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Belo Horizonte
2019
Diogo Tadeu Souza Inácio
Belo Horizonte
2019
Dedicatória
Este trabalho é dedicado à memória de Aderval
Souza Nascimento e Delevinda Gonçalves
Souza, assim como, à memória de todos os
africanos que foram condicionados à
escravidão e de seus descendentes, invisíveis
ou não, que sobrevivem na diáspora, cujos
ensinamentos se fazem presentes em minha
trajetória.
Agradecimentos
Agradeço aos meus pais, pela disponibilidade,
compreensão e auxílio na construção e
entendimento da complexa teoria quântica e da
ciência jurídica.
Agradeço ainda a todos os meus amigos e
familiares, que são o sistema de referência
ético da minha existência.
RESUMO
This present work aims to understand the theory of Quantum Law in the face
of the absence of a state guardianship against the death of brazilian black youth.
Approximately 130 years after the abolition of slavery in Brazil, it’s imperative to
investigate the state action towards the black population, since the beginning of the
slave period, until the advent of the XXI century. Initially, the factual assumptions for
understanding Life are exposed, observing the relationship between nature and
being, as well as between being and movement. After that, the relations between
Quantum Mechanics and Law are exposed, in order to reach the understanding of
Quantum Law, which arises as a result of the complexification of the most evolved of
all living beings, the human being. It’s intended to understand that the bases of Law
originate from nature, being merely large-scale reproductions of the quantum
interactions developed by the cellular nuclei of each being. An explanation of the
authorizing and imperative character of legal norms is made, besides exposing what
she’s not. It’s also explained that legal experience can only be fully understood when
compared to the human being, which serves as a reference system for the creation
and application of the norm. Afterwards, a historical account of the African population
and their descendants is presented until the present period, showing the lack of
recognition and comprehension of the Brazilian State towards the black population.
Finally, it’s understood that the Brazilian Law is far from being a Legitimate Law, and
is full of invalid norms, since most of the Brazilian population was not taken into
account in the creating of the Brazilian legal norms. It’s concludes that the Brazilian
Law is an Artificial Law, far from understanding the movements and elements of the
brazilian black population.
1 – INTRODUÇÃO ......................................................................................................8
5 – CONCLUSÃO .....................................................................................................70
8
TELLES JÚNIOR demonstra que do interior da matéria bruta, originou-se a
matéria viva, e, na matéria viva, surgiu a consciência. Demonstra que a consciência,
a princípio, não se distinguia muito de um instinto, caracterizado pelas tendências
ditadas pelas necessidades fundamentais e primárias do animal. Lembra que ao
longo dos milênios, a consciência foi evoluindo gradativamente em formas sempre
mais organizadas de matéria viva, até se fazer em inteligência.
Percebe o autor que, o ser humano, que é o mais complexo de todos os
seres, é composto de trilhões de neurônios constituindo seu sistema nervoso central,
onde, aproximadamente, um quatrilhão de sinapses estabelecem a
intercomunicação entre tais neurônios. Não obstante, quinze bilhões de células,
extraordinariamente especializadas, com o emaranhado incompreensível de seus
axônios, dentritos e arborescências, fazem a conexão entre os centros nervosos
cerebrais do ser humano.
Aprofunda ainda que cada comando implica adesão a uma dessas vias. Neste
caso, como as vias são inúmeras, impossível é a predeterminação, em cada caso,
de qual delas será a escolhida. A efetiva adesão de um ser humano a uma dessas
vias, que são alternativas oferecidas pela complexidade do agente, é que se chama
de ato de escolha.
Logo, um sistema que construa o Direito dos seres, precisa ser dinâmico ao
ponto de alcançar suas escolhas subjetivas, ou seja, precisar ser próximo dos
elementos quânticos que constituem todos os seres, precisa ser Direito Quântico.
Isto porque, após o surgimento da Vida no planeta Terra e após a lenta evolução do
ser humano, surge, como elaboração polida do mais evoluído dos seres, a
Ordenação Jurídica da Convivência, o Direito Quântico propriamente dito.
Importante lembrar que os primeiros sinais da Vida, na matéria do mundo, se
deram através de manifestações de um ácido nucleico, no núcleo das células. Essas
manifestações eram legítimas mensagens genéticas, emitidas pelo ácido
desoxirribonucleico, o DNA; o mesmo tipo de mensagem que o DNA continua a
emitir permanentemente, sendo causa determinante de predisposições dos seres
vivos.
Tais mensagens são dependentes do impulso natural para a convivência, isto
é, dessas notáveis mensagens, depende, indubitavelmente, a vocação social do
9
gênero humano. Por este motivo, é cediço que a primeiríssima fonte da disciplina da
convivência se encontra situado no patrimônio genético do ser humano.
Verdade é que em todos os indivíduos da espécie humana, existe, por força,
uma mesma base genética, motivo pelo qual o ser humano se distingue dos outros
animais. Conquanto, na realidade concreta da existência, a influência significativa de
meios ambientes diversos, no correr da evolução do planeta Terra, causaram
mutações nos patrimônios genéticos coletivos, o que resultou na formação de
índoles e estados de consciência diferentes, em grandes e sortidas coletividades.
Essas mutações, na visão do autor, foram determinantes para a desigualdade
de caracteres dos povos e das nações, e para a propagação de costumes e
ordenações éticas peculiares. Não obstante, até o patrimônio genético de cada ser
em particular é causador de sua identidade própria, de seus pendores naturais, suas
peculiares predisposições.
Ademais, para se chegar a esta conclusão, é necessário a abordagem de
diversos conceitos atinentes à ordem e desordem, bem como, conceitos relativos à
noção de normalidade e à concepção de lei e de norma, o que nos leva ao
deciframento do sistema de referência de cada ser, transpondo pelas questões
culturais, éticas, de valores e juízos; do mesmo modo que se analisa os conceitos de
direito subjetivo e direito objetivo, e, principalmente, as peculiaridades da norma
jurídica e suas características permissivas únicas.
Por tal motivo, uma verdadeira compreensão do comportamento humano e da
liberdade, bem como, uma correta interpretação das leis que regem os
comportamentos e a liberdade, exige uma evidente consciência da interação natural
das predisposições genéticas e dos fatores circunstanciais do meio em que
transcorre a existência dos seres. Neste diapasão, o Direito Quântico é a intenção
deliberada de demonstrar que as leis, que são criações da inteligência, para a
ordenação do comportamento humano em sociedade, nada mais são do que
oportunas expressões culturais de implícitas, silenciosas e eternais disposições
genéticas inseridas no próprio ser humano.
O Direito Quântico também propõe uma necessária evolução do pensamento
jurídico, superando algumas referências baseadas em conceitos físicos, que são
considerados por grande parte da doutrina, alcançando os fenômenos e os
10
fundamentos jurídicos sob outro prisma, o da inteligência e da interatividade entre o
indivíduo e seu coletivo nas suas escolhas
O Direito Quântico tende a ser mais acessível e interativo a novas
interpretações e novos paradigmas, na compreensão de um ser, que por mais
complexo que já seja, torna-se mais complexo e perfeito ao longo do tempo.
1 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 17-47.
2 “As micropartículas são entidades perfeitamente definidas, que evoluem em porções de espaço
extremamente pequenas, com dimensões que medeiam entre um centésimo da milionésima parte de
um centímetro e um décimo de trilhonésima parte de um centímetro (10-8 a 10-13 cm). Para que se
tenha ideia mais exata do que significa esta última dimensão, basta lembrar que ela é igual a uma
das frações de um milímetro dividido um milhão de milhões de vezes.” Ibidem, p. 47.
3 “(...) é a quantidade de resistência, que um corpo oferece, a qualquer alteração de seu movimento
11
o autor passa a demonstrar que, apesar de serem subdivididas em partículas
elementares com massa em repouso e sem massa em repouso, todas as partículas
se encontram em contínua movimentação. Sendo que aquelas que se encontram em
repouso, somente são consideradas assim, quando comparadas relativamente, com
um sistema de referência. Observa ele:
Todas as micropartículas se acham em continuo movimento. Mas,
consideram-se em repouso, aquelas que não estiverem se deslocando,
relativamente a um sistema de referência. Se um passageiro, sentado sobre
um banco de trem, fosse uma micropartícula, diríamos que essa
micropartícula está em repouso dentro do vagão em movimento (dentro do
sistema de referência, constituído pelo trem). É evidente que todo repouso é
relativo. O passageiro sentado está em repouso, relativamente ao trem, mas
está em movimento, relativamente aos trilhos, sobre os quais o trem
caminha, ou aos postes, às árvores, às casas, à beira da estrada. 5
5 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 47.
6 Ibidem, p. 47-48.
12
que uma partícula e parte de um sistema de referência, ou seja, intermediário entre
essas duas dimensões7.
7 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 50.
8 “No ano de 1924, Louis-Victor Pierre Raymond de Broglie propôs, em sua tese de doutorado, o
conceito de ‘onda de matéria’. Sua ideia consistia no fato de que o comportamento dual onda-
partícula, característico das radiações eletromagnéticas, também pudesse ser aplicado à matéria.
Desta forma, assim como o fóton apresenta propriedades de matéria, partículas materiais (como o
elétron, por exemplo) também deveriam exibir características ondulatórias. (...) Inicialmente, a ideia
de de Broglie foi vista com certo ceticismo até que, em 1927, Clinton Davisson e Lester Germer
verificaram experimentalmente o caráter ondulatória do elétron. Em seu experimento, Davisson e
Germer observaram o fenômeno de difração de um feixe de elétrons (com energia definida) incidindo
sobre um cristal de Ni [níquel]. Neste caso, e assim como no caso da difração de raios-x por um
sólido, os átomos do cristal de Ni atuam como centros de difração os quais espalham o feixe de
elétrons incidentes em direções muitos características.” INSTITUTO DE FÍSICA DE SÃO CARLOS,
USP. Difração de Elétrons. Artigo online disponível em:
13
Pois bem, na chapa fotográfica, os elétrons ricocheteados produzirão uma
imagem de círculos ou anéis, alternadamente escuros e claros9.
<http://www.ifsc.usp.br/~lavfis/images/BDApostilas/ApDifraEletron/DifracaoEletrons_1.pdf>. Acesso
em 21 de set. de 2019.
9 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
14
coletivo. Só assim pode-se começar a considerar uma lei geral que estabeleça uma
tutela jurisdicional a todos.
A releitura destes conceitos aplica mudanças substanciais em diversas áreas
da física, chegando a ultrapassá-la, e a atingir as diversas outras ciências como as
ciências humanas. Apesar de que, não exclui o que a física tradicional acrescentou à
nossa compreensão de universo, visto que se trata de uma observação que se
manifesta no macrocosmo, mas só pode ser observada com mais apuro,
exclusivamente, no microcosmo.
13 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 58.
15
necessidade de se adentrar nos conceitos propriamente ditos de, ser e movimento,
sob a ótica da mecânica quântica.
Salienta o autor que, ao nos depararmos com os estudos sobre o movimento,
é verificável que todo ser é um movente14. Isto porque o movimento é o modo de
existência da matéria, pois esta é detentora de uma estrutura de micropartícula
móvel e flexível.
Desta forma, a argumentação de que o movimento é anterior ao ser, torna-se
uma argumentação incorreta, como salienta o autor:
Sustentar que o movimento precede o ser é sustentar que aquilo que se
movimenta não é, ou seja, que o que é não é. Ora, isto constitui negação do
princípio da identidade, e é um absurdo. Em consequência, o que podemos
afirmar, de acordo com a evidência, é que o ser suporta o movimento.15
que ele é, em si próprio. Não o transforma. Tal movimento exterior se denomina movimento local.”
Ibidem.
17 “Quando um ser é modificado no que ele é em si próprio, tornando-se diferente do que era
(tornando-se outro, mas não um outro) o movimento, que o transforma, verifica-se no interior dele.
Chama-se movimento qualitativo, se a mudança é de qualidade. Chama-se movimento quantitativo,
se a mudança é de quantidade.” Ibidem, p. 60-61.
16
O movimento de transformação pode ocorrer de duas maneiras distintas,
pode ser movimento qualitativo ou quantitativo18. O movimento qualitativo, ou a
alteração, pode ainda ser acidental ou substancial, ora vejamos sua exposição:
A alteração, movimento qualitativo, é alteração acidental, quando não
implica transformação da substância do ser que se movimenta. (...) A
alteração é substancial quando uma substância se transforma em outra
especificamente diferente.19
17
Merece atenção a velha teoria dos metafísicos sobre este assunto.
Como, a que título, pergunta os metafísicos, pode um ser se transportar ou
se transformar? Será, acaso, em virtude do que ele é? Não, evidentemente,
porque um ser, que é isto ou aquilo, é o que é, e já é tudo o que é. No que
ele é, pois, não está nenhuma razão para que ele venha a ser: ele já é. Uma
estátua já feita não é uma estátua a ser feita, disse Aristóteles.
Será, então, em virtude do que ele não é? Também não, evidentemente,
porque ‘não ser isto ou aquilo’ é uma pura negação, e uma pura negação é
igual a nada. Ora, do nada, nada se faz. Um bloco de mármore não é uma
estátua. Esta negação ou privação da forma da estátua não poderá fazer
uma estátua, do bloco de mármore.20
20 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 61-62.
21 “Segundo os metafísicos, nenhuma explicação do movimento é satisfatória se não se fundar no
próprio conceito do ser. Não há movimento sem ser que se movimente; não há movimento sem o ser
que o suporte. O movimento é do ser. Logo, só pode ser explicado pelo ser. As palavras ser e
movente são sinônimas. Jamais se saberá, portanto, o que é o movimento se se for buscar fora do
movente, fora do ser, a razão do movimento”. Ibidem, p. 63.
22 Ibidem.
23 “Negar o princípio da finalidade é negar o Cosmos”. Ibidem.
24 “Este é o motivo pelo qual os metafísicos afirmam que, na raiz de todo movimento, está o apetite, a
inclinação, a tendência do próprio movente. É para ‘saciar seu apetite’ que o ser se movimenta.
Omne esse sequitur appetitus, todo ser segue seu apetite”. Ibidem.
25 Ibidem, p. 63-64.
18
Assim, assegura o autor que um efeito sempre vai ser o contentamento de um
determinado apetite, sendo que o apetite é estabelecido em consonância com a
natureza do ser, em que o apetite se apresenta26. Assim sendo, continua o autor
que, há de se considerar o apetite não como propriedade do ser já feito, mas como
tendência para um ser futuro e possível, que também é o ser.
Igualmente, as possibilidades do ser se tornar outro, faz parte de sua
natureza, pois conforme salienta o autor, cada poder ou possibilidade de se tornar
outro, que existem dentro do ser, são aptidões para ser, um poder ser. São as
denominadas potências27, ativas (ou faculdades) ou passivas28.
Tais considerações resultam na divisão dos seres29 em duas vertentes: i)
Seres em potência (sentido não pleno de ser); ii) Seres em ato (sentido pleno de
ser). Ao analisar o Ser em potência, salienta o autor que os metafísicos observam
que este ser é uma realidade relativa, porque ele é “o próprio ser que será enquanto
ainda não é30”:
Observam os metafísicos que o ser em potência não é uma realidade
absoluta. Dele não se pode fazer nem sequer uma imagem. Não se pense
que ele seja algum ser incerto e vago, algum esboço ou gérmen da coisa. O
ser em potência é absolutamente nada de feito, nada se fazendo. Não tem
nenhuma realidade em si. A sua realidade lhe advém, exclusivamente, de
sua relação com o ser que ele será31.
Assevera o autor que, a realidade relativa do ser em potência não deve ser
compreendida como uma ficção de espírito. Os poderes dos seres são reais, ora
vejamos: “Em virtude de suas próprias naturezas, a bola tem um real poder de rolar;
26 “Num sentido amplo, os metafísicos dizem que os apetites são as aptidões, as capacidades de uma
natureza, sejam elas ativas ou passivas. Nesta lata acepção, é apetite tanto o apetite ativo dos olhos
pela visão, da asa pelo voo, da planta pela chuva, do animal pelo alimento, do homem pelo livro,
como o apetite passivo do mármore pela forma de estátua”. TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O
Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 64.
27“O apetite ou poder, considerado como propriedade de um ser, é potência desse ser. Mas,
considerado em relação ao efeito, que sua satisfação produziria, é um ser em potência: é o efeito que
ainda não é, mas que pode ser. Assim, o poder da semente de se fazer árvore é potência da
semente. Mas esse mesmo poder, considerado como árvore (que ainda não é, mas pode ser), é a
árvore em potência.” Ibidem, p. 65.
28 “As potências ativas são as que dispõem os seres para a ação, e se chamam faculdades. As
potências passivas são aptidões de receber formas que determinam os seres.” Ibidem.
29 “As considerações que vêm de ser feitas levam os metafísicos à grande divisão dos seres.
de espécies diferentes. Mas o ser em potência só é realidade enquanto potência de se tornar ser em
ato. Daí o velho axioma: potentia dicitur ad actum, a potência se define em razão do ato.” Ibidem, p.
65-66.
31 Ibidem, p. 66.
19
o ferro, de se aquecer; a semente, um real poder de ser árvore (...) 32”. Portanto,
conclui o autor que, é indiscutível a existência da potência dos seres33.
Noutro lado, ao analisar o ser em ato, o autor demonstra que os seres em ato
são os seres principais, visto que, em sua ausência, nenhum ser existe. Sendo que
é incontestável, a afirmação de que a passagem de uma potência para ato requer
um ser em ato.
Há de se ressaltar que a palavra ato, aqui empregada, está no sentido de ato-
ser34, ou seja, no sentido do ser perfeito, concluído na sua ordem. Dessa maneira,
aduz o autor que o ser em ato é o ser que encontrou a perfeição35, não uma
perfeição absoluta, mas a perfeição no sentido de o ser encontrar o seu estado
concluído, no interior da ordem ou categoria a qual ele pertence.
Contudo, devemos ter em mente que o ser em ato está misturado com o ser
em potência, porque, conforme já dito, o ser perfeito, além de ser aquilo o que ele é,
é também, aquilo que ele pode ser, é também um conjunto de poderes ou aptidões.
Ou seja, todo ser é vulnerável à mudança, tendo a aptidão de se tornar diferente
daquilo que ele é.
Assim como as micropartículas, que são dotadas da dualidade onda-partícula,
os seres são dotados da dualidade ato-potência ou perfeição-imperfeição. Sendo
que estes princípios (ato e potência ou perfeição e imperfeição) são princípios
intrínsecos do ser:
Estes dois princípios – ato e potência, perfeição e imperfeição – são
coprincípios do ser em ato. Mas, note-se, não são causas eficientes do ser;
não são princípios extrínsecos de espécie alguma. São, isto sim, princípios
que, pela sua união, compõem o que o ser é. São princípios intrínsecos do
ser36.
32 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 66.
33 “Se existem, podem ser considerados não apenas como propriedades do ser, mas como seres.
Ora, como seres, são seres em potência. Logo,os seres em potência, longe de serem meras ficções
do espírito, prendem-se à própria natureza das coisas. Se não se prendessem à própria natureza das
coisas, os poderes de uma coisa seriam coisas quaisquer em potência. Mas isto não é assim. O ferro
é, em potência, estátua, mesa, cama, mas não é, de forma alguma, homem, peixe, flor”. Ibidem.
34 “A palavra ato (do latim, actio) é a tradução de duas palavras gregas, criadas por Aristóteles
(Metafísica, IX, c, 3, 1047a, 32). A primeira significa ação, operação, ato de agir ou fazer. A segunda
designa o ser, mas o ser feito, perfeito, isto é, concluído na sua ordem, na sua categoria; designa, em
suma, o ser que se opõe ao ser em potência. No seu primeiro sentido, a palavra ato significa ato-
ação; no segundo, ato-ser”. Ibidem.
35 “A palavra perfeição deriva do adjetivo latino perfectus, a, um, que designa, como já dissemos, a
qualidade do que está concluído, acabado, completo. Perfectum é o particípio passado do verbo
perficere, que significa terminar, concluir, acabar de fazer”. Ibidem, p. 67.
36 Ibidem, p. 68.
20
Interessante perceber que dois ramos da ciência, completamente opostos
entre si, Física e Metafísica, sendo que o primeiro prioriza pelos resultados e dados
empíricos, no passo em que o outro menospreza o empirismo, alcançaram o mesmo
ponto, por caminhos diversos (a dualidade das micropartículas e dos seres). Ao
passo em que, a análise objetiva das dualidades metafísicas e físicas permitem uma
compreensão maior do todo, e confirma, empiricamente, aquilo que se pensou,
abstratamente.
Sendo cediço que um movimento livre é uma ação determinada pela
manifestação da vontade, conforme salienta o autor, há de se averiguar que a
manifestação da vontade, nada mais é do que um julgamento da inteligência, mas
um julgamento daquilo que é bom. Portanto, a vontade é movida pela inteligência,
mas, a inteligência só pode julgar os objetos dos quais ela detém conhecimento. Por
isso, esses objetos, que atuam como estímulos da inteligência, colocam em
movimento a inteligência e a vontade, sendo eles quem determinam a execução do
ato voluntário ou livre37.
Os metafísicos consideram confirmada, desta maneira, a asserção de que o
mais espontâneo dos movimentos só se verifica em virtude de uma causa
distinta do ser que se move38.
37 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 71.
38 Ibidem.
39 “O ferro, uma vez quente, é ferro quente perfeito, relativamente ao ferro quente em potência,
21
dos seres é que reside a causa do desenvolvimento41 das coisas, onde o novo
substitui o velho, em todos os reinos da natureza.
22
quantidade grande de elétrons atinjam, já difratados, a chapa fotográfica, a já
conhecida imagens dos círculos concêntricos, alternadamente claros e escuros,
aparecerá na chapa. Dessa forma, por mais que, nessa experiência, os elétrons
aparentam estar sendo movidos à esmo, sem qualquer ordem aparente, a exposição
demorada revela que não é isso que ocorre, sendo que há o aparecimento dos
círculos claros e escuros, que representam os anéis de difração dos elétrons.
Uma análise desta imagem revela dois fatos. Primeiro: há regiões da chapa
que os elétrons não tocam; são as regiões dos anéis claros. Segundo: as
regiões marcadas pelos elétrons, que são as dos anéis escuros, não se
enevoam de maneira uniforme, havendo anéis mais escuros mais escuros
do que outros. Tais fatos denotam o grau ‘preferência’ dos elétrons por esta
ou aquela região da chapa. Há regiões que não são atingidas: as dos anéis
claros. Das regiões atingidas, umas os são mais do que as outras. As
regiões dos anéis escuros são, evidentemente, as regiões mais atingidas
pelos elétrons.45
Por este motivo, salienta o autor que, do interior da matéria bruta, uma forma
desconhecida de liberdade parece ser originada pelo “indeterminismo operacional
dos corpúsculos quânticos”. Significa dizer que o fato de não podermos determinar o
45 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 78.
46 “A imagem demonstra, realmente, que o número de incidências nos diversos anéis escuros não é
um número constante. É um número que vai diminuindo à medida que os anéis vão se tornando
menos escuros, sendo certo que os anéis vão se tornando menos escuros à medida que seus
diâmetros aumentam. Quanto maior o anel (quanto mais distante do centro, quanto menos escuro),
menor é o número de incidências sobre ele”. Ibidem.
47 “Reveladoras experiências provam que tais leis são rigorosamente universais. Não são leis apenas
23
caminho escolhido pela partícula elementar difratada, é a indicação de sua
misteriosa liberdade.
Enfatiza o autor que, só podemos conhecer as partículas elementares depois
de observamos o seu comportamento, em diversas interações distintas. Por causa
dessas interações e de suas mútuas influências, as micropartículas da matéria se
organizam em grupos com propriedades determinadas, que se denominam
átomos49.
Sendo a complexidade uma condicionante da variedade de um ser, pode-se
compreender, conforme salienta o autor, que quanto mais complexo for um ser, mais
variadas serão as suas possibilidades de manifestação. Tendo em vista o número de
reações e de aprendizado acumulado existente em cada ser, contidos em suas
células nervosas50, resta a necessidade de se entender um pouco mais sobre a
liberdade humana, que se manifesta no ato de escolha de cada ser humano.
49 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 81.
50 “Em todos os animais pluricelulares, exceto nas esponjas, formaram-se células especializadas nas
funções de percepção dos objetos e de reação às manifestações do meio ambiente. Tais células são
chamadas células nervosas ou neurônios”. Ibidem.
51 Ibidem, p. 181-184.
24
Ora, movimento é mudança, mover-se é mudar. O que se acha em contínuo
movimento, muda continuamente. Em consequência (como tem sido
assinalado por pensadores diversos), nenhum ser individual pode existir,
pode ser o que é, pois no momento o que é o que é, já não é mais o que
era, não é mais o mesmo porque mudou, passou a ser outro, e, portanto, já
não existe como era. E este outro, como ser individual, não tem tempo de
existir, porque, no mesmo instante em que começa a existir, já não é mais
ele próprio, já mudou, passou a ser outro52.
52 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 183.
53 Ibidem, p. 184.
54 Ibidem, p. 184.
55 “Fácil seria demonstrar que as chamadas causas da morte – velhice, moléstias, lesões, traumas –
sempre são processos, lentos ou rápidos, por vezes instantâneos, de rompimento da unidade
estrutural do organismo vivo. Durante a atuação das referidas causas, a estrutura vai sendo aluída
por pressões anormais e por desgaste dos nexos entre suas partes e componentes. Desequilibram-
se as forças em conflito, no seu interior. Quebra-se a harmonia quântica, da qual sua vida era
manifesta expressão. Como consequência desse progressivo desmantelo, a morte vem chegando e,
afinal, se instala.” Ibidem, p. 187-188.
25
Significa dizer que todo ser existente é uma real harmonia quântica que resulta em
uma “disposição certa de seres56”.
Tal disposição certa de seres pode ser aludida como uma disposição
ordenada, sendo que “o Universo, tido como um conjunto de todas as coisas
existentes, só pode ser considerado como um todo ordenado”57. Neste sentido a
desordem é apenas uma falsa compreensão de uma ordem diferente. Uma ordem
que não nos agrada, ou seja, a desordem é uma ordem em desacordo entre a
ordem existente e a nossa ideia de ordem58. Exemplifica o autor, da seguinte
maneira:
É assim [que dizemos], igualmente, que os governantes, em regimes
totalitários, chamam de subversivos e de desordeiros, os adversários da
ordem ditatorial vigente, enquanto estes consideram subversivos os
causadores da desordem, precisamente, aqueles que defendem a ordem
vigente59.
Por esta razão não é incomum encontrar determinado juízo ou forças policiais
que vêem nos bailes funks promovidos nas comunidades do Brasil um motivo para o
“benefício do tráfico de drogas”, sem sequer levar em consideração outros fatores
preponderantes e determinantes de uma cultura que se viu condicionada a conviver
em locais nos quais a mão do Estado só aparece para condenar e limitar.
Para mais, não tão raro é conceituar a relação de amizade entre as pessoas
de determinada comunidade, seja através de mensagens, fotos ou demonstrações
públicas de afeto, como uma possível exaltação ao tráfico, conforme aduzido pela
Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que condenou
um DJ organizador de bailes funks, na cidade do Rio de Janeiro, por associação ao
tráfico de entorpecentes60.
Continua mostrando o autor, que o fato de se concluir que tudo está em
ordem, não significa dizer que tudo é normal, a dizer: “A ordem não se confunde
56 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 188.
57 Ibidem.
58 “O que a realidade nos ensina é que tudo quanto chamamos de ‘desordem’ compreende dois
elementos, a saber: 1. fora de nós, uma ordem (criada pela vontade humana ou resultante do
determinismo físico); 2. dentro de nós, a representação ou ideia de ordem, diferente da primeira, mas
que é a que nos interessa. (...) A desordem, portanto, é composta de duas ordens: uma, objetiva;
outra, subjetiva.”. Ibidem, p. 192
59 Ibidem, p. 193.
60 Confira os motivos que levaram desembargadores a determinar a prisão de Rennan da Penha. Por
61 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 193.
62 “Normal é a qualidade do procedimento ou do estado não extravagante, não contrário às referidas
concepções dominantes, ou seja, a qualidade do procedimento ou estado que se ajusta com padrões
éticos e modelos assentados, ou com persuasões da ciência sobre os movimentos e os modos das
coisas, no mundo físico.” Ibidem, p. 194
63 “Anormal é a qualidade do insólito, do incongruente com as referidas concepções, incompatível
com o que se acha firmado e estabelecido como padrão e modelo de comportamento e modo de ser,
ou colidente com as ‘certezas’ científicas sobre os movimentos e formas em geral”. Ibidem.
64 “Dá-se o nome de normalidade ao estado (a maneira de ser estável) que se caracteriza pela
gerações, mas que não alteram a sequência do DNA. Por muitos anos, considerou-se que os genes
eram os únicos responsáveis por passar as características biológicas de uma geração à outra.
Entretanto, esse conceito tem mudado e hoje os cientista sabem que variações não-genéticas (ou
epigenéticas) adquiridas durante a vida de um organismo podem frequentemente serem passadas
aos seus descendentes. (...) Existem evidencias científicas mostrando que hábitos da vida e o
ambiente social em que uma pessoa está inserida podem modificar o funcionamento de seus genes”.
FANTAPPIÉ, Marcelo. Epigenética e Memória Celular. Artigo disponível em:
<http://revistacarbono.com/artigos/03-epigenetica-e-memoria-celular-marcelofantappie/>. Acesso em
2 de nov. de 2019.
66 Raimundo Nina Rodrigues discutindo sobre a “realidade da inferioridade social dos negros”,
argumenta que alguns autores acreditavam que os negros eram inferiores dado o fato de que a sua
constituição orgânica, modelada pelo habitat físico e moral em que se desenvolveram, não
comportava uma adaptação à civilização das raças superiores, tendo em vista a ossificação precoce
das suturas cranianas que impediam o desenvolvimento do cérebro negro, resultando em uma
incapacidade revelada pelos negros, em todo o período histórico, para assimilar as civilizações dos
povos com quem mantinham contato e para criar uma cultura própria. Mais sobre o tema pode ser
encontrado em: RODRIGUES, Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Poeteiro Editor
Digital – Projeto Livro Livre. 2016, p. 226-227.
27
que, uma estrutura que não considera os elementos que a constituem, está fadada à
morte. Dessa forma, um Estado que não compreenda os movimentos e que não
promova o real equilíbrio das forças quânticas que o compõe, está destinado a ser
um Estado falho. Que a qualquer momento pode estourar-se em uma ruptura social
que resulte em um conflito civil que o condene à morte.
Neste enredo, salienta o autor que, em determinado grupo social ou em uma
sociedade inteira, as convicções generalizadas sobre o que é bom e mau, sobre o
que é conveniente e inconveniente, sobre o que é belo e feio, se articulam, de
maneira espontânea. Umas com as outras, resultando na possibilidade da vigência
simultânea de todas, sem as contradições que redundariam em sua recíproca
anulação. Resultando em um sistema de referência67 onde os comportamentos são
julgados normais ou anormais.
Conquanto, tais convicções generalizadas não são unânimes entre os
elementos quânticos constituintes da estrutura social. O que deságua em um real
conflito de convicções e de sistemas de referências. Em decorrência do conflito
entre sistemas de referências, em busca da manutenção e defesa de um
determinado sistema de convicções, tido como fundamental e dominante, toda a
sociedade se abastece de uma aparelhagem especializada. No qual a sua
constituição e funcionamento são dependentes da cultura do meio em que ela está
inserida.
Conforme elucida o autor, a força é sempre posta em serviço dessa
aparelhagem e a serviço do sistema de convicções tido como dominante. Porém, o
sistema dominante sempre se encontra ameaçado, quer seja pela pressão dos
interesses não atendidos, quer seja pela renovação dos ideais de equidade de
perfeição. Por esta razão, salienta o autor, que a força é o único recurso capaz de
assegurar a permanência do sistema dominante, ainda que este esteja em
desacordo com as convicções de seus elementos quânticos68.
28
Por isto, o autor demonstra que o “normal” e o “anormal” não podem ser
considerados como qualidades absolutas, como estruturas permanentes e estáveis
de determinada sociedade, ora vejamos:
O normal é normal relativamente ao sistema de convicções tido como
dominante; mas o anormal é, muitas vezes, normal, relativamente, a um
sistema de convicções que hoje ainda não é o sistema dominante, mas que
amanhã poderá vir a sê-lo69.
Por esse motivo é que a união de pessoas para se divertirem em bailes funks,
rodas de duelos de MC’s, campeonatos de skates, ou, até mesmo a constituição
física de determinado ser humano, podem ser compreendidas como condutas
anormais, e que devem ser repreendidas pelo uso da força, quando comparadas
com o sistema de convicções dominante, que não reconhece essas e outras formas
culturais. Assim como, as expressões e traços físicos de determinados seres vivos,
como elementos quânticos constitutivos de sua estrutura social.
69 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 199.
70 “São normas jurídicas, os mandamentos sobre os movimentos humanos que, em sociedade,
podem ser oficialmente exigidos e oficialmente proibidos. (...) Isto significa que somente são jurídicas,
as normas relativas às interações que a inteligência governante considera necessárias, para que uma
coletividade ou agrupamento humano seja, efetivamente, uma comunidade e, assim, atinja seus
objetivos”. Ibidem, p. 266.
71 “São mandamentos [as normas jurídicas], porque enunciam as ações que devem ser praticadas
sempre que se verificarem as hipóteses para as quais tais normas existem”. Ibidem.
72 “E são autorizantes [as normas jurídicas], porque autorizam os lesados pelo não cumprimento dos
mandamentos expressos nas normas, a exigir que os violadores cumpram esses mesmos
mandamentos”. Ibidem, p. 267.
73 Ibidem, p. 268
29
mandamentos, no interior dos grupos sociais, depende de sua vinculação
com a ordenação desses mesmos grupos 74.
Para mais, salienta o autor que não se deve ater à ideia de que a norma
jurídica seja atributiva, ou de que a norma jurídica atribui a quem foi lesado pela sua
violação, a faculdade de exigir o cumprimento dela, ou a faculdade de exigir, do seu
violador, a devida reparação pelo dano causado. Isto, por dois motivos essenciais: i)
ela não atribui a faculdade de coagir, porque não é detentora dessa faculdade; ii) ela
não atribui ao lesado a faculdade de coagir, porque ele já é detentor dessa
faculdade por natureza78.
74 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 270.
75 “Por exemplo, uma ordenação para fins ilícitos, por mais que seja normativa no interior da
associação dos infratores, será sempre considerada uma anormalidade, à luz da ordenação do
Estado. Será sempre uma contrafação do Direito.” Ibidem, p. 270.
76 Ibidem, p. 274.
77 Ibidem, p. 275
78 Ibidem, p. 285.
30
Em análise mais detalhada, é passível de percepção de que a norma jurídica
não tem, nela própria, a possibilidade de coagir alguém. Ou seja, levando-se em
consideração que coagir é agir, a norma jurídica não tem a capacidade de coagir,
porque a norma jurídica não age. Se a norma jurídica não tem a faculdade de agir, a
mesma não pode atribuir a alguém uma faculdade que ela não possui.
Da mesma maneira, a faculdade de coagir é uma potência79 própria do ser
humano, independentemente de qualquer norma, ou seja, a coação é uma potência
ativa dos seres humanos. É uma faculdade natural dessa espécie, uma faculdade
que não decorre do Direito, conforme demonstra o autor:
A norma jurídica não atribui ao credor, por exemplo, a faculdade de exigir o
que lhe é devido. Tal faculdade, o credor a possui, com ou sem norma
jurídica. É uma faculdade natural do ser humano, independente de
quaisquer normas. (...) Em suma, a norma jurídica é que autoriza o credor a
exercer coação sobre o devedor, para obter do devedor aquilo a que o
credor tem direito. E essa coação, quando assim autorizada, é ato lícito. É
ato ilícito, quando o credor o pratica sem estar autorizado por meio da
norma jurídica80.
Por estas razões, depreende-se que a norma jurídica não atribui faculdades,
que já são inerentes aos seres humanos. A norma jurídica declara, em nome da
sociedade, que o lesado, para os fins legais, está autorizado a efetivar a sua
faculdade de coagir. Compete à norma jurídica, estritamente, permitir ou proibir o
uso das faculdades humanas.
Reconhecido o seu caráter autorizante, compreende-se que a norma jurídica
é um autorizamento, sendo que, este autorizamento é causa da autorização de que
o lesado é titular. Noutras palavras, a autorização é do lesado e o autorizamento é
da norma81:
Em virtude do autorizamento das normas jurídicas, o lesado pode, com
autorização jurídica, completar sua interação com quem o prejudicou. Após
a ação, violadora da norma, a própria norma, exprimindo um imperativo da
sociedade, autoriza a reação correspondente82.
31
O autor aduz que toda pressão recebida por um corpo qualquer, sempre é
realizada por outro corpo, e não por este em si, ora vejamos:
Lembremos que a pressão, sofrida por um corpo qualquer, é sempre
exercida por outro corpo. O que atrai e o que repele um corpo é sempre
outro corpo. Não são as leis, obviamente, que exercem essa pressão. A lei
da gravidade, por exemplo, não atrai nem repele corpo nenhum. O que ela
faz é descrever, sinteticamente, a maneira pela qual a matéria atrai a
matéria83.
Assim, a norma jurídica é apenas uma fórmula verbal que não possui a
potência de coagir ninguém. A coação é, conforme ressalva o autor, um ato que
depende da vontade do lesado, que pode querer, ou não, exercê-la.
Enfatiza o autor que a coação não tem qualquer possibilidade de definir a
norma jurídica, tendo em vista que aquela é um elemento contingente do Direito, ou
seja, a coação só aparece no momento em que a norma jurídica é violada e pode
acontecer de a norma jurídica nunca ser violada, sendo este o estado natural do
Direito. Para mais, ainda que ocorra a violação da norma jurídica, a coação ainda é
contingente, visto que depende da vontade do lesado em exercer a coação, vejamos
sua exposição:
Contingente, duas vezes contingente, é a coação. Contingente, primeiro,
porque depende de haver violação da norma jurídica, e pode esta violação
não se verificar. Inúmeras são as normas jurídicas que não são nunca
violadas. Contingente, também, porque a coação depende de haver vontade
de exercê-la, por parte do lesado, e pode essa vontade não existir.
Inúmeros são os casos em que os lesados abrem mão de sua autorização
de exigir o cumprimento da norma violada84.
Por esse motivo é que se torna impossível, também, definir a norma jurídica
pela coatividade, que, também, é um elemento que não lhe pertence. A coação é um
elemento externo que vem em amparo à norma violada85.
Dessa forma, as normas jurídicas são imperativas porque são fórmulas para o
comportamento humano, são mandamentos pertencentes ao gênero das leis éticas.
Também são autorizantes porque trazem um autorizamento, para o lesado, que
passa a ser autorizado a exercer, por meios legais, a devida coação sobre o violador
da norma jurídica.
83 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 287.
84 Ibidem, p. 289.
85 Ibidem, p. 294.
32
Assevera o autor que, o conjunto de todos os imperativos autorizantes, isto é,
o conjunto de todas as normas jurídicas, estrutura o que se chama de Direito
Objetivo. É denominado de Objetivo, porque é composto de normas, que são objetos
(do latim ob-jectum = o que está colocado diante) aos quais as pessoas se sujeitam.
São objetos para os sujeitos de Direito86.
Inserido no interior do Direito Objetivo, há um grupo de normas que compõem
o Direito Positivo. Por Direito Positivo se entende a parte do Direito Objetivo
composta por “normas ditadas pelos governos políticos da sociedade 87”, ou seja, as
Constituições dos Estados, as leis, os decretos, os tratados internacionais, as
resoluções, os despachos, os regulamentos e mais tantos outros são exemplos das
normas do Direito Positivo.
Necessário se faz compreender que todo o Direito Positivo está incluído no
Direito Objetivo, porém, a maior parte deste não está inserido naquele. A título
exemplificativo salienta o autor o seguinte: “As normas contratuais em geral são
normas jurídicas do Direito Objetivo, mas não constituem normas do Direito
Positivo”.88
Do Direito Objetivo é que depende a “unidade do sistema jurídico nacional”89.
Portanto, a violação de um Direito Objetivo põe em risco todo o sistema jurídico de
determinado Estado, devendo ser rechaçada esse tipo de violação.
Sendo certo que a estrutura social é composta por diversas ordenações
jurídicas, um pluralismo inevitável em virtude da necessária existência de um
pluralismo de agrupamentos humanos que estruturam a sociedade global, é certo
também que a unidade da ordem jurídica depende da harmonização das ordenações
grupais com a ordenação feita das normas ditadas pelos governos políticos da
coletividade.
Continua o autor, argumentando que, não pode ser compreendida como
jurídica a norma contrária ao Direito Positivo dessa mesma sociedade, sendo que tal
norma deve ser considerada inválida90, podendo ser inconstitucional. Para mais, a
violação de norma não jurídica não autoriza o lesado pela violação dela ao se utilizar
86 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 295.
87 Ibidem, p. 295.
88 Ibidem, p. 296.
89 Ibidem.
90 “A norma que contraria norma hierarquicamente superior a ela, ou que, no caso da norma ser lei,
não for resultante de um processo legislativo regular, é norma inválida”. Ibidem, p, 323.
33
dos meios oficiais de coação, com o intuito de exigir o cumprimento da norma
conflitante.
Dessa forma, resta evidente que o Direito Positivo, conforme aduz o autor,
prevalece sobre os demais grupos de normas do Direito Objetivo, sendo que uma
norma só é jurídica, para o Poder Público, se ela não contraria o Direito Positivo.
91 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 297.
92 “Art. 2º. É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades. Reconhecendo a
93 Desfile do Arrasta Favela é cancelado em BH após abordagem policial. Portal G1, com informações
do MGTV 1ª edição, 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/minas-
gerais/carnaval/2017/noticia/desfile-do-arrasta-favela-e-cancelado-em-bh-apos-abordagem-
policial.ghtml>. Acesso em: 3 de nov. de 2019.
94 Bloco impedido de desfilar em BH faz ‘Abraço Negro’ nesta quarta. Portal G1 MG, 2017. Disponível
em: <https://g1.globo.com/minas-gerais/carnaval/2017/noticia/bloco-impedido-de-desfilar-em-bh-faz-
abraco-negro-nesta-quarta.ghtml>. Acesso em: 3 de nov. de 2019.
95 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
Por isso, uma faculdade, uma potência, pode se fazer ato, ou seja, ela pode
atualizar-se, tornar-se ato, sendo que, neste caso, ocorrerá o perfazimento da
potência no ato para o qual se dispunha:
O perfazimento da potência é o ato, o ato em que a potência se realiza. E
este é o motivo pelo qual a Filosofia afirma que o ato é a perfeição da
potência.101
97 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 298.
98 Ibidem, p. 299.
99 Aqui compreendido como ato-ser, para mais, verificar nota de rodapé nº. 34.
100 Ibidem, p. 300.
101 Ibidem.
36
desse mesmo ser em ato, faculdades que existem nele porque ele é o que
precisamente é.
Para mais, as faculdades dos seres humanos são as potências próprias
deles, potências que pertencem aos seres humanos porque os seres humanos são o
que são. Suas faculdades são suas propriedades, porém, não são propriedades no
sentido comumente empregado no direito, ora vejamos:
As faculdades do ser humano são, realmente, propriedades dele. Mas não
são propriedades, no sentido jurídico deste termo. Não podem ser
adquiridas e alienadas, pelos modos comuns do Direito. A expressão
propriedade, como aqui está sendo empregada, designa, apenas, o que é
próprio. É neste sentido, que se diz que as faculdades humanas são
propriedades do ser humano. Por exemplo, são propriedades dele, as
aptidões de ver, pensar, falar. Analogamente, é propriedade do pássaro, a
aptidão de voar102.
Todavia, o Direito não pode dar à nenhum ser vivo o que só a natureza pode
lhe oferecer. Ou seja, o Direito não tem métodos que atribuam aos seres vivos
qualquer tipo de faculdade, porque a faculdade se origina na natureza, que faz
destes seres o que eles efetivamente são. Por isso afirma o autor que “Nenhuma
faculdade humana é um Direito. Nenhum Direito Subjetivo é faculdade”103.
De fato, o Direito Subjetivo é uma permissão que a lei confere, retira e torna a
conferir, enquanto a faculdade permanece a mesma, vejamos um exemplo
introduzido pelo autor:
A mãe, que contrai novas núpcias, não perdia, obviamente, sua faculdade
de exercer o poder familiar, quanto aos filhos do leito anterior. No Brasil,
porém, a mãe perdia o direito de exercê-lo, porque o art. 393 do Código
Civil de 1916 lhe negava a permissão de usar a referida faculdade. O direito
se extinguia, por força da proibição legal, embora a faculdade
permanecesse. Tão real era a permanência da faculdade, que o citado
artigo do Código também dispunha que a mãe, tornando a enviuvar,
recuperava o direito que havia perdido. Logo, a mesma lei voltava a
conceder-lhe a permissão de novamente usar sua faculdade de exercer o
poder familiar. Tão real, em verdade, era a permanência dessa faculdade
(embora extinto o direito de usá-la), que a Lei n. 4.121, de 27 de agosto de
1962, alterou a referida disposição do Código Civil Brasileiro, e estabeleceu
exatamente o contrário do que dispunha o citado art. 392. Segundo essa lei,
‘a mãe que contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos do leito
anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer
interferência do marido’. No mesmo sentido, estabelece o art. 1.636 do atual
Código Civil.104
37
consubstanciado por lei, ou seja, quando permitido pela norma jurídica. Portanto, é
na permissão legal que reside o Direito Subjetivo de exercer o poder familiar.
Outrossim, conforme apresenta o autor, o Direito Subjetivo não é a “facultas
agendi”, e sim, é a permissão, conferida por norma jurídica, para usar a faculdade de
agir. O Direito Subjetivo pode ser compreendido como a permissão jurídica para o
uso da faculdade de agir.
Todo cuidado é pouco. É preciso ater-se para o fato de que somente podem
ser compreendidas como Direitos Subjetivos as permissões conferidas por meio de
normas jurídicas válidas105, noutras palavras, só são Direitos Subjetivos as
permissões que não podem ser impedidas por ninguém, de maneira lícita. Sendo
que, conforme já demonstrado acima, aquele que impedir o uso de um Direito
Subjetivo estará violando, frontalmente, a norma jurídica válida, configurando,
portanto, um ato ilícito.
Em verdade, constitui ato ilícito, toda ação ou omissão que viola norma
jurídica, impedindo ou perturbando o uso de um Direito Subjetivo (o uso de
uma permissão concedida por meio da norma jurídica violada) .106
105 “Se a norma é uma lei – se é norma jurídica do Direito Positivo – ela será válida se, além de não
contrariar lei que lhe seja superior, foi elaborada e promulgada com observância das formalidades
impostas pela Constituição, para a produção das leis, ou seja, se a lei foi elaborada e promulgada
com obediência do chamado processo legislativo, instituído na Constituição”. TELLES JUNIOR,
Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. São Paulo:
Saraiva. 2014, p. 323.
106 Ibidem. p. 307.
107 BRASIL. Constituição (1988), Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado,
1988.
108 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
38
foram atos ilícitos, a apreensão do celular do Conselheiro Municipal de Cultura e a
prisão da cidadã que lá se encontrava.
Para mais, sendo um ato ilícito o impedimento do uso de Direitos Subjetivos,
cediço é que é obrigação imposta à todos a possibilidade do uso de Direitos
Subjetivos. Ou seja, a toda permissão jurídica, corresponde uma obrigação das
outras pessoas em possibilitar esse uso.
Dessa forma, em resposta aos atos ilícitos citados acima, quais sejam, a
violação dos Direitos Subjetivos contidos no art. 2º do Estatuto da Igualdade Racial,
e nos incisos II, IX, XVI, LIV e LXI, e no caput do art. 5º, da Constituição Federal110,
é autorizado às pessoas lesadas pela referida violação, por força da norma
infringida, a exigir o cumprimento da obrigação correlata ao Direito, e a exigir a
cessação do cerceamento legal, com intuito de que as referidas pessoas possam
usar o Direito Subjetivo (a permissão) que lhe é concedida por meio da norma
violada.
Assim, como as pessoas lesadas pela Secretaria de Segurança Pública e
pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, conforme no exemplo já aduzido 111,
estão autorizadas a coagir os órgãos violadores, na forma em que a lei lhe faculta, a
cumprir a norma jurídica violada, além de obrigá-los a não impedir o uso do Direito
Subjetivo, pelos referidos órgãos obstados.
Evidente é, que a força estatal, no exercício de suas funções de garantir a
tutela jurídica a seus cidadãos, não deveriam dar motivo a esta causa. Resta a
dúvida sobre os motivos que levam o Estado a agir desta forma.
110 “Art. 5º.Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, á liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
(...) IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença;
(...)XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada
para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
(...)LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
(...)LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de
autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente
militar, definidos em lei.” BRASIL. Constituição (1988), Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília: Senado, 1988.
111 Conferir nota de rodapé n°. 96.
39
3.4 – O Ser Humano como Fonte Doadora de Sentido ao Mundo e a
Experiência Jurídica como Experiência Integral
Assevera o autor que o Direito Objetivo de determinada sociedade nem
sempre é coincidente com o Direito Objetivo que os elementos dessa sociedade
gostariam de ver vigorante. O Direito Objetivo que os elementos da sociedade são
desejosos de ver vigorante é sempre aquele que melhor possa fazer, do meio
ambiente em que eles vivem e em que todos usufruam de seus bens soberanos112.
Transformando-se os sistemas éticos de referência, devido a mudança dos
juízos da inteligência humana, sendo que estes dependem das condições em que
são feitos, transformam-se em conjunto as fisionomias das civilizações.
Como exemplo, é cabível citar o período Imperial do Brasil, onde a permissão
de ter escravos era um Direito Subjetivo, enquanto a coletividade admitia o regime
de escravidão e concedia tal permissão, por intermédio do Direito Objetivo. Durante
este regime os africanos e as pessoas negras e nativas, subjugadas à condição de
escravas, tinham a natureza jurídica de bens móveis semoventes, e eram
submetidas a um regime jurídico especial113.
Tais pessoas foram impedidas de formar família114, ter patrimônio próprio e de
poder transmitir suas posses a eventuais herdeiros, bem como de receber herança,
tendo em vista que constituíam o conjunto patrimonial de seu senhor 115. Conquanto,
no momento em que este regime fora abolido, devido a uma mudança sistemática
112 “(...) são bens intelectuais ou espirituais, são os únicos bens da perfeição especificamente
humana.
São bens que falam a todos os seres humanos, que a todos conclamam e a todos dirigem seu
chamado (...)”.TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento
da ordem jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 239.
113 CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP:
vínculos matrimoniais e familiar entre escravos, bem como da impossibilidade de exercício do pátrio
poder pelo cativo, à luz da lei civil. (...) Portanto, o senhor poderia alienar separadamente o casal de
escravos, bem como pais de filhos e as mães da sua prole, pois não existia nenhuma vedação legal,
até porque a lei vigente em nada protegia os cativos”. Ibidem, p. 182.
115 “Registre-se que, como o escravo não poderia constituir patrimônio próprio, também não poderia
transmitir alguma posse a seus herdeiros, uma vez que a lei não reconhecia a possibilidade de
possuírem um vínculo de parentesco. Se não poderia constituir nenhum patrimônio e nem ter
sucessores, na forma da lei, não existiria transmissão de herança do escravo falecido. Igualmente o
escravo não herdaria, nem teria aptidão para fazer testamento, pois ele integrava o conjunto
patrimonial de seu senhor (...)”. Ibidem, p. 184.
40
dos bens soberanos da coletividade da época116, ter escravos passou a constituir
crime.
Conforme demonstra o autor, ao discorrer sobre a inteligência do ser humano:
“A inteligência humana estará sempre condicionada por um fato inarredável: a
inteligência é sempre inteligência do ser humano”117. Ora, sendo própria do ser
humano, a inteligência deve ser correlata com o todo em que é parte, ou seja, a
inteligência é, necessariamente, definida pelo que o ser humano realmente é.
O ser humano real118, conforme apresenta o autor, é um fenômeno histórico,
é um ser no tempo, no passo em que, separá-lo de sua história é desconhecê-lo e
falsificá-lo. Cediço é que a história do ser humano, ou de qualquer outro ser vivo,
tem início com a história do ácido nucleico119, com o surgimento do DNA e do RNA.
Argumenta o autor, que o ser humano é o resultado de um coletivo de consciências
individuais120. Principalmente do que essas consciências individuais têm em comum,
em uma determinada circunstância histórica, devendo o ser humano ser
compreendido como um Ser histórico:
Esse eu mesmo é o eu construído pela sua história e, em parte, construtor
de sua história. É um eu moldado por um patrimônio genético e dotado de
uma inteligência com função ‘constituinte’, ativa e determinante, capaz de
originar ideias e de traçar os caminhos do ser humano. É um eu formado
pelas experiências já vividas e já sofridas por esse ser. É um eu ‘difratado’,
um eu que traça caminhos novos, em razão dos caminhos já percorridos.
Esse eu mesmo é um eu decantado pela história – pela história da qual ele
próprio é, em parte, uma das causas determinantes. É o eu cultivador e, ao
mesmo tempo, o eu produto da cultura. Em suma, é o eu histórico121.
116 “Imagina-se que a Abolição foi um ato súbito de poder da Regente Imperial em 1888. Essa visão é
equivocada: a abolição foi fruto de lutas sociais (não apenas a maciça mobilização da classe média
urbana, mas de setores mais humildes da sociedade), bem como da intensificação da resistência
escrava à dominação”. CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil.
1ª Ed. Jundiaí, SP: Paco, 2018, p. 290.
117 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
41
Conforme apresenta o autor, o ser humano é um ser vivo de imensa
complexidade, devendo ser compreendido como matéria e inteligência,
diferentemente da micropartícula, que é ser de imensa velocidade, devendo ser
compreendida como corpo e onda122.
Essa imensa complexidade do ser humano resulta, em uma de suas facetas,
no eu histórico, um eu que cria e é criado por sua cultura, e que não pode ser
compreendido sem as suas experiências já vivenciadas.
A exemplo disso, podemos levar em conta os descendentes dos escravos e
dos indígenas no Brasil.
Estes só podem ser compreendidos, realmente, se analisados todos os
aspectos históricos do período escravagista. Marcados por um processo de
escravização e de desumanização, iniciado pelos colonizadores europeus e mantido
por seus descendentes, a população indígena e negra atual não pode ser
conceituada sem o reconhecimento das alterações epigenéticas provocadas pelos
hábitos da vida e pelo ambiente social do período escravagista brasileiro.
Portanto, o eu real, o eu histórico de qualquer indivíduo negro ou indígena, é
o resultado dessas experiências, que provocaram mudanças significativas em seus
genes.
Ademais, o eu histórico é um eu permanente, mas não no sentido de se
permanecer o mesmo, o que tem de permanente no ser humano é justamente a
transformação e a mudança, ou seja, o ser humano é uma espécie em constante
mudança, em contínuo perfazimento, conforme demonstra o autor:
O eu histórico é um eu permanente, mas um eu permanente em contínuo
perfazimento. É o ser considerado na sua realidade concreta, no que ele é
por natureza. E o ser humano por natureza é um ser sempre tendido para
os bens que o perfazem, um ser ‘intencional’, um ser imantado pelo que ele
julga ser seu bem. Porque é da condição da espécie humana, perfazer-
se.123
122 “Devido a sua imensa velocidade, a micropartícula adquire propriedades que não são dos corpos,
como, por exemplo, a propriedade de difratar e de se conduzir, após haver contornado o obstáculo,
de maneira indeterminável e imprevisível. Por causa destas propriedades, a micropartícula não pode
ser considerada apenas como um corpo, mas deve ser tida como corpo e onda.
Devido a sua imensa complexidade, o ser muito evoluído, como o ser humano, adquire propriedades
que não são da matéria, como, por exemplo, a propriedade de escolher e a de se conduzir em razão
de ideais. Por causa destas propriedades, o ser humano não pode ser considerado apenas como
matéria, mas deve ser tido como matéria e inteligência”. TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O
Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 179.
123 Ibidem, p. 317.
42
Por isso não seria errado afirmar que a história do ser humano é causa e
efeito dele próprio. Sendo que é efeito de determinações da inteligência, e é causa
das formas culturais, que, em cada particularidade, define cada pessoa.
Por isso afirma o autor: “Bem pouco, ou nada, se conhecerá do ser humano,
se não tiver alcançado esta verdade124”. Desta forma, todas as coisas do mundo,
incluso os fatos sociais, têm um sentido para o ser humano. Não são meros dados,
que ocupam o espaço e tempo dentro do Universo, como objetos. Todas essas
coisas adquirem um sentido quando relacionadas com o eu, quando comparadas
com cada sistema de referência específico de cada pessoa.
As coisas do mundo devem ser compreendidas como objetos confrontados
com o eu histórico e apreciados pelo eu histórico, que será sempre a fonte doadora
de sentido ao Universo que o circunda. As coisas adquirem valor porque são
julgadas e avaliadas pelo ser humano, conforme apresenta o autor:
Para o próprio eu, é que o eu sujeita as coisas da natureza. Sujeita-as ao
seu conhecimento e sujeita-as, quando é o caso, aos seus interesses. Para
o próprio eu, é que o eu modela as coisas, se não a sua imagem, ao menos
em conformidade com seus fins. Em razão do eu, as coisas são julgadas,
são avaliadas e, em consequência, adquirem valor – o valor que o ser
humano lhes atribui.125
Com isso, cada pessoa humana passa a ser a referência de todos os valores,
porque é ela quem constitui o bem primordial capaz de ser referência para a
valoração dos demais bens126.
Por tal motivo é que a experiência ética em geral e a experiência jurídica, que
está inserida no mundo ético, não podem ser determinadas como um usual suceder
de fatos objetivos, nos quais o cientista foca o seu olhar. Por isso aduz o autor que:
“o direito como experiência não pode ser considerado como uma simples série de
fatos incluídos dentro de uma categoria estática, dentro de uma forma jurídica a
priori”127.
O direito, situado como experiência jurídica, deve ser compreendido em sua
integralidade, ou seja, como uma experiência integral, onde os fatos objetivos e
subjetivos são partes da experiência jurídica, e em conjunto se acham inseridos na
história do ser humano. A experiência jurídica deve ser sempre uma atualização
124 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 318.
125 Ibidem.
126 Ibidem.
127 Ibidem.
43
objetiva de um estado de consciência de determinada comunidade, ou seja, a
experiência jurídica é a vivência daquilo que uma estrutura social, por convicção
generalizada, qualifica de jurídico, em um determinado momento histórico em um
determinado lugar128.
Portanto, ao decidir sobre um caso específico, o juiz não deve se ater
somente aos critérios objetivos ali formulados, devendo ir além, devendo ir de
encontro à subjetividade de cada ser humano, devendo buscar o sistema de
referência de cada um, para só então, conseguir compreender as demandas de
cada parte, e decidir o caso específico.
A experiência jurídica só pode ser completa, ou compreendida, se for levado
em conta a medida de valoração de todas as coisas do mundo, o a priori, que é o eu
histórico, o ser humano real, ora vejamos:
O homem histórico, o eu real, embora não seja transcendental, é, sem
dúvida, um a priori, porque é condição subjetiva de compreensão da
experiência objetiva. É condição para a compreensão da experiência. É um
a priori, como é um a priori, o ‘peso’ padrão que se coloca num dos pratos
da balança para saber qual é o peso do objeto colocado no outro prato. (...)
O eu real a priori é a medida com que se avaliam as coisas do mundo. É a
referência para a determinação do sentido e do valor das coisas. Mas é um
eu que inclui toda a sua experiência. Um eu que é eu mais a sua longa
história.129
128 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 319.
129 Ibidem, p. 320.
130 Juiz que barrou lavrador por usar chinelo é condenado a pagar R$ 12 mil. Portal G1 PR, com
131 Nas escutas, juristas se revelam mais moristas do que o próprio Moro. STRECK, Lenio Luiz.
Revista Consultor Jurídico, 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-mar-21/lenio-
streck-escutas-juristas-revelam-moristas-moro>. Acesso em: 4 de nov. de 2019.
132 Juíza do RJ autoriza busca e apreensão coletiva na Cidade de Deus. Revista Consultor Jurídico,
135 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 321.
136 “Em 9 de julho de 1880, foi fundada a Sociedade Brasileira contra a Escravidão. A partir de então,
surgiram inúmeras associações comprometidas com o projeto abolicionista, que deram origem à
criação, em 12 de maio de 1883, da Confederação Abolicionista.
No mesmo período, na Província do Ceará, se iniciava um movimento político radical pela absolvição
da escravidão pautado na recusa dos jangadeiros, no final de janeiro 1881, em embarcar os escravos
nos navios ancorados no Porto de Fortaleza.” CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da
escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP: Paco, 2018, p. 293.
137 Utilizando como referência Evaristo de Moraes, André Barreto Campello, em seu livro Manual
não apenas arrecadando valores para obter cartas de liberdade – alforria –, mas também
incentivando e auxiliando o roubo e a fuga de escravos para Províncias em que a abolição já
houvesse ocorrido. Muitos escravos, principalmente nos redutos escravistas, estavam simplesmente
abandonando os engenhos e formando quilombos: ‘ As fazendas e os engenhos se despovoavam. As
fugas cada dia mais desfalcavam os contingentes do trabalho escravo’.” Ibidem, p. 299.
46
exigir e proibir certos movimentos, com o intuito de que a sociedade alcance sua
natureza instrumental139.
Em situações semelhantes a do exemplo supracitado, onde a sociedade
almeja a realização, ou não, de movimentos que são divergentes daqueles que são
oficialmente proibidos ou permitidos, a ordenação imposta deve ser compreendida
como um Direito Artificial140.
Este Direito é um Direito que não reflete a “realidade biótica da sociedade”141,
é um Direito fora de sincronia, ora corrompido, ora corruptor, que compelirá na
aparição de interações humanas142 indisciplinadas.
Assevera o autor que o Direito Artificial, ou seja, o Direito desconexo com a
realidade da estrutura social, é um pseudodireito, e às vezes, chega a ser uma
falsificação do Direito, ou em suas palavras, uma “contrafação do direito”. Sendo
que, por isso, enorme parte da vida social irá se movimentar à revelia dos
mandamentos jurídicos artificiais. Neste enredo, expõe o autor, sobre o Direito
Natural:
Um Direito autenticamente natural é sempre um conjunto de normas
jurídicas, ou seja, um conjunto de normas autorizantes. E toda norma
jurídica é norma declarada pela inteligência governante; é norma
promulgada por quem tem competência para promulgá-la.
Mas nem todo Direito promulgado é Direito Natural. Natural só é o Direito
promulgado que for consoante com o sistema ético de referência da
coletividade em que ele vigora.143
139 “Nas sociedades dos irracionais (das abelhas, formigas, térmitas, etc.) a defesa da espécie parece
ter sido sempre o objetivo soberano. Desinteressada e indiferente mantém-se a coletividade, ante a
sorte individual de seus componentes. Em verdade, nesses agrupamentos, os indivíduos são apenas
partes de um todo e, em consequência, integralmente submetidos aos interesses da sociedade
global.
Nas sociedades dos homens e das mulheres, porém, a inteligência submeteu a sociedade às
pessoas, isto é, fez da sociedade, um meio a serviço de cada ser humano. Nesses agrupamentos, a
sorte de seus componentes é o que, sobretudo, interessa. A sorte da sociedade também interessa,
mas na medida em que a sociedade é instrumento de cada ser humano”. TELLES JUNIOR, Goffredo
da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014,
p. 258.
140 Ibidem, p. 321.
141 Ibidem.
142 Goffredo argumenta que quando as pessoas vivem em sociedade, cada ser humano cria, ao seu
redor, um campo. Este campo é onde se dão as interações entre as pessoas e os conjuntos de
pessoas e onde um age sobre o outro. Nestes campos, que são as áreas onde as energias das
pessoas se manifestam, há variadas e incontáveis interações, onde as pessoas exercem suas
influências de maneira livre, umas sobre as outras, no interior de seus respectivos campos. Ibidem, p.
263-264.
143 Ibidem, p. 322.
47
ser oficialmente exigidos e proibidos, em consonância com o sistema ético de
referência vigente. Em outras palavras, o Direito Natural é aquele que se encaixa
com o sistema ético de referência de determinada coletividade, é o oposto do Direito
Artificial: “O Direito Natural é o Direito Legítimo”144.
Neste ponto, o autor salienta que é necessário estabelecer uma distinção
entre as normas válidas e as leis legítimas, porque “a divisão de normas em válidas
e inválidas não coincide com a divisão das leis em legítimas e ilegítimas”145. Ora, há
leis que mesmo válidas são ilegítimas, porque não coadunam com o sistema
dominante de convicções éticas, porque não se adéquam ao sistema ético de
referência da sociedade.
Compreende-se por norma jurídica válida a norma que não contraria outra
norma hierarquicamente superior a ela e que tenha sido elaborada e promulgada
pelo processo legislativo instituído pela Constituição146. Já a norma jurídica inválida
é aquela que contraria a norma hierarquicamente superior a ela, e/ou que, não tenha
sido resultante do processo legislativo regular147.
No tocante às leis legítimas, são aquelas normas jurídicas que estão em
harmonia com as concepções éticas dominantes da coletividade na qual está
inserida, ou seja, as leis que concordam com a “normalidade ambiente”, com o
sistema ético de referência de uma estrutura social. Só são legítimas as leis que
forem, de fato, leis de Direito Natural148. Já as leis ilegítimas são aquelas que
constituem uma anormalidade149 no quadro de concepção vigente, é a lei que não é
norma, que não é normal150, que é uma disposição do Direito Artificial, uma real
falsificação do Direito151.
O autor sustenta que a lei legítima tem proveniência, em regra, da fonte
legítima primária e secundária. A fonte legítima primária é a sociedade a que as leis
dizem respeito, ou seja, é o povo, ou uma fração do povo, ao qual as leis interessam
144 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 323.
145 Ibidem, p. 323.
146 Verificar nota de rodapé nº. 105.
147 Verificar nota de rodapé n°. 90.
148 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
Significa dizer que da interação dos seres humanos entre si, e destes com o
meio ambiente que o circunda, da convivência que impera na comunidade, é que se
manifesta a ideia dos mandamentos autorizantes que o legislador forja como leis
legítimas.
Já a fonte legítima secundária das leis, é o conjunto de legisladores que
compõem os órgãos legislativos do Estado. Porém, estes só são fontes legítimas
das leis enquanto estiverem representando, autorizadamente, a coletividade como
um todo. Conforme assevera o autor, o Povo é quem outorga os poderes
legislativos, e somente o Povo é detentor da competência para escolher os seus
representantes.
Por esse motivo é que as normas jurídicas, ou leis, que não advém do interior
da coletividade e não foram editadas em conformidade com os processos prefixados
pelos representantes do Povo, e sim impostas de cima para baixo, são ilegítimas,
conforme elucida o autor:
Há, portanto, uma ordem jurídica legitima e uma ordem jurídica ilegítima. A
ordem imposta, vinda de cima para baixo, é ordem ilegítima. Ela é ilegítima
porque, antes de mais nada, ilegítima é sua origem. Somente é legítima a
ordem que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do
Povo.153
152TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 324.
153 Ibidem, p. 325.
154 “As Ordenações Filipinas, de 1603, surgiram como o diploma legislativo mais próximo das
realidades do Novo Mundo e da exploração mercantilista das riquezas naturais das colônias. O
vocábulo ‘servo’ aparece totalmente substituído por ‘escravo’, relacionado apenas aos africanos”.
CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP:
Paco, 2018, p. 34.
49
limitar o crescimento dos gastos federais pelos próximos 20 anos 155, emenda que,
antes de aprovada, chegou a ser considerada uma “máquina brasileira de produzir
desigualdade”156.
Enfim, conclui o autor que toda ordem imposta é uma violência, sendo que,
em determinadas ocasiões, de convulsão social, pode ser reconhecida como um
remédio emergencial, conquanto, é um remédio que não pode ser utilizado por um
período de tempo prolongado, porque pode ocasionar males piores que os causados
pela doença157.
155 PEC do teto de gastos é promulgada no Congresso. Por G1, 2016. Disponível em:
<https://g1.globo.com/politica/noticia/pec-do-teto-de-gastos-e-promulgada-no-congresso.ghtml>.
Acesso em: 5 de nov. de 2019.
156 A PEC 55 (antiga 241), é a máquina brasileira de produzir desigualdade, afirma Tânia Bacelar.
50
Tal é o motivo pelo qual dizermos que a primeiríssima fonte da disciplina da
convivência se encontra situada no patrimônio genético do ‘animal
político’.160
160 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 326.
161 Ibidem.
162 Ibidem.
163 Ibidem.
51
para ordenar o comportamento dos seres humanos em sociedade, são oportunas
expressões culturais de implícitas, silenciosas e ininterruptas disposições genéticas
oriundas da natureza164. Ou seja, este particular do Direito surge do interior das
disposições quânticas dos seres vivos. Surge para instituir a Ordenação Jurídica na
convivência e harmonia humana.
164 TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem
jurídica. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 326-327.
165 PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010, p. 7.
52
do Saara. Naquela época, Portugal, graças à guerra da independência contra
Castela, se encontrava com sua população cada vez mais diminuta, sendo que a
chegada dos africanos, com experiência em pecuária, artesanato com madeira,
agricultura e mineração166, formava uma espécie de compensação dessa perda
populacional, abrindo mais espaços para a migração da mão de obra útil portuguesa
para a África e para as Índias167.
Conforme apresenta PINSKY, a população negra em Portugal, no século XV,
aumentara bastante, em atuação de atividades agrícolas e domésticas. No entanto,
surgiu uma nova forma de mercado, em flagrante contrariedade ao interesse da
aludida repovoação de Portugal, qual seja, o tráfico de escravos para outros
locais168.
Os comerciantes portugueses passaram a ver nos africanos uma espécie de
produto, que de certa forma se demonstrava oriundo de uma fonte inesgotável e
pronto pra ser utilizado, bastando que fossem capturados169. Dessa forma, os
portugueses passaram a se valer do lucrativo sistema de tráfico de pessoas, assim
como, os senhores de escravos passaram a se valer da lucrativa força de trabalho
africana para preencher suas lavouras, ora vejamos as considerações de PINSKY:
Verificamos assim que, ao lado do interesse português na presença do
escravo como fonte de trabalho e serviços, já encontramos o negro-
mercadoria, aquele que era tratado pelo comerciante da mesma forma que
a malagueta ou o marfim africanos. (...) Assim, se permitem abastecer
Espanha e Itália e, principalmente, as ilhas mediterrâneas produtoras de
açúcar e, em seguida, suas próprias ilhas atlânticas – Madeira, São Tomé,
Açores, e Cabo Verde.170
Dessa forma, PINSKY conclui que ao longo do século XVI já era possível de
se encontrar diversos elementos constitutivos da grande lavoura escravista, que se
desenvolveria mais tarde no Brasil. Seriam os traficantes de pessoas, os
proprietários, os escravos africanos – compreendidos como força de trabalho e
mercadoria – e as grandes lavouras açucareiras. No entanto, ainda faltava um palco
53
principal, onde tal atividade se desenvolveria de maneira desenfreada, sob o apoio
constante da Igreja Católica e da Coroa, local este que logo foi encontrado, em
1500.
Importante frisar que o processo de escravização dos africanos não se tratava
de pessoas que tinham a vontade de se dispor aos comandos dos portugueses, pelo
contrário, conforme PINSKY demonstra, se tratavam de indivíduos, que foram
trazidos, à força e contra a sua vontade, para laborarem no projeto da grande
lavoura. Continua dizendo este autor que, naquela época, existia um problema real
para os latifundiários: a ausência de mão de obra em grande escala, que fosse
obediente e de custo operacional baixo, para que o projeto da grande lavoura
pudesse se estabelecer de maneira adequada171.
Para mais, a exploração do Brasil não se deu de maneira metódica e racional,
conforme demonstra Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra “Raízes do Brasil”.
Na realidade, a exploração do Brasil se apresentou com abandono e desleixo,
afastada de uma vontade de construção social. Afirma este autor que os
portugueses, ingleses e espanhóis eram típicos aventureiros, com pouca disposição
para o trabalho, sendo o ideal do trabalhador, para eles, um ideal estúpido e
mesquinho172. Registrou este pesquisador:
Se isso é verdade tanto de Portugal como da Espanha, não o é menos da
Inglaterra. O surto industrial poderoso que atingiu a nação britânica no
decurso do século passado criou uma ideia que está longe de corresponder
à realidade, com relação ao povo inglês, e uma ideia de que os antigos não
partilhavam. A verdade é que o inglês típico não é industrioso, nem possui
em grau extremo o sendo da economia, característico de seus vizinhos
continentais mais próximos. Tende, muito ao contrário, para a indolência e
para a prodigalidade, e estima, acima de tudo, a ‘boa vida’.173
171 PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010, p. 13.
172 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 44.
173 Ibidem, p. 45.
54
cana, isto porque, a técnica europeia devastou as florestas tropicais, pela agricultura
e pela extração vegetal174.
Por outro lado, PINSKY assevera que o africano fora trazido para realizar o
papel de “força de trabalho compulsória, numa estrutura que estava se organizando
em função da grande lavoura”175, ou seja, o interesse principal dos produtores era
em produzir para o mercado, de forma que a lógica da grande lavoura só poderia ser
atingida com a fundamental mão de obra escrava. Assim, a grande lavoura, que já
se encontrava estabelecida no sistema mercantilista globalizado do século XVI, tinha
como destinatário principal o mercado mundial e como condição básica para
existência, a mão de obra escrava. Para mais, também poderia ser caracterizada
como um trabalho coletivo, que partia de um comando unificado, conforme aduz
PINSKY:
Realmente, a estrutura de poder na grande lavoura baseava-se na família
de proprietários – de terra e de escravos – sob cuja direção gravitavam
feitores, agregados e principalmente escravos. Na grande lavoura, horários,
tarefas, ritmo e turnos de trabalho eram todos determinados pelo
proprietário e sua equipe. Para aqueles que têm o (bom) hábito de
comparar, observe-se aqui a flagrante distância entre essa forma de
organização de trabalho centralizada e a organização feudal, na qual
pequenas unidades produtivas de caráter familiar dispunham de relativa
autonomia.176
174 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 49.
175 PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010, p. 13.
176 Ibidem.
177 CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP:
Paco, 2018.
178 Ibidem, p. 15.
55
paternalista179, e no fato de não houvesse um direito positivado que gerasse
fundamentos jurídicos para exercer o direito de propriedade sobre outros seres
humanos, o que se demonstra uma inverdade, tendo em vista que, apesar de não
ter existido um Código Preto180 no Brasil, a escravização dos africanos foi amparada
por uma legislação, que mais tarde, fora incorporada pela Constituição de 1824,
conforme é asseverado por CAMPELLO:
Por fim, também incorreta é a visão de que não havia um direito positivo
que possibilitasse a construção de fundamentos jurídicos para a relação de
propriedade sobre outro ser humano. Nunca houve, de fato, um Código
Negro no Brasil, como em vigor em outras localidades da América, isto é,
um diploma jurídico púnico que viesse a regulamentar o sistema de trabalho
escravo, o tráfico, os órgãos administrativos, bem como os castigos,
estabelecendo sanções e multas por seus descumprimento. Entretanto, isso
não significa que não existia um arcabouço jurídico que viesse a
regulamentar as complexas situações decorrentes das relações humanas
presentes na exploração da mão de obra escrava, bem como seus
conflitos.181
Portanto, conforme salta aos olhos, a escravidão aqui retratada tinha o apoio
da Coroa Portuguesa e, posteriormente do Império do Brasil, que legitimavam e
dispunham de diversas normas jurídicas para fundamentar seu exercício. Fato é,
que se tinham normas jurídicas especificamente direcionadas aos escravos, como
as Ordenações Filipinas182; a Constituição de 1824183; a Lei Euzébio de Queirós, de
179 “Igualmente distorcida é a perspectiva de que a escravidão era passivamente aceita pelos
escravos, urbanos ou rurais, e que tais relações se assentavam em um ambiente de cordialidade
entre senhores e servos, sempre de forma paternalista ou de franca e respeitosa camaradagem.
Longe disso, a escravidão era uma relação social que, por meio da violência (potencial ou efetiva,
mas sempre presente), brutalizava toda a sociedade, tornando-a quase insensível a um problema que
atingiam milhões de indivíduos que viviam no cativeiro, muitas vezes ilicitamente”. CAMPELLO, André
Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP: Paco, 2018, p. 18.
180 Segundo Silva Júnior (2013, p. 155), “uma coletânea de regulamentos compilados até o presente,
realidades do Novo Mundo e da exploração mercantilista das riquezas naturais das colônias. O
vocábulo ‘servo’ aparece totalmente substituído por ‘ escravo’, relacionado apenas aos africanos. (....)
Neste diploma legal, as normas sobre escravidão estavam agrupadas no Livro IV (direito civil
substantivo) e no Livro V (direito penal e processual criminal) das Ordenações Filipinas”. Ibidem, p.
34.
183 “A escravidão não estava prevista, expressamente, em nenhum dos dispositivos da Constituição
Imperial de 1824. (...) Dispor sobre a escravidão em uma Constituição liberal seria uma contradição,
entretanto, o legislador constituinte encontrou uma saída: implicitamente, fez referência aos cidadãos
brasileiros libertos, isto é, aqueles que emergiram da capitis diminutio máxima [perda da liberdade],
passando a gozar de seu status libertatis, mas sem alcançar o mesmo status civitatis dos cidadãos
brasileiros ingênuos. Tal conclusão pode ser ratificada pela leitura da Constituição de 1824, em seu
art. 6º, § 1º, a qual classificava os cidadãos brasileiros em duas categorias, os ingênuos e os libertos”.
Ibidem, p. 56-57.
56
1850184; a Lei do Ventre Livre, de 1871185; a Lei do Sexagenário, de 1885186; e o
Código Criminal do Império e várias outras normas jurídicas.
Para mais do apoio Estatal, o instituto jurídico da escravidão recebia amplo
apoio e incessante incentivo da Igreja Católica, a qual apregoava que a escravidão
era para o próprio bem do escravo e para a salvação de sua alma, sendo que o
escravo era obrigado a abdicar de seu nome, religião e qualquer outro aspecto
cultural que remetesse à sua origem187, conforme assevera PINSKY, “o escravo não
apenas podia ser católico: ele tinha que sê-lo”188. Ademais, a Igreja Católica
mantinha presente e constante atuação no papel de ensinar mansidão e
conformismo ao escravo, obrigando-o a compreender o seu senhor como um pai,
ora vejamos sua compreensão:
O senhor deveria ser entendido como um pai, severo e duro, temido e
respeitado, que tudo fazia para o bem dos seus filhos. (...) Tanto em Cuba,
como no Brasil, a par da exploração material, acenava-se com a igualdade
espiritual; conviviam o fato da miséria terrena e o ideal do paraíso celeste;
argumentava-se com o infinito àqueles que só enxergavam suas cadeias;
acenava-se com um assento à mesa de Deus aos miseráveis que engolia sua
comida nojenta de cócoras; falava-se de plenitude aos carentes, de calor aos
que tinham frio, de alegria aos tristes, de alívio aos sofridos.
Tudo isso, porém, só poderiam obter se cumprissem o seu dever. Porque a
virtude do homem – dizia a religião para o escravo – estava em trabalhar duro
para o seu sustento; em conformar-se e se manter manso (Cristo não o
fora?); em submeter-se à ordem vigente, em respeitar o senhor e arrepender-
se das faltas – mesmo pequenas – que eventualmente cometesse.”189
184 “Em síntese, o tráfico de escravos foi equiparado à pirataria prevista no Código Criminal do
Império. Os escravos apreendidos seriam ‘reexportados’ para o porto de origem ou para qualquer
lugar fora do império, por ato discricionário do poder público. Enquanto esse ato de ‘reexportação’
não era concretizado, eles eram empregados em trabalho debaixo da tutela do Governo, não sendo
em caso algum concedido os seus serviços a particulares”. CAMPELLO, André Barreto. Manual
jurídico da escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP: Paco, 2018, p. 123.
185 “Por tais dispositivos [Lei nº. 2.040, de 28 de setembro de 1871], a aquisição do status libertatis
não mais estava condicionada à manifestação de vontade do senhor: a lei concedia ao escravo o
direito à alforria se o seu pecúlio fosse suficiente para indenizar o seu senhor, ou mesmo concedia a
possibilidade de a indenização se adimplida por meio de trabalho. a justificativa para a indenização
decorre, claramente, do dispositivo no § 22, do art. 179, da Constituição de 1824, que prescreve a
exceção ao direito à propriedade”. Ibidem, p. 177.
186 Segundo Mattoso (2016, p. 202), “A lei de 28 de setembro de 1885, ‘Lei do Sexagenário’, que
libertava os adultos com mais de 60 anos, previa também que o escravo alforriado devia indenizar
seu senhor e que, se fosse incapaz de fazê-lo em dinheiro, deveria servi-lo por mais três anos se
tivesse entre 60 e 62 anos, os outros, até 65 anos. Sabe-se que em 1887, na Província de São Paulo,
2.553 escravos foram libertados em aplicação da lei e, entre eles, 2.503 obtiveram a liberdade com
cláusulas que impunham um tempo de serviço muito mais longo do que aquele estipulado pela lei”.
Apud ibidem, p. 317.
187 “O escravo era batizado logo que chegava ao seu local de trabalho – fazenda ou cidade –
recebendo um nome ‘cristão’. Devia esquecer a forma pela qual era chamado no seu lugar de origem.
A atribuição de um novo nome e o batismo representavam a transformação do cativo em escravo, isto
é, o início do trabalho compulsório”. PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto,
2010, p. 31.
188 Ibidem, p. 29.
189 Ibidem, p. 30.
57
Outrossim, importante é salientar, que a grande atividade lucrativa do Brasil,
durante o período da escravidão, não era a utilização de mão de obra escrava, e
sim, o próprio tráfico de escravos em si, conforme apresenta CAMPELLO190.
Continua dizendo este autor que chegou um período em que o tráfico de escravos
começou a consumir a própria atividade produtiva. Vez que os proprietários
importadores se viram em fronte a dívidas astronômicas, tendo que hipotecar as
suas terras e as perdendo para os traficantes de escravos, enquanto estes sugavam
as riquezas oriundas da atividade produtiva para financiar o próprio tráfico. Ademais,
o Estado era detentor de lucros, que eram gerados pelos impostos e tributos que o
mesmo impunha sobre o tráfico de escravos.
Isto se defere do fato de que, conforme elucida CAMPELLO, o preço de um
escravo não era um preço acessível para todas as pessoas, sendo que tinha um
valor de mercado muito alto no comércio jurídico do Brasil Imperial, sendo
necessário um grande investimento de capital, como ele registra:
Duas dezenas de escravos homens, na faixa de vinte anos, aptos ao
trabalho braçal, valiam tanto quanto um engenho inteiro, com a casa grande
e toda sua mobília, na Zona da Mara de Pernambuco. Quanto mais o
escravo estivesse apto, seja pela idade ou por saúde, ao trabalho (e a
procriação), maior o seu valor. Para se fazer uma comparação, por volta de
1870, uma imagem trabalhada em ouro de um santo padroeiro de uma
Paróquia, em Paudalho, na Província de Pernambuco, era estimada em
quatro mil-réis; a um escravo crioulo de 17 anos atribuía-se um valor de
mais de um conto e duzentos mil-réis.191
190 CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP:
Paco, 2018, p. 81.
191 Ibidem, p. 149.
192 “Art. 1º As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras encontradas
nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriais do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja
importação é proibida pela Lei de sete de novembro de mil oitocentos e trinta e um, ou havendo-os
desembarcado, serão apreendidas pelas autoridades, ou pelos Navios de guerra brasileiros, e
consideradas importadoras de escravos.
Aquelas que não tiverem escravos a bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porém
que se encontrarem com os sinais de se empregarem no tráfico de escravos, serão igualmente
apreendidas, e consideradas em tentativa de importação de escravos”. Ibidem, p. 122.
58
Nordeste do Brasil para os centros cafeicultores do Sudeste193, de maneira que foi
extremamente vantajoso para as finanças públicas brasileiras, em vista dos pesados
tributos que começaram a incidir sobre o tráfico interprovincial, conforme é elucidado
por Luís Luna, que fora citado por CAMPELLO:
Esse tributo de competência tributária do Município neutro e das
Províncias, poderia ser instituída para incidir sobre a compra e venda
de escravos, em operações inter ou intraprovinciais. Em São Paulo,
com a fixação da alíquota de 5% sobre a operação, chegou-se a uma
receita equivalente a 7% da renda global. Por essa razão, também
não existia interesse para a abolição, já que a manutenção da
escravidão era um negócio ótimo para s cofres públicos.194
Disto se infere a total falta de tutela do Estado para com os negros, que eram
reconhecidos como cidadãos somente no momento em que figuravam como agentes
ativos de algum crime qualquer, sendo revelada para a população negra somente a
face acusatória e punitiva do Estado, com a evidente intenção de negação e de
impor inferioridade aos negros.
Além de que, se conclui que o instituto jurídico da escravidão era composto
de duas frentes, uma jurídica e estatizada, e a outra religiosa e cultural. Ademais,
193 CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil. 1ª Ed. Jundiaí, SP:
Paco, 2018, p. 124.
194 Apud Ibidem, p. 157.
195 Apud Ibidem, p. 223-224.
59
levando-se em conta os ensinamentos de Goffredo Telles Júnior, é passível de
percepção de que, em um sentido amplo, ambas as frentes estão inseridas no
mundo da cultura, o que nos leva a compreender que o processo de instauração e
de manutenção da escravidão no Brasil foi uma verdadeira tentativa de destruição e
de negação de toda uma cultura continental, visto que os africanos que foram
submetidos à escravidão eram de várias nações diferentes196.
Um dos exemplos mais marcantes de tentativa de destruição e de negação da
cultura africana é localizado em Benin, mais especificamente em seu litoral marítimo,
local que era conhecido como Costa dos Escravos, devido ao comércio ativo
praticados pelos portugueses em 1472. Neste local fora construído um forte,
denominado Forte de São João Batista de Ajudá, assim como o Portal do Não-
Retorno e a Árvore do Esquecimento197.
O Portal do Não-Retorno, que era voltado para o oceano, era a última parada
dos escravos antes de irem para as Américas, e oferecia a última visão da África aos
cativos. Já a Árvore do Esquecimento era uma árvore que era considerada mágica
pelos africanos, de forma que acreditavam que ela detinha o poder de fazer as
pessoas esquecerem seus nomes, suas família, sua história e sua terra. Os
africanos eram obrigados a darem voltas (nove voltas, os homens; sete voltas, as
mulheres) em torno da Árvore do Esquecimento para que a mesma os fizessem
esquecer de sua história.
Assim, posto que o sistema escravista desumanizou milhões de seres
humanos, com diversos argumentos jurídicos e morais, sob as vistas de uma
sociedade que aceitava e se apoiava neste sistema, é possível compreender que o
196 “Dessa forma poderemos notar uma grande variedade de grupos negros trazidos ao Brasil pelos
traficantes (portugueses e ingleses, os mais expressivos já no século XVIII). Se temos os guinéus e
os angolanos, temos também os bantus, os sudaneses, os minas, entre outros. A multiplicidade de
etnias e clãs era decorrente não apenas do processo de apresamento do negro que, como vimos,
variava com o tempo; decorria também do interesse que os senhores tinham em ter escravos de
diferentes origens; isso a seu ver, representaria a diversificação de hábitos, língua e religião,
dificultando a integração da população escrava e o surgimento de qualquer espécie de organização
conduzida por eles”. PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010, p. 17.
197 “O portal, com cerca de 15 metros de altura, tem, na parte superior do arco, figuras de homens
198 CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil.” 1ª Ed. Jundiaí, SP:
Paco, 2018, p. 326.
199 Ibidem, p. 327.
200 Ibidem, p. 330.
201 Ibidem.
61
população negra202. De fato, a escravidão havia acabado, mas a desigualdade social
não.
O período festivo que se deu em sequência à promulgação da Lei Áurea 203,
logo fora substituído pela realidade. Primeiro com a promulgação, por Rui Barbosa,
do Decreto de 14 de dezembro de 1890, que determinou a queima dos arquivos
referentes à escravidão dos africanos e de seus descendentes, sob a justificativa de
se apagar da história brasileira o instituto da escravidão dos africanos e de seus
descendentes e de evitar futuras indenizações dos senhores de engenho.
Importante se faz registrar a citação de um trecho do voto do Ministro Marco Aurélio
de Mello no Habeas Corpus nº 82.424/RS:
Diante dos horrores da escravidão negra no Brasil, Rui Barbosa, à época
Vice-Chefe do Governo Provisório e Ministro da Fazenda, determinou, por
meio do Decreto de 14 de dezembro de 1890, que se destruíssem todos os
documentos referentes à escravidão/Intentava com esse gesto apagar, da
história brasileira, o instituto – como se isso tivesse o condão de fazer
desaparecer da memória nacional a carga do sofrimento suportada pelo
povo africano e pelos afrodescendentes – e evitar possíveis pedidos de
indenização por parte dos senhores de engenho.
O ilustre baiano não se apercebeu que determinação em tal sentido, além
de imprópria a alcançar o fim desejado – apagar a mancha da escravidão
feita a sangue no Brasil -, subtrairia às gerações futuras a possibilidade de
estudar a fundo a memória do País, o que as impediria, por conseguinte, de
formar um consciente coletivo baseado na consideração das mais diversas
fontes e de emergir do legado transmitido – a ignorância.204
Ficou pior, com a entrada da população negra em uma sociedade que jamais
quedou o olhar sobre ela, a não ser o olhar punitivista e sancionador, que sempre
lhes desprezou e subjugou205.
Para mais, a população negra passou a migrar para outras áreas,
principalmente entre os negros mais jovens, seja pela falta de opção de trabalho,
seja por optarem por se afastarem do local onde eram aprisionados e tratados como
objeto206.
Como se não bastasse a falta de tutela do Estado, já Republicano, para com
os negros recém-libertos, os grandes proprietários de terra, que não estavam em
202 Artigo, À própria sorte. Revista Momentos da História, Ano 2, nº 8. Editora Alto Astral, 2019, p. 20.
203 CAMPELLO, André Barreto. Manual jurídico da escravidão: Império do Brasil.” 1ª Ed. Jundiaí, SP:
Paco, 2018, p. 303-304.
204 PIZA DUARTE, Evandro; SCOTTI, Guilherme; NETTO, Menelick de Carvalho. Ruy Barbosa e a
queima dos arquivos: as lutas pela memória da escravidão e os discursos dos juristas. Universitas
Jus, v. 26, n. 2. UNICEUB, 2015. Disponível em:
<https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/jus/article/view/3553>. Acessado em: 9 de nov. de
2019.
205 Artigo, À própria sorte. Revista Momentos da História, Ano 2, nº 8. Editora Alto Astral, 2019, p. 21.
206 Ibidem.
62
consonância com a abolição da escravidão e pela consequente perca da mão de
obra, se defrontaram com a recusa dos negros para trabalhar em troca de péssimos
salários e em condições de trabalho deploráveis. Diante disso, os senhores de
engenho forçaram as autoridades a impedir o processo migratório dos negros, o que
resultou em uma repressão institucionalizada contra as denominadas “vadiagem” e
“vagabundagem”207.
Além do que, as crianças negras também foram vítimas de novas agressões
por parte dos ex-senhores de escravos, que reivindicavam, às vezes à força, a
tutoria desses jovens, sob a alegação de que com o investimento deles, as crianças
teriam melhores qualidade de vida, o que na realidade era apenas a manutenção da
força de trabalho nas casas escravocratas208.
Após quase quatro séculos de trabalho forçado e de sofrimento constante, e
mais de 5 milhões africanos reduzidos à meros objetos, a abolição veio e deixou os
negros de mãos vazias, os quais se viram obrigados a sair das senzalas, para uma
terra estranha e diferente da sua. Sem condições materiais para poderem se
reerguer, e sem qualquer tipo de política pública promovida pelo Estado, os negros
se viram obrigados a se manter à margem da sociedade.
Porém, o Estado brasileiro, logo após a abolição, promoveu uma política
pública de fomentar a imigração europeia para o Brasil, oferecendo salários e
porções de terra para italianos, alemães, espanhóis e outros que viessem para o
Brasil para ocuparem o posto de trabalho que fora exercido por mais de 300 anos
pelos africanos e seus descendentes. O que, insta salientar, caso fosse oferecido da
mesma forma aos negros, seriam deles209. Situação que é elucidada da seguinte
maneira:
Em levantamento realizado pelo historiador Petrônio José Domingues, havia
no Brasil pós-abolição cerca de quatro milhões de pessoas ociosas – sem
emprego. Entre 1851 e 1900, dois milhões de imigrantes europeus
chegaram ao Brasil. Com isso, a oportunidade de trabalho e terra aos
negros, que deveria ser oferecida, mas não foi, atraiu os europeus. O
motivo disso, além do racismo, seria algo complementar: a ideologia do
‘branqueamento’.210
207 Artigo, À própria sorte. Revista Momentos da História, Ano 2, nº 8. Editora Alto Astral, 2019, p. 21-
22.
208 Ibidem, p. 22.
209 ibidem.
210 Ibidem.
63
Desta forma, resta cediço a continuação de um sistema que excluía os
negros, ainda não considerados como cidadãos, visto que não tinham direito de
voto, de se incluírem na sociedade brasileira, o que pode ser cabalmente
demonstrado pela fala de Joaquim Nabuco, um dos nomes importantes do
movimento abolicionista brasileiro, que escreveu em 1883, que o movimento
abolicionista desejava um país:
Onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela
liberalidade do nosso regime, a imigração europeia traga sem cessar
para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e
sadio, que possamos absorver sem perigo.211
Neste enredo, a população negra obteve a liberdade, mas não obteve acesso
ao processo de formação da sociedade brasileira, que a marginalizou econômica e
politicamente, impedindo, com o aval do Estado, seu acesso à esfera política e
pública, onde seriam capazes de articular sua própria narrativa212.
De forma que a inclusão do imigrante europeu como trabalhador livre, no
sistema de produção brasileira, e a perda da força do movimento abolicionista,
desfeito logo após a abolição, foram fatos marcantes para o impedimento da
diáspora africana no Brasil de assegurar a sua liberdade formal213.
Sem a oportunidade de uma ascensão social e de uma melhora nas
condições de vida, alguns libertos optaram por retornar à África. Outros se viram
compelidos a garantir a sua sobrevivência em troca de trabalho, muitas vezes na
mesma fazenda em que eram escravos. Uma parte maior se dirigiu às cidades em
busca de sub-empregos e do trabalho informal, ora vejamos um registro histórico:
Vendedores ambulantes, empregadas domésticas, quitandeiros, além da
prostituição, ganharam espaço, bem como os cortiços, habitações de baixo
custo e baixa qualidade, que serviam de lar para os novos libertos – ainda
não cidadãos, uma vez que nem mesmo o direito ao voto, exclusivo para
homens letrados, era garantido. Quando não, moravam na rua. Com o
passar das décadas, processos de ‘higienização’ dos centros urbanos ainda
retiraram os negros dos locais que se estabeleceram, levando-os à margem
também das cidades, formando as favelas.214
211 Apud, Artigo, À própria sorte. Revista Momentos da História, Ano 2, nº 8. Editora Alto Astral, 2019,
p. 22.
212 Ibidem.
213 Ibidem.
214 Ibidem.
64
aumento exponencial da desigualdade social no Brasil ao longo dos anos chegando
até os dias presentes.
Certo é que, desde a sua abolição, a população negra ainda continua à
margem da sociedade brasileira, que promoveu poucos avanços em relação às
políticas públicas para a inserção do negro em campos de maior dificuldade de
acesso para ele. O resultado de tal falta de tutela estatal se dá nos mais variados
dados de desigualdade do país, na disparidade social e de tratamento, dos negros
em relação à população branca.
65
Violência de 2019, demonstra que o Brasil é um dos quatro países que concentram
80% dos assassinatos de ativistas por direitos humanos registrados no mundo 215. A
exemplo disso, em 2018, foi assassinada no Rio de Janeiro a vereadora negra,
lésbica, feminista e ativista por direitos humanos Marielle Franco, caso que foi alvo
de grande repercussão nacional, o qual a investigação ainda segue em curso.
Quanto ao aspecto sócio econômico, a desigualdade social se faz presente
na maioria do povo brasileiro, atuando na segregação de parte considerável desta
população, leia-se descendentes dos escravos, nos guetos, periferias, vilas e
favelas.
Esse viés sócio-racial também está presente nos diversos componentes da
justiça criminal. Na polícia, nos juizados, tribunais e no sistema prisional, nota-se
esta disparidade. A polícia, já antes da abordagem, idealiza o negro como criminoso
em potência, os juizados percebem os negros como seu público maior. Os tribunais
idem, migrando para o sistema prisional a maioria absoluta desta população.
Sobreviver na periferia a confrontos armados entre criminosos e a polícia
oferece mínima ou nenhuma chance para os negros inocentes. O mesmo quadro
muda-se, estaticamente comprovado, quando os mesmos conflitos ocorrem entre a
polícia armada e a população não negra. Ou seja, dentro ou fora das favelas, dos
guetos e das periferias, a chance de um negro morrer num confronto armado com a
polícia é superior à dos brancos.
Isso sem falar da total insegurança nesses espaços, onde o Estado é
comumente ausente e a população não recebe a tutela jurisdicional da segurança
pública.
As favelas brasileiras são consideradas áreas de alto risco, estas são
marcadas pela ausência do Estado, pela inexistência e ineficácia dos serviços
públicos. Não dispõem de estruturas comerciais e sociais o que acaba por gerar
uma situação de isolacionismo e de difícil acesso à defesa de direitos. Tornando as
mesmas, espaços onde a violência física é sentida cotidianamente, o que acaba
sendo um grave fator de desagregação da vida comunitária e, consequentemente,
dificulta o exercício da cidadania dos que ali residem.
215 Atlas da Violência 2019. Organizado por: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34784&Itemid=432>.
Acesso em 9 de nov. de 2019.
66
Esse emaranhado de situações e caos social, desacreditam a população de
alcance aos seus Direitos Objetivos e Subjetivos. Reforçam a ausência de práticas
cidadãs, demonstrando o quanto esta situação influencia no já instalado processo de
pobreza de renda, acumulando a esse a pobreza política a pobreza no exercício e
defesa de direitos, formalmente previstos na legislação.
A falta de condições dignas e cidadãs nestas comunidades impedem a
expansão de oportunidade, o direito de escolhas e, a mais grave, o direito á vida. A
juventude negra é a maior vítima das violências sociais, estruturais, políticas e
econômicas. O que confirma que grande parte da população brasileira vive em
situação de total adversidade, uma situação para além da pobreza de renda, mas
também da pobreza de direitos.
A Assembleia Geral da ONU definiu, em 1985, a juventude como as pessoas
entre os 15 e os 24 anos de idade, sem prejuízo de outras definições de Estados
Membros.216 É nesta fase que o ser humano toma consciência da sua necessidade
de independência da família, bem como da sua entrada ao mundo, composto por
grande parte da sociedade. Também é nesta fase, que grande parte do seu
aprendizado acontece longe das áreas protegidas do lar e da religião, deixando para
a oralidade a matrix da fonte do conhecimento.
Este grupo de brasileiros não tem recebido a atenção necessária pelos
setores sociais. Menos ainda o jovem negro, que enfrenta enormes barreiras,
principalmente, no acesso à educação formal, à oportunidade de trabalho e
à informações em geral.
A juventude negra brasileira é um segmento que se encontra em total
situação de vulnerabilidade social, e, portanto, mais exposta às situações de
violência. Suas diversas manifestações, principalmente quando levamos em
consideração o espaço geográfico onde habita, tornam-se determinantes para
processos discriminatórios.
Desta feita, conforme afirma WAISELFISZ, no Mapa da Violência de 2012,
entre os anos de 2002 e 2010, de acordo com dados divulgados pelo Sistema de
Informação de Mortalidade, do Ministério da Saúde, 272.422 cidadãos negros foram
assassinados no Brasil, o que representa uma média de 30.269 assassinatos por
216Alguns dados sobre a Juventude. Por Centro Regional de Informação das Nações Unidas.
Disponível em: <https://www.unric.org/html/portuguese/ecosoc/youth/Jovens-3.pdf>. Acesso em 9 de
Nov. de 2019.
67
ano, em um país que não aparenta qualquer tipo de guerra civil interna ou
externa217.
WAISELFISZ demonstrou que, no ano de 2010, enquanto as taxas de
homicídios de jovens brancos, entre os 12 e os 21 anos de idade, passaram de 1,3
para 37,3 em cada 100 mil jovens, representando um aumento de 29 vezes. As
taxas de homicídios de jovens negros, na mesma faixa de idade, aumentaram de 2,0
para 89,6 em cada 100 mil, representando um aumento de 46 vezes, ou seja, foram
assassinados aproximadamente três vezes mais jovens negros do que jovens
brancos no Brasil, somente no ano de 2010. Essa gritante diferença na mortalidade
entre os jovens brancos e os jovens negros se intensifica a partir dos 12 anos de
idade, onde se inicia um assombroso crescimento da violência homicida,
principalmente contra os negros, até os 20/21 anos de idade, conforme afirma
WAISELFISZ. Como se não bastasse, entre os anos de 2002 e 2010, comparando e
analisando o Brasil em sua completude, houve um decréscimo no número de
homicídios de jovens brancos de 33%, enquanto o de jovens negros cresceu 23,4%,
ampliando ainda mais a brecha histórica pré-existente.
Sob esta análise, a pesquisadora Társila Flores218, se aprofundou em uma
versão do IHA (Índice de Homicídios na Adolescência) publicada em 2015, pesquisa
realizada pelo Observatório de Favelas (RJ), em parceria com o Laboratório de
Análise da Violência (LAV), da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ), com o apoio
da UNICEF, a qual demonstrou que, caso o contexto de vulnerabilidade não mude,
42 mil adolescentes, entre 12 e 18 anos de idade, poderão ser assassinados nos
municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, entre 2013 e 2019. Na visão
desta pesquisadora, a situação se agrava ainda mais quando delimitamos os dados
para os jovens negros, que apresentam uma tendência a serem vítimas de homicídio
quase três vezes maior que os jovens brancos. Sendo verificável que este fenômeno
é um fenômeno predominantemente urbano, porque quanto maior o número
populacional dos municípios, mais elevados são os índices de homicídio na
217 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil. Rio de
Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012. Disponível em:
<https://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_cor.php>. Acesso em 15 nov. 2018.
218 FLORES, Társila. Genocídio da juventude negra no Brasil: as novas formas de guerra, raça e
219 Atlas da Violência 2019. Organizado por: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34784&Itemid=432>.
Acesso em 9 de nov. de 2019.
69
5 – CONCLUSÃO
Pensar e interpretar a abordagem da realidade da juventude negra, a
ausência da tutela estatal sob a ótica do direito quântico pode parecer num primeiro
momento desprovida de sentido. No entanto, para Flávio Goldman220:
a abordagem quântica do direito provoca a consciência das formas pelas
quais tal realidade interfere no âmbito prático do direito, seja pela ilustração
de determinada situação a partir de seus correspondentes macrocósmicos,
seja pela efetiva aplicação de parâmetros observados na evolução dos
seres ao direito positivo e aos seus efeitos práticos numa dada sociedade.
<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/08/14/rj-teve-pelo-menos-6-jovens-mortos-a-tiros-
em-cinco-dias.ghtml>. Acesso em 9 de nov. de 2019.
70
Para compreender e avaliar a prática jurídica sob a ótica de valores corretos e
realizáveis, se faz necessário levar em consideração o contexto de onde surge,
como surge e para onde caminha o ser humano. Levando-se em consideração que a
condição humana depende e muito desse contexto ao redor.
Por isso se percebe, que o Direito brasileiro, no patamar em que se encontra,
não ultrapassa o papel de um Direito Artificial, com várias leis ilegítimas, que não
coadunam com o sistema de referência da sociedade em geral. Sendo que a própria
sociedade brasileira dominante, sequer se dignou a observar e a acoplar as culturas
das outras sociedades brasileiras.
Conforme já vimos, a estrutura é a condição da existência, sendo certo que a
existência de uma sociedade é dependente da percepção e incorporação de todos
os movimentos e elementos quânticos que a constituem, de maneira em que possa
haver um real equilíbrio de forças e de harmonia de movimentos. No entanto,
conclui-se que a sociedade brasileira está longe de alcançar este equilíbrio,
principalmente para com a população negra, que desde o século XV, vem sofrendo
com a falta de tutela de um Estado que não a enxerga e, portanto, não a
compreende.
Ademais, somente após a percepção e compreensão do negro como um eu
histórico, que cultiva e é cultivado por sua cultura, o Estado brasileiro estará mais
próximo de se acertar com a população negra. Sendo que enquanto este momento
não chegar, restará somente a artificialidade e a ilegitmidade ao Direito brasileiro.
Isto se dá devido ao conflito de convicções entre os sistemas de referências
dominantes, que por um lado tem o Estado brasileiro, que se baseia no sistema de
referência europeu, e por outro lado os negros, os quais já detentores de um sistema
de referência divergente, se viram obrigados a se afastar cada vez mais de um
Estado que não os reconhecia e não os aceitava, situação ainda existente no ano de
2019.
De fato, conforme demonstrado, os senhores de engenhos e o Estado
brasileiro, desde o seu início, tentaram destruir e substituir a cultura africana, às
vezes se utilizando de símbolos culturais, como a Árvore do Esquecimento, ou pela
força de leis inválidas, como no caso das leis contra a vagabundagem e vadiagem.
Sendo que o uso da força e do aparato policial sempre foi presente nas
71
comunidades negras brasileiras, na intenção de manter um sistema de referência
escravagista e anacrônico.
Por tais razões, ao compreender a população negra, e a sua juventude, sob a
ótica do Direito Quântico, se percebe que o Direito Brasileiro nunca se quedou para
esta parcela populacional, salvo o Direito Penal, sempre presente. Esta falta de
tutela acabou criando e mantendo uma estrutura jurídica e social com apenas uma
parte de seus elementos quânticos, ou seja, o sistema de referência brasileiro está
longe de compreender toda a sua população.
Diante de tais fatos, sob a ótica do Direito Quântico, as leis brasileiras são
meras formulações artificiais, são normas ilegítimas e inválidas, representantes de
um Direito Artificial e de uma visão cultural monocular e fora de sintonia com os
diversos segmentos da população brasileira.
72
6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
11 lugares de memória da escravidão na África e no Caribe. Por Geledés –
Instituto da Mulher Negra, 2015. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/11-
lugares-de-memoria-da-escravidao-na-africa-e-no-caribe/>. Acesso em: 9 de nov. de
2019.
Alguns dados sobre a Juventude. Por Centro Regional de Informação das
Nações Unidas. Disponível em:
<https://www.unric.org/html/portuguese/ecosoc/youth/Jovens-3.pdf>. Acesso em 9
de Nov. de 2019.
Artigo, À própria sorte. Revista Momentos da História, Ano 2, nº 8. Editora Alto
Astral, 2019.
Atlas da Violência 2019. Organizado por: Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=3478
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