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SAMIZDAT

www.samizdat-pt.blogspot.com

7
agosto
2008

ficina

TABACARIA
a angústia da modernidade
na voz de Álvaro de Campos

Nesta edição: Florbela Espanca, Yolanda Arroyo, Raymond Carver e mais...


SAMIZDAT 7
agosto de 2008

Edição, Capa e Diagramação: Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada


Henry Alfred Bugalho a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Todas as imagens publicadas são de domínio público ou
Autores royalty free.
Alian Moroz As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira res-
Denis da Cruz ponsabilidades de seus autores ou tradutores.
Carlos Alberto Barros
Giselle Natsu Sato
Guilherme Rodrigues
Editorial
Henry Alfred Bugalho
Joaquim Bispo
Quatro novos autores passam a integrar a equipe
José Espírito Santo
da ­SAMIZDAT a partir desta sétima edição: Guilherme
Marcia Szajnbok
­Rodrigues, Joaquim Lopes, Maria de Fátima Santos e Zulmar
Maria de Fátima Santos
Lopes.
Pedro Faria
Volmar Camargo Junior Além deste reforço, apresentamos também a tradução
Zulmar Lopes dum conto da autor porto-riquenha Yolanda Arroyo Pizarro,
que, ao lado do entrevistado Santiago Nazarian, participou
do Bogotá 39, que selecionou trinta e nove autores, com idade
Autores Convidados
inferior a 39 anos, cujas produções representam os novos
Ana Mello
horizontes da produção literária latina-americana,

Textos de: O Brasil, esta ilha de língua portuguesa em meio às nações


Álvaro de Campos hispanas, historicamente optou por se isolar e ignorar o que
Florbela Espanca a seus vizinhos. Curiosamente, o boom latino-americano das
décadas de 70 e 80 também optou por ignorar a ­literatura
Raymond Carver
brasileira. Esta é uma situação com a qual não podemos
Yolanda Arroyo Pizarro
compactuar. A troca literária com estes países tão semelhan-
tes cultural e socialmente ao Brasil é uma necessidade. E este
é um dos nossos objetivos.
Imagem da capa:
http://farm2.static.flickr.
com/1417/1233822084_c8d64470a5_o.
jpg Henry Alfred Bugalho

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Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
Santiago Nazarian 8

MICROCONTOS
Denis da Cruz 12
Guilherme Rodrigues 13
Henry Alfred Bugalho 14
José Espírito Santo 14
Marcia Szajnbok 16
Volmar Camargo Junior 16

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
A Língua de Eulália, de Marcos Bagno 18
Guilherme Rodrigues

A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne 19


Henry Alfred Bugalho

AUTORES EM LÍNGUA PORTUGUESA


Tabacaria 20
Álvaro de Campos
Mamã 28
Florbela Espanca
A Oferta do Destino 29
Florbela Espanca

PANORAMA LITERÁRIO
Amadorize-se 32
Henry Alfred Bugalho
CONTOS
O Cego e o Psicopata 34
Carlos Alberto Barros

O Ladrão de Olhos 38
Volmar Camargo Junior

Síndrome de Caim 42
Henry Alfred Bugalho
O Palco 46
José Espírito Santo
Os Ratos 48
Joaquim Bispo
Luandino 50
Maria de Fátima Santos

Um Desejo 54
Denis da Cruz
Digressões do Dia numa Estranha Manhã do
Entardecer no Outono da Primavera 57
Guilherme Rodrigues
Prelúdio de uma Saudade 58
Zulmar Lopes

TRADUÇÃO
As Baleias Cinzas 60
Yolanda Arroyo Pizarro
Pequenas Coisas 66
Raymond Carver

AUTORA CONVIDADA
Microcontos 68
Ana Mello

TEORIA LITERÁRIA
Enchendo Lingüística na SAMIZDAT 70
Volmar Camargo Junior
CRÔNICAS
Só os Pobres Merecem Balas-perdidas 74
Henry Alfred Bugalho
Notícia do Fim do Mundo 76
Volmar Camargo Junior
Contadora de Histórias 78
Giselle Sato

POESIA
Soneto da Boa Morte 80
Carlos Alberto Barros
Sonetos 81
Guilherme Rodrigues

Laboratório Póetico III 82


Volmar Camargo Junior
Poesia Concreta 83
Volmar Camargo Junior
Capital 83
Pedro Faria
Brincando de Cole Porter 84
Marcia Szajnbok
Carta de Amor 85
Marcia Szajnbok

LINKS DESTA EDIÇÃO 86


SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 89

SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-
nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-
dado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@hotmail.com
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiram,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprirmir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exenplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

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E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substitua
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido Ao serem obrigados a bur-
pelo mercado. larem a indústria cultural, os Enfim, “Samizdat” porque a
autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- o ­diálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Entrevista

SANTIAGO NAZARIAN
visão da literatura?
Santiago Nazarian: Para
mim, o encontro serviu
para identificar a proxi-
midade do Brasil com a
América Latina de uma
maneira mais geral, não
apenas literária. Aliás, 2007
foi um ano em que eu
estava descobrindo a Amé-
rica Latina, viajando pelo
http://www.piedepagina.com/numero12/images/Santiago-Nazarian.jpg

continente, Chile, Argentina,


Colômbia – antes disso eu
conhecia muito melhor a
Europa. Mas num encon-
tro desses, com escritores
de vários países vizinhos,
você vê como somos muito
mais próximos na ques-
tão cultural, no humor, na
afetividade e até mesmo na
aparência física do que com
os europeus. Claro, pode
parecer uma constatação
óbvia, mas serve também
para nos lembrar o quan-
to desprezamos os países
vizinhos. Brasileiro viaja pra
Santiago Nazarian é autor Santiago, você foi um dos Argentina, Chile no máxi-
dos romances ‘Mastigando quatro autores brasileiros mo, e acha que no resto dos
Humanos’, ‘Feriado de Mim convidados para o Bogotá
Mesmo’, ‘A Morte sem Nome’
países são todos cucarachas.
39 (encontro literário que Bom, cucarachas somos to-
e ‘Olívio’. Em 2003, recebeu reuniu 39 escritores com
o Prêmio Fundação Conrado dos nós. É engraçado notar
menos de 39 anos, repre- também que o oposto não é
Wessel de Literatura, por seu
sentantes da nova lite- verdadeiro, os outros países
romance de estréia. Em 2007,
ratura latino-americana têm uma relação mais pró-
foi eleito um dos autores jovens
– denominada de boom- xima entre eles e até mes-
mais importantes da América
Latina, nas comemorações do cito). Tendo participado mo com o Brasil. Um exem-
Hay Festival em Bogotá, capital do grupo, você identifica plo é como havia jornalistas
mundial do livro. Suas obras uma preocupação comum argentinos, uruguaios,
foram publicadas também na entre estes vários autores? cobrindo o Bogotá 39, mas
Europa e América Latina. Mora Você se sente com uma não havia nenhum jorna-
em São Paulo e, além de escritor, responsabilidade maior lista brasileiro. Os jornais
é tradutor, roteirista e colabora após este encontro? Como daqui, inclusive, ignoraram
com diversos periódicos. ele tem influenciado sua totalmente o encontro – a

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organização do evento, e já que o português é tão nossa própria arte. Na li-
nós escritores, oferecemos pouco falado no mundo. teratura, como arte elitista,
a pauta. Talvez se fosse um Até mesmo as traduções convencionou-se a despre-
encontro em Paris, fosse se tornam mais difíceis, à zar a influência da cultura
interessante para os jornais medida em que as editoras pop. Mas qualquer um que
daqui, mas um encontro de têm menos leitores de por- nasceu dos anos 60 para cá
escritores latino-americanos tuguês para avaliar as obras, está mergulhado em cul-
em Bogotá... Não gerou traduzir, etc. tura pop – filmes, música,
nem notinhas. Então acho O site da revista piedepá- TV – por mais que negue
que foi isso, o evento ser- gina, edição nº 12, inclui essa influência. Durante
viu para eu me identificar o texto Literatura para algum tempo eu tentei –
como latino-americano, mas despertar zumbis, de sua conscientemente – abordar
não mudou muito minha autoria. Nele, há um tre- na minha literatura apenas
visão da literatura em si, cho com a seguinte frase: os elementos da alta-arte,
ou da minha responsabili- Talvez com a maturidade desprezar esse lado pop
dade, continuo encarando literária, eu tenha apenas também, porque achava que
a literatura como uma me tornado realmente ele poderia ralentar minha
trilha pessoal; tenho meus jovem, tenha aceitado escrita. Com o tempo fui
temas pessoais, minha visão minhas referências, meu percebendo que a gran-
particular e prefiro me ver universo, sem medo ou de conquista poderia ser
assim do que encaixado barreiras para expressar assumir essas influências e
num movimento ou mesmo minha arte. tentar trabalhá-las de uma
numa geração. forma genuinamente literá-
Você pode falar mais ria. Essa tem sido umas das
sobre que influências são minhas principais preo-
Qual é, na sua opinião, o essas? O que é influência cupações, em matéria de
maior desafio que o autor na sua opinião e até que estilo de uns quatro anos
brasileiro tem de enfren- ponto um escritor é in- para cá.
tar? fluenciado?
S.N: A falta de leitores. Isso S.N: Influência é a manifes-
se dá por questões cultu- tação e transformação do Ainda no texto Literatura
rais, econômicas e sociais repertório. Todos nós temos para despertar zumbis,
diversas. A falta de leitores um vasto repertório, que encontra-se: Talvez, a cada
é um mal que aflige cada incluiu literatura, música, romance que eu escre-
vez mais a moda, etc. va, bata um sino no meu
literatura “A literatura tem de Algumas ve- inconsciente: “como posso
mundial, ir além da verdade zes, informa- fazer para ofender acadê-
mas o Brasil, oficial, da verdade ções que ob- micos e perder prêmios?”
como um Não sei desde quando –
permitida, a literatura tivemos em ao menos no Brasil – es-
país subde- determinado
senvolvido, tem de ir além da momento critores se aproximaram
sente com verdade, oferecer da vida se mais de professores do
especial manifestam que de artistas. Escritores
essa possibilidade se tornaram aliados das
ênfase. Há inconscien-
também
além. Sua única temente na instituições. Quero ser
questões par- barreira é a criação nossa arte. aliado dos transgressores...
ticulares que humana.” Já outras Isso soa muito bem, ten-
dificultam a vezes, essas do a arte como o cami-
difusão da manifesta- nho possível, dentro da
literatura brasileira, como a ções são conscientes, nos civilização, para darmos
própria barreira da língua, dão elementos, idéias, para um destino aos nossos

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impulsos transgressores, literatura de ficção deve se – já que eu sempre gostei e
mesmo perversos... Ali- permitir ser politicamente estudei répteis, e também
ás, Elizabeth Roudinesco incorreta, revelando precon- por ser um pouco como eu
está lançando um livro ceitos, perversões, porque vejo o adolescente: agressi-
na Flip, falando sobre essa não se pode fingir que essas vo, com um enorme apetite,
questão da perversão e da coisas não existem, que mas ainda com certa timi-
perversidade. não existem no mundo e dez, um pouco desajeitado.
Você concorda com essa que não existem na cabeça O livro trata basicamente
idéia, de que a criação das pessoas; que uma dona da passagem da adolescên-
artística em geral, e a lite- de casa de meia-idade não cia para a idade adulta. Em
rária em particular, já que pode querer torturar uma geral, foi bem recebido, as
trabalha com palavras, é a criança, por exemplo. Se críticas foram melhores do
melhor das hipóteses para passa na cabeça das pesso- que eu esperava. Foi fina-
dar conta dos impulsos as, se passa na cabeça do lista do Portugal Telecom e
transgressores que temos escritor, precisa ser coloca- afins.
dentro de nós? do no papel, porque a arte é
a melhor ponte entre a vida
S.N.: Eu acho que a litera- subjetiva de cada um, talvez
tura, como arte de uma a única ponte entre essas
minoria (e para uma mi- vidas internas. A literatura
noria) pode e deve tratar tem de ir além da verdade
de questões que não são oficial, da verdade permi-
tratadas em outros luga- tida, a literatura tem de ir
res. E mais, por ser uma além da verdade, oferecer
arte conteudista, não con- essa possibilidade além. Sua
ceitual, tem o dever de se única barreira é a criação
aprofundar nas discussões. humana.
Então, enquanto no campo
jornalístico e no discurso Sobre seu romance Mas-
demagógico se diz “criança tigando Humanos: o que
precisa estar na escola”, no você tem lido, ouvido,
campo literário pode-se ver visto sobre ele? Você mes-
o outro lado da questão, o mo diz que ele é diferen-
quanto o modelo de ensino te dos três anteriores. O
atual é precário, o quanto que o motivou para essa
a posição do professor é mudança? E por que um Tendo em vista sua par-
muitas vezes uma posição jacaré? ticipação em sites, in-
hipócrita, o quanto o ensino SN: O romance foi escrito cluindo seu blog Amor
pode ser mais uma forma com essa consciência do & Hemácias, como você
de exercer poder do que meu papel de “jovem escri- percebe a influência da
de gerar discussão. Isso é tor”. Quero dizer, enquanto internet no mundo literá-
só um exemplo, mas um jovem, eu me sinto no dever rio?
exemplo real de uma das de trazer algo novo, trazer SN: É uma forma de comu-
discussões eu ofereço nos novas referências, novas nicação com o leitor, com
meus livros. Enquanto o estéticas. Em “Mastigando outros autores, uma forma
discurso demagógico diz: Humanos” procurei fazer do escritor mostrar o que
todos os homens são iguais, isso de forma bem radical, está fazendo, o que tem lido,
o discurso literário pode todo o tom pop e bem hu- etc. Para mim, serve apenas
dizer “não, as pessoas têm morado do livro vai nesse para isso. Já é o suficiente.
diferenças e essa sociedade caminho. A escolha do ja-
não admite diferenças.” E a caré foi uma escolha afetiva

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Em seu blog, você fala seus romances enquanto geiros que gosto, sei que
sobre comprar ou baixar estão no rascunho? Você não seriam comercialmente
um filme para ter e rever é verborrágico ou meticu- viáveis no Brasil. É preciso
quando quiser. O mesmo loso? Planeja o texto todo saber separar, encarar com
que acontece às músicas antes ou deixa que as coi- certo olhar mercadológico.
que marcam certos mo- sas vão acontecendo?
mentos de nossa vida. SN: Verborrágico, claro.
Quando você usa o ver- Pode nos adiantar algo
Meus romances mais recen- sobre o enredo do seu
bo ter, significa ser uma tes eu até tive certo planeja-
espécie de co-autor com o novo romance O Prédio, o
mento, criei os personagens, Tédio e o Menino Cego?
artista? O que você pensa sabia exatamente onde
da obra artística depois Ele seguirá a linha psi-
queria chegar, como iria codélica de Mastigando
que ela deixa as mãos de terminar, mas as frases vão
seu autor? Humanos?
surgindo espontaneamente,
SN: Não, quando eu uso é como uma pintura em SN: Sete meninos entrando
o verbo “ter” eu me refiro que vou pincelando por na adolescência se apai-
apenas ao objeto cultural, cima. Nada é apagado. xonam por uma professo-
que pode até ser um objeto ra, que é uma infanticida
virtual, no caso de uma mú- serial. É isso. Um pouco
sica ou um filme. Acho que Em seus trabalhos de tra- menos psicodélico do que o
a obra nunca pertence tanto dução, nota-se que você Mastigando Humanos, por-
ao público quanto ao artis- não os faz apenas por que não tem toda a alego-
ta, e digo isso me colocando encomenda de editoras, ria com animais e tal, mas
nos dois lados da questão. mas também por prazer ainda assim tem certa dose
Como público, eu nunca próprio. Isso reflete uma pop, certo humor negro, eu
me sinto tão “possuidor” preocupação em apresen- diria que é um romance
de uma obra de arte, em tar, no Brasil, autores es- existencialista bizarro.
identificação intensa com trangeiros que você julga
ela quanto com minha pró- de qualidade, mas que são
pria obra. É como eu disse ignorados por nossos edi-
anteriormente, a obra de tores. Diante disso, qual
arte - a literatura - é uma sua opinião sobre a polí-
ponte entre a vida subjetiva tica editorial brasileira?
do artista e a vida do recep- SN: Eu já sugeri algumas
tor, mas essa troca sempre é coisas para as editoras com Coordenador da entrevista:
limitada. Você tem a ponte, que trabalho, já tentei em-
pode chegar até lá, dar uma placar algumas traduções, Carlos Alberto Barros
olhada, mas não vai residir mas é muito raro eles acei-
naquele castelo, entende? É tarem as sugestões. Achava
Perguntas feitas por:
uma visita turística, limi- que isso era uma limitação
tada. Pode parecer pouco, que eu tinha, mas recente- Alian Moroz
mas não é, porque a cha- mente vi o Paulo Henriques Carlos Alberto Barros
ve final estará sempre no Britto dizendo que a Cia
autor. E se basta para ele, das Letras raramente aceita- Henry Alfred Bugalho
se responde às perguntas va as sugestões dele tam- Marcia Szajnbok
dele, é válido, responderá a bém. Então eu faço mais
perguntas diversas de várias trabalhos por encomenda. Volmar Camargo Junior
outras pessoas. Até porque, tenho um gosto Zulmar Lopes
um pouco atípico. Grande
parte dos autores estran-
Como é a relação com

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Microcontos

Tempo
Denis da Cruz

Deco queria tempo para escrever. para terminar em casa.


Naquele dia, se organizou. “Vou redigir Tão logo abriu a porta de seu “doce
pelo menos um conto”, pensou. lar”, permitiu-se estirar ao sofá, “só pra
Trabalhou o dia todo, apressando descansar um pouquinho”.
cada um de seus afazeres e impondo-se Exausto, dormiu como uma criança.
um ritmo sobrenatural. Acordou no outro dia, de cara inchada
No fim da tarde, tudo encerrado. e terno amassado.
Fechou a porta do escritório sem levar Para o conto? Não deu tempo.
embaixo do braço qualquer trabalho

Veloz
Denis da Cruz

Por aquelas redondezas, Matin era o


mais rápido no gatilho.
Perdeu o título – e a vida - quando
alguém o superou.

Trânsito
Denis da Cruz

- Barbeiro! – Gritou Cirilo, colocando


a cabeça para fora do carro e xingando
o motorista que lhe dera uma fechada.
Enquanto energicamente esbravejava,
atravessou o cruzamento e atropelou
uma velhinha.

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12
Meu Quarto
Guilherme Rodrigues

Na escuridão de meu seus fracassos. Dum lado terradas minhas alegrias,


quarto; é o momento de um homem reflete sobre quando há, e jamais são
reflexão. Enxergo o que seu insucesso. Doutro lembradas. O coveiro
não vejo; ouço o que não lado; há só escuridão e também está por perto.
escuto. Imagino o inima- nada mais. Os quadros dependu-
ginável. Na escuridão de meu rados mostram minhas
Olho para um lado; há quarto; é o momento de tristezas que são lembra-
um ser que chora suas alegria e de tristeza. Sinto das a cada minuto.
mágoas e grita de dor. No a glória de um rei e sua No quarto ecoam
canto havia uma criança nobreza, sinto a angústia gritos de dor e vozes
medrosa e insegura e so- e agonia de um plebeu e angustiadas que me ator-
litária mas com vontade sua pobreza. mentam a cada instante.
de viver. Noutro, há um No meio do quarto há Ouço uma voz fria me
jovem também medroso uma cova onde são en- chamar...
e inseguro que chora por

Tensão ­– o desabrochar de uma rosa


Guilherme Rodrigues

Era sua primeira vez. A tremedeira aumentava


Ele suava, tremia e cada a cada instante. Ele se
vez ficava mais nervoso. levantou e começou a
Ficou ali sentado, passava andar pela sala de um
milhões de coisas pela lado para o outro. An-
sua cabeça. A dúvida ten- dou uns quinze minutos
cionava seus nervos tor- e voltou a se sentar no
nando seu corpo enrije- sofá, onde estivera antes.
cido como pedra. O suor Pensou mais um pouco.
lavava todo o seu corpo e Deu uma longa inspirada
encharcou as suas roupas. e expirou vagarosamente
Os olhos arregalados e e num breve suspiro foi
avermelhados. Ele rangia com tudo, freneticamente.
os dentes, um barulhi- Sorriu aliviado; deitou e
nho de causar arrepios. dormiu.

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Microcontos

Festa Surpresa
Henry Alfred Bugalho

-Desconfiava que a mulher o traía. Na qualquer.


cama, sempre encontrava pentelhos e
manchas de porra.
A mulher, fidelíssima, estava há sema-
Resolveu dar o flagrante. Se escondeu nas preparando uma surpresa para sua
no armário; quando ouviu risinhos e festa de aniversário. Tardes inteiras na
gemidos, saltou para fora, atirando. casa da amiga enchendo bexigas.
Matou a empregada e um motoboy

Filosofia
José Espírito Santo

Fazia amor como quem filosofa. Sócrates e Pitágoras


foram doces loucuras. Platão, a experiência pouco
platónica. Com Heraclito… viraram o quarto às
avessas. Chegou a vez de Kant e mudou de namora-
da.

Palavra
José Espírito Santo

A palavra extensa, ocupava incompreensivelmente


boa parte do conto.

14 SAMIZDAT agosto de 2008


14
Atraso
José Espírito Santo

A Caravela atrasou-se irremediavelmen-


te. Quando, por fim, chegaram à Índia,
o moço perguntou se tinham reservado
a mesa, se iam querer “pão de alho”, se
pretendiam acompanhar a comida com
“Tika” ou “Cobra”…

O Nome
José Espírito Santo
Sempre que lhe perguntavam o nome, respondia
com uma longa história. Naquela noite, quando no
bar do hotel, a loira lhe perguntou qual era a sua
história, respondeu Manuel. Sem hesitar!

Capuchinho, a
verdadeira história
José Espírito Santo

Capuchinho era uma menina prendada


que, não obstante, foi indecentemente
comida pelo Lobo. Entretanto, o Minis-
tério Público vai formalizar a acusa-
ção…

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Microcontos
Coisas de Mulher
Marcia Szajnbok

IV.
Ansiedade, apreensão, expectativas. A primeira vez tinha de ser perfeita.
- Você não disse que era virgem? Como é que não sangrou?
Os corpos ainda juntos, as almas irrecuperavelmente apartadas.
O amor que tu me tinhas era vidro e se quebrou...

V. VI.
A festa foi ótima. Todos comeram, Sentada no chão, o ouvido colado à
­beberam e se divertiram muito. porta do banheiro, a menina pergunta:
­Quando saíram os últimos amigos, -Mãe, você está aí?
­desligou a musica, apagou as luzes. Lá de dentro, entre risos, vem a
Era madrugada. Era seu aniversário. E ­resposta: - Não, não estou aqui... fugi
os restos da casa cheia tornavam mais pela janela!
consistente o vazio. O pequeno corpo para sempre
Ali mesmo, no chão da sala, chorou, ­dividido: a boca-razão sorri, o olhos-
chorou, até dormir cansada, como as emoção lacrimejam.
crianças.

Dez Segundos
Volmar Camargo Junior

Mariana volta da festa. Em dez se-


gundos vai estar morta. O pai está
dormindo com a tv ligada e não ouve
o celular. A mãe está no quarto com
o namorado e não ouve o celular. O
motorista do ônibus solta a fumaça do
cigarro pela janela e só freou quando
sentiu o solavanco. Mariana já está
morta.

16 SAMIZDAT agosto de 2008


16
Autoridade
Volmar Camargo Junior

O pedinte encontrou uma nota de cinqüenta. O polí-


cia viu-o enfiando a nota no bolso.
— Passa pra cá!
— Não mesmo! Eu achei, é minha.
— É, mas quem tem o cassetete sou eu.

A Última do Juca
Volmar Camargo Junior

— Ouvi dizer que o Juca foi abduzido.


— É mesmo? E quem contou?
— Aquela vizinha nova, que veio de Júpiter.

Mãe da Noiva
Volmar Camargo Junior

Costurou um vestido de noiva para a


filha que não teve. Foi internada e pas-
sa bem.

Estricnina
Volmar Camargo Junior

Era um problema na vizinhança. Cão


ou gato que entrasse em seu quintal
não voltava. Na primeira sexta-feira
depois do Natal, encontraram-no morto
dentro de casa. Havia indícios de vene-
no até no suor de suas axilas.

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Recomendações de Leitura

A Língua de Eulália,
Uma Novela Sociolingüística

Livro: A Língua de
­E ulália, Uma Novela
­S ociolingüística

Autor: Marcos Bagno

Editora: Contexto

São Paulo, 2005.

Guilherme Rodrigues a elas e mostra que o que a – e um governo apático – e/


Eulália fala não são “erros”, ou não tiveram oportunidades
O livro conta a história mas uma variação lingüística de estudar e, sim, variações
de três amigas: Vera, Emília e do português. Um português lingüísticas. Para isso, ele vai
Sílvia. Estudantes universitárias diferente. buscar respostas e exemplos
que vão passar as férias em na história do português,
Atibaia na chácara de Irene, Neste livro, Marcos Bagno
aborda a língua portuguesa línguas originárias do latim e
tia de Vera. Lá conhecem Eulá- outras mais, comparando-as e
lia, uma empregada doméstica com uma outra visão a fim
de exterminar os mitos que nos mostrando que fenômenos
que mora na chácara. Ela fala semelhantes acontecem com
um português diferente do das assombram o ensino da nossa
língua. Uma cultura errada todas elas. A língua evoluiu e
meninas e elas acham engra- o que foi “errado” um dia é o
çado os “erros” gramaticais que se criou. Ele mostra de
uma maneira clara e científica “certo” de hoje. Revelando-nos
cometidos por Eulália. Então, que por trás desses falares há
Irene professora de Língua que não há nada de errado
(ou engraçado) na linguagem grandes conhecimentos e se
Portuguesa, não acha nada en- tornam preciosas poesias nas
graçadas as chacotas das me- de pessoas menos favorecidas
por uma educação deficiente mãos de nossos compositores
ninas e aceita dar umas “aulas” e poetas.

18 SAMIZDAT agosto de 2008


18
Recomendações de Leitura
A primeira grande revira-
volta no enredo ocorre quan-
do o médico Roger Chillin-
gworth surge diante de Hester.
Na verdade, Chillingworth é
o marido ultrajado de Hester
que decide
se vingar do pai de Pearl,
descobrindo quem ele é e re-
velando sua identidade para o
escárnio público.
São estes os dois princi-
pais conflitos do romance: a
contrição de Hester Prynne e
a ânsia por vingança de Roger
Chillingworth, que se volta
contra o reverendo Arthur
Dimmesdale, o mestre espi-
ritual da comunidade, cuja
moral é inquestionável.
A prosa de Nathaniel Ha-
wthorne é poderosa, intrincada
e bem articulada. A linguagem
econômica e telegráfica com
a qual os EUA nos habitou
nas últimas décadas - estilo

A Letra Escarlate,
inagurado por Hemmingway,
que trouxe para a literatura
a linguagem jornalística - se
contrapõe ao estilo prolixo e
de Nathaniel Hawthorne sofisticado de Hawthorne.
No fundo, “A Letra Escar-
late” é uma ousada crítica de
Henry Alfred Bugalho é Hester Prynne, uma mu-
Hawthorne à moral puritana,
lher condenada a carregar no
henrybugalho@gmail.com peito a letra “A”, após ter sido
aos extremos que o radicalis-
mo religioso pode conduzir.
acusada de adultério. Ao se
Nathaniel Hawthorne é um O autor não poupa Hester
recusar a revelar a identidade
dos grandes autores canônicos da necessária expiação pelo
de quem a corrompeu, Hester
dos EUA, comparável talvez a adultério, mas ele parece
toma para si toda a culpa pelo
Machado de Assis no Brasil ou simpatizar com a protagonista,
pecado. A trama é ambientada
a Eça de Queirós em Portugal. querer defender que, além da
na Nova Inglaterra em meados
Sua obra principal, “A Letra racionalidade, o animal ho-
do século XVII, auge da caça
Escarlate” foi um dos primei- mem também é formado por
às bruxas nas cidades regidas
ros fenômenos editoriais no instintos e paixões.
pela administração puritana.
país e é leitura obrigatória Um dos grandes clássicos
Deste adultério, Hester dá
nas escolas. Na verdade, esta da literatura americana tam-
a luz à Pearl, uma criança que
acolhida diz muito sobre o bém é uma das grandes ex-
representa a mácula do peca-
espírito norte-americano, até posições das nossas fraquezas
do da mãe muito mais do que
mais do que isto, diz muito “demasiado humanas”.
a própria letra escarlate. Isola-
sobre a moral protestante que, das do convívio social, Hester
segundo Max Weber, está no e Pearl tornam-se cúmplices,
cerne da expansão capitalista. companheiras no opróbrio.
A protagonista do romance

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Autor em Língua Portuguesa

TABACARIA
Álvaro de Campos

20 SAMIZDAT agosto de 2008


20
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.


Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
http://farm2.static.flickr.com/1417/1233822084_c8d64470a5_o.jpg

E quando havia gente era igual à outra.


Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

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Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

22 SAMIZDAT agosto de 2008


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(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei


A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,


Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,


E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

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Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube


E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,


Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.


Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

24 SAMIZDAT agosto de 2008


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Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)


E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los


E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira


E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira


Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

15-1-1928

Fonte: http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.html

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Autor em Língua Portuguesa

Álvaro de Campos
e a criação heteronímica de Fernando Pessoa
“A celebridade raras vezes acolhe
os génios em vida, salvo se a vida
é longa, e lhes chega no fim dela.
Quase nunca acolhe aqueles gé-
nios especiais, em quem o dom da
criação se junta ao da novidade.”

http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/02/216_2310-Fernando-Pessoa.jpg
Henry Alfred Bugalho Fernando Pessoa nasceu Apesar duma fervilhante
em Lisboa em 1888. Após vida literária desde cedo, o
henrybugalho@gmail.com
ter vivido boa parte de sua "dia triunfal", como o pró-
infância na África do Sul, prio Pessoa o denominava,
Fernando Pessoa retornou a foi o dia 8 de março de
Portugal em 1905, ingressou 1914, quando ele criou o
na Faculdade de Letras da heterônimo Alberto Caeiro e,
Universidade de Lisboa, mas duma só vez escreveu a obra
desistiu antes de completar "O Guardador de Rebanhos".
um ano. Com a herança de Nesta mesma data, surgiram
sua avó, fundou uma tipogra- outros dois heterônimos fun-
fia em 1907, que mal chegou damentais na carreira poé-
a funcionar. No ano seguinte, tica de Pessoa, Ricardo Reis
assumiu um cargo como e Álvaro de Campos, ambos
tradutor comercial, profissão discípulos direto da poesia
que exerceria por toda sua de Alberto Caeiro.
vida.

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26
"(...) acerquei-me de uma o horóscopo para essa hora, novidades. A segunda fase,
cómoda alta, e tomando um está certo). Este, como sabe, é "futurista", caracteriza-se pela
papel, comecei a escrever, de engenheiro naval (por Glas- influência de Walt Whitman
pé, como escrevo sempre que gow), mas agora está aqui e pelo fascínio, pelo elogio à
posso. E escrevi trinta e tantos
em Lisboa em inactividade. civilização e ao mundo mo-
poemas a fio, numa espécie (...) Álvaro de Campos é alto derno. É desta fase os poemas
de êxtase cuja natureza não (1,75 in de altura, mais 2 cm "Ode Triunfal" e "Ode Ma-
conseguirei definir. Foi o dia do que eu), magro e um pou- rítima". Por fim, na terceira
triunfal da minha vida e nun- co tendente a curvar-se. (...) fase, "intimista", Álvaro de
ca poderei ter outro assim." Cara rapada todos (os heterô- Campos retorna ao tema do
nimos) – o Caeiro louro sem cansaço, do pessimisto e da
cor, olhos azuis; Reis de um inquietação diante do incom-
Apesar da reverência que vago moreno mate; Campos preensível. "Tabacaria" é o
Pessoa e os heterônimos entre branco e moreno, tipo melhor exemplo deste último
tinham por Alberto Caeiro, vagamente de judeu portu- período criativo de Campos.
cada um deles desenvolve- guês, cabelo, porém, liso e
ria um estilo diverso. Dos Fernando Pessoa faleceu
normalmente apartado ao em 1935 e, apesar de só ter
três, Álvaro lado, mo-
de ­Campos é publicado um único livro
o poeta cujo
“Dos três ­(­heterô– nóculo. (...) e alguns textos em revis-
Álvaro de
estilo mais se nimos), Álvaro de Campos teve
tas durante sua vida, já era
reconhecido como o maior
assemelha ao Campos é o poeta uma educa- expoente da literatura por-
de ­Fernando
Pessoa, aliás,
cujo estilo mais se ção vulgar de tuguesa no século XX. Após
liceu; depois
durante sua assemelha ao de foi mandado
sua morte, descobriu-se em
seu quarto um baú onde
vida, Fernan- Fernando Pessoa...” para a Escó- Pessoa guardava seu imenso
do Pessoa por cia estudar
várias vezes se apresentava espólio literário, com mais de
engenharia, primeiro mecâ- 18 mil obras, e que o confi-
- brincadeira ou não - como nica e depois naval. Numas
Álvaro de Campos para seus guraria como um dos mais
férias fez a viagem ao Orien- importantes poetas portugue-
conhecidos. Nos manuscritos te de onde resultou o Opiá-
do autor, há vários textos de ses - ao lado de Camões.
rio. Ensinou-lhe latim um tio
autoria duvidosa, ora assina- beirão que era padre."
dos pelo próprio Pessoa, ora
como Álvaro de Campos.
O heterônimo é descrito Álvaro de Campos tam-
desta maneira numa carta bém foi o único dos três he-
de Pessoa a Adolfo Casais terônimos a passar por fases
Monteiro: criativas distintas. Na pri-
meira delas, conhecida como
"Álvaro de Campos nas- "decadentista", e da qual
ceu em Tavira, no dia 15 de "Opiário" é um exemplo, o
Outubro de 1890 (às 1,30 da poeta expressa um cansaço,
tarde, diz-me o Ferreira Go- um tédio e um anseio por
mes; e é verdade, pois, feito

Para saber mais

http://omj.no.sapo.pt/bio2.htm
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/fernando-pessoa/carta-adolfo.php
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvaro_de_Campos

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Autor em Língua Portuguesa
http://www.flickr.com/photos/kton25/473611645/sizes/o/

Florbela Espanca
MAMÃ
A contrastar, porém, sin- inclinou a cabeça, e duas lá-
gularmente com a miséria do grimas brilhantes como gotas
Noite negra e tempestu- casebre, via-se um berço ele- de orvalho se desprenderam
osa! No céu não luzia uma gante e lindo. Envolviam-no dos olhos, resvalando-lhe pe-
estrela, o vento soprava com rendas e arminhos. Dentro las faces, que foram cair nas
violência, e flocos de neve um pequeno gentil dormia, do pequenito que, a sorrir no
envolviam, como em alva com a linda cabecita emol- seu sorriso de anjo, balbu-
mortalha, a aldeia adorme- durada nos anéis doirados do ciou mimoso:
cida. Só ao longe milhares seu cabelo loiro. Nos lábios - Mamã!
de luzes ardiam no sober- pairava-lhe um sorriso meigo
bo castelo. Perfumes, flores, de anjo dormente. Abre-se a
sedas, rendas e cá fora, numa porta de repente. Uma mu-
humilde choupana à beira lher divinalmente formosa,
da estrada, fome, miséria envolta em ondas de rendas
e lamentos. Vivia ali uma e sedas, arrastando altiva a
pobre camponesa com dois longa cauda, entra na chou-
filhinhos. Magros, doentes, pana. A camponesa ergue-se
pediam esmola pelos casais. admirada, enquanto a fidalga
Agora choravam. Tinham adulada, invejada, que tinha
fome e não tinham pão, os a seus pés um mundo de
míseros pequeninos. No adoradores, não receando
único aposento via-se apenas amarrotar as renda caras do
uma enxerga onde, com a ca- seu opulento vestido de baile,
beça entre as mãos, a pobre ajoelhou humilde ante o ber-
mãe pensava, talvez, no futu- cito do filho do crime, que
ro bem negro dos filhinhos. tinha de beijar furtivamente;

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A OFERTA DO DESTINO

http://www.flickr.com/photos/tcatcarson/2272845428/sizes/o/
Florbela Espanca fundos, a boca embriagante dade, onde o luar chora noite
e fatal que há-de prender-te e dia! Não me detive nem
Um dia, o destino, trôpego para todo o sempre! um só instante! O coração
velho de cabelos cor da neve, Isto disse-me um dia o des- ficou-me a pedaços dispersos
deu-me uns sapatos e disse- tino, trôpego velho de cabelos pelos caminhos que percorri,
me: cor da neve. mas eu caminhei sempre, sem
- Aqui tens estes sapatos Calcei os sapatos e cami- fraquejar um só momento!...
de ferro, calça-os e caminha... nhei, O luar era profundo; às Há muito tempo que ando,
Caminha sempre, sem des- vezes, cantavam nas matas os tenho quase cem anos já, os
canso nem fadiga, vai sempre rouxinóis... Outras vezes, ao meus cabelos tomam-se da
avante e não te detenhas, não sol ardente do meio-dia de- cor do linho, e o meu frágil
pares nunca!... A estrada da sabrochavam as rosas, verme- corpo inclina-se suavemente
vida tem trechos de céu e lhas como beijos de sangue; para a terra, como uma fraca
paisagens infernais; não te as- as borboletas traziam nas asas, haste sacudida pela nortada.
suste a escuridão, nem te des- finas como farrapos de seda, Começo a sentir-me cansada,
lumbres com a claridade; nem os perfumes delirantes de os meus passos vão sendo
um minuto sequer te detenhas milhares de corolas! Outras vagarosos na estrada imensa
à beira da estrada; deixa florir vezes ainda, nem uma estrela da vida!
os malmequeres, deixa cantar no céu, nem um perfume na E os sapatos inda se não
os rouxinóis. Quer seja lisa, terra, e eu ouvia a meus pés a romperam!
quer seja alcantilada a imensa voz de algum imenso abismo. Onde estareis vós, ó olhos
estrada, caminha, caminha Passei pelo reino do sonho, perturbadores e profundos, ó
sempre! Não pares nunca! pelo país da esperança e do boca embriagante e fatal que
Um dia, os sapatos hão-de amor que, ao longe, banhado há-de prender-me para todo o
romper-se; deter-te-ás então. É pelo sol, dá a impressão duma sempre?!...
que terás encontrado, enfim, imensa esmeralda, e vi tam-
os olhos perturbadores e pro- bém as terras tristes da sau-

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Autor em Língua Portuguesa

A voz feminina de
FLORBELA ESPANCA
Florbela Espanca nasceu
no Alentejo, em Vila Viçosa, a
8 de Dezembro de 1894.
Filha ilegítima de uma
"criada de servir" falecida
muito nova, foi registada
como filha de pai incógnito,
marca social ignominiosa
que haveria de a marcar
profundamente, apesar de ter
sido educada pelo pai e pela
madrasta, Mariana Espanca.
Estudou em Évora, onde con-
cluiu o curso dos liceus em
1917. Mais tarde vai estudar
para Lisboa, frequentando a
Faculdade de Direito. Colabo-
rou no Notícias de Évora e foi,
com Irene Lisboa, percursora
do movimento de emancipa-
ção da mulher.
Os seus três casamentos
falhados, assim como as de-
silusões amorosas em geral e
a morte do irmão, Apeles Es-
panca, a quem era fortemente
ligada, num acidente de avião,
marcaram profundamente a
sua vida e obra.
Em Dezembro de 1930,
agravados os problemas de
saúde, sobretudo de ordem
psicológica, Florbela pôs fim à
própria vida a 8 de dezembro,
em Matosinhos. O seu suicí-
dio foi socialmente manipula-
do e, oficialmente, apresenta-
morte. mulher, dando novos rumos à
da como causa da morte, um
Com a sua personalida- consciência literária nascida
«edema pulmonar».
de de uma riqueza interior de vivências femininas.
Embora sua notoriedade
excepcional, escreveu os seus
tenha vindo a partir de sua
versos com uma perturbação fontes:
poesia, Florbela produziu
ardente, revelando um ero- http://www.vidaslusofonas.pt/florbela_espanca.htm
também uma obra em prosa,
tismo feminino transcendido, http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Florb-Espanca.htm
composta por contos e por
pondo a nu a intimidade da
um diário que antecedeu sua

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30
http://www.flickr.com/photos/tactus/2378761003/sizes/o/

“Ai as almas dos poetas


Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.”
Florbela Espanca

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Panorama Literário

Durante a Renascença, o
Homem era vista como um
reflexo perfeito do Universo.
Esta relação entre o macro-
cósmico e o microcósmico
se manifestava na ânsia por
http://www.bisbymac.com/HOMBRE%20VITRUVIANO-2.jpg

desvendar o “O Livro do
Mundo”, através das Artes,
da Ciência e da Filosofia.
O homem pleno era aquele
que buscava o conhecimen-
to pleno.

AMADORIZE-SE
Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com

A grande luta dos preten- com um capítulo no livro genheiro, filósofo, médico, etc.
sos escritores ou de autores que estou lendo — Blog! How — o homem moderno passou
em início de carreira é a the newest media revolution a valorizar o “recorte”, a “es-
profissionalização. is changing politics, business, pecialização”. Isto parece ter
O que isto quer dizer and culture — que trans- decorrido graças ao reconhe-
exatamente — se é uma crevia exatamente o que se cimento de como os saberes
padronização da remunera- passava na minha cabeça. podem ser, individualmente,
ção da hora do escritor, se é Em suma, durante boa par- bastante vastos. No campo
a criação de sindicatos (acho te do século XX, as atividades da Medicina, por exemplo,
que este é o suposto papel da laborais tenderam à profissio- alguém pode passar a vida
UBE), ou qualquer outro tipo nalização, à regulamentação inteira estudando que não se
de normatização do ofício — das práticas e normas de seus obterá pleno conhecimento
é um mistério que um dia ofícios. Isto incluiu a cria- de todas as especialidades.
ainda desvendo. No entanto, ção de cursos tecnológicos, Portanto, a especialização se
este movimento me parece universitários, formação de tornou o signo da compe-
ser algo ultrapassado, uma sindicatos, salário-mínimo, tência. “Restrinjo a amplidão
mentalidade típica do século entre várias outras conquistas do meu saber”, diz o homem
XX. do mercado de trabalho. moderno, “mas me torno o
Enquanto o homem re- melhor naquilo que sei”.
Curiosamente, enquanto nascentista se orgulhava por O adjetivo “amador” se tor-
eu pensava em escrever este agregar várias atribuições — nou algo demeritório. O ama-
artigo, acabei me deparando matemático, físico, pintor, en- dor estaria a pelo menos um

32 SAMIZDAT agosto de 2008


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nível abaixo do “profissional”. hora de escolher uma profis- sa imposição a Michelangelo
Na hora de se contratar um são, o faça crente de que fará para concluir a Capela Sisti-
serviço, busca-se um profis- aquilo que lhe dá prazer. E na, mas, em geral, o artista é
sional; recorra a um amador isto até pode ser verdade em aquele que cria independente
por sua conta e risco. alguns casos em boa parte do dos resultados práticos de
Por outro lado, o século tempo, mas o simples fato de sua arte. Se fosse o contrá-
XXI tem apresentado um sermos obrigados a realizar rio, se a Arte e a Literatura
panorama completamente algo (e, no caso duma profis- estivessem submetida às leis
distinto. Com o surgimento são, provavelmente por toda do comércio, obras que levam
da internet, uma legião de a nossa vida) já é um convite anos ou décadas para serem
amadores tomou conta do à repulsa. Somos forçados concluídas, como Ulisses de
ciberespaço, mostrando seus a trabalhar, mas não somos Joyce ou como as invendáveis
trabalhos e surpreendendo, forçados a termos um passa- pinturas de Van Gogh (que
em muitos casos, pela quali- tempo. hoje valem milhões), seriam
dade “profissional” deles. Nossos hobbies são ati- inconcebíveis, ou teriam de
Fotógrafos, ilustradores, vidades que nos dão prazer ser niveladas para cumprir
músicos, cineastas, escritores, e que realizamos em nosso as exigências da produção
jornalistas, amadores que tempo livre. Na maioria das em série. Um livro por ano,
estavam à margem do mundo vezes, ninguém nos coage a ou a cada seis meses, senão o
profissional, provavelmente isto. Escolhemos o que nos dá escritor não paga suas contas.
exercendo profissões que prazer, e o exercemos quan- “Profissionalize-se” é nadar
nada tinham à ver com tais do temos vontade. A própria contra a corrente. No mundo
atividades paralelas, deram palavra “amador” traz consigo contemporâneo, indivíduos
suas caras a tapa e provaram este significado: aquele que muito competentes estão se
que competência não residia ama. reunindo e defendendo o
numa faculdade, num curso O amador está livre das ideal de que cultura e tecno-
técnico ou sob a égide do normas que regulamentam logia não devem ser exclu-
“profissionalismo”. E mais do uma profissão. Está liberto dentes, que todos têm direito
que isto, o amador demons- das amarras da doutrinação e a elas. Por isto, surgiram
trou ser muito mais criativo e do tecnicismo. Muitas vezes, projetos como a Wikipédia,
ousado do que muitos profis- peca pela ignorância, pelo sem dúvida a mais comple-
sionais. desconhecimento, mas disto ta enciclopédia no mundo,
Por quê? acaba surgindo a originalida- totalmente gratuita, escrita e
A razão é simples, a meu de. revisada por pessoas comuns,
ver. Não trabalhamos por A oposição entre amador como eu e você, ou como os
prazer. Em nossos dias, tra- e profissional fundada em conceitos de Open Source,
balhamos por imposição termos de mera remunera- Copyleft, Creative Commons,
da sociedade de consumo. ção me parece equivocada, que permitem aos criadores
Precisamos pagar as contas, sob esta perspectiva. É muito distribuírem gratuitamente
alimentarmo-nos, adquirir mais coerente pensarmos seus trabalhos sem abrirem
bens de consumo, imóveis, em “aquele que é obrigado a mão da autoria.
roupas, e queremos também exercer um ofício” em oposi- A marcha dos tempos
ostentar — jóias, automóveis, ção àquele que “exerce uma aponta para uma direção
roupas de grife —, quer dizer, atividade para deleite pró- oposta. Talvez tenhamos
todos aqueles ingredientes prio”. diante de nós novamente a
que lubrificam as engrena- Este clamor por “profis- imagem do homem renascen-
gens do capitalismo. O traba- sionalização” nas Letras me tista, que desfila por entre os
lho faz parte desta estrutura parece atingir e abalar o saberes, por entre as práticas,
de produção. fundamental na escrita e na e as exerce livremente, para
Geralmente nosso momen- Arte — não se pode obrigar seu próprio deleite e, quem
to de prazer é durante o ócio, alguém a criar. sabe, para o benefício da
em nosso tempo livre. Não Podemos até ter alguns ca- coletividade.
duvido que muita gente, na sos na História, como a famo- Hoje, o lema deveria ser:
“amadorize-se”.

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Contos

O CEGO E O PSICOPATA
Carlos Alberto Barros
carloseducador@hotmail.com

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34 SAMIZDAT agosto de 2008


34
O filho-da-puta me cegou! que aconteça um milagre,
Eu não passo de uma porra que Deus exista. Os passos
de um cego agora, sem poder continuam, estão mais per-
fazer nada! E ele ainda está to. Tento lembrar como se
aqui. Meu Deus, queria que reza um pai-nosso, penso na
não estivesse, mas o desgra- minha mãe, na minha espo-
çado ainda está aqui. sa. Os passos estão aqui na
O medo não me deixa cozinha. Cada centímetro do
sentir dor. Enquanto a ponta meu corpo treme, sinto-me
da faca perfurava meus olhos gelado, pareço já estar mor-
e eu quase quebrava meus to. Ouço-os parar na minha
dentes forçando-os uns con- frente.
tra os outros, ainda a sentia. – Encontrei um brinquedi-
Mas, agora, esqueço dela. Só nho bem interessante – escu-
consigo pensar no desespero to de uma voz cínica.
de viver como um cego – – Filho-da-puta! O que
isso, se eu não morrer aqui. você vai fazer?
Há alguns minutos que fui – Nossa! Depois que ficou
amarrado numa cadeira da ceguinho virou macho?
cozinha. Ouvi-o dizer que Calma aí, que, primeiro, vou
ia ao quarto dar um jeito na conversar com sua querida
minha mulher. Miserável! esposa.
Se fizer alguma coisa, eu o
mato. Juro que mato! – Pelo amor de Deus, dei-
xa ela ir...
Ouço seus passos densos
percorrerem os cômodos da – Já, já eu volto.
casa. O som vai se afastando, – Covarde! – grito – Se
se transformando. O baru- encostar um dedo nela, você
lho do portão dos fundos é está perdido!
inconfundível: o maldito che-
– Pára de escândalo e fica
gou à casinha de ferramen-
com os ouvidos bem abertos.
tas. Por Cristo, o que ele quer
ali? Ah, não... Por favor, não... Os passos de meu carrasco
Não deixe que encontre! Ele soam como uma marcha fú-
não é esperto, não vai olhar nebre. Cada um deles espeta-
em cima do armário... É só me o coração profundamen-
um assassino burro, não vai te. Ao todo, são 22 estocadas.
procurar direito. Não deixe Que fossem infinitas! Jesus
ele achar, Deus, por favor, Cristo, quisera eu que fossem
não deixe ele achar. infinitas a ter que percebê-las
parando e ouvir o que ouço
O armário está se abrindo.
agora. Além de cego, faça-me
Coisas são atiradas no chão,
também surdo. Eu imploro:
abrem-se gavetas. Ai, não...
não me deixe ouvir.
parece que está arrastando
uma cadeira... Não... Eu supli- – Não! Não! Por favor,
co, não, não... não enfia isso em mim! – é
minha esposa gritando, como
Minhas únicas compa-
quem vê algo pior que a face
nhias são a escuridão e o
da morte.
desespero, enquanto escuto
os passos lentos retornarem. Amarrado, impotente,
Desejo que o tempo pare, ouvindo tudo, tento disfarçar
meu desespero para acalmar

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o dela: por que está acontecendo armário... Minha serra elétri-
– Vai ficar tudo bem! Eu isso com a gente? Outro pas- ca portátil... Ele achou minha
te amo! Vai ficar tudo bem! – so: Deus, porque nos abando- serra elétrica... Usou lá no
esperneio, ouço, choro, estre- nou? E outro: eu não quero quarto e agora vai usar aqui.
meço. morrer. Estão mais próximos, Sádico maldito! Vai usar em
mais fortes. Não chegue aqui! mim!
– Meu amor, pede para ele Não chegue aqui! Cristo,
parar! Não, não faz isso, pára! – Não precisamos ter
estão já na cozinha! Parecem pressa. Sempre te odiei, seu
Aaaahh! Pede para ele parar! trazer todo o peso do mundo, desgraçado. Faço questão de
Não consigo mais respon- sinto-os quebrar o piso. Pren- te matar bem devagar, peda-
der. Sinto-me o mais impres- do a respiração. Os passos... cinho por pedacinho – fala,
tável dos homens. Inundado Pararam na minha frente. enquanto eu escuto o ruído
pelos gritos de agonia, aban- – Ouviu como sua esposa da serra bem próximo ao
dono o pouco de esperança estava se divertindo? – ouço- meu ouvido.
que eu ainda carregava e os falarem.
simplesmente peço que o – Mas, nem te conheço,
meu fim venha logo. Estremeço na cadeira. Ten- maluco!
to, em vão, me levantar. – Você não me conhece,
Minutos passados, os gri-
tos de minha esposa tornam- – Onde está minha mu- mas eu te conheço.
se sussurros mecânicos de lher, seu débil mental? O que Desde que fui amarra-
alguém em estado de choque. você fez? do nesta cadeira, fiz várias
Ouço a cama rangendo, ouço – Calma. Ela está bem preces. E a única delas que
os gemidos. Não agüento aqui. achei que nunca seria atendi-
mais! O que ele está fazendo? Sinto algo pesado cair da, acontece agora: o milagre.
O que o covarde está fazen- sobre meu colo. Um líquido Ouço sirenes se aproximan-
do com a minha mulher? viscoso e quente umedece do, várias delas. Percebo os
Os sons param. Um breve minha roupa. Não... Por Cris- passos em ação. Correm
silêncio tenta prevalecer. to, não... O desespero toma ligeiros, vão até a sala, vol-
Surgem pequenos ruídos, conta de mim, agito-me, o tam à cozinha. As sirenes
indecifráveis. O que o louco que estava em meu colo vai mais próximas. Mais passos
ainda está tramando? Ah, ao chão. Sarcástica, ressurge em direção ao quarto, de lá,
não... não... Este barulho... a voz na minha frente: saem abruptos, como que
Meu Deus, não... Por miseri- duplicados. Parecem estar de
córdia, não! novo na sala, abrem a porta,
– Seja mais carinhoso... aceleram-se. Ouço-os distan-
Histérica, minha mulher Como é que você joga assim, tes... Mais longe... Não ouço
alfineta meus ouvidos com no chão, a cabeça de sua mais.
longos e agudos gritos. Será mulher?
que ninguém mais escuta Junto com as sirenes, sons
isso? Onde estão as pragas – Aaaaahhh! de carros e freios parecem
dos vizinhos curiosos? A muito próximos. A cam-
Por quê? Por que tudo
polícia? painha toca várias vezes. Eu
isso? Não entendo. O que fi-
peço socorro. Alguém grita
Os gritos se extinguem, o zemos de errado? Eu... Minha
dizendo que é da polícia e
barulho da morte continua. mulher... A cabeça... Deus do
que está entrando. Eu peço
Escuto algo sendo cortado, céu! Não suporto mais, entre-
socorro. Os passos invadem
faço uma prece, amaldiçôo go os pontos.
a casa, montes deles. Graças
Deus. Os passos... Os pas- – Por que não me mata a Deus! Graças a Deus!
sos, mais carregados do que logo, seu maníaco? Vamos,
nunca, estão vindo para cá. – O senhor está bem?
me mata! – exijo, em prantos.
A cada um deles, imagino o – ouço uma voz próxima
Aquele barulho... Ouço, perguntando.
que me trarão. Minha espo-
novamente, aquele barulho...
sa... Esteja bem, meu amor, – O louco matou minha
Eu tinha certeza. Em cima do
por favor. Mais um passo: esposa! Ele me cegou! Acabou

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de fugir! ma de um de seus visinhos de cachorro com o corpo
– Se acalme, senhor. Já dizendo que o amante de cortado. Parte dele está no
temos uma equipe fazendo sua esposa entrou na casa quarto. A outra, bem aqui na
busca. Vamos desamarrá-lo. e, pouco depois, ouviram-se sua frente.
muitos gritos. – O quê?
– Maníaco! Ele ia me
cortar todo! Meu Deus, ia me – Amante? Que história é
cortar! essa?

– Agora está tudo bem, – Foi o que nos disseram.


senhor. Vamos ao hospital Ainda não apuramos as in-
cuidar desses ferimentos. formações.
Depois faremos o boletim de – Mas... Minha mulher...
ocorrência e daremos baixa Onde está o corpo de minha
na denúncia. mulher?
– Denúncia? – Não há mais ninguém
– Recebemos um telefone- na casa, senhor. Só o que
encontramos foi este filhote

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Contos

O LADRÃO
de
OLHOS
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Volmar Camargo Junior Patas-Fortes era um lobo Com o respeito devido,


v.camargo.junior@gmail.com jovem e solitário. Escolheu Patas-Fortes reverenciou-o.
exilar-se de sua família para Embora velho e ferido, o ca-
não ter de competir com o ribu mantinha o porte altivo,
pai pela liderança da alca- mantendo a cabeça ereta e o
téia. Nos últimos dias de um olhar distante, como se igno-
outono estranhamente curto, rasse a presença de lobo.
assolado por ventos sussur- — Por que não me olha
rantes vindos do Oeste, Patas- nos olhos, caribu?
Fortes avistou à distância um
caribu desgarrado. A caça — Porque não o vejo.
fugiu dele por muitos dias Era verdade. No lugar dos
até o limite de sua exaustão. olhos do grande cervídeo
Levou sua presa a cair em havia dois buracos escuros.
uma ravina, de maneira que
— Eu serei honrado em
nem por um milagre escapa-
extinguir sua dor. Seja meu
ria.
alimento, porque tenho fome.

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38
— Será uma grande honra estrelas do céu. Sem escolha, onda de calor aconchegante.
para mim também, predador. o lobo partiu. De olhos fechados, viu a cla-
Mas não quero ser o causa- O disco do Sol, cada vez ridade amarela e quente que
dor de sua desgraça. que completava sua volta, o rodeava. Havia um cheiro
— Por que diz isso? Não ocultava-se mais e mais atrás primaveril de terra, e em sua
há desgraça maior para um do horizonte. Estava ficando língua o adocicado sabor de
lobo que morrer à míngua. escuro. O mundo começava tutano.

— Certamente há. Se co- a vestir seu luto pelo Verão. — Devo ter morrido.
mer de minha carne, cairá na Patas-Fortes correu como Uma voz antiga e afetuosa
escuridão como eu. E nada louco para vencer a tundra. soprou em seus ouvidos.
pode ser pior que um caça- Sua fome era tanta que sentia
suas entranhas devorarem- — Ainda não, lobo. Aqui
dor cego. não é a morte para você.
no. Quando o azul do céu
Patas-Fortes ponderou por despediu-se definitivamente, — Quem é? Onde estou?
um instante. o jovem lupino pisou na
— Aqui é para onde venho
— O que devo fazer, en- planície.
quando Inverno chega. Oh,
tão? Diante do deserto imenso, sim. Eu sou Urso.
— É simples. Basta trazer o lobo sentiu pela primeira
— Por que me trouxe para
meus olhos de volta. vez a solidão. Para espantá-
cá?
la, tão alto quanto podia,
— Isso é impossível, cari- — Porque foi você quem
Patas-Fortes uivou.
bu. me trouxe para cá primeiro.
Então, uma surpresa. Vin-
— Não, não é. Ao sul, Quando você e seus irmãos
do de muito além da vasti-
além da tundra há uma aprendiam a ser caçadores,
dão cinzenta, ouviu a respos-
grande planície. Depois da tiraram minha vida.
ta ao seu uivo. Era também
planície há a floresta. No Patas-Fortes ficou cons-
um lamento, mas, de alguma
meio da floresta há O Olmo, ternado. Em outros tempos,
forma, havia naquele outro
a árvore mais velha do quando ainda vivia com seus
uivo uma gota de gratidão.
mundo, tão alta que sua copa pares, aprendeu que um urso
Precisava chegar à floresta.
furou o céu, e cujas raízes só é confiável se está san-
Precisava reaver os olhos do
jazem no mundo dos mortos. grando no chão.
Avô-Caribu. E a partir daque-
Em um oco do tronco des-
le instante, precisava também — E ainda assim ajudou-
sa árvore vive o Corvo. Foi
encontrar o dono daquele me.
Corvo, o ladrão que roubou
uivo longínquo.
meus olhos. — Sou um Espírito agora.
Em sua enorme agitação, É meu dever ensinar o que
— Não tenho escolha?
não percebeu que o mundo sei a quem precisa.
— Ou isso, ou a míngua. estava mudando. O céu fica-
Finalmente, conseguiu
Dito isso, o venerável va cada vez mais baixo, o ar
ver. Estava em uma toca sob
animal bateu com os cascos mais pesado e duro. O seu
a neve, protegido, aquecido
no gelo, e uma neblina densa trote rugia mais alto aos seus
e com vida – embora ainda
e leitosa ergueu-se em toda ouvidos que o vento. Foi por
estivesse faminto. Patas-fortes
a ravina. Naquele momento, isso que, quando a nevasca
aprendeu a hibernar. Contu-
Patas-Fortes entendeu que tomou a planície, o lobo foi
do, ainda era Inverno. O céu
aquele não era uma presa surpreendido. O Inverno ha-
tornou a abrir, derramando
qualquer. Era o Avô-Caribu. via chegado definitivamente.
sobre o mundo a luz das
Ele sabia – como sabiam O jovem lobo foi sendo aos
estrelas. O frio fora da toca
todos os lobos desde sem- poucos vencido pela neve,
era maior do que antes da
pre – que não se pode negar pelo isolamento e pela fome.
Nevasca, mas uma agradável
um pedido do Avô-Caribu. Perdeu a consciência.
constatação fez com que o
Se contrariado, não haveria Algum tempo depois, seu lobo o ignorasse por comple-
caça para os lobos por tantos corpo foi invadido por uma to. Havia chegado à floresta.
verões quantas fossem as

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Sem ter percebido o E outra vez, foi surpreen- entretanto, era uma morte
quanto caminhou durante dido. Ao seu lado, outro lobo diferente. Permitiu-se ser
a tempestade, Patas-Fortes uivou. Era o mesmo uivo que levado pelo instinto mais
não viu onde estava quan- Patas-Fortes ouviu antes de antigo de sua raça, e seu
do desfaleceu. Rejubilou-se atravessar a planície. focinho transformou todos
quando avistou diante de si — Encontrei você! Enfim, os cheiros das coisas obscu-
um formidável monte, bran- encontrei o uivo que me recidas em imagens dentro
co pela neve como todo o responde. de sua cabeça. Diante dele, os
mundo, mas que tinha seu cheiros fizeram surgir uma
dorso e seus pés cobertos — Sim. É grande a minha árvore tão grande que não
de pinheiros. Patas-Fortes alegria também. Mas sei que se podia ver onde terminava.
tinha uma lembrança distan- não fui eu quem o trouxe até Era o Olmo.
te daquela massa escura de aqui.
— Quer encontrar o La-
caules compridos. Não era — É verdade. Vim para drão? – perguntou o outro.
uma boa recordação, mes- reaver algo que foi roubado. Patas-Fortes, então, viu como
mo sem entender o motivo. ele se parecia. Era dono de
— Seus olhos.
Mesmo assim, impulsionado uma altivez digna de um
pelo compromisso assumido — Não os meus, mas os
alfa, um chefe de alcatéia.
quando Sol ainda pairava de alguém de quem foram
Sentiu em sua presença a
no céu, o lobo lançou-se roubados. Como sabe?
mesma sensação que perce-
contra a penumbra. A luz — Porque é o que todos beu quando encontrou Urso
diminuiu de tal maneira que querem aqui. Todos os que e, antes dele, Avô-Caribu.
depois de não muitos passos, perderam a lembrança da Estava diante de um Espírito.
pôde orientar-se apenas pelo última coisa que viram, vêm Aquele era Pai-Lobo.
olfato. Assim, quando sen- para cá. Ou pedem que al-
tia o cheiro das cascas das — Sim. A hora é agora.
guém o faça.
árvores aproximarem-se o — Siga-me, então.
— Você sabe como posso
suficiente, desviava delas para
chegar ao Olmo, então? Pai-Lobo conduziu Patas-
seguir, mais e mais adentro
Fortes por um caminho se-
na escuridão. E quanto mais — Ainda não percebeu?
creto. Circundando parte do
denso ficava o negrume, mais Você está aos pés dele.
tronco gigantesco do Olmo,
parado o ar, mais confuso Patas-Fortes entendeu o encontraram um buraco que
e labiríntico ficava o ca- que acontecia. Estava expe- levava às raízes da árvore.
minho. Só então, depois de rimentando o que seria seu Desceram até onde era pos-
estar completamente perdido, destino pela eternidade se sível. Em seguida, quando o
Patas-Fortes deu-se conta de não cumprisse a missão. buraco terminava, e o cheiro
que não sabia como chegar Buscando nas suas recor- da terra mais antigo que já
ao Olmo. dações, o lobo encontrou a havia sentido, os dois puse-
Sentiu outra vez o mal- que poderia ajudá-lo naquele ram-se a cavar. E cavaram
estar do isolamento. Com ele, momento: o cheiro de Avô- por um tempo incalculável,
o peso do ar parado, a escu- Caribu. sempre indo para baixo. Já
ridão quase palpável, a fome O lobo ainda sentia frio, não era mais frio, mas não
que voltou urrando dentro ainda estava amedrontado, era quente. O aroma que o
de si. Girou para todos os ainda estava imerso no es- lobo sentia era apenas o seu
lados, bateu-se contra os curo, e acima de tudo estava e de seu companheiro. A ter-
troncos invisíveis dos pinhei- mortalmente faminto. Mas o ra que cavavam não parecia
ros, resvalou no chão que compromisso o fez esquecer- com nada que conhecesse.
ele próprio ajudou a deixar se por um instante de si Então, surgiu uma luz. Era
barrento. Como um último próprio. Pela segunda vez uma luz desagradável e tris-
recurso para fugir ao deses- desde que levou um cervídeo te. Quando chegaram a luz,
pero, ganiu, rosnou, latiu e, velho para uma armadilha, encontraram uma caverna
por fim, uivou. Patas-Fortes esteve próximo nevoenta, onde parecia não
da morte. Mas desta vez, haver nada. De cima, vinham

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as grossas raízes do Olmo. sim sempre foi. Assim sem- desejo pelo outro olho, com
— Não olhe muito, filho. pre será. um movimento rápido de
Aqui é o mundo dos mortos. — Pois sobre estes não caçador o lobo abocanhou
tem. Vou levá-los de volta. seu algoz, engolindo-o sem
— Mas é assim tão feio e mastigar. E assim, tendo
triste. — Eu o impedirei. devorado o Ladrão de Olhos,
— Ninguém vê beleza na E voou. Como um raio, o o predador saciou sua fome
morte até estar morto. Agora, pássaro negro caiu sobre a que durava desde o início do
suba por ali. cabeça de Patas-Fortes. En- inverno.
Disse isto, indicando uma quanto batia as asas e ber- Tomou os olhos negros de
raiz diferente das outras. rava, Corvo enfiou as garras Avô-Caribu entre os den-
Patas-Fortes quis olhar seu nas pálpebras do lobo. Enlou- tes, com cuidado para não
ancestral com os olhos da quecido, o lobo rosnava ten- ofendê-los. De repente, um
carne. Mas quando se voltou tando esquivar-se, e agitava vento vindo da entrada do
para ele, já não estava mais a cabeça querendo livrar-se oco-da-árvore agitou seus pê-
lá. das garras do Ladrão. Com los, e como se ele não pesas-
violência, Patas-Fortes jogou- se mais que uma folha caída,
Seguiu, pois, a orienta- se contra as paredes cheias ergueu-o no ar. Era Chinook,
ção de Pai-Lobo. Ali era a de olhos, e as raízes cheias um dos muitos ventos ami-
entrada do oco-da-árvore. de olhos. Num descuido, com gos de Pai-Lobo. Pelo céu
Assim que entrou sentiu-se uma bicada certeira, Corvo negro do inverno, muito
observado. Em pouco tempo, arrancou da órbita o olho acima da floresta, da vastidão
acostumou-se ao ambiente. direito de Patas-Fortes. da planície e da tundra, o
Só então percebeu o quan-
A dor era absurda. Pare- vento levou Patas-Fortes até
to era terrível o lugar onde
ceu-lhe que toda a dor, toda a ravina, onde estava o dono
estava. Por todos os lados, no
a exaustão, a fome, o frio, o dos olhos que ele portava.
chão de terra, nas paredes
lenhosas do oco-da-árvore, desespero, as mortes de que Até hoje, o Espírito de um
nas raízes protuberantes, escapou e as mortes que lobo caolho aparece para os
preenchendo todos os es- trouxe para as criaturas que jovens caçadores que enfren-
paços havia uma infinidade caçou, todo o sofrimento de tam o frio, a fome e a incer-
de olhos. Adiante, em uma sua existência foi sentido de teza de seus destinos.
raiz retorcida e coberta de uma única vez. Então, rolan-
olhos, dormia, empoleirado, o do no chão coberto de olhos,
Corvo. Patas-Fortes percebeu o que
estava acontecendo.
O aspecto do lugar causou
em Patas-Fortes um grande À distância, em seu polei-
desconforto. Porém, sem que ro, o corvo convulsionava de
pudesse conter, seu focinho tanto rir, segurando na garra
apontou com segurança na esquerda seu novo troféu.
direção de um nó de ma- Em uma atitude desesperada,
deira coberto de olhos. Entre ocorreu ao lobo uma idéia
eles, um brilhante par de absurda.
olhos negros. Eram os de — Corvo! Você venceu.
Avô-Caribu. Não consigo suportar ser um
— Lobo! – disse uma voz caçador com um olho só.
aguda – Sequer, em tocá-los, Por favor, arranque o outro e
pense. beba minha última visão.

— Você é que não vai me — Com prazer. – disse,


impedir, Ladrão! guloso, o pássaro ladrão.

— Eu esses olhos roubei. Assim que Corvo pousou


Sobre eles direito tenho. As- em seu focinho, louco de

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Contos
Wilhelm Schröder (1881-
1947) dedicou grande parte
de sua carreira médica
ao estudo das patologias
psiquiátricas. Foi as-
sistente de Otto Loewi,
posteriormente passou a
investigar e compilar casos
para sua obra mais impor-
tante, ­Kompendium der
­Psychopathologie.
A morte trágica, durante
sua internação num hospital
psiquiátrico, comoveu a
comunidade médica.

Síndrome de Caim Henry Alfred Bugalho


henrybugalho@gmail.com

42 SAMIZDAT agosto de 2008


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O psiquiatra bávaro psiquiatras de sua época. Em Gretchen sobe os motivos
Wilhelm Schröder reali- seu diário, Schröder relata para ela ter matado aquela
zou, durante sua carreira, seu entusiasmo: considerada como sua me-
extraordinários avanços na lhor amiga, Gretchen foi
área de psicopatologias. Foi assertiva:
Os anos de trabalho árduo
um dos assistentes de Otto — Ela estava me envene-
compensaram. Finalmente, aqueles
Loewi para a sintetização senis doutores se curvam diante nando, desde o dia em que
da acetilcolina, viajou por de mim, até Hermann (Keller) cheguei nesta casa.
toda a Europa catalogando me escreveu congratulando-me.
as patologias psiquiátricas e Como deve ter sido difícil para E realmente, após a morte
foi o primeiro a identificar a ele engolir seu orgulho! de Lotte, o estado de saú-
Síndrome de Caim, ao anali- de de Gretchen melhorou
sar mais de setecentos casos evidentemente. Mesmo assim,
No entanto, havia três
de fratricídio. ela foi enviada a uma casa de
casos específicos que intriga-
correção, onde ficou confi-
As características mais evi- ram Schröder.
nada até os vinte e um anos,
dentes da Síndrome, segundo O primeiro era de duas ir- quando então não mais se
consta na obra que trouxe mãs adotivas austríacas: Lotte teve notícias dela.
notoriedade a Schröder, Kom- e Gretchen K.
pendium der Psychopatholo- O segundo caso era ainda
gie, são: Gretchen havia sido trazi- mais curioso. Hans F. era o
da ao lar da família K. pouco filho do primeiro casamento
a) extrema rivalidade antes de atingir a puberdade de Johann F. Quando enviu-
entre irmãos, de ambos os e o convívio com o novo vou, Johann, com cinqüenta
sexos, em busca de aprova- núcleo familiar foi harmo- e cinco anos, se casou no-
ção duma terceira parte: pai, nioso. Lotte, dois anos mais vamente com uma mulher
mãe, grupo social, comunida- velha, recebeu-a sem reservas, muito mais nova do que ele,
de, amigos; o que facilitou a ambientação Tatyana, descendente duma
b) o primogênito ou irmão de Gretchen. linhagem russa, apenas vinte
mais velho apresenta distúr- Contudo, Gretchen pa- anos de idade.
bios comportamentais, geral- deceu duma desconhecida Tatyana logo engravidou
mente de natureza agressiva enfermidade, obrigando os e deu a luz a Louise. Hans F.
e/ou destrutiva; pais adotivos a dispensar-lhe estava em seus trinta e cinco
c) por ser uma psicopa- atenção especial; de irmã, anos quando do nascimento
tologia de difícil identifica- Lotte se transformou em da irmã. Ele era um homem
ção, ainda mais tendo-se em enfermeira. bem-sucedido, sócio duma
conta a natural inclinação da A doença da filha adoti- exportadora de equipamentos
prole em disputar o afeto dos va se agravava sem razões industriais, proprietário de
progenitores, só se constata aparentes, nenhum médico imóveis em Berlim e dum
a gravidade dela após ani- conseguia determinar suas chalé na Basiléia, casado e
mosidade (violência física ou causas. No entanto, a morte pai dum menino que ainda
verbal) entre irmãos ou, nos não adveio, como se espera- não havia completado um
casos mais extremos, fatricí- va, para Gretchen, e sim para ano.
dio, sendo o irmão mais novo Lotte, esfaqueada na garganta Antes do nascimento de
objeto da agressão; enquanto servia almoço à Louise, o filho de Hans era
d) natureza crônica, comu- irmã. quem ocupava o lugar cen-
mente desenvolvida durante O brutal assassinato per- tral nos cuidados do avô,
anos ou décadas de convi- petrado por uma adolescente porém, ao nascer a filha
vência conflituosa. foi capa de todos os jornais temporã, naturalmente Jo-
A repercussão das teorias europeus, e durante algum hann passou a se dedicar aos
de Wilhelm Schröder foi tempo, os índices de adoção cuidados de Louise.
imediata e elas foram acolhi- decresceram drasticamente. Naquele Natal, estando to-
das pelos mais importantes Quando interrogaram dos reunidos à mesa da ceia,

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Hans subiu ao quarto onde a
irmãzinha dormia e a sufo-
cou com um travesseiro.
A morte do bebê foi con-
siderada por causas naturais.
Hans revelaria o assassinato
apenas alguns anos depois,
ao ser diagnosticado porta-
dor duma doença terminal.
Sob o peso da verdade, seu
pai o deserdou e sua esposa
o abandonou.
Hans cometeu suicídio
com um tiro na cabeça, uma
foto de Louise repousava em
seu colo.
O terceiro e mais sur-
preendente dos casos, que
influenciaria diretamente a
carreira do Dr. Schröder (o
que ele só descobriria poste-
riormente), dizia respeito a
um rumor, à boca pequena,
de que Gustav Schröder era
o favorito para receber o
Prêmio Nobel de Fisiologia,
graças a suas pesquisas na
área cardiovascular.
Wilhelm Schröder era
mais velho e razoavelmente
conhecido por seus pares,
mas a notícia de que um É inacreditável! Há uma todos terem se recolhido,
década que dou meu sangue por Wilhelm e Gustav sentaram-
rapazola, recém-saído da
meu trabalho e, com muito custo,
Universidade, estivesse sendo se no quintal para fumar.
consegui um pouco de renome.
cogitado para o mais impor- Mas meu irmão, sabe-se lá por “Eu perguntei a Gustav
tante prêmio na área médica, que cargas d’água, por um simples o que ele pensava de mim”,
foi demais para o primogê- trabalho acadêmico, está sendo conta-nos Willhelm Schröder
nito. considerado como um gênio da
medicina.
em seu diário, “e ele me res-
Na medida em que o dia pondeu que eu era seu irmão
Todos se achegam e me dão
do anúncio do prêmio se mais velho”.
tapinhas no ombro, congratulan-
aproximava, os boatos se do-me por ser irmão dum futuro — Digo profissionalmente,
tornavam mais freqüentes ganhador do Nobel. Tenho nojo Gustav. O que você pensa de
e consistentes — o nome de deste povo ignorante. mim como médico?
Gustav Schröder se fortalecia.
— Você é ótimo, Wi-
Organizaram uma festa para
Naquela noite, brindaram lhelm... — Gustav refletiu
comemorar a indicação.
à saúde de Gustav parentes — Tem um potencial que po-
No diário de Wilhelm, na e amigos, a premiação era deria ser melhor explorado,
entrada escrita poucas horas tomada como certa, todos talvez precise de um pouco
antes da festa, ele escreveu: estavam inebriados. mais de ousadia, mas tem
No fim do jantar, após tudo para ser reconhecido no
futuro.

44 SAMIZDAT agosto de 2008


44
Numa única sentença, te aquelas referentes à Sín- de morfina ministrada por
Gustav disse três palavras drome de Caim. Isolde, uma enfermeira com
proibidas no vocabulário de Assim que foi publicada, quem ele manteve um sigilo-
Wilhelm — potencial, ousa- Jacques Dubois enviou um so relacionamento amoroso
dia e futuro. O irmão mais exemplar da nova edição naqueles anos de cárcere.
novo dizia ao mais velho para Dr. Schröder no sanató- A última inscrição no
que, em menos tempo, havia rio. diário de Dr. Schröder dizia
obtido mais do que o outro o seguinte:
jamais conseguiria. A princípio, Wilhelm
Schröder se orgulhou pelo
Wilhelm retirou do casaco trabalho do discípulo, uma Sempre me questionei sobre
o revólver, gesto que ele revisão que tornou a obra como a posteridade se recordaria
havia ensaiado uma vintena mais completa e precisa, da minha passagem pelo mundo
de vezes durante o jantar e o refinou alguns conceitos e dos vivos.
apontou para Gustav: desenvolveu estudos apenas Lutei para conquistar meu
— Quem você acha que é esboçados por Schröder, no espaço, realizei grandes obras e
para falar deste jeito comigo? entanto, no capítulo desti- equívocos maiores ainda.

— Você me perguntou o nado à Síndrome de Caim, Mas de médico brilhante a


Schröder se deparou com a caso psiquiátrico, isto jamais!
que eu pensava sobre você,
meu irmão, apenas respondi descrição do próprio caso.
com sinceridade. Ele já havia refletido sobre
— Mas você é um rapa- o ocorrido, sem nunca com-
zinho muito do arrogante preender como um psiquia-
mesmo! Quando minhas pes- tra renomado poderia ser
quisas já estavam circulando vitimado pela patologia que
pelas mãos dos mais impor- descobriu e cujos sintomas
tantes médicos da Europa, estudou.
você era ainda um meninote Encontraram Wilhelm
de calças curtas, tomado por Schröder morto em sua cela,
acnes, se masturbando após após receber uma dose letal
ver Greta Garbo no cinema.
E vem me falar de potencial!
Wilhelm Schröder con-
fessou que não tinha inten-
ção de apertar o gatilho, no
entanto, a poderosa rivali-
dade inconsciente foi fator
determinante (esta uma das
características da Síndrome
de Caim).
Wilhelm disparou três
vezes contra o irmão.
Jacques Dubois preparou
uma edição revisada e atua-
lizada do Kompendium der
Psychopathologie. Ele havia
sido aluno do Dr. Schröder;
posteriormente, discípulo
e assistente. Mesmo após a
prisão do mestre, Dubois
continuou investigando as
psicopatologias, especialmen-

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Contos

O PALCO José Espírito Santo


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46 SAMIZDAT agosto de 2008


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Ele estava tenso... muito os com a vista enquanto os
tenso mesmo! De tal modo roubava por um momento
que seus músculos grandes ao seu quotidiano rotineiro
e possantes, flectidos sob a medíocre e sempre igual,
pele escura, espelhavam com aquele “sempre o mesmo
precisão cirúrgica o que lhe fazer” das suas tarefas de su-
ia na alma. Sua mente seguia cesso. Sentia-se rei do mundo
pronta e solícita a lista de e das passadas. “Black Power”.
exigências e necessidades e Eterna exuberância negra!
as muitas regras de “tão bem Talento, perfeição, capacidade
fazer” que cuidadosamente elevada a sua máxima po-
lhe tinham sido transmiti- tência. Tudo perfeito! Então...
das por quem aprendera de olhou melhor, focou...
quem aprendera, de quem
aprendera. Falta de espaço
para a distracção, essa eterna Olhou para si mesmo
banida e eterna mal querida e para a dura realidade
daquele que está concentrado do presente! Esqueceu por
e em palco, no acto... Para momentos o futuro que de
magnífica peça não menos impossível era incerto! Este
magníficos executantes, essa palco em que actuava era do
era a regra! tamanho do mundo e muito
maior que outro qualquer
palco e outro mundo! Ao
Olhou. Mais uns segundos contrário da do seu sonho,
e a cortina abriria deixan- a sua coreografia actual era
do adiante apenas o palco parada, estática e silenciosa.
nu e vazio para preencher. E ninguém lhe ligava. Nela
Preparou-se com todo o ele aparecia mostrando os
cuidado. A vista viu o pano ossos salientes à flor da pele
vermelho fugir rapidamente num corpo magro mal nutri-
para ambos os lados deixan- do, desprezado, escanzelado.
do à sua frente o horizonte Era seu único equipamento
aberto, escancarado, convi- o pedaço de pano roto, todo
dativo. Os primeiros acor- ele feito de improviso e não
des chegaram exuberantes de técnica, atenção ou qual-
e cheios de energia a seus quer cuidado. À sua frente, o
ouvidos e desencadearam de prato mal disfarçado, vazio
imediato qual acto reflexo, chamava insistentemente pela
qual mola invisível seu salto comida que de lá longe não
em frente e inicio dos passos prometia sequer conseguir
previamente bem treinados. chegar.
O fulgor da arte. A magia. A
dança!
Olhou para si mesmo com
seus olhos de criança mais
Entre passos, olhava e via uma vez. Depois fechou os
passar como num relâmpa- olhos deixando gradualmente
go as caras e atrás delas as a escuridão entrar e chutou
expressões. E isso era o que para longe aquele “ele” que
lhe dava maior prazer! Sentir este ele nunca teria a oportu-
aquele hipnotismo forte que nidade de ser.
emanava e que permitia fazer
acontecer. Acompanhava-

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Contos

Joaquim Bispo

OS RATOS
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48 SAMIZDAT agosto de 2008


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Pela Páscoa, encontrei um Foi uma tarde de sábado a olhar para aquele cenário,
amigo da tropa, que já não pouco romântica. Limpar sem compreender o que esta-
via há uns quarenta anos. toda aquela porcaria, provo- va a acontecer. A perguntar-
Estava entusiasmado com cou-nos sentimentos per- me, porque é que os ratos se
uma compra que tinha feito versos de vingança. À noite, estavam a comportar da-
há pouco tempo; uma casa antes de adormecer, distribuí quela maneira. A explicação
no campo que, segundo disse, uma meia dúzia de pasti- atingiu-me então como um
era um elixir miraculoso lhas, pelos cantos da cozinha, soco. Fiquei branco. Devo ter
para a pressão da vida na sentindo o rancor prestes a feito um esgar de horror, ao
cidade. Satisfeito com o meu ser saciado. De noite, uma tomar consciência da incrí-
interesse, acabou por insis- vez que acordei, apercebi-me, vel estupidez da minha troca
tir em me emprestar a casa, nitidamente, de um restolhar de embalagens. Do alto do
para lá ir passar uns dias. Eu na cozinha. Virei-me para o escadote, olhei para a mesa-
aceitei com agrado e muita outro lado, com um sorriso de-cabeceira. Lá estava uma
curiosidade. Mas o meu ami- consolado. pastilha azul de raticida, que
go avisou-me: eu estive quase a tomar, se
– Olha que é capaz de não fosse a enxaqueca provi-
Ao romper do dia, acordei dencial da minha mulher!
haver lá ratos! Da última vez sobressaltado. Ouviam-se
que lá estive, havia. guinchos, correrias, ruídos
vários, vindos do forro da
Na manhã do sábado casa. Era um chinfrim enor-
seguinte, de espírito fresco e me. Como se um bando de
roupas leves, rumei às Bei- gatos perseguisse os ratos,
ras, com a minha mulher. numa luta feroz e prolon-
Mas antes preveni-me. Fui gada. Não se assemelhava
à drogaria e comprei uma nada à débil agonia de dois
embalagem de pastilhas de ou três ratos envenenados.
raticida. Parecia até que o reboliço
aumentava.
Efectivamente, o sítio é
lindíssimo: muito arborizado,
junto ao espelho de água de A minha curiosidade
uma barragem, com a som- não me deixou continuar
bra azulada de uma serra, na cama. Como havia um
em fundo. Feito de encomen- alçapão no tecto do quarto,
da para um fim-de-semana fui buscar um escadote e,
romântico. E a vivenda tem um pouco receoso, esprei-
o encanto das casas tradicio- tei. O que vi não pode ser
nais: antiga, toda em granito, completamente transmitido
com lareira, e quartos forra- por palavras. Uma dezena
dos a madeira. de ratos copulava, frenetica-
Mas, realmente, está in- mente, num desespero aluci-
festada de ratos. Na cozinha, nado. Corriam. Rebolavam.
havia restos de embalagens Saltavam. Trocavam continu-
que o meu amigo lá teria amente de parceiro. Forma-
deixado – pacotes de sumos, vam-se mesmo, molhos de
garrafas plásticas de refri- três ou quatro, em tentativas
gerantes, caixas de flocos de cópulas improváveis. No
– tudo misturado com xixi soalho, jaziam já uns quatro,
e caganitas. O aspecto da mortos por exaustão.
cozinha era desolador.
Fiquei um minuto atónito,

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Contos

Maria de Fátima Santos

LUANDINO
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50 SAMIZDAT agosto de 2008


50
Luandino apalpava-lhe as partida.
mamas com dedos lassos.
Ele debruçado nela. Os
Dedos que lhe escorregavam
receios perdidos, pensava ela,
nas axilas, frouxos. O côn-
muito branca e ruiva mesmo
cavo da mão recusava-lhe os
sem a luz da lua que ainda
bicos. Afagava-a em medro-
nasceria.
sos receios. Parecia-lhe a ela
que ele afagava a testa suada A dois passos, a sala de
de um velho. jantar. A luz de um cande-
eiro recortou em negro o
E era sexo o que ela que-
cachimbo e o fumo. E a voz
ria. Sem denguices e nem
que afagou o escuro, nem era
rodeios.
um chamar, era um pedido.
Encostou-se nele. Sentiu-o
- Júlia.
intenso sobre o vestido fino.
Segurou-lhe as nádegas. Era o pai Antunes cha-
Redondas, tensas. Roçou-se. mando para jantar.
Cabrita-montesa, pendurou-
se-lhe no pescoço. Ganhou- Ela nem respondia. Ape-
lhe vantagem. Quebrou-lhe nas aparecia sentada na mesa
a anca magra com as pernas, comprida da sala. Era assim
nuas de saia. Desceu-se lenta. há anos.
Desfez-lhe o cinto. O botão. Não mais amanhã. E nem
O fecho: de cima para baixo, depois. Quem sabe, nunca
que é o jeito. mais.
Mirou-o: quedo, surpreso Desprendeu-se do corpo
decerto. dele que levara susto. Ela
Virgem arrependida, ela riu-se.
beijou-lhe cada mamilo Luandino enterrando as
descoberto dos botões que mãos nos bolsos do casaco
abriu um a um, em pressas. verde, roto nas mangas sobre
Nem precisou mover-se: ele as pulseiras e o relógio de
era alto e ela nem se cresceu pulso. Tudo em doirados
mais que o metro e cinquen- como o anel que trazia no
ta e quatro. Nem mais um dedo mindinho de cada mão.
centímetro que o andar de
salto alto, até muitos anos Júlia apegou-se a ele.
passados sobre essa noite. Adengou-se ainda um peda-
cinho. Quente animal em cio,
Ele depressa se desen- passou-lhe a mão entre as vi-
tendeu com os receios. rilhas a sentir-lhe o membro.
Arrematou-os. Limpou-se de Apertou de leve num misto
surpresas. Juntou-se a ela na de raiva e em afago. Num
luta contra eles. Beijou-lhe a desespero, pensaria, se fosse,
boca, sôfrego. Atabalhoado, ao momento, o caso. Se fosse
a língua que lhe rebuscaria mais tarde. Um dia.
interiores, nem eles ainda o
sabiam, dançou-lha por cada Na mesa coberta de linho
mamilo em redondos mo- bordado, os copos gorgo-
lhados. Ainda não cuspidos, lejavam ao cair dos sumos,
isso a noite o ditaria, mais dos vinhos, da água. Júlia
o desassossego da lua e da comia o peito de galinha

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com quiabos. Calados, ela e o Beijou-o de jeito calmo e Na vinda, trazia-se reno-
pai. Silêncio só quebrado ao terno que nisso nem preci- vada. Doíam-lhe, ardendo, os
café. Era o hábito desde que sava fazer esforço: ela gos- bicos dos seios sob a blusa
lhe morrera a mulher fazia tava dele. Muito ela gostava que trouxe desfraldada. A bi-
dezoito anos. Tantos quantos daquele pai viúvo. cicleta enternecia-se aos seus
a distância do dia em que pedalares. Era o finzinho da
E foi dançando pelo cor-
a pariu a ela, Júlia. Silêncio madrugada.
redor. Abriu de par em par a
durante as refeições.
porta da cozinha e saiu para Na cozinha, havia pão
Só a voz de Joaquina. a lua que alumiava, branca com doce de goiaba e um
e amarela. A lua que fazia, copo de leite muito branco e
- Quer que sirva a sobre-
quase em oiro, a terra verme- ainda morno. Joaquina quem
mesa, sinhá Maria?
lha das traseiras. Levou pela deixara. Sorriu-se um sorri-
Sempre se dirigindo a ela. mão a bicicleta até chegar à so que lhe enviou a ela que
Desde pequenina, ela era a estrada: uma língua de terra, logo, logo ia acordar.
mulher da casa. Sempre a batida a maço, mal coberta
Dançou-se seminua na
chamava de sinhá Maria. de uma fita que já fora preta.
cozinha. Partia dentro em
Julinha, apenas quando se Pedalou depressa. Cruzou-se
pouco. Nesse dia. Ía no jipe
sentava na bordinha da cama com o jipe do tenente Ma-
do tenente até ao aeroporto.
contando estórias velhas: “do tias. Ía para a sanzala. Era
tempo em que a mãezinha o seu costume. Ela sabia.
era viva, antes da menina Acenou-lhe e riu sem muito
bem perceber ao que achou Nunca mais viu Luandino.
nascer”. Ou as coisas, que
Joaquina dizia serem “para o piada. Sincopou, no para Num Maio, tão longín-
paizinho não sofrer”. cima e para baixo, em redon- quo que nessa noite nenhum
do, o pisar do pedal. deles sabe que existia, depa-
- Não anda com Luandino,
Lembra-se que ia serena, rou-o.
Júlinha. Ele não presta. Seu
pai não gosta. Vê, ele nem é no lusco-fusco, que a lua se Era Lisboa. Rossio. Ao fim
homem de lhe merecer. fizera alta e as árvores aden- da tarde.
savam copas sobre a estrada.
Júlia comia a talhada de Tanto ano passado sobre
manga, silenciosa. O sabor Passou a casa do Chefe de a noite de lua. Tanto estro-
do corpo de Luandino mis- Posto e contornou à esquer- piado e tanto morrido. Tanto
turava-se ao sabor da fruta. da. Abriu o portão de ferro: passado e tanto presente
Sorriu-se. O tecido da blusa uma cancela ferrugenta. se fizera nela desde aquela
roçava-lhe, desusado, cada Encostou a bicicleta no muro noite.
mama. baixo. Chamou sob a janela
entreaberta. Ele encostado ao ferro da
Bebeu, em goles lentos, boca do metro. O Luandino.
a bebida gostosa de pura - Luandino… Preto retinto. A carapinha
cafeína. Ouviu o pai falar da encanecida nas fontes. O
A lua iluminava o quarto
fazenda. Lembra-se bem: nes- Luandino dependurando doi-
sem mais móveis do que a
sa noite, falou-lhe nas vacas rados sob as mangas coçadas
esteira desdobrada no chão
que aleitavam. de um casaco.
de cimento. Isso, e um pano
-Seca-lhes o leite ou este de cores a servir de nada aos Sob o vestido justo que
enfraquece. Já morreu um corpos deles, nus, ferventes, e trazia, os bicos dos seios
bezerro. ao quente da noite com lua. adensaram-lhe recordados.
Vagueavam chamares, ao Ela estranhou-se.
E ela, pensando em ma-
mas, sorriu para dentro da longe, que ela não ouviu: O homem reagiu ao seu
chávena onde aparecia, ténue, estar ali parada, olhando-o:
- Júlia.
a cara de uma chinesa: por- pediu-lhe dinheiro para o
celanas que a mãe levara de Era o pai Antunes. Como almoço. Estendeu-lhe a mão
enxoval. ela adorava aquele pai viúvo.

52 SAMIZDAT agosto de 2008


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de dedos longos.
Os dedos dele: iguais, pal-
pando, remexendo, exploran-
do, na noite de lua, naquela
noite grande.
E ela com a nota esqueci-
da, perscrutava-lhe um vis-
lumbre sob as lentes negras,
de contrabando.
Ele agradeceu:
- Deus a guarde, senhora.
Deus é grande. E dizem que
Alá, também.
E riu um rir de um lugar
sem onde.

Júlia seguiu pelo passeio.


Desejou perder-se nas gentes.
Perder-se do seu eu cho-
rado.

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Contos

SAMIZDAT agosto de 2008


UM DESEJO
Denis da Cruz
- Até a primeira, ou até rar todos os obstáculos. ossos cederam lugar à lâmi-
a última gota? – perguntou Akin viajou pelo oeste, o na do irmão.
Akan, parado no jardim de caminho onde apenas um Deu dois passos para trás
rosas amarelas. Sua armadu- homem de muita coragem e dois outros golpes risca-
ra prateada refletia o ouro poderia ousar. Ali enfrentou ram-lhe o ventre. Caiu sobre
do sol e das flores, fundindo gigantes, as duas Jahis - que o berço de flores e Akin
os tons num alo brilhante. queriam comer seu coração prostrou um joelho em seu
- Até a última, meu ir- enquanto pulsava – e a últi- peito, encostando a ponta da
mão – respondeu-lhe Akin, ma barreira foi o Demônio espada no pescoço.
olhando mais ao longe, onde chamado de Abadom. - Mate-me, Irmão – disse o
despontava um botão de rosa Chegaram juntos à en- derrotado.
vermelha, como lágrima de trada do jardim e contem-
sangue em meio a um cantei- - Não posso.
plaram o campo dourado.
ro de trigo a ser colhido. Depois de muito caminhar, - Sim, você pode – sorriu
Afastaram-se um do outro. avistaram a rosa vermelha, o Akan, o suor se misturando
O vento acariciava as rosas Botão de Nandra. ao sangue. – A coragem sem-
e estas retribuíam o carinho pre foi maior em você.
No presente embate, a es-
nas pernas dos guerreiros pada de Akin resvalou na ar- Respiravam no mesmo rit-
que eram irmãos de sangue madura do oponente. Faíscas mo, mas Akin não conseguia
duas vezes, de ventre e de chisparam no prata como o despedir-se do irmão.
voto. sangue espirrando da carne. - Eu não teria forças para
- Com ou sem a Arte? – Akan atacou uma, duas, ver vocês dois juntos – argu-
perguntou Akan enquanto três vezes, mas o irmão não mentou Akan – Ame-a, por
sua espada entoava a primei- arredou o pé; defendeu e nós dois. Ame-a, como se a
ra nota, chiando ao sair da contra-atacou. Os minutos estivesse amando por mim e
bainha. da luta se transformaram em por você. Colha o botão.
- Não se pode usar a Arte horas e o sol estendeu um Os guerreiros fecharam os
contra um Irmão – sorriu o tapete de rubra luz para que olhos e a espada de Akin en-
outro. a lua viesse assistir a batalha. toou a última nota, rompen-
- Há muitas coisas que Sob o brilho da Mãe No- do os ligamentos e atraves-
não podemos fazer contra turna, os irmãos lutaram. Os sando o pescoço gorgolejante
um Irmão e, apesar disto, golpes ficando mais fortes, até mergulhar na terra fértil.
lutaremos até a morte. arrancando partes das arma- Akin beijou a face morta
Akin avançou. Sua espada duras. Ambos já lutavam sem do irmão e caminhou pelo
cumprimentou em batalha a o peitoral e o elmo. jardim. Ajoelhou-se ao lado
arma do germano. Compa- Nasceram juntos, eram do botão e as mãos fortes
nheiros, amigos, fiéis devotos gêmeos; cresceram na mesma seguraram-lhe o talo. O
da Ordem de Sáah, agora casa e foram dedicados ao rompimento veio seguido de
empunhado armas como Sumo Guerreiro no mesmo luzes que cintilaram e um
inimigos, a fim de resgatar o dia. Mardan foi o mestre dos brilho que acompanhou a
Botão Vermelho do Jardim de dois e ambos tinham o mes- rosa até ser deitada numa
Nandra. mo nível na Ordem de Sáah. pequena caixa de marfim.
Atravessaram quase todo o Tanto eram iguais que Andou pelo vale e subiu
continente, cada um por seu partiram em idêntica jornada em seu cavalo. Retornou pelo
caminho. Akan venceu Mor- e tinham o mesmo motivo. mesmo caminho, onde os
go, a serpente do pântano e maiores obstáculos já haviam
Um erro. Foi o único que sido suplantados.
outros incontáveis desafios, Akan cometeu na luta que
mas quase pereceu no emba- travavam. Sentiu o ferrão Entrou em seu país e
te com as Valkírias. Ele era ardente atravessar-lhe logo alcançou o Castelo de Nór.
forte e a Arte ajudou a supe- acima do coração. A carne e Uma miríade de guerrei-

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ros completava todo átrio voltou para seu trono. Pri- amor. Não hesitaria em tirar
do palácio e sacerdotes lhe meiramente sorriu e depois sua vida por vingança.
deram passagem pela imensa o som de sua gargalhada O rei ofegava, seus dedos
escadaria. reverberou pelas paredes do roliços correndo em cima da
O peregrino entrou no salão. caixa, titubeando se toca-
salão real, enquanto oiten- - Matem-no! – sentenciou. va ou não a brilhante rosa.
ta guerreiros se curvaram. Os oitenta guerreiros Antes de decidir, Akin bateu-
Ajoelhou-se diante do Impe- avançaram de seus postos, lhe no punho, derrubando
rador e ergueu a caixa sobre enquanto Akin levantou-se o botão. A Rosa de Nandra
a cabeça; entreaberta, ela aturdido. O corpo do pere- caiu ao sopé do trono, se
mostrava a flor cintilante. grino respondia aos ataques misturando ao sangue dos
- Eis o Botão de Nandra, como um olho que fecha ao corpos na escadaria.
meu Senhor – levantou a rufar de uma nuvem de poei- - Fale! – gritou.
fronte. – Dê-me a prometida ra. Reflexo. Flechas, espadas - Um Desejo – disse o im-
mão da minha princesa. e lanças eram desviadas ou perador tartamudeando. – O
Há muitas coisas que aparadas. botão de Nandra contém Um
podem superar o amor entre Para cada defesa que Desejo. E só um coração que
irmãos, mas nenhuma delas fazia, retornava dois contra- desejasse o Amor poderia
é mais forte que corações ataques; dois corpos inimigos colhê-lo.
fraternos desejando a mesma dilacerados. Akin atacava É impossível descrever o
dama. com a espada, com o punho que sentiu Akin. Amou a
Akin e Akan se apaixona- e com a Arte – rajadas de princesa e por ela se embre-
ram por Mirah, a única filha energia azul, que ora saiam nhou naquela viagem. Lutou
do rei, prometida ao guerrei- da palma de sua mão esquer- contra a fúria do tempo,
ro que trouxesse o Botão de da, ora riscavam junto ao fio contra criaturas terríveis e
Nandra. de sua arma, rasgando corpos travou a maior de suas bata-
dos oponentes à frente. lhas, entregando à Morte o
Muitos peregrinaram às
distantes terras do norte. Combatendo, Akin subiu seu amado irmão.
Nunca se ouviu falar de os sete degraus do trono. Akan não foi o único a
alguém que houvesse retor- Guerreiros protegiam o rei, morrer em vão. Outros guer-
nado. que apertava no peito gordo reiros pereceram diante da
a caixa de marfim. artimanha do imperador, na
Mas os irmãos, mesmo
sabendo do intento um do Quando matou o último busca de seu Um Desejo, a
outro, partiram em busca da inimigo, a porta do salão se maior das magias existentes.
rosa. escancarou e uma infinidade Ao degolar o imperador,
de soldados, vestidos em seus passou a ter um sentimento
Durante a jornada, deseja- trajes azulados, invadiu o
vam intimamente ou morrer, de fácil descrição: justiça.
local.
ou que o outro perecesse no Virou-se para o salão
caminho. Mas nada dis- Akin virou-se num átimo infestado de soldados com
to ocorreu. A morte só os e apoiou o pé esquerdo no armas em punho ou arcos
envolveria através do braço trono, entre as pernas do preparados. Um a um, foram
irmão, dando o último golpe. imperador. A espada, ébria se ajoelhando, se curvando
do sangue de oitenta vidas, até as cabeças tocarem o
- Claro – disse o impera- tingiu de vermelho o pescoço
dor levantando seu protu- chão. Havia um novo impe-
do rei, se afundando na ba- rador em Nór, que acabara
berante corpo do trono. – A nha, sem cortar-lhe a carne.
mão da princesa Mirah será de conquistar o trono na
sua – desceu os sete degraus - Fale! – gritou Akin forma das Leis Ancestrais:
– tão logo eu confira o que ouvindo o som dos arcos re- pela espada.
há em suas mãos. tesarem no outro extremo da
sala. – Matei meu irmão por
Pegou a caixa de marfim e

56 SAMIZDAT agosto de 2008


56
Contos

Digressões do Dia Numa


Estranha Manhã do Entardecer
no Outono da Primavera
Guilherme Rodrigues quei-as. Os espinhos fizeram trava com o céu alaranjado
cortes profundos que san- do entardecer. Havia árvores
Eu estava na minha ca- gravam e ardiam. Ela estava e flores por toda parte. Era o
minhada matinal, como presa e deixei-a. Amor. A paisagem mais linda
fazia todos os dias. Era uma que já vi em toda minha
manhã agradável, linda, en- Vi alguns clarões no céu e
em seguida escureceu. Fiquei vida. Sentia-me bem, leve e
solarada e fresca, com uma feliz. Resolvi descer e cami-
leve brisa gélida. Andando no escuro, não enxergava
nada, não via minhas mãos, nhar pelo campo.
sem rumo e distraído fui
parar numa parte totalmente não via meu corpo. Come- Ao me virar para sair, de-
desconhecida, nunca estive- cei a tatear a parede com as parei-me com meu quarto de
ra antes e nem sabia, até o mãos doloridas e sangrentas quando eu tinha cinco anos.
momento, que existia. para me guiar e sair dali. Uma nostalgia me inundou.
Encontrei um interruptor. As Vi minha cama desarrumada
Essa parte da cidade era luzes acenderam e eu esta- como sempre deixava. Minha
diferente das outras, tinha va agora numa casa, nunca pequena escrivaninha junto
tons cinzas e pretos, com ar- estive ali, mas me pareceu à parede, no canto, e alguns
quiteturas antigas, mórbidas familiar. papéis e lápis em cima.
e carregadas de tristeza, com Nas paredes tinha muitos
ares melancólicos. Fiquei parado, tomando
conhecimento da casa. Era desenhos colados por toda
Continuei caminhando, uma sala de jantar e tinha a parte. Desenho de toda a
observando cada lugar em uma grande mesa de madei- família: papai, mamãe, irmão,
que passava. Já estava per- ra. Percebi que era observado irmã. De meu gato, meus
dido e não sabia o caminho por uma garota, uma me- amigos e monstros reais da
de volta. Não havia ninguém nininha. Escondida atrás do minha imaginação. No chão
nas ruas. batente, vi apenas um olho havia muitos brinquedos es-
Avistei uma imponente azul e sua pele alva. Ela saiu palhados: lego, carrinhos, sol-
catedral enegrecida, aspecto correndo, subiu a escada. dadinhos, índios e animais.
sombrio, pesado, parecia cho- Segui-a. Tinha os cabelos Foi com relutância e olhos
rar angustiada. Uma imensa longos, castanhos e usava cheios d’água que deixei meu
torre onde havia um relógio um vestido com rendas e quarto. Desci a escada e me
que marcava seis horas e os bordados, e sapatinhos azuis. guiei à porta.
ponteiros giravam ao contrá- Entrou na primeira porta. Estava nevando, todo o
rio. Deduzi que era um pequeno gramado e árvores cobertos
Encontrei diante de mim quarto. Continuou e saltou de neve. Vesti um casaco e
uma rosa. Jamais tinha visto pela janela aberta. Olhei e cachecol que encontrei no
uma assim. Olhar para ela não a vi. Uma pequena rosa mancebo ao lado da porta,
me causava dor e angústia, vermelha suavemente planava peguei a rosa vermelho-san-
como tudo ali. Era a Morte. e dançava no ar até beijar gue e caminhei pelo campo
Achei que estivesse seca e o chão. Permaneci a olhar para qualquer direção onde
morta, mas ao tocá-la percebi a rosa que dormia na relva meu coração me guiasse.
que não. Tentei arrancá-la, macia. A paisagem era um
puxei, torci, puxei novamente grande gramado que se per-
com as duas mãos, machu- dia no horizonte e se encon-

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Contos

PRELÚDIO DE
UMA SAUDADE
Zulmar Lopes

58 SAMIZDAT agosto de 2008


58
Foi no Beco das Garrafas que eu a conheci. em Copa e que fazia ponto num inferninho
O piano do Luis Carlos Vinhas comboiava chinfrim na Avenida Princesa Isabel. Não
a doce voz de Sylvia Telles quando, logo na agüentei a barra pesada da situação e meu
entrada da Ma Griffe, uma garrafa vinda do coração apitou, avisando do infarto.
alto de um edifício explodiu em minha cabe- Uns dias no CTI e agora me recupero aqui
ça. Os treze pontos na testa foram até aben- em casa. Como forma de punir-me pelas mi-
çoados pois, graças a eles e a curta paciência nhas travessuras de homem na terceira idade,
do pai de Eulália com a nova bossa musical minha esposa deu-me o ultimato mais do-
que o beco irradiava, eu encontrei a mulher lorido que a dor dos enfartados. “Vou cuidar
da minha vida. É claro que retirei a queixa de você até o doutor lhe dar alta. Depois, o
na polícia quando dei de cara com aque- divórcio”, diz ela todo dia, mal despertamos.
la formosura de pequena, redondos olhos Assim, deitado nessa cama, vivo um dilema:
negros, cabelos de mel e pele tostada pelo sol permaneço doente ou morro de uma vez.
de Copacabana. Sem Eulália não posso viver. A cura significa
Meu sogro de princípio deu do contra: o abandono. Mal penso no restabelecimento
“Onde já se viu? Namorar um boêmio?”. das minhas forças e já vem um prelúdio de
Tranqüilizou-se um pouco quando descobriu saudade, um sofrimento de véspera. Lá na
meu status de colunista famoso da “Últi- sala, João Gilberto castiga meus ouvidos com
ma Hora”. Mesmo tendo certa ojeriza pelos os versos: “Não quero mais esse negócio de
membros da imprensa, seu Peçanha viu que você longe de mim”, acirrando a angústia.
por Eulália eu havia posto de lado as noi- Não, Eulália! Não te quero longe de mim! A
tadas e os excessos. Acabou por aceitar o doença ou a morte!
nosso namoro.
http://www.flickr.com/photos/_nicolasnoexiste_/2316637079/
Namoro de moça de família, de pegar
na mão como maior ousadia. O pessoal do
jornal até estranhou e os camaradas do Beco
das Garrafas deram por minha falta mas,
meu sentimento por Eulália era paixão, das
boas.
Casamos na Igreja de Nossa Senhora de
Copacabana. Ela de véu, grinalda e flor de
laranjeira, como rezava a tradicional famí-
lia carioca. Fomos morar nesse apartamento
na rua Rainha Elizabeth, até hoje nosso lar,
e onde no momento ouço o violão de João
Gilberto sair do aparelho de Cd, invadindo
os cômodos, dedilhando “Chega de Sauda-
de”. Nosso casamento tinha tudo para ser
tranqüilo mas a droga da boemia falou mais
alto. Em pouco tempo lá estava eu de volta
às noitadas, às boates, às mulheres soltas por
esta Copacabana que eu tanto amo.
Eulália agüentou tudo espartanamente.
Criou nossos filhos, suportou meus porres,
a falta de dinheiro, os sumiços no carnaval.
Mulher de verdade.
http://www.flickr.com/photos/laszlo-photo/281322090/sizes/o/

Porém, tudo deve mesmo ter um limite


pois Eulália estrilou em ódio quando des-
cobriu o meu moleque, já com cinco anos,
resultado do meu rabicho com uma guria lá
dos pampas, trinta anos mais jovem, largada

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Tradução

AS BALEIAS CINZAS
Yolanda Arroyo Pizarro
tradução: Henry Alfred Bugalho

http://www.flickr.com/photos/minette_layne/408500528/sizes/o/

60 SAMIZDAT agosto de 2008


60
“Dedicado a meus dois matrimô- nho, absorvendo sedimentos
nios literários: e crustáceos, separando os
Para Alma Rivera, por me dar pedaços do resto com seus
seus ombros para secar as lágri- filamentos?
mas. A impressão que recebo,
Para Emilio del Carril, por seus ao me aproximar duma ba-
beijos na nuca. leia adormecida, é, sobretudo,
Finalmente, à musa que sempre há de imensidade. É como se
de ser musa, Mamota, idolatrada cada olho de baleia aprisio-
perpetuamente por esta seresteira nasse um universo. Fita-se
de amor.” o olho, a esfera, e alguém
se pergunta se dentro de
cada córnea pode haver uma
Como se vive depois dimensão diferente. Enormi-
de algo assim? Depois da dade, solidão de espaços, de
opressão atravessando-lhe carnes, de dura pele cinzenta.
o peito? O coração volta a Sua presença é inquietante,
bater igual? Pode-se respirar esmagadora. Inspira-o uma
Yolanda Arroyo Pizarro com semelhante perturbação tristeza irremediável que não
Romancista, contista e ensaísta sobre as têmporas? se extingue, como a própria
porto-riquenha. Foi eleita como uma Caminho sobre o convés espécie. Hoje, as baleias cho-
das escritoras latino-americanas com os olhos molhados. ram comigo.
mais importante com menos de 39 Lanço o olhar para as velas
anos do Bogotá39, convocado pela içadas. Retorno ao timão
UNESCO, o Hay Festival e a Se- Ω
e nele dou uma leve volta.
cretaria de Cultura de Bogotá para Vamos decididos, eu e meu — Minha filha vem me
celebrar Bogotá como a Capital barco, até o novo destino. visitar — vou recolhendo a
Mundial do Livro 2007. Não consigo ficar impávido, âncora e me volto para es-
Agraciada com vários prêmios de braços cruzados. Não perar a reação de Ambrosio
literários nacionais e internacio- tenho culpa. Vou protestar. à notícia. Ele fica feliz. Não
nais; seis na Argentina, um no Chile, Vou renegar e negá-lo. Dian- a conhece, mas está louco
sete em Porto Rico. Escreveu para te daquela acusação, o silên- para conhecê-la, pelo me-
os jornais El Nuevo Día, El Voce- cio me tragou antes de eu nos é o que sempre me diz.
ro de Puerto Rico, Claridad e La o engolir. Ainda assim, não Considero Ambrosio como
Expresión, e seus ensaios e colunas pude abrir a boca naquele um filho e cada vez que
se encontram no site de literatura momento, mas hoje, agora, posso falo para ele de minha
cuidadseva.com, nas revistas virtuais vou confrontá-lo. Viveca. Às vezes, mostro-lhe
Cataliticos.com, Derivas.net, Letras algumas fotos dela, de quan-
Salvajes, Letralia.com e Narrativa A água parece uma plata-
do ela estava na escola, ou
Puertorriqueña. Alguns de seus forma de centelhas cinzentas
quando era pequena e me
contos integram as revistas cultu- querendo tragar o horizonte.
ajudava no pequeno negócio
rais Identidad de la UPR Aguadilla, Os vultos, como dum veludo
de pesca que tínhamos. Era
Revista Púrpura, Preámbulos e lúgubre, áspero, abrem-se e
linda a menina. Parecia um
Tonguas de la UPR Río Piedras. É se fecham, crescem e se ape-
palito de dentes, fraquíssima,
autora dos livros de contos, Ojos quenam, saltam e submer-
mas sempre linda. Também
de Luna (2007) e Origami de letras gem. Não têm dentes, mas
lhe mostro a única foto que
(2004), além dum romance, ga- mostram-me as barbas que
nhador do Prêmio Club 2006, Los ela me enviou quando se foi
surgem da boca, as barbas
Documentados (2005). para estudar biologia mari-
creme que lhes pendem em
nha na universidade. Nela,
cada lábio. Devoram as pro-
via-a mais cheia, crescida,
fundidades. Devoram minhas
mesmo assim, linda. Havia se
lembranças? Terão tragado
embrenhado por várias ilhas
minhas memórias, como
do Caribe. Chegou a viajar
fazem com o fundo mari-

www.samizdat-pt.blogspot.com 61
à Espanha também e depois toalha, o biquíni, o snorkel e
voltou ao México para fazer os óculos de mergulho. Esta
um trabalho com a UNAM. tarde, pela primeira vez, haví-
Tudo isto ela me contou na amos avistado o cetáceo.
única carta que certa vez me Depois deste, periodica-
escrevera. Desde há muito mente, continuamos vendo-
que não nos vemos. Nestes os em nossas travessias. As
dias, acabou de me enviar águas reluzentes da baía
um telegrama. “Irei visitar-te. Magdalena nos presentavam
Viveca”, dizia. Penso em vol- com muitos e belos vis-
tar a vê-la e tenho calafrios lumbres do impressionante
na barriga. Gostaria de me animal. Tornei-me guia.
lembrar de mais coisas de Comecei a trazer grupos
quando ela era pequena. O de pessoas, cada vez maio-
salitre me torna isto impos- res, para que vissem aquele
sível. fenômeno marino com o
mesmo tamanho dum ôni-
Ω bus. Aquelas massas colos-
sais não se assustavam; pelo
“Em momentos como este,
contrário. Pareciam desfrutar
o ser humano percebe que se
da companhia. Observavam-
aproxima duma criatura que
nos curiosas na medida em
ultrapassa sua compreensão,
que saíam à superfície para
duma presença misteriosa
respirarem, a cada três ou
encarnada num inacreditável
cinco minutos. A princípio,
cilindro negro.” Terminei de
cabíamos todos a bordo
ler a citação. Viveca olhou
dum pequeno barco, que fui
para cima, recostada à amu-
consertando aos poucos com
rada do barco, os olhos sal-
minhas próprias mãos. Logo,
tados, duas tranças de cabelo
com a cobrança do espetácu-
arruivado em cada lado de
lo natural que as baleias nos
sua cabeça, a saia de queru-
obsequiavam e que eu coleta-
bins quadriculados. Minha
va com prazer, pude adquirir
Viveca era pequenina.
uma embarcação um pouco
— Jacques Yves Cousteau, maior.
o oceanógrafo — ela disse.
Converti-me em guia
Sorri orgulhoso e fechei o li-
porque muita gente ansiava
vro, aquiescendo. Minha filha
por observar estas maravilho-
memorizava cada vez melhor.
sas criaturas. Todos os anos,
Inclusive, melhor do que
emigravam para as lagunas
eu. Esta manhã, assim que
da Baixa Califórnia para se
acreditei estar pronto para a
acasalarem e parirem. Pou-
travessia, havia me esquecido
cos marinheiros e pescadores
dos trajes de mergulho em
se atreviam a enfrentá-las.
algum lugar da cabana. Não
As razões eram diversas.
me lembro exatamente onde.
Muitos dependiam da pes-
No entanto, ela, aos sete anos
car para subsistirem e não
de idade, conseguia gravar
desejavam investir num novo
na memória citações como
projeto, que talvez nem desse
aquela e até mais extensas.
resultado. O que os pesca-
Havia trazido nos ombros,
dores sabem sobre ser guias
sem que eu a fizesse se
turísticos? O que sabem os
lembrar, sua mochila com a
marinheiros sobre se dirigir

62 SAMIZDAT agosto de 2008


62
às pessoas, falar para elas, fotos das baleias e redigir
explicar-lhes sobre a vida ou escrever algo como um
marinha de certas espécies? ensaio de biologia marinha,
Dedicar-se a lançar suas re- deste assunto que havia estu-
des e levar comida à boca de dado na universidade.
suas famílias os afastavam de Desligo o motor e nos
alguns desafios como aquele. aproximamos remando
Eu mesmo pensei como eles sileciosamente. Estamos hoje
por um tempo. Trabalhar no barco pequeno. As baleias
duro para sustentar os seus parecem alheias por com-
era o lema. Mas as bocas pleto a nossos movimentos.
para alimentar foram di- Já estão acostumadas. Pode-
minuindo em meu círculo mos observar a cerimônia
consangüíneo. Uma febre de corte. Chapinham, giram
estranha cobrou as vidas de sobre si mesmas, esguicham,
minha mulher e meus filhos mergulham. Ostentam a
homens. Ficamos apenas eu e nadadeira caudal. Viveca nos
a menina. Em um arroubo de conta que estas submersões
intensa tristeza, quis mudar tão sincronizadas se chamam
minha rotina, para não me “saídas de reconhecimento”.
recordar de meus finados. As Põem a cabeça para fora
perdas são demasiadamente d’água e avistam os arredo-
cinzas, muito mais cinzas res.
que as baleias adormecidas.
— Você deve saber, Fran-
Acredito, e agora que reflito
cisco — ela me disse, e ainda
acredito com maior veemên-
me pergunto por que Vive-
cia, que foi aí quando minha
ca havia decidido por não
mente começar a ofuscar as
me chamar de “papai” — As
memórias.
baleias adormecidas têm boa
memória.
Ω Eu as invejo. Gostaria de
Viveca chegou e trouxe conseguir me lembrar de
consigo um aroma de corais mais coisas sobre a mãe de
e algas salgadas. Acredito Viveca e sobre meus dois
estar quase certo de que Am- filhos que se foram. Ambro-
brosio havia ficado impres- sio concorda, pensativo. Sorri
sionado com a beleza dela. para mim e logo olha para
Está alta e arredondada. Está Viveca. Dá-me pena admitir, http://www.flickr.com/photos/farflungphotos/2330544638/sizes/o/

com uns quilinhos a mais mas ela o havia ignorado


que não lhe caem mal e que completamente desde que
em nada contribuiu para que chegou.
Ambrósio deixe de olhá-la — No século dezenove,
todas as horas. Ficará com a submeteu-se estes animais a
gente dez dias, que é o tem- uma caça tão encarniçada
po que leva a transportadora que quase foram extermina-
da cidade para voltar com dos no Pacífico oriental.
seu caminhãozinho cheio de
— Como eles chegaram
turistas. Havia se hospedado
até aqui de tão longe? — per-
numa casa dos arredores e
gunta Ambrosio, mais para
promete me visitar em casa
deixar de se sentir invisível
todas as vezes que puder.
diante de Viveca do que por
Entre passear e visitar seu
qualquer outra coisa. Ela dá
velho pai, ela deseja tirar

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de ombros, olha para mim a dar uma gargalhada. olhos. Está triste. Aproximo-
e me pede que, por favor, em- Tentei me lembrar, mas me um tanto indeciso.
preste-lhe uma blusa porque não consegui. Tornou-se im- — Amanhã é o décimo
está com frio. Desço à cabine possível para mim. dia, filha. Você vai com a
e trago-lhe uma. transportadora? Voltará?
— Obrigada, Franciso
Ω
— ela me diz, e volto a me
Conto a meu grupo de — Não. Vou ficar outros
sentir estranho, incômodo,
turistas que, ainda que seja dez dias mais.
até receoso. Mas não o digo.
Não o digo. proibido ficar a menos de Fico feliz.
trinta metros destes cetáce- — Que bom! Assim po-
— Pelo calorzinho. E pela
os, às vezes a baleias-mães, demos passar mais tempo
comida. Chegam até aqui de
dominadas pela curiosidade, juntos.
tão longe por comida. Dão-
dirigem-se com suas crias até
se um banquete de pequenos Ela me encara. Sem ro-
os barcos e até deixam ser
crustáceos no Pacífico, e logo deios, desafiante. Seu olhar é
tocadas. Eles gritam emocio-
seguem buscando alimento gélido. A comissura de seus
nados quando se dão conta
até chegar a estas lagunas. lábios se aperta de modo de
de que meu comentário é
Levam de dois a três meses estranho.
mais uma advertência do que
para chegarem. Neste trajeto, — Temos de conversar,
qualquer outra coisa, porque
elas perdem boa parte de seu Francisco. Por isto vou ficar.
uma das baleias já havia se
peso. Neste período, depen-
acercado, saca seu olho por
dem quase exclusivamente de
sobre a água e nos borrifa Ω
sua reserva de gordura. Em
com sua pequena ducha É possível. Pode ser? Não
quarenta e sete, outorgou-se
salgada. Exibe umas manchas reajo. Minha intenção é
proteção total a elas pela
brancas na pele, causadas tentar entendê-la, mas não
Comissão Baleeira Interna-
por cracas e outros parasitas. consigo. Ela me conta, fala
cional e, em anos recentes,
Escutamo-la respirar e, com para mim, confessa-me uma
o governo mexicano estabe-
prazer, voltamos a nos deixar mar de palavras sem fundo.
leceu para elas santuários e
molhar por seu esguicho. Exige de mim.
reservas. Atualmente, a baleia
Ambrosio mostra um cartaz
cinza já não é considerada — Como não pude perce-
bastante atraente, em cores
como espécie ameaçada. ber? Passei o resto de minha
vivas, que anuncia um preço
— Sabemos que as fêmeas bastante módico para aque- vida odiando-o, esquecen-
prenhas são as primeiras a les valentes que desejassem do-o, brincando de crise ner-
chegar nas lagunas e aqui acariciar a pele da baleia. vosa em crise nervosa. Veja
parem os baleatos — Am- minhas unhas, roídas, masti-
— Os cetáceos permane- gadas até a metade do dedo.
brosio aproveita o repentino
cem nas lagunas por dois Quase não tenho unhas, qua-
ataque de atenção — nascem
ou três meses, de janeiro a se não durmo. Nunca sonhei
das costas, nós vimos. Aju-
meados de março. Aprovei- depois do que me você me
dam em cada parto outras
tem agora para tocá-los — fez. Sempre tenho pesadelos.
duas fêmeas; as tias, nós
Ambrosio tenta convencer Sonho que você retorna e
dizemos.
— Já está quase se acabando volta a fazer-me o mesmo.
— Sim, atuam de parteiras, a temporada.
Viveca. Este assunto é dos Como pode dizer-me agora
Os turistas correm e fazer que não se lembra? Tenho es-
mais agradáveis — eu lhe
uma grande fila no convés. tado internada em sanatórios,
digo.
Todos vão pagar por aquela postergando meus estudos,
— Francisco, como se recordação tão única. Como afetando minhas notas, para
chama aquele baleato que Viveca viaja conosco hoje, eu que hoje você me diga que
nasceu no dia do seu ani- a olho. Ela está do outro lado, não se lembra do que me
versário? Você se lembra? parada perto do timão. Estu- fez? Tenho tentado até ago-
Demos-lhe um nome... — do seu perfil. Uma das velas ra superar meus fantasmas.
Ambrosio me pergunta, logo possui a mesma cor que seus

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Vim vê-lo a pedido de meu
psiquiatra. E isto é tudo que
você consegue me dizer? Que
não se lembra?
Como explicar-lhe? Como
se vive depois desta opressão
atravessando-lhe o peito? O
coração volta a bater igual,
após do que lhe foi dito, após
do que lhe foi informado? Es-
tou me dando conta? Pode-se
voltar a respirar com seme-
lhante perturbação sobre as
têmporas?
Caminho sobre o con-
vés com os olhos cheios de
lágrimas. Ergo o olhar para
as velas içadas. Retorno ao
timão e lhe dou uma leve
volta. Vamos decididos, meu
barco e eu. Vou apontar com
o dedo para Viveca. Vou gri-
tar. Não posso ficar impávi-
do. Não sou culpado do que
me acusa. Vou protestar. Vou
renegar e negá-lo.
Esqueço-me que a acu-
sação não foi feita hoje. Foi
anos atrás. Esqueço-me que
Viveca não está para que eu
a confronte, que não sei de
Ambrosio há séculos, que já
não sou guia de nada. Esque-
ço-me que minha filha não
pôde agüentar a dor de viver
com algo tão forte. Esqueço-
me seu rosto sem vida, suas
veias abertas, a poça escarlate
sobre o convés, as velas man-
chadas e as baleias farejando
fluídos raros. Esqueço-me
de seus gritos noturnos, suas
pernas de batalhadora, suas
bofetadas enquanto empurra.
As perdas são demasiadas
cinzas, muito mais cinzas
que as baleias adormecidas.
Esqueço-me porque, no fun-
do, dói e lembro-me demais.

http://www.flickr.com/photos/liboni/383009619/sizes/o/

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Tradução

PEQUENAS
COISAS
Raymond Carver
tradução: Henry Alfred Bugalho

Raymond Carver (25 de Maio de


1938 – 2 de Agosto de 1988)
Escritor norte-americano, célebre
por seus contos e poemas minima-
listas.
Carver nasceu em Clatskanie,
Oregon e cresceu em Yakima, Wa-
shington. Carver estudou por um
tempo com o escritor e teórico John
Gardner na Chico State College
em Chico, Califórnia. Publicou um
grande número de contos em diver-
sos periódicos, incluindo The New
Yorker e Esquire, contos que mais
tarde foram reunidos em livros. Suas
histórias têm sido incluídas nas mais
importantes coleções norte-ameri-
canas, como Best American Short
Stories and O. Henry Prize Stories.
A escrita de Carver é normalmen-
te associada ao minimalismo. Seu
editor na Esquire, Gordon Lish, foi
fundamental neste processo. Por
exemplo, quando Gardner aconse-
lhava Carver a usar 15 palavras ao
invés de 25, Lish aconselhava Car-
ver a usar 5 no lugar de 15. Durante
este tempo, Carver também submeteu
suas poesias a James Dickey, então
editor de poesia da Esquire.
Carver morreu em Port Angeles,
Washington, aos 50 anos, vítima de
um câncer.
Fonte: Wikipédia

http://www.flickr.com/photos/smoulaison/2288614209/sizes/o/

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66
Mais cedo naquele dia, o clima mudou Solte-o, ele disse.
e a neve derretia em água suja. Veios es- Saia, saia! Ela gritou.
corriam da pequena janela, à altura dos
ombros, que dava para o quintal. Carros O bebê estava corado e berrando. Na
patinavam na rua lá fora, que começava a escaramuça, eles derrubaram um vaso que
escurecer. Mas estava escurecendo dentro pendia atrás da estufa.
também. Então ele a prensou contra a parede,
Ele estava no quarto socando roupas para tentando fazê-la soltar. Ele segurou o bebê e
dentro duma valise quando ela apareceu na empurrava com toda sua força.
porta. Solte-o, ele disse.
Estou feliz que você esteja indo embora! Não, ela disse. Você está machucando o
Estou feliz que você esteja indo embora! ela bebê, ela disse.
disse. Você está ouvindo?
Não o estou machucando, ele disse.
Ele continuou pondo suas coisas na vali-
Pela janela da cozinha não passava luz.
se.
Na penumbra, ele se ocupava dos dedos
Filho da puta! Estou tão feliz que você em punho dela com uma das mãos e com
esteja indo! Ela começou a chorar. Você nem a outra agarrou o bebê pelo braço perto do
consegue olhar na minha cara, consegue? ombro.
Então ela avistou a foto do bebê sobre a Ela sentiu seus dedos se abrirem à força.
cama e a apanhou. Ela sentiu o bebê sendo tirado dela.
Ele olhou pra ela, ela enxugou os olhos e Não! Ela gritou assim que suas mãos se
o encarou antes de se virar e voltar para a afrouxaram.
sala-de-estar.
Ela ficaria com ele, com este bebê. Ela
Traga isto de volta, ele disse. agarrou o outro braço do bebê. Ela segurou
Apenas pegue suas coisas e saia, ela disse. o bebê pelo pulso e se reclinou para trás.
Ele não respondeu. Fechou a valise, vestiu Mas ele não desistiria. Ele sentiu o bebê
o casaco, escrutinou o quarto antes de apa- escorregando de suas mãos e puxou para
gar a luz. Então ele foi para a sala-de-estar. trás com muita força.
Ela estava na passagem para a pequena Desta maneira, o assunto havia sido deci-
cozinha, segurando o bebê. dido.
Eu quero o bebê, ele disse.
Você está louco? “Pequenas Coisas” de Where I’m Calling From:
The Selected Stories Atlantic Monthly Press, 1988.
Não, mas eu quero o bebê. Vou mandar Copyright © 1988 por Tess Gallagher.
alguém vir buscar as coisas dele.
O conto foi publicado como “Meu” em Furious
Nem pense em tocar neste bebê, ela disse. Seasons And Other Stories Capra Press, 1977 e
O bebê começou a chorar e ela descobriu como “Mecânica Popular “ em What We Talk
a manta de sobre a cabeça dele. About When We Talk About Love Knopf, 1981.
Oh, oh, ela disse, olhando para o bebê.
Ele se moveu em direção a ela. Fonte: http://www.carversite.com/story.html
Pelo amor de Deus! Ela disse. Ela recuou
para dentro da cozinha.
Eu quero o bebê.
Fora daqui!
Ela se virou e tentou manter o bebê er-
guido num dos cantos atrás da estufa.
Mas ele veio. Ele alcançou por sobre o
fogão e apertou com suas mãos o bebê.

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Autor Convidado

MINICONTOS
Ana Mello Fuga
O ônibus é rápido.
Na janela tudo passa - árvores, rio, nuvens.
Não passa a saudade, não volta a cidade.
Nem o amor da Maria.

Amor adolescente
Delicioso aquele beijo.
Primeiro amor tem gosto de chocolate
novo, de água depois do futebol.
Tem cor de primavera e cheiro de alfaze-

http://www.flickr.com/photos/soft/116839115/
ma.
Dizem que amor é tão forte que até dói.
Mas o que dói mesmo é namorar menina
com aparelho nos dentes.

Quimera
As panelas brilhavam o fogão também,
http://www.flickr.com/photos/criminalintent/166519907/sizes/l/

tudo bem areado.


As desilusões e amarguras, Maria extrava-
sava na cozinha.
Sempre sonhou com príncipe, não de ri-
queza ou coroa. Realeza no carinho, no amor
sincero e incondicional.
Não foi possível.
A vida lhe deu somente um homem, cala-
do e trabalhador.

68 SAMIZDAT agosto de 2008


68
Dilema
Do outro lado das grades – a liberdade.
Mas fazer o quê depois de 30 anos na
prisão?
Morreu enforcado, um dia antes de ter
cumprido a pena.

Coração assaltado
http://farm1.static.flickr.com/176/372395937_0f98d09016_o.jpg

Quando botou o anúncio na rádio, não


esperava ter a bolsa devolvida. Tudo estava
no lugar, mais um bilhete do ladrão:
- Quero só uma chance, te observo há
dias.
Vamos sair para dançar?

No inferno V
Não comi o pão que o Diabo amassou.
Mas as empadinhas, não resisti.

A autora, por ela mesma

“De profissão sou téc. Química. Escrever é para mim diversão e uma forma de interagir
com as pessoas, fazer amizades, aprender. Tenho alguns prêmios literários, um conto premia-
do pela Carris, poesia nas janelas dos ônibus e trens de Porto Alegre e haicai selecionado em
concurso da UFRGS. Todos estão também em livros. Adoro minicontos e além de publicá-los
no meu blog MINICONTANDO, sou editora da REVISTA VEREDAS e tenho oficina de mini-
contos. Além disso, sou colunista do site SORTIMENTOS.COM e coordenadora do Movimen-
to Internacional Poetrix no RS.”

Conheça mais do trabalho de Ana Mello

Minicontando: http://minicontosanamello.blogspot.com/
Revista Veredas: http://www.veredas.art.br/
Sortimentos.com: http://www.sortimentos.com/gente/ana_mello-080707.htm

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Teoria Literária

enchendo lingüística
na samizdat
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

“ O conto se
constrói para
fazer aparecer
artificialmente algo
que estava oculto.
Reproduz a busca
sempre renovada de
uma experiência única
que nos permita ver, sob
© Eduardo Grossman

a superfície opaca da vida,


uma verdade secreta. ”
Ricardo Piglia

70 SAMIZDAT agosto de 2008


70
Já estava planejando essa coluna há algum não só as nossas criações, mas também as nos-
tempo. Na comunidade do Orkut da Oficina sas dúvidas, nossos dilemas de trabalhadores da
da E-TL (a mãe da SAMIZDAT), criei um tópico escrita.
com esse mesmo título. O objetivo é discutir
assuntos teóricos pertinentes, algo que refletisse
as dúvidas momentâneas dos oficineiros. Dessa Nessa primeira edição do Enchendo Lingüís-
forma, resolvi transferir alguns dos melhores tica trago o primeiro tema que propus para os
temas discutidos na comunidade-mãe aqui para oficineiros. Os créditos da tradução e da fonte
a revista-filha. Queremos dividir com o leitor estão logo abaixo do texto.

Teses sobre o conto


Ricardo Piglia

1. Num de seus cadernos secreta aparece na superfície. guidade com o assassinato


de notas Tchecov registrou 3. Cada uma das duas de Yarmolinsky e responde
este episódio: “Um homem, histórias é contada de ma- a uma causalidade irôni-
em Monte Carlo, vai ao neira diferente. Trabalhar ca. “Um desses lojistas que
cassino, ganha um milhão, com duas histórias significa descobriram que qualquer
volta para casa, se suicida”. trabalhar com dois sistemas homem se resigna a comprar
A forma clássica do conto diversos de causalidade. Os qualquer livro publicou uma
está condensada no núcleo mesmos acontecimentos edição popular da “Historia
dessa narração futura e não entram simultaneamente Secreta de los Hasidim”. O
escrita.Contra o previsível e em duas lógicas narrativas que é supérfluo numa his-
convencional (jogar-perder- antagônicas. Os elementos tória, é básico na outra. O
suicidar-se) a intriga se esta- essenciais de um conto têm livro do lojista é um exem-
belece como um paradoxo. A dupla função e são utiliza- plo (como o volume das “Mil
anedota tende a desvincular dos de maneira diferente em e Uma Noites” em “El Sur”;
a história do jogo e a histó- cada uma das duas histórias. como a cicatriz em “La For-
ria do suicídio. Essa excisão é Os pontos de cruzamento são ma de la Espada”) da matéria
a chave para definir o caráter a base da construção. ambígua que faz funcionar a
duplo da forma do conto. microscópica máquina narra-
4. No início de “La Muer- tiva que é um conto.
2. Primeira tese: um te y la Brújula”, um lojista
conto sempre conta duas resolve publicar um livro. 5. O conto é uma narrati-
histórias.O conto clássico Esse livro está ali porque é va que encerra uma história
(Poe, Quiroga) narra em pri- imprescindível na armação secreta. Não se trata de um
meiro plano a história 1 (o da história secreta. Como sentido oculto que depende
relato do jogo) e constrói em fazer com que um gângster da interpretação: o enigma
segredo a história 2 (o relato como Red Scharlach fique a não é senão uma histó-
do suicídio). A arte do con- par das complexas tradições ria que se conta de modo
tista consiste em saber cifrar judias e seja capaz de armar enigmático. A estratégia da
a história 2 nos interstícios a Lönrot uma cilada místi- narrativa está posta a servi-
da história 1. Uma história ca e filosófica? Borges lhe ço dessa narrativa cifrada.
visível esconde uma história consegue esse livro para que Como contar uma história
secreta, narrada de um modo se instrua. Ao mesmo tempo enquanto se está contando
elíptico e fragmentário.O usa a história 1 para dissi- outra? Essa pergunta sinteti-
efeito de surpresa se produz mular essa função: o livro za os problemas técnicos do
quando o final da história parece estar ali por conti- conto.Segunda tese: a história

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secreta é a chave da forma za e simplicidade a história deliberada de Scharlach. O
do conto e suas variantes. secreta e narra sigilosamente mesmo ocorre com Acevedo
6. A versão moderna do a história visível até transfor- Bandeira em “El Muerto”; com
conto que vem de Tche- má-la em algo enigmático e Nolan em “Tema del Traidor
cov, Katherine Mansfield, obscuro. Essa inversão funda y del Héroe”; com Emma
Sherwood Anderson, o Joyce o “kafkiano”.A história do Zunz.Borges (como Poe,
de “Dublinenses”, abandona suicídio no argumento de como Kafka) sabia transfor-
o final surpreendente e a Tchecov seria narrada por mar em argumento os pro-
estrutura fechada; trabalha Kafka em primeiro plano e blemas da forma de narrar.
a tensão entre as duas histó- com toda naturalidade. O 11. O conto se constrói
rias sem nunca resolvê-las. terrível estaria centrado na para fazer aparecer artificial-
A história secreta conta-se partida, narrada de um modo mente algo que estava oculto.
de um modo cada vez mais elíptico e ameaçador. Reproduz a busca sempre
elusivo. O conto clássico à 9. Para Borges a história renovada de uma experiência
Poe contava uma história 1 é um gênero e a história única que nos permita ver,
anunciando que havia outra; 2 sempre a mesma. Para sob a superfície opaca da
o conto moderno conta duas atenuar ou dissimular a vida, uma verdade secreta.
histórias como se fossem monotonia essencial dessa “A visão instantânea que nos
uma só.A teoria do iceberg história secreta, Borges re- faz descobrir o desconhecido,
de Hemingway é a primeira corre às variantes narrativas não numa longínqua terra
síntese desse processo de que os gêneros lhe oferecem. incógnita, mas no próprio
transformação: o mais im- Todos os contos de Borges coração do imediato”, dizia
portante nunca se conta. A são construídos com esse Rimbaud.Essa iluminação
história secreta se constrói procedimento.A história visí- profana se transformou na
com o não dito, com o su- vel, o jogo no caso de Tche- forma do conto.
bentendido e a alusão. cov, seria contada por Borges
7. “O Grande Rio dos Dois segundo os estereótipos (leve-
mente parodiados) de uma Ricardo Piglia é escritor ar-
Corações”, um dos textos gentino, autor de, entre outros,
fundamentais de Hemingway, tradição ou de um gênero.
Uma partida num arma- “Respiração Artificial” (Ilumi-
cifra a tal ponto a história 2 nuras) e “Dinheiro Queimado
(os efeitos da guerra em Nick zém, na planície entrerriana,
contada por um velho solda- (Companhia das Letras). O
Adams) que o conto parece texto acima foi publicado ori-
a descrição trivial de uma do da cavalaria de Urquiza,
amigo de Hilario Ascasubi. ginalmente em “O Laboratório
excursão de pesca. Hemin- do Escritor” (Iluminuras).
gway utiliza toda sua perícia A narração do suicídio seria
na narração hermética da uma história construída com
história secreta. Usa com tal a duplicidade e a condensa-
Tradução de Josely Vianna
maestria a arte da elipse que ção da vida de um homem
Baptista
consegue com que se note a numa cena ou ato único que
define seu destino. (http://www.portrasdas-
ausência da outra história.O
letras.com.br/pdtl2/sub.
que Hemingway faria com o 10. A variante fundamen-
php?op=literatura/docs/como-
episódio de Tchecov? Nar- tal que Borges introduziu
fazer )
rar com detalhes precisos a na história do conto consis-
partida e o ambiente onde tiu em fazer da construção
se desenrola o jogo e técnica cifrada da história 2 o tema
utilizada pelo jogador para principal.Borges narra as
apostar e o tipo de bebida manobras de alguém que
que toma. Não dizer nunca constrói perversamente uma
que esse homem vai se suici- trama secreta com os mate-
dar, mas escrever o conto se riais de uma história visível.
o leitor já soubesse disso. Em “La Muerte y la Brújula”, a
8. Kafka conta com clare- história 2 é uma construção

72 SAMIZDAT agosto de 2008


72
Esse texto trouxe-me um a casa deserta. Em seu quarto
problema sério. Eu nunca encontra uma pessoa desco-
havia pensado em termos de nhecida e misteriosa: uma
“história 1” e “história 2”, nem mulher velha de aparência
para escrever, nem para ler horrível. Esta apresenta-se
um conto. Agora, relembran- como a Miséria, que tempos
do os textos que eu escrevi, e antes a mesma menina a
boa parte dos que li aqui na havia convidado gentilmente
Oficina, chego a conclusão para entrar.
que essa É a regra e não a
exceção.
A história um é, obvia-
mente, a narração desses
Vamos com um exemplo eventos: banco, faxina, jantar,
prático, um conto meu: “O assalto, visão das mudanças
Convite” (publicado aqui na na cidade, mudança de casa.
Samizdat mês passado). A história dois é o advento
do convidado invisível. A
presença desse convidado, a
1930. Uma menina chega Miséria, é explicado à medi-
em casa com os pais, após da que as coisas vão “pioran-
uma ida até o banco. A mãe do” na vida da protagonista:
guarda o dinheiro dentro as economias são roubadas,
de uma lata de farinha. O o pai perdeu o emprego, o
irmão chegará à noite e ela irmão afasta-se outra vez da
começa a arrumar a casa família, as instituições ban-
para o jantar em sua home- cárias vão à falência, a sua
nagem. Durante a faxina, a família vende a casa e preci-
porta se abre e ela faz uma sa mudar-se.
brincadeira, convidando o
recém-chegado invisível para
entrar. Durante a mesma O conto mostra-se sur-
noite, a menina acorda com preendente por causa da
a impressão de haver alguém “ação” dessa história dois, que
dentro de casa. Em instantes, é revelada no final. Quan-
ouve-se barulho na cozinha to à segunda tese, Piglia foi
e constata-se que um ladrão bastante preciso ao dizer que
roubou as economias da essa história secreta é o que
família. Depois desse evento, vai determinar os modos
a família começou a ficar po- que o autor vai valer-se para
bre e endividada. A menina contá-la.
acompanha as mudanças em
toda a cidade: pessoas ficam
pobres de repente, bancos
fecham, famílias esperam
ajuda do governo até para
Para mim, enquanto leitor,
comer. Seu pai recebe uma
essas teses trouxeram uma
proposta de trabalho com
nova luz - ou melhor, uma
o cunhado, e aceitando, põe
luz mais clara para a lanter-
a casa onde vivem à venda.
ninha que eu vinha usando.
Quando estavam fazendo a
Enquanto escritor... bem. Vou
mudança, a menina dá-se
começar a observar melhor.
conta que esqueceu o album
de fotografias, voltando para

http://www.flickr.com/photos/flyzipper/342012313/sizes/o/

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Crônica
SÓ os POBRES
MERECEM BALAS-
PERDIDAS
Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com

74 SAMIZDAT agosto de 2008


74
Nas últimas semanas, a punição na altura do crime corruptível e que faz alguma
população brasileira ficou cometido. coisa?
chocada com algumas ações
desastradas da polícia. Num E o clamor popular é sem- No entanto, só os pobres
curto intervalo de tempo, pre o mesmo — basta de im- merecem ficar em meio ao
policiais do Rio de Janeiro e punidade. Não adianta tapar fogo cruzado. Deixe isto para
do Paraná, perseguindo ban- o sol com a peneira e aguar- os favelados, que desde há
didos, abordaram automó- dar que alguma instância do muito estão acostumados
veis errados judiciário, ou com trocas de tiro de ma-
e fuzilaram Qualquer um que já foi do sistema drugada, com balas-perdidas
pessoas ino- alvo da violência urbana penitenciá- atravessando suas janelas,
centes — uma sabe qual é o primeiro rio resolva o portas e paredes, perdendo
criança, uma problema da seus filhos para o narcotrá-
jovem e, mais
pensamento que se criminalida- fico, ou sendo executados,
recentemente, tem posteriormente: de. Alguns equivocadamente, por poli-
o refém dum “bandido bom é bandido preferem ciais. Enquanto o massacre e
assalto, foram morto”. comprar um a carnificina estiverem nos
executados. revólver e morros ou nas baixadas, lon-
deixar em ge das vistas e das câmeras
Estas tragédias comoveram cima do armário, outros de TV, então tudo bem!
as pessoas, pois se aqueles preferem que a polícia atue
indivíduos pagos para prote- como justiceira e, mais do Mas ai destes policiais
gerem os cidadãos são justa- que manter a ordem, atuem despreparados se eles atin-
mente quem os matam, que também como juízes e exe- girem um cidadão de classe
tipo de segurança é esta? cutores. E isto é o que tem média!
ocorrido no Brasil há déca-
Mas deixando de lado a Pois, no Brasil, só pobre
das. Quem não se lembra da
dor dos familiares, vítimas merece ser confundido com
chacina da Candelária? Ou
do absurdo que é a seguran- bandido...
da execução do seqüestrador
ça pública no Brasil, toda a do ônibus 174 no Rio? Ou
ênfase dada ao despreparo quem já não ouviu sobre a
dos policiais é duma hipocri- reputação da Divisão An-
sia sem tamanho. tiseqüestro do Paraná, que
praticamente erradicou este
Qualquer um que já foi
tipo de crime no estado
alvo da violência urbana
porque os bandidos eram
sabe qual é o primeiro pen-
executados? Ou quem nunca
samento que se tem poste-
viu imagens do carro blinda-
riormente: “bandido bom é
do do BOPE — vulgo “Cavei-
bandido morto”.
rão” — invadido as favelas e
A maioria das pessoas mandando bala pra todo o
não hesitaria, caso questio- lado?
nadas, em condenar a pena
Não é de hoje que a polí-
de morte, mas se alguém em
cia “mata a cobra e mostra o
sua família for seqüestrado,
pau” e, no fundo, num lugar
estuprado, ou assassinado, o
bem escondido, é o que todos
desejo natural é de retalia-
desejamos. Se a Justiça não
ção. Logo se esquece de todas
funciona, alguém tem de dar
as aulas de catequese, de “dar
cabo da impunidade. Não é
a outra face”, e queremos o
isto parte do fascínio que o
“olho por olho, dente por
filme “Tropa de Elite” exerceu
dente”. Este é o sentimen-
sobre o brasileiro, ver em
to mais instintivo possível:
ação uma equipe policial in-

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http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/4/4c/Duerer-apocalypse.png

76
76
Crônica

SAMIZDAT agosto de 2008


NOTÍCIA
do
FIM DO MUNDO
Volmar Camargo Junior
Página anterior: Os Quatro Inflação no Brasil, crise algemados porque representa
Cavaleiros do Apocalipse de nas hipotecas americanas, uma arbitrariedade da polí-
­Albrecht Dürer polícia metralhando cidadãos cia, país do Oriente Médio
“Quando o Cordeiro abriu o quar- e matando criança porque divulga cenas de mísseis
to selo, ouvi a voz do quarto ser o vidro do carro era escuro, sendo disparados contra seus
vivente dizendo: Vem! militares entregando rapazes vizinhos, Paris esteve em cha-
de um morro para trafican- mas, japonês esfaqueia pessoa
E olhei, e eis um cavalo amarelo
tes de outro morro, pais que na rua, norueguês (ou era
e o seu cavaleiro, sendo este cha-
jogam crianças do alto de sueco) mantinha a filha presa
mado Morte; e o Inferno o estava
edifícios, mães que jogam em um porão por décadas e
seguindo, e foi-lhes dada autori-
crianças no mato, ladrões tinha filhos com a própria fi-
dade sobre a quarta parte da terra
que arrastam menino pelo lha, pais ingleses dão sumiço
para matar à espada, pela fome,
cinto de segurança de carro à própria filha em Portugal,
com a mortandade e por meio das
roubado por quilômetros, presidente de país africano
feras da terra.” (Ap. 6:7-8)
mulher parindo no meio manda matar opositores e
da rua, dezenas de crianças qualquer um que não vote
morrendo na maternidade, nele no pleito democrático,
centenas de milhares de menino mata colega com o
crianças sendo filmadas e revólver do pai – mas era só
fotografadas enquanto fazem uma brincadeira, não sabia
sexo com maiores de idade, que estava carregada.
trabalhadores honestos se
masturbam vendo fotos e
filmes de crianças fazendo
E dizem que o mundo vai
sexo com maiores de idade,
acabar por causa do peido
canalhas que enriquecem
das vacas.
ilicitamente manipulando
o sistema financeiro brasi-
leiro e não podem ser pre-
sos porque um exército de
advogados têm o respaldo
do Supremo Tribunal Fede-
ral para mandar soltá-los,
os mesmos canalhas não
podem aparecer na televisão

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Crônica

CONTADORA DE
HISTÓRIAS
Giselle Sato
gisellesato@superig.com.br

http://www.flickr.com/photos/89509548@N00/1070827696/sizes/o/

78 SAMIZDAT agosto de 2008


78
Todos os dias faço um lidade.
café, pego a caneca preferida
e ligo o computador. Mas criar é realmente um
vício. Irresistível apelo da
Pesquisas, traduções e imaginação do narrador.
trabalhos variados.
Contar histórias faz meu
À medida do possível, dia mais feliz, partilho um
organizo a bagunça e vão pouco do riso, experimento
surgindo as idéias. Uso 50% um novo caminho, algumas
de muita perseverança, 40% vezes apenas distraio o leitor.
da mais pura teimosia e 10% E isto me basta.
sobra para a velha intuição.
E pensar que tudo começa
Escrever uma crônica é bem cedinho, aproveitando
um exercício maravilhoso, a brisa da manhã e um café
vou contando os fatos e visu- quentinho recém coado.
alizando as situações.
Com cães e gatos ao re-
Algumas vezes um per- dor buscando companhia e
sonagem se rebela e toma embalando o soninho com o
conta da situação. Perco o fio som do teclado.
da meada e o jeito é recome-
çar, vou adaptando a história
inicial e colocando o abusa-
do nos eixos.

Contos infantis. Puxo de


um lado e ajeito de outro,
criança é exigente e sincera.

Meus pequenos leitores


mandam e-mails exigentes:
-Querida tia Gi, seu conto é
legal, mas muito triste, pode-
ria mudar o final?

A maioria envia histórias


e redações. São crianças
talentosas e cheias de imagi-
nação. Pedem conselhos.

Poesias. Essas brincam


com o escritor, embotam
os sentidos e confundem a
intenção.

Tomam rumos inespera-


dos. As palavras ganham vida
e a idéia inicial cresce na
entrega de sentimentos.

Momentos pessoais e
vivências. Ser imparcial na
criação do poema é cabo de
guerra entre razão e sensibi-

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Poesia

SONETO DA BOA
MORTE
Carlos Alberto Barros
carloseducador@hotmail.com

A vida foi a mim mais que suprema,


Se fez mais do que bela, mais que intensa.
E nessa tarda idade o tolo pensa
Que estou a caducar sobre tal tema.

Não julgue, ó sábio tolo, que o emblema


Que levas em teu peito te dispensa
Da vida, aos desamores, tão propensa;
Da marca, em teu espírito, da algema.

Contudo, desamores vêm de amores


E, saibas tu, que muitos tive eu,
Amando plenamente, sem favores.

Vai, liberta-te! Siga o exemplo meu!


E poupe da tua morte as fortes dores
De alguém que chega ao fim e não viveu.

http://www.flickr.com/photos/chefranden/1580191743/sizes/l/

80 SAMIZDAT agosto de 2008


80
sonetos Guilherme Rodrigues

Amargonia

Dor... a dor bem sentida é inspiração


Ela pode transformar lágrimas em versos
Dor de amar, amargura, todo o coração
Ele inteiro; inteirinho em sonhos imersos.

Desejar e sofrer; sofrer e desejar.


Querer, não querer, continuar a sofrer
Mas sempre –e intensamente amar de verdade

http://www.flickr.com/photos/arielarielariel/691436372/sizes/l/
Para sempre, te amar por toda eternidade.

As lágrimas são cachoeiras de rimar


A dor com amor e sofrer com florescer,
A morte com sorte, solidão com paixão

E você comigo –toda a vida florida.


Os versos são campos cheios de margarida
Poesia feita, esfacelado coração.

Eu tão sozinho sonho sonho tanto


Que tudo eu tenho e não tenho nada
O sol, lua, uma terra encantada...
Eu morro, morro, me calo - em pranto.

Você bela Rainha deste Reino


Encantado e do outro... dou meu Amor.
... u’a rosa, minha vida, uma flor
E com tanta beleza me fascino.

Você partiu sem ao menos ter vindo


Ilusões... por noites passei sorrindo
Junto de você... é muita saudade.

Sonhos... delírios... algo que me agrade...


Sou o Príncipe esperando a Rainha...
Eu sinto tão feliz... mas me definha...

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Poesia

LABORATÓRIO POÉTICO iV

VADIAGEM
Poetrix TRISTE PROBLEMA MENSAL
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

MONÓLOGO
É manhã. Irrompeu fúria, rasgou vestidos, “abre aspas
É dia. Derrubou pratos, quebrou mobília Tenho dito.
E daí? Hormônios da mãe, hormônios da filha. fecha aspas”

DOCE NOSTALGIA FILA


Leite condensado, caramelizado “Ama
Com flocos crocantes o teu próximo como a ti mesmo.”
Coberto com o delicioso sabor — Ok. Próximo!
do passado.

MODERAÇÃO MITO
“Cu”, tudo bem. O que é, não sei.
“Merda”, também. Nunca vi, nem senti.
“Amor”, eu hein?
Mas existe.

VERMINOSE GATA NO CIO

Estranhas estranhas Manhosa


Entrando em tantas Dengosa

Entranhas. Goza.

RAPOSA UNIÃO
Era uma vez uma raposa Sol e chuva, casamento de viúva
Conheceu um raposo Chuva e sol, casamento de espanhol
E acabou o conto de fadas. Arco-íris, não tem casamento?

82 SAMIZDAT agosto de 2008


82
Poesia
concreta Volmar Camargo Junior
A Pirâmide

Tudo
constrói
O mundo aqui.
O mundo lá, levanta-se
Para ver o que aqui acontece.
Aqui nada acontece há tanto tempo
que era melhor mesmo que o outro mundo
viesse para cá e terminasse com tudo de uma vez.
Manda chamar o outro mundo que esse aqui já deu!

capital Pedro Faria

Parei meu carro em frente ao Cristo Redentor


Cambaleou pra perto um homem mascarado
“O que é que você vem pedir ao meu Senhor?”
Falei que tava com um pneu furado
Eu não acredito que a crença seja o melhor pra mim
Então eu sigo me sentindo, como um sonho ruim
Eu perguntei pra ela, “qual é o problema, meu bem?”
Ela disse que iria viajar pra longe
Eu disse, ”por favor, não se vá. Se você for eu não vou esperar”
Me disseram que eu era louco, e eu acreditei.
Então esqueça tudo que eu falei.
Alguém alguma vez te disse, a cor dos seus olhos?
Pois eu te digo, são castanhos, verdes, pretos ou azuis
Caiu minha máscara e eu quero ficar sempre com você
O carro já está bom, vamos embora

http://www.flickr.com/photos/soldon/2511914905/sizes/l/

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Poesia

BRINCANDO WITH COLE PORTER


Marcia Szajnbok
marciasz@hotmail.com
Será que você ouve Cole Porter like I do?
‘Cause a voice within me keeps repeating you, you, you...
E como I’ve got you under my skin
Eu queria acreditar que, um dia, I could win

E porque pr’a mim, baby, you’re the top


Mais que o Coliseum e o Louvre Museum
E a Tow’r of Pisa e a Monalisa
E o Mickey Mouse e o Big Ben
I wonder if you think of me assim também!

E te ver é sempre uma alegria


Mas na tua ausência I miss you till I die
E lá vou eu from major to minor
Everytime we say goodbye...

E porque sempre que te encontro


You do something to me
Fico pensando em minha vida –
Sem você, what should it be?

Você preenche meus sonhos e meus devaneios acordada


Night and day you are the one
Não consigo desejar mais nada
Only you beneath the moon and under the sun...

Então, se birds do it, bees do it, even educated flees do it


Why not, nós dois, devagarinho...
Let’s do it, let’s fall in love, só um pouquinho!

(Sempre me ponho na vida a rimar português com english words


Os versos são mancos...
Coração não combina com heart, nem amor com love...
Também fora do papel, nada combina com nada, but the feelings flow...
Por que tanta complicação?
I look for the answer in the skies above and in hell below...
Como chamar esse sentimento estranho?
Como transformar, dentro de mim, versos brancos em alexandrinos
Hai-kais em sonetos
Dissonâncias dodecafônicas em perfeita harmonia?

Que será dessa voz desafinada que soa em mim


E deseja,
E desafia?)

84 SAMIZDAT agosto de 2008


84
CARTA DE AMOR
Marcia Szajnbok
marciasz@hotmail.com

Queria te escrever uma carta


Que não fosse de despedida
Que, antes, fosse mesmo de chegada,
De começo, de ponto de partida,
Onde eu pudesse, amigo, te propor
Este meu jeito estranho de definir amor:

Norte na bússola dos sentimentos,


Referência a cada um desses momentos
Em que alguém se sente engolfado pelo vendaval dos acasos...

Companhia doce, terna, absolutamente especial


Nas cotidianas banalidades que chamamos vida-real
Alegres champanhes, ternos abraços, tristes silêncios...

Um tanto de desejo, de suave intimidade


Construída sobre o sólido pilar da liberdade:
A confiança absoluta em si mesmo e no outro
A ponto de não se preocupar se é muito ou pouco...

Grandeza sem medida, sem espaço ou tempo


Que no instante derradeiro, na presença clara da morte,
Nos sirva de conforto, justificativa e alento...
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É tênue a fronteira entre amor e amizade,


Mera linha pontilhada feita de fumaça
Que esmaece tanto mais quanto mais o tempo passa...

Sentimento sem nome, toca o real


Sentimento sem tempo, portanto eterno
Nem grande nem pequeno, já que absoluto...

(Certamente Fernando Pessoa tinha razão:


Todas as cartas de amor são ridículas, a minha não é exceção.
Mas, afinal, amar não é também essa espécie de flagelo
Em que se mostra o ridículo, esperando que o outro enxergue o belo?)

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86 SAMIZDAT agosto de 2008


86
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88 SAMIZDAT agosto de 2008


88
IZ
E SA OS
M
BR
SO
B R E O S AU TO R E S D A
S O

SAMIZDAT
SOBRE OS AUT
ORES DA

SAMIZDAT
Alian Moroz
SOBRE OS AUTORES DA Formado em Matemática pela

SAMIZDAT
UFPR,lecionou durante 20 anos. For-
mado ainda pela Faculdade de Belas
Artes do Paraná em Licenciatura em
Desenho,trabalhou junto a Estúdios de pro-
paganda e no setor editorial. Historiador e
Filósofo amador, venceu em 2006 o Prèmio
‘Destaque cultural’ promovido pela secre-
taria de Cultura de Curitiba com o livro ‘
Desvendando a História e os mitos Bíblicos’.
SOBRE Lançou em 2007 a primeira edição de ‘ O Manuscrito XXXII’,
seu primeiro
OS AU romance , pela Editora Corifeu. Poeta e músico nas horas vagas,
têm como
TORES
principais influências,Umberto Eco e Luis Fernando Veríssimo.

SAMIZ DA alian.moroz@hotmail.com

Carlos Alb
Paulistano
ta de s d e s e m p
,
r
DAT
erto Barro
fi l h o
e, artista
d

u
e

a
s
nordestino

vida p
plástico f
r o fi s
s, desenhi

s i o
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nal como
d o ,

-
s-

Com e ç o u s ou seu ras


escritor.
e s d e e n t ã o, já deix t u r a i s ,
, d s Cu l
educador e E s c o l a s e Centro a g ó g i -
G’ s , e p e d
tro por ON b a l h o s artísticos ê n c i a
t r a in fl u
através de têm forte
– e x p e r i ências que e n t e , organiza
cos i t o s . Atualm studa
sobre seus
e s c r
o p a r a c rianças, e
ilustraç ã screve
oficinas de i s t ó r i a d a Arte e e
ção em H
pós-gradua ternet.
a p u b l i c a ções na in
par
il.com
ador@hotma
carloseduc t.com
p : / / d e s n o me.blogspo
htt

www.samizdat-pt.blogspot.com 89
89
Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma contadora de his-
tórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de bordo
— cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora viajar
(felizmente!) e fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando de
concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de
retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam
a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente pa-
norama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo que é
comumente jogado
para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.
gisellesato@superig.com.br
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

Guilherme Rodrigues
Estudante Letras na
Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde
sempre morou. Nutre
grande paixão por Línguas,
Literatura e Lingüística,
áreas em que se dedica
cada vez mais.

o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi ra e
pecialista em Literatu
ênfase em Estética. Es as
atro romances e de du
História. Autor de qu
.
coletâneas de contos
Nova York, com sua
Mora, atualmente, em
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
.com
henrybugalho@gmail
www.maosdevaca.com

Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão,
xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em His-
tória da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita,
em Lisboa.

José Espírito Santo


ra e pós
http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg

Informático com licenciatu


de Ciências da
graduação na Faculdade
bo a, tra balha há largos
Universidade de Lis
sultoria, sendo
anos em formação e con
Dados, Sistemas
especialista em Bases de
e Middleware de
de Gestão Transaccional
la escrita surgiu
“Messaging ”. A paixão pe
ano de 2007
recentemente, tendo no
ços” (contos) e
produzido os livros “Esbo
praia” (poesia). Vive
e termina estaagosto um pouco a norte de
90 “Ond SAMIZDAT Po rtu gal deAlv
em 2008
erca, uma pequena cidade
em
90 com a família
Lisboa. jjsanto@gmail.com
.blogspot.com/
http://www.riodeescrita
Maria de Fátima Santos
Nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde
viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licencia-
da em Física tem sido professora de Física e Química.
Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pe-
quenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama
“meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.
blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na
escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Facul-
dade de Medicina da Univer-
sidade de São Paulo, trabalha
como psiquiatra e psicanalista.
Apaixonada por literatura e lín-
guas estrangeiras, lê sempre que
pode e brinca de escrever de vez Pedro Faria
em quando. Paulistana convicta, Estuda Matemática na Univer-
lo.
vive desde sempre em São Pau sidade Estadual do Rio de Janeiro,
músico amador e escritor quando
marciasz@hotmail.com dá na telha. Nascido e criado no
Rio.

punksterbass@hotmail.com
http://civilizadoselvagem.blogspot.com/
Volmar Camargo Ju
nior é gaúcho. Form
em Letras pela Unive ado
rsidade de Cruz Alta,
leciona por sua próp nã o
ria vontade. Entrou na
em 2004, e desde en ECT
tão já morou em meia
de “Pereirópolis” pelo dúzia
Rio Grande. Atualm
vive com a esposa Na en te
tascha em Canela, na
Gaúcha. Dividem o ap Serra
artamento com Marie,
uma gata voluntario
sa e cínica.

v.camargo.junior@gm
http://recantodasletra ail.com
s.uol.com.br/autores/v
cj

Zulmar Lopes -
ca. Formado em jorna
Zulmar Lopes é cario tra ba lh a
de Gama Filho,
lismo pela Universida ciana e
prensa. Alma provin
como assessor de im en-
contra-se provisoriam
coração suburbano, en irro
olita Copacabana, ba
te exilado na cosmop sit ua ções
personagens e
fonte de inspiração de fu gir
ntos. Escreve para
que compõem seus co
do marasmo.www.samizdat-pt.blogspot.com 91
Também nesta edição,
textos de

Alian Moroz Joaquim Bispo

Ana Mello José Espírito Santo

Carlos Alberto Barros Marcia Szajnbok

Denis da Cruz Maria de Fátima Santos

Giselle Natsu Sato Pedro Faria

Guilherme Rodrigues Volmar Camargo Junior

Henry Alfred Bugalho Zulmar Lopes

92 SAMIZDAT agosto de 2008


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