inundam-se, ou o gás escapa-se sem ruído, em geral
explode); é um enfermeiro (já viram as lascas de madeira do corrimão
cravando-se fundo no sabugo das unhas?); é um nadador-salvador, do­
mina todas as artes e profissões, é especialista em física, em química,
é jurista - ou não sobrevive. É telefonista de serviço e recepcionista, te­
lefona a cada momento, procurando picheleiros, carpinteiros, trolhas,
electricistas, e logo lhes abre a porta de entrada, ou a de serviço, acom­
panhando-os com subserviência; pois deles depende, embora nada
impeça a necessidade de uma oficina completa, a qual igualmente se
vai degradando. E então é necessário afiar lâminas, comprar acessórios,
olear, rearrumar, desumidificar; de imediato avaria o desumidificador, e
atrás o ar condicionado, as bombas de calor.

Nada contudo ultrapassa a tortura dos livros que se movem miste­


riosa e autonomamente, desarrumando-se de propósito, atraindo pó
com as suas lambadas e a sua espessura magnética. O pó penetra
no bordo superior das folhas, pequeníssimos bichos comem-nas com
ruído indescritível; as folhas grudam-se, o couro mancha, pingos de
água saídos de vasos com flores prestes a morrer escorrem sobre
as gravuras, atravessam as telas em furioso processo de dissolução.
O capacho da porta de entrada desfaz-se e há um sulco profundo na
madeira, os pêlos das piaçabas desprendem-se, partem-se objectos
preciosos, as tábuas das mesas e as dos móveis abrem-se em es­
talidas aterradores, não funciona o autoclismo, o fogão enche-se de

134 01 textos por Álvaro Siza


fuligem - qualquer dia arde - na cristaleira partem-se os copos da
bisavó, rebentam as garrafas de vinho verde a que um quase nada
de açúcar dá vida, saltam as rolhas, ou apodrecem, perde qualidade
exactamente a colheita mais apreciada.

Quando pela primeira vez não é substituída de imediato uma lâmpada fun­
dida toda a casa perde a luz, o que invariavelmente acontece ao sábado,
ao mesmo tempo que rebenta um pneu do único carro disponível.

Por isso considero heróico possuir, manter e renovar uma casa. Em minha
opinião deveria existir a Ordem dos Curadores de Casas e todos os anos
atribuída a respectiva comenda e um elevado prémio pecuniário.

Mas quando esse esforço de manutenção não é aparente, quando o


saudável cheiro a cera de uma casa, por outro lado bem ventilada, se
mistura com o perfume das flores do jardim, e quando nela nós - vi­
sitantes irresponsavelmente pouco atentos aos instantes de felicidade
- nos sentimos felizes, esquecendo as nossas angústias de nómadas
bárbaros, então a única medalha possível é a da gratidão, do silencioso
aplauso; um momento de paragem, olhando em volta, mergulhando na
atmosfera doirada de um interior de Outono, ao fim do dia.

135
136 01 textos por Álvaro Siza
046.1994 03 01 Cidades, Desenho

O desenho é a linguagem e a memória, a forma de comunicar


consigo e com os outros, a construção. Não desenha por exi­
gência da Arquitectura (basta pensar, imaginar). Desenha por
prazer necessidade e vício.

Pub in City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte


Fleck/Birkhauser Verlag, 1994, p. 182, Birkhauser. E tb in [E/ecta], p. 93,
[Skira], p. 22 e [Saint-Étienne], p. 74.

O desenho como memória

Metropolitano de Paris, Linha Montreuil-Saint-Michel. Salta da carrua­


gem, de duas em duas estações. Regista. Copia. Anota rapidamente
a dimensão dos azulejos, das guardas de escadas - e o desenho.
Observa a iluminação, aponta o que o desaponta e o que melhor será
reproduzir. A folha do caderno enche-se de-traços e de números.

Saint-Michel. Esboça o perfil das águas-furtadas, a cobertura em


zinco. Interpõe-se um rosto. Desenha-o, não servindo para nada. Fixa
o momento de êxtase, dentro dos olhos.
Sobem as torres da Notre Dame, as gárgulas da Sainte-Chapelle ex­
plodem. Ou as palmeiras do jardim botânico do Rio, os rostos de anjo
de Havana, ou as colinas espraiadas de Lisboa. Ou as próprias mãos, o
rosto num espelho de Cartagena das Índias; e os ciprestes de Granada,
algum batente de porta de Palermo (uma mão crispada em bronze).

O desenho é a linguagem e a memória, a forma de comunicar con­


sigo e com os outros, a construção. Não desenha por exigência da
Arquitectura (basta pensar, imaginar). Desenha por prazer necessidade
e vício. Outros por ele desenhem o que imagina, para que outros que o
desejam vagamente possam realizar o que imagina. Desenhos técnicos.
Desenhos de máquinas. Desenhos sem estética, a não ser a latente no
que é necessário e suficiente para resistir e garantir a vida material, o
afluir da água, do ar, da energia, das comunicações, da beleza.
Copia agora os canteiros do Palais Royal. Anota a distância entre as
árvores, e que árvores, e que arbustos, e que lancis de pedra, as suas
dimensões e as dos bancos em madeira, as guardas em ferro fundido
e a luz, e a luz.

São belos os vales da Córsega e as oliveiras de Delfos, correndo em


direcção ao mar; aquela fenda na montanha.

138 01 textos por Álvaro Siza


047.1994 03 23 Cidades: Porto (2)

Compro um vídeo de Aniki-Bobó, de Douro Faina Fluvial, pendu­


ro uma gravura antiga do Parlo no quarlo, parlo de avião.

Pub in City Sketches, Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte


Fleck/Birkhauser Verlag, 1994, p. 243. E tb in [Figueirinhas] e in [Saint­
Étienne), p. 106.

Regresso ao Porto

Havia uma janela de comboio na qual surgia subitamente a cidade.


Uma visão rápida, quase irreal. Era necessário treino e truques para
apreender tudo - instantâneo perfil petrificado, animal desdobrado,
sucessão de episódios, intervalos, Torre dos Clérigos dourada pela li­
malha dos cabos eléctricos, torres de igrejas conventuais, Grilos, Sé,
cubo imponente de Nasoni, muralha cruzando o arco de ferro da ponte,
encostas desfeitas e casario, casario, reflexos de azulejos, empenas
em chapa zincada de sumptuoso vermelho veneziano, telhas, vidros
de clarabóia cortantes como espelhos.

Dificilmente o olhar conquistava a necessária disciplina: ver tudo e rece­


ber (marca como de ferro em brasa), saltitar em metódica coreografia.

Em cada viagem se apreendia alguma coisa de novo e em cada via­


gem era mais difícil o exercício de repetir e de descobrir, de copiar o
próprio olhar e transgredir, no caminho-de-ferro. E logo a visão era
memória, apareciam imagens incertas como numa viagem de pavilhão
de feira, túnel, divertimento.

Sempre o mesmo sempre diferente.

Os minúsculos alargamentos da ponte de Eiffel cruzavam a janela, so­


brepunham-se os monumentos dos quais a memória constantemente
recompunha a linha sinuosa.

139
Aí está. Já não existe o sobressalto daqueles instantes, a ponte nova
não treme, os bancos de comboio são mais confortáveis, os cavaletes
dos carris elevados invadem os socalcos cobertos de lixo. Compro um
vídeo de Aniki-Bobó, de Douro Faina Fluvial, penduro uma gravura an­
tiga do Porto no quarto, parto de avião.

À distância mantém-se uma beleza essencial. Mas já não apetece


viver nesta cidade.

140 01 textos por Álvaro Siza


048.1994 05 00 Cidades: Lisboa

Às vezes Lisboa recorda Veneza, junto ao rio, onde o terreno é


horizontal, aqueles poentes longos e doirados, rosa, turquesa e
névoa; ou a nitidez do fundo de um quadro flamengo e a minu­
ciosa formação da cabeleira de um santo ou de um comerciante
ou de uma Eva nua.

Pub. in Rassegna N. 0 59, 1994/111. E tb in [Electa], p. 9, [Skira], p.130 e


[Figueirinhas].

Ignorância de Lisboa

A cidade evidente, entre Santa Apolónia e a Avenida da Liberdade,


passando pela Baixa de lojas quase modestas e águas-furtadas abando­
nadas (a chuva entra pelos telhados e pelas juntas das tiras de plástico),
a Lisboa do Chiado decadente, asfixiado pela nostalgia e subitamente
doirado, atmosfera corroída pela poluição, pelo pó, pelo fumo dos restau­
rantes de rápidos almoços, Lisboa das esplanadas entre lagos de recorte
romântico e filas de automóveis - essa imagem evidente de Lisboa, a do
visitante apressado, o que passa em direcção a outra cidade, cumprindo
estranhos rituais que o centralismo explica - engana.

Se algum acidente obriga a demora, então a Geografia pega-nos pela


mão e a História conduz-nos por corredores de penumbra, com um céu
como um tecto, corredores atravessados por abertos em qualquer direc­
ção, onde a luz entra como uma bofetada, e as súbitas visões cubistas,
fragmentadas e densas, de detalhe agudo como fio de navalha - ou as
massas compactas de grandes estruturas, os conventos, os palácios,
algumas cúpulas ou agulhas que procuram o céu de Lisboa. E logo em
movimento ascendente, ou do fundo de alguma depressão, o que nos
rodeia ganha largo respiro e aparece o Tejo, o Castelo, massas de ver­
dura que os números de análise dificilmente revelam.

Passear em Lisboa: movimento ritmado por um pulsar contínuo e ar­


dente - expansão, contracção - como o bater de um coração com olhos
que vêem longe ou recebem o sopro protector dos muros de reboco

141
fissurado, riscado pelo encosto, de cores não intensas, transparentes,
misturadas semi-cerrando os olhos, cores em deslocamento, condu­
zindo a outra cota e a outra impressão.

Às vezes Lisboa recorda Veneza, junto ao rio, onde o terreno é hori­


zontal, aqueles poentes longos e doirados, rosa, turquesa e névoa; ou
a nitidez do fundo de um quadro flamengo e a minuciosa formação da
cabeleira de um santo ou de um comerciante ou de uma Eva nua.
Os telhados são alçado. Os edifícios de escritórios desalinham-se,
a paisagem ordena-os inexplicavelmente, não tanto como no Rio de
Janeiro. Há algo de alemão, mas nunca áspero, nos bairros econó­
micos do Estado Novo, delgadas bandas entre o verde dos pátios. O
ornato come as pedras de calcário, ou a poluição. Desapareceram
as velas brancas do Mar da Palha. Outros barcos o atravessam.
Gente apressada cruza as passadeiras do Terreiro do Paço, saída do
Cacilheiro, em grossas colunas some-se entre os carros estaciona­
dos, pisa as calçadas de Lisboa, em branco e preto, com desenhos
supostamente antigos, calçadas que o hábil golpe de martelo acon­
chega, calçadas que mantêm o respiro do solo de Lisboa, tão pisado,
aterrado, sugerindo civilizações desaparecidas.

Esta viela tem as janelas que gostaria de desenhar mas não posso, feitas
por mãos de projecto cortadas, tocos de que algo vai nascer. Ao longo
da margem do rio, em bolsas recém-formadas, surgem portas nova-ior­
quinas em segunda mão, multidões na rua como em Madrid, turistas
espanhóis e brasileiros, entre gente alheia ao bulício, que recolhe às 7:30
e parte às 7:30, enchendo as estações do metropolitano forradas de azu­
lejos e de pedintes. A grande massa do Centro Cultural acena aos seus
pares - os conventos e os palácios - espera o rio e o momento de se di­
luir no casario, suporta o perfil móvel das arquitecturas. Cada novo traço
remete inevitavelmente a um traço antigo. Passa o taxista de Tabucchi.

Lisboa apaga a outra cidade de que não falo e de que vive a primeira.
Nas lojas emolduradas a calcário carregado de cicatrizes, ou nas pe­
riferias desoladas entre colinas e sobre colinas, persiste um apetite
irreprimível de regeneração, o impulso dos cataclismos e da persis­
tência, das populações marginadas, imigradas, adaptadas por uma
alegria intensa de viver.

142 01 textos por Álvaro Siza


O ondulado das colinas desdobra-se como um tapete que alguém es­
tende num gesto largo, desenho denso, pedraria de que emergem
grandes volumes de uma simplicidade solene, grandes terraços, muros
de suporte revestidos a gladíola; desdobra-se, percorre o rio, como em
travelling de respiração suspensa. O olhar perde-se no mar, a linha do
horizonte estremece.

143
144 01 textos por Álvaro Siza
049.1994 10 00 Arte - Escultura

(. . .) É nestas áreas que se movem os gestos de Carlos Noguei­


ra: formas autónomas relacionadas entre si e com a paisagem
- o que há de comum à Arquitectura e à Escultura, ou próximo,
deslizante, no interstício do que as distingue.

Pub. in [Skira], p. 43.

Carlos Nogueira

Sou dos que persistem em encontrar nos territórios da Arquitectura


e das (outras) Artes - nomeadamente a Escultura, mas também a
Pintura, ou a Música - uma relação original indestrutível.

O processo de depuração que acompanha o aparecimento da


"Arquitectura Moderna" e a exasperada pesquisa individual e colec­
tiva, no interior dos percursos de uma explosiva transformação, foram
progressivamente corroendo aquele relacionamento, dissociando-as.

Paradoxalmente ou não, diluem-se contudo, ou rompem-se, as frontei­


ras de definição tradicional das práticas e expressões artísticas - sem
que isso signifique o retorno a uma comunhão referida à "Mãe de todas
as Artes". Uma espécie de caldo de cultura, em paralelo a outras ver­
tentes de procura ou de conhecimento.

A escultura contemporânea (se nos quisermos referir a uma delimi­


tação tradicional) compreende a leitura transformadora da Natureza
de Chillida, as figuras de Moore, demarcadas da Natureza de que
dependem, em distante mas perceptível diálogo, ou as "ocupações
temporárias" de Christo, depois das quais nada será como antes.

É nestas áreas que se movem os gestos de Carlos Nogueira: formas au­


tónomas relacionadas entre si e com a paisagem - o que há de comum
à Arquitectura e à Escultura, ou próximo, deslizante, no interstício do
que as distingue.

145
Sou igualmente dos que pensam que a cidade, ou o território, não ne­
cessitam, em princípio, do aceno de "obras de Arte". Uma cidade de
espaços conformados - negativos dos gestos de existência - é exclu­
sivamente por isso bela. Impregnada dessa vida, revela-se excitante e
misteriosa e tranquila - conforme cada um de nós o desejar.

Mas é um facto que as cidades portuguesas, ou o seu território, se


transformam - agora - alheias a esse "fazer parte". O trabalho de
Carlos Nogueira enraíza na resistência a um alheamento que inclui a
tantas vezes gritante demissão de arquitectos e de planeadores.

146 01 textos por Álvaro Siza


050.1994 11 00 Outros Arquitectos: Barragan ( 1)

Nenhuma inovação abandona a antiquíssima razão.


Não há inovação.
Há o reencontrar da inocência, uma conquista do Estado de
Graça, para que se não perca a Memória.

Pub. in Barragan, Obra Completa, Tanais Ediciones, Madrid, 1995, in


Catálogo da Exposição do MOPT de Madrid, e in [Skira], p. 97.

Barragan

Uma Arquitectura que nos envolve como presença física, simples e


densa, impossível de descrever ou de imitar ou de fotografar; univer­
sal e actual.
Q e)(terior não agride; torna-se arquitectura anónima. Contudo - ines­
peradamente e por instantes - habita a solidão das coisas perfeitas;
irrompe nítido, como detalhe saído de uma paisagem desfocada.
Alguém nos conduz pelos espaços.
Deslizamos.
Não apetece falar; e tudo é único, mas nunca absorvente.
A luz favorece o repouso, ou o êxtase. E a cor? Acompanha o variável
estado de Alma. Nunca é definitiva.
Paira uma segunda espontaneidade - a espontaneidade que oculta
um eu carregado de acenos, próximos e longínquos (as fotografias re­
produzem cores vivas e puras; encontramos essas cores em qualquer
rua da Cidade do México, ou numa ruína Maia; mas da visita à casa de
Barragan - a cor que recordo é a do Oiro).

--· Nenhuma Arquitectura de Barragan é perene.


Depende do existir, o dele ou o do Outro. Dos gestos do existir.
Como templo ciclicamente refeito, mas de outro modo, essa Arquitectura
em contínua degradação reconstrói-se na Memória; reencontra-se nas
ruínas, no luxo de um fresco milagrosamente conservado sob a Terra,
disposto à redescoberta - sob os venenos do ar.
Nenhuma inovação abandona a antiquíssima razão.

147
Não há inovação.
Há o reencontrar da inocência, uma conquista do Estado de Graça,
para que se não perca a Memória.

148 01 textos por Álvaro Siza


051.1994 12 00 Reflexão

Sempre para mim o exemplo, ao pensar Arquitectura, veio dos


escritores, e deles os Poetas, artífices competentíssimos do
registo e do sonho, habitantes da solidão.

Pub. in (E/ecta], p. 57.

O exemplo do escritor

Algumas vezes sinto necessidade de escrever - escrevo.

Outras vezes pedem-me para escrever; quando aceito, então é difícil.


Pois cada texto se deve tornar necessidade, ou não significará muito.
Assim igualmente acontece na prática da Arquitectura.

Contudo, a encomenda e todos os problemas inerentes, e a difícil


procura de autenticidade, de necessidade de expressão, libertam­
-nos do silêncio, da espera das razões de falar - interminável, se nos
descuidarmos.

E então reinam as coisas e as pessoas que se agitam de mais (é es­


tranho que de um discurso deva resultar um outro silêncio, no sentido
de serenidade e de disponibilidade - mas assim é).

Sempre para mim o exemplo, ao pensar Arquitectura, veio dos escri­


tores, e deles os Poetas, artífices competentíssimos do registo e do
sonho, habitantes da solidão.

149
150 01 textos por Álvaro Siza
052.1995 03 00 Discurso (DHC), Cidades: Palermo

Discurso de aceitação do Doutoramento Honoris Causa pela


Universidade de Palermo.
Não compreendemos as conversas dos Deuses de Mármo­
re; mas destes terraços e por elas, apesar da névoa eventual,
adivinha-se outra margem, os gestos ágeis dos animais em
liberdade.

Palermo é uma das Minhas Cidades

Palermo é uma das Minhas Cidades.


Amo esta quadrícula - estas ruas que terminam na montanha, ou na
intuição do mar.
Gosto das fontes esculpidas no cruzamento dos eixos - como em
Roma - das estátuas de olhar magnético na Praça Pretória, das árvo­
res dos bou/evards modernistas, semi ocultando fachadas de qualquer
época, inevitavelmente clássicas; das saídas da autoestrada, entre
casas talvez clandestinas, disseminadas na paisagem, subindo sem
nexo pelos montes.
Atraem-me os cais onde chegam os barcos de Nápoles ou de Génova,
na madrugada, quando as ruas estão desertas e os taxistas dormitam;
ou o aparecimento da costa e da montanha, através dos vidros risca­
dos do avião.
Amo essas portas enormes e sólidas, as mãos que as trespassam, em
ferro fundido, crispadas, enegrecidas pelas nossas, quando em glória
assinalamos presença; os pátios entrevistos e as estátuas de mármore
nos nichos, nos recantos, fracturadas, vestidas de trepadeiras; as guar­
das de ferro enferrujado e os ramos das figueiras transformados em
raízes; os rebocos desfeitos que revelam tijolo, cimentos desiguais,
pedras recuperadas, capiteis e pilastras sobrepostos ao acaso, fundi­
dos aos outros materiais.
Gosto dessa persistência renovada, conturbada pelos cruzamentos -
sicanos, fenícios, gregos, romanos, árabes, normandos, franceses e
espanhóis e ingleses.

151
Amo esta cidade entre o azul do mar e o da montanha - e o verde e o
doirado - os bordos dos vales, fora de portas, quando deslizam pelo
sopé da montanha, exibindo um alçado verde quase horizontal; a sur­
presa de uma torre espanhola sobre a rocha ou sobre a praia, depois
de algum aterro selvagem, ou o súbito aparecimento de um baglio de
austera geometria, ou de um armazém de pesca, no extremo de uma
rampa lajeada.
Gosto dos canais de visão sobre a montanha, das perspectivas aéreas,
desde o Monte Pellegrino ou de Monreale, quase como nas gravuras
antigas, quando o céu está límpido e as formas são nítidas, debruadas
a luz - estranhas rugas revelando camadas soterradas da cidade.
Em Palermo - literalmente ou indirectamente - caminhamos sobre
todas as civilizações. A solidez deste solo vem de tais sedimentos, tão
junto ao mar.
Amo ainda as salas dos palácios e dos apartamentos de generoso
pé-direito, os pavimentos em marmorite ou em mosaico, as lajes de
pedra de Billieni, polidas por nós e pelo tempo.
Gosto das palmeiras do Jardim Botânico e das plantas Arte Nova em
pedra ou em cerâmica, das construções extravagantes e dos cubos
apenas perfurados.
Não esqueço as bancas dos mercados de levante, entre a multidão,
carregadas de bluejeans e de plásticos e de fruta e de cerâmica, de
legumes e de peixe ainda vivo; os alfarrabistas e os antiquários, as
gravuras dos viajantes ingleses e as coisas cobertas de pó, as mon­
tras dos confeiteiras, pintadas pelo açúcar colorido; as motos nas ruas
e as vielas bloqueadas por mesas, cadeiras, jogadores de cartas; os
cantos saltando dos rádios portáteis, dos rádios dos automóveis ou
das bancas dos vendedores ambulantes.
Amo as ruas escuras do centro, silenciosas depois do anoitecer, a res­
piração adivinhada dos que aí moram, as luzes amortecidas pelo pó
dos candeeiros e as esplanadas inundadas de claridade e de barulho;
a possibilidade de um banho de mar nocturno e o susto de um som de
passos, na escuridão, quando vagueamos de noite.
Amo finalmente a impressão de presença-ausente dos parentes de
Milão, dos Estados Unidos da América.
Essas gentes ajudam a criar outras cidades, consigo transportando a
sua, fazendo-a reviver.

152 01 textos por Álvaro Siza


Dessas outras cidades retornam os sinais e os modelos, dessas cida­
des onde as casas são iguais, ou quase; como assim as desenham as
crianças.
Em cada uma delas um retrato amarelecido transporta a ligeira dife­
rença; ou alguma fantasia. Delas nasce a grandeza dos monumentos
que por raro privilégio nos chamam a desenhar, a nós os arquitectos.
Depois surgem os campos planos, a perder de vista em Buenos Aires,
e a montanha, e o mar que os rios perseguem; a quadrícula e as dia­
gonais perfeitas de Belo Horizonte, cidade de cem anos, ou as suas
favelas nos morros, nos mais altos barrancos, feitas de uma só cor e de
um só material - em cada quintal a roupa pendurada, alguma criança,
lama, miséria, mais longe a frescura da arquitectura de Niemeyer, reflec­
tida num lago, entre jardins do Paraíso.
Se abrirmos os olhos às colinas, às montanhas e às planícies em torno
de qualquer cidade, pulverizadas de casas até ao horizonte, antes dos
prados e dos trigais - de casas degradadas e até nisso semelhantes
- não poderemos desenhar máscaras e fingimentos e artificiosas dife­
renças, cada dia mais iguais.
Aqui, no Sul da Europa, em frente e tão perto da África que não se
vê, território da subversão e da alegria e da miséria, do outro lado das
águas que de novo podem unir e transformar e transfigurar a frus­
tração, quebrando os parêntesis, talvez esses seres de mármore da
Piazza Pretória, cansados de passado e de sabedorias do Norte, do
Sul, do Leste e do Oeste, renovem o discurso e os olhares se cruzem
com outra intensidade; talvez os cantos naturais e os instrumentos que
as mãos conduzem restituam ao pensamento o desejo de criar.
Não compreendemos as conversas dos Deuses de Mármore; mas des­
tes terraços e por elas, apesar da névoa eventual, adivinha-se outra
margem, os gestos ágeis dos animais em liberdade.
Talvez o que descobrimos e frutificou, mas só em epiderme, um dia
nos impregne.
Talvez sejam de juntar a harmonia, e as ordens sobrepostas sob o
solo, com a degradação - também a fecundidade - do aparente caos.
Será esse porventura o trabalho necessário, a nossa responsabili­
dade, a justificação para Professores e para Estudantes - aqui como
em qualquer parte.

153
Palermo é uma das Minhas Cidades. Nada lhe ofereci a não ser o olhar
maravilhado.
É a Faculdade de Arquitectura desta cidade que agora me honra, de
forma que não julgo merecer, mas que me compraz.

154 01 textos por Álvaro Siza


053.1995 03 12 Arte - Fotografia

Porque não há paredes no mundo para suporte de tanta von­


tade de captar o instante, retirando-o do efémero sem destruir
o espanto.
Pub. in [Skira], p. 46.

Razões para expor a colecção do


Centro Nacional de Fotografia sobre mesas

Porque as paredes de Serralves são demasiado belas para se cobri­


rem com painéis, neles pendurados desenhos, pinturas, fotos.

Porque a fotografia, expressão artística do nosso tempo, documento in­


ventado para a reprodução, a partir de um negativo, exige uma exposição
diferente: página de álbum, palma da mão, livro, plano inclinado sobre uma
cómoda, gaveta, carteira - raramente muro, nas dimensões habituais.

Porque não há paredes no mundo para suporte de tanta vontade de


captar o instante, retirando-o do efémero sem destruir o espanto.

A fotografia, quando se singulariza pela qualidade e pela descoberta,


quando revela o que os olhos não vêem sem a mágica concentra­
ção da câmara, nem então renuncia à capacidade de se multiplicar,
transformando pouco a pouco multidões. Nem mesmo se a qualidade
artesanal da reprodução a torna documento irrepetível.

Aí estão as fotos, sobre mesas banais, como as poisariam os primei­


ros fotógrafos, não pensando se era Arte.
Aí está uma luz não selectiva, difusa, próxima da luz que banha, dia a
dia, os sonhos em constante progressão.

155
166
L_______ _
. 01 tl9xtos por /waro Siza
054.1995 03 27 Arquitectura: Chiado (3)

É indispensável fazer o ponto da complexidade e da persistên­


cia, consolidando-as, como experiência e base de apoio para o
desenho de Lisboa, para o equilíbrio do seu desenvolvimento,
para a possibilidade de uma transformação criativa.

Pub. in [Skira], p. 189.

Apontamentos sobre a Recuperação da Baixa


Pombalina

1. Está em curso a Recuperação da Área Sinistrada do Chiado. Esta


recuperação obedece necessariamente a métodos, e a um ritmo, pró­
prios das suas razões e especificidades.

No entanto, para o êxito e a utilidade desta operação, é necessária e


urgente uma acção complementar, igualmente autónoma e relacioná­
vel: a recuperação da Baixa de Lisboa.

Essa recuperação, pela dimensão e influência na evolução da cidade


e em especial do Centro Histórico, exige uma outra estrutura orga­
nizativa e diferentes métodos, um maior distanciamento - não um
desconhecimento - em relação aos problemas de urgência e imedia­
tismo inerentes à recuperação do Chiado, tal como foi equacionada.

A estratégia recomendável passa pelo lançamento de uma acção


articulada com as outras em curso no Centro Histórico, dispondo
igualmente de autonomia e meios de médio e longo prazo, comple­
mentando e sedimentando os resultados da prática e da pesquisa na
recuperação do Chiado.

Essa complementaridade será igualmente condição do êxito desta re­


cuperação, extraindo-a da latente insularidade.

A aproximação a uma capacidade de resposta não simplificadora


ou redutora inclui essa interacção, o mútuo controle entre Plano de

157
progressiva solidez técnica e teórica e Projecto sensível à multiplici­
dade de condicionantes.

2. Aparentemente, as regras para a recuperação da Baixa estão inscritas


em pedras persistentes, nos Arquivos da Cidade - nos desenhos origi­
nais e em fotos.

E em parte assim é. Mas só em parte.

Ao longo da construção desse edifício unitário que é a Baixa, rigorosa­


mente feito de elementos pré-fabricados, de elementos montados de
acordo com um sistema modular que tudo prevê, instalou-se progres­
sivamente a hibridez, cruzamentos vários que foram construindo a sua
rica complexidade, a sua deslizante capacidade de absorção.

A diferença sobrepôs-se ao Plano sem o destruir. Nenhum pormenor


é exactamente igual a outro, ao realizar-se. O rigor abre-se à circuns­
tância e legitima um vasto catálogo de traições. Tudo identifica a Baixa
- da Agência Havas à esquadria de guilhotina, nas ruas de serviço.

É essa a lição essencial da Baixa Pombalina, sobreposta à sua


decadência.

É indispensável fazer o ponto da complexidade e da persistência, conso­


lidando-as, como experiência e base de apoio para o desenho de Lisboa,
para o equilíbrio do seu desenvolvimento, para a possibilidade de uma
transformação criativa.

A maior dificuldade estará na exemplar manutenção dessa de­


licadíssima e fugidia riqueza, sem a tornar arquivo museológico
- compatibilizando-a com a modéstia, ou a pobreza, da raiz tipológica:
casas de pequena profundidade, pátios de largura inadequada, em
pouco generosos quarteirões.

O desafio estará na reutilização desses quarteirões, imaginando a sua


flexibilidade e preservando integralmente a qualidade morfológica.

Sem essa redescoberta, que periferia poderemos encontrar, e que


centros a poderão legitimar?

158 01 textos por Álvaro Siza


055.1995 04 25 Arquitectura: Biblioteca da Universidade de
Aveiro, Bibliotecas

A biblioteca moderna perdeu essa atmosfera "quase de sótão"


e também o valor simbólico, glorificado em cúpulas, em cilin­
dros, em tectos a/tíssimos e modulados.

Pub. in [SkiraJ, p. 194 e in [Figueirinhas].

Bibliotecas

Gosto das bibliotecas antigas.

Não estou a pensar nos grandes episódios arquitectónicos deste tipo de


edifício - a Laurenziana, Lubliana, Viipuri, Estocolmo, Coimbra, Escorial;
ou na Biblioteca de Alexandria, ou a de Constantinopla, as únicas des­
truídas pelo fogo - tanto quanto sei - e não sei como eram.

Penso nas bibliotecas de tantas Universidades inglesas e americanas,


naquela de Barcelona, perto da Catedral, nas pequeníssimas salas de
leitura de jardim público, aqui em Portugal, ou em Macau - para dar
um exemplo.

Gosto da ordem das estantes, das etiquetas em latão e dos candeei­


ros individuais em bronze e seda, anónimos, intimistas; das escadas
de navio e das estreitas galerias em ferro, onde a procura de um livro
é uma viagem - não isenta de perigos.

A biblioteca moderna perdeu essa atmosfera "quase de sótão" e tam­


bém o valor simbólico, glorificado em cúpulas, em cilindros, em tectos
altíssimos e modulados.

Perdeu essa poalha de luz doirada - materializada por algum pó no ar


- vinda de janelas a uma altura inesperada, sempre insuficientes para
iluminar com eficácia, solicitando o apoio dos pequenos candeeiros
verdes. Perdeu igualmente a possibilidade de tornar a ser como era

159
- nas suas várias versões - e sem dúvida e definitivamente distanciou-
-se dos caminhos da nostalgia.

Tudo se foi tornando prático, ergonómico, higiénico, codificado no


Neufert, luminoso por igual, alinhado - estantes como os vagões de
um comboio abandonado, estofos de cadeira laváveis e confortáveis.

Mas começou a faltar "qualquer coisa"...

O projecto da Biblioteca de Aveiro reflecte - e não poderia resolver - a


procura de tal "qualquer coisa", latente no sempre renovado encantamento
de ler, de ver, de escutar - dentro dos olhos, na intuição do dourado.

160 01 textos por Álvaro Siza


056. 1995 05 00 Móveis, Design
O sofá apela à indefinição, quase à desordem, é necessário
um alfaiate que compreenda o corpo inteiramente. Um sofá de­
forma sob o peso do corpo, as molas lentamente perfuram os
tecidos.

Pub. in [Skira), p. 53, [Saint-Étienne), p. 116 e in Álvaro Siza, Móveis


e Objectos, ed. Figueirinhas, 2003 (bilingue, português e inglês), (sem
numeração de páginas).

Sofás

Já é difícil desenhar uma cadeira.

Mas que diabo! Ao menos são formas geométricas, que a máquina


executa, se a soubermos programar.

Num sofá há essa moleza que o conforto exige, indesenhável, essa


moleza rebelde, próxima do informe.

A cadeira pode ser leve, pequena, transportada uma a uma ou


empilhável.

Não causa engulho quando mudamos de casa.

Mas um sofá! É maior e mais pesado e mais vulnerável. Os estofos


resistem mal ao choque, à agressão das arestas, estão em perigo por­
que não acusam instantaneamente os ferimentos.

Quando fui chamado a desenhar um map/e pensei nisso e nas limi­


tações da geometria, tentei tornear a difícil representação, a difícil
comunicação com quem faz.

O sofá apela à indefinição, quase à desordem, é necessário um al­


faiate que compreenda o corpo inteiramente. Um sofá deforma sob o

161
peso do corpo, as molas lentamente perfuram os tecidos. Há novos
materiais, cómodos e laváveis e indeformáveis, é certo, para encher as
almofadas, os apoios dos braços e da nuca.

Mas onde a magia de um sofá desventrado no sótão da avó?

162 01 textos por Álvaro Siza


057.1995 05 25 Discurso (DHC), Desenho

Discurso de aceitação do Doutoramento Honoris Causa pela


Universidade Lusíada.
O tempo é o maior inimigo da Arquitectura, quando em seu
nome não é permitida a normal maturação de uma ideia, com
prejuízos materiais e espirituais ignorados.
E o tempo é o maior amigo da Arquitectura, o tempo que distin­
gue o que permanece e o que se dissolve, o tempo propiciador
de magníficas patines e de complexas sobreposições, o tempo
que não tem pressa, resistente imbatível.

Doutoramento Honoris Causa

[o autor refere, a propósito da presença de Fernando Távora, seu antigo professor de


Projecto, a Escola de Belas-Artes do Porto) O curso de Arquitectura de então
limitava-se a uma pequena família de estudantes e mestres, deslum­
brada pelo empenho em responder, também através da Arquitectura,
a um desejo de transformação liberto de nacionalismos e alimentado
pelo que há de criador na persistência das raízes.
Esta Universidade Lusíada, como outras, é hoje frequentada por 1 200
estudantes de arquitectura.
Penso na dimensão da mudança e na responsabilidade em acom­
panhar a sua formação, na procura das aptidões e das condições de
intervenção necessárias a que venham a ser profissionais humana­
mente realizados - e realizadores.
Pouco poderei contribuir para isso.
A minha actividade como docente é hoje reduzida. Não fui capaz de
abdicar da minha paixão pela Arquitectura, nem consegui ou me foi
permitido conciliá-la, de modo satisfatório, com as exigências da acti­
vidade docente.
Movo-me assim entre sentimentos de traição e de justa opção, justa ao
considerar a intransigente resistência indispensável à prática e à evolu­
ção da Arquitectura.
Existe hoje uma evidente tendência a considerar o território do arqui­
tecto limitado ao desenho e ao conhecimento das regras. Já o ouvi

163
descrito como esquissador, com mais comiseração do que apreço.
Mas a Arquitectura não acaba no papel. Habita o espaço e contém es­
paço. Está mais próxima da Música do que da Pintura.
A obsessão contemporânea da divisão de trabalho e da especialização,
aliada à incapacidade ou impreparação ou desinteresse em articular as
diferentes especialidades envolvidas no projecto e na construção, por
cálculo ou por dificuldade, tem erguido fronteiras e proposto exclusões,
o que explica em grande parte as pobres marcas gravadas no território
e a triste elementaridade da maior parte do que dele se ergue.
Por outro lado, o aparecimento de novos e preciosos instrumentos de
trabalho e de comunicação, capazes de aumentar o rigor, a rapidez e
a capacidade de coordenar, tem desenvolvido a ambição de ultrapas­
sar o que pouco, através dos séculos, tem mudado: a capacidade e a
necessidade e o desejo de reflectir, de deixar fluir o que não é tão pre­
visível como para arquivar em disquete, o que não é preconceito.
O tempo de reflexão.
O tempo é o maior inimigo da Arquitectura, quando em seu nome não
é permitida a normal maturação de uma ideia, com prejuízos materiais
e espirituais ignorados.
E o tempo é o maior amigo da Arquitectura, o tempo que distingue o
que permanece e o que se dissolve, o tempo propiciador de magníficas
patines e de complexas sobreposições, o tempo que não tem pressa,
resistente imbatível.
À Arquitectura compete, hoje como sempre, construir os lugares da paz,
da estabilidade, da liberdade e da segurança, do conforto e da intimidade
e do convívio, do esquecimento e do sonho constantemente proibido.
Isso e muito mais cabe à Arquitectura e aos que a estudam. É-me
grato imaginar que a honra que me é concedida corresponde ao re­
conhecimento do empenho de um arquitecto em comunicar a outros
e partilhar com outros, ainda que por forma distante e imperfeita, pre­
ocupações e convicções que interessa transmitir aos que a estudam
porque a amam.
Se assim é, então poderei aceitar com tranquilidade essa honra, e
também - quase com um sorriso nos lábios - o outro lado da moeda
que nos cabe.

164 01 textos por Álvaro Siza


058.1995 07 00 Reflexão

Ouço-a mais velha. Adivinha-se o conhecimento, a experiên­


cia, os recursos e os apoios.
Mas perdeu-se o encantamento, o oiro no ar.

Pub. in [Skira], p. 42.

Sobre a espontaneidade

Ouço uma famosa cantora portuguesa.


Ouço-a nos vinte, nos trinta anos - uma voz cristalina, uma esponta­
neidade absoluta - imprevisível, não procurada.
Ouço-a depois aos quarenta, espontaneidade construída, alguma nostal­
gia e a perfeição que menos inteiramente satisfaz, mesmo se perfeição.
Uma cantora.
Assim acontece nos gestos de cada um.
Assim acontece, inevitavelmente, com os arquitectos e a Arquitectura.
Ouço-a mais velha. Adivinha-se o conhecimento, a experiência, os re­
cursos e os apoios.
Mas perdeu-se o encantamento, o oiro no ar.
Assim se passa com os Arquitectos. Lápis: podes riscar o papel com
fúria e com paciência. Passou o encantamento, definitivamente pas­
sou o encantamento.
Das ondas não nasce a inspiração. Assim. A voz de arquitecto velho é
rouca.

165
,,
,,

166 01 textos por Álvaro Siza


059.1995 10 00 Ensino, Pedagogia

A Arquitectura é Arte ou não é Arquitectura. Não é mãe das


Artes porque a elas não dá origem, sendo como elas autónoma
e avessa à dispersão.

Jornadas Pedagógicas na FAUP, Pub in [Skira], p. 28. E tb in Casabella 770


Ottobre 2008, p. 3 a 5 (Sulla pedagogia). Trad. ingl. p. 107 (On pedagogy).

Sobre Pedagogia

As Notas que apresento sobre o Ensino da Arquitectura assentam em


algumas convicções, certamente discutíveis, decorrentes da minha
circunstancial e fragmentária experiência como Arquitecto e como
Docente, as quais assim resumo:

1
• O Arquitecto não é um especialista. A vastidão e variedade de co­
nhecimentos que a prática de projecto hoje envolve, a sua rápida
evolução e progressiva complexidade, de modo algum permitem co­
nhecimento e domínio suficientes. Relacionar - projectando - é o
seu domínio, lugar do compromisso que não signifique conformismo,
da navegação entre a teia das contradições, o peso do passado e o
peso das dúvidas e alternativas de futuro - aspectos que explicam a
inexistência de um Tratado contemporâneo de Arquitectura.

O Arquitecto trabalha com especialistas. A capacidade de rela­


cionar, utilizar pontes entre conhecimentos, criar para além das
respectivas fronteiras, para além da precariedade das invenções,
exige aprendizagem específica e condições estimulantes.

• O problema de construir uma casa já não é isolável. Cada unidade


de projecto, pela sua verificada multiplicação, constitui mediação
entre interesses gerais e individuais - exige ideia global e apro­
ximação detalhada, em simultâneo - reais ou simuladas; exige
relação entre Plano e Projecto, cada um contendo o outro, sem

167
o outro limitar ou dispersar, ou hierarquizar, minorizando num ou
noutro sentido.

• Na sociedade em que vivemos é impensável projecto sem diálogo,


sem conflito e encontro, sem dúvida e convicção, alternadamente,
em conquista da simultaneidade e da liberdade.

2
De um modo geral, o Ensino contemporâneo da Arquitectura não se
relaciona com esta condição, ou por ela não ser real, ou por a ela não
ser prestada atenção (e é nisso que acredito).
Na minha perspectiva, e de imediato, o Ensino da Arquitectura exige
pelo menos:
• Trabalho quotidiano real e não simulado, em inter-disciplinaridade.
Os interlocutores podem ser docentes, em exercício constante­
mente coordenado, ou a isso pode corresponder um por agora
muito difícil relacionamento entre Cursos diferentes.
• A aquisição de conhecimentos - sempre são provisórios e insufi­
cientes os conhecimentos - exige sobretudo a aprendizagem da
capacidade de interrogar, de contínua abertura e espírito crítico,
o oposto a Cartilha ou Sebenta ou Bíblia. A composição do corpo
docente deve ser organizada em consonância com o referido, ul­
trapassando conceitos de carreira e hierarquia (ou a eles não se
limitando). Uma Escola tem de ter meios para alimentar essa vita­
lidade e flexibilidade.
• A aprendizagem - a aquisição da capacidade de continuamente
aprender - continua a centrar-se, em meu entender, no desenho -
no aprender a ver, a compreender, a exprimir - e na história - no
sentido de conquista da consciência do presente em devir.
• A aprendizagem da construção - da capacidade de com outros
construir - não é dissociável da Arquitectura, pelo que não devem
existir disciplinas diferentes, mas antes convergência, em cons­
tante conhecimento de que nenhum acto criador se dissocia da
materialidade do seu acontecer.
• Nenhuma ideia de oposição entre paisagem - percepção e cons­
trução do território - e objecto - fragmento do território - tem lugar
no ensino da Arquitectura.

168 01 textos por Álvaro Siza


3
A Arquitectura não permite e não aceita o improviso, a ideia imediata e
directamente transposta. A Arquitectura é revelação de desejo colec­
tivo nebulosamente latente. Isso não se pode ensinar, mas é possível
aprender a desejá-lo.

Por isso, Arquitectura é risco e o risco procura o desejo impessoal e o


anonimato, a partir da fusão de subjectividade e objectividade. Em úl­
tima análise, em progressivo distanciamento do Eu.

A Arquitectura significa compromisso transformado em expressão radical,


isto é, capacidade de absorver o oposto e de ultrapassar a contradição.
Aprender isso exige um ensino à procura do Outro dentro de cada um.

A Arquitectura, arte colectiva, é inimiga da arrogância e da falta de am­


bição, do elogio da auto-castração (em nome da suposta limitação do
Outro), da inversão da arrogância, das supostas razões sociais da me­
diocridade. O desejo colectivo manifesta-se em cada pedra e em cada
poro e revelá-lo é a única forma de não ser elitista. A perseguição do
sublime identifica-se com a função social do Arquitecto, porque o de­
sejo do sublime não é invenção do Arquitecto.

A Arquitectura exige a perfeição do detalhe até à dissolução do detalhe. X

Anúncio de esperança nos caminhos da Arquitectura surge no renovado


interesse dos Artistas por essa disciplina - Donald Judd ou Heerich ou
Cabrita Reis, ou outros menos conhecidos. Esse interesse decorre da
autenticidade que eles encontram na Arquitectura. É curioso ver o ca­
minho inverso de tantos Arquitectos - a pretensiosa procura do título
de Artista, ou a sua envergonhada recusa, sob os mais variados pre­
textos, mesmo invocando - mal - as palavras de grandes Arquitectos,
como Adolf Loos. A Arquitectura é Arte ou não é Arquitectura. Não é
mãe das Artes porque a elas não dá origem, sendo como elas autó­
noma e avessa à dispersão.

169
170 01 textos por Álvaro Siza
060.1995 11 00 Cidades: Rio de Janeiro

Fulminantes, de vez em quando, com flores a sair da boca


- Natureza e Arte em continuidade e ruptura, como o mar
e a areia, ou como o desenho quase paralelo dos distantes
Continentes.

Pub. in [Skira], p. 120.

Rio de Janeiro

Gostaria de ser arquitecto no Rio de Janeiro.

Quando se comete um erro, imagino, logo a Natureza acorre. Dos terra­


ços e das janelas e das portas, do primeiro ao vigésimo piso, rebentam
folhas, flores, ramos, enlaçando casas e penhascos. As ruas são cober­
tas pelas copas das árvores; as trepadeiras crescem sobre as fachadas
e sobre as escarpas, amaciam a violência da luz e das formas.

Em caso de desespero surge o Pão de Açúcar ou o Corcovado.

Os penhascos do Rio e as curvas da costa sugerem a Arquitectura;


obrigam-na contudo a deles se demarcar. Por isso nascem Burle Marx
e Niemeyer e a Música e o Cinema e a Literatura e a Arquitectura do
Brasil. Fulminantes, de vez em quando, com flores a sair da boca -
Natureza e Arte em continuidade e ruptura, como o mar e a areia, ou
como o desenho quase paralelo dos distantes Continentes.

171
172 01 textos por Alvaro Siza
061. 1995 12 00 Apresentação

(. . .) pode aprender-se a tudo pôr em relação, substituindo a uni­


versalidade a sós, que não tem a ver com o Homem e o saber
contemporâneos, pelo exercício das capacidades e conheci­
mentos de cada um em cada momento, de forma a potenciar a
evolução e o entusiasmo do grupo e de cada um.

Livro Construir Ideias da Texto Editora. Texto introdutório de Álvaro Siza


pub. in (Skira), p. 27.

Construir ideias

Experimento uma sensação de regozijo, ou talvez simplesmente de


esperança, enquanto escrevo algumas linhas a propósito da publica­
ção do Livro Construir Ideias - Educação Visual e Tecnológica, dos
Professores Maria José Vaz e Carlos Gomes.

O conteúdo do livro relaciona-se directamente com matérias que, por razões


profissionais, particularmente me sensibilizam: ambiente e arquitectura.

Mas esses são temas que interessam a todos e de cujo tratamento


todos dependem, embora muitos disso não tenham completa consci­
ência, alheando-se do direito e da capacidade de participar.

A conquista da qualidade de ambiente depende de uma sensibilização


generalizada, tanto quanto a ausência dessa sensibilização gera uma
progressiva degradação.

Uma consciência de inutilidade atravessa frequentemente o espírito


dos vários agentes directos da transformação do ambiente, ao con­
templar, do seu ghetto forçado, a cega e irresponsável caminhada
para a catástrofe.

Os que mais se esforçam, nessa situação de isolamento, são cedo ou


tarde acusados de elitismo - conceito nem sempre claro, utilizado às
vezes para manter a aceitação da ignorância.

173
É por isso premente, também para o desempenho desses agentes, uma
abertura de informação desde cedo e a todos, acabando com os mitos da es­
pecialização, da incomunicável complexidade das várias especialidades.

A informação é o primeiro passo para o abrir dos olhos que olham mas
não vêem - des yeux qui ne voient pas, dizia Le Corbusier. Nenhum
esforço isolado ou colectivo dos agentes especializados da transfor­
mação do ambiente é eficaz, caso esse esforço não corresponda a
uma exigência colectiva, feita de exigências individuais e decorrente
de um conhecimento generalizado.

Os Autores propõem um tratamento dos muitos temas apresentados


nunca em sintonia com o "espírito de cartilha". Do Tecnológico ao Social,
da Geografia à História, da Percepção à Representação do Real, o livro
percorre uma multiplicidade de campos do saber, enfrentando os peri­
gos da superficialidade ou da dispersão ou do desânimo, eventualmente
provocados pela profundidade e variedade desses temas.

Mas essa não é mais do que a condição do nosso Mundo, hoje. A


gradual experiência, o diálogo e a prática concentrada em objectivos
concretos, impedem aquela tendência e abrem caminho a uma apren­
dizagem equilibrada e não "ansiosa".

A terceira parte do livro - Unidades de Trabalho - explica e promove


os objectivos e métodos propostos. Cada Unidade de Trabalho é con­
frontada com um problema concreto, passível de necessidade e qe
desejo, capaz de desencadear o diálogo e a aprendizagem. Torna-se
inevitavelmente evidente a impossibilidade de dominar a infinidade de
campos do saber envolvidos. Mas pode aprender-se a tudo pôr em re­
lação, substituindo a universalidade a sós, que não tem a ver com o
Homem e o saber contemporân�s, pelo exercício das capacidades e
conhecimentos de cada um em cada momento, de forma a potenciar a
evolução e o entusiasmo do grupo e de cada um.

É exactamente este tipo de entusiasmo aberto que vem faltando no es­


paço escolar; e isso não tem só a ver com a Escola ou com o 5° ano do
Segundo Ciclo.

Também nisso está a virtude da disciplina que este livro apoia.

174 01 textos por Álvaro Siza


062.1995 12 00 Cidades

Todas as cidades são a minha cidade, à qual sempre regresso.


Tudo é então diferente, pois conheço o que é diferente. Os olhos
abrem-se à minha cidade, sou de novo um estranho maravilha­
do, capaz de ver: de fazer.

Pub. in Casabella n. 0 630-631, Janeiro-Fevereiro 1996. E tb in [Figueirinhas].

Cidade

De uma forma ou de outra, todas as cidades são a minha cidade.

O fascínio de cada cidade - o sempre diferente fascínio - irresistivel­


mente nos obriga a adaptá-la, ou ela nos adapta.

Em cada cidade há algo que tudo liga, em justificação recíproca; si­


multaneamente, há algo que tudo distancia, por múltiplas influências e
exotismos evidentes.

Em antiquíssima alquimia surge, quase inexplicável, a essência de cada


cidade, para lá da Geografia e da História registada, do peso das maté­
rias próprias.

Ecos de cruzamentos transformam as cidades, lenta e progressiva­


mente, ou de súbito. Entrechocam-se, dissolvem-se nos interstícios
das origens, impressionam-nos, a nós que arrastamos outras ondas.

Tudo isso acontece por igual na cidade onde vivemos; só assim não
morre.

O peso das raízes põe-se por isso de igual modo onde quer que nos
seja dado trabalhar; a possibilidade contemporânea de chamamento a
largas viagens estimula através dos olhos e da mente.

175
Se por inteiro perdermos as amarras, arriscamo-nos a um despren­
dimento que roça o vazio e se aproxima do gratuito. A alternativa é a
de uma receptividade universal capaz de despertar as raízes de cada
cidade, prolongando-as em caule, ramos, folhas, flores, frutos, em
qualquer lugar.

Todas as cidades são a minha cidade, à qual sempre regresso.

Tudo é então diferente, pois conheço o que é diferente. Os olhos abrem­


-se à minha cidade, sou de novo um estranho maravilhado, capaz de
ver: de fazer.

176 01 textos por Álvaro Siza


063.1996 12 00 Cidades, Pedagogia

Quase todos nós suportamos um carimbo de "competência es­


pecializada". E afinal, só pode desenhar bem uma casinha quem
viveu a experiência de desenhar um museu, e vice-versa.

A ideia primária de especialização

Lembro-me de assistir à apresentação do projecto de um edifício pú­


blico, do qual o arquitecto fazia a seguinte descrição: trata-se da sede
do Município de uma pequena cidade medieval em processo de cres­
cimento. O edifício está enquadrado por construções de pequena
dimensão. Fragmentei o seu volume, com o propósito de não romper
a escala pré-existente.
Surgiu-me de imediato a imagem do perfil do Porto. Um grande cubo de
paredes lisas, perfurado por janelas, em ritmo regular, sobrepõe-se ao
casario compacto. O contraste é violento. Mas este edifício - o Palácio
Episcopal - estabelece relações com outros igualmente autónomos (igre­
jas, monumentos, teatros, estádios de futebol, conventos, hospitais,
bibliotecas, pontes, museus).
O equilíbrio, o conforto e a própria habitabilidade das cidades depen­
dem desses contrastes, visualmente perceptíveis, ou na memória.
Esses edifícios emergentes dependem ainda, na sua definição, do re­
lacionamento com acidentes topográficos, massas verdes, extensas
ou concentradas, ou com uma árvore ou o mar ou a longa margem
construída de um rio.
Seja qual for a "conversação" entre "protagonistas" (gestos de identi­
dade, sinais constantemente trocados, coro de vozes pouco a pouco
acrescentadas), o cimento da cidade consiste no tecido de construções
contínuo e aparentemente banal, feito de repetição e de contenção, de
cuja vivência depende afinal a necessidade de monumentos.

Quando a cidade aumenta, o município - a casa de todos os cidadãos


- necessita de maior área; escondê-lo afecta toda a cidade. O espraia­
mento do tecido construído vai alterando o sistema de relações; há um

177
perpétuo movimento que tende a refazer o equilíbrio da cidade.
Esse movimento encontra ritmos diferentes em New York ou em
Amarante; mas existe sempre, como existe entre cidades e regiões,
entre Natureza e Construção. A acção do arquitecto habita o interior
dessa perpétua deslocação. Há um ballet quase imperceptível e inin­
terrupto na superfície terrestre, e quem não segue os movimentos dos
coros ou dos solos não pode participar (Al/egro, Andante, Adagio ...).
O arquitecto não é o bailarino. Mas, como qualquer carpinteiro ou elec­
tricista de cena, ou encenador ou participante imóvel, deve conhecer o
ofício, aprender a não usar demasiada luz ou luz de menos, expressão
excessiva ou insuficiente, e a não atribuir igual significado a qualquer
gesto e a qualquer voz.
Essa aprendizagem é incompatível com a ideia primária de especia­
lização (arquitecto competente para casinhas, arquitecto competente
para museus, arquitecto competente para arranha-céus).

Quase todos nós suportamos um carimbo de "competência especia­


lizada". E afinal, só pode desenhar bem uma casinha quem viveu a
experiência de desenhar um museu, e vice-versa.

178 01 textos por Álvaro Siza


064.1996 12 02 Arte - Fotografia: Basílica (1)

É necessário viver dentro da beleza, reconhecê-la, para não


desesperar.
E ela aí está (para os olhos que a saibam captar) silenciosa e
habitada pela ausência, como nos ensina a câmara mágica de
Basílica.

Gabriele Basílico 1

1. "Matosinhos de há 30, 40 anos...


As traineiras primitivas, os mestres iluminados, as obras do porto e
os engenheiros, a Capela de Santo Amaro em demolição, os mes­
mos personagens, todos os dias, nos portais de Brito Capelo, o
mesmo padre, também o mesmo Presidente da Câmara, a Legião,
a Mocidade Portuguesa obrigatória, a Defesa Civil do Território, com
papelinhos colados nas janelas, os Doutores, uma ou outra mulher
que traía o marido, anglófilos e germanófilos, cinéfilos, banheiros, o
volfrâmio e a massa de tomate.
Beatas e pedintes no adro da matriz, o vermelho do sacristão, Coro
de Leça, Orfeão, Casino, Constantino Nery, Tom Mix, tambores do
Fú-Manchú. Os que viviam no mar, ou a olhar o mar, e foram arru­
mados no Bairro dos Pescadores, à força, em casas cor-de-rosa,
de beiral oriental.
As ilhas sobreabitadas durante a campanha, depois abandonadas,
as casas de penhores, marinheiros bêbados dos petroleiros, os in­
cêndios dos depósitos da Móbil, junto à Serração, os primeiros bares,
casas de prostituição, Festas do Senhor de Matosinhos com arcos
em papel e madeira, "mulheres de fábrica" em bandos, a provocar
cantando, também a Vinícola, armazém de operários e de doença.
Esse Matosinhos desapareceu, transformado por si próprio e tam­
bém, para mim, pelos meus olhos."1

Assim evocava, em 1985, os anos quarenta da cidade onde nasci.


1 Entrevista incluída em José Salgado, Atvaro Siza em Matosinhos, edição do Pelouro da Cultura e
Turismo da Câmara Municipal de Matosinhos, 1985.

179
Esse Matosinhos não desapareceu por inteiro; encontra-se em pro­
cesso de grande e natural transformação, resiste e renova-se.
Daí, também, a oportunidade do registo feito por Gabriele Basílica.
Oportunidade como memória, mas sobretudo como referência ne­
cessária à acção, como ferramenta-de-abrir-os-olhos a quem não
tenha a profundidade de visão de um grande fotógrafo - a capaci­
dade de destacar e analisar, sem desfocar a inconfundível atmosfera
de uma cidade (Des yeux qui ne voient pas, dizia Le Corbusier).

2. Confirmo-o agora: memória e percepção juvenil não me atraiçoaram.


A imagem desencantadamente encantada que tinha de Matosinhos,
imagem de variedade por trás do que parece banal, encontro-a com
outra nitidez e desprendimento na escolha e na representação da
sequência incluída neste livro.
Longas visões horizontais, seja mar, ou porto, ou rua, ou praia ou
pátio de ilha, barco ou rocha ou corpo de fábrica - perfis recortados
sobre um céu de nuvens esfarrapadas, ou sobre um vazio, um des­
focado a anunciar o mar.
Massas horizontais nas quais, com esforço, se distingue o detalhe,
delas se desprendendo uma aura de excrescências complicadas:
chaminés que o fumo amplia, postes de electricidade, subdivisão
em vertical das caixilharias, células estreitas e de altura variável
recortando as cérceas e as fachadas, águas-furtadas, camisas a
secar suspensas de uma corda, telhados em bico, cruzes, faróis,
palmeiras, gordos depósitos de combustível, frontões com o nome
de uma fábrica abandonada, à espera de alguma discoteca.
Uma cabeleira emocionante - agitada e estável - sobre uma massa
compacta e uniforme-à distância (nos cais e na praia, ao pôr-do-sol,
alongam-se as sombras de um ou outro camião, de um ou outro cai­
xote, de dois banhistas perseverantes - objectos solenes de uma
natureza morta de Morandi).

É esta a cidade. Não há muralhas que a contenham. Mas os cabos


aéreos de energia e de comunicação e a linha-férrea sobre os cubos
de granito atam casas e espaços, como caixilho sobre um quadro
pontilista.

180 01 textos por Álvaro Siza


3. É necessário viver dentro da beleza, reconhecê-la, para não
desesperar.
E ela aí está (para os olhos que a saibam captar) silenciosa e habi­
tada pela ausência, como nos ensina a câmara mágica de Basílico.
Nessa imobilidade e ausência podemos igualmente captar o apelo e
a estrela da latente transformação, a disponibilidade à perfeição.
A presença de um homem num cruzamento de ruas.

181
182 01 textos por Álvaro Siza
065.1997 01 12 Arte - Fotografia: Basílica (2)

"Dietro ai caos, emerge l'immagine di un territorio che pur a


fatica resiste al/'omologazione. Ma fino a quando?"

Pub. in Catálogo da Exposição A Experiência dos Lugares (L'Esperienza


dei Luoghi), no CCB, em 1997. E tb in [Skira], p. 45 e in Arquitectura em
Portugal - um roteiro fotográfico, Dafne Editora, Porto, 2006, p. 162, 163
(livro contendo os conteúdos da exposição apresentada na V Bienal de
Arquitectura de São Paulo Desenhos nas cidades, arquitectura em Portugal,
com fotografia de Gabriele Basílica. Comissariada por Álvaro Siza, com
Maddalena D'Álfonso, João Soares, António Madureira, André Tavares).

Gabriele Basílica 2

1. Quando recordo a minha primeira visita a Berlim, e o primeiro pro­


jecto, revejo aqueles muros cegos de Kreuzberg, de rude textura,
libertos pelos desastres da guerra e dos planos.

Perguntei-me um dia porquê. Subitamente consciencializadas, surgi­


ram imagens de filmes, as fotografias que o fim da guerra revelou.

Apercebi-me então da agudeza das objectivas - em mãos de quem


saiba ver - e da sua capacidade de captar o que depois fascina.
Estou certo de que quando Le Corbusier - ele próprio um fotógrafo,
como Picasso, como Brancusi - dizia "des yeux qui ne voient pas",
pensava, por oposição, na multiplicada capacidade de ver dos olhos
cultivados de um fotógrafo.

2. A fotografia fascinou os Impressionistas, lançando-os na tarefa im­


possível de captar o instante; fascinou os Cubistas, levando-os, para
sobreviver, a mudar o modo de representação da realidade, dela so­
brepondo ou justapondo os incontáveis planos.
A fotografia passou a conduzir - mesmo se por contraste - a procura
de representação da realidade e, por isso, a sua transformação.

183
3. Gabriele Basilico expõe no Centro Cultural de Belém uma selecção
de fotografias, correspondente a muitos anos de registo da cidade e do
território. Esse registo oscila entre as ruínas e a transformação do ter­
ritório, pela pulverização de construções de variado e limitado tipo. De
ambos os casos resultam imagens de extraordinária beleza, apesar de
que todos nós - e ele próprio - nos interroguemos sobre a evolução
desse derrame de construções desrelacionadas, ou sobre a destruição
causada por desastres ou por opções.
Considerando essa beleza latente: será essa a realidade (e há erro
nos nossos olhos) ou será ilusão de câmara fotográfica, manejada por
quem sabe? Na interrogação final do texto de Basilico sobressai a in­
quietação e o sentimento de colectiva dificuldade de mudança; mas
também o encantamento provocado por tudo o que o homem contra­
põe à natureza: "Dietro ai caos, emerge l'immagine di un territorio che
pur a fatica resiste all'omologazione. Ma fino a quando?"

Esta preocupada e preocupante pergunta não exclui a vontade de in­


tervenção e também a esperança - esperança na resistência e na
grandeza da natureza, evidentes de uma janela de avião, a grande al­
tura, ou no distanciamento de uma objectiva rigorosa.

184 01 textos por Álvaro Siza


-�
066.1997 04 00 Pedagogia

A jovem geração de arquitectos Portugueses está mais livre de


inibições e contradições (inovação ou tradição, internacionalismo
ou regionalismo) do que as gerações imediatamente anteriores.
(. . .). O reencontro da modernidade assume então e pela primeira
vez desde há muito tempo uma posição de "contemporaneida­
de'; simultaneamente de universalidade e de compreensão da
história como devir.

Exposição em Frankfurt

1.
Portugal é um País de pequenas dimensões: 800 kms de costa,
98 000 km2 de área, uma média de 250 kms entre o Atlântico e a fron­
teira com a Espanha.
Quem o percorre de norte a sul e da costa ao interior surpreende-se
com a variedade da paisagem e da arquitectura.
Esta variedade deve-se à geografia e às complexas raízes culturais, à
presença histórica de diferentes civilizações, da fenícia à romana, da
celta à islâmica.
A arquitectura vernacular Portuguesa reflecte essa complexidade re­
gional; varia desde a austera geometria das casas de granito, madeira
e telha ou ardósia, no norte, do Minho a Trás-os-Montes, à brancura
da cal aplicada sobre muros de taipa, no sul, onde a cor surge apenas
junto ao solo ou em redor das pequenas aberturas.
Varia ainda na forma como se agrupam estas casas: densamente e
duma forma orgânica no norte montanhoso, de pequena propriedade
e de pluricultura, de forma dispersa e no cimo das pequenas colinas
do Alentejo, em unidades de exploração agrícola de extensas proprie­
dades de monocultura.
A diferenciação da arquitectura vernacular convive, nos centros his­
tóricos (quase sempre de fundação romana) com os signos da
universalidade urbana, no caso de Portugal e a partir do século XV

185
marcada pelo encontro com o oriente - da Índia ao Japão - com a
América do Sul e a África.
Portugal é também um País em rápida transformação, movida pela
queda do regime em 1974 e pela posterior democratização, e influída
pela forte emigração dos anos 60.
Como quase sempre, esta rápida transformação e a queda dos injustos
e repressivos instrumentos de controlo anteriores - e de perpetuação
do subdesenvolvimento - reflectem-se de um modo aparentemente
negativo na arquitectura e na organização do território.
Não é frequente, nestas circunstâncias, que a construção da justiça
social e da qualidade de vida se traduza automaticamente na serena
beleza do quadro físico, ou que as reconversões indispensáveis se
façam sem deixar sulcos de destruição e desordem no território. Assim
tem acontecido em Portugal.

2.
O trabalho do arquitecto no Portugal de hoje passa por uma dependência
- pela necessidade de a considerar - em relação a estas condições de
transformação, as quais incluem decadência do trabalho artesanal e do
tecido produtivo anterior e dificuldade na adopção de novas tecnologias.
Uma situação de transição, desigual conforme o sítio onde se construa e
que exige realismo, informação diferenciada e empenhado envolvimento.

3.
A jovem geração de arquitectos Portugueses está mais livre de ini­
bições e contradições (inovação ou tradição, internacionalismo ou
regionalismo) do que as gerações imediatamente anteriores.
A um modernismo dos anos 30 a 40, de inspiração francesa ou austrí­
aca, alemã ou holandesa, segue-se a imposição de um suposto estilo
nacional, a que poucos e pontualmente puderam resistir.
O isolamento do regime no pós-guerra e a necessidade de uma re­
lativa abertura tornaram possível a introdução de outros modelos,
sobretudo italianos e anglo-saxónicos.
O reencontro da modernidade assume então e pela primeira vez desde
há muito tempo uma posição de "contemporaneidade", simultanea­
mente de universalidade e de compreensão da história como devir.

186 01 textos por Álvaro Siza


067 .1997 04 00 Reflexão

Empenhou-se num projecto colectivo da época: não ser tradi­


cionalista e não ignorar as raízes.

Pub. in Álvaro Siza, lmmaginare l'evidenza, ed. Gius. Laterza & figli Spa,
Roma-Bari, 1998. Trad. Portuguesa in Álvaro Siza, Imaginar a Evidência,
Edições 70, Lda, Março 2000, p. 147. O livro é a transcrição da entrevista
feita por Guida Gianfranco a Álvaro Siza.

Nota Autobiográfica

Nasceu em Matosinhos em 1933. Tornou-se arquitecto em vez de es­


cultor, para não contrariar o Pai.
Iniciou a actividade profissional durante os anos de Escola, por falta de
paciência para simplesmente estudar.
Paralelamente trabalhou com o Arquitecto Fernando Távora, pelo que
continuou os estudos.
Empenhou-se num projecto colectivo da época: não ser tradicionalista
e não ignorar as raízes.
As primeiras obras foram geralmente mal recebidas, por estranhas,
quando não demasiado modernas (o que o espantou).
Iniciou a actividade como professor na Escola de Belas-Artes do Porto.
Trabalhou para Associações de Moradores, no post-Revolução 25 de
Abril, vivendo um intenso processo participado. Foi bom, criativo e ra­
pidamente impedido.
Aceitou convites de outros países. Os primeiros trabalhos em Berlim
não agradaram, por não corresponderem à expectativa (críticas pela au­
sência da esperada delicadeza do detalhe, por timidez de inspiração).
Recebeu contudo vários prémios internacionais, e por isso convites
para trabalhar em Portugal, seguidos de críticas e da classificação de
"estrangeirado".
É com frequência considerado lento e pouco enérgico, o que não deixa
de ser verdade.
Solicitam-no para júris, concursos, recepções, conferências, exposi­
ções e hipóteses de trabalho.

187
Quando tem prosseguimento, o trabalho transforma-se numa espécie
de corrida de obstáculos.
Mantém contudo intacta a paixão pela Arquitectura.
Tem um pouco secreto desejo de a abandonar, para fazer ainda não
sabe o quê.

188 01 textos por Álvaro Siza


068.1997 05 00 Apresentação

A janela dos olhos do poeta não se abre, neste livro, sobre a


cidade nova, essa "cidade que não tem nada contigo", e cuja
presença contudo o atravessa. Abrir-se-á noutro livro, revelan­
do a desejada esperança de transfiguração?

Pub. in Miguel Barbosa, Lisbona dalla finestra dei miei occhi: com testo
a fronte, ed. bilingue: italiano e português, pub. Firenze, Le Lettere, col.
li nuovo melograno, 2006.

Prefácio

Pois é. O que é preciso é abrir os olhos e ver (Lisboa e Tejo e tudo).


Não só olhar.
Miguel Barbosa abriu as janelas dos olhos para ver e libertar o que
está dentro, e o seu poema fez-se concreto, como uma foto: repro­
duz o real e revela a singularidade de uma descoberta, pois não só
nos olhos mas na alma (. . .) se faz uma cidade (assim os poetas cons­
troem a cidade).
Para ele próprio seguramente aconteceu descoberta, ou a emoção não
poderia percorrer a escrita e esta expor experiência vivida e distância.
No interior dos poemas de Miguel Barbosa pulsa melancolia, nostal­
gia e também revolta.
Nostalgia na memória da infância e da juventude, pessoal ou atada à
presença das paisagens perdidas, e logo crítica, frente à cidade trans­
formada (só assim - feita poema - a revolta liberta do retraimento ou do
desgosto sem fim).
A janela dos olhos do poeta não se abre, neste livro, sobre a cidade
nova, essa cidade que não tem nada contigo, e cuja presença contudo
o atravessa. Abrir-se-á noutro livro, revelando a desejada esperança
de transfiguração?
É devida uma referência à bela essencialidade dos desenhos de João
Prates.

189
190 01 textos por Álvaro Siza
069 .1997 1 O 00 Arte - Pintura

A perversidade pode passar ao lado, engalanada; as suas co­


res n�,;: estão naquela paleta rigorosa.

Manuel Cargaleiro

O Manuel Gargaleiro é a pessoa mais incapaz de maldade que co­


nheço. Os seus olhos estão focados para o que há de bom nos outros
e na vida. A sua visão do mundo é luminosa.
A perversidade pode passar ao lado, engalanada; as suas cores não
estão naquela paleta rigorosa.
Por isso, cada obra que lhe sai das mãos é para sempre imune ao em­
baciamento, ou à fractura. Tem a preciosidade e a presença de uma jóia,
de um esmalte antiquíssimo ou de uma matéria de súbito inventada.
Como uma jóia irradia luz, de dentro. A sabedoria técnica, a inteli­
gência e experiência que a obra revela são parte de um gesto que
continua irreprimível, um gesto de Alegria Original.
Estou convicto de que daqui a muitos anos, quando já não o pudermos
anotar, muita coisa hoje celebrada estará coberta de pó, irrelevante ou
materialmente destruída pelo tempo.
Não uma obra do Manuel Gargaleiro.

191
192 01 textos por Álvaro Siza
070.1997 1 O 00 Outros Arquitectos: Snozzi (2)

Os habitantes vivem o colocar de cada "sua pedra" - como res­


piram. O projecto flui ao ritmo da vila, transgride o próprio plano,
assim como um poema escapa à métrica e aos limites do haiku
ou do soneto - flutuando, sem cais, no espaço e no tempo.

Snozzi

Julgo que conheci o Snozzi em Lausanne.


Como sou um pessimista absoluto, surpreendi-me com a energia e
o optimismo de quem, como eu, experimentava a dura dificuldade de
construir uma arquitectura precisa e "vinda de dentro".
Não têm conta, a partir de então e pela vida fora, as vezes em que per­
guntei: Luigi, aquele projecto assim e assim?
- Nada se fez, perdeu em votação; ou - Foi reprovado (contudo com
um sorriso nos lábios, falando logo de um novo entusiasmo).
É que o projecto de cada um, quando é maior do que simplesmente
seu, não pode ser reprovado ou interrompido; ele percorre os sonhos
as frustações e os sucessos, liberto da Geografia e da História.
Por isso é sempre possível dizer: Isto é do Snozzi (melhor sendo dizer
isto é o Snozzí). Por isso o encontramos na Holanda ou na Áustria, em
Itália ou na Alemanha, como no Ticino, continuando o Projecto, sem de­
masiada ansiedade.
Nas margens do Lago Maggiore as casas aterram na encosta e logo
lançam raízes, ou dela afloram como rochas cristalinas; ou ainda
estendem terraços ligados por escadas essenciais, descendo em zi­
guezague (como faz um montanhês experimentado, ao escolher onde
pôr os pés, descendo os Alpes).
No vale, aí onde a topografia não indica os percursos, Luigi inventa
uma espécie de Raio X interior, que torna aparentes antiquíssimas
razões de ser; uma malha oculta - material ou imaterial - que faz in­
dispensável e sem alternativa o que surge novo. Assim.

Imagine-se então este descobridor de arquitectura responsável pelo


plano de Monte Carasso, ou de Salzburgo.

193
Aí toma os mais leves indícios de desejo e tudo transforma em razão
de partilha e de amizade. Os habitantes vivem o colocar de cada "sua
pedra" - como respiram. O projecto flui ao ritmo da vila, transgride o
próprio plano, assim como um poema escapa à métrica e aos limites
do haiku ou do soneto - flutuando, sem cais, no espaço e no tempo.
Em Salzburgo, cidade conservadora, precária sob as rochas enor­
mes (pode ser o Barroco, pode ser Mozart), com a maior naturalidade
o Luigi reúne os desejos que restam, até ao ponto de parecer uma
metrópole. Empresta o entusiasmo aos mais lentos, forma uma outra
espécie de orquestra sinfónica. Há sempre gente jovem ao seu lado.
Ouve-se então o trompete de Armstrong, descendo do Casino Winkler.
Tudo se torna tão simples que é um escândalo.
E eu dizia: não é possível, Luigi (vais ver que é).
Aparentemente foi tudo interrompido. Um dia veremos, com ou sem
surpresa, o projecto a surgir; ou então a reaparecer, nas margens do
Maas, no país onde não há montanha.
Dirá então, com um sorriso nos lábios: vês, Siza?

194 01 textos por Álvaro Siza


071.1997 11 23 Discurso (DHC)

Discurso de aceitação do Doutoramento Honoris Causa pela


Universidade de Coimbra em 19971123
O arquitecto tem um estatuto ambíguo, entre o artista e o técni­
co. A primeira condição comporta, na sociedade portuguesa, e
não só, um aparentemente progressivo estigma de inutilidade,
ou de desproporcionada ou inactual ânsia de qualidade. A se­
gunda condição é frequentemente associada ao abandono ou
repúdio da outra.

Doutoramento Honoris Causa em Coimbra

Não é a primeira vez que honra semelhante me é concedida; mas


nunca em Portugal.
Ser recebido pela mais antiga e prestigiada Universidade do meu País
tem para mim um significado especial; emociona-me intimamente e julgo
que ultrapassa a minha condição pessoal de arquitecto. Emociona-me
ainda - e profundamente - que seja meu Apresentante o Professor
Fernando Távora, Doutor Honoris Causa desta Universidade, Mestre e
companheiro de várias gerações de arquitectos, a quem me ligam sen­
timentos de Admiração e de Amizade.
Vivo quotidianamente o entusiasmo e também os problemas próprios
da minha profissão.
O arquitecto tem um estatuto ambíguo, entre o artista e o técnico.
A primeira condição comporta, na sociedade portuguesa, e não só,
um aparentemente progressivo estigma de inutilidade, ou de despro­
porcionada ou inactual ânsia de qualidade. A segunda condição é
frequentemente associada ao abandono ou repúdio da outra.
Não é esse o entendimento desta Universidade; demonstra-o a re­
cente criação do curso de arquitectura, do qual há tanto a esperar, pela
qualidade e prestígio do corpo docente.
Neste contexto, a atribuição que solicito do grau de Doutor Honoris
Causa vale também, e sobretudo, como sinal do reconhecimento do
papel do arquitecto na Sociedade, enquanto coordenador das mui­
tas especialidades que respeitam à organização do território. Sem a

195
consciência da complementaridade dos saberes não é possível dar
resposta a uma necessidade social particular, que inclui e da qual de­
pendem as outras: a Beleza.
Essa é a primeira responsabilidade do arquitecto, e nunca o capricho.
Ser aceite pelo Senado Académico da Universidade de Coimbra está
associado, no meu espírito e independentemente do mérito, à espe­
rança em que tal reconhecimento não seja a excepção.

196 01 textos por Álvaro Siza


072.1998 04 00 Outros Arquitectos: Eduardo Souto de Moura (2)

Três dias de desenho, entre ruínas, no Mercado de Trajano -


acocorado sobre uma soleira de mármore - ou na Piazza Navona
(. . .)

Eduardo Souto de Moura

A imagem mais nítida do Eduardo Souto de Moura: Roma, 1980, inter­


valo da viagem Palermo-Porto. Três dias de desenho, entre ruínas, no
Mercado de Trajano - acocorado sobre uma soleira de mármore - ou
na Piazza Navona (bebidas de cores estranhas sobre a mesa, aquele
personagem de Bernini de mão estendida, a face horrorizada sem
razão), depois de ter orientado um grupo de estudantes da mesma
idade, determinado a construir, cheio de dúvidas e de uma segurança
interior já evidente, cedo comprovada.

197
198 01 textos por Álvaro Siza
073.1998 05 00 Arquitectura: Igreja de Marco de Canaveses,
Piscina de Leça da Palmeira (2), Malagueira (4)

Curto depoimento, para o Expresso, sobre 3 obras de boa


recordação.
Recordo a curiosidade sobre se sou crente ou ateu ou agnós­
tico. Não digo.

Três obras de boa recordação

Pedem-me para mencionar três obras de que guarde boas recordações.

1. Igreja do Marco de Canaveses: tema particularmente interessante


(o peso dos modelos históricos face ao debate contemporâneo sobre
a evolução do espaço religioso).
Recordo a curiosidade sobre se sou crente ou ateu ou agnóstico. Não
digo.

2. Piscina de Leça da Palmeira: um maciço rochoso transformado em


recinto público por meia dúzia de muros em betão.

3. Malagueira (Évora): um trabalho em processo há mais de vinte anos e


a minha obra mais premiada e mais escarnecida. Uma comunidade de
1200 famílias, hoje consolidada, que não se tem preocupado com pré­
mios nem com escárnios.

De comum em cada um destes trabalhos: o apoio e o entusiasmo do dono


de obra, condição indispensável - e raramente verificada - para cons­
truir Arquitectura.

199
200 01 textos por Álvaro Siza
074. 1988 05 15 Cidades: Porto (3)

Esta minha cidade tem um solo levado dos diabos. E um nevo­


eiro onde nenhum Sebastião penetra.

Pub. in [ Skira], p. 136 e tb in [Figueirinhas].

Porto

Esta minha cidade do Porto tem um solo levado dos diabos. Acidentado,
granito que durante séculos repeliu planos apressados.

O casario galga morros e abre praças, onde pode: estreitos vales ou


plataformas inclinadas, como nenhum manual poderia propor.

As muralhas precipitam-se a conter o tecido deslizante; só um Bispo


ou uma Paróquia metodicamente enriquecida (ou de súbito contem­
plada por algum novo rico) erguem arquitecturas autónomas, soltas
das rochas e das casas estreitas, em implacável geometria, dissol­
vendo-se em esculturas redondas, regressando à Natureza petrificada.
As encostas exigem muros de pedra penosamente ajustada, platafor­
mas abraçadas à lógica essencial da paisagem, Douro acima, a criar
o vinho que depois alimenta a cidade, o vinho que paga os jardins do
interior dos quarteirões, dos grandes quintais sobre o rio, com árvores
de gravura setecentista, palmeiras, camélias de muitas cores, buxo,
pomares, roseiras, cores escandalosamente frescas contra as facha­
das austeras.

Os grandes trabalhos do século XIX enfrentam todas as resistências:


a da Natureza e a Outra (as máquinas não mudam de repente men­
tes e mãos). Sobre o rio, os grandes muros de retenção, em cantaria
lavrada (ameaçados muros) reforçam as linhas da paisagem, ou trans­
formam-na reintegrando, sobrepõem superfícies colossais, juntam
monumentos, morros e terraços ao que resta das muralhas, refor­
çam o cinzento que o céu confirma, escavam túneis, abrindo novas

201
perspectivas. Tudo reflecte tudo: azulejos e vidros finíssimos e ondu­
lados, cubos de granito polido, negro, cavado pelas rodas dos carros
de bois e pelos trilhos dos eléctricos, Rio Douro castanho esverdeado
(atmosfera pesadamente aquática, de asas inesperadas que tudo re­
cuperam, deformando).

Na Ribeira há Pubs e Galerias de Arte e turistas, espartilhados entre


as calçadas revestidas de detritos e os andares escuros, divididos em
quartos, onde milhares imaginam talvez o absurdo de poupar energia,
entre néons e projectores que iluminam pombas e outras coisas belas,
acompanhando o programa de reconversão.
Muitos partem e outros vendem o corpo.

E aí vem a Rotunda da Boavista, sob as asas caídas e a cópula do leão


(cozinhas transformadas em arquivos de engenheiros e lojas, lojas,
montras de sapatos e livros e computadores, gabardinas porque muito
chove). Filhos da Ponte Nova, entre casas desmoronadas - sob os es­
combros um ou outro cadáver.

E aí vêm pela encosta os viadutos, poisam as patas pouco delicadas


sobre muros e quintais, destroem casas, nem suficientemente livres
nem prudentes (poderiam voar, sobrepor-se, transformar; apenas se
fazem brutais, roçam a estrutura cristalina de Eiffel, definitivamente
despovoam as margens de Aniki Bóbó).

Terras antigas transformadas, detritos, pedras quebradas e velhos


jornais e trapos cobrem os terraços, esmagam as vinhas. Caem ca­
mélias entre notícias sensacionais, brancas e também as vermelhas,
dispersam-se (encontrei num quintal da Boavista pedaços serrados de
camélias, entre azulejos e pedras com molduras e datas, com eles fiz
modelos de novas construções, entre outras camélias que não há -
procurando o Lugar).

Avançam as gruas, os cam1oes trazem terras das fundações de


Matosinhos e da Maia, há lixeiras sem condições nas encostas do
Douro, espalham-se detritos vegetais.

202 01 textos por Álvaro Siza


Nascerá um jardim? Transpõem-se jardins, de onde nascem estrutu­
ras cinzentas?

Atravesso a ponte. Levanta-se do rio uma humidade densíssima. A


cidade faz-se véu cinzento, como numa aguarela de António Cruz.
Irrompe a Torre dos Clérigos, contra a penumbra quase iluminada do
céu, poalha doirada. E os Grilos. E o quadrado do amado Palácio de
Nasoni, branco, como um buraco ao contrário, ou talvez o cubo do
Teatro São João (nada do anel exagerado dos prédios de rendimento,
para lá do Marquês, ou dos que invadem os sítios tranquilos).

Flutuam os fantasmas do que era preciso, e o apetite de acrescentar


- não assim.

Pouco importa. Esta minha cidade tem um solo levado dos diabos. E
um nevoeiro onde nenhum Sebastião penetra.

203
204 01 textos por Álvaro Siza
075.1998 07 09 Discurso

Séculos após a chegada dos Portugueses ao Japão não tenho


dúvidas de que a escolha deste arquitecto Português para re­
ceber o prestigiado Praemium lmperiale, concedido pela Japan
Art Association, nada tem a ver com diferenças surpreenden­
tes, como um nariz comprido. Mas sim com a procura e a luta
por um mundo onde a felicidade - a Beleza - possa ter lugar.

Prmmium lmperiale, da Japan Art Association

Quando os portugueses chegaram ao Japão, os japoneses, tanto como


os portugueses, ficaram profundamente impressionados ao se aperce­
berem de certas diferenças. Uma, notória, assinalada nos admiráveis
nambam biobu, era o tamanho dos narizes: os recém-chegados por­
tugueses, que também estariam naturalmente impressionados pelos
olhos orientais, foram designados por os homens de nariz comprido.

A influência cultural e artística mútua, entre Oriente e Ocidente, foi


enorme. Através dos séculos, novas formas e ideias cruzaram os ocea­
nos, em todas as direcções e de um modo surpreendentemente rápido.
No século XVI havia já trezentas palavras portuguesas em uso no Japão,
enquanto Portugal adaptava a palavra biobu e não sei quantas mais.

A influência oriental é patente no estilo Manuelino, em Portugal, ou no


Plateresco, em Espanha, onde se cruzava com a influência da arte
Pré-Colombiana. Igualmente impressionou Van Gogh e John Nash
e Berlage - e Frank Lloyd Wright, que desenvolveu profundamente
a influencia da Arquitectura Japonesa no Ocidente e contribuiu para
transpor para o Japão a influência da arte Pré-Colombiana. Ao mesmo
tempo, através da Escola de Paris, a arte e a cultura Africanas junta­
ram-se à quebra das fronteiras culturais, à gradual aproximação das
culturas, que pode significar coexistência a partir da diferença, conver­
gência em vez de domínio e decadência.

205
Séculos após a chegada dos Portugueses ao Japão não tenho dúvidas
de que a escolha deste arquitecto Português para receber o presti­
giado Praemium lmperiale, concedido pela Japan Art Association,
nada tem a ver com diferenças surpreendentes, como um nariz com­
prido. Mas sim com a procura e a luta por um mundo onde a felicidade
- a Beleza - possa ter lugar.

O facto de a Arquitectura ser considerada uma via para alcançar


esse sonho universal, lado a lado com outras artes, aqui representa­
das por distintos laureados que eu muito admiro, é-me profundamente
gratificante.

Sinto-me feliz, orgulhoso e grato. Posso esquecer, por momentos, as


dificuldades do dia-a-dia que se colocam aos que consideram, antes
do mais, a Arquitectura como uma Arte, uma expressão dos sonhos da
humanidade - como uma procura da paz, maravilhosamente presente
na mágica, silenciosa atmosfera de um jardim Zen, na essencialidade
de um Aiku.

206 01 textos por Álvaro Siza


076.1998 08 00 Outros Arquitectos: Niemeyer (1)

Óscar Niemeyer é um dos poucos arquitectos contemporâneos


capazes de ultrapassar num ápice, com intuição nascida da ex­
periência e da inteligência e da sensibilidade (olhos que vêem),
o árduo trabalho de descobrir e fundir contradições, partindo ao
encontro da Arquitectura, reinventando a paisagem.

Óscar Niemeyer

Conheci Óscar Niemeyer no início dos anos 60. Projectava então o


Hotel e Casino da Madeira, obra a que associara o arquitecto por­
tuense Viana de Lima.

De um modo menos directo, todos os estudantes das Belas-Artes


do Porto (a escola que oscilava então entre as Ordens e o Rappel a
/'Ordre de Le Corbusier) conheciam Niemeyer.

As revistas que publicavam as suas obras estavam poisadas nos


nossos estiradores, gastas e abertas em alguma página: cobertos
de curva e contra curva, perfurados por palmeiras sintéticas, pilares
quase imateriais (ou um único e espesso pilar), grandes consolas, es­
cadas e rampas flutuando em espaços fluidos, betão, vidro, mármore,
latão, madeiras preciosas, azulejos, sombras e reflexos - incendiavam
a nossa imaginação.
Forma Nova, interrogação: é isto também Arquítectura?
Assim se aproximavam duas gerações e dois continentes, presente o
espaço da História e do Desejo.

Niemeyer viajava então pela Europa, acompanhado por um maquetista.


Durante dois dias e duas noites (uma directa memorável no estúdio de
Viana) inventou o projecto da Madeira.
Sobrou ainda energia para uma apresentação dos últimos trabalhos
(entre eles, o nunca executado Aeroporto de Brasília) para a qual
Viana de Lima convidou um grupo de estudantes e professores das
Belas-Artes.

207
O Mestre comentava diapositivos de esquissos e maquetes, dese­
nhando simultaneamente (uma ponta de carvão na mão) grandes
folhas de papel de cenário, suspensas de um cavalete.

No final cumprimentámo-lo, pedindo a medo a oferta dos esquissos.

Quando estes se esgotaram, Niemeyer retomou o carvão, arrancando


com gesto brusco e preciso cada novo esquisso e perguntando: Como
se chama? (Dedicatória, sorriso, assinatura).

Via-se que havia prazer na oferta, tanto como o prazer perceptível nas
curvas das lajes, no rápido apontamento das montanhas, dos lagos,
das palmeiras - da paisagem.

Um ou dois riscos faziam ver a vegetação tentacular do Rio de Janeiro,


as curvas das auto-estradas de Brasília, prolongadas verticalmente
por uma ideia de inesquecíveis edifícios, à espera do verde que o pro­
jecto de um lago prometia, à espera dessa energia, vinda da terra, que
inspira ou regenera a Arquitectura do Brasil.

óscar Niemeyer é um dos poucos arquitectos contemporâneos capa­


zes de ultrapassar num ápice, com intuição nascida da experiência e
da inteligência e da sensibilidade (olhos que vêem), o árduo trabalho de
descobrir e fundir contradições, partindo ao encontro da Arquitectura,
reinventando a paisagem.

Anos mais tarde, reencontrei Niemeyer num Congresso em Maringá.

Alguém viera da Catalunha para o encontrar, superando o desgosto da


morte de um familiar.

Outro Alguém criticava Brasília.

Com exemplar simplicidade, Niemeyer respondeu, dizendo: Fizemos o


melhor que sabíamos e podíamos, com o maior empenho. Aí está.
Está e cada dia se vai transformando em complexo tecido feito de au­
toria e de anonimato, como seria de esperar (recordo aquela gravura

208 01 textos por Álvaro Siza


da recém-construída cidade de Buenos Aires - a inevitável desilusão,
enquanto o Tempo não sulca o que resiste ao Tempo).
Sentado no sofá, vestindo um imaculado paletó, o Mestre parecia
cansado.
Alguém perguntou: Doutor - quando torna a Maringá?
(Maringá é longe, a não ser para quem viaje de avião.)
A Maringá - disse - nem amarrrrado!

Não importa: o Mestre tornará aos nossos estiradores - constante­


mente - voando sobre lajes de betão.

209
210 01 textos por Álvaro Siza
077 .1998 09 00 Outros Arquitectos: Alvar Aalto

Julgo que a sua fundamental contribuição decorre de um duplo


e sensível distanciamento, quer em relação às ambiguida­
des do neo-empirismo, no que nele se refere a pressupostos
formais ou outros, quer face à construção em curso de uma
linguagem arquitectónica de ruptura, através de protótipos de
uma nova arquitectura revolucionariamente transformadora.

Pub. in Architecture d'Aujourd'hui N. 0 191, Juin 1977, n.º dedicado a


Alvar Aalto (Analyses et Témoignages) c/ o título Préexistence et désir
colleclif de transformation. E tb in Jornal de Letras de 14 de Fevereiro de
1983 c/ o título Alvar Aalto, 3 facetas ao acaso.

Alvar Aalto: algumas referências à sua influência


em Portugal

Reporto-me ao início dos anos 50, quando iniciava, no Porto, a apren­


dizagem profissional. A resistência de alguns aos imperativos da
Arquitectura oficial continuava condicionada, manifestando-se com di­
ficuldade na obra executada ou na vida da Escola. Para além disso, a
informação disponível assentava sobretudo na divulgação da arquitec­
tura e dos escritos de Le Corbusier.

Alvar Aalto não era ainda uma referência na Escola do Porto, simples­
mente porque não era conhecido.

Alguém me aconselhou a procurar a informação alargada que não


tinha numa revista chamada Architecture d'Aujourd'hui. Comprei seis
números ao acaso, entre os quais o de Maio de 1950.

Não posso esquecer esse primeiro contacto com a obra de Alvar Aalto,
tal como ela estava publicada e analisada, a fascinação e emoção com
que vi pela primeira vez as fotografias de Viipuri e do dormitório de
estudantes do M.I.T., as curvas dos objectos em madeira, aço, vidro,
couro, cobre - as curvas dos lagos da Finlândia. Ou aquela fábrica de )
geometria implacável, nascendo de um maciço rochoso - natureza e .•
betão como Material da Arquitectura.

211
Iniciavam então as Escolas do Porto e de Lisboa o estudo sistemático
da Arquitectura Popular em Portugal, publicado em 1961. Mais do que
simples registo de arquitectura tradicional, o Inquérito feito desmonta
o conceito reaccionário de "Arquitectura Nacional", revelando a arqui­
tectura portuguesa na sua relação com o Homem e com o Meio, com
a História e a Geografia.

A obra e o pensamento de Aalto tornaram-se então - inevitavelmente


- ponto de referência e de meditação.

A arquitectura de Alvar Aalto enraíza na tradição finlandesa, de ma­


neira espontânea e também profundamente intencional, e estrutura-se
a partir da sólida formação racionalista do arquitecto. Julgo que a sua
fundamental contribuição decorre de um duplo e sensível distancia­
mento, quer em relação às ambiguidades do neo-empirismo, no que
nele se refere a pressupostos formais ou outros, quer face à constru­
ção em curso de uma linguagem arquitectónica de ruptura, através
de protótipos de uma nova arquitectura revolucionariamente transfor­
madora. É nessa distância que ele se exprime de maneira decisiva e
tranquilamente radical, durante o período possivelmente mais fecundo
da sua obra, num momento de esforço colectivo de reconstrução de
um país devastado, mas também renovado, por uma luta de libertação
e de autonomia.

A Arquitectura de Alvar Aalto - um homem que não se permitia falar


demasiado de método - destaca-se contudo, e de forma exemplar, en­
quanto proposta metodológica. Através da obra realizada e de alguns
escritos, que continuarão sem dúvida a ter profunda influência na prá­
tica e na aprendizagem da arquitectura, Aalto propõe a projectação
não como processo linear, da análise à síntese, mas como processo
contínuo, aberto, complexo e englobante. Demonstra que o desenho
nasce do diálogo permanente entre o que preexiste e o desejo colec­
tivo de transformação.

212 01 textos por Álvaro Siza


078.1998 1 O 00 Arte - Escultura, Reflexão

Deixando de lado outras épocas, antes da separação, porven­


tura inevitável, entre as Artes e entre os Saberes em geral,
não são poucos os arquitectos que se movem em territórios
considerados alheios à sua formação, seja cinema, pintura,
escultura ...

Pub. in [Saint-Étienne], p. 66.

Escultura - o prazer do Trabalho

Atrever-se um arquitecto a fazer e expor escultura não é usual - nem


original. Paradoxalmente ou não, acontece o inverso com não poucos
escultores. Tendência a romper as antigas, ou recentes, fronteiras?

Deixando de lado outras épocas, antes da separação, porventura ine­


vitável, entre as Artes e entre os Saberes em geral, não são poucos os
arquitectos que se movem em territórios considerados alheios à sua
formação, seja cinema, pintura, escultura ...

Talvez as condições de trabalho possam explicar muitos desses "des­


vios": os momentos de prazer que o exercício da arquitectura consente
vêm sendo reduzidos, a um ponto que dificulta a sobrevivência do que
não nasça do desamor e da alienação. Pode então a arquitectura ser
negócio rentável para gregos e troianos; mas também - para quem tal
não satisfaça por inteiro - inútil paixão.

Por isso me sinto tentado a regressar à escultura - jeu magnifique des


formes sous la /umiere - acompanhado por outros que não dispensam
o prazer de criar ainda que ocupando sábados e domingos: a Bárbara,
arquitecta do meu escritório, nos intervalos possíveis; o José Simões,
interrompido o fabrico de tábua de soalho ou de mobiliário; o Francisco
Andrade, com as ferramentas que constroem peças de precisão; e os
seus trabalhadores de todos os dias e de todas as rotinas - o João, o
Artur, o Manuel, e o Alberto, primo e arquitecto.

213
Disse-me um deles, os olhos a brilhar: Gosto deste trabalho; é sem­
pre diferente.
- Pois é. Também eu gosto.

214 01 textos por Álvaro Siza


079.1998 11 00 Outros Arquitectos: Calatrava

O valor do projecto está na compreensão da funciona/idade


de uma estação onde se interligam caminho-de-ferro, metro­
politano e transporte rodoviário. Recusando a nostalgia ante
a quase irresistível memória das estações de outros tempos,
a Estação do Oriente é assumida como um outro e diferente e
indispensável signo da cidade. Nem monumental nem diluída
no tecido urbano.

A propósito de uma cabeleira prateada

A escolha do projecto de Santiago Calatrava para a Estação do Oriente


só pode ter uma interpretação: o desejo de dispor de um traço funda­
dor da nova área da cidade de Lisboa, igualmente capaz de influência
transformadora em relação aos terrenos interiores que o Plano só de­
bilmente incluíra. Seria por isso legítimo pensar que o desenvolvimento
progressivo desse Plano se iria referir claramente à cruz trabalhada
por Calatrava, glorificando a sólida base e a delicada cabeleira pro­
postas pelo arquitecto.

Nada disso. O valor do projecto está na compreensão da funcionalidade


de uma estação onde se interligam caminho-de-ferro, metropolitano e
transporte rodoviário. Recusando a nostalgia ante a quase irresistível
memória das estações de outros tempos, a Estação do Oriente é assu­
mida como um outro e diferente e indispensável signo da cidade. Nem
monumental nem diluída no tecido urbano.

Aparentemente sujeito a uma cedência indiscriminada a não sei


que pressões, o desenvolvimento do Plano ignorou a importância
do que promovera. Ficou, assim, a meio caminho entre o conceito
convencional de um Plan Masse e a crença (eventualmente justificada)
na criatividade indefinível da caótica sobreposição que caracteriza o
crescimento de tantas cidades contemporâneas, quando distantes de
um núcleo histórico (ordenador, por indução, ou inibidor por receio).

215
Entretanto e independentemente disso, a cabeleira prateada não dei­
xará de transmitir uma mensagem de vontade de cidade; ou então,
carregada de gente, partindo os carris, saltando obstáculos, percor­
rerá o curto espaço até ao mar, sobre um Tejo esplêndido e difícil de
conspurcar, acenando ao Terreiro do Paço, aos Jerónimos, ao Centro
Cultural e à Torre de Belém - jangada de aço e de vidro e de betão.

l
216 01 textos por Álvaro Siza
080.1999 02 00 Poética, Reflexão

Assim, a espaços, quando é absolutamente preciso e mil bocas


o pedem - inventa, de súbito voando.

Pub. in [Saint-Étienne], p. 18.

A propósito de um velho artesão

Tudo o que pensa ou sente plasmado na matéria, como acontece a um


escultor (algum). Seja pedra, ou ferro, tijolo, madeira ou argamassa.

Ainda: tudo o que faz nos protege. O sol e a tempestade não assustam,
nem no que faz se revê como poeta que é.

Apenas repete, desenhando em gesto antiquíssimo, desdenhando de si.

Assim, a espaços, quando é absolutamente preciso e mil bocas o pedem


- inventa, de súbito voando.

217
218 01 textos por Álvaro Siza
081.1999 02 00 Poética, Reflexão

Quando nos é permitido, em domingos desertos, percorremos


a obra, como quem percorre o que lhe é alheio, vadio incons­
ciente de procura até ao encontro.

Pub. in [Saint-Étiénne], p. 48.

Desenho de pormenor (detalhe, do francês


détail)

Os pormenores difíceis cansam-se. Definitivamente cansam-se, en­


quanto tentam cansar-nos, na ânsia de escapar.
A obra surge e atira-nos à cara o rosto do cansaço. Emudecem, ou
emergem gritando, desafiando a acalmia dos desejos.

Quando nos é permitido, em domingos desertos, percorremos a obra,


como quem percorre o que lhe é alheio, vadio inconsciente de procura
até ao encontro.
A construção é quase igual a uma ruína.
Se algo do entusiasmo inicial reaparece, então a obra torna-se ruína
de um palácio.
Estudamo-la. É possível recuperar. Descobrimos tecidos sofredores,
raízes do desenho degradado. Podemos isolar fragmentos, pois vamos
aprendendo de que coisa são fragmento, se tudo corre menos mal.
Desenhamos. Redesenhamos. Povoamos o vazio de imagens possí­
veis - uma, duas, trezentas. Caem corpos de imagens virtuais.
É então que os pormenores difíceis se cansam, e um a um se entre­
gam, deixando de ser um.
A ruína - a construção - sara.
A paz regressa à Terra, a menos que ...

219
220 01 textos por Álvaro Siza
l
082.1999 02 00 Homenagem, Arquitectura: Chiado (4)

Texto lido numa homenagem pública de evocação do Eng.º


Nuno Krus Abecasis.
A autenticidade absoluta é o que sobretudo recordo da perso­
nalidade de Nuno Abecasis, o que o descreve como pessoa e
o que explica o muito que se lhe deve.

Abecasis

- Está? É o Arquitecto Siza? Aqui é Nuno Abecasis. Estou a convidá­


lo para dirigir a recuperação do Chiado.

Foi este o meu primeiro contacto com o Presidente Abecasis. Assim,


com toda a convicção, quase uma ordem.

Expliquei que era um convite para mim absolutamente inesperado,


que tinha de pensar.

- Está bem. Pensa e diz-me depois que sim. (Já me tratava por tu, e
muito em breve por "menino").

Corria então a polémica sobre "o que fazer". A Associação dos


Arquitectos defendia a realização de um concurso, alguns anunciavam
a oportunidade de modernizar o Chiado (pensando em formas?).

A Câmara em bloco votou entretanto um programa que incluía a deci­


são de recuperar a arquitectura e o carácter do Chiado.

Na semana seguinte telefonei ao Presidente dizendo que ia conver­


sar com os directores da Associação dos Arquitectos, mas que não
poderia, de qualquer modo, iniciar de imediato e em pleno um tão ab­
sorvente trabalho, por compromissos anteriormente assumidos.

- Está bem. Não importa. Limpamos entretanto o terreno, seguramos o


que resta dos edifícios, fazemos um levantamento rigoroso (decidiu de

221
imediato construir um pontão, que viria a ser fundamental para manter
em actividade o Chiado e as zonas confinantes).

A Associação aceitou o meu ponto de vista de que não era caso para
concurso, mas sim para a gestão de uma teia de interesses, nostal­
gias, desejos, entusiasmos, desgostos e dúvidas, no contexto de um
Chiado de súbito destruído, mas há muito em agonia.

E logo fui envolvido por um torvelinho de energias.

A meu pedido, o Presidente organizou um gabinete camarário sob a sua


directa influência, nomeando como director o Engenheiro Pessanha
Viegas, um técnico de grande competência, com experiência recente
da recuperação de Angra do Heroísmo.

O meu trabalho esteve assim rodeado de todo o apoio, antes de mais


o apoio do optimismo inabalável de Abecasis - uma espécie rara e
quase inexplicável de serenidade a envolver uma actividade febril.

A acção de Nuno Abecasis na Câmara de Lisboa provocou muita crí­


tica, muita polémica e muita paixão. Desde o início do meu trabalho,
todas essas "coisas que se agitam de mais" tornaram-se para mim se­
cundárias, pela evidência de uma coisa que não tem de se agitar: a
autenticidade.
A autenticidade absoluta é o que sobretudo recordo da personalidade de
Nuno Abecasis, o que o descreve como pessoa e o que explica o muito
que se lhe deve. Autenticidade absoluta nas decisões e nas relações, na
compreensão humana, que incluía por igual a ironia, a tolerância, a auto­
ridade e a solidariedade.
Estas pessoas especiais não surgem muitas vezes. Quando uma delas
desaparece, há um grande vazio e uma grande saudade. Mas também
o desejo de conquistar aquele optimismo e de merecer o privilégio da
esperança e da disponibilidade a confiar nos outros.
Então, tal como a companhia de um velho amigo, esse vazio preenche­
-nos.

222 01 textos por Álvaro Siza


083.1999 04 00. Arte - Fotografia: Gabriele Basílica (3)

Basílica é um arquitecto que não exerce? É um arquitecto de


visão para lá do pessimismo. Sabe ver melhor e aprender -
ensinar a ver. Os seus instrumentos são a somhra e a luz. As
sombras desenham o espaço. Dependem da luz. Não há espa­
ço nem arquitectura sem luz. A aceitação é criação. Luz.

Pub. in Arquitectura em Portugal - um roteiro fotográfico, Dafne Editora,


Porto, 2006, p. 164, 165 (livro contendo os conteúdos da exposição
apresentada na V Bienal de Arquitectura de São Paulo Desenhos nas
cidades, arquitectura em Portugal, com fotografia de Gabriela Basilico.
Comissariada por Álvaro Siza, com Maddalena D'Álfonso, João Soares,
António Madureira, André Tavares).

Basílico 3

Visitou Portugal, uns vinte anos atrás, um arquitecto brasileiro - Carlos


Nelson - que dirigia a renovação de uma favela do Rio de Janeiro.
Apresentava o projecto apoiado em diapositivos das obras, um colo­
rido misto de luta urbana, autoconstrução, samba e poesia. Pretendia
escrever um livro, já com título: Da Favela à Cidade.

Seria certamente um livro belo, inspirador. Já não o pôde escrever.

Tocou-me a ideia de que a cidade renovada, não sabemos que cidade,


surgiria da periferia, dos bairros de lata, das favelas, mais do que da
memória ou presença dos centros históricos.

Tenho a mesma sensação ao olhar as fotografias de Basílica. Imagens


de uma violenta beleza, reveladas aos olhos menos treinados com
uma eficácia incontornável.

A presença humana é mais evidente do que nunca, ainda que ra­


ramente apareça, tremida, envolta numa névoa que não oculta os
volumes nem os espaços.

Por trás, ou dentro dos nossos olhos, há sempre a lente, ou melhor, os


olhos de Basílica e as mãos e a mente. A imagem não acaba dentro do
livro. Foge da página, atraída pelo olhar.

223
Recordo uma gravura de Buenos Aires, da época da fundação.

Também aí não há figuras, a paisagem é inóspita: alguns edifícios,


um palácio e uma igreja poisados num chão de terra, detritos, uma ou
outra árvore - o nascimento de uma cidade maravilhosa.

As imagens exasperadas de Basílica são a expressão de uma enorme


esperança, de compreensão e de tolerância, da convicção. Podemos
falar em fé - fé no homem em construção. Nascem de um passeio entre
escombros. Por vezes os escombros são reais, ruínas perfuradas pelo
tempo ou pelas balas, não-ruínas que arruinam a cidade, ruínas despre­
zadas ou habitadas, nunca retocadas.

Há uma explosão que eleva as pedras, que as vai de novo sobrepondo,


recriando a ordem, como num filme passado ao contrário. Sentimos a ten­
são dos ferros, a renovada vontade de brilhar dos materiais brilhantes, os
cristais a fundirem-se, como o fazer de um puzzle, pó a amalgamar-se.
Há reflexos prestes a devolver o nosso olhar e o do Sol e o da Lua: luz.

Tudo deslizando como num impossível travelling, nítido e suspenso:


parques de estacionamento com dois ou três carros, zonas industriais
abandonadas ou em construção, linhas de um caminho-de-ferro aban­
donado, postes de alta tensão, rostos mudos trocando secretos sinais,
algum edifício novo de bandas horizontais, uma montanha ao fundo,
chaminés, torres, pontes e viadutos, taipais, praias degradadas, gruas,
escadotes conduzindo a nada, uma velha estátua com o rosto desfi­
·gurado, refinarias, navios atracados, ferros retorcidos, restos de um
modernismo interrompido, moradias por acabar, galgando as encos­
tas, em dispersão. Não há nenhuma selecção, nenhuma intenção de
seleccionar aparente. Tudo o que os nossos olhos viam como caos
surge transfigurado, transfigura-se diante de nós em projecto, ou como
projecto, como beleza universal.

Basílica é um arquitecto que não exerce? É um arquitecto de visão


para lá do pessimismo. Sabe ver melhor e aprender - ensinar a ver.
Os seus instrumentos são a sombra e a luz. As sombras desenham o
espaço. Dependem da luz. Não há espaço nem arquitectura sem luz.
A aceitação é criação. Luz.

224 01 textos por Álvaro Siza


084.1999 12 00 Outros Arquitectos: Barragan (2)

O que é universal percorre constantemente os interstícios das


culturas, delas sendo o alimento.
Nesses estreitos canais corre a seiva da invenção, a qual nun­
ca se desprende por inteiro do que já era conhecido, nem a ele
se limita.

Leito e Água - Modernidade de Barragan

Ao contrário das raízes de árvore, as que nos atam não imobilizam.


Apontam a todas as direcções e a todos os tempos: norte, sul, este,
oeste, ângulos intermédios, ontem, amanhã, agora, céu e gruta.

Mas como acontece em algumas espécies, de tanto se alongarem, os


ramos curvam, debruçam-se sobre a terra, mergulham de novo - eles
que voaram - retomando a condição de raiz, cruzando-se com as ou­
tras, as que permanecem subterrâneas.

Por isso é perigoso afirmar, no que à geometria ou à cor de uma obra


de Barragan se refere, o que é devido ao dia a dia local, ao passeio em
qualquer povoação ou ruína liberta - ou a alguma memória de Paris,
Norte de África, Estados Unidos, Andaluzia.

O que é universal percorre constantemente os interstícios das cultu­


ras, delas sendo o alimento.
Nesses estreitos canais corre a seiva da invenção, a qual nunca se
desprende por inteiro do que já era conhecido, nem a ele se limita.

Em que pausa de percurso se fundou a esplendorosa piscina da casa


Gilardi?

Pintura de Matisse, México vernacular ou pré-colombiano, Andaluzia,


requinte pré-rafaelita, alegria Neo-Plástica - música?

225
E que descoberta rompeu o academismo de Matisse e dos que o
precedem?

Marrocos, o sensual intimismo revelado a Delacroix e a Lati? A sus­


pensa expressão pré-colombiana, máscara africana pintada, fundo de
gravura japonesa - ou o desprendimento de quem lida com necessi­
dades essenciais?

E por que razão Khan sentiu a necessidade de procurar Barragan, e


este Le Corbusier, por sua vez ávido de Novo Mundo, tal como o es­
gotado Dvorak?

Para todos eles seria absurda a pergunta.

Simplesmente viver, voltando as costas à ambígua palavra moderni­


dade, à condição de habitar o limiar do que passou.

226 01 textos por Álvaro Siza


085.2000 03 00 Arquitectura: Malagueira (3)

Em Évora, o tempo da compreensão e do estudo, prolonga­


do e infindável, deu-me a possibilidade de evitar a aplicação
de um único princípio pré-constituído. No decurso destes vinte
anos a intervenção correu todavia o risco de ser interrompida
bruscamente, exactamente por ser considerada sem estrutura
e dispersiva; incapaz, portanto, de oferecer urbanidade.

Pub. in Álvaro Siza, lmmaginare l'evidenza, ed. Gius. Laterza & figli Spa,
Roma-Bari, 1998. Trad. Portuguesa in Álvaro Siza, Imaginar a Evidência,
Edições 70, Lda, Março 2000, p. 103 a 127. O livro é a transcrição da
entrevista feita por Guida Gianfranco a Álvaro Siza.

Évora - Malagueira

Um aspecto que me impressiona muito, na arquitectura e na cidade


do nosso tempo, � a pressa em concluir tudo rapidamente. Esta ten­
são para uma solução definitiva impede a complementaridade entre as
várias escalas, entre o tecido urbano e o monumento, entre o espaço
aberto e a construção. H_oje qualquer intervenção, por mais pequena
e fragmentária que seja, empenha-se de imediato numa imagem final:
assim se explica a dificuldade da interpenetração entre as várias par­
tes da cidade.

Em Évora, o tempo da compreensão e do estudo, prolongado e in­


findável, deu-me a possibilidade de evitar a aplicação de um único
princípio pré-constituído. No decurso destes vinte anos a intervenção
correu todavia o risco de ser interrompida bruscamente, exactamente
por ser considerada sem estrutura e dispersiva; incapaz, portanto, de
oferecer urbanidade.

A opção inicial do projecto consistia em tentar delimitar o território com


intervenções disseminadas, de modo a que o tempo e a capacidade
de realização pudessem depois completar o desenho, ocupando os
espaços vazios. A possibilidade de seguir com continuidade a evolução
do plano foi decisiva para a unidade do tecido urbano. Noutras épocas,

227
e pelo menos até ao início deste século, era frequente que um único
arquitecto acompanhasse o desenvolvimento de uma cidade. Esta
condição ainda hoje é essencial, para garantir uma justa coerência.

As interpretações do plano para a Malagueira não são uníssonas: ora


vão do comentário positivo, que sublinha as intervenções inovadoras,
ora denunciam a agonia do processo com a consequente afirmação
de ausência de futuro.

No período imediatamente após a revolução de 25 de Abril de 1974, uma


zona muito ampla fora das muralhas da cidade de Évora foi destinada, no
âmbito do programa SAAL, a uma Associação de Moradores. Apesar da
rápida extinção do SAAL, esta população organizada, composta por cem
famílias, manteve a sua intenção de construir a própria casa.

Para aquela área já existia um plano, elaborado nos finais dos anos
sessenta, que previa a construção de edifícios altos, alguns dos quais
foram depois realizados, que ameaçavam o perfil da cidade. Nuno
Portas, Secretário de Estado para a Habitação e Urbanística no pri­
meiro governo provisório, decidiu suspender essas construções e
definiu novos princípios. E.stes previam a conservação da densidade
do plano anterior para mil e duzentas habitações, a preservação da
faixa verde que acompanhava uma linha de água, ainda presente, e a
construção de habitações baixas e de alta densidade. Manifestou-se
assim a intenção, decididamente inovadora no País, �e preservar o
território e experimentar novas soluções para a habitação.

Foi-me confiada pela Câmara Municipal o encargo da elaboração do


plano, enquanto que o projecto das casas nasceu por solicitação da
Associação de Moradores. Tiveram assim início, ao mesmo tempo, o
trabalho sobre a cidade e sobre a arquitectura.

A primeira dificuldade substancial do programa estava já no próprio


nome: habitação social, como se se tratasse de uma especialidade
autónoma. A habitação é uma presença constante na cidade e é sem­
pre social. A dificuldade seguinte resultava da insuficiente importância
dos financiamentos que constituía um duro obstáculo para se alcançar

228 01 textos por Álvaro Siza


uma qualidade material aceitável. Foi-se assim espalhando a ideia de
que estas construções baratas deveriam ser péssimas, do mesmo
passo que se associava constantemente a construção popular a algo
de inconsistente, e sem qualidade. Hoje vivemos esta situação com
resignação. Recordo que entre as muitas controvérsias que acom­
panharam este programa, uma me impressionou particularmente: as
casas não eram aprovadas porque não eram consideradas construção
popular, e como se existisse um "estilo menor" para este tipo de pro­
jecto. É como ligar a limitação económica à ausência de qualidade: por
conseguinte, com poucos recursos, o resultado deve ser péssimo.

Com estas premissas dei início ao projecto, enquanto a participação


dos futuros utentes, originada pela revolução, era irreprimível motor de
transformação que influenciou o método. Depois, no decorrer dos anos,
perdeu-se esta relação directa entre o desenho e as famílias, sobre­
tudo porque foram escasseando os financiamentos e os empréstimos
que eram indispensáveis às realizações. O fim do SAAL, em 1976,
transformou de facto a Associação de Moradores em Cooperativa. Por
consequência, as famílias mais pobres viram-se de repente excluídas
dos novos programas e as experiências mais interessantes tiveram
fim. Além disso, enquanto as associações de moradores eram cons­
tituídas por comunidades já consolidadas, as cooperativas admitiam
sócios de qualquer estrato social e portanto não especificamente li­
gados a um lugar: por esta razão, os casos seguintes envolviam a
classe média. A continuidade das cooperativas foi possível através de
um apoio claro e constante da administração municipal comunista de
Évora, que não tem igual em Portugal. Esta situação provocou um
confronto constante com o poder central e a consequente dificuldade
em obter os financiamentos e a aprovação dos projectos. Todavia e
no meio de mil obstáculos, a persistência da participação pública na­
quela particular situação política, constituiu um apoio importante para
o projecto.

Recordo-me de ter assistido numa assembleia, ainda durante o perí­


odo do SAAL, a um debate muito vivo entre políticos e técnicos, em
que eram muitos os preconceitos e os equívocos. Cheguei a ouvir a
frase: "O arquitecto é a mão do povo". Esta demagogia era facilmente

229
explicável naquele contexto revolucionário; todavia respondi que con­
siderava inaceitável o silêncio e as demissões do arquitecto. Ou seja,
a competência específica não pode ser eclipsada pela colectividade
uma vez que constitui uma presença insubstituível. A formação profis­
sional, com todos os seus conhecimentos, é um capital ao qual não se
pode renunciar.

Naquela situação de confronto constante, sentia-me à-vontade, uma


vez que a prática na construção de casas burguesas unifamiliares me
tinha treinado no diálogo, no debate. Ao contrário, quem até àquele
momento tinha trabalhado na construção popular não dispunha desta
experiência visto que, no período anterior a 1974, aqueles programas
não eram elaborados para clientes concretos, palpáveis: tratava-se de
casas pré-definidas, sem utentes e sem discussão.

O diálogo que sempre existiu na construção de habitações unifamilia­


res, é essencial na história da arquitectura. Até o movimento moderno
não se limita ao aprofundamento da evolução da habitação operária,
e as casas famosas, que os protagonistas daquele período construí­
ram (Ville Savoie ou Casa Tugendhat), foram influenciadas de maneira
determinante pelos proprietários. A construção popular atravessa hoje
um período obscuro e é considerada com um certo desprezo por várias
razões: uma é certamente a instabilidade das tendências dos arqui­
tectos, que fizeram da participação um assunto na moda nos anos
setenta, esquecendo-se dela nas décadas seguintes. Assim, neste pe­
ríodo, quem continua a apoiar a importância da discussão é visto com
suspeita, porque se associou a participação à má qualidade que o ar­
quitecto passivo, como "mão do povo", produziu.

Uma outra motivação para o desprezo relativamente a este tipo de pro­


jectos é dada por uma objectiva dificuldade do trabalho, que, além do
mais, é pouco valorizado e mal pago. Existe a convicção de que para
a habitação social qualquer coisa está bem, inclusive a redução dos
honorários do arquitecto.

Contudo, bem pelo contrário, para se alcançar qualidade em projectos


tão complexos é necessária uma pesquisa maior. A atitude intolerante

230 01 textos por Álvaro Siza


em relação a todos estes problemas provocou o afastamento e o de­
sinteresse das próprias populações. Todavia, noutros lados - e penso
na experiência que vivi na Holanda nos anos oitenta -, a participação
é ainda muito forte. Provavelmente esta situação continua também a
verificar-se graças ao apoio das autoridades.

O carácter da participação depende portanto dos conflitos sociais e


das especificidades culturais.

Quando visitei pela primeira vez os vinte e sete hectares da área do


plano, notei múltiplas presenças. Antes de mais, o bairro clandes­
tir:io de Santa Maria, que a inclinação do terreno esconde na estrada
para Lisboa e para uma outra municipal. E;ntre as duas estradas existe
também �ma}inha de água: Numerosos vestígios testemunhavam pre-
existências diversas: um banho árabe, perto de uma linha de água,
l
e·· um sobreiro e um t�nque numa zona mais alta. Além disso está 1
presente e é fundamental, a Quinta da Malagueirinha, com o laran­
j�I adjacente. Depois uma estrada atravessa também um outro bairro
clandestino, Nossa Senhora da Glória, que continua com uma escola e
com dois velhos moinhos. Por fim, o� edifícios de sete andares, cons­
truídos no âmbito do plano anterior. Toda esta área era propriedade de
uma única Quinta. Do terreno vê-se o belíssimo perfil de Évora, cidade
de granito e de mármore (como raramente sucede): dali emergem a
céltedral, uma igreja românica e um teatro neo-clássico.

Comecei a estudar a grande vitalidade do bairro de Santa Maria, es­


timulada pela presença de pequenas actividades comerciais. As
pessoas afastam-se de casa para ir buscar água às fontes, para irem
à escola ou a outro bairro: assim com o correr do tempo deixaram
no terreno o desenho do percurso que lhes era mais conveniente.
Estes vestígios, muito claros, também ajudavam a explicar comporta­
mentos e topografia e indicavam a possibilidade das transformações
e das relações. Depressa se tornou evidente que a ligação entre os
dois bairros clandestinos era uma das questões fundamentais que o
projecto devia levar em consideração. Pensei na necessidade de um
eixo viário este-oeste que atravessasse toda a área, e também a linha
de água, para ligar a nova zona à cidade. Depois, para favorecer os
movimentos "invisíveis" entre o terreno e a estrada para Lisboa, decidi
traçar também o eixo norte-sul, que se prolonga além do primeiro por
um percurso pedonal. Esta cruz constitui a estrutura da intervenção
e relativamente a ela teve início a discussão sobre a casa. Ao longo
do eixo este-oeste foram propostas numerosas construções, que se
aproximam do Bairro de Santa Maria. No espaço entre as duas zonas
surge uma estrada, que chamei Broadway (designação consolidada
depois pelas pessoas do lugar). Este percurso, que separa as novas
construções das antigas, permite-a regeneração das áreas livres dê_S
casas já existentes e torna passiveis acessos, escadas e jardins, para
que os habitantes possam sair da clandestinidade.

As habitações que projectei correspondem a uma única tipologia: a


construção afasta-se da estrada, libertando um pátio, para depois se
unir ao longo da parede de fundo com uma outra casa que repete, por
detrás, o mesmo desenho.

Os primeiros problemas, relativos à escolha de uma única tipologia, ma­


nifestaram-se durante a discussão com os habitantes e foram depois
transformados numa questão política. Tinha-se espalhado a ideia, sur­
gida no interior da assembleia ou sugerida do exterior, que construir
só casas de pátio, num sector da cidade, era desumano e inaceitável.
Este receio da monotonia é um desafio à busca da diferença que não
pode resolver-se numa questão estética, porque se assim fosse, o resul­
tado apareceria logo artificial, caricaturado ou inventado. A discussão foi
conflituosa, como deve ser num processo participado, e contudo nunca
comprometeu o diálogo. Vinte anos depois, continuo a ter o apoio das
populações e das cooperativas e portanto, não obstante os tremen­
dos ataques por parte de políticos e arquitectos, continuo a trabalhar
na Malagueira: parece-me tratar-se de um resultado excepcional. A es­
colha da casa de pátio não convenceu todos e por conseguinte, em
pouquíssimos casos, recebi pedidos para colocar o pátio nas traseiras
da casa. Estes pedidos eram ditados pelo desejo de uma presença mais
forte da casa em relação à estrada e foram acolhidos porque as altera­
ções se enquadram bem na estrutura de conjunto.

Entretanto surgira-me a ideia de elevar as redes infra-estruturais à

232 01 textos por Álvaro Siza


altura das coberturas: entre as duas casas contrapostas passa uma
conduta secundária, que fornece todas as habitações partindo da con­
düta-1xincipal, colocada ao longo do eixo este-oeste. Opinou alguém
que a razão principal desta estrutura seria o aqueduto de Évora, que
na realidade me impressionou muito e por isso poderá ter represen­
tado uma primeira sugestão. Na realidade, visto que os financiamentos
de que dispunha só previam a construção dos fogos, sentia a limi­
tação dada pela presença de uma escala única. Além disso, como
dificilmente, até por razões políticas, poderia conseguir interessar ou­
tros Ministérios na construção de obras públicas, tinha de encontrar
uma solução que permitisse aquele diálogo, que vemos em qualquer
cidade, entre o tecido uniforme e contínuo das casas e os edifícios co­
lectivos. �sta grande el:,trutqra, que atravessa todo o terreno, tem por
isso e ��b.re!udo a função de definir uma outra escala.

O último obstáculo à concretização desta ideia era a difícil negociação


com as diferentes entidades (electricidade, água, telefones, gás e te­
levisão). A solução foi finalmente aceite, sobretudo porque a redução
das despesas de manutenção tornava a intervenção mais económica
no seu conjunto. Graças à colaboração do engenheiro Sobreira, com
quem trabalhei durante quase toda a minha vida profissional até ao
seu recente desaparecimento, a estrutura da conduta, em blocos de
cimento, tem algo de milagroso, sendo tão leve como é.

Entre os jJ!Jarteirões e o aqueduto, de!:,<9-i alguns espaços livres, cal­


culados para posterior ocupação para actividades predominantemente
comerciais. Queria evitar que a localização de novas funções fosse ca­
sual e alheia a toda a estrutura do bairro. O encontro entre a conduta
principal e a conduta secundária permitiu assim a criação de uma série
de espaços intersticiais que multiplicam as possibilidades do projecto.
Paradoxalmente, as críticas mais violentas vieram da interpretação des­
tes espaços como lugares incompletos e fui acusado de ser "incapaz de
acabar". Na realidade a preocupação morfológica do conjunto era bem
viva e estes lugares efectivamente começam a ser ocupados.

Outros espaços intersticiais foram-se definindo no cruzamento entre a


malha ortogonal dos quarteirões e os percursos preexistentes, dos quais

233
já falei. Trata-se, uma vez mais, de suportes úteis para o desenho dos
espaços públicos.

Neste difícil dimensionamento desempenha um papel decisivo uma


semi-cúpula que, çomo o aqueduto, será uma construção que relaci?­
nará construído e espaço aberto, lugar privilegiado da vida colectiva. e
s·uporte essencial do desenvolvimento da cidade. Não foi ainda cons­
truída e, apesar de terem sido já feitos os cálculos estruturais (e não
custar muito), a garantia da sua construção é ainda longínqua. E con­
tudo, a semi-cúpula está lá, foi-se definindo lentamente e à medida que
tomavam forma os elementos ao lado desta pequena praça, que é o seu
suporte. Naquele ponto, a conduta não é separada de tecido urbano
mas faz parte dele, faz bloco com as casas. Todos estes elementos, em
conjunto com a própria forma do terreno, permitem assim ler com preci­
são a semi-cúpula. Este espaço albergava o tanque e o sobreiro, depois
destruídos pelas máquinas durante a construção. Ambos estão ainda
presentes na memória e, quando se construir a semi-cúpula, regressa­
rão ao seu lugar.

Esta difícil construção da segunda escala é essencial para a consis­


tência do projecto e creio que o resultado será alcançado, a não ser
que surjam inexplicáveis acções destrutivas. Recentemente manifes­
tou-se por exemplo a intenção de alargar o eixo este-oeste em virtude
de uma pretensa necessidade determinada pelo tráfego: esta interven­
ção destruiria a integridade do conjunto. Da aprovação ou não desta
proposta fiz depender a minha continuidade em Évora. Qualquer obra
deve estar disponível para alterações e transformações, mas não para
a deliberada intenção de destruir.

Há intervenções às quais a cidade não resiste e muitas cidades con­


temporâneas mostram-nos que, superado um certo limite, não há mais
resistência possível. Só quem pretende leituras acabadas e imediatas
da cidade, e não sabe ler entre as coisas, acredita que a Malagueira
esteja incompleta, com algumas zonas indefinidas ou esquecidas.

Impressionou-me muito uma fotografia de Buenos Aires tirada na al­


tura da sua fundação. Esta cidade, hoje maravilhosamente densa,

234 01 textos por Álvaro Siza


via-se ainda em construção, com poucas casas e muitos espaços de­
sertos. A imagem tinha um ar absolutamente inacabado e não podia
deixar de ser assim, dado que as cidades não nascem já acabadas.
O tempo, com muitos arquitectos e inúmeros habitantes, permite esta
densidade e esta beleza que vemos quase com desespero nas cida­
des antigas e que hoje nos parece inatingível. No fundo, esta condição
não representa um drama, mas antes a lição que torna possível esta
lenta construção, de modo a que o resultado não seja frágil.

Desenhei também uma igreja com um centro social e uma escola:


trata-se de uma construção importante, visto encontrar-se num ponto
de convergência entre o bairro de Santa Maria, o bairro projectado por
mim e as altas torres do plano anterior. Nesta zona existem muitos
conflitos sociais, porque de forma muito estúpida várias famílias de ci­
ganos foram alojadas nas torres. Esta obra será por isso determinante.
Ainda não foi realizada, mas há a certeza de que o será em breve.
Da torre da igreja ver-se-á o perfil da cidade e a torre da Catedral de
Évora. Uma vez mais, tive que lutar contra a teimosia de um arquitecto
da Câmara que queria transferi-la para outro lado.

Relativamente à célula, li muitas interpretações que geralmente as­


sociam o vernacular português ao racionalismo. Considero-me alheio
a esta visão e não a acho importante. Creio que é necessário prio­
ritariamente estudar as razões, de natureza económica e técnica,
do contexto no qual se intervém. Para além dos limites dos financia­
mentos, dos quais já falei atrás, são determinantes as condições da
construção local no Alentejo: zona de latifúndios e pouco habitada, na
qual a maior parte do trabalho era, até a pouco tempo, sazonal. Nesta
região, a resposta da produção local seguia um ritmo lentíssimo, de­
pendente de técnicas e materiais artesanais, com a única excepção
dos edifícios públicos, que eram contudo em número extremamente
reduzido. Esta situação, no fundo, explica muito bem o óptimo estado
de conservação de Évora e de todo o Alentejo, onde não se construía
nem se destruía: uma espécie de jóia dos latifundiários.

As casas eram construídas com tijolos cozidos ao sol, que ainda hoje
se fabricam e se utilizam. A resposta projectual não podia contar com

235
este factor, porque as dimensões do programa eram desproporcionadas
relativamente à possibilidade produtiva. A produção tradicional estava
portanto fora de causa. Além disso, em virtude de depois do 25 de Abril
se ter dado um "boom" na construção, as grandes empresas estavam
absorvidas com novas construções nas cidades mais importantes, por­
que era forte a ânsia de libertação e desenvolvimento. Por esta razão
verificava-se uma grande penúria de construtores e de materiais.

Uma última polémica teve a ver com a cobertura em terraço. E con­


tudo, uma das razões da escolha, por certo não determinante, era a
ausência de telhas. Além disso, para construir as primeiras cem casas
foi necessário que a câmara de Évora apoiasse uma pequena fábrica
existente que produzia blocos de cimento. Assim se explica a deficiên­
cia construtiva, visto faltar o indispensável saber técnico, por ausência
de trabalhadores especializados. Nesta óptica o pátio, que certamente
depende de claras influências históricas, explica-se pela necessidade
de criar um microclima de transição entre as condições climáticas do
exterior e o interior, que não podia ser suficientemente protegido pelos
materiais utilizados. Ignorando estes factores não se compreende o
sentido do projecto. Por outro lado, é necessário notar que as primei­
ras cem habitações se destinavam a pessoas que vinham do campo
e que portanto conservavam ainda, no espírito, os modelos rurais. Por
isso, a elaboração da casa de pátio é algo muito mais complexo e
articulado do que a dicotomia entre modelo vernacular e Movimento
Moderno, referências sempre presentes, mas entre muitas outras.

Aquilo que conta é esta densa malha que ultrapassa abundantemente


os limites da cultura arquitectónica, da especificidade disciplinar. Toda
a evolução do projecto é uma história muito interessante, influenciada
pelo encontro entre origens diferentes, entre concepções opostas da
família, que é difícil relatar em toda a extensão.

236 01 textos por Álvaro Siza


086.2007 03 16 Pedagogia, Design

A minha preocupação principal em desenhar, suponhamos, uma


cadeira é a de que pareça uma cadeira. É a primeira questão.
Hoje desenham-se muitas cadeiras que parecem outra coisa.
A necessidade de originalidade e diferença conduz quase sem­
pre a abandonar a essência de um determinado objecto.

Pub. in Álvaro Siza, lmmaginare l'evidenza, ed. Gius. Laterza & figli Spa,
Roma-Bari, 1998. Trad. Portuguesa in Álvaro Siza, Imaginar a Evidência,
Edições 70, Lda, Março 2000, p. 131 a 145. O livro é a transcrição da
entrevista feita por Guida Gianfranco a Álvaro Siza.

Essencialmente

O design tem limites pouco definíveis, sendo parte de um processo, sem


soluções de continuidade, que inclui igualmente plano e projecto. O de­
senho do mobiliário, por exemplo, não pode abstrair-se da concepção do
espaço a que pertence, enquanto ao mesmo tempo a obtenção de uma
correcta relação entre escalas diversas depende também das possibilida­
des de uso de cada uma das partes. Existe portanto uma relação, e em
conjunto uma clarificação recíprocas, definidas por dois extremos.

Comecei a ocupar-me de mobiliário a pedido de pessoas para quem


tinha projectado casas. Estes móveis, portanto, foram pensados espe­
cificamente para determinados espaços. Todavia como o estudo de um
edifício evolui para uma progressiva libertação dos problemas funcio­
nais, assim o desenho de um móvel tende à especial capacidade de
adaptação a situações diferentes. A dificuldade principal coincide com
a procura de uma difícil autonomia, que não pode asfixiar a do espaço.
Por isso os dois exercícios me parecem indispensáveis, ou para ser
mais preciso, os três exercícios: pensar a cidade, pensar o edifício, pen­
sar o móvel. Cada uma destas actividades depende das outras.

Os primeiros móveis que desenhei nasceram da experimentação


de protótipos, no ambiente a que eram destinados. A aproximação
do desenho era portanto bastante prudente e igualmente segura.

237
Posteriormente, com a solicitação de produção em série, tornou-se
muito claro que esta relação directa e exclusiva com o espaço é débil,
sendo demasiado redutora. É necessário num certo ponto do processo
libertar o projecto de uma dependência completa. O desenho de um
móvel começa assim a alcançar uma maior autonomia e adquire uma
certa singularidade. A qualidade do resultado depende desta procura,
ao mesmo tempo de autonomia e de capacidade de se relacionar. Em
tal processo, a ajuda mais importante é dada pela percepção da es­
sência de cada móvel: essencialmente o que é?

A minha preocupação principal em desenhar, suponhamos, uma cadeira


é a de que pareça uma cadeira. É a primeira questão. Hoje desenham-se
muitas cadeiras que parecem outra coisa. A necessidade de originali­
dade e diferença conduz quase sempre a abandonar a essência de um
determinado objecto.

Todos os objectos têm uma história. E contudo, vistos à distância,


podem ser ligeiramente diferentes e é exactamente nesta ligeira dife­
rença que se esconde o seu verdadeiro significado no tempo.

Recordo-me de ter escrito, anos atrás, um texto sobre design no qual


observava como uma cadeira egípcia continua a ser actual. Podemos
portanto introduzir diferenças que resultam dos materiais e do sentido
das proporções, mas no fundo deve subsistir a essência de uma ca­
deira: a sua relação com o corpo.

As reflexões de Adolf Loos sobre o design, importantes e actuais, subli­


nham como a necessidade, ainda mais do que a arte, é o fundamento
primeiro para se alcançar um objecto perfeito. Loos também desenhou
uma cadeira Thonet, e é uma cadeira maravilhosa; olhando-a pode­
mos dizer: "É uma cadeira T honet!", sem acrescentar mais nada. E
contudo é evidente algo de especial nas proporções e em alguns por­
menores que dão pouco nas vistas, de modo que a impressão geral
é de uma coisa absolutamente singular, sensacional, mas ao mesmo
tempo banal. Creio que no momento em que estes dois aspectos coe­
xistem, esteja alcançada a quintessência da perfeição.

238 01 textos por Álvaro Siza


Um objecto não pode ser o protagonista absoluto, a não ser em casos
excepcionais. Tem de exprimir então uma grande contenção, ou uma
disponibilidade para qualquer relação. Creio que o design industrial se
debate exactamente com este problema. As grandes peças de mobiliá­
rio, que marcaram a história, possuem realmente uma grande contenção
e uma espécie de banalidade. Esta palavra, banalidade, tem um signifi­
cado ambíguo. Neste caso utilizo-a não para dizer sem interesse, sem
qualidade, mas sim no sentido da disponibilidade na continuidade.

O exercício da observação é prioritário para um arquitecto. Quanto


mais observamos, tanto mais clara surgirá a essência do objecto. E
esta consolidar-se-á como conhecimento vago, instintivo.

Em geral, quando desenho uma cadeira ou um puxador ou qualquer


outra coisa, começo com muitas ideias e treino-me em fazer coisas
muito diferentes e por vezes extravagantes. Lentamente, a evolução
do projecto orienta-se para uma redução à essência e uma gradual
aproximação à substância. A cadeira estilizada que desenhava na
escola primária possuía já todas as características típicas: as quatro
pernas, o espaldar e o assento. Uma vez mais será ainda este o ponto
de partida: uma segunda espontaneidade conquistada através da su­
blimação instintiva do conhecimento. Como uma navegação perigosa:
pode-se sempre naufragar e dão-se muitos naufrágios.

No design existe um forte contacto com a produção, quer esta seja ar­
tesanal quer industrial. É indispensável, assim, a compreensão das
possibilidades do sistema de produção através de uma adequada
utilização das suas potencialidades. É fundamental durante todo o
processo uma ligação muito estreita entre o desenho e a produção,
especialmente se se trata do contacto com um artesão ou um carpin­
teiro de província, mais do que com uma indústria.

Posso começar com ideias bizarras, do arco-da-velha (como se diz


em Portugal) e o processo que a seguir decorre é difícil de explicar
porque não é linear, mas sim contraditório. Verifica-se a mesma si­
tuação quando escrevo um texto, e muita da dificuldade que sinto é
consequência da falta de prática. Pode acontecer que um dia acorde

239
pensando no assunto e de repente surja a estrutura. Depois, é de­
terminante o trabalho de aperfeiçoamento e clarificação, ligado aos
ritmos da leitura e aos pormenores da forma. Creio que não existe
uma grande diferença entre o processo de escrita e o do desenho de
tal modo que em definitivo não sou capaz de dizer como desenho um
objecto ou a própria arquitectura.

Existe toda uma série de processos fundamentais dos quais, de qual­


quer modo, nem sequer temos conhecimento. Sucede-me, algumas
vezes, fazerem-me notar um determinado aspecto de uma obra, que
é absolutamente evidente mas do qual eu não tinha consciência.
Projectei, por exemplo, uma escola em Setúbal, a poucas dezenas
de quilómetros do extraordinário santuário do Cabo Espichei, que
conheço muito bem. Alguém notou a influência, muito evidente, do
santuário na escola e repentinamente tomei consciência disso: era
verdade em muitos aspectos, inclusive nas proporções. Trata-se de
influências que se manifestam no subconsciente e que entram no pro­
jecto sem que nos apercebamos disso. Convido frequentemente os
estudantes a viajar e a observarem com atenção. Aprender a ver é fun­
damental para um arquitecto, existe uma bagagem de conhecimentos
aos quais inevitavelmente recorremos, de modo que nada de quanto
façamos é absolutamente novo.

Neste momento estou a desenhar um talher. É um trabalho muito inte­


ressante: um garfo, uma faca... O garfo deve ter pontas para prender,
enquanto a faca deve ter a lâmina equilibrada em relação ao peso do
cabo para que não seja incómoda. Muitas soluções surgem da ex­
periência, da evolução e do aperfeiçoamento dos objectos, através
da história. Questões basilares que orientam o percurso do desenho.
Estou a projectar estes talheres em colaboração com a pessoa que
os realiza. Trata-se de objectos em prata. Não fiz nenhum desenho ri­
goroso, só esboços com as dimensões do conjunto, que permitam a
construção dos protótipos. Começa por se realizar uma determinada
forma, muito aproximada, depois segue-se o ensaio com um banho
de prata, para verificar o aspecto e o brilho que se obtém. Finalmente
dar-se-á início à produção. Observo todos os protótipos que chegam
e começo a mudar pequenas coisas. Falo com muitas pessoas, com

L.
240 01 textos por Álvaro Siza
amigos arquitectos e sobretudo com familiares, que têm uma visão
menos comprometida. Inicio assim um "aprendizado" durante um certo
período, enquanto o desenho avança a partir de hipóteses, críticas e,
consequentemente, respostas às críticas. Todo o processo projectual
segue substancialmente este percurso. É evidente que quanto mais
profundas são as críticas, menor é a probabilidade de insucesso, e
por mais incrível que possa parecer, maior é a autenticidade. No de­
sign este processo de aperfeiçoamento através das críticas, através
dos contributos de muitas especializações, através de testes e expe­
riências, é um dado de facto. O automóvel antes de ser vendido é
experimentado de muitos modos, em todos os seus aspectos de con­
forto, de eficácia, de manutenção ...

É isto que se deve verificar também no projecto, porque só assim é pos­


sível atingir um aperfeiçoamento, na realização, que alcance a poesia.

Estou também a desenhar uma medalha comemorativa para a galeria


de exposições de uma empresa, que eu próprio projectei e que agora
está em construção. Pretendo extrair da planta uma forma ligada ao
redondo da medalha, libertando-me do óbvio da reprodução de uma
perspectiva do edifício, que era aquilo que o cliente me pedia.

Conta-se que Kandinskij entrou, um dia, no seu atelier e viu uma pintura
belíssima: ficou surpreendido, depois aproximou-se e verificou que era
um quadro pintado por ele, uma paisagem ou uma natureza morta, vi­
rada de cabeça para baixo. Tinha desaparecido tudo aquilo que era fixo
na representação do quadro e ficara o essencial, nas suas formas, nos
seus equilíbrios e nas suas cores.

E contudo, tornando ao desenho da cadeira, é importante a expressão


de uma qualquer singularidade que, não traindo a essência, liberte o
desenho das razões demasiado óbvias. Consegue assim definir-se um
toque de autenticidade que atrai de maneira não agressiva mas que,
ao mesmo tempo, surge, em parte, como banal. Partir com a obsessão
da originalidade é um processo inculto e primário.

241
242 01 textos por Álvaro Siza
087.2000 07 00/08 OutrosArquitectos: Juan Miguel Hernandez
Léon

Recuperação das Muralhas Reais de Ceuta / Museu no Re­


vellin de San lgnacio por Juan Miguel Hernandez Léon.
Há mil cambiantes de luz banhando as paredes, de tal forma
que resulta praticamente dispensável a iluminação arlificial -
obrigatória contudo por aquele medo a que conduz uma visão
desconhecedora dos poemas da luz, a qual, sobretudo no que
se refere á arquitectura dos museus tantos condicionamentos
têm imposto aos arquitectos.

Pub. integral in Arquitectura Viva 73, Julio-Agosto 2000 (em castelhano),


sob o título Modelar la Memoria - sobre la rehabilitación de las murallas
de Ceuta.

Muralha Portuguesa - Ceuta

O recinto
Juan Miguel Hernandez Léon deposita uma lâmina de calcário quase
branca sobre a pedra de um castanho esverdeado das muralhas. Essa
fina lâmina reveste a totalidade das superfícies horizontais - pisos, e re­
mates superiores dos muros. Dessas luminosas superfícies horizontais
desprendem-se, para o alto e para baixo, alguns elementos arquitectóni­
cos - escadas ou gárgulas ou outros construídos na mesma pedra.

Isto é: recuperada cuidadosamente a integridade material da grande


construção, aquilo que se refere á intervenção contemporânea - ele­
mentos inerentes a uso público variado e não totalmente previsível
- rematam e invadem, como uma ordem sobreposta, a secular estru­
tura; ordem esta que inclui outros elementos de uso readaptado a uma
nova fruição (portais decorados, rampas, escadas e outros ainda).
Em alguns delicados elementos se espraia o gosto pelo desenho,
aí onde ele possa acompanhar o elaborado trabalho de pormeno­
res pré-existentes, pouquíssimos, apenas onde ele não possa colidir
com a força e a escala geográfica da enorme construção defensiva
(lembro-me, por exemplo, dos apoios dos antigos canhões, refeitos
sinteticamente mas agora em pedra calcária). O piso de revestimento

243
do grande recinto situado entre a muralha portuguesa e os bastiões
San Xavier, San lgnacio e San Pablo é trabalhado como uma enorme
escultura em baixo relevo, de modelação estudada a partir das neces­
sidades essenciais de uso e da memória e informação sobre a antiga
Praça de Armas e a desaparecida "falsa Braga".

Museu
A entrada no museu não se faz pelo portal principal do bastião de San
lgnacio. Esse portal foi recuperado, bem como a escada interior, de
tecto abobadado, conduzindo ao terraço. Este acesso facilita a ma­
nutenção e controle dos lanternins de iluminação, os quais ocupam
fundamentalmente a espessura dos medalhões, refeitos mas agora
esvaziados. A entrada faz-se por uma outra porta, dando acesso a
um espaço de recepção (uma das células dos espaços originais ane­
xos ao muro de limite do bastião). Uma pequena porta conduz á célula
contígua, e daí aos novos espaços do museu. Um enorme arco per­
mite uma primeira e dramática visão sobre a sucessão de espaços,
desenvolvidos paralelamente aos muros limite, e sobre a prodigiosa
máquina de luz inventada.

Há mil cambiantes de luz banhando as paredes, de tal forma que re­


sulta praticamente dispensável a iluminação artificial - obrigatória
contudo por aquele medo a que conduz uma visão desconhecedora
dos poemas da luz, a qual, sobretudo no que se refere á arquitectura
dos museus tantos condicionamentos têm imposto aos arquitectos.
A qualidade escultórica - de expressão cubista - que caracteriza a
complexa sucessão de vãos e écrans dos lanternins não afecta mi­
nimamente a tranquila atmosfera do museu, sobretudo pelo grande
pé-direito das suas naves.

São três as galerias que preenchem e repetem a forma basicamente


triangular do vazio resultante de um anteriormente realizado desaterro
no interior do bastião. As primeiras galerias têm um pé-direito total em
contraste com a ultima, á qual se sobrepõe um segundo piso. Nos dois
vértices situados nos extremos da primeira nave situam-se duas esca­
das, as quais permitem um percurso contínuo de ida e volta.

244 01 textos por Álvaro Siza


088.2000 11 17 Arte - Pintura / Fotografia
Sobre a pintura/fotografia de Ralph Fleck, a partir de uma visita
ao seu estúdio em Frieburg.
A janela é uma rua inteira onde passam pessoas distraídas,
sem reservas, transportando malas e embrulhos, apoiando-se
em bengalas, guarda-chuvas, pensamentos.

Pessoas sob um céu azul imaginado

Visitei um dia o estúdio de Ralph Fleck em Frieburg.

Encostadas às paredes, suspensas, espalhadas no chão, havia um


sem número de enormes pinturas, densas de tinta e de trabalho, sobre­
postas em aparente frenesim. Olhadas de longe, contudo, ganhavam
uma inesperada serenidade: cidades, paisagens, superfícies orgâni­
cas, cósmicas, coisas indefiníveis da Natureza.

Sobre uma mesa estavam poisadas algumas fotografias e umas


tiras estreitas de papel cinzento, com rectângulos recortados, como
janelas.

Soube depois o uso de ambas: aquelas janelas percorrem ao acaso a


superfície das fotografias, seleccionando imagens, fragmentos.

A pintura nasce como descoberta em suspensão de viagem, como re­


velação, singularidade absoluta, escondida a outros olhos.

Em outra dimensão, transfigurada, essa singularidade invade-os.

Posso imaginar a sensação de Ralph Fleck, ao dedicar-se a essas


pequenas pinturas em papel, homens e mulheres a corpo inteiro.
Provavelmente sentado numa esplanada, sob o céu azul do Algarve,
nessa vaga sensação de paz interior, de repouso e de disponibilidade,
própria de umas férias autênticas. Isto é, nos momentos em que é na­
tural trabalhar em encantamento, grato pela dádiva surgida.

245
Não é preciso então uma janela recortada, a deslizar sobre seja o que
for.
A janela é uma rua inteira onde passam pessoas distraídas, sem re­
servas, transportando malas e embrulhos, apoiando-se em bengalas,
guarda-chuvas, pensamentos. Ou pessoas que param e nos olham,
desconfiadas, subservientes por vezes, desfocadas, paralisadas no
espanto do outro. Ou que partem plenas de energia, saltando do fundo
de papel acastanhado, envolvidas por uma aura brilhante, ou mancha
de óleo, em nítidíssimo instantâneo, prestes a desaparecer.

246 01 textos por Álvaro Siza


089.2000 12 00 Arquitectura: Café Moderno

O Café Moderno é hoje sem dúvida "uma outra coisa". Mas a


sua nova expressão e o seu ambiente (. . .) lançaram raízes em
paredes impregnadas de uma rica história humana, social e ar­
tística (. ..) indispensável à libertação do Passado. (.. .). Afinal,
eficaz é a qualidade.

Pub. in EI antiguo Café Moderno de Pontevedra, ed. Fundación Caixa


Galicia, 2001, p. 17.

Café Moderno

Primeiro fiquei preocupado: que posso fazer destes tectos pesada­


mente ornamentados, de cores soturnas, destas paredes com pinturas
arruinadas, destes espaços a roçar o kitch? Deste casarão cinzento,
do jardim desfeito, de entorno mal cuidado?

Ensinaram-me algo da história do casarão, do protagonismo daquele


café, das tertúlias, dos quadros de Sobriíio e de Laxeiro, dos políticos,
escritores, artistas, da gente brilhante que o transfigurara. Contaram-me
que nele havia nascido o grandíssimo arquitecto Alejandro de La Sota.

Não vai ser uma agência de Banco (disseram-me ainda). A Caixa


Galicia pretende reutilizá-lo como Café, pretende instalar serviços so­
ciais e culturais.

Soube ainda que teria o apoio de uma equipa de restauradores, que se


pretendia uma execução de obra particularmente cuidada.

Jacinto Rey foi-me espicaçando, com aquele entusiasmo desbordante.


Apresentou-me à Administração da Caixa, foi-me dizendo, entre rece­
oso e provocador que "era necessário ser rápido e eficaz".

Terminara então a Faculdade de Jornalismo, em Santiago: tinha dis­


ponível o talento e a dedicação do Marco Rampulla. Desafiei-o para
colaborar no projecto e para o acompanhamento de obra, juntamente

247
com Carlos Seoane. As cores brilhantes, encobertas sob camadas de
pintura, foram reaparecendo; os quadros (os belos quadros de Sobrino
e de Laxeiro, o belíssimo e abandonado fresco), foram pacientemente
restaurados; igualmente restaurados ou refeitos foram as esquadrias,
as ferragens, o jardim e as suas belas espécies vegetais, o granito,
aqui e ali perfurado, simplesmente por insensibilidade.

O resto foi esforço e descoberta e prazer: introduzir conforto, adaptar


a novos usos (do cabeleireiro à galeria de exposição) conciliar a in­
tegridade arquitectónica com introdução das instalações e aparelhos
- tantos - que sulcam e percorrem o espaço contemporâneo; nave­
gar no mundo da transformação e da aproximação do rigor (que já
não dispensamos), ao sabor e improviso do trabalho artesanal, aqui
do ecleticismo.

O Café Moderno é hoje sem dúvida "uma outra coisa". Mas a sua
nova expressão e o seu ambiente (creio que não me engano) - perfu­
rando, lançaram raízes em paredes impregnadas de uma rica história
humana, social e artística. Passado incontornável, indispensável à li­
bertação do Passado.

Se for assim, Jacinto Rey, terei sido eficaz. Afinal, eficaz é a qualidade.

248 01 textos oor Álvaro Siza


090.2001 03 00 Exposições, Museus

Texto para uma Exposição no Instituto Italiano de Nápoles.


O trabalho interdisciplinar é hoje determinante, face à com­
plexidade de um edifício. Mas não deve impedir uma espécie
de plasticidade no desenvolvimento do projecto. Não se trata
de proceder exactamente como um escultor, que tudo pode ir
transformando na argila, mas de conseguir, apesar de tudo,
que os condicionamentos técnicos não impeçam a elaboração
da forma, mas que antes nisso participem.

Exposição em Nápoles

O conceito proposto para a exposição a montar no lstituto Italiano per


gli Studi Filosofici di Napoli, em 1998, pretendia tornar compreensível
o desenvolvimento do projecto do Museu de Serralves.

A exposição foi montada tendo como espaço principal uma belíssima sala
barroca, de paredes revestidas por lambris e pinturas a fresco; no pa­
vimento, ao centro da sala, salientava-se um desenho barroco, com
embutidos em mármore.

Trabalhando como quase sempre faço em circunstâncias idênticas,


parti da tentativa de desmontagem do processo mental de quem
concebeu anteriormente este lugar. Tive em conta as suas caracte­
rísticas, ao projectar a montagem e a distribuição do mobiliário para a
exposição.

O centro da sala, assinalado pelo desenho referido, revelava-se muito


importante para o próprio espaço, conjugando-se com as densas pa­
redes envolventes. Decidi então que devia ficar vago; facilitaria tanto a
visibilidade como a circulação de quem visitasse a exposição.

Levantava-se em seguida o problema da relação entre as pinturas da


parede, os lambris, que tinham uma altura considerável, e as novas
peças do mobiliário a introduzir. Optei por colocar mesas distribuídas

249
na periferia da sala; sobre estas ficaria a maior parte dos desenhos.
Alguns destes, tal como as maquetas, ficariam expostos horizontal­
mente e outros inclinados, para facilitar a observação.

Através destas mesas inclinadas, estabeleci uma relação entre a com­


posição de duas pinturas murais e os esquissos de início do projecto.

Já que a forma, as medidas e a inclinação das mesas seriam ajustadas


às pinturas, foi necessário ter em conta as medidas e a composição
dos frescos, que representavam um pórtico em perspectiva, e igual­
mente as dos lambris.

Na exposição tinha forte presença uma grande maqueta a escala 1:100


que, a partir de dado momento, acompanhou todo o desenvolvimento
do projecto. Definindo o essencial da forma do edifício, mostrava ter
sido constantemente cortada, estragada, refeita, ao acompanhar as al­
terações sucessivas.

O processo que adoptei na montagem da exposição é semelhante


àquele que uso habitualmente, ao projectar arquitectura. Apesar do
receio de estragar um lugar de qualidade, prevalece a vontade de re­
tomar o que o caracteriza, tomando o fio da meada das anteriores
intervenções, para continuar. O Museu de Serralves é um exemplo
deste mesmo processo. Existindo já no lugar uma casa muito bela e
antiga, pretendia que a nova construção surgisse como algo presente
há muito tempo. Estas minhas preocupações de ir ao encontro do lugar
provocam por vezes incómodo. São encaradas em certos casos com
ironia, como ideia repetida. Alguns arquitectos entendem que é neces­
sária a ruptura considerando que esta ideia de continuidade pertence
a um passado condenado.

Na exposição, em Nápoles, havia vários desenhos da implantação do


Museu, que mostravam o cuidado posto na sua inserção no jardim en­
volvente e em geral num complexo que compreende casa, parque, mata
e construções agrícolas. Os cortes, por seu turno, mostravam a comple­
xidade topográfica e a sua influência na organização do edifício.

250 01 textos por Álvaro Siza


Se havia certos desenhos rigorosos, definitivos, outros mostravam en­
saios de solução, alterações, transformações, decorrentes por vezes
de razões de custo.

Também a maquete mostrava a introdução de alterações sucessivas.


Estas têm várias origens. Algumas, desde o projecto até ao fim da
obra, correspondem à elaboração da forma através de esquissos, no
estaleiro, na obra, em casa ou no escritório. Outras devem-se à teia
de intra-estruturas (cabos, canos, tubos que percorrem e condicio­
nam todo o edifício). Neste caso, as alterações podem ter duplo efeito.
Poderão clarificar e disciplinar o projecto, ou pelo contrário, destruí-lo.
A complexidade das instalações de um edifício é hoje determinante.

O acompanhamento de uma obra exige uma atenção constante e neces­


sita de algo que apoie a fragilidade da memória. Para isso o esquisso,
que uso muito - até por vício - é precioso. É rápido e permite tudo
registar, de forma sintética ou analítica, tornando mais fácil a comuni­
cação entre os vários intervenientes no projecto, e a sua coordenação.
O trabalho interdisciplinar é hoje determinante, face à complexidade
de um edifício. Mas não deve impedir uma espécie de plasticidade no
desenvolvimento do projecto. Não se trata de proceder exactamente
como um escultor, que tudo pode ir transformando na argila, mas de
conseguir, apesar de tudo, que os condicionamentos técnicos não im­
peçam a elaboração da forma, mas que antes nisso participem.

Por vezes é possível, no decorrer da obra, continuar o desenho, atra­


vés de estudos parcelares de aperfeiçoamento do pormenor. Esses
estudos não alteram a generalidade, mas influem na qualidade.

O desenho é um instrumento de trabalho e de comunicação. Permite, com


velocidade, comparar. Mas não resolve tudo, tem limites e pode tornar-se
vício, se não for acompanhado por outros meios que, não o substituindo,
o complementam.

O esquisso tem de ser acompanhado pelo desenho rigoroso e pelas


maquetas. Os instrumentos tradicionalmente utilizados na represen­
tação do projecto não foram abandonados. O computador é mais um;

251
permite sem erros verificar com rapidez, por exemplo, as proporções
de um projecto. Continua contudo o prazer de esquissar, ao som da
música, como que em férias. Por vezes, no dia seguinte, a verificação
rigorosa revela os enganos; mas nem tudo se perdeu.

É possível que o desenho venha a saltar do computador de forma livre


e directa - creio que não chegarei a isso.

De qualquer modo, o uso de vários tipos de representação é enriquece­


dor. Nenhum substitui outro; cada um potencia a capacidade criativa.

Alvar Aalto contava que por vezes, quando o projecto não avançava,
fazia desenhos ou pinturas ao acaso, sem ligação directa com o pro­
jecto. Assim retomava o percurso.

Em cada arquitecto há um desejo de nunca acabar o projecto.

Num belíssimo filme, Picasso pinta por traz de um vidro. Quando uma
forma se define, subverte tudo, fazendo nascer uma outra. O mesmo
desejo de continuar sem fim atravessa a arquitectura.

252 01 textos por Álvaro Siza


091.2001 04 00 Design

Desenho para um swatch.

Pub. in [Saint-Étiénne]. p. 46.

Desenhar um Swatch

Olha pela janela, procura uma ideia.

Aí está o Douro - que nunca viu dourado - Gaia, o barco, a ponte.

Pede uma folha de papel.

253
254 01 textos por Álvaro Siza

L
092.2001 04 08 Apresentação, Arquitectura: Avenida da Ponte,
Cidades: Porto (4)

O atribulado desenvolvimento e o cancelamento de dezenas


de projectos (sucessivamente elaborados, a partir da decisão
de rasgar o tecido da cidade, interligando a ponte D. Luís I
e a Praça da Liberdade) revela muito da história do século
passado, em particular da história da arquitectura - não só a
portuense ou a portuguesa.

A Cidade em suspenso

Sofia Thenaisie Coelho estudou e divulga em livro a história da Avenida


D. Afonso Henriques - a "Avenida da Ponte", como habitualmente
dizem os portuenses.

É este um serviço inestimável prestado à cidade, num momento em


que se debate o seu futuro e em que se cruzam diferentes opiniões.

Está a partir de agora à disposição de quem quiser opinar com co­


nhecimento - a forma legítima de opinar - uma criteriosa recolha de
desenhos, alguns deles inéditos, ilustrando um texto que relaciona e
interpreta, com extremo rigor, os muitos documentos consultados.

O atribulado desenvolvimento e o cancelamento de dezenas de pro­


jectos (sucessivamente elaborados, a partir da decisão de rasgar o
tecido da cidade, interligando a ponte D. Luís I e a Praça da Liberdade)
revela muito da história do século passado, em particular da história da
arquitectura - não só a portuense ou a portuguesa.

Ao longo de anos, arquitectos de diferentes nacionalidades protagoni­


zaram a intensa e sempre polémica reflexão em torno da Avenida da
Ponte.

É particularmente interessante a demonstração, através de belíssimos


desenhos da época, de que os responsáveis pelas transformações

255
efectuadas nos anos 30-40, pelo menos alguns, estavam conscien­
tes da necessidade de acompanhar as demolições (inevitáveis ou pelo
menos compreensíveis no contexto de então) por um renovado envol­
vimento do morro da Sé, fundamentado na história, tanto como nas
exigências de transformação.
Adivinha-se nos desenhos, latente, a percepção ou a procura de um
novo conceito, uma subterrânea resistência.

256 01 textos por Álvaro Siza


093.2001 08 00 Arquitectura: Chiado (5)

Ao mesmo tempo, para reconstruir a urbanidade daquela parte


da cidade, é importante fortalecer a estreita relação entre es­
paço público e de comércio, colocando as lojas ao longo da rua
e escolhendo uma função para o edifício que deixe perceber a
articulação das extraordinárias salas e dos dois pátios.

(Grandes) Armazéns do Chiado

O edifício surge num lugar predestinado a um papel de primordial


importância na cidade de Lisboa. Situado entre a Baixa e o Chiado,
caracterizado por acessos a cotas muito distantes (mais de dez me­
tros) e, sobretudo, colocado cuidadosamente no eixo da rua Garrett,
este lugar apresenta as características necessárias para dar vida a um
Janus bifronte.

A topografia e a orografia impõem ao edifício a prioritária e perma­


nente função de muro de suporte, independentemente das qualidades
formais da arquitectura que, de resto, na sua essência nunca mudou.
Ao contrário, mudaram, acompanhando as modas, as funções, pú­
blicas e privadas. De facto, ao longo do século XIX, sucederam-se
febrilmente um convento, novos nobres, três hotéis, e, finalmente, os
Grandes Armazéns do Chiado.

Mas o tema fundamental para o projecto daquele edifício é constitu­


ído, ainda hoje, pela «máquina» interior que estabelece as relações
entre a cota alta e a cota baixa. Por esta razão, o objectivo principal
consiste na reconstrução dos percursos, agora em escadas rolantes,
que atravessam o interior, articulando as várias funções e os diferen­
tes acessos.

Também o acesso ao metropolitano, colocado na rua do Crucifixo,


constitui uma sólida e permanente presença, que suporta o edifício e
a inteira área.

257
Ao mesmo tempo, para reconstruir a urbanidade daquela parte da ci­
dade, é importante fortalecer a estreita relação entre espaço público e
de comércio, colocando as lojas ao longo da rua e escolhendo uma fun­
ção para o edifício que deixe perceber a articulação das extraordinárias
salas e dos dois pátios. Por todas estas razões, defendi e continuo a
acreditar na viabilidade de um hotel de prestígio, ocupando a quase tota­
lidade da construção. Esta era de resto a ideia avançada pelo Presidente
Abecasis e posteriormente apoiada pelo Presidente Sampaio.

Perante a imobilidade dos promotores imobiliários portugueses,


afirmou-se a necessidade de um compromisso com investidores ho­
landeses, da Multi Development Corporation, pois era decisivo ocupar
aquele vazio e restituir àquele lugar a sua tradicional e natural capaci­
dade catalisadora, sem dúvida determinante para todo o Chiado.

A introdução de um centro comercial não comprometeu, todavia, o


essencial dos propósitos iniciais, porque foi possível temperar o congé­
nito desejo de auto-exclusão da vida urbana, típico daquele programa,
com a colocação de algumas lojas ao longo da rua. Obviamente, como
acontece em todos os compromissos, o resultado não corresponde in­
teiramente ao que eu desejava, todavia, considero-o aceitável.

A realização do centro comercial deu um grande impulso para a res­


truturação do comércio em toda aquela área, afectada pelos actuais
mini centros comerciais, cujas debilidades, de resto, muitas vezes e
sem sucesso denunciei. Assim, poderá finalmente redefinir-se a con­
tinuidade entre interior e exterior, ambientalmente indispensável e que
sempre considerei decisiva para um adequado funcionamento das
lojas (cujos projectos não elaborei).

A intervenção nos Grandes Armazéns do Chiado poderá estimular a re­


definição dos espaços comerciais, alguns ainda desocupados, e poderá
também influenciar as áreas contíguas, para além do próprio Chiado.
Também o horário de funcionamento do centro comercial contribuiu
para pôr fim ao «deserto» anteriormente existente, constituindo um ulte­
rior estímulo à consolidação deste tradicional centro da cidade.

258 01 textos por Álvaro Siza


A intervenção da Multi Development Corporation veio também apoiar
a minha persistente resistência contra a introdução de um parque de
estacionamento naquele lugar. De facto, para além de não ser compa­
tível com o loteamento do solo, que a Câmara acertadamente decidiu
manter, a construção de um parque de estacionamento teria, mais do
que alimentado, asfixiado o Chiado, introduzindo uma transformação
dramaticamente radical (aquele tipo de construção não era compatível
com a determinante vontade de não expropriar as áreas de interven­
ção). O diálogo com os proprietários foi estimulante, ainda que longo e
difícil, evitando uma situação de tabu/a rasa.

Afinal, e com o apoio da Multi, poucas dezenas de lugares de es­


tacionamento foram considerados (apenas os previstos no Plano)
complementando as cerca de oitenta unidades previstas no edifício
Grandella, em ambos os casos com acesso pela Rua do Crucifixo. O
Plano prevê a construção de parques de estacionamento, alguns em
construção ou já realizados, localizados num raio de cerca de cento e
cinquenta metros, satisfazendo as necessidades dos residentes e do
comércio, sem todavia paralisar o funcionamento do Chiado. Continuo
a considerar contraditório e desadequado que se verifique simultane­
amente o desejo de disseminar parques de estacionamento na cidade
histórica, e o de criar ruas pedonais (como acontece na rua do Carmo)
que provocam um injustificado empobrecimento dos movimentos na
cidade e um acréscimo de problemas noutras vias.

A minha participação no projecto de reestruturação dos Grandes


Armazéns do Chiado, para além das indicações e do controlo defini­
dos no Plano que anteriormente elaborei, foi solicitada pelo amigo Joan
Busquets, arquitecto catalão que habitualmente colabora com a MDC. O
próprio presidente João Soares encorajou a minha colaboração no pro­
jecto, vencendo as minhas dúvidas e garantindo um apoio inequívoco,
referindo as vantagens para garantia de continuidade com as outras
intervenções. Conjuntamente, Busquets e eu estabelecemos a organi­
zação interior do edifício, com particular atenção para a preservação de
algumas características da antiga construção. Em particular, refiro-me à
preservação da torre central e da ampla escadaria aí colocada.

259
Sucessivamente, definida a distribuição das tarefas, acabei por ocupar­
me do projecto do hotel, embora não me fosse dada a possibilidade de
desenhar a arquitectura de interiores, com prejuízo da coerência glo­
bal do projecto. Assim, a iluminação e o acabamento das instalações
(com a inaceitável presença de grelhas) não apresentam o carácter
exigível. No entanto, os quartos virados para o castelo, sobretudo, são
extremamente sugestivos e qualificados.

Por fim, faltava a elaboração do projecto do centro comercial. A MDC


organizou um concurso por convite a três arquitectos, entre os quais
Eduardo Souto de Moura, que aceitou participar, julgo que por solida­
riedade para comigo. Souto de Moura acabou por ganhar o concurso e
consequentemente elaborar o projecto, embora a realização das obras
nem sempre tenha respeitado as suas indicações, sobretudo no que
diz respeito à colocação das instalações. Mesmo assim, o conceito
que estrutura a intervenção continua suficientemente claro.

Em particular, o projecto de Souto de Moura nasce de condiciona­


mentos extremamente complexos, e embora existam defeitos na
realização, a articulação entre todos os elementos é brilhante; sobre­
tudo porque ele assumiu de forma extremamente clara a contradição
entre a nova função e as características do edifício preexistente, evi­
tando uma «continuidade» que teria sido provavelmente artificial. De
resto, também por esta razão, o projecto ganhou um prémio como me­
lhor pequeno centro comercial da Europa.

260 01 textos por Álvaro Siza


094.2001 09 03 Outros Arquitectos: Oiza, Homenagem

Exposto por ele, cada edifício se tornava corpo vivo: veias e


artérias, pulmões, coração, músculos, construindo a forma, ali­
mentando a imaginação, transfigurando a informação.
Como ninguém, Oiza abria o espaço de aprendizagem, de de­
sejo sem limites.

Oiza

Conheci Oiza em Barcelona, no início dos anos 70, num daqueles


Pequenos Congressos em que alguns arquitectos de toda a Espanha
(e um ou outro convidado português) debatiam os próprios projectos,
com total abertura e sinceridade.

Havia entre nós apreço, podíamos por isso tranquilamente criticar,


houvesse acordo ou desacordo, na confiante preparação e espera de
"mudança".

Impressionava qualquer um a sempre apaixonada participação de


Oiza. Cada conferência sua era uma aula de inesperada abrangência.
Para ele não existiam fronteiras de conhecimento, tudo convergindo -
dizia - na poética da Arquitectura.

Exposto por ele, cada edifício se tornava corpo vivo: veias e artérias,
pulmões, coração, músculos, construindo a forma, alimentando a ima­
ginação, transfigurando a informação.
Como ninguém, Oiza abria o espaço de aprendizagem, de desejo sem
limites.

Cruzamo-nos depois muitas vezes (seminários, júris de concurso, en­


contros ocasionais). E foi-se cimentando a amizade e a admiração.

Visitei-o um dia no apartamento das Torres Biancas, quando termi­


nava o igualmente brilhante e tão diferente Banco de Bilbao Vizcaya.

261
Manifestei o desejo de visitar a obra. Recusou: "Não é obra apresen­
tável, nada é conseguido".

Insisti. Por fim anuiu, contrariado.

Ao entrarmos na obra iniciou uma completa e pormenorizada descrição


do que considerava falhado, mal resolvido, detestável (quase tudo).

Em certo momento animou-se, pediu-me para subir ao primeiro andar,


onde queria mostrar um pormenor; e logo ao segundo e ao terceiro; e
assim, sucessivamente, percorremos não sei quantos pisos, cada um
mais completo e mais belo, subindo as escadas com crescente rapidez.

Chegámos por fim ao último piso. Eu ofegante, ele de olhos a brilhar,


agitando as mãos, explicando cada pormenor. Energia inesgotável.

Galgou então uma janela, passando a uma estreita e transparente ga­


leria exterior, apenas protegida por um tubo de aço horizontal ("Quero
que vejas um pormenor").
Fiz menção de não ir, manifestei o meu receio, o receio de qualquer
um excepto Oiza.

Expliquei que sofria de vertigens.

Em vão: foi-me conduzindo, em equilíbrio precário, até ao cunhai do


edifício - pálido, cabelos desfeitos pelo vento, Madrid inteira aos pés,
desdobrando-se sob a grelha da galeria. Tudo normal para ele, seguro
como navegador em torre de comando.

É assim que o vejo agora: predestinado ao voo largo, alegre como é


próprio de quem é livre, de quem pisa o mais alto patamar.

262 01 textos por Álvaro Siza


l
095.2001 09 14 Arquitectura: Maastricht

O território da Cerámique é hoje parte consolidada de um con­


tínuo urbano, com a sua vida própria e de relacionamento,
envolvendo habitação, comércio, equipamentos, tanto como o
magistral museu com que A/do Rossi abriu a sua construção.

Construir em Maastricht

Construir em Maastricht, no âmbito do Plano Coenen, constituiu para


mim uma extraordinária experiência. Essa experiência iniciou-se com a
apresentação do Plano a quase todos os projectistas já contratados.

Após a exposição, feita pelo director do Urban Plan Department of


Maastricht, Mr. Huub Smeets e pelo próprio Jo Coenen, sobre uma grande
maquete de conjunto, seguiu-se um aberto e estimulante debate.

No que se refere ao meu encargo foi especialmente discutida a relação


com os projectos de Mário Botta, de Galfetti e do próprio Coenen.

Propus então a fragmentação do que era, no plano, uma estrutura contí­


nua de perfil variado, incluindo uma torre de 17 pisos. Da aceitação dessa
proposta resultou a separação dos edifícios a projectar por Galfetti, bem
como a subdivisão do meu projecto em três edifícios, de 4, 6 e 17 pisos,
respeitando no essencial cérceas e alinhamentos do plano.

Para além desta alteração, propunha-se uma ligeira torção do volume


da torre, relativamente ao eixo da Avenida Céramique.

A proposta de Botta foi mais radical: ele recusou o alinhamento pre­


visto no plano (curvo e paralelo ao meu próprio edifício), imaginando
um amplo espaço de acesso e de distanciamento, entre a rua e um
mais potente e autónomo edifício.

De início desenvolvi simultaneamente os três corpos. Mais tarde o pro­


jecto da torre foi por várias razões protelado em relação aos outros
dois (construídos a partir de 1995 e concluídos em 1996).

263
Mais difícil foi o desenvolvimento do projecto da torre. O programa do
primeiro estudo integrava uma grande variedade de tipos de apartamen­
tos, em número rigorosamente definido por Bouwfonds Woningbouw
BV e por ABP Woningfonds BV.

Por isso, o perfil da torre variava verticalmente, conduzindo à procura


de uma solução de ocupação total do lote, no rés-do-chão, e à redu­
ção progressiva do perímetro dos pisos.

Pensava então revestir exteriormente a torre a cerâmica de cor verde


seco.

Do lado da avenida, o seu volume era aligeirado pela inclusão de va­


randas em consola, contrastando com a maciça elevação a Norte.

Julgo que esta solução não foi claramente convincente, se bem que
tenha sido aprovada pela Comissão Estética da cidade, não sem exi­
gente debate.

Houve entretanto uma alteração de programa, decidida pelo ainda


promotor Bouwfonds Woningbouw BV e por Vesteda Management
BV, á qual correspondia uma redução de variações de tipo de
apartamentos.

Desta decisão resultou uma quase repetição de planta no desenvolvi­


mento vertical da torre.

Foi nesta altura determinante a intervenção directa de Mr. Huub


Smeets, já como director de Vesteda Management BV, sobretudo pelo
estimulo e apoio a uma especial qualidade da torre, enquanto edifício
de referência, pela dimensão e pela implantação.

Fui particularmente incentivado a variar e qualificar o revestimento ex­


terior, para o qual propus finalmente zinco e mármore 'Thassos', em
cada um das duas subdivisões adoptadas, sendo o basamento reves­
tido respectivamente a mármore 'Thassos' e pedra cinzenta.

A subdivisão volumétrica decorreu do substancial aumento de volume


entretanto verificado nos projectos envolventes, o qual aconselharia

264 01 textos por Álvaro Siza


um aumento de altura da torre, contudo não permitido. A solução adap­
tada permite um melhor relacionamento, por contraste, acentuando a
sua verticalidade.

Aceite o projecto, seguiu-se a minuciosa pormenorização e o início de


construção, durante o ano de 1999, construção acompanhada pelo meu
escritório, através do arq. Avelino Silva, com o apoio constante do escri­
tório de Marc A Campo, através de Frans Wesseling e John Rous.

O processo de Maastricht foi particularmente interessante, pelo enten­


dimento e colaboração entre planeadores e arquitectos, concordantes
na necessidade de por em diálogo plano e projectos, conciliando op­
ções do plano e protagonismo proporcionado dos edifícios. De tal deu
conta a exposição recentemente efectuada por Jo Coenen.

O território da Cerámique é hoje parte consolidada de um contínuo


urbano, com a sua vida própria e de relacionamento, envolvendo ha­
bitação, comércio, equipamentos, tanto como o magistral museu com
que Aldo Rossi abriu a sua construção.

265
266 01 textos por Álvaro Siza
096.2001 09 30 Móveis, Design

Descrição de como nasceu um� mesa, serenamente, ao fim


de 3 jantares.

Pub. in [Figueirinhas).

A mesa

1. Convidam-me para desenhar a mesa de uma exposição, com as


medidas de 2,40 x 1,20 por 0,73.
São medidas convenientes para receber os modelos e desenhos a
expor, garantindo um bom aproveitamento dos painéis normais de
contraplacado (2,50 x 1,25) e proporcionando uma margem de segu­
rança, para eventuais estragos de transporte.
Pergunto aos técnicos da fábrica que materiais convêm, considerando
a produção usual.
Faço um desenho rigoroso mas esquemático.
Discute-se quais as espessuras aconselháveis.
O desenho é fotocopiado. Fala-se na possibilidade de redimensiona­
mento, para uma eventual produção compatível com vários usos.
Marca-se uma data para apreciação do protótipo.

2. Primeira visita à fabrica. Admiro a enorme nave, a estrutura levís­


sima, a luz, a limpeza e arrumação. Mesas elementares de fabrico
fazem-me repensar os pormenores algo rebuscados (compreendo
agora) que trazia em mente.
Recordo a maravilhosa reprodução de "banco de carpinteiro" que me
ofereceram em criança, com a sua fenda de encaixe de ferramenta:
martelo, formão, esquadro, serrote, alicate...) lapidar na sua essencia­
lidade e polivalência.
Por fim, quase ao fundo do salão, como numa clareira envolvida por
chapas, tubos, carros de rodas - surge a mesa.
Um raio de luz caído do lanternim realça arestas e junções.
Observamos de todos os ângulos. Avaliamos o peso, a proporção, as
oscilações.

267
Pesa muito, o tubo não deve ser em aço. Pode-se usar alumínio?
Necessita de mais travação (ensaiamos, usando pedaços de barra).
Surge, sob o tampo, uma cruz em diagonal (os joelhos não devem
tocar a travação superior). A travação junto ao solo tem de ser afas­
tada dos pés. Um centímetro mais - aqui.
Peço uma cadeira, sento-me. Anotamos medidas. Refazemos o de­
senho, em esquisso. Verificamos a proporção. Fita métrica, medidas
apontadas no papel de uma factura (o que encontramos nos bolsos).
Discutimos junções: travação diagonal. .. travação ortogonal. .. o tubu­
lar das pernas tem de torcer, tem de receber em posição conveniente
os perfis de travação. A altura da torção? Que tal acha?
Terminamos com um jantar em Perafita.

3. Segunda visita à fabrica. Como sempre, saída às 19 h.


O protótipo foi refeito em alumínio, espera-nos na clareira da nave.
Está melhor de proporção. O peso é o conveniente.
As junções foram soldadas. Nenhum artesão, por hábil que seja
consegue evitar um retoque de aperfeiçoamento (o resultado não é
gloriosamente despretensioso e tosco e espontâneo, como as mesas
da fabrica, de que tanto gosto, nem fino como um relógio).
Discutimos então as junções, as soldaduras invisíveis, os cravos, os pa­
rafusos, os rebites, as arestas e os boleados, os ajustadores de apoio.
Devemos preparar outro protótipo, desenhar rigorosamente os porme­
nores das junções. O computador.
Terminámos em jantar.

4. Terceira visita à fabrica. De novo ás 19 h.


A mesa surge agora como uma forma precisa, nervosa.
Vemos pela primeira vez o tampo no material escolhido: Bétula.
De novo tocamos a mesa. Abana. É estável mas abana.
Estudámos a razão: o protótipo não está devidamente afinado. Pode-se
melhorar o sistema de junções. Assim não gosto. É possível assim?
Marcámos outra sessão de trabalho. Desta vez, peço que o protótipo
visite o meu escritório.
Jantámos em Perafita.

5. Quarta visita à fabrica.


Abre-se a porta da garagem e a mesa invade o espaço. Gosto.

268 01 textos por Álvaro Siza


Move-se apenas ligeiramente (não importa: o que se move, o que
reage a um impulso, dentro de certos limites - não rompe).
Aprovo o protótipo.
Desta vez não há jantar.
Gosto. E o Outro?

269
270 01 textos por Álvaro Siza
097 .2001 1 O 12 Exposições, Cidades, Discurso

Discurso na abertura da exposição As Cidades de Siza.


Depois de recentes acontecimentos, perderá oportunidade
a associação cidade-densidade? Talvez a Broadacre City
profetizada por Frank L/oyd Wright, - o fim da dicotomia cida­
de-campo - desperte, renovada, como veículo da globalização
de oportunidades, e agora de sobrevivência.

Exposição - As Cidades de Siza

Tratando-se de uma exposição sobre cidades, e não sendo hábil em


improvisos, permitam que leia um curto texto, escrito anos atrás, numa
das cidades que me foi dado visitar:

"As coisas que podemos encontrar numa cidade, passeando, com o


espírito livre e aberto:
Um puxador em forma de mão, ou de pata de animal, uma estranha
janela em ferro, uma casa espanhola que já não o é, uma fachada em
tijolo, holandesa ou alemã, todavia diferente, uma coluna clássica in­
correcta que parece uma árvore, mil sinais de proibição e gente, gente,
gente: brancos, negros, crioulos.
Há um sopro quase imperceptível, que percorre tudo e tudo transfigura.

Viajar com olhos e ouvidos atentos enforma o utensílio essencial do


arquitecto: a cultura que consciente e inconscientemente anima os
seus desenhos, e que tem raízes, e que tem os longuíssimos braços
dos ramos.
Isto pensava, passeando em Bogotá, hoje de manhã, sob um céu cin­
zento, pressentindo coisas cinzentas.
Encontrei-me parafraseando Vargas Llosa, ao referir-se à Literatura: a
Arquitectura desaparecerá, quando a humanidade for feliz.
Até lá, o trabalho do arquitecto não pode ser intento de substituir ou imitar
aquele sopro; mas sim de acrescentar algo à cidade, por ele transpor­
tado, isolado sem que o deseje, esperando o momento de ser, entre os
homens, como um puxador de porta da cidade: rigoroso e anónimo".

271
Lido isto, desejo e devo referir a minha gratidão às pessoas que pen­
saram, executaram e possibilitaram a montagem da exposição,
nomeadamente à Administração da fábrica FAMO e ao Comissário de­
signado, Arquitecto Carlos Castanheira; e a minha gratidão à Sociedade
Porto 2001, pela oportunidade de apresentar, no Porto, como noutros
lugares aconteceu, testemunho do que para mim representa viver a ci­
dade, isto é, construi-la um pouco, transformá-la eventualmente - se
momento e desejo o permitem. Testemunho acumulado ao longo de
anos, quando era natural viajar sem pressentimento de tragédia.

Depois de recentes acontecimentos, perderá oportunidade a associação


cidade-densidade? Talvez a Broadacre City profetizada por Frank Lloyd
Wright - o fim da dicotomia cidade-campo - desperte, renovada, como
veículo da globalização de oportunidades, e agora de sobrevivência.

O que se encontra nesta exposição é anterior a essa dúvida.


Resulta de fascínio, da atracção por essa densidade libertadora, ou
dramática.

272 01 textos por Álvaro Siza


098.2001 11 20 Desenho, Exposições

Desenho é projecto, desejo, liberlação, registo e forma de co­


municar, dúvida e descoberla, reflexo e criação, gesto contido
e utopia...

Desenhos - Exposição Japão

A maior parte dos meus desenhos obedece a um fim preciso: encon­


trar a Forma que responda à Função e da função se liberte - e do
esforço - abrindo-se a imprevisível destino.

Simultaneamente ou não, "ao lado", surge outro desenho.

Desenho de prazer, de ausência, de repouso, cruza-se com o outro,


pois de nada nos alheamos por inteiro.

Um ou outro podem surgir na mesma folha de papel, aparentemente


estranhos, voluntária ou involuntariamente relacionados.

Pode um retrato minucioso ou um risco ao acaso iluminar no instante


a paciente pesquisa, percorrendo os corredores da memória, sem que
haja apelo ou consciência disso.

Desenho é projecto, desejo, libertação, registo e forma de comunicar,


dúvida e descoberta, reflexo e criação, gesto contido e utopia.

Desenho é inconsciente pesquisa e é ciência, revelação do que não se


revela ao autor, nem ele revela, do que se explica noutro tempo.

Liberto, o outro desenho conduz ao desenho consciente.

273
274 01 textos por Álvaro Siza
099.2001 11 20 Design

Desenho um pisa papéis dedicado à "mão", parecido com uma


pega de mala ou de guarda-chuva, como um arco-íris a que a
luz empresta cor e que as crianças desejam agarrar.

Objecto de Vidro

Pedem-me que desenhe um objecto para oferta, sem qualquer condi­


cionamento, a não ser o mais difícil: total liberdade.

Retomo o projecto antigo de um pisa papéis em vidro. É aceite.

Este objecto entrou em crise. Papéis cuidadosamente empilhados e


protegidos de qualquer golpe de ar cabem em nada do cérebro de um
computador.

Continuam contudo a acumular-se (e continuarão), repousando sobre


os tampos das secretárias, antes de encherem os arquivos.

Pisá-los, para que não se dispersem, é ainda para muitos um gesto


instintivo, frio de se repetir, uma espécie de ritual.

Alguns pisa papéis são impróprios para "segurar" (esféricos, em forma


de ovo ou de animal, cúbicos, de arestas perigosas, e por aí fora).

Desenho um pisa papéis dedicado à "mão", parecido com uma pega


de mala ou de guarda-chuva, como um arco-íris a que a luz empresta
cor e que as crianças desejam agarrar.

Em vidro frio como o gesto-frio que a mão aquecerá.

275
276 01 textos por Álvaro Siza
100.1996 a 2002 00 00 Desenho

32+32 desenhos em (para) a Pousada de Santa Maria de Bou­


ro, demorando 6 anos. O livro não chegou a ser publicado.
Concentro-me no desenho, sem contudo dispensar a conversa.
Embora atento, há uma parle de mim distante do que faço; o
desenho é mais livre, menos constantemente pensado; a mão au­
tonomiza-se por instantes (não lhe permito escapar por inteiro).

Fragmentos de um Diário Quase Desesperado

10/01/96
32 quartos, 32 desenhos.
Gostei do convite.

4/03/96
Desenho pouco mas regularmente, em casa, quase sempre à noite.
Ou em casa de amigos, igualmente à noite, enquanto conversam. Sou
um amador, o desenho é um remédio.
Concentro-me no desenho, sem contudo dispensar a conversa.
Embora atento, há uma parte de mim distante do que faço; o desenho
é mais livre, menos constantemente pensado; a mão autonomiza-se
por instantes (não lhe permito escapar por inteiro).

4/06/96
Figuras em movimento. Trinta e duas folhas de papel branco riscadas
uma a uma (3 ou 4 por noite, uma ou outra rasgada).

12/01/97
Tive o prazer de pendurar os desenhos, devidamente emoldurados,
um a um em cada quarto.
Aí ficaram.

3/09/99
Desafiam-me de novo. São necessários outros trinta e dois desenhos;
mais visíveis e usando a cor.

277
Escolho o pastel: parece-me próprio a um "fazer nas horas livres" -
curtas horas.

12/10/99
Desenhos a pastel.
Vejo agora como é diferente, mais penoso do que o deslizar da esfero­
gráfica ou da pena de "Nankin". Impressiona-me o esforço físico.

15/01/00
No fim de cada desenho é improvisado um comité de crítica.
Apercebo-me do esforço, quando não gostam e evitam dizer "NÃO".

10/04/00
Custa a chegar o mágico número dez, e mais ainda o trinta e dois.
Estou prestes a desistir.

13/05/00
Preciso de desistir, embora me sinta cobarde, embora me sinta humi­
lhado. Os amigos estão preocupados, ou melhor: embaraçados.
Sinto um irracional desprezo por mim próprio, como se desenhar a
pastel fosse questão de honra.

18/09/00
Interrompi o trabalho. Não desenho há três meses.

2/01/01
Sinto-me "coagido" a prosseguir, aliciado pelas mais condenáveis
mordomias (jantares em casa dos amigos, copos de whisky velho, for­
necimento de pastéis "Rembrandt" e de grandes folhas de papel).

3/03/01
No fim do jantar a mesa de mármore da cozinha é limpa e o material
pousado na melhor ordem. Leve meditação antes de começar.

Há um exército de pastéis ameaçadoramente alinhados. Surge a primeira


cor, lançada com esforço enorme, quase com desespero. Juntam-se

278 01 textos por Álvaro Siza


outras. Há demasiadas cores à espera, demasiadas técnicas possíveis.
Sobretudo é preciso músculo (a folha de papel é enorme, não é possível
conversar, não é possível fumar, o pastel quebra-se, as mãos estão car­
regadas de pó de mil cores - como não sujar o papel?)

16/03/01
Fazem por mim algo para que nunca tive coragem: fixar o desenho
com spray miraculoso (o desenho vai diluir-se, desfazer-se em lágri­
mas coloridas, escorrer pelo chão?)

25/04/01
Por vezes levo um desenho na mente. Outras vezes começo quase ao
acaso. As cores vão tomando forma, cada uma se desprende das ou­
tras. A primeira é a grande Aventura.
Sinto surpresa e sobressalto. Há uma espécie de euforia latente.

1/05/01
Chegou o número trinta e dois. Sinto alivío e logo uma espécie de de­
samparo. Acabo o desenho e lavo e esfrego as mãos com aquele pó
especial.

4/07/01
Nas noites que se seguiram ao último desenho, até hoje, nunca mais
segurei um pastel, nunca mais os músculos tensos.
Por vezes invade-me uma incompreensível nostalgia. Foi bom? Não:
ouço Billy Holiday.

20/09/02
Quase esqueço o agradecimento aos amigos, sem os quais não
existiriam aqueles desenhos pendurados em Bouro, nem o livro em
preparação.
Começo a gostar do odiado pastel.
Inesperado banho de cor.

279
280 01 textos por Álvaro Siza
101.2002 02 05 Homenagem, Viagens, Outros Arquitectos:
Fernando Távora (4)

Por sua boca e gestos, eu e outros tínhamos notícia de tudo o


que ele tivesse visitado (. . .). Por esses relatos fui aprendendo
a gostar de arquitectura: aprendendo arquitectura.

Fernando Távora

Tenho viajado com Fernando Távora ao longo dos anos, constante­


mente.
As primeiras viagens aconteceram no estúdio do Palácio Atlântico, ou
da rua Duque de Loulé, ou na Escola de Belas Artes.
Por sua boca e gestos, eu e outros tínhamos notícia de tudo o que ele
tivesse visitado: último pormenor de Le Corbusier minuciosamente des­
crito, Pirâmide de Gizé, Templo Sunion, túmulo de Frank Lloyd Wright. ..
Por esses relatos fui aprendendo a gostar de arquitectura: aprendendo
arquitectura.

Mais tarde as viagens tornaram-se reais e a experiência compartida.


Assim hoje continuam. Salvo a idade, nada mudou.

281
01 ,textos por lvvaro Siza
102.2002 02 11 Homenagem, Arquitectura: Piscina da Quinta
da Conceição

Távora era pacientíssimo com os alunos e com os jovens e


inexperientes colaboradores.
Nunca presenciei uma recusa a estudar alguma sugestão
nossa, ou a explicar demoradamente as razões da eventual
inconveniência.

Pub. in Archi; n.º 1 Fevereiro 2002, Suiça.

Quinta da Conceição

Entre 1955 e 1958 fui colaborador do Arquitecto Fernando Távora.

O empenho e o entusiasmo no dia-a-dia do estúdio, e o envolvimento


no primeiro encargo pessoal (quatro casas em Matosinhos, 1954) iam
adiando a disposição e a energia necessárias, ao enfrentar a responsabi­
lidade de uma prova final de curso, o que só viria a acontecer em 1965.

A minha ignorância era igual à minha vontade de aprender. Rendido à


arquitectura, deixara para trás o desejo de ser escultor.

Távora dividia o tempo entre o ensino, na escola do Porto, viagens (par­


ticipação no CIAM e outras), escritos e obras. Chefiava ainda a equipa
que preparava o capitulo Minho e Douro Litoral da "Arquitectura Popular
em Portugal"1.

Fui encarregado de colaborar no ante-projecto de uma Piscina, em


desenvolvimento do estudo integrado no Plano Geral da Quinta da
Conceição, anteriormente finalizado por Távora (1956-57).

O aproveitamento dos terrenos sobrantes de uma propriedade, expro­


priada para construção de uma nova doca, levara a Câmara Municipal

1 AAVV, Arquitectura Popular em Portugal, Lisboa, Sindicato Nacional dos Arquitectos. 1961. (3ª Ed.
1988).

283
de Matosinhos a encarregar Távora de redigir o plano para a transfor­
mação da Quinta em Parque Público.

O estudo viria a ultrapassar os limites estabelecidos. Apercebendo-se


da incapacidade do sistema viário projectado em torno do porto, Távora
conseguiu aprovar uma proposta de transformação radical. Essa pro­
posta incluía a implantação dos necessários armazéns, para lá de um
anel verde, em redor dos terrenos portuários, integrando uma proprie­
dade confinante com a Quinta da Conceição (Quinta de Santiago).

Iniciei em 1957 a colaboração no projecto da Piscina da Quinta (entre­


gue em 1958), procurando a expressão arquitectónica magistralmente
concretizada no pavilhão de ténis de Távora, primeiro e já concluído
projecto da quinta.

Távora era pacientíssimo com os alunos e com os jovens e inexperien­


tes colaboradores.

Nunca presenciei uma recusa a estudar alguma sugestão nossa, ou a


explicar demoradamente as razões da eventual inconveniência.

O meu trabalho prosseguia com lentidão; no meu entusiasmo juvenil,


ensaiava mil alternativas.

Talvez por isso, fez-me um dia uma proposta extraordinária: "O melhor
é você levar isso para casa, desenvolve-lo por si; prometo acompa­
nhar o trabalho, sempre que julgue necessário".

Assim foi.

Em 1961 apresentei novo projecto, no qual se nota a procura de uma


linguagem menos vinculada à do pavilhão de ténis. Tomara consciên­
cia de que aquele momento de renovação da arquitectura portuguesa
era irrepetível.

O novo projecto devia muito à experiência colhida com a constru­


ção do Restaurante da Boa Nova (recém-concluído) e com o início da

284 01 textos por Álvaro Siza


Piscina de Leça da Palmeira. Na Piscina de Leça ensaiava eu uma
relação com a paisagem menos directamente dependente do que a
praticada no Restaurante (ou melhor, mais afirmativa da autonomia da
arquitectura, dependente das grandes linhas da paisagem, e não dos
pequenos acidentes).

Este projecto, que eu ainda não assinei por não estar diplomado, be­
neficiou do encorajamento e da crítica de Távora.

O projecto apresentado em 1966, já com a minha assinatura, não


apresentava modificações importantes em relação aos edifícios, mas
propunha uma inovação fundamental: a criação de plataformas em
torno do tanque, o qual dispunha agora de uma ampliação protegida,
destinada a crianças).

A localização do plano da Piscina decorrera do aproveitamento de um


antigo tanque de rega, situado na cota mais alta da Quinta e não dis­
pondo por isso, nem necessitando, de áreas envolventes de nível.

As novas plataformas são sustentadas por longos muros de suporte,


de direcção variável e sujeita à topografia, dando origem a solários a
três cotas distintas. A sólida geometria das duas primeiras plataformas
antecede uma terceira, que finaliza o recinto, dissolvendo-se na vege­
tação e nas ondulações do terreno.

Que esta última fase do projecto, de maior essencialidade no desenho,


não tenha contaminado a expressão dos edifícios, deve-se simples­
mente ao facto de eles já estarem parcialmente construídos.

A obra sofrera uma longa suspensão, por razões de financiamento.


Essa suspensão permitiu repensá-la e amadurecer o projecto.

285
286 01 textos por Álvaro Siza
103.2002 09 09 Discurso, Pedagogia

Discurso na aceitação do Sexto Prémio Compostela - Xunta


de Galizia 2002, atribuído pelo Grupo Compostela de Universi­
dades, com Presidência da Xunta de Galizia.
Também eu, de certo modo, sou ou me sinto um emigrante: um
emigrante intermitente.
Os emigrantes cruzam informação, levam e trazem o que para
eles é uso ou coisa nova. Outros cruzamentos vão envolvendo
outros lugares nucleares; todos atravessando o território, em
todas as direcções e sentidos, até à consciência da Universa­
lidade possível.

Mundo à parte, Mundo-parte

Passei há dias junto ao estaleiro de uma obra. Havia um enorme painel


publicitário, no qual se podia ler: "Um Mundo à parte ..."
Aquela não é obra de Arquitecto. É tarefa do Arquitecto participar na cons­
trução do "Mundo-parte": a cidade, em relação com outras cidades.
Vivemos num mundo de viajantes, muitos deles emigrantes. O facto de
o Homem ter inventado a Cidade não modificou, no essencial, a sua
condição de viajante, de construtor de outras cidades.
O curso da história apenas multiplicou e intensificou relações e
migrações.

Esta cidade de Lisboa, como tantas outras, é desde a Fundação uma


cidade de imigrantes e descendentes de imigrantes; por vezes con­
quistadores, por vezes fugitivos: Fenícios, Gregos, Romanos, Árabes,
Judeus, portugueses de outros sítios, Espanhóis, Ingleses, Franceses,
Alemães, Africanos de vários países, Brasileiros, Ucranianos agora - e
tantos outros, em massa ou um a um.
Também de Portugal viajaram, às sete partidas do Mundo, sucessivas
legiões de emigrantes.
Viajaram nas circunstâncias e pelas razões mais diversas, algumas
vezes pela simples necessidade de conhecer, de saber mais.
Também eu, de certo modo, sou ou me sinto um emigrante: um emi­
grante intermitente.

287
Os emigrantes cruzam informação, levam e trazem o que para eles é
uso ou coisa nova. Outros cruzamentos vão envolvendo outros luga­
res nucleares; todos atravessando o território, em todas as direcções
e sentidos, até à consciência da Universalidade possível.
Por isso, nenhum de nós estará totalmente surpreendido, ao chegar a
qualquer lugar, ou ao trabalhar em lugar que desconhecia - como tam­
bém a mim me aconteceu, e a tantos arquitectos, através de séculos.
Em cada cidade-outra onde algum dia trabalharmos há um pouco de
nós, de que depressa nos apercebemos; também os que por nós algo
recebem cedo nisso se reconhecem.
As raízes de cada um são longuíssimas, bebem desde há milénios ou­
tras e várias águas. Assim se alimenta e persiste o que hoje, por vezes
com estranha e recente inquietação, se designa por identidade cultural.
A antiquíssima consciência e experiência de um cada vez mais denso
tecido de saberes e de relações não explicam essa inquietação, antes
tornam inaceitáveis, desumanas, a marginalização ou a intolerância.
A sobrevivência da cidade depende, ao contrário, da solidariedade,
como por diferentes vias se vem tornando evidente.
Para os arquitectos e para a Arquitectura, compreensão, tolerância e
solidariedade, estão na origem da criação; explicam-na, constituem inspi­
ração primeira na procura da Beleza - utilidade última da Arquitectura.

Em Santiago convergem caminhos de todos os quadrantes; esses ca­


minhos são igualmente vias de irradiação de cultura amalgamada.
A formação do Grupo Compostela de Universidades, com Presidência
da Xunta de Galizia, é simultaneamente afirmação de continuidade
histórica e afirmação de modernidade.
Estou profundamente grato e emocionado pela atribuição do Sexto
Prémio Compostela - Xunta de Galizia 2002.
O meu reconhecimento envolve coração e razão.

288 01 textos por Álvaro Siza


104.2002 1 O 29 Discurso

Arquitectura é arte universal. Depende e resulta de inesgotá­


veis cruzamentos de cultura, compartindo os múltiplos modos
de construção e de expressão da natureza humana: música,
artes plásticas, fotografia, teatro, cinema, ópera, ballet, ritmos
da poesia.

Medalha Internacional das Artes da Comunidade


de Madrid

Recebo a Medalha Internacional das Artes da Comunidade de Madrid


com orgulho e com humildade, sentimentos complexos, não opostos:
complementares.

Humildade por conhecer a dimensão humana e artística dos que - com


méritos que não são os meus - me precederam nessa atribuição.

Orgulho ao receber uma distinção que contempla as artes, eu que sirvo


a arquitectura como tal, mesmo quando, como tantas vezes acontece,
essa condição não lhe é reconhecida.

Orgulho e humildade em simultâneo, por acontecer em Madrid, em


Espanha, país onde desde há séculos os artistas, arquitectos ou ou­
tros, despontam como flores.

Arquitectura é arte universal. Depende e resulta de inesgotáveis cru­


zamentos de cultura, compartindo os múltiplos modos de construção
e de expressão da natureza humana: música, artes plásticas, fotogra­
fia, teatro, cinema, ópera, ballet, ritmos da poesia.
Não é a mãe de todas as Artes, como alguém disse um dia. É uma das
Artes, irmã ou filha,· talvez.

Sendo serviço social, concretiza-se plenamente quando, cumprindo-o,


dele se desprende até à liberdade, transformando o circunstancial em
intemporal e polivalente.

289
Pelo exercício da invenção e da memória, a arquitectura faz-se ins­
trumento e objecto de procura de beleza - desejo colectivo instintivo,
talento de criança, que o homem consciencializa continuamente.
Não sendo por inteiro a prática, é vocação do homem transformar em
solidariedade o instinto de sobrevivência, em possibilidade de vida o
sofrimento, em ânsia de descoberta o conformismo, em ordem a de­
sordem: em beleza.

É essa a nossa vocação.

Apraz-me interpretar a atribuição da Terceira Medalha Internacional das


Artes da Comunidade de Madrid como sinal de reconhecimento de que
a arquitectura, entendida como serviço, não é separável da ideia de ar­
quitectura como uma das artes; mas sim condição dessa ideia.

Desse reconhecimento me terá sido proporcionada - desproporção


que seja - a responsabilidade de ser testemunho e - ainda que por
instantes - referência.

Sinto-me grato, confundido e feliz.

290 01 textos por Álvaro Siza


105.2003 02 03 Apresentação, Casas

Variações sobre o tema casa na oportunidade da apresentação


de um livro: Sonhos de Trazer por Casa, textos d-3 Estêvão
Roque para Desenhos de Gémeo Luís.

Sair de um sonho

Sair de um sonho é um alívio ou um desgosto. É o regresso a casa


(casa sonhada, possuída ou adaptada).

Sonhos despertas ou involuntários, negros ou doirados, inesquecíveis,


a cores, rapidamente esvanecidos ou nem mesmo registados, a não
ser onde depois os sonhos nascem.

Escuridão transformada em penumbra, ao sair de um sonho: regressa


o tecto, os ângulos das paredes em perspectiva, cúpulas rectilíneas.

Depois o quadro, os objectos sobre a cómoda, a porta entreaberta.


Chão, paredes, tecto, tranquilidade.

Por isso ter casa é o sonho universal, uma casa com tubos que ligam
ao céu e à terra, com luz, com porta e com armários, corredor, átrio.

Casa refúgio e casa aberta. Casa com jardim. Casa com ascensor.
Casa não portátil, ramo em piso 16 ou base de caule. Casa gruta e
casa árvore. Casa bóia. Outro lado do vento.

291
292 01 textos por Álvaro Siza
106.2003 04 29 Discurso (DHC F. Távora), Homenagem,
Outros Arquitectos: Fernando Távora (5)

A um olhar atento, a obra nada fácil de Fernando Távora re­


vela-se universalmente contemporânea, num país que foi o
de marasmo e de sufocada ansiedade. Revela-se sucessiva­
mente como acto de reflexão, de continuidade e de subversão,
num contraponto de projectos "em estado de felicidade" e de
suspensas decomposições.

Doutoramento em Veneza

Não é um acaso ser a mítica Faculdade de Arquitectura de Veneza a hon­


rar Fernando Távora, conferindo-lhe o grau de Professor Honoris Causa.
É esta uma Escola onde sempre o Ensino da Arquitectura manteve
como referência essencial a História; a História que foi construindo
uma cidade onde se cruzam culturas do ocidente e do oriente, onde a
universalidade da Arquitectura se afirma com Andrea Palladio, onde a
especificidade geográfica se lê em cada casa, em cada rua, em cada
braço de água; onde a arquitectura menor e a sublime - se é legí­
timo distinguir - se complementam ao longo dos séculos, mutuamente
dependentes, num tecido incomparavelmente compacto. Uma cidade
feita também de pó e de lama e de névoa doirada, onde se respira uto­
pia e permanência, sonho e adequação.
A honra que me é concedida de pronunciar algumas palavras sobre a
obra e a personalidade de Fernando Távora, neste espaço esplêndido
de Veneza, desvanece-me e emociona-me. Despertam as recordações,
inevitavelmente; mas falar de Fernando Távora não convida à nostalgia,
antes à consciência do presente partilhado e ao apetite do devir.

A evidência da importância de Fernando Távora como pedagogo, como


catalisador de tendências renovadoras, no interior da Escola de Carlos
Ramos e depois, foi de algum modo, julgo eu, adiando a atenção à obra
do Arquitecto, da qual ele próprio nunca quis ser arauto; obra por isso e
por vezes remetida, sempre com respeito, à condição de referência in­
dispensável para compreender a evolução da Arquitectura Portuguesa.

293
A um olhar atento, a obra nada fácil de Fernando Távora revela-se
universalmente contemporânea, num país que foi o de marasmo e de
sufocada ansiedade. Revela-se sucessivamente como acto de refle­
xão, de continuidade e de subversão, num contraponto de projectos
"em estado de felicidade" e de suspensas decomposições.
É nesta óptica que se pode entender a complexa coerência da suces­
são de projectos e de construções realizados pelo Arquitecto e as suas
diversas e apaixonadas actividades - do viajante ao coleccionador, do
construtor ao pedagogo. Actividades que foram povoando a minha juven­
tude (e o passar dos anos) de contínuas surpresas: de sobressaltos.
Recordo antes de tudo a tranquilidade e a paciência na correcção do
trabalho de qualquer estudante; e logo a entusiástica partilha de expe­
riências e de descobertas, o relato do que se debatia num encontro do
CIAM, da experiência de um jardim Zen ou do desenho do puxador de
porta de Ronchamp.
Recordo o aparecimento de uma pequena casa, desenhada fora do
estúdio e quase em segredo, uma casa que de súbito materializava
as imprecisas intuições minhas e dos da minha geração; ou de um
edifício público em adormecida periferia - associação de contempora­
neidade a continuidade, de tradição e de invenção.

Recordo, mais tarde, a recuperação de um Convento em que, a partir de


uma rigorosa pesquisa arqueológica, surge a naturalidade e a heresia de
uma "nova arquitectura", capaz de manter viva e expectante a História se­
cular do edifício; ou os projectos de recuperação de bairros degradados
do Porto, momento em que assume por inteiro e em condições adversas,
sem cálculo e com custos, a responsabilidade social do Arquitecto.

Recordo ainda o aparecimento de um pequeno livro de juventude - A


Casa Portuguesa - reencontro revolucionário com o passado; ou de
uma grande pequena jóia, redesenho da Casa dos Vinte e Quatro. E
muitas outras coisas que não digo.
O projecto recente da Casa dos Vinte e Quatro foi construído sobre
os alicerces de um edifício medieval desaparecido, junto à Catedral
do Porto, a partir dos poucos traços que restavam e de vagos relatos
históricos, provocando imediata e violenta polémica (sempre ou quase
sempre a arquitectura íntegra provoca estranheza e irritação).

294 01 textos por Álvaro Siza


Entrevistado no meio da tempestade, Fernando Távora desconcertou
toda a gente, ao dizer simplesmente: Eu próprio me surpreendi.
Não sei se era sincero, ou se era uma ironia.
Atrevo-me a dizer que, desta vez, não houve para mim surpresa.
Sabia, antes de ver os primeiros riscos, que um lugar como aquele e
uma acumulação de História como a daquele lugar, postos à sua dis­
posição, eram condição ideal para o aparecimento de algo de que hoje
as cidades antigas desesperadamente necessitam: um sinal de vitali­
dade, um desafio à coragem, face à timidez e ao conformismo.
Fernando Távora gravou-o bem fundo e no centro da cidade; entron­
cado e maciço vão - porta íntima e contudo escancarada entre o
passado e o que há-de vir.

Sendo recente, não é esta obra ainda uma recordação; sê-lo-á, como
momento relevante da sua obra e ensinamento, tal como os vê este
discípulo: contínua construção de Memórias de Amanhã, sendo instru­
mentos Memória e olhos e coração abertos, serenidade e desejo.

Essa obra e esse ensinamento são hoje reconhecidos e celebrados.


Nada mais justo e significativo, como confirma a iniciativa do Instituto
Universitário de Arquitectura de Veneza.
Sinto-me pessoalmente grato, e ao dizê-lo sinto que não estou só.

295
296 01 textos por Álvaro Siza
L
107 .2003 06 24 Discurso, Cidades

A arquitectura da cidade é maioritariamente uma arquitectura


de repetição e de continuidade, sujeita a um ritmo quase sem­
pre lento.
Talvez por isso surja a tentação, tantas vezes presente nos
nossos dias, de procurar a todo o custo a singularidade no
que é parle de um tecido contínuo, construindo uma banali­
dade decorrente de ilusórias e paradoxalmente repetidas
originalidades.

Porquê um arquitecto e porquê eu?

Recebi, com a maior surpresa, a notícia de que me havia sido atribu­


ído pela Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal o Prémio de
Personalidade do Ano de 2002.
Ao imediato sentimento de grata satisfação seguiu-se a curiosidade:
porquê um arquitecto e porquê eu?
Tomei conhecimento, através de carta do Senhor Presidente da AEIP,
de que "a escolha, feita por votação secreta, destina-se a distinguir
a personalidade portuguesa que mais contribui para a divulgação da
imagem de Portugal além fronteiras".
É um facto que a arquitectura se tornou notícia de todos os dias. Não é de
estranhar, pois afecta tudo e todos, individualmente e como grupo: da fa­
mília à cidade, à região, a um mundo progressivamente interdependente.
Multiplicam-se exponencialmente problemas e incómodos, em parti­
cular nas grandes concentrações urbanas de hoje: tráfego, poluição,
densificação e desertificação, promiscuidade e solidão. Perda de qua­
lidade de vida, a par de desiguais mas interligadas transformações
sociais e psicológicas.
É isso sobretudo que motiva a atenção hoje prestada à arquitectura,
focada frequentemente em aspectos negativos.
Mas não só. Será justo e razoável considerar a outra face da cidade
contemporânea, ao confrontá-la com a mítica beleza dos centros histó­
ricos e dos seus monumentos, a qual, evocada de forma selectiva, é um
convite à nostalgia.

297
As cidades cresceram e crescem pelas oportunidades reais ou ilusó­
rias que oferecem, pela esperança, de algum modo confirmada, numa
existência mais justa e universalmente prometedora.
Não crescem em imediata beleza. A beleza revela-se por lenta e longa
acumulação e selecção.
A cidade é a um tempo lugar protegido e aberto, lugar de intercâmbio
e de preservação das mais fundas raízes, onde se associam estabili­
dade e mudança, acesso à cultura e violência.
A contribuição do arquitecto neste complexo contexto é sobretudo e
necessariamente de cariz conservador: ele trabalha ao serviço e no
respeito de um Homem que não muda tão vertiginosa e radicalmente
como alguns pretendem.
A arquitectura da cidade é maioritariamente uma arquitectura de repe­
tição e de continuidade, sujeita a um ritmo quase sempre lento.
Talvez por isso surja a tentação, tantas vezes presente nos nossos
dias, de procurar a todo o custo a singularidade no que é parte de um
tecido contínuo, construindo uma banalidade decorrente de ilusórias e
paradoxalmente repetidas originalidades.
E contudo, é a qualidade desse tecido imerso e imenso que torna pos­
sível a emergência do edifício singular, protagonista e intérprete de um
desejo ou necessidade que a cidade invoca e assume como símbolo.
Compete ao arquitecto atender a tudo o que revela a natureza hu­
mana: procura de estabilidade, mas também desejo, exigência, revolta,
identificação.
Sob esse impulso podem coexistir persistência de referências e desejo
de inovação: possibilidades de invenção.
Não foram esses momentos doirados e as obras singulares que deles
decorrem, às quais poucas vezes me foi dado acesso, que ocuparam a
maior parte do meu tempo e actividade; mas sim as outras, aquelas que
mais directa, contínua e universalmente convivem com as necessidades
e desejos do Homem.
Apraz-me pensar que sejam sobretudo essas obras, que não são ha­
bitualmente notícia, mas que vão construindo o carácter da cidade e
o espaço dos palácios, as que justifiquem o prémio que tão generosa­
mente me é atribuído.
Os meus agradecimentos.

298 01 textos por Álvaro Siza


108.2003 08 20 Reflexão

A Natureza - criadora do Homem - e o Homem - inventor da


Natureza - absorvem tudo, incorporando ou rejeitando o que
os afecta.

Revisão a partir da tradução em inglês publicada in A+U, Architecture


and Urbanism (Tokyo), n.º 123, Dez. 1980, p. 69. Pub. tb in Quaderns
d'Arquitectura i Urbanisme (Barcelona) n.º 159, Out., Nov., Dez. 1983,
p. 2. E tb in [E/ecta], p. 59, [UPC), p. 21.

A maior parte dos meus projectos

Muitos dos meus projectos não foram realizados; muitos outros foram
profundamente alterados ou mesmo destruídos.

É algo com que se tem que contar.

Uma proposta arquitectónica que tenha como objectivo aprofundar os


conflitos e as tensões que configuram a realidade, as tendências de
transformação latentes; uma proposta que pretenda representar algo
mais do que uma materialização passiva, rejeitando a simplificação
dessa realidade, analisando todos os seus aspectos, um a um - uma
proposta desse tipo não pode encontrar apoio numa imagem fixa, nem
seguir uma evolução linear.

Pelas mesmas razões, essa proposta não pode ser ambígua, nem limi­
tar-se a um discurso disciplinar, por muito apropriado que pareça.

Cada desenho está obrigado a captar, com o máximo rigor e em todos


os matizes, um momento concreto de uma imagem fugidia. E quanto
mais se reconheça o carácter fugaz da realidade, mais claro deve ser
o desenho, ainda que tanto mais vulnerável quanto mais exacto.

Talvez por isso, apenas as obras marginais (uma residência num lugar
tranquilo, uma casa de férias afastada de tudo) foram mantidas tal
como projectadas.

299
É esse o preço de não trair a transformação cultural contemporânea,
que compreende construção e desconstrução.
Mesmo assim, alguma coisa permanece: fragmentos retidos aqui e ali,
dentro de nós próprios, ou por alguém, mais tarde; fragmentos que dei­
xam sinais no espaço e nas pessoas.

É urgente aproximá-los, para tornar o espaço entre eles imagem, e


para que cada um conquiste significado, confrontado com os outros
«sous la lumiére».

Nesse espaço se reencontrará a mais pequena pedra e o mais pe- ·


queno conflito.

Transformamos o espaço como nos transformamos a nós próprios:


de súbito e sucessivamente, confrontados com «o outro», colectiva e
individualmente.

A Natureza - criadora do Homem - e o Homem - inventor da Natureza


- absorvem tudo, incorporando ou rejeitando o que os afecta.

Partindo de fragmentos isolados procuramos o espaço que os conforma.

300 01 textos por Álvaro Siza


109.2004 02 00 Discurso, Reflexão

Discurso de aceitação do Prémio da Latinidade.


(. ..) É essa histórica e irreprimível tendência ao encontro e à tole­
rância (poderia chamá-la admirável cedência?) que urge cultivar.

Latinidade

O que temos em comum - língua, cultura, hábitos em parte, tempera­


mento talvez - nasceu entre choques, violências, exploração, guerras.
Por isso poderia não existir entre nós uma comum consciência de iden­
tidade, como julgo que existe.
Só que desde há séculos, progressivamente, foi surgindo o encontro,
vindo da necessidade e também do desejo.
O que se foi consolidando, o que nos é comum ou próximo - e perdura
e se ramifica - assenta no interesse e na importância de outros sabe­
res, na atracção da diferença e na tolerância que se lhe segue - mais
persistentes, parece, do que a incompreensão e a rejeição.
Isso que acontece e a que chamamos, no que a nós se refere, Latinidade,
é - quero crer - simplesmente o normal, o que existe latente no fundo de
cada um. O que é próprio da natureza humana e se revela, quando liberto
de interferências alheias às circunstâncias - e às revelações - dos confli­
tos e dos encontros.
É essa evidência do desejo e da necessidade de relacionamento que
urge assumir.
A sensação, o sentimento e a compreensão das diferenças (e do que
de novo e indispensável reciprocamente transportam) não podem ser
amordaçadas, nem mesmo pela acção ou pela complacência dos que
inutilmente matam e morrem.
É essa histórica e irreprimível tendência ao encontro e à tolerância
(poderia chamá-la admirável cedência?) que urge cultivar.
São esses os caminhos da cultura.
Sinto-me honrado e emocionado ao receber o Prémio da Latinidade,
que antes contemplou outros que bem mais o mereceram.

301
l 302 01 textos por Álvaro Siza
110.2004 04 13 Reflexão

Não com uma ou duas pessoas de cada lado, como no ténis,


mas com seis. Isso dá a dimensão colectiva a um desporlo de
irrepreensível correcção.

Batem a Palma das Mãos

Um rectângulo de 18 x 9 metros, dividido a meio por uma rede de 2,5


metros.

Não com uma ou duas pessoas de cada lado, como no ténis, mas
com seis. Isso dá a dimensão colectiva a um desporto de irrepreensí­
vel correcção.

Não há contacto físico entre os dois grupos. A rede separa-os, não


pode ser tocada.

O jogo hipnotiza a assistência. Há um perfil ondulante de cabeças e de


braços e de pernas, sobe e desce, sobe e desce, à frente, logo atrás,
em primeiro plano, mais longe, em movimento pendular. Alguém cai.

Só a perda de uma jogada provoca uma paragem. Muda o serviço.

Os vencedores ou vencedoras batem a palma das mãos, dois a dois,


todo o grupo. Em pequenos gritos exteriorizam a alegria, a convicção
ou ilusão da vitória. Apalpam a solidariedade.

Quando tudo indica um desfecho rápido - um dos grupos soma pon­


tos, um atrás do outro, inspiradamente, irresistivelmente - logo muda
a sorte, ou a concentração. A emoção transporta a ansiedade. Amplia
a dúvida na própria capacidade. O desânimo ameaça, adeus ao es­
tado de graça.

303
Gira a fortuna, de novo. O treinador suspende o jogo. Segredam-se
conselhos, nervosas instruções. Forma-se uma roda, braços nos om­
bros uns dos outros, corrente invisível. Abraço colectivo.

Inevitavelmente haverá um vencedor. Mas nunca assisti a uma reac­


ção agressiva, como infelizmente acontece noutros desportos.

Talvez a permanente concentração, a participação total num jogo exi­


gentíssimo, a tal não dê tempo nem lugar. Talvez, pela pequenez do
campo, se concentre a solidariedade. Talvez transponha a rede, atra­
vesse as quatro linhas, apazigúe a assistência.

304 01 textos por Álvaro Siza


111.2004 09 13 Arte - Fotografia: António Vasconcelos

(.. .) a qualidade e distanciamento de quem melhor sabe ver


(descobrir) a singularidade das coisas eruditas ou banais: o
Fotógrafo.

O Fotógrafo

Procuro compreender a insistência de António Vasconcelos em foto­


grafar portas (as portas do Porto, neste caso).

Há um fascínio particular em cada porta.

Uma porta revela a eventual possibilidade de entrar em ambiente re­


servado e ao mesmo tempo o propósito de garantir um território de
intimidade.

A mesma face exprime o convite e a recusa.


Charneira entre a convivência - ou exposição - e a reserva, a porta
é o pormenor comunicante e protector da casa. Há uma informação
transparente no seu carácter: atmosfera conservadora ou de ânsia de
renovação, de desleixo ou abandono, ou de exposição - latão ou nique­
lado orgulhosamente polidos.

A campainha, o puxador e o batente de uma porta são a primeira matéria


tocada ou apalpada por quem quer romper a solidão ou o bulício da rua.

O ritmo das portas pauta a envolvente das ruas do Porto, e cada porta
dá a face a uma casa: está à altura dos olhos.

António Vasconcelos regista a pureza e a integridade das formas, tanto


quanto o desgaste ou o desgosto, o trabalho do tempo que glorifica ou
destrói. Regista os cuidados de quem pinta e repinta ou de quem permite,
impotente ou imperturbável, o descascar dos esmaltes; os cuidados de
quem repete as cores do tempo dos avós ou de quem as troca por algo

305
de novo - tantos vermelhos vivíssimos - como que dizendo «sou novo
na casa e na mente, não importa o que pensem, são outras as minhas
referências». Regista o gesto dos que mudam as ferragens por gosto ou
por medo, dos que acrescentam delicada ou atabalhoadamente peque­
nos écrans de televisão; dos que remendam ou abandonam e dos que
mudam a função da casa: ocupação por uma empresa ou uma congre­
gação religiosa; subdivisão para consultórios, escritórios de advogados
e de arquitectos, dormitórios de estudantes e de emigrantes.

Este extenso registo é e será material precioso de estudo. António


Vasconcelos recolhe-o sistemática e conscienciosamente, sem pre­
conceitos, com a qualidade e distanciamento de quem melhor sabe ver
(descobrir) a singularidade das coisas eruditas ou banais: o Fotógrafo.

306 01 textos por Álvaro Siza


112.2004 09 14 Homenagem

Só algum mestre de ballet poderá simular, por vocação e por


exercício, aquela expressão de simplicidade e de elástica na­
turalidade; ou alguma pantera solta na savana.

Eusébio

Nunca esquecerei aqueles dias de 1966.

Nem os mais alheios ao fascínio de futebol escaparam.

Abandonava-se o trabalho meia hora antes de cada jogo, a qualquer


hora que fosse.

Tornava a casa, acompanhado de alguns amigos.

A televisão não tinha a qualidade de hoje e limitava-se ao preto e


branco, mas o écran depressa se iluminava, pintado com o nosso en­
tusiasmo e ansiedade.

Lembro-me de um amigo escultor, céptico e desinteressado do desporto,


aos gritos de euforia, rosto transfigurado; aos pulos no meio da sala. Tudo
isto durante o memorável Portugal-Coreia, ultrapassado o preconceito de
que tudo se resumiria a um nacionalismo impróprio de gente de bem.

Não se tratava contudo de nacionalismo primário (algum haveria, a


que no fundo todos estamos sujeitos). Tratava-se da estética de um
espectáculo apaixonante - para o bem e para o mal.

Falar de Eusébio, futebolista, é falar de beleza e de elegância. Não me


lembro de outro que a tal lugar de encantamento, sem nada compro­
meter da eficácia, tenha transportado o espectáculo do futebol.

307
Só algum mestre de ballet poderá simular, por vocação e por exercí­
cio, aquela expressão de simplicidade e de elástica naturalidade; ou
alguma pantera solta na savana.

Há ainda a comovente memória das lágrimas, imagem que percorreu


os écrans do mundo, pelo que reflectia de entrega e autenticidade.
Essa elegância e essa autenticidade, pouco prováveis quando asso­
ciadas a uma força impressionante e ao convite à arrogância, tornam
Eusébio personalidade incontornável dentro da nossa Memória, liberta
de paixões e de Clubismos.

Eusébio foi um dos primeiros africanos a fundar o que se tornou presença


preponderante dos que, vindos de África ou da América ou da Europa
(escravizados ou imigrados ou exilados) lideram maioritariamente o fu­
tebol de qualidade.

Dedicou e dedica o seu génio e energia, sem interrupções nem capri­


chos nem esmorecimento, ao Sport Lisboa e Benfica.
E isso o Benfica não esquece, nem qualquer menino que tenha no
sangue e no sonho a paixão pelo desporto.

l
308 01 textos por Álvaro Siza
113.2004 10 00 Discurso(DHC), Cidades: Nápoles

Discurso de aceitação do grau de Doutor Honoris Causa pela


Universidade dos Estudos de Nápoles Frederico li.
Ao fundo vê-se o Vesúvio e Capri, um porta-aviões e muitos bar­
cos pequenos; mais perto, na marina, os mastros dos iates e
esplanadas, muros, balaústres, rampas, escadas. E logo, des­
viando o olhar, o arco contínuo e denso da marginal. E o mar.

Pub. in Álvaro Siza e Napoli, affinità di Gabriela Basilico e Mimmo Jadice,


ed. Electa Napoli, 2004, p. 23 e 24.

Nápoles

Há duas cidades em Itália que particularmente me emocionam, sem­


pre que as visito e por muitas vezes que o faça: Veneza e Nápoles.
Não que não existam outras de enorme beleza, mas é nestas que o
que vejo e sinto ganha a nitidez doirada do que se vê em sonho; onde
experimento a estranha sensação de estar dentro de um sonho.
Desde há um ano, por razões de trabalho, visito regularmente Nápoles,
cidade que conhecia tanto ou tão pouco quanto a pode conhecer um
visitante. Em 1983 fui convidado pelo professor Vittorio Gregotti para,
juntamente com outros arquitectos, desenhar «uma Proposta para
Caserta». Em 1986, a convite de Uberto Siola, professor e então direc­
tor da Faculdade de Arquitectura desta Universidade, desenvolvi um
estudo urbanístico «para o bairro pendino» e no mesmo ano o «plano
Monterusciello e Campo Flegrei». No decorrer das visitas então feitas,
guiado pelo professor e velho amigo Francesco Venezia, ou por ou­
tros amigos, tive o privilégio de visitar Pompeia, Herculano, a piscina
Mirabilis, alguns dos monumentos e museus da cidade e muitos luga­
res que Nápoles não revela facilmente.
Mas Nápoles não é só o que se vê, em glória ou em degradação.
Quase se sente, sob os pés, o respirar de um mundo invisível ou difi­
cilmente visível, que vem desde séculos construindo a cidade de hoje.
Uma enorme e fragmentada fundação de muitos estratos, materiais
tantas vezes sobrepostos, assentes por gente de diferentes regiões e
religiões. Deles emergem magníficos monumentos, ou, escavando, os

309
homens os vão descobrindo. Essa matéria acumulada condiciona e
orienta o que se vai fazendo.
É meu hábito, ao fim do dia, quando aqui trabalho, sentar-me na va­
randa do mesmo hotel, varanda aberta à paz e ao bulício da cidade.
Para um napolitano é natural e espontânea a partilha do território com
tudo o que faz a atmosfera febril da cidade contemporânea: automóveis,
motos e motoretas, autocarros, carros eléctricos, comboios e grandes
naves que se misturam com os potentes edifícios de que é feita.
Bem diferente é a vocação de Veneza. O fascínio de Veneza resulta
sobretudo da sensação de total liberdade de movimentos, sendo os
únicos obstáculos canalizados e constantemente atravessados por
pontes. Esse fascínio marcou profundamente Le Corbusier, o arqui­
tecto que sonhava uma cidade nova feita para o homem livre.
A utopia construída sobre o fascínio de Veneza estará na origem da
ideia moderna - um compromisso todavia - de pedonização de partes
da cidade. Uma ideia injusta e prejudicial para as outras, multiplicadora
de nós de conflito: pois a cada espaço de onde se exclui o tráfego me­
cânico, criando um suposto oásis, corresponderá um outro saturado.
Não falta quem cite Nápoles como exemplo de caos.
Para mim Nápoles, o outro sonho, permanece como incontornável re­
ferencia. Para mim esse suposto caos é a essência do ambiente da
cidade sem acidentes - ainda que sejam desrespeitados os semáforos,
objectos estranhos e excessivos, aqui inúteis pela força da convivência
e da tolerância: pela cidadania.
O transporte mecânico é aqui o amigo do homem, um complemento
ao qual se diz simplesmente bom dia.
Penso assim muitas vezes, quando torno ao hotel, saindo do velho e
sólido pa/azzo que transformo em museu.
Um pa/azzo contido entre estreitas e maciças construções, de tal modo
que não é possível a percepção global da sua forma. Estas são estru­
turas construtoras de espaços carregados de intimidade e de mistério,
conquistadoras da luz a partir da penumbra, perfuradas por portas
enormes, portas que revelam pátios cobertos de plantas e de pó e de
velhas pedras.
Atravesso Piazza Dona Regina. Os rapazes do bairro jogam a bola. Há
uma baliza pintada a branco na grade enferrujada do patamar de uma
igreja. Uma baliza intermitente. A bola escapa-se para a rua estreita,

310 01 textos por Álvaro Siza


passa um casal de motoreta. O rapaz pára, chuta a bola, devolve-a ao
campo improvisado. Arranca de novo. A rapariga tem os olhos semi cer­
rados e um sorriso de felicidade.
Estou no hotel, torno-me a sentar no terraço do quarto, com o Castelo
dell' Ovo em frente. Ao fundo vê-se o Vesúvio e Capri, um porta-avi­
ões e muitos barcos pequenos; mais perto, na marina, os mastros dos
iates e esplanadas, muros, balaústres, rampas, escadas. E logo, des­
viando o olhar, o arco contínuo e denso da marginal. E o mar.
Termina o dia, a luz tinge o céu de cores que gradualmente se transfor­
mam - lilás, ocre, verde, azul - cores esbatidas e delicadíssimas de que
não se vêem os limites. Há nuvens, uma leve névoa e farrapos de azul.
Lembro-me de que serei doutorado pela Universidade de Nápoles,
honra inesperada, seguramente exagerada. Sinto-me perturbado mas
também em paz. A luz de Nápoles apazigua a alma e contudo, sob os
pés assentes na consola da varanda, vejo e ouço uma coluna ininter­
rupta de carros, motos, pessoas, cláxons, risos e canções.
Fixo o olhar no horizonte.
Estou grato, comovido e em paz.

311
312
114.200412 15 Outros Arquitectos: Vittorio Gregotti (3),
Ciclades

Gregotti tem escolhido sempre a opção de riscar o essencial,


do acto fundador aberto aos gestos do tempo.

Gregotti

Observo o crescimento das Cidades. Excluindo as que crescem sem


controle, sob pressão irresistível e por isso clandestinamente, aper­
cebo-me de duas tendências dominantes:

- A de relativizar o alcance dos planos, por considerar, na situação


contemporânea, ilusório ou impossível o controle qualitativo desse
crescimento, valor_izando por isso a introdução de brilhantes objec­
tos autónomos, núcleos que possam desencadear uma transformação
ajustada e excitante.

- A de manter ou recuperar, como instrumento de plano e de pro­


jecto, a ideia de continuidade histórica, mais do que o de ruptura, não
como expressão de conservadorismo, mas em resultado de uma aná­
lise alargada à história recente - e à outra.

A primeira tendência conduz eventualmente, e assim tem sucedido, a


obras de grande qualidade e poder expressivo. Pelo que tenho obser­
vado, contudo, a generalização desta estratégia, se de estratégia se
trata, nem sempre (ou raramente?) produz qualidade. Da sua prática
generalizada resulta uma progressiva anulação do desempenho ur­
bano e da eficácia de cada uma.

Na Bicocca, Gregotti opta pela segunda tendência, o que nem sequer


é uma surpresa, vindo de quem sempre se mostrou atento quer ao
evoluir da técnica e da sociedade que ela serve e determina, quer ao
contínuo evoluir e também à persistência expressiva de uma cidade. É
por demais evidente que a apreciação de uma cidade nova, ou de um

313
sector urbano significativo (cidade de fundação ou fragmento resultante
de uma profunda transformação), escapa a julgamentos apressados.

Um aparente esquematismo inicial é, na minha leitura, condição de dis­


ponibilidade, de abertura ao que o desenho não pode fixar, ao que um
arquitecto não pode e por isso não deve desenhar. O voluntarismo de uma
proposta, não pode substituir-se à energia e à mensagem que a antecede
e que a transforma. O teste do tempo o tem largamente comprovado.

Recordo e associo a estranheza, ao visitar alguma cidade nova con­


temporânea, Brasília incluída, ou ao encontrar uma velha gravura da
desolada Buenos Aires de recente fundação.

Ou a surpresa, na Brasília revisitada, ante a densidade e complexi­


dade que o tempo, arquitecto incontornável, acrescenta ao que nasce
solidamente estruturado e também relacionado, real e potencialmente,
com o que o circunda ou poderá circundar.

Gregotti tem escolhido sempre a opção de riscar o essencial, do acto


fundador aberto aos gestos do tempo.
Só em raros episódios a beleza pode nascer atada. Será isso que ex­
prime, simbolicamente, o magnifico projecto que encerra a antiga torre
de refrigeração, bem junto ao velho jardim preservado.

314 01 textos por Álvaro Siza


115.2004 12 29 Reflexão

Reaparece a noite, porta de sonhos e de recordações dos


dias doirados, quando não doíam as costas nem os olhos.
(. ..) Sorrio no dentro que me resta, incapaz de mover-me e de
comunicar.

Álvaro Siza

Constantemente me acompanham os olhos e a coluna vertebral. São


inimigos inevitavelmente fiéis.

Sendo parte do meu corpo, não devo renegá-los. Procuro compreender,


peço explicações.

O fisioterapeuta pressiona as fibras dos músculos, trabalha-os como


quem dedilha as cordas de uma guitarra.

Por vezes a dor é violenta. Oculto-a, quanto possível, para que nin­
guém diga que odeio o meu corpo crucificado.

Um nervo liberto da tirania do cérebro, em heróica revolta (imagino


eu), ordena o aperto das pálpebras. Faz-me crer na beleza do que nos
rodeia, ainda que feio - por não o ver?

Na escuridão mais aprecio a luz do fim do dia. A luz colorida e mutante.

Reaparece a noite, porta de sonhos e de recordações dos dias doira­


dos, quando não doíam as costas nem os olhos.

Sorrio no dentro que me resta, incapaz de mover-me e de comunicar.

315
316 01 textos por Álvaro Siza
116.2005 01 24 Reflexão

Perpassa a história toda, local e estranha, e a geografia, his­


tórias de pessoas e experiências sucessivas, as coisas novas
entrevistas, música, literatura, os êxitos e os fracassos, impres­
sões, cheiros e ruídos, encontros ocasionais.

Projectar

Projectar: há um princípio quase em nebulosa, raramente arbitrário.

Perpassa a história toda, local e estranha, e a geografia, histórias de pes­


soas e experiências sucessivas, as coisas novas entrevistas, música,
literatura, os êxitos e os fracassos, impressões, cheiros e ruídos, encon­
tros ocasionais. Uma película em velocidade acelerada suspensa aqui e
ali, em nítidos quadradinhos.

Uma grande viagem em espiral sem principio nem fim, na qual se entra
quase ao acaso. Comboio assaltado em movimento.

É preciso parar e ser oportuno na paragem.

Agora entra a razão, com os seus limites e a sua eficácia.

Talvez retomar a viagem?

317
318 01 textos por Álvaro Siza
117.2005 02 00 (e 02 1988)Arquitectura: Museu de Serralves,
Exposições, Museus

Museus que recolhem o que esteve em palácios, ou igrejas, ou


cabanas, ou sótãos, coberto de glória ou de pó, dobrado sob o
colchão de uma enxerga, e agora silenciosamente me observa,
sob uma luz indiferente ao que se move demais.

Pub. in catálogo da Exposição Expor / On Display realizada em Serralves,


de 20050408 a 20050626, Ed. Fundação de Serralves, Porto, 2005, p.
42 a 47. O texto Exposição de Serralves 1 tb publicado in City Sketches,
Stadtskizzen, Desenhos Urbanos, Ed. Brigitte Fleck/Birkhauser Verlag,
1994, p. 144.

Exposição de Serralves Expor

Exposição de Serralves 1
Projecto de Museu é sempre polémico e sempre ambiguamente ima­
ginado entre conservadorismo e invenção. Entre conhecimento e
transgressão, dúvidas e convicções. Amado e odiado, sujeito à des­
truição e ao restauro.

(Na sua origem há uma casa).


[Fevereiro 2005]

Exposição de Serralves 2
Nos museus, a luz faz-se doce, cuidadosa, impassível de preferência, e
imutável. É preciso não ferir, é preciso não ferir os cuidados de Vermeer,
não se deve competir com a violenta luz de Goya, ou a penumbra, não
se pode desfazer a quente atmosfera de Ticiano, prestes a extinguir-se,
ou a luz universal de Velasquez ou a dissecada de Picasso, tudo isso
escapa ao tempo e ao lugar no voo da Vitória de Samotrácia.

A arquitectura do Museu não pode ser senão clássica, provavelmente,


distante ou cuidadosa em relação à Geografia e à História; a própria
rampa de Lloyd Wright imobiliza-se subitamente. Surgem no telhado

319
invisíveis fabulosas máquinas de controle, acessíveis por alçapões,
por escadas de bombeiro, cobertas de pó e de teias de aranha e de
pontes reservadas, máquinas que dizem à luz, ao sol e às invenções:
pára, entra na ponta dos pés, silêncio, o que iluminas resistiu à tua vio­
lência, ao teu percurso de monótona novidade e demasiado rápido,
ousou resistir, pretende resistir. Concede benevolência ao que os ho­
mens fazem com as mãos e nasce de ti, adorando-te e imobilizando a
tua impaciência. Concede aos homens que se movam nestes espaços
serenamente, esquecendo-te, viajante imperturbável que cria e mata
sem maldade nem bondade.

Assim é a Arquitectura dos Museus, idealmente sem paredes, nem


portas, nem janelas, nem todas essas defesas por demais evidentes,
pensadas e repetidas, Museus que recolhem o que esteve em palá­
cios, ou igrejas, ou cabanas, ou sótãos, coberto de glória ou de pó,
dobrado sob o colchão de uma enxerga, e agora silenciosamente me
observa, sob uma luz indiferente ao que se move demais.
(Fevereiro 1988]

Exposição de Serralves 3
No Museu não deve haver propriamente espaço, não deve haver pare­
des nem chão nem tecto; nem luz. No Museu não deve haver espessuras
nem aberturas nem sensação de interior e de exterior. O espaço do
Museu impede a criação e a vizinhança deve ser apagada. A paisagem
será exterior ao Museu, no sentido último e único: não existir.
O Museu não deve ter princípio nem fim nem percursos. O Museu é
um nada e a luz deve ser apagada para que o fogo não recomece sem
ser notado.
[Fevereiro 2005]

Exposição de Serralves 4
As tábuas repousavam há séculos, tranquilamente, não sei em que
Museu da Europa.
Alguém entrou em sobressalto: podiam degradar-se aquelas preciosas
tábuas a perpetuar.

320 01 textos por Álvaro Siza


Um técnico distinto dirigiu os trabalhos de climatização. O ambiente
tornou-se imaculadamente perfeito.
Depois veio a rebelião das tábuas e das telas, incomodadas, constipa­
das, inadaptadas. Reagiram com uma perversa autodestruição.
[Fevereiro 2005]

Exposição de Serralves 5
As janelas estão abertas - grandes janelas de madeira - e cheira a
maresia.

Ouvem-se as vozes da multidão de habitantes e de turistas nas espla­


nadas em torno ao Castelo.

O mar é azul.

A luz intensa.

Nenhum filtro a amacia.

Há Picasses e Matisses preciosos, a Alegria vivida de que dão testemu­


nho torna irrelevante o valor comercial. Estão perfeitos. Não há estragos
nem fissuras nem cor desbotada, nem mesmo são roubados (que pres­
tígio viria de roubar um Picasso de tão desprotegido Museu?).

As pessoas passam de salas a pátios, sobem e descem escadas nor­


mais. As portas estão escancaradas e os faunas espreitam de cada
canto, olham com ironia mais do que piedade.

Em Antibes, no Museu Picasso.


[Fevereiro 2005]

Exposição de Serralves 6
No Museu de Serralves há uns bancos admiráveis de 0,40 x 4,20 me­
tros, feitos com tábuas de castanho de 0,20 x 0,12. São por vezes
deslocados de sala para sala, conforme o que convém, com grande
esforço, creio eu.

321
Há salas climatizadas e outras não: espaços de transição.

A madeira move-se, não é coisa inerte, estala ou geme, abrem-se fen­


das que por vezes e misteriosamente desaparecem. Há quem proteste,
o carpinteiro é chamado, o arquitecto é suavemente repreendido.

Numa sala do Museu vi uma exposição belíssima: o artista tomou um


comprido toro de madeira, torceu-o até fissurar nas extremidades.
Poisou-o no solo, ferido e empenado.

As pessoas rodeiam-no, observam (compreendem a natureza da


madeira?).

Deus salve a liberdade dos Artistas. Ao menos.


[Fevereiro 2005)

322 01 textos por Álvaro Siza


118.2005 02 03 Discurso, Cidades: Porto (5)

Discurso de aceitação das Chaves da Cidade do Porto na


homenagem prestada pela Câmara Municipal do Porto em
20050210.
Há ainda um muro e portas virtuais que separam a cidade anti­
ga do que lhe é exterior: do que foi campo e é hoje - em muitas
áreas de cidade - campo, sim, mas de concentração; dormitó­
rio onde sonhar é um exercício difícil.

Pub. da CMP a propósito, p. 23.

As Chaves da Cidade do Porto

Recebo as chaves da cidade do Porto com sentimentos cruzados de


gratidão, orgulho e embaraço. Outros mais do que eu as merecem.
As chaves de uma cidade têm hoje um valor simbólico. A muralha do
Porto - e com ela as portas - foram demolidas há séculos.
A partir de então esta é uma cidade aberta, cidade que foi construindo
continuidades de que é núcleo organizativo e dependente. Com Gaia,
com Matosinhos, Maia, Gondomar e muito mais.
Por deformação profissional, talvez, procuro encontrar utilidade - razão
de ser - para qualquer objecto; ainda que se trate das chaves de uma
porta inexistente.
Procurei e julgo que encontrei.
Há ainda um muro e portas virtuais que separam a cidade antiga do
que lhe é exterior: do que foi campo e é hoje - em muitas áreas de ci­
dade - campo, sim, mas de concentração; dormitório onde sonhar é
um exercício difícil.
Creio que as chaves da cidade, entregues a um arquitecto, exprimem um
desafio que o responsabiliza, mas que é dirigido a todos: o desafio de
abrir esse muro desadequado, unindo, pela qualidade e com igual exigên­
cia, o que é antigo e o que é de hoje e de amanhã: antigo antecipado.
A defesa dos valores patrimoniais da cidade tem movido planos e inves­
timentos, acompanhados ainda, paradoxalmente ou não, por abandono
e ruína. Espero vivamente que seja concretizado o que se anuncia.

323
Parece que os novos sectores da cidade - e não pretendo generalizar
- têm estado excluídos de igual atenção.
Aos arquitectos compete, se tal lhes for permitido, preservar património
tanto como criá-lo; sempre assim aconteceu - com ou sem arquitectos.
No que à História pertence, que o façam com rigor intransigente, afas­
tando a tentação de deixar alguma assinatura por demais perceptível;
para tal existe o campo vasto do que se vai construindo nos novos ter­
ritórios (na condição de não comprometer o tecido, mais compacto ou
menos, que a junção de casas consente).
A casa é um espaço branco, parte desse tecido essencial da cidade; a as­
sinatura incontornável, em cada casa, é a de quem lá encontra morada.
Em alguns episódios emergentes, pólos que a todos servem, cabe ao
arquitecto navegar em mar agitado - entre contradições, dúvidas, frus­
trações e desejos - sem se permitir naufragar.
Poderá então e aí plasmar a Modernidade, a modernidade fugidia mas
necessariamente sólida que é desejo persistente da cidade.
Para tal se atingir é indispensável a presença física, o fio condutor inin­
terrupto das construções que conformaram e transformaram a História.
Uma presença íntegra. Local e universal.
É preciso não violentar os muros bem fundados, ou o solo que os
moldou e que moldaram - por obsessiva ânsia de uma modernidade
tantas vezes desintegradora de construções e do seu assentamento,
de jardins de praças, jardins de interior de quarteirão, terraços, en­
costas e perfis. E é preciso não construir desertos vedados, palácios
desfigurados; sobretudo não construir mais do que o necessário.
Sem o arquivo instantâneo da Memória não há Invenção; nem chave
alguma abrirá as portas exactas.
A minha gratidão pela honra que me é concedida.

324 01 textos por Álvaro Siza


119.2005 02 03 Outros Arquitectos: Rem Koolhaas

Aquela "rocha" facetada vive do contraste com um ambiente


ecléctico, de escala e qualidade descontínuas mas contidas;
do emergir de um contínuo de jardins (os quintais a poente, até
ao mar, mais aínda do que o jardim da Rotunda).

Casa da Música

A construção da Casa da Música suscitou enorme interesse entre a


população, interesse acompanhado de contínua polémica (em geral,
a obra medíocre não provoca reacção; a polémica acontece quando
surge obra empenhada na qualidade e capaz de contê-la).

É certo que a mais premente crítica se refere à derrapagem de custo e


de tempo de execução, facto que nem deveria constituir surpresa.

A construção da Casa da Música põe em relevo as consequências de


uma planificação apressada e do hábito de impor um calendário em
que o tempo de projecto e de consolidação do programa é encarado
(parece) como tempo quase irrelevante; ou com extremo optimismo
(ingénuo ou simulado). Por uma ou outra razão, ou outras ainda, esse
tempo é reduzido a limites dificilmente compatíveis com a qualidade
arquitectónica e física e (ou) com o controle de custo de obra.

Quando se trata de obra pública surge, quase sempre, uma data in­
contornável em qualquer circunstância: evento de prestigio, eleições...
Como se a fixação das datas não tivesse de incluir a programação rigo­
rosa de todo o processo.

Quando, uma ou outra vez, a perseverança de alguém que assume a


qualidade como obrigação encontra apoios fortes, então, ainda que
fora do prazo, surge essa raridade que é uma Obra de Arquitectura.
Quando tal não acontece, o prazo é cumprido em circunstâncias de
que resulta a rápida degradação física, para além da outra.

Com raras excepções, são essas as condições de trabalho em Portugal.

325
O projecto da Casa da Música traduz a reflexão sobre a cidade con­
temporânea e as convicções de Rem Koolhaas em torno aos sinais de
impossibilidade de controlar globalmente o seu evoluir. Assim, consti­
tui proposta radical de transformação urbana, assumindo-se como um
núcleo potencialmente organizativo de cidade.

Parece-me, contudo, que a Casa da Música representa algo de novo na


obra do autor. A sua autonomia, enquanto objecto arquitectónico, aceita e
inclui o encontro com um ambiente preciso. O que fora apresentado como
translação de projecto não realizado contextualizou-se, com o que isso
possa revelar de contradição.

A contradição transpira do espírito de cada cidade e influi em qualquer


teoria de suporte.

Aquela "rocha" facetada vive do contraste com um ambiente ecléctico,


de escala e qualidade descontínuas mas contidas; do emergir de um
contínuo de jardins (os quintais a poente, até ao mar, mais ainda do que
o jardim da Rotunda).

Compreende-se a reacção de Koolhaas, confrontado com o anúncio de


outras potentes intervenções, a poente e a norte, também transforma­
doras - mas a descompasso. Sem a legitimidade de excepção de um
equipamento profundamente transformador da vida cultural e quotidiana
da cidade, ao contrário .do que acontece - pela própria natureza e pro­
grama - com a Casa da Música.

Será incontornável a influência do seu desenho, para bem e para mal,


como quase sempre acontece com obra de qualidade singular. Para
bem, se essa influência incluir o que de novo ocorre nesta experiên­
cia do autor (se a minha leitura não é um engano). Experiência que foi
ultrapassando mudanças de governo e de autarcas, dificuldades de fi­
nanciamento, tensões e conflitos entre pessoas e entre instituições.

Que tenha longa e formosa vida, que a cidade a saiba usar. E que não
se percam as múltiplas lições que encerra.

326 01 textos por Álvaro Siza


L
120.2005 03 02 Arquitectura: Pavilhão Serpentine

Nenhuma casa permanece isolada, ainda que o queira. No


mundo não há desertos nem coisas distantes.

Pub. em língua inglesa in Serpentine Gallery, Pavilion 2005 designed by


Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura, with Cecil Balmond-ARUP, Trolley
Books , 2005.

Serpentine

Pavilhão: Habitação portátil; tenda; barraca; construção isolada, no


centro ou nos lados do corpo principal de um edifício; pequena casa;
a extremidade mais larga de alguns instrumentos de sopro; caraman­
chão; bandeira; estandarte; símbolo marítimo de uma nacionalidade;
potência marítima de um país; sobrecéu de cama; cortinado de sacrá­
rio; parte exterior cartilaginosa do canal auditivo (Enciclopédia Verbo).

Retenho a definição "construção isolada no centro ou nos lados do


corpo principal de um edifício".

O Pavilhão debruça-se sobre uma casa neoclássica, como um animal


de patas cravadas no solo, tensas do apetite de se aproximar, contidas
contudo. O seu dorso distende-se, a pele eriçada. Olha de esgue­
lha, lança antenas em direcção à casa. Obriga-a a definir um espaço.
Trava as patas, baixa a cabeça, não se permite avançar. Come-la-á
um dia?

Deixa que os passeantes habituais o atravessem, abre à fruição o solo


de tijolo. Oferece cadeiras, mesas, sombra.

Preguiçoso, mas em desassossego, espalha uma áurea luz que marca


o céu de Londres - tranquila no seu canto.

Nenhuma casa permanece isolada, ainda que o queira. No mundo não


há desertos nem coisas distantes.

327
328 01 textos por Álvaro Siza
121.2005 05 05 Reflexão

Picasso calmamente explicou (terá sido assim?) que aquele


rápido e espontâneo e belo desenho era o resultado de anos e
anos de trabalho. (. . .)
O objectivo da arquitectura - a função da arquitectura - con­
siste em tornar imperceptível a dificuldade de cobrir um grande
vão, ou de controlar a contraditória relação entre interior e ex­
terior, entre protecção e abertura, entre luz e penumbra: ou
ninguém se sentirá "em casa".

Um desenho feito em segundos...

Picasso vendeu por uma fortuna - diz-se - um desenho feito em


segundos.

O ansioso comprador pagou mas não resistiu a dizer: tanto por tão
pouco esforço? Picasso calmamente explicou (terá sido assim?) que
aquele rápido e espontâneo e belo desenho era o resultado de anos e
anos de trabalho.

Para quem assista a um ballet, para quem escute a melhor Billy Holiday,
o prazer vem da sensação de que tudo é fácil, atingível, natural. E no
fundo assim é e é o sonho de cada um.

O objectivo da arquitectura - a função da arquitectura - consiste em


tornar imperceptível a dificuldade de cobrir um grande vão, ou de con­
trolar a contraditória relação entre interior e exterior, entre protecção e
abertura, entre luz e penumbra: ou ninguém se sentirá "em casa".

Desenvolver um projecto consiste em ultrapassar a perene oposição


entre natureza e criação humana.

Tudo deverá surgir inevitavelmente evidente.

O inesperado e surpreendente depressa se transforma em banal.

329
01 textos por Álvaro Siza
L 330
122.2005 08 12 Arquitectura: Casa Bahia, Casas.

O que flutua pré-consciente não é doença ou «outra coisa». A


fronteira entre consciente e inconsciente depende dos percur­
sos da razão, da sua energia e exigência.
Viver em liberdade - aprender a viver - passa por quebrar essa
linha de fronteira.

Sobre a Casa Bahia

Apresentei o projecto da casa Bahia em diferentes locais.


Sempre houve risos.
Não por desagrado, penso eu; a maneira de o apresentar terá sido in­
terpretada como irónica, ou como demagógica.

Mas não era assim.


O projecto definiu-se a partir da análise do que muito directamente o
condicionava.
Concluído, não me é possível imaginá-lo diferente; embora reconheça
que poderia tomar mil formas, menos estranhas, provavelmente menos
controladas.

1. O que o torna aparentemente caprichoso depende pouco do


momento de desenho e dos humores de então; o que o torna compre­
ensível tem a ver com séculos de elaboração, da qual cada um de nós
conhece - ainda - uma ínfima parte.

2. Impressiona-me a desenfreada busca de originalidade; de tão ansiosa


não atinge senão a banalidade, um monótono acumular de «variações».

Espanta-me o frequente complexo de «falta de imaginação», ou o


oposto de afirmação. Como se a imaginação fosse algo exterior à
razão - ultrapassando-a - algo a introduzir no projectar como pro­
cesso autónomo; ou como se fosse um instrumento a mais, a usar

331
neste ou naquele momento, conforme métodos ou intuições; ou como
se fosse rara aptidão.
O que flutua pré-consciente não é doença ou «outra coisa». A fronteira
entre consciente e inconsciente depende dos percursos da razão, da
sua energia e exigência.
Viver em liberdade - aprender a viver - passa por quebrar essa linha
de fronteira.

3. Breve explicação do projecto:

a) Pretendia-se construir uma casa na margem direita do rio Douro,


próximo da cidade do Porto, entre a estrada marginal e a água, num
estreito lote de grande pendente, controlada por muros de suporte em
pedra solta: os socalcos para cultivo de vinho que de leste a oeste
constroem a paisagem do Douro.

b) O perfil da estrada nacional não permite o parqueamento no exterior


do lote e o Regulamento de Construção para o local impõe um afasta­
mento de 15 metros relativamente à estrada. A pendente do terreno (da
cota 28,88 m à cota 9,20) torna impossível a hipótese de uma rampa de
acesso à única plataforma de dimensão suficiente para a implantação
de uma casa (9,20).
A solução possível para estacionamento de um automóvel corres­
ponde à construção de uma garagem à cota da estrada, acessível por
meio de um pontão, se se pretende manter a continuidade da paisa­
gem, não aceitando a realização de um enorme aterro.

c) O acesso à plataforma da casa só pode oferecer o necessário


conforto se incluir um ascensor, a complementar por escada - uma
diagonal que permita a continuidade entre os volumes da casa e da
garagem e uma consistência estrutural e de imagem.

d) Escada e ascensor conduzem a um átrio e a partir dele aos vá­


rios espaços previstos, distribuídos em torno de um pátio. Todo o piso
está elevado em relação à cota da plataforma e assente num muro de
suporte existente e em dois apoios pontuais. Obtém-se assim a interio­
rização conveniente quando a paisagem é de beleza asfixiante.

L 332 01 textos por Álvaro Siza


e) Não há assim nenhum capricho na forma que resulta de tão pre­
mentes condicionamentos; e os comentários que ouvi de «imaginação
finalmente» não eram oportunos.

f) O que a razão produz pode tornar-se monstruoso. A arquitectura


- cosa menta/e - sobrevive através de um controle que ultrapassa sub­
jectivismos: através de códigos que se universalizam, do acordo sobre
as «boas proporções» testado por uma experiência a que não basta o
eu-que-projecto. Um sistema de controle, um código seguro - universal
- da organização do espaço e das formas foi sempre o objectivo «res­
ponsável» da arquitectura: «As Ordens».
Mas quantos aceitam hoje as Ordens, mesmo se desesperadamente
ou alegremente desenterradas? As Ordens são a ponte entre o Homem
e Natureza; estabelecem a relação necessária. Por elas se situa o
Homem, para não ser corpo estranho à Natureza de que emerge.
Quando um código entra em crise, quando já poucos aceitam as suas
referências, ou já não lhes são suficientes, não resta senão encontrar
as fontes directas: paisagem, nuvem a passar, clareira, corpo, dança,
imobilidade, estabilidade. Particularidades de que se faz o Universo,
coisas que se agitam em torno de um homem e dos gestos dos ho­
mens, quando se encontram.

g) O desenho desta casa apoia-se naturalmente no que, antiquíssimo,


existe «sous la lumiere». De súbito ganhou pescoço e cabeça e asas;
as suas patas desceram ao último socalco e mergulharam.

Um arrepio terá percorrido os seus riscos.

333
334 01 textos por Álvaro Siza
123.2005 09 00 Homenagem, Outros Arquitectos: Fernando
Távora (6)

Contudo, talvez seja este o projecto {a Torre da Casa dos Vinte e


Quatro] em que mais claramente está inscrita uma ideia central
na obra de Fernando Távora: mais do que Memória, o Patrimó­
nio Histórico é sobretudo material e instrumento de Criação.

Revista da Reitoria da Universidade do Porto.

Na morte de Fernando Távora

Chegam de toda a parte mensagens de homenagem e louvor, depoi­


mentos de estudiosos e admiradores da obra e da personalidade de
Fernando Távora, o Professor que várias gerações de arquitectos con­
sideram o «seu» Mestre.

Um sem número de escritos referem a influência nacional e interna­


cional da sua obra, e a urgência em preservar e tornar consultável o
arquivo de projectos, assim como outros registos - que não interes­
sam só aos arquitectos - da sua multifacetada actividade.

Algumas das obras projectadas por Fernando Távora estão já classifi­


cadas ou em processo de classificação; o que é sem dúvida importante,
mas não parece suficiente.

São muitas as razões para estar atento à conservação e destino da


obra construída, pública ou privada.

Há obras que se mantém integras mas em condições de progressiva de­


gradação (algumas públicas) por ausência dos mais elementares cuidados
de manutenção; há notícias preocupantes sobre a possível utilização do
Palácio do Freixo; há um exemplo de incúria, ou mais do que isso, gritan­
temente visível no coração do Porto: o prolongado abandono da Torre da
Casa dos Vinte e Quatro.

Contudo, talvez seja este o projecto em que mais claramente está inscrita

335
uma ideia central na obra de Fernando Távora: mais do que Memória, o
Património Histórico é sobretudo material e instrumento de Criação.
A homenagem devida e inadiável consiste na preservação, para além
dos arquivos, da totalidade da obra construída; testemunho material
que a formação das novas gerações não pode dispensar.

336 01 textos por Álvaro Siza


L
124.2005 1 O 03 Outros Arquitectos: Sael-AI Hiyari

Para Sahel tradição e modernidade não significam algo de opos­


to ou incompatível. Pertence àquele núcleo de arquitectos que
acreditam na relação entre vivência e expressão e numa conti­
nuidade que não exclui (antes potencia) a transformação de uma
sociedade, o acompanhamento operativo dessa transformação.

Sahel-AI Hiyari

Conheci Sahel-AI Hiyari em 2003. Participávamos num singular pro­


grama da Rolex- The Rolex Mentor and Protégé Arts lnitiative. Durante
um ano é promovido o encontro entre um profissional experiente e um
jovem, contemplando diferentes áreas: dança, literatura, música, tea­
tro e artes visuais (nesse ano a arquitectura).

O primeiro encontro, no Porto, foi acompanhado por um fotógrafo que


o registava, com a discrição possível.

A sua presença depressa se tornou despercebida.

Falamos dos nossos países e da sua cultura, de Geografia e de


História, de viagens, da complexa condição contemporânea, das nos­
sas diferentes experiências profissionais: de arquitectura.

Sahel AI-Hiyari estudou em Amman antes de frequentar a Rhode


lsland School of Design, nos Estados Unidos, prosseguindo a forma­
ção como arquitecto na Harvard School of Design e na Universidade
de Veneza. Experimentou a prática profissional nos Estados Unidos,
em Itália e no seu país, onde, em Amman, abriu estúdio próprio.

Pude aperceber-me, durante a conversa, da diversidade de experiên­


cias assimiladas durante as muitas viagens e da convicção com que,
apesar de outras oportunidades, havia decidido permanecer e trabalhar
na Jordânia.

337
Mostramos um ao outro os nossos projectos. Debatemos, neste e nou­
tros encontros, semelhanças e diferenças nas condições de trabalho,
nas limitações e estímulos em cada contexto, no sopro globalizante
dos dias de hoje. Pude notar como no seu discurso e nos seus pro­
jectos coexistem a persistência das raízes culturais e o conhecimento
e domínio da evolução da tecnologia e das artes visuais, face aos di­
ferentes estados de desenvolvimento que conformam o instável e
complexo mundo contemporâneo.

Essa dupla consciência está presente em todos os projectos, determi­


nando consolidação e transformação, em variável mas fecunda partilha.

Para Sahel tradição e modernidade não significam algo de oposto ou


incompatível. Pertence àquele núcleo de arquitectos que acreditam na
relação entre vivência e expressão e numa continuidade que não exclui
(antes potencia) a transformação de uma sociedade, o acompanhamento
operativo dessa transformação.

Nos diferentes projectos que me fez ver, de pequena ou de signifi­


cativa escala, está presente o desejo de uma modernidade assente
no impulso da evolução cultural e da multiplicação de relacionamen­
tos. Há opções que todos os projectos contemplam: a adaptação ao
clima, à topografia, ao contexto (consolidado ou em formação ou trans­
formação, denso ou disperso), a atenção ao controlo de luz. Esses
condicionamentos circunstanciais são assumidos como instrumento
privilegiado de trabalho e determinam simultaneamente a utilização e
adaptação de processos tradicionais e de tudo o que a evolução tec­
nológica permite.

É esse um caminho que não admite ambiguidades, não admite um mo­


derno com vestes tradicionais. Admite sim o que exprime e transforma,
o "espírito" quase indizível que percorre séculos de assentamento e de
cruzamentos, de recebimento e irradiação de cultura.

A publicação agora editada ilustra e explica esse percurso:

O Sandlofts Housing, em Kuwait City, projecto dinamizador de uma


área urbana em profunda transformação, no qual duas sólidas torres,

338 01 textos por Álvaro Siza


vibrantes na sua pele de protecção solar, definem um espaço cen­
tral, permeável através de um piso térreo de complexa geometria; a
inteligente inserção paisagística dos corpos que emergem de uma
suave colina, envolvendo uma escavada sucessão de espaços in­
teriores e exteriores, na residência no Yemen; a renovação de uma
pequena casa do modesto tecido de Amman leste; a textura vibrante
de um muro de Darat ai Funun, onde se encontram habilidade artesa­
nal e alargamento de possibilidades pelo uso do betão; a interiorização
cuidadosamente elaborada de uma clínica de psicologia, inserida no
cubismo essencial de Amman leste, ou a qualidade volumétrica e es­
pacial da casa K (perdida num frágil tecido de muros e construções);
todos esses projectos são testemunho de uma actividade projectual
que não é já apenas uma promessa.

As transformações em curso numa região crucial e de secular assen­


tamento exigem energia, conhecimento e talento.

Qualidades evidentes no trabalho de Sahel AI-Hiyari e de um grupo de


arquitectos de Amman que com ele se relacionam.

Esse esforço renovador não interessa somente à Jordânia. Nenhum


esforço de renovação é hoje apenas local.

339
340 01 textos por Álvaro Siza
l
125.2005 11 28 Discurso

Discurso de recebimento do Grande Prémio Especial de Urba­


nismo de França.
As relações de um plano com a cidade tendem a ampliar-se
ao território.
É então natural que estejam envolvidos muitos e diversos sa­
beres que a arquitectura não domina por inteiro; tal como em
qualquer projecto isoladamente considerado, congregar e co­
ordenar outros saberes é constante e indispensável tarefa do
arquitecto.

Grande Prémio Especial de Urbanismo de


França

Foi grata surpresa a atribuição que me é concedida do prestigiado pré­


mio nacional de urbanismo de França.
Não serei, em certo sentido, um urbanista. Sou arquitecto.

O meu professor de urbanismo na Escola do Porto foi autor de muitos


dos planos de cidades do norte de Portugal, nos anos quarenta.
Costumava dizer, na primeira aula: urbanismo é a tradução da palavra
francesa urbanisme. Preciso, embora pouco esclarecedor.
Não sei se o dizia com ironia, ou apenas para tornar claro que havia estu­
dado urbanismo em França, quando tal palavra era pouco ou nada usada
em Portugal.

A maior parte dos projectos que realizei encontra-se no interior de ci­


dades, acrescentando-lhes algo (por pequeno que seja). Ocupar um
espaço significa transformar a cidade. Pode não ser mais do que uma
célula de um tecido uniforme; ou pode ser obra pública, ou algo que inte­
resse a um grande número de cidadãos com capacidade de realização.
Conforme o caso, o carácter de uma arquitectura será ou não domi­
nante. O protagonismo inerente à sua condição o deve determinar. Será,
de qualquer modo, testemunho de urbanidade.

341
Quando um projecto de arquitectura preenche espaço, muito ou pouco
significativo que seja, propondo variedade ou prudente continuidade,
assume-se inevitavelmente, num e noutro caso, como fragmento de
plano, pouco ou muito transformador.

As relações de um plano com a cidade tendem a ampliar-se ao território.


É então natural que estejam envolvidos muitos e diversos saberes que
a arquitectura não domina por inteiro; tal como em qualquer projecto
isoladamente considerado, congregar e coordenar outros saberes é
constante e indispensável tarefa do arquitecto.
É numa perspectiva de efectivo relacionamento sem fronteiras, próprio
da célula de tecido como da excepção emergente, que o arquitecto é
sempre ou quase sempre urbanista e o urbanista sempre ou quase
sempre arquitecto - para além dos particulares saberes de cada um.
Terá esta ideia, talvez pouco generalizada, mas que eu assumo com
convicção, sido considerada na apreciação da minha candidatura.

l 342 01 textos por Álvaro Siza


126.200512 02 Discurso, Cidades: Santiago de Compostela (4)

Discurso de agradecimento da atribuição da Medalha de Ouro


de Santiago de Compostela
Tenho a esperança de que o Tempo de Compostela possa ser
igualmente benevolente com as pedras que aqui depositei, permi­
tindo que se fundam com o que é e será reconhecido como cidade
sagrada, mantendo-se todavia como lugar de sempre renovada
modernidade.

Medalha de Ouro de Santiago de Compostela

A minha relação com esta cidade é antiga.

Visitei-a muito jovem, menino que não imaginava vir a ser um dia
arquitecto.

Encontrei-me dentro desta impressionante massa granítica, esta pla­


taforma geométrica que domina um território fecundo, trabalhada por
arquitectos e escultores de grande talento, universal desde há séculos.

Nunca mais esqueci a descoberta daquele banco interminável de /a


Quintana, da sua gloriosa presença, apesar de pequeno face a um es­
paço enorme, subdividido por uma escadaria monumental, diante da
pequenez dos vultos que o cruzavam ou nele repousavam.

Nunca mais esqueci /a Quintana deserta, em noites de silenciosa chuva,


ou a sua invasão de súbito exuberante, sobreposta à austeridade dos
muros quase cegos, como que desafiando a clausura das monjas.

Nunca mais esqueci a enigmática escadaria do convento de Bonaval,


ascensão tripla com início e sem fim. Recordo o meu desgosto de
então, ao assistir à substituição das pedras erodidas pelo tempo e
pelas pessoas - por séculos de movimentos - por outras pedras de
corte recente visível, brancas e esquemáticas.

343
Trinta anos depois, ao visitar Compostela, convidado a construir um
"perigoso" projecto, precisamente junto a Bonaval, o Tempo - esse ar­
quitecto maior - tinha devolvido a essas mesmas pedras, ao solo da
cidade, a sua doce materialidade.

Tenho a esperança de que o Tempo de Compostela possa ser igual­


mente benevolente com as pedras que aqui depositei, permitindo que
se fundam com o que é e será reconhecido como cidade sagrada,
mantendo-se todavia como lugar de sempre renovada modernidade.

Poderia assim acontecer que a honra que me é concedida fosse mais


do que a generosa e pouco merecida simpatia expressa nas belas pala­
vras de um grande arquitecto, querido amigo e companheiro na paixão
pela Arquitectura.

[medalha entregue por Xerardo Esteves, arquitecto e então Presidente da Câmara de


Santiago].

344 01 textos por Álvaro Siza


l
127.2005 12 13 Discurso

( .. .) uma imagem de sonho quase irreal: a Sierra Nevada, domi­


nando cuidadosa e impassivelmente uma Alhambra flutuante.
Para mim próprio é essa uma imagem gravada nos olhos de me­
nino: falo dos anos quarenta, quando a vi pela primeira vez.

Discurso de aceitação do Prémio Nominaciones de Arquitectura de


Granada atribuído pelo Colégio de Arquitecto.

Nominaciones de Arquitectura de Granada

Não é fácil trabalho para um arquitecto projectar um novo edifício num


centro histórico, sobretudo quando o faz numa cidade mítica como é
Granada - quando nos olhos e na mente de cada um persiste uma
imagem de sonho quase irreal: a Sierra Nevada, dominando cuida­
dosa e impassivelmente uma Alhambra flutuante.
Para mim próprio é essa uma imagem gravada nos olhos de menino:
falo dos anos quarenta, quando a vi pela primeira vez.

A construção do edifício Zaida deve-se sobretudo ao empenho de mui­


tos que desde o início me apoiaram; e é justo destacar o entusiasmo
inesgotável de Juan Domingo Santos e da sua equipa. Entusiasmo e
competência que durante anos me ajudaram a consolidar aquilo que
eu julgava apropriado a um lugar privilegiado: o extremo de uma praça
rodeada por edifícios relativamente recentes, relativamente diferentes
no carácter e na dimensão, conformando um longo e belo espaço de
confluência de movimentos.
Pensei o Zaida como elemento mediador, inclusivo e conclusivo de
tudo quanto, de maior ou menor qualidade, rodeia a praça Fuente de
las Batallas.
Através de Juan Domingo pude dialogar e receber conselho e apoio
do Colégio dos Arquitectos, de políticos e técnicos da cidade, e ainda
de promotores que quiseram aceitar as minhas propostas: Caja Rural
e José Julian Romero, no edifício Zaida, e Grupo lmobiliario Mayoral,
na Casa Pátio que o confina.

345
Gente aberta a encontrar um consenso exigente e realizável.
A todos eles o meu agradecimento, ao finalizar um longo percurso,
pautado por visitas inesquecíveis a esta cidade, por momentos de dura
polémica, ou de generosa compreensão, pelos longos poentes que
transfiguram a Alhambra e a Sierra Nevada - glorificando o mirador
de San Nicolas.
Este percurso obteve finalmente a confiança traduzida em votação dos
cidadãos.
O Prémio Nominaciones de Arquitectura de Granada, atribuído pelo
Colegio de Arquitectos, constitui honra para mim inesperada, que me
emociona profundamente.
Muito obrigado.

346 01 textos por Álvaro Siza


l
128.2006 02 27 Arquitectura: Casa Armanda Passos

Encontrei por fim alguém mais exigente do que eu. (. . .) Habitua­


ram-me ao oposto: devo acabar projectos ou obras rapidamente,
em tempo inadequado se necessário, por mal que seja. Procurar
a perfeição passou a ser impertinência, capricho, desejo inespe­
rado e desproporcionado (elitismo, dizem alguns).

Armanda Passos

Encontrei por fim alguém mais exigente do que eu. Alguém que pro­
cura pacientemente a perfeição e por isso, não poucas vezes, se torna
impaciente.

Não foi surpresa. Basta olhar as telas da Armanda, de grande ou pe­


quena dimensão, para apreender de imediato o saber do ofício, a
perfeita execução a que se obriga, alheia a interesses pessoais ou
quebras de energia (mas nunca à atenção que dedica aos outros, pró­
ximos ou não).

A construção de uma casa foi para a Armanda o prolongamento natu­


ral dessa exigência (e para mim uma experiência nada usual).

Habituaram-me ao oposto: devo acabar projectos ou obras rapida­


mente, em tempo inadequado se necessário, por mal que seja. Procurar
a perfeição passou a ser impertinência, capricho, desejo inesperado e
desproporcionado (elitismo, dizem alguns).

A Armanda experimentou, assumindo-o, o penoso percurso necessário


para a eventual aprovação de um projecto. Aceitou - viveu - os proble­
mas e os imprevistos da obra (de qualquer obra): a resistência de alguém
ao rigor na execução, as críticas que vão surgindo, os atrasos no forneci­
mento disto ou daquilo, as dúvidas próprias e as dos outros, a chuva que
impede um trabalho, a impaciência do arquitecto, confrontado com a se­
gurança pretendida (brinquedos electrónicos, vigilantes e secretos olhos
nos cunhais da casa, nas portas e nas janelas, nos corredores ... ).

347
Sobreviveu contudo.

Imagino a Armanda (imaginei ao desenhar o estúdio) movendo-se


em torno de grandes painéis, povoando as superfícies brancas, con­
fundindo-se com as figuras que se agitam, que as preenchem quase
derrubando as molduras doiradas.

A luz do Norte, vinda do céu, revela todos os pormenores, meticulosa


como eles: roupas, olhos, cabelos ...

A calma regressa.

O último raio de sol engana câmaras e alarmes, rompe a janela a po­


ente, risca a vermelho a parede em frente.

348 01 textos por Álvaro Siza


129.2006 03 01 Reflexão, Casas

Sobre o tema casa, exposição organizada pelo escultor e pin­


tor Carlos Nogueira
Sou dono da casa, sou dono do mundo, ou inquilino dos dois, o
que é rigorosamente o mesmo e nada. A menos que não consiga
ter casa e então uso uma gruta, ou uma tenda, ou uma estação
de metropolitano ou o pórtico do Palácio da Justiça (casas me­
nos confortáveis e sobretudo inaceitáveis: as possíveis).

A casa

A casa é o abrigo.

A coisa principal da casa é o telhado e depois a chaminé.

Dentro somos independentes ou quase. Estamos protegidos da cidade


e do mundo inteiro.

Os que podem usam tranquilamente a internet.

A casa tem janelas: é preciso respirar, mesmo quando o ar está poluído.

É bom ir à janela. Vê-se a rua, a vizinha sai e fecha a porta, há gente


a passar e motos e animais e automóveis, comboios, autocarros e avi­
ões, do ar chega o ruído dum avião, passa uma gaivota. Não estamos
sozinhos, felizmente não estamos sozinhos, bate à porta o carteiro,
chega o jornal.

O sol entra pela janela e pinta a parede em frente, a chuva martela os vi­
dros, zumbe o vento. Sabemos que a rua vai por aí fora, ramifica-se e sai
da cidade, liga a Norte a Sul a Leste a Oeste e a todos os espaços inter­
médios, tece uma manta sem princípio nem fim porque se torce sobre si
própria, mesmo ao cruzar o mar (com grande dispêndio e dificuldade).

A Aventura apetece.

A coisa principal da casa é a porta, mais do que a janela porque não

349
tem peitoril: só um degrau de poucos centímetros para o mundo ou
para fugir ao mundo (sempre se pode fechar a porta ou não a abrir ou
escancarar as folhas da porta).

O esgoto da minha casa percorre o mundo inteiro e transforma-se jun­


tamente com o dos outros.

A casa é o eu de cada um. Contudo no espaço e no tempo as casas são


praticamente iguais, na horizontal como na vertical. Quando têm dema­
siadas escadas inventam o ascensor, mas mantêm-se iguais ou quase,
porque nós os que as ocupamos somos quase iguais. A casa é parte de
uma quadrícula imensa, rota aqui e ali, emendada por muralhas por rios
por fronteiras imaginárias, por longas protuberâncias, por pontes e por
túneis e por nós imateriais.

A casa é eu e nós, conforme se queira. Distinguimos uma de outra,


com dificuldade, por números e por pormenores irrelevantes, por esta­
rem em ruínas e escuras ou limpas e polidas como um vidro.

Sou dono da casa, sou dono do mundo, ou inquilino dos dois, o que é
rigorosamente o mesmo e nada. A menos que não consiga ter casa e
então uso uma gruta, ou uma tenda, ou uma estação de metropolitano
ou o pórtico do Palácio da Justiça (casas menos confortáveis e sobre­
tudo inaceitáveis: as possíveis).

Temos por hábito roubar as casas uns aos outros, ou simplesmente


roubá-las. Construímos, vendemos, derrubamos, compramos. Às
vezes as casa são bombardeadas e às vezes há gente lá dentro e há
terramotos e outros acidentes naturais. Pobre vida das casas.

A casa é de carvão e a porta é de prata. Há sempre um vulto em con­


traluz. Perigosas são as portas das palafitas.

LC arregaça as calças, apoiado na tíbia e no perónio constrói os cabe­


los do Toit Terrasse os pilotis e os miosótis.

Casas dispersas como ovelhas perdidas e casas aconchegadas umas às


outras. Correm em bicos de pés espreitando e voando sobre os vizinhos.
Casas subterrâneas miseráveis, nas colinas, pintadas de azul e de lilás.

350 01 textos por Álvaro Siza


130.2006 03 27 Arte - Fotografia: Juan Rodriguez

Aprofunda, isola, distorce, move tonalidades. Desperta um ou­


tro lado da realidade, aquele que não decifram olhos menos
eficazes, embaciados pelo hábito, pela rotina.

Juan Rodriguez

Juan Rodriguez é um detective. Apossa-se do que vemos, do que


vê ao primeiro olhar, e disso extrai o que nós não vemos. Aprofunda,
isola, distorce, move tonalidades. Desperta um outro lado da realidade,
aquele que não decifram olhos menos eficazes, embaciados pelo há­
bito, pela rotina.

Tudo se revela um pouco diferente, surpreende, faz-se aparição inespe­


rada. De um fundo nebuloso e compacto e escuro, desfocado por vezes,
saltam com nitidez desenfreada coisas, pessoas, animais: um cavalo
branco, uma bola não sei de quê, um jacto de luz que atravessa a porta
entreaberta, lâmpadas em fogo ou sulcos estonteantes, reflexos linea­
res de um cálice de cristal.

Um vulto negro confunde-se com o chão, e emerge recortado sobre


uma parede clara. Traços pintados sobre o piso da estrada aproxi­
mam-se de um ponto. Em que lugar?

Um mar sem horizonte, um mar petrificado, um solo em quadrados pre­


tos e brancos, mesas e cadeiras abandonadas, arranha-céus fundidos
nos céus ou neles recortados, um guardanapo branco sob a perna curta
de uma mesa - tudo a preto e branco e cinza, mil cinzentos. A realidade
a um tempo nítida e desfigurada.

Sensação de cor, desassossego, paz raramente.

Assim como os pintores esconjuram a representação da realidade,


talvez por influência ou concorrência dos fotógrafos, dissolvendo-a,
abstratizando-a, transformando-a numa textura que não revela as

351
formas que nós vemos - assim acontece também na procura derra­
deira dos fotógrafos. Ou do fotógrafo Juan Rodriguez.

Ânsia, desejo de encontrar a essência do que existe. Por influência da


pintura - também e ao invés?

352 01 textos por Álvaro Siza


131.2006 04 07 Reflexão

Escrito para a Fondazione Etica Europa.


A noção do belo move-se no tempo e tem como âncora (precá­
ria) a continuidade (. . .)
O conceito do belo tem sido função do balanço entre continui­
dade e ruptura, por mais que esta por instantes o oculte. Por
isso o conceito do belo está e estará sempre em crise.

Beleza

É possível uma definição da beleza?

O conceito do belo - hoje como sempre - tem um passado, uma


história.

A noção do belo move-se no tempo e tem como âncora (precária) a


continuidade, a estabilidade em paralelo ao impulso de inovação, à
inquietação ante um evoluir sem pausas, contemporaneamente explo­
sivo. Move-se assim entre conformismo e ruptura.

A recusa de um belo consensual é o patamar da beleza autêntica


(muito do que aparece no imediato como não belo ou rude).

A incompreensão que atravessa a História da Arte tem a ver simulta­


neamente com desejo vital e com conservadorismo.

O conceito do belo tem sido função do balanço entre continuidade e


ruptura, por mais que esta por instantes o oculte. Por isso o conceito
do belo está e estará sempre em crise.

353
354 01 textos por Álvaro Siza
132.2006 06 20 Discurso, Arquitectura: Edifício no Complexo
de Cornellà

Na inauguração de uma obra na Catalunha.


(. ..) recordações do muito que aprendi e das oportunidades
que me abriu o contacto, jovem ainda, com os arquitectos de
Espanha e em particular da Cata/una, do entusiasmo e criativi­
dade que rodeavam a realização dos "Pequenos Congresos".

Cornellà

Como bem sabeis [dirigindo-se a arquitectos da Catalunha], a qualidade


de um edifício depende da relação com o espaço em que se insere e do
controle - por igual e em simultâneo - do interior como do exterior.

Gostaria de ter desenhado por inteiro este Complexo de Cornellà, mas


tal não me foi possível. Ainda.
Não se trata de um caso isolado, parece-me, mas de uma tendên­
cia em curso e para mim preocupante a privilegiar a imagem exterior,
como se o mais fosse pouco relevante, como se a qualidade da arqui­
tectura não dependesse do estudo global do projecto.

De qualquer modo, é para mim extremamente gratificante saber que


Vos reunis hoje num edifício projectado por mim.

Traz-me à memória mil recordações do muito que aprendi e das opor­


tunidades que me abriu o contacto, jovem ainda, com os arquitectos
de Espanha e em particular da Catalur'ía, do entusiasmo e criatividade
que rodeavam a realização dos Pequenos Congresos.

Sem essa experiência inesquecível e as amizades e apoios que -


passados tantos anos - se mantêm, teria sido bem diferente e mais
limitado o meu percurso profissional e humano.

Impossibilitado de estar presente, envio as minhas saudações, mani­


festando a minha Gratidão e a minha Amizade.

355
356 01 textos por Álvaro Siza
133.2006 06 23 Arquitectura: Pavilhão Carlos Ramos (FAUP),
Homenagem

Constantemente ouvia os avisos e as recomendações dos


meus colegas, receosos, como toda a gente, da arquitectura
que se faz: cuidado com o rododendro (sobretudo o rododen­
dro), atenção às raízes do eucalipto, proteja as camélias!

Pavilhão Carlos Ramos

Li o texto de António Madureira sobre o Pavilhão Carlos Ramos. Escrito


com a limpidez e abrangência a que já nos habituou, descreve com ri­
gorosa percepção a génesis do projecto.
Procurando algo que eventualmente valha a pena referir veio-me à
memória o "Tema Rododendros" e o que dele decorre.

O Pavilhão, um potencial intruso no belíssimo jardim da Rua do Gólgota,


estava obrigado a preservar a sua extensão e proporções, devendo
por isso aproximar-se dos muros de limite do terreno. Isso significava
situar-se, com dificuldade evidente, entre árvores seculares: um rodo­
dendro, um eucalipto, umas camélias. Para além disso, a topografia e
não a geometria orientara o desenho daqueles muros.

A planta e o volume do edifício foram assim determinados pela proxi­


midade dos muros e pela presença das árvores.

Constantemente ouvia os avisos e as recomendações dos meus cole­


gas, receosos, como toda a gente, da arquitectura que se faz: cuidado
com o rododendro (sobretudo o rododendro), atenção às raízes do eu­
calipto, proteja as camélias!

A estranha consola a Norte resulta simplesmente da necessidade de


recuar a fundação; tal como o traçado dos muros próximos, introdu­
zindo dificuldade, está na base do desenho das paredes exteriores - e
por isso das interiores.

357
A atracção evidente entre o Pavilhão e a casa-mãe enchia o jardim
de eixos virtuais rebeldes e contraditórios. Essa espécie de irresistível
magnetismo foi desenhando o Pavilhão, clarificando relações, redese­
nhando o jardim, motivando um prolongamento em pátio.
Ao tocar o solo as paredes brancas limitam, a traço negro, a superfície
aberta à humidade, à contaminação do verde.

É facto extraordinário que este conhecido arboricida tenha resistido ao


seu instinto fatal, cedendo aos pedidos e instruções dos colegas. Mas
assim aconteceu.

A pedra de fundação foi como sempre fictícia; a pedra final foi a como­
vida homenagem a Mestre Carlos Ramos.
Estava lá o rododendro e ao lado e em meu apoio o querido Amigo e
Mestre Fernando Távora.

358 01 textos por Álvaro Siza


134.2006 07 Viagens

(. . .) a experiência da Amizade, a aproximação a essa ideia latente


e mítica da Felicidade, alimento do resto dos nossos dias (. ..).

Viagem a Marrocos

O que a memória retém, gravado no meu espírito desde aqueles dias


doirados, é a experiência da Amizade, a aproximação a essa ideia la­
tente e mítica da Felicidade, alimento do resto dos nossos dias (sol
a roçar o mar, visto da torre da nunca acabada Mesquita de Rabat,
poisada sobre terreiro polvilhado de fustes e fundações de colunas;
banhos nas praias desertas do Atlântico, ondas altíssimas e suaves,
ruínas romanas à vista; pó encobrindo cavalos e cavaleiros, fuzis
disparados a um metro de distância; janelas abertas de um carro desa­
justado, a ferver sob o sol, recusando o Atlas como o Deserto; tronco
curvado ao entrar na Mesquita de Fez; couro tingido a mil cores, de
odor tão insuportável quanto a beleza; linha nítida na fronteira do de­
serto, pedrinha negra contra areia em cor de Gauguin; calma nas
esplanadas onde se bebe chá de menta, silêncio ou sussurro, olhar
doce, olhar e voz de uma cultura antiquíssima de sábios e poetas; de­
sembarque em Algeciras, de novo as vozes agudas, tumulto nos cafés
e nos terraços).

Recordo isso e muito mais e não acredito que seja apenas nostalgia.
Recordo a ausência de ansiedade.

Presença dos ausentes.

359
360 01 textos por Álvaro Siza
135.2006 09 12 Arquitectura: Conjunto Habitacional da Bouça

A Bouça era um project o rad icalmen e


t económ ico, nem out ra
cois a poderiae deveria serem 1974.

Pub. in Vinte e Dois Projectos Recentes, ed. Carlos Castanheira. Casa


da Arquitectura, Vila Nova de Gaia, 2007. p. 16. E 1b in arq./a n.º 58,
20080600, p. 26.

Conjunto Habitacional da Bouça

A conclusão da Bouça foi para mim uma quase surpresa. Nunca perdi
completamente a esperança de que isso acontecesse, sobretudo pela
contínua pressão dos moradores das nunca acabadas casas da pri­
meira fase.

Depois de 30 anos de interrupção, o empenho da Federação das


Cooperativas foi determinante para a decisão da CMP e do INH de fi­
nalizar a obra.

Para além de construir a segunda fase do projecto, pretendia-se re­


cuperar as casas existentes (cerca de 1/3 do total). Não era fácil
convencer os residentes a prescindir de algumas improvisadas inter­
venções entretanto realizadas. Sentia-se a dificuldade em aceitar a
interrupção do "magnífico isolamento" em que viviam, no centro da
cidade, embora em ambiente degradado; e também o receio de um
eventual aumento de renda.

Foi necessário um paciente diálogo com os moradores, o qual tornou


clara a obrigação de manter quase integralmente o projecto inicial, salvo
poucas excepções; assim o determinava o propósito de preservar as ha­
bitações já construídas e habitadas, parte de um projecto unitário. Esse
diálogo incluiu cedências e inovações, ainda que pouco relevantes.

Eu próprio me debatia com dúvidas e dificuldades. A revisão do projecto


obrigava a considerar a evolução profunda da população residente, em

361
relação ao contexto anterior à revolução de 1974 (era então impensá­
vel a necessidade de uma garagem, ou a preocupação em demarcar
espaços público e privado, impossível prever o grau de exigência dos
Regulamentos actuais).

A Bouça era um projecto radicalmente económico, nem outra coisa


poderia e deveria ser em 1974. A discussão do projecto revelou, anos
volvidos, o desejo (e a possibilidade, ainda que reduzida) de melhora­
mentos pontuais de qualidade e de conforto. Era necessário atender às
exigências manifestadas, algumas por preconceitos que acompanham a
melhoria objectiva de qualidade de vida. Foi por isso e de novo um pro­
jecto participado, no que se refere à relação com as famílias residentes.

Concluída a obra, a reacção do mercado mostrou que o tipo de habitação


não só não correspondia por inteiro às tendências actuais na procura de
habitação económica - para bem e para mal - como, por outro lado, eram
atractivas para outros sectores da população: estudantes, profissionais
jovens, famílias recém-formadas - protagonistas da mobilidade caracte­
rística da cidade contemporânea.

Na revisão feita perde-se de algum modo a integridade do primeiro dese­


nho. Mas existe agora uma estação metropolitana à porta, ligando com
toda a cidade; um fluxo de gente que atravessa o terreno; equipamen­
tos abertos às ruas envolventes; um jardim tratado, automóveis como em
qualquer conjunto habitacional.
Não é obra perfeita. Mas seria isso o principal?

<( 1973 Primeiro projecto para o FFH


(!)
o 1976 Primeiro projecto para o SAAL
o 1978 Interrupção da empreitada de construção
o 1999 Março Convite da Federação de Cooperativas
Revisão do projecto
2001 Outubro Aprovação do projecto
2003 Dezembro Conclusão do projecto
2006 Abril Conclusão da obra
FFH Fundo de Fomento da Habitação
SAAL Serviço de Apoio Ambulatório Local

362 01 textos por Álvaro Siza


l
136.2007 01 00 Diversos, Arquitectura: Museu lbere Camargo

Memória Descritiva relaciona-se com o Museu lbere Camargo.

Memória Descritiva

Buraca

escarpa forrada de verde


HORIZONTAL
em frente o rio
ou mar cidade
o céu pintado de vermelho

polido objecto
estende os braços
as curvas l<i' -as pelo sol
'17 biÓ

recebe
acena
suga
estreitas janelas
necessárias tudo
e:
lâmpadas inúteis
(/)
e
(/)

::::,
(/)
0l
(/)

luz e luz
o dia inteiro
graves óleos gravados
aura paz

363
364 01 textos por Álvaro Siza
137 .2007 01 16 Reflexão

Voar e aperceber-me de que tudo o que a vista alcança perten­


ce àquele corpo - e simultaneamente que ele é possuído por
tudo. O contrário de um intruso.
Incluir o que não se vê e o que já não se vê.

Arquitectura: Começar-Acabar

Começar

1 - Ver pela primeira vez os postes cravados no terreno segundo o


risco imaginado. Corrigi-lo porventura.

2 - Ver pela primeira vez o projecto gravado no solo, a fundação mate­


rializada - o mesmo e o oposto das ruínas de Pompeia.

3 - Ver pela primeira vez os muros elevados até à cota desejada.


Sentir-me dentro e olhar de longe. Percorrer o terreno, experimentando
a sucessão de fragmentos de um corpo inteiro presente na memória.
Ver a matéria que me envolve e olhar para além dela, encontrar a re­
lação entre os vãos e o que revelam. Entrar na porta inexistente desde
este ângulo ou de aquele.
Imaginar num ápice um dia de vida numa casa, não ignorando os
encontros e os desencontros, os prazeres e as dores, a fadiga e a
energia, o tédio aceite e o entusiasmo, os encantamentos e as indife­
renças que os irão habitar.

4 -· Percorrer, meses mais tarde, os espaços cobertos e os aber­


tos. Apreciar a densidade, os alinhamentos e as rupturas e a luz que
amarra e que liberta ao sabor dos tempos.

5 - Revestir, colorir, apalpar, ajustar a abertura das pálpebras e conter


a inquietação dos olhos, abrir os ouvidos aos ruídos e aos silêncios,
sentir o odor e o gosto sem origem dos espaços.

365
Ensaiar e poder corrigir sem limite.

6 - Voar e aperceber-me de que tudo o que a vista alcança pertence


àquele corpo - e simultaneamente que ele é possuído por tudo. O con­
trário de um intruso.
Incluir o que não se vê e o que já não se vê.

Acabar

Uma palavra imprecisa, uma espécie de erro de tradução, a substituir


pela palavra começar.

366 01 textos por Álvaro Siza


138.2007 03 16 Diversos

Sobre um Projecto de animação cultural/urbana.


Texto para Expoente.

Idealidades

Quando tomei conhecimento do projecto idealidades - confesso - senti


algum receio.
Lembrei-me de outras intervenções urbanas, apresentadas como ani­
mação, ou revitalização, ou animação cultural ou outros termos a que
associo alguns desastres: profusão de mobiliário urbano, incluindo ban­
cos, banquinhos e vasos de flores de desenho torturado, esculturas
esburacadas para as crianças brincarem, pistas de skate nos sítios mais
surpreendentes, luz eléctrica a mais (amarelo a sair das janelas e focos
de projectores e as sombras correspondentes), concursos de graffittis
arruinantes, espectáculos musicais por todos os cantos, invasões de es­
culturas, fontes e mais fontes - e muito mais.

Nenhum espaço vazio para nos receber, nenhuma pausa, multi­


plicação de objectos por entre o emaranhado de sinais de trânsito,
semáforos, cartazes de publicidade, caixotes de lixo, máquinas de be­
bidas e tabaco.

Poderia ser a descrição de uma excitante cidade contemporânea, a


universalização do fascínio de New York. Infelizmente é outra coisa.
Sosseguei ao conhec�r o teor do projecto.

As várias acções descritas anunciam um inteligente processo de


"aprender a ver a cidade", e de a viver, uma participada construção de
cidade, sem objectos e sem prescindir de autónoma (s) capacidade (s)
de transformar. Uma aventura também.

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368 01 textos por Álvaro Siza

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139.2007 05 00 Arquitectura: Thoronet

Espero que não se diga uma vez mais (como noutros casos)
que esta é uma intervenção minimalista.
Ao contrário: é quase brutal.

Pub. in Catálogo do evento Siza au Thoronet. /e parcours et /'oeuvre,


direction de Dominique Machabert, Maio/Junho de 2007, Ed.
Parenthéses, 2007.

Le Thoronet

Espero que não se diga uma vez mais (como noutros casos) que esta
é uma intervenção minimalista.
Ao contrário: é quase brutal. Transforma Thoronet ao tornar imediata a
percepção da arquitectura.
Permite compreender a razão da sua beleza, perdida a função que lhe
deu origem - e apesar disso.
Repõe a verdade e contudo mente.

A "Porta da Morte" (saída ao mais curto caminho para o c0mitério no


último adeus a um monge) não é, de novo, o acesso principal que
nunca foi.
Repõe-se o uso da entrada directa ao claustro, distribuidor dos espa­
ços da vida colectiva e individual da comunidade, antes de Thoronet
ser apenas monumento visitável.
Pouco é necessário acrescentar para o reencontro pleno com a inte­
ligência e a clareza do projecto do convento: uma seta, um poste, um
cabo tenso, olhos abertos.
A influência do desenho não é proporcional ao desejo de protagonismo.

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370 01 textos por Atvaro Siza
140.2007 05 30 Homenagem, Outros Arquitectos: óscar
Niemeyer (2)

No ano do centésimo aniversário de óscar Niemeyer. ( .. .)


Um dia, de chofre, surgiu a América do Sul na Architecture
d'Aujourd'hui. E logo inúmeras publicações sobre o Brasil e
mais ainda sobre "um" Óscar Niemeyer.

Óscar Niemeyer - por ocasião do 100º


Aniversário

No principio era Corbu.


Mas os tempos estavam a mudar e o que chegava de fora.
As novas publicações davam conta do que se fazia e onde e como e
quem. Reconstruía-se a Europa.
Um dia, de chofre, surgiu a América do Sul na Architecture d'Aujourd'hui.
E logo inúmeras publicações sobre o Brasil e mais ainda sobre "um"
Óscar Niemeyer.

O Távora apareceu com o brilho nos olhos e um livro na mão: Brazil


Builds.

As revistas poisadas sobre as nossas mesas de trabalho (monografias


de Gropious, de Neutra, de Mendelson, de Mies) foram misteriosa­
mente substituídas.
Os trabalhos de Escola (desenhados respeitosamente em papel
Whatman, depois em Couché, depois em Bristol, antes de se usar o
vegetal) mudaram radicalmente.
Surgiram no papel, como nos desenhos de Niemeyer que nos fascina­
vam - pilares como pontos, paredes como finas linhas ondulantes, quase
dissolvendo a forma, contudo tão nítida e tão nova e tão evocativa.
Bailavam na mente Pampulha e Canoas.

Mais tarde os nossos olhos povoaram-se de maravilhosas arquitectu­


ras, vindas dos quatro cantos do mundo. Emergiam uma a uma e logo
em tumulto, misturando-se, repousando no subconsciente, à espera.

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Nas mesas já não havia espaço para revistas, nem elas eram
necessárias.
Mas nunca se apagou a imagem dos pilares como pontos negros e
das linhas ondulantes de Niemeyer - leveza e curvas dos morros e
das musas do Rio.

372 01 textos por Álvaro Siza


141.2007 06 27 Reflexão, Arquitectura: Pavilhão Multiusos
de Gondomar

As luzes apagam-se. Não é cinzento, é negro. Não é triste, re­


pousa. Os edifícios e os objectos e os espaços, não são tristes
nem alegres. Existem quando recebem gente e existem por
isso e para isso.

Só as pessoas estão alegres ou tristes

(Visita ao Multiusos de Gondomar)

É tão cinzento! (Diz-me a jornalista).


Pois é. Imagine este espaço povoado de gente. Acção, momentos in­
tensos. Entusiasmo, ansiedade, alegria.
Olhe para a sua camisa (vermelha). Olhe à volta. Olhe as roupas dos
outros e os olhos dos outros: as cores do arco-íris misturam-se, mo­
vem-se, cintilam. Massa contínua que fala alto. Vê isso?
O espectáculo acaba. Toda a gente parte. O edifício fica só, prepara-se
para receber outra gente ou a mesma: repousa. As luzes apagam-se.
Não é cinzento, é negro. Não é triste, repousa. Os edifícios e os ob­
jectos e os espaços, não são tristes nem alegres. Existem quando
recebem gente e existem por isso e para isso.
Cada um de nós chega a casa, acompanhado ou só. Dorme, só com
os seus sonhos com ou sem côr.
Semi-cerre os olhos. É capaz de repousar? É capaz de sonhar
desperta?

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374 01 textos por Mtaro Siza
142.2007 07 00 Móveis, Design

Invadiu casas e edifícios públicos. Ainda hoje a vemos sem es­


tranheza. Equipou (e equipa) cafés de província, tanto quanto
ambientes sofisticados.

A minha cadeira favorita

É difícil a escolha, tantas as que me vêm à memória, ou as que todos


os dias vejo.
Uma das que mais aprecio (e não há nisso nenhuma originalidade) é
a famosa Thonet.
Creio que se trata da primeira cadeira produzida mecanicamente e em
série, associando inovação tecnológica e de desenho.
Foi distribuída por todo o mundo e descentralizada a sua produção
(também no Porto se fabricou a Thonet). Invadiu casas e edifícios pú­
blicos. Ainda hoje a vemos sem estranheza. Equipou (e equipa) cafés
de província, tanto quanto ambientes sofisticados. Le Corbusier usou-a
constantemente.
É leve e confortável sem exagero (até nisso discreta). Um velho ou
uma criança deslocam-na sem esforço.

Há exemplos de optimização do desenho desta aparentemente anó­


nima cadeira, optimização desenhada por arquitectos famosos, a
pedido ou por encargo do produtor. A expressão anónima não se sub­
verte, continua "cadeira que parece uma cadeira".
É "a cadeira".

Visitei há anos uma exposição de mobiliário moderno, não me lem­


bro onde. Um sem número de cadeiras alinhava-se sobre o estrado de
uma comprida sala - tudo que de belo se fez.
Vi de súbito e ao longe uma vulgar Thonet, como que envolvida em luz,
ou irradiando luz. Resplandecia, cantava. E contudo era uma simples
Thonet.

Debrucei-me para ler a etiqueta colada no estrado.


Estava escrito: cadeira Thonet, desenho de Adolf Laos, 1898.

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01 textos por ÁNaro Siza
143.2007 07 13 Homenagem, Outros Arquitectos: óscar
Niemeyer (3)

Sobre Óscar Niemeyer, no ano do seu 100º aniversário. (. . .)


Nos estiradores repousavam - agitavam-se - as publicações
sobre as obras do moderno Brasil - antes de mais de óscar
Niemeyer - devolvendo-nos a energia e a alegria que um dia
germinaram no longínquo Brasil barroco.

Óscar Niemeyer

Pouco aproveitamos das oportunidades de que Óscar Niemeyer cons­


truísse no nosso território (lembro-me da Casa do Brasil em Lisboa e
de outros projectos nunca realizados). Mas Óscar Niemeyer construiu
em Portugal bem mais do que o hotel da Madeira, infelizmente e entre­
tanto mal transformado.

Conhecedor que era de quanto as dificuldades políticas afectam a evo­


lução da Arquitectura - ele que foi capaz de as ultrapassar com a
coragem de um sonho nunca interrompido - participou decisivamente,
pela qualidade e comunicabilidade da sua obra e pelas afinidades cul­
turais, na construção de um novo e há muito procurado espírito para a
Arquitectura Portuguesa.
Na minha memória persiste o impacto das suas breves visitas ao Porto,
onde Viana de Lima acompanhava o projecto da Ilha da Madeira, e do
contacto então estabelecido com a Escola de Belas Artes. Lembro-me
da apresentação de obras e projectos feita numa dessas visitas, ante
alunos e alguns professores de Arquitectura, e da explicação descon­
certantemente simples de alguns dos trabalhos recentes. Lembro-me,
para dar um exemplo, da descrição do projecto do Aeroporto de Brasília,
de como a partir de uma sólida compreensão de funcionamento surgiu,
como forma integra e total, o que poderia ser (e geralmente é) uma adição
de grandes espaços, sem o sopro de "ser um todo" orgânico e eficaz.

Para estudantes e professores a referência a Niemeyer apoiou a re­


conquista da liberdade criativa, a conjunção de tradição e modernidade

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que a mais exigente prática de então particularmente procurava, sob a
orientação de uma equipa de jovens professores de grande talento.
Fernando Távora apareceu um dia na escola com um livro debaixo do
braço, que mostrou triunfalmente: Brasil Builds.

Misteriosamente e por instantes, das nossas mesas de trabalho desa­


pareceram os "livros de cabeceira" de então (monografias de Gropious,
de Neutra, de Mendelson, de Mies e como sempre de Le Corbusier) por
outros substituídos.

Surgiram no papel - como nos desenhos de Niemeyer que nos


fascinavam - pilares como pontos, paredes como finas linhas ondu­
lantes, quase dissolvida a forma, contudo tão nítida e tão nova e tão
evocativa.
Bailavam na mente Pampulha e Canoas.
Nos estiradores repousavam - agitavam-se - as publicações sobre as
obras do moderno Brasil - antes de mais de Óscar Niemeyer - devol­
vendo-nos a energia e a alegria que um dia germinaram no longínquo
Brasil barroco.

378 01 textos por Álvaro Siza


144.2007 07 26 Discurso, Outros Arquitectos: Gregotti (4)

A sua é uma arquitectura de fundação, sólida partitura disponí­


vel e apta ao registo das complexidades que só o Tempo, - esse
outro arquitecto - pode e deve desenhar.

Prémio da Trienal de Arquitectura

Fui convidado a propor a atribuição do Prémio da Trienal de Arquitectura,


neste primeiro ano de realização.
Um prémio de Carreira.
Comecei por recusar - sem sucesso. Sugeri em seguida que fosse
nomeada uma comissão, da qual me prestaria a fazer parte, se assim
fosse entendido.
De novo sem sucesso.
Pensei então em declarar-me indisponível, atitude que julgo compre­
ensível, mas pouco delicada.
Quase por instinto, surgiu entretanto no meu espírito um nome.
Acredito razoavelmente em súbitos impulsos; mas sempre me obriguei
a descobrir a razão do instinto.
Foi o que fiz, ao aceitar tão honroso encargo.

Vittorio Gregotti pertence à brilhante geração de arquitectos italianos


que iniciou a prática profissional no início dos anos 50.
Concluído o curso no Politécnico de Milão em 52, prosseguiu, junta­
mente com alguns outros, o que haviam iniciado enquanto estudantes
de uma escola viva, inserida num espaço e num momento histórico em
que o entusiasmo era quase geral e irresistivelmente contagiante.
Para além dos primeiros projectos construídos, Vitorio Gregotti partici­
pou de imediato na procura dos objectivos e métodos que a viragem em
curso exigia.
Tornou-se, certamente por isso, redactor de Casabella (de 55 a 63);
e sucessivamente redactor-chefe de Casabella - Contínuítà (63 a
65); director de Edílízía Moderna (63 a 65); responsável do sector de

379
arquitectura da Revista/ Verri (79 a 98); director de Rassegna (79 a 98);
director de Casabella (82 a 96). Foi responsável da rúbrica de arquitec­
tura de Panorama (8 4 a 92); e colaborou com o Corriere dei/a Sera (de
92 a 97) e com La Republica (a partir de 97).
Em 1966 publicou um livro fundamental, sucessivamente reeditado: O
Território da Arquitectura.
Esta abundante produção acompanha uma constante actividade pe­
dagógica, como professor do Instituto Universitário de Veneza e das
Faculdades de Arquitectura de Milão e Palermo; e ainda como profes­
sor visitante, um pouco por todo o mundo.
Esta actividade não se dirige somente à arquitectura, como indica a
entrega, pela Presidência da República Italiana, da Medalha de Oiro
reservada aos Beneméritos da Ciência e da Cultura.
Assume e desenvolve com total entrega e ao longo dos anos tudo o
que se refere à formação e à responsabilidade do Arquitecto e à sua
relação com o território e com a Sociedade, em resposta à rápida e
universal transformação.

Conheci Gregotti nos anos 60, quando visitou Portugal, aparentemente


- só aparentemente talvez - em férias. A sua curiosidade inesgotável
deu lugar a uma imediata divulgação da arquitectura no contexto de
um Portugal fechado e quase ignorado, quase ausente do que se pas­
sava e do que mudava um pouco por toda a parte; quase só presente
em interstícios que percorreu, compreendeu e revelou.
Depois de 74 Vittorio Gregotti esteve perto de realizar em Portugal, a
convite do então Secretário Estado de Habitação Nuno Portas, o Zen
que anteriormente sonhara; um dos projectos então mais divulgados
e debatidos.
Só anos mais tarde, ao vencer o concurso do Centro Cultural de Belém,
projecto a que associou o estúdio de Manuel Salgado, viria a partici-
par, e de forma decisiva, na transformação em curso no nosso país.
A construção do Centro Cultural de Belém processou-se com brilho
e eficácia, no curto prazo imposto pela data da primeira Presidência
Portuguesa da Comunidade Europeia, ultrapassando oscilações de
programa e duras polémicas - de raiz, julgo eu, sobretudo política.
O Centro Cultural é uma mais das grandes estruturas que pontuam, a

380 01 textos por Álvaro Siza


diferentes cotas, o tecido compacto de Lisboa - dele emergindo. O re­
sultado obtido revela uma certeira leitura da histórica cidade e da sua
latente vocação formal e espacial; e uma nítida compreensão das rela­
ções de escala que a foram definindo.
A capacidade desta arquitectura em simultaneamente "fazer parte" e
se constituir como protagonista singular, com a legitimidade que lhe
confere o particular desempenho urbano, foi sendo gradualmente
compreendida pela população, que finalmente e com toda a naturali­
dade dela se apropriou.
O que digo tem a ver com uma das qualidades -uma quase invariá­
vel - da arquitectura de Vittorio Gregotti: a recusa ao brilho imediato e
por isso mesmo muitas vezes fugaz. A sua é uma arquitectura de fun­
dação, sólida partitura disponível e apta ao registo das complexidades
que só o Tempo - esse outro arquitecto - pode e deve desenhar.
Esta qualidade está presente nas muitas intervenções projectadas ou
realizadas, do edifício singular à organização do território, da arquitec­
tura da cidade à proposta de cidade. Intervenções sensíveis e de plena
autonomia, de Veneza a Milão, de Paris a Lisboa ou Berlim ou Xangai.
A sua é uma obra inscrita no percurso da história da arquitectura - e
do seu devir.
O Tempo, que poucas vezes contempla ansiedades, confirma as suas
opções.
Não desejo prolongar esta de resto dispensável introdução ao que aqui
nos reúne: a entrega do Prémio da Trienal de Arquitectura de Lisboa.
E a palavra que me ocorre, antes da entrega por sua Excelência o
Presidente da República, é simples e curta: Obrigado.

381
01 textos por Álvaro Siza
145.2007 08 02 Pedagogia, Reflexão

Se teoria, falando de Arquitectura, significa um conjunto de re­


gras registáveis e reutilizáveis, então sinto-me bem ao não ter
teoria (como por vezes é dito).

Ser Teórico

Se teoria, falando de Arquitectura, significa um conjunto de regras re­


gistáveis e reutilizáveis, então sinto-me bem ao não ter teoria (como
por vezes é dito).

Não sei de nenhuma tranquilamente aplicável. O rolar do tempo, por ace­


lerado, não o permite nem perdoa. Constantemente se reduz a ponto de
partida. A própria pesquisa a vai abandonando ou ultrapassando e assim
sucede a cada novo projecto, apesar de sucessivas experiências.

O exercício de projecto não aceita um momento de segurança, de


saber estável, mesmo se conscientemente provisório.

Ausente a prática, a critica não age directamente. Não pisa, a não ser
em intervalos e à posteriori, o território deslizante da criação -dos aci­
dentes que iluminam o devir.

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l. 384 01 textos por Álvaro Siza
146.2007 08 06 Apresentação

O tema deste livro [Queira Deus] refere-se - como o título indica


- à relação entre invenção e tradição, sempre presente, confli­
tuosamente que seja, ao longo da história da Arquitectura.

Pub. in Queira Deus, lnvenção&Tradição em Arquitetura, Paulo de


Lencastre (ed.), Porto: Civilização Editora, 2007. Brasil: Biblioteca
Submersa, Andrade&Raposo, Arquitetos, Recife, 2007.

Moderno e Brasileiro

O tema deste livro refere-se - como o título indica - à relação entre


invenção e tradição, sempre presente, conflituosamente que seja, ao
longo da história da Arquitectura (pessoalmente prefiro o termo inova­
ção; a invenção decorre de antecedentes sucessivos, mais do que de
súbita iluminação).

Essa relação está implícita, na moderna arquitectura brasileira, refe­


rência natural do projecto de restauro do Engenho Queira Deus.

Paulo Raposo Andrade descreve a história do Engenho e da sua ar­


quitectura; evoca ainda as circunstâncias da construção de uma
modernidade solidamente enraizada nas tradições e na identidade
multicultural do Brasil.

Apoiando-se em escritos do Lúcio Costa, Armando de Holanda,


Ariano Suassuna, Gilberto Freire - o autor analisa e consciencializa
os pressupostos e movimentos subjacentes à efectiva fundação de
uma tradição moderna e dinâmica da Arquitectura. Descreve um per­
curso a um tempo de libertação e de continuidade face a outra tradição
- secular - e à sua evolução no tempo1.

A interpretação histórica latente está sintetizada numa curta frase inten­


cionalmente transcrita de Cario Levi: «o futuro tem coração antigo».
1 Em Moderno e Brasileiro, Laura Cavalcanti descreve com rigor o despontar do modernismo no Brasil:
as tensões e encontros entre conservadores e modernos, na luta por uma Arquitectura que contemple
identidade e universalidade, tradição e invenção. Ou inovação.

385
No projecto proposto, o Autor recupera os traços fundamentais da
implantação e articulação do conjunto do Engenho, internamente e
na sua relação com o território. Traços consolidados pela ampliação
do eixo definido pelas ruínas existentes - chaminé, casa e restos de
muros - às quais acrescenta um novo pavilhão. A sequência de volu­
mes ao longo desse eixo reforça a entrega do conjunto arquitectónico
a largos horizontes.

A linguagem arquitectónica de corpo acrescentado não resulta de uma


submissão formal àqueles fragmentos; antes procura a expressão que
a ruptura funcional exige.

O que ficará - testemunho de um projecto apaixonada e pormenoriza­


damente exposto nas páginas deste livro - é a obra realizada.

Que se realize.

386 01 textos por Álvaro Siza


147.200711 30 Outros arquitectos: óscar Niemeyer (4)

A arquitectura de Niemeyer respira naturalidade e intempora­


lidade, superando as noções estereotipadas de tradição e de
modernidade. A construção faz Natureza.

Casa em Canoas

Oscar Niemeyer faz da Natureza material da arquitectura.


Em Canoas a selva transforma-se em muro envolvente de um enorme
espaço habitado.
A cobertura ondulante é uma nuvem branca, um lago que levita, ou a
sua sombra em negativo num mundo às avessas. Pássaro livre no ha­
bitat natural, ou corpo humano em movimento.
Acontece simultaneamente a calma e o apetite de acção.
O repouso absoluto conquista-se mergulhando na terra fresca, na luz
permitida.
Em cima não há exterior e interior.
Os móveis são rochas tanto quanto esculturas, ou troncos caídos, ou a
maravilhosa cadeira de estender em madeira e palhinha.
Alguém se recosta, sentindo-se bem com si próprio e com o mundo;
carregado de energia, como bateria pronta a funcionar.
Sabor de viver.
A arquitectura de Niemeyer respira naturalidade e intemporalidade, su­
perando as noções estereotipadas de tradição e de modernidade. A
construção faz Natureza.

387
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01 textos por PJvero Siza


148.200712 09 Outros Arquitectos: Aldo Rossi, Homenagem

Por muito que a visitemos, Veneza desperta sempre um en­


cantamento súbito e incontornável, como se fosse a primeira
vez. Uma sensação de haver viajado no tempo e não somente
no espaço.

Evocação de Aldo Rossi

Por muito que a visitemos, Veneza desperta sempre um encantamento


súbito e incontornável, como se fosse a primeira vez. Uma sensação
de haver viajado no tempo e não somente no espaço.
Numa das muitas visitas hospedei-me num hotel perto de S. Marcos,
à entrada do Grande Canal.
O quarto era no último piso, um pequeno terraço dominava a paisagem.
Procurei com os olhos a Salute, a torre da Doghana e a esfera doirada
que a luz glorifica.
Apercebi-me com surpresa de uma segunda torre, ao lado, uma torre
gémea seguramente nova.
Sur�ia com a naturalidade de torre antiga.
Fazia absolutamente parte da imutável paisagem que eu conhecia,
como se houvesse estado sempre aí. Emanava contudo não sei bem
que invulgar modernidade, a um tempo intensa e contida.
Pude ver que estava assente sobre uma barca ancorada, uma ilha
mais, mas feita para partir.
Voltei mais tarde a Veneza, ao mesmo quarto de hotel e ao mesmo ter­
raço. A torre encantada havia desaparecido.
Contou-me Aldo Rossi que atravessara o Adriático, com um grupo de
teatro a bordo. Os pescadores suspendiam o trabalho, atónitos larga­
vam o leme, com medo talvez, sem saber de onde viria e para quê e
com quem aquele objecto desconhecido, barco antiquíssimo ou inven­
ção ou ilusão.
Contou-me Aldo Rossi, em Veneza, com a precisão e a emoção que
eram próprias da sua natureza. De tal forma que eu pude «ver» a nave
encantada a desaparecer lentamente, envolta em nevoeiro, gravada
na memória.

389
Essa imagem reapareceu de súbito, com igual nitidez e diferente emo­
ção, ao receber notícia que não esperava.

390 01 textos por Álvaro Siza


149.2008 01 02 Família

Talvez o meu interesse pela arquitectura, dificilmente explicá­


vel, tenha a ver com o espírito desses antepassados corajosos,
que viveram intensamente a necessidade e o prazer de ver, de
compreender, de experimentar o mundo inteiro.

Pub. in De Barlavento a Sotavento, de Maria do Carmo Serém e Maria


Tereza Siza. No prelo.

Bisavô Júlio

Pouco sei do meu bisavô Júlio. A avó falava pouco do passado, for­
çada a encarar um presente difícil: viúva e seis filhos a educar, numa
cidade que não era a sua, após anos de prosperidade em Lisboa, na
Madeira, na Guiana Inglesa, no Brasil.
Belém do Pará entrou no meu imaginário por relatos apaixonados
do meu pai e por lembranças periodicamente recebidas: Goiabada
marca Peixe, Globo Juvenil com histórias aos quadradinhos, Doce de
Cupuaçu, que a minha mãe adorava, Carne Seca para a incontornável
feijoada à brasileira, feita por Didi, brasileira da Baía. A minha meni­
nice alimentou-se de aventura e de doçura.
Mas o Brasil era distante; a comunicação com parentes e amigos foi
diminuindo.

Só que, bem alinhadas em gaveta do quarto da avó, empilhavam-se cha­


pas originais e belíssimas provas fotográficas, cuidadosamente trazidas
do Brasil e progressivamente amarelecidas. No verso dos finos cartões
havia desenhos de medalhas de exposições universais: Londres, Paris,
Berbice, Chicago...
Assim pudemos conhecer a elegante figura do bisavô, a beleza da avó
Júlia jovem, crianças que eram o pai e os tios, outros parentes e amigos,
palácios e paisagens. Tudo isso registado, como se lia no verso, pela
Fotografia Amazónia ou a Lusitânia Photo Art Gallery, de Júlio A. Siza:
testemunhos de uma mobilidade que nos parecia heróica. E era.
A irmã Teresa cedo se interessou por aquela gaveta.

391
Talvez o meu interesse pela arquitectura, dificilmente explicável, tenha
a ver com o espírito desses antepassados corajosos, que viveram
intensamente a necessidade e o prazer de ver, de compreender, de ex­
perimentar o mundo inteiro. Desse bisavô do Mundo Novo que, como
outros fotógrafos precursores, se especializou - até à paixão - em
captar e registar Passado e Presente em pleno e contínuo movi­
mento: à sua maneira, em construir o Futuro.

392 01 textos por Álvaro Siza


150.2008 01 02 Diversos

Zoides

Os zoides invadem a casa: Não: os zoides regressam a casa. E não:


os zoides constróem a casa.
Os zoides constróem a casa existente ruína de onde voaram a car-
pintaria, os tubos, a água corrente.
Todos constróem a casa feita por séculos por todos.
Todos se encontram na casa descoberta por alguém enfim não se
sabe quem de súbito: nós.
Encontramo-los companheiro ressuscitado estranho familiar íntimo
completamente estranho.
Cada um mudo na casa de onde nunca saiu dissolvido na pedra na
relva na Nespereira no Líriodendro na Magnólia ocupa a sala o
leito traz amigos dentro de nós recordo vagamente o que pen­
samos ou vemos interfere sentido do que não se lembra nem se
entende nem projecta.
Fantasma nítido feto de sabedoria de velho vigor de atleta.
Invasor de interiores não: dentro imperceptível como braço ou olhos
pensamento de outros legião densa Fábula Fabiola - Zoides per-
sonagens de Bizâncio imóveis olhos penetrantes instantâneo de
mover vertiginoso existentes sem pressa.
Abrigo seguro irreflectida aventura da serenidade sombra na ca-
beça longe não inventado aperto da mão do ar novo poro dos
pulmões chão. To call ter cal ponto crescente abraço - que
braço? - vento porta entreaberta opaca e transparente. Está lá?
Aí está cá Lá Ali.
Decididamente não sei nada de Zoides a não ser que são belos e
juntam muita gente.

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394 01 textos por Álvaro Siza
151.2008 01 29 Desenho

(. ..) pelo acerto das proporções, pela forma elíptica que dis­
pensa arestas, pela criteriosa escolha de materiais e cores, um
espace "indicible", como diria Le Corbusier (. ..)

Os azulejos de Fátima

Alexandros Tombazis convidou-me para preencher uma parede de


150 x 6 m com desenhos representando episódios da vida de S. Pedro
e S. Paulo, desde o início da evangelização até ao martírio final. A
parede limita longitudinalmente a galeria de acesso às capelas do
Santuário de Fátima.
Aceitei com todo o entusiasmo (e pouca reflexão como compreen­
deria mais tarde). Visitei com ele o projecto em construção, o vasto
espaço da Basílica, extremamente confortável contudo, pelo acerto
das proporções, pela forma elíptica que dispensa arestas, pela crite­
riosa escolha de materiais e cores, um espace indicible, como diria Le
Corbusier, que a luz controlada, neutra ou colorida, ordena.
A enorme nave encontra modo de se relacionar com o antigo Santuário,
transformando finalmente o que era um descampado em lugar. A arti­
culação entre a antiga e a nova construção é mediada por dois pátios
que iluminam a Galeria das capelas e por duas rampas que permitem
o acesso em cada um dos extremos. Durante a visita acordamos que
os desenhos deveriam ser executados a preto sobre azulejo branco
semi-artesanal de 14 x 14 cm, a que a entrada de luz e os reflexos
proporcionados pelo espelho de água, em cada um dos pátios, introdu­
ziriam cor e vibração. Na mesma visita recebi do Reitor de Fátima um
pormenorizado e sintético caderno de encargos, onde se referiam os
episódios da vida dos dois Santos a representar. As portas de acesso
às capelas pontuavam a parede em ritmo irregular.
Terminada a visita começou a preocupação pela dificuldade e res­
ponsabilidade do compromisso assumido, sendo impensável voltar
atrás, pelo desafio tentador e pelo entusiasmo de Tombazis. Por mero
acaso tive que me deslocar em dias próximos a Nice. Aproveitei para

395
revisitar a Capela de Vence, o maravilhoso trabalho de Matisse. Não
pude evitar uma sensação de irresponsável atrevimento. Aquele painel
de azulejos põe de joelhos qualquer um, quanto mais quem pretenda
realizar, em ambiente religioso, exactamente um painel de azulejos.
Senti-me inseguro e incompetente. Refugiei-me no trabalho. Consultei
reproduções das inúmeras e sublimes obras realizadas sobre os mes­
mos temas, através dos séculos. Uma das primeiras hesitações teve a
ver com a representação de S. Pedro, S. Paulo e outros personagens.
Matisse representou os santos com traços negros, as caras reduzi­
das à oval do rosto. Não podia imaginar rostos de Santos, dizia. Ante
as minhas dúvidas e perguntas lembraram-me que Pedro e Paulo não
eram Santos, quando aconteceram esses episódios. Eram homens
disponíveis para a solidariedade, homens capazes de convicções e
tolerância, abertos à luta por uma vida diferente e mais justa, até ao
martírio. Homens justos, com a sua grandeza e as suas dúvidas.
À noite, em casa, em cada noite, enchia ansiosamente folhas de papel
A3, procurando a aproximação ao tema, a expressão do desenho,
procurando a espontaneidade, a qualidade do traço executado em se­
gundos: a segunda espontaneidade, resultado do trabalho sem pausa
e da libertação do trabalho.
Seleccionava o que melhor me parecia para cada episódio. Fui re­
conquistando a calma. Depois de não sei quantas noites de trabalho
mostrei o resultado a Tombazis, e ao Reitor de Fátima. Apoiaram-me e
transmitiram-me confiança. O prazer invadiu o meu trabalho.
Fixei nas paredes do escritório a ampliação de dois desenhos, tentando
encontrar a justa escala. Em seguida coloquei um deles em Fátima, no
lugar que lhe estava destinado. Ajustamos a dimensão, tendo contudo
de mudar a ordem (no primeiro estudo conjunto ajustei as cenas mais
densas aos espaços de maior dimensão entre duas portas; fui con­
tudo informado da necessidade de as colocar por ordem cronológica,
sendo cada um dos relatos - da vida de S. Pedro e de S. Paulo - de­
senvolvido a partir de cada um dos extremos da galeria e concluído no
centro do painel, com a representação dos martírios). Esta nova distri­
buição obrigou a significativas alterações.
A conclusão do painel dependia agora do trabalho dos experientes
pintores da Viúva Lamego, que eu já conhecia de outras realizações
de menor vulto, orientados por Duarte Garcia. Eles são capazes de

396 01 textos por Álvaro Siza


reproduzir, sobre a associação de azulejos de 14 x 14, não só o desenho
como a emoção espontânea do autor. A visita ao primeiro painel, colo­
cado no local pretendido, emocionou-me profundamente. A superfície
irregular e branca do azulejo enchia-se de cor e de reflexos cambiantes.
O nítido traço negro tornava-se vibrante.

397
398 01 textos por Álvaro Siza
152.2008 01 29 Homenagem

Modelos, Maquetas e o trabalho de 25 anos de dois Barata Feyo.

Maqueta - instrumento de trabalho e


representação

Dizia Miguel Ângelo que o dinheiro mais bem gasto num projecto é o
de uma maqueta.
A maqueta permite representar, de forma compreensível para todos, o
essencial da proposta contida nos complexos e para muita gente her­
méticos desenhos de arquitectura (plantas, alçados, cortes).
Permite assim tornar efectivo e consciente o diálogo entre quem neces­
sita de apoio profissional e de quem o presta, eventualmente o encontro
de entusiasmos em torno de um projecto - condição indispensável à qua­
lidade da arquitectura.
Constitui igualmente instrumento de estudo e de optimização, comple­
mento de outros meios também insubstituíveis. Uma parte do que se
faz, referido a maquetas, pode e deve acontecer passo a passo e no
interior do estúdio do Arquitecto: modelos expeditos em material de
fácil manipulação, apropriado à rápida modificação, à destruição e cor­
recção. Testes de verificação global ou parcial.
Mas em determinadas fases torna-se necessário um maior rigor, para
apresentação de uma ideia em âmbito alargado ou para confirmação
tranquilizante. É neste caso exigível uma experiência especializada e
meios de execução apropriados, raramente justificáveis num gabinete
de arquitectura.
João Barata Feyo, Escultor e João Ricardo Barata Feyo, Arquitecto,
decidiram há 25 anos dedicar grande parte da sua actividade ao pre­
enchimento de uma lacuna evidente, mesmo se não total, pondo à
disposição dos projectistas uma estrutura independente que reúne
competência e qualidade de equipamento.
A capacidade de rigor e eficácia tem sido beneficiada pela utilização e
actualização dos meios tecnológicos sucessivamente disponíveis.

399
É justo destacar esse esforço, como é natural esperar a sua continui­
dade. O mundo não pára.

400 01 textos por Álvaro Siza


153.2008 06 02 Discurso (DHC)

Doutoramento Honoris Causa na Universidade Federal do Pará


no dia 20080602.
Como no rodar de um filme amado, a literatura, a música, a
poesia, o futebol, o cinema - o pensamento em curso no Bra­
sil - tornam-se mais do que nunca parte do que nos move.

Doutoramento no Pará

Estava há muito tempo nos meus planos, como algo indispensável,


uma visita a Belém do Pará
De algum modo, visitei Belém durante anos, transportado pelos relatos
do meu Pai, através dos olhos encantados do pai-menino e dos olhos
conhecedores do bisavô fotógrafo.
Quase posso dizer, assim, que estou regressando a Belém.
Pois nada melhor, para registar e transmitir o ambiente de uma cidade,
a sua identidade profunda, do que o olhar deslumbrado, directo e livre
de passado, de uma criança - ou o olhar constantemente exercitado
de um fotógrafo. Cedo conheci os dois.
Combiná-los, como um só, é a ambição quase inatingível do arqui­
tecto. Le Corbusier, que procurou incansavelmente conquistar essa
simultaneidade, esse olhar sincrético e abrangente, falava com desen­
canto do oposto: "des yeux qui ne voient pas".
A minha educação juvenil conheceu outras presenças determinantes
do Brasil, menos pessoais e mais globalmente influentes na cultura
portuguesa.
A internacionalização da arquitectura brasileira, de súbito dominante
em revistas e livros, atinge a escola do Porto através de um livro que
desperta a atenção do professor Fernando Távora e que bem conhe­
ceis: "Brasil Builds".
Lúcio Costa e depois Oscar Niemeyer visitam a Escola de Belas Artes
do Porto; e a divulgação da obra da brilhante geração de arquitec­
tos a que pertencem torna-se determinante na procura de referências
e apoios à transição de um ensino conservador e fechado a um en­
sino aberto ao mundo em transformação. Como no rodar de um filme

401
amado, a literatura, a música, a poesia, o futebol, o cinema - o pen­
samento em curso no Brasil - tornam-se mais do que nunca parte do
que nos move.
Voltando ao princípio: não podia nesses dias imaginar que a primeira
visita efectiva a Belém se deveria, em muito, ao registo e memória que
aqui se conserva da obra do meu bisavô, artista a um tempo aven­
tureiro e estável; e à honra que me é concedida pela Universidade
Federal do Pará ao nomear-me Professor Honoris Causa.
Estou emocionadamente grato. Há um sorriso invisível no ar.
Muito obrigado.

402 01 textos por Álvaro Siza


Agradecimentos

A Anabela Monteiro permanentemente ligada ao conhecimento da pro­


dução dos textos, sempre atenta e gentil.
A Chiara Porcu, memória viva do Arquivo de Álvaro Siza,
A Rute Gregório, com alguns valiosos contributos pontuais.

404 01 textos por Álvaro Siza


Índice geral dos Textos

001 A propósito do Edifício ..., 15


002 Restaurante junto ao mar, Boa Nova, 17
003 A cidade que temos, 19
004 Piscina de Leça da Palmeira, 23
005 Construir, 25
006 Oito Pontos, 27
007 Barcelona, 31
008 Fernando Távora, 33
009 A importância de desenhar, 37
010 A Villa Savoie revisitada, 39
011 Farmácia Moderna, 43
012 Materiais, 47
013 Desenhos de Viagem, 49
014 Brasil, 51
015 Pedem-me para falar do Chiado, 53
016 Santiago, 55
017 Todos os Natais da casa da Avó, 57
018 Outras Cidades, 59
019 Gregotti, 61
020 Chiado: o que é, o que será..., 63
021 Souto de Moura, 67
022 Manhãs entre os Deuses, 73
023 Quinta da Malagueira, 77
024 Miragaia, 79
025 FAUP: imagem exterior, 81
026 António Quadros, 83
027 Frank Lloyd Wright, 85
028 Pep Bonet, 87
029 Um primeiro trabalho de Adalberto Dias, 89
030 Exposição de Maria Antónia Siza, 93
031 Sobre a dificuldade de desenhar um móvel, 95
032 Outro italiano em Portugal, 97
033 James Stirling, 103
034 Kenneth Frampton, 105
035 A passagem do tempo, 107
036 Prefácio, 109
037 A propósito da arquitectura de Fernando Távora, 111
038 Quinta da Malagueira-Évora, 115
039 Xerardo Esteves, Alcaide de Santiago de Compostela, 117
040 Na Galiza, 119

405
041 Impressões de uma viagem ao T icino, visitando as casas de
Luigi Snozzi, 121
042 Doutoramento em Lausanne, 125
043 Távora, 129
044 Num Seminário de Projecto em Almeria, 131
045 Viver uma casa, 133
046 O desenho como memória, 137
047 Regresso ao Porto, 139
048 Ignorância de Lisboa, 141
049 Carlos Nogueira, 145
050 Barragan, 147
051 O exemplo do escritor, 149
052 Palermo é uma das minhas cidades, 151
053 Razões para expor a colecção do Centro Nacional de Fotografia
sobre mesas, 155
054 Apontamentos sobre a Recuperação da Baixa Pombalina, 157
055 Bibliotecas, 159
056 Sofás, 161
057 Doutoramento Honoris Causa, 163
058 Sobre a espontaneidade, 165
059 Sobre Pedagogia, 167
060 Rio de Janeiro, 171
061 Construir Ideias, 173
062 Cidade, 175
063 A ideia primária de especialização, 177
064 Gabriele Basílica 1, 179
065 Gabriele Basílica 2, 183
066 Exposição em Frankfurt, 185
067 Nota Autobiográfica, 187
068 Prefácio, 189
069 Manuel Gargaleiro, 191
070 Snozzi, 193
071 Doutoramento Honoris Causa em Coimbra, 195
072 Eduardo Souto de Moura, 197
073 Três obras de boa recordação, 199
074 Porto, 201
075 Prcemium lmperiale, da Japan Art Association, 205
076 óscar Niemeyer, 207
077 Alvar Aalto: algumas referências à sua influência em Portugal, 211
078 Escultura - o prazer do trabalho, 213
079 A propósito de uma cabeleira prateada, 215
080 A propósito de um velho artesão, 217
081 Desenho de Pormenor (detalhe, do francês détai/), 219
082 Abecasis, 221

406 01 textos por Álvaro Siza


083 Gabriele Basílica 3, 223
084 Leito e Água - Modernidade de Barragan, 225
085 Évora-Malagueira, 227
086 Essencialmente, 237
087 Muralha Portuguesa - Ceuta, 243
088 Pessoas sob um céu azul imaginado, 245
089 Café Moderno, 247
090 Exposição em Nápoles, 249
091 Desenhar um Swatch, 253
092 A Cidade em suspenso, 255
093 (Grandes) Armazéns do Chiado, 257
094 Oíza, 261
095 Construir em Maastricht, 263
096 A mesa, 267
097 Exposição - as Cidades de Siza, 271
098 Desenhos - Exposição Japão, 273
099 Objecto de Vidro, 275
100 Fragmentos de um Diário Quase Desesperado, 277
101 Fernando Távora, 281
102 Quinta da Conceição, 283
103 Mundo à parte, Mundo-parte, 287
104 Medalha Internacional das Artes da Comunidade de Madrid, 289
105 Sair de um sonho, 291
106 Doutoramento em Veneza, 293
107 Porquê um arquitecto e porquê eu?, 297
108 A maior parte dos meus projectos, 299
109 Latinidade, 301
110 Batem a palma das mãos, 303
111 O Fotógrafo, 305
112 Eusébio, 307
113 Nápoles, 309
114 Gregotti, 313
115 Álvaro Siza, 315
116 Projectar, 317
117 Exposição de Serralves Expor, 319
118 As Chaves da Cidade do Porto, 323
119 Casa da Música, 325
120 Serpentine, 327
121 Um desenho feito em segundos..., 329
122 Sobre a Casa Bahia, 331
123 Na morte de Fernando Távora, 335
124 Sahel-AI-Hiyari, 337
125 Grande Prémio Especial de Urbanismo de França, 341
126 Medalha de Ouro de Santiago de Compostela, 343

407
127 Nominaciones de Arquitectura de Granada, 345
128 Armanda Passos, 347
129 A casa, 349
130 Juan Rodriguez, 351
131 Beleza, 353
132 Cornellà, 355
133 Pavilhão Carlos Ramos, 357
134 Viagem a Marrocos, 359
135 Conjunto Habitacional da Bouça, 361
136 Memória Descritiva, 363
137 Arquitectura: Começar-Acabar, 365
138 Idealidades, 367
139 Le Thoronet, 369
140 óscar Niemeyer- por ocasião do 100° aniversário, 371
141 Só as pessoas estão alegres ou tristes, 373
142 A minha cadeira favorita, 375
143 óscar Niemeyer, 377
144 Prémio da Trienal de Arquitectura, 379
145 Ser Teórico, 383
146 Moderno e Brasileiro, 385
147 Casa em Canoas, 387
148 Evocação de Aida Rossi, 389
149 Bisavô Júlio, 391
150 Zoides, 393
151 Os azulejos de Fátima, 395
152 Maqueta- instrumento de trabalho e representação, 399
153 Doutoramento no Pará, 401

408 01 textos por Álvaro Siza


Índice remissivo dos Textos

APRESENTAÇÃO
026 António Quadros, 83
034 Kenneth Frampton, 105
036 Prefácio, 109
061 Construir Ideias, 173
068 Prefácio, 189
092 A Cidade em suspenso, 255
105 Sair de um sonho, 291
146 Moderno e Brasileiro, 385

ARQU ITECTU RA
001 A propósito do edifício ... , 15
002 Restaurante junto ao mar, Boa Nova, 17
004 Piscina de Leça da Palmeira, 23
015 Pedem-me para falar do Chiado, 53
020 Chiado: o que é, o que será... , 63
023 Quinta da Malagueira, 77
035 A passagem do tempo, 107
038 Quinta da Malagueira-Êvora, 115
054 Apontamentos sobre a Recuperação da Baixa Pombalina, 157
055 Bibliotecas, 159
073 Três obras de boa recordação, 199
082 Abecasis, 221
085 Évora-Malagueira, 227
089 Café Moderno, 247
092 A Cidade em suspenso, 255
093 (Grandes) Armazéns do Chiado, 257
095 Construir em Maastricht, 263
102 Quinta da Conceição, 283
117 Exposição de Serralves Expor, 319
120 Serpentina, 327
122 Sobre a Casa Bahia, 331
128 Armanda Passos, 347
132 Cornellà, 355
133 Pavilhão Carlos Ramos, 357
135 Conjunto Habitacional da Bouça, 361
136 Memória Descritiva, 363
139 Le T horonet, 369
141 Só as pessoas estão alegres ou tristes, 373

409
ARTE
026 António Quadros, 83
030 Exposição de Maria Antónia Siza, 93
049 Carlos Nogueira, 145
053 Razões para expor a colecção do Centro Nacional de Fotografia
sobre mesas, 155
064 Gabriele Basílica 1, 179
065 Gabriele Basílica 2, 183
069 Manuel Gargaleiro, 191
078 Escultura - O prazer do trabalho, 213
083 Gabriele Basílica 3, 223
088 Pessoas sob um céu azul imaginado, 245
111 O Fotógrafo, 305
130 Juan Rodriguez, 351

BIBLIOTECAS
055 Bibliotecas, 159

CASAS
045 Viver uma casa, 133
105 Sair de um sonho, 291
122 Sobre a Casa Bahia, 331
129 A casa, 349

CIDADES
003 A cidade que temos, 19
007 Barcelona, 31
014 Brasil, 51
016 Santiago, 55
018 Outras Cidades, 59
039 Xerardo Esteves, Alcaide de Santiago de Compostela, 117
040 Na Galiza, 119
046 O desenho como memória, 137
047 Regresso ao Porto, 139
048 Ignorância de Lisboa, 141
052 Palermo é uma das minhas cidades, 151
060 Rio de Janeiro, 171
062 Cidade, 175
063 A ideia primária de especialização, 177
074 Porto, 201

41 O 01 textos por Álvaro Siza


092 A Cidade em suspenso, 255
097 Exposição - as Cidades de Siza, 271
107 Porquê um arquitecto e porquê eu?, 297
113 Nápoles, 309
114 Gregotti, 313
118 As Chaves da Cidade do Porto, 323
126 Medalha de Ouro de Santiago de Compostela, 343

DESENHO
009 A importância de desenhar, 37
013 Desenhos de Viagem, 49
022 Manhãs entre os Deuses, 73
030 Exposição de Maria Antónia Siza, 93
031 Sobre a dificuldade de desenhar um móvel, 95
046 O desenho como memória, 137
057 Doutoramento Honoris Causa, 163
098 Desenhos - Exposição Japão, 273
100 Fragmentos de um Diário Quase Desesperado, 277
151 Os azulejos de Fátima, 395

DESIGN
031 Sobre a dificuldade de desenhar um móvel, 95
056 Sofás, 161
086 Essencialmente, 237
091 Desenhar um Swatch, 253
096 A mesa, 267
099 Objecto de Vidro, 275
142 A minha cadeira favorita, 375

DISCURSO
042 Doutoramento em Lausanne, 125
052 Palermo é uma das minhas cidades, 151
057 Doutoramento Honoris Causa, 163
071 Doutoramento Honoris Causa em Coimbra, 195
075 Prffimium Imperiais, da Japan Art Association, 205
097 Exposição - as Cidades de Siza, 271
103 Mundo à parte, Mundo-parte, 287
104 Medalha Internacional das Artes da Comunidade de Madrid, 289
106 Doutoramento em Veneza, 293
107 Porquê um arquitecto e porquê eu?, 297
109 Latinidade, 301

411
113 Nápoles, 309
118 As Chaves da Cidade do Porto, 323
125 Grande Prémio Especial de Urbanismo de França, 341
126 Medalha de Ouro de Santiago de Compostela, 343
127 Nominaciones de Arquitectura de Granada, 345
132 Cornellà, 355
144 Prémio da Trienal de Arquitectura, 379
153 Doutoramento no Pará, 401

DIVERSOS
136 Memória Descritiva, 363
138 Idealidades, 367
150 Zoides, 393

ENSINO
022 Manhãs entre os Deuses, 73
025 FAUP: imagem exterior, 81
042 Doutoramento em Lausanne, 125
043 Távora, 129
059 Sobre Pedagogia, 167

EXPOSIÇÕES
090 Exposição em Nápoles, 249
097 Exposição - as Cidades de Siza, 271
098 Desenhos - Exposição Japão, 273
117 Exposição de Serralves Expor, 319

FAMÍLIA
007 Barcelona, 31
011 Farmácia Moderna, 43
016 Santiago, 55
017 Todos os Natais da casa da Avó, 57
030 Exposição de Maria Antónia Siza, 93
149 Bisavô Júlio, 391

HOMENAGEM
033 James Strrling, 103
082 Abecasis, 221
094 Oíza, 261

412 01 textos por Álvaro Siza


101 Fernando Távora, 281
102 Quinta da Conceição, 283
106 Doutoramento em Veneza, 293
112 Eusébio, 307
123 Na morte de Fernando Távora, 335
133 Pavilhão Carlos Ramos, 357
140 Óscar Niemeyer - por ocasião do 100° aniversário, 371
143 óscar Niemeyer, 377
148 Evocação de Aldo Rossi, 389
152 Maqueta - instrumento de trabalho e representação, 399

MÓVEIS
031 Sobre a dificuldade de desenhar um móvel, 95
056 Sofás, 161
096 A mesa, 267
142 A minha cadeira favorita, 375

MUSEUS
090 Exposição em Nápoles, 249
117 Exposição de Serralves Expor, 319

OUTROS ARQUITECTOS
008 Fernando Távora, 33
010 A Villa Savoie revisitada, 39
019 Gregotti, 61
021 Souto de Moura, 67
027 Frank Lloyd Wright, 85
028 Pep Bonet, 87
029 Um primeiro trabalho de Adalberto Dias, 89
032 Outro italiano em Portugal, 97
033 James Stirling, 103
037 A propósito da arquitectura de Fernando Távora, 111
041 Impressões de uma viagem ao Ticino, visitando as casas de
Luigi Snozzi, 121
043 Távora, 129
050 Barragan, 147
070 Snozzi, 193
072 Eduardo Souto de Moura, 197
076 Óscar Niemeyer, 207
077 Alvar Aalto: algumas referências à sua influência em Portugal, 211
079 A propósito de uma cabeleira prateada, 215

413
084 Leito e Água - Modernidade de Barragan, 225
087 Muralha Portuguesa - Ceuta, 243
094 Oíza, 261
101 Fernando Távora, 281
106 Doutoramento em Veneza, 293
114 Gregotti, 313
119 Casa da Música, 325
123 Na morte de Fernando Távora, 335
124 Sahel-AI-Hiyari, 337
140 Óscar Niemeyer - por ocasião do 100 ° aniversário, 371
143 óscar Niemeyer, 377
144 Prémio da Trienal de Arquitectura, 379
147 Casa em Canoas, 387
148 Evocação de Aldo Rossi, 389

PEDAGOGIA
006 Oito Pontos, 27
009 A importância de desenhar, 37
011 Farmácia Moderna, 43
037 A propósito da arquitectura de Fernando Távora, 111
059 Sobre Pedagogia, 167
063 A ideia primária de especialização, 177
066 Exposição em Frankfurt ,185
086 Essencialmente, 237
103 Mundo à parte, Mundo-parte, 287
145 Ser Teórico, 383

POÉTICA
080 A propósito de um velho artesão, 217
081 Desenho de Pormenor (detalhe, do francês détail), 219

REFLEXÃO
005 Construir, 25
012 Materiais, 47
024 Miragaia, 79
027 Frank Lloyd Wright, 85
044 Num Seminário de Projecto em Almeria, 131
051 O exemplo do escritor, 149
058 Sobre a espontaneidade, 165
067 Nota Autobiográfica, 187
078 Escultura - O prazer do trabalho, 213

414 01 textos por Álvaro Siza


080 A propósito de um velho artesão, 217
081 Desenho de pormenor (detalhe, do francês detai/), 219
108 A maior parte dos meus projectos, 299
109 Latinidade, 301
110 Batem a palma das mãos, 303
115 Álvaro Siza, 315
116 Projectar, 317
121 Um desenho feito em segundos ..., 329
129 A casa, 349
131 Beleza, 353
137 Arquitectura: Começar-Acabar, 365
141 Só as pessoas estão alegres ou tristes, 373
145 Ser Teórico, 383

VIAGENS
013 Desenhos de Viagem, 49
014 Brasil, 51
016 Santiago, 55
040 Na Galiza, 119
101 Fernando Távora, 281
134 Viagem a Marrocos, 359

415

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