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Pedro Spinola Pereira Caldas

Que significa pensar historicamente:


Uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0016015/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em História Social da Cultura do Departamento de
História da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para obtenção do título de Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. Luiz de França Costa Lima Filho


Co-orientador: Prof. Dr. Jörn Rüsen

Rio de Janeiro, abril de 2004.


Pedro Spinola Pereira Caldas

Que significa pensar historicamente:


Uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História


Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como
parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em
História. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profº Luiz de França Costa Lima Filho


Orientador
Departamento de História – PUC-Rio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0016015/CA

Profº Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo


Departamento de História - PUC-Rio

Profº Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães


Departamento de História – UFRJ

Profº Fernando Augusto da Rocha Rodrigues


Departamento de Filosofia – UFRJ

Profº Estevão Chaves de Rezende Martins


Departamento de História - UNB

Prof. João Pontes Nogueira


Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais –
PUC-Rio

Rio de Janeiro, 02 de abril de 2004.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho
sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Pedro Spinola Pereira Caldas

Bacharel em História pela Universidade Federal


Fluminense em 1995. Em 1999 defendeu sua
dissertação de mestrado em História Social da
Cultura na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, já em sua principal área de atuação:
teoria e filosofia da história e historiografia alemã.
Participou de vários congressos e tem publicações na
área.

Ficha Catalográfica

Caldas, Pedro Spinola Pereira


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0016015/CA

Que significa pensar historicamente: uma


interpretação da teoria da história de Johann
Gustav Droysen / Pedro Spinola Pereira Caldas
; orientador: Luiz de França Costa Lima Filho .
– Rio de Janeiro: PUC, Departamento de
História, 2004.

215 f. ; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
História.

Inclui referências bibliográficas.

1. História – Teses. 2. História - Filosofia.


3. Historiografia. 4. Hermenêutica. I. Lima Filho,
Luiz de França Costa. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
História. III. Título.

CDD:900

.
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À memória de meus avós paternos,


Martiniano Pereira Caldas e Celeste Afonso.
Agradecimentos

Ao meu orientador, Luiz Costa Lima, cuja seriedade jamais serviu de


freio para que eu desenvolvesse minha pesquisa.
Ao meu co-orientador por dois semestres no Kulturwissenschaftliches
Institut, Jörn Rüsen, pelo acompanhamento sempre interessado e pela
generosidade em me ceder textos originais de Droysen inéditos mesmo na
Alemanha.
À CAPES, pelas bolsas concedidas no Brasil e no exterior, sem as quais
este trabalho não teria sido possível.
Aos amigos Alexandre Costa, Andreas Ackermann, Elisabete Thamer,
Martin Wiklund, Mila Waldeck, Olaf Jensen, Patrick Pessoa e Rodrigo Guerizoli,
por terem, cada qual a seu modo, me apoiado e acompanhado em vários
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momentos destes quatro anos, tanto nos agradáveis quanto nos difíceis.
Aos meus colegas do departamento de história da PUC-Rio,
especialmente Beatriz Lessa, Lúcia Ricotta e Valdei Araújo. E também aos
pesquisadores do KWI, com destaque para Ulrich Brieler, Friedirch Jäger e Jochen
Johanssen.
A todos os funcionários, professores e pesquisadores do programa de
pós-graduação da PUC-Rio e do KWI, em Essen.
Aos professores Estevão Martins, Fernando Rodrigues, Manoel Salgado
e Ricardo Benzaquen, integrantes da banca examinadora, pela leitura atenta e
respeitosa.
E, claro, aos meus pais Fernando e Maria Cristina e minha irmã Daniela,
pelo apoio e afeto incondicionais.
Resumo

CALDAS, Pedro Spinola Pereira; LIMA, Luiz de França Costa. Que


significa pensar historicamente: Uma Interpretação da teoria da
história de Johann Gustav Droysen. Rio de Janeiro, 2004. 215pp. Tese de
Doutorado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.

Através dos elementos teóricos da obra do historiador alemão Johann


Gustav Droysen (1808-1886), esta tese pretende analisar o que significa pensar
historicamente no século XIX no contexto alemão.
Diferentemente das interpretações vigentes, geralmente concentradas nos
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conceitos de Historismo e Hermenêutica, a tese que se apresenta procura tornar


claro não somente como a ciência histórica se torna metodologica e
normativamente autônoma, mas sobretudo como neste contexto ela se mostra
necessária como conhecimento.
Para tal, propõe-se que a história seja concebida como resignação, ação e
formação. Trata-se menos de compor uma matriz disciplinar, e sim de
compreender hermeneuticamente as complexas configurações que a consciência
histórica burguesa pode assumir.

Palavras-Chave
Teoria da História – Historiografia – Historismo - Filosofia da História –
Hermenêutica.
Zusammenfassung

CALDAS, Pedro Spinola Pereira; LIMA, Luiz de França Costa (Betreuer).


Was heisst historisch zu denken: Eine Interpretation der
Geschichtstheorie Johann Gustav Droysens. Rio de Janeiro, 2004. 215S.
Dissertation. – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.

In Anlehnung an die theoretischen Aspekten des Werkes des deutschen


Historikers Johann Gustav Droysen (1808-1886), versucht die vorliegende
Dissertation zu analysieren, was heisst in Deutschland des 19.Jarhunderts
historisch zu denken.
Im Gegensatz zu den bisher üblichen Interpretationen, die das historische
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Bewusstsein fast auschliesslich unter Begriffen wie Historismus und Hermeneutik


verstehen, beabsichtigt diese Dissertation, nicht nur die methodische und
normative Selbständigkeit der Geschichtswissenschaft klarzumachen, sondern
auch ihre Notwendigkeit als Erkenntnis in dem entsprechenden Zeitalter zu
zeigen.
Aus dieser Perspektive schlägt man vor, Geschichte als Ohnmacht, Macht und
Bildung zu interpretieren. Es geht also weniger um eine neue Disziplinäre Matrix
aufzubauen, als darum die komplexen Gestaltungen des bürgerlichen historischen
Bewusstseins hermeneutisch zu verstehen.

Schlüsselwörter
Historik – Geschichtsphilosophie – Historiographie - Historismus – Hermeneutik.
Sumário

1. Introdução. 10

2. História como resignação: A Teleologia em Droysen. 20

2.1. O Nó górdio: Historik como ciência filosófica do espírito? 22

2.2. Muito além do Historismo: A História cultural alemã de Droysen 30

2.3. A filosofia da história de Hegel: Brilho e miséria da vontade. 45

2.4. Resignação: o significado do fim do paganismo em Hegel. 67

2.5. Resignação: o significado do fim do paganismo em Droysen. 73

2.6. Afinidades (nem sempre) eletivas entre Droysen e Hegel. 83


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3. História como Ação: A Hermenêutica em Droysen. 86


3.1. Lembrança. 88
3.1.1. Lembrança e culpa. 88
3.1.2. Lembrança e continuidade. 96
3.1.3. Lembrança e estranhamento. 106
3.2. Compreensão. 112
3.2.1.Interpretação e ação. 123
3.2.2. Representação e conhecimento histórico. 132

4. A História como Formação. 151


4.1. Crise da Europa, progresso da ciência. 153
4.2. Excurso nietzscheano: A Crise do homem culto. 160
4.3. À Sombra da cruz suástica: Uma autocrítica hermenêutica. 169
4.4. Concepção de Bildung em Hegel e Droysen. 177
4.5. Sujeito da História. 189
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6. Bibliografia.
5. Conclusão .
201

206
1.
Introdução

A riqueza de um autor se verifica quando temas podem ser discutidos a partir


de sua obra, sem que todavia tais discussões se limitem a mostrar que este mesmo
autor seja apenas um reflexo de sua época. Nosso objetivo consiste em mostrar como
a obra de Johann Gustav Droysen (1808-1886), tendo como centro suas reflexões
teóricas, pode servir de feixe para um grupo de questões que, de outra maneira,
dificilmente poderia ser articulado. Percorrendo seus textos, vemos que alguns temas
não somente perpassam suas obras, mas suas obras também penetram tais temas,
problematizando-os e alterando-os em seu cerne.
Por mais que tenha uma indiscutível particularidade, a obra de Droysen não
deixa de ser bastante simbólica para a época em que é elaborada. A vida de Droysen
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atravessa o século, e por isso tanto herda elementos da cultura setecentista como se
insinua no século XX, e é possivelmente esta razão que permite ao estudioso várias
entradas. Temos nossos motivos próprios para estudá-la e acreditamos que tais
motivos podem contribuir de maneiras diversas para que alguns temas canonicamente
estabelecidos possam ser revistos. Antes de apresentá-los, cabe-nos informar o que os
une e torna, na verdade, encaminhamentos para tratar do problema que nos interessa:
o que significa pensar historicamente?
Evidentemente, Droysen tratou de tal questão de maneira explícita, mas sem
aprofundar-lhe as raízes, calcular as conseqüências e ver que respostas podem ser
possíveis. E as possíveis respostas à pergunta pelo significado do pensamento
histórico constituem a própria hipótese central deste trabalho. Pensar historicamente
significa para Droysen se equilibrar em uma dinâmica de resignação, ação e
formação1.

1
Os termos, com exceção de “formação”, são de Walter Schulz, filósofo contemporâneo, que vê a
história como um movimento dialético entre Macht und Ohnmacht, que literalmente seria traduzido
por “poder e fraqueza”. Preferimos manter o jogo de palavras que também consta no original em
alemão. Cf. SCHULZ, W. Philosophie in der veränderten Welt. Pp.601-9.
11

O que tentaremos então é examinar a complexa gama de respostas possíveis à


questão sobre o significado de se pensar historicamente. A própria comprovação de
que não há uma resposta unívoca à pergunta sobre o significado e necessidade do
pensamento histórico será suficiente para demonstrar a sinuosidade da obra teórica de
Droysen, e, por extensão, do próprio conceito de história no século XIX alemão. Cada
capítulo deverá dar conta de um aspecto possível das características do pensamento
histórico. A primeira resposta possível, e que corresponderá ao primeiro capítulo da
tese, seria a seguinte: pensar historicamente é pensar teleologicamente. Não
estamos ressuscitando um cadáver que julgamos estar reduzido a pó; por mais que a
teleologia não seja capaz de dar conta de toda a complexidade do pensamento
histórico, descartá-la como possibilidade de dar sentido equivale a menosprezar a
pergunta que não somente todo o historiador se faz, mas que qualquer ser humano,
em algum momento de sua vida, já se fez: qual o rumo de todos os acontecimentos de
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minha vida, de meu país, do mundo em que vivo? “Aonde isso vai parar”? Como
encarar o fim do que consideramos exemplar, o fracasso das apostas que fazemos, ou
mesmo uma conseqüência inesperada (por vezes pessoalmente favorável) a partir de
circunstâncias aparentemente inóspitas? Em Droysen a idéia de teleologia terá um
sabor hegeliano: trata-se sobretudo de esclarecer qual a finalidade do saber histórico,
ou seja, deve-se explicitar seu método, seus limites, funções, normas. É evidente pois
em Droysen o esforço para o estabelecimento de uma autonomia do conhecimento
histórico. A tarefa, se em si não é original, posto que não se pode desconsiderar a
existência de Vico, Herder e tantos outros, tem um elemento bastante interessante, e,
por que não dizê-lo, instigantemente contraditório. Esta autonomia do conhecimento
histórico finca suas raízes no idealismo de Georg W. F. Hegel, e, por isso, relativiza
gravemente a importância dada ao conceito de historismo por imensa parte da
literatura especializada em Droysen e historiografia do século XIX. Como poderá a
história adquirir legitimidade científica se se arrisca a depender de uma
fundamentação filosófica? Trechos generosos da obra de Droysen nos levam a pensar
que sua afinidade com Hegel possuía muito mais pontos de tangência do que ele,
Droysen, poderia admitir e supor. Como dissemos, estes problemas serão tratados no
primeiro capítulo, no qual procuraremos estabelecer uma identidade entre Hegel e
12

Droysen a partir de (a) fundamentação especulativa da ciência, e (b) concepção


teleológica da história. Estes dois ítens constituem as duas funções deste primeiro
capítulo, que seriam mostrar (a’) a relativização da centralidade atribuída ao
historismo a partir justamente da fundamentação especulativa da ciência histórica, e
(b’) como, através da base teleológica que alimenta o pensamento histórico, a
concepção de história haverá sempre de implicar uma visão resignada, em que a
vontade se dissolve em um sentido histórico maior, em que ela se revela na verdade
um destino.
Podemos ainda encontrar pistas das palavras teleológicas de Droysen na
hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, quase exatamente um século
depois. O filósofo dirá em Verdade e Método, que “na verdade a história não nos
pertence; e sim nós pertencemos à história. Muito antes de nos compreendermos a
nós mesmos retrospectivamente, nós nos compreendermos evidentemente na família,
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na sociedade e no Estado em que vivemos”.2 Ou seja: uma concepção resignada da


história a servir de base para a hermenêutica que dá o tom das discussões em torno do
assunto no século XX. Não podemos dispensar o primeiro capítulo para compreender
adequadamente o segundo, em que tratamos da importância da hermenêutica na
determinação de Droysen do significado do pensamento histórico. A hermenêutica,
concentrada no termo Verstehen (compreensão), é para Droysen o coração do método
histórico; logo, aquilo que será possivelmente o meio mais eficaz de entender o que
significa pensar historicamente, posto que, limitados à teleologia de que não se
escapa em um primeiro momento, o pensamento histórico facilmente se subsume a
um pensamento filosófico. A hermenêutica, todavia, tem sido domínio também
filosófico, sobretudo em sua tradição estabelecida ao longo do século XX. O objetivo
do segundo capítulo é, pois, mostrar que o exame da hermenêutica em Droysen, se
não o leva ao oposto da resignação, ou seja, à ação voluntarista, também não será
simplesmente uma ramificação da teleologia hegeliana, como pressupõe (mais do que
prova) Hans-Georg Gadamer. Da mesma maneira que vimos que a obsessão historista

2
GADAMER, H.G. Wahrheit und Methode. p.281. In Wahrheit gehört die Geschichte nicht uns,
sondern wir gehören ihr. Lange bevor wir uns in der Rückbesinnung selber verstehen, verstehen wir
uns auf selbsverständliche Weise in der Familie, Gesellschaft und Staat, in denen wir leben.
13

é capaz de contaminar os estudos que se dedicam a entender o processo de autonomia


das ciências históricas, poderemos ver como a obsessão hermenêutica em Gadamer
também é capaz de passar em brancas nuvens pensamentos que não julgaríamos
possíveis de encontrar em meados do século XIX, o que deverá ser provado quando
percebermos que a hermenêutica, ao menos na concepção de Droysen, não é uma
conseqüência da resignação que encontraremos quase soberana no primeiro capítulo;
na verdade, a hermenêutica será fundamentalmente criativa na medida que é um
caminho (método) que lentamente descobre que tal caminho é próprio. Por isso, é
ativa. Assim, se no primeiro capítulo diremos que em Droysen pensar historicamente
é pensar teleologicamente, no segundo afirmaremos que pensar historicamente
passa a ser pensar hermeneuticamente, pensar interpretando: o historiador, ou
aquele que pensa historicamente em geral, não se contentaria em descobrir uma lei
maior que o antecede e perante a qual, de tão fraco, ele se sente impotente. Para
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Droysen, a interpretação se inicia com a culpa, ou seja, a própria consciência desperta


a partir da compreensão de um processo superior e amplo já a torna culpada, e, por
isso, participativa. Droysen disse que o método histórico, é, forschend, zu verstehen,
ou seja, compreender enquanto se pesquisa; veremos que pensar historicamente é
schwankend, zu verstehen; compreender, enquanto se oscila, ou para ser mais
grosseiro, compreender cambaleando. Para além da culpa, encontraremos uma
dimensão ativa na hermenêutica que colide com a crítica habitual de que a
hermenêutica oitocentista alemã reduz-se à empatia. Interpretar o mundo já não seria
modificá-lo, e interpretrar não seria perceber que sempre o modificamos, mesmo que
nem sempre de forma imediata e consciente? Este é um outro feixe de questões: não
somente ver uma ligação entre teleologia e hermenêutica, entre utopia e a importância
do presente como fontes de sentido histórico; mas ver justamente que o ato de
interpretar cumpre um débito para com o presente significa ver que pensar
historicamente, no registro hermenêutico, é ação. A hipótese deste segundo capítulo é
conseqüência do primeiro: uma vez demonstrada a insuficiência do historismo,
podemos ver como o presente é fonte de sentido da história. A principal função deste
capítulo será a de demonstrar, ao contrário do que se diz sobre a idéia de
hermenêutica oitocentista como um método baseado na “empatia com o passado”,
14

como o presente é este lugar privilegiado, ainda que não absoluto porque justamente
consciente de sua orfandade em relação ao passado e mesmo ao futuro.
Uma terceira resposta para o sentido de pensar historicamente ainda poderia
ser encontrada na obra de Droysen; nela é possível vermos como a Historik é mais do
que um conjunto de regras, normas e métodos, ainda que tal conjunto tenha sido
estabelecido dentro do próprio limite da ciência histórica. Na verdade, quando
limitamos a análise teórica da história neste ponto, simplesmente não saímos do
limite profissional da ciência histórica. Tarefa importante, mas que não dá conta do
que realmente interessa, pois pressupõe que a história existe em si e é possível,
deixando de investigar se ela é necessária, ou seja, se para sair de uma certa
ingenuidade, o homem precisa pensar historicamente. Porque é importante se educar
sobre o passado? É a pergunta que Droysen (se) faz, e para a qual permanecem
silenciosas a hermenêutica e a teleologia. É a pergunta da possibilidade de uma
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cultura histórica, da Bildung. É ela que dá o mote do terceiro capítulo, que deverá
primeiramente examinar justamente o que é o homem culto formado pela história,
sem esquecer que ainda mantemos o pé na questão da resignação e da ação. E é
justamente neste ponto que Droysen ocupa um lugar histórico interessante: se ele
poderá se separar da filosofia do absoluto de Hegel, e, com a hermenêutica, passar à
crítica da pretensão da objetividade, isto não o levará a descartar a possibilidade de
uma cultura histórica, de uma Bildung, crítica que marcará, por exemplo, as
considerações de Friedrich Nietzsche sobre a história. A aposta de Droysen recairá
sobretudo nas potências éticas da vida, e, por isso, ele conseguirá evitar a
concentração das forças históricas no Estado (como fizera Hegel), diluindo-as para
justamente preservar o caráter trágico e conflituoso da história.
Esta discussão é atualíssima. Afinal, trata-se de compreender o caráter do
objeto da história, objeto este que, por ser necessariamente difuso (e só será difuso se
se ampliar para além dos estudos das instituições públicas), não pode se limitar a uma
epistemologia que tenha de antemão definido qual a natureza de seu objeto.
Curiosamente, justamente para cumprir o programa de uma ciência do espírito, na
qual o objeto não está jamais previamente dado na natureza e que pode se
autodeterminar, Droysen precisará se libertar de uma das principais fontes do
15

conhecimento especulativo: Hegel e seu elogio do Estado. Mais do que examinar uma
querela, devemos prestar atenção para o fato de que não há configuração ou forma
histórica que seja capaz de por si encerrar a historicidade, o processo, de uma época
ou de uma sociedade. Como definir pois um objeto, como ancorar-se sem que se caia
em uma indiferença brutal perante tudo que é do mundo, e, por outro lado, sem que se
caia em uma metafísica alérgica à história – descartando Hegel no final do processo
não cairia o pensamento histórico no risco de dar razão a todos os filósofos
(anteriores ao idealismo alemão, diga-se) que negavam a história como estrutura do
mundo e da vida, que viam a verdade como substância e jamais, aprenderíamos
depois com Hegel, como acontecimento, surgimento, processo? Parece que há uma
necessidade, a partir de Droysen, em se manter em um nível empírico incerto e
inseguro, que não se deixará acomodar em um aspecto pontual, em um rincão da
realidade, e que ao mesmo tempo não poderá, caso queira se manter um pensamento
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histórico, apelar para a metafísica. A diferença em relação ao momento anterior do


pensamento histórico está em investigar a história como necessidade, não mais como
possibilidade. Para que tratemos da sua possibilidade, será suficiente o exame de seu
método. Mas este não dá conta de sua necessidade. Para que compreendamos tal
dimensão, é forçoso ultrapassar a sua dimensão normativa. Pensar historicamente
passará a ser, neste ponto, uma necessidade de pensar a história como formação.
No caso de Droysen esta será uma tarefa inadiável, posto que a idéia de formação
(Bildung) ainda não havia sido cumprida, segundo Droysen, por qualquer outra
ciência da época, e na verdade que não será resolvida a partir da definição prévia de
um objeto, mas que em momento algum poderá prescindir das referências que
geralmente tomamos como objetivas. Assim, ultrapassamos a dicotomia entre o
dogmatismo presente (ainda que modo latente) em toda a filosofia da história e a
silenciosa anarquia de toda história que se acredita puramente contingente, seja no
objetivismo positivista seja na pretensão de domínio de todo o campo simbólico e
expressivo que se revela em certas hermenêuticas, ou, melhor dizendo, pós-
hermenêuticas que pretendem examinar seu próprio limite e aplicá-lo aos demais. Na
primeira, ação era irrelevante; na segunda, poderia cair em puro subjetivismo, na
16

medida que o intérprete poderia moldar os fatos de acordo com um corte desejado;
não se trata de uma coisa, nem de outra.
O mais desconcertante é que o pensamento histórico de Droysen, ou melhor, a
necessidade nele exigida para que se aprenda a pensar historicamente, por mais que
não se desprenda das demandas do presente em que vive, em momento algum será
reduzida a um programa ideológico definido. De acordo com Thomas Nipperdey3, o
espectro político alemão entre 1815 e 1848, entre a restauração e as revoluções
burguesas, se caracterizaria por três grandes modelos: o liberalismo, o nacionalismo e
o conservadorismo. Por mais que Nipperdey não tenha em momento algum dito que
as fronteiras entre estes tipos sejam intransponíveis, é espantoso ver que Droysen
poderia ser enquadrado em todos os três. Estaríamos frente a uma contradição de
nosso autor ou insuficiência de uma tentativa de análise meramente política e
ideológica do significado do pensamento histórico, seu estabelecimento,
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desenvolvimento e crítica? Droysen, ao enfatizar a importância da Bildung, o


desenvolvimento do homem a partir de suas próprias forças, ao ver a história
sobretudo como movimento da Bildung, poderia ser facilmente tido como liberal – e
o era politicamente, membro do Partido Casino, de centro-direita, na época da
Paulskirche em Frankfurt, ou seja: um monarquista constitucional4. Por outro lado, e
a isto corresponde sua visão teleológica da história, Droysen se mostrava conservador
ao sublinhar incessantemente a finitude do homem e a incapacidade de suas ações
darem sentido à história. E ainda mais: tinha uma visão bastante negativa no que diz
respeito às conseqüências do progresso da ciência, em especial as ciências naturais.
Não poderíamos pois nos espantar se a história se pusesse a serviço da restauração do
sentido do passado. Mas tal movimento não se verifica, e, na verdade, se modula em

3
Cf. NIPPERDEY, T. Deutsche Geschichte 1800 – 1866. pp. 286 – 319.
4
À direita do Partido Casino defensor da monarquia constitucional na qual o torno teria forte poder de
veto, e no qual deveria ser estabelecido um equilíbrio entre Estado e indivíduo, estava o Partido Café
Milani, fortemente federalista e eclesiástico, defensor de tradições e do poder do Estado. O
Württemberger Hof seria o partido do liberalismo de esquerda, no qual o trono teria um poder menor
de veto. Ainda mais à esquerda encontravam-se o Deutsche Hof, defensor de amplas igualdades
constitucionais e do princípio da maioria (mas sempre aberto para conceder em pontos essenciais) e o
Donnersberg, instatisfeito com os resultados de 1848 e que pretendia levar adiante o processo iniciado.
Uma boa descrição do processo pode ser encontrada em NIPPERDEY, T. Deutsche Geschichte 1800 –
1866, pp.606-622 e SCHULZE, H.: Der Weg zum Nationalstaat: Die deutsche Nationalbewegung vom
18. Jahrhundert bis zur Reichsgründung.
17

Droysen como um nacionalismo bastante afirmativo, que entra em rota de colisão


com a sua visão teleológica. A ênfase na parcialidade e o elogio do horizonte e da
perspectiva historicamente situadas do historiador colocam Droysen também na trilha
do nacionalismo. Portanto, esperamos que fique claro ao longo do estudo que em
momento algum sua teoria da história poderá ser subordinada de modo absoluto a
uma corrente ou modelo de pensamento político. Sim, jamais poderá ser apagado e
negado seu envolvimento político-partidário, e, por isso, o liberalismo de Droysen
poderá prevalecer perante o nacionalismo e o conservadorismo, mas se o faz, é
porque tal liberalismo em momento algum terá uma conotação econômica e clássica,
mas quase cultural, baseada na Bildung cuja função principal é a capacidade de se
manter vigilante e autocrítico, distanciado de um comprometimento pragmático raso,
no qual o conhecimento serviria a um fim muito específico e delimitado. Lembrar
estes aspectos políticos e culturais que estão presentes no contexto de Droysen tem
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uma função precisa: fala-se em liberdade, mas não em termos hegelianos; o homem,
para Droysen, ainda pode ser meio para si mesmo em uma crise histórica e mesmo
quando suas diferentes dimensões se chocam entre si. Ou seja: a liberdade não se
expressa necessariamente em uma síntese redentora e em um desejo de
asseguramento através da resolução de conflitos. E isto vem mesmo de um burguês,
cuja consciência histórica ultrapassa um simples elogio do progresso, da liberdade e
da linearidade. O terceiro capítulo terá atingido seu objetivo se através de sua leitura
ficar demonstrado que o “homem culto ideal” alemão não mora somente na torre de
marfim, mas que na verdade desce do alto da montanha e percebe em si mesmo, de
modo autocrítico, uma complexidade que geralmente não lhe é atribuída por nomes
relevantes como Friedrich Nietzsche, Ernst Jünger e Georg Lukács. Se é capaz de
pensar em um sujeito da história – e de fato o é – certamente este motor da história
não pode estar calçado em uma vaga idéia de progresso linear. Na verdade, como
veremos em cada capítulo, as características do pensamento histórico estão sempre
marcadas por um elemento trágico, que claramente impõe um limite à pretensão
absolutamente racionalista de tudo conhecer e controlar. A idéia de destino, de
orfandade do presente e ainda mesmo a cisão que o “homem culto” identifica em sua
própria complexidade não permitem que possamos falar em uma síntese redentora.
18

Tal exame só se torna possível caso fique claro como trabalharemos ao longo
da tese. Trata-se sobretudo de um estudo da história dos conceitos, e isto em dois
sentidos. Primeiramente, no sentido pensado por Gunter Scholtz5, que vê na
Begriffsgeschichte a possibilidade atual da antiga filosofia da história. Ou seja: é
quando a história se faz conceito de si mesma, pergunta pelos seus pressupostos, mas
não se colocando fora de si mesma, ou seja, fora de suas circunstâncias. Ela se vê
como objeto temporal de si mesma. Tal perspectiva se aplica não somente ao fato de
se tratar de um estudo de teoria da história, e, portanto, de estarmos envolvidos
sempre com o problema de ter uma “teoria da teoria” que pode ser expressa como
história das idéias, história intelectual, história da cultura e entre outras divisões. De
acordo porém com a definição de Scholtz, lidamos aqui com conceitos que, de
alguma forma, são objetos interessantes sempre que podemos ver neles uma tentativa
produtiva de dar contornos definidos ao mundo e ao conhecimento. Mas aplica-se tal
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método também a todo o corpo da tese, seja no primeiro capítulo, quando tratamos da
idéia da história como ciência, seja no segundo, quando falamos sobretudo da
compreensão como método, ou ainda mesmo do terceiro, quando lidamos com a idéia
de Bildung e homem culto.
Para tratar das questões, espero que pareça a todos claro que escolhemos
como fontes centrais os dois volumes da Historik, de Droysen. Vale dizer que o
segundo ainda não foi publicado (nem mesmo na Alemanha), e por isso a indicação
das páginas nas citações feitas desta obra não necessariamente corresponderão à
paginação do livro de fato. Mas isto somente o leitor do futuro poderá averiguar.
Paralelas aos dois volumes, utilizamos todas as fontes possíveis das obras de Droysen
até 1857, ano da primeira preleção do Historik – não nos interessamos por exemplo
por sua monumental “História da Prússia”, escrita até o final de sua vida. O motivo é
simples: como é nosso interesse ver a necessidade da história, investigação que não
pode dispensar a atividade teórica, julgamos mais interessante ver os passos que
levam um autor a se decidir a escrever uma teoria da história. Não utilizaremos um
método cronológico, no qual traçaríamos ano a ano o avanço de Droysen rumo a uma

5
Cf. SCHOLTZ, Gunter. “Begriffsgeschichte als historische Philosophie und philosophische
Historie”. p.187.
19

teoria acabada e definitiva, e isto por um motivo muito mais filosófico, digamos
assim, do que didático: o que notabiliza Droysen, a nosso ver, é a constante presença
do seu talento teórico e especulativo. A Historik não lhe caiu do céu, não foi obra
inspirada, mas sim pensada por quase três décadas, e prova disto é ver como mesmo
em suas preleções sobre Grécia antiga e Idade moderna estão presentes reflexões
teóricas; em um determinado momento, fez-se todavia necessário expor um método e
um sistema, e é nas entranhas deste que procuraremos as respostas para as perguntas
que acima estão formuladas. Por mais que Jörn Rüsen tenha feito deste método de
abordagem a medula de sua tese de doutoramento, sentimos a falta da percepção de
que tal gênese da Historik se deve ao aludido talento especulativo do historiador
Droysen - possivelmente por este motivo, Droysen foi saudado por nomes do porte de
Hannah Arendt6 e Jacob Burckhardt como um dos grandes nomes da historiografia
oitocentista. Fontes que atestam seus primeiros anos de trabalho, quase todas ligadas
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à Grécia antiga e sobretudo às tragédias e o período helenístico, também foram


utilizadas, e, com menor utilidade para os resultados que serão apresentados a seguir,
fontes que servem de pista e prova para a atividade política de Droysen durante a
revolução de 1848 na Alemanha.
Concluímos esta introdução com um lamento: ao menosa até onde pudemos
averiguar, Droysen infelizmente permanece inédito em língua portuguesa. Por este
motivo, nos vimos obrigados a traduzir todas as passagens citadas de suas obras.
Naturalmente as passagens originais se encontram transcritas em notas de roda-pé
para controle dos leitores que dominam o alemão. Determinadas fontes primárias
todavia (tais como a Fenomenologia do Espírito e as Segundas considerações
intemprestivas), dada a qualidade de suas traduções, foram citadas em português nas
edições de acesso relativamente fácil ao público brasileiro.

6
Arendt refere-se a Droysen como “talvez o mais denso dos historiadores do século XIX” (ARENDT,
Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.110). Burckhardt, ainda aluno
em Berlin, lamenta em uma carta a Friedrich von Tschudi a mudança de Droysen para Kiel em 1840.
“A perda é ainda mais desastrosa porque ele me recebeu muito bem (…) Não há dúvidas quanto à sua
importância, e em dez anos ele será considerado um dos grandes.” (BURCKHARDT, Jacob. Cartas.
Ed. Alexandre Dru. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p.131)
2.
História como resignação: A Teleologia em Droysen

No ano de 1857, nove alunos da Universidade de Iena se inscreveram em uma


série de preleções oferecidas pelo historiador Johann Gustav Droysen que, deixando
de lado a história do helenismo e a história da Prússia e da Europa moderna, trataria
do que hoje se chama habitualmente “teoria da história”.1 O curso denominava-se
precisamente “Enciclopédia e Metodologia da História”, cujas lições depois reunidas
em livro por Rudolf Hübner e Peter Leyh receberiam o nome definitivo de Historik.2
A proposta das preleções era clara: saber o que significava pensar
historicamente. Todavia, seu autor não procurava orgulhosamente entronizar o lugar
do historiador. Na verdade, o exercício teórico deveria realizar um exame de
pressupostos, quebrando certezas cujo grau de cristalização obscurecia o significado
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de conceitos fundamentais para a escrita da história e o pensamento histórico em


geral.
A acusação freqüentemente feita ao insulamento nocivo da teoria da história,
área por vezes pouco convidativa aos próprios historiadores, não atinge um
historiador sagaz o suficiente para perceber a relação entre a caudalosa produção
historiográfica da primeira metade do século XIX europeu e a confusão teórica, uma
estranha fórmula em que a miséria da teoria convivia com o fato de a História ser
considerada, pelo menos no seio da burguesia culta alemã, um elemento
indispensável na formação individual.
Tanta vagueza justificaria, segundo Droysen, a legitimidade da Historik.

Cada um tem uma idéia vaga do que seja história, escrita da história ou estudo da
história. Nossa própria ciência porém não vai além desta idéia vaga.(…) Quando
perguntada sobre sua legitimidade, sobre seu conhecimento e sobre o fundamento de
1
Como nota Peter Leyh na introdução de sua edição do Historik, o curso seria oferecido ainda outras
17 vezes, até o semestre de inverno 1882/83. Felizmente a freqüência aumentaria, ainda que
levemente, ao longo dos vinte e cinco anos entre a primeira e a última versão do curso.
2
Cf. JAEGER, F. & RÜSEN, J. Geschichte des Historismus. p.58. Jörn Rüsen e Friedrich Jaeger
alertam todavia que, apesar da contribuição teórica de Droysen ser evidentemente destacada, o nome
“Historik”, termo pouco usual na língua alemã, já houvera sido recentemente utilizado por Georg
Gottfried Gervinus, em 1837, em seu opúsculo “Grundzüge der Historik”, obra ainda orientada pela
tradição da escrita da história como retórica.
21

seu procedimento e essência de sua tarefa, a nossa ciência não tem condições de dar
informações suficientes.
Parece ter chegado a hora em que nossos estudos busquem por si mesmos determinar
sua essência, sua tarefa e sua competência.
Eu tentarei lhes apresentar uma disciplina que ainda não existe, que ainda não possui
nome nem lugar no círculo das ciências. Primeiramente precisa ser provado que ela é
possível e que tem legitimidade científica.3

Historiador diligente, Droysen não pode ser tratado como um dogmático a


afirmar como se deve ou não se deve escrever história, a partir de princípios que
seriam estranhos à sua ciência. Se a Historik é de fato uma tarefa a ser cumprida, ela
tem em Droysen um realizador à altura, pois sua obra sempre se marcou por
observações teóricas espalhadas e dispersas, e, assim, a sistematização e a
composição de um método histórico não podem ser vistos como devaneios de quem
está tentando aprender a nadar sem antes entrar na água. Na verdade, a Historik é um
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exercício reflexivo urgente, reação ao desenvolvimento institucional de uma


disciplina teoricamente ainda inconsistente, e, assim, por mais que seja tudo menos
produtora de um conhecimento exótico – Droysen dirá com algum deboche que cada
membro da Bildungsbürgertum, a burguesia culta, “sabe” o que história “quer dizer”
– tal disciplina precisa admitir que, ao lado da riqueza de pesquisa, há a pobreza de
consciência. Por partir desta premissa, ou seja, de que há uma necessidade inadiável
de se entender o que é pensar historicamente, pode-se dizer que a Historik é uma
ciência que procura mostrar o que sucede quando se escreve história e quando se
pensa e vive como ser histórico, e, por este motivo, se ela é fundamental para que tais
processos sejam esclarecidos, fica suposto que somente a riqueza empírica não é
suficiente para que se compreenda o que a história é.

3
DROYSEN, J.G. Historik. ed. Leyh. Pp.3-4. Jeder hat eine ungefähre Vorstellung davon, was
Geschichte und Geschichtsschreibung, was Studium der Geschichte ist. Aber mehr als diese ungefähre
Vorstellung hat bisher auch unsere Wissenschaft nicht (…) wenn man sie [unsere Wissenschaft] nach
ihrer Rechtfertigung, nach ihrem Erkenntnis, wenn man sie nach der Begründung ihres Verfahrens und
nach dem Wesen ihrer Aufgabe fragt, so ist sie nicht in der Lage, genügende Auskunft zu geben. (…)
Da scheint es denn allerdings in der Zeit zu sein, dass unsere Studien selbst ihr Wesen, ihre Aufgabe,
ihre Kompetenz festzustellen suchen.
Ich unternehme es, Ihnen eine Disziplin vorzutragen, die bisher noch nicht existiert, noch keinen
Namen, keine Stelle in dem Kreise der Wissenschaften hat. Es muss zunächst nachgewiesen werden,
dass sie möglich und dass sie wissenschaftlich berechtigt ist.
22

Por outro lado, e aí reside a obscuridade da questão da necessidade de uma


nova disciplina, Droysen habita um meio cultural riquíssimo no que diz respeito não
somente à historiografia, mas também à filosofia da história. Se não havia problemas
na quantidade do conhecimento histórico, tampouco na precisão conceitual dada pela
história da filosofia recente, é de se perguntar como a Historik poderia ainda
reivindicar seu lugar no círculo das ciências.
Transpor este abismo que separa a riqueza de conhecimentos sobre
circunstâncias com a sofisticação conceitual é o risco que se apresenta para toda
teoria da história. Se esta pretende, de alguma forma, se sobrepor aos ramos da
historiografia, se almeja de alguma maneira unir especialistas das áreas mais díspares
(dentro da historiografia) em torno dos mesmos termos, normas, conceitos
fundamentais e métodos, de alguma forma ela deve superar o que há de
idiossincrático na particularidade, e assim almejar um caráter geral. Por outro lado,
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sendo seu objetivo o de justificar teoricamente o estudo das particularidades, e, mais


do que isso, mostrar sua necessidade, não correria a teoria da história o risco de se
perder no mundo dos conceitos, bastar-se com eles, tornar-se um ramo da filosofia e
esquecer justamente aquilo que mais a interessa, a saber, compreender os meios
através dos quais o homem dá sentido ao contingente?

2.1.
O Nó górdio: Historik como ciência filosófica do espírito?

Mesmo reconhecendo seu débito em relação aos esforços anteriores de


estabelecimento de uma teoria da história e sem negar a precedência de Wilhelm von
Humboldt e do papel decisivo da reforma protestante para a configuração da
consciência histórica, Droysen mira alto: não há nele um pedido de ajuda em outras
disciplinas que poderiam dar esta guarida. Além de exigir do historiador uma
consciência de seu próprio ofício, ele procura estabelecer a diferença entre a história e
os dois grandes modelos de conhecimento em sua época, a saber, aqueles formados
pelos métodos físico-matemáticos das ciências naturais e pelo método especulativo da
filosofia e da teologia. Optar entre um método ou outro seria, para Droysen, obrigar o
23

homem a escolher a partir de uma falsa alternativa, pois ambos os métodos


cristalizam uma parte da natureza do homem, que, por ser, segundo ele,
simultaneamente espiritual e sensorial, não poderia fixar-se definitivamente em um
dos dois aspectos, sob o risco de se tomar a parte pelo todo; e, nesta tendência de se
fixar um dos extremos, fica nebuloso o significado do pensamento histórico.

Movimento e unidade são ambos momentos, através dos quais o espírito é espírito,
através deles ele se polariza em direção a uma vivacidade incansável que se
consumiria a si mesma sem a energia da unidade e que se afundaria morta sem o
movimento constantemente ativo e periférico.
Desta duplicidade desenvolvem-se os dois métodos (…) o físico e o especulativo4

Segundo Droysen, o método físico se debruça sobre o movimento, sobre o


jogo de causas e efeitos, e, assim, subsume a variedade dos fenômenos a leis que
procuram compreender esta dinâmica. Já o método especulativo, diz Droysen,
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procura dar à idéia de origem uma importância decisiva, e o tempo subseqüente seria
apenas o desdobramento desta própria idéia. Assim, “a tarefa dos estudos históricos
consiste em que se aprenda a pensar historicamente”,5 de modo a “despertar o sentido
para a realidade”, e pensar historicamente, para ele, não é exatamente pensar
matematica ou filosoficamente6. O que seria esta realidade, para cujo sentimento a
história educa?

Quem aprendeu a pensar historicamente desconhece a aversão filosófica perante o


único e o específico e a aversão ainda maior que é enxergar em tudo somente número
e matéria, enxergar em tudo forças físicas; quem aprende a pensar historicamente se

4
DROYSEN. J.G. Historik. Ed.Leyh. p.32. Bewegung und Einheit sind die beiden Momenten, durch
die der Geist Geist ist, durch sie polarisiert er sich zu der rastlosen Lebendigkeit, die sich selbst
verzehren würde ohne die Energie der Einheit, die tot in sich selbst versinken würde ohne die immer
wieder peripherisch wirkende Bewegung.
Aus dieser Doppelheit erwachsen die beide Methoden (…), die physikalische und die spekulative.
5
Ibid, p.5. Die Aufgabe der historischen Studien ist, dass man historisch denken gelernt hat .
6
Vale ressaltar que Droysen já demonstrava notável semelhança com o que Hayden White, mais de
cem anos depois, apontaria em seu Metahistory como a estrutura da consciência histórica, dividida
entre romântica, positivista e idealista. Na verdade, Droysen poderia ser incluído como “idealista”; sua
resistência todavia a Hegel evitará que ele simplesmente se enquadre sem sobras nesta categoria. Sua
recusa pelas explicações românticas e positivistas, refletidas em seu ceticismo para com a objetividade
absoluta ou em princípios orgânicos, mostrará que é mais do que óbvia sua recusa destas duas formas
de consciência. Cf. WHITE, H. Metahistory. p.39.
24

lança aos fenômenos cambiantes convicto de que encontrará, por detrás deles, a
verdade das potências éticas7.8

É necessário perceber este movimento pendular entre a afirmação da


variedade dos fenômenos e a existência de potências éticas como um viés condutor da
elaboração da Historik. Não somente os fenômenos são cambiantes, mas sobretudo o
próprio jogo entre a variedade e o substrato ético é o que importa ressaltar. Se
lamenta por um lado a pobreza de consciência irmanada à riqueza de experiência,
Droysen em momento imediatamente posterior dirá que a acusação feita ao
conhecimento excessivo dos fatos não deve adormecer a sensibilidade para as
particularidades. Assim, o método histórico procurará, segundo ele, estabelecer a
identidade entre os dois métodos, cujo maior problema consiste não exatamente em
sua parcialidade, mas na ilusão de, em sua parcialidade, acreditarem estar dando
conta da totalidade. Para Droysen, a identidade possível entre os dois métodos se
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encontra na esfera do mundo das potências éticas, no qual a cada momento dá-se a
reconciliação (Versöhnung) nesta oposição entre movimento e unidade, sem que em
algum momento esta reconciliação se cristalize e adquira contorno definido.
Se há a necessidade de um método histórico, Droysen admite que há lacunas
ainda não preenchidas, ou ao menos questões cujo encaminhamento poderia ser
diverso. Sua observação de que não se deve resumir a ciência a uma coleção de fatos
adaptáveis a leis, de um lado, ou a uma pura especulação, de outro lado, não é
exatamente inédita no contexto alemão: a bipolaridade das ciências, da qual Droysen
parte para tentar justificar a existência da Historik, também foi identificada por Hegel
cinqüenta anos antes, no prefácio da Fenomenologia do Espírito, e é uma das
alavancas de seu imenso projeto filosófico.

7
A tradução é assumidamente controversa. O termo “sittliche Mächte” poderia ser traduzido como
“potências morais”, mas, conforme poderá ser demonstrado posteriormente, a Sittlichkeit, em Droysen
em momento algum terá cunho moralista e dogmático, ou seja, não se trata de princípios que se
aplicam a qualquer circunstância. Preferimos adotar a solução de Paulo Meneses, a saber, Sittlichkeit
pode ser traduzida por eticidade.
8
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p. 5. Wer historisch denken gelernt hat, der kennt nicht die
philosophische Lieblosigkeit gegen das Einzelne und Besondere, noch die grössere Lieblosigkeit,
überall nut Zahl und Stoff, nur physikalische Kräfte zu sehen; er wendet sich an die wechselnden
Erscheinungen mit der Gewissheit, dass die Wahrheit sittlicher Mächte hinter ihnen sei.
25

Essa oposição parece ser o nó górdio que a cultura científica de nosso tempo se
esforça por desatar, sem ter ainda chegado a um consenso nesse ponto. Uma corrente
insiste na riqueza dos materiais e na inteligibilidade; a outra despreza (…) essa
inteligibilidade e se arroga a racionalidade imediata e a divindade.9

Realçar a importância das contingências e despertar a sensibilidade para o


particular, exigirá todavia de Droysen um combate em duas frentes, isto caso seja
possível ver, a partir da fundamentação teórica da história, uma concepção de ciência
que seja mais do que mera derivação da filosofia idealista de Hegel. Fazer o elogio da
particularidade perante a lei geral não lhe custa tanto esforço quanto pensar a
diferença entre o pensamento histórico e o pensamento filosófico, a começar pela sua
forte inclinação conceitual, que não resistia a começar suas preleções sem deixar de
fazer comentários e introduções conceituais e teóricas, antes mesmo de entrar em seu
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tema específico, seguindo assim uma abordagem hegeliana na problematização do


conhecimento e na forma didática de oferecer preleções, ou seja, estabelecendo a
diferença entre as ciências do espírito e as ciências naturais a partir do fato de que
estas já têm previamente dado o seu objeto, cuja definição seria mais do que ociosa.
Quanto às ciências do espírito, estas precisam mostrar a dignidade de seu objeto e
afirmar-lhes a existência e o método, não sem antes tentar investigar sua própria
essência. Um belo exemplo é a introdução ao seu curso sobre história moderna, no
semestre de 1842/43, em que Johann Gustav Droysen parece mostrar ter aprendido
muito bem as lições de Hegel:

Usualmente debruça-se sobre a história com uma idéia geral e obscura daquilo que se
quer e como se quer. Relega-se ao instinto natural da busca e da descoberta; não se
presta antes atenção aos limites da ciência (…) É necessário estar claramente
consciente como a história trabalha, e por quais caminhos ela procura atingir tais e
tais objetivos. Ela procura no passado dogmas para o presente? (…) Ela quer esgotar
o infinito material empírico, pesquisar e justificar com igual agudeza cada
particularidade? (…) Ao contrário das ciências naturais, a história não tem seus
objetos previamente dados. Seus primeiros materiais já são abstrações, e não a
própria realidade, mas uma acepção subjetiva.10

9
HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito, p.32.
10
DROYSEN, J.G. “Der esrte Abschnitt der Einleitung der Vorlesung über die Neuere Geschichte,
1842/43.” Historik Bd.2. p.93.
26

De acordo com esta passagem, vê-se que a tentativa de esgotar o material


empírico e esquadrinhar cada canto da realidade histórica é uma tarefa essencialmente
equivocada, pois, segundo Droysen, o objeto histórico, mesmo quando aparentemente
é uma evidência empírica e absolutamente particular, é na verdade uma apreensão
subjetiva. Há mais semelhanças com a filosofia de Hegel do que o próprio Droysen
possivelmente gostaria de admitir – ou ao menos não menciona explicitamente. Para
dar um exemplo desta semelhança de método: logo no início de seu curso sobre
estética11, Hegel diz que não somente qualquer ciência deve afirmar a existência de
seu objeto e saber aquilo que ele é, bem como há uma grande diferença entre o que
ele chama ciências ordinárias e ciência filosófica do espírito; naquelas, os objetos
existem no mundo sensível, nesta o objeto existe justamente no espírito, ou seja, sua
natureza é subjetiva, e, assim, o conhecimento é para si, e deve ao final, como
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espírito, ser objeto de si mesmo. Todavia, é bom lembrar que tal natureza subjetiva
não significa uma existência anterior e independente da experiência, ou seja, algo que
exista em estado puro antes do conhecimento daquilo que se pretende conhecer.
Droysen certamente parte da diferença estabelecida por Hegel entre pensar
representativo e pensar especulativo ou conceitual, ou seja: a primeira forma de
pensar pressupõe um sujeito que conhece acidentes e se crê inalterado por este
conhecimento e, como diz Hegel, ao fim e ao cabo ou bem se vê perdido em uma
multidão de determinações carentes de pensamento ou bem se crê superior a todo
conteúdo, achando em cada um apenas o próprio vazio. Na segunda, o que ocorre é a
experiência que a consciência faz de si mesma.

Man geht gewöhnlich an die Geschichte mit einer allgemeinen und dunkeln Vorstellung von dem, was
sie will und wie sie es will; man überläßt sich dem natürlichen Instinkt des Suchens und Findens; man
achtet der Schranken der Wissenschaft nicht früher. Es ist notwendig, klar im Bewußtsein zu haben,
wie die Geschichte arbeitet, auf welchen Wegen sie weiches Ziel zu erreichen sucht (…) Sucht sie in
der Vergangenheit L e h r e n für die Gegenwart? die unendliche E m p i r i e erschöpfen, jedes
Einzelne mit gleicher Schärfe untersuchen und berichtigen? (…)Die Geschichte hat nicht wie die
Naturwissenschaften die Objekte ihres Forschens in steter U n m i t t e l b a r k e i t vor sich; ihre
ersten M a t e r i a l i e n schon sind Abstraktionen, sind nicht die Wirklichkeiten selbst, sondern eine
subjektive Auffassung.
11
Cf. HEGEL, G.W.F. Curso de Estética: O Belo na Arte, p.7
27

A consciência sabe algo: esse objeto é a essência ou o Em-si. Mas é também o Em-si
para a consciência; com isso entra em cena a ambigüidade desse verdadeiro. Vemos
que a consciência tem agora dois objetos: um, o primeiro Em-si; o segundo, o ser-
para-ela desse em si. Esse último parece, de início, apenas a reflexão da consciência
sobre si mesma: uma representação não de um objeto, mas apenas de seu saber do
primeiro objeto. Só que o primeiro objeto se altera ali para a consciência.12

Pode-se dizer que a própria forma do espírito como objeto de si mesmo jamais
é imediata. Logo no prefácio da Fenomenologia do Espírito, pode se ler que a
substância é sujeito, ou melhor, que a verdade é sujeito, e não substância, justamente
porque todo o seu conteúdo é uma reflexão sobre si mesmo. É neste movimento de
pensar a si mesmo em cada determinação de seu conteúdo que a filosofia dispensa o
raciocínio vulgar e as definições habituais, que normalmente cumpre uma identidade
imediata entre saber (representação de algo como alguma outra coisa) e verdade.
É praticamente inevitável perguntar se Droysen realiza o mesmo com a
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história. Há nela este jogo no qual, ao refletir sobre si mesma, a consciência vê


modificar-se o objeto que se lhe foi apresentado?
Este movimento já se inicia com a própria palavra: ele condena o uso habitual
da palavra história, partindo para tentar demonstrar seus pressupostos, ou seja,
mostrá-los em sua necessidade, e, assim, mostrar que o entendimento do significado
deste objeto não é imediato, e, mais ainda, o que determina o pensamento histórico
não é a existência exterior de algum objeto. Ele deve ser fundado em si mesmo. Ou
seja, a passagem lembra bastante o que mesmo seria informado através de uma leitura
superficial do capítulo sobre a certeza sensível, a primeira figura da experiência que a
consciência faz de si mesma na Fenomenologia do Espírito: sem querer esgotar o que
pode ser explorado no filósofo, seria no caso suficiente lembrar que o limite do
conhecimento da certeza sensível está, no movimento de tentar afirmar a consistência
do conhecimento sensível, das coisas aí dispostas, ver que, ao indicar um particular,
sempre se indica na verdade um universal que o sustenta, e, assim ele é superado: o
que aparece como aqui e agora, na verdade, é uma pluralidade de aquis e agoras, pois
o “aqui” é algo que está mais à direita ou à esquerda, acima ou abaixo de outra coisa,
da mesma forma que o agora contém uma pluralidade de outros agoras, da mesma

12
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito, p.80.
28

maneira que uma hora tem sessenta minutos, e daí em diante. Dito de outra maneira,
por mais que o conhecimento sensível tente esquadrinhar a realidade, ele jamais
conseguirá alcançá-la em sua totalidade, pois simplesmente está tomando o caminho
errado, posto que este próprio esquadrinhamento, supondo o contato com
singularidades, impede o alcance da totalidade que não se confunde com uma
contagem estatística. Ao condenar a voracidade empírica dos historiadores eruditos,
Droysen parece lhes aplicar uma penalidade orientada por Hegel; afinal, podemos
concluir que, para Droysen, saber por exemplo como eram as instituições e a cultura
de uma determinada sociedade em todos os seus detalhes não implica saber o que é
história, justamente porque em Droysen, como em Hegel, não há tal imediaticidade
entre o saber representacional e a verdade, e, assim, a verdade da história não estaria
na miríade dos detalhes. O objeto da história também não seria o que se altera para a
consciência que se reflete sobre si mesma? E isto não poderia ocorrer na própria
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pesquisa? Para Droysen, o objeto da história se caracteriza por ser morfológico. E


dirá:

A nossa ciência tem a ver com materiais de tipo morfológico. Pois é na atribuição de
formas que o espírito encontra sua essência própria; poder-se-ia dizer que, aquilo do
mesmo modo que a corporeidade material vale para a vida orgânica, para o espírito
vale a esfera de suas formas; Estas são as configurações de seu conteúdo autêntico,
nelas ele se torna consciente, e na medida que ele se põe para fora de si, na medida
que ele se objetiva.13

Pode-se entender a partir de tal trecho ainda melhor a afinidade (nem sempre)
eletiva entre Droysen e Hegel, ou seja, verifica-se por vezes sem dificuldade o débito
do historiador em relação ao filósofo quando se percebe que, para Hegel, a
legitimidade de uma ciência filosófica do espírito reside justamente na existência de
seu objeto para além do mundo sensível, logo, sua legitimidade se dá na medida que
tal ciência produz o próprio alimento que a sustenta, o que, claro está, não difere
muito da ambição de Droysen em estruturar a autonomia do pensamento histórico – e

13
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.20. (…) unsere Wissenschaft habe es mit Materialen
morphologischer Art zu tun. Denn in den Formgebungen hat der Geist sein eigenstens Wesen; man
könnte sagen, was dem organischen Leben die stoffliche Körperlichkeit, das ist dem Geist die Sphäre
seiner Formungen. Sie sind die Gestaltungen seines eigensten Inhalts, in ihnen wird er sich bewusst,
indem er sie ausser sich setzt, sie sich so gegenständlich macht.
29

aqui reside o ponto mais importante para caracterizar a Historik. Ela é uma atividade
que indiscutivelmente é o resultado ou a conseqüência das pesquisas anteriormente
feitas por Droysen. Ele em momento algum exibe um programa e o cumpre em obras
ditas empíricas que serviriam de exemplos para o que ele já sabia antes de ler
qualquer documento de época. Seu percurso também é de uma certa experiência da
consciência. Por outro lado, ela é feito nos trilhos da historiografia, e não da filosofia.
O problema aparece timidamente, mas de maneira tal que já não podemos
desconsiderar sua existência: como considerar autônoma uma ciência – no sentido
hegeliano de autonomia científica – se esta ciência não é a filosofia? Como pode ser
possível para Droysen fazer da Historik uma ciência filosófica do espírito se ele quer
dispensar a filosofia como base de seu edifício teórico? Como fazer valer ao longo de
toda a sua obra, teórica e propriamente historiográfica, a sua afirmação cabal de que
“determinar as leis da pesquisa e do saber histórico, e não da história mesma, é a
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tarefa da Historik”,14 que já nos indica algo que por vezes escapa tanto aos
historiadores quanto aos filósofos, ou seja, que a teoria da história jamais poderá ser
um feudo da filosofia da história. A própria evidência histórica de que a filosofia teria
sido incapaz de fundar positivamente a historiografia, deixando-a por um lado livre
para se autodeterminar mas por outro em igual medida livre para exibir sua
inconsistência e negligência teórica, nos faz remeter à urgência da Historik
droyseana.

2.2.
Muito além do Historismo: a história intelectual alemã de Droysen.

Ao leitor da Historik fica evidente que Droysen reservou-lhe um tratamento


abstrato, evitando ao máximo referências explícitas e tratamentos específicos sobre os
autores clássicos da tradição alemã. Todavia, em um curso sobre a história cultural
alemã oferecido quinze anos antes, Droysen apresentara sua própria visão da

14
DROYSEN, J.G. “Kunst und Methode” IN: Historik. Ed. Hübner, p. 424. (…) nicht die Gesetze der
Geschichte, wohl aber die Gesetze des historischen Forschens und Wissens festzustellen, das ist die
Aufgabe der Historik.
30

trajetória do mesmo pensamento alemão desde Goethe e Kant até Schleiermacher.


Droysen não poderia mesmo se furtar ao exame dos pressupostos que o alimentavam
e sustentavam, e tentava se situar no ambiente histórico. Não haveria para Droysen
outro caminho a perceber senão exatamente este, ou seja, o do pensamento histórico
como um possível interlocutor de outras formas de conhecimento e cultura, como a
filosofia, a teologia e a literatura. Este é um dado que não pode ser desprezado: o
discurso da autonomia em Droysen é forte somente quando ele apela para a
consciência de si do próprio historiador, pois, de resto, Droysen sabia das
ambigüidades de todo discurso excessivamente empenhado em se firmar autônomo.15
O percurso por ele traçado obedece a um princípio: o da maturidade científica,
ou melhor, da consciência de si do próprio saber. O mesmo problema – o da cisão e a
busca de reconciliação – será exposto brevemente, mas de maneira concisa, e, assim,
vendo o que será feito mais de uma década depois, podemos perceber com o que
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exatamente Droysen se confronta, que pergunta subjaz seu pensamento. Nestas


preleções, vemos que Kant era a base, o ponto de partida que daria os rumos do
pensamento alemão (não somente na filosofia), mas mesmo o entendimento do lugar
de Kant na história dependia de outros fatores, como, por exemplo, o pietismo, que,
segundo Droysen, procurava ver na fé subjetiva e mística uma renovação em relação

15
Para ficar em um exemplo desta sua sensibilidade desconfiada para com o discurso em prol das
fragmentação das esferas do saber, Droysen, já em 1828, em um texto sobre Ópera marca a diferença
entre a tragédia antiga, capaz de unir diferentes formas de manifestação artísticas, e a arte dos tempos
modernos. Nos dias atuais, segundo ele, “é um grande progresso, nosso grande privilégio, que cada
arte em particular tenha se formado em torno do máximo de sua perfeição. Mas aí se pôs o perigo do
isolamento das artes, que de fato têm uma origem comum, pois que todas são expressão de uma só
idéia. Isto de fato ocorreu com a poesia e música, estreitamente ligadas, que se desenvolveram e se
separaram lenta e dogmaticamente. Desde que este elo externo se dissolveu, elo que mantinha unidas
todas as artes à igreja e lhes emprestava sentido e utilidade, elas passaram a se diferenciar umas das
outras; escutam-se concertos e vêem-se peças de teatro, mas na maioria das vezes apenas com o intuiro
de passar o tempo. Uma reunião do que se separou desta maneira é, neste caso, impossível.”.
DROYSEN, J.G. “Von der Oper”, 16 e 23.01.1828” IN: Historik. Bd.II, pp.16-7. “Anders gestaltet
sich die Kunst der neuern Zeit; es ist der wichtige Fortschritt, unser großes Vorrecht, daß je Einzelne
die einzelnen Künste ausgebildet haben wiederum zu möglicher Vollendung. Aber es ist damit die
Gefahr einer Vereinzelung der Künste gesetzt, die doch alle nur eines Ursprungs, alle nur derselben
Idee Äußerung sind. So ist es denn namentlich auch geschehen, daß die am engsten
zusammengehörenden Poesie und Musik, sich in sorgloser Einseitigkeit und starrer Sonderung
entwickelt haben. Seitdem gar das äußerliche Band, mit dem diese wie alle Künste die Kirche
zusammenhielt und in Ihrem Dienst ihnen Zweck und Bedeutung setzte, gelöst ist, sind sie ganz
voneinander verschiedene; man hört Konzerte und sieht Schauspiele, beide meist nur um der
Ergötzlichkeit und des Zeitvertreibes willen. Eine Wiedervereinigung der so Geschiedenen und doch
Zusammengehörenden ist da unmöglich”.
31

ao espiritualismo mecânico e árido que tomara conta do protestantismo, ou ainda


mesmo Johann Wolfgang Goethe, cujo apelo à subjetivação das forças da natureza
também daria ao sujeito todo o poder de atribuir sentido a um mundo que pretendia
de alguma maneira controlar. Todavia, afirma Droysen que mesmo o ímpeto saudável
e plástico de Goethe, principalmente em seu período de juventude, acabaria por
abafar as vozes dos próprios objetos:

Mas a própria natureza deixar-se-ia passivamente observar e tornar-se-ia espírito


através de normas gerais, logo um amigo mais fraco, uma moça amada, um povo de
súditos humildes deixar-se-ia conduzir pacientemente; pois à vida ativa da história
não bastam este egoísmo exclusivo, as forças da paixão que preenchem o peito de um
indivíduo. Na história, elementos objetivos se contrapõem, que exigem um
entendimento mais profundo, no qual o eu ansioso apareceu somente como um
momento.16

Kant, segundo Droysen, viria de alguma maneira organizar esta afirmação da


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subjetividade. A partir da crítica feita a David Hume, cuja teoria de que o


conhecimento é incerto pois fundado na experiência, Kant tenta mostrar que o
conhecimento se estabelece não no entendimento (Verstand), e sim de maneira
apriotística na razão (Vernunft), independentemente da experiência. A coisa-em-si,
diz Droysen, permanece incognoscível. Mas, segundo ele, estaria justamente aí o
problema. Afinal, “o respeito pelo objeto, de quem havia sido roubadas todas as
determinações, ainda não havia sido superado, pois a existência vazia da coisa em si
ainda persiste”.17 Dito de outra maneira: o objeto ainda seria respeitado por
permanecer intocado, preservado sob a capa do sujeito transcendental e/ou do sujeito
fáustico.
16
DROYSEN, J.G. “Über die deutsche Geistegeschichte von Kant bis auf Schleiermacher/ aus den
Vorlesungen über Deutsche Kulturgeschichte vom Anfang des 18. Jahrhunderts. 1841/42.” IN:
Historik. Bd.II. p.118. (…) aber wohl die Natur ließ sich ruhig beschauen und zu allgemeinen Normen
vergeistigen, wohl ein schwächerer Freund, ein liebendes Mädchen, ein Völkchen bescheidener
Untertanen ließ sich geduldig behandeln und hinwegtun; doch im lebendigen Leben der Geschichte
reichte man nicht aus mit diesem exklusiven Egoismus und den Kräften und Leidenschaften, die des
Einzelnen Brust etwa erfüllen; da traten Objektivitäten entgegen, die eine tiefere Erfassung
erforderten, und in denen das grübelnde Ich selbst nur als Moment erschien.
17
DROYSEN, J.G. “Über die deutsche Geistesgeschichte von Kant bis auf Schleiermacher (aus den
Vorlesungen über "Deutsche Kulturgeschichte vom Anfang des 18. Jahrhunderts" 1841/42)” IN:
Historik. Bd.II. p.120 Der Respekt vor dem Objekt, das doch aller Bestimmung beraubt ist, ist noch
nicht überwunden, jene leere Existenz des Dinges an sich ist noch übriggelassen.
32

Droysen vê o passo seguinte sendo assinalado por Fichte. Por um lado, sua
admiração pelo idealista é imensa, afinal, a mesma especulação criticada por Droysen
é aqui mais do que motivo de elogio: Droysen a vê como um marco nacional. Ao
cavar um abismo entre o pensamento e a filosofia popular, que, segundo Droysen,
seduzira até mesmo Kant, Fichte demonstra coragem ao simplesmente se ater a um
mundo de pura espiritualidade e ao postular que “O Eu se põe a si mesmo, sendo este
o primeiro fundamento da doutrina da ciência. De onde se infere que o Eu põe o não-
Eu. Ambos devem estar em contraposição na consciência, sem que a unidade da
consciência seja suprassumida”,18 Fichte estava traçando o perfil da Alemanha às
vésperas de um de seus piores momentos, a saber, as derrotas para Napoleão, que
serviriam posteriormente para que o próprio Fichte pensasse o ressurgimento da
nação, a partir de si mesma. “Com esta inquebrantável força do eu em seu ápice, ele,
o eu, precisa superar a realidade a ser ultrapassada como um limite seu, como um
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limite que ele sabe que está em si mesmo; este é o exemplo para o soerguimento da
Prússia e da Alemanha”.19 Por outro lado, porém, flagramos Droysen repetindo sem
maiores elaborações a crítica de Hegel ao idealismo e à consciência pura:

Na medida que o Eu não subsiste subjetivamente sem seu oposto, ainda persiste a
infinita cisão entre sujeito e objeto, e esta cisão é imanente a este eu mesmo; assim há
aí um dever, um dever de superar esta cisão, e com isto se exige uma ação que não
pode se realizar, pois com a suprassunção do não-eu seria suprassumida
conjuntamente a mediação do eu existente, e assim a condição de sua própria
existência.20

18
Ibid., p.123 Das Ich setzt sich selbst, ist der erste Grundsatz der Wissenschaftslehre. Daran schließt
sich sofort: Das Ich setzt das Nicht-Ich. Beide sollen sich im Bewußtsein entgegengesetzt sein, ohne
daß damit die Einheit des Bewußtseins aufgehoben wird.
19
Ibid., p.125. Gerade er mit dieser unzerstörbaren Gewalt des Ich in seiner höchsten Spitze, des Ich,
das jene zu überwindende Wirklichkeiten als s e i n e Schrank., als Schranke in ihm selber weiß und in
sich überwinden muß, das ist das Vorbild zu der Erhebung Preußens und Deutschlands.
20
DROYSEN, J.G. “Über die deutsche Geistesgeschichte von Kant bis auf Schleiermacher (aus den
Vorlesungen über "Deutsche Kulturgeschichte vom Anfang des 18. Jahrhunderts" 1841/42)” IN:
Historik. Bd.II. p.124. Indem das Ich als subjektiv ohne seinen Gegensatz nicht bestehen kann, so ist
immer noch der unendliche Zwiespalt zwischen Subjekt und Objekt vorhanden, und dieser Zwiespalt
ist immanent in dieses Ich selbst verlegt; sodann ist ein Sollen da, diesen Zwiespalt zu überwinden,
und damit ein Akt gefordert, der sich nicht realisieren kann, weil mit der Aufhebung des Nicht-Ich die
Vermittlung des existierenden Ich, mithin die Bedingung seiner eigenen Existenz aufgehoben werden
würde.
33

Droysen vê na linhagem de Kant-Fichte uma tendência a que se contrapunha a


capitaneada por Schelling, que, segundo ele, seria a pedra fundamental do
romantismo (e não Fichte, como queria Hegel e haviam pensado os primeiros
românticos). Poetas como Novalis e Jean-Paul, para Droysen, só poderiam ser
compreendidos e sintetizados no pensamento de Schelling e de seu ponto de partida
de uma identidade originária. Para Droysen, tais poetas possuem através de sua
poética místico-filosófica uma forte sensibilidade da cisão, e lhes faltaria justamente a
expressão universal desta experiência de cisão e tentativa de reconciliação. O que é
geral e universal é apresentado através de conexões casuais e contingentes, e assim,
idealiza-se o passado perdido. O que marca o romantismo de Novalis e Jean-Paul,
segundo Droysen, é a incapacidade de se ater em um ponto, em uma forma (o
protestantismo declarado como revolução permanente). A poesia
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Não se atém a qualquer forma, ela se dilui em música e sons, em alusões, na mística
– O indivíduo com sua região pessoal de sua alma não pode mais abranger o universo
desta vida em fermentação; em cada ponto do real e dos entes é então imaginada uma
vida infinita, e a alma embebida tem sede de mergulhar na vida universal, e agarrar-
se a si mesma neste misticismo panteístico.21

Mesmo Schlegel, por mais que segundo Droysen não compartilhe do princípio
de sede insaciável de uma estabilidade absolutamente utópica (sem lugar) de Novalis
e Jean-Paul, também será um romântico que, através da ironia que se ironiza, chega à
conclusão de que não há nada de estável. O balanço final no romantismo é a
dissolução de todo conteúdo e simultaneamente uma abertura sem precedentes da
dimensão sensível. É a sede que jamais se deixará saciar no mundo, mas nem por isso
dele se afasta. Quer abraçá-lo, mas a cada forma que ilusoriamente se mostra parcial,
jamais absoluta, ou continua o caminho ou se desilude. Todavia, o conteúdo perde
qualquer sentido – donde se conclui que neste ponto, Droysen atribui imenso mérito

21
Ibid., p.128. Sie behält keine Form mehr, sie verschwimmt in Musik und in Klängen, in Ahnung, in
Mystik. - Der einzelne mit dem persönlichen Bereich seines Gemütes kann nicht mehr dies All dieses
neuen gärenden Lebens umfassen; an jedem Punkte des Wirklichen und Seieinden ist nun unendliches
Leben geahnt, und die trunkene Seele dürstet, in dies Alleben zu versinken, und sich in dieser
pantheistischen Mystik selbst zu ergreifen.
34

ao romantismo. Justamente na dissolução das formas ficam vetados tanto o


empirismo tosco, que confunde de cara a parte com o todo, e vê a unidade estudada
como algo que tem sentido absoluto em si mesmo, bem como a normatividade, que
vê em preceitos exemplares a base para o pensamento histórico. O desespero e a
ironia românticas deixaram indiscutivelmente este legado para a cultura histórica
alemã. Droysen22 atesta a sensibilidade do papel histórico do romantismo quando diz
que ele é “o precursor do período científico da Alemanha”.23
A dita cientificidade revelar-se-ia finalmente, segundo Droysen, nas obras de
Schelling e Schleiermacher. Reconhecendo sua sutileza e dificuldade, Droysen se
limita a descrever de modo rápido a visão panteísta do filósofo, a primeira a buscar
uma possibilidade de reconciliação que não se contradiz em seus próprios termos, ou
seja, que não reduz ao tentar reconciliar.
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As atividades da natureza são as mesmas da do espírito, do pensamento, o ser


originário, que visto subjetivamente é uma atividade criativa, é um movimento que se
observa objetivamente, ou seja, é o espaço determinado pelo tempo. Expansão e
contração são os fatores do ser em sua primeira forma, a forma da matéria; sem a
força subjetiva e negadora do ser, o tempo, o universo escorreria em um vazio
infinito, sem a força positiva objetivadora do ser, que se manifesta no espaço, o
universo minguar-se-ia a um ponto matemático.24

22
A própria visão de Droysen está historicamente correta. De fato, o romantismo prenuncia o dito
período “científico”, tendo sido entendido ao longo do século XIX como mero antecedente. Somente
depois da Segunda grande guerra mundial, mais especificamente com a obra de I. Strohschneider-
Kohrs (Die romantische Ironie und Gestaltung, 1960), retoma-se a linha de reavaliação do romântico
começada por Walter Benjamin em seu Der Begriff der Kunstkritik in der deutshcen Romantik, de
1919. Assim, passa-se a ver o romantismo em seu solo próprio, e não só como mero prercursor.
23
DROYSEN, J.G. “Über die deutsche Geistesgeschichte von Kant bis auf Schleiermacher (aus den
Vorlesungen über "Deutsche Kulturgeschichte vom Anfang des 18. Jahrhunderts" 1841/42)” IN:
Historik. Bd.II. p.130 Die Romantik ist die Vorläuferin der wissenschaftlichen Periode Deutschlands.
24
DROYSEN, J.G. “Über die deutsche Geistesgeschichte von Kant bis auf Schleiermacher (aus den
Vorlesungen über "Deutsche Kulturgeschichte vom Anfang des 18. Jahrhunderts" 1841/42)” IN:
Historik. Bd.II., p.132. (…) die Tätigkeiten der Natur sind dieselben wie die des Geistes, des Denkens,
das ursprüngliche Sein, welches subjektiv betrachtet schöpferische Tätigkeit ist, ist objektiv betrachtet
Bewegung, d. h. R a u m bestimmt durch Z e i t . Expansion und Kontraktion sind die Faktoren des
Seins in seiner ersten Gestalt, der Materie; ohne die negative subjektivierende Kraft des Seins, die Zeit,
würde das All ins unendlich Leere zerfließen, ohne die objektivierende positive Kraft des Seins, dem
Raum, würde das All zu einem mathematischen Punkt zusammen-schrumpfen.
35

Na apresentação de Schelling feita por Droysen, fica claro que a ação


inconsciente da natureza precisa estar em harmonia com a ação consciente do sujeito,
consciência esta que jamais se dá previamente, anterior à própria atividade, mas é
sempre uma consciência que reconhece a própria atividade. De alguma maneira, ela é
posterior - e assim o homem é o ápice da natureza, o momento em que a própria
natureza toma consciência de si mesma e de seu movimento. Tal afirmação do
panteísmo de Schelling, segundo Droysen, significou um enriquecimento inédito na
cultura científica alemã. Somente uma tal concepção poderia fazer com que “todo
material isolado e imóvel tenha se tronado fluido, [o panteísmo] tinha como
pressuposto, dar a tudo um conteúdo vivo e movimento; todo saber pode ser visto
como segmento desta vida universal do espírito absoluto”25 Segundo Droysen,
somente a partir deste ponto tornaram-se pensáveis os projetos de autonomia de cada
esfera do saber. Fica aqui a questão: estaria Droysen pondo em prática um processo
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iniciado por Schelling, e até então ainda por fazer?


A própria questão, em si válida, se relativiza quando vemos que o próprio
Droysen procura se vigiar em sua admiração por Schelling: segundo ele, tratava-se de
um pensamento que se aproximava perigosamente do catolicismo, devido ao
universalismo que se expressa sobretudo simbolicamente: “esta é justamente a
essência do catolicismo, ou seja, em que o sujeito não tem a liberdade em si mesmo,
mas em um universal ao qual ele está subsumido, e do qual ele é um órgão
integrante”26 Ao nosso ver, trata-se do combate contra a visão orgânica de história,
que Droysen procura descartar em toda a linha de sua Historik. Segundo ele, seria
Schleiermacher que, ao enfatizar o sentimento de dependência do homem, cumpriria
papel decisivo ao recuperar no solo protestante o sentimento que, ao ser de
dependência, também era de pertencimento. Todavia, é um autor que ele não
questiona tanto como fizera com os demais, principalmente os românticos e

25
Ibid., p.133. Alles starre vereinzelte Material des Wissens ward flüssig, hatte die Voraussetzung,
lebendigen Inhalt und Bewegung zu haben; jedes Wissen ließ sich betrachten als Segment aus diesem
Alleben des absoluten Geistes.
26
Ibid., p.135. (…) das eben ist das Wesen des Katholizismus, daß das Subjekt seine geistliche Freiheit
nicht in ihm selber hat, sondern in einem Allgemeinen, in dem es nur subsumiert ist, von dem es nicht
ein integrierendes Organ ist.
36

Schelling. Importa ressaltar que a idéia de reconciliação é fundamental, e que até


então a cultura intelectual alemã movimentava-se entre dois pólos, sem todavia
chegar a uma síntese que desse conta do problema. Para Droysen, somente o
significado do pensamento histórico, desde que bem examinado, poderia encaminhar
a questão. Esta é a sua aposta.
Ligada à intenção do projeto droyseano de saber o significado do pensamento
histórico, esta questão precisa ser elaborada, ao menos inicialmente, através da
consideração de alguns elementos da filosofia da história de Hegel27 – não teria o
filósofo já exposto o que significa pensar historicamente, ou ainda, mostrado a
necessidade de se pensar historicamente? É o que nos cabe investigar a seguir: para
que a comparação seja feita com a maior clareza possível, tentaremos estabelecer
alguns termos que sirvam de parâmetro. Este corte temático tentará obedecer um
outro princípio que não é somente didático: na verdade, este corte privilegiará o
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próprio percurso das diferentes formas que a obra de Droysen assumiu ao longo de
sua produção até a primeira preleção da Historik em 1857. Ou por outra: tentamos
identificar como a teoria da história é necessária para Droysen como uma substância
que reflete sobre si a cada instante, mesmo que este instante não seja explicitamente
teórico. Vale dizer que Jörn Rüsen percebeu a lenta fermentação dos elementos
teóricos da obra de Droysen já em seus primeiríssimos trabalhos sobre Grécia antiga,
mesmo em suas traduções das obras de Ésquilo. Simplesmente por uma preferência
no corte temático e estrutura da composição de sua tese de doutorado, Rüsen não
estabelece um diálogo de Droysen com a tradição do pensamento alemão, referindo-
se naturalmente apenas àquelas influências imediatas de Droysen, como Hegel,
Wilhelm von Humboldt e August Boeckh. Dito de outra maneira: se Rüsen28
explicitamente trata da importância do estudo do helenismo e da centralidade da
revisão da idéia de decadência, se aponta a presença central de uma teleologia e de
uma teologia no pensamento teórico de Droysen, falta a comparação explícita com o

27
Não vemos qualquer necessidade de considerar a filosofia da história de Herder, cujos contrastes
com Droysen são tão evidentes que seria simplesmente vão demonstrar que o pietismo de Herder,
fortemente baseado em um sentimento de subjetividade expressiva, e seu organicismo, seriam
princípios descartados por Droysen mesmo em outros autores.
28
Estamos nos referindo sobretudo à tese de doutorado de Jörn Rüsen (Begriffene Geschichte) escrita
em uma época que ainda não havia sido publicada a edição da Historik, por Peter Leyh, edição na
nossa visão definitiva.
37

pensamento de Hegel, ou ao menos com algum de seus aspectos e/ou obras,


comparação inevitável quando se parte da constatação do próprio espanto de Droysen
ao qual já alertamos: como em uma época de diligente historiografia e refinada
filosofia da história como poderia a historiografia ainda não ter adquirido solo firme?
Quem estiver familiarizado com as discussões teóricas da historiografia já
deve estar sentido falta do termo Historismo, possivelmente o conceito mais
importante da historiografia alemã do século XIX, ou mesmo de toda a historiografia
daquela época, e que seria responsável, desde Herder e até Ranke, pela solidez de um
solo que Droysen percebera frágil. Na verdade, o estudo de Droysen deverá modificar
o conceito de historismo até torná-lo irreconhecível, ou diríamos mesmo, secundário
em relação à importância que geralmente recebe nos estudos especializados. De tal
modo influenciado pela filosofia da história, sem que todavia simplesmente nela se
enfileire como uma versão historiográfica de Hegel, o pensamento de Droysen poderá
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mostrar como a partir das confluências e atritos entre historiografia e filosofia


especulativa o termo historismo será um modelo muito estreito. A exposição da visão
histórica de Droysen sobre a cultura intelectual alemã, em que nenhum,
rigorosamente nenhum historiador é mencionado, nos serve de base para que a
discussão sobre o caráter autônomo da ciência histórica seja plantada em outro solo.
Todavia, é bom lembrar que trataremos de um autor cuja vida atravessa o
século XIX, ou seja, Droysen vive em um mundo intelectual marcado pela
especialização progressiva das ciências, acompanhada por uma afirmação de variados
tipos de movimentos nacionalistas. Esta combinação ocorreu no contexto de
renovação da universidade alemã, o que significa dizer que, mesmo tendo vasta
erudição, Droysen não era um polígrafo dos moldes do século XVIII e mesmo do
início do século XIX, como foram Goethe, Schiller, Herder e os irmãos von
Humboldt. Jamais tendo deixado de ser historiador e de pensar o lugar da
historiografia, Droysen se perguntava sobretudo pela necessidade do conhecimento
histórico na sociedade em que vivia. Não precisará ele sair dos rincões da
historiografia, ou será tal saída já para ele impossível? Enfim, que esteja desde já
claro que estudaremos um historiador, mas um historiador cuja ambição de
universalidade temática era presente em toda a sua obra, o que significa dizer também
38

o seguinte: se já não eram mais possíveis Goethe e Schiller (sem que tal
impossibilidade os tornasse inatuais), por outro lado a especialização ainda não
redundara em uma indiferença entre as disciplinas: as preocupações de Droysen com
a linguagem narrativa, com a hermenêutica, e, claro, com a filosofia da história e a
idéia de Bildung exibem uma gama de temas que deve ser quase obrigatoriamente
observada quando se trata de Droysen, o que já podemos perceber de modo muito
bem sistematizado na tese de doutoramento de Friedrich Jäger29, que percebeu
repartidas em três níveis – científico, hermenêutico e ético – as questões concernentes
a Droysen. Todavia, percebemos em Jäger uma certa obsessão pelo historismo.
Aproveitamos então para reafirmarmos que, sem uma necessária análise do sentido da
contingência em Droysen a partir de Hegel (que Jäger não analisa), ficará manca a
percepção do que possa ser a narrativa (produção de sentido que relata
contingências), a hermenêutica (diálogo com um passado que se perde e
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eventualmente se reconquista em uma outra perspectiva) e a própria dimensão ética;


afinal, sem a experiência da contingência do próprio presente, também não
corresponde à própria idéia de responsabilidade.
Assim, o estudo de Droysen servirá para que possamos pôr em debate o
próprio sentido do termo historismo, principalmente no que diz respeito à sua
abrangência. Não seria um termo que interessaria especificamente à historiografia, e
que, quando utilizado por profissionais de outras áreas do conhecimento, o é como
ofensa? Não foi o sentido dado por exemplo por Hans-Georg Gadamer, que teria
reduzido o historismo à tentativa hermenêutica de simplesmente reconstruir o passado
e revivê-lo tal qual? Determinados conceitos consolidados na historiografia podem
por vezes ser mais problemáticos do que eficientes, e, ao tentarmos entender a
autonomia do conhecimento histórico, não será diferente o embaraço em que nos
coloca o termo historismo. O fato de ter pensado a autonomia da história não
significa que o termo “historismo” dará conta de todas as dimensões do

29
JÄGER, F. Bürgerliche Modernisierungskrise und historische Sinnbildung. pp. 17-19. O trabalho de
Jäger todavia não se dedica exclusivamente a Droysen, mas à análise da mudança do conceito de
história e do sentido de história em geral a partir das reações e obras de Droysen, Jacob Burckhardt e
Max Weber às crises da sociedade burguesa na Europa. Por uma questão de recorte temático,
possivelmente foi inevitável a lacuna na obra de Jäger, de resto exemplar.
39

pensamento de Droysen. Identificamos no historismo uma obsessão que pode mais


inibir do que velar. Jacob Burckhardt, por exemplo, pode ser incluído sem favor na
tradição historista (mesmo que seja através da sua autocrítica) com passagens
clássicas como a que encontramos logo no princípio de suas Considerações sobre a
história mundial:

Nós recusamos tudo que é sistemático; não temos pretensão de apresentar qualquer
tipo de ‘idéias da história mundial’, mas nos satisfaremos com observações e cortes
paralelos através da história; (…) não apresentaremos qualquer filosofia da história.
Esta é um centauro, uma contractio in adjecto; pois a história, ou seja, o coordenar, é
a negação da filosofia, e a filosofia, o subordinar, é a negação da história.30

Tal passagem é exemplar; nela, o saber histórico se mostra como o oposto da


teleologia e do sistema, caracterizando-se como um saber que articula
horizontalmente as diferentes esferas em conflito ou em comunhão de uma
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determinada unidade histórica. Por mais que Burckhardt não tematize sequer o
possível desconforto de teorizar desprezando a filosofia ou de sequer colocar a
questão de como estabelecer um contexto descartando o postulado de um sentido total
e superior – dúvidas que poderemos encontrar em Droysen - tal passagem é um
emblema de todo o pensamento de historiadores sobre a história do século XIX no
espaço germanófono. E isto por um motivo: tal pensamento tem Hegel com alvo. Por
outro lado, podemos encontrar em um filósofo contemporâneo como Walter Schulz
afirmação oposta. Se nas palavras de Burckhardt um autor como Hegel é pintado
como o inimigo da visão histórica, para Schulz, por outro lado, Hegel é essencial para
o historismo como forma de pensamento:

A genialidade de Hegel consiste em algo mais do que simplesmente valorizar a


história por ela enfatizar a realidade antropológica, mas sim consiste em conduzir
fundamentalmente o conceito de realidade ad absurdum, a ponto de a história
aparecer como caráter fundamental do real. Somente porque e na medida que Hegel
cumpre isto, ele pode e deve ser tido como inaugurador do Historismo. Hegel

30
BURCKHARDT, J. Weltgeschichtliche Betrachtgungen, p.4. Wir verzichten auf alles
Systematische; wir machen keinen Anspruch auf ‘weltgeschichtliche Ideen’, sondern begnügen uns
mit Wahrnehmungen und geben Querdurchschnitte durch die Geschichte, und zwar in möglichst vielen
Richtungen; wir geben vor allem keine Geschichtsphilosophie.
Diese ist ein Kentaur, eine contradictio in adjecto; denn Geschichte, d.h., das Koordinieren, ist
Nichtphilosophie, und Philosophie, d.h, das Subordinieren, ist Nichtgeschichte.
40

apresenta que mesmo a reflexão sobre a coisa mais simples mostra que não há ente
fixo, mas sim uma determinação mútua de sujeito e objeto: lá está o objeto e aqui
estou eu, o dito ponto de partida sujeito-objeto precisa ser essencialmente negado em
todas as regiões do conhecimento.31

Hegel seria para Schulz um historista na medida que o saber, mesmo quando
se quer meramente representacional, na verdade pode ser especulativo, ou seja, na
mais tosca representação já se pode encontrar como fundamento um caminho
especulativo, em que a representação é sempre a “minha” sobre um determinado
objeto, e a determinidade deste mesmo objeto é decisiva para a propriedade desta
mesma representação. Instaurada a necessidade especulativa, abrir-se-ia para Schulz a
possibilidade do historismo, ou seja, da reflexão sobre a própria situação em que se
está envolvido. É neste sentido que Hegel também pode aparecer como historista, a
despeito dos manuais. E complementamos com a pergunta, na verdade um desafio:
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como pensarmos esta radical afirmação da historicidade da realidade com um caráter


teleológico? Ou noutra formulação: seria possível uma unidade de sentido
horizontalmente coordenada que evitasse qualquer traço de teleologia? Droysen
certamente tentou se equilibrar entre estes dois pontos. O que nos cabe agora é
apresentar seu esforço de respeitar a particularidade de uma época justamente através
de uma concepção teleológica da história – teleológica, é bom que fique claro, porque
cristã. Para Droysen, a história também deverá ser uma teodicéia.
Se o lugar de Hegel na história conceitual do historismo é problemático, não o
será menos o do próprio Droysen. Para além de uma diacrônica e abstrata “querela”
entre Burckhardt e Schulz, encontramos entre scholars discussões infindáveis em
torno do assunto. Neste manancial, consideramos três interpretações sobre historismo
como as mais paradigmáticas, a saber, as propostas por Friedrich Meinecke, Georg
Iggers e Jörn Rüsen. A primeira aposta suas fichas em um caráter nacional alemão

31
SCHULZ, W. Philosophie in der veränderten Welt. Pp.498-9. Hegels Genialität ist es nun – das ist
das Entscheidende -, die Geschichte nicht einfach aufzuwerten, indem er ihre anthropologische
Wichtigkeit betont, sondern den traditionellen Wirklichkeitsbegriff so grundsätzlich ad aburdum zu
führen, dass die Geschichte als Grundcharakter des Wirklichen überhaupt erscheint. Nur weil und
insofern dies tut, kann und muss er als der eigentliche Inaugurator des Historismus gelten. Hegel legt
dar, dass bereits die Reflexion auf das einfache Erkennen zeigt, dass es kein fixes Sein gibt, sondern
dass Subjekt und Objekt sich wechselseitig bestimmen. Die Vorstellung: dort steht das Objekt und hier
stehe ich, der sogannante Subjekt-Objekt-Standopunkt, muss durchgängig auf allen Gebieten des
wesentlichen Erkennens negiert werden.
41

que teria se desenvolvido e se afirmado justamente a partir da ênfase historista no


estudo das particularidades históricas, e, embora seja louvável que Meinecke não
utilize somente historiadores alemães para comprovar seu pensamento, o clássico O
Surgimento do Historismo (Die Entstehung des Historismus) não envelheceu bem,
sobretudo por descartar de imediato toda e qualquer possibilidade de que história e
filosofia (ou metafísica, ou teologia) possam ter uma mútua contribuição produtiva.
Causa-nos espanto que autores como Herder e Ranke, protestantes declarados, não
tenham suas obras também analisadas produtivamente sob esta perspectiva. Meinecke
todavia contribuiu para a bibliografia sobre Droysen de maneira modesta, porém de
modo algum dispensável. Sagazmente percebeu a complexidade do autor, vendo que
sua obra jamais seria contemplada adequadamente se somente um de seus aspectos
fosse tratado. Droysen teria, segundo Meinecke, três faces: o prussiano, o helenista e
o teórico. E um pequeno artigo32 basta para que vejamos que Meinecke teve uma
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sensibilidade que não demonstrou em seu clássico sobre o historismo, alertando ao


tratar de Droysen da influência do luteranismo heterodoxo e de Hegel, ou seja,
apontou a importância da relação entre fé e saber como o meio de combate às
ambições de objetividade de Ranke e seus discípulos. Como se trata de um artigo,
Meinecke não desenvolve o argumento, e, apesar de ter escrito o texto poucos anos
antes de publicar o enorme volume sobre historismo, nos perguntamos porque a idéia
de particularidade fica restrita à atividade política de Droysen e seu “prussianismo”,
não tendo visto como a teleologia hegeliana criaria ao menos uma fratura no termo
historismo.
É de se perguntar pelos limites da polissemia de um determinado termo. Sim,
polissemia pode ser sinal de riqueza cultural, incremento do teclado expressivo de

32
MEINECKE, F. “Johann Gustav Droysen: Sein Briefwechsel und seine Geschichtsschreibung”
(1929/1930). IN: Schaffender Spiegel: Studien zur deutschen Geschichtsschreibung und
Geschichtsauffasung. O artigo de Meinecke, entre outros méritos, possui o de mostrar a importância de
Droysen em autores do século XX, como Georg Simmel e Ernst Troeltsch (p.194). Além deste, foi
capaz de salientar, e nisto permanece inédito até nossos dias, a importância da religiosidade de
Droysen na articulação entre fé e conhecimento, geralmente deixada de lado pelos analistas. Em nosso
estudo, esta sugetsão será levada adiante a partir da nossa constante alusão, no segundo capítulo, à
fundamentação religiosa (ao menos no uso constante de um vocabulário francamente religioso) da
hermenêutica de Droysen. Ainda está para ser feito um estudo sobre a importância do protestantismo,
especificamente o luterano, no processo de formação das ciências históricas na Alemanha em fins do
século XVIII e início do século XIX.
42

uma língua. No caso do termo historismo, porém, termo cujo próprio percurso é
estranho, antes marcado pelo abuso de historiadores desejosos de demarcar seu
próprio terreno e por um certo sadismo (por vezes justificado) de filósofos que
condenam a ingenuidade teórica dos historiadores, cremos que é necessário ter um
pouco mais de cuidado. A polissemia torna-se neste caso apenas a expressão de
diferentes valores que cada qual inscreve em um cheque deixado em branco, e, pior,
quase sempre sem fundos, ou seja, sem evidência concreta, sem passagens sobre o
dito historismo que possamos encontrar e confrontar em Ranke, Droysen e
Burckhardt. Parece o termo de uma crise, ou seja: o diagnóstico de uma patologia;
sintoma, ao invés de essência. Vejamos os casos de Georg Iggers e Jörn Rüsen. Aí,
estamos tratando de duas interpretações que dão ao historismo um outro colorido,
uma base mais sólida, pois lidam com o percurso da tradição iluminista na Alemanha,
e, por isso, desejam ambos entender se o surgimento do nacional-socialismo, em sua
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consciência histórica, teria dependido de um afastamento progressivo e profundo dos


valores universais do iluminismo. Para Iggers, o historismo é o lastro nacionalista que
dará à consciência histórica biologista e racista do nacional-socialismo uma certa
legitimidade; para Rüsen, as fontes históricas do nazismo deverão ser procuradas
antes nos críticos do historismo, como Nietzsche e posteriormente Spengler. Como
poderemos ver, ambas as explicações são insuficientes, pois a presença de elementos
teleológicos e religiosos em Droysen, de um lado (o que o aproximaria de concepções
mais universalistas), e sua ênfase na subjetividade do historiador e sua
responsabilidade para com a vida presente, de outro (o que lhe dá certas semelhanças
com Nietzsche), relativizam bastante as afirmações dos dois autores. Por outro lado,
Rüsen percebe na concepção historista uma capacidade especulativa que vê o
processo histórico como algo que não se confunde com o lugar de manifestação do
sagrado, ainda que não tematize detalhadamente como isto será conciliável no
luterano Droysen e sua apologia da teodicéia. Além de um exame mais detalhado da
religiosidade de Droysen, reafirmamos a falta sentida nos estudos de Rüsen de um
maior cuidado na afirmação do lugar da própria ciência histórica no âmbito alemão
das ciências do espírito; ou seja, considerando os elementos teleológicos e a idéia de
ciência filosófica do espírito que animará a própria teoria da história de Droysen,
43

como será possível pensar a autonomia da história? Se a história, como gosta de


afirmar (com razão) Rüsen, é dar sentido ao contingente, como entendermos tal tarefa
em um Droysen fortemente influenciado por Hegel? Rüsen menciona a convivência
em Droysen da filosofia idealista da história e da historiografia, mas vê, de maneira
análoga a Meinecke, uma afirmação de uma consciência teórica da historiografia que
já dispensa parcialmente o idealismo filosófico33. O maior problema nas teorias sobre
o historismo reside no silêncio sobre a possibilidade da hipótese do enquadramento
da Historik como ciência do espírito de clara procedência hegeliana; vemos nos
trabalhos de Rüsen uma maior aproximação a esta idéia, mas a pergunta pelo
paradoxo da autonomia (é possível uma autonomia científica que não seja a
filosófica?), simplesmente jamais a vimos formulada. Propomos então uma maior
aproximação de Droysen a Hegel. Nas palavras de Irene Kohlstrunk encontramos
uma formulação mais precisa de nossas preocupações:
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A questão da relação entre filosofia idealista e historiografia profissional deve ser


novamente tratada, desta vez sob um outro aspecto. Primeiramente salta aos olhos
que a ciência histórica, caso esteja seriamente interessada na formação de sua
própria consciência, terá que encontrar novamente na filosofia critérios de
diferenciação (com fins emancipatórios) que possam distingui-la da filosofia. A
história, assim que se faz reflexiva, se confronta com o dilema, de que ela se
expanda obrigatoriamente para a filosofia da história34.

Kohlstrunk demonstrou claramente o problema. Todavia, ao tratar


posteriormente da hermenêutica, deixou em segundo plano a importância da
narrativa. Para tratar melhor esta relação entre a dimensão reflexiva da ciência
histórica e a filosofia idealista, e encaminhar seu tratamento para a discussão da
narratividade, alguns autores deixarão em segundo plano a idéia de historismo e

33
Cf. RÜSEN, J. Begriffene Geschichte. p. 8–10.
34
KOHLSTRUNK, I. Logik und Historie in Droysens Geschichtstheorie. p.23. Die Frage nach dem
Verhältnis von idealistischer Philosophie und professionell betriebener Geschichte soll jetzt unter
anderem Aspekt wieder aufgegriffen werden. Zunächst ist auffällig, dass Geschichtswissenschaft, ist
sie ernsthaft an der Ausbildung ihres Selbstverständnisses interessiert, bei der Suche nach
Abgrenzungskriterien zum Zwecke der Emazipation von der Philosophie auf Philosophie weider
rückverwiesen wird. Geschichte, sobald sie reflexiv ist, ist mit dem Dilemma konfrontiert, dass sie
zwangläufig zur Philosophie der Geschichte expandiert.
44

apostarão em conceitos que tentam lidar com a consciência histórica nas ciências do
espírito a partir de concepções mais fenomenológicas, por assim dizer.
E por que é decisiva a comparação com Hegel, ao menos com a sua filosofia
da história? Primeiramente, como falamos, ambos partilhavam de uma mesma
concepção idealista de ciência do espírito, de um saber em si e para si capaz de
produzir seu próprio elemento e dele viver. A suspeita desta identidade, dissemos,
vem da própria insegurança sentida por Droysen, uma segurança alimentada por uma
sensibilidade extremamente hegeliana. Poderíamos dizer de Droysen o que Jean
Hyppolite afirma sobre Hegel, ou para ser mais preciso, sobre o projeto de uma
Fenomenologia do Espírito:

Não resta dúvida hoje em dia de que este pensamento foi influenciado pela
experiência histórica, pelo desafio de uma cultura cujo desenvolvimento não é
harmônico ou espontâneo (…) mas sim equivocado, um desenvolvimento que se
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esquece de si e que se reconquista reflexivamente. (…) A abertura para si mesmo


pressupõe que o espírito tenha se alienado de si mesmo, que seu passado se lhe
pareça como algo externo ao qual ele precisa se unir.35

Vimos como a discrepância entre verdade e saber representativo é o primeiro


e fundamental passo para a fundação de qualquer ciência do espírito, e agora, a partir
das palavras de Hyppolite, identificamos nesta discrepância o fundamento também da
teleologia, ou dito de outra maneira: sempre se pode falar em teleologia quando se
verifica um descompasso entre o desenvolvimento e a consciência deste mesmo
desenvolvimento. Assumida como premissa esta dupla identidade do próprio conceito
de ciência, nos perguntamos qual seria a diferença entre a teoria da história de
Droysen e a filosofia da história de Hegel. Após expor a própria filosofia da história
de Hegel de acordo com seu termo central – teleologia – tentaremos adotar um
critério que nos permita justamente uma comparação concreta. Este critério será o da
avaliação da idéia de decadência em ambos os autores a partir justamente de suas
respectivas imagens e representações da história grega, pois estamos convictos de que
esta é um excelente campo de prova para que possamos avaliar o peso que cada qual

35
HYPPOLITE, J. “Anmerkungen zur Vorrede des Phänomenologie des Geistes und zum Thema: das
Absolute ist Subjekt”. IN: FULDA, H. & HENRICH, D. Materialen zu Hegels Phänomenologie des
Geistes. Pp. 50-1.
45

empresta para a teleologia na história, uma vez que ambos autores vêem na história
uma teodicéia.

2.3.
A filosofia da história de Hegel: Brilho e miséria da vontade.

Antes mesmo de entramos no ponto específico da teodicéia, analisado a partir


do lugar ocupado pela Grécia, vale lembrar que a comparação não terá pressa em
encontrar as diferenças em todos os lados para que simplesmente se chegue
aparentemente a alguma conclusão. E isto não é mero capricho metodológico: as
questões tratadas por Droysen não foram levantadas originalmente por ele, e como
poucos, ele sabia o lugar que ocupava na tradição do pensamento alemão, e sendo
defensor de uma idéia de continuidade mais do que um proselitista revolucionário ou
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restaurador, Droysen certamente se movimentava com passos lentos e discretos.


Esta observação metodológica pode ser confirmada em várias passagens que
se prestam a uma análise comparada. Partindo da convicção de que o conhecimento
histórico portanto não é imediato e parte de uma acepção subjetiva, Droysen
certamente jamais deixou de concordar com a seguinte passagem de Hegel.

Mesmo o historiador comum e mediano que diz e assume que se comporta de


maneira exclusivamente receptiva, se entregando ao dado, não é passivo em seu
pensamento; ele traz consigo suas categorias, através das quais vê o que está dado.
A verdade não se encontra sobre a superfície sensível; em tudo que precisa ser
especificamente científico a razão não pode dormir, sendo necessário a aplicação
da reflexão. Quem vê o mundo racionalmente, é racionalmente visto pelo mundo.
Ambos determinam-se de maneira mútua36.

As considerações de Droysen sobre a filosofia hegeliana da história, em


geral, em momento algum procuram demonstrar minuciosamente a insuficiência do

36
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte, p.31. Auch der gewöhnliche und mittelmässige
Geschichtsschreiber, der etwa meint und vorgibt, er verhalte sich nur aufnehmend, nur dem Gegebenen
sich hingebend, ist nicht passiv mit seinem Denken; er bringt seine Kategorien mit und sieht durch sie
das Vorhandene. Das Wahrhafte liegt nicht auf der sinnlichen Oberfläche; bei allem insbesondere, was
wissenschaftlich sein soll, darf die Vernunft nicht schlafen und muss Nachdenken angewendt werden.
Wer die Welt vernünfitg ansieht, den sieht sie auch vernünftig an; beides ist in Wechselbestimmung.
46

pensamento hegeliano sobre o assunto, e sempre quando menciona Hegel, ele o faz
através de termos gerais, raramente se referindo a uma obra específica, seja para
criticar, seja para elogiar. A passagem acima, porém, cabe muito bem o pensamento
de Droysen, que acreditamos jamais ter dispensado os termos básicos da filosofia da
história de Hegel. A Historik, afinal, também parte da premissa de que liberdade e
necessidade não são opostos excludentes. O problema parecia recair pois na dimensão
ética, que, segundo Droysen, “seria a verdadeira filosofia da história.”37 Mas não nos
antecipemos.
Droysen não abandona a idéia de uma filosofia da história, e possivelmente
acredita que ela precisa ser deslocada para um outro foco. Um foco que pudesse
evitar uma visão totalizante que tirava o sentido de toda e qualquer pesquisa empírica:
em uma preleção em 1843/44 Droysen dirá que “a ausência de pensamento que há em
toda empiria não é menos irritante do que a nebulosidade da construção
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especulativa.”38 Em momento algum do registro que chegou até nós desta preleção,
manifestar-se-ia Droysen de maneira mais contundente contra o que diz ser a
presunção da filosofia em querer que todo o mundo do pensamento lhe pertença. A
questão todavia é saber a que tipo de filosofia se refere Droysen – estaria ele tratando
de Hegel? Desconfiamos que, ao menos nesta crítica à “especulação nebulosa”, não
seja o caso. Pensemos rapidamente no capítulo V da Fenomenologia do Espírito, em
que Hegel critica a consciência pura do idealismo (mais precisamente, o idealismo de
Fichte) e sua pretensão da razão imediata:

Seu primeiro enunciar [da consciência pura] é somente esta abstrata palavra vazia de
que ‘tudo é seu’. Com efeito, a certeza de ser toda a realidade é só a categoria pura.
Essa primeira razão, que se conhece no objeto, encontra expressão no idealismo
vazio que só apreende a razão como inicialmente é – e por indicar em todo o ser esse
Eu puro da consciência, e enunciar as coisas como sensações ou representações,
acredita ter mostrado esse eu puro como realidade acabada. [Tal idealismo] tem de
ser ao mesmo tempo um empirismo absoluto, porque para o enchimento desse Eu
vazio, quer dizer, para a diferença e para a totalidade do desenvolvimento e da

37
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.55. Die Ethik wäre die rechte Philosophie der Geschichte.
38
DROYSEN, J.G. “Der erste Abschnitt der Einleitung der Vorlesungen über Alte Geschichte,
1843/44” p. 67. IN: Historik. Bd.II. Die Gedankenlosigkeit der bloßen Empirie ist nicht ärger als die
Nebelhaftigkeit der spekulativen Konstruktion.
47

configuração dessa diferença, sua razão necessita de um “choque estranho” no qual


só se encontra a multiplicidade do sentir e do representar.39

A irritação de Droysen com relação à pura especulação não deveria ser menor
em Hegel. O “Eu puro” a que alude Hegel é o mesmo a que se refere Droysen quando
ataca frontalmente uma filosofia da história que ignora voluntariamente a empiria. O
idealismo seria, para Hegel, o momento em que a razão deixa de abolir sua
consciência como consciência do mundo, ou seja, sai da atitude negativa, de
conservação de si perante o mundo, sendo livre às custas do mundo (ceticismo) e
sendo consciente de sua nulidade, e passa a se ver como a própria efetividade do
mundo. O fundamental é que, neste caminho, o Eu se torne objeto de si mesmo
através do desvanecer progressivo e processual através do qual cada ser outro deixa
de ser algo em si. O problema segundo Hegel estaria justamente no esquecimento
deste caminho, que faria com que a consciência asseverasse pura e simplesmente que
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é toda a verdade – para quem não percorreu o caminho, asseverar permanecerá puro
dogmatismo, algo incompreensível, uma especulação nebulosa. Hegel vai no ponto
fraco: como se julgar uma necessidade imediata se ele não é capaz de se mostrar a si
mesma? Portanto, se Droysen fala de especulação nebulosa, Hegel também o falara
no próprio percurso da experiência da consciência. E o maior perigo da afirmação de
ser toda a realidade, por parte da consciência, reside justamente em retirar de tal
modo todo o significado da dimensão empírica que, sem ser incomodada pela
consciência – por considerá-la falsa e errada, jamais parte do sistema – será
aproveitada por outras ciências, gerando fragmentação no mundo científico. Assim, o
que possivelmente irrita Droysen não é tanto a convivência da especulação nebulosa
com a voracidade empírica e erudita, mas sobretudo o fato de ambas coexistirem.
Uma é a causa da outra, e a formação hegeliana de Droysen parece indicar que a
conta há de ser cobrada juntamente à filosofia especulativa.
Permanece intacta a questão: Onde estaria a diferença entre ambos? Se a
Historik é a elaboração metodológica e sistemática da sensibilidade para o contigente,
já começaríamos a sentir algum vestígio de ruptura com Hegel? Lembremos que o

39
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito, p. 177
48

filósofo diria que “a observação filosófica não tem outra intenção, a não ser a de se
livrar do contigente. Contingência é o mesmo que necessidade superficial que
retrocede até causas, e que, por sua vez, são somente condições superficiais.”40 É um
indício de que a aposta de Droysen no potencial de sentido da contingência era muito
mais forte do que a feita por Hegel. Todavia, seria um equívoco ignorar a sutileza da
filosofia da Hegel, afirmando, como quem diminui o obstáculo para se mostrar um
bom saltador, que ao pretender se livrar das contingências, a sua filosofia descarta
todo e qualquer perspectiva, visão finita, ao pretender o absoluto: “A perspectiva da
história mundial filosófica não é uma dentre muitas perspectivas em geral que é posta
como abstração, de modo que descarte as demais. Seu princípio espiritual é a
totalidade de todas as perspectivas.”41 Este é, para Hegel, o significado de um pensar
que depende da variedade da experiência histórica e, que claramente estabelece uma
diferença entre o sentido da existência de perspectivas e (a ausência de) sentido da
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contingência. Todavia, ele lamentavelmente não desenvolve o que entende por


“perspectiva”, palavra que poderia ser facilmente substituída por “espírito do povo”,
nem explica como se dá tal totalidade de todas as perspectivas, ou seja, se se
configura como uma evolução, um progresso, ou um caminho do espírito.
Apesar de não se desenvolver, a passagem do filósofo toca em um ponto
importante: uma perspectiva não pode arrogar para si a visão absoluta. Para Hegel,
isto se vivencia na experiência do luto, no sentimento de que mesmo as mais nobres
formas de vida (i.é, as perspectivas) na história também decaem. Perante o
aniquilamento do que há de mais belo, tudo parece ser efêmero: “Do que há de mais
nobre e belo pelo que nos interessamos a história nos separa; as paixões conduziram-
nas ao fim; é efêmero. Tudo parece se esvair; e nada permanece.”42 Logo, de cara se

40
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte, p.29 Die philosophische Betrachtungen hat keine
andere Absicht, als das Zufällige zu entfernen. Zufällige ist dasselbe wie äusserliche Notwendigkeit,
die auf Ursachen zurückgeht, die selbst nur äusserlichen Umständen sind.
41
Ibid., p.32. Der Gesichtspunkt der philosophischen Weltgeschichte ist also nicht einer von vielen
allgemein Gesichstpunkten, abstrakt heruasgehoben, so dass von den anderen abgeehen würde. Ihr
geistiges Prinzip ist die Totalität aller Gesichtspunkte.
42
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.35, Von dem Edelsten uns Schönsten, für das
wir uns interessieren, reisst uns die Geschichte los; die Leidenschaften haben es zugrunde gerichtet; es
ist vergänglich. Alles scheint zu vergehen, nichts zu bleiben.
49

percebe que para Hegel não pode haver confusão entre absoluto e exemplaridade,
absoluto e beleza, ou, se preferirmos, entre plenitude e normas exemplares. Ora,
justamente por mesmo o mais belo e o mais nobre, ao decaírem, suscitarem sim a
melancolia e o luto, mas não se confundirem com o todo – afinal, terá ao menos
sobrado a consciência do melancólico, a experiência do luto em si, que já depende
natural e logicamente de que algo sobreviveu ao que no início parecem ser ruínas - o
espírito, diz Hegel, se rejuvenesce, elabora a si mesmo, e, assim, acaba tornando
obrigatória a pergunta, transformando a razão na terceira categoria da história
filosófica, depois da experiência da mudança e do rejuvenescimento: “qual o fim de
todas estas particularidades? (…) é necessário que haja um ponto final por detrás de
todos estes sacrifícios de conteúdos espirituais”43 Estas três etapas constituem três
categorias que formam o nascimento da história filosófica, a saber, a alteração (luto),
o rejuvenescimento (consciência que se dá conta do próprio enlutamento a ponto de
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saber distinguir entre absoluto e a grandeza de algo finito) e, por fim, a razão
(justamente a pergunta pelo fim de todas as singularidades). A última é a pergunta da
filosofia da história.
A trilha seguida por Hegel não é exatamente nova, e este ponto final buscado,
a “obra silenciosa” por detrás de todo o barulho superficial é, como fora não muito
tempo antes em Johann Gottfried Herder, por exemplo, a Providência. Mas jamais
encontraremos em Hegel a timidez de Herder, autor cujo pensamento sobre a história
estava fortemente baseado em uma idéia por vezes pouco explícita da teologia
negativa44. A razão, para Hegel, ficaria ao contrário do que encontramos na tradição
pietista capitaneada por Herder livre da acusação de soberba por querer desvendar o
plano da providência. Na verdade, segundo ele, ao se desprender das particularidades,
por mais belas e nobres que sejam, e ver como elas são apesar de sua excelência
momentos da Providência, se está sendo humilde, pois “a verdadeira humildade

43
Ibid., p.36 (…)was ist das Ende aller dieser Einzelheiten? (…) Diese ungeheuren Aufopferung
geistigen Inhalts muss ein Endzweck zugrunde liegen.
44
Para este aspecto da importância da teologia negativa em Herder, ver o seguinte trabalho: Marcia
BUNGE. “Human Language of the Divine: Herder on Ways of Speaking about God” in MUELLER-
VOLLMER, K. (org.) Herder Today. Berlin; New York: de Gruyter, 1990
50

consiste justamente em reconhecer Deus em tudo, lhe prestar honra em tudo e,


principalmente no teatro da história mundial”.45
A tarefa de conhecer a Providência na história mundial, deixa claro Hegel, é
da razão e do conhecimento, o que implica dizer: não é o sentimento que realiza o
acesso a Deus. “Na religião cristã, Deus se revelou, isto é, ele se fez reconhecer pelo
homem o que ele é, de modo que não seja mais algo fechado, secreto”.46 Reduzido ao
puro sentimento, Deus só poderia ser conhecido de modo subjetivo, arbitrário e
caprichoso, e, aí, o finito, manifesto no sentimento de cada qual, seria o fator
predominante – justamente o que Hegel pretende evitar desde o início, afinal, a
pergunta pelo sentido da história, admitindo que seja dada a partir do sentido da
experiência da transformação e da contingência, não seria feita se a todo instante se
desse o sentimento de plenitude e satisfação através do acesso imediato a Deus. Para
Hegel, não se separam fé e conhecimento, e a história seria assim, uma teodicéia, uma
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justificação de Deus. A categoria da mediação (Vermittlung) é absolutamente


fundamental para a filosofia da história já nesta articulação entre fé e conhecimento.

Quando se reduz a substância divina – a revelação de Deus, a relação entre homem e


Deus, o ser de Deus para o homem - ao mero sentimento, restringe-se a substância
divina ao ponto de vista da subjetividade específica, ao arbítrio, ao capricho. (…)
Quando somente um modo indeterminado do sentimento se faz presente sem que seja
acompanhado por um conhecimento de Deus e de sua substância, não resta nada que
não seja meu capricho; o finito é o que predomina e o que vale.47

Embora ainda seja um pouco cedo para que tratemos com mais vagar o
problema da hermenêutica, já se introduziu o problema da mediação. O debate de

45
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte, p.42. Vielmehr aber muss man sagen, dass die
wahrhafte Demut gerade darin besteht, Gott in allem zu erkennen, ihm in allem die Ehre zu geben und
vornehmlich auf dem Theater der Weltgeschichte.
46
Ibid., p.45 In der christlichen Religion hat sich Gott offenbart, d.h., er hat den Menschen zu
erkennen gegeben, was er ist, so dass er nicht mehr ein Verschlossenes, Geheimes sei.
47
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.45. Wenn man auf diese Weise den göttlichen
Inhalt – die Offenbarung Gottes, das Verhältnis des Menschen zu Gott, das Sein Gottes für den
Menschen -, auf das blosse Gefühl reduziert, so beschränkt man es auf den Standpunkt der besonderen
Subjektivität, der Willkür, des Beliebens. (…) Wenn nur die unbestimmte Weise des Gefühls da ist
und kein Wissen von Gott und von seinem Inhalt, so ist nichts übrig als mein Belieben; das Endliche
ist das Geltende und Herrschende
51

Hegel com autores como Herder e Schleiermacher é aqui evidente. Vale lembrar a
leitura oferecida por Hans-Georg Gadamer sobre a história da própria hermenêutica,
ou seja, a ênfase no sentimento, ou antes, na possibilidade de partilhar o pathos do
objeto ou texto do passado ao qual se dedica o retiraria justamente de sua dimensão
compreensiva, e isto teria um duplo efeito negativo: primeiramente, o próprio
intérprete, embebido deste sentimento, não se distancia minimamente de si mesmo
para reconhecer o próprio sentimento que o move, e assim o próprio reconhecimento
de seus pressupostos fica comprometido, e, com ele, a consciência de sua própria
historicidade. Em segundo lugar, e em decorrência do primeiro, a simples ênfase na
sim-patia, da comunhão do pathos, implica uma mera reconstrução da obra ou objeto
em questão em que não está sequer envolvida a primeira categoria da história
filosófica, a saber, o luto causado pela mudança e sua conseqüente possibilidade,
diríamos mesmo necessidade, de saber diferenciar entre o absoluto e o grandioso.
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Ambos efeitos alertam para algo análogo ao dito sobre a empiria: se, assim como os
fatos empíricos, o sentimento for deixado à solta e não incluído no sistema, ele será
tratado exclusivamente de modo “psicológico”, ou como uma vulgar expressão dos
próprios sentimentos, sendo com isso retirada da sensibilidade qualquer possibilidade
de fornecer uma porta de entrada ao saber.
Evidenciada a impossibilidade de acesso imediato, a razão que deve alçar ao
plano divino da providência é o lugar em que a mediação se realiza. Não será um
momento imediato que, segundo a razão, poderá dar sentido à história, mas sim será o
espírito que assumirá a forma final:

O espírito só tem consciência, quando ele é consciência-de-si; isto é, eu somente sei


de um objeto na medida que, nele, eu saiba de mim mesmo, que minha determinação
saiba que aquilo, que eu sou, também é objeto para mim (…). Eu sei de meu objeto, e
eu sei de mim. Ambos não são separáveis.48

As lacunas deixadas por Droysen sobre os detalhes da filosofia de Hegel, e


principalmente sobre a sua filosofia da história, começam a ser preenchidas – e a

48
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte, p.54. Bewusstsein hat der Geist nur, insofern er
Selbstbewusstsein ist; d.h., ich weiss von einem Gegenstand nur, sofern ich darin auch von mir selbst
weiss, meine Bestimmung darin weiss, dass das, was ich bin, auch für mich Gegenstand ist (…) Ich
weiss von meinem Gegenstande, und ich weiss von mir; beides ist nicht zu trennen.
52

apresentar problemas interessantes. Ora, quando Hegel afirma que não se separa o
saber do objeto do saber-de-si como objeto, ainda que em Hegel em última instância
o si do objeto não seja jamais contingente, fica difícil imaginar que Droysen não
pudesse partir de semelhante pressuposto. Afinal, toda a sua crítica aos historiadores
objetivistas estaria baseada justamente em uma crítica à existência de objetos em si,
que poderiam ser descobertos por qualquer historiador que usasse um método correto,
universalmente válido. Para Droysen, a contingência seria mais do que mero fato
porque é um momento em que o fato de conhecer altera o próprio objeto e o próprio
sujeito. Mais uma vez nos perguntamos porque Droysen não levaria tal pressuposto a
uma concepção de história filosófica, ou seja, determinado pelo absoluto, em que a
contingência é vista como um fator a ser eliminado, ainda que, em Hegel, o absoluto
não possa jamais ser confundido com um conjunto de normas imutáveis; na verdade,
ele é a liberdade que se manifesta na auto-produção que o espírito faz de si.
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Da mesma forma que, na introdução das preleções sobre filosofia da história,


no início das preleções da Historik, Droysen também vê na experiência da fugacidade
o marco zero da consciência histórica, aquilo que a desperta:

O transcorrido pertencerá ao passado na medida que não tiver sido assimilado e


interiorizado, e, assim, permanecido presente. Cada presente se esvai rapidamente de
nós, desaparece; de acordo com a nossa finitude, possuimos não apenas o momento
fugaz, mas nele tudo que ele ainda traz consigo, todos os resquícios de presentes
passados, com todas as suas interiorizações. E para ter mais do que este momento, do
que este aqui e agora, não podemos humanamente proceder senão reviver estes
passados ideais e estas lembranças, e nelas, tornar presente aquilo que se foi; o
espírito finito, e somente ele, tem a capacidade, de, com a lembrança e a esperança,
dar ao momento fugaz uma abrangência que seja um reflexo da eternidade de Deus
(…)49

Fica assim estabelecida uma primeira identidade, a saber, a consciência


histórica torna-se uma reação vital e necessária à fugacidade. E, ao invés de ser

49
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.10. Das Vergangene ist vergangen, soweit es nich so
verrinerlicht und damit gegenwärtig geblieben ist. Jede Gegenwart schwindet uns sofort, vergeht; nach
unserer endlichen Art haben wir nur den flüchtigen Moment, aber ihn auch mit allem, was in ihm noch
da ist, mit allen Überbleibseln vergangener Gegenwarten, mit allen Verinnerlichungen. Und mehr als
diesen Moment, als nur dies Hier und Jetzt zu haben, können wir menschlicherweise nicht anders, als
diese ideellen Vergangenheiten, diese Errinnerungen beleben, und in ihnen das, was war,
vergegenwärtigen; der endliche Geist, und nur er, hat die Fähigkeit, errinnernd und hoffend dem
flüchtigen Augenblick eine Weite zu geben, die ein Abbild der Ewigkeit Gottes ist (…)
53

simplesmente uma consciência da relatividade do homem, ela é uma busca de


consistência. É verdade que cada um parece buscar em sentidos opostos tal
consistência: Hegel é mais utópico ao enfatizar a relativização da particularidade e
apostar posteriormente no rejuvenescimento. Droysen parece apostar em uma forma
de reconstrução, em reviver passados ideais não mais presentes de modo imediato.
Hegel por sua vez perfaz movimento análogo ao anteriormente exposto: ou seja,
ocorre da mesma maneira que o luto produzido pela decadência do que há de mais
belo e nobre não significa que a história perca o sentido; na verdade, é aí que, ao
menos na consciência do enlutamento, primeiro despojo encontrado nas ruínas, a
história começa a se refazer, uma determinação negativa da essência do homem (sua
essência ainda não está nele) não o leva à imediata aniquilação. A própria consciência
enlutada, e porque enlutada especulativa, é a experiência de que ela não se confunde
com a grandeza com a qual o saber representativo se identificava e sobretudo
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estabelecia.
A teia fiada por Hegel é sutil: afinal, se o homem passa a ter consciência do
fundamento divino da história, isto não lhe embotaria a vontade? Ou seja, ao se
perguntar “qual o fim de todas as particularidades”, apresenta-se então problema do
compasso entre razão e vontade, entre o tapete e o fio que o elabora. Deslocado o
sentido para a razão, não seria a vontade absurda? Este é o problema central de
sua filosofia da história.
Para tratar da questão, poderíamos pensar que certas interpretações da
filosofia da história hegeliana são apressadas justamente por ficarem em etapas do
caminho descrito pelo filósofo, cumprindo-o parcialmente ao não se deter com mais
cuidado em algumas etapas pensadas por Hegel. Uma vez considerada este
descompasso entre razão e vontade, Hegel se pergunta como o espírito se realiza na
história, através de que meios e que materiais.
Para percorrer este caminho de investigação de meios e materiais de
realização do espírito na história, o espírito precisa antes ser visto em suas
determinações. A primeira é abstrata, ou seja, é quando o espírito sabe de si como
objeto, ou por outra, tem a própria consciência como objeto e sabe desta situação. Isto
constitui sua liberdade, ao contrário da matéria, cuja liberdade está em um outro. Para
54

dar um exemplo do princípio da Fenomenologia do Espírito, a consciência que


percebe é a suprassunção da matéria justamente porque esta é em si, mas este em si
somente é para si em um outro, sua unidade só se realiza em um outro que percebe.
Um cubo de sal é branco e salgado e cúbico. Ser branco significa não ser negro, mas
não exclui o ser salgado e cúbico; é independente, mas o “também” que faz do cubo
de sal tudo isto só se realiza por aquele que prova o sal e esta conexão é por ele
percebida. E a matéria não é livre porque nem sempre é em si e para si, e, por isso,
podemos perceber como os objetos da natureza ocupam no pensamento de Hegel um
lugar inferior dentro da esfera das ciências.
A segunda determinação do espírito sobre si mesmo seria a sua caracterização
como indivíduo humano que sente, ou a determinação do amor divino. O sentimento
desperta a própria determinidade e limite do homem, e este sentimento precisa ser
superado. “Eu me preservo e procuro superar a carência, e assim sou impulso. O
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objeto ao qual se dirige meu impulso é o objeto de minha satisfação, da restauração


de minha unidade”.50 Isto a princípio não diferencia o homem dos animais, mas
todavia o homem sabe da carência e sabe que se dirige a um objeto. “Aqui se
encontra a autonomia do homem; ele sabe o que o determina”.51
Novamente encontramos uma afinidade eletiva, uma coincidência formal
entre a composição das preleções sobre a filosofia da história e a Historik. Se em
Hegel após a determinação abstrata do espírito, experimentada na consciência
enlutada, na diferença entre a representação da grandeza e a consciência de sua
finitude, seguirá a determinação sensível, em que ele reconhece aquilo que o
determina e por isso tem a chance de conquista sua autonomia, em Droysen a
necessidade de reviver passados ideais será igualmente seguida por uma declaração
da importância de reconhecimento dos pressupostos e do caráter determinado. O que
o homem tem a conquistar é sua determinação. O passado se faz volátil, mas precisa
ser apropriado.

50
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.56. Ich erhalte mich und suche, den Mangel
aufzuheben. Der Gegenstand, worauf der Trieb geht, ist der Gegenstand meiner Befriedigung, der
Wiederherstellung meiner Einheit.
51
Ibid., p.57. Hierin liegt der Selbständigkeit des Menschen; was ihn determiniert, weiss er.
55

Ele nasce dentro do conjunto de determinações históricas de seu povo, sua língua,
sua religião, seu Estado, etc.; e somente através disto ele assimila todo este conjunto,
para si, sem sabê-lo, de elementos infinitos e anteriores a ele, e internalizando-os e
misturando-os à própria essência para que, assim, possa separá-los imediatamente,
tendo assim uma vida que seja mais do animal, uma vida que passe a ser humana. Ele
não é a partir de seu nascimento, ele só é como possibilidade, pois, na verdade, ele
precisa tornar-se. Ele precisa tornar-se homem para ser homem, e ele é somente
homem na medida que souber mais e mais como se tornar homem.52

Voltando ao problema da teleologia em Hegel, ela tem indiscutivelmente


traços cristãos. O espírito, ao menos nesta passagem da filosofia hegeliana da história,
é a afirmação da superioridade do cristianismo, e, neste sentido, a justificativa da
teodicéia segundo Hegel através da trindade. Não pretendemos analisar detidamente
os aspectos cristãos de sua filosofia; nosso interesse é mostrar que o caráter mediado
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da história parte de uma premissa cristã. Segundo o filósofo, a mediação exemplar é


dada por Deus. Primeiramente, ele seria Pai, poder, um geral abstrato, ainda
abscôndito, em um segundo momento ele é um outro que não é ele mesmo, um objeto
cindido em si – o Filho. Mas este saber de si e visão de si no outro é o próprio espírito
– ora, quando lemos em Droysen que “o animal acolhe e reflete, de acordo com um
tipo pronto, a soma das sensações recebidas”,53 ao passo que para o homem, ao
contrário, “a sua essência ainda não está nele”, e por isso, “a auto-produção de sua
essência é o que o determina, é o seu trabalho”54, a semelhança com Hegel é

52
DROYSEN, J.G. Historik. p.14. Er wird hineingeboren in die ganze historische Gegebenheit seines
Volkes, seiner Sprache, seiner Religion, seines Staates usw.; und erst dadurch, dass er das so
Vorgefundene, Unendliches lernend, ohne es selbst zu wissen, in sich nimmt, und verinnerlicht, es so
mit seinem eigensten Wesen verschmiltz, dass er damit, wie leiblich mit seinen Organnen und
Gliedern, unmittelbar schaltet, erst dadurch hat er ein mehr als tierisches, menschliches Leben. Er ist
nicht durch seine Geburt schon in dem Hier und Jetzt, er ist es nur erst die Möglichkeit nach, er muss
es auch in der Tat und Wahrheit werden. Er muss erst ein Mensch werden, um ein Mensch zu sein, und
nur in dem Mass ist er es, als er zu werden und immer mehr zu werden weiss.
53
DROYSEN, J.G. Historik. p.23. Man könnte sich wohl denken, dass das Tier die Summe der
Sensationen, die es empfängt, nach einem fertigen Typus aufnimmt und reflektiert.
54
Ibidem. (…) die typsiche Grundform seiner Erscheinung ist damit näher bestimmt, dass sein Wesen
noch nicht ist (…) wo er Mensch zu sein beginnt, unvollkommen, und richtiger, in der Gefahr, seine
Bestimmung zu verfehlen, von seinem Wesen zu verirren. Die Selbsterzeugung seines Wesens ist seine
Bestimmung und seine Arbeit.
56

indisfarçável, de modo que ambos partem de uma mesma premissa, e de que o


objetivo também não parece ser diferente – a liberdade, a autonomia. O trabalho da
produção-de-si passa a ser a base da teleologia, que não deve ser confundida com
uma profecia que mal se diferencia de uma adivinhação muito convencida de si
mesma. Somente nestes termos podemos entender a vontade em Hegel como uma
produção-de-si que não seja voluntarista e que deságüe necessariamente em uma
concepção teleológica, resignada, da história.
Um conceito muito mais famoso, mas justamente por este motivo vítima
freqüente de análises apressadas, será extremamente útil para que compreendamos
como se realiza na história tal subsunção da produção-de-si que cada unidade faz
como etapas da produção que o espírito faz-de-si. Estamos falando do conceito de
espírito do povo – Volksgeist – a terceira determinação do espírito, a terceira forma
que o espírito tem para saber de si na história.
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Em Hegel, o espírito do povo é sempre a individuação histórica do espírito:


“A consciência do espírito também precisa configurar-se no mundo; o material desta
realização, o seu solo, não é outro que a consciência geral, a consciência de um
povo.”55 O que o espírito sabe de si é a própria consciência de que cada povo tem de
si, ou seja, Hegel tenta lentamente mostrar que cada consciência de cada povo tem
uma imagem do que seja o absoluto, sem que todavia esta imagem seja o próprio
absoluto na acepção de Hegel. Sua ilusão é seu motor. Todavia, quando a consciência
for a da própria liberdade virá a ser justamente “a última consciência” de que o
homem é livre. Esta liberdade, que está em sua plenitude quando o homem tem a
consciência de ter de fazer a si mesmo, evita a identificação apressada de Hegel com
um pensador a buscar um télos específico para a própria história a aceitar somente
uma configuração concreta específica, ainda que, inegavelmente, considerasse a
religião cristã superior às demais, mas aí exatamente porque somente ela, segundo
Hegel, permitira ao homem que ele chegasse a uma tal consciência de sua liberdade,
e, portanto, a admitisse sobretudo como uma essência possível, e não cristalizada. O
télos como elemento central do pensamento histórico hegeliano não é sinônimo de

55
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.59. Das Bewusstsein des Geistes muss sich in
der Welt gestalten; das Material dieser Realisierung ist nicht anders als das allgemeine Bewusstsein,
das Bewusstsein eines Volkes.
57

repouso, mas sim o reconhecimento de que não há outra essência da vida humana do
que o movimento. O crescimento, ou, se preferirmos, o aperfeiçoamento quantitativo,
se encontra nos seres orgânicos, em cujo desenvolvimento as alterações são externas.
Todavia, o princípio orgânico e natural de nascimento, desenvolvimento, decadência
e morte se mantém o tempo todo, não havendo pois nos seres orgânicos qualquer
diferença entre o seu conceito e seu tempo de realização, e “o que o espírito quer é
alcançar o seu próprio conceito; mas ele se esconde no mesmo, e se orgulha desta
alienação de si mesmo, gozando-a plenamente.”56
Esta passagem é fundamental: o espírito, a cada momento de individuação em
diferentes espíritos-dos-povos, não “sabe” da Providência como elemento motriz,
ainda que na experiência do luto a razão se instaure em detrimento da vontade. Até
chegar a ser consciência absoluta de si, a Providência é uma força latente, interna,
não-consciente – natural, nos termos do próprio Hegel, um impulso que se confunde
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justamente com a paixão, o primeiro e indispensável meio de realização da história. A


paixão é o instante em que se confundem o arbítrio da vontade e a obediência à
necessidade, nela tudo converge e gira em torno de um ponto. O homem de ação
pensa somente em sua obra e a coloca diante de si – sua vontade é seu próprio objeto.
Mas é justamente neste caráter necessário da paixão, da tarefa indispensável e
inadiável, que permite Hegel ver o seu momento universal. Contra uma tendência que
friccionava livre arbítrio e bem comum, particularidade e universalidade, Hegel tenta
mostrar que nem aquele é destruidor e ensimesmado, nem esta é algo que desce dos
céus, vindo de fora e interferindo em um contexto do qual ainda não participava. É
um aspecto essencialmente trágico, pois, se a ação depende justamente de uma certa
obscuridade da consciência para consigo mesma (e aí estamos falando da poeira que a
razão joga nos olhos na consciência, ainda não clara como consciência de si), ou seja,
se a razão é astuciosa para se esconder da consciência – por ora manifestada como
vontade prática – a lei geral que se cria é escrita pela própria vontade, mas, quando
for lida, o será pela razão. Não é gratuita a ligação de Hegel do cristianismo com a

56
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.151. Was der Geist will, ist, seinen eignen
Begriff erreichen; aber er selbst versteckt sich denselben, ist stolz und voll Genuss in dieser
Entfremdung seiner selbst.
58

tragédia formulada já em sua juventude, ligação que acena ao menos para uma
possibilidade de superação da tragédia como “microcosmo da história”. Em seu texto
sobre o espírito do cristianismo, Hegel dirá:

O destino é a própria lei que eu instaurei na ação, em seu efeito retroativo sobre mim;
a penalidade é somente a conseqüência de uma outra lei – a conseqüência necessária
de um acontecimento não pode ser suprassumida, afinal, a ação precisaria deixar de
ter acontecido. (…) O destino, em oposição, ou seja, a lei que se volta, pode ser
suprassumido; pois uma lei que eu instaurei, uma cisão, que eu mesmo fiz, posso
também aniquilar. (…) A penalidade é a consciência de um poder externo, do poder
de um inimigo. (…) O destino é a consciência de si mesmo (não da ação), de si
mesmo como um todo, a consciência do todo objetivada, refletida; como este todo é
algo vivo que se violentou, então ele pode retornar à sua vida, pode retornar ao amor;
a sua consciência poderá se tornar novamente fé em si mesmo, e a visão de si torna-
se diferente, e o destino encontra a reconciliação57

Se em um determinado momento um Hegel jovem, autor deste texto sobre


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cristianismo, verá nesta religião um precedente trágico, e se um Hegel maduro,


poucos anos antes de sua morte, dirá que a história também é uma teodicéia58,
colocamos a pergunta se seria legítimo articular tragédia e teodicéia em seu
pensamento. Destino será a palavra-chave que permitirá o confronto entre as idéias
de tragédia e teodicéia, ambas fundamentais para uma filosofia da história.

57
HEGEL, G.W.F. Werke. Bd. I. pp. 305-6. Schicksal ist das Gesetz selbst, das ich in der Handlung
(…) aufgestellt habe, in seiner Rückwirkung auf mich; die Strafe ist nur die Folge eines anderen
Gesetzes – die notwendige Folge eines Geschehenen kann nicht aufgehoben werden, die Handlung
müsste ungeschehen gemacht werden. (…) Das Schicksal hingegen, d.h., das rückwirkende Gesetz
selbst, kann aufgehoben werden; denn ein Gesetz, das ich selbst aufgestellt habe, eine Trennung, die
ich selbst gemacht habe, kann ich auch vernichten. Da Handlung und Rückwirkung nicht einseitig
aufgehoben werden kann. Die Straffe ist das Bewusstsein einer fremden Macht, eines Feindseligen.
(…) Das Schicksal ist das Bewusstsein seiner selbst (nicht der Handlung), seiner selbst als eines
Ganzen, die Bewusstsein des Ganzen refletktiert, objetkiviert; da dies Ganze ein Lebendiges ist, das
sich verletzt hat, so kann es wieder zu seinem Leben, zu der Liebe zurückkehren; sein Bewusstsein
wird wieder Glaube an sich selbst, und die Anschauung seiner selbst ist eine andere geworden, und das
Schicksal ist versöhnt.
58
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.48. “Nossa observação é assim uma teodicéia,
uma justificativa de Deus, que Leibniz, a seu modo, ensaiou através de categorias indeterminadas,
abstratas: o mal no mundo como tal, o maléfico compreendido juntamente no mundo, o pensamento do
espírito sendo reconciliado como negativo; e é na história mundial que a grande massa do mal concreto
se nos apresenta aos olhos.” Unsere Betrachtung ist insofern eine Theodizee, eine Rechtfertigung
Gottes, welche Leibniz metaphysisch auf seine Weise in noch abstrakten, unbestimmten Kategorien
versucht hat: das Übel in der Welt überhaupt, das Böse mit inbegriffen, sollte begriffen, der denkende
Geist mit dem Negativen versöhnt werden; und es ist in der Weltgeschichte, dass die ganze Masse des
konkreten Übels uns vor die Augen gelegt wird.
59

É um problema sem aparente solução, mas a própria indicação de Hegel de


que a consciência (sempre tardia) do próprio destino em si já traz a reconciliação nos
possibilita ver que possivelmente neste esclarecimento estaria a possibilidade de
aperfeiçoamento de que tanto fala Hegel: “de fato, o aperfeiçoamento é algo tão
indeterminado quanto a própria mudança; ela é sem objetivo e finalidade; o melhor, o
perfeito, para o qual ela se dirige, é algo completamente indeterminado.”59 Hegel
estabelece claramente que a idéia de progressão do espírito não é a mesma da idéia
orgânica, ou seja, aquela em que o indivíduo também se produz a si mesmo, mas de
maneira imediata, sem oposição entre seu saber e sua realização. Com o espírito, diz
Hegel, será diferente, pois nele a transposição daquilo que o determina para a
realização é mediada pela consciência e pela vontade, e ambas não são introduzidas
em qualquer momento posterior. Desde sempre se encontram inseridas no próprio
espírito. A questão que Hegel coloca, para procurar demonstrar o caráter progressivo
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da história, seria a seguinte: se na natureza a alteração é circular, uma repetição


uniforme de uma forma de existência, como deixar de falar em progresso quando o
objeto é o próprio espírito – progresso este que inclui, necessariamente, a
possibilidade de decadência? O conceito de progresso, em Hegel, é antes de tudo um
progresso que se determina como o caminho rumo à consciência que o homem tem de
sua própria liberdade, ou ainda, de que ele é para si e em si, ou seja, de que ele não é
em outro, como a matéria e os elementos da natureza sempre são em outro, sempre se
definem somente a partir do reconhecimento de um outro. Assim, o destino, como já
aparece em seu texto sobre o espírito do cristianismo, ou no conceito de espírito-de-
povo, é sempre próprio, por mais que a representação que se faça de si mesmo (como
um espírito-do-povo, por exemplo) seja outra. Na verdade, a questão de fundo parece
ser a seguinte: dada a cisão entre ser e pensar, entre saber representativo e saber
especulativo, seria forçoso admitir a estrutura progressiva que se configura no
processo de consciência da própria liberdade? Esta estrutura progressiva, é preciso
que seja dito, não é a expressão da arrogância do saber posterior, que afirma saber

59
Ibid., p.150. In der Tat ist die Perfektibilität beinahe etwas so Bestimmungsloses als die
Veränderlichkeit überhaupt; sie ist ohne Zweck und Ziel: das Bessere, das Vollkomenere, worauf sie
gehen soll, ist ein ganz Unbestimmtes.
60

mais sobre algo do que este algo mesmo, por simplesmente ter vindo depois, mas é
uma questão hermenêutica. Será que somente se fiando completamente ao que uma
época ou um texto diz literalmente podemos compreendê-lo? Não seria a diferença e
a cisão fatores produtivos e capazes de emprestar e dar sentido ao que considerava
pleno? E para admitir que o sentido de algo não está dado plenamente naquilo que
simplesmente se apresenta como tal (ou seja, a manifestação explícita de intenções),
não seria necessário admitir como decisiva a idéia de destino, ou seja, de que há algo
que atribui sentido, mas cuja representação imediata se me escapa? Da mesma forma
que dizemos que a idéia de eticidade deve no momento apenas se insinuar, agora
deixemos como lembrete o elemento hermenêutico do pensamento de Hegel. Ambos
serão motivos de discussão mais aprofundada em momentos posteriores.
Hegel parte do princípio de que a consciência deste caráter trágico, do destino,
é a sua própria superação. Ela subsume a vontade ao destino, ou melhor: a vontade
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existe como paixão, e, assim, o destino já se cumpre. A paixão é a própria


impossibilidade radical de conhecimento imediato do sentido histórico, do sentido do
processo.
Assim atinge a universalidade que constitui para Hegel a quarta determinação
do espírito, a saber, a da Bildung. Posteriormente poderemos tratar deste conceito
com mais detalhes – principalmente no que diz respeito à sua recepção depois de
Hegel e Droysen – e que lugar ele ocupa de fato na história intelectual alemã, por isso
no momento nos contentamos com a definição dada por Hegel em sua filosofia da
história. Para Hegel, “o homem culto é aquele que sabe imprimir em tudo que faz o
selo da universalidade, é aquele que renunciou à sua particularidade e que age de
acordo com fundamentos gerais”.60 Agir de acordo com normais gerais não significa
simplesmente saber obedecer regras e seguir dogmas, mas sim não se deixar levar por
sua determinação – afinal, o homem é aquele que sabe de seu caráter determinado. E
isto quer dizer que o homem culto, o gebildeter Mensch, vê no objeto aparentemente
complexo uma multiplicidade de fatores, e os leva em consideração. Ou seja: vê no

60
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.65. Der gebildete Mensch ist der, der allem
seinem Tun den Stempel der Allgemeinheit aufzudrücken weiss, der seine Partikularität aufegegeben
hat, der nach allgemeinen Grundsätze handelt.
61

simples um universal, ou uma tentativa de busca de universal: “O homem culto


conhece em um objeto vários lados, pois sua reflexão bem-formada lhe emprestou a
forma da universalidade”.61 É por isto que Hegel chama a Bildung de “forma do
pensamento”, e não exatamente um conteúdo, sendo na verdade o seu oposto, na
verdade, posto que conteúdo é uma determinação irredutível e definida em si mesma.
O homem inculto, ao contrário, privilegiaria apenas um aspecto, desconsiderando
todos os outros na medida exata que nota apenas um, mesmo que seja o principal62. A
idéia de formação tem sua importância neste momento da filosofia hegeliana da
história ao ser um passo seguinte ao anterior, ou seja, ela é a própria configuração da
idéia de destino, experiência da complexidade como reconhecimento de que na ação
imediata e consciente não se encontra a plenitude do significado. É necessário ver que
compreender a pequena esfera em que se movimenta um homem, um povo ou uma
época não é suficiente para que seja entendido o significado mesmo deste homem,
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deste povo ou desta época, da mesma forma que um saber nunca é somente um saber
pragmático, utilitário, que tem uma função e nada mais. Neste sentido, é necessário
sair de si para se chegar ao verdadeiro “si”. E por este motivo, a vontade é a ação cujo
sentido se mostrará posteriormente. Sem ela, não há hermenêutica, ou seja, não
haverá quebra da evidência de um sentido que julgávamos irredutível pela própria
vontade, e, sem essa quebra, não há necessidade de interpretação posterior, e essa
posteridade inevitável guarda em si também a idéia de destino.
Consideramos indispensável tratar de destino, justamente por localizarmos na
importância do conceito de necessidade um motivo de grande resistência – e leituras
apressadas, portanto – em relação à filosofia hegeliana da história. Preferimos desde o
início entender aqui a necessidade como sinônimo de destino, conceito que fora

61
Ibid, p.66. Der gebildete Mensch kennt an den Gegenständen die verschiedenen Seiten; sie sind für
ihn vorhanden, seine gebildete Reflexion hat ihn die Form der Allgemeinheit gegeben.
62
Há extrema dificuldade em se adotar somente uma raiz para traduzir a palavra Bildung. Podemos
usá-la como cultura, mas também como forma. Bildung, em si, quer dizer formação. Quando falamos
do homem culto (gebildeter Mensch), ou homem bem-formado, estamos tratando de um homem
elaborado, e que vê no próprio mundo um grande processo de lenta elaboração e trabalho. E
acreditamos neste sentido que por vezes traduzir Bildung como formação, ao invés de cultura, poderá
transmitir com mais clareza uma idéia quase plástica (Bildende Kunst, vale dizer, é a arte plástica) de
formação, ao invés de cultura, que por vezes pressupõe somente a soma disponível de bens culturais já
realizados.
62

definido por um Hegel trinta anos mais jovem do que o professor responsável pelas
preleções sobre a filosofia da história. Todavia, o termo pode ajudar a compreender o
que Hegel fala sobre o objetivo de uma visão filosófica da história mundial - e neste
sentido “filosófica” e “mundial” formam um pleonasmo, o ‘mundial’ é a tradução no
mundo dos acontecimentos do que no mundo da ciência entende-se como o
‘filosófico’. A visão filosófica/mundial da história Hegel chama de a apresentação do
divino (Darstellung des Göttlichen):

O objetivo da história mundial é pois o seguinte: que o espírito chegue ao saber


daquilo que é verdadeiro, e que este saber se objetive, que se realize em um mundo
dado, que se produza objetivamente. O essencial é perceber que este objetivo é algo
produzido. O espírito não é uma coisa natural como o animal; este é como é,
imediatamente. O espírito é aquilo que se produz, que faz de si o que ele é.63

O conflito reside justamente na tensão entre a afirmação de uma teodicéia que


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todavia não antecipe o próprio percurso da consciência rumo ao saber objetivo de si


mesma. Ou seja: trata-se de uma teodicéia que, de um lado, somente se revele como
tal ao fim do processo e que, por outro, esteja presente em cada instante do processo,
como algo que se fez a si mesmo em cada momento.
Retornamos a uma pergunta já feita: como o espírito se realiza na história?
Após tratar das determinações do espírito na história mundial, Hegel tratará
justamente destes meios, e o primeiro e principal deles, a paixão, poderá ser de
enorme utilidade para que possamos compreender melhor esta relação tensa entre
teodicéia e vontade. O seu exame será também indispensável para que possamos ter
uma base conceitual que nos permitirá compreender a historiografia de Droysen, mais
especificamente a dedicado ao helenismo e ao significado de Alexandre Magno para
a história mundial.
Elaborando o sentido da paixão, Hegel mostra como o interesse nem sempre é
simplesmente tradução de uma vontade de conservação de um organismo

63
HEGEL. G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.74. Das Ziel der Weltgeschichte ist also, dass der
Geist zum Wissen dessen gelange, was es wahrhaft ist, und dies Wissen gegenständlich mache, es zu
einer vorhandenen Welt verwirkliche, sich als objektiv hervorbringe. Der Geist ist nicht ein Naturding
wie das Tier; das ist, wie es ist, unmittelbar. Der Geist ist dies, dass er sich hervorbringt, sich zu dem
macht, was er ist.
63

determinado e finito. No interesse, diz Hegel, se mostra a ação individual que tece o
universal, e, melhor, na qual já se faz presente o universal: “É a luta do ser humano
contra o destino; mas nós compreendemos a necessidade não como uma fatalidade
externa, mas sim como a idéia divina, e é o caso de se perguntar: como se reúnem tal
idéia superior com a liberdade humana?”64 E ainda complementaríamos: como
entender em Hegel tal centralidade da paixão quando ele mesmo, em sua concepção
de ciência, não daria ao sentimento imediato um lugar apenas parcial no processo em
que a consciência vem a se tornar objeto-de-si mesma? Não seria por exemplo o
sentimento “místico”, por ele condenado, um caso de paixão, e, assim, o principal
meio de realização do espírito na história? Ficamos pois com o problema, que por ora
apenas indicamos.
Lembrando que paixão para Hegel é o lado subjetivo e formal da energia do
querer e da atividade, podemos dizer que em vários momentos podemos ler que para
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o filósofo a concentração de todas as forças e necessidades sobre um objeto é o que


constitui toda e qualquer paixão. Neste sentido, a paixão é necessariamente algo cuja
forma impele o sujeito a sair-de-si, e não em um sentido vulgar e romântico, mas já
no seu próprio sentido que o leva até um conteúdo, a um objeto. O mais interessante é
que Hegel consegue descartar tanto a visão romântica de sentimento de estranheza em
tudo que se cerca, de um sentimento tomado por uma nostalgia do absoluto e da
natureza, mas também não se reduz ao simples pragmatismo rasteiro de atender ao
que o mundo dado pede – possivelmente porque já descrevera que a Bildung é
também um processo de saída-de-si. Em suas preleções sobre Estética, por exemplo:
Hegel diz que um homem de caráter é justamente aquele que sabe estabelecer fins
para si mesmo, que, uma vez não alcançados, significariam a ruína de si, e que
somente desta maneira específica a vida era concebível – ou seja, somente de acordo
com esta forma que por estar além de mim (objetiva, ou então, destino), posso me
determinar. O romântico, para Hegel, é por outro lado o sujeito irônico a recusar todo
e qualquer conteúdo, é a “bela alma a morrer de tédio”, que no fim acha tudo vão e

64
HEGEL. G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.83. Es ist der Kampf des Menschen gegen das
Geschick; aber wir nehmen die Notwendigkeit nicht als die äussere des Schicksals, sondern als die der
göttlichen Idee, und es fragt sich, wie ist diese hohe Idee mit der menschlichen Freiheit zu vereinen?
64

absurdo menos o seu “eu” eternamente manifesto somente na forma da insatisfação


que, justamente por não se sentir em casa em qualquer lugar, está descontente e
ansiando contraditoriamente pelo concreto e pelo absoluto.65 Neste sentido, vale a
pena notar brevemente a razão pela qual Hegel pretendia, como crítico do
romantismo que era, tentar compreender a teodicéia sem descartar sua dimensão
concreta, ou seja: inseri-la nos eventos da história mundial. A teodicéia “concreta”
seria assim a maneira que Hegel encontrou para reagir à idealização prejudicial do
divino possibilitada pelos românticos.
Desenvolver tal questão exige uma série de cautelas. Primeiramente, o
interesse que se expressa na paixão não é segundo Hegel o interesse selvagem e
bruto, mas sim um interesse necessário. Também não é todavia a paixão fomentada
pela aventura, a paixão imaginada, mas, novamente, a paixão criada pela necessidade.
Esta necessidade, como já dissemos, não tem por sua vez o mero ímpeto de
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conservação das relações existentes de um mundo dado. A necessidade se expressa


sobretudo como algo que se revela como a consciência do reconhecimento da
presença do espírito em todos os instantes em que ele, o espírito, sequer era um
objeto para si. Trata-se do problema da astúcia da razão, ou seja, que o produto da
ação interessada do homem é sempre outro daquele imediatamente imaginado,
desejado e planejado. Como bem nota Hegel, não se trata exatamente de acontecer
facticamente algo que não era esperado pelo agente (fracasso); na verdade, o seu
interesse pode até ser correspondido pela realidade, mas ele não se esgota aí. “Algo
mais adiante será posto à tona, algo que também estava essencialmente presente, mas
ainda não estava na consciência ou na intenção”.66
Uma ambigüidade se revela pois na filosofia da história de Hegel: seria tal
paixão, como meio de realização do espírito, efetivada no herói trágico, no grande
homem, ou pelo Estado? Explicamos: a paixão do homem prático é a capacidade de
mudança, da saída-de-si, e o Estado é a própria identificação do sujeito com o objeto,

65
Cf. HEGEL, G.W.F. Curso de Estética: O Belo nas Artes, pp. 85-7.
66
HEGEL, G.W.F. Die Vernunf in der Geschichte. p.88. (…) aber es wird noch ein Ferneres damit
zustande gebracht, das auch innerlich darin liegt, aber das nicht in ihrem Bewusstsein und ihrer
Absicht lag.
65

ou antes, lugar mesmo da realização da vontade objetiva. A paixão é o meio de


realização do espírito, o Estado o seu material. Não haveria entre um e outro um
atrito, e qual a natureza desse atrito?
Para Hegel, há evidentemente uma diferença entre a diferença verificada na
ação individual interessada (e/ou apaixonada) e a preservação do espírito do povo,
ação individual muitas vezes moral, ou seja, que sabe que deseja um bem específico
(bem este estabelecido pela representação consciente que este espírito do povo faz de
si mesmo) e aquela verificada entre a ação do grande homem e a consciência do
espírito-do-povo sobre si mesmo. Para Hegel, os heróis não estabelecem seus fins e
objetivos a partir “do sistema tranqüilo, ordenado, do percurso consagrado das coisas.
A justificativa de suas ações não provém do estado previamente encontrado, mas vem
é de outra fonte que eles criam. É a do espírito velado, que jorra no presente”.67
Mais uma vez vale a pena ressaltar que muitos aspectos centrais da pesquisa
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contemporânea em história tem em Hegel sua fonte. O próprio conceito de horizonte


de expectativas pode ser remetido a este ponto – o susto causado pela associação fica
todavia menor quando lembramos que tal conceito foi amplamente utilizado por um
discípulo (Reinhart Koselleck) de um filósofo (Gadamer) que reservaria a Hegel, em
detrimento de Schleiermacher, um lugar central na trajetória moderna da
hermenêutica. Esta será de alguma maneira a tarefa da filosofia vista por Hegel, uma
tarefa diferente da dos heróis, dos homens que pertencem à história mundial. Estes
são práticos, cumprem sua tarefa, sabem qual é sua tarefa e desejam realizá-la.
Somente o filósofo todavia saberá que tal grandeza não é para ser atribuída totalmente
àquele homem de carne e osso; mas sim ao espírito, que realiza o seu conceito em
alguns momentos da história. A diferença residiria pois no seguinte: “Não se conhece
o estado do mundo; o objetivo é pois produzi-lo”. Esta é a tarefa do herói, homem
consciente da fraqueza do mundo e, insatisfeito com ele, o herói vem a ser o meio do
espírito para que os demais homens saibam de sua própria vontade. Saber portanto
como tal concepção ainda se faz válida perante o seu conceito de Estado, ao menos o

67
Ibid., p.97. Sie [os heróis] nehmen ihre Zwecke nicht aus dem ruhigen, eingeordneten System, dem
geheiligten Lauf der Dinge. Ihre Berechtigung liegt nicht in dem vorhandenen Zustande, sondern es ist
eine andere Quelle, aus der sie schöpfen. Es ist der verborgene Geist, der an die Gegenwart pocht.
66

delineado na filosofia da história, equivale a encontrar um meio da avaliar o seu


potencial como hermenêutica.
O conceito de Estado como material de realização do espírito é o que deve ser
entendido, sobretudo em suas conseqüências; afinal, será por isto o objeto
privilegiado de estudo da história. O Estado será em Hegel a forma de apresentação
do divino.

O Estado é assim o objeto mais apropriado para a história mundial, no qual a


liberdade preserva sua objetividade e vive no gozo desta objetividade. Pois a lei é a
objetividade do espírito e a vontade em sua verdade; e somente é livre a vontade
que obedece a lei, pois ela se obedece e assim está em si mesma e é assim livre. Na
medida que o Estado, a pátria, se constitui de uma totalidade de existências, na
medida que subjuga as vontades subjetivas dos homens às leis, desaparece a
oposição entre liberdade e necessidade.68

O Estado é assim o momento em que se encontram o interesse da paixão e,


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digamos, a vontade divina. O mais importante é ver que Hegel todavia encontra uma
forma para o objeto da história, e, dando-lhe este contorno, de alguma maneira
privilegia a teodicéia em detrimento do trágico, dissolvendo-o em uma configuração
da apresentação do divino. Devemos sobretudo ressaltar o seguinte: o Estado é o
lugar em que desaparece a oposição entre liberdade e necessidade. Terá o Estado em
Droysen a mesma função? O desenvolvimento desta questão será elaborado no último
capítulo.
Voltando ao filósofo: em sua apresentação da Grécia em sua filosofia da
história, encontramos em alguns momentos um lugar apropriado para demonstrar tais
questões, a saber, quando ele irá mostrar as determinações do espírito grego
(subjetivo, objetivo e político), verificar-lhes as contradições e ver como tais
contradições geram a figura trágica. E somente chegando à figura trágica poderíamos
entender uma possível idéia de destino que não se identificasse plenamente com a

68
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte, p.115. So ist der Staat der näher Gegenstand der
Weltgeschichte überhaupt, worin die Freiheit ihre Objektivität erhält und in dem Genusse dieser
Objektivität lebt. Denn das Gesetz ist die Objektivität des Geistes und der Wille in seiner Wahrheit;
und nur der Wille, der dem Gesetze gehorcht, ist frei: denn er gehorcht sich selbst und ist bei sich
selbst und also frei. Indem der Staat, das Vaterland, eine Gemeinsamkeit des Daseins ausmacht, indem
sich der subjektive Wille des Menschen den Gesetzen unterwirft, verschwindet der Gegensatz von
Freiheit und Notwendigkeit
67

concepção de teodicéia. Procurando fazer valer a própria ambigüidade revelada pelo


jovem Hegel, creio que a análise poderá ser feita com mais proveito se entendermos o
termo destino como tragédia e também como teodicéia; ao primeiro tentaremos
analisar a partir da imagem da Grécia feita por Hegel na filosofia da história e na
Fenomenologia do Espírito. Novamente criamos a base para a comparação com
Droysen, autor de uma trilogia do helenismo. A idéia de teodicéia é quase uma
conseqüência da idéia de tragédia entendida a partir da imagem da Grécia feita pelos
autores.

2.4.
Resignação: o significado do fim do paganismo em Hegel.

O que Hegel descreve como paixão na Razão na História poderia ser


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transposto para a noção de individualidade bela (schöne Individualität) por ele


desenvolvida como a principal determinação do espírito grego? É bem claro que
poderá haver paixão em um homem moderno, mas Hegel não está a descrever
simplesmente estados psicológicos ou características singulares, mas determinações
do espírito. Assim a idéia de paixão adquiriria um traço clássico que a liberaria de
possíveis identificações e confusões com um romantismo vago criticado pelo próprio
Hegel, ou seja, com um simples arrebatamento de estímulos manifesto em expressões
aliviadoras. A paixão, como já dissemos, é a concentração em um determinado ponto
de todas as forças, e, assim a paixão é o meio de realização da bela individualidade
por justamente ter em si um elemento natural impulsivo (ou seja, a ausência da
consciência de si como objeto de si mesma), mas capaz de reunir-se e compor-se,
sendo assim muito mais do que simples naturalidade como satisfação e compensação
de necessidades. Afinal, Hegel não define o espírito grego de outra maneira que não
seja justamente esta: “sua determinação é o meio entre a ausência da consciência-de-
si do homem (…) e a subjetividade infinita como pura certeza de si mesma (…) O
espírito grego como meio parte da natureza e a transforma em seu oposto a partir de
68

si mesmo. (…)”69 Todavia, e isto é fundamental para que compreendamos a


concepção trágica de destino, nos gregos “a atividade do espírito ainda não tem neste
momento em si mesmo o material e o órgão de sua expressão, ela ainda necessita o
estímulo natural e da matéria natural (…) O espírito grego é o artista plástico que
transforma a pedra em obra de arte.”70
Esta é para Hegel a determinação do espírito como obra de arte: uma obra de
arte que será subjetiva, mas também sobretudo objetiva e política. A obra de arte
subjetiva se dá quando o homem usa a natureza como adorno (Schmuck), e
principalmente quando este adorno natural é o próprio corpo, isto é, aquilo que é dado
imediatamente ao homem e que os gregos formam e transformam em algo diferente
do que lhe foi dado naturalmente através dos jogos e da dança e que permite que o
homem se mostre e seja reconhecido, mais do que simplesmente se preserve e se
satisfaça. O canto será pois a forma mais elevada desta obra-de-arte subjetiva, pois
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justamente, ao contrário do canto dos pássaros, haverá de ser um canto com conteúdo
e forma, um canto objetivo. Esta é a passagem para a obra de arte objetiva, ou seja, os
deuses. Os deuses gregos, segundo Hegel, não são livres, em si mesmos, mas são
sempre sensíveis, limitados à forma dada objetivamente pelo homem. A natureza,
apontaria Hegel, não é a substância da mitologia grega, mas sua manifestação, e a luta
entre deuses mostram que a natureza não é o lugar em que os conflitos podem ser
apaziguados. Todavia, a ambigüidade permanece, pois, se são manifestações, também
não são alegorias e símbolos.
O problema da forma de apresentação do divino encontra aqui um momento
decisivo. Hegel sabe perfeitamente que o problema não se origina no cristianismo, ou
seja, podemos encontrar nos gregos, e de maneira decisiva, a manifestação divina
objetiva. Se por um lado os gregos e os cristãos partilham da aparição do divino como
aparição do espírito para os sentidos do homem, por outro lado, as aparições mesmas

69
HEGEL, G.W.F. Werke Bd.12. p..293. Diese Bestimmung ist die Mitte zwischen der Selbstlosgkeit
des Menschen (…) und der unendlichen Subjektivität als reiner Gewissheit ihrer selbst, dem
Gedanken, dass das Ich der Boden für alles sei, was gelten soll. Der grieschiche Geist als Mitte geht
von der Natur aus und verkehrt sie zum Gesetzsein seiner aus sich.
70
Ibid., pp.293-4. Die Tätigkeit des Geistes hat hier noch nicht an ihm selbst das Material und das
Organ der Äusserung, sondern sie bedarf der natürlichen Anregung und des natürlichen Stoffes. (…)
Der grieschiche Geist ist der plastische Künstler, welcher den Stein zum Kunstwerke bildet.
69

são a forma grega mais elevada do divino, enquanto no cristianismo a aparição é um


momento. No cristianismo,

O Deus que se revela morre, se instaura como suprassumido em si mesmo;


somente como morto Cristo é representado sentado ao lado direito de Deus. O
Deus grego é, em contraposição, perenizado para os helenos através das aparições,
somente em mármore, metal ou madeira, ou na imaginação como imagem da
71
fantasia.

Todavia, será justamente esta perenização de que fala Hegel a responsável


pela diferença entre a paixão conceitualmente definida na Razão na história e a
individualidade bela. Esta perenização será responsável sobretudo pela caracterização
posterior do espírito grego como obra de arte política. Ou seja, nela o que pode ser
subjetivo não é exatamente paixão, pois lhe faltaria a interioridade indispensável. É
eticidade. E como? Hegel afirmará que, na eticidade,
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A lei está dada de acordo com seu conteúdo como lei da liberdade e de maneira
racional, e vale porque é lei, de acordo com sua imediaticidade. Assim como na
beleza o elemento natural está dado no próprio elemento sensível, em tal eticidade
estão dadas as leis de acordo com sua necessidade natural.72

Esta comunhão entre lei, necessidade e naturalidade se faz presente na esfera


política da vida grega, segundo Hegel, e não somente como base do estado grego
democrático, para o filósofo o mais apropriado para a determinação helena do
espírito, pois é nela em que a vontade objetiva do cidadão é imediata, mas sobretudo
na própria forma política de toda Grécia, em que há a ausência de uma autoridade
superior por todas as cidades-estado. O que é sua virtude, segundo Hegel, será
também motivo de sua queda. Uma queda pelo pensamento:

71
HEGEL, G.W.F. Werke Bd.12, p.305. Der erscheinende Gott ist hier gestorben, ist als sich
auhfebend gesetzt; erst als gestorben ist Christus sitzend an der Rechten Gottes dargestellt. Der
grieschiche Gott ist dagegen für die Hellenen in der Erscheinung perennierend, nur im Marmor, im
Metall oder Holz, oder in der Vorstellung als Bild der Phantasie.
72
Ibid, p.308. Das Gesetz ist da, seinem Inhalte nach als Gesetz der Freiheit und vernünfitg, und es
gilt, weil es Gesetz ist, nach seiner Unmittelbarkeit. Wie in der Schönheit noch das Naturelement, im
Sinnlichen derselben, vorhanden ist, so auch in dieser Sittlichkeit die Gesetze in der Weise der
Naturnotwendigkeit.
70

O pensamento aparece aqui como princípio de decadência, mais especificamente de


decadência da eticidade substancial. (…) pois a vivacidade concreta nos gregos é a
eticidade, vida para a religião, para o Estado, sem maiores especulações, sem
determinações gerais que logo se distanciam das configurações concretas, às quais
precisa pois se lhes contrapor73.

Esta é a semente da decadência helena, segundo Hegel, à qual não dedica


muitas páginas em suas preleções sobre filosofia da história. Justamente com o
questionamento de cada eticidade viva e concreta, com a fragmentação causada pela
Guerra do Peloponeso, a Grécia perderia o sentido da bela individualidade, posto que
cada qual ficaria sem a imediaticidade que lhe garantia o sentido imediato, e
tampouco lhe restaria um império autoritário – como Hegel via nas civilizações
orientais – que pudesse estabelecer uma ordem. Sem um todo ao qual se submetessem
as particularidades, que por sua vez estavam vazias de sua antiga concretude mas
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também não poderiam simplesmente se tornar orientais e deixar de lado toda a


herança religiosa, as particularidades se tornaram sinais sem sentido. O que fora bela
individualidade tornou-se segundo Hegel pouco mais do que “particularidade seca” e
“especificidade horrível”.
Todavia, o que nos parece ainda nebuloso é a possibilidade de conjugar a
concepção cristã que dá vida à idéia de apresentação do divino como revelação, como
momento, com a concepção política, na qual o Estado é a apresentação do divino na
terra. Seria o Estado também somente este “momento”, algo revelado, ou uma forma
muito mais estável? Onde estaria a teodicéia, posto que esta parece ser a opção de
Hegel em detrimento da tragédia, como vimos, para que se compreenda
adequadamente a idéia de destino?
Esta é a questão a ser levada adiante, principalmente quando tratarmos de
Droysen. O problema, ou seja, obedecer à necessidade, necessidade esta que não se
confunde com moralismo, mas se identifica sim com devir e destino, será o que
ocupará o cerne da filosofia da história hegeliana. A sua idéia de lei não-normativa

73
HEGEL, G.W.F. Werke Bd.12. Pp. 326-7. Das Denken erscheint hier als Prinzip des Verderbens,
und zwar des Verdebens der Sittlichkeit (…) Denn die konkrete Lebendigkeit bei den Griechen ist
Sittlichkeit, Leben für die Religion, den Staat, ohne weiteres Nachdenken, ohne allgemeine
Bestimmungen, die sich sogliech von der konkreten Gestaltung entfernen und sich ihr gegenüberstellen
müssen.
71

será um elemento central para que possamos posteriormente verificar se ela se dá ou


não em Droysen. Somente uma lei-não normativa poderá permitir que a reconciliação
entre objetivo e subjetivo possa de alguma maneira determinar de modo fixo o último
estágio de aperfeiçoamento, ou seja, a lei-normativa é formada na própria ação,
jamais algo que simplesmente se revela de maneira arbitrária ao cabo da ação ou que
serve de régua de valores antes do próprio desenrolar da ação, como um conjunto de
dogmas que pode ser cumprido ou desobedecido. Todo fim da história em Hegel é
sempre inatingível: “Este progresso, esta escalada parece ser um processo infinito se
o medirmos de acordo com a concepção de aperfeiçoamento; um progresso, que
eternamente fica longe de seu objetivo”.74 Sim, não há em Hegel a pretensão da
previsão, mas sobretudo a ênfase no futuro como lugar de sentido histórico, o que já
podíamos ler em seu texto sobre cristianismo e a concepção de destino que lhe
corresponde, ou seja: a Trieb, o impulso da vontade objetiva, é a teia em que se molda
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o destino que pode se tornar consciente. Uma outra instância, diversa, será a vontade
de Deus. Entre estes dois níveis da vontade se abre o abismo de sua filosofia da
história e sobretudo o seu papel como filósofo que a interpreta. Lemos em Hegel que

A História mundial em seus fins é o que devemos observar; este fim é o que é objeto
de vontade no mundo. De Deus sabemos que é o que há de mais perfeito; ele pode
somente querer a si mesmo e o que lhe é igual. Deus e a natureza de sua vontade são
uma coisa só; isto chamamos filosoficamente de idéia.75

Repetimos pois que há dois níveis: o que cada povo, ou melhor, cada espírito
do povo quer, e o que nele se expressa como vontade de Deus que ainda não se
revelou como tal. Mesmo o sentido da teodicéia não se dá desde o seu princípio e
também ele é submetido a um destino próprio e, por isso, trágico, e, desta forma, a
consideração de aspectos da história antes do advento do cristianismo não fica

74
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte, p.180. Dies Fortgehen, dieser Stufengang scheint
ein Prozess in die Unendlichkeit zu sein gemäss der Vorstellung der Perfektibilität, ein Progress, der
ewig dem Ziele fern bleibt.
75
Ibid., p.52. Die Weltgeschichte nach ihrem Endzwecke haben wir zu betrachten; dieser Endzweck
ist das, was in der Welt gewollt wird. Von Gott wissen wir, dass er das Vollkommenste ist; er kann
also nur sich selbst wollen und was ihm gleich ist. Gott und die Natur seines Willens ist einerlei; diese
nennen wir philosophisch die Idee
72

marcada de início por um desrespeito pela particularidade própria destas épocas –


ainda que este risco exista de fato. Na verdade, trata-se de ver como se manifesta a
vontade de Deus em determinadas circunstâncias históricas quando ainda não era
possível aos homens perceber justamente a estrutura teleológica da teodicéia
histórica, ou seja, de que o próprio espírito estava em busca de seu conceito e que não
podia ser notada conscientemente a própria relação cindida existente entre a ação e a
lei que era escrita em seu próprio percurso. Sem que se tenha isto em mente, a própria
compreensão do obra historiográfica de Droysen (e de suas futuras ramificações
teóricas) fica imensamente prejudicada. É verdade que tirar a pecha de simplismo
teleológico do pensamento de Hegel, que lemos mesmo em autores clássicos como
Jacob Burckhardt, pode dificultar a auto-afirmação do pensamento histórico: - mas
não se trata de somente dificultar a vida de Droysen, mas sim de ver que, no fundo,
não se pode desconsiderar de todo a estrutura teleológica que informa o pensamento
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histórico. Recusá-la integralmente significaria pura e simplesmente aderir a uma


forma de percepção determinada pelo “imediatismo”.
A idéia de lei não-normativa, ou por outra, de sentido que se produz, é
indiscutivelmente cristã, conforme já havíamos antecipado seja quando citávamos o
texto de um jovem Hegel sobre o espírito do cristianismo, seja quando percebíamos a
diferença entre a religião revelada como morte e uma religião que se configura
plastica e objetivamente na natureza e aí se queda. No cristianismo o espírito é a
divindade una e trina, deixando de ser um espírito que se fazia reconhecer
sensivelmente no espírito-dos-povos, mas jamais como objeto de si mesmo, como
objeto de puro pensamento.
Assim, uma vez entendida a idéia de destino como elemento fundamental,
mas destino entendido não como afirmação concreta de uma previsão, mas como lei
que se escreve durante a própria ação histórica, como sentido mediado que se
estabelece não aqui e agora, mas sim como um sentido complexo e composto por
pressupostos que podem – ou não – ser trazidos à consciência em um determinado
presente, como sentido que se produz, aí sim poderemos encontrar em Hegel um
autor frente ao qual o pensamento de Droysen terá de se mostrar refinado o suficiente
73

para ocupar o lugar por ele mesmo ambicionado dentro do trajeto que a idéia de
história percorre no pensamento alemão desde final do século XVIII.

2.5.
Resignação: o significado do fim do paganismo em Droysen

Quando lemos o comentário de Droysen às peças de Ésquilo (por ele mesmo


traduzidas em 1832), que “seria totalmente contra o modo de Ésquilo indicar algo que
repousasse fora do contexto dramático, ligá-lo a uma corda e deixá-lo cair”76, ficamos
fortemente tentados a afirmar o mesmo sobre ele. Não nos parece simplesmente
ocasional que o primeiro trabalho relevante de Droysen tenha sido justamente a
tradução de tragédias, pois, ao tentar ver como a história pode se mostrar como
drama, ou seja, como um conjunto de situações concomitantes cujo sentido não se
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resolve de maneira imediata, através de uma solução arbitrária e exterior, ele procura,
em uma “vida cheia de som e fúria”, encontrar a harmonia que a organiza. Assim,
escrever história não era uma tarefa que poderia dispensar uma idéia de história que a
informasse, ainda que nem sempre tenha sido sistematizada detalhadamente. Na
verdade, parece-nos que o transcorrer dos eventos, desde que trágico, é justamente
este desenvolvimento que naturalmente chegaria a um determinado ponto; ou seja,
por si mesmos eles teriam um tal termo. A idéia de necessidade como destino,
conforme formulada por Hegel em seu texto sobre o cristianismo, também está aqui
presente.
Todavia, o que deve ser sempre ressaltado é que os objetos a partir dos quais
Droysen compôs livros e cursos não eram indiferentes ao pensamento e concepções
do próprio autor. Desta forma, certamente o estudo da antigüidade oferecia uma série
de questões que poderiam desmontar certos lugares-comuns. Se, por exemplo, os
historiadores em geral buscavam estudar a história antiga para conhecer as origens da
humanidade, ou parâmetros e modelos a serem copiados, este certamente não era o

76
DROYSEN, J.G. Des Aischylos Werke, p.167. Es wäre ganz wider die Aischylesche Weise, auf
etwas ausserhalb des dramatischen Zusammenhanges Liegendes hinzuweisen, und einen Faden
anzuknüpfen, im ihn fallen zu lassen.
74

motivo de Droysen, que dispensava estudar a época em que o homem supostamente


era um fruto da natureza e do solo assim como animais e plantas; e ele o dispensava
justamente porque, em sua visão, tal época jamais existira. Imediatamente se insinua
uma pequena diferença em relação a Hegel: se, como ele, Droysen privilegiava os
gregos em relação aos chineses, indianos e persas justamente por ver nos gregos a
expressão da possibilidade da consciência histórica, a ênfase em um rompimento da
naturalidade orgânica já nos gregos nos faz pensar o quão pagãos eram os gregos para
o próprio Droysen, e isto ele afirma novamente em cursos sobre história antiga dados
entre 1835 e 1839 em Kiel, “a história começa com o despertar da consciência de
oposição com o mundo externo, como mostram as sagas dos povos sobre paraísos
perdidos, com as épocas de ouro perdidas e com o esforço de estabelecer a
reconciliação com esta perda”.77, e, por esta razão, trata-se de outro interesse ao invés
de buscar a invenção do primeiro estado, da primeira religião ou da primeira raça.
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Mesmo no estudo dos mitos, nos quais Droysen poderia encontrar um lugar ideal para
que pudesse se encontrar um padrão de unidade entre forma e conteúdo, sentido e
ação, podemos ver como o descarte da concepção simbólica dos mitos o possibilita a
ver que o homem, desde sempre, é histórico, e, por isso, não pode ele, tal como
Droysen aponta em Ésquilo, procurar conhecer uma estrutura para além da história
para procurar o seu sentido.
Suas considerações sobre os mitos, neste sentido, podem ser bastante
elucidativas, e acabam trazendo mais elementos para a discussão para o sentido da
contingência: - se o estudo das civilizações antigas não se justifica pela sua primazia
cronológica, ou por outra, por serem elas guardiãs de uma essência humana
supostamente pura é de se pensar o que ainda é possível ver, por exemplo, no mito
dionisíaco. Sobre o tema, Droysen escreve em 1836:

Aí [no mito dionisíaco] o mito surge como um fato no qual seu sentido geral se
incorpora, e de modo tal, que este sentido só é visível neste fato, não podendo ser
apresentado por si mesmo, separadamente; interpretar o mito vai contra o sentido

77
DROYSEN, J.G. “Die Einleitungen der Vorlesung über ‘Alte Geschichte’, 1838/39)”. Historik,
Bd.II, p.52 sie [die Geschichte] beginnt mit dem Erwachen jenes Bewusstseins des Gegensaztes gegen
die äussere Welt, wie die Sagen der Völker mit dem verlorenen Paradies, dem verlorenen goldenen
Zeitalter, und mit der Arbeit, diesen Gegensatz zu versöhnen.
75

da antigüidade grega autêntica, algo que somente se tornou comum a partir da


decadência e de uma época erudita e esclarecida. O poeta moderno, ao contrário,
não vê no mito senão significado, cuja cobertura simbólica é histórica, e este
significado geral ele usa como idéia de seu drama, e a partir dele amplia a saga
com novas relações alegóricas. (…) Ele retira do mito sua vida poética ainda fresca
para transformá-lo em algo ainda mais filosófico, referencial e reflexivo.78

Não se pode sequer cogitar de uma alteração significativa no pensamento de


Droysen: se a consciência histórica nasce com a certeza da oposição entre homem e
mundo, como entender a acusação de que dar sentido ao mito seria fruto do
iluminismo erudito e decadente? Nesta oposição com o mundo já não se daria
imediatamente um “iluminismo”? Admitindo com Droysen que no mito o sentido se
incorpora à própria ação, e que este não pode de modo algum ser identificado com
uma expressão do estado puro da humanidade, como entender a tragicidade da
oposição entre homem e mundo que se renova a cada instante, pois, como disse o
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próprio Droysen, “fundamentalmente, a história começa novamente em cada povo,


em cada homem”.79 Uma nova questão se impõe: se cada povo recomeça a história, e
se é próprio da antigüidade a virtude (ou a ilusão, ou a virtude contida nesta ilusão
específica) de não ter procurado significados nos mitos, posto ser a atribuição de
sentido ao mito um produto somente possível em uma época cindida em si mesma,
como pensar a própria tragicidade da antigüidade?
Já em seus prefácios às suas traduções de Ésquilo, Droysen estabelece a
diferença entre Providência e necessidade – esta seria ainda tranqüila, ligada à terra
(Gaia), orgânica e tal ligação daria cada coisa sua ‘moira’ e seu ‘devir’. Anos depois
todavia uma tal visão puramente orgânica da antigüidade seria ligeiramente
relativizada. Certamente Droysen não encontrou uma resposta de maneira imediata à

78
DROYSEN, J.G. “Über Heinrich Stieglitz und dessen Dionysusfest, publicado em 28.7.1836”.
Historik, Bd.II, p. 50. (…) der Mythos erscheint da als ein Faktum, in dem seine allgemeine Bedeutung
inkorporiert ist, und zwar so, daß dieselbe nur in diesem Faktum anschaubar, nicht für sich und
ausgesondert darzustellen ist; den Mythus zu deuten, ist gegen den Sinn des echten griechischen
Altertums und erst mit dem Verfall und der gelehrt-aufgeklärten Zeit üblich geworden. Gerade
umgekehrt der neuere Dichter; er sieht in dem Mythos nichts als seine Bedeutung, deren symbolisch.
Umhüllung das Geschichtliche ist, diese allgemeine Bedeutung macht er zur Idee seines Dramas, von
ihr aus erweitert er die Sage mit neuen allegorischen Beziehungen; er nimmt ihr das frische poetische
Leben, um desto philosophischer, desto beziehungsreicher und nachdenklicher zu machen (…)
79
DROYSEN, J.G. “Die Einleitungen der Vorlesungen über Alte Geschichte, 1838/39” Historik, Bd.II.
p. 53. Im Grunde, beginnnt in jedem Volk, in jedem Mensch, die Geschichte von neuem
76

questão da consciência da separação entre homem e mundo, e por isso encontramos


ao longo dos anos e dos seus cursos, a mesma pergunta formulada, e a cada vez, com
uma resposta cuja variação em relação a anterior viria a acrescentar algum elemento
novo, mas jamais algo que representasse uma profunda guinada de pensamento. No
semestre de inverno de 1846/47, ele dirá, ainda em um curso sobre história antiga,
que o mito é a revelação de um limite, ocupando e criando um lugar insólito, em que

entre a natureza e a história há um intervalo obscuro, em que a lei da autonomia


espiritual ainda não se iniciou, e sobre o qual já cessou de vigorar a rigidez da lei
natural. Aqui se localiza aquela esfera de contingências, aquela esfera de fatos
incompreensíveis (como quer que nosso conhecimento possa denominá-la), que
sempre e sempre permanecem determinantes, direcionadores em seus efeitos,
permanecendo velado para o mais profundo ‘Por quê?’80

Droysen procura encontrar pois o espaço para que a história torne-se


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necessária: não será como demonstração de leis naturais que a história deverá ser
compreendida, tampouco como especulação subjetiva e plena autonomia do
conhecimento, donde podemos concluir que a história em momento algum será o
reino da necessidade, tampouco a esfera da liberdade. A partir deste trecho, podemos
encontrar uma diferença em relação a Hegel; afinal, para Droysen a mitologia não
será vista como uma apresentação plástica do divino, que sempre se configura
objetivamente no mármore ou na pedra, como dizia Hegel. Para Droysen, a mitologia
já é ela mesma um espaço de realização das contingências.
Não encontramos evidências de desenvolvimento deste argumento, diríamos
mesmo desta intuição de Droysen. Afinal, quando se permite falar em liberdade,
Droysen adota cautelosamente uma linguagem, que, claro, lembra bastante a de seu
professor dos tempos da Universidade de Berlim, Hegel. Afinal, mais do que saber
como se configura historicamente esta autonomia espiritual, este distanciamento
progressivo em relação à natureza, restará entender como o homem lida

80
DROYSEN, J.G. “Die Enleitungen der Vorlesungen über Alte Geschichte 1846/47”. Historik, Bd.II,
p.71.Das ist die merkwürdige Stelle, wo zwischen Natur und Geschichte ein dunkler Zwischenraum
liegt, das Gesetz geistiger Autonomie hat noch nicht angefangen, das Naturgesetz in seiner Starrheit
hat schon aufgehört; hier ist es, wo jener Kreis der Zufälligkeiten, wie unsere Erkenntnis sie nennen
muß, jener dunkle Kreis von Unbegreiflichkeiten liegt, die dann doch wieder in ihren Wirkungen
maßgebend, richtungbestimmend, für immer das tiefste Warum umhüllend bleiben.
77

historicamente com a consciência de que a história, nas palavras medularmente


hegelianas de Droysen, é “o percurso do espírito em busca da consciência de sua
liberdade inata, e, assim, a ação e realização desta liberdade”.81
Sua perspectiva sobre os caminhos da civilização grega, e sobretudo o papel
desempenhado pela filosofia, será bastante semelhante a que encontramos nas
preleções da filosofia hegeliana da história. Semelhança não quer dizer todavia cópia,
e algumas sutilezas precisam ser observadas. A antigüidade grega será ela mesma
uma luta entre a poesia dos mitos e a prosa racional da filosofia. Para Droysen, se a
filosofia, ou melhor dizendo, a sofística cuidou de

Descascar uma camada de certeza após a outra; e logo estava encaminhada toda a
nulidade da percepção humana, restando apenas utilizar a afiada arma da dialética
contra o resto de positividades e libertar o espírito das amarras de tudo que era dado.
Foi a grande obra da sofística mostrar que nada há senão opinião subjetiva, que tudo
que vigora foi imposto e é arbitrário, e que o homem, em sua subjetividade, é a
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82
medida de todas as coisas.

Todavia, cabe muito bem perceber o que significa esta luta. Se em Ésquilo
Droysen vê a completa ausência de arbitrariedade, nos sofistas, e sobretudo na
retórica de Isócrates, ele verá como o descarte do conhecimento objetivo e positivo
levará a um risco: a absoluta arbitrariedade de tudo que é dito, uma vez que será a
forma do discurso, criada de modo absolutamente independente em relação ao seu
objeto, que será atribuidora de sentido. Droysen não somente será capaz de
diferenciar a filosofia da sofística, mas também, o que é vital para entendermos sua
teoria da história, contingente (expressão do absurdo) não será sinônimo de
caprichoso (manipulação formal), mas também verá que o desenvolvimento da
filosofia em Platão e Aristóteles será de significado central para os rumos da própria

81
DROYSEN, J.G. “Die Einleitung der Vorlesung über Alte Geschichte, 1838/39”. Historik. Bd.II,
Der Inhalt der Geschichte ist das Ringen des Geistes nach dem Bewusstsein seiner ihm angeborenen
Freiheit, und damit die Betätigung und Verwirklichung der Freiheit selbst.
82
DROYSEN, J.G. Texte zur Geschichtstheorie, p.44. Sie hatte eine Hülle nach der andern abgeschält,
schon war die gänzliche Nichtigkeit des menschlich Wahrnehmbaren prädiziert, es blieb nur noch
übrig, die scheidende Waffe der Dialektik gegen den letzten Rest von Positivitäten zu wenden und den
Geist von aller Schranke des Gegebenen zu befreien. Es war das grosse Werk der Sophistik zu zeigen,
dass nichts sei als das subjektive Meinen, dass alles Bestehende nur Gesetztes und Willkürliches, dass
der Mensch in seiner Subjektivität das Mass von allem sein
78

Grécia, e, sobretudo, devemos nos perguntar se aqui justamente não se cria uma
fissura no pensamento do próprio Droysen, ou seja: por mais que, como veremos, o
destino da Grécia seja ser superado pelo cristianismo, seu legado não será apagado.
Um conflito se instala em tal permanência, o que fará justamente de sua teoria da
história algo necessário, pois exatamente sairá deste conflito uma pergunta que dará
força ao nascimento da hermenêutica.
Droysen descreve brevemente como a obra de Platão viria como reação à
sofística e à retórica. Permanecendo dentro da interpretação convencional de Platão,
mas enfatizando o que lhe interessa – a consciência de estranhamento em relação ao
mundo – Droysen enfatizará que através do Sócrates platônico dá-se um grande passo
em direção a uma consciência livre de naturalidades e acidentes, que passa a respirar
fora de um mundo repleto de infelicidades. Será Aristóteles, segundo Droysen, aquele
capaz de reconciliar o Sócrates de Platão com a sofística através da observação
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cuidadosa da realidade, mas uma observação atenta interessada em buscar-lhes a


essência. Nada seria indigno de observação.
Todavia, para Droysen esta relativa reconquista da realidade através de
Aristóteles não será de modo algum um retorno à naturalidade: na verdade, a
naturalidade dispensa a forma expressiva utilizada por Aristóteles, e, vale dizer, por
Platão e pelos sofistas, a saber: a prosa. Infelizmente, Droysen não desenvolve tal
aspecto, e talvez no momento apenas uma conclusão nos seja permitida: o trágico se
libera da forma de expressão dramática. Fiquemos com um exemplo decisivo: seria
ilusório acreditar que o surgimento do cristianismo seja a própria e eterna
reconciliação dos conflitos. Afinal, quando falamos que há uma permanência grega
na modernidade, ou ao menos em Droysen, falamos sobretudo da sua insistência em
fazer da historiografia uma ética que ocupa a lacuna que não existia no mundo do
pensamento grego. Afirmando a importância central do modelo grego, Droysen dirá
que “com uma visão profunda, os sábios gregos dividiram toda a área do
conhecimento em três disciplinas: ética, física e lógica”.83 E, como vimos, sobram no
século XIX a observação empírica, o estabelecimento de leis e a especulação. Para ser

83
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.36. Mit tiefer Einsicht, haben die grieschichen Weisen das
ganze Gebiet der Erkenntnis in die drei Disziplinen Ethik, Physik und Logik verteilt.
79

breve: não há qualquer problema na física e na lógica, parece-nos dizer Droysen. Mas
haveria uma ausência da ética que, segundo ele, daria sentido às outras duas e ao
conhecimento. Esta necessidade de recorrer aos gregos sem que todavia seja mais
possível se apropriar de seu modo específico é possivelmente o que empresta ao
século XIX percebido por Droysen a sua face trágica. Além de ser o herdeiro da
revolução francesa e da tentativa de auto-afirmação do homem, o problema da faceta
trágica reside também no que significa ser cristão – não simplesmente no sentido
confessional, mas sobretudo cultural – ou seja, o que significa ter superado o
paganismo. Entramos neste momento em um aspecto que aproxima Droysen de
Hegel: sua teleologia da história. Paganismo, cristianismo e liberalismo colidem entre
si, e em Droysen esta colisão é bastante sentida.
De cara, é necessário dizer que o próprio Droysen não confundia
terminologicamente filosofia da história com o que ele mesmo chamaria de teologia
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da história. Geralmente motivo de confusão semântica gerado por um pressuposto


muitas vezes acriticamente aceito, podemos pensar que uma trilha se abre quando
teologia da história e filosofia da história ou bem podem ser diferentes (desde que se
admita, o que não é o nosso caso, mas muitas vezes é o de um Burckhardt e mesmo
por vezes o de Droysen, que a filosofia da história é uma teleologia vulgar da
história), ou que, justamente por causa da vulgarização da idéia de filosofia da
história, Droysen pretendera, possivelmente dada a crescente secularização já em
curso e por ele percebida, dizer que a verdadeira filosofia da história era uma teologia
da história. No prefácio para História dos Epígonos, o terceiro volume da História do
Helenismo, Droysen procura justificar o sentido de se estudar o período do
helenismo. Discretamente orientado por Hegel, ou seja, vendo que um período
considerado normalmente à época como simples período degenerativo, Droysen
tentará mostrar que há na aparente decadência um sentido, ou seja, que a verdade não
se revela imediatamente e que ela reflete sobre si mesma. Por outro lado, trata-se de
um período até então deixado em estado quase virginal pela pesquisa, como nota
Arnaldo Momigliano.84 Mesmo Hegel, como já dissemos, não teve a sensibilidade

84
Cf. MOMIGLIANO, A. “J.G. Droysen entre los paganos e los judíos”.
80

para perceber na aparente degeneração helenística a possibilidade de um


rejuvenescimento. Possivelmente para manter a diferença em relação a Hegel,
Droysen irá preferir falar em “teologia” da história ao invés de “filosofia” da história.
Para ele, a teologia da história seria a percepção justamente do que Burckhardt diria
ser o princípio coordenador do conhecimento histórico, ou seja, a confluência de
vários vetores dentro de uma determinada unidade histórica. Sobre o alegado caráter
decadente do helenismo, diz Droysen:

(…) Nem sempre a decadência das configurações estatais se dá simultaneamente com


as da vida religiosa ou do desenvolvimento social; em grau ainda menor o vigor dos
negócios, do comércio, das artes condiciona necessariamente o progresso moral e a
força nacional. As infinitas e ricas relações tecidas de mil modos apresentam em
primeiro lugar a história raramente podem ser reduzidas à expressões gerais e
abstratas. Todavia há a decadência histórica de um povo em específico; ela ocorre
quando o conteúdo espiritual e estimulador desaparece de sua vida, quando ele cessa
de possuir uma força vital capaz de lhe dar novas metamorfoses, novas ligações, e
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quando ele regride a um estado vegetativo e natural de existência empírica. E muito


pouco disto pode ser dito sobre o período helenista85

Em momento algum encontramos nas preleções sobre a filosofia da história


de Hegel uma tal valoração do período helenístico. Por outro lado, como conciliar tal
afirmação com uma concepção radical e assumidamente cristã e teleológica da
história, quando vemos que, para Droysen “a civilização grega é a conclusão do
paganismo, o desenvolvimento mais completo e rico do homem a partir de suas
próprias forças”.86 A contrapartida é (teleo)lógica: “Todo o conteúdo da história
antiga não é senão a gradual destruição do paganismo, a dissolução da existência

85
DROYSEN, J.G. Theologie der Geschichte. IN: Historik. Ed. Rudolf Hübner, pp.378-9
Nicht immer ist mit dem Verfall staatlicher Gestaltungen der des religiösen Lebens, der sozialen
Enwticklungen gleichzeitig; noch weniger bedingt die Blüte der Gewerbe, des Handels, der Künste
notwendig die des sittlichen Fortschrittes, der nationalen Kraft. Die unendliche reichen Beziehungen,
die in ihrem tausendfach geschürzten Gewebe erst das Leben der Geschichte darstellen, wie selten
lassen sie sich auf so abstrakte Gesamtausdrucke zurückführen. Allerdings gibt es ein geschichtliches
Verfallen des einzelnen Volkes; es ist dann, wenn der belebende, geistige Inhalt aus seinem Leben
schwindet, wenn es aufhört, die Lebenskraft zu neuen Metamorphosen, zu neuen Verimpfungen und
Angliederungen zu haben, wenn es in seinen Urstände, in jene bloss natürlich vegetative Weise des
empirischen Daseins zurücksinkt. Wie wenig das von der Zeit des Hellenismus gesagt werden kann.
86
DROYSEN, J.G. Texten zur Geschichtstheorie. p.42. Das Griechentum ist diese Vollendung des
Heidentums, diese vollste und reichste Entwicklung des Menschengeistes nach seiner eigensten Kraft.
81

espiritual do solo da finitude, na qual nasceu e que é simultaneamente a base de sua


força imediata e seu veneno inerente.”87
A semelhança com Hegel é surpreendente em certos aspectos, sobretudo no
que diz respeito ao significado do cristianismo como revelação de que é o espírito
motor da história. Por outro lado, na mesmíssima preleção em que Droysen afirma as
palavras imediatamente supracitadas, ele dirá que na mitologia haverá um espaço em
que se terá cessada a naturalidade e suas leis rígidas sem que tenha se iniciado a lei da
autonomia espiritual. É o lugar do espanto, o reino da contingência. Ou por outra: não
seria justamente este intervalo a própria forma da experiência de “decadência”? Tais
preleções são todas da década de 40, e, por isso, acreditamos que o pensamento de
Droysen ainda está repleto de contradições que poderão ter algum outro
encaminhamento na própria teoria da história de 1857. Por ora, nos contentemos com
a sua avaliação do próprio helenismo: o que se conquista com ele não é somente uma
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ampliação territorial do mundo grego, via Alexandre, que tornará futuramente


possível a disseminação ampla de uma religião. Sobretudo o grande legado é o que
poderíamos chamar de princípio de interioridade. O fim do paganismo, para Droysen,
não é exatamente o helenismo; na verdade, a quebra da naturalidade não implica
exatamente uma aquisição de um sentido de universalidade como consciência da
liberdade; na verdade, a primeira forma de expressão desta universalidade será o
despotismo romano, a opressão das expressões nacionais, naturais, particulares. Na
verdade, Droysen vê configurado na história um princípio ao qual ele dará
futuramente um tratamento teórico; às expressões individuais não se deve contrapôr
puramente o dogmatismo que as renega. Todavia, mesmo neste espaço em que se
rompe uma certa naturalidade e ainda não se adquiriu a autonomia espiritual, é
justamente nesta lacuna que se instaura o princípio cristão da interioridade, dando fim
à história antiga. O cristianismo é sobretudo, em Droysen, um modo de ver, de
relação com o mundo exterior:

87
DROYSEN, J.G. “Die Einelitung der Vorlesung über ‘Alte Geschichte’ 1846/47, p. 78. Historik
Bd.II. (…)der ganze Inhalt der Alten Geschichte ist nichts als die stufenmäßige Zerstörung des
Heidentums, die Ablösung des geistigen Daseins von dem Boden der Endlichkeit, auf dem es
erwachsen ist und der zugleich die Basis seiner unmittelbaren Kraft, seine Mitgift ist.
82

Em tempos tão difíceis o olhar do homem se interioriza, pois está ameaçado,


contaminado e até mesmo renegado quando olha em qualquer direção da
mundanidade, procurando então consolo e esperança em um além que não o ponha
em perigo. Aqui escravizado e sobrepujado, ele se refugia nas regiões da vida
espiritual, em um reino que não é deste mundo, no qual ele encontra tanto consolo
como reconciliação; (…) Esta é a verdadeira liberdade que se dá com o cristianismo;
com esta mudança termina a história antiga88.

É verdade que nos perguntamos se Droysen simplesmente não transpôs para o


surgimento do cristianismo o que ele mesmo vira já nos gregos, lacuna que se põe
entre o fim da naturalidade e o início da vida espiritual autônoma como o lugar em
que surgem as contingências. Droysen não irá traçar paralelos neste sentido, e, por
isso, apenas indicamos um possível encaminhamento: se o cristianismo é um evento
de reconciliação, não deixará de ser estranho que ele se dê justamente como hiato
antes preenchido pelo contingente. Seria o cristianismo neste ponto o contingente que
se torna o destino? É o que nos satisfaz no momento, até porque não encontramos
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outra maneira de compreender a atribuição da tarefa máxima da história como


teodicéia: “Estamos convictos de que nenhum pássaro cai do teto que não seja pela
vontade de Deus; trazer esta crença para o conhecimento, fundamentá-lo da
particularidade até as dimensões mais amplas possíveis, esta é a tarefa da ciência.”89

88
DROYSEN, J.G. “Die Einleitung der Vorlesungen über ‘Alte Geschichte’ 1846/47”, IN: Historik.
Bd. II. p. 79. (…) In so schweren Zeiten wendet sich der Blick des Menschen nach innen, in jeder
Richtung der Weltlichkeit bedroht, gekränkt, ja negiert, sucht er Trost und Hoffnung in einem Jenseits,
das ihm nicht gefährdet werden kann. Hienieden geknechtet und belastet, flüchtet er sich in die
Regionen des geistigen Lebens, eines Reiches, das nicht von dieser Welt ist, und in dem er zugleich
Trost und Versöhnung findet; er fühlt sich geistig wiedergeboren zur Kindschaft Gottes, und in dieser
weiß er sich frei und unendlich berechtigt. Dies ist die wahre Freiheit, die mit dem Christentum
gegeben ist; mit dieser Wendung endet die Alte Geschichte.

89
DROYSEN, J.G. “Der erste Abschnitt der Einleitung der Vorlesungen über ‘Alte Geschichte’
1843/44”, Historik. Bd. II. p.65. Es ist u n s e r G l a u b e daß kein Sperling vom Dache fällt ohne
Gottes Willen; diesen Glauben zur Erkenntnis zu bringen, ihn im einzelnen weit und weiter zu
begründen und zu betätigen, das ist die Aufgabe der Wissenschaft
83

2.6.
Afinidades (nem sempre) eletivas entre Droysen e Hegel.

Parece-nos então que não há como negar a marca bastante evidente da


teleologia no pensamento de Droysen. Isto posto, como herda Droysen o legado de
Hegel? Que espaço restará para a contingência, se tudo é vontade de Deus? Teria o
historiador somente a ilusão da contingência que futuramente se dissolveria em um
sentido mais amplo? As perguntas só são aparentemente arbitrárias: sim, ela faz
sentido na medida que pensamos na possibilidade da autonomia da ciência histórica,
que, muito mais do que simplesmente demarcar fronteiras, se preocupa antes em
mostrar a historicidade do homem. Qual a diferença desta historicidade ser afirmada
por um filósofo, ou por um historiador? Que diferença fará a dita pesquisa histórica
para a própria consciência do que seja história? Dado o pensamento teleológico
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presente em Droysen, haverá de fato uma diferença entre a abordagem de Droysen


em relação a de Hegel, no que diz respeito à lide com o nó górdio, que deve ser
cortado ou desatado, de modo a livrar o espírito tanto do empirismo superficial como
do formalismo, infenso à tudo que seria concreto? E simplesmente poderemos
descartar a teleologia de Droysen, considerando-a simplesmente uma fase inicial,
sintoma de imaturidade de seu pensamento, ou deveríamos mostrar que esta
teleologia será a base para que posteriormente possamos perceber uma diferença entre
uma filosofia da história e uma teoria da história propriamente dita, como queria
Droysen?
Por ora nos basta entender Droysen como um autocrítico da história:
essencialmente, a crítica de Droysen aos historiadores e à situação historiográfica no
final da década de 50 do século XIX consistia essencialmente no fato dos seus
colegas de profissão desconsiderarem essencialmente o próprio modo de operação, e,
mais do que isso, que mesmo antes de serem historiadores profissionais, eles
carregariam consigo categorias que permaneceriam intocadas pelo trabalho histórico
– o que seria menos grave, se tais categorias não fossem decisivas para a realização
do próprio trabalho. Logo no princípio da Historik, Droysen mostra que ao pensar a
própria história, estamos determinados por pressupostos determinados pela educação,
84

pela formação histórica, pelos costumes e preconceitos. Ou seja, Hegel não partira de
ponto diferente ao criticar a pretensão de objetividade e ao mostrar que ação e lei são
simultâneas, mas, como vimos, Droysen inclui a própria filosofia da história neste
elenco de pressupostos que os historiadores por vezes assimilam sem elaboração, até
mesmo porque Hegel, partindo da idéia de superar a superfície ocupada por vasto
material empírico, dirá que a visão filosófica da história deverá se livrar do ocasional
e buscar o fim último do mundo, com o que Droysen dificilmente concordaria:

Nós falamos de desenvolvimento histórico, de contexto orgânico, de causas e efeitos,


e mal reparamos o quanto nós impomos ao percurso objetivo das coisas informações
antecipadas pelo resultado: Rapidamente pressupostos teológicos e filosóficos nos
conduzem inconscientemente a verificar fins últimos, princípios gerais, determinação
de um plano mundial, nos quais finalmente o todo ganha solidez e contexto.90

Assim sendo, além de ser necessário compreender por que motivo a Historik
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dispensa ao menos parcialmente a filosofia, mantendo todavia os traços de uma


ciência filosófica do espírito, deve ser perguntado se seria possível para a Historik
desatar o nó górdio percebido por Hegel na cultura científica alemã de fins do século
XVIII e início do século XIX. A pergunta ainda se impõe: como foi possível para
Droysen pensar a autonomia da história depois de Hegel? Sobressai de todo modo
uma visão resignada da história em ambos os autores. Walter Schulz observa que toda
e qualquer teleologia é capaz de retirar do homem a idéia de responsabilidade perante
a história; sendo a razão, o Estado ou a teodicéia os verdadeiros sujeitos da história, o
homem fica em uma posição bastante segura e confortável:

Os caminhos de Deus são estranhos e maravilhosos, mas Deus tem sempre em vista o
melhor para o homem. Em nossa época que se fez ametafísica mal se sente como esta
fé em uma regência divina – a providência na história – forneceu ao homem durante
séculos uma incondicionada sensação de segurança. Aqueles que se sentem
diminuídos e humilhados, tal fé os educou para que tivessem a paciência perante um

90
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh, p.7. Wir sprechen von historischer Entwicklung, von
organischem Zusammenhang, von Ursachen und Folgen, und beachten kaum, wie viel wir aus der
antizipierten Kunde des Resultats hineingetragen in den objektiven Verlauf der Dinge: Bald
theologische, philosphishce Voraussetzungen führen uns unbewusst dazu, letzte Zwecke, allgemeinen
Prinzipien, Bestimmung eines Weltplanes usw. nachzuweisen, in dem das Ganze erst Halt und
Zusammenhang gewinnen (…)
85

destino que lhes foi predeterminado, e para os ativos, esta mesma fé lhes dava a
consciência de ser um instrumento de Deus91.

Estaremos satisfeitos se a identidade entre ambos os autores tiver sido


estabelecida; caberá agora ver como tal visão resignada da história poderá se
desenvolver no pensamento teórico de Droysen.
Importa sobretudo afirmar por ora que a teleologia nos é muito mais próxima
do que imaginamos: admitida a base especulativa, ela dificilmente pode ser negada
integralmente. Na verdade, ao marcarmos claramente a idéia de que o sentido jamais
ou dificilmente se adquire de imediato, ou seja, de que ele se revela posteriormente, o
futuro passa a possuir importância inegável: para ficarmos em um exemplo bastante
trivial, imaginemos que somente uma primeira leitura de um texto que se pretenda
mais do que simplesmente informativo não seja na maioria das vezes suficiente para
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um entendimento que permita mais do que assimilação objetiva de seu conteúdo, mas
a elaboração de seus efeitos no leitor; se admitíssemos que um intricado texto de
filosofia ou que uma composição poética adquire sentido imediato, teríamos que
concordar que a linguagem neles presente nada mais é do que um instrumento a
serviço da expressão subjetiva de um autor. Analogamente, é o que está de alguma
maneira presente nas concepções de Droysen e Hegel a respeito do fim do
paganismo; não se trata tanto de tirar-lhes a autonomia e cair em desbragado
anacronismo, mas sim de jamais deixar de perceber que o sentido de um evento ou
fenômeno não se encerra naquilo que ele explicitamente é. Ao ser também para um
outro, ele adquire assim uma dimensão teleológica que dificilmente gostamos de
admitir; da mesma maneira que ainda mais difícil é ver a história expressa nos termos
metafísicos de uma ética passiva e resignada.

91
SCHULZ, W. Philosophie in der veränderten Welt. p.603. Die Wege Gottes sind seltsam und
wunderbar, aber Gott hat immer das Beste des Menschen im Auge. Es ist heute in einer
unmetaphysisch gewordenen Epoche kaum mehr nachzuempfinden, wie dieser Glaube an das göttliche
Walten – die Vorsehung in der Geschichte – jahrhundertlang den Menschen ein unbedingtes
Sicherheitsgefühl gegeben hat. Die Erniedringten und die Beleidigten erzog er zur Geduld dem
vorbestimmten Geschick gegenüber, und den Handelnden gab er das Bewusstsein, das Werkzeug
Gottes zu sein.
3.
História como ação: A Hermenêutica em Droysen.

Vimos no capítulo anterior que a ênfase na dimensão especulativa do


pensamento histórico, dimensão esta absolutamente indispensável para a própria
afirmação da autonomia da história, resulta em uma concepção resignada da história
teleologicamente expressa. Nossa tarefa, neste segundo capítulo, é mostrar como a
dimensão especulativa no pensamento de Droysen, fundada pela própria quebra de
uma evidente necessidade dos estudos históricos e do próprio sentido histórico, não
dispensará uma dimensão representativa, por ele tratada a partir da discussão
sobre a linguagem e a narrativa. Na verdade, a dimensão especulativa, através de sua
conseqüência teleológica, trará consigo a discussão da hermenêutica, termo, na
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verdade um método, cuja ambigüidade dará uma possibilidade representativa,


portanto ativa, à especulação que de alguma maneira perpassa toda a atividade
teórica. A quebra da imediaticidade vivenciada na especulação poderá ser análoga à
quebra da imediaticidade do entendimento – pressuposto de toda hermenêutica e
necessidade de esclarecimentos em torno do ato de interpretar – mas esta analogia
deverá necessariamente estar acompanhada de uma recondução às referências e às
circunstâncias temporariamente abandonadas na especulação. De imediato afirmemos
o que não entendemos por dimensão representativa: a faculdade representativa
continuará sendo um obstáculo para o entendimento das páginas seguintes se a
entendermos simplesmente como uma correspondência equivalente entre a atividade
subjetiva (do historiador) e a cena objetiva que se lhe apresenta1.
Vimos no capítulo anterior que a pedra fundamental de qualquer ciência do
espírito é o questionamento radical pela essência do próprio objeto com que lida –
lembramos, por exemplo, que Droysen sempre punha em questão o significado de
“história antiga”. Neste sentido, o rompimento da possibilidade de sentido imediato é

1
Cf. LIMA, L.C. Mimesis: Desafio ao pensamento. p.24 “O segundo obstáculo [de uma revisão do
conceito de mímesis. N.A.], associado ao anterior, é exposto pela concepção de representação,
entendida como a equivalência subjetiva de uma cena externa e objetiva, a qual, à semelhança do caso
anterior, deveria ser ultrapassada para que o crítico pudesse se concentrar na textualidade e dela não
exigir uma subordinação que impediria a própria compreensão da literatura e da arte.”
87

o primeiro passo da hermenêutica, ou seja, o método (quando não mais do que um


método) que lida com a quebra do entendimento e da compreensão. O fato porém do
significado de uma época não ser imediatamente acessível a si mesma, ou o fato das
representações que uma época faça de si mesma não satisfaça as gerações e épocas
subseqüentes, abre as portas para uma visão teleológica. Todavia, a mesma porta pela
qual entra teleologia, deixa passar ares para a hermenêutica, ou seja, para a
possibilidade de uma época, ao interpretar uma que a precede cronologicamente, não
tenha que se prender às exigências da objetividade histórica e se anular por completo,
buscando, por exemplo, uma linguagem que conspurque o mínimo possível as
expressões das forças históricas da época que toma como “objeto”. Ao tratar de uma
época pretérita, uma outra certamente saberá que usa uma determinada linguagem
que é sua, e não do objeto, ainda que também saiba que não poderá simplesmente se
transpôr para o que se lhe apresenta. E toda a hermenêutica desenvolvida por Droysen
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mostrará que o processo de conhecimento histórico será interpretativo, ou seja,


mesmo que possa ser dissecado, esta mesma dissecação apresentará na verdade a
crescente consciência da subjetividade daquele que conhece juntamente – jamais
anteriormente, jamais posteriormente – ao objeto escolhido. E ainda mais, como
veremos a seguir em Droysen, o método não será um caminho fixo, e tampouco será
sua apresentação: o objeto, por mais que Droysen ressalte o quão decisivo é o papel
daquele que conhece, será capaz de oferecer resistência, e no meio desta tensão o
historiador haverá de encontrar a medida certa para que a corda soe, e não arrebente
ou afrouxe ao pender excessivamente para um dos lados.
Ressaltar a dimensão representativa será sobretudo fundamental para que
entendamos a possibilidade de ver a história como atividade. Não se trata porém de
uma perspectiva diametralmente oposta à anterior, e assim teremos cumprido o
objetivo se mostrarmos que a história como atividade nasce, supera (ou depende, se
preferirmos) da história como resignação. Neste movimento que nos levará da
resignação à ação, iniciaremos partindo da premissa de que a ação não poderá ser no
princípio voluntarista ou decisionista, mas sim mediada, fruto da reflexão. Tentar
compreendê-la como lembrança será o que nos ocupará em um primeiro momento,
sobretudo como uma lembrança culpada, e, por isso, participativa.
88

3.1.
Lembrança.

Ainda que presente em alguns momentos, o termo Erinnerung (lembrança)


não ganha grande destaque na obra de Droysen, ao menos jamais como conceito
central para o seu método. Todavia, ele nos parece evidentemente central para a
constituição de uma consciência histórica fundada na hermenêutica. A própria
sinuosidade da idéia de lembrança nos obrigou a realizar uma divisão que nos permite
observar como a lembrança, primeiro passo para uma concepção de história mais
ativa, gradualmente vai se libertando da concepção desenvolvida no capítulo anterior,
de tons muito mais teleológicos, e, por isso, resignados. Em um primeiro momento, a
lembrança será uma lembrança culpada, em que uma grande estrutura ainda se faz
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presente, mas sua grandeza se revela justamente na consciência culpada da


participação do intérprete, daquele que a decifra. Esta forma de lembrança todavia
adquirirá, ainda entendida como culpa, um caráter afirmativo mais presente no que
diz respeito à afirmação da identidade do intérprete para com este próprio processo
por ele desvelado, e, para entendermos o que ela quer dizer, será novamente
fundamental perceber, ela deverá ser entendida a partir do conceito hegeliano de
força. Entendida como força, a lembrança passa a ter algum domínio sobre a “lei”
que a oprimia. Assim, a lembrança passa a poder ser compreendida também como
meio de estabelecimento de continuidade, idéia que, apesar de importante, não tem a
centralidade geralmente atribuída pela bibliografia especializada. Por esta razão, a
lembrança deverá ser compreendida tabém como uma lembrança que sempre realiza
uma distância de si mesmo.
89

3.1.1.
Lembrança e culpa.

Caso estejamos empenhados em entender o porquê da urgência da Historik,


seria realmente o caso de compreender a gênese do pensamento histórico e de seu
método, e, por mais que a pergunta pelo sentido do próprio objeto do conhecimento
histórico seja, pelo menos no contexto intelectual no qual respirava Droysen, sempre
uma pergunta autorizada como da filosofia do espírito, de alguma maneira Droysen
terá que conciliar sua atração pelas particularidades sem as converter em
“materialidades” dispersas e fechadas em si mesmas ou completamente subordinadas
a um todo acabado. Sua tarefa consistirá em determinar formalmente a sensibilidade
para as contingências, que jamais terão um sentido em si absoluto, tampouco serão
meros casos subordinados a uma lei qualquer. Entender o que é a contingência é
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tarefa difícil, tanto mais quando enraizada em uma experiência comum a todos os
homens, não sendo de posse exclusiva dos profissionais de história:

O homem ilumina o seu presente com um mundo de lembranças, lembranças


jamais arbitrárias, caprichosas, mas lembranças tais que sejam um desdobramento
e significação daquilo que ele possui em si e em torno de si como resultado dos
tempos passados; ele tem esse momento primeiramente de modo imediato, sem
reflexão; ele os tem, como se não os tivesse, e somente quando os observa e os traz
à consciência, reconhece o que dele neles existe, a saber, a compreensão de si
mesmo e seu condicionamento e determinação imediatos. Ele nada seria sem eles,
(…) e somente com este reconhecimento adquire conteúdo e profundidade. (…)
com esta percepção profunda, Ésquilo faz Prometeu dizer que fez os homens
enxergarem, quando somente viam, e escutarem, quando somente ouviam 2

A idéia de presente nesta passagem está impregnada pela sensação de


fugacidade e ausência de sentido, mas afirma desde o início a sua superação e
2
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p. 10. Er umleuchtet seine Gegenwart mit einer Welt von
Errinerungen, nicht beliebegen, willkürlichen, sondern solchen, die die Entfaltung, die Ausdeutung
dessen sind, was er um sich her und in sich als Ergebnis der Vergangenheiten hat; er hat diese
Momente zunächst unmittelbar, ohne Reflexion, er hat sie, als habe er sie nicht, erst indem er sie
betrachtet und zum Bewusstsein bringt, erkennt er, was er an ihnen hat, nämlich das Verständnis seiner
selbst und seiner zunächst unmittelbaren Bedingheit und Bestimmtheit: Er wäre nichts ohne sie (…)
Erst mit diesem Erkenntnis gewinnt er Inhalt und Tiefe (…) und mit dieser tiefer Einsicht lässt
Aischylos den Prometheus sagen, er habe den Menschen, die sehend nichts sahen und hörend nichts
hörten...
90

assimilação: se assim não fosse, a contingência limitar-se-ia a ser de fato pouco mais
do que o absurdo. Todavia, o presente já não está inteiramente destacado do passado
que o forma e soçobra se largado a si mesmo. Em sua fugacidade e vanidade, adquirá
sentido somente se “reviver os passados ideais”, e, assim, o presente não pode servir
como fonte de si mesmo, precisando necessariamente da mediação através do
passado para que possa adquirir consistência, e, assim, “tornar presente aquilo que
foi” - convém ressaltar ainda que este movimento de lembrança serve como “reflexo
da eternidade de Deus”.3 De alguma maneira, podemos falar neste caso em uma perda
de inocência: não queremos soar dramáticos, mas sobretudo trata-se aqui, neste trecho
de Droysen, de uma consciência do lugar do homem, ainda que por vezes seja de um
(primeiro) estranhamento da terra que o envolve e circunda, um distanciamento
decisivo daquilo que era próximo, dado e seguro. E a caracterização da culpa
dependerá do que apresentamos no primeiro capítulo: ou seja, lembrando o que nos
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diz Hegel sobre destino em seu texto de juventude sobre cristianismo, chegávamos à
conclusão de que a consciência tardia do sentido pleno da ação revela culpa. E a
culpa jamais se mostra na ação em si, mas sobretudo em seu efeito posterior, como
uma revelação. Em um momento da Fenomenologia do Espírito, em que Hegel trata
da culpa e sua relação com a eticidade (Sittlichkeit), o filósofo chega brilhantemente à
definição da ação como culpa – mas não já da ação como um deslocamento físico
propriamente dito, mas sobretudo como aquilo que modifica da mesma maneira que o
ato prometéico descrito por Droysen era ele mesmo a mudança essencial:

(…) está à espreita da consciência-de-si ética uma potência avessa-à-luz que,


quando o fato ocorreu, irrompe, e a colhe em flagrante. (…) O ato é isto: mover o
imóvel, e produzir o que antes só estava encerrado na possibilidade; e com isso
unir o inconsciente ao consciente, o não-essente ao ser. Nessa verdade, o ato surge
assim à luz do dia – como algo que está unido um elemento consciente a um
inconsciente, o próprio a um estranho4.

3
No capítulo anterior citamos a parte que antecede imediatamente a passagem referida. Nela lemos:
“(…) o espírito finito, e somente ele, tem a capacidade, de, com a lembrança e a esperança, dar ao
momento fugaz uma abrangência que seja um reflexo da eternidade de Deus.”
4
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. p.325.
91

O ato será sempre ato culpado, segundo Hegel, que terá antes da passagem
acima escrito que “o agir mesmo é (…) cisão, [que consiste em] pôr-se para si mesmo
(…) Inocente, portanto, é só o não-agir – como o ser de uma pedra; nem mesmo o ser
de uma criança é inocente”.5 Podemos então dizer que a consciência histórica, para
Droysen uma consciência prometéica, equivale à definição de ato que encontramos
acima em Hegel. O que mais salta aos olhos na passagem de Droysen lida à luz de
Hegel, e que de alguma maneira já indica uma possibilidade de diferença em relação
à concepção resignada da história, é a ênfase na responsabilidade que a própria
lembrança desperta. Ter se utilizado de Ésquilo ilustra o surgimento desta consciência
histórica que busca escapar da fugacidade. Seu acerto resulta da obra do tragediógrafo
sempre haver sido vista como uma formidável representação da consciência histórica
culpada. Ainda na década de 30, Droysen dirá sobre Ésquilo:
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Suas tragédias não começam, como noutros poetas, com uma bela paz que é depois
desestabilizada por um infortúnio. O que precede suas tragédias é um
constrangimento obscuro, latente, que se agarra nas raízes da vida (…) O conteúdo
de suas tragédias não é um fato puro, mas sim o desvelamento do mistério de que o
homem nasce culpado e vive com a culpa. Esta culpa é a existência que se quer
pertença de si mesma, é a liberdade e a ação.6

A passagem sobre Ésquilo é uma antecipação do que Droysen diria mais de


vinte anos depois na Historik: o desvelamento do mistério é a revelação da culpa que
sabe que nada seria sem o passado que a determina, ainda que a culpa seja fruto
somente da reflexão. Fundamental todavia é ressaltar o que há de positivo na culpa
em Droysen: existência que se quer pertença de si mesma.
E neste movimento em que a culpa passa a ser positiva, é necessário lembrar
novamente o que foi exposto no primeiro capítulo: o impulso que lança em direção ao
futuro possibilitaria a fruição desta existência que se quer a si mesma, ou estaríamos

5
Ibid, p. 323.
6
DROYSEN, J.G. Kleine Schriften zur alten Geschichte. pp.280-1. Der Anfang seiner Tragödien ist
nicht wie bei andern Dichtern ein schöner Friede, den gerade jetzt ein finsteres Missgeschick (…) stört.
Was seinen Tragödien vorausliegt ist ein dunkles, schweigendes Verhängniss, das an den Wurzeln des
Lebens nagt. (…) Der Inhalt seiner Tragödien ist nicht ein blindes Fatum, wohl aber die Enthüllung
des Mysteriums, dass mit dem Menschen die Schuld geboren ist und mit ihm lebet.(…) diese Schuld
ist das Dasein, dass sich selbst gehören will, ist die Freiheit und die That.
92

antes envoltos em um novo problema, que se põe em outro nível? O impulso da


vontade poderia não ser inocente, mas ao mesmo tempo não se dava em desacordo
com o que se chamaria depois de horizonte de expectativas? Dito de outra maneira:
ao falar de Trieb, Hegel parece pressupor uma certa inocência, ao menos uma latência
em que se expressa uma naturalidade que ele teria negado com mais veemência na
Fenomenologia do Espírito ao afirmar que toda ação é culpada. Algo semelhante não
sucede com o movimento positivo da culpa? Lamentavelmente isto não é
desenvolvido por Hegel em sua filosofia da história, e explicitamente não o será
também por Droysen, mas no historiador a relação entre culpa e ação nos parece mais
homogênea. Por que o conhecimento do passado, a princípio opressor, leva a uma
necessária significação do mesmo, que assim se transforma perante os olhos que antes
somente viam sem enxergar?
Relembrando as últimas palavras da citação feita acima: a culpa nasce com o
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homem, está presente em cada ato seu, mas é também o lugar de sua liberdade. Abre-
se a fresta para que entendamos com mais vagar a dimensão ativa da culpa. E a
transposição é inevitável: o novo lugar do homem, se culpado, também é aquele que
ocupa o lugar central da criação, sendo reflexo da eternidade. Haverá algum sinal de
mudança de compreensão da história, posto que a experiência demonstrada pela
lembrança é ser reflexo da eternidade de Deus? Ainda não estaríamos nos
movimentando dentro de uma concepção metafísica-teológica de história, ou seja,
dentro de uma concepção resignada? Não, se entendermos que toda culpa pressupõe
participação na dita estrutura misteriosa. Não devemos nos espantar com mais uma
semelhança em relação a Hegel, pois novamente o discurso de Droysen habita à
sombra de seu pensamento, ainda que de maneira mais sutil do que apresentamos no
primeiro capítulo. O problema não reside pois na diferença entre os dois autores em
si, mas sobretudo na distinção entre ação e resignação, e nem tudo em Hegel aponta
para uma visão resignada de história. Mas retomando o argumento: se falam de uma
culpa presente em toda a lembrança superadora da experiência da fugacidade, as
palavras de Droysen por outro lado soam quase platônicas. Em um texto sobre Hegel,
Gadamer indica a semelhança do filósofo com Platão, semelhança todavia de caráter
eminentemente lógico:
93

Este mundo supra-sensível deverá ser o mundo verdadeiro. Ele é a permanência na


fugacidade (….) mas é nisto justamente que o mundo real adquire sua consistência,
ou seja, que constantemente há o movimento de tornar-se-outro. Constância não é
meramente uma oposição à fugacidade, mas é ela mesma a verdade da fugacidade.7

Admitindo que identificamos este “mundo supra-sensível” com o que


Droysen chama da eternidade de Deus refletida, cabe ainda ressaltar que Gadamer
salientará que Hegel não fará desta consciência da fugacidade somente uma forma
prévia da “consciência infeliz”. Na verdade, a busca do que está para além das
aparências fugazes é a superação da consciência que se experimenta como percepção
(Wahrnehumng), ou seja: percepção que procurava ver um objeto como um conjunto
de propriedades que se relacionariam entre si, constituindo assim sua universalidade.
Permitindo-nos uma síntese por demais breve das conclusões de Hegel, gostaríamos
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de enfatizar que ao mostrar que estas relações das propriedades da coisa, do objeto,
são em si mas também para um outro, a consciência experimenta seu limite nesta
figura da sua experiência. Para ficar com o exemplo do filósofo, um cubo de sal é
branco e salgado, mas branco e salgado não se excluem (excluem o negro, o doce), e
assim o cubo é branco e também salgado, e este “também” é estabelecido pelo
observador, ainda que, como nota Paulo Meneses a “consciência ainda não se
reconhece neste objeto refletido”.8
A referência de Hegel, como nota Gadamer, é a química e a sua
correspondente descrição de propriedades de um objeto, e, neste sentido, não nos
espantaria que Droysen, em sua tentativa de tirar a ciência histórica do domínio das
ciências naturais e de suas leis explicativas, tenha bebido novamente da fonte
hegeliana – inclusive porque, como sugerimos a partir de Gadamer, não se trata de
buscar o reino silencioso e imóvel das leis. Sim, há algo de “enganoso” nas
aparências, mas o essencial a ser buscado seria exatamente a mudança, o movimento,
e não algo que ocorre à revelia do mesmo, ou ainda, jamais ver como cristalizado o

7
GADAMER, H.G. “Die verkehrte Welt” IN: FULDA, H. Materialen zu Hegels Phänomenologie des
Geistes. p.113
8
MENESES, P. Para ler a Fenonemologia do Espírito, p.45.
94

que é apenas uma configuração do movimento. Claro que já estamos tratando da


posição ocupada pelo observador, que, se tivesse que simplesmente observar as
propriedades do objeto, consideraria este mesmo como algo que se determina para
além das propriedades, e, mais ainda, ele mesmo, o observador, não se veria como um
momento de determinação do sentido deste objeto, estando assim de alguma maneira
isento de qualquer responsabilidade9. Há de fato leis: mas estas são limitadas, não
somente porque são muitas e particulares, determinadas caso a caso, bem como
mesmo na essência de uma lei específica há uma divisão em dois elementos que não
necessariamente derivam um do outro (a lei do movimento se divide entre espaço e
tempo, ou distância e velocidade). Estaria então o sentido de ordem do lado dos
eventos e dos fenômenos? Ou esta ordem seria mesmo esta estrutura misteriosa cujo
desvelamento dá ao homem sua culpa? Em parte sim, mas isto não bastaria: a culpa
seria a constante falta que o homem sente em si mesmo. E aqui se apresenta
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totalmente modificada a idéia de teleologia: se o passado era fonte de culpa, i.é,


responsabilidade, o futuro não o será menos; se há uma inegável dimensão teleológica
na estrutura do homem, ela necessariamente indica que ele é em seu porvir, em seu
devir. Ou seja, ele é o que ainda não é e somente pode vir a ser.
Neste momento, a idéia de culpa começa a mostrar uma face ainda menos
resignada, e o será desta vez como força. Nela, veremos que a lei opressora, que o é
justamente por demonstrar a culpa daquele que a desvela, se mostra menos terrível ao
revelar sua face contigente, ou diríamos ainda, contingente porque elaborada, fruto de
uma procura. Esta essência a ser procurada poderia ser compreendida como um
movimento, ou como prefere Gadamer, como força. Arriscamos ramificar nosso

9
A atualidade de tal questão nos parece indiscutível, principalmente quando estamos tratando de um
autor alemão. A discussão em torno da culpa em relação ao passado é bastante presente na
historiografia e na teoria da história produzidas na Alemanha desde o fim da Segunda guerra mundial.
Por outro lado, sempre vale a pena dizer que é um contrasenso afirmar que os alemães têm o
monopólio da culpa na história ocidental – qualquer povo, sociedade ou grupo histórico que em algum
momento nega sua pópria identidade e, em função disto, encontra dificuldades de se orientar para o
futuro precisa discutir seriamente o papel da culpa, ou seja, da participação presente de eventos que
cronologicamente pertencem ao passado, ou pelo menos cujos seres sociais ainda agentes não foram os
perpretadores “empíricos” e “de fato” dos eventos paralisadores, traumatizantes ou condenáveis. A
culpa deve ser tratada como categoria da consciência histórica, e não simplesmente como uma
característica de uma vaga psicologia coletiva. Todo nosso esforço aqui se concentra desde sempre em
mostrar como a culpa está no cerne de qualquer hermenêutica.
95

argumento, entrando, mesmo que superficialmente, no terreno daquele que é um dos


conceitos mais espinhosos da Fenomenologia do Espírito. Mas, para que possamos
ao fim e ao cabo compreender a relação de si consigo mesmo através da idéia de
lembrança, torna-se indispensável esta breve glosa. Enfim: a “força”, para Gadamer, é
um termo fundamental para o próprio historiador – e neste ponto tem inteira razão.
Mostrando que a lei não se reduz a uma expressão de fenômenos naturais Gadamer
dirá que

(…) a força, que é mais do que sua expressão, já é sempre sua própria liberdade. Isto
possui significado decisivo para o historiador. Ele sabe que tudo poderia ter
acontecido de outra maneira. Todo agente poderia ter agido de modo diferente. A
força que faz a história não é um momento mecânico.10

A leitura da passagem acima nos põe uma questão que remete ao próprio
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pensamento de Droysen: a idéia de destino esboçada no capítulo anterior deverá


necessariamente estar desprovida de um fundamento mecânico e, por isso, pelo
agente saber que poderia ter sido diferente – mas não foi – e que o intérprete também
o saiba, já nos mostra que a consciência desta constância, seja ela mundo supra-
sensível ou espelho da eternidade de Deus, já é sempre responsável. Assim pode-se
pensar de outra maneira a visão resignada da história através da idéia de destino. Para
que seja pensada a idéia de destino – e, como veremos mais adiante, a idéia de
presente – será necessário entender força como movimento. É bem verdade que a
idéia de força, como expressão e não simplesmente como reflexo e reação, poderá
estar carregada de subjetivismo psicológico, ou seja, a força como expressão natural
de um sujeito que se lança no mundo e contra ele. Este será um risco do qual o
próprio Droysen estava consciente e que tentaremos depois mostrar como pode ser
contornado, através da própria autocrítica liberal e burguesa que Droysen fará a partir
da idéia de Bildung. Mas o que deveremos encaminhar é o seguinte: como a força
será a base para entender que é consciência de se saber observador, ela é

10
GADAMER, H.G. Wahrheit und Methode. p.210. Denn Kraft, die mehr ist als ihre Äusserung, ist
immer schon Freiheit. Denn ist für den Historiker von entscheidender Bedeutung. Er weiss: Alles hätte
auch anders kommen können. Jedes handelnde Individuum hätte auch anders handeln können. Die
Kraft, die Geschichte macht, ist nicht ein mechanisches Moment.
96

necessariamente participativa e culpada, ela não será psicológica e arbitrária, sendo


assim sobretudo entendida como uma relação do si (selbst) consigo mesmo, que
Gadamer descreve como vitalidade (Lebendigkeit), ou, nos termos de Droysen, a
existência que se quer a si mesma. Esta vitalidade se determina sobretudo através da
consciência, segundo Gadamer possível desde Hegel, de que este mundo é também
um mundo supra-sensível, e assim nenhum fenômeno ou evento é simplesmente o
caso de uma regra geral, como poderia pensar um moralista. A experiência que a
consciência faz de si mesma prova que “estar flexionado sobre si mesmo significa:
voltar-se contra si mesmo, relacionar-se consigo mesmo, e isto quer dizer: estar
vivo”.11 Esta vitalidade não se confunde com uma espontaneidade entendida no
sentido romântico vulgar, mas antes com uma inquietude (Unruhe), como disse
Walter Schulz12. A escolha do vocábulo feita por Schulz é bastante feliz: pois ele
indica o oposto à calmaria das leis (Ruhe der Gesetzlichkeit). Esta mesma vitalidade
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será então o veto tanto ao universalismo das leis como ao sujeito cuja possibilidade e
saber sobre o próprio ato de representar se acredita para além daquilo que ele mesmo
representa, logo, a consciência de que sujeito e predicado da proposição especulativa
se determinam mutua e simultaneamente. Sem tal pressuposto, não há hermenêutica
possível. Ou seja, a consciência se quiser conquistar sua reflexividade, o fará a partir
somente da experiência de que todo Em-si é para ela, e do qual ela não se livrará –
será constantemente lembrada de si mesma, mesmo com a experiência da fugacidade;
ou antes por causa mesmo de tal experiência, que deixa de ser meramente pesarosa e
indesejável para ser fundamental no processo de formação da consciência histórica.
A lei que antes era inabalável (“calma”, neste sentido), mostra-se como produto desta
força.

11
GADAMER, H.G. “Die verkehrte Welt”. IN: FULDA, H. & HENRICH, D. Materialen zu Hegels
Phänomenologie des Geistes p.120. Und das ist im dialektischen Beweisgang der Phänonemologie: es
wird sich ergeben, dass In-sich-verkehrt-sein heisst: Sich-gegen-sich-selber-kehren, sich zu sich selbst
verhalten, und das ist: Lebendigt sein.
12
Cf. SCHULZ, W. Philosophie in der veränderten Welt. p. 535.
97

3.1.2.
Lembrança e continuidade.

Partindo da premissa que a força é capaz de ser a experiência desta vivência


inquieta, poderíamos aplicar o mesmo para a lembrança que o homem histórico
realiza em seu presente? A lembrança acomoda, regenera ou seria um terreno
instável? Retornando a Droysen, poderemos ver que esta consciência poderá ser
entendida como o presente; uma condição que necessariamente precisa superar, mas
cuja superação também pressupõe um pertencimento inicial do qual jamais se verá
livre. Ao dizer que o presente passa a possuir o passado a partir da reflexão, torna-se
necessário pensar que o presente adquire consistência própria somente através da
mediação, e, assim, Droysen não é o classicista a afirmar que o passado se preserva
por si mesmo, por seu valor intrínseco e imediato – sequer precisaria do
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reconhecimento, e, portanto, de uma determinada forma de mediação, bastando ser


receptivo como o mais ingênuo historiador poderia ser13.
Pode-se então pensar o presente de duas maneiras, ou seja, como imediato,
possivelmente o presente em que se vive no meio de um turbilhão e da
multiplicidade, indefeso e passivo, e o presente como espelho da eternidade de Deus,
resultado da mediação dada na lide com a contingência. Primeiramente, podemos
dizer o seguinte: se para Droysen o presente deve, através da reflexão, possuir o
passado, de alguma maneira um passado cujo desaparecimento até se lamenta, deve
ser pois conquistado – mas não recuperado tal qual era. Logo, a reflexão todavia
nasce justamente desta certeza da perda de sentido imediato, e, por isso, não se pode
dizer que Droysen se comporta como um conservador ao demonstrar até traços de
luto pelo desaparecimento da Europa pré-revolucionária e acima de tudo pré-
industrial. Consciente do vácuo em que habita, Droysen mostra sobretudo a história
como lugar da consciência do presente, ou melhor, da situação em que o presente se

13
Cf. a definição de “Clássico” dada por Hans-Georg Gadamer em Wahrheit und Methode, pp. 290-5,
em que o filósofo identifica como clássico, ou obra clássica, aquilo que se preserva em si mesma e pela
sua própria estrutura.
98

encontra – uma consciência passiva é uma contradição em termos, caso queiramos


seguir Droysen.
O primeiro sentido de presente deve ser pois superado, e o segundo parece ser
o resultado desta superação, no qual a própria lembrança, ao invés de ser o passado
apresenta-se como um fardo opressor, na verdade serve como meio de assimilação e
constituição do que a tradição hermenêutica posterior a Droysen chamaria de
“vivência” (Erlebnis): “o que se entende por vivência não é meramente uma
passagem fugaz na corrente da vida da consciência – é entendida como uma unidade
e através dela uma nova forma, de ser uma unidade”.14 Ao apresentar o sentido de se
estudar história antiga, Droysen continuamente defendia a tese de que a história se
renovava a cada instante. Este pensamento também se mostra aqui ao vermos que o
presente pode ser tanto herança passiva do passado como conquista consciente deste
mesmo passado, o que daria ao presente a possibilidade de, nas palavras de Droysen,
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refletir a eternidade divina. Caso se pretenda manter o equilíbrio entre o presente


fugaz e o presente como espelho da eternidade de Deus, pode-se pensar que esta
herança deve ser, de alguma maneira, conquistada pelo homem caracterizado como
ser histórico.
A partir do trecho citado no início do capítulo, pode-se perceber que é a
consciência da perspectiva (passado internalizado, não simples arbítrio expresso em
opiniões) que demonstra que este passado internalizado não é uma autoridade a
traçar-lhe previamente o caminho, sendo antes um elemento que entra no jogo de
possibilidades, e, assim, se o homem é devir, e não uma essência determinada que se
cumpre bem ou mal, por outro lado este devir não traz em si a marca de um plano.
Todavia, a questão é espinhosa: se o passado como algo previamente dado pode ser
opressor, por outro lado, o passado como algo que simplesmente abandona o homem
pode ser tão desesperador como opressor. Como internalizar um passado
manifesto na língua, na religião, no Estado, sendo que este passado não mais se
comunica diretamente com os homens contemporâneos? Como entender, nestes

14
GADAMER, H.G. Wahrheit und Methode. p.72. Was als ein Erlebnis gilt, das ist nicht mehr bloss
ein flüchtig Vorüberströmendes im Strome des Bewusstseinslebens – es ist als Einheit gemeint und
gewinnt dadurch eine neue Weise, eins zu sein.
99

termos, a história como lembrança? Da mesma maneira que no primeiro capítulo


Droysen não se perguntara explicitamente pela legitimidade da autonomia da ciência
histórica (dada a sua “afinidade não-eletiva” com Hegel), agora parece que o projeto
de uma hermenêutica se vê em situação embaraçosa: como é possível o diálogo com a
ausência de sentido? A nossa preocupação não se desgarra do propósito do capítulo:
quebrado o sentido, como ativar uma dimensão representativa? Se não se desgarra,
revela uma face oposta: é o momento em que a lembrança é o inverso da culpa.
Nesta, reconhece-se o feito, mesmo que empiricamente o agente do reconhecimento
seja diferente do agente realizador do ato produtor da culpa. Aqui, há o
estranhamento, sem que fique necessariamente claro se os agentes são empiricamente
idênticos.
Cabe-nos agora tentar encaminhar o tratamento da questão. Podemos ver
desde logo que, em Droysen, a visão absoluta é descartada, e o excesso de sentido,
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para ele, é sempre uma máscara que esconde um jogo ardiloso a forjar coerências,
presentes na estrutura orgânica e teleológica do mundo histórico, estruturas
emprestadas de outras áreas que lidam com outros objetos, seja o mundo natural, seja
o universo especulativo a buscar os conceitos de Verdade, de configuração do
Espírito Absoluto ou de Deus. Se esta é uma maneira de fazer falar o passado, por
outro lado, a consciência de que o conhecimento histórico só é como conhecimento
perspectivado porque internalizado deve, segundo as palavras de Droysen, abrir um
horizonte de possibilidades e ser, ao invés de defensivo, criativo. Da mesma forma
que se disse que o evento histórico não pode ser mera ilustração de uma lei tampouco
uma verdade em si mesmo, podemos afirmar que para Droysen o homem não está
determinado biologica ou socialmente pelo seu nascimento; na verdade, ele não tem
qualquer direito natural ou humano previamente dado, e, assim, precisa conquistar
sua própria humanidade, donde inferimos que o passado jamais é dado, e
compreender como se é determinado pelo Estado, pela língua e pela religião, para
ficar nos exemplos de Droysen, não é algo que simplesmente se dá imediatamente.
Também é necessário conhecer a própria dependência e a própria determinação. Se
suas determinações biológicas ou culturais fossem conteúdos a preencher um
receptáculo passivo, o passado não sofreria as transformações constantes e pontuais
100

por cada vez que encontrasse um novo corpo no qual se movimentasse, e, por isso, o
passado, ao invés de ser dado, é uma possibilidade tanto como o futuro. Também
pode ser perdido.
Ou seja, conquistar sua própria humanidade é, através da revivescência dos
passados vividos, nas palavras de Droysen, “colocar-se em posição privilegiada no
presente resultante, e deste modo, já que ele está na história e a história está nele,
justamente por isto ele se situa sobre a monotonia do restante da criação, saindo de
uma mera existência periférica para um ponto central”.15 Esta passagem é
fundamental, pois a partir dela poderia ainda ser dito que, se o homem ocupa este
ponto central, ele desempenha um papel superior ao do representante de uma
tradição, mero portador de lembranças de tempos supostamente gloriosos. Afinal, se
o passado o determina e lhe abre possibilidades, ou seja, se não somente ele está na
história como ela pode estar nele, mesmo estas condições podem ser perfeitamente
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alteradas. Mesmo entendido como futuro do passado, dificilmente pode-se encontrar


em Droysen uma acepção do presente como lugar de repouso, em direção ao qual
todo o passado converge. A consciência histórica “pode fixar a onda de luz” (sie
vermag, die Schalwelle zu fixieren), mas não a cristaliza, nem passa a ser um ponto a
que toda a variedade do passado se reduz. Permanecendo na linguagem de Droysen, o
presente, como ponto central do conhecimento histórico, é o espelho onde se reflete a
eternidade de Deus, mas não é a eternidade. Mais ainda: a lembrança não é o espaço
em que se conserva o passado, mas precisa ter necessariamente uma dimensão
criativa, pois, ao se tornar consciente da tradição que a antecede, por ser consciente
de sua situação, sem todavia repeti-la passivamente, ele passa a ocupar o “lugar
central” da criação. Resumindo: há o acesso à totalidade, mas dela só se tem o
reflexo; mas neste acesso, em que se serve de espelho, realiza-se muito mais do que
uma simples repetição. Ao ser espelho da eternidade divina, o homem cria, e, por
isso, ele só é homem, ou seja, só é histórico se, em reconhecendo sua própria
historicidade, não se comportar passivamente perante sua herança. Através da

15
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.14. (…) sich in dies Niveau der gewordenen Gegenwart
hinaufarbeitet, dadurch also, dass er in die Geschichte und die Geschichte in ihm ist, eben dadurch
erhebt er sich über die Monotonie der übrigen Schöpfung stellt, ihn aus dem blossen peripherischen
Dasein zu einem neuen Mittelpunkt macht.
101

participação que a própria consciência desta hereditariedade implica – afinal, não se


pode falar mais de ingenuidade proveniente de toda postura passiva – a interferência
criativa na história torna-se possível:

No mundo histórico, não são as analogias, mas, pode-se dizer, as anomalias o


elemento motriz. Sobre estas se debruça o método histórico. Através da indução
feita através do particular, o método histórico, com o que lhe é dado observar,
chega ao geral. Mas este geral não é uma lei; o método histórico também busca
analiticamente, a partir dos fenômenos, a sua essência, mas esta essência não é um
substrato material com atribuições imutáveis.16

O que pretende Droysen com tal passagem? Ataquemos pela porta dos
fundos: por que não é a analogia o elemento motriz das forças históricas? Apostar em
uma concepção analógica seria pressupor que há uma ordem na qual os entes que a
habitam se correspondem entre si e com o princípio superior que os sustenta. A
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anomalia é o fruto inesperado de um processo cujas leis até então eram tidas como
conhecidas, e assim, o surgimento do novo não exigiria daquele que vive a
consciência como consciência culpada e fragmentada em si mesma, uma nova
atividade de atribuição de sentido?17 Mas, se Droysen fala de uma totalidade sem lei,
é de se pensar que esta anomalia não passa a ser um corpo estranho dentro de um
contexto maior. De alguma maneira, é a demonstração da própria criatividade do
passado que se mostra em ação, ainda que, através da anomalia e seu criatividade, se
perca completamente a idéia de estabilidade concreta do passado – a perda de
estabilidade pode suscitar tanto o luto, mas também um novo significado. O passado
perde sentido como ganha um novo. A fórmula está elaborada: o presente, ou por
outra, o instante, não é analogia da criação divina, mas também deve ser espelho da

16
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.21. In der geschichtlichen Welt sind nicht die Analogien,
sondern, man könnte sagen, die Anomalien das Bewegende. Auf diese und ihr Verständnis wendet sich
die historische Methode. Auch sie summiert durch Induktion aus dem Einzelnen, was ihr zur
Beobachtung vorliegt, ein Allgemeines, aber dies Allgemeine ist nicht ein Gesetz; auch sie sucht
analytisch aus den vorliegenden Erscheinungen deren Wesen, aber dies Wesen ist nicht ein stoffliches
Substrat mit unveränderlichen Attribuitionen.
17
Não cabe aqui a discussão direta com a teoria da mímesis que se dá no campo da teoria literária, mas
uma referência é inevitável e obrigatória. Vemos que, já em Aristóteles a analogia não dá conta nem do
aparato discursivo do homem nem da estrutura que organiza a physis. Portanto, há sempre uma falha
que, seguindo Aristóteles, daria à obra de arte um lugar que seria mais do que imitação do dado. É o
novo a ocupar uma falha essencial do homem e da physis. Cf. LIMA, L.C. Mimesis: Desafio ao
pensamento. p.38.
102

eternidade de Deus. Reflete, sem ser uma simples derivação, estando, como diz
Droysen, no ponto central da criação. Da mesma maneira, estas anomalias, ao longo
da história, justamente por sempre refletirem a eternidade de Deus, fazem parte de um
todo, que, todavia, não é um substrato de atribuições imutáveis, e, assim, não há o
primado de um lado sobre o outro, pois se revelado antes dos eventos, a totalidade
engole as particularidades, e, se apenas baseada no material e no aqui e agora, cai-se
em um objetivismo tosco e fragmentado em que a realidade aparece como uma
coleção de dados indistintos. Pensar a anomalia como objeto de estudo histórico
ajuda inclusive a pensar o que significa este lugar central ocupado pelo homem,
afinal, já se viu que, em Droysen, esta preocupação é decisiva, ainda mais quando se
corre o risco de ver nele um autor conservador e tradicionalista, que lamenta a perda
de um passado natural e original que deu lugar a um presente impiedoso. Tal
consciência angustiada não é o lamento pela naturalidade perdida, indicando por
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outro lado a importância da consciência de que todo conhecimento histórico é


situado, ou seja, perspectivado e lembrado, e, além disso, precisa ultrapassar as
aparências materiais. A anomalia é o lugar do homem. Mais ainda: a anomalia é a
própria forma que o destino assume, o evento surpreendente (trágico) que, de alguma
maneira, ilumina todo um processo através de uma lei que jamais poderia ter sido
desvendada antes de seu próprio transcorrer. A anomalia é o objeto constituído pelo
que Hegel chama de “força”, ou seja, a reunião dos elementos que não
necessariamente decorrem um do outro. E vem justamente daí seu caráter
contingente.
O que se nos apresenta pode indicar um certo desafio: ao ser reflexo da
eternidade de Deus, o homem ocupa o lugar central da criação; com isso, deixaria ele
de ocupar o lugar resignado até então reservado pela filosofia/teleologia da história?
Ao ser “anomalia”, rompe ele com todo um horizonte de expectativas, com os hábitos
e os cálculos e pode ele mesmo surpreender a própria idéia que tinha de providência?
O problema de alguma maneira já vem sendo tratado pela literatura
especializada. Hans-Michael Baumgartner percebeu que o conceito de história de
Droysen não pode ser simplesmente visto através do que aqui chamamos de
concepção resignada – tampouco será o seu conceito de história simplesmente
103

baseado no voluntarismo decisionista e utópico. Podemos falar em continuidade, mas


não nos termos propostos pela filosofia da história. Para Baumgartner, a razão de ser
da Historik droyseana estaria pois

(…) na experiência moderna de uma ameaçadora perda de historicidade, bem como


na experiência da ameaça da impossibilidade de compreender a história a partir da
razão e do espírito. Continuidade significa história, mas não como mera sucessão de
fatos que se somam uns aos outros, e nem como desenvolvimento a priori de si e
pleno de sentido de um espírito entendido como absoluto18

A solução que podemos encontrar no conceito “continuidade” nos indicaria


um caminho interessante. Se a continuidade é a forma através da qual a história pode
adquirir sentido, o será através de uma construção, construção esta que se cria na
angústia de uma perda de historicidade, como disse Baumgartner, que parece ter
prestado especial atenção às palavras que concluem o prefácio da primeira obra de
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Droysen sobre a idade moderna, a saber, um estudo sobre as guerras de libertação,


fruto de suas preleções dadas em 1842 já em Kiel, para onde se mudara depois de
Berlim. Neste prefácio, Droysen diz

até que finalmente o novo e o velho começaram a se encontrar na região neutra de


reforma [sobretudo administrativa dos Estados que compunham o estilhaçado Reich
alemão antes das invasões napoleônicas- N.A.] começa a prevalecer a perspectiva
que o verdadeiro direito histórico não é a restauração do passado, mas a continuada e
vivaz formação daquilo que é seu grande resultado – o presente; e que o verdadeiro
direito da razão nada tem a ver com aquele radicalismo fatalista, que quer a partir de
abstrações utópicas que pretende deduzir, iniciar do zero o Estado e o direito a cada
instante19.

18
BAUMGARTNER, H.M. Kontinuität und Geschichte. p.83. Ihr motivierender Ursprung
[Kontinuität als Sinn-Idee. N.A.] liegt in der neuzeitlichen Erfahrung drohender Geschichtslosigkeit
ebenso wie in der Erfahrung der Unmöglichkeit, Geschichte von Vernunft und Geist her begreifen zu
können. Kontinuität meint Geschichte weder als blosses Weitergehen sich ansammelnder Fakten noch
als apriori sinnvolle Selbstentfaltung eines wie immer näher konzipierten absoluten Geistes.
19
DROYSEN, J.G. Das Zeitalter der Freiheitskriege. p.28. Bis dann endlich das Alte und Neue sich
auf dem neutralen Gebiet der Reform zu begegnen begann, die Einsicht zu siegen begann, dass das
wahre historische Recht nicht die Herstellung der Vergangenheit, sondern die lebendige Fortbildung
der ihres grossen Resultates, der Gegenwart, ist, - dass das wahre Vernunftrecht nichts gemein mit
jenem faden Radikalismus, der in jedem Augenblick den Staat und das Recht von neuem anfangen und
aus utopischer Abstraktion ableiten zu können meint (…) ist.
104

Esta passagem de Droysen é decisiva, pois é capaz de exprimir justamente a


sua renúncia a uma idéia de tempo histórico seja como exclusivamente resignada, seja
como exclusivamente voluntarista. E a perspectiva de Baumgartner é bastante útil na
medida que nos oferece o termo continuidade como meio de debate entre a filosofia
da história hegeliana e a futura teoria da história de Droysen. Quando Baumgartner
fala de continuidade a partir do perigo da perda de historicidade e quando Droysen
descarta tanto um passado que simplesmente se perenize como um futuro que deve se
impor a ferro e fogo, parece-nos que o problema está justamente em uma
possibilidade de estabelecer sentido entre as referências do mundo que nos cerca e o
que elas invocam (do passado) e possibilitam (para o futuro).
Por mais que Baumgartner tenha formulado bem o problema, e que a sua
ênfase na idéia de continuidade tenha respaldo nas palavras do próprio Droysen
(como podemos ver mais acima no texto sobre as guerras de libertação), sua análise
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tem um ponto cego. Todavia, tal silêncio não é exclusivamente seu - durante toda a
pesquisa sempre que nos deparamos com os competentes comentários sobre Droysen
que enfatizam com maior ou menos intensidade sua aposta na idéia de continuidade
como conceito que pudesse conciliar uma sofisticada articulação entre narrativismo e
filosofia da história, entre totalidade de uma história da humanidade e singularidade
de um caminho alemão, nos perguntávamos sem obter resposta imediata: e como
entender certas passagens de explícito desespero do autor, em que tudo indicava uma
total descrença na continuidade? Não encontramos na bibliografia especializada
nenhuma referência, muito menos análise detida, à passagem que citamos a seguir,
escrita por Droysen em 1854 sobre a crise política e cultural da Europa: “Eis o
presente: tudo instável, um rompimento (…) uma devastação sem proporções. Tudo
que é antigo está consumido, falsificado, apodrecido, sem salvação. E o que é novo
ainda não tem forma nem objetivo, é caótico e somente destrutivo.”20
É bem verdade que, sem citar a passagem, Jörn Rüsen percebeu a importância
do problema ao mostrar que a possibilidade de ver a história como um puro processo,

20
DROYSEN, J.G. “Zur Charatkeristik der europäischen Krisis”. IN: Politische Schriften. p.328. So
ist die Gegenwart; Alles im Wanken, in unermesslicher Zerrüttung (…) Verwilderung. Alles Alte
verbraucht, gefälscht, wurmstichtig, rettungslos. Und das Neue noch formlos, ziellos, chaotisch, nur
zerstörend.
105

como algo cujo sentido não se encontra para além de seu próprio curso (seja este além
o ego cartesiano ou a razão iluminista desprovida de preconceitos) reside justamente
na experiência radical da crise do presente. O homem está em si e é para si – para
Rüsen, a crise do presente é uma teoria da liberdade. Até este ponto estamos de
acordo, mas temos por vezes certa dificuldade em ver como este processo é
exatamente o processo de crescente consciência da liberdade, como também quer
Rüsen21. De toda maneira, a continuidade, então, não pode ser o termo decisivo na
análise de Droysen: para que de alguma maneira compreendamos o sentido
teleológico que ele empresta à história, seria necessário descartar então tal opção.
Apostamos na hipótese de que é justamente esta consciência de orfandade no
presente (passado consumido, futuro sem forma) apresentada por Droysen que exigirá
um esforço renovado de atribuição de sentido. É necessário dizer as coisas de outra
maneira, e pensar de outra maneira como se fala e representa. E é justamente nesta
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consciência de rompimento de qualquer laço com o passado e com o futuro que


podemos, de alguma maneira, encontrar a possibilidade de uma hermenêutica
histórica ao verificarmos que Droysen tinha a experiência de um presente que lhe era
inescapável. Hans-Georg Gadamer dirá que a compreensão é possível e necessária
sempre que não é possível uma compreensão imediata – a hermenêutica se torna
necessária sempre quando se instala o mal-entendido22, o rompimento da naturalidade
com que a tradição lega seus ensinamentos às gerações futuras. Assim, a
hermenêutica, como método de compreender o processo de Deus na história – estes
serão os termos de Droysen – será fundada em bases que, de alguma maneira, não
emprestam ao futuro e ao passado o mesmo vigor com que se verifica na teodicéia.
Não pode ser mais tão resignado. Vale notar como há uma crescente perda de
resíduos de resignação nesta variação semântica da lembrança como culpa, força e
continuidade. Mas esta polissemia ainda revelará uma necessidade de ser superada. O
conceito de compreensão, cuidadosamente trabalhado por Droysen, será este novo
porto em que tais questões poderão ser elaboradas.

21
Cf. RÜSEN. J. Begriffene Geschichte. Pp. 69-71.
22
Cf. GADAMER, H.G. Wahrheit und Methode. P.182.
106

3.1.3.
Lembrança e estranhamento.

“Chegamos ao ponto central de nossa questão”, diz Droysen, “podemos agora


nos permitir dizer que a essência do método histórico é, ao pesquisar, compreender,
sendo a essência do método histórico a interpretação”.23 Interpretação é
freqüentemente confundida com uma simples impressão subjetiva, quando não
mesmo com uma mera opinião, que disfarça muito mal uma postura defensiva que
não se quer pôr a prova nem em debate. Mas é o risco de qualquer tentativa de ver a
consciência histórica para além de uma dimensão puramente resignada. O sentido de
interpretação pode deixar de ser refém do relativismo mais grosseiro caso se
considere o que vem sendo ressaltado a partir da análise de alguns trechos de
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Droysen: primeiramente, a interpretação pode não ser, ao menos não deveria ser,
entendida como relativismo indiferente justamente porque ela se dá, de acordo com
Droysen, em uma situação configurada por um processo de internalização e
lembrança, e, neste sentido, porque em Droysen a consciência da situação é passo
necessário para a criação, é alheio ao sentimento da indiferença pois diretamente
ligada ao comprometimento em que o intérprete está sempre inserido. O problema
maior do relativismo ainda permanece, pois o que lhe garante sua incômoda
sobrevivência é seu caráter arbitrário e opiniático, totalmente desinteressado pela
universalidade porque constantemente satisfeito consigo mesmo. É necessário
garantir para o conhecimento histórico, a partir de seu fundamento interpretativo, um
mínimo de universalidade e verdade sem que esta universalidade e verdade sejam
esmolas oferecidas por outros métodos; afinal, e aqui desenvolvemos um segundo
ponto, a interpretação não é objetiva no sentido acima pensado, ou seja, o que se
entende como material objetivo é, segundo Droysen, desde sempre uma abstração
feita pelo sujeito. Porém não nos esqueçamos: a interpretação não pode se arrogar
uma abstração absoluta, “cosmopolita”, pois não deseja “tudo entender e
23
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.22. Wir haben den Mittelpunkt unserer Frage erreicht; wir
dürfen jetzt sagen, das Wesen der geschichtlicher Methode ist forschend zu verstehen, ist die
Interpretation.
107

compreender”. É todo o oposto: parte do reconhecimento de uma situação e, tal como


Droysen o faz, permite-se o desespero e a leva à sério a anomalia como objeto
histórico. “Tudo compreender e tudo entender” é uma postura absolutamente
intelectual na qual Droysen não se enquadra. Que abstração é então possível?
Droysen futuramente a localizará nas potências éticas da vida, mas por ora devemos
nos satisfazer com esta conclusão parcial: não seria a história, mesmo ainda se
pretendendo científica (como quer o próprio Droysen), uma ciência mais modesta e
menos crente em suas potencialidades racionais e intelectuais? E este não seria um
indício frisante de diferença em relação à filosofia hegeliana do absoluto, ainda que
também o seja em relação ao historiador iludido sobre a própria objetividade?
Contendo a história um momento de abstração, devemos perceber que grau ou
tipo de abstração ele deve e/ou pode alcançar: esta abstração feita pelo sujeito só pode
ser entendida a partir de uma melhor compreensão da idéia de presente, ou seja, como
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uma situação somente na qual o passado ganha sentido, mais especificamente através
do que Droysen diz ser “lembrança” ou a própria consciência de como o passado
forma o presente e o condiciona; todavia, neste reconhecimento, há um elemento
criativo ou seja, o presente reflete mas é produtor, não é analogia e sim anomalia.
O caráter anômalo determina-se acima de tudo como produto da reflexividade, ou
seja, da mediação, da perda do sentimento de imediatismo e naturalidade e do
conseqüente estranhamento do que era aparentemente óbvio. Ver-se ser mediado (e
não imediato) é ver-se ser histórico.

(…) A pesquisa histórica pressupõe a reflexão, posto que o conteúdo de nosso eu é


também um resultado histórico mediado de múltiplas maneiras.
Nosso saber, ou melhor, o conteúdo de nosso eu é primeiramente recebido,
transmitido, é nosso, como se não fosse nosso. Ainda somos presos neste nosso
saber; ele nos tem mais do que nós a eles. Somente com a reflexão, em que nós
reconhecemos este saber como mediado, nos separamos de nós mesmos; o sabido
fato da mediação é a lembrança, e esta lembrança nos separa de nós mesmos, e
damos a ela a posição em nosso sentido espiritual, que é a de ser objetiva
perante nosso ser subjetivo24.25

24
grifo nosso.
25
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. pp. 106-7. (…) Das historische Forschen setzt die Reflexion
voraus, dass auch der Inhalt unseres Ich ein vielfach vermittelter, ein geschichtliches Resultat ist.
108

O ato de interpretar é uma conseqüência pois da reflexão, ou, ainda, da


lembrança – o que importa é enfatizar o quão é decisivo o ato de separar-se de si
mesmo para que a lembrança seja algo objetivo perante o ser subjetivo, sendo então o
lugar de encontro, mas jamais de fusão, entre o passado e o presente. Acreditamos
que está encaminhada a questão posta acima: como internalizar algo aparentemente
sem sentido (como um Europa cujas referências se tornaram sem valor)? Toda
lembrança, diz Droysen, pressupõe uma separação de si mesmo, e, justamente por
isso, permite o reconhecimento, mas de modo algum uma estabilidade tranqüila em
que não há fraturas. Pelo contrário, para sair do imediato e fugaz, o homem precisa
lembrar, e, ao lembrar de todos os fatores que o formaram, se separa de si, pois o que
antes aparecia como uno, se dissolve em várias formas diversas das quais ele passa a
ter consciência. Se tentava escapar da angústia da fugacidade, não encontrará
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acolhida na lembrança de sua própria suposta origem. A lembrança, em Droysen,


jamais é nostálgica, jamais rememora um tempo pacífico. Sua própria polissemia
indica seu caráter conflituoso, e, no final, leva o sujeito ao distanciamento de si
mesmo. Já se desenham aqui os primeiros traços do homem culto, representante do
ideal da Bildung alemã do século XIX.
Neste momento, podemos retomar um aspecto central do capítulo anterior: a
imagem da Grécia, neste caso centrada naquele que era o mito preferido de Droysen:
Prometeu. Mais acima citamos uma passagem de Droysen, em que ele vê em
Prometeu o próprio despertar da consciência histórica que faz o homem ouvir e
enxergar, mais do que escutar e olhar. E o uso do Prometeu de Ésquilo já indica que
toda lembrança, em Droysen, deverá ser necessariamente trágica. A passagem
seguinte ilustra como a história lembra na verdade das conseqüências da consciência
prometéica, ou seja, do trabalho a que o homem se submete para superar a sua
diferença em relação à circunstância que o cerca, revelada tanto no trabalho para o

Unser Wissen, richtiger, der Inhalt unseres Ich ist zunächst Empfangenes, Überkommenes, unser, als
wäre es nicht unser. Wir sind damit noch unfrei in diesem unseren Wissen; es hat uns mehr, als dass
wir es hätten. Erst mit der Reflexion, in der wir es als vermitteltes erkennen, trennen wir es von uns
selbst; die erkannte Tatsache der Vermittlung ist die Errinerung; und diese Errinerung trennen wir von
uns selbst, geben ihr in unserem gesitigen Sinn die Stellung, objetkiv dem subjektiven Sein gegenüber
zu sein.
109

sustento material, tanto na lembrança de que a herança histórica que o sustenta é


muito mais complexa e composta de fatores heterogêneos que não permitem uma
identificação imediata e homogênea. Em uma de suas preleções sobre história antiga,
Droysen mostrará como a história é a tentativa do homem de ocupar este lugar central
da criação, sem todavia querer com isso ser a nova lei.

O espírito humano está acorrentado aos entes, ao que é dado. Esta é sua finitude,
seu limite, seu constrangimento. Em sua primeira existência como criatura ele não
encontra, perante este poder superior, saída ou ajuda, e é seu trabalho se livrar
disto. O ente precisa ser elaborado, utilizado, alterado, precisa ser, com
pensamento e pesquisa, forjado a tomar a forma do espírito. Para ser breve: o
homem precisa, neste mundo divino, criar um mundo inteiramente novo, um
mundo com suas configurações feitas sob sua violência, para que então seja livre,
seja em si. Conquistar plenamente este ser-em-si, esta liberdade, é o trabalho do
gênero humano, e a história é a lembrança deste trabalho incessante.26
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O tema da lembrança não era pois inédito na obra de Droysen antes da


Historik. Na verdade, era recorrente em suas preleções sobre Grécia antiga. Para que
ele possa ser entendido como uma das formas de mediação, é absolutamente
necessário que tratemos antes, do conceito de história relacionado às pesquisas e
considerações de Droysen sobre a antigüidade clássica e helenista – na verdade,
poderemos mostrar como a própria concepção de lembrança pode ser ambígua, e
acabará exigindo um outro termo através do qual possamos entender melhor o que é a
mediação, ou seja, o que é lidar com um mundo ao qual não se tem acesso imediato e
espontâneo. A pergunta que nos guia no momento é: uma vez que o homem se
estranha no presente em que habita, poderá o passado, ainda mais o passado clássico
grego, servir-lhe de refúgio e nova casa?

26
DROYSEN, J.G. “Der erste Abschnitt der Einleitung der Vorlesungen über Alte Geschichte
1843/44.” IN: Historik. Bd.II. p. 64. Der menschliche Geist ist an Seiendes, Gegebenes gebunden. Das
ist seine Endlichkeit, seine Schranke, seine Unfreiheit. In seinem ersten kreatürlichen Dasein ist er
dieser Übermacht gegenüber hilflos und ratlos, es ist seine Arbeit, sich derselben zu entreißen: Das
Seiende muß er sich erarbeiten, muß es nutzen und umgestalten, muß es denkend und forschend
bezwingen, muß so das Seiende durchgeistigen und geistige Formen zu dem Seienden machen, kurz, er
muß sich in dieser Gotteswelt eine vollkommen neue Welt, Welt seiner Gestaltungen, unter sein[er]
Gewalt[,] schaffen, um bei sich selbst, um frei zu sein. Dies Bei-sich-Sein, diese F r e i h e i t in immer
vollerem Maße zu gewinnen, ist die Arbeit des Menschengeschlechts, und die Geschichte ist die
Erinnerung dieser unendlichen Arbeit.
110

De cara, é sempre bom sublinhar que o pensamento teórico de Droysen sobre


a história nunca foi feito à margem dos temas por ele pesquisados antes mesmo de
oferecer as preleções exclusivamente teóricas. No semestre de inverno de 1846/47 na
Universidade de Kiel, Droysen abriu seu curso sobre história antiga confrontando
concepções correntes sobre o significado de história antiga, e nestes comentários que
serviam apenas como introdução ao estudo empírico propriamente dito, pode-se ver o
que no curso de Iena, dez anos depois, será dito explicitamente a respeito do par
pobreza de consciência/riqueza de pesquisa. Posicionando-se contra as abordagens de
Heeren, Schlosser e Haug, que tratavam a antigüidade respectivamente como estudo
de sua política, como sumário das relações históricas desde a criação do mundo até à
migração dos povos e como pré-história da formação de suas línguas e raças, Droysen
pergunta-se se dever-se-ia estender o campo de estudos da antigüidade infinitamente,
chegando mesmo até os chineses, os africanos e demais civilizações. Ainda nesta
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preleção, ele dirá que

Nossa língua realiza um jogo de profundo significado quando a palavra “História”


designa tanto a ciência quanto o objeto da ciência; ou seja, que a ciência queira
dizer tanto a soma dos eventos quando a ciência dos eventos; Justamente como se
se tornasse acontecimento e fato histórico aquilo que sabe-se ter acontecido, o que
a lembrança preserva como acontecido ou a pesquisa elabora posteriormente para a
consciência. De todo modo, a história é um conjunto de fatos, mas a consciência
humana percebe antes o seu contexto, as suas oposições e seu processo.27

É notável como Droysen evita a habitual distinção entre “Historie” e


“Geschichte”, ou seja, entre a narrativa e um processo objetivo de fatos. Para ele,
separar de tal modo o sujeito e o objeto do conhecimento históricos era um contra-
senso, como se houvesse um manancial de objetos esperando somente por sua
descoberta, ou mesmo uma estrutura retórica maleável e capaz de adequar os fatos,

27
DROYSEN, J.G. “Die Einleitungen der Vorlesungen über ‘Alte Geschichte’ 1846/47. Historik. Bd.
II. Es ist ein tiefsinniges Spiel unserer Sprache, daß sie mit dem. Wort Geschichte zugleich die
Wissenschaft und den Gegen-stand der Wissenschaft bezeichnet; daß die Geschichte sowohl die
Summe des Geschehenen als die Wissenschaft von dem Geschehenen meint. Gleich als wäre nur das
geschehen und geschichtlich, was gewußt wird geschehen zu sein, was die Erinnerung als geschehen
aufbewahrt oder die Forschung für das ferner. Bewußtsein erarbeitet. Allerdings ist die Geschichte eine
Fülle von Tatsächlichkeiten, aber das menschliche Bewußtsein erst sieht ihren Zusammenhang, ihre
Gegenseitigkeit, ihre Weiterwirkung.
111

como se fosse um jogo de encaixe. Experiência histórica e consciência se interligam –


a discussão da importância da linguagem e da apresentação historiográfica ficará para
um momento posterior.
Neste último item, a lembrança deve ser entendida sobretudo como um meio
de desnaturalização: pode ser a consciência da complexidade da herança que aparece
una e imediata, que dissolve sua aparente solidez em um conjunto de determinações
religiosas, políticas, lingüísticas, quebrando assim a relação imediata com o meio;
vimos a seguir que se o presente passa a ser uma terra estrangeira, não será o passado
a pátria do homem, pois qualquer idéia de origem, mesmo a mitológica, pressupõe
um distanciamento em relação ao mundo circundante. Por fim, vimos também que a
lembrança concerne ao esforço inesgotável da humanidade em sair de sua finitude,
esforço este que, uma vez consciente, é a marca de sua liberdade. Todavia, ela parece
ainda deixar soar a pergunta: como lembrar de um lugar desconhecido? Como lidar
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com a desnaturalização do que era tido como estável?


Vimos neste capítulo que a lembrança, em um primeiro momento, é o sinal da
culpa, mas não a culpa por um ato feito pelo sujeito empírico que tem consciência de
sua realização, consciência que poderá ser a etapa imediatamente anterior do
arrependimento e da posterior sutura da ferida – reconciliação. Não é tão simples. A
lembrança, como sinal de culpa, é, como podemos ler na citação anterior, sobretudo o
ato de tornar-se objetivo perante seu ser subjetivo, é por isso se ver homem (objetivo)
naquilo que se representa como sendo “si mesmo”, e naquilo que se representa sendo
“si mesmo”, se ver como “homem” – ou como “cristão”, “alemão”, “luterano”,
“prussiano”, “oitocentista”, entre outras possíveis definições. Para Droysen, a
lembrança seria por fim justamente a tentativa de superar esta situação radical: estar
preso aos entes que circundam o homem. E superar não é simplesmente ver o que há
de objetivo em sua subjetividade (na maioria das vezes, uma subjetividade empírica,
psicológica), e de subjetivo em sua objetividade (tomar para si, não mais como ser
subjetivo, as diferentes camadas que o formam). Superar será na verdade um ato de
desencantamento definitivo, ou seja, um ato em que se realiza a perda de
imediaticidade radical com o mundo; e o que é mais interessante é que este
desencantamento será em um primeiro momento ativo, jamais conseqüência de uma
112

melancolia, mas sim de uma culpa expressa na “existência que se quer pertencer”. O
ato de compreensão será esta tentativa definitiva e metodologicamente muito bem
montada de “querer a si mesmo”. Afinal,

A possibilidade da compreensão pressupõe que já possam ser encontradas em nós, os


observadores, as mesmas categorias éticas e intelectuais que aqueles que são
compreendidos possuem em sua expressão; e somente na medida que as mesmas
28
categorias tenham sido expressas, temos a condição de compreender.

Mesmo que não mencione a palavra “lembrança”, a compreensão será o ato de


lembrança do que é o homem a partir justamente da identificação com o outro, e,
assim, estabelecimento de uma idéia de humanidade, ainda que circunscrita
relativamente em nacionalidades ou credos religiosos. Esta identidade construída não
é a recuperação de um estado paradisíaco, mas sim o estabelecimento “artificial” de
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uma estabilidade que se sabe sem pilares que a sustentam eternamente – posto que
este pilar é de todo modo a culpa que iguala os homens, que possibilita, mas não
garante, sua identificação, ou, como se tornou habitual dizer, sua “intersubjetividade”.
Mas estes castelos de ar têm sua própria arquitetura, têm seu mapa, cujos meandros
Droysen descreve no método compreensivo. A compreensão é necessariamente uma
obra racional. A culpa, que parecia de início descartada, reaparece.

3.2.
Compreensão.

Da mesma maneira que a ênfase no historismo atrapalha a visão e a leitura de


um autor como Droysen – o que esperamos ter sido debatido no primeiro capítulo – o
mesmo ocorre, ainda que em grau menor, com o conceito de compreensão
(Verstehen). E pelo mesmo motivo: não é por acusarmos a objetividade histórica
como ilusão que deixaremos de estar atentos aos efeitos eventualmente nocivos da
recepção de um texto ou do conjunto da obra de um autor. A ânsia em ver o século
28
DROYSEN, J.G. Historik. Ed.Leyh p.22. Die Möglichkeit des Verstehens setzt voraus, dass sich in
uns, den Betrachtenden, dieselben ethischen und intelektuellen Kategorien vorfinden, die in dem zu
Verstehenden ihren Ausdruck haben; und nur soweit dieselben Kategorien hier sich geäussert haben,
vermögen wir zu verstehen.
113

XIX alemão, ao menos em sua dimensão intelectual e científica, sob o signo do


historismo ou de qualquer outro que lhe emprestasse uma coerência mais ou menos
definida, também pode ser encontrada além das páginas dos historiadores e teóricos
da historiografia: Hans-Georg Gadamer também acabou sendo contaminado pelo
desejo de coerência e incluiu, um tanto acriticamente, Droysen em um contexto
intelectual que vê na hermenêutica pouco mais do que um método cujas pretensões
não ultrapassam a intenção de reproduzir o espírito de uma época ou de um autor. Se
sua obra Verdade e Método marcou época, o mesmo não se pode dizer de algumas
análises pontuais que nela encontramos. Foi o caso de Droysen, e, por isto, não nos
sentiríamos à vontade se iniciássemos a tratar do conceito de interpretação na
Historik sem antes tentar apontar alguns equívocos na análise (sempre influente) de
Gadamer.
Droysen delimita o terreno do método histórico ao dizer que a ciência
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histórica não constrói leis que expressam a recorrência de analogias, tampouco deve
ser simplesmente um exercício analítico de tentar compreender a totalidade histórica
através da erudição, ou seja, pela divisão constante do material em áreas, para que
então, pelo domínio cada vez mais rigoroso de pequenas áreas, possa se dominar o
todo. Se a soma das partes não configura plenitude, por outro lado, não será
procurando a origem de um fenômeno em um encadeamento retrospectivo que poder-
se-á compreender o que é história; assim, o presente não poderá ser assoberbado por
uma herança de materiais como um museu que não tem galerias e salas suficientes
para expor seus quadros e esculturas, e também não é um lugar indiferente no qual, de
qualquer ponto, conhece-se a ação do mesmo princípio histórico. A busca da “causa
das causas” e do “fim dos fins” é justamente o que o método histórico não deve fazer.

É aí que finda a força de nossa indução – e de qualquer indução. Afinal, o


entendimento do homem capta somente o meio, não o início, não o fim. O nosso
método não descobrirá o último segredo, nem mesmo o seu caminho, nem mesmo
a entrada para o templo. Não entendemos a totalidade absoluta, o fim dos fins, mas
compreendemos uma de suas expressões que já está compreendida em nós. A partir
da história aprendemos a compreender Deus, e somente em Deus podemos
compreender a história.29

29
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.30 Da aber endet die Kraft unserer Induktion und jeder
Induktion, denn das Begreifen des Menschen fasst nur die Mitte, nicht den Anfang, nicht das Ende.
114

Há dois elementos importantes nesta passagem: primeiramente, a afirmação


do “meio” como lugar de conhecimento da história, ou, se quisermos, o campo por
onde a lembrança pode se espalhar, e por este meio, ser possível compreender Deus.
E este lugar do conhecimento da história, o ponto “central” da criação (e não o final),
dará o sentido de atividade desejado, ou seja, a atividade não será utópica, a ser
concretizada em um futuro que se projeta. - diga-se de passagem que o uso da
expressão “compreender Deus”, ainda mais em uma obra cuja importância dada ao
termo “Compreensão” é decisiva, não pode ser descartada. É bastante comum vermos
identificadas a teodicéia com a teleologia. Ao afirmar que através do “meio”, e não
do “fim”, podemos conhecer Deus, Droysen sofistica e complica uma questão cuja
resposta é geralmente dada por conhecida. Mas a palavra “meio”, e a nossa
insistência em falar de mediação encontra aqui sua justificação mais literal, tem
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alguns significados possíveis.


Em segundo lugar, o “meio” seria o lugar ocupado pela Historik, que
exerceria, segundo Droysen, o papel de mediador entre a bipolaridade existente em
um mundo científico cindido entre ciências da matéria e ciências do espírito, entre
natureza e espírito: este meio é o lugar do homem. É quase redundante afirmar que o
papel da História é justamente o cumprido pela ética:

É o mundo ético, e nada além dele, que constitui o objeto de nossa ciência; não é o
seu ser, e sim o seu devir (…) Essencial no mundo ético é que ele é um constante
querer e dever, um constante devir; e somente por este motivo ele é ético, porque a
cada momento ele está em movimento.30

Nicht das letzte Geheimnis erschliesst unsere Methode, wenn auch einen Weg dazu, wenn auch den
Eingang zum Tempel. Nicht die absolute Totalität, den Zweck der Zwecke erfassen wir, aber in einer
ihrer Äusserungen, in der uns verständlichen, verstehen wir sie. Aus der Geschichte lernen wir Gott
verstehen und nur in Gott können wir Geschichte verstehen.
30
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.38. Nicht die ethische Welt ohne weiteres ist der
Gegenstand unserer Wissenschaft, nicht ihr Sein, sondern ihr Gewordensein. (…) Das wesentliche in
der ethischen Welt ist, dass sie ein stetes Wollen und Sollen, ein stetes Werden ist; nur darum ist sie
ethisch, weil sie auf jedem Punkt in Bewegung ist.
115

Para além desta conotação positiva, espacial, em que o meio é o ponto de


equilíbrio em que se pode “compreender Deus” através do conhecimento do “mundo
ético”, podem-se ver duas conotações negativas: o “meio” é sempre tardio, pois não
pode conhecer o início. E, como se viu anteriormente, se o passado ilumina o
presente, em momento algum ele será a única fonte de sentido, e isto não por um
certo liberalismo caprichoso, mas porque a tradição, para se manter, precisa se manter
ativa, jamais como um conjunto de preceitos canônicos. No caso de Droysen, é
evidente o debate com os problemas de origem teológica: ele mesmo dirá que o
argumento daqueles empenhados em buscar o sentido histórico de acordo com uma
forma primeva assumida por um determinado fenômeno é algo insustentável. Dirá
Droysen que os defensores do cristianismo primitivo, ao desejarem conhecer a
semente da religião cristã, negam toda a árvore que ela sucedeu justamente porque a
semente não pode ser mais reconhecida na árvore e em seus frutos. É o caso típico de
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uma forma de atribuição de sentido baseada na idéia de organismo e, portanto, nas


ciências naturais. Para Droysen, o início de um fenômeno não corresponde a uma
data, mas, “somente em seus frutos repete-se o início (…) e assim, através do que foi
produzido podemos encontrar e determinar o início relativo”.31 O conhecimento
humano – não só do historiador – além de tardio, ou seja, por ser sempre uma
reflexão situada em um passado tornado presente, é necessariamente também inútil,
pois ele também não desvenderá “o fim dos fins”, e não mostrará o mapa que leva o
homem à entrada do templo. Logo, o entendimento histórico do homem, se não vê no
passado a fonte de autoridade absoluta, pois não encontrará nele uma suposta origem
autêntica, também não é um simples desvendar de condutas racionais, ou seja, meios
que servem a fins determinados, e, assim, o conhecimento histórico é pouco afeito à
nostalgia quanto à utopia, e, assim, precisa se guardar de ser tanto um canto
restaurador como um instrumento. Droysen, se admite que somente através do que foi
produzido (dos “frutos”) pode-se reconhecer a grandeza da própria semente, por outro
lado ele resiste em reconhecer que este processo exige do historiador uma narrativa
que, como diz ele, seja uma narrativa mimética e genealógica de um processo que

31
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.160. Nur in seinem Früchten wiederholt sich sein Anfang
(…) Also aus dem Gewordenen erst finden, ja setzen wir seinen relativen Anfang.
116

tenha, no final, se mostrado necessário. E assim, todos os eventos já inseridos pelo


enfoque do historiador precisam se tornar harmônicos em função do evento posterior.
Tanto uma perspectiva, seja aquela que busca eras de ouro ou ovos da serpente, bem
como a outra, que fica a forçar explicações extremamente otimistas ou catastróficas,
pressupõe uma constante que paira por cima de todos os eventos em si.
O conhecimento histórico movimenta-se neste meio, e, como não pode
caminhar nem para trás, nem para frente, só lhe resta dar voltas, formando um
círculo. É a clássica questão da hermenêutica:

É inquestionável que somente compreendemos completamente aquilo que é,


quando conhecemos como aquilo se tornou o que é. Mas como ele se tornou o que
é somente podemos apreender através de uma compreensão profunda do ente, ou
seja, daquilo que nós compreendemos como aquilo é; é somente uma forma, um
modo de expressão desta compreensão do que se nos apresenta e do ente, que nós o
compreendamos e apresentemos como algo que se tornou o que é. E, por outro
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lado, este seu devir e seu tornar-se só podemos desenvolver a partir do ente na
medida que o entendemos temporalmente para que possamos compreendê-lo. Nós
nos movimentamos em um círculo, mas não em um círculo que nos leve adiante.32

Na passagem acima encontramos um momento privilegiado em que se faz a


diferença enter Droysen e Hegel – diferença que supõe sobretudo uma semelhança
anterior. Lembremos por ora da introdução da Fenomenologia do Espírito:33 nela,
Hegel mostra que é um equívoco desconsiderar o modo como se formam as nossas
percepções; se só podemos conhecer o absoluto através de um determinado
instrumento e ainda assim depois consideramos tal instrumento algo meramente
funcional, ou bem retornaremos ao estágio anterior, no qual nada conhecíamos, ou
bem teríamos que ver no instrumento o próprio conhecimento. Lembrando que, se o
instrumento fosse dispensável, o absoluto, como diz Hegel, o conhecimento em si
seria supérfluo e vão. Droysen transpõe este modelo de pensamento para a dimensão

32
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.162. Es ist keine Frage, dass wir das, was ist, erst ganz
verstehen, wenn wir erkennen, wie es geworden ist; aber wie es geworden ist, entnehmen wir nur aus
dem eindrigenden Verständnis des Seienden, daraus, dass wir verstehen, wie es ist; es ist nur eine
Form, eine Ausdrucksweise dieses Verstehens des Gegenwärtigen und Seienden, dass wir es als ein
Gewordenenes auffasen und darlegen. Und andererseits, dies sein Werden und Gewordensein
entwickeln wir nur aus dem Seienden, indem wir es zo zeitlich auffassen (…), um es zu verstehen. Wir
bewegen uns im Zirkel, aber in einem Zirkel (…) weiterführt.
33
Cf. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. pp. 71-2.
117

temporal de sua hermenêutica: não se pode almejar conhecer o que foi por detrás do
que se tornou, pois ambas as coisas são inseperáveis; e, da mesma maneira, não é
válido o recurso ilusório de desejar se despir de todos os pressupostos que nos
formam para que possamos conhecer de modo incorrupto. A base hegeliana fornece
uma fundamento hermenêutico, claro, mas que Droysen prefira ver no presente tal
situação em que a interpretação é inescapável é algo que simplesmente não podemos
ignorar: nem tanto o passado pode ser de tal forma poderoso que nos deixe outra
alternativa que não seja uma visão retrospectiva, tampouco ele se esmaece a ponto de
precisar se direcionar somente ao que se nos apresenta imediatamente ou, ainda a
fomentar uma desenfreada imaginação geradora de expectativas. Nas duas formas,
fica-se supondo que há um instante privilegiado da história, no qual o sentido
histórico, se não é imediatamente acessível, é ao menos mais evidente do que em
outros estágios. O “meio”, se de fato é o melhor lugar de onde se pode conhecer a
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história, se é de fato um lugar privilegiado, é porque ele é fundamentalmente trágico,


e não somente por ser tardio (a consciência sempre é posterior à ação) e ineficaz (o
conhecimento do presente não garante um caminho seguro em direção a um futuro
desejado), mas porque, “no meio”, a consciência histórica recai sobre si mesma.
Aplicando para o conhecimento histórico o que também luterano Paul Tillich diria no
século seguinte sobre o homem moderno, a autonomia não é uma carta de alforria do
homem; na verdade, ela é a estampa de sua própria insegurança, cuja principal marca
é a de se saber cindido, pois serão ineficazes as tentativas de estabelecer identidades,
seja com as raízes no passado, seja forjada pela máscara da vanguarda34.
Esta concepção de interpretação nos leva inclusive a redefinir o lugar de
Droysen, e, por extensão, o próprio perfil do intelectual alemão do século XIX.

34
Cf. TILLICH, P. “Die protestantische Verkündigung und der Mensch der Gegenwart” IN: Der
Protestantismus als Kritik und Gestaltung, p.76. “O homem moderno é o homem que, em sua
autonomia, tornou-se inseguro. Característico do fato de ter-se tornado inseguro é o fato do homem do
presente não ter mais qualquer visão-de-mundo no sentido de uma totalidade de convicções seguras
sobre Deus, mundo e si mesmo.” Tillich está escrevendo no século XX justamente sobre o homem do
século que vivera duas guerras, mas sua sensibilidade luterana com o seu próprio presente assemelha-
se bastante à de Droysen. O que, dada a igualdade de confissão e diferença cronológica, não deixa de
ser significativo e instigante, e, de alguma maneira, revela por um lado a atualidade de Droysen e
mostra que a sensbilidade do XIX deixava ressoar cordas muito mais finas do que as tangidas por uma
suposta cega busca de progresso.
118

Afinal, Johann Gustav Droysen é incluído sem discussões dentro do âmbito da


tradição historista alemã. Não parece muito produtivo tentar dissociar sua imagem
dos demais historistas, sejam eles historiadores ou não; na verdade, será muito mais
útil ver como o historismo, ao menos em Droysen, é mais complexo do que uma
simples tentativa de se desfazer do presente e recorrer ao passado, estabelecendo com
ele uma unidade de sentido que tornaria possível o conhecimento histórico. Hans-
Georg Gadamer, ao tentar mostrar como a compreensão depende dos pressupostos e
preconceitos do intérprete, critica o historismo oitocentista, identificando-o com seu
principal rival, o Iluminismo normativo e ahistórico, no afã de se purificar das
circunstâncias para a compreensão35. Pelo que foi visto até o momento, a radical
consciência da própria historicidade feita por Droysen a partir do desenvolvimento da
idéia de “meio”, não permite que ele seja classificado como um historista ingênuo ou
romântico, tampouco como um iluminista a acreditar em um aperfeiçoamento linear
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do homem. Em sua tese de doutoramento sobre Droysen, Jörn Rüsen notou que a
Historik procurava criar seu espaço próprio diferenciando-se basicamente de outras
três formas de conhecimento da época: da filosofia hegeliana da história, cuja
tentativa de totalização não deixaria brechas para a atividade de pesquisa, do
romantismo que buscava uma identidade absoluta de um passado que poderia ser
recuperado, o que pressupunha o presente como uma dimensão desvirtuada e corrupta
do tempo e, por fim, do iluminismo normativo a-histórico a “coisificar” a história,
considerando-a ou fonte de engano ou de exemplos (negativos e positivos), sem
qualquer valor imanente e positivo, pois o valor histórico seria alheio à época que
serviria de estudo, que, assim, se tornar meramente um objeto sem qualquer relação
com o sujeito, evitando a identidade e, claro, a diferença.36 Logo, pode-se dizer que

35
Cf. GADAMER, H.-G. Wahrheit und Methode. Pp.274-5. “Somente tal reconhecimento da
dependência dos preconceitos presente na compreensão sofistica ao seu máximo o problema
hermenêutico. Tomado este ponto de partida se mostra que o historismo, apesar de toda a crítica ao
rationalismo e ao pensamento do direito natural, se planta sobre o mesmo solo do que o iluminismo e,
sem percebê-lo, partilha de seus pressupostos.” Erst solche Anerkennung der wesenhaftem
Vorurteilshaftigkeit alles Verstehens schärft das hermeneutische Problem zu seiner wirklichen Spitze
zu. An dieser Einsicht gemessen zeigt es sich, dass der Historismus, aller Kritik am Rationalismus und
am Naturrechtsdenkens zum Trotz, selbst auf dem Boden der modernen Aufklärung steht und ihre
Vorurteile undurchschaut teilt.
36
Cf. RÜSEN, J. Begriffene Geschichte. Pp. 119-20.
119

este meio a ser ocupado pela Historik é estreito e se acotovela entre estas três formas
de pensar a história, a saber, a nostálgica, a vanguardista e a iluminista, que, ao fim, é
aquela que pretende eliminar a história e cessar todo o movimento. A relação entre
sujeito e objeto no pensamento histórico precisa ser mais do que meramente
epistemológica, uma vez que entre ambas seria necessária uma identidade
determinada que, por sua vez, pressupõe um padrão, uma base comum que permita
este diálogo entre situações históricas diferentes – padrão histórico que não pode ser,
por sua vez, uma normatização de algo parcial. A plena identidade entre sujeito e
objeto, seja no uso instrumental da história pelo sujeito no presente, seja na
transposição irrestrita deste no objeto – fuga do presente – também não parece ser o
lugar a ser descrito pela Historik como o ocupado pelo pensamento histórico.
A essência histórica do homem, a qual o pensamento histórico submetido ao
método e à sistematização histórica teriam que fazer jus, é autopoiética, e o homem é
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devir constante, jamais um devir para um fim anteriormente determinado, tampouco


um guardião do passado, o que permitirá a Droysen afirmar que “a auto-produção de
sua essência é sua determinação e seu trabalho”37. Mas não no sentido mais vulgar,
ou seja, como afirmação absoluta do presente ou de uma subjetividade que nega as
circunstâncias em que se insere, mas sim de uma outra forma se percebe esta
produção: como diálogo constante entre os dois pólos a se determinarem
mutuamente. Esta autoprodução é o que lhe sobra, e as tarefas restantes se
assemelham às tragédias de Hamlet e Iago, ou seja, se o primeiro herda um mundo
desregulado pelo passado, e o reconhece fora dos eixos (the time is out of joint),
recriá-lo à sua imagem e semelhança com o propósito de desestabilizar, também
gerará não somente o caos, mas o próprio infortúnio do cálculo e a confirmação de
que mesmo a mais fina urdidura não é capaz de consertar o mundo a partir de
qualquer princípio.
Este caráter trágico, todavia, em momento algum poderá ser visto como
destruidor – na verdade, parte da obra historiográfica inicial do helenista Droysen
será a de mostrar que a decadência, aparentemente uma perda de sentido, na verdade

37
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.24. Die Selbserzeugung seines Wesens ist seine Bestimmung
und seine Arbeit.
120

é o seio de todo sentido. Por ora, devemos nos contentar em compreender o seguinte:
ver que os pressupostos religiosos do pensamento de Droysen parecem cada vez mais
evidentes e inegáveis. Mesmo quando se lhe dava uma visão trágica, nada redentora,
em que o conhecimento histórico compreendia o meio, jamais a origem e o fim, ele
afirma que é através do meio, do conhecimento mediado, que se conhece Deus: não
se pode conhecer Deus imediatamente:

Ela [a história] sabe que, em seu caminho em busca do eterno e do incondicionado,


ela só alcança uma analogia obscura do finito e do condicionado (…) pois o olhar
da criatura não suporta mirar a luz pura, e, ao olhar para o sol, será cegado e verá
somente seus próprios fantasmas; perante a contemplação de Deus, o pensamento
finito é engolido, e cegado desta maneira, ele produz somente uma imagem
especular do finito.38

Por um lado, soam resignadas as palavras de Droysen. O desconcerto, na


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verdade, reside justamente na impossibilidade deste acesso direto ao conhecimento de


Deus; a ambigüidade permanece quando se percebe que a contemplação de Deus, em
sua alegada pureza, produzirá somente fantasmas daquele que pretende contemplar o
eterno. A busca do indeterminado sempre se configura e se enquadra em uma forma
determinada. Seria fácil adotar o caminho resignado, no qual se afirma ser impossível
conhecer as criações de Deus, como se o conhecimento das ciências humanas se
afirmasse por eliminação de objetos e fenômenos cujo conhecimento não é nem
jamais será dado ao homem; mas, na verdade, sendo espelho desta criação, o homem
já participa dela, mas em momento algum poderá com ela se igualar. Todavia, é
fundamental perceber que, apesar das presenças de elementos religiosos em seu
pensamento, de alguma maneria a ênfase do presente trágico dá à idéia de destino um
cariz menos teleológico. Podemos explicar pelo que já apresentamos mais acima: se
em Hegel o destino é uma lei que revela como tal através da minha consciência, em
Droysen o destino é necessariamente expresso através da existência que se quer

38
DROYSEN, J.G. Historik. p.35. Ed. Leyh. (…) sie [die Geschichte] weiss, dass sie, auf ihrem Wege
das Ewige und Unbedingten suchend, nur eine verklärte Analogie des Endlichen und Bedingten
erreicht. (…) Denn das geschaffene Auge erträgt den Anblick des reinen Lichts nicht, in die Sonne
schauend wird es nur geblendet und sieht dann nur seine eigene Phantasmen; von der Anschauung
Gottes wird der endliche Gedanke verschlungen, und so geblendeter erzeugt er nur ein Spiegelbild des
Endlichen.
121

pertença a si mesma, e por isso é autoprodução de sua essência; a própria relação do


asepcto trágico com uma dimensão religiosa em ambos é diferente; Hegel o dissolve,
enquanto Droysen o mantém constantemente em tensão. É uma diferença notável, e o
que apresentaremos no ponto seguinte será a tentativa de mostrar a estrutura desta
produção-de-si do próprio sentido histórico, sendo então o momento em que a
dimensão representativa, em que este retorno ao mundo, em que se exerce esta
tentativa de reconciliação com o estranhamento que quebrara a fruição dos sentidos
imediatamente dados – e justamente este exercício de reconciliação será outro cerne
do método hermenêutico, que, por geralmente estar cerrado no termo “compreensão”,
por vezes com ele se confunde. Mas não é o caso, ao menos quando lemos Droysen.
Se se trata de produção-de-si, a apresentação (Darstellung) será fundamental.
Possivelmente Droysen teria visto nela o que Hegel enxergara na dramaturgia clássica
como lugar de realização do trágico. A lide com a contingência é fundamentalmente
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trágica; não há estrutura trágica que se revele sem a interferência de um evento


singular que dê novo sentido (mesmo que de modo “nihilista”, digamos assim) ao que
antes se entendia de outra maneira. Não há estrutura trágica em geral; a tragédia
depende sempre de uma forma que se apresenta e sobretudo se desenvolve; os corpos
que a movimentam não são símbolos de elementos exteriores, mas adquirem vida
própria, tecendo o sentido no próprio transcorrer da ação. A apresentação, a função
estética do pensamento histórico expresso nas obras historiográficas propriamente
ditas, precisam, segundo Droysen, ter consciência desta sua característica. Como
muito bem disse Christoph Menke, “trágico não são o ser das coisas ou a natureza do
homem, mas sim colisões historicamente situadas no mundo. A visão trágica se refere
sempre a um mundo específico; não há trágico ‘em geral’.”39 As próprias palavras de
Menke, ainda que escritas em um livro sobre Hegel, aplicam-se ao nosso caso.
Droysen não poderia mesmo se contentar simplesmente com uma descrição da
natureza humana; as formas específicas e concretas que as cisões do homem
assumem precisam ser compreendidas.

39
MENKE, C. Tragödie im Sittlichen: Gerechtigkeit und Freiheit nach Hegel. p.41. Tragisch sind
nicht das Sein der Dinge oder die Natur des Menschen, sondern historisch in einer Welt situierte
Kollisionen. Die tragische Anschauung bezieht sich immer auf eine besondere Welt; Tragik ‘im
allgemeinen’ gibt es nicht.
122

Este caráter trágico, todavia, inscreve o próprio campo de visão do homem


histórico; é sobretudo o estranhamento com o que se oferecia como imediato que lhe
permitirá ter um horizonte que permita que o homem não supervalorize o que está
próximo e saiba sobretudo ter uma perspectiva, se quisermos aqui adotar os termos de
Hans-Georg Gadamer.40
A enorme contribuição de Gadamer, todavia, não a vemos empregada em
sua análise do próprio Droysen em Verdade e Método – não sabemos nem mesmo
onde Hayden White teria percebido a visão generosa de Gadamer para com
Droysen41. Ironicamente, Gadamer acaba igualando em ampla medida Droysen a
autores como Ranke e Dilthey. Seu maior problema consiste em inserir Droysen no
que ele diz ser “hermenêutica romântica” ou “hermenêutica historista”, ou seja, uma
hermenêutica que considera o espaço temporal um obstáculo, e não a própria via em
que a interpretação se realiza, e que por isso, ao tentar, através do dito método
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divinatório e da empatia com o sujeito psicológico superar a pretensão iluminista de


julgar o passado a partir dos valores do presente, acaba por incorrer no mesmo erro
acusado; ao simplesmente inverter a situação, diz Gadamer, a hermenêutica
romântica ressalta o valor intrínseco de uma época, que deve ser restaurado tal como
era, anulando o presente como lugar de sentido: em ambos os pólos, diz Gadamer, é
deixado de lado o processo, o diálogo entre o presente e o passado. Está tudo muito
bem42, mas Gadamer simplesmente deixa de mencionar que já em Droysen há uma
afirmação da relevância do que Gadamer diz ser “os preconceitos”, ou seja, o
horizonte de uma determinada situação histórica. A crítica que Gadamer fará à visão
romântica e restauradora da história já terá sido feita por Droysen. Naturalmente não
encontramos em Droysen toda a herança deixada por Martin Heidegger à filosofia de

40
Segundo Hans-Georg Gadamer, em Wahrheit und Methode, p.308. “Quem não possui horizonte, é
um ser humano que não vê longe e por isso superestima aquilo que está mais próximo. O sentido de
possuir um horizonte é o oposto, ou seja, não se limita ao que está mais próximo, mas sim por ver por
sobre o que está mais próximo. Quem possui horizonte, sabe avaliar o significado de todas as coisas
dentro deste horizonte a partir dos critérios de proximidade e distância.”
41
Cf. WHITE, H. “Droysens Historik: Historical Writing as a Bourgeois Science”. IN: The Content of
the Form. Pp. 83-103.
42
Cf. GADAMER, H. G. Wahrheit und Methode. p.278.
123

Gadamer, e conseqüentemente a articulação da hermenêutica com a fenomenologia e


com a ontologia fundamental. Sim, pode haver certa procedência na crítica de
Gadamer a Droysen, que consiste na afirmação do filósofo de que Droysen teria feita
da hermenêutica somente um método, não alcançando o que a idéia de compreensão
realmente abrange, a saber: a compreensão como caráter ontológico da vida humana.
De fato, nestes termos jamais encontraremos algo semelhante em Droysen – como
afirmamos, tais termos só são possíveis depois de Heidegger. Mas novamente
entramos com a questão: como entender a passagem citada, em que o passado é algo
gasto e o futuro, caótico? Quando tratarmos da hermenêutica em Droysen, veremos
todavia que a importância da idéia de meio será exatamente a própria definição do
homem – ser entre céu e terra, que já deixou as leis da natureza mas apenas se
encaminha para a autonomia encontrada no espírito. De modo algum queremos
igualar Droysen a Heidegger, mas simplesmente incluí-lo no grupo dos “românticos
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ingênuos” nos parece uma posição que não resiste à leitura dos escritos do próprio
Droysen. Poderíamos ainda mencionar alguns equívocos de análise, tal como a
identificação de Droysen com Descartes no que diz respeito a um sujeito solar e
central. Nada nos soaria mais apressado, pois em Droysen o que poderia ser
entendido como sujeito terá filiação antes com o idealismo especulativo ou ainda com
um sujeito que não é psicologicamente orientado, puro, alienado do meio em que vive
e no qual nasceu43.

3.2.1.
Interpretação e ação.

É chegada a hora de mostrar então como e porquê Gadamer se equivoca


profundamente, e como a hermenêutica em Droysen não somente supera uma
concepção resignada de história (ainda que dela dependente), bem como não pode ser
enquadrada no perfil gadameriano da hermenêutica romântica. Ela é capaz de atribuir
sentido, de acrescentar; é um processo, e não algo que já se sabe imediatamente, antes

43
Cf. GADAMER, H.G. Wahrheit und Methode. p. 216.
124

de sua realização. Afinal, se vimos com Gadamer que a interpretação se mostra


necessária quando há uma quebra do entendimento imediato, podemos concluir que a
interpretação mesma não será uma tarefa óbvia. Aqui entramos em um ponto
importante, e que marcará mais uma semelhança de Droysen com Hegel, desta vez
uma semelhança na estrutura do argumento, no modo de pensar: da mesma maneira
portanto que Hegel não se perguntara “como a ciência é possível?”, mas, sim, como
observa Merold Westphal, “por que a ciência é necessária?”44 e não deve se contentar
com a percepção sensível nem com a percepção, e que nestes momentos há sempre
uma ambição pelo absoluto ainda velada à própria consciência, Droysen partirá da
mesma questão: sua Historik não se limita a ser uma exposição de topoi que tornam a
história possível – na verdade, Droysen está empenhado em mostrar que a história é
necessária. Enfatizar somente como são possíveis as “histórias” e as narrativas não
constitui propriamente um erro da maioria dos estudos dedicados ao tema, mas
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sobretudo deixa de preencher uma lacuna decisiva, uma lacuna que poderá mostrar
como a história simultaneamente especulativa e representativa é necessária.
Droysen fará uma interessante exposição do processo interpretativo, dividindo
a compreensão em quatro momentos: interpretação pragmática, interpretação das
condições, interpretação psicológica e interpretação das idéias. Se não fosse um
processo, poder-se-ia suspeitar que, em algum destes momentos, o sentido histórico
seria mais acessível; todavia, o objeto da história não se mostra imediatamente pois
sua configuração não depende de elementos exclusivamente alheios ao observador.
Mesmo em seu primeiro momento – a interpretação pragmática – vê-se que, para
Droysen, é fundamental que o historiador tenha consciência deste movimento em que
a história constrói seu próprio elemento. É o que Hayden White chamara de
“fenomenologia da leitura”45.
A interpretação pragmática é a busca de evidências e informações nas fontes
feita pelo interesse do historiador. Nela se experimenta o ímpeto de dividir e retalhar
o material histórico em busca da maior precisão e reconstrução exata de um
determinado contexto ou de uma determinada época. Droysen sabe perfeitamente

44
WESTPHAL, M. “Hegels Phänomenologie der Wahrnehmung” IN: FULDA, H. & HENRICH, D.
Materialen zu Hegels Phänomenologie des Geistes., p.97.
45
Cf. WHITE, H. “Historical Writing as a Bourgeois Science”. p.88
125

que, mesmo o mais objetivo dos historiadores procura conscientemente um


determinado material, sabe o que pesquisa e se concentra nos menores detalhes de sua
pesquisa, sendo portanto precipitado considerá-los tão ingênuos a ponto de julgar que
sequer sabem qual seu objeto de estudo e que respostas as fontes podem oferecer às
suas questões. O problema não está exatamente em saber o que se quer, mas como se
busca e até onde se pesquisa o que se quer encontrar, e o que pressupõe este busca
ansiosa. Droysen procura mostrar que o interesse do historiador em buscar um
fenômeno absolutamente singular e objetivo em si mesmo acaba se mostrando
insustentável. Partindo do princípio de que é impossível haver material que responda
todas as questões levantadas, é necessário de alguma maneira, como diz Droysen,
lançar mão de dois artifícios: a comparação e a analogia. Da mesma forma que um
restaurador procura reconstruir uma escultura de acordo com esculturas ainda
preservadas da mesma época, o historiador certamente fará o mesmo com as lacunas
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que ele encontra na documentação. Mas a operação comparativa não é estabelecida


pelas fontes, mas sim pelo próprio historiador, e, assim, naquilo que há de mais
objetivo, ou seja, para a simples descrição de um determinado fenômeno,
invariavelmente é necessária a intervenção do historiador que pressupõe algo mais
universal do que a particularidade estudada: a fixação de sagas populares, como a
canção dos Nibelungos, teria sido impossível sem que se recorresse ao procedimento
comparativo e analógico. Como afirma Droysen, é legítimo superar o caráter
fragmentado dos vestígios e, a partir de semelhancas não evidentes “na letra do
texto”, estabelecer uma nova unidade. Logo, a interpretação pragmática revela seu
limite e precisa se tornar uma interpretação das condições, dos contextos que
tornaram tais comparações e analogias possíveis.
A interpretação das condições revela um aspecto ainda mais interessante:
nela entra em jogo a idéia de simultaneidade. É justamente por ver que nem todo o
sentido se encontra na leitura direta das fontes que não se deve somente ou quase
exclusivamente praticar história regional ou até mesmo história nacional. Mesmo o
documento que faça referência a um contexto extremamente específico poderá ganhar
sentido em detalhes mais obscuros se comparado com documentos semelhantes
produzidos em outros lugares. O convicto prussiano Johann Gustav Droysen,
126

defensor da unidade nacional alemã antes de Bismarck, já demarca os limites da


história nacional, tão popular à época, deixando claro que um de seus pressupostos
era justamente o de creditar às fontes uma riqueza que elas sequer conseguiam ter.
As condições a serem interpretadas, segundo Droysen, são, em geral,
interpretações dos “meios”, ou seja, das condições inerentes às ações humanas. De
um lado, Droysen considera as dimensões espaciais e temporais. Sem que seja
necessário se alongar demasiadamente, Droysen chama a atenção para a importância
dos aspectos geográficos e as relações estabelecidas por estes, desde a produção da
sobrevivência material de um povo, seu clima, até aspectos militares e estratégicos,
sempre dependente da topografia, hidrografia e outros elementos. Os fatores
temporais devem ser tematizados em toda a interpretação como aqueles elementos e
dados indispensáveis para a compreensão de um evento em particular; assim,
qualquer avaliação histórica da Revolução de 1848 na Alemanha permanece
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absolutamente obscura se não for levado em conta o que simultaneamente se


desenrolava em todo o continente europeu. É o problema da simultaneidade, que
novamente, indica Droysen, torna limitada muitas vezes a história política
enquadrada nacionalmente. Aos fatores espaciais Droysen correspondia os meios
materiais para a configuração de uma situação histórica; aos fatores temporais
Droysen articulava os meios morais de sua realização, ou seja, não era a geografia
francesa ou européia, a divisão pelo Reno entre Alemanha e França que teria gerado a
conquista napoleônica e a conseqüente guerra de libertação. Os meios morais, como
diz Droysen, a concorrência estabelecida entre vários agentes resultaria em uma ação
conjunta e heterogênea de fatores, que não poderia ser reduzida simplesmente a
condicionantes geográficos e mesmo temporais. Mesmo a reconstrução dos contextos,
tarefa interpretativa tornada necessária após experimentar-se os limites da
interpretação pragmática, encontrará ela mesma seus limites ao se desdobrar em
outros componentes.
Para que seja alcançada uma camada mais profunda, é necessário que o
intérprete ultrapasse as condições objetivas e procure novos fatores determinantes já
apresentados no segundo passo do processo de interpretação, a saber, a dimensão
moral, que Droysen entenderá como sendo a investigação do exercício da vontade,
127

ou, melhor dizendo, das diferentes vontades em conflito nas condições dadas. É a
investigação que abre a dimensão da interpretação psicológica. Esta, segundo
Droysen, encontra sua principal moradia no estudo das artes e da poesia. Usando
William Shakespeare como exemplo - e francamente não poderia usar exemplo
melhor, pois o dramaturgo inglês era tratado como semi-deus pelo próprio historismo
alemão, que nele via a configuração do gênio e, portanto, da singularidade histórica -
Droysen explica que a grandeza de Shakespeare não pode ser compreendida se
simplesmente interpretarmos suas tragédias como elaboração posterior de textos por
ele lidos. Não é como leitor de crônicas inglesas, do folclore dinamarquês, de
histórias de Plutarco e dos poemas de Ovídio que, segundo Droysen, Shakespeare se
mostra como é. Digamos que estas seriam as condições morais e temporais (Ovídio e
Plutarco eram amplamente lidos na Inglaterra elisabetana) para a obra de
Shakespeare; seu poder criativo, portanto, aí não se esgota. Da mesma forma que
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Droysen afirmava que o homem torna-se consciente de suas condições herdadas, não
poderia ser diferente com homens que destacaram-se em suas épocas e mesmo em sua
posteridade; a interpretação psicológica investiga sim a vontade, ou seja, a atitude
humana que corresponde à sua consciência e suas escolhas feitas e de não ser uma
criatura passiva perante as condições dadas.
Modulando o que havia afirmado a respeito da dificuldade, senão mesmo
quase total impossibilidade, de identificação com um princípio original, Droysen
levantará dúvidas a respeito do alcance da interpretação psicológica, e, por extensão,
da possibilidade de se reconstruir a ação de um determinado indivíduo.

Surgem várias dificuldades na interpretação psicológica. Primeiramente, o agente


não revela exteriormente de forma plena o seu conteúdo espiritual. O que foi feito é
apenas relativo, uma expressão parcial da totalidade que nós denominamos seu
“eu”. Podemos conhecer possivelmente sua intenção, mas não o fundamento de sua
intenção, possivelmente sua força de vontade aparece no fato, mas não o impulso
secreto de sua ação enérgica – assim sendo, trata-se de uma ação de segunda ou
terceira ordem deste caráter que nos é dado interpretar; o mesmo homem pode ter
sido diferente em outra época, e posteriormente pode ter se transformado, ele
talvez tenha exibido só deste modo condicional e parcialmente, e, assim, é de se
128

perguntar como se pode a partir de um fato isolado dizer que isto e aquilo é
constante e perene, e estes são os seus motivos.46

A passagem é digna de nota: não apenas Droysen recusa qualquer


“positivismo da vontade consciente”, ou seja, aquele pressuposto que iguala o ato
cumprido ao ato desejado, bem como nos sentimos obrigados a entender de maneira
diversa o que apontamos quando falamos da identidade fundadora da compreensão.
Falávamos então da culpa inerente à todos os homens. Que seja bem entendido: não
se trata de simpatia ou piedade. A culpa, pensávamos em momento anterior deste
capítulo, nos responsabiliza pelo passado que não realizamos empiricamente, “de
fato”. A identidade que a compreensão pressupõe em sua operação, claro está, não
poderá passar pela via psicológica. Esta é apenas uma etapa.
Dizemos isto porque é bastante comum confundir o pensamento historista
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alemão com a tentativa de reconstruir intenções dos agentes históricos. Na verdade,


este afã procura mesmo ser o marco que divide o conhecimento histórico do
conhecimento das ciências naturais e até mesmo o eleva perante elas, ou seja, como o
homem só pode conhecer plenamente aquilo que ele faz (como se também a natureza
tivesse sido criada de uma vez por todas e permanecesse inalterada) somente o
conhecimento das intenções e das vontades manifestas na história caracterizariam o
conhecimento humano mais autêntico. Droysen não partilha de um tal otimismo em
que fica suposto que o ato realizado é expressão plena de um determinado agente.
Haveria para Droysen algo velado na própria ação que o historiador não conhece caso
se limite a dissecar um agente específico. Na verdade, ao se pensar que o ato
realizado é expressão de uma totalidade, já se pressupõe uma coerência na biografia
de um determinado agente que Droysen não aceita como garantia inquestionada do
conhecimento histórico. Após ver no nível pragmático que o esquadrihamento de um

46
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.190. Es treten da mehrere Schwierigkeiten ein. Einmal, der
Handelnde tritt nicht mit der ganzen Fülle seines geistigen Inhalts in das Äussere, das Getane ist nur
der relative, nur die teilweise Ausdruck der Totalität, die wir sein Ich nennen; vielleicht seine Absicht,
aber nicht der Grund seiner Absicht, vielleicht seine Willensstärke, aber nicht die geheime Triebfeder
seines energischen Handelns erscheint in der Tatsache. – Sodann, es ist nur eine oder eine zweite,
dritte Tathandlung }dieses Charakteres{ die uns zur Interpretation zugänglich wird; derselbe Mann ist
vielleicht früher anders gewesen, ist später ein anderer geworden, er ist vielleicht nur durch Umstände,
nur zietweise aus seiner sonstigen Art hinausgedrängt, wie wollen wir aus den einzelnen Tatsachen
schliessen, so und so ist konstant und dauernd dieser Charaktere, so sind seine Motive.
129

evento fatalmente levará a comparações que indiquem uma dimensão interpretativa


mais ampla do que a simples descrição pretende, após ver que as condições que
tornam possíveis as comparações exigidas pela superação da própria interpretação
pragmática são fatores correlatos mas que, na verdade, se mostram correlatos a partir
de um determinado ponto que os une – o exemplo de Shakespeare e suas influências
culturais ou de um general que aproveita condições geográficas de um determinado
território -, dificilmente Droysen deixar-se-ia render pela coerência psicológica de um
determinado agente histórico, não importando se tal agente é poeta, general ou
estadista. Novamente percebe-se como o percurso do historismo alemão nem sempre
se mostra linear e exibe fraturas e sutilezas. O elogio do gênio artístico e político, do
homem que ao ser espontâneo e criador imita a natureza superando-a e por isso faz
história ao criar obras novas e imprecedentes, não encontrará eco em Johann Gustav
Droysen, isto porque ele simplesmente se pergunta pela razão de se acreditar que este
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“eu” é algo fixo. Sem explicitar, Droysen de alguma maneira mostra os limites de
uma visão histórica que, ao querer se libertar do classicismo normativo, acaba
imitando-o, fazendo da obra imprecedente algo acima de seu tempo, puro, e, por isso,
não criado através de um processo contínuo e histórico. Ou seja, não criado de todo.
Na verdade, não relativizar a interpretação psicológica seria dar à autobiografia ou
qualquer outra forma de confissão o máximo grau de conhecimento humano, o que
seria supor que cada homem pode ter de si o próprio controle de suas expressões, o
que caracterizaria um solipsismo que evitaria o caráter mediado do próprio
conhecimento histórico. A rigor, a história seria inútil já que cada qual teria plena
consciência de si e não precisaria jamais de algo diverso para buscar o conhecimento.
“O espírito não se esgota com predicados”47, diz lapidarmente Droysen, e às
circunstâncias é necessário dar um valor maior, não para que seja criado um grande
mosaico, mas que elas sejam compreendidas como tais e não confundidas com uma
totalidade determinada pela tentativa de julgar do historiador. Segundo Droysen, um
evento, uma situação, um fato, uma ação devem ser interpretadas de acordo com a
idéia que lhes atravessa.

47
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.190. Das Geistige ist eben nicht mir Prädikaten
auszuschöpfen
130

A história não passaria mesmo de um amontado de som e fúria se cada


evento tivesse seu significado em si mesmo. Um evento para Droysen não é histórico,
mas sim torna-se histórico, ou seja, ele serve de guia, um padrão que estabelece a
continuidade do devir a ser tecido pela própria pesquisa, que irá, ela mesma, cruzar os
fios que compõem a trama. O exemplo dado por Droysen aos seus ouvintes é bastante
ilustrativo. Ao se defender de Roma, o Rei da Boêmia, Georg Podiebrad, tinha o
interesse imediato de se manter no poder. O Rei Podiebrad, todavia, tomava suas
decisões dentro do contexto de seu tempo, ou seja, lutar contra Roma tinha
implicações que ultrapassavam as idéias de Estado e Igreja. Em suas ações, já se
encontram, segundo Droysen, as idéias de nação e de secularização. O
entrecruzamento das esferas da Igreja, do Estado, que certamente podem ser
encontradas nos documentos de forma literal, com as idéias de nação e secularização,
só pode ser feito pelo historiador. As fontes nada dirão a respeito.
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O passo a ser dado por Droysen ultrapassa a capacidade do historiador em


impor ao aparentemente disperso uma determinada unidade que os próprios agentes
da época não tinham consciência, como se fosse uma idéia indeterminada e que servia
de “média” para a época, e, assim, a interferência do historiador é mais do que
simplesmente reconstruir uma realidade psicológica, mas construir a teia em que se
cruzam as esferas articuladas pelo fato em questão, de modo que examinar a
psicologia do Rei boêmio não bastaria, pois tentar entender o porquê de Podiebrad
desejar o que ele intenciona, por mais refinado que seja tal entendimento, não poderá
dar conta da heterogeneidade e complexidade do significado de sua ação em outras
esferas. Isto posto, uma atitude de motivos imediatamente militares e quando muito
nacionais poderá ter reflexos religiosos profundos – e isto Podiebrad não poderia
dizer de si mesmo, nem qualquer outro seu contemporâneo poderia fazê-lo. O que
interessa a Droysen é perceber que, por o historiador sempre impor sua subjetividade
para que o próprio evento tenha sentido, deve se admitir um movimento e uma
continuidade a partir de tais eventos. Esta continuidade será o corpo do último e mais
profundo nível interpretativo do historiador, a saber, o da interpretação das idéias.
O plural diz muito neste caso – trata-se afinal de idéias, e não da idéia. O
conflito com tendências dogmáticas nesta esfera é tenso, pois a possibilidade de se
131

largar a definição da idéia de Estado em afirmações mais ou menos impostas é


bastante tentadora. Na verdade, trata-se de um risco. Caso se queira entender o
significado da religiosidade ocidental-cristã a partir do caso Podiebrad, não se corre o
risco de simplesmente se impor a um determinado fenômeno não-religioso uma
natureza objetiva de outra matriz, e, assim, violentá-lo? Não começava o próprio
Droysen cada uma de suas preleções a partir de uma determinada definição de seu
objeto, donde se conclui que os objetos precisam ser descritos e construídos porque
justamente não estão naturalmente ou materialmente dados de antemão ao
historiador? O risco de se ver, por exemplo, elementos religiosos em fenômenos
aparentemente militares ou políticos, ou econômicos em contextos religiosos, pode
levar o historiador a confundir a heterogeneidade com a redução da teia a um de seus
pontos.
Ainda falando dos ditos grandes homens, Droysen mostra que, em casos
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como os de Martinho Lutero, Kant ou Napoleão, não se trata de enquadrar toda uma
época em suas vidas, mas de reconhecer de alguma maneira que suas obras refletiam,
como se iluminassam, a totalidade do mundo das forças éticas. Fundamental na idéia
de sagrado em Lutero, de conhecimento em Kant e de poder em Napoleão não é que
suas épocas se limitassem ao sagrado, à filosofia ou à política, mas, na verdade, tais
idéias, dada a sua força, colocavam em conflito todas as demais, movimentando-as.
Assim, elas não eliminavam, mas mostravam, em seu devir, como a idéia de sagrado
em Lutero poderia, como ressalta Droysen, violentar a idéia de belo (dada a sua
importância no catolicismo), ou a idéia de poder, em Napoleão, a idéia de bem e de
justiça. Assim, criadores como Lutero, Kant ou Napoleão desestabilizam ao
estabelecerem novos princípios para uma determinada época:

Vê-se que seria insuficiente observar um determinado presente somente sob o


ponto de vista de um lado das alternativas; o presente só se torna compreensível se
simultanemante se se tenta entendê-lo a partir dos outros lados, todos os outros, a
partir de todos os pontos em movimento sincrônico.
Este movimento não é senão a crítica interminável que as idéias exercem sobre
suas expressões unilaterais (…) A vida das idéias é mesmo um devir em um
circuito interminável, ou seja, progredindo de pensamento em pensamento, esta
132

vida se configura e imerge na consciência de maneira mais profunda, determinada


e elaborada.48

Desta maneira, é necessário investigar as idéias em seu movimento, e não


porque elas tenham tido um momento ideal em uma determinada época que tenha lhe
servido de norma para as demais épocas, mas sim porque, ao chegarem a este
momento decisivo, elas suscitam reações que naturalmente, geram conflitos
específicos. Isto em si já indica a necessidade de compreender horizontalmente uma
idéia em movimento, em suas idas e voltas, no que ela diz e no como ela é recebida.
Assim, a interpretação das idéias demanda que, ao se partir de um ponto, este se
supere a si mesmo e indique a necessidade de ser compreendido, em uma totalidade
que serve de local de conflitos e gerações de idéias: todavia, o que importa destacar é
a ênfase na necessidade do historiador ser criativo, produtor de sentido. E é nesta
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esfera que se completa o método histórico desenvolvido por Droysen: na apodeixis,


na apresentação, na qual e somente na qual a idéia de autonomia da história como
forma de pensamento poderia ser plena; afinal, se em questão está a produção do
próprio alimento que dará sustentação a uma forma de conhecimento, do processo
criativo não poderia escapar a fase do que vulgarmente se entende como a
transmissão deste conhecimento.

3.2.2.
Representação e conhecimento histórico.

Ao posicionar como último passo na afirmação do método histórico a sua


esfera representativa, Johann Gustav Droysen dava à linguagem uma importância
nas ciências do espírito, e, mais especificamente, na ciência histórica, que, se não

48
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.210. Man sieht, es wäre ungenügend, eine Gegenwart nur
unter dem Gesichtspunkt einer Seite der Alternativen zu betrachten, sie wird erst verständlich, wenn
man sie zugleich nach der anderen, nach allen anderen Seiten, nach der in allen Punkten gleichzeitigen
Bewegung auffasst.
Diese Bewegung ist nichts anderes als die rastlose Kritik, welche die Ideen untereinander gegen ihren
einsitigen Ausdruck üben (…) Das Leben der Ideen selbst ist es, so im rastlosen Ringen zu werden,
d.h., von Gedanke zu Gedanke fortschreitend sich immer tiefer, bedidungsreicher, durchgearbeiteter zu
gestalten und in das Bewusstsein zu sinken.
133

fosse exatamente original, posto que Johann Gottfried Herder49, Wilhelm von
Humboldt e Gottfried Gervinus já haviam lidado com o tema, ao menos apresentava
uma nova forma de tratamento do problema. A criatividade do historiador, já
ressaltada pelo citado Humboldt em seu clássico texto “Sobre a tarefa do
historiador”50, era entendida por Droysen como uma necessidade, não um capricho
diletante; a verdadeira obra historiográfica deveria ser necessariamente criativa, pois
a passividade absoluta exigida pelo objetivismo era impossível em seu cerne, e,
assim, a discussão das formas de pensar historicamente ultrapassa a mera escolha de
tendências teóricas. Todavia, Droysen não se deixava encantar facilmente pela idéia
de criatividade nas ciências históricas:

Longe de nós afirmar que por isso [pela dimensão criativa da história.-N.A.] que a
história pertença à área da grande literatura; seria somente uma confusão conceitual
dizer que necessariamente deveriam entrar aqui formas artísticas e estéticas só
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porque está a se tratar de formas de exposição e de idéias.51

É bem verdade que Droysen pressupõe uma idéia de arte e do artista ainda
bastante impregnada pelo romantismo – mesmo que se saiba que ele já se distancia do
entusiasmo romântico e sua busca de reconciliação do homem com a natureza – pois,
para marcar a dimensão criativa do historiador ele precisa desenhar uma imagem do
artista como um ser praticamente fechado em si mesmo e puramente determinado

49
Johann Gottfried Herder, mesmo sem ter elaborado uma Historik no sentido próprio do termo, ou
seja, sem ter se dedicado à sistematização de uma ciência histórica, obteve conquistas interessantes
dentro de sua filosofia da história informada por uma filosofia da linguagem. As premissas de uma
teologia negativa em Herder fariam da criatividade uma exigência, jamais um capricho. Posto que
Deus jamais poderia ser conhecido plenamente, e, assim, jamais imitado, haveria a necessidade de se
lançar mão de recursos discursivos que ultrapassassem os limites da linearidade da simples mimesis,
da mera cópia.
50
Cf. HUMBOLDT, Wilhelm von. “Sobre a tarefa do historiador”. IN: Anima: História, teoria,
cultura. Curitiba: Casa da Imagem, 2001. pp. 79-90. Neste texto, Wilhelm von Humboldt deixa claro
dois elementos que seriam posteriormente aproveitados – e sistematizados – por Droysen. Humboldt
tanto critica a objetividade do historiador, como alerta que a criatividade que ao fim deste é exigida se
movimenta dentro de uma certa noção de humanidade, cuja forma seria depurada ao longo dos tempos.
Para Humboldt, ainda o termo compreensão não viria à tona, mas sobretudo o termo “Begreifen”. A
função semântica todavia é a mesma.
51
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.217. Aber wir sind weit davon entfernt, zuzugestehen, dass
die historische Wissenschaft darum im Bereich der schönen Literatur gehört; es wäre nur eine
Verwirrung der Begriffe, zu sagen, dass hier notwendig künstlerische, ästhetische Formungen eintreten
müssten, weil von Ideeen und von Darstellung die Rede ist.
134

pela sua imaginação. Todavia, o que ele dirá do historiador será suficiente para que se
evite dizer que a subjetividade a ser vista em sua atividade não é plena e somente
dependente de si mesma. O objeto a ser estudado pelo historiador oferecerá
resistências, e, assim, a determinação dos meios do conhecimento em momento
algum escapam da tentativa de conhecer o objeto deste mesmo conhecimento.
Seguindo o mesmo padrão criado para mostrar o caráter interpretativo do
conhecimento histórico, Droysen irá elaborar, desta vez até com mais rigor, uma
tipologia do discurso histórico. A tipologia da representação histórica elaborada por
Droysen poderá ser bastante útil, e como tal indica um fator de diferença em relação a
Hegel – ainda que o filósofo, em sua preleção sobre história mundial em 1821 (a mais
famosa, a Razão na História, é de 1830), tenha delimitado igualmente a apresentação
histórica em uma tipologia. Mas a questão não é exatamente confeccionar ou não uma
tipologia, mas reservar-lhe um lugar para a importância da representação que não se
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limite a uma função retórica e ornamental. Na dimensão representativa estamos


falando da atribuição criativa de sentido a partir da linguagem e da apresentação
empregada pelo historiador. Sobretudo é fundamental que tal discussão seja
considerada a partir de um ponto: a representação cumpre papel decisivo, pois seria o
meio através do qual o homem se mostra como anomalia, ou seja, no qual ocupa um
ponto central na criação, em que reflete a eternidade de Deus, e por isso é criativo. A
questão passa a ser a seguinte: trata-se de perceber sob que ângulo este espelho reflete
a eternidade de Deus – será o ângulo da representação?
Análogo ao primeiro movimento da Compreensão, tem-se aqui na exposição
investigativa (Untersuchende Darstellung) a primeira etapa. Esta, diz Droysen, se faz
necessária sobretudo quando não é possível a mais comum das formas de exposição,
a saber, a narrativa. A função da exposição investigativa é ser uma mimesis da
própria investigação, em que os passos da pesquisa são mostrados em cada um de
seus momentos, e deve ser sobretudo aplicada em casos de estudo em que escasseiam
as fontes: para exemplificar, diz Droysen, é completamente impossível fazer uma
história honesta da constituição ateniense até Solon de modo narrativo e genético, ou
seja, por faltar material que permitam que se estabeleça a continuidade da narrativa, o
historiador deve não somente apresentar os resultados da pesquisa, mas sobretudo o
135

caminho que o levou até seus resultados. A exposição investigativa pode, neste
sentido, partir tanto da questão que motivou o historiador a investigar, e, assim,
apresentar os dados recolhidos a partir desta questão formulada previamente, ou
mostrar como a própria pesquisa, ao encontrar materiais que deixavam muitas
lacunas, levanta novas questões cujos resultados só podem ser acolhidos se sua
provisoriedade for aceita. Lembrando seus dias de helenista, Droysen afirma que a
presença constante da figura do camponês nas comédias de Aristófanes pode ser
pesquisada e apresentada tanto na constatação desta mesma presença, bem como
através da pergunta pelo motivo que teria levado Aristófanes, dadas as condições da
agricultura grega em sua época, a representar o agricultor desta ou daquela maneira
nesta ou naquela peça. Todavia, o que importa ressaltar é a idéia de mimesis aí
explicitada por Droysen, ou seja, uma mimesis da próprio caminho de pesquisa.
Esta mesma idéia de mimesis irá receber uma outra face na dimensão seguinte
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da apresentação do conhecimento histórico, a saber, a exposição narrativa


(Erzählende Darstellung). Aqui o ponto central é levantar a questão da relação entre
o narrador e o assunto da narrativa, por assim dizer. Consciente desde o início de suas
preleções que havia a necessidade de que os mais sólidos preconceitos fossem
abalados, Droysen não teme o risco de dizer trivialidades ao dizer, da mesma forma
que disse ser impossível dar conta, na interpretação pragmática, de todo o material, da
totalidade do conhecimento histórico. E isto não porque simplesmente o historiador é
forçado a isto, mas sim porque, lembrando a lição aprendida em Hegel, qualquer
pretensão de objetividade já traz consigo, traindo esta pretensão, uma série de
elementos culturais, nacionais, religiosos e lingüísticos na mera percepção do fato que
se pretende conhecer em sua pureza. É justamente a consciência desta parcialidade
que dará à narrativa como forma de representação seu principal traço: ser mimesis do
devir, que, para Droysen, é um ato subjetivo cumprido pelo historiador, um ato
abstrato que se diferencia de um simples registro do transcurso aparente das coisas.
A forma a ser realizada nesta mimesis do devir, porém, não é, segundo
Droysen, de natureza especulativa e previamente dada. Da mesma maneira que
Droysen afirma que o presente não é um dado imediato, mas, na verdade, uma
instância que, se abandonada a si mesma, apenas se fragiliza e se deixa levar pela
136

fugacidade de cada instante, sendo pois absolutamente decisiva a mediação do


presente com o passado, aqui, em uma dimensão representacional do conhecimento
histórico, a mediação terá a mesma importância. O elemento subjetivo que, segundo
Droysen, é fundamental, na verdade, não se mantém sem a contrapartida objetiva –
esta, segundo ele, será a diferença entre a escrita da história e a filosofia especulativa
da história:

O historiador não encobre ou mascara pensamento especulativos com fatos, mas os


fatos, por ele narrados, são os próprios momentos de sua cadeia de pensamento.
Por isso mesmo Hegel, com sua filosofia da história, acabou não prestando um
grande serviço. Ele [o historiador] pensa, por assim dizer, nas formas dos fatos, da
mesma maneira que o pintor não ordena suas figuras a partir de uma abstração
qualquer e, a partir daí, distribui suas cores.52

O mais importante, como foi dito, é que se mantenha a tensão entre o narrador
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e o material narrado. A narrativa, segundo Droysen, é genética, ou seja, sempre


precisa se construir ex-post; segundo ele, somente a reconstrução de um determinado
caminho pode conciliar a possibilidade de que sejam articulados cada momento em
sua particularidade relativa e o todo percebido pelo historiador – relembrando o que
havia dito sobre o problema das origens, a semente só mostra sua potência de semente
caso a árvore se desenvolva e se transforme em algo diverso à semente. Esta questão
é fundamental, pois, ao aliar o elemento subjetivo a compor a mimesis do devir com
os elementos objetivos que não são passivos ao que simplesmente o historiador deseja
expôr, chega-se a um ponto em que a discussão sobre o sentido da contingência
adquire relevância.
Primeiramente, esta contingência se revela não exatamente no fato que só faz
sentido no todo, mas justamente neste todo, que é tecido pelo historiador. O todo tem
natureza parcial: sem a menor pretensão de que a narrativa seja uma pesquisa
obsessiva por detalhes e por adornos históricos, ou seja, uma pesquisa pelas
aparências, Droysen sabe que reconstrução não é cópia, e, por isso, a escolha dos

52
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.233. Der Historiker umhüllt und maskiert nicht etwa
spekulative Gedanken mit Tatsächlichkeiten, sondern die Tatsachen, die er erzählt, sind selbst die
Momente seiner Gedankenreihe. Deshalb hat denn auch Hegel mit seiner Philosophie der Geschichte
keinen grossen Dienst geleistet; er [der Historiker] denkt sozusagen in der Formen von Tatsachen, so
wie der Maler nicht von irgendwelcher Abstraktion her seine Figuren ordnet und seine Farben verteilt.
137

fatos que darão formas à narrativa é sempre determinada de acordo com um critério.
Aí chega Droysen a um ponto decisivo: a narrativa sempre parte de uma perspectiva,
precisando ter um ponto de observação sólido. Este ponto é o elemento produtivo,
jamais aquele que simplesmente se deve superar e esquecer para que os fatos
apareçam. Da mesma maneira que se pode notar que o presente apesar de não se
identificar com o momento imediato, é o “espelho da eternidade de Deus”, aqui
Droysen também está consciente de que este ponto de observação pode ser sólido,
mas também é estreito. A nação poderá dar-lhe esta consistência e servir de ponto de
partida, jamais como um resíduo do qual o historiador tem que se livrar.

Outras nações, menos dominadas pela disposição alemã de fazer história mundial e
mais dominadas pela visão parcial do nacionalismo, conseguem se sair melhor com
a representação narrativa, pois elas firmaram de uma vez por todas este ponto de
vista nacional. (…) A nós nos falta esta parcialidade e força nacionais, a nós nos
falta esta autoconfiança; Entre nós a parcialidade é motivo de acusação quando
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alguém escreve sobre coisas alemãs pensando de maneira alemã, austríaca ou


prussiana; e assim chegamos à condição mais infeliz de considerar primoroso o
fato de não se ter qualquer perspectiva, mas sim de se ver as coisas através da
perspectiva panorâmica. (…)
Eu considero este modo de uma objetividade eunuca, e se a imparcialidade e a
verdade históricas consiste neste modo de observar as coisas, então os melhores
historiadores são os piores, e os piores, os melhores. Eu não quero mais do que
deixar à mostra a verdade relativa de meu ponto de vista; mas também que não
desejo menos do que isso. Quero mostrar como minha pátria, minhas convicções
religiosas e políticas e meu tempo me permitiram tê-lo. O historiador precisa ter a
coragem de admitir tais limitações, pois o limitado e o específico valem mais e são
mais ricos do que o geral. A imparcialidade objetiva, como Wachsmuth recomenda
em sua teoria da história, é desumana. Humano é, na verdade, ser parcial.53

53
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. pp.235-6. Andere Nationen, die weniger als die deutsche von
weltgeschichtlichen Dispositionen beherrscht und einseitiger national sind, wird die erzählende
Darstellung darum stets besser gelingen, weil sie ein für allemal diesen ihren nationalen
Gesichtspunkten festhalten (…) Uns fehlt diese nationale Einseitigkeit und Härte, diese
Selbstgewissheit; bei uns wird über Parteilichkeit geklagt, wenn jemand von den deutschen Dingen
deutsch, oder preussisch denkend schreibt; und wir sind darüber in die unglückselige Art geraten, es
für vortrefflich zu halten, wenn man gar keinen Standpunkt hat (…)
Ich danke für diese Art von eunuchischer Objektivität, und wenn die historische Unparteilichkeit und
Wahrheit in dieser Art von Betrachtung der Dinge besteht, so sind die besten Historiker die
schlechsten und die schlechsten die besten. Ich will nicht mehr, aber auch nicht weniger zu haben
scheinen als die relative Wahrheit meines Standpunktes, wie mein Vaterland, meine religiöse, meine
politische Überzeugung, meine Zeit zu mir haben gestattet. Der Historiker muss den Mut haben, solche
Beschränkungen zu bekennen, denn das Beschränkte und Besondere ist mehr und reicher als das
Allgemeine. Die objektive Unparteilichkeit, wie sie z.B. Wachsmuth in seiner Historik empfiehlt, ist
unmenschlich. Menschlich ist vielmehr, parteilich zu sein.
138

Será a narrativa de uma nação a superfície do espelho no qual se reflete a


eternidade de Deus? Conforme já foi dito, o presente é espelho da eternidade de
Deus, mas também é fugaz. Vale perguntar pelo sentido desta parcialidade que, ao
invés de constranger, é fundamental para que a narrativa história seja consistente.
Droysen sabe perfeitamente que ela não se confunde com uma idéia de parcialidade
arbitrária, e, assim, deve-se saber como poderá ser desenvolvida tal idéia de
correlação entre parcialidade e humanidade, entre uma perspectiva determinada e
caracterizada religiosa e nacionalmente com uma outra que permite compreender
Deus. Este é um dos cernes do historismo, e possivelmente aquele que dá tanto seu
brilho quanto sua miséria. De acordo com Walter Schulz, “o reconhecimento desta
condição [histórica-N.A.] é a precondição para que nós não pairemos em
generalidades, mas para que possamos conhecer e realizar possibilidades que nos são
abertas, ou seja, para que se pense e aja de acordo com o tempo.”54. Se por um lado,
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porém, reconhecemos que a parcialidade é a marca do homem, justamente porque se


reconhece historicamente situado e não “generalizado” por sobre as épocas, por outro
lado, será possível entender esta parcialidade como nacionalidade, ou seja, através de
uma forma de compreensão de mundo (o nacionalismo), um tanto quanto dependente
de pressupostos orgânicos que o próprio Droysen rejeitava?
Posto estarmos tratando do problema da atribuição de sentido, a questão a ser
levantada é: quem é o narrador? Já que o sujeito psicológico é inferior ao sujeito
historicamente circunscrito, que resistência é capaz de oferecer o material histórico na
composição narrativa? Se for mal desenvolvido, o problema não conseguirá atingir o
centro mesmo do problema da mediação: da mesma maneira que o presente não se
revela imediatamente, pode-se dizer que a narrativa não se dá independente do
material a ser descrito. Não podemos pois deixar de lado a importância da discussão
da narrativa, que se justifica pelo seguinte motivo: primeiramente, como aliás já
dissemos, ela é o modo através do qual a teodicéia de Droysen se apresenta e se
revela. Possuindo dimensão estética, ela não dispensa a forma. A narrativa, se não é
suficiente, será elemento necessário para que seja compreendido este processo de

54
SCHULZ, W. Philosophie in der veränderten Welt. p.570.
139

revelação que Droysen percebe como tarefa da própria compreensão, da própria


hermenêutica. Em segundo lugar, mas não menor em importância, temos uma questão
fundamental para o saber histórico: se já sabemos que não podemos descartar a
dimensão especulativa do pensamento de Droysen, como entendermos sua dimensão
representativa? O problema não é de modo algum acadêmico: a relação instável com
o mundo presente, com o mundo circundante, que em Droysen não é de modo algum
natural e é sempre mediada, de alguma maneira não exclui uma representação deste
mesmo mundo, uma atribuição de significado. Por mais que os sinais e símbolos
externos tenham perdido o sentido, a conclusão não poderá ser uma melancólica
impossibilidade de expressão.
Dentro da idéia de narrativa, Droysen percebe um feixe composto por três
tipos: a narrativa que se estrutura a partir da confirmação constante de uma idéia, uma
outra forma de narrativa que apresenta a configuração desta outra idéia e uma terceira
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que precisa demonstrar a metamorfose do objeto a que se dedica55. De acordo com


Droysen, os objetos da primeira seriam biográficos, da segunda monográficos e da
terceira, catastróficos. No objeto biográfico, que não necessariamante se confunde
com uma vida biológica e individual, “nele permanece um fundamento substancial,
que irrompe repetidamente nas mais profundas configurações da vida de um povo”56.
Já a apresentação feita monograficamente, ou seja, a que persegue a configuração de
um determinado objeto histórico, não procura um mesmo pensamento em todas as
suas variações, mas procura ver como ele se desenvolve e se complexifica. Sua

55
Não podemos deixar de assinalar a notável atualidade de Droysen na tipologia elaborada: vejamos o
caso de três obras fundamentais para a compreensão do nacional-socialismo, evento histórico
evidentemente posterior a Droysen: não é a obra de Daniel Goldhagen, Os Carracos voluntários de
Hitler, um exemplo de uma narrativa na qual se confirma uma idéia, a saber, a de que os alemães são
em todos os tempos anti-semitas homicidas, que somente esperaram as condições naturais de
realização do massacre judeu? E a obra clássica de Raul Hilberg, The Destruction of the European
Jews, não seria justamente a exposição de um anti-semitismo que se desenvolve de um
assimilacionismo que busca converter os judeus em cristão até simplesmente o seu assassinato (a idéia
em três etapas: vocês não têm o direito de viver entre nós como judeus/ vocês não têm o direito de
viver entre nós/ vocês não têm o direito de viver)? Por fim, a própria idéia de metamorfose, na qual ha
uma quebra de identidade, não seria a categoria restante para se lidar não somente com a história das
duas repúblicas alemãs do pós-guerra, mas também com toda a história européia depois de Auschwitz?
56
DROYSEN, J.G. Historik. ed. Leyh. p.243. Es ist und bleibt da eine substantielle Grundlage, die in
allen tiefinnerlichen Gestaltungen des Volkslebens wieder durchbricht.
140

premissa é a continuidade. Todavia, para Droysen a forma mais elevada de narrativa é


a catastrófica, na qual, assim como o drama, o historiador precisa dar conta da

luta entre existências relativamente justas, pensamentos relativamente verdadeiros,


uma luta, sobre cujo percurso paira um pensamento superior (…) trata-se aqui de
mostrar, exatamente como se dá na tragédia, de como a partir de luta de Titãs
aparece um mundo e deuses novos. É assim que Ésquilo tece sua Oréstia, e
Shakespeare seu MacBeth e seu Hamlet.57

Fundamental em uma narrativa é a percepção desta estrutura trágica, em que


cada agente possui, como diz Droysen, uma verdade parcial – donde se explica o
limite da explicação psicológica, ou seja, a ambição de ver em uma parte uma
coerência que não se encontra mesmo no conflito a partir do qual se gerou o próprio
presente em que se encontra o historiador. A resposta encontrada em Droysen satisfaz
apenas parcialmente: sim, não podemos mesmo pensar em uma idéia orgânica e
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natural de nacionalidade, em uma idéia sem fraturas. O que importa ressaltar é o


seguinte: se a narrativa catastófica é sobretudo a apresentação de forças que colidem
entre si, podemos entender que, para Droysen, o Estado jamais será a instância capaz
de resolver conflitos e, assim, ser o objeto de estudo da história, como queria Hegel.
Não deixa de ser interessante que, ao nosso ver, Droysen partilha de uma idéia
hegeliana de Estado, ou seja, um Estado do qual o homem participa e é de alguma
maneira responsável por ele, e não simplesmente um súdito obediente. Mas a
conclusão será diversa: sem discutir diretamente com Hegel, Droysen parece chegar a
lugar diferente partindo da mesma idéia de que o homem encontra sim a liberdade no
Estado. Para Droysen,

Quando se vê o Estado somente como a idéia organizada do Direito, então ele se


torna impenetrável, pois a essência do Estado é ser poder, abranger o poder público
em sua totalidade. Mas, digam-me, o que lhe diz respeito quando falamos da igreja
e escola, da economia e do comérico? Todos esses momentos podem alimentar ou

57
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.246. Es ist der Kampf relativ berechtiger Existenzen, relativ
wahrer Gedanken gegeneinander, ein Kampf, über dessen Verlauf der höhere Gedake schwebt (…)
Hier gilt es zu zeigen, wie aus Titanenkämpfen eine neue Welt und die neuen Götter werden; genau
wie in der Tragödie; denn so schliesst Aischylos seine Orestia ebensowohl wie Shakespeare seinen
Macbeht, seinen Hamlet.
141

diminuir o poder público, garanti-lo ou ameaçá-lo; e poder não é somente dinheiro


e exército, o poder público não é somente força bruta.58

O Estado não seria capaz então de concentrar em si todas as demais esferas e


instâncias, anulando-as. Se em Hegel o Estado era a dimensão no qual o homem
participava, e não simplesmente obedecia de maneira distanciada, em Droysen será
justamente por pensar que o homem participa da vida do Estado que necessariamente
um relação mas fluida deverá ser pensada: se o homem participa do Estado reduzindo
todas as suas atividade a ele, simplesmente ele passaria a ser, na visão de Droysen,
um súdito. A participação não poderá, segundo Droysen, excluir a possibilidade de
cada esfera (igreja, universidade, economia) poder se deternimar, ou, ao menos, se
reconhecer sobretudo como aquilo que é. Na verdade, o Estado se dissolve por meio
delas, em um jogo de fluxo e contrafluxo. A dimensão representativa da história
haverá necessariamente de levar tal aspecto em consideração, e expandir suas
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possibilidades para além de sua possibilidade narrativa, ainda que não a exclua como
tal. Se a idéia de história já aparece geralmente contaminada por pressupostos não
examinados, e se exame significa mais do que uma simples limpeza, mas, na verdade,
uma tomada de consciência dos elementos que formam o presente, chega-se a um
ponto decisivo no pensamento teórico e histórico de Droysen: se para superar o aqui e
agora e o presente imediato, logo, para que se torne um homem culto (gebildeter
Mensch), o historiador deve assim se contentar com a exposição através de uma
representação narrativa?

Eu espero ter provado que é insuficiente limitar a exposição da área da história ao


Estado, como se dissesse que só haveria uma forma de apresentação, a saber, a
narrativa. E eu acredito, que a perspectiva na variedade das formas de exposição é
de muitos modos rica e apropriada para eliminar um preconceito sob o qual a nossa
ciência verdadeiramente padece.59

58
Ibid. p.276. Wenn man den Staat nur ansieht als die organisatorische Rechtsideem so ist das
vollkommen unzugägnlich, denn das Wesen des Staates ist, Macht zu sein, die öffentliche Macht der
Gemeinsamkeit, die er umfasst. Aber sagt man, was geht ihn die Kirche und die Schule, die
Volkswirtschaft und Handeln an? Alle diese Momente haben für ihn die Gesichtspunkte, die
öffentliche Macht zu mehren oder zu mindern, zu sichern oder zu gefährden; die Macht ist nicht bloss
Geld und Armee, die öffentliche Macht ist nicht bloss rohe Gewalt.
59
DROYSEN. J.G. Historik. Ed. Leyh. p.280. Ich hoffe erwiesen zu haben, dass es ebenso
ungenügend ist, das Gebiet der Geschichte auf den Staat zu beschränken, wie zu meinen, es gäbe nur
142

Poderíamos portanto pensar que a narrativa, entre Hegel e Droysen, muda


pelo peso diverso atribuído ao pressuposto que a sustenta, a saber, o Estado. É a
própria parcialidade do Estado que levará a Droysen pensar que a apresentação do
conhecimento histórico haverá de ser, neste sentido, mais do que narrativa. Não será
pois a narrativa a possibilidade última de ser “espelho da eternidade de Deus”, e,
portanto, a instância na qual o conhecimento histórico se mostra criativo, produtor.
Na verdade, quando Droysen pensa em autonomia da história, ou seja, quando
pensa como a história pode contribuir para um cenário que não explica ou
compreende tudo que desafia e permanece sem encaminhamento conseqüente, ele
está sobretudo levantando a questão da necessidade da história, e não de sua
possibilidade de se configurar desta ou daquela maneira (fora ou dentro do mundo
universitário, narrativa ou sistemática), como se de antemão ela já fosse possível.
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Assim, estamos tentando captar em Droysen a angústia de um pensamento que


pretende mostrar que a história é necessária – este é o cerne da Historik, sugerido mas
pouco desenvolvido por análises e estudos que, apesar de úteis e mesmo brilhantes,
partem da pergunta das possíveis formas que a história pode assumir, e não sua
necessidade. É o caso por exemplo de Reinhart Koselleck60 e Jörn Rüsen, que
elaboraram, mesmo depois da famosa tropologia de Hayden White, sofisticadas
tipologias da narrativa histórica, nas quais se expõe que formas ela pode assumir e

eine Weise historischer Darstellung, die erzählende. Und ich glaube, dass die Einischt der
Mannigfaltigkeit der Darstellungsformen eine in vieler Weise fruchtbare und geeignet, ein Vorurteil zu
beseitigen, an dem unsere Wissenschaft recht gründlich krankt.
60
Cf. KOSELLECK, R. “Historik und Hermeneutik”, IN: idem. Zeitschichten. e RÜSEN, J. Lebendige
Geschichte. Por não tratar diretamente de Droysen, preferimos fazer apenas algumas anotações sobre a
tipologia elaborada por Koselleck, na qual ele tenta estabelecer pares conceituais que tornem “as
histórias possíveis”. Para Koselleck, há cinco determinações existenciais que dão conta das diferentes
configurações que qualquer história pode assumir: ser-para-a-morte e possibilidade-de-extermínio
(uma adaptação do fundamental conceito heideggeriano à época pós-campos-de-concentração,
digamos assim); amigo e inimigo (par que Koselleck estranhamente não credita a Carl Schmitt,
referência sempre constrangedora na Alemanha depois de 1945), velho e novo (uma apropriação –
novamente sem referências! – das idéias desenvolvidas nas décadas de 20 e 30 do século XX pelo
filósofo espanhol José Ortega y Gasset); senhor e escravo (par assumidamente hegeliano) e, por fim,
novamente inspirado em Heidegger, interioridade e exterioridade, que para Koselleck são uma forma
de aplicar na historiografia a idéia de especialidade do “ser-no-mundo” do autor de Ser e Tempo. Uma
contribuição interessante, nem sempre original, fortemente marcada por uma certa ânsia em aplicar
Heidegger à historiografia.
143

que significados políticos-sociais ela poderá ter. Tudo muito sagaz, mas que parte de
uma pergunta, que, ao nosso ver, deverá vir somente em um segundo momento.
A bibliografia sobre a narrativa em Droysen porém, vem sendo estudada com
destaque sobretudo por autores como Hayden White e (novamente) Jörn Rüsen.
Lamentavelmente o que White produziu até o momento sobre Droysen não chega a
ser muito extenso – a ele lamentavelmente não é dedicado nenhum capítulo ou parte
do clássico Metahistory. Possivelmente pelo motivo que White mostrará
posteriormente em um artigo isolado (“Droysens Historik: Historical Writing as a
Bourgeois Science”) publicado em The Content of the Form: ou seja, por Droysen ser
abertamente um historiador burguês, com atividade político-partidária. Mas isto é
somente uma vaga hipótese: na verdade, gostaríamos de comentar duas observações
de White, ambas pouco desenvolvidas mas corretas, e que por este motivo não
podemos deixar de assinalar. Primeiramente, White é dos poucos comentadores a
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perceber que a tipologia narrativa de Droysen não é exatamente um quadro fixo e


acabado, mas sim uma, como já aludimos acima, “fenomenologia da leitura” –
Wolfgang Iser repetirá a idéia através da expressão “círculos hermenêuticos”61, mas
acreditamos que, dada a influência hegeliana, a expressão de White é bastante feliz –
afinal, Droysen, como veremos quando tratarmos da sua tipologia da narrativa,
mostra como a interpretação é um processo, assim como em Hegel a consciência que
o espírito tem de si mesmo é igualmente um processo. Sem deixar de afirmar que tal
sagacidade não se encontra nem na historiografia alemã “conservadora” (Burckhardt,
Ranke), ou na filosofia da história e metodologia de Karl Marx e Friedrich Engels,
Hayden White ainda mostrará que o caráter burguês do pensamento de Droysen está
em sua ênfase na eticidade e moralidade como uma força positiva da história – o que
não mais encontramos em Nietzsche, por exemplo. Realmente sentimos a falta em
White de uma investigação de questões por ele mesmo levantadas em outros
momentos no mesmo volume de artigos em que se encontra o dedicado a Droysen,
quando ele por exemplo atesta que há uma escrita da história não-narrativa (que ele
percebe em Burckhardt, Huizinga, Braudel, entre outros): e é este um ponto decisivo
em Droysen; um pensamento sobre a linguagem e composição que ultrapassa, sem

61
Cf. ISER, W. “The Hermeneutic Circle”.
144

desconsiderar, a importância da narrativa na historiografia. Ou seja: falta à análise de


White uma ênfase na hermenêutica como o método que consolida a mediação – e por
extensão a idéia de meio e de presente – como cerne da historiografia e da
consciência histórica. A idéia de presente em Droysen seria sobretudo a possibilidade
de identidade do historiador com o passado, ainda que tal identidade jamais seja dada
previamente e que sempre seja antecedida por um estranhamento inevitável.
Da mesma maneira que Hayden White, na verdade dialogando diretamente
com ele, Jörn Rüsen elabora ao longo de sua própria teoria da história uma tipologia
da narrativa que indiscutivelmente tem em Droysen sua influência máxima. Em artigo
recente62, Jörn Rüsen procura mostrar como a experiência nacional-socialista, de
modo algum uma experiência cuja culpa recai na prática sobre os alemães, estando
portanto limitado a um ambiente cultural nacional, obriga o historiador a refazer uma
nova concepção de tempo histórico. Se o tempo histórico pode, de maneira ideal-
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típica, ser representado e vivido tanto como repetição, continuidade e ruptura, para
Rüsen os crimes nacional-socialistas e a Segunda guerra mundial obrigariam o
historiador a acrescentar uma quarta categoria: o trauma. Se mesmo na concepção de
ruptura prevalece sobretudo a idéia de que é possível ir adiante, idéia fundamentada
em uma perspectiva crítica e revolucionária que deslegitima o passado e aponta
utopicamente para o futuro, no trauma, segundo Rüsen, predomina a paralisia. Nesta,
é impossível continuar. No caso de Droysen, autor que Rüsen domina há décadas,
poderíamos falar dos tipos de crise e trauma, ou seria necessário, neste caso,
esquecermos os tipos ideais? E ainda deveríamos acrescentar: por mais que haja entre
sua tese de doutoramento sobre Droysen e seu texto sobre crise um nada desprezível
intervalo de mais de trinta anos, sentimos falta em Rüsen da questão que deve ser
inevitavelmente formulada: se para a liberdade do homem (historicamente
compreendida) é absolutamente necessária a Entfremdung (o estranhamento, o
desgarramento), a crise como vivência do presente, por que a Entfremdung traumática
a evita? Seria a diferença assim tão gritante? Formular tais questões nos parece
necessário por um motivo: estamos a ver de que maneira podemos dialogar com

62
Cf. RÜSEN, J. “Krise, Trauma, Identität”. IN: Zerbrechende Zeit: Über den Sinn der Geschichte.
pp. 145-180.
145

Droysen – ou por outra, com uma outra tipologia para a crise. Se não podemos tratar
aqui diretamente do conceito de trauma, por outro lado ele nos serve por ora como
um resultado adquirido e pronto, um contra-conceito que a todo instante pode
contaminar e/ou influenciar o que entendemos como sendo a experiência de crise em
outras épocas históricas. Fica a irônica pergunta: teríamos somente nós, homens pós-
Auschwitz e Hiroshima (e agora, possivelmente pós-onze-de-setembro), a
exclusividade e o monopólio do trauma e da crise? É justamente o reconhecimento
desta angústia (que reservamos aos nossos dias) que serve de lastro para que Droysen
pense sobretudo nas possibilidades de expressão e articulação, de atribuir sentido ao
contigente e ao desconcertante – sua obra está atravessada com uma reflexão sobre a
linguagem como local de embate com um passado que simplesmente não se apaga.
Possivelmente a grande diferença estaria em ver que Rüsen, neste artigo em
que tematiza crise, trauma e identidade, estabelece uma diferença com uma tipologia
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por ele mesmo elaborado quinze anos antes. Em Lebendige Geschichte (História
viva), a terceira parte de sua trilogia Grundzüge der Historik (Elementos
fundamentais da teoria da história)63, Rüsen nos mostra que o pensamento histórico
encontra quatro formas básicas em suas maneiras de constituir e atribuir sentido:
tradicional, exemplar, crítica e genética. Na tradicional, as identidades se estabelecem
através da assimilação de ordens previamente estabelecidas; na forma exemplar, o
meio se dá através da sensatez, da imitação de exemplos notáveis e bem-sucedidos; a
maneira crítica se pauta sobretudo pela idéia de autonomia, ou seja, afirmação da
própria identidade através da crítica de modos anteriores de existência; por fim,
haveria a genética, que fala de individualização (“Bildung”, segundo Rüsen!), ou seja,
marcada por um desenvolvimento de formas previamente existentes. É interessante
notar que, ao falar de trauma como categoria do pensamento histórico, não é somente
toda e qualquer continuidade que é vetada; é sobretudo uma afasia que se faz
presente, em que nem mesmo a expressão do diagnóstico da crise é mais possível.
Formulando de outra maneira: é claro que para o modo tradicional de constituição de
sentido histórico não há sequer margem para crise; no modo exemplar, a crise é
simplesmente um caminho seguido equivocadamente; o que restaria fazer é

63
Cf. RÜSEN, J. Lebendige Geschichte. p.86.
146

simplesmente “corrigir”, e tomar o percurso que “todos” sabem que “funciona”; na


visão crítica, a crise é elemento central, pois é com ela que todas as formas de vida
pretéritas perdem o sentido e o vigor anteriores. E como a visão crítica, que deseja
autonomia, se torna visão genética, que busca a Bildung? Será ela possível quando a
crise se torna trauma? Neste ponto, Rüsen não toca, deixando a questão em silêncio.
E, lembramos, Droysen será o autor que afirmará a Bildung como lugar central, como
a última etapa do processo de exposição (Darstellung) do método histórico. Dito de
outra maneira, será nela que poderemos completar a tarefa de “desencantamento
ativo” que Droysen se propõe fazer com o método histórico, um trabalho de
atribuição de sentido que simplesmente deixe de lado não somente toda e qualquer
tentativa de atribuição imediata de sentido (dimensão tradicionalista), mas também
aquela dependente de analogias (exemplaridade, baseada em alguma medida na idéia
de leis inspirada nas ciências naturais) e de cortes abruptos com o passado, visto que
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o distanciamento de si mesmo nunca é rompimento, mas sim reconhecimento de si


mesmo em uma outra dimensão, seja ela nacional, religiosa ou temporal.
Interrompido o circuito de sentido, o que fazer?
Em artigo também ligado ao problema do nacional-socialismo, Dan Diner64
mostrará que é justamente o conceito de compreensão que entrará em risco com a
experiência nacional-socialista. E isto porque se baseia em uma contraracionalidade,
ou seja: podemos partilhar das mesmas categorias éticas e intelectuais dos nazistas?
Foram eles racionais como nós, ou teríamos sido irracionais como eles? Diner expõe
o conflito entre racionalidades, ou uma racionalidade nacional-socialista em direção
oposta, uma racionalidade não baseada na adeqüação de meios e fins e ganhos a partir
de recursos de que se dispõe – embora possam ser considerados irracionais porque a
aniquilação dos judeus acabou sendo também a auto-aniquilação do povo alemão, os
conselhos judaicos se iludiram quanto à possibilidade de prever as ações da
burocracia nazista, que poderiam ter pensado nos trabalhos forçados como um
capitalista faz com seus empregados. Não o fizeram – era a lógica da aniquilação. O
“objetivo” nazi, vedado por séculos de anti-semitismo, ainda permaneceria pouco

64
Cf. DINER, D.: “Historical Understanding and Counterrationality: The Judenrat as Epistemological
Value” IN: FRIEDLÄNDER, S. Probing the Limits of Representation.
147

claro aos conselheiros judeus nos guetos. Todavia, apesar da necessária descrição do
argumento de Diner, devemos nos perguntar: em que consiste a irracionalidade na
operação do ato de comprrender? Onde ela se localiza? A própria filosofia da história
não a pressupõe, ao simplesmente mostrar como a vontade move a história, mesmo
que o objetivo desejado nada tenha a ver com o resultado efetivamente conquistado,
e, neste sentido, o nacional-socialismo de fato é um fator de origem da Alemanha
federal e da Alemanha comunista, sem que jamais tivesse sido esta a intenção. Mas
não é este ainda o ponto. Droysen mesmo apresentou o limite da investigação
psicológica, e na verdade viu na interpretação das idéias a camada decisiva de
atribuição de sentido. Haverá nela um espaço para a irracionalidade? Poderia Droysen
ter se posto a pergunta que Diner colocaria a partir do caso do nacional-socialismo? O
mais interessante, e aí Diner, na nossa opinião, subestima a idéia de compreensão no
século XIX, é ver como na verdade a construção, a criação que a idéia de
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compreensão pressupõe, não pode ser incompatível, ao menos como plano de uma
ciência, para Droysen. A grande diferença poderia ser percebida na dimensão coletiva
assumida pelo trauma no século XX, dimensão esta que o transformou, mesmo com
sua base na psicanálise, em categoria de análise histórica. Evidentemente, o trauma
coletivo não é uma experiência da qual Droysen pode falar, a ponto de se empenhar
na afirmação da produtividade do saber histórico; afinal, é tentador ver em Droysen
um autor que aposta no presente como instância única do saber histórico, presente
este cujo sentido seria determinado pela mobilidade do historiador entre os tipos
possíveis de discurso histórico. Aí o historiador poderia ter uma dimensão ativa na
história. Todavia, não se resolve o problema simplesmente deslocando o foco para o
presente. A ênfase da dimensão ativa e criativa do pensamento histórico não resultará
em fragmentação e atomização do saber. Droysen dirá:

Já se afirmou claremente que a obra da criação – pelo menos a que vemos na Terra
- já está completa, e tudo que é terreno tem sua ordem e sua lei, movimenta-se
continuamente de acordo com leis mecânicas e físicas (…) Mas a compreensão e
pensamento desta criação e sua ordem, sua expressão e formulação deste
sentimento e pensamento, já são em si uma nova criação, não de materiais, mas de
formas, e de tal modo que não permanece alheio aos primeiros. Pois a criação de
Deus adquiriu ali uma outra e mais alta configuração. Deus criou o homem à sua
imagem, ou seja, que o homem continue criando através das formas.
148

A força criadora no homem está no lógos, e nas generalidades ideais ela se


transformou, e continua agindo diariamente, e através de tais generalidades atinge
outras esferas; nelas está a história da história65.

O primeiro parágrafo da passagem não nos conta algo de novo: a


compreensão das próprias leis e das analogias (Droysen nem precisa mencionar as
anomalias) é em si uma nova criação. O desafiador aparece logo a seguir: sem
desenvolver porque isto ocorre, Droysen afirma que tal participação ativa no lógos,
no movimento total de sentido, é a força criadora do homem que permite a afirmação
de que não há histórias particulares – somente história da história. A conclusão não é
nada óbvia, afinal, “história da história” nos levaria a crer que a história tem um
sujeito, e, indiscutivelmente, a afirmação de um sujeito na história – O Espírito
absoluto, por exemplo – poderá obrigar ao historiador que, mesmo ao mostrar ao
cientista natural que seu pensamento, por mais representativo que se pretenda, é na
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verdade criativo e produtor, a admitir que sua base ética é resignada. Como pensar em
uma história da história, ou seja, em uma totalidade possível, sem que se caia
simplesmente em uma teleologia?
O ponto é: se temos um problema em articular a perspectiva do vôo do
pássaro com a parcialidade, que narrador será este que não esconderá sua autoria mas
que, ao mesmo tempo, não terá qualquer inibição em falar em história das histórias,
comparação e, portanto, humanidade? E esta parcialidade não estaria por sua vez
mascarada por um sujeito nacional, ou seja, em uma concepção orgânica sempre
negada por Droysen? Seria esta parcialidade, uma vez identificável como parcialidade
de um sujeito “nacional” compatível com a idéia de culpa?66 Sim, e aí Droysen seria

65
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.314. Man hat wohl gesagt, as Werk der Schöpfung – soweit
wir es auf der Erde sehen – sei vollbracht, alles Irdische habe nun seine Ordnung und sein Gesetz,
bewege sich nach den mechanishcen und physikalischen Gesetzen weiter, erhalte sich durch die
schöpferisch eingeplanzte Ordnung. Aber das Verstehen und Denken dieser Schöpfung und ihrer
Ordnungen und das Aussprechen und Ausformen dieses Empfindes und Denkens ist ersten nicht feind.
Diese schöpferische Kraft des Menschen ist in dem lógos, sie ist geworden und wird und wirkt täglich
fort in den idealen Gemeinsamkeiten und durch sie dann auf die anderen Sphären; in ihnen ist die
Geschichte der Geschichte.
66
Cf. LIMA, L.C. Mimesis: Desafio ao pensamento. pp.234-5. Vale a pena lembrar o alerta que Costa
Lima faz a respeito do perigo de se ver a nacionalidade como um sujeito mais oculto da hitória. O
teórico está interessado na mudança que tal noção causará na teoria literária e na história da literatura
149

pouco mais do que um propagandista da causa alemã, mas por outro lado devemos
ver que a capacidade criadora do homem não se funda em uma nacionalidade ou
outra; mas sim a sua possibilidade de, ao sair do imediato, ser capaz de perceber que
a abstração não está previamente dada; mas que também é criada e tem seus passos
próprios, como demonstram tanto sua “fenomenologia da leitura” no exame do
conceito de compreensão como também sua tipologia da narrativa.
A aposta no homem da Bildung é uma possibilidade de compreender este
dilema. Na verdade, nos servirá o termo Bildung como instrumento heurístico
privilegiado: através dele, poderemos entender a história da história, em que um
historiador burguês é capaz de fazer a autocrítica de sua própria situação cultural e
social. Mais do que emblema ideológico capaz de iludir sua mediação social, a
Bildung será o termo capaz, em Droysen, de desnudar sua própria condição, e que
ainda seja possível falar em “história da história” é porque a idéia de “progresso” na
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história ainda é digna de aposta, mas não de adesão acrítica. Na verdade, parece que
estamos entre a espada e a parede: se não se pode falar de modo algum em progresso,
e de fato há sempre um mal-estar quando se lê, depois do século XX, tal termo em
texto de qualquer época, por outro lado, será que ainda não nos seria possível falar em
uma história como “singular coletivo”? Invertamos: que implicações teríamos se
simplesmente descartássemos, juntamente com o projeto de progresso, a idéia de uma
história como sujeito de si mesma? Não somente teríamos um conjunto empírico
caótico que sobreviveria em pequenas coerências, mas sobretudo estaríamos, por
exemplo, condenados a uma tal autotelia de tais pequenas coerências na qual toda e
qualquer comparação seria logica e praticamente impossível. É nestes termos que
falamos em identidade no pensamento de Droysen.
A identidade exigida por Droysen como condição de compreensão é o que
alimentará a idéia de “história da história”; suportaria tal “singular coletivo” uma
contra-racionalidade, na medida que na contra-racionalidade, nos termos propostos
por Dan Diner, ficaria suspensa a possibilidade da identificação através da culpa e da
participação? Quando Diner demonstra que a margem de ação, logo de escolha, dos

em geral, mas creio que pode ser perfeitamente transposto para a historiografia que vê na nação uma
entidade histórica de funções quase providencialistas.
150

conselhos judaicos nos guetos espalhados pelo Terceiro Reich, devia ser avaliada não
pela ilusão da liberdade de escolha, mas pela lógica errada empregada para motivar
uma ação, como faremos para lidar com uma tal tipologia de crise? De todo modo,
estamos apenas exercendo o dever de esclarecer pressupostos que nos informam em
qualquer estudo sobre a Alemanha e sobre a consciência histórica em geral; o que
importa ressaltar no momento é o seguinte: a linguagem criada por Droysen como
Historik é especulativa, mas convida à busca pela criação de novas referências, de
novos objetos. Não dispensa, por assim dizer, um certo pragmatismo. A culpa, em
Droysen, ou se quisermos, em um autor do século XIX, não paralisa. Será antes meio
formidável de autocrítica da Bildungsbürgertum, da burguesia culta.
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4.
A História como formação.

Vimos no primeiro capítulo que uma visão teleológica e hegeliana da história


era capaz de animar parte da historiografia de Droysen. De cara, um problema se
manifesta: se a compreensão, marca do método histórico – e não do método
filosófico, teológico, físico – se dava no e durante o ato de pesquisar, como
poderíamos entender adequadamente a própria pesquisa de Droysen realizada, por
exemplo, sobre o helenismo? Não seriam todos os seus livros e todas as suas
preleções simples ilustrações do que o público de então poderia colher nas lições de
Hegel sobre filosofia da história?
Um segundo capítulo se fez necessário: o método compreensivo procura
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demostrar o que é a pesquisa, ou seja, intervenção decisiva e criativa no significado


de um mundo que se apresenta de uma determinada e imediata maneira. Droysen não
tinha maiores dúvidas quanto à função de sua Historik: explicitar as competências da
ciência histórica, demonstrar que o homem pensa historicamente e pode aprender a
fazê-lo sistematicamente, procurar estabelecer as estruturas de representação deste
mesmo conhecimento, e, mais importante, tentar expôr qual a visão-de-mundo que
sustenta a necessidade de uma consciência histórica, necessidade esta que não era de
modo algum evidente. Do contrário, de que outra maneira teria Johann Gustav
Droysen, um historiador bem estabelecido profissionalmente, perguntado já ao cabo
das preleções teóricas: “mas por que é importante se instruir sobre passado?”1 Como
bem notou Friedrich Jäger, “somente a própria formulação da pergunta mostra que a
história perdeu sua inquestionável evidência-de-si”.2 Se havia alguma esfera da vida
que perdera sua espontaneidade e sentido, ao menos para Droysen, foi a própria
história. Sua necessidade de explicitação é para Droysen mais do que urgente, e,
assim, este processo de explicitação só pode se cumprir através do conhecimento das
formas de mediação. O século XIX, ao menos o visto por Droysen na Alemanha

1
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p. 256. Aber warum ist es wichtig, sich übe die Vergangenheit
zu belehren?
2
JÄGER, F. Bürgerliche Modernisierungskrise und historische Sinnbildung., p.86.
152

prussiana, é um século que não se deixa facilmente reduzir a poucos termos. Pode ser
identificado com o romantismo e seu elogio da espontaneidade que remete ao Sturm
und Drang do século XVIII – mas também tem suas sombras; afinal, a idéia de
mediação implica, no mínimo, uma crítica à espontaneidade apaixonada. A pergunta
que Droysen se faz sobre a necessidade de se conhecer historicamente deve ser
entendida para além do que seu impacto inicial impõe: ou seja, não se trata de ver
como Droysen tenta incentivar os seus alunos a devorar livros de história. Mas
sobretudo ele questionava o próprio sentido da pesquisa: por que pesquisar história
grega? Afinal, já não esgotara a filosofia da história de Hegel o assunto ao submeter
os seus fatos a uma determinada ordem dentro do percurso que o espírito percorre até
o conhecimento de si mesmo?
Cabe-nos entender em que as pesquisas de Droysen sobre Grécia não
somente alterariam a visão sobre este período histórico específico, mas sobretudo
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porque a visão sobre este período histórico específico – Grécia, e não Idade Média ou
Egito – foi capaz de servir de lugar para que o século XIX, na figura de Droysen,
pudesse pensar a si mesmo e suas crenças mais arraigadas. Cumprido este percurso,
teremos mostrado como o conhecimento de uma particularidade termina por ser um
conhecimento que se faz de si mesmo um objeto. O que caracteriza a pesquisa
histórica propriamente dita, o que a leva a se apoiar em um objeto “externo”, por mais
que jamais dispense a pergunta prévia que define, segundo Hegel, uma ciência do
espírito? Estamos empenhados em compreender porque a história se torna uma
necessidade justamente pela situação de crise que ela se encontra como forma de
pensamento – entenda-se que esperamos das páginas seguintes mais do que o
habitual, ou seja, afirmar que a consciência histórica nasce das crises, tendo a elas
diferentes respostas (como já fez muito bem Jörn Rüsen em sua tipologia exibida em
Lebendige Geschichte).
Para que possamos encaminhar o presente capítulo, lembremos o que nos diz
Christoph Menke a respeito da superação do trágico na filosofia da história de Hegel:

Hegel formula esta metafísica antitrágica da reconciliação através da forma de uma


filosofia da história, que culmina na concepção do estado de uma razão que se
dirige até si mesma e que se completa em si mesma, na qual não há mais colisões
153

necessárias, trágicas. Esta é na filosofia da história de Hegel a situação do


moderno: a moderna vitória da Razão é também a morte do trágico.3

O mesmo não valerá para Droysen: para ele, e aí a importância da culpa, da


falta, cumprirá papel decisivo. Sua consciência de burguês, consciência que se
alimentava de elementos nacionalistas e liberais fincando os dois pés no
protestantismo luterano - significativamente sem se deixar reduzir a qualquer uma
destas tendências – está implícita em uma idéia de Bildung que é mais do que uma
ideologia, um recurso discursivo que mascara as mediações sociais deste “produto”.
Na verdade, é o selo deste auto-exame, a consciência desta falta, que será elaborada
na Historik, ou seja, uma demonstração de que a história é uma ciência que se
organiza através do método compreensivo, mas sobretudo a demonstração que a
história é uma forma necessária de pensar, porque irredutível a qualquer outra.
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Teremos cumprido o objetivo desta capítulo se provarmos que em Droysen podemos


falar em uma concepção não-metafísica, e por isso, ainda trágica, da história. E ela
será ainda trágica na medida que o referente que ela sempre se utilizará será uma
marca que não poderá dispensar ou subsumir.
A primeira marca será, para Droysen, a da ciência. Ao invés de resolver os
conflitos trágicos, na verdade ela os incorpora.

4.1.
Crise da Europa, progresso da ciência.

Para começar, ressaltamos que a idéia de ciência para Droysen cobria algo
mais amplo do que uma área meramente interessada em marcar aqui ou acolá suas
fronteiras acadêmicas e disciplinares. O problema da ciência era um problema da
Europa. Quando pretendia se desvencilhar da filosofia hegeliana da história,

3
MENKE, C. Tragödie im Sittlichen. p.23. Und zwar formuliert Hegel diese antitragische Metaphysik
der Versöhnung in Gestalt einer Geschichtsphilosophie, die in der Konzeption eines Zustandes zu sich
selbst gekommener und vollendeter Vernunft gipfelt, in dem es tragisch notwendige Kollisionen nicht
mehr gibt. Das ist in Hegels Geschichtsphilosophie die Situation der Moderne: der moderne Sieg der
Vernunft ist auch für Hegel der Tod der Tragik.
154

indiscutivelmente ele tinha intenções semelhantes em relação às ditas ciências


naturais, e a sua busca de uma reconciliação entre os dois métodos em prol de um
terceiro não era capricho. Afinal, a busca de um método próprio parte do pressuposto
de que o método histórico não somente deve buscar em si mesmo sua fonte, mas
também evitar a visão parcial das ciências especulativas, de um lado, e físico-
matemáticas, de outro, e, assim, uma visão parcial do próprio homem deveria ser
evitada. Neste ambiente, a concepção de História de Droysen foi concebida
lentamente, e em uma situação histórica específica, da qual ele tinha a devida
consciência expressada em seu artigo “Para a caracterização da crise européia” (“Zur
Charakeristik der europäischen Krisis”), publicado em 1854:

Quem está em condições de observar com calma e pensar de modo claro precisa se
convencer de que se modificaram, há duas gerações, todas as condições básicas da
vida européia, todas as forças sociais e estatais, todos os fatores espirituais e
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materiais. A um conteúdo de tal modo modificado teriam sido encontradas novas


formas, foram indicados novos impulsos às novas direções? E teriam sido
organizadas para as violentas forças latentes e explosivas algo mais do que a
simples repressão que as abafa?4

Droysen caracetriza ao longo do artigo a crise européia como a saída de uma


situação histórica em direção a uma outra ainda incerta: e este processo se mostra
marcado pelo desgarre do homem europeu de sua situação real, ou seja, se na ciência
histórica não se compatibilizavam precisão conceitual e riqueza de material, se nas
ciências em geral igualmente estavam separadas a especulação e a observação
empírica, na vida cultural, social, econonômica, a situação não se mostrava em grau
diferente, ou seja, também se vivia uma cisão radical na medida que, seguindo o olhar
de Droysen, no lugar do solo a ser trabalhado, encontra-se uma propriedade para ser
especulada; no homem, força de trabalho; na poupança, crédito; nos juros, valores
fictícios que transformam o dinheiro em algo fluido, irresponsável, sem
correspondência com a realidade; a universidade deixaria de ser lugar de pesquisa e

4
DROYSEN, J.G. “Zur Charakteristik der europäischen Krisis”. IN:Politische Schriften. p.322 Wer im
Stande ist, ruhig zu beobachten und klar zu denken, muss die Überzeugung gewinnen, dass sich seit
zwei Menschenaltern alle Voraussetzungen und Bedingungen des europäischen Lebens, alle socialen
und staatlichen Kräfte, alle geistige und materiellen Factoren verwandelt haben. Sind zu so
verwandelten Inhalt neue Formen gefunden, den neuen Impulsen neue Richtungen gewiesen, für die
gährenden , explosiven Gewalten mehr als der Druck, der sie momentan niederhält, organisirt?
155

conhecimento desinteressado em fins práticos e passaria a ser meio de ascenção


social e sobrevivência (Brotstudim); a memória e a consciência passam a ser funções
cerebrais e o desenvolvimento histórico passa a ser medido pela estatística; a religião
passara a ser uma patologia, ou, quando muito, efeito de umas tantas combinações
físicas em nosso corpo, e, por isso, a modernidade daria à religião um lugar estreito,
no qual somente se movimentariam sentimentos exaltados, sensualistas e nervosos, de
que seria exemplo, para o luterano Droysen, os artifícios do catolicisimo afeito aos
sentimentos exaltados, irracionais e sensualistas. A destruição dos pilares antigos
progride, segundo Droysen, de acordo com a evolução das ciências naturais, e, assim,
a situação presente da Europa de então era avaliada com extremo pessimismo: e como
já citamos no capítulo anterior, o passado estava consumido e falsificado, e o novo
que nascia, sem forma e caótico, somente destrutivo.
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Ela [a destruição do antigo] encontra seu ápice nas regiões da vida espiritual em
uma visão-de-mundo que, não importa o que lhe seja dito, já encontrou as
justificativas mais brilhantes em grandes áreas da atividade científica (…) Seria
ridículo não se alegrar com os progressos notáveis das disciplinas físico-
matemáticas; que seus pressupostos, seu método, seu resultado sejam os únicos a
adquirir validade científica confiável e que seja determinante, não é uma crítica que
se lhes faz (…) Seu pressuposto é a matéria e a causalidade imanente, de acordo
com as quais elas se determinam. (…) Seu método é, observando, encontrar o que
há de normativo nos fenômenos, cuja gênese deve ser achada também nas suas
condições e formas, e as analogias encontradas devem ser expressas como lei (…)
Por fim, seu resultado é que, sem considerar os incomensuráveis efeitos para a vida
prática, para compreender as coisas que estão dispostas para a satisfação das
necessidades humanas e para o domínio da natureza (a soma de todas as condições
previsíveis da vida), não é necessário outro pressuposto além da eternidade da
matéria e da continuidade da transformação objetiva.
Com o sucesso evidente deste método na pesquisa do mundo dos fenômenos, não é
5
preciso muito (…) para derrubar a ponte daquilo que até então se chamara espírito

5
DROYSEN, J.G. “Zur Charakteristik der europäischen Krisis”. IN:Politische Schriften. pp. 324-5.Sie
gipfeltsich in den Bereichen des geistigen Lebens in einer Weltanschauung, die, was man auch von ihr
sagen mag, in einem grossen Bereiche wiessenschaftlicher Thätigkeiten und Anwendungen bereits die
glänzendste Rechtfertigung gefunden hat und wieder von ihnen aus Methode und systematische
Begründung empfängt. Es wäre lächerlich, sich nicht an den herrlichen Fortschritt der mathematisch-
physikalischen Disciplinen zu erfreuen; dass ihre Voraussetzungen, ihre Methode, ihre Resultate
bereits als die allein wissenschaftlichen, massgebenden, zuverlässigen Geltung gewinnen, ist kein
Vorwurf für sie, höchstens ein Tadel für diejenigen Bereiche des wissenschaftlichen Lebens, die sich
ihrer nicht zu erwehren vermögen. Ihre Voraussetzungen ist die Materie und die immanente Causalität,
nach der sie sich bestimmt und ihre Erscheinungsform wechselt. Ihre Methode ist beobachtend, in den
Erscheinungen das Normative, die Bedingungen und Formen ihrer Genesis zu finden und die Formel
der gefundenen Analogie als Gesetz auszusprechen (….)
156

O conhecimento, segundo Droysen, deveria necessariamente buscar mais do


que a descoberta de determinadas funções que estavam interessadas em fins práticos.
Na verdade, deve ser indicado qual é o pressuposto que informa o pensamento de
Droysen, qual o valor que ele parece querer defender a qualquer preço. Para Droysen,
pensar historicamente não é delinear fatos e conhecê-los detalhadamente; pensar
historicamente é despertar o sentido para a realidade, ou seja, “despertar a capacidade
de reconhecer em todo ente humano a força vital de seu devir (…) e assim conquistar
a certeza de sua reconciliação, certeza que é o próprio mundo ético, após superar o
dualismo que só existe abstramente e que do início ao fim é aético”.6 Este era o papel
a ser cumprido pelo pensamento histórico em uma Europa de passado obsoleto e
futuro sem perspectivas. E presente incapaz de recuperar o primeiro e se orientar em
direção ao segundo. A passagem de Droysen é sobretudo uma crítica ao utilitarismo
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burguês, crítica que se revela tanto mais significativa quando lembramos que Droysen
era um partidário de centro-direita.
Todavia, somente experimentaríamos como choque inconciliável tal visão se
admitíssemos sem exame posterior a identificação absoluta e sem restos dos valores
da Bildung com a Bildungsbürgertum, com a burgueia culta. Sim, esta visão
pessmista de Droysen está solidamente ancorada no ideal alemão de Bildung – um
ideal difuso, presente em diferentes áreas do conhecimento e na própria prática
cotidana da Alemanha da época, mas por isso mesmo bastante útil como instrumento
que nos permite perceber as semelhanças dentro do próprio mundo intelectual. Trata-

Ihr Resultat endlich ist – abgesehen von unermesslichen Wirkungen für das Güterleben – dass man
zum Verständnis der Dinge, die da sind, zur Befriedigung der menschlichen Bedürfnisse und zur
Beherrschung der Natur, das ist der Summe aller berechenbaren Lebensbedingungen, keine andere
Voraussetzung braucht und brauchen kann, als die Ewigkeit der Materie und die Continuität des
Stoffwechsels.
Bei den evidenten Erfolgen dieser Methode in der Erforschung der Erscheinungswelt liegt es nahe, mit
ihr und von den gewonnenen Resultaten aus auch die Brücke zu schlagen nach diejenigen Gebieten,
welchen man bis dahin die des Geistes nannte.
6
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. pp.40-1. (…) die Fähigkeit erwecken, in allem menschlichen
Seienden die Lebenskraft seines Werdens und zu aller lebensvollen Kraft die Gestaltung und
Verwirklichung, die sie sich zu geben hat, erkennen und sofür den falschen Dualismus, der nur in der
Abstraktion entsteht und der von Anfang bis zu Ende unsittlich ist, die Gewissheit der Versöhnung, die
die ethische Welt ist, zu gewinnen.
157

se de um valor que não é necessariamente antigo no sentido insinuado no texto de


Droysen, mas sim é uma resposta possível ao novo ainda em elaboração, ainda que
estajamos a lidar com um termo que provém do fim do século XVIII: Bildung, cuja
definição dada por Hans-Georg Gadamer como “crítica ao perfeccionismo”
iluminista7 só é entendida plenamente se prestamos atenção ao que nos diz Thomas
Nipperdey, que claramente define Bildung como “um processo vitalício e
inconclusivo (…) destacado do mundo da praxis, do trabalho, da economia, do ganho
de dinheiro”.8 O que Gadamer percebe como elogio à imperfeição será lido em
Nipperdey como a presença constante de uma angústia de aperfeiçoamento e
mudança. Podemos pensar que o texto de Droysen critica os ideais burgueses em seus
ideais de solipsismo utilitário e desejo de conforto, que será por exemplo o principal
mote das críticas de um autor como Ernst Jünger (e isso não transforma em hipótese
alguma Droysen em um protofascista); neste ponto, o ideal “burguês” de
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conhecimento, a saber, de um conhecimento voltado para si mesmo e que se não


deixa instrumentalizar, admitamos, é a base de cada ciência “regional” (ou seja, que
destaca para si o conhecimento de um conjunto de objetos presentes na cultura e/ou
na natureza) que desde o início do século XIX se deseja autônoma e que procura
atrair para si uma legitmidade que muitas vezes lhe é negada. Saindo dos rincões
acadêmicos, a conseqüência é sobretudo política: se uma historiografia não se pensa,
ou seja, se não reflete sobre seus métodos, sistemas e sobretudo sobre sua
necessidade, será facilmente alugada para diferentes propósitos pelos quais ela
dificilmente terá condições de responder, pois estes se decidem fora de seu âmbito de
conhecimento.
A definição de Nipperdey que utilizamos não pode portanto passar
desapercebida, pois contém dois aspectos essenciais que servem-lhe de base:
continuidade e crítica à especialização. Lida sem atenção, parecerá que o autor faz o
elogio do saber geral e enciclopédico, do saber pouco rigoroso e que sabe um pouco
de tudo, e nada de maneira muito profunda. Não é disso que se trata. Ao pensarmos

7
Cf. GADAMER, H.-G. Wahrheit und Methode. pp.14-5.
8
Cf. NIPPERDEY, T. Deutsche Geschichte 1800-1866. p.58.
158

em continuidade (processo ininterrupto) e crítica à especialização, ou seja, crítica a


uma atividade fechada, ou melhor, a uma atividade que encobre horizontes e tudo
centraliza em somente um ponto, podemos perceber sem demora que há, por detrás, o
elogio da “ação”. Ou seja, a ação como processo, evidência de transformação e,
acima de tudo, a ação como uma atividade cujo sentido ultrapassa o fim a ser obtido
imediatamente, simplesmente funcional, revelando-se portanto lentamente.
Todavia, a definição de Nipperdey é igualmente perigosa, assim como é todo
o problema da Bildung. É justamente este ideal de separação do mundo do trabalho –
ou da vida em geral – que será motivo para as críticas de Nietzsche, afinal, um saber
distanciado da práxis poderá ser um saber que ignora completamente as
circunstâncias com as quais se confronta e das quais se alimenta, permanecendo sem
referências e insular.
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De acordo com suas metas, forças e necessidades, todo homem e todo povo precisa
de um certo conhecimento do passado (…): não como um grupo de puros
pensadores, que apenas contemplam a vida, não como indivíduos ávidos de saber,
que só se satisfazem com o saber e para os quais a ampliação do conhecimento é a
própria meta, mas sempre apenas para os fins da vida, e portanto sob o domínio e
condução suprema destes fins.9

O que temos todavia são dois lados de uma visão sobre o saber no século
XIX, no qual naturalmente se inscreve o saber histórico. Ao mencionar a crise
européia, Droysen a relaciona com o método das ciências naturais; Friedrich
Nietzsche, por seu turno, vê historiografia e Bildung indissociadas. Devemos neste
momento ver como foi recebida tal concepção de Bildung. Está em questão a própria
forma como a cisão entre saber e mundo era pensada, ou seja, se esta cisão era de fato
produtiva, uma necessária quebra de imediaticidade, ou se simplesmente significava
um desejo de pureza, uma postura defensiva e compensatória. Bildung nos servirá a
princípio como formidável instrumento heurístico: poderemos examiná-lo em alguns
momentos importantes, e a acepção diversa que o termo receberá poderá ser eficiente
para que sejam compreendidas as diferenças entre alguns dos autores, e, por isso, a

9
NIETZSCHE, F. Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a
vida. p.32
159

especificidade de Droysen. Iniciaremos, por mais insólito que pareça, pela sua crítica
feita por Nietzsche – na verdade, e se o fazemos, é porque de alguma maneira esta
concepção nietzscheana influenciará boa parte da recepção do termo no século XX.
Depois será interessante retroceder a Hegel e Droysen para vermos as diferenças
entre a Bildung filosófica e a Bildung histórica propriamente ditas. Estabelecida a
diferença, teremos dois modelos que indicam mais do que uma mera diferença entre
territórios disciplinares, mas sobretudo dois tipos de conhecimento que apontam para
um ideal de homem culto. E assim começemos pela parte na qual a história não será,
como seria em Hegel, uma etapa do conhecimento ou uma ciência regional ou
secundária – será mesmo desnecessária, para não dizer prejudicial, se for praticada a
partir de sua absoluta pretensão de universalidade objetiva.
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4.2.
Excurso nietzscheano: a crise do homem culto.

Veremos então que é possível pensar a Bildung como um valor do século


XIX essencialmente burguês; mas como é possível pensar um burguês que não seja
somente pragmático e utilitário? Veremos posteriormente como tal questão foi
esquecida ou subestimada em alguns estudos excessivamente obcecados pelo exame
das condições possibilitadoras do nacional-socialismo; mas a Bildung, e
principalmente a Bildung propiciada pela ciência histórica, será, logo no século XIX,
atacada de frente por Nietzsche. O que vale ressaltar é o seguinte: apesar de muitas
das considerações de Nietzsche terem de fato se mostrado inatuais, logo atualíssimas
por não terem perdido sua força provocadora, por outro lado, parte de sua crítica à
historiografia já poderia, por exemplo, ser lida na obra de Droysen. Não se trata
exatamente de verificar quem falou primeiro, ou simplesmente ver se “a” influenciou
“b”, mas sim de perceber logicamente que uma crítica determinada à história não
necessariamente implica críticas à sua capacidade formativa. Por isto, julgamos
160

interessante tomar um pequeno atalho, até para que, justamente através da técnica do
contraste10, possamos compreender melhor o pensamento de Droysen.
Há pontos conflitantes, sem dúvida: como leria Droysen a sugestão de
Nietzsche de que o homem que tudo lembrasse seria incapaz de seguir adiante, e que
estivesse condenado a ver em toda a parte um contínuo vir-a-ser? Afinal, dada a
importância da culpa no próprio processo de conhecimento histórico, como
poderíamos ver em Droysen a função vital do esquecimento que encontramos em
Nietzsche? Droysen enfatiza incessantemente a continuidade e atribui à lembrança
um papel decisivo para que se estabeleça a mediação necessária para o conhecimento
histórico, mas, por um lado, ele vê no saber histórico não exatamente o registro deste
constante fluxo, mas sim a reação primeira à vivência insuportável deste fluxo. Por
outro lado, não é somente Nietzsche que vê na plasticidade de um indivíduo11 e de
um povo, ou seja, sua capacidade de assimilar experiências, cicatrizar feridas e tornar
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próprio o que lhe parecia um sofrimento externo e objetivo – e neste sentido,


podemos arriscar, há também em Nietzsche um lugar reservado para a idéia de
continuidade – mas também o primeiro passo dado por Droysen para que o homem
possa de alguma maneira escapar desta fluxo constante é justamente o de reconhecer
como suas as lembranças, é a de examinar seus pressupostos, é a de se reconhecer e
estabelecer uma identidade. Ou, nos termos de Nietzsche, um horizonte. Suspeitamos
porém que “lembrança” em Droysen e “esquecimento” em Nietzsche podem indicar a
mesma solução, a saber, assimilação e apropriação do que se apresentava objetivo e
opressor. A lembrança em Droysen é o esquecimento da objetividade absoluta de um
objeto, e sua conseqüente introjeção no mundo de representações de um sujeito.
Fundamental no método compreensivo, vimos no capítulo anterior, é verificar que

10
Em texto bastante interessante, Ulrich Muhlack percebe como, em espaço curto de tempo, o estatuto
da Bildung, ou mais especificamente da capacidade formativa da história, deixa de ser positivo, mesmo
exemplar, para ser negativo e prejudicial. Identificando Droysen e Wilhelm vom Humboldt em uma
ponta, e Friedrich Nietzsche e Jacob Burckhardt em outra, Muhlack lamentavelmente não desenvolve
sua idéia. Cf. MUHLACK, U. “Bildung zwischen Neuhumanismus und Historismus” IN:
KOSELLECK, R. Bildungsbürgertum im 19. Jahrhundert. Teil II: Bildungsgüter und Bildungswissen.
11
Plasticidade que podemos de alguma maneira também encontrar em Droysen. Basta que leiamos
cuidadosamente sua crítica à idéia de uma interpretação psicológica dos agentes históricos. A base é
frágil posto que tais agentes não somente se deixam determinar pelas relação que estabelecem em sua
época mas também pela acolhida que se lhes dará no futuro, ou melhor, pelas conseqüências
impensadas e não planejadas de seus próprios atos.
161

mesmo na maior pretensão de objetividade, podemos encontrar presente a marca da


subjetividade.
Talvez ainda mais forte do que este ponto seja o laço entre o que Droysen
afirma ser “o presente”, a história que não deve buscar nem origens nem fins, e o que
Nietzsche poderiam chamar de “instante”. Possivelmente a diferença está no matiz
com que cada qual pinta tal idéia: para Droysen, o presente se determina como algo
inescapável. A consciência é sempre tardia, e o saber é sempre inútil, ineficaz. Para
Nietzsche, a vivência do instante é a própria “felicidade”. Este não chega a ser um
termo droyseano, ainda que, para ele, Deus se revele justamente no presente. Mas não
é de felicidade que trata Droysen. A “felicidade” em Nietzsche poderia ser, em
Droysen, o momento de revelação que se experimenta na contingência que todo
presente é. Ou seja, lugar de conhecimento, ainda que aquilo que se conheça no
presente seja antes angustiante do que alentador, como podemos conferir na citação
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feita em que Droysen lamenta o estado em que se encontra a vida científica, cultural e
política da Europa.
Como sabemos, para Nietzsche a história serve à vida ao ser monumental,
antiquária e crítica. Para Nietzsche, a monumentalidade seria a afirmação de que a
grandeza um dia existente, justamente por ter existido, é novamente possível. É o
ideal da exemplaridade, que, segundo Nietzsche, por mais que convide à grandeza,
por outro lado reduz toda a variedade do passado a um ponto só. Se compararmos
com Droysen, não será algo exatamente novo. Pelo contrário: Droysen chega a ser
mesmo até menos generoso do que o filósofo no que diz respeito à idéia de
exemplaridade. Não bastasse a própria demonstração do limite da interpretação
psicológica da história e de seus agentes (que é o pressuposto do próprio elogio da
monumentalidade, sua condição indispensável), e da redifinição por Droysen da
caracterização de um grande homem como aquele que ao invés de tudo reduzir à
esfera de ação que lhe cabe, na verdade expõe o conflito entre as esferas da cultura
justamente pela superposição de uma delas, causando um novo desequilíbrio,
podemos ler em Droysen que a história é tudo, menos meio para que se possa imitar
grandes ações. Baseado na idéia de que o objeto da história é a anomalia, e não a
analogia, jamais a identidade da lei com o evento, e portanto da lei consigo mesmo,
162

mas sim o descompasso entre sentido e ação, ele dirá que a busca de monumentos
será adeqüada para “a etiqueta” e para “as convenções”, para as coisas que “se
repetem”, mas jamais para a história.12 Formação não é pois seguir um modelo
prévio.
A segunda forma de conhecimento histórico para Nietzsche é a antiquária.
Diríamos que esta é a visão nietzscheana para a concepção orgânica da história em
geral, ou seja, a visão que tem o instinto sobretudo conservador e preservador, em que
qualquer mísera manifestação dentro de um horizonte – ou corpo – determinado
possui significado como parte deste todo. É útil para a vida, segundo Nietzsche, por
justamente configurar um horizonte. Mas é deletéria à vida porque não somente ela,
ao tentar preservar, se esquece de criar, e, ainda por cima, tenta preservar tudo
indistintamente, e, assim, não estabelece qualquer diferença entre os fenômenos. O
selo do passado lhe basta, e, assim, os efeitos dos pensamentos de Lutero ou das
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conquistas de Alexandre Magno são tão importantes quanto um utensílio pessoal que
lhes tenha pertencido. Também já havíamos visto em Droysen que o presente em
momento algum pode ser confundido com experiência imediata. Presente, se nos
permite usar a linguagem de que o próprio Nietzsche se vale e a qual Hans-Georg
Gadamer dará lugar privilegiado, é o horizonte. A diferença entre o horizonte do
antiquário e o horizonte de Droysen, Nietzsche e Gadamer está justamente no
estranhamento que o primeiro negará por completo. Para Droysen, mesmo o presente,
diríamos mesmo sobretudo o presente é instável, jamais uma fonte segura de
identidade.
A terceira forma de perceber a história seria a crítica: nela, nos parece que
tanto a utilidade quanto a desvantagem estão em um ponto só, a saber, o risco. O
risco que Nietzsche percebe muito bem, e que, neste ponto, parece burilar o que fora
antecipado por Droysen, o risco de saber herdar o passado. Sim, porque a crítica é de
fato a possibilidade de esquecer o passado, mas este esquecimento não é
simplesmente ignorá-lo, mas reconhecê-lo sim em todo o seu poder como pressuposto
que informa as vidas dos homens e das culturas, mas um pressuposto que não é dado
e natural, e sim algo que também já foi criado. É algo que se disfarça por natureza

12
Cf. DROYSEN, J.G. Historik, Ed. Leyh. p.250.
163

dada, mas que também já foi, segundo Nietzsche, esforço de superação de um outro
passado. Trata-se de saber andar com grilhões. É um reconhecimento radical da
estrutura trágica da história, conforme vimos no próprio Droysen, uma estrutura em
que a consciência é sempre tardia e toda busca por origens absolutamente vã,
conforme vimos nos próprios estudos de Droysen sobre a Grécia, na qual, segundo
ele, nem mesmo os mitos refletiriam uma certa naturalidade que expressaria
identidade absoluta do homem com a natureza.
Mas as próprias semelhanças entre Nietzsche e Droysen não seriam
espantosas, pois, como afirma o filósofo, nestas três maneiras estaria a possibilidade
da história ser útil para a vida. Todavia, a ambição de fazer da história ciência teria
justamente aniquilado a possibilidade da história recuperar este elo com a vida. E
Droysen quer fazer da história ciência, sem que considere todavia que uma tal
tipologia, como elaboraria Nietzsche, tenha perdido seu sentido na Europa e na
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Alemanha do século XIX.


Devemos todavia ainda ressaltar alguns aspectos da crítica de Nietzsche aos
efeitos que a historiografia produz, ou mais ainda, o que ela pressupõe: uma idéia de
justiça, teleologicamente concebida, que implica a ausência absoluta da participação
do historiador naquilo que ele descreve. Sua necessidade cosmopolita de tudo
englobar e ver sob um determinado processo cultural – um processo de formação da
Bildung segundo a visão de Nietzsche – faria de seu imenso saber algo
absolutamente destacado de si mesmo, um saber que não o transforma. De fato, é
realmente intempestiva a pergunta do filósofo13:

Suponhamos que alguém se ocupe com Demócrito, então a pergunta sempre fica
para mim na ponta da língua: Por que não Heráclito? Ou Filon? Ou Bacon? Ou
Descartes? – e assim por diante. (…) O passado não é grande o suficiente para
encontrar algo em que vós não vos apresentais de maneira tão risivelmente
arbitrária?14

13
Sem citar o filósofo, Reinhart Koselleck levanta questão idêntica em artigo escrito em 1979,
denominado “Über die Theoriebedürftigkeit der Geschichtswissenschaft” (“Sobre a necessidade que a
ciência histórica tem da teoria”), que pode ser encontrado em sua coletânea de textos teóricos
Zeitschichten. (Cf. Bibliografia)
14
NIETZSCHE, F. Segunda consideração intempestiva, p. 45
164

Desta vez Droysen não teria chegado a uma pergunta tão precisa: a história
como pesquisa e conhecimento se mostra necessária quando não é indiferente o
referente que ela toma como “objeto”. O máximo a que Droysen chega é o de pensar
que os objetos da história são “anômalos”, e, neste sentido, jamais indiferentes. Mas
ainda não nos contentamos. A busca da “marca trágica” em Droysen é o mesmo que
Nietzsche pede para os historiadores, ou seja: o evento insubstituível e irredutível.
O problema não é de fácil solução, pois Droysen, como veremos, ao mesmo
tempo que defende a permanência do trágico alertando para a impropriedada da
eleição do Estado como objeto principal dos estudos históricos, por outro lado, e
ainda mais, em conseqüência deste alerta, exigirá que o historiador possa ver a
conexão entre as diferentes forças éticas da vida. Isto poderá resultar na ambição
integralmente intelectualizante em tudo compreender e aceitar a partir da
universalidade ambicionada - é o risco do projeto da Bildung. Quando o saber se volta
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somente para o saber, os objetos podem se tornar indiferentes, e, neste sentido, estão
longe da própria definição dada por Droysen para o objeto mais apropriado da
historiografia como sendo a anomalia. Segundo Nietzsche, porém, e aí possivelmente
reside a sua principal diferença em relação a Droysen, a anomalia só poderia ser
aceita se descartássemos a visão de processo, que tudo concebe e absorve e nada ama
e por nada se deixa arrebatar. A conclusão seria a apatia, o estar em todos os lugares
não estando em qualquer lugar, ou, nas palavras de Nietzsche, “perder cada vez mais
este sentimento de estranheza, não se espantar excessivamente com coisa alguma e,
por fim, estar contente com tudo – é isto que se chama de sentido histórico, de cultura
histórica”.15 Se lembrarmos as palavras de Gadamer, que certamente refletem uma
tradição sobre o conceito de Bildung de que Droysen faz parte, é de se perguntar qual
universalidade é possível, ou seja, como se pode ter noção de processo sem que se
deixe pertencer ao presente. É a questão que já foi formulada em capítulo anterior:
como refletir a eternidade sem todavia ser a própria divindade, e, ainda por cima, ser
criativo justamente por refletir esta eternidade? Mais ainda: Droysen demonstrará a
singularidade da história como forma de pensamento sobretudo quando preservar nela

15
NIETZSCHE. F. Segundas considerações intempestivas, p.62
165

a centralidade da experiência trágica que já se dissolvera com Hegel e que, claro,


estaria presente em toda pretensão de objetividade historiográfica.
Seria o caso de assumir de imediato que em Droysen está forteemente
presente o ideal da Bildung, que, neste aspecto, não seria uma ideologia de conforto
burguês, mas sobretudo o símbolo de sua tragicidade. Ou seja: Droysen não pensa
somente na autonomia de uma determinada forma de saber – a historiografia – mas se
empenha sobretudo em ver na história a constituição do próprio saber mesmo, sem
com isso deixar de reconhecer limites, ou seja: de um saber que não se reduz a outro,
e, por isso, é imprescindível. Um saber que contribui.
Antes de prosseguirmos, duas perguntas deveriam ser formuladas: deveria
Droysen ser visto como mais um alvo pressuposto das críticas de Friedrich
Nietzsche? Ou ainda mais: se quando falou da lembrança como visão objetiva de
nosso ser subjetivo, ou seja, como a capacidade de enxergar a própria situação
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histórica, podemos concluir que esta visão objetiva realizada na e pela lembrança
pressupõe necessariamente uma cisão – e o que seria a vida européia descrita por
Droysen como uma vida cindida? Haveria dois modos de cisão?
Respondendo à primeira pergunta, acreditamos em um primeiro momento que
não; simplesmente Nietzsche tematizará questões já presentes de outra maneira em
Droysen. É pena que não encontremos no escrito do filósofo qualquer referência a
Droysen16, pois há passagens nas quais vemos o espírito do historiador fortemente
presente. A própria exigência de Nietzsche de que a origem da cultura histórica
“precisa ser ela mesma conhecida uma vez mais historicamente; a história precisa
resolver o próprio problema da história, o saber precisa voltar o seu ferrão contra si
mesmo”,17 já vinha sendo cumprida em larga medida por Droysen, e deste aspecto
vem a necessidade de comparar o nosso historiador com Nietzsche. Através desta
breve comparação, ou antes deste contraste poderemos ver melhor as possíveis
contradições do próprio pensamento de Droysen, e, assim, as próprias sutilezas não
só do autor da Historik, mas da própria idéia de história que vigorava na cultura

16
Como era renomado em vida, dificilmente Nietzsche deixou de saber da existência de Droysen, nem
que este conhecimento pelo filósofo tenha sido mediado por Jacob Burckhradt, admirador de Droysen
e que era admirado por Nietzsche.
17
NIETZSCHE, F. Segundas considerações intempestivas. p.69.
166

intelectual alemã no século XIX. Possivelmente Nietzsche se irritaria justamente com


o papel destacado à Bildung, e, por extensão, à importância da “moralidade” expressa
na eticidade em Droysen e, ainda mais, não gostaria dos termos providencialistas nem
do luteranismo do historiador, ainda que tal religiosidade tanto contribua quanto
embaralhe uma ênfase da história no presente, e não no futuro – basta lembrar que
Droysen dirá que o método histórico não habilita o seu praticante a enxergar a
“entrada do templo”, e que será cegado aquele que se arrogar enxergar a luz pura.
Mas não temos documentos que atestem; apenas levantamos a hipótese.
Para que possamos responder a segunda pergunta precisamos entrar assim em
um ponto importante do pensamento sobre a idéia de Bildung, no qual Droysen terá
papel destacado. Se focássemos somente a sua avaliação da crise européia, sua
concepção de história facilmente poderia ser enquadrada dentro da nostalgia
romântica e conservadora de um passado idealizado. Apostamos que deve ser lida
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todavia como sintoma de um luterano liberal-nacionalista que se examina. É


inevitável a questão: ao negar de um lado à filosofia hegeliana o seu direito absoluto
sobre a história como conhecimentos dos fins últimos, e, mais ainda, ao tentar
relativizar a ascendência da filosofia como o único lugar em que a Bildung, o saber
absoluto e desinteressado, pode se realizar plenamente, e ao avaliar, do outro lado, os
efeitos nocivos das ciências naturais, que, segundo Droysen, tiram do homem suas
raízes e o separam da vida, o que estaria ele defendendo, senão a afirmação de uma
história capaz de ser o lugar da Bildung, sem todavia cair no otimismo ingênuo que se
manifesta seja no ilusão do conhecimento objetivo, seja na da afirmação do progresso
linear da civilização européia? De alguma maneira, Droysen já percebera que a
história poderia tanto ser útil quando prejudicial à vida, como apontaria o filósofo
pouquíssimo tempo depois. Mesmo podendo ser prejudicial quando simplesmente
segue métodos alheios, a História pode ser a própria paideia – mais do que uma
simples fonte de paideia. A pergunta é necessária: Como, mesmo com uma visão
pessimista de seu próprio presente, pôde Droysen ver na História a essência da
própria Bildung? Orquestrar tais elementos em seu pensamento poderá nos ajudar a
montar um quadro do pensamento de Droysen que certamente ajudará a dar um perfil
do intelectual alemão do século XIX, principalmente o intelectual assumidamente
167

burguês, muito mais sofisticado do que o traçado por aqueles que julgaram ser seus
algozes no início do século XX (avaliação ainda muito sedutora para muitos
intérpretes de hoje). Parece que, justamente por ser condenado com alguma pressa
por adotar posturas espistemologicamente ingênuas, o pensamento alemão sobre a
história durante o século XIX sequer pôde se defender, não sendo chamado a mesmo
ao debate em que é observado enquanto fala de si mesmo. O contraponto com
Nietzsche tem um propósito muito claro: pode-se falar sim em uma concepção ativa
da história, e, pelo que lemos em Nietzsche, a história também leva à resignação e à
ação (ainda que os historiadores, segundo ele, estão mais empenhados na primeira),
mas todavia, com a leitura de Droysen, vale a pena mostrar como ambas estão ligadas
medularmente. Ou seja, há uma cisão na Europa em si, uma cisão particular e
específica, e uma cisão que é essencial ao próprio modo histórico de pensamento.
Mas a separação é didática, em larga medida.
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Um possível caminho para a resposta nos parece pois ser o seguinte: Droysen
deseja evitar a polarização que ele, em sua fase helenista, via expressa na literatura
grega nas figuras de Ésquilo e Eurípides. Como já vimos, Ésquilo representa o
primeiro passo de tentativa de superação de visão resignada da história, na qual não
há escapatória nem ajuda, mas culpa, e, portanto, participação. Ou seja, com outras
palavras, Droysen diz que a visão resignada não se cria tanto pela previsibilidade das
leis, mas na verdade ela se define pela descoberta de uma estrutura superior,
opressora e necessária a qual não se tem acesso por um fato contingente. Do outro
lado, teríamos Eurípides como modelo. Com o autor de Medéia, “a arte deixa de ser
uma configuração necessária e fechada em si mesma; ela é uma forma capaz de
assimilar qualquer conteúdo.”18 Este é evidentemente o risco do historiador e da
hermenêutica; em momento algum o que se entende por criatividade deve deixar de
ser “espelho da eternidade de Deus” e passar a ser uma expressão arbitrária, uma
degeneração da idéia de liberdade (Verwesung der Freiheit). É bom então que se
tenha em mente o seguinte: a consciência de culpa de Ésquilo, ou seja, a perda da
naturalidade expressa na inocência da identidade absoluta do homem com o mundo

18
DROYSEN, J.G. Kleine Schriften zur Alten Geschichte. p. 287. Die Kunst hat aufgehört in sich
nothwendigerweise und geschlossene Gestaltung zu sein; Sie ist eine Form, die fahig ist, jeden Inhalt
in sich aufzunehmen.
168

não leva necessariamente ao desvario da imposição arbitrária da vontade. Não


estamos a dizer que é este o pensamento de Nietzsche, mas simplesmente preparando
o caminho para a compreensão de que o significado do pensamento histórico, em
Droysen, não pode se prender a um dos dois pólos. Os dois tragediógrafos são mais
do que meramente ilustrativos: apontávamos no início do capítulo que estava em jogo
a importância da experiência trágica em Droysen, experiência que Hegel tentara
apagar através da idéia de reconciliação.

4.3.
À sombra da cruz suástica: uma auto-crítica hermenêutica.

Pode parecer que estamos simplesmente tentando limpar o terreno,


desobstruindo o caminho de obstáculos que não nos permitam ter uma visão pura de
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Droysen. Mas não é o nosso caso. Nem por isso, porém, deveremos simplesmente
aceitar acriticamente tudo que é dito sobre o século XIX, principalmente sobre a
ciência histórica. E Nietzsche, claro, não é o caso mais grave. Não podemos todavia
perder de vista o nosso próprio horizonte, e parte deste dever pode ser cumprido se
tentarmos ver o que forma a nossa própria imagem do intelectual alemão do século
XIX. Sem medo de errar: é o homem da Bildung. Isto não somente porque o termo
Bildung (formação, cultura), gebildeter Mensch (homem culto), aparecerá em textos
de quase todo o espectro das ciências do espírito, sendo pois um formidável
instrumento de análise. Mas sobretudo porque nos parece ser uma conseqüência do
que foi exposto até o momento. Mas é necessário avançar vagarosamente. Dizíamos
que o termo Bildung, por mais que ainda seja utilizado por alguns autores destacados
em suas respectivas áreas (Hans-Georg Gadamer, Walter Schulz, Thomas Nipperdey,
Jörn Rüsen), se apresenta vulgarmente como a roupagem do intelectual oitocentista
auto-centrado e distante do mundo. É a imagem difundida por autores como Norbert
Elias e Fritz Ringer, que tentaram provar como a cultura alemã, desde o século XIX,
criou para si mesma uma imagem em que não havia espaço para a falha e o erro,
compondo assim um código de conduta distante da realidade, absolutamente ideal e
exigente, sendo que tal código ideal e alheio ao “mundo real” seria reforçado por uma
169

vida política imatura e quebradiça compensada pelas elegias de Hölderlin e as


Kinderszenen de Schumann.
Mencionar tais interpretações serve a um papel: descrever parte da situacão
hermenêutica atual. Afinal, ler um autor do século XIX alemão implica, em nossos
dias, uma série de questões. E quando se trata do conceito de história, a questão se
torna ainda mais presente. Qualquer estudo sobre a história alemã, principalmente
sobre a consciência histórica alemã que não se distancie muito da primeira metade do
século XX, inevitavelmente se põe à sombra da cruz suástica. É forçoso admitir que
muitas das nossas imagens sobre o século XIX alemão estejam formadas a partir do
molde criado pelos anos entre 1933 e 1945, e se não é interessante ignorar algo que
simplesmente está presente como questão histórica (o nacional-socialismo) não nos
parece também a melhor alternativa ver todos os momentos da história alemã como
eventos que pavimentaram o caminho para Adolf Hitler. Este é de alguma maneira o
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pathos da obra de Fritz Ringer19 ao ver todo intelectual alemão, principalmente aquele
dedicado às ciências do espírito, um mandarim inteiramente alheio à realidade social,
cultural e econômica da Alemanha. Em um outro estudo bastante difundido, desta vez
feito por Elias, podemos encontrar a descrição das raízes do mal alemão do século
XX através da intolerância alemã com o erro e de sua busca de pureza:

A auto-imagem alemã dificilmente propicia qualquer orientação aos indivíduos,


quando têm que valer-se apenas de seus próprios recursos. Não estava ligada a um
código específico de conduta que dotasse os indivíduos, como ocorre com a auto-
imagem britânica, de um padrão moderadamente firme, internalizado como uma
camada de sua própria consciência, e pelo qual podiam julgar os outros assim
como a si mesmos. (...) O ideal alemão, o código de comportamento, não fazia

19
RINGER, Fritz. O Declínio dos mandarins alemães. p. 35. “Houve algum protesto intelectual na
Alemanha do século XVIII; mas este protesto concentrou-se nos eternos problemas da condição
humana, mesmo quando tratava , por implicação, das deficiências contemporâneas dos arranjos socias
alemães. Os homens eram tratados como meios, e não como fins, e o indivíduo mais bem-dotado
intelectual e espiritualmente pesava pouco na balança do poder arbitrário e da convenção bárbara: foi
esse o lamento recorrente na literatura, na filosofia moral e na teoria social da Alemanha do século
XVIII. Os remédios propostos implicavam um afastamento prcial da situação existente, bem como a
revolta total contra ela. Os temas eram sempre os mesmos: o puro saber, a contemplação
absolutamente desinteressada do bem e da verdade, é a principal vocação do homem. Serve melhor a
humanidade quem cultiva ao máximo o seu próprio espírito; pois o mundo não tem propósito e
realidade em si mesmo”
170

concessões às fraquezas e imperfeições humanas. Suas exigências eram


absolutas e inflexíveis.20

Elias não somente pressupõe um comportamento ideal ou desejável – que, no


caso, seria tangível nos britânicos -, ele parte do princípio, ao menos ao tratar dos
alemães, de que a cultura é uma segunda natureza sem fraturas internas, e, quando
estas existem, as conseqüências podem custar milhões de vidas humanas. Além de
ver na cultura britância uma estabilidade objetiva e dada, o pressuposto desta
afirmação da auto-imagem do alemão é a vivência radical de um divórcio entre
sentido e ação, entre exigência e realização. Não nos interessam neste estudo os
britânicos, por isso apenas ressaltamos que é absolutamente fundamental, neste
registro, pensar a partir de Droysen que não há problema em si neste divórcio entre
sentido e ação – ele é essencialmente trágico, e, ainda que no momento ainda não
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tenhamos tratado exatamente de hábitos e condutas do povo alemão ou de alguma de


suas camadas, a própria idéia de Sittlichkeit, de conduta ética, terá para Droysen um
lugar central. A questão se apresenta da seguinte forma: Droysen reconhece a crise da
própria Europa, tinha sensibilidade para perceber no ato da compreensão uma faceta
trágica que daria contornos e não exatamente “otimistas” do conhecimento histórico,
mas nem por isso deixou de ver nas forças éticas da vida o elemento central da
história. Sob este ângulo, Droysen torna-se um autor que é capaz de problematizar a
idéia por vezes muito abstrata e vaga do “intelectual alemão”.
A visão do intelectual burguês do século XIX se disseminou de tal modo por
todo o espectro ideológico, que não somente especialistas acadêmicos como Elias
ajudarão na sua perpetuação. Na verdade, é uma imagem que já encontramos, por
exemplo, em Ernst Jünger em sua obra O Trabalhador, onde vemos a Alemanha
descrita como uma paisagem “de gelo e fogo”, hostil à burguesia desejosa de conforto
e tranqüilidade, incapaz de compreender o movimento incessante da história. É nele
que lemos: “olhando para mais de um século de história alemã, é com orgulho que

20
ELIAS, N. Os alemães. pp.288-9
171

afirmamos que fomos maus burgueses”.21 E mais do que simplesmente afirmar


orgulhosamente um quase metafísico caráter anti-burguês do alemão, Jünger sempre
mostra que o burguês é aquele que tenta se assenhorar da vida, tornando-a confortável
e domesticada, deixando de enxergar sua periculosidade essencial e se iludindo com
ideais de segurança e universalidade22. A própria referência a autores de espectros
ideológicos e campos culturais tão diversos mostra a difusão e conseqüente
cristalização da imagem do burguês oitocentista; não estamos negando que existia de
todo tal tipo de burguês, mas não se pode negar que a própria burguesia (admitindo
aqui que Droysen era um burguês) também participava de sua crítica. A frase de
Jünger é apropriada e podemos convertê-la em pergunta: teria sido Droysen um mau
burguês?
Vejamos brevemente as palavras de autor bem mais famoso que Ringer ou
mesmo Elias.: o filósofo marxista húngaro Georg Lukács, em 1923, definirá o
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pensamento burguês sobre a história de uma maneira tal que nesta definição
dificilmente reconheceríamos Droysen. E tal prova de incompatibilidade dos termos
de Lukács com o que estamos desenvolvendo sobre Droysen não somente poderá ser
demonstrado quando tratarmos do conceito de Bildung, mas sobretudo porque na
própria idéia de ciência, já analisada no primeiro capítulo, vemos na proposta
droyseana algo que Lukács via como uma lacuna do pensamento burguês:

Posto que seu ponto de partida e seu objetivo é, mesmo que por vezes de modo
inconsciente, sempre a apologia da ordem vigente das coisas ou ao menos a
comprovação de sua imutabilidade, o pensamento burguês necessariamente
encontra aqui um limite intransponível (...) pois o [pensamento burguês] ou bem
supera voluntariamente o processo histórico e concebe a organização do presente
como eternas leis naturais que (...) não se realizaram de todo no passado ou apenas
parcialmente. Ou bem precisa retirar do processo histórico tudo que faz sentido,
ficando apenas na “individualidade” das épocas históricas (....)23

21
JÜNGER, E. O Trabalhador. p.49.
22
Ibid, p.77. “O burguês (…) deve ser concebido como o homem que reconhece a sua segurança como
um valor supremo e que determina a condução de sua vida de acordo com isso.”
23
LUKÁCS, G. Geschichte und Klassenbewusstsein. p.220. Das bürgerliche Denken muss jedoch, da
sein Ausgangspunkt und sein Ziel stets, wenn auch nicht immer bewusst, die Apologie der
bestehenden Ordnung oder wenigstens der Nachweis ihrer Unwandelbarkeit ist, hier auf eine
unübertretbare Schranke stossen. (...) Dann es muss den Geschichtsprozess entweder vollends
aufheben und die Organisationsformen der Gegenwart als ewige Naturgesetze auffassen, die sich in
172

Por mais que tenhamos destacado apenas um trecho do complexo pensamento


de Lukács, ele no momento nos basta para que compreendamos os riscos que
envolvem uma interpretação do pensamento alemão sobre a história. Lembremos o
que dizíamos no segundo capítulo: de forma alguma podemos ver em Droysen
alguém que compreende o presente como um lugar de aplicação de leis naturais e
eternas. Bem visto, pudemos compreender na verdade que o presente é uma
possibilidade que se conquista a partir de uma tensa relação com o passado.
Recentemente, algumas pesquisas indicam caminhos que ultrapassam os
perigos oferecidos pelas visões sempre autorizadas de autores como Nietzsche e
Lukács. Em estudo erudito, Georg Bollenbeck24 acusará o limite deste tipo de análise
– sem indicar diretamente este ou aquele autor – afirmando que uma tal filosofia da
história em versão nacional (a história alemã marcada pela irresponsabilidade, auto-
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engano ou covardia das próprias elites culturais e intelectuais) pode fazer sentido,
mas não resiste à análise dos textos. Bildung se mostra porém como um termo
realmente impreciso, mas em geral sua definição gira em torno do elogio do saber
teórico, divorciado do trabalho cujo resultado imediato é o maior objetivo. Para
Georg Bollenbeck, por exemplo, isto é tradução de um individualismo baseado na
idéia de vocação protestante, e que, por isso, não exclui de modo algum a atividade
piedosa neste mundo. É um fenômeno que não se pode dissociar mesmo do
protestantismo, e, dado o luteranismo de Droysen, precisamos admitir que
Bollenbeck não está longe da verdade.25 Mais ainda: protestante e moderno, pois
justamente seria um movimento antifeudal, ou seja, por ser individual e fomentar o
desenvolvimento das potencialidades de cada indivíduo, a Bildung seria a marca de
uma suposta burguesia culta. Vale lembrar que Bollenbeck inicia seu livro sobre o
lugar dos intelectuais na sociedade alemã ao lembrar da tentativa de veto ao direito de

der Vergangenheit (...) bloss unvollkommen oder gar nicht durchgesetzt haben. Oder es muss alles bei
der blossen “Individualität” der Geschichtsepochen (...) stehen bleiben.
24
Cf. BOLLENBECK, G. Bildung und Kultur: Glanz und Elend eines deutschen Deutungsmusters.
25
Ibid, p.165 passim.
173

voto àqueles sem diploma universitário26. O estudo de Bollenbeck, indispensável no


tratamento do tema da Bildung, peca pelo seu próprio e principal mérito, a saber, sua
enciclopédica abrangência, faltando-lhe análises mais sutis de autores específicos.
Droysen que, apesar de não ter a centralidade de Goethe e Schiller para a cultura
alemã, merece um cuidado maior por sua rara sensbilidade capaz de articular, no
século XIX, as idéias de moralidade e crise histórica – somente isto já torna sua
ausência no livro de Bollenbeck uma lacuna.
Günther Buck por sua vez enfatizará a idéia do saber da Bildung como
desapegado da prática, só que de maneira ainda mais radical. Para Buck, homem
culto é todo aquele que pode ser definido como um homem que tem a si mesmo como
tema, que não é constrangido pelos afazeres cotidianos, e que faz de si mesmo meio e
fim, um ser quase absoluto27. Trata-se de uma versão do que Hegel dizia ser o próprio
fim da fenomenologia do Espírito – a experiência que a consciência faz de si mesma a
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leva a concluir que todo o processo indica esta experiência, ou seja, ela faz de si
mesma seu objeto. No caso de Buck, trata-se de uma visão idealizada em demasia,
pois tal concepção otimista de homem não poderemos encontrar em Droysen, que
verá na história algo de que simplesmente não se deve livrar, mas apropriar, e na
apropriação, o homem se coloca como reflexo criativo da eternidade de Deus – e de
acordo com a definição de Buck, nos parece que o homem culto é o próprio Deus,
pairando acima de qualquer circunstância. É sempre bom entender que esta
apropriação, ao invés de transformar o homem em algo absoluto, lhe empresta a
consciência de sua parcialidade, como vimos em Droysen. Por vezes, não nos espanta
a crítica de Nietzsche ao homem culto como aquele desprovido de pathos, de
circunstância e de horizonte. Mas não será necessário recorrer ao filósofo de
Zaratustra para que seja considerada a importância de ser determinado, e por vezes
nem mesmo a Droysen: já podemos lê-la em Hegel, que em sua filosofia do direito
afirma: “na determinação o homem não deve se sentir determinado, mas na medida
que observa o outro como outro, conquista justamente daí seu sentimento-de-si. A

26
Donde se conclui que, como lembraram os social-democratas contra os conservadores agrários,
Friedrich Schiller, um dos heróis da cultura nacional, não teria direito de votar.
27
Cf. BUCK, G. Rückwege aus der Entfremdung. p.22
174

liberdade não está na indetemirnidade, nem na determindade, mas em ambas”.28 A


questão parece oscilar claramente entre os termos propostos por Hegel, a saber, entre
a determinação e a indeterminação, entre a consciência de ser situado historicamente
e não se deixar confundir entre este estar situado e a ilusão de que a imediaticidade é
portadora de sentido. Hans-Georg Gadamer será capaz de ajudar no debate em torno
do conceito ao afirmar que

É a essência mais universal da formação [Bildung] humana tornar-se espiritual em


uma universalidade. Ela exige o sacrifício da especificidade perante a
universalidade. Sacrifício da especificidade tem todavia um sentido negativo:
repressão dos instintos e com isto liberar-se do objeto dos mesmos e assim
conquistar a liberdade para o seu próprio caráter objetivo.29

A passagem de Gadamer é notável, e não nos supreende que a partir dela


possamos entender a Bildung como base para a afirmação da responsabilidade em
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toda a historicidade: sim, o geral a que faz referência Gadamer não é o abstrato sem
carne e osso, o abstrato sem terra e atemporal e utopicamente válido, mas na verdade
a circunscrição de um horizonte a partir de uma perspectiva, ou seja, a ampliação que
só é possível a partir de um ponto específico. Mais uma vez, porém Gadamer destaca
lamentavelmente tal afirmação de uma análise concreta do pensamento de Droysen,
colocando-a pura e simplesmente na trilha de Hegel. Não nos parece difícil concluir
que tal sacrifício da especificidade perante a universalidade é o que dá forma ao
próprio horizonte de interpretação. Tendemos todavia a concordar antes com a visão
de Reinhart Koselleck, que, por mais que verifique a relação do ideal de Bildung com
o protestantismo e a burguesia, não tenta ver a incipiente formação política alemã
como motivo de vergonha que os alemães tentaram cobrir com bens culturais, ainda
que seja interessante ressaltar que tal caráter incipiente da política alemã pressupõe

28
HEGEL, G.W.F. Grundlinien der Philosophie des Rechts. p.57. In der Bestimmtheit soll sich der
Mensch nicht bestimmt fühlen, sondern indem man das Andere als Andere betrachtet, hat man darin
erst sein Selbstgefühl. Die Freiheit liegt also weder in der Unbestimmtheit noch in der Bestimmtheit,
sondern sie ist beides.
29
GADAMER, H.G. Wahrheit und Methode. p.17. Es ist das allgemeinste Wesen der menschlichen
Bildung, sich zu einem allgemeinen geistigen. Sie verlamgt aufopferung der Besonderheit für das
Allgemeine. Aufopferung der Besonderheit heisst aber negativ: Hemmung der Begierde und damit
Freiheit von Gegenstand derselben und Freiheit für seine Gegesnständlichkeit.
175

que haja alhures um desenvolvimento político modelar e maduro, pressuposto este


sempre obscurso e não-assumido. Para Koselleck, enfim, a Bildung é um termo que
não se deixa reduzir a uns tantos outros elementos sociais e políticos30. É um fator
histórico genuíno, criativo. Sobretudo, ele seria elaborado a partir dos princípios de
autodesenvolvimento e autoafirmação; princípios aparentemente iluministas, mas que
na verdade já são a resposta histórica ao iluminismo. A tipologia básica da Bildung é
a resposta da visão perspectiva do mundo sobre a visão total do iluminismo.
Justamente esta ausência de uma instância superior que conforte e dê respaldo ao
homem, obriga o homem ao seu próprio desenvolvimento; e aí, ao contrário do que
impõe a habitual figura do homem culto e contemplativo, a Bildung conduz à vita
activa. A conseqüência social é evidente, segundo Koselleck: nenhuma autoridade se
impõe simplesmente pela sua força. A Bildung capacita o homem a criticá-la31.
Não partilhamos em todos os instantes com o otimismo conceitual quase
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absoluto de Koselleck: como já dissemos, em nosso trabalho, ele é sobretudo um


excelente instrumento de comparação, pois lembrando a própria visão que Droysen
tinha se sua situação intelectual e cultural, é absolutamente indispensável um conceito
que viabilize o debate entre correntes que ultrapassem as fronteiras disciplinares –
historismo, ao final das contas, é um termo que desafina quando nos deparamos com
Hegel, e romantismo, ou historiografia romântica, é um outro conceito que
definitivamente não cabe no próprio Droysen. E, de mais a mais, também gostaríamos
de lembrar que a crítica de Nietzsche à historiografia é antes baseada não exatamente
em um historismo que vagueia entre Herder e Ranke, mas sim na própria Bildung, ou
seja, na capacidade formativa do saber histórico. Nietzsche mesmo dificilmente
poderia entrar em um diálogo com os autores da tradição historista a não ser pela pura
e simples oposição. Queremos mostrar que não é bem o caso, e, assim, a própria idéia
de história pode receber melhor tratamento se for pensada a partir da Bildung, e não a
partir do historismo, termo cuja capacidade de dialogar seja com o “vitalismo” da
vontade da potência nietzscheana ou com o “universalismo” da filosofia do espírito

30
KOSELLECK, R. “Einleitung – zur anthropologischen und semantischen Struktur der Bildung”.
Bildungsbürgertum im 19. Jahrhundert. Teil II: Bildungsgüter und Bildungswissen, p.13.
31
Ibid, pp. 19-21.
176

absoluto de Hegel é bastante reduzida. E Bildung, justamente por apostar no futuro,


no devir, em uma idéia de Bildung como formação-de-si e não na formação para algo
exterior, é capaz de dialogar com ambos, sem todavia se confundir com este ou
aquele autor. Koselleck todavia parece ter esquecido de ver o que a idéia de Bildung
indica: sim, sua quase onipresença no pensamento alemão a torna em si um objeto
digno de estudo. O problema é: a Bildung é sempre uma Bildung para uma coisa,
mesmo que seja para si mesmo, mesmo que seja em direção a uma forma que dê
conta do saber que se transforme a si mesmo em objeto. O problema é que isto parece
ser aplicável somente para a filosofia do absoluto de Hegel. Como resolver um
problema que já apreceu no primeiro capítulo? O interessante é que neste caso a
história irá se acotovelar entre a filosofia de Hegel e a de Nietzsche: no caso da
primeira, a Bildung só seria possível nos moldes da filosofia do absoluto; considerada
as fraturas da filosofia da história, expressas na idéia de destino e na tentativa de
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tratamento narrativo-hermenêutico das contigências, não cairíamos nas garras da


crítica nietzscheana, em que nenhuma Bildung histórica é mais possível? Enfim,
Koselleck descreve o caminho histórico da Bildung sem todavia mostrar os diferentes
momentos concretos que o termo assume – em Hegel, em Droysen, em Nietzsche, e,
sobretudo, o que isto significa para a imagem do intelectual burguês alemão do século
XIX. Neste sentido, a tipologia elaborada por Koselleck é útil, mas insuficiente. Será
necessário retornar a Hegel para que possamos refazer um debate em torno do termo,
ainda que tal debate jamais tenha se dado explicitamente e que nos terá sido útil se
demonstramos como a Bildung é justamente esta capacidade de crítica.

4.4.
Concepção de Bildung em Hegel e Droysen.

Lamentavelmente não é este o espaço para uma exposição detalhada da


evolução do conceito de Bildung – seria necessário, para tanto, analisar textos de
Lessing, Goethe, Schiller, Herder e Wilhelm von Humboldt, para ficar em alguns
177

nomes mais evidentes. Haveremos de nos contentar com parte do pensamento de


Nietzsche em que a Bildung já é criticada,32 e sobretudo com Hegel e Droysen.
É comum e até mesmo esperado verificar em Wilhelm von Humboldt a
semente do projeto da Bildung que não se dê no âmbito ficcional – onde Goethe terá
papel destacado. Em Humboldt podemos de fato encontrar semelhanças com o que
posteriormente veremos em Droysen; para Humboldt, a Bildung sobretudo é o rótulo
que englobará em si a possibilidade de aperfeiçoamento individual do homem,
aperfeiçoamento que não pode ser atribuído pelo Estado. Humboldt entrou para a
história como um dos grandes teóricos do liberalismo justamente por ver no Estado
um órgão menos capaz de fomentar, mas sobretudo de garantir, através da segurança,
o terreno livre para o desenvolvimento da capacidade de cada indivíduo33. Um autor
como Ernst Jünger certamente pensa em nomes como o de Wilhelm von Humboldt ao
talhar o perfil do burguês alemão que deseja segurança. Mas a segurança aqui é mais
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do que estabelecimento de ordem civil: a argúcia de Jünger ao evitar mencionar


nomes certamente o livrou da tarefa de explicar por que um Hegel, que fez o elogio
do Estado (como faria também Jünger), de alguma maneira também desejava uma
certa segurança com sua filosofia do absoluto em que todos os momentos, mesmo o
mais insignificante, indicavam um caminho para a verdade – ou seja, tinham sentido.
O problema não está tanto em criticar ou elogiar o Estado, mas sim em ver em algum
momento uma possibilidade de asseguramento. A preocupação de Humboldt era
perceber que a religião, ou seja, o meio através do qual o homem poderia representar
para si mesmo uma idéia de perfeição, era algo que simplesmente dizia respeito ao
interior da alma humana, à qual o Estado não poderia ter acesso. Humboldt descreve
um mundo cindido, em que Estado e Religiosidade estão separados (portanto,

32
Ainda que a freqüente recorrência de Nietzsche a Goethe e Schiller – o filósofo abre seu texto sobre
história com uma citação do primeiro – nos faça levantar a hipótese que Nietzsche não se posicionava
contra o projeto da Bildung em si, ao menos não como ele pode ser encontrado nos dois autores acima,
mas sobretudo se posicionava contra o que foi feito dele, principalmente na historiografia.
33
HUMBOLDT, W.v. Werke. Bd. 1 p.121. “Eu retorno agora (…) à questão se o Estado pode ou não
agir sobre a moral dos cidadãos através da religião. (…) Toda formação tem como origem o interior da
alma, e pode ser somente possibilitada através de instituições externas, jamais por estas produzidas.”
Kehre ich jetzt (…) auf die Frage zurük, ob der Staat durch die Religion auf die Sitten der Bürgen
wirken darf oder nicht? (….) Denn alle Bildung hat ihren Ursprung allein in dem Innern der Seele, und
kann durch äussere Veranstaltung nur veranlasst, nie hervorgebracht werden.
178

civilidade e virtude também), e que por isso a perfeição humana, ou seja, a


possibilidade de que fossem atendidas todas as dimensões humanas, seria na verdade
atingida pela ação e pelo sentimento que a religião permitia. Todavia, Humboldt vê
uma inédita produtividade nesta separação entre religião e Estado. Para ele, “a
religião era em outros tempos somente um meio de coerção, e por isso agora ela é
meio de formação”.34 Tirando-a das amarras do Estado, a religião seria pois capaz de
ser nacional e restrita por fronteiras, e assim, poderia realizar sua humanidade e seu
ideal de perfeição abrangente.35
Veremos posterioremente como Droysen também pensava a Bildung através
de um conjunto complexo de fatores – daí possivelmente a sua pouco explicada
devoção por Wilhelm von Humboldt – mas não manterá o tom otimista em relação à
capacidade de asseguramento da ordem civil pelo Estado; ou seja, não é porque o
Estado deixa de ser um elemento conciliador que as outras esferas da vida entram em
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harmonia. Uma leitura nos próprios textos de época revela que os autores como Hegel
e Droysen, que defendem o ideal da Bildung, em momento algum tentam pensá-la
exclusivamente como exigência de distanciamento da realidade. Se a Bildung através
do pensamento histórico de Droysen será possível pelo despertar do sentido para a
realidade, ela terá de se cumprir minimanente quando justamente mostrar que há uma
diferença entre saber distanciado da realidade e o saber que é capaz de se criticar e se
renovar como saber. Em Humboldt, vemos na Bildung realmente esta secularização
da religião, mas em Droysen ela será sobretudo a capacidade crítica que se mantém
mesmo quando se sabe que o Estado não mais cicatriza as feridas e imperfeições.
Droysen fala em mudança e em liberdade; mas o “estar em si e para si”, nele, terá
outro sentido. O homem culto não será o homem aperfeiçoado de Humboldt, em
quem dificilmente vemos o elogio da imperfeição que Gadamer vê, por exemplo, em
Johann Gottfried Herder. Já na filosofia da história de Hegel porém temos uma
definição diferente do que é o homem culto, e que servirá de ponto de partida mais
rico para a discussão com Droysen:

34
HUMBOLDT, W.v. Werke. Bd.1. p.4. Daher war die Religion in jenen Zeiten nur Zwangsmittel,
und daher ist sie jetzt Bildungsmittel.
35
HUMBOLDT, W.v. Werke Bd.I., p.5. Unsere Religion lehr keine nationale, sondern eine allgemeine
Gottheit; ist Religion nicht des Bürgers, sondern des Menschen.
179

O homem culto é aquele que sabe imprimir em tudo o selo da universalidade, é


aquele que renunciou à sua particularidade, e que age de acordo com fundamentos
gerais. A Bildung é forma do pensamento; visto com mais proximidade, podemos
ver que isto significa dizer que o homem sabe se conter, e não simplesemente age
segundo suas inclinações e desejos, mas é alguém que se concentra. Com isso, ele
dá aos objetos um campo livre e está acostumado a se comportar teoricamente.36

Quando Hegel diz que a Bildung é uma forma de pensamento, devemos tentar
compreender isto em seu significado mais radical. Bildung não é uma quantidade
determinada e selecionada de determinados conhecimentos; o homem culto age de
acordo com fundamentos gerais, o que de modo algum significa dizer que ele
obedece palavras-de-ordem ou simplesmente é escravo de utopias vagas, alguém que
desconhece profundamente a realidade e as determinações. O homem culto é aquele
que se livra das sensações imediatas e se desprende da ilusão de uma unidade naquilo
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que não é simples, mas sim complexo. Desta forma, ele percebe o objeto em várias de
suas determinações, e não somente como representação de si mesmo ou de algo.
Neste ponto são exemplares e elucidativos os comentários de Wolfgang Wieland
sobre a primeira figura da experiência de si da consciência (a certeza sensível)
descrita por Hegel. Para Wieland, mesmo na certeza sensível, a mais cotidiana e
corriqueira forma de representação (isto é uma árvore, agora é manhã, etc), há uma
ambição do absoluto. O absoluto já está no homem, donde se conclui que o absoluto
não é uma substância verdadeira e pré-existente ao homem, tampouco algo que

36
HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. p.65. Der gebildete Mensch ist der, der allem
seinem Tun den Stempel der Allgemeinheit aufzudrücken weiss, der seine Partikularität aufegegeben
hat, der nach allgemeinen Grundsätze handelt. Die Bildung ist Form des Denkens; näher liegt hierin,
dass der Mensch sich zu hemmen weiss, nicht bloss nach seinen Neigungen, Begierden handelt,
sondern sich sammelt. Er gibt dadurch dem Gegenstande, dem Objekte eine freie Stellung und ist
gewöhnt, sich theoretisch zu verhalten. Podemos encontrar ainda em outros momentos de Hegel
passagens que demonstram claramente que, para ele, a Bildung é esse caminho que o homem faz rumo
à universalidade. Hegel dirá que “a Bildung é uma libertação, que “no sujeito é o trabalho duro contra
a mera subjetividade do comportamento, contra a imediaticidade dos instintos bem como contra a
vaidade subjetiva do sentimento e a arbitrariedade da preferência. Que ela seja trabalho duro, faz parte
do desprazer que recai sobre ela. Mas através deste trabalho da Bildung a vontade subjetiva ganha e si
a objetividade”. Diese Befreiung ist im Subjekt die harte Arbeit gegen die blosse Subjektivität des
Benehmens, gegen die Unmittelbarkeit der Begierde sowie gegen die subjektive Eitelkeit der
Emfpinfung und die Willkür des Beliebens. Dass sie diese harte Arbeit ist, macht einen Teil der
Ungunst aus, der auf sie fällt. Durch diese Arbeit der Bildung ist es aber, dass der subjektive Wille
selbst in sich die Objektivität gewinnt. Cf. HEGEL, G.W.F. Grundlinien zur Philosophie des Rechts.
pp. 344-5.
180

somente se mostra no final, como poderia ser em uma tosca teleologia. Quando
Hegel, de acordo com Wieland, mostra que a certeza sensível ao indicar um isto
indica uma multiplicidade de “aquis” e “agoras” mesmo sem sabê-lo, o que se está
mostrando é o percurso do absoluto – e é isto a Bildung. Não é um cânone a ser
seguido, atingido e copiado, não é uma capacidade inata, não é a senha de uma
sociedade secreta. Está dada como possibilidade, pois em todo instante, mesmo no
mais corriqueiro, há a presença da vontade de absoluto37. É este o sentido de
universalidade, mais do que aquele construído pela mera erudição. Disto tinha
perfeita clareza o próprio Droysen, que escreveu em sua Historik que “a determinação
do conceito de Bildung exclui a definição de um povo como culto porque ele tem
uma multiplicidade de histórias, um sistema urbano altamente desenvolvido e uma
variedade riquíssima de maneiras de bem-aproveitar e gozar a vida”.38 – no que
novamente não fazia senão refletir palavras de Hegel, que geralmente a bibliografia
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esconde. Assim como Droysen diria posteriormente, Hegel também era bastante
reservado quanto à idéia de aperfeiçoamento sobretudo no que diz respeito à adoção
de critérios que poderiam medir e determinar tal aperfeiçoamento39. Ou seja, Bildung
é ação, mas não é sinal de “aperfeiçoamento” e desenvolvimento. Acreditamos que
tanto em Hegel quanto em Droysen, como já havíamos dito em outro momento, tal
ceticismo reside em uma posição crítica em relação às ciências naturais. O
aperfeiçoamento é possível quando as possibilidades são limitadas anteriormente e
previsíveis, aplicável sobretudo ao crescimento que pode ser observado na vida
orgânica.

37
Wieland diz em seu texto “Hegels Dialektik der sinnlichen Gewissheit”: “não se pode ver o absoluto
como um fundamento anterior ativo e simultaneamente como uma última instância. O absoluto é antes,
como diz Hegel na introdução da Fenomenologia, “em si e para si entre nós”. Isto precisa todavia fazer
sentido para o saber imediato e para o senso-comum do homem. O absoluto está ‘entre nós’ como
ambição de verdade na medida em que está sempre relacionado com todas as formas e configurações
de nosso saber, cuja essência já seria uma ambicionar pela verdade, não importando se nós queermos
tal ambição ou não.” IN: FULDA, H. & HENRICH, D. Materialen zu Hegels Phänomenologie des
Geistes, pp.79-80
38
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.252. Diese Begriffbestimmung der Bildung schliesst es aus,
dass eine Zeit oder ein Volk schon darum gebildet ist, wiel es vierlei Geschichtlichkeiten,
hochentwickelten Verkehr, eine reicche Entfaltung von Wohlleben und Genuss hat.
39
Cf. HEGEL, G.W.F. Die Vernunft in der Geschichte. pp.150-1.
181

Sensível a esta definição de Hegel, Jörn Rüsen perceberá porque, justamente


por mesmo o mais insignificante dos atos terem sentido universal, a Bildung é o meio
de reconciliar prática e teoria, ou ao menos de estabelecer um diálogo – neste sentido,
diálogo é a capacidade de demonstrar, como exibe Wieland, de que há um
pressuposto em uma atividade determinada que não está consciente para quem a
realiza. Não precisamos mostrar longamente que esta é uma tarefa absolutamente
hermenêutica, ou seja, a de demonstração de pressupostos. Mas, retornando a Rüsen,
a Bildung aí deixa exatamente de ser compensatória, e passa a ser um elemento
central.

Como mera compensação a Bildung fortalece nos especialistas a ignorância


perante o geral, fortalece a timidez perante a responsabilidade que ultrapassa a
função técnica do saber prático e ainda fortalece a fraqueza do ego de sujeitos que
simplesmente se sentem como funcionários, como peça útil de uma engrenagem,
(…) homens cujos serviços podem ser alugados para qualquer fim.40
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Um dos estudos que tratou com mais cuidado da relação entre crise européia e
a capacidade de formação da história e a partir da história é a tese de doutorado de
Friedrich Jäger. Nela vemos que o autor ressalta a consciência de Droysen de que “a
história não obedece a lógica da vontade humana”.41, logo, de que há estruturas
objetivas capazes de solapar qualquer ilusão de identidade entre ação e sentido. Jäger
todavia deixa clara qual é a estrutura que impede o homem de simplesmente se
prostrar perante o reconhecimento destas estruturas objetivas, deixando a entender
que o limite da eficácia pragmática da vontade não é causa do enfraquecimento da
ação. O próprio reconhecimento deste limite, afirmará Jäger, convida à ação. Neste
instante de reconhecimento de suas condições históricas, o homem “mostra
plenamente sua necessidade de não ser mais uma vítima apática de condições
objetivas, mas no conhecimento hermenêutico destas determinações objetivas ele
pode simultaneamente se emancipar destas determinações”.42

40
RÜSEN, J. Lebendige Geschichte. pp. 86-7.
41
JÄGER, F. Bürgerliche Modernisierungskrise und historische Sinnbildung. p.45.
42
Ibid., p.66
182

A definição de Jäger se encaixa muito bem nas passagens de Droysen, nas


quais podemos ler que a caracterização do homem culto se dá pela “consciência das
profundas raízes do presente”.43 Todavia, a questão permanece. Não parece ser muito
problemático ver que a Bildung não é um refúgio confortável, mas consciência de um
processo; a questão é saber na verdade o que fazer desta consciência – e deste
processo – quando se chega a uma visão angustiada, ou mesmo pessimista, da
história. O problema se encontra naturalmente em perceber a articulação entre a
consciência do processo histórico – que poderia resultar em uma perspectiva
resignada – e o fato desta consciência se dar em um instante determinado, em um
presente específico. Segundo Droysen, Bildung significa:

A consciência sobre a relação dos tempos passados, sobre o manter-presente dos


tempos passados, sobre o ter revivido espiritualmente os passado. E tal revivesvência
espiritual deve ser feita, para que se possa decidir e agir a cada momento na
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consciência e na seqüência desta continuidade, mas que se prossiga com o devir das
coisas de acordo com o seu percurso e sentido conhecidos44.

Uma leitura das preleções sobre as guerras de libertação, curso oferecido por
Droysen no início da década de 40, nos mostra como a Bildung será justamente esta
capacidade de crítica – e, mais, não como conceito fechado em um sistema filosófico,
mas sim como algo cujo percurso histórico sempre foi tal consciência crítica. Nestas
notáveis lições, Droysen, a pretexto de escrever sobre a formação da Alemanha no
século XIX, elabora um quadro da história européia pintado de modo tal que
diferentes esferas da vida em diferentes nações formavam um conjunto de tendências
convergentes e divergentes. Para ficar em um exemplo: as diferentes tradições
intelectuais da Alemanha, França e Inglaterra existiam, mas todas, sem exceção,
marcaram-se por uma libertação de princípios hierárquicos e teológicos do

43
Cf. DROYSEN. J.G. Historik. Ed. Leyh, p.69.
44
Ibid., p.269. Bildung heisst (…) das Bewusstsein über die Verhältnis, das Gegenwärtig-Behalten,
das geistige Durchlebt-Haben der Vergangenheiten. Und geistig durchlebt haben soll man sie, damit
man in jedem Moment in dem Bewusstsein und nach der Anleitung dieser Kontinuität sich entschliesse
und handle, damit man die Dinge nach dem erkannten Gang und Sinn ihres Werdens weiterführe
183

conhecimento45. Na Inglaterra, o empirismo científico de Bacon e o empirismo


dramático de Shakespeare eram a experiência de um homem abandonado e entregue à
natureza, objetiva e subjetiva, sem nada que lhe anteparasse e confortasse. O que
poderia parecer desesperador, na verdade era para Droysen o que se mostraria na
pintura holandesa do século XVII: “a alegria do aparecer” (Erfreulichkeit des
Scheinens)46. E a ausência da teologia como fundamento último será, para Droysen,
decisivo, pois o conhecimento não terá uma direta tradução na estrutura política.
Vejamos o que ele diz sobre o impacto de Descartes e Lutero, representantes de
culturas diferentes, mas que sinalizam ambos, de modo diverso, para o surgimento da
modernidade na fundação do sujeito: “Esta certeza de si mesmo – ‘é necessário
decidir por si’, como diz Lutero, como decididamente se direcionou contra o sistema
hierárquico dominante”.47 O mais interessante, todavia, reserva Droysen para a sua
análise da própria cultura alemã; em passagens que lamentavelmente não foram
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consideradas por aqueles que vêem na cultura burguesa da Bildung alemã pouco mais
do que solipsismo conformado consigo mesmo e devaneador, Droysen fazia já a
crítica do ideal Fáustico. Ele jamais negará a diferença da formação alemã em relação
à francesa ou inglesa, ou seja, para ele os alemães jamais serão empíricos como os
britânicos e tampouco tão positivos na ambição legisladora dos franceses; os alemães
ocupariam o “meio”. Seriam a figura da própria cisão: se o protestantismo,
principalmente o luterano, será uma das principais marcas da subjetividade alemã, por
outro lado o luterano Droysen não deixa passar em branco o fato dos três “líderes” da

45
DROYSEN, J.G. Das Zeitalter der Freiheitskriege. p.95. “E é justamente este o ponto decisivo. Por
quase um século a teologia se manteve como fundamento; ela parecia absorever todo interesse
científico. Mas de um golpe só tudo parece ter mudado, abandona-se o solo teológico, e mesmo a
filosofia se livrou de seus hábitos antigos; e a partir de fundamentos empíricos e matemáticos ela se
constrói a partir do zero.” Und eben dies ist der entscheidende Punkt. Fast ein Jahrhundert lang hatten
die theologischen Fragen im Vordegrung gestanden; sie scheinen alles andere wissenschaftliche
Interesse zu absorbieren. Nun wie mit einem Schlage scheint alles verwandelt, man verlässt den
theologischen Boden, selbst die Philosophie reisst sich von der altgewohnten Weise los; von
empirischen mathematischen Grundlagen aus auferabut sich von neuem.
46
Ibid. pp. 92-4.
47
Ibid. p.103. Diese Selbstgewissheit – ‘du musst es selbst beschliessen’, wie Luther sagt -, wie
entschieden war sie gegen das System der herrschenden Hierarchie gerichtet.
184

cultura alemã do século XVIII estarem longe dos púlpitos: Goethe, Kant e Wolff48. E
como entender, dentro de uma cultura fortemente luterana, a adoração pelo
paganismo helênico? Falar de uma “cultura alemã”, organicamente derivada de
Lutero, petrificada e unívoca, era para Droysen uma impossibilidade. Era uma cultura
cindida, e mesmo sua maior alegoria, o mito de Fausto, não poderia representar a
plena consciência de que esta cultura poderia ter de si mesma. Pelo contrário: o ideal
de plenitude de Fausto não era endossado por Droysen. A passagem não é curta, mas
merece ser citada.

Sua dignidade ética é que ele não se esgotou de trabalhar e deixar agir em si tal
força vital; saudável, forte, uno de corpo e alma, um homem pleno, poder-se-ia
dizer, a imagem do homem natural em sua realização mais perfeita e nobre; ele é o
fundamento de toda cultura humana pura e autêntica que fundou nosso
desenvolvimento nacional; no meio da barbarização e deformação do mundo
moderno, ele nos serviu de modelo. (…) Ele é o ápice deste direcionamento
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subjetivo, mas na medida que atinge o máximo de sua energia, ele acaba por sair
dela. O novo Fausto é o que nos segreda tudo isso.
Mas este Fausto é uma alegoria da reconciliação. Através de todas os círculos da
vida se passa esta peça de tanto significado; mas o Eu monádico, se ele espelha o
mundo em si, não se livra de si mesmo; em sua paralisia ele não deixa de ser uma
gota na torrente da humanidade.49

Droysen então já será um crítico da autonomia do sujeito fáustico, por assim


dizer, em sua pretensão de reconciliação – não há mais reconciliação possível para

48
DROYSEN, J.G. Das Zeitalter der Freiheitskriege. p.127. “Aqueles três lídres da nossa cultura, e
com eles uma grande parte de nosso nobre percurso, eram absolutamente estranhos ao cristiansimo
positivo; nós nos posicionamos, de modo muito peculiar, muito proximamente à antigüidade pagã.”
Jene gennanten drei Führer unserer Bildung, und mit ihnen ein grosser Teil unseres edelsten Strebens,
sie waren dem positiv Christlichen, so schien es, völlig entfremdet; wir standen einen Augenblick dem
heidnischen Altertum auf merkwüdige Weise geistig nahe.
49
Ibid. p.123. Seine Sittliche Würde ist, dass er nicht müde geworden ist, diese Lebenskraft – ihre
Berechtigung nimmt er unmittelbar und ohne Grübeln an – in sich arbeiten und wirken zu lassen,
gesund, kräftig, einig an Leib und Seele, ein voller Mensch, man möchte sagen, das Bild des
natürlichen Menschen in höchster, edelster Vollendung; er ist es, der die Grundlage aller echten, rein
menschlichen Kultur für unsere nationale Entwicklung gegründet hat, inmitten der verzerrten,
fieberhaften Verbildung und Verwilderung der modernen Welt uns ein Vorbild (…)Er ist die Spitze
jener subjektiven Richtung, aber indem er sie zu ihrer höchsten Energie vollendet, führt er sie über sich
hinaus. Der neue Faust ist es, der das bekennt.
Aber dieser Faust kommt nur zu der Allegorie einer Versöhnung. Durch alle Lebensreife hindurch
führt das bedeutsame Spiel; aber das monadische Ich, ob es die Welt in sich spiegele, es kommt nocht
von sich selber los; in seiner Starrheit löst es sich nicht, nur ein Tropfen im Strome der Menschheit zu
sein
185

Droysen. Podemos a partir daí ensaiar um encaminhamento do problema, deslocando


o problema para a questão da responsabilidade. Bildung e avaliação crítica do próprio
presente não se devem excluir; na verdade, é evidente a relação propiciada pela
ênfase de Droysen no presente tanto quando o percebe órfão do passado e pouco
promissor, logo, um presente entregue a si mesmo, que só tem a si mesmo na frente
(neste sentido, é um objeto, um Gegen-stand), como também no presente como
horizonte de sentido fundador de uma hermenêutica. Somente assim não seria
possível um presente distanciado de si mesmo, um presente que se tornasse horizonte,
mas que não adie ou retroceda o problema e que sobretudo não se deixe iludir por
uma vaga utopia ou uma vaga promessa de eternidade?

A imagem semelhante da eternidade para o homem é o instante, o presente, e


quando a observação histórica compreende o passado a partir da plenitude viva do
presente, então ele não tem de fato o ponto de vista absoluto, mas um ponto de
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vista relativo e elevado50.

A questão em torno da Bildung nos parece ser a seguinte: sendo ela a


possibilidade de escapar da parcialidade imposta por um horizonte limitado
(horizonte limitado que é parte da educação estabelecida pelas ciências materialistas e
naturais, segundo Droysen), como não ver nesta ampliação de horizonte, no ato de
imprimir em tudo o selo da universalidade, de reviver criativamente o processo da
história simplesmente um retorno à idéia de teleologia já vista no primeiro capítulo?
Se a teleologia leva a hermenêutica, esta por seu turno leva à Bildung, e assim por fim
não cairíamos em um terrível círculo vicioso, pois a exigência de universalidade da
Bildung não seria exatamente uma volta aos pressupostos teleológicos da história, e,
assim, a visão resignada acabaria rompendo a tensão existente entre ação e
resignação, se impondo como ponto final do processo de consciência histórica? Ou
por outra: como pensar uma visão universal da história sem que ela nos leve à
resignação em última instância, resignação que tem no cosmopolitismo teleológico
(no qual um telos é capaz de reduzir a si a multiplicidade que o antecede) e na

50
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.254. Das Ebenbildliche der Ewigkeit für den Menschen ist
der Augenblick, die Gegenwart; und wenn die geschichtliche Betrachtung aus der lebensvollen
Erfülltheit der Gegenwart deren Vergangenheiten erfasst, so hat sie freilich nicht den absoluten
Standpunkt, aber den relativen höchsten
186

erudição dos conhecimentos geral seus emblemas máximos, seus sintomas? Como
não concordar ao fim e ao cabo com as críticas de Nietzsche? Afinal, o problema
maior da idéia de Bildung será visto por Nietzsche como o cosmopolitismo vaidoso
de seu próprio conhecimento adquirido, cuja base é um intelectualismo sem critérios
que, ao tudo entender de uma mesma distância, simplesmente se faz passivo. Ou seja,
o oposto que a hermenêutica poderia ensinar. O que se revelava como “forma de
pensamento” em Hegel e “reviver para prosseguir” em Droysen se transforma em
paralisia com Nietzsche. O que se pretende moralmente justo é na verdade inativo. O
mesmo poderia ser aplicado ao pensamento histórico segundo Droysen?
“Reviver para prosseguir”: ora, não seria justamente este o ponto que nos leva
a encontrar a medida exigida por Droysen, medida que ele localiza entre Ésquilo e
Eurípides, entre a subsmissão ao destino que se revela forte demais de um lado e a
vontade que, arrogante, se crê capaz de tudo apagar? A seguinte passagem de
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Droysen poderá nos ajudar a entender que, embora exista o risco, não
necessariamente as conseqüências da hermenêutica nos levam de volta a uma
filosofia da história de moldes hegelianos, nem tampouco a um ideal “eunuco” e
objetivista de justiça. A Historik é de fato a ciência que poderá tratar desta questão:

Ela [a Historik] discutiria a questão da responsabilidade do indivíudo e de sua


legimitidade; ela mostraria, como o homem a partir de sua participação no eterno
de fato se põe por sobre esta corrente de eventos finitos ou, ainda, deve procurar
mais e mais se pôr sobre eles e sabe que pode fazê-lo. Em suma: esta ciência seria
um cânone (…) poder-se-ia chamar tal ciência de ética, e a ansiedade com que tal
disciplina vem sendo praticada há vinte anos, desde a morte de Hegel, poderia até
mesmo se tornar frutífera se nos tornássemos conscientes de que a ética tem uma
relação com a teoria da história, que o mundo ético é o mundo da história. A ética
seria a verdadeira filosofia da história51.

51
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.55. Sie würde die Frage von der Verantwortlichkeit des
eizelnen und von seiner Rechtfertigung erötern, sie würde zeigen, wie der Mensch nach seinem ewigen
Teil doch über diesem Strom der Endlichkeiten stehe oder vielmehr sich fort und fort zu erheben
suchen soll und sich erheben kann. Kurz, es würde ein Kanon. Man kann die Ethik als diese
Wissenschaft nennen, und vielleicht würde der Eifer, mit der gerade diese philosophischer Disziplin
seit 20 Jahren, seit Hegels Tode, betrieben wird, fruchtbar sein, wenn man sich bewusst würde, dass
die Ethik ein Verhältnis zur Historik hat, dass die ethische Welt die Welt der Geschichte ist. Die Ethik
wäre die rechte Philosophie der Geschichte
187

A passagem nos convida para uma próxima etapa do nosso argumento: o que
será esta ética de que fala Droysen? Ele a desenvolve na sistemática, segunda parte de
sua Historik. A decisão de Droysen em tratar da ética de modo sistemático nos parece
uma conseqüência quase natural se prestamos a devida atenção ao que foi até aqui
desenvolvido: não é de outro aspecto, senão o ético, de que tratamos até aqui. Pensar
historicamente de modo resignado, ou de modo ativo, é pensar eticamente, é
pressupor uma razão prática que deriva dos modos de conhecimento históricos. E
mesmo que Hegel tenha tratado igualmente da dimensão ética, ou do que ainda
poderíamos chamar de eticidade ou moralidade objetiva (ambas soluções de tradução
para o termo Sittlichkeit), ficaremos satisfeitos se demonstrarmos que a intenção do
filósofo em subsumir a eticidade/moralidade objetiva ao Estado não se verifica em
Droysen, e esta diferença não será simplesmente pontual: na verdade, está em questão
um dos temas que jamais abandonariam Droysen: a tragicidade, que não se dissolve
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na capacidade de síntese e redentora do Estado. Sua visão sobre o Estado sempre foi
cautelosa e sutil, para não dizer crítica. Para ele, era um fator histórico entre outros,
jamais aquele nos quais os demais deveriam se refletir. Vejamos a seguinte passagem
de um preleção oferecida quinze anos antes da primeira versão da Historik:

Só teoricamente o Estado é um bem comum de todos, uma configuração da volonté


generale; segundo a prática são todas as suas funções comprimidas em dois órgãos,
em dois sistemas de atividades. Ao invés da magistratura “soberana” da França e
do selfgovernment da Grã-Bretanha, surge ao fundo uma essência burocrática, (…)
que está totalmente dependente da chefia do Estado (…)52

Ou seja, há sobretudo uma razão de Estado aplicada pela burocracia que de


modo algum é capaz de fazer com que cada esfera da vida possa ser participativa. Na
verdade, o Estado, ao menos o Estado moderno desenvolvido durante todo o século
XVIII na Inglaterra e na França, de maneira alguma é um Estado que permite a
participação do cidadão ou mesmo do súdito. É, neste sentido, tão dogmático quanto
cindido entre aquilo que aparenta e o que realmente realiza. Argumentar que se trata

52
DROYSEN, J.G. Das Zeitalter der Freiheitskriege. p.55. Nur theoretisch ist der Staat ein Gemeingut
aller, eine Gestaltungder volonté generale; der Tat nach sind alle seine Funktionen in zwei Organen, in
zwei Systemen von Tätigkeiten zussamengedrängt. Statt jener “souveränen” Magistraturen
Frankreichs, statt des self-gouvernment Grossbritaniens tritt nun ein Beamtenwesen in dem
Vordegrund, das in völliger Abhängigkeit von dem Staatsoberhaupt (…) angehalten ist.
188

apenas de uma visão sobre o Estado pré-revolucionário não bastaria: se relembrarmos


do que disse Droysen sobre a Europa de 1854, poderemos confirmar que a conjunção
enter ciência e política, base da vida européia, continua a fazer com que todas as
esferas da vida sejam utilizadas como meios para um fim. No que diz respeito à
Bildung, ela permanecerá sendo um protesto, ainda que um protesto burguês, jamais
uma forma de ideologização. Em questão está algo mais do que simplesmente um
problema epistemológico; está na verdade a desconfiança de Droysen que o Estado
seja capaz de ser uma instância neutra, exemplar, para o retrato do que é uma
determinada unidade histórica. Ou seja, quando Droysen fala que não há uma
instância histórica que seja privilegiada em si para o estudo da história, ela está
dizendo que nenhuma instância histórica é moralmente justa o suficiente para que
nela sejam resolvidos os conflitos que existem no corpo do objeto que se estuda.
Mesmo sem esta possibilidade de justiça, Droysen falará em uma dimensão ética.
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Como será possível tratar dela sabendo desde o início que uma justiça neutralizadora
não é possível?

4.5.
Sujeito da História.

Víamos no capítulo anterior que um dos principais desafios do pensamento de


Droysen consistia em perceber uma totalidade, ou ao menos uma possibilidade de
universalização que mantivesse uma dimensão criativa, ou seja, que não recaísse na
totalidade resignada da filosofia hegeliana da história. Se é possível uma história da
história, de que maneira podemos pensá-la? Quem a governa? Qual o sujeito da
história?
A questão deve ser discutida em termos sutis:

A unidimensonalidade racionalista nos obriga a questionar a partir de “ou isto ou


aquilo”: Ou bem os homens fazem a história, ou os homens são na história apenas
momentos sem qualquer ipseidade; ou como se expressa na falsa alternativa: ou
liberdade, ou necessidade. Já a mais simples reflexão mostra que este par expressa
uma oposição da mesma forma que vermelho ou doce, virtude ou água. Pois oposto à
necessidade está o acaso, ou, entendido a partir de termos subjetivos, o arbítrio; e à
189

liberdade se opõe a obrigatoriedade, que é o estado da escravatura. Liberdade e


necessidade não são excludentes53.

Retorna nesta passagem a discussão em torno da ética como verdadeira


filosofia da história: sugerimos que ela deva ser posta sobretudo a partir do que foi
exposto, ou seja, em torno da noção de Bildung. O sujeito da história haverá de ser
este sujeito da Bildung; um sujeito universal, mas jamais distante de suas
circunstâncias. Reformulando: não é porque ele reconhece que é situado
historicamente que ele deixa de ser capaz de abstrações. Já vimos anteriormente que
Hegel também pretende superar esta dualidade. A solução encaminhada será todavia
diferente. Trata-se então de rediscutir o problema. Não há uma ordem cosmológica
responsável pela história, tampouco poderá o homem empírico reorganizá-la de modo
absolutamente racional e intelectual. O encaminhamento da questão encontraremos
na parte sistemática da Historik. Nela, acreditamos que Droysen convoca cada região
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da realidade histórica para uma discussão, como quem deseja incluir em um sistema
para que não seja mais possível para o nacionalista ferrenho ou para um historiador
da arte uma atitude presunçosa de que tal ou tal manifestação do espírito humano
seja, no final, o melhor meio para conhecer o homem – no que Droysen já dera sinais,
quando falava que o fato da religião e a arte serem marcos do século XVI e XVII
através de Lutero e Shakespeare, não significa que ainda serão no final do século
XVIII, nas quais as forças históricas pareciam, segundo Droysen, ditadas antes por
Napoleão e Kant, pela política e pela filosofia. Este é um ponto decisivo: pois é nele
que veremos que a ampliação do campo de objetos da investigação histórica não
significa exatamente uma ampliação objetiva, mas sim a abertura de possibilidades
de identificação da marca trágica de cada época.
A estratégia de Droysen é baseada no mesmo princípio que norteava suas
pesquisas sobre história antiga: não há origem da história em sentido puro, um tempo

53
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.385. Die rationale Einseitigkeit pflegt mit Entweder-Oder zu
fragen: Entweder die Menschen machen die Geschichte, oder sie sind in derselben nur die bestimmten
und selbstlosen Momente; wie man es auch wohl ausdrückt in flascher Alternative: entweder Freiheit
oder Notwendigkeit. Schon die einfachste Überlegung zeigt, dass dies sowenig ein Gegensatz ist, als
sagte man rot oder süss, Tugend oder Wasser. Denn der Notwendigkeit gegenüber steht der Zufall
oder, subjektiv gefasst, die Willkür, der Freiheit gegenüner der Zwang und als Zustand die
Knechstschaft. Freiheit und Notwendigkeit ist also nicht alternativ.
190

primordial, e da mesma maneira não há forma de vida humana que não seja em si
histórica, ou seja, cuja essência não é substancial e sim móvel, cuja verdade não seja
perene, mas sim algo que acontece e se revela. Ao conjunto de formas de vida
humana que podemos ver em conjunto Droysen denomina de forças éticas (sittliche
Mächte): estas se dividiram em três grandes grupos, a saber; as forças naturais, ideais
e as forças práticas. A estrutura dialética, por mais que Droysen tente afirmar seu
caráter puramente didático (ainda que este seja valioso), é inegável. A estrutura de
seu próprio argumento, neste sentido, nos parece indicar algo mais do que simples
didatismo. Para Droysen, as generalidades naturais são as que determinam o homem
de maneira mais substancial e inalterável, como por exemplo o seu próprio corpo.
Estas generalidades também são expostas por Droysen através de uma subdivisão em
quatro camadas, que seriam família, ancestralidade,54 povo e etnia. O exemplo da
família é claro: sim, ela pode ser objeto de estudo da história, para espanto de muitos
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em sua época, mas não exatamente como curiosidade particular. Trata-se de ver como
histórico o que julga-se natural e dado. Afinal, exemplifica Droysen55, como deixar
de entender a monogamia separada da civilização cristã, ou a poligamia dos
princípios do islamismo? Como não ver presente na família formas primitivas de
divisão do trabalho? Da mesma maneira, veremos que a idéia de povo, a princípio
“natural” e dada, na verdade se explica historicamente, por transformações. O que
Droysen pretende dizer é: não se tome por simples o que é complexo, natural o que
desde sempre é histórico.
O exercício será aplicado nas forças ideais, a saber: a linguagem, a arte, a
verdade e o sagrado. Droysen fará questão de mostrar como a linguagem depende dos
sentidos, ainda que não seja mera reação aos estímulos provocados no exterior56. A

54
Devemos salientar que a tradução de comunidade é controversa. Droysen utiliza termos em alemão
(Geschlecht e Stammung) que não encontramos em português. Gênero é termo perigoso, pois tomado
pelos estudos culturais e pós-modernos especializados em estudos sobre as mulheres e minorias
sexuais. Stammung refere-se a uma ancestralidade de cunho quase sangüíneo; todavia, a tradução por
cosangüineidade daria ao termo uma conotação biológica indesejável e incoerente com o pensamento
do próprio Droysen.
55
Cf. DROYSEN. J.G. Historik. Ed. Leyh. pp.295-7
56
DROYSEN, J.G. Historik. p.316. “A linguagem não se limita a expressar representações
específicas. O ato de linguagem é o ressoar da sensação sob a potência do Eu. (…) ao articular-se
como linguagem, a alma não dá meramente a sensação ressoada, mas simultaneamente sua apreensão e
191

linguagem encontrará na arte uma forma de concreção que será por sua vez uma
“materialização” do que seria de outra maneira impossível de ser articulado. Importa
menos aqui tratar do significado de arte em Droysen, mas sobretudo ressaltar que a
esfera “ideal” da linguagem necessita da obra de arte concretizada para que seja
historicamente presente; e, vale dizer, a obra de arte é mais do que um pensamento
embelezado; é, segundo Droysen, uma obra de imaginação e fantasia sem a qual a
linguagem não teria outra maneira de se fazer presente57. Todavia, não será a arte,
como meio concreto de expressão, nem a lingugaem idealizada como uma pura
gramática lógica purificada de sentimentos, os lugares do objeto histórico. É
necessária mais uma esfera ideal: a verdade. Neste momento, Droysen novamente
tenta escapar da dualidade subjetividade-objetividade, demonstrando que

não está nas coisas exteriores a verdade; tampouco está a verdade na nossa
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percepção sensível (…) Somente quando o Eu se liberta desta mudança e destas


peripécias secundárias e reflexivamente se põe, reconhecendo-se como tal e se
pensando como tal, como um novo começo, inicia-se o devir da verdade58.

De alguma maneira, podemos notar uma tríade formada a partir da linguagem,


que se completaria com a arte e a verdade, suas duas configurações possíveis. A
linguagem de alguma maneira é análoga, ou mesmo idêntica, ao movimento da
própria estrutura do pensamento histórico, a saber, aquele que oscila entre resignação
e ação, entre subjetividade e objetividade, sem que definitivamente se deixe reduzir a

tratamento desta sensação.” Die Sprache hat aber nicht bloss einzelne Vorstellung auszudrucken. Das
Sprechen ist Widerklang der Sensation unter der Potenz des Ich (…) sprechend also gibt die Seele
nicht bloss den Widerklang der empfangenen Sensation, sondern zugleich ihre Fassung und
Behandlung dieser Sensation.
57
Ibid. p.321. “Vê-se que a arte é uma linguagem dos homens; mas não uma linguagem de
pensamentos, mas de sensações (…) uma expressão daquilo que movimenta a alma (…) que não pode
ser apreendido em categorias e formas racionais de representação do pensamento.” Man sieht, auch die
Kunst ist das Sprechen der Menschen; aber ein Sprechen nicht von Gedanken, sondern von
Empfindungen, (….) ein Ausdruck dessen, was die Seele bewegt, (…) was nicht in den rationalen
Formen von Denkenvorstellungen und Kategorien zu befassen ist.
58
Ibid. Pp.325-6. Freilich nicht die Dinge, wie sie ausser uns sind, sind die Wahrheit, noch auch, wie
wir sie sinnlich wahrnehmen (…) Erst indem sich das Ich aus diesem peripherischen Wechseln und
Taumeln herauslöst und sich denkend und erkennend als einen neuen Anfang setzt, beginnt das
Werden der Wahrheit.
192

qualquer um dos dois pólos. Na verdade, é necessário superar esta polaridade: “Na
linguagem, pode-se dizer, o espírito subjetiva o mundo; ele também precisa de uma
forma, para que possa simultaneamente se objetivar no mundo”59, diz Droysen. Ou
seja, compreender o mundo já é também atribuir ao mesmo mundo um sentido que
ele, objetivamente, não dava imediatamente. Entra neste momento a esfera do
sagrado – é ela que, segundo Droysen, é capaz de sustentar este câmbio instável com
o mundo: “A convicção, de que não se é uma particularidade acidental, mas sim que
se é algo que se mantém no todo e que nele se está seguro; logo, essa convicção mais
elevada de si mesmo e as condições da mesma – isto é a fé”.60
O elemento decisivo não é conceptualizar, mas sobretudo mostrar como tais
regiões ideais da história se concretizam; assim, a linguagem era sobretudo
concretizada na arte (mais do que no pensamento, diga-se), mas a possibilidade de
sustentar os dois pólos se dava nas religiões. Tal definição de fé deverá ser
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percorrida, diz Droysen, ao longo das religiões e nas comunidades que lhes servem de
corpo. É imprescindível a consideração das “expressões da fé”. Isto feito, Droysen
terá se satisfeito com o obtido, conquanto que se perceba o movimento fundamental:
tanto na dimensão das esferas naturais como na dimensão das esferas ideais, é função
do modo de pensar histórico que se perceba que nem tanto as primeiras deixam de ser
históricas mesmo quando parecem ser estáveis e imutáveis, assim como as segundas,
abstratas, necessitam necessariamente de um corpo, de um símbolo, de uma
expressão visível e tangível. Daí Droysen ver, na exposição das forças éticas da vida,
de um terceiro nível: as generalidades práticas. São elas que serão capazes de, como
deseja Droysen, unir o natural e o ideal.
As generaldidades práticas dividem-se em três: o Bem-Estar, o Direito e o
Estado. Somente a alocação do Estado como mais uma dentre as generalidades
indicaria que, em Droysen, ele não é o motor decisivo da história. Aqui
consideraremos sobretudo a primeira e a última – Droysen se mostra bastante

59
DROYSEN. J.G. Historik. Ed.Leyh. p.329. In der Sprache, könnte man sagen, subjektiviert der
Geist die Welt; er braucht auch eine Form, um sich gleichsam in die Welt hinaus zu objetkvieren.
60
Ibid. p.330. Die Gewissheit, dass man nicht bloss dies zufällige Einzelne sei, sondern im Ganzen
stehe und sicher sei, also diese höchste Gewissheit seiner selbst und die Bedingung derselben, das ist
Glauben.
193

satisfeito com o que se encontra em Montesquieu, cujo Espírito das Leis61 seria
suficiente para mostrar as raízes complexas das leis, que seriam compreendidas
historicamente para além da vontade de legisladores e vigilância do Estado.
O Bem-Estar, segundo Droysen, encontraria sua máxima expressão na
sociedade civil (bürgerliche Gesellschaft). Dentro da sistematização da sociedade
civil, Droysen destaca dois aspectos: trabalho e equilíbrio (Ausgleichung). Já sobre o
trabalho, diz ele que será a sua forma de organização e estratificação que determinará
uma determinada ordem política em sua cristalização e forma.

Na história do trabalho encontra-se a essência da estratificação; pois ele surge da


oposição de trabalho e não-trabalho, segundo as diferenças dadas entre trabalho
físico e intelectual, trabalho público e privado. A essência estratificada é muito
pouco determinada pelo Estado, antes mesmo a sociedade tem uma determinada
participação na formação e reformulação do Estado.62
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Mais ainda: Droysen critica ferozmente a tendência nacionalista de estudar


historicamente a economia, e já nos finais da década de 50 do século XIX, observa
que limitar-se ao estudo da Volkswirtschaft, da economia popular e nacional, por
assim dizer, seria deixar de perceber que não é o Estado nacional o elemento
determinante no equilíbrio econômico; dele só dá conta uma perspectiva cosmopolita.

Para a produção de bens e sua circulação, valem todas as fronteiras, menos as


nacionais e políticas; é uma das tarefas mais interessantes, certamente ainda não
completada, demarcar as regiões da terra e do mar de acordo com suas regiões
63
econômicas.

61
Cf. DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. pp.353-5.
62
Ibid. p.345. In der Geschichte der Arbeit liegt das Wesen der Stände; denn sie erwachsen nach dem
Gegensatz der Arbeit und Nichtarbeit, nach den Unterschieden der geistigen und leiblichen, der
öffentlichen und privaten Arbeit (…) Das ständige Wesen ist so wenig durch den Staat gesetzt, dass
vielmehr gerade in dieser Form die Gesellschaft ihren bestimmten Anteil an der Formung und
Umformung des Staates hat.
63
Ibid p.351. Für die Gütererzeugung und Güterbewegung gelten ganz anders als die nationalen und
politischen Grenzen; es ist eine der interessansten, freilich noch nicht gelösten Aufgaben, die Weltteile
und Weltmeere nach ihren wirtschaftlichen Gebieten zu verzeichnen.
194

Ao tratar propriamente do Estado, Droysen evita descrever um governo ideal,


contentando-se em sugerir que o Estado seja visto historicamente em suas funções
específicas de cada época, e que sobretudo seja observado que o principal motivo de
estudar o Estado seja o de ver as formas que o poder assume e como funciona – e isto,
bem observa Droysen, não é exclusividade do Estado64.
Esta breve exposição das características das esferas da vida ética tem como
função mostrar como o objeto histórico deve ser construído, não porque ele só o é
através da exclusiva operação mental e subjetiva do historiador, que nada faria senão
representar seu presente, transpondo-o no passado. Permaneceria como sujeito
empírico. E não é este o projeto da Bildung. O projeto da Bildung passa por uma
necessidade de abstração, por uma ambição de história como história da humanidade
– e assim ainda permanece um projeto burguês, sem dúvida – ao tentar possibilitar
justamente o que significa romper com o sujeito empírico e tornar-se um sujeito que
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enxerga com os olhos da “humanidade”. A seguinte passagem de Droysen é


ilustrativa para o problema que se propõe resolver.

A natureza do homem se eleva sobre a própria finitude (…) Trata-se de compreender


o poder da fantasia, que ultrapassa o momento, o que será e o que deverá ser (…)
Trata-se de entender o poder da inteligência, que a partir de novos pensamentos
reconstrói a partir das coisas dadas, que, por assim, dizer, pensa de maneira nova (…)
Deve-se por fim entender também o poder da vontade65, que realiza o novo que foi
pensado apesar de toda resistência66.

64
DROYSEN, J.G. Historik. Ed. Leyh. p.357. “Aqui temos a violência eclesiástica, que toma para si
parte da violência pública, que pretende dominar completamente as almas; acolá estão as artes e as
ciências, que têm o poder das idéias, a iniciativa da vida espiritual; mais adiante a vida material produz
as grandes desigualdades sociais.” Da ist eine kirchliche Gewalt, die einen Teil der öffentlichen
Gewalt an sch gerissen, die die Gemüter völlig zu beherrschen in Anspruch nimmt; da hat Kunst und
Wissenschaft die Macht der Ideen, die Initattive des geistigen Lebens; da erzeugt das Güterleben die
grosse Ungleicheit der Gesellschaft.
65
Grifos nossos.
66
Ibid. p.390. (…) die Menschennatur ist weit über die Endlichkeit erhoben, alle menschliche
Begabung erscheint gesteigert und gespannt zur Erfüllung des Werkes. Es ist die Macht der Phantasie,
über den Menschen hinaus das, was sein wird und sein muss, zu erfassen (…) Es ist die Macht der
Intelligenz, von dem neuen Gedanken aus die Dinge neu zu konstruieren, sozuagen neu zu denken (…)
Es ist die Macht des Willens, das so gedachte Neue auch zu realisieren, trotz allen Widerstandes (…)
195

Dividindo a Bildung em fantasia, inteligência e vontade, Droysen de alguma


maneira faz da razão algo menos astucioso do que Hegel pretendera – na verdade,
explicitamente a subordina à vontade e à ação. Somente na conjunção destes três
fatores fundamentais a história poderá ser história da humanidade. Para Droysen, o
homem não se reconheceria somente na intelectualidade do conhecimento e da
elaboração de leis, tampouco seria somente um ser a exercer violência institucional
sobre outro e, assim não seria livre, ou por outra: não seria em si e para si. Quando
comenta que de fato uma história da família concentrada somente em uma família
específica seria de pouco ou nenhum interesse geral, da mesma forma uma história
concentrada somente no Estado ou em qualquer outra esfera seria menos interessante,
pois desprezaria esta constituição antropológica que Droysen considera fundamental:
“Se há de existir uma história que seja de interesse geral, uma história que justamente
seja chamada de história, então é uma que mostre o seu Eu geral em seu devir.”67
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Entendemos pois liberdade não como algo que se incorpora em uma determinada
forma de organização política ou nível de vida material, mas sobretudo como
“relacionar-se consigo mesmo e determinação de si mesmo do Espírito”, ou ainda,
como algo que “revive para prosseguir”, Droysen considera que tal condição só pode
ser plenamente compreendida através do jogo complexo entre fantasia, inteligência e
ação, tríade que se dissolve na filosofia da história de Hegel e qualquer outra tentativa
de normatização. O que nos salta aos olhos, mas que ainda estava latente, são as
diferentes formas manifestas na cisão definitivamente assumida por Droysen nesta
tríade. É como se a idéia de tragédia fosse lentamente se modificando: primeiramente,
logo no capítulo inicial, ela se mostra como destino, como lei inconscientemente
escrita pelo agente, que posteriormente haverá de reconhecê-la como sua. Em um
segundo momento, a tragicidade será expressa sobretudo na idéia de “meio”, ou seja,
na ação que não tem cura ao buscar se purificar no passado, tampouco poderá se
garantir através de um ato redentor do futuro. É tardia e ineficaz, como dizíamos. Por
fim, esta idéia trágica ganha mais uma forma, a saber, a partir da impossibilidade de

67
DROYSEN. J.G. Historik. Ed. Leyh. p.368. Wenn es eine Geschichte geben soll von allgemeinen
Interesse, eine Geschichte, welche mit Recht die Geschichte gennant werden kann, so ist es diejenigen,
in der sich jenes generelles Ich seinem Werden zeigt.
196

uma garantia prévia de que tais três dimensões necessariamente se reunirão. Droysen
constantemente fala, ao longo de suas preleções, de que a história há de buscar
totalidades relativas. É disto que trata a tríade: cada momento dela jamais poderá ser
absoluto, subsumindo as demais. Ela existe em conflito com as outras duas.
Falávamos no início do capítulo que a história jamais se justificaria como
ciência empírica se o objeto delimitado por ela em cada caso, ou seja, a anomalia
escolhida, não influenciasse diretamente na própria visão do historiador em seu
próprio presente. Se a Grécia, no primeiro capítulo, foi na sua etapa helenista, pouco
mais do que uma etapa de preparação para o cristianismo, no segundo ela já seria o
centro para a visão trágica de hermenêutica, ou seja, a que não pode compreender as
origens nem prever fins. Neste terceiro capítulo, vimos sobretudo que deveria ser
mantida a marca trágica, ou seja, uma época se estuda a partir dos conflitos que nela
podemos encontrar; ou seja, não em suas sínteses, mas em suas questões. Esta não é
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inclusive a característica principal da hermenêutica, a saber, a de tentar entender as


questões que surgem em uma determinada época? O que consideramos notável é que
justamente somente no final da preleção sobre teoria da história Droysen mencione os
três termos de forma tão clara: fantasia, inteligência e vontade parecem estar
presentes em sua obra em outros momentos, e o fato de serem mencionados um tanto
“tardiamente” tais três fatores, que, lembremos, são modos de saída da
imediaticidade, jamais partes de uma síntese regeneradora, indicam que mesmo para
ele a questão não era evidente.
Ao pensarmos a tríade formada por fantasia, inteligência e vontade,
haveremos de necessariamente considerar com seriedade os limites da normatização
no processo de constituição de uma consciência histórica. Indiscutivelmente, a
Historik, a teoria da história, é uma tarefa imprescindível; e o século XIX é pródigo
em compô-las de modo mais ou menos sistemático, e Nietzsche, Burckhardt, mesmo
Hegel e, claro, Droysen, nos deixaram rico legado. Autores do século XX mantém tal
prática. Mas a normatização seria capaz de responder pela necessidade, mais do que
pela possibilidade, da consciência e do pensamento históricos? E a irredutibilidade da
tríade não seria um indício de que a teoria da história deveria ver na normatização e
na sistematização uma etapa, e não somente seu objetivo? Mais uma vez mostra-se
197

também o limite do historismo, e aqui falamos do historismo que um especialista


autorizado como Jörn Rüsen considera, a saber, historismo como o movimento que
solidifica o processo de cientifização da história. O ponto é: superar Hegel não
significa, no caso de Droysen, reafirmar o historismo. Na verdade, porque justamente
supera inclusive as dimensões narrativas da historiografia ao colocar em questão
através da tríade exposta uma linearidade – ou ao menos uma certa coerência ou um
sentido de “conclusão” e “fechamento de sentido” – que é pressuposto de toda
narrativa.
A questão de Droysen pode ser mais ou menos explícita para ele mesmo. Ela
nos interessa em três níveis. Primeiramente, porque ele, como desejava Nietzsche,
jogava contra o saber o ferrão do próprio saber. Sua teoria da história não é um
asseguramento; na verdade, tem momentos de crítica cultural, crítica da ciência e
tentativa de flexibilização da ciência, que deveria se tornar mais plástica seja através
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da fantasia quanto da ação. Em segundo lugar, há um nível bem menos explícito para
o próprio Droysen: sua teoria da História é uma reflexão sobre a burguesia culta –
uma reflexão crítica, um olhar para dentro, jamais uma reificação. Não encontraremos
em Droysen o elogio do progresso material viabilizado pelas ciências que pretendem
dominar a natureza – pelo contrário. Também não encontraremos sua contrapartida
romântica, ou seja, um elogio das ciências sem fins práticos – na verdade, para ele, o
saber em si e para si não se mostra através da complexidade de conceitos crus que
recusam qualquer referência empírica, mas simplesmente o saber que contempla as
dimensões possíveis do homem. Esta é a autêntica Bildung, a verdadeira
complexidade que ela abarca; uma complexidade que exige do historiador ou de
quem quer desejar pensar historicamente um exercício que ultrapasse a absorção de
normas. Encontrar em Droysen um burguês com tal grau de auto-crítica é digno de
nota, ainda mais quando lembramos que sua vida antecede razoavelmente o que
consideramos ser em geral o ocaso da burguesia oitocentista européia.
Pode-se falar em sujeito da história? Sim, desde que se considere seriamente
que ele não pode ser dominado por um dos três fatores determinados por Droysen
como essenciais à Bildung, ou seja, ao estágio em que o homem está em si e para si
em sua fantasia, inteligência e vontade. Podemos fechar o circuito hermenêutico, em
198

que a questão que retiramos a partir de Droysen parece ficar mais clara: não estariam
tais funções características da Bildung expressas nos três tragediográfos da Grécia
antiga? Vimos que, em Ésquilo, há imediatamente um homem consciente de sua
própria culpa e desejoso de pertencer à própria existência: ali está presente a idéia
teleológica de destino cuja marca da culpa já permite uma consciência participativa.
Como a existência se põe fora de si mesma, porque dada em uma falta que sabe ser
sua, ela é uma fantasia. Não uma fantasia no sentido vulgar de invenção, mas uma
fantasia absolutamente necessária e angustiada que põe a vida à frente de si mesma, e
se projeta no futuro a partir da falta com o passado que a circunda. Eurípides, também
pudemos perceber, é a Bildung ativa, ou o que vínhamos chamando de Hermenêutica;
é a capacidade de ação dada em qualquer alteração de sentido e significado e a
consciência de saber poder fazer tal ação. Por fim, restaria Sófocles, onde a Bildung
cumpriria sua outra função: a do conhecimento. Para Droysen, em Ésquilo “o mundo
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está pronto e fechado, cada qual tem seu direito e seu dever, e o que existe se firma
sobre leis imutáveis, que são a consciência da própria liberdade e da vontade geral de
todos; uma paz divina, solar, feliz.”68 Todavia, não se trata de uma estabilidade
teleológica, definitiva – do contrário não haveria qualquer sentido em mencionar
ainda Eurípides, posterior à Sófocles – mas cabe-nos ver como tal estabilidade se
expressa através do coro, ou seja, uma instância isenta de qualquer culpa, portanto de
qualquer participação, que se contrapõe à ação e culpa do herói. Mesmo neste âmbito,
e aqui vemos como Droysen, entendido a partir de sua visão sobre a tragédia grega,
liberta-se simultaneamente tanto da visão hegeliana (a qual se aproximava com sua
idéia de helenismo) como de Wilhelm von Humboldt, que via na redução dos limites
de ação do Estado uma condição suficiente para a realização das possibilidades
internas de cada qual. Ou seja: seria como se em Humboldt a fantasia, a ação e o
conhecimento necessariamente entrassem em harmonia. O que Droysen diz sobre
Ésquilo valerá para o conhecimento histórico, mesmo quando ele se pretende
universal.

68
DROYSEN, J.G. Kleine Schriften zur Alten Geschichte. p.285. Die Welt ist fertig und geschlossen,
jeder hat sein Recht und seine Pflicht, und das Bestehende gründet sich auf unwandelbaren Gesetzen,
die das Bewusstsein der eigenen Freiheit und der gemeinsame Wille Aller sind, ein sonnenhafter,
glückseliger Gottesfrieden.
199

Os coros de Sófocles são a exposição do povo, no qual domina a voz geral em toda
participação individual, que se destaca por sua vez através da firmeza digna e da
nobre seriedade da sua consciência; constantemente passivo na ação e na culpa
individual os coros observam a luta do conflito e naufragam sem tomar partido,
posto que no geral todos os partidos são absorvidos e suprassumidos69.

É necessário observar que a excessiva ênfase na consciência histórica


teleológica e importente, que poderia ser aproximada à Ésquilo, levaria à
impossibilidade radical de qualquer leitura ou novo entendimento da História. Mas é
como está dito: mesmo em Ésquilo a consciência de um poder arrasador não é
absoluta, e a consciência do destino próprio, ou seja, o que há de tremendo e aterrador
é a culpa inerente que, por sua vez, carrega a idéia de participação. Abre-se o
caminho para a hermenêutica, e, neste sentido, para a idéia de tragédia em Eurípides –
por isto vale a pena ressaltar que não se trata de uma exposição cronológica, apenas
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de uma transposição de tipos. Sófocles seria a figura do meio, ou seja, a figura em


que o conflito é tematizado de forma mais explítica, em que a falta não é causada
somente pela culpa, pela pobreza do agente impotente ou inconsciente, nem causada
por um mundo exterior absurdo e decadente, do qual o agente pode se servir e
reformular. Trata-se sobretudo do conflito entre tais pólos: um conflito ininterrupto,
que certo crítico literário diria ser, aplicando aos romances de formação, uma
característica da juventude, jamais da maturidade70. A aproximação com os

69
DROYSEN, J.G. Kleine Schriften zur Alten Geschichte. p.286. Die Sophokleischen Chöre sind als
die Darstellung des Volkes, in dem bei aller Theinahme für den Einzelnen und sein Geschick doch die
Stimme des Allgemeinen beherrscht, durch die würdige Haltung und den hohen Ernst ihrer Gesinnung
ausgezeichnet; stets theilnahmlos an der That und Schuld des Einzelnen sehen sie den Widerspruch
kämpfen und versinken, ohne Parthei zu nehmen, da in dem Allgemeinen alle Parthei enthalten und
aufgehoben ist.
70
O limite imposto pelo prazo de nosso estudo não nos permitiu uma ramificação que só poderia
enriquecer a discussão em curso: gostaríamos de ter dedicado uma parte generosa à ficção alemã, mais
especificamente aos romances de formação. Acreditamos todavia que a própria descrição feita, já no
segundo capítulo, da presença de elementos subjetivos, já contribui em parte para uma idéia de que a
exposição do pensamento histórico não depende exclusivamente de elementos considerados
pragmáticos e existentes previamente na realidade, que deveriam apenas ser adaptados e refletidos na
obra tecida pelo historiador. Ou seja, ele pode ser criador, como sempre quis Droysen e já desejava
Wilhelm vom Humboldt. O leitor interessado haverá de se contentar por ora com a obra de Franco
Moretti, The Way of the World: The Bildungsroman in the European Culture, na qual o crítico italiano
demonstra estar presente, por exemplo, em Goethe, algo que de alguma maneira também identificamos
em Droysen, a saber, a Bildung como sendo sempre uma marca da juventude, ou seja, a recusa da
maturidade e da cristalização e a necessidade de exposição dos conflitos. Citamos Moretti: “Para
200

tragediográfos não é acidental ou meramente exemplar: serve-nos para que possamos


ver sobretudo o pensamento de Droysen em sua própria cisão que ironicamente ele
via em sua própria cultura, mas que jamais tematizou teoricamente: ou seja, a
conjunção do protestantismo com um classicismo grego.
A possibilidade de pensar que o pensamento histórico alemão no século XIX,
na figura de Droysen, realizava notável exame auto-crítico, e, assim, podemos ver
que se faltaria aos burguês alemão do século XX alguma capacidade de se representar
a si mesmo, teríamos no historiador Droysen não exatamente um homem capaz de
representar pura e absolutamente a si mesmo – a conjunção entre tragédia e
cristianismo, por exemplo, jamais lhe foi clara como questão – mas sobretudo alguém
que lançou contra o saber o seu próprio ferrão ao declarar que suas funções não
poderiam se limitar à casta objetividade ou à distante especulação. Na verdade, estar
em si e para si significava para Droysen contemplar suas diferentes faces divergentes.
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Schiller e Goethe, felicidade é o oposto de liberdade, o fim do devir. Seu surgimento marca o fim de
toda tensão entre o individual e seu mundo, todo desejo para metamorfoses futuras se extingüe.” For
Schiller and Goethe, happiness is the opposite of Freedom, the End of becoming. Ist appearance marls
the end of all tension between the individual and his world; all desire for further metamorphosis is
extinguished IN: op.cit..p.23.
5.
Conclusão

Em seu longo ensaio Considerações de um apolítico, Thomas Mann definiu


os alemães com uma pergunta retórica: “Não seria da essência alemã ser o meio, o
mediano e o mediador, e o homem alemão o homem médio em grande estilo?”1 Por
mais que não seja recomendável verificar se nesta situação se encontram todos os
alemães desde Lutero até os ativistas do Partido Verde, ela cabe muito bem para
entender Johann Gustav Droysen.
Mas a pergunta surge imediatamete: como poderia ser Droysen um autor
mediano? Não nos deixemos enganar pela ironia de Thomas Mann. Sim, o romancista
via no alemão e em si mesmo também o acomodado e disciplinado burguês. Por outro
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lado, vê também em uma aparente mediocridade um grande estilo. É o caso de


Droysen. Nele podemos encontrar o “grande estilo” enquanto nos deparamos com sua
obra, que revela uma impressionante consciência da própria época e de sua herança
cultural. Historiador produtivo, ele jamais fez de sua disciplina uma fé absoluta,
sabendo que, se ela haveria de conquistar sua dignidade, tal jamais poderia ser obtida
sem que ela soubesse fazer parte de uma cultura em torno da qual deveria orbitar e,
posteriormente, participar e contribuir. Aluno de Hegel, é difícil de podermos ignorar
a importância do filósofo em sua formação; protestante luterano e professor
universitário, dificilmente ele deixaria de imprimir em suas obras as marcas da
hermenêutica religiosa e de manifestar as preocupações com o próprio conceito de
formação e cultura, já muito presentes na vida intelectual alemã desde a formação da
Universidade de Berlim, em 1810. Droysen pode não possuir as dimensões
planetárias de autores como Hegel e Goethe, sendo, neste sentido e somente neste
sentido, um autor “mediano”, cumprindo porém na verdade e sobretudo um papel de
mediador, pois via como tarefa imprescindível tentar compreender o que era a história
para além de seus fundamentos ditos epistemológicos, mas, sem desconsiderá-los,

1
MANN, Thomas. Betrachtungen eines Unpolitischen. Frankfurt am Main: Fischer, 2001, p.129. Ist
nicht Deutsches Wesens die Mitte, das Mittlere und Vermittelnde und der Deutsche der mittlere
Mensch im grossen Stille?
202

entender como eles determinam o homem decisivamente e como cabe então aos
historiadores o dever de desenvolver certas perguntas que não foram originalmente
levantadas por historiadores, mas pelas quais eles poderiam também se
responsabilizar.
Se era mediano, também parece ser um privilegiado. Ao menos é este o lugar
que a história lhe reservou, desde que se pense no próprio conceito de história.
Sabemos que os historiadores não são os únicos a pensarem a história de modo
conceitual; na verdade, os filósofos se ocuparam com prazer desta missão, muitas
vezes com tal prazer que desabonaram os historiadores a fazê-lo. Estamos
convencidos todavia de que o historiador, neste caso, ocupa de fato uma posição
ambígua. Na zona cinzenta em que habita, precisa se preocupar com o objeto de seu
estudo, com os documentos e as referências materiais e históricas. Mas elas
inevitavelmente colocam questões: não somente ao biógrafo que precisa
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honestamente se perguntar se o sujeito faz a história, mas sobretudo porque, ao


contrário do biólogo preocupado com bactérias e estruturas celulares, do físico com
ondas de luz e expansão do universo, do psicanalista com nossas neuroses, o
historiador não tem objeto previamente definido. É dono de um império sem
metrópole, de um império formado somente por províncias; e, como tal, dificilmente
é bem vindo em qualquer uma delas, todas se julgando perfeitamente independentes –
por vezes, não sem razão.
Impiedosamente expulsa, a consciência histórica vê-se como o rei flagrado
sem roupas. É quando o historiador se pergunta pelo caráter de seu objeto. E o
confronto com a filosofia se faz inevitável. E Droysen não terá o “azar” de Jacob
Burckhardt, que terá em Friedrich Nietzsche um companheiro de viagem que já
realiza uma brutal crítica da filosofia; mas também, será Droysen o primeiro
historiador realmente a entrar sem cerimônias no terreno filosófico; não imaginamos
que historiador tenha se incomodado em se debater com Kant, por exemplo, afinal,
Herder era um pastor polígrafo, e Giambattista Vico, crítico de Descartes, não
conseguimos vê-lo exatamente como historiador; ou seja, como alguém que escreve
obras cuja referência objetiva é um corte dado no passado, ainda que um corte
necessariamente determinado, ou seja, jamais indiferente e substituível, e esta escolha
203

indiscutivelmente já opera uma transformação determinada no próprio conceito de


história, ou ainda se Leopold von Ranke tecia secretamente um conceito de história
mundial, sabemos que por outro lado ele em momento algum demonstrará a
pertinácia conceitual de Droysen, muito menos o interesse em possuí-la. Esta
conjunção de rigor conceitual e diligência historiográfica não a encontramos em
momento algum do século XIX – nem mesmo em Burckhardt.
Esta era a posição de Droysen em seu tempo. Uma posição confortável. E em
nossos dias, estamos precisando de Droysen? Em certa medida, sim. Assumimos que
é difícil ler as passagens francamente teológicas e luteranas, nas quais ele se refere à
história como teodicéia – todavia este é o preço a se pagar na diferença temporal, até
mesmo porque a influência do protestantismo na ciência histórica e o pensamento
histórico em geral é essencial, jamais circunstancial, de que servem de provas os já
citados Herder e Ranke.
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Todavia as passagens sobre a idéia de culpa e pertencimento que encontramos


em Droysen ainda nos parecem atualíssimas, ainda mais quando pensamos na própria
cultura a que Droysen pertence até hoje – a alemã. Suas semelhanças com Nietzsche,
que de alguma maneira antecipa epistemologicamente o terremoto que será causado
nas décadas de 60 e 70 do século XX por Michel Foucault, nos servem como alerta
curioso: sem que desejemos pensar em uma recuperação concreta do ideal da Bildung
alemã do século XIX (exigindo que as universidades sejam como a de Berlim, em
1810, e que os ficcionistas passem a escrever somente romances-de-formação, ou que
cada família burguesa passe a organizar pequenos eventos com interpretações de
Lieder de Schubert e Schumann), por outro lado é possível imaginar que sua essência,
ou ao menos parte dela, não se perdeu de todo. O ideal da Bildung, que é feito dele?
Ele está presente sob outro nome?
Sem considerar uma história teleológica de conseqüências invariavelmente
fatais – não importando aí que bandeira se veja sobre tal lança, mesmo que seja a
bandeira da democracia liberal - podemos pensar sim que a história como singular
coletivo ainda é a estrutura de pensamento histórico capaz de estabelecer critérios
comparativos. E o singular coletivo haverá de ultrapassar uma categorização,
conforme deseja Koselleck (e apresentamos no terceiro capítulo em modesta nota).
204

Não se trata de recuperar um humanismo que hoje causaria mais risos nervosos do
que esperança, ma sobretudo de se adotar um conjunto de referências que tornem
possíveis as correspondências entre pólos que se consideram conflitantes ou
diferentes, ou seja, de considerar que as diferentes esferas e expressões do homem,
em suas diferentes culturas ou mesmo e principalmente dentro de suas próprias
culturas, necessariamente entrar em rota de colisão – e estes conflitos não
necessariamente levam ao sempre apressado elogio da fragmentação da história,
manifesta através de uma completa desilusão quanto à possibilidade de sentido na
história. Por mais que os próprios defensores da atomização do objeto histórico por
vezes atribuam à tal fragmentação causas contingentes (Auschwitz, Hiroshima) ou
lógicas (o passado, mesmo antes dos campos de concentração e da bomba atômica,
sempre foi projeção de um discurso que revela a ideologia do historiador e não a
essência do que relata), devemos pensar que o discurso histórico de fato precisa se
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libertar de uma ânsia absoluta de racionalidade, como podemos encontrar em Hegel,


mas nem por isso deixamos de considerar que a possibilidade de atribuição de sentido
é real. E a história será sempre necessária quando usar, lembremos mais uma vez, a
fantasia, o conhecimento e a ação. E, sinceramente, ao pensarmos na estrutura do
pensamento histórico como algo que se movimenta como pêndulo entre a ação e a
resignação, pensamos sobretudo no que é possível e nos é dado fazer a partir do que
herdamos ou do que nós mesmos fizemos. Está em questão a simples idéia de
responsabilidade.
Mas não é tão simples. Na verdade, Droysen precisaria ainda ser
compreendido dentro de um contexto amplo, em comparação com o materialismo
dialético de Karl Marx. Como pensar esta bifurcação depois de Hegel, e, assim,
começar a traçar os percursos do pensamento sobre a história que levarão a uma
diferença cada vez mais nítida entre o materialismo dialético e a hermenêutica? Da
mesma maneira, a centralidade do conceito de Bildung nos obriga a pensá-lo em
todas as suas manifestações – por exemplo, na literatura. Pouquíssimos são os
conceitos que permitem um trânsito tão livre entre literatura e historiografia – sem
falar na filosofia de Hegel, ou no pensamento de Schiller e Goehte – e que poderia
servir de condutor até que se chegue mesmo à vivência da queda da burguesia alemã
205

em Thomas Mann e Oswald Spengler, por exemplo, ambos leitores de Goethe.


Falamos não somente das representações e referências que nos permitiria de alguma
maneira comparar uma obra historiográfica com uma outra ficcional. Imaginamos que
seria possível estabelecer um arco na cultura alemã que atravesse um percurso que sai
do par “Wilhelm Meister”/Herder e sua idéia de formação da humanidade e
desemboca na Veneza de “Gustav von Aschenbach” e no desencantamento
weberiano. Isto sem mencionar no papel que a Bildung, nos termos propostos por
Droysen como universalidade expressa na própria fricção entre fantasia, inteligência e
ação, poderia exercer em uma cultura pós-Auschwitz.
Sobretudo, ainda extremamente desafiador é se perguntar pela necessidade e
função do pensamento histórico. Estamos tomando como ponto de partida o par
ação/resignação para que justamente o pensamento histórico ganhe uma atualidade
que escape da moda ditada pelo sucesso oscilante e imprevisível das publicações. As
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desvantagens de estudar Droysen são, neste sentido, consideráveis – justamente por


ser um autor razoavelmente consciente da cultura em que vivia, a partir dele chega-se
sem dificuldades ao passado que ele pretendeu herdar e ao futuro que ele ajudou a
preparar. Ou seja, seu estudo sempre será necessariamente parcial. Droysen parece
não somente ter deixado seu trabalho “no meio” ao não desenvolver plenamente a
idéia (pós-kantiana?) de Bildung como fantasia, inteligência e ação, mas, justamente
por fazê-lo e seu estudo seu exigir conexões consideráveis em seu tempo, antes dele e
depois dele, deixa também “no meio” qualquer trabalho hermenêutico sobre sua obra.
6.
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