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Direito natural, positivismo jurídico e o lugar do direito como instituçao

Article · January 2014

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Massimo La Torre
Universita' degli Studi "Magna Græcia" di Catanzaro
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Design e Paginação: Jorge Vicente Assinaturas: Francisca da Franca Impressão: Europress. Tiragem: 5000 exemplares.
ISSN: 2182-7583. Registo ICS: 126268. Depósito Legal: 350101/12
| índice | | 07 |

| análise | 06_ «REFORMA DO ESTADO: SISTEMA


POLÍTICO, ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
E TRIBUNAIS – QUE SUGESTÕES?»

07_ ANA F. NEVES.

12_ ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA

15_ ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM

18_ DUARTE ABECASIS

21_ JORGE BACELAR GOUVEIA.

23_ PAULO OTERO

25_ PEDRO MELO

29_ SUZANA TAVARES DA SILVA


| artigos | 32_ METAETICA E PRATICA DEI VALORI
NELLA RIFLESSIONE DI ALF ROSS
ALESSANDRO SERPE

46_ A HETEROSSEXUALIDADE COMO CARACTERÍSTICA


«SINE QUA NON» DO CONCEITO DE
CASAMENTO, À LUZ DO «IUS COGENS»
IVO MIGUEL BARROSO

74_ DIREITO NATURAL, POSITIVISMO JURÍDICO E


O LUGAR DO DIREITO COMO INSTITUIÇÃO
MASSIMO LA TORRE

86_ PARA A HISTÓRIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL


POR ATO LEGISLATIVO EM PORTUGAL
– TRÊS DOCUMENTOS INÉDITOS DE 1967
PAULO OTERO

| jurisprudência | 90_ REDUÇÃO DE PENSÕES EM CURSO DE ATRIBUIÇÃO E


O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA:
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O MODO
DE SUPERAÇÃO DESTE IMPASSE, A
PROPÓSITO DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL N.º 862/2013
NAZARÉ DA COSTA CABRAL
PUB
IMAGEM
.6

| análise I |

«REFORMA DO ESTADO:
SISTEMA POLÍTICO, ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E TRIBUNAIS
– QUE SUGESTÕES?»

NÃO TEM RESOLUÇÃO

ELSA CONSEGUES OUTRA FOTO


7.

ANA F. NEVES.
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

. «State constitutions can no longer regulate the totali- – não pode prescindir de uma espécie de «benchma-
ty of governance in a comprehensive way»1 2. Não são, rking jurídico» que inclua contributos de vários níveis
pois, «Constituições totais»3. Tal não significa erosão da e fontes5.
constitucionalização do poder público ao nível estadual,
mas a relativização da sua omnicompreensividade4. O Tal ficou ilustrado por qualquer uma das questões jurí-
pensamento jurídico – dogmático, tópico e casuístico dicas colocadas pelos importantes processos recentes de

1 Anne Peters,, «Compensatory Constitutionalism: The


Function and Potential of Fundamental International
5 Ac. do TEDH de 7.6.2011, Agrati e outros c. Itália,
Norms and Structures», in Leiden Journal of International
queixas n.ºs 43549/08, 6107/09 e 5087/09, considerando
Law, Vol. 19, 2006, p. 580, disponível in SSRN:
62 («S»agissant de la décision de la Cour constitutionnel-
http://ssrn.com/abstract=1564125 (consulta última em
le, la Cour rappelle qu»elle ne saurait suffire à établir la
14.03.2014).
conformité de la loi n.º 266 de 2005 avec les dispositions de
2 «Sabino Cassese, «»Le droit tout puissant et unique de la Convention»; e Marco Cuttone, «Personale ATA, una
la société». Paradossi del diritto amministrativo», p. 10, nuova pronuncia conferma una vecchia querele: fino a
in http://www.irpa.eu/wp-content/uploads/2011/05/le- che punto è tollerabile l»intervento retroativo del legis-
-droit-tout-puissant-et-unique11-atene-budapest-stras- latore nell»ordinamento multivello?», in Rivista Italiana
burgo.pdf (consulta última em 14.03.2014): «Ma ora la di Diritto del Lavoro, Anno XXXII, 2013, n.º 3, p. 677,
costituzionalizzazione del diritto amministrativo è nuo- o qual observa que «…da sentença resulta claramente a
vamente smentita dallo sviluppo del diritto amministrati- diferente consideração que é possível encontrar no orde-
vo globale. Questo va oltre lo Stato, sopravanza il diritto namento italiano e no ordenamento supranacional sobre
costituzionale, che non riesce a raggiungere confini cosi grandes questões de civilização jurídica: a confiança legíti-
vasti»; e José Joaquim Gomes Canotilho, «Precisará a teo- ma do cidadão, autonomia do poder judicial do poder po-
ria da Constituição europeia de uma teoria do Estado», in lítico... que as leis retroativas impõem ao intérprete»); Ac.
Constituição Europeia, Colóquio Ibérico de Homenagem do TJUE de 26.02.2013, C-399/11, Stefano Melloni c.
ao Doutor Francisco Lucas Pires, Stvudia Ivridica, 8, Ministerio Fiscal, considerando 60 («…quando um ato
Coimbra 2005, p. 667. do direito da União exige medidas nacionais de execução,
as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais podem
3 Anne Peters, «Compensatory Constitutionalism..,»cit., aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos funda-
p. 580. mentais, desde que essa aplicação não comprometa o nível
de proteção previsto pela Carta, conforme interpretada pelo
4 Poiares Maduro, «O superavit democrático europeu», in Tribunal de Justiça, nem o primado, a unidade e a efetivi-
Análise Social, vol. XXXVI, 158-159, 2001, p. 122. dade do direito da União»).
.8

fiscalização da constitucionalidade pelo TC6. E pode ser Direito democrático7; (ii) a disponibilidade de um «sis-
ilustrado em relação a qualquer um dos temas de reforma tema processual facilmente acessível e adequado»8; (iii)
do Estado, como sejam: (i) a concretização do Estado de a independência do poder judicial9; (iv) a existência de
contrapesos internos e, sobretudo, externos, no governo

6 Ac. do TC n.º 296/2013, de 28.05.2013, processo n.º


354/13 (Carta Europeia da Autonomia Local, de 1985, 7 Ver, por exemplo, no âmbito do Conselho da Europa,
aprovada pela Resolução da Assembleia da República «the Checklist for evaluating the state of the rule of law in
n.º 28/90, de 23.10, e ratificada pelo Decreto do single states», nos domínios da: (i) «Legality (supremacy
Presidente da República n.º 58/90, de 23.10; Local and of the law)»; (ii) «Legal certainty»; (iii) «Prohibition of
regional democracy in Portugal, CG(22)11, 29.3.2012, arbitrariness»; (iv) «Access to Justice before independent
Monitoring Committee, Congresso dos Poderes Locais and impartial courts»; (v) «Respect for human rights»; e
e Regionais do Conselho da Europa, in https://wcd. (vi) «Non-discrimination and equality before the law» –
coe.int/ViewDoc.jsp?id=1919833&Site=COE; Ac. CDL-AD(2011)003rev., Report on the Rule of Law, adop-
do TJUE de 4.7.2000, C-424/97, Salomone Haim e ted by the Venice Commission at its 86th plenary session
Kassenzahnärztliche Vereinigung Nordrhein; Pierre- (25-26.03.2011), in http://www.venice.coe.int/webforms/
Yves Monjal, «Les collectivités territoriales et le droit documents/default.aspx?pdffile=CDL-AD(2011)003rev-
communautaire: un droit à risque?...», in Revue -e. Tenha-se ainda presente que, em 11.03.2014, a
Trimestrielle de Droit Public 45 (2), avril-juin 2009, pp. Comissão Europeia apresentou um quadro normativo
312 a 314); Ac. do TC n.º 794/2013, de 21.11.2013, pro- para salvaguardar o Estado de direito na União Europeia
cessos n.ºs 935/13 e 962/13 (Ac. do TEDH de 12.11.2008, (http://europa.eu/rapid/press-release_IP-14-237_pt.htm).
Demir e Baykara c. Turquia, queixa n.º 34503/97); Ac.
do TC n.º 396/2011, de 21.09, processo n.º 72/11, Ac. 8 Entre muitos, Ac. do TJCE de 16.11.2004, C-327/02,
do TC n.º 353/2012, de 05.07, processo n.º 40/12, e Ac. Lili Georgieva Panayotova e o. c. Minister voor
n.º 862/2013, de 19.12.2013, processo n.º 1260/13 (v.g., Vreemdelingenzaken en Integratie (consideran-
Ac. do TEDH de 02-02-2010, caso Aizpurua Ortiz e ou- do 27); e Ac. do TJUE de 27.06.2013, C- 93/12, e
tros c. Espanha, queixa n.º 42430/05, Ac. de 08.10.2013, Agrokonsulting-04-Velko Stoyanov c. Izpalnitelen di-
António Augusto da Conceição Mateus c. Portugal rektor na Darzhaven fond «Zemedelie» – Razplashtatelna
e Lino Jesus Santos Januário c. Portugal, queixas n.ºs agentsia.
62235/12 e 57725/12; Regulamento do Conselho (UE)
n.° 407/2010, de 11 de maio de 2010, que estabelece o 9 Entre vários, ver, por exemplo, Ac. do TEDH de
Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, no 09.01.2013, Oleksandr Volkov c. Ucránia, queixa n.º
quadro do qual foi celebrado o contrato de emprés- 21722/11. Ver, também, Roderick A. Macdonald e Hoi
timo ao Estado português, em execução; e, do TC Kong, «Judicial independence as a constitutional vir-
alemão, Judgment of 18 March 2014, BvR 1390/12, tue» in A. Sajo and M. Rosenfeld, eds. Oxford Handbook
Constitutional Complaints and Organstreit Proceedings of Comparative Constitutional Law, 2012, pp. 856 e 857
Against European Stability Mechanism and Fiscal («Nós temos bons juízes porque temos boas instituições
Compact Without Success, in https://www.bundesver- judiciais, ou temos boas instituições judiciais porque
fassungsgericht.de/en/press/bvg14-023en.html). temos bons juízes?»).
9.

das entidades públicas10; (v) o regime jurídico do proce- (administrativo), como estruturas determinantes de pro-
dimento administrativo e a sua articulação com a «Lei de teção e exercício dos direitos fundamentais14.
Processo Administrativo da União Europeia»11 12.
Daí que seja preferível, em relação aos procedimentos,
. Um problema central e transversal ao poder público destaca-los como «sistemas de interação entre os poderes
estadual é a forma como se relaciona com as pessoas. É públicos e os cidadãos ou entre unidades organizatórias
neste relacionamento que relevam a necessidade de legi- públicas»15. É esta vertente que sobreleva quando são
timidade pela imparcialidade e de legitimidade pela pro- percebidos como «parte integrante»16 da proteção dos
ximidade, correspondentes «a uma apreensão renovada direitos fundamentais; e quando a realização de um pro-
da generalidade democrática»13. cedimento justo se impõe, independentemente de pre-
visão, para a adoção de medidas de interferência no seu
Assumem aqui toda a relevância as formas de or- exercício17.
ganização, o processo (judicial) e procedimento
. Como instrumento de racionalidade e eficácia da ad-
ministração18, os procedimentos devem ser »suficiente-
mente simples»19, decantados nas formas e formalidades,
previsíveis, acessíveis e reconhecíveis do ponto de vista
da substância ou função que cumprem20.
10 Assim, «…para dar uma ideia da medida em que a ju-
risprudência Dubus [Ac. do TEDH de 11.06.2009, pro-
cesso n.º 5242/04, Dubus S.A. c. França] postula uma
profunda transformação da organização administrativa
das autoridades independentes basta recordar, a título de
exemplo, que o Conselho de Estado do Luxemburgo, com
base naquela, emitiu um parecer no sentido da necessária
separação em duas autoridades [uma que investiga e de-
14 Gomes Canotilho, «Tópicos de um curso de mestrado
duz acusação e outra com competência sancionatória] da
sobre direitos fundamentais, procedimento, processo e
função nacional em matéria de concorrência» (Francesco
organização», in BFDUL, LXVI, pp. 151 e segs.
Goisis, «Un»analisi critica delle tutele procedimentali
e giurisdizionali avverso la potestà sanzionatoria della 15 Gomes Canotilho, «Tópicos…», cit. p. 163.
pubblica amministrazione, alla luce dei principi dell»art.
6 della Convenzione Europea dei Diritti dell»Uomo. Il 16 Gomes Canotilho, «Tópicos…» p. 158.
caso delle sanzioni per pratiche commerciali scorrette»,
in Diritto processuale amministrativo, Rivista Trimestrale, 17 Cfr. a título de exemplo, Ac. TEDH de 02.11.2006,
Anno XXXI, Fascicolo III – settembre 2013, 3/2013, Giacomelli c. Itália, queixa n.º 59909/00, considerando
p. 704. 82 («…embora o artigo 8.º não tenha explícitas exigências
procedimentais, o procedimento de adoção de medidas de
11 2012/2024(INL), de 15.01.2013, resolução aprovada PE, interferência deve ser justo (…). É consequentemente ne-
contendo recomendações à Comissão sobre uma Lei de cessário considerar todos os aspetos procedimentais …e
Processo Administrativo da União Europeia (http://www. garantias procedimentais disponíveis»).
europarl.europa.eu/oeil/popups/ficheprocedure.do?lang
=en&reference=2012/2024(INL)#documentGateway – 18 Cfr. artigo 267.º, n.ºs 1, 2 e 5, da CRP.
consulta última em 16.03.2014).
19 Cfr. artigo 5.º, n.º 1, da Diretiva 2006/123/CE.
12 Em geral, com o DUE: v.g., artigo 41.º (direito a uma
boa administração) da Carta dos Direitos Fundamentais 20 Sabino Cassese, «Il Procedimento Amministrativo
da União Europeia; e Diretiva n.º 2006/123/CE do Europeo», in Il Procedimento Administrativo nel Diritto
Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro Europeo, a cura di Francesca Bignami e Sabino Cassese,
de 2006 relativa aos serviços no mercado interno. 2004, p. 50, nota 26: o «reconhecimento mútuo, com o
qual se realiza a substituição funcional de uma adminis-
13 Pierre Rosanvallon, La légitimité démocratique, impar- tração por outra», é um meio de focalizar as formas na sua
tialité, réflexivité, proximité, 2008, pp. 16 a 21. substância e função.
.10

Mas o sentido e os limites da simplificação administra- de informação por si pedida26 e a gratuitidade dos do-
tiva – desiderato de qualquer reforma do Estado21 – en- cumentos que incorporem informação devida; (v) a ob-
quadram-se, igualmente e sobretudo, no imperativo da servância de prazos razoáveis27 28; (vi) a obrigação das
definição, organização e condução dos procedimentos entidades públicas prestarem informações determina-
administrativos de acordo com os direitos das pessoas. das, independentemente de solicitação29; (vii) a obriga-
Trata-se de favorecer, otimizar ou facilitar o exercício dos ção de prestarem assistência ou esclarecimento30; (viii)
direitos. a justificabilidade do pagamento de quantitativos pela
participação em certos procedimentos31; (ix) a inoponi-
Nesta linha, refira-se, por exemplo: (i) a utilização e a bilidade de circulares ou instruções que não estejam à
centralização no essencial do conteúdo dos formulá- disposição do público32; (x) a certificação de serviços e
rios22; (ii) a limitação das exigências documentais às procedimentos33.
imprescindíveis, a aceitação dos documentos com «uma
finalidade equivalente ou que evidencie que o requisito . A simplificação administrativa, contra o que seria
em causa foi satisfeito»23 e a desnecessidade, em regra, de expectável, tem vindo, em Portugal, a acrescentar con-
apresentação documentos originais e de cópia autentica- dicionamentos, dificuldades e restrições fácticas ou ma-
da24; (iii) a deverosidade da regularização documental25; teriais ao exercício dos direitos.
(iv) a escolha pelo interessado da forma de fornecimento
Contra estas, importa sempre equacionar as formas
ou formalidades mediante as quais a simplificação se
apresente do ponto de vista da sua razão de ser (isto é,
21 No Guião para a reforma do Estado, afirma-se: como facilitadora daquele exercício), mantendo-as ou
«Reformar o Estado é simplificar procedimentos» (http://
www.portugal.gov.pt/media/1228115/20131030%20
26 V.g., por e-mail, por gravação em CD, … - artigo 11.º,
guiao%20reforma%20estado.pdf, p. 32).
n.º 1, Lei n.º 64/2007, de 24.08.
22 «Só podem ser exigidos formulários, formalidades ou pa-
27 A.F. Neves, «O direito a uma decisão administrativa
gamentos que sejam expressamente mencionados em lei ou
em prazo razoável», in Direito Administrativo e Direitos
regulamento, devendo cada serviço proceder à sua simplifi-
Fundamentais – Diálogos Necessários, Coordenadores Luísa
cação em termos de quantidade e de conteúdo, bem como
Cristina Pinto e Netto, Eurico Bitencourt Neto, 2012, 1.ª
generalizar o uso de suportes em papel pré-impresso» (artigo
edição, pp. 51 e segs.; Ac. do TEDH de 19.04.2007, Vilho
13.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22.4, que defi-
Eskelinen e outros c. Finlândia, queixa n.º 63235/00, ma-
ne os princípios gerais de ação a que devem obedecer os
xime, considerando 71.
serviços e organismos da Administração Pública na sua
atuação face ao cidadão, bem como reúne de uma forma 28 V.g., artigo 13.º, n.º 3, da Diretiva n.º 2006/123/CE.
sistematizada as normas vigentes no contexto da moder-
nização administrativa). «Salvo no caso dos atos judiciais e 29 Cfr. artigo 7.º da Diretiva n.º 2006/123/CE.
dos contratos a que se refere o n.º 2, não é permitida a recusa
de aceitação ou tratamento de documentos de qualquer na- 30 Cfr. artigo 7.º, n.ºs 4 e 6, da Diretiva n.º 2006/123/CE.
tureza com fundamento na inadequação dos suportes em que
estão escritos, desde que não fique prejudicada a sua legibili- 31 Décision n.º 86-209 DC du 03 juillet 1986, http://
dade» (artigo 24.º, n.º 4, do mesmo diploma). www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitution-
nel/francais/les-decisions/acces-par-type/les-decisions-
23 Cfr. artigo 5.º,n.º 3, da Diretiva n.º 2006/123/CE. -dc.115785.html.

24 Cfr. artigo 5.º, n.º 3, da Diretiva n.º 2006/123/CE. 32 Rozen Noguellon, «Le statut des circulaires», in Droit
administratif, Juin 2009, n° 6. - p.3.
25 Sentenza Consiglio di Stato 14 marzo 2013, n. 1525. A
jurisprudência italina trabalha a distinção entre regulari- 33 Thomas Dumortier afirma: «A certificação é a prova da
zação documental e integração documento, considerando preferência dos poderes públicos por uma lógica de gestão
a primeira devida em nome do «princípio do favor parte- ao invés de pela lógica dos direitos» («La certification au
cipationis» e a segunda susceptível de ofender o princípio service de l»administration: essai de typologie et enjeux
da igualdade. juridiques», in Revue de Droit Public, n.º 6-2012, p. 1637).
11.

fazendo-as ceder em função deste critério34 e do neces-


sário equilíbrio entre a acessibilidade dos meios e infor-
mações da Administração e a (in)justificabilidade da sua
exigência aos particulares35.

. Em suma, a reforma do Estado deve ser pensada, nos


diversos domínios e planos da organização do poder pú-
blico, a partir dos parâmetros do Direito europeu. No
centro da reforma e de forma transversal deve estar o
modo como o poder público estadual se relaciona com
as pessoas. Neste contexto, a simplificação administrati-
va deve ser concretizada como um imperativo de trata-
mento individualizado e sério das pretensões deduzidas
pelas pessoas no exercício dos seus direitos.

34 Considerando n.º 42 do Ac. do TJUE de 05.12.2013,


C-514/12, Zentralbetriebsrat der gemeinnützigen
Salzburger Landeskliniken Betriebs GmbH contra Land
Salzburg.

35 No voto de vencido de Mário Torres ao Ac. n.º


221/2009, de 05.05.2009, processo n.º 775/08, lê-se: «…o
controlo da titularidade do réu às prestações do serviço nacio-
nal de saúde pode ser efetuado, com facilidade e segurança,
pela Administração, através de bases de dados informatiza-
das…». E no voto de vencido de Benjamim Rodrigues:
«…sendo o emitente do cartão de utente o próprio Estado,
não se visiona que «os fundamentos materiais que justificam
o SIMPLEX», não estejam presentes na demonstração da
qualidade de utente, pois para tanto bastaria que o Estado
organizasse os seus serviços em regime de comunicabilidade
de dados; a última, é a de que, estando demonstrada a titula-
ridade de um subsistema de saúde garantidor desses encargos,
aquando do internamento, deixa a exigência do pagamen-
to com base num mero dever procedimental funcionalizado
para outros fins de poder acobertar-se no princípio do Estado
de direito democráticos e da Justiça material que o supor-
ta». No Ac. do TC n.º 49/2010, de 03.02, processo n.º
757/09, destacou: «Seja como for, a inegável fundamentali-
dade do direito dos trabalhadores à assistência material em
situação de desemprego involuntário implica – obviamente
sem questionar a liberdade de conformação do legislador na
concretização material deste direito - que a regulação do cor-
respondente procedimento administrativo fique subordinado
ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que as exi-
gências procedimentais devem ser necessárias e adequadas e
de que as consequências do seu incumprimento devem ser
razoáveis».
.12

ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA


Professor Catedrático da Escola de Direito da Universidade do Minho

A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E porque vamos falar de direitos, importa não esque-


EXISTE PARA SERVIR OS CIDADÃOS cer, desde já, os deveres. E os deveres dos cidadãos num
Estado de Direito, desde o de trabalhar (ou o de pro-
Contribuir com sugestões para a « reforma do Estado» curar trabalho) ao de pagar impostos, sem esquecer o
no âmbito do sistema político, da Administração Pública dever de respeitar os outros e o da solidariedade, são de
e dos Tribunais implica, a meu ver, começar por dizer, cumprimento obrigatório. Só cumprindo os deveres,
de uma forma muito simples, o que entendemos por poderemos obter os direitos.
Estado (essa estrutura que provoca tanto medo, ainda
que seja preenchida por pessoas como nós e assim com Vamos abrir mão, na economia deste simples e brevís-
iguais virtudes e defeitos) . simo texto, da reforma do sistema político, pois só ela
levar-nos-ia muito longe, dizendo apenas que é neces-
Em regra, quando falamos do Estado pensamos logo no sário, desde logo, reforçar a ligação entre os deputados
poder. O Estado é uma estrutura de poder. No Estado, eleitos e os cidadãos, de modo a que o Parlamento seja
estão os governantes (titulares do poder), fora dele os sentido por estes como a sua casa política, e entra-
governados (destinatários e «vítimas» do poder). mos, por nos parecer muito importante, no domínio da
Administração Pública.
Ora, consideramos que o Estado, numa democracia,
num Estado de Direito, não é uma estrutura de poder, A Administração Pública é, dentro do Estado, a estrutu-
mas de serviço. Ou, para não escandalizar tanto, uma ra por excelência do serviço público. E à Administração
estrutura que utiliza o poder para servir. temos o direito de exigir que cumpra bem a sua missão.

É para servir os cidadãos que o Estado existe e se justifica. Uma missão extremamente complexa e multifacetada
explicitada na Constituição e na lei mas que só será
A revolução que este modo de entender implica é enor- satisfeita com o trabalho de pessoas devidamente en-
me e cheia de sugestões para uma reforma. quadradas em organizações bem estruturadas.

Do Estado, comunidade política formada por uma po- Importa ter bem presente, ainda que de um modo tam-
pulação, assente num território e dotada de poder dito bém muito incompleto, que a Administração Pública,
«soberano», esperamos uma organização e funciona- ora presta serviços aos cidadãos de forma direta ou in-
mento que permitam que os cidadãos (todos os mem- direta, ora regula e fiscaliza atividades de particulares,
bros da comunidade, de um modo especial os nacionais sempre em nome do interesse público .
nela residentes, mas procurando incluir, na medida do
possível, as outras pessoas que não sendo nacionais nela Olhando para o nosso país, presta serviços públicos
residem ou procuram residência) possam disfrutar dos (saúde, educação, transportes e tantos outros), fiscali-
direitos, liberdades e garantias que costumam conter za atividades de privados nos domínios acima indica-
as constituições próprias dos Estados de Direito. Esse dos e em muitos outros que contendem de um modo
catálogo de direitos, liberdades e garantias é muito claro ou outro com direitos dos cidadãos. Também toma
e amplo na Constituição Portuguesa de 1976. a seu cargo a realização de obras públicas da maior
13.

importância (estradas, ferrovias, portos e aeroportos). de ser independentes (e o direito de ver garantida a sua
Atua em ligação com parceiros privados , com cada vez independência) para que este serviço público funcione
mais frequência e diversidade de formas, criando-se si- como deve.
tuações que obrigam a um especial cuidado para defesa
do interesse público. Pedimos ainda um largo leque de serviços que não cabe
aqui nem seria possível descrever, por muito espaço
Vale a pena percorrer alguns domínios muito importan- que ocupássemos. Eles são tantos que há correntes de
tes da atividade da Administração Pública (AP) para opinião que advogam que muitos deles deveriam deixar
depois intuirmos as sugestões de reforma. de ser prestados, extinguindo-os. A sua prestação passa-
ria a ser feita, em certos casos, por particulares se estes
Da AP esperamos - e temos o direito de exigir - que nisso estivessem interessados. De qualquer modo pode-
garanta a liberdade e segurança dos cidadãos, através remos dizer que aí onde estão direitos fundamentais dos
das forças policiais e mesmo , em casos extremos, das cidadãos em questão, a AP deve estar atenta ora para os
militares. Uma nota para dizer que as forças policiais não garantir , ora para os proteger, ora para criar condições
podem cumprir devidamente o seu papel se a sociedade para o seu exercício ou satisfação.
não estiver devidamente organizada. Num ambiente de
guerra ou de anarquia as forças policiais não têm con- Vejamos um caso difícil que é o da habitação. Todos os
dições para cumprir a sua missão normal. Em tempo de cidadãos têm direito a uma habitação condigna, diz a
paz, reforçam a liberdade e a segurança. Constituição (e mesmo que não o dissesse expressamen-
te esse direito não deixaria de existir). Ora, isso é pos-
Contamos com a Administração para garantir o direito sível se aqueles cidadãos que não têm possibilidade de
à saúde dos cidadãos, diretamente através de estrutu- adquirir ou arrendar uma habitação tiverem acesso a ela,
ras próprias (hospitais, centros de saúde, emergência ora por prestação direta do Estado (habitações sociais),
médica) ou indiretamente, fiscalizando devidamente ora por apoio do Estado ao pagamento de rendas, ora
quem presta particularmente tais serviços, tendo pre- por direito reconhecido de utilizar casas não habitadas
sente que todos os cidadãos têm direito de acesso aos dentro de certas regras criteriosamente estabelecidas.
mesmos (serviços de qualidade, note-se) . Num Estado Isto implica leis certamente mas depois serviços públi-
de Direito, a saúde tem de estar ao alcance dos cida- cos no domínio da habitação capazes de resolver este
dãos, do litoral ou do interior, pouco importando, pelo problema. O que não é de admitir é que este direito seja
menos do ponto de vista teórico, que os serviços que a ignorado num país onde o número de habitações é mui-
prestam sejam públicos ou privados. Também a pobreza to superior às necessidades da população.
não pode ser de nenhum modo obstáculo ao acesso aos
cuidados de saúde. É preciso abrir aqui uma chamada de atenção para dizer
que há serviços de enorme utilidade pública que não
Esperamos, por sua vez, que garanta o direito à educa- estão nas mãos da Administração e não vem mal aos ci-
ção, também diretamente através de estabelecimentos dadãos por isso. O que os cidadãos individualmente ou
próprios ou indiretamente, fiscalizando devidamente devidamente organizados em empresas, cooperativas ou
os estabelecimentos privados que operam nesta área. A outras formas podem fazer, devem-no fazer até por uma
fiscalização visa garantir a qualidade de tais estabeleci- razão desde logo bem pragmática: uma administração
mentos, não interferindo no conteúdo do que é minis- pública demasiado grande é muito mais difícil de gerir e
trado, desde que respeitadas as regras constitucionais corre o risco de se desviar da sua finalidade.
fundamentais.
O abastecimento público de alimentos é uma tarefa que
Exigimos também que garanta o direito à justiça e assim está nas mãos de privados (pão, carne, peixe, legumes e
também o direito de acesso aos tribunais e a uma sen- frutas) e não se pensa em modificar este estado de coisas.
tença em prazo razoável ( este é um domínio que nos Mas a Administração Pública deve estar presente junto
levaria longe e foge da Administração Pública mas que destas atividades desde a produção até ao consumo para
bem poderemos dizer que constitui um serviço públi- garantir aos cidadãos, por exemplo, a qualidade sani-
co prestado por funcionários que têm um estatuto espe- tária dos alimentos. Como é óbvio, isto implica uma
cial: o da independência). Os magistrados têm o dever estrutura da AP muito menos pesada do que seria a que
.14

funcionário (no topo ou na base) tem que assumir esse


mesmo interesse. Um parêntesis para dizer que não é
facto de a lei suprimir a designação de funcionários que
nos impede de chamar funcionário a quem trabalha na
Administração Pública.

Pertencer à AP não é o mesmo que pertencer a uma em-


presa privada, ainda que a atividade seja, porventura,
idêntica. Para desempenhar funções na AP são necessá-
rias pessoas que queiram assumir esta missão de servir o
público. É errado pensar que é o mesmo trabalhar numa
empresa privada ou numa organização administrativa.

Ao entrar na AP como alto dirigente ou como quadro


subalterno o cidadão deve ter consciência do que isso
significa. Por exemplo, deve deixar de lado qualquer
ideia de procura de enriquecimento que seria legitima
numa entidade privada de fins lucrativos.

Por outro lado o acesso ao emprego público deve basear-


-se no mérito. O critério de entrada numa instituição
pública deve ser o do mérito pela simples razão de que
num Estado de Direito todos os cidadãos têm igual di-
reito a aceder à função pública, sendo o mérito o crité-
rio que deve fazer a seleção. Este tem ainda a seu favor a
garantia de um melhor serviço público. E bem se pode
tivesse a seu cargo a produção de tais bens mas de qual- dizer, por isso, que o Estado de direito democrático exi-
quer modo requer uma organização de acompanhamen- ge o mérito.
to a funcionar muito bem.
Dito isto estão implícitas muitas sugestões para uma
A AP não deve estar, pois, ausente das atividades dos reforma da nossa Administração Pública. Muito haveria
particulares que contendam com interesses públicos a dizer mas deixamos apenas uma.
e muito menos quando contendam com direito dos
cidadãos. Todas as instituições públicas, desde uma simples fre-
guesia aos institutos públicos e aos departamentos do
O que escrevemos até agora já deu para perceber a im- Estado deveriam ter um sítio na internet com infor-
portância da AP mas também a particularidade dela. mação ( informação, não mera publicidade) detalhada e
Existe para o bem público. Há aqui uma regra que deve atualizada sobre a respetiva organização e atividade. Os
ser sempre observada: a Administração Pública quando textos colocados em cada uma delas deveriam ser com-
entra em cena tem por finalidade o interesse público. O pletos, claros e acessíveis. Deveriam incluir a possibi-
lucro é próprio da atividade privada (e nem de toda, pois lidade de fácil contacto para obter esclarecimentos ou
bem conhecemos entidades privadas sem fim lucrativo resolver dúvidas. O não cumprimento deste dever seria
e, pelo contrário, até altruístico) não da atividade admi- acompanhado de sanções sobre os responsáveis das ins-
nistrativa. E nesta quando o lucro surge não é como um tituições incumpridoras.
fim, é como um resultado de boa gestão para ser intei-
ramente encaminhado para fins de interesse público. Este passo representaria um grande avanço para conhe-
cer e apreciar a atuação da Administração. Obter-se-ia a
O que estamos a dizer está profundamente ligado a uma informação necessária para depois fazer o debate público
reforma da Administração Pública. Tal como esta tem e tomar deliberações devidamente fundamentadas com
em vista o interesse público quem para ela entra, como vista à execução de uma reforma bem reflectida .
15.

ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM.


Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

PENSAR A REFORMA DO ESTADO a compreensão da actividade política. De outro lado, a


Antiguidade Clássica era objecto de análise de políticos
Um dos mais importantes historiadores italianos do e filósofos, nomeadamente procurando-se determinar as
direito, Pietro Costa, intitulou uma das suas obras de causas do declínio e queda do Império Romano, metá-
referência do seguinte modo: O Estado Imaginário: me- fora intemporal dos motivos da decadência dos Estados.
táfora e paradigma da cultura jurídica. Finalmente, os relatórios (relações) e memoriais de di-
plomatas e espiões sobre outros Estados completavam
O debate actual acerca da reforma do Estado pode partir o conhecimento empírico considerado necessário para
desta matriz teórica. Efectivamente, a reforma do Estado governar o Estado.
tornou-se uma metáfora da retórica política e jurídica,
uma discussão sobre Estados imaginários, povoados por Experiência, história e comparação são, assim, os alicer-
ministérios e outros organismos manipuláveis como se ces da reflexão sobre o Estado. A observação de Hobbes
o Estado e a coisa pública fossem um jogo de Lego, em acerca da distinção entre o que está (o Estado) e o movi-
que as organizações e as pessoas se pudessem empilhar mento aparecia aos olhos dos escritores do absolutismo
de acordo com uma estética ao gosto do jogador, de- como uma lição no sentido de conservar as instituições
senquadrado da história geral e da história particular de públicas e de só as alterar, eventualmente copiando so-
cada instituição. O debate sobre a reformar do Estado já luções do passado ou da política comparada, quando as
não é uma categoria científica, seja a ciência política, a vantagens aparecessem como indiscutíveis.
ciência jurídica ou a ciência da administração.
O livro que conclui esta metodologia da política é hoje,
Nas breves linhas que generosamente o meu colega e justamente, um clássico da literatura e da filosofia: O
amigo Professor Paulo Otero me concede, gostaria de Espírito das Leis, de Montesquieu. Os seus continua-
trazer, também à luz de investigações feitas como histo- dores do Iluminismo vão privilegiar uma nova me-
riador das ideias e das instituições jurídicas e políticas, todologia, com um novo vocabulário. Nasce a ciência
um tema particular, o modo e o lugar de onde pensamos do Estado, ou ciência do Governo, ou Polícia ou ain-
a reforma do Estado. da Economia Política, assente na pretensão de estudar
cientificamente o Estado, nomeadamente através da
I cartografia e da estatística.

Começo pela advertência de que pensar o Estado é uma A criação de academias científicas é um dos passos des-
actividade quase tão antiga como o próprio Estado. Só ta estratégia europeia de racionalizar o funcionamen-
quem desconhece a historicidade do Estado e do seu to do Estado e das suas instituições, designadamente
próprio país o pode ignorar. com a criação de instituições como as academias das
Ciências, da História, da Engenharia, Militares, entre
Desde o Renascimento, com o surgimento de uma li- outras. Sobretudo nos países de cultura alemã ficará a
teratura intencionalmente política, pensar o Estado era ideia de que a função da universidade é a de formar a
matéria para três temáticas e metodologias diferentes. elite do próprio Estado. Mesmo no caso português, o
De um lado, a experiência dos homens de Estado, por contributo da Academia das Ciências para pensar as
exemplo dos secretários dos reis e de Estado, cujos li- soluções de governo foi fundamental para explicar o
vros de memórias e pareceres eram fundamentais para modo como foi fundado um novo Estado, o Brasil, e
.16

caminhos de ferro, etc.), essa especialização vai-se igual-


mente aprofundando.

A transição do Estado liberal para o Estado social não


trouxe apenas uma técnica racional de exercício do po-
der. Criou em muitos dos teóricos das novas disciplinas
científicas – como a sociologia do Estado – a convicção
da superioridade destas tarefas técnicas sobre a política,
do direito administrativo sobre o direito constitucional,
com a tónica na inevitabilidade da centralização para
tornar possível a administração racional das instituições
públicas.

Assim, se pensar o Estado no Renascimento implica ape-


lar à experiência, à investigação histórica e à compara-
ção e se, para o iluminismo, constitui uma actividade
científica, para os Estados sociais do século XX, exige
aliar burocracia e planeamento, a partir de um centro,
o Governo.

A racionalização da actividade do governo deveria ser


feita, à imagem das empresas privadas, por centros que
aliassem memória, inteligência e capacidade de acção.
o país superou a devastação provocada pelas invasões
francesas e a ocupação inglesa. Fica como uma das marcas deste processo a criação de
gabinetes de estudo e de planeamento, ao nível dos mi-
Ao longo do século XIX assistiremos, a partir destas ba- nistérios e de entidades autónomas. O conhecimento
ses, ao nascimento de ciências do Estado de matriz li- adquirido pela utilização de instrumentos específicos de
beral. A reflexão sobre o Estado sofre então uma crucial observação, como as estatísticas, era considerado essen-
transformação metodológica e ideológica. O primado cial para a definição de políticas públicas, para utilizar
da sociedade e dos indivíduos sobre o Estado implicou conceito dos nossos dias. Mas o conhecimento necessá-
ver o Estado como garante do que então se designam rio a agir sobre o Estado adquiria-se no próprio Estado.
como direitos naturais. Ao contrário do que se encon- Até a actividade legislativa deveria estar de acordo com
tra escrito em sínteses habituais, o Estado liberal cresce as exigências de planeamento técnico.
nas suas funções e no número de funcionários face ao
Estado absoluto. Às funções clássicas do Estado (defesa, II
justiça, fisco) acrescentam-se novas atribuições, conside-
radas necessárias à realização desses direitos. E tornou-se A democracia constitucional, se herdou o edifício do
vital programar o exercício dessas funções. No domínio Estado Novo a benefício de inventário, veio a – para uti-
escolar, por exemplo, na medida em que a instrução ou lizar uma expressão dos nossos dias – desconstruí- : sem
ensino foi considerada tarefa do Estado para a constru- coerência e sem continuidade, as políticas de reforma
ção da cidadania, foi necessário construir escolas, adop- do Estado deixaram de apelar às dimensões clássicas que
tar manuais escolares e contratar professores e, para esse tornaram possível que um pequeno país tivesse, até 1975,
efeito, definir a arquitectura das escolas, o modelo das um vasto império administrativo.
salas de aula, comprar carteiras para os alunos, entre
tantas tarefas que exigem planeamento, uma burocracia Começo, neste ponto, por uma observação paradoxal:
altamente especializada e recursos financeiros. Como o o Estado não existe. Como historiador das instituições,
planeamento depende de uma burocracia especializada, poderei acrescentar que nunca existiu, que, seguindo o
à medida que as funções do Estado se vão expandindo vocabulário histórico de Pietro Costa, é uma constru-
(saúde, ordenamento do território, estradas e pontes, ção imaginária. Sempre existiram, na realidade, vários
17.

Estados, cada qual com a sua organização e direito Produziu-se uma das maiores transferências de rendi-
próprios. mentos dos cidadãos para alguns privados de que exis-
te conhecimento na história do país – uma dívida a ser
Se, para exemplificar, o Governo é o núcleo essencial paga por várias das gerações futuras. Previam-se igual-
do Estado, na realidade cada ministério é um estado. mente dezenas de leis, cujas motivações são comunica-
Uma recente recomendação da OCDE sobre a reforma das frequentemente de forma enigmática e meramente
do Estado, partindo desta verificação, aconselha a cen- programática – designadamente as de reformar a admi-
tralização da actividade do governo na presidência do nistração pública, a administração escolar, etc. etc.
Conselho de Ministros. Por sua vez, os ministérios são
frequentemente federações de direcções-gerais e outros Uma das melhores ilustrações destes critérios de condu-
organismos e em muitos deles falta conhecimento espe- ção do Estado foi a extinção da Junta Autónoma das
cializado e unidade na acção. Estradas. Anos volvidos, o país fica insolvente debaixo
do preço a pagar por auto-estradas desnecessárias e cujo
Alguns exemplos desta reforma dos Estados, por mi- custo efectivo será suportado por várias gerações. Muitos
nistérios, são conhecidos: a reforma do ensino público, outros exemplos podiam ser referidos.
assente nos problemas da organização das escolas, da se-
lecção dos seus dirigentes, e da condição docente, não é A falência que torna inevitável a reforma do Estado foi,
paralela à reforma do sistema de saúde, nomeadamente assim, também o resultado destas tendências destruti-
da organização dos centros de saúde e dos hospitais. O vas da administração pública, que extinguiram os cen-
mesmo se diga de outros sistemas, nomeadamente do tros estratégicos da inteligência e planeamento. É vital
sistema judicial. Reformas dos Estados, portanto. reconstruí-los.

A nível territorial local, a mesma observação pode ser Atente-se: ao primado da experiência, apontou-se o da
repetida. No momento da falência do Estado não se política; a desvalorização da memória histórica, do co-
sabia exactamente qual o número de funcionários, in- nhecimento científico e do planeamento burocrático
dependentemente do regime da sua contratação. Nem foi substituído pela constante extinção e reorganização
o quantitativo exacto das obrigações financeiras do das instituições e pela tendência para a privatização dos
Estado, nomeadamente das garantias dadas a emprés- estudos.
timos contraídos por empresas públicas, de capitais pú-
blicos e outras. Só junto dos tribunais administrativos e A falência do Estado não foi, como em diversas épocas
fiscais, o montante do contencioso da responsabilidade do passado, motivo para que o Estado apelasse à cons-
civil do Estado de cuja defesa ou autoria se encarrega o trução de um conhecimento científico da coisa pública,
Ministério Público é superior a quinhentos mil milhões congregando universidades e academias, construindo
de euros. Mas a este montante eventualmente devido instituições com memória, conhecimento e capacidade
haverá que acrescentar outros, nomeadamente em litígio para a acção.
perante tribunais arbitrais em Portugal e no estrangeiro.
Não é fácil saber o montante da dívida a pagar pelos por- Existiram gerações que, no passado, em Portugal e em
tugueses, uma das muitas matérias cujo conhecimento é Espanha, se viram confrontadas com problemas se-
indispensável para programar as políticas públicas. melhantes. A necessidade de construção científica do
Estado, através do pensamento e da reflexão de acade-
A leitura dos instrumentos de planeamento do Estado mias e universidades, tem de ser sublinhada.
não deixará de surpreender o leitor benévolo, como anti-
gamente se diria. A leitura, agora distanciada pelo efeito Finalmente, pensar o Estado significa assumir, de novo,
do Memorando de Entendimento com os nossos cre- também o primado da sociedade e a subsidiariedade do
dores, das Grandes Opções do Plano dos últimos anos Estado. É paradoxal que não seja este o ponto de parti-
ou décadas deixa a estranha impressão dos livros de fic- da para a construção de um plano estratégico de longo
ção científica de má qualidade. Nas vésperas da decla- prazo para o país. Os vícios do paternalismo de Estado
ração de insolvência, o país preparava-se para construir continuam presentes quando se pensa a sociedade a par-
um futuro radioso de aeroportos, TGV, portos, escolas tir do Estado. Não se trata apenas de reformar o Estado:
– bens que a maioria dos Estados muito ricos não tem. urge reforçar a sociedade.
.18

DUARTE ABECASIS
Sócio da sociedade de advogados Cuatrecasas, Gonçalves Pereira

I. INTRODUÇÃO importâncias mutuadas, fizeram uma análise da situa-


ção «gestional» da Administração Pública Portuguesa,
Gostaria de iniciar este apontamento com um agradeci- incluindo a administração indirecta e o sector empresa-
mento à Direcção da Revista Direito & Política na pes- rial do Estado, para depois proporem/negociarem com o
soa do seu Director, Professor Paulo Otero, pelo convite Governo Português a tomada de determinadas medidas
que nos foi dirigido para colaborar neste número, que, que visam precisamente alcançar as duas metas referidas
como tivemos oportunidade de expressar, encarámos no final do parágrafo anterior.
como um desafio de reflexão.
Aquela análise e propostas não partem de um conheci-
De seguida queremos precisar que as linhas que se se- mento profundo da realidade da Administração Pública
guem não têm outra ambição que não seja a de expres- Portuguesa nas suas díspares especificidades e, conse-
sar uma opinião pessoal sobre a questão tão aberta que quentemente, de um diagnóstico esclarecido sobre o que
foi colocada: «Reforma do Estado: sistema político, fazer em cada caso, com vista à aplicação das medidas
Administração Pública e Tribunais – que sugestões». mais adequadas a tornar o Estado mais eficiente e efi-
caz no exercício das suas funções, nem de uma política
de efectiva «Reforma do Estado», mas assentam, prin-
II. REFORMA DO ESTADO OU MELHORIA/ cipalmente, numa comparação de indicadores numéri-
RACIONALIZAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO cos com os de outros países da zona euro ou da UE,
ADMINISTRATIVA? para, a partir dos mesmos, deduzir ineficiências, sobre-
dimensionamentos e sobrecustos, que, formalmente,
A primeira questão que de facto se nos coloca é a de justificam «cortes» imediatos na despesa pública, inde-
saber se, de facto, o que neste momento é pretendi- pendentemente de tais «cortes» se ajustarem, ou não, a
do é uma «Reforma do Estado» - que, do nosso ponto uma nova definição das funções do Estado ou da sua
de vista, implicaria uma alteração substancial das fun- abrangência, ou a uma efectiva necessidade de reorga-
ções principais do Estado e do seu nível de interven- nização dos serviços administrativos da Administração
ção -, ou é apenas uma mera reforma da organização central ou das pessoas colectivas públicas.
da Administração Pública, em que se visa superar inefi-
ciências, requalificar e redistribuir recursos e racionalizar Nessa análise o FMI, o BCE e a Comissão Europeia vie-
custos, ou é a simples obtenção, seja por que meio for, ram a exigir ao Governo a adopção de medidas de redu-
de determinadas metas na redução da despesa pública e ção quantificada da despesa pública, precisamente nas
na redução do deficit orçamental. áreas mais sensíveis das funções do Estado, como são as
da solidariedade social, da educação, da saúde e da se-
A génese da «Reforma do Estado» de que agora todos fa- gurança, apenas porque são aquelas que maior impacto
lam, a começar pelo Governo, não é outra que a situação têm no elevado nível da despesa pública primária.
de emergência financeira em que Portugal se encontra
há cerca de 3 anos e que o obrigou a recorrer à ajuda Isto dito, uma primeira conclusão se impõe, a de que o
externa e a submeter-se às exigências dos seus credo- reforço da disciplina das contas públicas a que estamos
res. Estes numa perspectiva marcadamente económica a assistir, que é basilar e essencial ao bom funcionamen-
e interessada de defesa e de garantia de reembolso das to de um Estado de Direito Democrático, mais do que
19.

corresponder a uma opção política consciente e querida Julgamos, por isso, que um dos grandes desafios de
de uma efectiva «Reforma do Estado», resulta de uma uma futura «Reforma do Estado» é o da identidade de
imposição dos nossos credores externos. Aliás, porque Portugal, não só no plano interno, mas também no pla-
assim é, a metodologia preferencial que está a ser seguida no internacional e principalmente nas duas geografias
é a dos «cortes» cegos e transversais, que não tem outra naturais, a Europa e a comunidade dos países de língua
justificação que não seja «o de ter de ser» para alcançar Portuguesa. Aquele debate só pode fazer-se com eficá-
metas previamente quantificadas de diminuição de gas- cia num ambiente conciliado entre a sociedade civil e
to de dinheiros públicos, que, se não alcançadas, não as lideranças políticas, o que impõe uma inovação nos
permitiriam a Portugal aceder aos recursos financeiros agentes e nos métodos da sua escolha, mesmo dentro
que necessita. dos próprios partidos.

Sem prejuízo do que adiante diremos, concordamos A «Reforma do Estado» tem de assentar num projecto
com o Professor Freitas do Amaral, quando, em artigo que tenha objectivos claros e perceptíveis para todos os
publicado nesta mesma revista1 disse que a expressão cidadãos e que seja democraticamente assumido, para
«Reforma do Estado» é inadequada para traduzir o que a partir daí e só então se desenvolverem as políticas e
se está a passar em Portugal, pois só faria sentido falar-se as acções executivas e administrativas mais adequadas.
em «Reforma» se «no quadro de uma revisão constitu- Não nos parece pois apropriado discutir uma «Reforma
cional» se estivesse a proceder a uma reforma dos po- do Estado» a partir de um «sentido estrito» ou de um
deres legislativo, executivo e judicial, no seguimento de «sentido lato», que a mesma comportaria, como parece
uma vontade manifestada democraticamente, no senti- ser proposto no documento apresentado pelo Governo
do de querida ou, pelo menos, objecto de um consenso em Outubro de 20132. Com efeito, no primeiro sentido
alargado na sociedade civil portuguesa. mais não se pretenderia que fazer uma reforma, por me-
ros (embora importantes) motivos de eficiência gestio-
Num estado de direito democrático uma «Reforma do nal ou de racionalização de custos, o que não pode nem
Estado» faz-se com as pessoas, propiciando um amplo deve ser uma panaceia para uma efectiva «Reforma do
debate reflexivo sobre o Estado que temos, o Estado que Estado», que assim, mais uma vez, ficaria adiada.
não queremos ter, a partir do conhecimento do que te-
mos, e o Estado que queremos vir a ter. O que é para nós Ou seja, importa não banalizar ou caricaturar a
claro é que uma «Reforma do Estado» não se faz contra «Reforma do Estado», reduzindo-a a uma resposta reac-
ou apesar das pessoas, no exercício de um poder que, tiva a uma situação de emergência financeira, que aca-
ilusoriamente, se considera auto iluminado e que, muitas bará por adormecer a todos e substituir o que deveria
vezes, nos Estados de cultura ocidental tem as suas raízes ser um projecto nacional por medidas de mera gestão
numa tecnocracia insolente, que parece uma expressão económico-financeira, que a boa administração da causa
moderna e formalmente soft das que se queriam mortas, e da coisa públicas sempre exigiriam daqueles que têm
«vanguardas esclarecidas». essa responsabilidade, quer por efeito do voto, quer pelo
exercício de cargos de chefia na Administração. Ora, são
O debate, hoje, sobre uma verdadeira «Reforma do os agentes políticos, na sua globalidade, que têm a obri-
Estado» obriga a uma reflexão que tenha a capacidade gação de não permitir que isso aconteça, porque há de
de olhar ad extra, isto é que não se confine apenas ao facto uma necessidade urgente de preparar uma verda-
que se passa no nosso país, mas que tenha em conta a deira «Reforma do Estado» para o século XXI.
rapidíssima mutação a que as sociedades europeias es-
tão expostas, designadamente, pela pressão irreversível A «Reforma do Estado» é uma tarefa eminentemente
de um mundo global, pela emergência de novos países política que exige das lideranças a capacidade de analisar
investidores à escala planetária, pelos fluxos migratórios, prospectivamente e de propor ao debate público as solu-
tanto para dentro como para fora dos países europeus, e ções que melhor defendam os interesses nacionais e que
pelos novos poderes sem base territorial.

2 Cfr. Proposta do Governo, aprovada em reunião do


1 Sobre a «Reforma do Estado», pag. 6 da revista Direito Conselho de Ministros de 30 de Outubro de 2013, «Um
& Política n.º 5 Estado Melhor»
.20

emergência induziu um estado de necessidade em que


os cortes parecem não ter outro objectivo que não seja o
de cortar, e não o de emprestar uma maior racionalidade
ou eficiência na prestação do serviço público, que, por
isso, pode mesmo ficar nalguns casos posto em causa,
como temos assistido em áreas tão sensíveis como as da
segurança e saúde.

A comprovar isso está o facto de estarmos perante me-


didas que resultam, na sua grande maioria, de sugestões
dos nossos credores devidamente formalizadas em car-
tilha e não, como deveria acontecer, de uma eventual
redefinição das funções do Estado, ou da amplitude da
sua intervenção, ou de uma racionalização dos recursos
materiais e humanos da nossa Administração3.

Não temos dúvidas que independentemente de haver,


ou não, uma «Reforma do Estado» há um dever inadiá-
vel de reforma e modernização administrativa e da orga-
nização da Administração Pública (directa e indirecta),
melhor assegurem a coesão e solidariedade dos cidadãos, bem como da racionalização da afectação dos recursos
com especial atenção aos mais vulneráveis, relativamente disponíveis nas áreas da educação, da saúde e da justiça.
aos quais se devem privilegiar políticas de inclusão acti-
va em relação às de mera assistência, que muitas vezes
têm o efeito perverso da guetização social e humana. Não III. CONCLUSÃO
fazê-lo, é não só voltar as costas à política, mas também
contribuir para a perda da identidade Portuguesa. É importante aproveitar a situação de emergência em
que Portugal se encontra para iniciar uma discussão po-
Com o acima dito não se está a dizer que não haja que lítica de uma efectiva «Reforma do Estado», no âmbito
adoptar, no imediato, as medidas correctivas de disfun- de uma revisão constitucional, que vise situar e afirmar o
ções na organização administrativa (seja a da administra- Estado Português nos novos paradigmas organizacionais
ção directa ou da administração indirecta do Estado), ou do século XXI e revisitar as funções que devem ser efecti-
que permitam ajustar o alcance das funções do Estado, vamente assumidas pelo Estado na procura das melhores
tal com hoje definidas, aos meios disponíveis, mas está soluções para a coesão e solidariedade nacionais. Não
a dizer-se que não se confunda esse dever de boa admi- basta uma reforma administrativa.
nistração e de selecção de prioridades, com «Reforma
do Estado». O debate não está de facto em querer «mais ou menos
Estado», mas apenas e tão só em querer «melhor Estado»,
A situação de emergência financeira, em vez de ser um pois o Estado só faz sentido se estiver ao serviço das pes-
factor redutor de uma «Reforma do Estado» tem de ser soas e das comunidades e não estas ao serviço daquele.
antes uma oportunidade, não perdida, de a iniciar e, Como ouvimos já há alguns anos «o Estado não está, não
para tanto, importa ter claro que os «cortes» que têm consta do livro do Génesis».
sido propostos ou postos em prática pelo Governo, para
já, não são mais do que isso, «cortes» determinados por
um estado de necessidade causado por falta de meios e
por imposições dos nossos credores externos.
3 Veja-se a título de exemplo o relatório elaborado pelo
Por outro lado, também não é seguro que se esteja pe- «Departamento de assuntos Orçamentais» do FMI,
rante uma efectiva melhoria ou reorganização da admi- «Rethinking the State – Selected Expenditure Reform
nistração pública Portuguesa, uma vez que a situação de Options – January 2013» in www.portugal.gov.pt
21.

JORGE BACELAR GOUVEIA.


Professor Catedrático da NOVA Direito.
e da Universidade Autónoma de Lisboa.

1. O tema da Reforma do Estado corre o risco de ficar atrás, com uma nova geopolítica e novos fenóme-
«reformado» por ser tantas vezes mencionado, dito, uti- nos de criminalidade violenta e transnacional.
lizado, sem que ao mesmo tempo os cidadãos vejam re-
sultados consistentes daquilo que ambicionam. 3. Mas gostaria de referir especialmente a reforma elei-
toral, a qual tem sido incompreensivelmente adiada, se
A metalinguagem da Política, infelizmente, ainda não bem que tanta vezes prometida.
conseguiu aderir à realidade subjacente de trazer mu-
danças duradouras e estruturais, que tenham o condão E até já houve importantes alterações ao texto constitu-
de compreender os anseios e os interesses dos cidadãos cional que se destinaram a procedimentalmente acomo-
que supostamente representam. dar essas alterações, a serem feitas a todo o tempo por
legislação ordinária, se bem que por maioria agravada
Nem mesmo agora em tempos de profunda crise eco- de dois terços.
nómico-financeira do Estado se tem conseguido almejar
esses resultados, subsistindo interesses ocultos que atra- O diagnóstico em matéria de reforma eleitoral é grave:
palham a limpidez e a racionalidade das mudanças que há um sentimento geral de deslegitimação da política,
é mister levar a cabo. com uma proverbial incapacidade de as políticas públi-
cas e os seus atores, bem como as escolhas partidárias,
2. A Reforma do Estado é tanta coisa que importa desde representarem os interesses dos cidadãos, os donos da
logo circunscrever o seu âmbito, também aqui havendo democracia.
uma discrepância entre o discurso político e as dimen-
sões do Estado que carecem dessas mesmas reformas. Naturalmente que a Democracia portuguesa enfrenta
um problema de envelhecimento: depois dos anos dou-
Há temas inevitáveis: rados da descoberta da Política após a Revolução dos
t a reforma constitucional, atualizando uma Cravos e depois da aprovação da Constituição de 1976,
Constituição que tem cumprido as suas missões, regista-se uma fadiga que é própria de uma mudança
mas que tem de adaptar-se a novas realidades geracional e do aparecimento de interlocutores que não
que vão emergindo, sobretudo num contexto de tiveram essa experiência, nem o contraste da vivência no
globalização; precedente regime autoritário.
t a reforma política, no plano da representa-
ção e do papel dos partidos políticos no sistema Porém, essa não é a única explicação: a Democracia
constitucional; portuguesa, ao longos destes anos de amadurecimen-
t a reforma da Administração Pública, nas sobrepo- to, deixou-se aprisionar por procedimentos, soluções e
sições de funções e de serviços e na redefinição da mentalidades perversas, ditadas em grande medida pelas
intervenção do Estado na economia e na sociedade; burocracias partidárias, que a têm asfixiado e que não
t a reforma da Justiça, respondendo ao desafio que têm permitido a sua renovação.
tarda em ser solucionado do atraso da justiça e da
relação da justiça estadual com as justiças alternati- É o que muitas vezes acontece com aqueles que vêm na
vas que se vão multiplicando; carreira política, não uma missão de interesse público,
t a reforma da Segurança, num ambiente internacio- por definição temporária e como interlúdio de uma vida
nal e interno completamente diverso do de décadas profissional consistente, mas um emprego para a vida
.22

toda, com o resultado da absoluta acefalia na autonomia enquadrado a legislação relativa ao cumprimento pleno
para a afirmação de valores e de princípios que dão à do princípio democrático, supostamente o coração da
Política a sua dimensão nobre e virtuosa. atividade do Estado e um dos temas centrais do Estado
de Direito Democrático.
4. No plano substancial, a reforma eleitoral tem de pas-
sar pela centralidade do voto dos cidadãos, que está em Em matéria de referendo, nunca até hoje o Parlamento
acentuada desvalorização social, crescendo nos últimos aprovou a lei do referendo regional, há muito tempo
tempos a abstenção como «voto de protesto» pela inca- prevista na Constituição, mas que não pode operaciona-
pacidade de os políticos representarem os cidadãos. lizar-se por falta de regulamentação legal.

É por isso que um dos eixos centrais da reforma eleito- E nem sequer os órgãos de controlo da constituciona-
ral tem de passar por mudanças profundas que cumpre lidade estão muito preocupados com isso, pois até ao
fazer na relevância do sufrágio e são várias as opções que momento esta óbvia inconstitucionalidade por omissão
estão em cima da mesa. não foi objeto de qualquer decisão por parte do Tribunal
Constitucional.
Uma delas é a do voto preferencial, que consiste na pos-
sibilidade de o eleitor não apenas escolher o partido Quanto à legislação, a sua proliferação tem vindo a tor-
como igualmente escolher o candidato, alterando a po- nar o Direito Eleitoral Português uma verdadeira «man-
sição em que o mesmo se encontra na lista apresentada. ta de retalhos», com problemas de diversa índole: desde
legislação de diversas gerações, a começar por legislação
Outra possibilidade é a da revogação do mandato elei- dos anos setenta que ainda está em vigor, até legislação
toral, situação em que os cidadãos se pronunciam, antes eleitoral remissiva para outra legislação, como é o caso
da eleição seguinte, sobre o mau desempenho dos seus da lei eleitoral para o Parlamento Europeu, passando por
representantes, retirando-lhes a confiança e cessando an- legislação equívoca ou desatualizada, como a que se re-
tecipadamente os cargos eletivos. fere à limitação dos mandatos ou à intervenção da co-
municação social.
Não sendo ideias novas, nem sequer em Portugal, é la-
mentável como no contexto da crise económico-finan- Quer isto tudo dizer que tem de haver a coragem para
ceira que estamos vivendo, a agenda política e mediática enfrentar a realização de um código eleitoral, que de um
se desinteresse por estes temas. modo sistemático e científico repense muitas destas leis
e que - se não puder fazer alguma reforma de fundo - ao
5. Num plano formal, algo que sempre me impressio- menos ponha ordem nesse indigesto caos legislativo que
nou foi a displicência com que o poder legislativo tem só desprestigia a democracia eleitoral.
23.

PAULO OTERO.
Professor Catedrático da Universidade de Lisboa.

OS CATÓLICOS E A REFORMA DO ESTADO b. A privatização e a desregulação financeira, per-


mitindo a criação de novos Estados dentro do
1. O neoliberalismo vigente nas últimas décadas, fazen- Estado, convertem-se em fonte de iniquidades
do prevalecer o ter sobre o ser, as coisas sobre as pessoas perversas de exercício da liberdade decisória pelos
e a vontade sobre os valores, num fascínio da direita pela consumidores;
liberdade económico-financeira e a conversão da esquer- c. Em vez de «menos Estado e melhor Estado», acaba-
da à liberdade de costumes, tornou-se a ameaça mais sé- -se por ter um pior Estado, em termos sociais e ga-
ria à família, à sociedade e ao Estado e, em resultado de rantísticos, tornando-se o ultraliberalismo o maior
tudo, à própria pessoa humana. inimigo da dignidade humana.

2. O neoliberalismo desagregou a família: 4. A globalização económica e financeira, destruindo a


a. Em termos morais e axiológicos, uma liberdade soberania do Estado, nada mais produz do que a difusão
sem limites permite tudo, num exacerbar da auto- de um modelo de sociedade sem valores, alicerçada na
nomia da vontade até ao que seja imaginariamen- força do dinheiro, no paradigma do sucesso material e
te possível na tentativa de destruição da família, numa dualidade de discursos:
assente no casamento entre um homem e uma a. As grandes proclamações de direitos fundamen-
mulher, como base natural da sociedade – as re- tais de natureza internacional e, por outro lado,
formas da esquerda são ultraliberais e a direita é a minimização da pessoa humana e das condições
cobarde em fazer a contrarreforma; sociais mínimas de uma vivência digna a nível
b. Em termos financeiros e sociais, o endividamento mundial, num modelo utilitarista e de crescente
crescente das famílias torna-as escravas dos ban- desprezo pela vida pré-natal e terminal;
cos e do Estado, num falso capitalismo popular da b. A valorização de uma liberdade sem limites do ser
direita, ampliado por um perverso consumismo humano e, por outro lado, a sua escravização a um
propagandeado pela esquerda na facilitação do re- modelo de civilização em que o ter vale bem mais
curso ao crédito bancário e, por isso, satisfazendo do que o ser;
interesses de grupos financeiros – ser proprietário c. Um aprofundar de uma consciência social e do pro-
imobiliário e consumidor traduz, por via dos em- gresso técnico-científico e, por outro lado, a difusão
préstimos e dos impostos a pagar, um novo tipo de alargada de uma cultura da superficialidade e da fu-
escravidão social; o salário tornou-se um simples tilidade através da propaganda feita pelos meios de
meio de pagamento de dívidas de uma vida vivida comunicação social;
a crédito. d. As formas de integração económica e política su-
pranacionais há muito que deixaram de visar re-
3. A família, degradada moralmente e estrangulada fi- solver problemas das pessoas, antes têm em vista
nanceiramente, gera uma sociedade amorfa, capturada interesses empresariais protagonizados por certos
por interesses financeiros e partidários, numa aliança en- Estados e oligarquias partidárias dominantes, sem
tre o capital e o Estado, ambos surdos aos interesses das prejuízo de os discursos continuarem a usar as pa-
pessoas e da sua dignidade: lavras «solidariedade entre os povos», «coesão so-
a. A subsidiariedade do Estado transforma-se em cial», «progresso social» ou «combate à exclusão
desresponsabilização social do Estado face aos mais social».
fracos e mais débeis;
.24

5. Como reformar tais causas de indignidade humana político e ocorra a edificação de uma nova or-
e social? dem de valores – no deserto de valores em que a
a. Se excluirmos o apelo ideológico marxista, sacri- República caiu, «não deixemos que nos roubem
ficando a liberdade e o pluralismo à ditadura do a esperança!»1;
proletariado protagonizada por uma oligarquia e. Só então, afastada pelo voto a oligarquia partidá-
partidária, reside na Doutrina Social da Igreja, ria que se apoderou do aparelho do Estado nas
desde Leão XIII até ao Papa Francisco, o único últimas décadas, poderá começar a verdadeira re-
baluarte ideológico firme: se não acreditarmos forma do Estado, sabendo-se que com ela se inicia
em valores, nem tivermos convicções enraiza- uma nova República e que nenhuma geração tem
das, facilmente seremos instrumentos ao serviço o poder de excluir as futuras gerações de definir
de interesses de quem está disposto a comprar o seu futuro constitucional: os limites materiais
novos servos; de revisão constitucional traduzem a arrogância
b. Sem políticos com convicções e valores nenhuma e a prepotência de quem teve o poder de defi-
reforma é possível e todas as reformas fracassarão: nir um sistema e nega aos seus filhos e netos essa
o mal desta III República não está tanto nas suas mesma liberdade.
instituições, nem no texto da Constituição em
que se alicerça, antes reside nos seus intérpretes e 6. Os católicos não se podem alhear de um tal esforço
na distorção que os partidos políticos vieram tra- de mudança e reforma do Estado, nem é lícito que con-
zer – se é certo que não há democracia sem parti- tinuem a permitir que lhes roubem a alegria da evange-
dos políticos, a verdade é que os partidos podem lização ou lhes peçam que assistam calados e passivos à
tornar-se o cancro da democracia; destruição da ordem de valores em que acreditam e em
c. Se é verdade que não se reforma o sistema partidá- que a nação portuguesa foi edificada:
rio por decreto, nem o Estado deve interferir com a. A defesa intransigente da vida, a dignificação da
a liberdade de associação partidária, o certo é que pessoa humana e da família, num modelo político
uma mudança do sistema eleitoral, introduzindo plural, livre e social são imperativos a que todos so-
uma identificação e responsabilização direta en- mos chamados a servir;
tre eleito e eleitores, através de círculos uninomi- b. Uma metodologia de diálogo social, num Estado
nais e dispensando-se a intermediação partidária, assente na defesa do bem comum da socieda-
contribuiria para uma mutação de todo o sistema de, à luz dos princípios da subsidiariedade e da
partidário: sem coragem de mudar o sistema parti- solidariedade2;
dário, todas as reformas do Estado serão ilusórias; c. Um propósito de edificação da paz, da justiça e da
d. Se a III República se conseguir libertar da verda- fraternidade baseado nos postulados de que «o tem-
deira ditadura dos partidos políticos em que tem po é superior ao espaço», «a unidade prevalece so-
vivido, se o poder for devolvido aos eleitores e bre o conflito», «a realidade é mais importante do
forem afastados os boys dos aparelhos partidários que a ideia» e «o todo é superior à parte»3.
da governação, então uma nova elite de políticos
estará em condições de concretizar a reforma do Sem uma efetiva mudança de paradigma axiológico,
Estado, devolvendo Portugal aos portugueses e fa- toda a reforma do Estado será edificada sobre areia: a
zendo acreditar na política: é preciso que o voto aparência esconderá a realidade e o acessório tomará o
devolva a esperança da mudança de paradigma lugar do essencial.

1 Cfr. FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelli


Gaudium, de 24 de novembro de 2013, nº 86.

2 Cfr. FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelli


Gaudium, nº 240.

3 Cfr. FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelli


Gaudium, nºs 221 ss.
25.

PEDRO MELO.
Advogado e Mestre em Direito.

SUBSÍDIOS PARA A REFORMA Tal documento, bem ao contrário das críticas infunda-
ADMINISTRATIVA DO ESTADO damente injustas de que foi alvo, representa um notável
esforço de condensação das principais matérias que care-
«Assim, enquanto outras nações subiam, nós cem de intervenção do poder político nos próximos anos
baixávamos. para tornar o Estado mais eficiente e eficaz.
Subiam elas por virtudes modernas; nós descíamos
pelos vícios antigos, levados ao sumo grau de De entre os inúmeros tópicos ou propostas de inter-
desenvolvimento e de aplicação. venção aí referenciados, propomo-nos, no âmbito do
Baixávamos pela indústria, pela política». presente artigo, apresentar alguns subsídios para a sua
concretização, conquanto se reconheça que as dificul-
Antero de Quental dades práticas da respectiva implementação são bastan-
«Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» te mais complexas do que a correspondente apreciação
(Maio de 1871). teórica.

Não sendo possível, neste espaço, versar sobre todos os


temas inclusos no aludido «Guião», abordaremos uni-
I. CONSIDERAÇÕES GERAIS camente a problemática da Reforma Administrativa em
dois planos: a Reforma Administrativa Orgânica e a
Sem hiperbolizar, podemos afirmar que nas últimas duas Reforma Administrativa Territorial do Estado.
décadas o tema da «Reforma do Estado» foi recorrente-
mente objecto de discussão pública, assumindo, maxime
em períodos pré-eleitorais, verdadeiros «foros de cidade». II. A REFORMA ADMINISTRATIVA ORGÂNICA

Aliás, não se conhece nenhum Programa Eleitoral dos . Relativamente à Reforma Administrativa Orgânica,
partidos políticos do designado arco da governabili- importa começar por realçar que todos os diagnósticos
dade, nem, consequentemente, nenhum Programa de estão feitos há muito tempo a esta parte, impondo-se,
Governo da III República, que não dedique espaço a forçosamente, a conclusão de que é insustentável man-
esta matéria, invariavelmente com o desiderato de racio- ter a actual arquitectura orgânica da Administração
nalizar, optimizar ou, mais prosaicamente, melhorar o Pública pátria.
funcionamento da Administração Pública.
Não valerá muito a pena mobilizar as razões pelas quais
Sem qualquer surpresa, por isso, esta temática voltou à deve ser radicalmente alterada esta situação. Seria, de
ordem do dia no contexto da intervenção da «Troika» no resto, algo ocioso apontá-las, tal é a evidência com que
nosso país, tendo o Governo apresentado há alguns me- nos interpela a conclusão de que muitas destas enti-
ses atrás o que ficou conhecido por «Guião da Reforma dades públicas já não oferecem nenhuma justificação
do Estado»1. séria para a sua existência, sendo que a sua manuten-
ção tem concorrido, fortemente, para a ineficiência da
Administração Pública, para o descrédito dos funcio-
1 O referido «Guião» foi aprovado em reunião do nários públicos (em sentido amplo) e para exaurir os
Conselho de Ministros de 30 de Outubro de 2013. parcos recursos financeiros do país.
.26

Dir-se-á apenas, no entanto, que a conservação de to- saldaram-se, ambos, numa significativa redução
dos os actuais organismos de natureza pública que, in- de estruturas administrativas da Administração
dependentemente da respectiva veste jurídica, gravitam Pública nacional (v.g., Direcções-Gerais, Secretarias-
em torno do Estado e que são por este, directa ou indi- Gerais, Institutos Públicos, Observatórios e Órgãos
rectamente, financiados, não é comportável em face da Consultivos).
indispensável concretização do objectivo de consolida-
ção das contas públicas nacionais, em particular, diante Com efeito, entre 2005 e 2013, registou-se uma redução
da necessidade de ser reduzida a despesa pública cor- de quase 50% dos organismos públicos existentes na
rente primária. órbitra da Administração Central do Estado (de 444
para 224)4.
A resolução concreta deste problema, para além de
exigir o que usualmente se designa por «vontade polí- . Urge, no entanto, do nosso ponto de vista, continuar
tica», passa por uma identificação, não necessariamen- a monitorizar a efectiva justificação dos organismos pú-
te morosa, de todas as estruturas ou organismos da blicos que ainda persistiram após aqueles Programas, o
Administração Pública que concentram atribuições e que poderá ser realizado mediante um escrutínio, por
competências «redundantes», «duplicadas» ou «sobrepos- exemplo, trienal, da sua razão de ser, com base numa
tas», com a finalidade de extinguir todas aquelas que são análise de custo-benefício.
desnecessárias, designadamente, por acusarem a predita
duplicação de missões. Por outro lado, deverão ser implementadas idênticas
medidas no domínio da Administração Regional e da
Deve, contudo, reconhecer-se, saudando o que já Administração Local (incluindo o sector empresarial re-
foi feito nos últimos 9 anos, que o Programa de gional e local).
Reestruturação da Administração Central do Estado
(vulgo, «PRACE»), iniciado em 20052, e o Plano de Refira-se que não está somente em causa uma lógica de
Redução e Melhoria da Administração Central do contenção e, desejavelmente, de continuada redução da
Estado (vulgo, «PREMAC»), encetado em 20113,

2 Cfr. a Resolução do Conselho de Ministros n.º 124/2005, 4 Cfr. o Relatório da Direcção-Geral da Administração e
de 4 de Agosto. do Emprego Público («DGAEP»), subordinado ao tema:
«Análise da evolução das estruturas da administração
3 Aprovado em reunião do Conselho de Ministros de 20 pública central portuguesa decorrente do PRACE e do
de Julho de 2011. PREMAC» (Fevereiro de 2013).
27.

despesa pública, o que, per se, seria motivo suficiente para pouco tempo depois, em 1835, por Rodrigo da Fonseca.
a alvitrada racionalização da Administração Pública; está Ou seja, há quase 200 anos. Tudo, ou quase tudo, mu-
também em causa uma tentativa de diminuição da carga dou neste interlúdio; particularmente, por via do eleva-
burocrática que, pelo menos em parte, advém da exis- do nível de infra-estruturação no sector dos transportes,
tência de inúmeras estruturas administrativas, não raro reduziram-se imensamente as distâncias entre as povoa-
registando-se entre elas conflitos de competências e tam- ções dos municípios portugueses.
bém antagonismos de ordem política, quer a nível cen-
tral, quer a nível regional, quer ainda a nível autárquico. De resto, o anacronismo deste modelo de organização
territorial «entra pelos olhos dentro»: desde a época da
Na verdade, num contexto em que se promovem esfor- «Regeneração», até aos nossos dias, quase nada ficou na
ços de captação de investimento externo e interno, afi- mesma, excepto, malogradamente, este imutável legado
gura-se-nos essencial reduzir o gradeamento burocrático de 308 Municípios e mais de 4000 Freguesias5.
que, frequentemente, se traduz num verdadeiro «calvá-
rio», jurídico e financeiro, para os promotores de diver- . Não desconhecemos – seria estultícia deixar de o reco-
sos projectos no nosso país e em quase todas as áreas de nhecer – que são muitas e espinhosas as dificuldades ine-
actividade. rentes a uma Reforma neste domínio. É, todavia, nossa
convicção que o país não pode conviver por muito mais
Saliente-se que este aspecto releva igualmente para os tempo com esta situação, impondo-se, também aqui,
investimentos já existentes e que devem continuar a me- uma profunda alteração do quadro actual da organiza-
recer especial atenção, sob pena de se perderem a médio ção administrativa do território nacional.
prazo.
Com efeito, mesmo que levemos apenas em linha de
Neste quadro, para além de se preconizar o controlo das conta os Municípios do Continente (278 Municípios),
estruturas administrativas da Administração Central que portanto, não considerando os Municípios das Regiões
permanecem operativas e a extensão de programas como Autónomas (30 Municípios) por terem especificidades
o PRACE ou o PREMAC no âmbito da Administração muito próprias e acusarem ainda um nível de desen-
Regional e Local, propomos ainda que se procure «codi- volvimento inferior ao que se verifica no Continente,
ficar» a regulamentação jurídica dos principais sectores designadamente no plano infra-estrutural, verificamos
de actividade que se espraia por inúmeros diplomas e que (i). apenas 22 Municípios (do Continente) têm mais
que, frequentemente, conduz a dificuldades práticas de de 100.000 habitantes, que (ii). somente 58 Municípios
interpretação e aplicação geradoras de atrasos na imple- têm mais de 50.000 e que (iii). há unicamente 103
mentação de projectos relevantes para o desenvolvimen- Municípios com mais de 25.000 habitantes.
to económico e social.
Neste contexto, e em face do quadro legal de atribui-
Trata-se, certamente, de uma medida que não envolve ções e competências dos Municípios, entendemos como
custos consideráveis e que poderá ser concretizada a bre- razoável fixar dois critérios para implementar a reforma
ve trecho, com resultados positivos para a melhoria do que aqui preconizamos: (i). um «critério da densidade po-
ambiente regulatório nacional de diversos sectores de pulacional» e (ii) um «critério histórico-cultural».
actividade.
Nesta linha, e na sequência do estudo que efectuá-
mos, certamente não isento de críticas e de melhorias,
III. A REFORMA ADMINISTRATIVA TERRITORIAL concluímos que, temperando o predito «critério da
densidade populacional» com o sobredito «critério histó-
. No que tange à denominada Reforma da Administração rico-cultural», seria possível eliminar sensivelmente 49%
do Território, cumpre começar por recordar que a ho-
dierna organização administrativa do espaço nacional
(se quisermos, de pessoas colectivas públicas de popu- 5 A única «reforma» relevante nesta matéria traduziu-se
lação e território), remonta ao segundo quartel do séc. na extinção dos Governos Civis e na fusão ou agregação
XIX, isto é, às reformas administrativas liberais, enceta- de algumas Freguesias, designadamente, no Município de
das em 1832 por Mouzinho da Silveira e desenvolvidas, Lisboa (cfr. a Lei n.º 56/2012, de 8 de Novembro).
.28

do número de Municípios existentes no território do aprovada a Lei n.º 22/2012, de 30 de Maio6, tendente
Continente (135 municípios). à aludida reorganização das autarquias locais nacionais.

Concretizando: apurámos que apenas existem 103 Simplesmente, de acordo com esse diploma, tal reor-
Municípios com população superior (ou em torno) dos ganização administrativa das autarquias locais só é
25.000 habitantes. imperativa para as Freguesias e não, portanto, para os
Municípios.
Ora, em função do invocado quadro legal de atribui-
ções e competências municipais, justifica-se, para nós, O resultado está à vista e é decepcionante: foram agre-
a sua manutenção. gadas algumas Freguesias e não houve, até à data, uma
única «fusão municipal».
Apurámos ainda, no âmbito do referido «critério his-
tórico-cultural», que, para além dos 103 Municípios Importa, pois, continuar a trilhar este caminho, com re-
com mais de 25.000 munícipes, existem outros 40 dobrados esforços políticos.
Municípios que, conquanto não preencham o primeiro
critério (o «critério da densidade populacional»), detêm Saliente-se, por fim, que, do nosso ponto vista, a ne-
uma riqueza histórico-cultural que justifica, do nosso cessária reorganização (substancial) de Municípios não
ponto de vista, disporem das estruturas organizativas contende com o quadro constitucional vigente7.
típicas de um Município.
Na verdade, a Constituição prevê, expressis verbis, em-
. Realce-se que na esteira dos compromissos assumidos bora sob reserva de lei, a possibilidade de serem extintos
pelo Estado Português por força do célebre Memorando Municípios e, bem assim, a possibilidade de serem alte-
de Entendimento com a «Troika» (de Maio de 2011) foi radas as respectivas áreas (cfr. o art. 249º da CRP).

6 A Lei n.º 22/2012, de 30 de Maio, aprovou o regime


jurídico da reorganização administrativa territorial autár-
quica e foi regulamentada pela Lei n.º 11-A/2013, de 28 de
Janeiro. Sobre esta matéria, cfr. João Miranda «A reforma
do governo do território em tempo de crise», in «A Crise
e o Direito Público», ICJP / FDL, 2013.

7 Esclarecendo que não existe «(…) qualquer tipicida-


de quanto ao número em concreto de autarquias locais»,
cfr. Paulo Otero, «Direito Constitucional Português»,
Vol. II, Almedina, Coimbra, 2010, p. 621. Sobre a mes-
ma temática, cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
«Constituição da República Portuguesa Anotada», Vol.
II, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010,
pp. 758 a 760.
29.

SUZANA TAVARES DA SILVA.


Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

No convite que nos foi endereçado, pedia-se uma re- dos serviços públicos. Hoje as entidades públicas de-
flexão breve sobre: «Reforma do Estado: sistema político, vem responder perante critérios de avaliação da respec-
Administração Pública e tribunais – que sugestões?». A tiva actuação e de performance, o que não se esgota no
questão suscitou-nos um sentimento misto de estímulo controlo de legalidade e de juridicidade protagonizado
e desânimo – estímulo, porque não se tratava (acredi- pelos Tribunais, no quadro de um típico sistema de fis-
tamos) de um puro exercício de retórica, ou sequer de calização decorrente da concepção maioritária do poder.
formular sugestões para melhorar o status quo, mas an- Todavia, para que essas novas formas de controlo sejam
tes de pensar a realidade em que estamos inseridos en- implementadas com sucesso, é necessária uma aborda-
quanto somos sacudidos pelo turbilhão das mudanças gem prévia, pedagógica, relativamente às mudanças a
que se sucedem a um ritmo vertiginoso; e desânimo por operar no quadro da maturidade do sistema democráti-
sentirmos a incapacidade de, neste contexto de mudan- co, o que pressupõe três eixos essenciais a promover de
ça em tempo real, conseguir alcançar a visão holística forma simultânea: i) explicar aos juízes que não devem
do universo problemático e dispor do tempo adequa- imiscuir-se no controlo político; ii) travar as pulsões do
do à reflexão ponderada quanto aos caminhos a seguir. poder político por neutralizar os espaços de discricio-
Todavia, e mesmo longe do conhecimento e da capaci- nariedade técnica e de racionalidade tecnocrática; e iii)
dade de predição das Moiras, não resistimos, como to- «criar o espaço necessário» ao adequado desempenho
dos os mortais, a ousar vaticinar algumas notas sobre «o das respectivas funções pelos mecanismos e entidades
nosso quinhão comum». responsáveis pela avaliação do impacto (ex. Conselho de
Finanças Públicas), pela neutralização dos conflitos (ex.
O primeiro tópico que temos por seguro é o da crise do painéis de boas práticas e mediação em matérias como
direito (ou talvez melhor, da autonomia do direito) no a contratação pública ou as relações de emprego em ser-
contexto da nova abordagem do exercício dos poderes viços públicos), pela garantia da confiança e da transpa-
públicos sob a matriz do Estado regulador. A regulação rência as decisões e soluções (ex. auditorias às entidades
é um «território» necessariamente multidisciplinar, que, reguladoras por entidades internacionais do sector com
por essa razão, se não coaduna com a construção do di- divulgação dos resultados do benchmark, discussão pú-
reito como sistema (Luhmann) – construção que está e blica do programa de actuação das entidades reguladoras
esteve na base do sistema jurídico do «modelo de Estado» e da auto-compreensão do respectivo mandato), etc.
dos países da civil law – reclamando hoje, no plano nor-
mativo, soluções mais pragmáticas, fundamentadas mais Ainda sobre a Administração Pública, acreditamos que
na razoabilidade do que na racionalidade. outro ponto premente da reforma é o «enxugamento» e
a «renovação» dos recursos humanos – hoje são necessá-
Esta primeira premissa obriga a diversas modificações rios menos «colaboradores» para cumprir as tarefas que
no campo da «reforma da Administração Pública», de integram o leque de competências e atribuições das en-
entre as quais destacamos a diversificação das formas de tidades públicas, e são sobretudo necessários recursos
controlo (incluindo do controlo do exercício de poderes humanos com diferentes qualificações (por exemplo,
públicos), que agora surgem também aliadas a estratégias menos operários, menos auxiliares técnicos e menos
de indução ao cumprimento de objectivos ou à obtenção de assistentes administrativos e mais profissionais da área
certos resultados, reclamando-se do exercício dos poderes das TIC, mais licenciados e novas profissões). Uma
públicos muito mais do que a mera execução das deter- renovação urgente, que não se coaduna com a inter-
minações legais ou a garantia do regular funcionamento pretação que o Tribunal Constitucional, no Acórdão
.30

n.º 474/2013, faz da garantia da segurança no empre- constitucional» (expressão de Rosenfeld para transmi-
go e da protecção da confiança legítima, acolhendo na tir a diversidade de substracto subjectivo – povo uni-
sua fundamentação (independentemente das soluções versal – nos diferentes sistemas constitucionais) que se
que em concreto constavam as normas em apreço) uma transformou profundamente (novas cidadanias).
compreensão atávica das garantias constitucionais que
devem ser reconhecidas aos trabalhadores em funções Ainda quanto a este ponto, importa não esquecer tam-
públicas e que compromete o desenvolvimento do país bém os novos desafios à separação de poderes, que de-
por algumas décadas. correm, simultaneamente, da internacionalização das
políticas (ambiente, clima, energia, alimentos, fiscalida-
O segundo tópico que temos também por adquirido é de, direitos humanos), no plano externo, e do Estado
o da crise do tradicional sistema democrático de partidos regulador (criação de entidades reguladoras que reú-
políticos e a sua superação, em muitos aspectos, por um nem poderes de normação independente, de execução
sistema de tardo-democracia com mediação institucional de medidas através do uso de poderes de autoridade,
mitigada. Não temos possibilidade, na economia des- de poderes sancionatórios e de competências em ma-
te escrito, de desenvolver convenientemente o tópico, téria de resolução de litígios), no plano interno, e que
mas, em termos sucintos, o que pretendemos sublinhar permitiram apresentar a governance como um esquema
é a perda de influência dos mediadores actuais da demo- de superação daquele princípio ordenador do poder pú-
cracia – em especial os partidos políticos – em relação blico na modernidade, constituindo a better regulation
a diversos domínios estruturais da organização econó- um dos princípios funcionais das entidades públicas
mica e social: i) na arena económica, onde se assiste ao na contemporaneidade.
triunfo dos mecanismos da transestatalidade decorren-
tes do desenvolvimento do comércio internacional, do Um terceiro e último tópico que não podemos deixar
sistema financeiro globalizado e do sistema internacio- de referir nesta breve reflexão prende-se com o carácter
nal de protecção do investimento estrangeiro; ii) na inadaptado – por vezes excessivo e por vezes deficitário
arena social, actualmente dominada pelas expressões de – que o controlo judicial vem manifestando em con-
movimentos de cidadãos organizados através das redes sequência de todas estas transformações e transmuta-
sociais (em defesa da escola privada, do não encerra- ções que afectam a nossa organização social. Concebido
mento de serviços de saúde, da liberalização do aborto), como poder independente para julgar os litígios entre
que concorrem com as instituições tradicionais como os privados e também a conformidade jurídica dos ac-
os sindicatos, as associações e a Igreja; e até iii) na arena tos do poder público, e mais tarde alargado aos litígios
política, fruto do desenvolvimento de relevantes lobbies emergentes de relações jurídicas de direito público, cedo
que actuam junto do poder político democraticamente deu mostras de insuficiências quanto à capacidade de
eleito e de movimentos inorgânicos e inopinados, cons- cumprir com excelência a missão que lhe fora confiada.
tituídos também a partir das redes sociais, que tomam Olhando com alguma distância, e sem esquecer o papel
conta da rua em certos momentos e põem em evidência fundamental que assume na pacificação das relações so-
o risco do défice de representatividade e de efectivida- ciais em geral, não podemos, contudo, deixar de apon-
de das estruturas de mediação política tradicional, em tar as debilidades que o poder judicial apresenta perante
especial os partidos políticos, fazendo até, por vezes, os desafios deste século: i) falta de ductilidade relativa-
apelo a valores antidemocráticos (uma nota que carac- mente às diferentes necessidades dos litígios em apreço,
teriza o séc. XXI na Europa é a perda da hegemonia da em questões que não contendem necessariamente com
«esquerda» sobre a «rua») e à supremacia de interesses a realização do direito, mas sim com a adequada reali-
locais sobre o interesse geral. A perda de influência dos zação da justiça (ex. falta de preparação dos magistra-
partidos políticos e dos sindicatos é, por um lado, con- dos para lidar com o carácter mediático dos processos, a
sequência da construção de uma Sociedade mais cos- dificuldade na regulação adequada dos meios de prova,
mopolita e mais complexa, e, por outro, decorrência da a desadequação do sistema de garantias das partes no
própria perda de centralidade do Estado enquanto me- processo); ii) excesso de especialização e a falta de «razão»
diador (referente) da organização económica e social, que perpassa em muitas decisões, em que o tribunal se
que resulta do crescente individualismo e da supera- preocupa em compreender a formação do grau alcoólico
ção das teses contratualistas (Rousseau, Locke) de le- do vinho e não em analisar a razoabilidade da obrigação
gitimação do poder público, assentes sobre um «sujeito de devolução de uma ajuda comunitária, em entender
31.

uma técnica cirúrgica, em vez de avaliar do comporta- num instrumento de regulação económica, reclaman-
mento razoável do médico, ou em atender aos clamores do formas diversas de gestão da obrigação tributária (ex.
e anseios de uma população ou de um grupo represen- adopção de um sistema de compliance agreements e con-
tativo de interesses colectivos, em vez de se autoconter tratualização de obrigações tributárias) e de resolução
perante uma decisão de execução de uma política pú- de litígios entre a Administração Tributária e os contri-
blica; iii) injustificada manutenção de uma dualidade de buintes (ex. transacções, acordos prévios). Debilidades
jurisdições perante a crescente descaracterização do direi- a que somamos a necessidade de recalibragem do papel
to público enquanto ramo diferente do direito privado, do Tribunal Constitucional através da reforma da res-
seja porque o direito administrativo perde especialidade pectiva lei de processo e funcionamento, de forma a
e especificidade (realidade que pode ser ilustrada com a garantir que este se apresenta como um verdadeiro tri-
aproximação ao direito privado no domínio do contrato bunal político onde o deve ser, ou seja, no julgamento
de trabalho em funções públicas, a «anglosaxonização» das questões que envolvem a determinação do âmbito
no domínio da contratação pública e dos contratos pú- das autonomias regionais e locais, e neutralizando even-
blicos, a «europeização» em áreas de direito económi- tuais ímpetos activistas no domínio da activação de po-
co, como as subvenções, a regulação das profissões e dos líticas públicas a pretexto da fiscalização abstracta da
serviços, e em novos ramos especiais, como a seguran- constitucionalidade das normas.
ça alimentar ou autorizações de introdução de bens no
mercado, e a evolução para um «common law» / «global São breves notas que não esgotam sequer o universo dos
law» em matéria de contratos duradouros de investi- tópicos que poderemos reconduzir ao «mundo em mu-
mento e em questões transnacionais, como o ambiente, dança», mas esperamos possam corresponder ao que nos
a energia e o clima), seja porque o direito fiscal, fruto foi pedido: avançar propostas e temas de reflexão sobre a
da globalização, tende a transformar-se cada vez mais reforma do Estado em breves linhas.
.32

| artigos |

Alessandro Serpe*
METAETICA E PRATICA DEI VALORI
NELLA RIFLESSIONE DI ALF ROSS

In order to determine whether a proposition of value has UNA INTRODUZIONE


no-logical character, Alf Ross distinguishes and com-
pares two types of speech acts, indicatives and directi- A quindici anni dal capolavoro Om ret og retfærdighed. En
ves. Differently from the directives, the indicatives do indførelse i den analytiske retsfilosofi, nel 1968 veniva dato
concern real subject matter. Comparison presupposes alle stampe Directives and Norms. Sebbene gli studi di
a rejection of metaphysical and aprioristic philosophy cui esso si compone fossero stati, in continuazione e tra-
symptomatic of illusionary objective aspirations and scrizione dell’empirismo logico, compiuti, per oltre un
consequently the adoption and the application of some ventennio1, Ross riscrive, acconciandolo ai suoi tempi,
main lines of logical empiricism in terms of a moderate la sua diffidenza verso filosofie metafisiche ed apriorismi.
objectivism.
1 Rileggere Ross è programma di non agevole ricerca, quan-
A major aim of the present work is to describe and to
to meno per le difficoltà di tener conto delle diverse lingue
clarify certain common and dependent perspectives di scrittura dei suoi lavori e delle sue varie competenze su
between Ross’s and Hare’s meta-ethical accounts as re- diritto, morale, analisi linguistica. Segnalerei, come punto
gards some tenets of language philosophy. In the light d’avvio, che tra gli anni Venti e Trenta il Ross d’estrazione
of this, a more detailed analysis and use of the concep- neo-kantiana, veniva da Kelsen (cfr., A. Ross, Theorie der
ts of «indicative-directive» is presented in the first part Rechtsquellen. Ein Beitrag zur Theorie des positiven Rechts auf
of the work. The emphasis in the discussion in the se- Grundlage dogmenhistorischer Untersuchungen, Leipzig und
cond section is placed on Ross’s conceptually analyti- Wien, 1929). Nel decennio successivo, Ross compie uno svi-
cal framework of epistemology and moral philosophy. luppo della filosofia di Hägerström (cfr., A. Ross, Kritik der
In particular, I shall look at the concept of acceptance sogenannten praktischen Erkenntnis. Zugleich Prolegomena
of a directive as a constitutive act. This concept aims zu einer Kritik der Rechtswissenschaft, Kopenhagen und
on the one hand at marking a boundary between indi- Leipzig, 1933; A. Ross, Virkelighed og Gyldighed i Retslæren.
catives and directives and, on the other hand at better En kritik af den teoretiske Retsvidenskabs Grundbegreber,
capturing the unity between language philosophy and København 1934). Decisivo, nelle riflessioni rossiane, sarà,
the moral non-cognitivism. Correspondingly, in the last tra gli anni Quaranta e gli anni Sessanta, l’intima affinità
part is shed light on Ross’s non-cognitivism also refer- fondamentale con gli assunti dell’emprisimo logico (si ve-
dano, tra gli altri, A. Ross, On the illusion of Consciousness.
red as value nihilism within Scandinavian debate and
Do mental data («phenomena of consciousness») exist?, in:
more specifically, it takes into account whether a theore-
Theoria, 1941, p. 171-202; A. Ross, On the logical nature of
tical value nihilism is so determinate that it can lead to a propositions of value, in: Theoria, 1945, p. 172-210; A. Ross,
practical indifferentism or moral relativism, or whether Towards a realistic Jurisprudence, A criticism of the dualism
it may have an action-guiding effect. In order to find te- in Law, Copenhagen 1946; A. Ross, Hvorfor Demokrati?,
nable grounds for providing a more specification of the København 1946 A. Ross, Tû-Tû, in: Festskrift til Henry
topic, a closer examination on the concepts of equality Ussing, København 1951, p. 468-484; A. Ross, Om ret
and democracy is given. og retfærdighed. En indførelse i den analytiske retsfilosofi,
København 1953). Il presente lavoro tiene conto, in parti-
colare, di questo ultimo Ross.
33.

Il libro tiene in scena una filosofia, di matrice analitica. linguaggio descrittivo e linguaggio prescrittivo, le ragio-
Ross, muovendo dagli studi intorno a linguaggio, si apre ni più profonde dell’analisi del linguaggio. Già Kant,
una via, nei modi più vari, contro ogni metafisica od con profonda intuizione, aveva detto essere gli imperati-
ontologia, funzionarie, esse, d’una non verità quanto a vi, inclusi nella classe degli enunciati pratici, né veri né
valori. A partire dai suoi precedenti studi in epistemolo- falsi: a priori, egli aveva detto, espressioni della ragion
gia, il danese riscrive e oltrepassa, uno dei grandi maestri pratica dell’uomo e conoscibili, come i valori in essi con-
della filosofia del linguaggio, l’oxoniense R. M. Hare2 tenuti, per intuizione razionale3. Non è di certo questa
che, in quegli anni, Cinquanta e Sessanta, si confrontava tradizione che rivive nell’analitica di Ross, ma le radici,
con un’etica tenuta, con tutte le cautele, entro il domi- kantiane, di una tale distinzione hanno valore e per Ross
nio della teoria del significato. e per Hare.

Se, come mi accingo a provare nella prima parte del Ai profili di analisi del linguaggio, indicativo e direttivo,
lavoro, non sono azzardate le parentele tra il Ross di di questo nostro Ross, sottostà una svolta decisiva quanto
Directives and Norms e lo Hare di Language of Morals, alla classificazione degli enunciati linguistici. Partiamo
quanto ad una metaetica il cui ufficio fosse svolto, sulle da ciò.
orme di assunti classici del pensiero neo-positivista – a
muovere dal G.E. Moore dei Principia Ethica – in virtù Scriveva, Ross, in Diritto e Giustizia, 1953, che ogni
di un progressivo e poi compiuto, esautoramento dell’e- enunciato linguistico, in quanto fenomeno linguistico,
tica normativa, tuttavia ricorre in Ross, e ciò è decisivo, fosse da differenziarsi dal suo significato. Considerato
una inquietudine tale da trincerarsi, ancora una volta, che ogni enunciato, per parte sua, può esibire lo stes-
nel nichilismo assiologico e ritrovare, in esso, la chiave so significato, Ross distingueva il signifcato in espres-
per la interpretazione, in filosofia, dei valori. La seconda sivo o sintomatico, e in rappresentativo o semantico.
parte del lavoro, coniuga e congiunge, via filosofia ana- Sulle orme della filosofia di Jørgen Jørgensen, diffusore
litica del linguaggio, le significative determinazioni di dell’empirismo logico e della logica matematica nel mi-
epistemologia e filosofia morale quanto al tema dell’ac- lieu accademico danese, nel cui colto lavoro, Psykologi
cettazione di una direttiva (morale) quale atto costituti- paa biologisk Grundlag4 (Psicologia su fondamento
vo. L’epistemologia è, nella sua veduta, il campo in cui biologico), 1943, tentò una riduzione della psicologia
si combatte la lotta contro la metafisica ed i suoi aprio- a biologia e difese una prospettiva empiristica della lo-
rismi, e ad essa, Ross affida l’ufficio di svelare la natura gica, Ross specificava che ogni enunciato linguistico
non-logica delle proposizioni di valore.

Il siffatto tracciato di non-cognitivismo teorico che sot- 3 A. Ross, Direttive e Norme, Milano 1978, p. 47-48, tra-
tende all’analisi meta-etica dei giudizi di valore sarà ve- duzione italiana di A. Ross, Directives and Norms, London
rificato, quanto ad eguaglianza e democrazia, sul piano 1968.
della esperienza di pratica dei valori. È questo il tema
conclusivo del presente lavoro. 4 J. Jørgensen, Psykologi paa biologisk Grundlag,
København, 1945. Sui rinvii di Ross a Jørgensen, cfr:
A: Ross, On the logical nature of propositions of value,
1. ROSS, OLTRE DIRITTO E GIUSTIZIA cit., p. 177; A. Ross, Direttive e norme, cit., p. 136, 219.
Sullo Jørgensen di Sandhed, Virkelighed og Fysikkens
Metode, København 1956, e di A Treatise of Formal Logic,
Il ponte con la filosofia del linguaggio di Hare viene
Copenhagen-London, 1 ed., 1931, Ross aveva già, pri-
dalle prime pagine di Directives and Norms. Ross fer-
mariamente, discusso nel suo Imperatives and Logic, in:
mava, nella distinzione tra enunciazioni teoretiche ed Theoria, 1941, p. 53-71, a proposito della possibilità di
enunciazioni pratiche, riscritte, esse, nei modi di Hare, una logica deontica (o delle «direttive»), delle signifi-
canze degli enunciati imperativi e del concetto di infe-
renza logica, questioni che il Ross configura e riscrive,
2 Su questo significativo punto, e sui contatti con la scuo- egli stesso, come dilemma di Jørgensen. Non costituis-
la di Oxford, Hart ed Hare, sono da ripercorrere alcune cono oggetto di indagine, nel presente lavoro, le analisi
interessanti pagine della biografia di Alf Ross: J. Evald, Alf rossiane del concetto di norma ed i suoi elementi, e gli
Ross-et liv, København 2010, specialmente p. 309-315. sviluppi di una logica deontica.
.34

presentasse un significato emotivo, fosse, ossia, sinto- giuridica non estranee alla logica, e norme giuridiche,
matico di qualcosa. Seguiamolo sul punto: l’enuncia- direttive, estranee, per parte loro, alla stessa.
zione, quale parte integrante di un sistema psico-fisico,
è tutta nell’esperienza emotivo-volitiva dell’enuncian- Ross 1968, avvertiva l’urgenza di una revisione: gli enun-
te. L’enunciante – per lo Jørgensen di Ross – è spinto, ciati linguistici non sono più utilmente riducibili – dirà
nell’atto di proferire il suo enunciato (comunicazione di – direttamente o indirettamente, a significato emotivo,
idee o manifestazione di emozioni) da una pulsione che dunque alle circostanze emotivo-volitive dell’enuncian-
si fà causa. Anche se, ancora Ross, alcuni enunciati esi- te6. Il danese si allontana, quanto ad analisi del linguag-
biscono un signficato rapprensentativo, ossia, indicano gio, dalle soluzioni dal sapore squisitamente emotivista,
uno stato di cose, essi, non da meno, sono sintomatici ossia: le inferenze induttive di natura psicologica, per
di una emozione o di una volizione. Da ciò, seguiva la dirla con lui, possono riguardare, comunque, ogni
distinzione tra «enunciati che hanno insieme un significa- enunciato ma nulla dicono quanto alla semantica. Una
to espressivo e rappresentativo», le asserzioni, che possono maturazione, quella di Ross che, entro un clima neo-po-
dirsi vere o false, e gli «enunciati che hanno soltanto un sitivistico, risente fortemente della lezione di Hare. Le
significato espressivo», tra essi, le esclamazioni, dotate di variazioni riguardo a composizione e significato del lin-
esclusiva carica emozionale e le direttive, dotate, per par- guaggio, in Ross, impongono, come s’è mostrato, una
te loro, di una carica intenzionale tale da esercitare una rimisurazione, di non smilza importanza, con ricadute,
influenza sul comportamento altrui5. si vedrà, anche quanto a valori.

Questa ricostruzione semantica degli enunciati lingui-


stici serviva al Ross 1953, per qualcosa di più: a descrive- 2. ROSS, DA HARE, OLTRE HARE
re il contenuto del diritto, quale fenomeno linguistico
composto di frasi imperative che ricorrono nelle nor- Da Hare. S’è visto, torno a dirlo, l’inadeguatezza e la
me giuridiche ed il cui contenuto logico consiste né in non (esclusiva) rispondenza della dimensione emotiva
asserzioni né in esclamazioni, piuttosto in direttive. E del linguaggio e, dunque, l’elaborazione di una analisi
non solo: Karl Olivecrona nel celeberrimo Law as Fact che riconosca al fenomeno linguistico, quale discorso,
1939, aveva assunto il diritto quale fenomeno che si ori- una duplice peculiarità, indicativo (descrittivo), diretti-
gina da una intenzione sociale ed elaborato il concetto vo (prescrittivo) è, sullo sfondo, per Ross, il segno di
di norma giuridica quale «imperativo indipendente», un cambiamento.
comando sprovvisto dell’intenzione di un singolo in-
dividuo. Ross, nonostante fosse, e non solo in prima Ora posso venire al nostro tema: il linguaggio, quale si-
approssimazione, in linea con lo svedese, nell’impian- stema o fenomeno sociale, composto di regole accettate
to del suo realismo psicologico e behaviourista, preferi- da una comunità linguistica, è cosa diversa dal discor-
va, a norme giuridiche quali «imperativi indipendenti», so, quale «uso concreto del linguaggio»7, ed è luogo di
il lemma «direttiva». «Direttiva», a suo avviso, meglio produzione di suoni e/o caratteri. Il discorso si compo-
avrebbe accomodato l’esigenza per cui il diritto è fe- ne di atti linguistici concreti ed individuali emessi da
nomeno dei giudici e dei funzionari amministrativi. determinati soggetti in determinate circostanze, con-
Ancora: la distinzione tra enunciati che presentano, al sistenti in una sequela di suoni, conformi alle regole
contempo, un significato espressivo e rappresentativo, sintattiche del linguaggio, e possedenti un significato.
ed enunciati che presentano unicamente un significato Gli atti linguistici che presentano tali caratteristiche
espressivo, asserzioni e direttive, confermava – ecco l’ul- si dicono enunciati. Da qui, dalla struttura degli atti
tima implicazione di Ross quanto a diritto – la differen- linguistici, si disegna il nucleo delle analisi linguisti-
za tra proposizioni descrittive (asserzioni) della scienza che: pragmatica, sintassi, semantica. Quella di Ross,
in un quadro di filosofia del linguaggio anglo-sasso-
ne e scandinava, con Carnap, Hare, Nowell-Smith,
5 A. Ross, Diritto e Giustizia, Torino 1965, p. 8-9.
Traduzione italiana della versione in lingua inglese di
A. Ross, Law and Justice, London 1958 (titolo origina- 6 A. Ross, Direttive e norme, cit., p. 136-137.
le dell’opera: Om ret og retfærdighed. En indførelse i den
analytiske retsfilosofi, København 1953). 7 Ivi, p. 50.
35.

Austin, Malmberg, Phalén e non meno Jørgensen ed coglie né nell’argomento, ossia il fatto contenuto in due
Hedenius, è analisi del significato. A riprova di ciò, enunciati, né nella forma grammaticale, la differenza
Ross traccia una linea di demarcazione tra discorso in- sostanziale. Si leggano, con Hare, i due enunciati: (A)
dicativo (’teoretico’, potrebbe andare, ma gli sembra un «Tu stai per chiudere la porta», e (B) «Chiudi la porta».
lemma non felice perché ha in sè i tratti della filosofia L’argomento, il chiudere la porta, accoumuna entram-
trascendentale; nemmeno «descrittivo»: esso, per par- bi gli enunciati; tuttavia, è l’uso del (medesimo) argo-
te sua, è incompleto) e discorso direttivo («pratico» e mento, quindi il significato che le forme grammaticali
«prescrittivo» non sono, a suo avviso, termini esaustivi comunicano, a decretare la differenza fra i due enun-
dal momento che egli per una parte tiene fuori i giu- ciati: il primo, dirà Hare, è un indicativo, l’altro un
dizi di valore, per un’altra, tiene dentro i consigli, le imperativo10.
raccomandazioni, le domande, tutti enunciati che non
equivalgono ad uno uso prescrittivo del linguaggio). Come è ben noto, Hare, muovendo dalle nozioni di
argomento e di uso dell’argomento, per sottolineare la
Il discorso indicativo, dunque, si compone di enuncia- differenza tra indicativi ed imperativi, riformula i due
ti. Un enunciato del discorso indicativo è, come scrive enunciati, (A) e (B), in un’unica frase (C): «Il tuo chiu-
Ross: «una figura linguistica che esprime una proposizione dere la porta nell’immediato futuro» ed aggiunge, stante
(un indicativo), cioè l’idea di un argomento come reale»8. il riferimento al medesimo argomento («il chiudere la
Riflettiamo, entro questa definizione, sui termini idea, porta»), qualcosa in più in modo tale da restituire ad (A)
argomento, e reale. e (B) il loro significato originario:
A. Tu stai per chiudere la porta > (C) Il tuo chiudere
Idea: essa è contenuto di significato, o meglio, conte- la porta nell’immediato futuro, prego;
nuto astratto di significato, astratto perché ha a che B. Chiudi la porta > (C) Il tuo chiudere la porta
fare con l’argomento che, per parte sua, risiede nel nell’immediato futuro, sì.
mondo delle percezioni di un determinato individuo.
Argomento: esso è l’oggetto, il topic, che è richiamato Quel «prego» e quel «sì» che si aggiungono alla fine delle
alla mente, via idea. Reale: perché l’enunciato sia pro- frasi (C) che riformulano, a loro volta, (A) e (B), co-
posizione (indicativo) è necessario non solo che l’idea stituiscono la parte neustica, che è diversa nelle frasi, a
di un argomento venga pensato, ma che essa, l’idea, seconda che si tratti di un comando (sì) o di una as-
venga pensata come reale, ossia come effettivamente serzione (prego); mentre la parte invariata, comune sia
esistente e sussistente9. Per questa ragione, l’enunciato alle riformulazioni di (A) e (B) è da Hare indicata come
non è frase, perché mentre la frase esprime l’idea di frastica. È come se il proferente un enunciato, seguo
un argomento e lo descrive, l’enunciato esprime una Hare, accennasse diversamente col capo per comunicare
proposizione, ossia descrive l’idea di un argomento il «prego» o il «sì» a seconda della sua intenzione di asse-
considerato come reale. La differenza tra frase ed enun- rire o comandare11.
ciato è quindi tra descrizione di un argomento e de-
scrizione di uno stato di cose (l’argomento considerato Con questo Hare, Ross è, sì, primieramente, in filia-
come reale). Da ciò ne vene che un indicativo è una zione diretta. Nel suo Directives and Norms, come s’è
proposizione (non una frase) espressa da un enunciato visto, Ross considera l’enunciato che esprime una pro-
che contiene l’idea di un argomento considerato come posizione, ossia l’indicativo, contenuto di significato. La
reale. In altre parole, un indicativo è una proposizione differenza tra frase e proposizione, ci ha detto, non è
che descrive uno stato di cose. nell’argomento, ma nel modo con cui esso è considera-
to, dunque, nella realtà, e la nozione di realtà è, per parte
Ross, in queste pagine, sta, ancora una volta, mostrando sua, una componente semantica non descrittiva.
Hare. Hare 1953, nell’interrogarsi quanto alla distinzio-
ne tra asserzioni e comandi (o asserzioni ed imperativi),
10 R.M. Hare, Il linguaggio della morale, Roma 1968, p.
18. Traduzione italiana di Language of Morals, London
8 Ivi, p. 60. 1952.

9 Ibidem. 11 Ivi, p. 28-29.


.36

Da quell’ Hare, così, in parte, Ross si divide. La «realtà» 2.1. DISCORSO INDICATIVO E DISCORSO DIRETTIVO.
di Ross non è l’ «assentire col capo» di Hare: la neusti- EPISTEMOLOGIA VS. FILOSOFIA MORALE
ca, così Hare, è l’elemento in comune ad indicativi ed
imperativi. In entrambi gli enunciati è presente l’idea Ross conserva la struttura del suo armamentario con-
immancabile di «accennare col capo», un gesto conven- cettuale riguardo a discorso direttivo. Il discorso diret-
zionale che è compiuto da chiunque voglia significare tivo si compone, anch’esso di enunciati. Un enunciato
seriamente ciò che dice12. Non così, però, Ross, per due del discorso direttivo è, come scrive Ross: «una figura
ragioni. La prima: considerare un argomento come re- linguistica che esprime una direttiva, cioè un’idea d’a-
ale, per Ross, è decidere l’atteggiamento da adottare zione considerata come modello di comportamento»15.
nei confronti della proposizione, dunque accettarla o Attenzione: mutano, quanto ad enunciato direttivo, in
rigettarla, come vera o come falsa. L’atteggiamento nei comparazione con enunciato indicativo, i temi dell’ar-
confronti di un enunciato significante è, con Ross, un gomento e della realtà. Pur essendo gli indicativi e le
atto interno, un giudizio, entro il sistema di opinio- direttive contenuti di significato, nelle direttive il topic
ni ‘valide’ del ricevente. In altre parole, l’accettare o non è considerato come reale, effettivamente sussitente
il rigettare prefezionano la «proposta» contenuta nella ed esistente; ne segue che affinché l’enunciato sia pro-
proposizione, previo confronto con un dato sistema di posizione (direttiva) è necessario che l’argomento verta
credenze. Con la bella formula «pensare è parlare», il non su fatti, ma su un certo tipo di comportamento, su
danese considera la proposizione linguistica come lo azioni. L’argomento è dunque presentato come modello
strumento che accende il pensiero, che permette l’ar- di comportamento. Ed ancora: l’atteggiamento nei con-
ticolazione delle credenze, e che infine produce una fronti di un indicativo, accettazione o rigetto, in base al
decisione. Per l’Hare di Ross, il «cenno col capo» – e proprio sistema di credenze, non è rilevante quanto ad
in ciò prende corpo la critica – è un atto non linguisti- enunciati direttivi. La forza motivante, ci dice Ross, non
co, un atto che si realizza verso un enunciato, ma non è nell’enunciazione stessa, ma nelle circostanze in cui la
partecipa del significato dell’enunciato13. direttiva viene pronunciata, circostanze che determine-
ranno la tipologia di direttiva, consiglio, esortazione,
La seconda ragione. Ross inchioda la differenza tra di- richiesta, regola giuridica. Le forme grammaticali che
scorso indicativo e discorso direttivo a livello semantico ospitano le direttive si differenziano: modo imperativo,
e ritiene essere fallace l’argomento per cui l’enunciato
imperativo condivida il medesimo significato letterale
con un enunciato indicativo e che da esso si differenzi 15 Ivi, p. 87. Si noti che Ross 1953 aveva colto nelle diretti-
esclusivamente dall’angolo della funzione pragmatica ve il cuore semantico e psicologico delle norme. A propo-
(il «cenno del capo»). Quale – si chiedeva Ross – allora, sito della nota comparazione fra norma giuridica e regola
la differenza tra l’asserire ed il comandare, considera- degli scacchi, Ross aveva sostenuto che le regole degli
to che, sotto questo fallace profilo, la semantica di tali scacchi fossero direttive perché semanticamente formu-
enunciati è identica? Non è nel diverso cenno del capo, late come asserzioni che dicono di capacità e di potere e
e dunque nella funzione pragmatica, che discorso in- guidano la condotta («ecco come si gioca») dei partecipanti;
dicativo e direttivo trovano i loro luoghi di differenza- al contempo esse, influenzando il comportamento altrui,
zione ma a livello semantico. «Una proposizione – così sono psicologicamente vincolanti. Cfr., A. Ross, Diritto
Ross – è vera o falsa solo perché si proponga di affermare e Giustizia, cit., p. 15. In Direttive e norme, Ross non fà
ciò che è. Comandare significa esprimere ciò che deve coincidere direttiva con norma: la prima, come si vedrà
nel corso di queste mie pagine, è fenomeno linguistico
essere, per quanto non lo sia»14.
tale da essere esaminato con gli strumenti della sintattica,
della semantica e della pragmatica; la seconda, la norma, è
«una direttiva che si trova in una relazione di corrisponden-
za a certi fatti sociali». L’esistenza della norma può dunque
essere accertata attraverso la verifica della corrispondenza
12 Ibidem. del modello di comportamento espresso dalla norma con
determinati fatti empirici, il fatto d’essere seguita dai co-
13 A. Ross, Direttive e norme, cit., p. 64-68. nosciati ed il fatto, per i consociati, di sentirsi, ad essa,
vincolati. Cfr., A Ross, Direttive e Norme, cit., p. 139-170,
14 Ivi, p. 132. Cfr., anche, p. 128-131, 133. specialmente p. 140-146, 156.
37.

espressioni deontiche che contengono termini deontici dipendente dalle regole che gli stessi partecipanti, e nes-
portatori di signifcato direttivo. sun altro al di fuori del gioco, hanno vicendevolmente e
comunemente accettato.
È in questo quadro che Ross presenta una tavola di clas-
sificazioni che fà capo alla distinzione tra direttive per- Infine, e siamo ad un punto, in questo lavoro decisivo:
sonali e direttive impersonali. Tralascio i molti dettagli, le direttive autonome della morale. Esse, principi morali
più o meno teoricamente significativi, quali essi si dan- autonomi e giudizi morali autonomi, sono indipenden-
no nella filosofia del linguaggio di Ross, e tengo fermo il ti da ogni autorità, dunque, sono effettive dal punto di
fil rouge del mio lavoro: analisi del linguaggio, non-co- vista della forza motivante, e si impongono né per ti-
gnitivismo, valori. more né per rispetto verso un’autorità, né, ancora, per
mutuo, eteronomo, accordo ma per approvazione ed
Accellero su questo punto, e provo a sintetizzare le den- accettazione autonoma, critica e matura, dell’indivi-
se pagine di Ross. Due i tipi di direttive, personali e duo. La moralità – è agevole convenire – è fenomeno
impersonali; le prime, quelle personali, possono essere individuale, è assunto che, proprio per la sua centralità
emanate nell’interesse di un parlante (definito), descri- nel pensiero di Ross, può essere letta, da più d’un lato,
vono un modello di comportamento e sono rivolte ad senza che si smarrisca la dimensione non–cognitivista
un destinatario (definito) perché questi conformi la sua che la promuove. Anzitutto, dall’angolo della accettazio-
azione a tale modello. La forza motivante del riceven- ne. Vale riguardo a discorso direttivo quanto opera, in
te risiede o nella sanzione, o nell’autorità (del parlante), termini di accettazione, nel discorso indicativo? Quale
o nella solidarietà; a queste diverse fonti motivazionali accettazione?
corrispondono altrettante diverse manifestazioni lingui-
stiche, quali i comandi, gli inviti, le richieste, i suggeri- Prima di rispondere a questa domanda, è necessario un
menti, e così via. Le direttive personali possono essere passaggio, un ritorno ad alcuni luoghi significativi, in
emanate anche nell’interesse dell’ascoltatore: si pensi ai continuità ed in confronto, del Ross anni Cinquanta e
consigli, alle esortazioni, alle raccomandazioni. La fonte Quaranta. Rivediamone alcuni snodi essenziali, quanto
motivazionale, quanto a tali enunciati, è nell»interesse a morale e a natura non-logica delle proposizioni di va-
egoistico dell’ascoltatore e nel senso di autorevolezza ri- lore. Questa rivisitazione ci permetterà, poi, di ragionare
conosciuto al parlante. intorno al concetto di accettazione, in riferimento sia al
discorso indicativo che al discorso direttivo.
Le direttive impersonali, e con ciò facciamo un passo
avanti verso valori e giudizi di valore, possono essere
eteronome, i quasi-comandi, e la fonte della loro effetti- 2.1.1. SULLA MORALE. GLI ANNI CINQUANTA
vità è nel timore delle sanzioni verso una quasi-autori-
tà, ossia un’autorità impersonale, lo Stato (il diritto) o In alcune pagine del Ross degli anni Cinquanta, quel-
la società (le convenzioni). È chiaro ravvedere, quanto lo di Diritto e Giustizia, diritto e moralità, entro una
a queste direttive, l’influenza degli studi di Olivecrona, teoria del significato di «diritto valido» disegnavano
ancora una volta, riguardo a imperativi indipendenti gli spazi dei fenomeni normativi. Il diritto, per parte
e comandi. sua – scriveva Ross – si compone di regole concernenti
l’uso della forza, esso è fenomeno eteronomo, la cui
Parimenti eteronome, sono le regole costitutive basate forza motivazionale, dal lato dei consociati, e quanto a
su mutuo accordo, le regole dei giochi. Esse sono obbe- norme di condotta, è tutta nel timore della sanzione.
dite né per il timore né per rispetto verso un’autorità Dal lato delle autorità istituzionali, giudici e pubblica
– quale autorità? quella dei giocatori coinvolti? – ma amministrazione, il diritto è norme di competenza ed
volontariamente. Cionosonstante, ogni giocatore coin- esercizio della forza. A lato del diritto, ci aveva detto
volto si sente vincolato nei confronti degli altri gio- Ross, si collocano altri fenomeni normativi, associa-
catori che riconosce come autorità. L’eteronomia delle zioni private, organizzazioni varie, diritto internazio-
regole dei giochi si concilia con l’altra fonte dell’effet- nale che, come il diritto, hanno carattere istituzionale
tività, l’autonomia: l’accettazione ed il riconoscimen- e producono regole ma che, diversamente dal dirit-
to di ogni giocatore, ed in ciò le regole dei giochi si to, non si fondano su sanzioni che consistono nella
differenziano dai quasi-comandi, è esclusivamente forza fisica.
.38

La morale, per parte sua, è anch’essa fenomeno nor- In «infedele» continuità con la Scuola di Uppsala, la
mativo, composto di regole di condotta, ma costitu- Scuola di Cambridge e l’empirismo logico, Ross, anni
isce un fenomeno individuale. Non si danno ultime Quaranta, si era interrogato sulle relazioni tra epistemo-
parole nella morale per la stessa ragione per cui non si logia e filosofia morale. Era chiaro, fin da allora, il suo
danno ultime autorità. Le motivazioni, e con esse, le intento. Status controversiae, per dirla con Ross, è dimo-
approvazioni e le disapprovazioni, appartengono alla strare la non oggettività, quale apprendimento a priori
sfera intima della coscienza individuale che agisce in della ragione, tanto, ed anzitutto, nell’epistemologia, e
situazioni concrete. Come è agevole vedere questo Ross nella filosofia morale. L’analisi del concetto di obiettività
veniva, per le sue vie, a lato di Kelsen e di Olivecrona. si dipana in una serie di obiezioni che, in applicazione di
In termini più vicini al suo realismo: il diritto e la mo- una filosofia scientifica che «unaffected by any religio-me-
rale, nonostante «sono in una relazione di reciproca taphysical need, sees its aim in an analysis of the concepts
cooperazione»16 convergono. Il primo è un fenomeno more or less uncritically adopted in the specialized sciences
sociale che, per il tramite di meccanismi di forza tende from the colloquial language» 17 provano – nel mirino ci
all’oggettività ed è volto al mantenimento della pace; la sono, tra gli altri, neokantiani, fenomenologi ed intui-
morale, per parte sua, è un fenomeno individuale che, zionisti – che l’oggettività: a) non può significare con-
per il tramite della libertà di coscienza tende all’adat- formità con la cosa da conoscere come essa «realmente»
tamento concreto ed espone, di continuo, gli uomini è o conformità con la cosa in sé. Un tale approccio mi-
a conflitti. sconosce l’esperienza sensoriale ed ascrive alla ragione
una validità a priori; b) non può significare accordo
Questo l’assunto fondamentale: ragionare, quanto a intersoggettivo. Un tale approccio misconosce, ancora
morale, in termini di oggettiva razionalità, nello stesso una volta, la dimensione sensoriale ed ascrive al «pubbli-
modo con cui si può parlare di diritto, è un franten- co» accordo una validità generale; c) non può significare
dimento derivante da apriorismi metafisici che investo- conformità della realtà ad un contenuto di coscienza.
no la filosofia morale, ma ancor prima l’epistemologia. Un tale approccio riduce l’esperienza conoscitiva ad ana-
E siamo al secondo punto. lisi della coscienza.

Riflettiamo. I primi due approcci eccedono in aprio-


2.1.2. SULLA NATURA NON-LOGICA rismi, forti o moderati; quanto al terzo: in esso stava-
DELLE PROPOSIZIONI (DI VALORE). no le ragioni, gli uffici che Ross ritrovava nella matrice
GLI ANNI QUARANTA. psicologica delle lezioni del Maestro Hägerström, le-
zioni che tornava a rappresentare ma che tuttavia non
L’idea di una erronea interpretazione (metafisica) della assumeva essere più propriamente sue. In particola-
morale e della conoscenza hanno trovato nelle pagi- re, la teoria dell’emozione del Maestro di Uppsala a
ne di Ross, consistenti tracce e lezioni. Mi interessa sostegno della sua tesi del carattere non logico delle
qui, piuttosto, mettere l’accento sulla natura non-lo- proposizioni di valore. Per l’Hägerström di Ross: «l»os-
gica delle proposizioni di valore cui Ross veniva, non servazione (diversamente dalla immaginazione) ha la
a caso, a muovere dal, nei suoi anni, moderno empiri- caratteristica di essere una coscienza della realtà di un
simo logico. E quanto, ancora, la sua configurazione oggetto ( ) se una osservazione dunque contiene sempre
individuale del fenomeno morale si ritrovi irrinuncia- una coscienza della realtà dell»oggetto, essa deve essere an-
bilmente legata ad epistemologia. Si dirà: l’epistemo- che in grado di essere associata ad altre cose appartenen-
logia è, nella sua veduta, il campo in cui si combatte ti al nostro mondo della realtà nello spazio e nel tempo.
la lotta contro la metafisica ed i suoi apriorismi, e ad Perché insieme con queste altre cose essa sia reale»18. Per
essa, Ross, affida l’ufficio di svelare la natura non-logica
delle proposizioni di valore.
17 A. Ross, On the logical nature of propositions of value,
cit., p. 173. Riguardo alle implicazioni degli assunti d’una
filosofia empiristica ed anti-metafisica, realista, sui con-
cetti di giustizia, validità, scienza giuridica, fonti del dirit-
to, cfr. A. Ross, Diritto e Giustizia, cit., p. 62-71, 98-102.
16 A. Ross, Diritto e Giustizia, cit., p. 61. Cfr., altresì, ed
in particolare, p. 57-60, 62. 18 Ivi, pp. 186-187. Traduzione dell’autore (TdA).
39.

Ross, l’idea hägerströmiana, autorevole, di riferimento cosa, ancora Ross, può essere logicamente rimpiazzata
alla realtà in termini di contenuto di coscienza, avrebbe da un numero di asserzioni elementari che esprimono
condotto unicamente in direzione psicologica; tutta- le condizioni regolate dalle leggi (della fisica) a cui un
via, da una prospettiva epistemologica, sottolineava il numero di percezioni fà riferimento. In altre parole,
danese, la realtà non è qualcosa di direttamente spe- l’esistenza di una cosa è determinabile dalla combina-
rimentato, ma il risultato di una progressiva elimina- zione di teoria della percezione e fisica elementare tale
zione di elementi soggettivi, incapaci, a suo dire, di che la percezione di ogni cosa è in relazione con la po-
superare il test della intersoggettività. Insomma, lo sizione del corpo di ognuno, per cui, ancora, con Ross:
psicologismo, che Hägerström applica, parimenti, alla «l’ipotesi di una cosa individuale è parte integrante di
conoscenza morale, per cui il contenuto di coscienza una ipotesi onnicomprensiva di connessioni spazio-tem-
presente in un sentimento, nonostante sia privo, per porali in cui tutte le cose, incluso il proprio corpo sono
sé, di una dimensione spazio-temporale di riferimento posizionate»22.
può, ciononostante, concepirsi come reale perché spe-
rimentato dall’individuo, organismo psico-fisico, non Ne esce da queste riflessioni, un concetto moderato di
convince Ross. oggettività in epistemologia. L’oggettività (che per Ross
è sinonimo di verità) di una determinata cosa è relativa-
Di contro Ross. Nell’analisi logica le cose esterne mente costante, proprio perché essa dipende e dice della
non sono né cose elementari, né direttamente date. teoria, continuamente verificata, che postula la esistenza
«Quando io dico ad esempio di vedere un albero verde – di quella determinata cosa. La teoria potrà essere falsifi-
scriveva – ciò che è direttamente dato non sono l’esistenza cata laddova la cosa – si badi bene: tutte le cose sono in
di un albero ed un ego che lo osserva. Questo è mera- movimento e soggetto a cambiamento – è considerata
mente una «sezione» di qualità, colori, luci e percezioni come meramente soggettiva, o ancor più, immaginaria,
di sfumature, altre qualità sensoriali ed un numero di illusoria. Dunque, per Ross, la misura della oggettività è
sensazioni fisiche»19. L’apriorismo, e con esso l’intuizio- relativa alle procedure di verificazione disponibili, e per
nismo, da un lato, e lo psicologismo, dall’altro, resta- tanto non è assoluta23.
vano, dunque, dissolti. Serve di più, qualcosa di più,
a Ross, perché si possa supporre che esista «qualcosa»,
e che questo «qualcosa» non resti una mera ipotesi.
Sulle orme dell’empirismo logico di Rudolf Carnap20,
Ross veniva ad una oggettività costituita per il tramite 22 Ibidem (TdA).
di procedure di verificazione di una teoria. Leggiamo
Ross: «le proposizioni circa le cose esterne (…) possono 23 Già negli anni Trenta Ross si era ritrovato a riflettere
essere logicamente ridotte (attraverso definizioni d’uso) ad su questioni meta-etiche, ed in particolare quanto a di-
asserzioni circa sensazioni elementari in relazioni regolate ritto e sistema giuridico, sulla possibilità per le norme
dalla legge»21. Una asserzione riguardo l’esistenza di una (giuridiche) di esprimere proposizioni. Le norme, aveva
scritto Ross a proposito e contro lo Söllen kelseniano,
non esprimono alto che atteggiamenti e sentimenti del
19 Ivi, p. 192 (TdA). parlante. Cfr., A. Ross, Den rene Retslæres 25-aars ju-
bileum, in: Tidsskrift for Rettsvidenskap, 1936, p. 304-
20 È specialmente al verificazionismo del Carnap di Der 331, specialmente, p. 313-315. Cfr., anche, la traduzione a
logische Aufbau der Welt che Ross fà capo, ed in partico- cura di Henrik Palmer Olsen, The 25th Anniversary of the
lare all’assunto per cui è possibile concepire i valori in Pure Theory of Law, in: Oxford Journal of Legal Studies,
termini di esperienze di valore tanto quanto è possibile 2011, p. 243-272. Cfr., altresì, specialmente quanto a
concepire le cose fisiche in termini di esperienze di prece- Kelsen, a partire dalla ricostruzione delle diverse fun-
zione. ll programma anti-metafisico di filosofia dei valori zioni e dei diversi significati del termine inglese validity
di Carnap, suggerisce, a Ross, com’egli scrive: «a more mo- in comparazione con i tedeschi gültig e geltend, e dei
derate view of the possibility of an apprehension of values». danesi gyldig e gældende, le pagine di critica dedicata
A. Ross, On the logical nature of propositions of value, cit., al quasi-positivismo del filosofo e giurista austriaco. A.
p. 176. Ross, Validity and the conflict between Legal Positivism
and Natural Law, in: Revista Jurídica de Buenos Aires,
21 Ivi, p. 193 (TdA). 4/1961, p. 71-87.
.40

2.2. DISCORSO INDICATIVO E DISCORSO regole costitutive basate sul mutuo accordo, l’ac-
DIRETTIVO. QUALE ACCETTAZIONE? cettazione è dipendente dal contesto che, in modi
diversi, inficia la piena determinazione del volere26.
Ripartiamo dal Ross degli anni successivi, quello che Ed ecco la forbice tra direttive personali ed imper-
avevamo lasciato, di Direttive e Norme, quanto ad ana- sonali, e tra quelle impersonali, le direttive auto-
lisi linguistica e filosofia morale. Questo Ross, ben si è nome, ossia i principi e i giudizi morali: esse sono
inteso, ricalca i risultati dei suoi studi anni Quaranta, su dentro, pienamente, alla scala dell’uomo, sono pre-
oggettività e valori. Raccolgo un passaggio significativo scritte esclusivamente dall’individuo, ed accettate
che rappresenta un punto di convergenza tra epistemo- costitutivamente dall’individuo medesimo.
logia, analisi del linguaggio e valori, tra il Ross 1946 ed Concludendo sul punto: l’assunto per cui l’accetta-
il Ross 1968: «l’ «obiettività» della conoscenza consiste nel zione dei giudizi morali è costitutiva è garantito dal-
fatto che la verità o falsità di una proposizione dipende da la sua prospettiva epistemologica secondo la quale
ciò che essa dice e non dall’atteggiamento che qualcuno può – è bene riannotarlo – oggettivo, moderatamente
assumere nei suoi confronti. La possibilità di questa obiet- oggettivo, è solo ciò che, sottoposto al test procedu-
tività dipende dall’esistenza di procedure per controllare la rale dell’intersoggettività, resiste agli elementi sog-
verità della proposizione, indipendenti dalle particolarità gettivi. La morale, per Ross, s’è visto anche questo,
soggettive degli individui»24. è fenomeno individuale, non tende a darsi né può
darsi una forma razionale, per cui nessuna procedu-
Quali le ricadute epistemologiche nell’analisi del lin- ra «razionalmente formale» può garantire la cono-
guaggio indicativo e direttivo, accettazione e valori? Le scenza morale. Se quanto a proposizioni indicative
seguenti: Ross si apre, con cautela, ad una qualche mode-
a. Come Ross scriveva: «entrambe [una proposizione e rata oggettività, lo stesso non vale, assolutamente
una direttiva] descrivono un argomento (nel caso di non vale, per i giudizi di valori, per la stessa ragione
una direttiva, un’idea di azione) che la proposizione per cui, non possono «oggettivamente» conoscersi
considera reale («così è») e la direttiva presenta come i valori.
un modello di comportamento («così deve essere»).
Dire che un’enunciazione è vera è precisamente ac- L’accettazione personale (del non-cognitivista) quanto a
cettare che «così è». Pertanto solo le proposizioni pos- direttive morali, sebbene dissolva ipotesi di fondamenti
sono essere vere»25. Allora: alla differenza semantica morali assoluti, non si tiene tuttavia indenne dall’eserci-
corrisponde una differenza sul piano dell’accetta- zio del ragionamento morale. Il ragionamento morale è
zione. L’accettazione di una proposizione indica- la via che segue l’accettazione per giungere alla decisio-
tiva, per Ross, è di natura dichiarativa, ossia è il ne; accettare – così Ross significa – è scegliere, con un
riconoscimento del valore di verità (oggettività) atto di volontà, maturo e responsabile, valori o principi
della medesima. Sia ben inteso che l’accettazione,
nei termini di verità, entro i grandi quadri della sua
epistemologia dai segni oggettivamente modera- 26 Non vado a fondo del noto ed interessante contributo
ti, non è assoluta, ma relativa e riesaminabile. Nel di Ross quanto a norme giuridiche, quali norme sociali
discorso direttivo, il cui esito non è, propriamen- che, nella sua veduta, alla guisa dei quasi-comandi, tra-
te, legato ad un riconoscimento della proprietà di ggono la loro forza motivante, e dunque vincolante, in
verità intrinseche alle proposizioni, l’accettazione, un atteggiamento di obbedienza a cui gli individui sono
stati educati nei confronti di un’autorità, eteronoma,
che è atto di volontà, si atteggia diversamente. In
«percepita come spersonalizzata». Su questo significativo
alcune di esse, nelle direttive personali, ossia quel-
punto sono da ripercorre le pagine di Ross in Diritto e
le emanate nell’interesse del parlante, quelle basate Giustizia, cit., p. 13-19, 34-38, 50-57. Per un approfondi-
sull’autorità, e sulla solidarietà, ma anche, riguardo mento della questione, si confronti la prospettiva del ri-
alle direttive impersonali, ai quasi-comandi e alle conoscimento di Ross, con quella che H.L.A. Hart assume
essere divergente: H.L.A. Hart, Scandinavian Realism, in:
The Cambridge Law Journal, 1959, p. 233-240; A. Ross,
24 A. Ross, Direttive e norme, cit., p. 120. Reviews: The Concept of Law. By H.L.A. Hart. Oxford:
Clarendon Press, 1961 in: Yale Law Journal, 71/1962, p.
25 Ivi, p. 168. 1185-1190.
41.

che, per parte loro, possono comporsi in un ordine ge- È cosa nota che Moral Thinking 1981, e ancor prima,
rarchico e costitutire le premesse di un ragionamento27. Freedom and Reason 1963, raccolgono, in rinnovata di-
Nel dire questo, Ross non intende che le premesse scelte gnità della dimensione sostanziale dell’etica ed oltre gli
debbano conformarsi a modelli o ad ideali che si ritrovi- abiti del naturalismo e dell’emotivismo, i segni di un’al-
no nella ragione umana, nella natura umana o che siano ternativa. Hare si tenne con la teoria meta-etica sulla
il prodotto di calcoli razionali. Già il Ross 1953 aveva, in natura dei giudizi morali nei recinti del non-cognitivi-
molti luoghi, segnalato significativamente, nelle analisi smo, ma successivamente elaborò una sofisticata teoria
all’idea di giustizia, che non ci fosse altra conoscenza che normativa di matrice utilitarista. Il suo fu un utilitari-
quella empirica, per cui i principi generali di giustizia smo rivisitato che, a partire dal criterio di massimizza-
ed i calcoli razionali di piacere, teorie giusnaturalistiche zione delle soddisfazione delle preferenze, armonizzava
e teorie utilitaristiche, fossero, parimenti, da mettersi al inutizionismo e kantismo. In breve, nella sua veduta,
bando. Per le dottrine del diritto naturale i principi-po- il pensiero morale si dispiega in due livelli, un primo,
stulati trovano il fondamento nella natura umana, sono intuitivo, in cui l’agente morale, addestrato dalla edu-
da essa deducibili, e costituiscono le premesse (assolute) cazione ricevuta, ricorre a principi prima facie semplici
di un ragionamento morale; parimenti, il pensiero uti- e generali; un secondo livello, quello critico, in cui il
litarista, da Locke a Bentham, il cui intento era stato pensiero morale seleziona i principi prima facie, risol-
quello di spazzare via le idee assolute ed a priori di giu- ve i conflitti tra di essi, e formula, con la imparzialità
stizia, di giusnaturalistica memoria, coglie dall’esperien- ed il potere di conoscenza tipici di un «arcangelo», un
za di felicità e di infelicità degli individui, un principio principio morale universale (riguardo ad una situazione
razionale guida delle azioni, il principio di utilità, e lo determinata) secondo cui ciò che l’agente è disposto a
pone a fondamento del ragionamento morale. La ra- fare in una determinata situazione dovrà essere dispo-
gione, è, dunque, per Ross, la stessa: giusnaturalisti ed sto a fare per ogni altra situazione, ad essa, simile. Non
utilitaristi pongono un postulato a premessa (assoluta) vado oltre: mi basta dire che l’utilitarismo dell’atto, nella
del loro ragionamento, ma, come ogni postulato etico, versione prescrittivista di Hare, non avrebbe sradicato
esso è metafisico, perché conoscibile per il tramite della una pesante assunto di Ross. L’arcangelo è un «osserva-
intuizione, e non per le vie della ragione28. tore ideale», un «chiaroveggente»29 che – ci dice Hare –
una volta giunto al termine della sua riflessione (critica)
Una breve annotazione, a chiusura del paragrafo. Viene darà risposta uguale a qualsiasi domanda sulla quale sia
da sè che, anche se il Ross 1953 e il Ross 1968 ebbe- possibile ragionare. È chiaro che l’arcangelo seguirà il
ro, quanto ad utilitarismo, la formulazione originale principio universale ed universalizzabile che tiene con-
dell’utilitarismo di Bentham a proprio interolcutore, si to dell’utilitarismo dell’atto. Insomma, la versione sofi-
sarebbero, di certo, tenuti stretti la autentica esigenza sticata dell’utilitarismo «critico» di Hare conferma alla
non-cognitivista anche quanto alle successive «versioni» radice, anche se arricchisce, il benthamiano principio
di utilitarismo. Il ponte con Hare viene naturale. Il Ross dell’utilitarismo quale calcolo razionale (ed universa-
1968, s’è visto, una volta «spogliatosi» del suo emotivi- le) tra piaceri, e fondamento ultimo del ragionamento
smo, aveva riesplorato dal lato della filosofia del linguag- morale.
gio, nelle sue prime e peculiari intuizioni, in continuità
e discontinuità, le analisi linguistiche di Language of Ross 1953 aveva scritto, a proposito del principio (uni-
Morals. L’altro Hare, successivo, quello che, muoven- versale) di massimizzazione: «L’assunto utilitaristico è un
do da premesse di meta-etica non cognitiviste sarebbe enorme distorsione razionalistica della vita spirituale»30.
giunto, in linea con le nuove esigenze di etica sostantiva Da non-cognitivista in filosofia morale, Ross, pur rap-
diffuse a partire della metà secolo scorso, a dire di ar- presentando la possibilità che diversi valori concorrano
gomentazione razionale in etica, per Ross, non avrebbe in un ordine gerarchico a comporre le premesse di un
colto nel segno. ragionamento morale, non può accettare la possibilità

29 R.M.Hare, Il pensiero morale. Livelli, metodi, scopi,


27 A. Ross, Direttive e norme, cit., p. 126. Bologna, 1989, p. 77. Traduzione italiana di R.M. Hare,
Moral Thinking, New York, Oxford, 1981.
28 A. Ross, Diritto e Giustizia, cit., pp. 273-279, ed in
particolare p. 276. 30 A. Ross, Diritto e Giustizia, cit., p. 276-277.
.42

3. DIREZIONE PRATICA DEL DISCORSO DIRETTIVO.

Le pagine di Ross 1968, quelle dedicate al discorso diret-


tivo e ai giudizi di valore, hanno un modo d’essere, un
metodo, il cui esito è, come s’è visto, distinguere fon-
damento (ultimo) della morale da forma del ragiona-
mento morale. Mentre il fondamento della morale è tutto
nel dominio della scelta, è atto costitutivo, e sfugge ad
ogni tentativo di analisi razionale in virtù della incom-
mensurabilità di bisogni, considerazioni e motivazioni,
il ragionamento morale, quale struttura, è possibile solo
nei termini di organizzazione di premesse, svuotate, tut-
tavia, di oggettività. Non c’è spazio nelle proposizioni di
valore, per l’oggettività, nemeno per una moderata og-
gettività, proprio a ragione dell’accettazione costitutiva.

Se si confrontano le professioni di filosofia morale e valo-


ri, degli anni Quaranta e di quelle degli anni Cinquanta
e Sessanta, si direbbe che c’è una coerente continuità di
vedute. Il Ross 1946, per le vie della epistemologia, era
giunto a dire della natura non logica delle proposizioni
di valore. Il Ross 1953, in molti luoghi dedicati al concet-
di una unica corretta conclusione del ragionamento. to di diritto valido, diritto e moralità, all’idea di giusti-
È una diversa geometria della razionalità pratica a co- zia, e non da meno ai rapporti tra scienza e politica, non
stituire lo statuto proprio, entro i difficili canoni del aveva nascosto le sue inquietudini quanto a conoscenza
non-cognitivismo, del modello di Ross. In caso di disac- oggettiva ed etica oggettiva. Veniva da sé che dottrine
cordo quanto alla fondatezza normativa di un corso d’a- di diritto nautrale, kantismo ed utilitarismo ne fossero
zione, un utilitarista sosterrebbe che solo gli argomenti travolte. Negli anni Sessanta, Ross dà una spinta siste-
universalmente consequenzialisti sono rilevanti nella di- matica alla sua filosofia del linguaggio ed ampliando, nei
scussione e necessari ai fini della soluzione; un realista profili semantici, la nozione di enunciato, realizza, con
non-cognitivista à la Ross, sosterrebbe che, una volta gli strumenti della filosofia analitica una sintesi profon-
verificata la in/esistenza dei fatti, e la in/correttezza lo- da tra teoria del discorso e meta-etica non cognitivista.
gica del ragionamento, null’altro ci sarebbe da discutere Il «perpetuo circolo» in cui la sua filosofia morale e giuri-
e che la soluzione al disaccordo quanto alla «giustezza» dica sembra riavvolgersi è quello del nichilismo teorico,
dell’azione sarebbe da affidarsi ad altri «uffici» di forza, una infelice espressione, egli stesso aveva detto, coniata
ad esempio, quelli degli argomenti, quelli del potere, da alcuni esponenti della scuola di Uppsala32. Infelice
quelli economici31. espressione, certo, perché aveva da troppo paventato l’i-
dea che ad esso, a quello teorico, avesse corrisposto un
Che il non-cognitivismo in filosofia morale riguardo alla nichilismo pratico.
scelta di direttive morali e alla risoluzione dei conflitti
morali, abbia significato, per Ross, accettazione costitu- Siamo all’ultimo punto. Si dovrebbe soggiungere che
tivamente individuale è, propriamente, corretto. Che a l’infelicità del «perpetuo circolo» c’è, non potrebbe non
partire da questo assunto teorico, si vada in direzione esserci, e che fosse viziato da pratiche effettive di rigetto
diversa, verso una pratica di indifferentismo o di nichili- di chicchessia valore morale o principio?
smo dei valori, è, significativamente, un cosa che si vedrà
nel prossimo, ed ultimo, paragrafo. Dalle pagine di Ross non è mai trapelata una idea di
scienza rinchiusa nella pace della ricerca. Piuttosto il

31 Faccio credito ad una idea di Svein Eng contenuta nel


suo Rettsfilosofi, Oslo, 2007, p. 437. 32 A. Ross, Direttive e norme, cit., p. 124.
43.

punto è se il quieto nichilismo teorico dei valori sia ri- e benessere sociale – si rincorrono nell’affannata ricer-
masto chiuso nella scienza e sia stato, come molti criti- ca di un principio assoluto d’azione. Una fallacia, si era
ci spietati del realismo scandinavo hanno sostenuto, la risposto dal suo angolo non-cognitivista, fondata sulla
più profonda sorgente da cui nascono pratiche di nichi- incommensurabilità dei bisogni e la reciproca disarmo-
lismo33. Significative, su questo punto, sono, tra le al- nia degli interessi35. L’ideale di giustizia, nelle professioni
tre, le critiche di Ross alle erronee interpretazioni d’una di diritto naturale quale criterio identificativo del dirit-
equazione tra nichilismo dei valori e nichilismo pratico to positivo, e declinato in virtù onnicomprensiva, ma-
professate, negli anni Quaranta, dal sociologo danese nifestazione del bene divino, natura umana, non dice
Theodor Geiger, e negli anni Sessanta, dal giurista nor- nulla quanto all’esigenza di giustizia. Ross non si rasse-
vegese Frede Castberg34. gna alla banalità della carica emotiva dell’ideale di egua-
glianza, suum cuique tribuere: l’eguaglianza per Ross,
In queste ultime note, prendo ad esempio le sue anali- è propriamente esigenza di eguaglianza distributiva36,
si di eguaglianza e democrazia e mi soffermo su come distribuzione concreta di vantaggi fra singoli individui
esse si atteggiano e si distendono nei modi propri del nel riconoscimento delle differenze. L’eguaglianza, non
non-cognitivismo teorico, e poi, pratico. senza un evidente memoria non-cognitivista, è per Ross
– provo a mettere insieme alcune declinazioni – forma-
Su eguaglianza. Le varianti di metafisica morale – ci ave- le in quanto il trattamento «eguale» si perfeziona con
va detto il Ross 1953 essere diritto naturale, utilitarismo la conformità, dal punto di vista procedurale, ad una
regola generale; relativa, in quanto essa è esigenza che
gli eguali siano trattati in modo eguale; e razionale, in
33 Si noti. Non fu di certo soltanto Ross a scegliere una quanto il trattamento deve essere predeterminato da cri-
trincea da cui combattere queste atroci critiche. Ross lo teri fissati dalle norme. Da queste premesse Ross, com’è
aveva avvertito bene: allora che si sarebbe provato a difen- noto, dipana una serie di formulazioni, ispirate a diversi
dere, ricordava che l’uso del termine «nichilismo valutati- parametri, non contenutistico-valorativi, di eguaglianza:
vo» e le dispute legate all’uso, avevano provenienze altre. a ciascuno secondo il merito; a ciascuno secondo il la-
In particolare, il dibattito, giornalistico ed accademico, voro; a ciascuno secondo il bisogno; a ciascuno secondo
s’era incendiato, diversi anni prima, intorno alle tesi epis-
la capacità; a ciascuno secondo il rango e la condizio-
temologiche che il maestro Hägerström, filosofo della
ne37. Ross mette alla prova e collauda i criteri di egua-
morale ed appossionato attivista in politica, aveva elabo-
rato a sostegno del suo non-cognitivismo. In questa sede glianza secondo la loro rispondenza agli assunti del suo
basterà ricordare che il «supposto» nichilismo assiologico nichilismo assiologico, li depura d’ogni istanza valora-
professato alla Scuola di Uppsala, onde si generò, si disse tiva e rende ragione ad una idea formale di giustizia, di
avere, nei pericolosi anni tra e durante le guerre, soffiato, contro ad una «fanticamente emotiva» idea materiale di
come vento, sul fuoco del relativismo morale ed incre- giustizia38.
mentato, dietro la parvenza, pretenziosa, di una imparzia-
le filosofia, l’erosione delle condizioni della democrazia. Su democrazia. Sempre negli anni Quaranta, il Ross del
Hvorfor Demokrati? aveva segnato, in esemplare difesa
34 T. Geiger, Debat med Uppsala om Moral og Ret, Lund della democrazia, d’un modo di intendere la democra-
1946, p. 1-247; A. Ross, Sociolog som Retsfilosof, in: Juristen, zia, il socialismo democratico, quello che mi pare essere
1946, p. 259-269; A Ross, Review of Frede Castberg: free- il luogo più esplicativo, come pochi, del nesso di distin-
dom of Speech in the West. Oslo-London 1960, in: Nordisk zione tra nichilismo teorico e nichilismo pratico. Per il
Tidsskrift for Rettsvitensakp, 1960, p. 224-228. A Geiger,
Ross rimproverava un fraintendimento dei contenuti de-
lla filosofia di Uppsala, quanto a proposizioni di valore
35 A. Ross, Diritto e Giustizia, cit., p. 279.
e termini di valore, tale da aver ingenerato la perniciosa
distorsione tra dimensione teorica e dimensione pratica 36 Ivi, p. 253.
di nichilismo. A Castberg, esponente di un idealismo
normativista, Ross aveva deplorato la convinzione per cui 37 Ivi, p. 254-256.
una filosofia sociale «realista» fondata sul non-cognitivis-
mo avrebbe, e di fatto, agli occhi del norvegese, aveva, 38 Su eguaglianza, cfr. A. Ross, Hvorfor Demokrati?,
implicato l’accettazione di qualsivoglia valutazione mora- København 1946. p. 142; A. Ross, Why Democracy?,
le purchè sorretta dai desideri della maggioranza. Cambridge 1952, in particolare, pp. 131-136
.44

mio speciale tema, ho solo premura di sottolineare al- «è sciocca l»obiezione secondo cui negare riconoscimento
cuni punti, anche quanto a democrazia, che mi paio- scientifico ai valori, voglia significare sbarrarsi la strada
no utili per dar conforto al filo rosso di queste pagine: che conduce al Bene e al Male e pascolare in una indiffe-
democrazia e nichilismo teorico; e poi, democrazia e rente passività»41. E poi, un monito, in un altro bel pas-
nichilismo pratico. saggio: «il filosofo non cognitivista ( ) considera la propria
morale come un atteggiamento personale, come un impe-
Comincio, ricordando le pagine del Hvorfor Demokrati?, gno «personale» cui vuole tenere fede con la propria per-
con democrazia e nichilismo teorico. Come per egua- sonalità e la propria vita, e non come una conoscenza
glianza, anche democrazia sperimenta, per il tramite impersonale e obbiettiva»42. Per quanto sia sicuramente
degli strumenti della filosofia analitica, la via del non-co- irrazionale sottoporre gli atteggiamenti morali, imme-
gnitivismo. L’arco che, nelle pagine di Ross, ricongiun- diati e non qualificati, a giustificazione ed argomenta-
ge democrazia a non-cognitivismo ha la sua chiave nella zione, per quanto la voce del mio cuore – Ross, in ciò,
non determinazione di alcun criterio che segni un per- protestava le ragioni di Kant43 - non sia altro che un
corso privilegiato verso la verità, piuttosto nella espo- atteggiamento dogmatico foraggiato dal pregiudizio, è
sizione di concettualità correnti, democrazia, e dentro possibile che un punto di vista, entro la scala dell’uo-
d’essa libertà, a verificazione analitica. La rossiana equa- mo, pur restando un punto di vista, possa, non solo
zione di democrazia e libertà ha tutto il suo campo nel- cositituire la radice profonda di un personale impegno
la complessa interrogazione, eseguita con gli strumenti di vita, ma essere condiviso da più parti44.
della definizione d’uso, riguardo al come e non al cosa.
Dunque, democrazia in senso formale, democrazia in A riprova, dunque, che l’accettazione costitutiva di di-
senso contenutistico, e da esse, democrazia in senso po- rettive morali non fosse assunta a giustificare esiti di
litico e democrazia in senso economico39. indifferentismo o di relativismo assiologico, Ross, in
consistenti pagine e lezioni, tornava a rappresentare
Ciò che l’esercizio di democrazia affida al non cognitivi- la sua professione pratica di valori. Sono le pagine in
smo è nell’ufficio dello studioso, di sgombrare il campo cui Ross, mostra che il paventato circolo di nichilismo
da forme di ragionamento in termini semi-mistici ed al- assiologico e pratico non c’è, sono le pagine che egli
legorici, indagare i fatti reali che giacciono dietro le idee dedica, in particolare, come s’è visto, ad eguaglianza
di democrazia, e ragionare in termini di effettività. Ross e democrazia.
dà un senso preciso ed univoco all’attività della scienza,
pocedere per chiarificazioni e non invocare la sua auto- In chiusura, basterà, non più che qualche piccola, e non
rità per persuadere riguardo alla correttezza delle condi- esaustiva, annotazione. Democrazia – vi scrive Ross –
zioni e alla giustezza degli atteggiamenti di individui ed è metodo, certo, ma anche compromesso; è procedura,
istituzioni. La democrazia, nel suo nucleo irriducibile, è criterio formale, principio di maggioranza, ma anche,
uno strumento, una forma di governo, un metodo poli- implicitamente, valore condiviso, compromesso, in una
tico, un procedere che dispone l’azione di chi ne prende sorta d’espansione assiologica, campo e luogo – parafra-
parte, individui e politici40. Viene da ciò il senso più so – di «tolleranza, rispetto per gli altri, volontà di dare e
profondo che è da riconoscere al suo nichilismo teorico ricevere, cura per la pace e per la comprensione, piuttosto
quanto a democrazia. che la soggezione e la guerra, insieme ad una credenza in
una qualche umanità comune, che unisca e che sia più forte
L’elaborazione di concettualità di valore, eguaglianza e
democrazia, isolate da presunte qualità non empiriche
e non rivelate da una conoscenza a priori, non costi-
tuiscono la prova perentoria dell’effettiva pratica dei
valori. Molti e significativi sono i luoghi che raccolgo- 41 A. Ross, Hvorfor Demokrati?, København 1946. Cfr. A.
no questa suggestione. Si legga, tra le pagine più vive: Ross, Why Democracy?, Cambridge 1952 (TdA).

42 A. Ross, Direttive e norme, cit., p. 124.

39 A. Ross, Hvorfor Demokrati?, cit. p. 95-99. 43 A. Ross, Diritto e Giustizia, cit., p. 348.

40 Ivi, p. 99. 44 Ivi, p. 94 (TdA).


45.

del particolare che divide»45. Democrazia è, ai suoi occhi,


nei suoi difficili anni post-bellici di rottura con comuni-
smo, socialismo, dittature, autocrazie, capitalismo priva-
to, costante esercizio di libertà, è, essa, dichiaratamente,
social-democrazia46. Nell’esercizio del suo ufficio critico,
Ross svela gli inganni di «democrazia economica», e «de-
mocrazia culturale», la prima non altro che amministra-
zione centralizzata della produzione, e non equa – s’è
visto qualche pagina fa a proposito di eguaglianza – di-
stribuzione dei benefici47, e di «democrazia culturale», la
seconda della cultura. Democrazia – questa è la certezza
suprema riconosciuta e valorativamente condivisa – per
usare una bella parola di Ross, è «forma di vita»48.

Si intravedono profili, interessantissimi, di pratica dei


«punti di vista». I profili o momenti «pratici» dell’impe-
gno, personale, di Ross, volto alla effettiva promozione
di valori, nella politica e nel diritto, è affermazione espli-
cita, ed implicita, che ha diretto questo mio lavoro49. Vale, a mio avviso, per Ross, quello che Torben Spaak,
noto studioso del realismo giuridico scandinavo ed in-
terprete del pensiero di Hägerström, scrisse a proposi-
45 A. Ross, Why Democracy?, cit., pp. 117-118 (TdA). to del «supposto» nichilismo assiologico dello svedese.
Parafraso: la pluralità di culture, di classi sociali diverse
46 Ivi, pp. v-vi. Fitte sono le pagine che Ross dedica, nel anche entro la medesima cultura spesso generano valori
suo corso di vita, da studioso e da attivista politico, al conflittuali, per cui l’accettazione del non-cognitivismo
suo programma di pratica assiologica, il «socialismo-de- etico (per Hägerström) – e per Ross, io direi, nei ter-
mocratico», e che si offrono come guida al mio presente mini della sua filosofia del linguaggio, dell’accettazione
lavoro. Segnalo, come punti d’avvio, Socialismen och de- costitutiva delle direttive morali – avrebbe condotto con
mokratien, in: Tiden 7, 1947, p.p. 392-404; Kommunismen molta probabiltà ad un incremento della tolleranza fra
og Demokratiet, København, 1945; Demokrati og la gente50.
Universitetsstyre, in: Berlingske Aftenavis» kronik, 8.
Januar 1971; Credo, in: Berlingske Aften’s kronik, 21. June
Questa affermazione, ai nostri fini, nella prospettiva
1974; non da meno, come risulta da queste mie pagine,
di congiunzione di direzione teorica e direzione prati-
il suo più celebre Hvorfor Demokrati?, cit,. ed ancora, a
testimonianza del suo impegno pratico in «compimento» ca quanto a giudizi morali in Ross, va tenuta in giusto
di una «democrazia nordica», la raccolta di lavori editi as- conto. Il non-cognitivismo e la meta-etica delle diretti-
sieme al danese Hal Koch, teologo e storico della Chiesa, ve morali, sono – potremmo dire – una riserva, dentro
Nordisk Demokrati, Copenhagen 1949. l’impianto di Ross, dalla quale leggere e ricomporre la
sua pratica assiologica.
47 A. Ross, Why Democracy?, cit., pp. 141-143

48 Ivi, p. 144; A. RossA. Ross, Hvorfor Demokrati?, Oslo


1969, p. 95. Sulle varie declinazioni di democrazia nel * Università Telematica L. da Vinci di Torrevecchia Teatina.
pensiero di Ross, ed in particolare sul concetto di demo- Università G. d’Annunzio di Chieti-Pescara
crazia quale «forma di vita» rinvio ad un mio saggio, in
corso di stampa, dal titolo: Su democrazia libertà egua-
glianza. À propos del Ross di Hvorfor Demokrati?.

49 A testimonianza del suo impegno di vita, da filosofo


non-cognitivista, quanto a democrazia e diritti umani si 50 T. Spaak, (Review of ) Legal Theory (Peter Wahlgren ed.
veda J. Evald, Alf Ross-et liv, cit., in particolare p. 159-186, 2000), in: Arkiv für Rechtsund Sozialphilosophie, 2002,
306-321. 88/2, p. 301.
.46

Ivo Miguel Barroso*


A HETEROSSEXUALIDADE COMO
CARACTERÍSTICA «SINE QUA NON»
DO CONCEITO DE CASAMENTO,
À LUZ DO «IUS COGENS»
47.

SUMÁRIO1: 1. O ARTIGO 16.º, N.º 1, DA DECLARAÇÃO


Metodologia seguida UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM
1. O artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem... Deste art.º 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos
1.1. Os conceitos de «homem» e «mulher» Direitos do Homem decorrem três requisitos para a
1.1.1. Como interpretar o enunciado «homem e existência do casamento, como conceito classificatório2:
mulher»? i A idade núbil3.
2. Análise de argumentação contrária ii A enunciação da titularidade;
2.1. Os direitos de direito de contrair casamento e iii A concomitante natureza heterossexual do
de constituir família referidos ao mesmo sujeito casamento.
3. Uma garantia institucional, subjectivada com o cor-
respondente reconhecimento de um direito a contrair As normas decorrentes desta disposição da Declaração
casamento Universal4 têm carácter de «Ius Cogens»5.
4. O artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal como
norma costumeira
4.1. A tradição histórica, antropológica e jurídica 1.1. OS CONCEITOS DE «HOMEM» E
4.2. Classificação no âmbito das normas de «Ius «MULHER», SENDO DESCRITIVOS, E, MAIS
Cogens»: uma norma que impõe obrigação «erga ESPECIFICAMENTE, EMPÍRICOS, PODEM SER
omnes» mediata por tutelar um interesse comum REPRESENTADOS COMO SIMPLES CONCEITOS
colectivizado DA EXPERIÊNCIA6, QUE FORNECE A
4.2.1. Regime jurídico aplicável MATÉRIA-PRIMA PARA O SEU CONHECIMENTO7.

5. A consequente impossibilidade de reconhecimento A Declaração Universal dos Direitos do Homem reco-


de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, celebrados lheu da realidade empírica esses conteúdos «descritivos».
noutros Estados, por parte dos tribunais portugueses
Esses factos são «moldes», desempenhando a função de
uma espécie de «transformadores da lei»8 — eles apon-
METODOLOGIA SEGUIDA tam no sentido de comportamentos interconjugados en-
tre homem e mulher.
Na nossa maneira de ver, a metodologia de análise
passa, em primeiro lugar, pela densificação do recor- Isso vem a tornar o casamento um conceito relativamen-
te conceitual de casamento, recorrendo ao instrumen- te determinado, pois alguns dos seus pressupostos (pelo
tário das várias fontes de Direito, designadamente do menos, a diversidade sexual) são definidos de modo bas-
Direito Internacional Público imperativo – que tem sido tante preciso, através desta conotação descritiva9.
muito esquecido – e também à luz das coordenadas da
Constituição de cada Estado.
1.1.1. COMO INTERPRETAR O ENUNCIADO
Só numa segunda fase, poderá ser feita a análise da even- «HOMEM E MULHER»?
tual possibilidade de haver casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Existem duas interpretações possíveis:
a. De acordo com a primeira, frisa-se que, no casa-
O presente estudo é um modesto contributo no sentido mento-acto, homem e mulher têm o direito de ca-
de considerar as fontes de Direito Internacional Público, sar entre si, mutuamente;
muito em particular as normas «iuris cogentis», que go- b. De acordo com a segunda, homem e mulher, isola-
zam de força supraconstitucional, segundo a maioria da damente, podem contrair casamento; uma pessoa,
Doutrina, entre as quais a norma do artigo 16.º, n.º 1, da em idade núbil, teria o direito de casar (com al-
Declaração Universal dos Direitos do Homem. guém, presume-se).
.48

Qual a interpretação a preferir deste enunciado? delimitação do direito a contrair casamento entre ho-
mem e mulher.
A nosso ver, claramente a primeira, pelas razões expostas
de seguida. Não vemos ser necessária uma norma proibitiva expres-
sa13. Ela seria supérflua, pois nada acrescentaria ao que já
decorre da letra do preceito. «Quod abundat non nocet».
a) Desde logo o elemento literal.
a»») O elemento da falta de «força normativa da
A segunda interpretação cabe de forma contrafeita na le- Declaração» é falacioso.
tra do preceito. Na lição de BAPTISTA MACHADO,
«quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) Segundo uma objecção possível, dir-se-ia que a referên-
comportam mais que um significado, (…) a função posi- cia a «homem e mulher» seria «descritiva de uma reali-
tiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a, ou su- dade assumida, mais do que prescritiva de uma estrutura
gerir mais fortemente um dos sentidos possíveis. É que, normativa para todos os tempos»14.
de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao signifi-
cado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo A teoria aludida, do TC sul-africano, vem a desvalorizar,
que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma de forma metodologicamente pouco aceitável, o carácter
maneira «forçada», «contrafeita». (…) na falta de outros «iuris cogentis» do art.º 16.º, n.º 1, da DUDH15.
elementos que induzam à eleição do sentido menos imedia-
to do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele
sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao b) A intenção dos autores da Declaração
significado natural das expressões verbais utilizadas (…)»10. Universal dos Direitos do Homem

Não obstante o fragmento da disposição referir «Men Também o elemento subjectivo de interpretação confor-
and women of full age (...) have the right to marry»11, é ta a interpretação objectivista: a intenção da Comissão
evidente que a interpretação literal aponta no sentido de que elaborou a Declaração Universal dos Direitos do
uma pessoa de um género poder casar com uma pessoa Homem, em 1948, seguramente nunca terá sido consa-
do outro género. grar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Por outro lado, sem prejuízo da versão inglesa da


DUDH, o certo é que a maioria das traduções em lín- c) O elemento lógico
guas românicas, incluindo as línguas oficiais das Nações
Unidas, utilizam o verbo na forma reflexa («casar-se»)12. Casar implica casar com uma outra pessoa. Ora, com
Foi, pois, criada uma tradição interpretativa. quem havia de ser? Obviamente homem e mulher entre
si, mutuamente.
Embora estas traduções não tenham a natureza de uma
interpretação autêntica do texto oficial, elas não podem
deixar de ser tidas em conta, estando longe de ser inó- d) O elemento sistemático
cuas em termos de subsídios interpretativos.
A formulação «o homem e a mulher» está longe de ser
a») Uma posição diferente seria a de sustentar que, do acidental ou aleatória, num texto como a DUDH, fruto
art.º 16.º, n.º 1, não se inferiria uma proibição. Poder- de laboriosa preparação16.
se-ia argumentar trata-se de uma declaração de direitos,
com normas permissivas, sendo as normas proibitivas Bem ao invés do que se pretende inculcar, verifica-se
excepcionais. Destarte, o casamento entre pessoas do que é a única vez que a DUDH a refere no articu-
mesmo sexo nem seria permitido nem proibido. lado, ao prever a titularidade; o elemento sistemático
de interpretação permite destacar esta fórmula rara de
Este argumento, que entronca na terceira posição, é pu- enunciação da titularidade17, bem diversa de todas as
ramente formal, pois já decorre do art.º 16.º, n.º 1, a restantes:
49.

«Todos os seres humanos» (artigos 1.º, 1.º par., e 2.º, 1.º 2. ANÁLISE DE ARGUMENTAÇÃO CONTRÁRIA
par.); «Todo o indivíduo» (arts. 3.º, 15.º, n.º 1), «Todos os
indivíduos» (art.º 6.º); «Todos» (arts. 7.º, 23.º, n.º 2, 27.º,
n.º 2); «Toda a pessoa» (arts. 8.º, 10.º, 11.º, n.º 1, 13.º, ns. 2.1. OS DIREITOS DE DIREITO DE CONTRAIR
1 e 2, 14.º, n.º 1, 18.º, 20.º, n.º 1, 21.º, ns. 1 e 2; 22.º, 23.º, CASAMENTO E DE CONSTITUIR FAMÍLIA
ns. 1 e 4, 24.º, 25.º, 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 28.º; também REFERIDOS AO MESMO SUJEITO
17.º, n.º 1); «Ninguém» (arts. 4.º, 5.º, 9.º, 11.º, n.º 2, 12.º,
17.º, n.º 2, 20.º, n.º 2). Um possível escolho a esta interpretação seria que o art.º
16.º, n.º 1, da DUDH enuncia dois direitos diversos (o
Tendo as palavras sido ponderadas «como diamantes»18, direito de contrair casamento e o de constituir famí-
não se vê como pretender negar significado autónomo a lia) ligados a um mesmo sujeito (homem e mulher);
essa diferença. pelo que se poderia aventar haver uma imperfeição da
DUDH.

e) O elemento teleológico Em nosso entender, essa objecção não procede, median-


te uma interpretação correcta da disposição.
A referência a homem e mulher está longe de ser inó-
cua — ela expressa um dever ser; é um fragmento Do ponto de vista literal, o art.º 16.º, n.º 1, da DUDH
normativo que se liga ao acto de celebração mútua do reconhece ao homem e à mulher, unidos pelo casamento,
casamento. o direito de constituir família (este segundo direito foi
inserido posteriormente, nos trabalhos preparatórios)21.
Nem se diga que a referência a «homem e mulher» teve
o intuito principal de salvaguardar o assentimento, A dúvida que pode colocar-se é a de se se pretende incul-
principalmente das mulheres, de casar antes de atingi- car que o casamento é a única «fonte» de relações fami-
rem idade núbil (proibindo apenas os casamentos entre liares. Duas respostas têm sido avançadas:
crianças); que o elemento teleológico não visou excluir a. A teoria ou interpretação «intramatrimonial» parte
casamentos entre pessoas do mesmo sexo. de uma relação unívoca de dependência do direi-
to de constituir família relativamente ao direito de
Uma interpretação que pretenda inculcar que, apesar contrair casamento; este seria a única fonte de rela-
dessa afirmação de titularidade entrecruzada, não fi- ções familiares22;
caram precludidos outros «casamentos» ou «formas», Esta concepção tradicional é aparentemente afir-
no mínimo atípicas, de casamento, não tem o mínimo mada em preceitos de Direito positivo tradicionais
de apoio da letra nos trabalhos preparatórios e, menos - v. g., em Autores civilistas oitocentistas23, art.º
ainda, na letra do preceito. Uma tal leitura carece, por 1056.º do Código de Seabra; Decreto n.º 1, de 25 de
isso, de qualquer credibilidade científica. Dezembro de 1910 (Lei do casamento como contrato
civil)24; mais explicitamente ainda, na Constituição
É evidente que os Estados estão obrigados reconhecer o de 1933 (embora não isenta de contradições, pois
casamento entre homem e mulher, apenas e tão-só. vem a considerar todas as faculdades – casamento-
-acto, nascimento dos filhos legítimos, a sustenta-
ção e educação destes – como a «constituição de
f) O elemento genético família»25), no Projecto apresentado pela Aliança
Democrática na revisão de 1982 («Todos têm o di-
O elemento genético19 dos trabalhos preparatórios: reito de constituir família, contraindo casamento»26)
corrobora plenamente a intenção: a fórmula inicial – e na Constituição italiana de 1947 («a República re-
«Todo o indivíduo» – foi substituída por «o homem e a conhece os direitos da família como sociedade natural
mulher»20. fundada no matrimónio»27);
b. A concepção «supramatrimonial», rejeitando a re-
ferida relação de dependência, reconhece o direito
.50

de constituir família, não só dentro, mas também designadamente, ao nível da família natural (a que de-
fora do casamento. riva apenas do facto biológico da geração) e à família
adoptiva38.
As declarações teóricas do Legislador não são, basica-
mente, actividade normativa, mas científica e, como tal,
sujeitas à experimentação e ao escrutínio daquilo que é 3. UMA GARANTIA INSTITUCIONAL, SUBJECTIVADA
verdadeiro ou falso28 (as correntes doutrinais não devem COM O CORRESPONDENTE RECONHECIMENTO
tentar «capturar» o legislador em seu favor, mas prosse- DE UM DIREITO A CONTRAIR CASAMENTO
guir a sua luta por outros meios29).
O casamento em si configura uma garantia institucio-
O exemplo italiano é típico de uma mera afirmação pro- nal39, dada a dimensão histórica do casamento40, mas
clamatória da primeira teoria, que, porém, «não resiste a não só.
alguns momentos de reflexão»30:
Não está apenas em causa uma garantia de instituto41,
Desde logo, não é comprovável pelo próprio Direito dirigida aos Estados destinatários para conformarem o
positivo, que, por um lado, consagra admite outras casamento.
«fontes» de relações familiares (como a filiação natural,
a adopção31; a tutela e, embora o ponto seja contro- Desde logo, é hoje relativamente pacífica a subjectiviza-
vertido, certas uniões de facto); e, por outro, prevê os ção da garantia institucional do casamento, com o cor-
casamentos «in extremis», que, pela sequente morte de respondente reconhecimento de um direito a contrair
um dos cônjuges, pode não dar origem a qualquer s casamento42.
ociedade familiar32.
Não seria concebível pensar de outra forma, pelo
Uma vez que não tem sustentabilidade, esse aspecto da seguinte:
definição terá de ser relegado a uma mera orientação, a. Desde logo, a DUDH não se dirige apenas aos
senão mesmo toda desconsiderada pelo intérprete, va- Estados; dirige-se – diremos até sobretudo – aos
lendo como uma referência pela «via negativa», pois é indivíduos43;
antagónica com outras opções legislativas33. b. O direito de contrair casamento tem uma estrutu-
ra diferente de outros direitos, como o direito de
Na DUDH, apesar de a letra dos números 1 e 3 do art.º propriedade, que pode ser exercido singularmente,
16.º fazer eco da concepção tradicional, o elemento siste- apenas por um indivíduo;
mático parece arredar inevitavelmente a primeira teoria, c. Se a DUDH veda os casamentos a contraentes com
pois admite filhos nascidos fora do casamento34. idade inferior à idade núbil; se proíbe discrimina-
ções negativas; então não se vê como arredar que
Também o elemento histórico aponta no sentido de a consagre que o casamento é celebrado entre um ho-
concepção «intramatrimonial» não ter sido consagrada35. mem e uma mulher, vedando outros tipos de con-
traentes (casamento entre pessoas do mesmo sexo,
Qual será a interpretação preferível, à luz da DUDH? de pessoas com animais, etc.).

Em nosso entender, atendendo ao sujeito comum «o ho- Ao consagrar que o direito a contrair casamento é entre
mem e a mulher», julga-se que a DUDH consagra, no homem e mulher, a DUDH opera a delimitação do âm-
art.º 16.º, n.º 1, o direito de os cônjuges constituírem bito normativo desse mesmo direito;
família. d. Como explica SÉRVULO CORREIA, «Nem sem-
pre (…) as garantias institucionais se encontram to-
Sem prejuízo disso, do art.º 16.º, n.º 1, da mesma talmente dissociadas dos direitos. A propósito deste
Declaração, poderá ser extraído, «a fortiori», por via relacionamento, podem identificar-se pelo menos dois
implícita, ou eventualmente mediante interpreta- ângulos: por um lado, há que saber se um direito pode
ção extensiva36, um direito genérico de constituir ser rodeado de uma garantia institucional; pelo ou-
família37, não só ao nível conjugal, mas também, tro, cumpre perguntar se e, em caso afirmativo, como
51.

pode uma garantia institucional conduzir ao reconhe- harmónico, ao mesmo tempo que vai formando o ideal de
cimento de um direito»44. cada nação e de cada povo»53.
Assim, conforme se aludiu, a garantia institucio-
nal do casamento, enquanto dimensão de Direito Apesar de não exacerbarmos a força normativa da tradi-
objectivo, é incindível do direito a contrair casa- ção54, esta última é um dado cultural (e não só estrita-
mento45, pois a distinção não deve ser levada «de- mente religioso) a que o Direito não poderá ser alheio.
masiado longe»46, não cabendo aqui uma «excessiva Bem pelo contrário, julga-se que o Direito apresenta
compartimentação»47. Trata-se de uma «garantia uma estrutura temporal de historicidade55, não sendo
institucional de um direito humano»48. geralmente o horizonte do presente formado à margem
do passado56.
O art.º 16.º, n.º 1, não expressa apenas uma garantia ins-
titucional do casamento, reitere-se. Diremos até que a Embora o conteúdo da tradição não seja estanque57, mas
ordem é a inversa: consagra o direito de homem e mu- antes variável — pois cada povo, em cada época, tem
lher contraírem casamento; e só a partir daí decorre a um modo peculiar de «ver»58 —, a verdade é que, em
dimensão objectiva do instituto do casamento. toda a sua evolução histórica, fica demonstrado que o
casamento – pelo menos como instituição59 - tem por
A garantia institucional não se refere, sem mais, ao di- objectivo a união entre pessoas de sexo diferente, sendo
reito a contrair casamento49 — individualiza o homem este um pressuposto estrutural dessa instituição, «uma
e a mulher como os sujeitos entre os quais o casamento «invariável antropológica», presente desde época remota»60,
é celebrado. há milénios, muito recuada na Humanidade.

Aliás, a Declaração Universal (nem a CRP) distingue ex- Com efeito, já no período do Homem Neanderthal (a
pressamente entre direito humano e garantia institucio- partir de 800.000 antes de Cristo) se denotam relações
nal, pelo que o regime jurídico aplicável será idêntico, estáveis e de entreajuda entre macho e fêmea61 em tudo
sobretudo no que se refere à vinculação das entidades similares ao casamento62.
públicas, mormente quanto à preservação do conteúdo
essencial50. II. Essas relações perduraram e foram aprofundadas no
«Homo sapiens» e no «Homo sapiens sapiens», tendo se-
O argumento segundo o qual o art.º 16.º, n.º 1, não guimento no período do Paleolítico, em que as socieda-
proibiria os casamentos entre pessoas do mesmo sexo des eram de caçadores recolectores.
(pois o «Ius Cogens» visaria proteger a dignidade huma-
na e não a natureza de institutos jurídicos) não colhe, Registaram-se mudanças radicais em relação aos perío-
por isso. dos anteriores.

Com efeito, a organização social das primeiras tribos


4. O ARTIGO 16.º, N.º 1, DA DECLARAÇÃO de caçadores teve consequências sobre a sua existência
UNIVERSAL COMO NORMA COSTUMEIRA quotidiana63.

A disputa pelas mulheres do sexo feminino desanuviou-


4.1. A TRADIÇÃO HISTÓRICA, -se. Na realidade, praticamente desapareceu.
ANTROPOLÓGICA E JURÍDICA
Com efeito, embora a data não seja inteiramente preci-
I. A «cadeia da tradição»51-52, não só é a fonte, mas vem sa, a mulher passou a diferenciar-se das fêmeas animais,
também corroborar o que já está contido no art.º 16.º, tornando-se sexualmente receptiva durante todo o ano.
n.º 1, da Declaração.
Diferentemente das fêmeas dos mamíferos – em ge-
«[É] a família [designadamente a oriunda do casamento] ral, mais reservadas, menos facilmente excitáveis, para
que nos traz o espírito do passado, que nos vai transmitindo melhor preservarem a sua espécie, economizando os
as tradições e experiências humanas, permitindo o progresso seus recursos produzindo menos óvulos -, a mulher
.52

tem um estado de receptividade permanente64. Essa III. No período do Neolítico (a partir de 10.000 a.C.),
disponibilidade bastante maior permitiu que fossem regista-se uma estatuária marcadamente feminina:
estabelecidas a monogamia e o seu corolário: a vida deusas de fertilidade, deusas-mães. Entre 7.000 a.C.
de família65. e 3.000 a.C., a figuração feminina tornou-se ainda
mais frequente, em toda a Europa e Próximo Oriente.
Com efeito, uma mulher sexualmente receptiva du- Com efeito, estas foram as primeiras populações agrí-
rante todo o ano é menos objecto de rivalidades entre colas. Daí que a fertilidade assumisse relevo acentua-
os homens66. do no contexto da sociedade sedentarizada. A noção
de Mãe Terra ou Grande Mãe (de que já tinha havi-
Assim, os vínculos que uniam os homens das primeiras do manifestações nos períodos anteriores) teve amplos
tribos terão sido radicalmente diferentes dos mantidos desenvolvimentos74.
pelos machos dos grupos animais (sendo que, nestes, há
conflitos permanentes entre jovens e velhos, entre domi- IV. Na Idade do Cobre (Calcolítico), o advento da escri-
nantes e dominados67). ta cuneiforme na civilização suméria (que floresceu por
volta de 3.500 a.C.) modificou radicalmente a natureza
Através da evolução aludida, o homem encontrou-se li- do casamento75.
berto de manifestar a sua agressividade perante os seus
congéneres. Na literatura suméria, haja em vista poemas como o
«Casamento de Dumizi»76 ou o «Casamento sagrado de
Trata-se de uma revolução biológica e sociológica con- Iddin-Daggan»77.
siderável, que favoreceu o estabelecimento de relações,
até então inéditas, entre o homem e a mulher. A festa de noivado precedendo a cerimónia do casa-
mento terá sido inventada na civilização de Creta, em
A aludida nova organização social favoreceu a criação de cerca de 3.000 a.C. É uma oportunidade para quem
casais baseados na vida em comum de um homem e de trabalhava com os metais fazer ornamentos apropria-
uma mulher68. Este sistema era, verosimilmente, mais dos para a ocasião.
adaptado à nova sociedade69.
Repare-se na beleza encantatória das palavras da esposa,
O hominídeo pôde começar a estabelecer com a sua nestes versos, escritos durante o Império Novo egípcio:
companheira relações assentes numa repartição das ta-
refas domésticas. As relações entre homem e mulher «meu coração é à tua medida,
tornaram-se também mais «corteses»70. para ti faço o que ele quer,
quando estou nos teus braços.
Uma teoria científica defende também que houve uma Tuas saudades são a pintura dos meus olhos,
maior tranquilidade maior em relação ao nascimento ao ver-te brilham meus olhos;
dos filhos, com uma gestação mais breve71. a ti me estreito para te mirar,
amado dos homens, que meu coração governa!»
Deste modo, e também fruto do desenvolvimento cog-
nitivo, há registo, desde o Paleolítico superior, há mais «Cada olhar com que me olhas
de 20.000 anos, da existência de estátuas de deusas me sustenta, mais do que pão e vinho.»
da fertilidade e pinturas murais, aludindo às funções
reprodutivas da mulher72. As palavras que a mulher grega (e também, aparente-
mente, a romana, na «coemptio»80) proferia, ao dar en-
O homem e a mulher puderam adaptar-se mais facil- trada na casa do esposo81, são bem elucidativas:
mente aos diferentes meios ambientes, passando pau-
latinamente essa herança genética para os seus filhos, «Ubi tu gaius, ego gaia»-.
gerando uma «hereditariedade diversa variada», que é -
juntamente com o nosso património cultural - «a coisa Na moral republicana, anterior ao período do Império
mais preciosa que pode existir no mundo. É ela que garante e do estoicismo, o acto de contrair casamento constituía
a sobrevivência da espécie humana»73. mesmo um dos deveres do cidadão romano84.
53.

V. «O matrimónio é o retrato admirável da humanidade c. As noções de casamento religioso cristão, expres-


unida nos braços do amor e do dever»85. sas pelos diversos Padres da Igreja, desde o final do
Império Romano, passando pelo período medieval
Três obras cimeiras da cultura ocidental — o «Cântico (no caso da Igreja Católica, expressas nos Códigos
dos Cânticos»86, o par Penélope e Ulisses na Odisseia, a de Direito Canónico de 191798 e de 1983, bem como
ópera «Fidelio» de BEETHOVEN — exaltam o amor no Concílio Vaticano II99);
conjugal heterossexual87. d. Na Doutrina civilista100;
e. A definição foi mantida no casamento civil: veja-
Noutras obras, o objectivo da acção dos protagonistas -se a definição de PORTALIS, na Exposição de
é a celebração do casamento. Noutros, nem tanto: há motivos do Código Civil francês, sessão do Corpo
desencontros entre o senso comum e a tradição do casa- Legislativo do ano IX101;
mento rápido, por um lado, e a tentativa de estabelecer f. ntre nós, no Código de Seabra (art.º 1056.º) e no
um padrão de «racionalidade» reflexiva para o casamen- Decreto n.º 1, de 25 de Dezembro de 1910 (Lei do
to, assim adiando e desperdiçando oportunidades88. casamento como contrato civil) (art.º 1.º).

VI. «Como é belo o casamento puro e verdadeiro, o de dois ... Historicamente, não é verdade que a heterossexua-
seres iguais, associados na alegria e no sofrimento, em busca lidade no casamento tenha um fundamento unicamente
das eternas verdades humanas» (DUHAMEL). religioso.

Adaptando um pensamento do Professor MANUEL Com efeito, se é verdade que a tradição judaica (bem
GOMES DA SILVA, podemos interpretar as palavras como a posterior tradição cristã, a partir do Imperador
da mulher grega do seguinte modo: CONSTANTINO) tem na sua base a celebração reli-
giosa, esquece-se, contudo, a relevantíssima influência
«[E]m breve se apagam o «eu» e o «tu» individuais, para do Direito Romano, da República e de grande parte do
se votarem os cônjuges a um «nós», em cujo bem se dissolve período imperial (até ao Imperador CONSTANTINO
o de cada consorte, por tal forma que a maior dificuldade ter proclamado a religião cristã como oficial do Império
será a de distinguir o que cada um faz para a felicidade Romano), que era a tal alheio.
própria ou alheia»89.
O conceito de casamento - presente na definição legal
No dizer de PLUTARCO, «[o] amor, tal como dois licores do artigo 1577.º do Código Civil, até 2010, e em tantas
que se misturam, produz uma efervescência, uma perturba- outras - tem um substrato histórico, do qual o Direito
ção que, ao fim de um momento, se apazigua, se precipita Romano foi um esteio, amiúde esquecido, muito para
e estabiliza. além das mencionadas questões de índole religiosa102.

«Só conhecem a «fusão total» os esposos amorosos. Os ou- A historicidade do Direito matrimonial, na sua totalida-
tros amores parecem-se com esses encontros, com esses toques, de, não pode ser ignorada, como fontes da actual cultura
com essas combinações de átomos acompanhadas de choques ocidental e até mesmo mundial.
e seguidos das separações brutais de que fala Epicuro. Tais
uniões não conseguem nunca essa unidade perfeita e com- ... Não se estamoteia que houve, paulatinamen-
pleta do amor conjugal»90-91. te ou bruscamente, alterações à instituição do casa-
mento (v. g., a progressiva exigência do registo, com
VII. Poder-se-ia citar as definições de casamento em o Cristianismo, fazendo evoluir a instituição do ca-
tempos tão diversos: samento no Direito Romano, que, em geral, não fa-
a. No Direito Romano92, v. g., a de HERENNIUS zia essa exigência, a par da concomitante proscrição
MODESTINUS93; no Direito Romano dos «casamentos clandestinos»103; a instituição do
Justinianeu94; casamento civil (embora com regime próximo do ca-
b. Na Idade Média, PEDRO LOMBARDO95, samento religioso); o alargamento da titularidade a
HUGO DE SAINT-VICTOR («legitima societas todos, concomitantemente com a abolição progressiva
inter virum et feminam»96); nas «Siete Partidas» de da escravatura104; a clarificação da necessidade de um
AFONSO X97; acordo expresso da noiva para contrair casamento105
.54

(sem interferência paternal ou tutelar); em matéria de convenções internacionais sobre direitos humanos,
impedimentos, da igualdade de estatutos entre homem que a seguiram, e que transcreveram esse enunciado: o
e mulher, reduzindo e eliminando os poderes do mari- do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
do em relação à mulher, e, bem assim, a menoridade a (art.º 23.º, n.º 1); em sistemas regionais, a Convenção
que a mulher se encontrava confinada, no casamento Europeia dos Direitos do Homem (art.º 12.º) e a
- pesando a autoridade marital sobre a pessoa da mu- Convenção Americana sobre os Direitos do Homem, de
lher - e também na sociedade em geral; a abolição dos 1969 (art.º 17.º, n.º 2)112-113.
obstáculos ao casamento inter-racial).
O exposto que comprova o carácter costumeiro da ca-
Todavia, essas modificações foram sempre feitas no pres- racterística da heterossexualidade do casamento.
suposto fixo e no quadro da heterossexualidade.
... Este argumento, de fácil verificação e de sensa-
Ora, a Lei n.º 9/2010 não teve em conta a perspectiva tez, leva, pois, à conclusão da existência de uma norma
histórica na Legística formal e material106. costumeira, quer ao nível internacional, quer mesmo ao
nível do costume interno de cada Estado:
.. Como é sabido, o Costume tem a sua base essencial
em valores culturais107. Se o art.º 16.º, n.º 1, não fosse uma norma de «Ius
Cogens» (e também costumeira nos diversos orde-
Da tradição cultural resulta uma presunção de dever ser. namentos jurídicos internos), então como justificar
que todos, até 1989, e, a partir desta data, a esma-
Inicialmente, durante o século XIX e até ao início do sé- gadora maioria dos ordenamentos jurídicos internos
culo XX, tal norma não tinha respaldo nas Constituições do Mundo (com apenas menos de dez excepções,
formais108, mas apenas ao nível no Direito eclesiástico, desde 1989), inclusivamente ao nível constitucio-
designadamente o Direito canónico - que regulava a nal, só reconheçam que o casamento é entre homem
única forma de casamento admitida em vários Estados e mulher?
europeus confessionais -, da legislação civilística.
... Julga-se, pois, existir uma norma costumeira114,
Quando as garantias institucionais foram alcandoradas recolhida na Declaração Universal dos Direitos do
ao nível constitucional, começaram a ser plasmadas ao Homem, que possui carácter «iuris cogentis» desde há
nível constitucional formal (v. g., na Constituição de muito115.
Weimar (art.º 119.º, 1.º par., 2.º período), o pressuposto
da heterossexualidade foi consagrado expressamente em «[A] vontade colectiva (isto é, da Comunidade e não de
várias Constituições (v. g., na Constituição japonesa de cada um) dos Estados também tem um papel importantís-
1946 (art.º 24.º, 1.º par.), entre muitas outras109), bem simo, pois, regra geral, cabe a estes a decisão de criar pre-
como na legislação ordinária110. cedentes que levam à formação da norma costumeira»116.

Por outro lado, é entendimento comummente aceite de Por outro lado, como é fácil de verificar existe um enrai-
que, mesmo sendo a Constituição silente em relação à zamento social de forma a surgirem expectativas quanto
heterossexualidade, esta se afigura necessária111. ao seu respeito117.

Os exemplos de Constituições que seguem a formulação ... Não se afiguraria possível uma interpretação evo-
da Declaração Universal dos Direitos do Homem e de lutiva da primeira parte do art.º 12.º da Convenção
ordenamentos jurídicos que, apesar de não o fazerem, Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)118.
se entende que o casamento é celebrado entre homem
e mulher, são múltiplos e comprovam, «ad nauseam», a Em sentido contrário, SUSANA ALMEIDA refere: «a
existência de normas costumeiras internas (apoiadas ou letra do art.º 12.º não exige que um homem e uma mulher
não em disposições da Constituição instrumental). casem um com o outro, o que confere flexibilidade suficiente
ao dispositivo de modo a permitir a sua interpretação di-
... O enunciado do art.º 16.º, n.º 1, da DUDH vi- nâmica no sentido de salvaguardar o direito ao casamento
ria a ser utilizado por várias Declarações da ONU e homossexual»119.
55.

Com o devido respeito, este raciocínio tem algumas alegada imposição de uma «ética especificamente religio-
fragilidades: sa» a toda a sociedade - a qual deveria ser repudiada,
i Em primeiro lugar, não nos parece que caiba na mediante a invocação do princípio da separação das
letra do art.º 12.º da Convenção Europeia dos confissões religiosas do Estado e da neutralidade ideoló-
Direitos do Homem120; gica do Estado»128. Trata-se, antes de mais, da decorrên-
ii Em segundo lugar, ignora o elemento sistemático cia de uma norma de «Ius Cogens».
da fórmula única utilizada na CEDH, na enun-
ciação da titularidade (à semelhança, de resto, Julga-se poder ir mais longe: a heterossexualidade
da DUDH); no casamento é um dos pontos firmes da História da
iii A interpretação actualista e evolutiva, encetada pelo Humanidade dos últimos milénios.
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, impli-
ca que, para alcançar esse desiderato, adaptando ... Outro dos valores é o da é o da «ponderação mini-
a Convenção à evolução dos usos e costumes das mamente equilibrada dos interesses em conflito»129.
mentalidades, o mesmo Tribunal leve em conta a
evolução do Direito interno da maioria dos Estados Julga-se que a norma tutela valores e interesses de vária
partes121; que, como é sabido, consagra a regra da ordem130.
heterossexualidade para a celebração do casamento.
iv Por último, a Autora parece esquecer que a interpre- ... Regime jurídico aplicável
tação encetada pelo TEDH não é nesse sentido122.
I. As diferenças de regime entre as normas pertencentes
às normas «iuris cogentis» que impõem obrigações «erga
4.2. CLASSIFICAÇÃO NO ÂMBITO DAS omnes» mediatas por tutelarem um interesse comum co-
NORMAS DE «IUS COGENS»: UMA lectivizado, e as que, tutelando um interesse colectivo,
NORMA QUE IMPÕE OBRIGAÇÃO «ERGA impõem obrigações «erga omnes» imediatas (como ficou
OMNES» MEDIATA POR TUTELAR UM explanado), consistem no seguinte:
INTERESSE COMUM COLECTIVIZADO i A impossibilidade de derrogação;
ii Possibilidades mais estreitas de modificação: uma al-
Trabalhando com a classificação proposta por teração desta norma de «Ius Cogens» encontra-se su-
EDUARDO CORREIA BAPTISTA123, distinguindo jeita a bem maiores dificuldades, por comparação
entre normas «iuris cogentis» que impõem obrigações com as da primeira espécie; devido ao aludido fun-
«erga omnes» mediatas por tutelarem um interesse co- do ético, exigiria mais do que simples violações131.
mum colectivizado (não compostas por interesses que Sendo uma norma assente em valores essenciais, é
dizem respeito apenas aos Estados), e as que, tutelan- muito mais resistente a práticas contrárias132. Com
do um interesse colectivo (composto pela soma dos in- efeito, não se trata de uma norma («iuris cogen-
teresses privados de cada Estado), impõem obrigações tis») de conteúdo dispositivo, mas imperativo. Há
«erga omnes» imediatas, as normas «de» e «sobre» direi- um imperativo ético, subjacente à norma de «Ius
tos humanos inserem-se inequivocamente na primeira Cogens», que proíbe casamentos entre pessoas do
categoria. mesmo sexo, que impede que o legislador possa pôr
termo à tradição costumeira.
Estas normas dizem respeito ao ser humano124, incidem
sobre os seus interesses125 – e também sobre os da colec- II. Como norma de «Ius Cogens», o art.º 16.º, n.º 1, 1.ª
tividade, nas garantias institucionais -; ao contrário das parte, da DUDH opera autonomamente, como limite
primeiras, têm um fundo ético126. ao poder constituinte, na elaboração da Constituição
instrumental e na consideração de outras fontes da
Em relação ao casamento, recorde-se que nele «se fun- Constituição formal (poder constituinte originário),
da, como um dos seus princípios absolutos, a moralidade de bem como ao poder constituinte derivado, ao longo das
uma colectividade»127. revisões).

Ao contrário do que certa Doutrina pretende, o pressu- Pelo menos, como limite transcendente (ou supra-
posto da heterossexualidade, no casamento, não é uma constitucional)133, julga-se que o pressuposto da
.56

heterossexualidade não poderia ser infirmado pelo pessoas do mesmo sexo pretensamente equivalentes ao
Legislador constituinte, sob pena de nulidade134-135. casamento144).

Por maioria de razão, também actos, praticados no Qualquer invocação da liberdade de circulação de
exercício de outras funções do Estado – constituídas pessoas, no âmbito de Estados membros da União
-, estão vinculados (a decisão do TC sul-africano de Europeia145, é desconhecedora de normas superiores, de
2005136 e a lei do mesmo Estado, de 2006, são, pois, «Ius Cogens».
nulas, em face do «Ius Cogens»137, à semelhança de
outras aparentadas138). Aliás, se um acto administrativo estrangeiro (de celebra-
ção do «casamento» civil) é juridicamente nulo, segundo
III. A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos o ordenamento de origem146, sendo em absoluto privado
do Homem não obsta a esta posição. de quaisquer efeitos jurídicos, então seria insustentável
(lógica e juridicamente) que tal acto pudesse produ-
O pressuposto da diversidade sexual foi reconhecido em zir efeitos, segundo determinação da lei do Estado de
vários arestos139. «acolhimento»147.

Está, pois, longe de haver uma Jurisprudência clarivi- .. Um outro instituto potencialmente aplicável seria
dente e pacífica. o da ordem pública internacional do Estado português
(artigos 22.º, n.º 1, 1651.º, n.º 2, 1668.º, n.º 2, do Código
Por isso, o argumento, segundo o qual a tese que perfi- Civil, )148, por violar a Constituição portuguesa (art.º
lhamos não tem apoio jurisprudencial, não colhe. 36.º, n.º 1, conjugado com o art.º 16.º, n.º 1, da DUDH,
por força da regra interpretativa do art.º 16.º, n.º 2, da
CRP149)150.
5. A CONSEQUENTE IMPOSSIBILIDADE DE
RECONHECIMENTO DE CASAMENTOS Todavia, para além de ser mais restritivo, referida a situa-
ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO, ções invulgares de violação do cerne do Direito nacio-
CELEBRADOS NOUTROS ESTADOS, POR nal151, trata-se de uma qualificação do Direito interno.
PARTE DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Ora, o que está em causa é a violação de uma norma
Poder-se-á colocar a questão num tribunal português: internacional imperativa.
deverá este reconhecer o casamento celebrado entre pes-
soas do mesmo sexo, ao abrigo da lei pessoal do nubente? À luz do «Ius Cogens», independentemente do modo
como o Direito interno a perspectiva, a norma «iuris
A nosso ver, a resposta apenas pode ser negativa; seria in- cogentis» terá sempre prevalência. Assim, o juiz deve o
correcto considerar o Direito estrangeiro fosse um mero acto em sentido contrário; mesmo, se necessário, oficio-
«facto»140. samente, no caso de a violação não ser invocada152)153-154.

Existe uma violação grosseira do Direito Internacional Nem sequer se trata de «costume estrangeiro» mera-
costumeiro imperativo141. Esse casamento é (no mínimo) mente interno (em relação ao qual poderia ser difícil de-
automaticamente nulo, à face da lei pessoal (admitindo terminar a existência e o conteúdo155), mas de costume
o monismo com primado do Direito Internacional)142, internacional.
pelo que esta indagação não deverá deixar de ser feita
por um tribunal português. .. Note-se que não há aqui um controlo da consti-
tucionalidade, à luz da Constituição que encima a lei
Não deve haver, assim, qualquer aplicação directa, ou pessoal dos pretensamente «casados»156.
mesmo analógica - ainda que mitigada -, das normas de
conflitos reguladoras do casamento143 (no Direito portu- Esse controlo externo é supérfluo, em face da violação
guês, por isso, não devem ser aplicadas analogicamente das normas supraconstitucionais157.
as normas de conflitos dos artigos 49.º ss., a pretexto de
serem questões do âmbito da lei pessoal, às uniões entre
57.

Em todo o caso, julga-se que as normas internas, que Cumulam-se assim a violação de norma constitucional
declaram o casamento como sendo celebrado entre ho- com a violação de norma «iuris cogentis».
mem e mulher, serão de aplicação imediata158, em con-
curso real com o seu carácter «iuris cogentis». Um tribunal português deve recusar o reconhecimento
de um casamento de pessoas do mesmo sexo, não com o
.. Em relação aos Estados federados norte-americanos primeiro fundamento, mediante a apreciação da consti-
que adoptaram a solução do casamento entre pessoas do tucionalidade, mas pelo caminho mais directo da viola-
mesmo sexo, existe também uma dupla violação: ção de uma norma pertencente ao «Ius Cogens».
a. De uma norma de «Ius Cogens»;
b. De Direito Internacional pactício: o art.º 23.º, n.º * Mestre em Direito e Assistente da Faculdade de Direito
1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e da Universidade de Lisboa.
Políticos, bem como a Convenção Americana so-
bre os Direitos do Homem, de 1969159.

Um tribunal português deve recusar o reconhecimento,


com o primeiro fundamento.
.58

NOTAS ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico (Fundação


Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1965), in IDEM, Obra
1 ABREVIATURAS: anot. = anotação; art.º / art. = arti- dispersa, vol. II, Scientia Iuridica, Braga, 1993, n.º 15,
go; arts. = artigos; Cap. = Capítulo; CC = Código Civil pg. 47; JOSÉ ADELINO MALTEZ, Curso de Relações
de 1966; CRP = Constituição da República Portuguesa, Internacionais, Principia, São João do Estoril, 2002, 1.ª
de 1976, com incorporação das alterações das sete leis ed., n.º 4, pgs. 76-77; KARL ENGISCH, Introdução ao
de revisão constitucional; diss. = dissertação; ed. = edi- pensamento jurídico (original alemão: Einführung in das
ção; DUDH = Declaração Universal dos Direitos do juristische Denken, 8.ª ed., Stuttgart, 1983), tradução de
Homem, aprovada por Resolução da Assembleia Geral J. BAPTISTA MACHADO, 6.ª ed., Fundação Calouste
da Organização das Nações Unidas, em Dezembro de Gulbenkian, Lisboa, 1988, pg. 211. RADBRUCH alude a
1948; n.º = número; ns. = números; org. = organização; conceitos pré-jurídicos, que correspondem a «situações de
par. = parágrafo; Rn. = «Randnumer» (abreviatura de ex- facto» (in Filosofia do Direito, (original: Rechtsphilosophie),
pressão alemã; numeração ao lado da página); s.d. = sem Arsénio Amado, Coimbra, 1997, § 15.º, n. 3, pg. 241), «ju-
data; s.l. = sem local; trad. = tradução; TC = Tribunal ridicamente naturalizados».
Constitucional; vol. = volume. Para além deste, existe um segundo tipo: o dos «conceitos
2 Cfr. U. SCARPELLI, Contributo alla semantica del jurídicos» autênticos e genuínos, «construtivos e sistemá-
linguaggio normativo, Turim, 1959, pp. 75 ss., apud ticos» (RADBRUCH, Filosofia do Direito, § 15.º, n. 3, pg.
ROBERTO BIN, Diritti e argomenti. Il bilanciamento 243) (por vezes, oriundo da linguagem comum, mas objec-
degli interessi nella Giurisprudenza costituzionale, Giuffrè, to de uma reformulação («Umformung») jurídica, uma vez
Milão, 1992, pg. 29 (nota 68); JOSÉ CARLOS VIEIRA que conhecimento e linguagem se entrecruzaram estrei-
DE ANDRADE, Direito administrativo. Sumários ao tamente (MICHEL FOUCAULT, As palavras e as coisas
curso de 1995/96, lições policopiadas, Coimbra, 1996, pg. (original: Les mots et les choses), Edições 70, Lisboa, 1998,
17; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito IV, II.3, pg. 139), ou seja, o vocabulário técnico da lingua-
Administrativo, vol. II, 2.ª ed., com a colaboração de gem jurídico, salvo raras excepções, é técnico no signifi-
PEDRO MACHETE e LINO TORGAL, Almedina, cado, mas vulgar ou comum na sua morfologia (ÁNGEL
Coimbra, 2011, n.º 23.b), pgs. 119-120, n.º 23.d), pg. 126. MARTÍN DEL BURGO Y MARCHÁN, El linguage del
3 Embora este, diversamente dos dois anteriores, não seja Derecho, Bosch, Barcelona, 2000, p. 158; JOANA AGUIAR
um conceito classificatório, conflua na caracterização E SILVA, Para uma Teoria hermenêutica da Justiça.
do casamento. Repercussões jusliterárias no eixo problemático das fontes e
4 O art.º 16.º da DUDH foi aprovado pela Assembleia da interpretação jurídicas, diss., Almedina, Coimbra, 2011,
Geral da Organização das Nações Unidas, por 44 votos a pg. 59); esses conceitos possuem contornos mais rigorosos
favor, 6 contra e duas abstenções; o que é bem demons- do que os termos correspondentes de linguagem corrente
trativo do ampla adesão que granjeou. (cfr. BINDING, apud KARL ENGISCH, Introdução ao
5 Neste sentido, entre nós, por todos, cfr. EDUARDO pensamento jurídico, pg. 139; CARLOS FERREIRA DE
CORREIA BAPTISTA, «Ius Cogens» em Direito ALMEIDA, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídi-
Internacional, diss., Lex, Lisboa, 1997, pgs. 408, 413 (400- co, diss., Almedina, Coimbra, 1992, pg. 155; FERNANDO
415), 522; IDEM, Direito Internacional Público, volume II, JOSÉ BRONZE, A Metodonomologia entre a semelhança
Sujeitos e Responsabilidade, 1.ª ed., Almedina, Coimbra, e a diferença (Reflexão problematizante dos pólos da radi-
2004, 32.1.1, pgs. 362 e 363 (cfr. 372). cal matriz analógica do discurso jurídico), diss., Coimbra
Esta posição tem apoio nos órgãos jurisdicionais in- Editora, colecção Studia Iuridica do Boletim da Faculdade
ternacionais e é consensual na restante Doutrina de Direito da Universidade de Coimbra, 1994, pg. 341;
jusinternacionalista. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de
6 Aludindo a conceitos descritivos empíricos, fixáveis atra- Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed.,
vés da experiência comum, ROGÉRIO EHRHARDT (2005), reimpressão, Almedina, Coimbra, 2007, n.º 35.II,
SOARES; VIEIRA DE ANDRADE, Direito adminis- pgs. 154-156, n. 76.II, pg. 305; MARIA LUÍSA DUARTE,
trativo. Sumários ao curso de 1995/96, pg. 17; ISABEL Introdução ao Estudo do Direito. Sumários desenvolvi-
DE MAGALHÃES COLLAÇO, Da qualificação em dos (…), AAFDL, Lisboa, 2003, pg. 17; HEINRICH
Direito Internacional Privado, Lisboa, 1964, pg. 58; JOÃO EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil
BAPTISTA MACHADO, Introdução ao pensamento ju- Português. Teoria Geral do Direito Civil, reimpressão da
rídico, Prefácio à versão portuguesa da obra de KARL ed. de 1992, Almedina, Coimbra, 2000, Rn. 29, pg. 22;
59.

JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito FERNANDO AZEVEDO MOREIRA, Conceitos inde-
e ao Discurso Legitimador, 9.ª (reimpressão), Almedina, terminados, pg. 30 (nota 3)).
Coimbra, 1996, pgs. 285-286; FERNANDO AZEVEDO Em todo o caso, diversos dos mencionados são os concei-
MOREIRA, Conceitos indeterminados: sua sindicabili- tos jurídicos verdadeiramente indeterminados (ou concei-
dade contenciosa, in Revista de Direito Público, n.º 1, ano tos-tipo), que não permitem comunicações claras quanto
I, Novembro de 1985, pg. 36; CARLOS BLANCO DE ao seu conteúdo, em virtude de polissemia, da vaguidade,
MORAIS, Manual de Legística. Critérios científicos e téc- da ambiguidade, da porosidade ou do esvaziamento, em
nicos para legislar melhor, 1.ª ed., Verbo, s.l., 2007, pgs. várias áreas do Direito - cfr. BERNARDO DINIZ DE
186-187; CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica. AYALA, O (défice de) controlo judicial da margem de li-
Problemas fundamentais, colecção Studia Iuridica do vre decisão administrativa (Considerações sobre a reserva de
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Administração, as componentes, os limites e os vícios típicos
Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pgs. 113, 136-138; da margem de livre decisão administrativa), Lex, Lisboa,
JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos funda- 1995, pgs. 123-124; GOMES CANOTILHO, Direito
mentais..., 2.ª ed., pg. 165 (nota 280); PAULO OTERO, Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 1217; ANTÓNIO
Lições de Introdução ao Estudo do Direito. Ano lectivo de MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no Direito Civil,
1997/1998, I vol., 1.º tomo, Lisboa, 1998, pg. 33); tendo de diss., reimpressão, Almedina, Coimbra, 1997, pgs. 1176
haver uma «chave normativa» para a respectiva compreen- ss..; SÉRVULO CORREIA, Legalidade e autonomia
são (cfr. ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, Da contratual nos contratos administrativos, diss., Almedina,
qualificação em Direito Internacional Privado, pg. 59; para Coimbra, 1987, pgs. 117, 123, 124, 465 ss., 484, 488, 760;
uma referência crítica ao afastamento da linguagem jurí- DAVID DUARTE, Igualdade e imparcialidade na au-
dica em relação à linguagem comum, e à incompreensão, tovinculação da Administração, Relatório de Mestrado,
por parte do cidadão comum, dos termos jurídicos, v. o Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa,
clássico [JULIUS HERMANN] VON KIRCHMANN, 1992, pgs. 31-37; MARIA LUÍSA DUARTE, A discri-
La Jurisprudencia no es ciencia [conferência de juventu- cionariedade administrativa e os conceitos jurídicos inde-
de, proferida em Berlim, em 1847], traducción y escrito terminados (Contributo para uma análise da extensão do
preliminar de ANTONIO TRUYOL Y SERRA, 3.ª ed. princípio da legalidade), Lisboa, 1987, pgs. 24-25; IDEM,
espanhola, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, A liberdade de circulação de pessoas e a ordem pública no
1983, pg. 43; «um Direito que o povo já não conhece, que já Direito Comunitário, diss., Coimbra Editora, 1992, pg. 213;
não vive na sua alma» (pg. 44)). JORGE BACELAR GOUVEIA, O estado de excepção no
JUAN RAMÓN CAPELLA sublinha a existência de um Direito Constitucional, diss., II, Almedina, Coimbra, 1998,
secular processo de adaptação, através do qual os termos pg. 1557 (1156-1558); JOÃO BAPTISTA MACHADO,
pertencentes à linguagem comum vão adquirindo um Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, pgs. 113-
sentido técnico-jurídico, processo que vem a culminar 114; IDEM, Lições de introdução ao Direito Público, in
na separação entre as linguagens natural e jurídica (in IDEM, Obra dispersa, vol. II, Scientia Iuridica, Braga,
El Derecho como linguage, Ariel, Barcelona, 1968, pp. 243 1993, pgs. 346-347; JORGE MIRANDA, Manual…, II,
ss., apud JOANA AGUIAR E SILVA, Para uma Teoria 6.ª ed., n.º 66.VI, pg. 309 (com base no Acórdão do TC
hermenêutica da Justiça. Repercussões jusliterárias no eixo n.º 107/88, de 31 de Maio, in Diário da República, 1.ª sé-
problemático das fontes e da interpretação jurídicas, diss., rie, n.º 141, 21 de Junho de 1988); CARLOS BLANCO
Almedina, Coimbra, 2011, pg. 59). DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pgs. 143-
A este propósito, pode ser convocada (pelo menos, por 144; FERNANDO AZEVEDO MOREIRA, Conceitos
analogia) a distinção entre os conceitos propriamen- Indeterminados: sua sindicabilidade contenciosa, in Revista
te ditos, susceptíveis de representação através de uma de Direito Público, n.º 1, ano I, Novembro de 1985, pgs.
função ou classe, e os conceitos formais (cfr. LUDWIG 15-89; CASTANHEIRA NEVES, Metodologia jurídi-
WITTGENSTEIN, Tratado Lógico-filosófico (original: ca. Problemas fundamentais, Coimbra Editora, colec-
Tractatus logico-philosophicus, Routledge and Kegan Paul, ção Studia Iuridica, 1993, pgs. 110-112, 139-140; PAULO
Ltd., 1922), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, OTERO, Instituições políticas e constitucionais, I, 1.ª
2002, 4.126, pg. 67, e 4.1272, pg. 69) (discordando, po- ed., 11.1.2, pgs. 551, 560,11.1.5, pg. 570, 11.1.6, pg. 571;
rém, da dicotomia conceitos descritivos» ou «de facto» / HELDER ROQUE, Os conceitos jurídicos indeterminados
conceitos «normativos», na medida em que os primei- em Direito da Família e a sua integração, in Lex Familiae,
ros nos surgem incrustados numa norma jurídica, cfr. Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 2, n.º 4
.60

- 2005, pgs. 93-98; JOÃO TIAGO SILVEIRA, Directivas 13 Assim, também em relação ao comando impositivo de
de auto-vinculação em poderes discricionários, in Revista proibir os casamentos de pessoas sem idade núbil.
Jurídica (AAFDL), números 18-19, Dezembro / Janeiro de Poder-se-ia argumentar em contrário que a simples men-
1996, pg. 219; WALTER SCHMIDT, Einführung in die ção à idade talvez não bastasse para esta interpretação; e
Probleme des Verwaltungsrecht, Munique, 1982, pp. 37 ss.; que apenas o n.º 2 conferiria apoio à necessidade de pro-
ZAGREBELSKY, Il Diritto mite, Eunaudi, Turim, 1992, teger as pessoas dos casamentos contra a sua vontade e,
pgs. 186-187. Os conceitos-tipo invocam um tipo difuso de portanto, também crianças/juvenis, por não terem von-
situações da vida; ao passo que o resultado hermenêutico tade formada na plenitude das suas futuras capacidades,
dos conceitos classificatórios é alcançado mediante inter- em associação com a idade núbil do n.º 1. Neste caso, esta
pretação (cfr. JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, interpretação enquadrar-se-ia plenamente na teleologia
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administra- dos direitos humanos: proteger os indivíduos.
tivos, diss., Almedina, Coimbra, 1987, pg. 117). Salvo o devido respeito, discordamos. Julga-se que decor-
Alguma Doutrina chega mesmo a separar os concei- re cristalinamente da letra do n.º 1 a proibição de casa-
tos descritivos dos conceitos indeterminados (embora mentos entre pessoas abaixo da idade núbil: «A partir da
referindo-se, na terminologia utilizada acima, aos con- idade núbil (…)» (refere o preceito), não antes.
ceitos-tipo) (com essa opinião, MIGUEL TEIXEIRA 14 Acórdão do Tribunal Constitucional sul-africano, apud
DE SOUSA, Linguagem e Direito, in Estudos em honra Acórdão do TC n.º 359/2009, n.º 7.3.
do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, volume I, 15 Ao contrário do que o TC sul-africano pretende, as
Almedina, Coimbra, 2008, pg. 271). normas não são proposições descritivas, mas proposições
7 Cfr. IMMANUEL KANT, Crítica da razão pura (edi- prescritivas: influem no comportamento dos seus des-
ção da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001), tinatários, para que estes actuem de acordo com que as
Introdução, I, B.2, pg. 37; I, Segunda Parte, Primeira di- normas estabelecem - ANTONIO-ENRIQUE PÉREZ
visão, Livro Primeiro, Cap. I, Terceira Secção, § 13, B.118. LUÑO, Una Teoría del Derecho. Una concepción de la
8 Cfr. MANUEL GOMES DA SILVA, Esboço de uma experiencia jurídica, com a colaboração de CARLOS
concepção personalista do Direito. Reflexões em torno da ALARCÓN CABRERA / RAFAEL GONZÁLVEZ-
utilização do cadáver humano para fins terapêuticos e cien- TABLAS / ANTONIO RUIZ DE LA CUESTA, 7.ª ed.,
tíficos, separata da Revista da Faculdade de Direito da Tecnos, Madrid, 2008, Cap. XII, 1.1, pg. 173.
Universidade de Lisboa, vol. XVII, Lisboa, 1965, pg. 164. 16 Cfr. NUNO GODINHO MATOS, Sessão n.º 31, em
9 Neste sentido, KARL ENGISCH, Introdução ao pensa- 14 de Agosto de 1975, in Diários da Assembleia Constituinte,
mento jurídico, pgs. 212-213. II, Assembleia da República, Lisboa, 1995, pg. 849.
10 JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do 17 Apenas o 5.º considerando do Preâmbulo se refere à
Direito e ao Discurso Legitimador, pg. 182 (ênfases nossos). «igualdade de direitos dos homens e das mulheres».
11 Os fragmentos remanescentes do preceito («A partir da 18 Cfr. JEREMY BENTHAM, apud CARLOS
idade núbil») coadjuvam a conclusão de que o comporta- BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística. Critérios
mento ter de ser recíproco, um acordo de vontades. científicos e técnicos para legislar melhor, 1.ª ed., Verbo,
12 Nas versões oficiais dotadas do mesmo valor autêntico s.l., 2007, pg. 137.
da inglesa, em francês, refere-se «l»homme et la femme (...) 19 A Doutrina tradicional enquadra os trabalhos prepara-
ont le droit de se marier (…)» (http://www.ohchr.org/EN/ tórios no «elemento histórico» (teorizado, como é sabido,
UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=frn); em castelha- por SAVIGNY).
no, «Los hombres y las mujeres (...) tienen derecho (...) a Porém, para algumas teorias de Autores alemães, como
casarse» (mesma fonte). FRIEDRICH MÜLLER, o elemento dos trabalhos pre-
Em outras línguas românicas, em italiano, a tradução paratórios integra o denominado «elemento genético»,
reza: «Uomini e donne in età adatta hanno il diritto di spo- que, para essa perspectiva, deve ser dissociado do tradi-
sarsi (...)»; em romeno: «bărbătul şi femeia (…) au dreptul cional elemento histórico.
de a se căsători şi»). 20 Mediante propostas de STEPANENKO (da
Estas últimas traduções são igualmente relevantes como Bielorrússia), no seio do grupo de trabalho criado pela
prática interpretativa dos Estados. Comissão dos direitos do homem, e de ELEANOR
Curiosamente a tradução portuguesa não utiliza essa for- ROOSEVELT (cfr. ALBERT VERDOODT, Naissance
ma reflexa («casar-se»). Porém, a nosso ver, a opção lin- et signification de la Déclaration Universelle des droits de
guística mais correcta era essa. l»homme, Nauwelaerts, Lovaina, s.d., pg. 163).
61.

21 A nosso ver, existe uma imperfeição da DUDH na das normas definitórias em Direito Penal, in Boletim da
enunciação da titularidade de ambos os direitos: com Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol.
efeito, o fragmento «homem e mulher» refere-se ao direi- LXIX, 1993, pgs. 377, 378.
to a contrair casamento; ao passo que o mesmo sujeito é 34 Cfr. art.º 25.º, n.º 2, 2.ª parte: «Todas as crianças, nas-
também aplicado ao direito a constituir família. Ver-se-á cidas dentro ou fora do matrimónio (…)» (à semelhança da
como ultrapassar esta imperfeição da letra da DUDH. CRP – no art.º 36.º, n.º 4, 1.ª parte).
22 Cfr. GERALDO DA CRUZ ALMEIDA, Da união de 35 Foi rejeitada a redacção proposta por MALIK (repre-
facto. Convivência «more uxorio» em Direito Internacional sentante do Líbano), na reunião da Comissão plenária:
Privado, diss., Pedro Ferreira, Lisboa, 1999, pg. 168. «A família, «fundada no casamento», é o elemento na-
Um dos respaldos desta teoria é a Doutrina da Igreja tural e fundamental da sociedade.» (apud ALBERT
Católica, que tem sido reafirmada acriticamente ao longo VERDOODT, Naissance et signification de la Déclaration
do tempo (por exemplo, BENTO XVI, Discurso (1), de Universelle des droits de l»homme, pg. 164); o que não veio
8 de Julho de 2006, in IDEM, Pensamentos sobre a fa- a ser consagrado explicitamente.
mília. Selecção de textos do Papa Bento XVI, Introdução 36 Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do
de LUCIO COCO, Lucerna - Principia, Parede, 2010, Direito e ao Discurso Legitimador, pg. 186.
pg. 15 (sublinhando o papel central da família fundada 37 Diga-se, por fim, que temos reservas em relação à ex-
no matrimónio). pressão «constituição de família».
23 «[C]onsideramos o casamento uma fundação de família» Por saber fica qual o momento genético: se o acto de cele-
- J. H. [JOSÉ HOMEM] CORRÊA TELLES, Digesto bração do casamento (: casamento-acto), se o da concep-
Portuguez ou Tratado dos direitos e obrigações civís relativos ção ou o do nascimento com vida do primeiro filho (em
ás pessoas de uma familia portugueza. Para servir de subsidio nosso entender, em rigor, pelo menos após a celebração,
ao novo Codigo Civil, Tomo II, 1835, (Ao leitor), pg. 1. já há uma relação de família (ou seja, já há família) (nes-
24 No art.º 1.º: «o casamento é um contrato celebrado entre te sentido, cfr. JORGE DUARTE PINHEIRO, O núcleo
pessoas de sexo diferente, com o fim de constituírem legitima- intangível da comunhão conjugal. Os deveres conjugais se-
mente a família». xuais, diss., Almedina, Coimbra, 2004, pg. 299).
25 Cfr. art.º 12.º, 1.º, 2.º e 3.º incisos. Por outro lado, aponta para um momento estático: o acto
26 Citado por NUNO DE SALTER CID, A comunhão que está na origem da família; quando, a nosso ver, se de-
de vida à margem do casamento: entre o facto e o Direito, veria privilegiar o direito de ter família, a relação afectiva
diss., Almedina, Coimbra, 2005, pg. 509. familiar, continuada no tempo.
27 Art.º 29.º, 1.º par. O casamento-instituição configura inequivocamente uma
28 Cfr., a propósito das definições, CARLOS BLANCO relação familiar.
DE MORAIS, Manual de Legística, 1.ª ed., pg. 137. Considerar que a sua única fonte originária é o casamen-
29 CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de to-acto poderá ser uma ficção (em sentido diverso, art.º
Legística, 1.ª ed., pg. 137. 1576.º do CC). Outrora, poderia não ser assim (através
30 GERALDO DA CRUZ ALMEIDA, Da união de fac- do casamento-acto, constituir-se-ia uma nova família
to, pg. 181; v. pgs. 178-184. que, em face dos clãs ou casas de que saiu, seria algo
31 A seguinte afirmação do Professor ANTUNES de independente – cfr. HEGEL, Princípios da Filosofia
VARELA afigura-se, pois, e salvo o devido respeito, con- do Direito, 4.ª ed., Guimarães Editores, Lisboa, 1990, §
traditória: «Pode haver relações de carácter familiar ou 171, pg. 169). Admite-se que a família possa ter a sua ori-
para-familiar, como a adopção ou a filiação natural (…), gem em momento prévio: informal, numa união de fac-
ilegítima ou extramatrimonial, à margem do casamento. to (em sentido contrário, parte da Doutrina considera-a
Mas não há família ou sociedade familiar fora do casamen- uma relação parafamiliar – FRANCISCO PEREIRA
to.» (ANTUNES VARELA, Direito da Família, 1.º volu- COELHO / GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de
me, 5.ª ed., Petrony, Lisboa, 1999, pg. 177). Direito da Família, volume I, Introdução. Direito ma-
32 FERNANDO ANDRADE PIRES DE LIMA, O casa- trimonial, 4.ª ed., com a colaboração de RUI MOURA
mento putativo no Direito Civil português, diss., Coimbra RAMOS, Coimbra Editora, 2008, pgs. 35 e 55-56, 116-
Editora, 1929, pg. 118 (nota). 118 (cfr. 59-60); JORGE DUARTE PINHEIRO), em
33 Neste sentido, a propósito das definições legais, cfr. fase experimental ou já mediante um compromisso assu-
JOSÉ DE FARIA COSTA, As definições legais de dolo e de mido, designadamente no noivado; ou formal (: a pro-
negligência enquanto problema de aplicação e interpretação messa de casamento - cfr. arts. 1591.º a 1595.º do Código
.62

Civil), se for acompanhada de coabitação e intenção de fundamentais» («grundrechtlichen Einrichtungsgarantien»),


constituir família. e, de outra banda, garantias institucionais que não foram
Não é de excluir também a união de facto subsequente ao concebidas para servir um direito fundamental («grun-
divórcio (genuinamente ou, noutros casos, em fraude à drechtsfernen institutionellen Garantien»), SÉRVULO
lei, devido ao divórcio ter sido realizado por razões patri- CORREIA, Direitos Fundamentais..., pgs. 94-95.
moniais, para evitar que o património de um dos cônju- 43 Desde logo o próprio título o explicita.
ges fosse afectado pela responsabilidade comum solidária Os 1.º e 5.º considerandos do Preâmbulo e o art.º 2.º
por dívidas), numa relação que seria em tudo semelhante («Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liber-
à do casamento. dades proclamados na presente Declaração (…)»), tal como
Se o objectivo é privilegiar a «pequena família», então faz os enunciados constantes nos preceitos da Declaração,
sentido considerar todo este leque de possibilidades. corroboram esta conclusão.
38 Esta interpretação é mais evidente no art.º 36.º, n.º 1, Repare-se que, só no 6.º e 7.º considerandos do
da CRP, em que distingue a família do casamento (como Preâmbulos – ou seja, após a menção aos indivíduos -,
a Doutrina assinala). se alude aos Estados (: «Considerando que os Estados mem-
39 Importa fazer uma precisão terminológica. Alguma bros se comprometeram a promover, em cooperação com a
Doutrina alemã distingue entre formas de vida em so- Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efec-
ciedade ordenadas por complexos de normas de Direito tivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais»
público (instituições) e normas de direito privado (institu- (6.º considerando)).
tos). Todavia, esta distinção tem apenas uma função heu- A proclamação constante do Preâmbulo refere-se também
rística (v. SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais. primeiro aos indivíduos e, só a seguir, implicitamente, aos
Sumários, AAFDL, Lisboa, 2002, pg. 90). Estados.
Desta forma, usamos as duas expressões como tendo sig- 44 Cfr. SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais...,
nificado idêntico. pg. 94.
40 Este é um dos requisitos para se poder falar de garan- 45 Neste preciso sentido, JORGE MIRANDA, Manual
tia institucional (neste sentido, SÉRVULO CORREIA, de Direito Constitucional, Direitos Fundamentais, Tomo
Direitos Fundamentais..., pg. 90). IV, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2012 (acordizada), n.º 20.II,
41 A garantia institucional (designação cunhada por pg. 91.
CARL SCHMITT, in Teoría de la Constitución, trad., 46 RITA LOBO XAVIER, A vinculação do Direito da
Ariel, Barcelona, 1982 - «institutionellem Garantien») Família aos «direitos da família», in João Paulo II e o
consiste no comando constitucional de preservação da Direito. Estudos por ocasião do seu 25.º aniversário do seu
integridade dos elementos estruturantes e atributivos de pontificado, ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM
tipicidade de instituições e institutos dotados de forma / EDUARDO VERA-CRUZ PINTO / GONÇALO
jurídica assente em complexos normativos (SÉRVULO PORTOCARRERO DE ALMADA / PAULO
CORREIA, Direitos Fundamentais..., pgs. 89-90). TEIXEIRA PINTO (organizadores), Principia, Cascais,
42 Como garantia institucional, a protecção não é ape- 2003, pg. 155 (nota 25).
nas objectiva, mas também subjectiva; daí a subjec- 47 JORGE MIRANDA, Manual..., IV, 5.ª ed., n.º 20.II,
tivização, ou seja, o direito a contrair casamento (cfr. pg. 91.
ROBERT ALEXY, Teoría de los derechos fundamentales 48 Adaptando ao Direito Internacional costumeiro ex-
(original: Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, 1986), (2.ª pressão «garantias institucionais de direitos fundamen-
ed. em castelhano), traducción y estudio introductorio tais» («grundrechtlichen Einrichtungsgarantien») (cfr.
de CARLOS BERNAL PULIDO, Centro de Estudios SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais..., pg. 94).
Políticos y Constitucionales, Madrid, 2007, pg. 211). No 49 Ao invés de outros enunciados, como o do art.º 62.º,
mesmo sentido em relação às «garantias constitucionais de n.º 1, da CRP.
institutos de Direito privado» (embora enjeite as «garan- 50 Cfr., «mutatis mutandis», JORGE MIRANDA,
tias de instituto», a que ALEXY alude), cfr. MIGUEL Manual..., IV, 5.ª ed., n.º 20.II, pg. 91; RITA LOBO
NOGUEIRA DE BRITO, A justificação da propriedade XAVIER, A vinculação do Direito da Família aos «direitos
privada numa Democracia constitucional, diss., Almedina, da família», pg. 155 (nota 25).
Coimbra, 2007, pg. 792. 51 Sobre a definição de tradição, v. IVO MIGUEL
Em sentido mais mitigado, distinguindo, na senda de BARROSO, Pré-compreensão. Para uma reabilitação
Doutrina alemã, entre «garantias institucionais de direitos adequada dos «preconceitos» na Metodologia das ciências
63.

sociais, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Jorge no ordenamento, para a transformação, cfr. GUSTAVO
Miranda, volume II, Direito Constitucional e Justiça ZAGREBELSKY, Il Diritto mite, Eunaudi, Turim, 1992,
Constitucional, coordenação de MARCELO REBELO pg. 202.
DE SOUSA / FAUSTO DE QUADROS / PAULO 58 Cfr. JOSÉ ORTEGA Y GASSET, El espectador, tomo
OTERO / EDUARDO VERA-CRUZ PINTO, FDUL, I, 3.ª ed. (1.ª ed. de 1916), Ediciones de la Revista de
Coimbra Editora, 2012, II e III, pgs. 28-30, 32-33. Occidente, Madrid, 1968, Confessiones de «El espectador»
52 Nesta infinda dinâmica de transmissão, encontram-se as (Fevereiro-Março de 1916), Verdad y perspectiva, pg. 28.
normas actualmente vigentes, as decisões judiciais e os co- 59 Já que, no casamento-acto, se regista a intervenção do
nhecimentos científicos; em suma, as formas do pensamen- o pai ou quem tutelava a noiva, pelo menos no equivalen-
to jurídico comummente reconhecidas, através do trabalho te à actual promessa de casamento.
precedente de muitas gerações de juristas, graças ao qual al- 60 FRANCIS MARTENS, Un beau mariage?, in Rapport,
cançaram a sua configuração actual (cfr. KARL LARENZ, fait au nom de la Commission de la Justice, par Mme
Metodologia da Ciência do Direito (original: Methodenlehre KAÇAR (Rapport du 20.11.2002, Doc. n.º 2 – 1173/3),
der Rechtswissenschaft, 6.ª ed., reformulada, Berlim, 1991), pg. 21, apud NUNO DE SALTER CID, A comunhão de
3.ª ed., tradução de JOSÉ LAMEGO, Fundação Calouste vida à margem do casamento, pg. 783.
Gulbenkian, Lisboa, 1997, pgs. 289, 290). Em sentido contrário, MIGUEL VALE DE ALMEIDA,
53 MANUEL GOMES DA SILVA, Curso de Direito de A chave do armário. Homossexualidade, casamento e famí-
Família, (Parte I; aditamentos), Apontamentos das Lições lia, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2009, pgs. 68
proferidas pelo Sr. Prof. Doutor GOMES DA SILVA no ss., 112-113, 198-207, 208.
ano lectivo de 1966-67, coligidos pelos alunos Manuel Afinal, citando o filósofo SÖREN KIERKEGAARD,
Ernesto Coutinho e Jorge Neto Valente, AAFDL, Lisboa, «Louvado seja o casamento, louvado seja todo aquele que o
1967, pg. 32. exalte! O que afirmo não e nenhuma nova descoberta, pois
54 Para a defesa do papel da tradição na pré-compreen- seria bastante difícil encontrar novidade no que se refere à
são, cfr. HANS-GEORG GADAMER, Verdade e Método. mais velha instituição do mundo».
Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica (ori- 61 O ADN do homem de «Neanderthal» (que desapare-
ginal: Wahrheit und Methode, Tübingen, 1986), trad. de ceu por volta de 40.000 a.C.) é 99,84% idêntico ao do
FLÁVIO PAULO MEURER, revisão da trad. de ÊNIO «Homo sapiens sapiens».
PAULO GIACHINI, 3.ª ed., Vozes, Petrópolis, 1999, 62 Neste sentido, o cientista THOMAS WYNN afirma:
Prefácio à 2.ª ed., (pg. 21), Segunda Parte, 2.1, [pgs. 281 «Skeletal evidence shows that Neanderthal men, women and
ss.] (416ss.). children led very strenuous lives, preoccupied with hunting
Para uma crítica a esta posição, cfr. IVO MIGUEL large mammals».
BARROSO, Pré-compreensão. Para uma reabilitação ade- «The small size of Neanderthal territories would have made
quada dos «preconceitos» na Metodologia das ciências sociais, some form of «marrying out» essential.
III, pgs. 32-33. «We can also assume that Neanderthals had some form of
55 RUY DE ALBUQUERQUE / MARTIM DE marriage because pair-bonding between men and women,
ALBUQUERQUE, História do Direito Português, I and joint provisioning for their offspring, had been a feature
vol., 1.ª parte, 10.ª ed., Pedro Ferreira, Lisboa, 1999, pg. of hominin social life for over a million years. They also pro-
79; KARL LARENZ, Metodologia..., pg. 263, seguindo tected corpses by covering them with rocks or placing them in
GERHART HUSSERL, Recht und Zeit. Fünf rechtsphilo- shallow pits, suggesting the kinds of intimate, embodied so-
sophische Essays, Vittorio Klostermann, Francoforte sobre cial and cognitive interaction typical of our own family life»
o Meno, 1955, p. 22. (THOMAS WYNN, Into the mind of a Neanderthal, 18
56 HANS-GEORG GADAMER, Verdade e Método, de Janeiro de 2012, http://www.newscientist.com/article/
Segunda Parte, 2.1.4, [pg. 311] (457). mg21328470.400-into-the-mind-of-a-neanderthal.html).
57 Um sistema só poderia fechar-se sobre si mesmo, se fos- As mulheres (indivíduos de sexo feminino), quando esta-
se «pensado como um sistema estático referido a um «objec- vam grávidas ou tinham filhos pequenos, não podiam tra-
to» também relativamente estático» (A. CASTANHEIRA balhar; e, por isso, eram substituídas por outros membros
NEVES, O papel do jurista no nosso tempo, in IDEM, do Grupo (o mesmo sucedia com os idosos).
Digesta. Escritos acerca do Direito, do pensamento ju- 63 Cfr. ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem
rídico, da sua metodologia e outros, vol. 1.º, Coimbra (original: Naissance de l»Homme, Éditions du Seuil, 1980),
Editora, 1995, pg. 47). Referindo a tendência, intrínseca tradução de FERNANDO CASCAIS FRANCO, 3.ª ed.,
.64

Gradiva, Lisboa, 1995, pgs. 46. C6S50QWilYDwDQ&usg=AFQjCNEThQ__gM193D


64 Cfr. ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, MxZPBxTMplVDPBkw&sig2=YTab0ZKubQDjGwyG
pg. 46. 10wI2g&bvm=bv.58187178,d.bGQ&cad=rjt).
65 Cfr. ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, 76 In Cantigas de amor do Oriente antigo. Estudo e antolo-
pg. 47. gia, JOSÉ NUNES CARREIRA, Cosmos, Lisboa, 1999,
66 ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, pg. 47. pgs. 124-127.
67 ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, pg. 47. 77 Ibidem, pgs. 143-144.
Ao contrário do modelo de «estado de natureza» preco- 78 Cantiga amena (para a grinalda da noiva) (fonte:
nizado por THOMAS HOBBES (1588-1679) (um estado Papiro Harris 500), n.º 17, in Cantigas de amor do Oriente
de guerra «de todos os homens contra todos os homens», em antigo. Estudo e antologia, JOSÉ NUNES CARREIRA,
que todo o homem é inimigo dos outros homens; não pg. 168.
havendo lei, e, desse modo, não havendo injustiça (cfr. 79 Cantiga amena (para a grinalda da noiva) (fonte:
THOMAS HOBBES, Leviatã. Ou matéria, forma e poder Papiro Harris 500), n.º 18, in Cantigas de amor do Oriente
de um Estado eclesiástico e civil (publicado originariamen- antigo, JOSÉ NUNES CARREIRA, pgs. 168, 37.
te em 1651), tradução de JOÃO PAULO MONTEIRO / 80 Segundo refere CÍCERO, in Pro Morena 27. Como é
MARIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA, 3.ª ed., Imprensa sabido, a «coemptio» era apenas uma das formas de casa-
Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2002, Primeira Parte, mento, que não estava de todo incindivelmente ligada a
Cap. XIII, pgs. 111, 113)), se referido a uma etapa da evolu- um acto «a se» que lhe desse origem. Por outro lado, ceri-
ção da Humanidade, não há provas de uma «agressividade mónia nupcial não era de todo necessária.
fundamental no homem» (ROBERT CLARKE, O nasci- 81 «deductio in domum mariti».
mento do Homem, pg. 49). 82 A fórmula é mencionada por PLUTARCO (in
68 ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, pg. 46. Quaestiones Romanae, 30).
69 ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, pg. 46. Sem prejuízo de algumas flutuações no significado ao
70 Cfr. ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, longo do tempo, a ideia parece ser a seguinte: «Onde tu
pg. 47. estiveres, eu estarei também»; «Onde sejas feliz, eu serei
71 Cfr. ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, igualmente feliz.»; ou, numa versão livre, «Acompanhar-
pg. 47. te-ei sempre. — A felicidade és tu; a felicidade é estar a
72 MARIA DO SAMEIRO BARROSO, Sob a protecção teu lado».
de Lucina - aspectos da Medicina obstétrica e ginecológica No Direito Romano, o significado aparentemente ter-
antiga, in Medicina na Beira Interior. Da Pré-História ao -se-á alterado, uma vez que «Gaius» - que pode ser tra-
século XXI, Cadernos de Cultura, n.º 20, Novembro de duzido por «Caio» - e «Gaia» eram nomes próprios em
2006 (reproduzido em http://www.historiadamedicina. Latim; esse jogo de palavras transmite a ideia de que, na
ubi.pt/cadernos_medicina/vol.XX.pdf ), pg. 86. sociedade conjugal, o marido e a mulher se pertencem
Para mais desenvolvimentos, v. JAVIER ÁNGULO mutuamente (cfr. JOAQUIN SANCHEZ DE TOCA,
CUESTA / MARCOS GARCÍA DIEZ, Sexo en piedra. El matrímonio. Su ley natural, su historia. Su importancia
Sexualidad, reproducción y erotismo en época paleolítica, social, nueva edición, tomo primero, A. de Carlos é hijo,
Luzán, Madrid, 2005. editores, Madrid, 1875, pg. 89). Tomando «gaius» como
73 ROBERT CLARKE, O nascimento do Homem, pg. 50. adjectivo, poderá ser traduzido da seguinte forma: «Onde
74 MARIA DO SAMEIRO BARROSO, Sob a protecção tu estiveres, aí eu estarei também».
de Lucina - aspectos da Medicina obstétrica e ginecológica Na tradição judaica, existem dois versos semelhantes:
antiga, pg. 86. «Eu sou para o meu amado / e o meu amado é para mim.»
75 Com efeito, passou a ser possível escrever notas, tais (Cântico dos Cânticos, Cântico VI, 6: 3); «O meu amado é
como: «I miss you my darling, when is that ratfaced hus- para mim, / e eu sou para ele» (Cântico, II, 2: 16).
band of yours going on nights again» («Eu sinto a tua falta, 83 No Direito grego, a cerimónia do casamento («gamos»)
querido, quando o meu marido com cara de rato está de era iniciada com sacrifícios aos deuses, Zeus e Hera Teleia
novo a ir para a noite, ausente de casa») (ALAN COREN, (bem como a Ártemis e ao génio Pento).
A short history of marriage, artigo disponível a partir de A noiva tomava um banho nupcial.
https://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&sour Em casa dos pais da noiva, os nubentes, vestidos com as
ce=web&cd=16&ved=0CGwQFjAFOAo&url=http%3A suas melhores roupas, reuniam-se num jantar.
%2F%2Fwww.low.net.au%2Fmarriage.rtf&ei=Xly4UtG1 Quando chegava a estrela vespertina, o noivo conduzia
65.

a noiva para a sua casa, por entre um cortejo, no qual edición, tomo primero, A. de Carlos e hijo, editores,
os amigos e os familiares dançavam e entoavam cânticos, Madrid, 1875, pg. 69.
empunhando archotes (como é demonstrado por uma 86 Esta obra-prima é notável em termos estéticos.
«kratêra» coríntia de 580-575 a. C., exposta no Museu Citamos alguns excertos.
do Vaticano em Roma - MARION GIEBEL, Sappho, A Esposa – «— Dai-me uvas passas,
Rovolt, Hamburgo, 1980, pg. 107; cfr. SOFIA A. SOULI, reanimai-me com maçãs,
Love Life of the Ancient Greeks, Editions Michalis Toubis, porque desfaleço de amor.» (Cântico dos Cânticos, Cântico
Atenas, 1997, pg. 40). I, 2: 5).
No Canto XVIII da Ilíada, HOMERO descreve uma A Esposa - «Suplico-vos, ó filhas de Jerusalém,
festa de casamento (cinzelada no escudo de Aquiles pelo que, se encontrardes o meu amado,
deus Hefesto): lhe digais que desfaleço de amor» (Cântico dos Cânticos,
«E fez duas cidades de homens mortais, Cântico V, 5: 8).
cidades belas. Numa havia bodas e celebrações: O Esposo - «Roubaste meu coração,
as noivas saídas dos tálamos sob tochas lampejantes minha irmã, minha esposa!
eram levadas pela cidade; muitos entoavam o canto nupcial. Roubaste-me meu coração
Mancebos rodopiavam a dançar; e no meio deles com um só dos teus olhares» (Cântico dos Cânticos, Cântico
flautas e liras emitiam o seu som. As mulheres III, 4: 9; cfr. IVO MIGUEL BARROSO, Universo azul
estavam de pé, cada uma à sua porta, maravilha- (flores da simbiose), Castália, Charleston (EUA), 2013, pg.
das.» (HOMERO, Ilíada, tradução de FREDERICO 21, em que utilizámos este trecho como epígrafe de um
LOURENÇO, Livros Cotovia, Lisboa, 2005, Canto poema de nossa autoria).
XVIII, versos 490-495, p. 382). O Esposo - «Como o lírio entre os cardos,
Ao chegar à sua nova casa, a mulher proferia, em língua assim é a minha amada entre as donzelas» (cfr. Cântico dos
grega, as palavras referidas no texto. Cânticos, Cântico I, 2: 2, in O bebedor nocturno, pg. 35).
Após a noite de núpcias, um novo dia de festejos suce- A Esposa – «Como a macieira entre as árvores da floresta,
dia (SARAH B. POMEROY, Women»s History & Ancient assim é o meu amado entre os jovens.» (Cântico dos Cânticos,
History, The University of North Carolina Press, 1992, pg. Cântico I, 2: 3).
54). O Esposo – «Oh, como és formosa, minha amada,
(Baseamo-nos na investigação de MARIA DO como és formosa!
SAMEIRO BARROSO, A mulher na sociedade antiga (a Os teus olhos são como pombas,
partir do texto de base A glória das mulheres de cabelos on- por detrás do teu véu.
dulados. Algumas reflexões sobre a História das mulheres na (…)
Antiguidade, publicado em As Faces de Eva. Estudos sobre Os teus lábios são como um fio de púrpura,
a Mulher, Universidade Nova de Lisboa, n.º 16, ano 2006, e o teu falar é doce.
pg. 103), que cita as referências mencionadas e contém A tua face é como um pedaço de romã
mais desenvolvimentos sobre a condição da mulher). por detrás do teu véu.
No Cântico dos Cânticos (atribuído, por vezes, ao Rei (…)
Salomão, embora com fundamento histórico duvidoso), Teus seios são como dois filhinhos gémeos de uma gazela,
a Esposa (Sulamite) diz: «— Ide ver, ó raparigas de Sião, (…)
meu amado / trazendo o diadema que lhe pôs sua mãe / no Toda és formosa, ó amiga minha,
dia dos esponsais, / no dia do júbilo do seu coração» (cfr. e não há mancha em ti.
Cântico dos Cânticos, Cântico III, 3: 11; e a tradução in (…)
O bebedor nocturno, poemas mudados para português, por Como tuas carícias são deliciosas,
HERBERTO HELDER, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, minha irmã, minha esposa!
pg. 35). (…)
84 História da Vida Privada, trad., Afrontamento, 1989, Teus lábios, ó esposa,
pg. 48, apud ORLANDO BRAGA, http://espectivas. destilam mel virgem» (Cântico dos Cânticos, Cântico IV, 1:
wordpress.com/2013/08/03/a-confusao-do-neanderthal- 1, 3, 5, 7, 11).
-contemporaneo, 3 de Agosto de 2013. «As curvas dos teus quadris
85 JOAQUIN SANCHEZ DE TOCA, El matrímonio. são como jóias,
Su ley natural, su historia. Su importancia social, nueva obra de mãos de artista.
.66

Abre-se o teu umbigo como uma taça redonda Stella – Está a brincar? É uma jovem linda e você é um ho-
cheia de vinho perfumado. mem razoavelmente saudável.
O teu ventre é um monte de trigo Jefferies – Ela espera que eu case com ela.
cercado de lírios.» (Cântico dos Cânticos, Cântico VI, 7: 3). Stella – Isso é normal.
O Esposo - «o amor é forte como a morte, Jefferies – Eu não quero.
a paixão é violenta como o sepulcro, Stella – Isso é anormal.
teus ardores são chamas de fogo, Jefferies – Ainda não estou preparado para o casamento.
os seus fogos são fogos do Senhor. Stella – Todos os homens estão preparados para o casamento,
As águas múltiplas não poderiam extinguir o amor, quando aparece a rapariga certa.
nem os rios o poderiam submergir.» (Cântico dos Cânticos, «E a Lisa Fremont é a rapariga ideal para qualquer homem
Cântico VII, 8:6-7). esperto.
87 Convocamos este argumento de ordem cultural, pois, Jefferies – Ela não é má de todo…
na lição de BAPTISTA MACHADO, «[n]enhuma or- Stella – Zangaram-se?
dem normativa se autolegitima. Pelo que também o Direito Jefferies – Não.
só dos valores culturais pode retirar a sua legitimação» (in (…)
Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, pg. 197). Stella – (...) Alguns dos casamentos mais felizes começaram
No plano teológico, que aqui não cabe desenvolver, a sob pressão, por assim dizer.
relação entre Deus e a comunidade é metaforicamente Jefferies – Ela não é rapariga («girl») para mim.
equiparada a um casamento, na qual Deus é considerado Stella – Pois, ela só é perfeita.
«Esposo» (Is, 54, 5) (cfr. Dt, 31, 16; Os, 2, 1-3, 5; Ez, 16, Jefferies – É perfeita demais, tem talento a mais, é demasiado
1-63; Jr, 2, 2; o mesmo sucede no Novo Testamento – Ef, bonita e sofisticada. Ela é demais em tudo, excepto no que
5, 23-27; Ap, 19, 7; Ap, 21, 2). eu quero.
88 No filme «A janela indiscreta» («Rear Window», 1954), Stella – E pode falar aquilo que quer? (…)
de ALFRED HITCHCOCK - o nosso Realizador predi- (…)
lecto, filme com guião de JOHN MICHAEL HAYES, Stella – As pessoas de bom senso pertencem ao sítio onde estão.
baseado na história curta de CORNELL WOOLDRICH Jefferies – (…) Se ao menos ela fosse vulgar («ordinary»)…
-, há um diálogo notável entre a enfermeira da compa- Stella – Você nunca se vai casar?
nhia de seguros, Stella, e o protagonista, Jeffrey (J.B. Jefferies – Devo casar-me um dia destes, mas vai ser com al-
«Jeff», fotógrafo profissional, interpretado por JAMES guém que pense que a vida é mais do que um vestido novo,
STEWART), quando a primeira lhe está a dar banho (de- um jantar de lagosta e o último escândalo.
vido à sua perna esquerda estar fracturada engessada), na «Preciso de uma mulher que esteja disposta a… (…).
casa de Jeffrey (onde este vigia o que as outras pessoas do Disposta a ir a qualquer lado, a fazer qualquer coisa e a
prédio em frente, para passar o tempo). adorar isso. O que tenho de mais honesto a fazer é acabar
O diálogo, que se desenrola ao mesmo tempo em que com tudo, deixá-la encontrar outra pessoa.
Jefferies está a tomar banho, alude ao casamento (minu- Stella – Pois, já o estou a ouvir: «Sai da minha vida, mulher
tos 10 a 13). perfeita e maravilhosa! És boa demais para mim!».
Trata-se de um diálogo admirável em termos de conci- «Sr. Jefferies - Não tenho estudos, mas posso dizer-lhe uma
são: o receio de Jefferies (Jeffrey) casar com uma mulher coisa. Quando um homem e uma mulher se conhecem e gos-
que acha perfeita demais para si, e o senso comum da sua tam um do outro, devem ficar juntos, como dois táxis na
enfermeira; e, por outro lado, a simplicidade das coisas Broadway, e não ficar a analisar-se um ao outro como dois
simples, vista por uma mulher comum, do povo. especímenes em frascos.
«Stella – Sarilhos! (…) Jefferies – Aí está uma abordagem inteligente do casamento.
(…) Stella – Inteligência! Nada causou tantos problemas à raça
Jefferies – Sabe, acho que tem razão, vai haver sarilhos por humana como a inteligência.
aqui. «O casamento moderno…
Stella – Eu sabia. Jefferies – Progredimos emocionalmente.
(…) Stella – Tretas!
Stella - Que tipo de sarilhos? «Dantes conhecia-se uma pessoa, havia entusiasmo,
Jefferies – A Lisa Fremont [interpretada pela deslumbrante casava-se.
GRACE KELLY]. «Agora lêem muitos livros, discutem com muitas palavras
67.

compridas; fazem psicanálise um ao outro, até não consegui- Century, University of Chicago Press, 1981, pg. 82; IDEM,
rem distinguir entre uma troca de carícias e um exame para Same-sex unions in pre-modern Europe, Villard Books,
funcionário público. Nova Iorque, 1994, pg. 80; ambos citados por DAVID
Jeffrey – As pessoas têm níveis emocionais diferentes. MAGALHÃES, in Apontamento sobre o «matrimónio» de
Stella – Quando casei com o Myles, éramos os dois uns desa- pessoas do mesmo sexo no Direito Romano, in Boletim da
justados. Ainda somos uns desajustados, mas temos adorado Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol.
o tempo todo. LXXXV, 2009, pg. 812); bem como outros Autores que se
Jeffrey – Ainda bem, Stella. Arranja-me uma sanduíche, se seguiram a BOSWELL). Outros argumentos são fontes
faz favor? literárias (passagens de MARCIAL e de JUVENAL, de
Stella – Posso, e ponho também bom senso no pão. carácter notoriamente satírico) e políticas (as «práticas»
«A Lisa tem-lhe imenso amor. Tenho um conselho de três pa- dos Imperadores NERO e HELIOGÁBALO).
lavras para si: case com ela. O facto de o casamento ser entre homem e mulher não
Jeffrey – Ela pagou-lhe bem?» (ironia) (ri-se). precludia, evidentemente, a celebração de «nupciais»,
89 MANUEL GOMES DA SILVA, Direito de Família, com pompa e ritos, imitando o aparato de casamentos
Parte II, Do casamento, Tomo I, Apontamentos das Lições existentes, mas desprovidos de qualquer eficácia ou sequer
proferidas pelo Sr. Prof. Doutor GOMES DA SILVA no existência jurídica.
ano lectivo de 1970-71, coligidos pelo aluno José Manuel O que é mencionado refere-se evidentemente ao matri-
Rocha Pimentel, AAFDL, Lisboa, 1971, pg. 23. mónio da época «pagã»; pois, quanto ao matrimónio ro-
90 PLUTARCO, Erotika. Diálogo sobre o Amor, tradução, mano-cristão, não existe controvérsia de espécie alguma
Fim de Século, pgs. 82-83. (o matrimónio entre pessoas do mesmo sexo foi severa-
91 MANUEL GOMES DA SILVA aduz que «a união dos mente punido; por exemplo, uma constituição / decreto,
cônjuges, por mais intensa que se mostre, é sempre em grande no ano de 342, estabeleceu a proibição os de os homens
parte potencial, nunca consegue realizar a fusão completa casarem como se fossem mulheres, sob pena de morte;
das duas personalidades que se mantêm sempre duas apesar norma essa que foi reproduzida no «Codex Theodosianus»,
de muito unidas.» (in Direito de Família, Parte II, Do casa- 9, 7, 3).
mento, Tomo I, Apontamentos das Lições proferidas pelo Assim, não é de todo verdade que a proibição do casa-
Sr. Prof. Doutor GOMES DA SILVA no ano lectivo de mento entre pessoas do mesmo sexo tenha decorrido da
1970-71, pg. 25). Bíblia e sido interrompida pelo Direito Romano, antes
92 Não é verdade que o Direito Romano tivesse consagra- da influência cristã (em sentido contrário, ROBERT
do, ainda que esparsamente, o casamento entre pessoas FRAKES, Why the Romans are important in the debate
do sexo masculino. about gay marriage, in History News Network, reproduzi-
Com efeito, um dos requisitos de validade do «matrimo- do em http://hnn.us/articles/21319.html).
nium» romano era o da capacidade natural dos nubentes, Para a demonstração e no sentido defendido, DAVID
que deveriam ser capazes de procriar (tal era aferido pela MAGALHÃES, Apontamento sobre o «matrimónio» de
puberdade). pessoas do mesmo sexo no Direito Romano, pgs. 812-813, e
Outro elemento fundamental para o matrimónio era a 816 ss., em particular, 820.
«affectio maritalis». 93 O matrimónio é «a união do homem e da mulher [lite-
Por fim, nos fragmentos clássicos, não se dá a mais pe- ralmente, «união entre macho e fêmea»], consórcio de toda a
quena relevância (ainda que social) às uniões homosse- vida e comunicação do Direito divino e humano» («Nuptiae
xuais estáveis (neste sentido, DAVID MAGALHÃES, sunt coiunctio maris et feminae et consortium omnis vitae,
Apontamento sobre o «matrimónio» de pessoas do mesmo sexo divini et humani communicatio») (Mod. D. 13, 2, 1).
no Direito Romano, in Boletim da Faculdade de Direito da A expressão «omnis vitae» salienta os efeitos de ordem pa-
Universidade de Coimbra, vol. LXXXV, 2009, pg. 820). trimonial, insusceptíveis de serem postos de lado (neste
Em sentido contrário, alguns defensores do casamento sentido, PEDRO DE ALBUQUERQUE, Autonomia da
entre pessoas do mesmo sexo, como JOHN BOSWELL, vontade e negócio jurídico em Direito da Família (Ensaio),
baseando-se numa passagem de CÍCERO sobre a rela- Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (146), Centro de
ção entre MARCO ANTÓNIO e CURIO (CÍCERO, Estudos Fiscais, Lisboa, 1986, pg. 141 e nota 351).
Philippica, II, 44) (JOHN BOSWELL, Christianity, social 94 «a união do homem e da mulher com intenção de viverem
tolerance and homosexuality: Gay people in Western Europe em comunidade indissolúvel.» (Digesto, 23, 2, 1; Institutas
from the beginning of the Christian era to de Fourteenth («Institutiones (Iustiniani)»), 1, 9, 1; apud A. SANTOS
.68

JUSTO, Direito Privado Romano – IV (Direito da famí- Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Tribunal
lia), colecção Studia Iuridica do Boletim da Faculdade de Constitucional, Coimbra Editora, 2007, pg. 76.
Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 102 Neste preciso sentido, DAVID MAGALHÃES,
2008, pg. 61; NUNO DE SALTER CID, A comunhão de Apontamento sobre o «matrimónio» de pessoas do mesmo
vida à margem do casamento, pg. 85). sexo no Direito Romano, in Boletim da Faculdade de Direito
95 Recolhendo as reformas da definição de JUSTINIANO, da Universidade de Coimbra, vol. LXXXV, 2009, pg. 823.
PEDRO LOMBARDO († 1160) proporcionou uma de- 103 Os matrimónios clandestinos (sem a presença do pá-
finição que seria seguida pelos teólogos e canonistas: «As roco) foram declarados «nulos e írritos» pelo Concílio de
núpcias e o matrimónio são a união marital de homem e Trento (Sessão XXIV, De reformatione matrimonii, apud
mulher, entre pessoas legítimas, que retém uma comunida- PASCOAL JOSÉ DE MELO FREIRE, Institutiones Juris
de indivisível de vida» («Sunt igitur nuptiae vel matrimo- Civilis Lusitanis cum Publici tum Privatum, II, 1815 (tra-
nium viri mulierisque coniunctio maritalis inter legitimas dução de MIGUEL PINTO DE MENESES: Instituições
personas, individuam vitae consuetudinem retinens») (apud de Direito Civil Português. Tanto público como particular,
JOSÉ ANTÓNIO GOMES DA SILVA MARQUES, 1779, Livro II, Título V, § 10, reproduzido in Boletim
Direito sacramental, II, Universidade Católica Editora, do Ministério da Justiça, números 161 ss., disponível em
Lisboa, 2004, pg. 12). http://www.fd.unl/Anexos/Investigacao/1007.pdf ) (ape-
96 Apud DIOGO LEITE DE CAMPOS, A invenção do sar de, anteriormente, os casamentos clandestinos se-
Direito matrimonial (1986), in IDEM, Nós. Estudos sobre o rem válidos – como o prova um passo das Ordenações
Direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, pg. 272. Manuelinas (Livro 2, título 47, § I)). Todavia, em 1651,
97 «Matrimónio es ajuntamiento de marido, e de muger foram estabelecidas penas civis e temporais por D. JOÃO
(…)» (Ley I, Título II). IV).
98 Código de Direito Canónico de 1917, cânone 1055, 1.º - 104 No Direito Civil, anteriormente dizia-se que «os escra-
«O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher cons- vos entre si se dizem estar não em matrimónio, mas contubér-
tituem entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenada nio» (MANOEL BORGES CARNEIRO, Direito Civil de
por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e Portugal, Tomo II. Continuação do Livro I, Lisboa, 1851,
educação da prole (…)». pg. 31).
99 Este Concílio Vaticano II alude ao matrimónio como 105 Este foi um aspecto em que, historicamente, se re-
a «íntima comunidade conjugal de vida e amor [que] se gistaram oscilações. No Direito grego, o contrato de ca-
estabelece sobre a aliança dos cônjuges, isto é, sobre o consen- samento era feito entre noivo e pai da noiva; todavia, no
timento pessoal e irrevogável» (Gaudium et Spes, n.º 48). Direito romano, o princípio do consentimento da noiva
O Papa JOÃO PAULO II referiu-se a este texto, quando, afirmou-se.
ao falar da plena doação que o matrimónio supõe, acres- Igualmente se regista oscilação durante o período da
centa: «isto é, o pacto de amor conjugal ou escolha consciente Idade Média e da Idade Moderna.
e livre, com que o homem e a mulher aceitam a comunidade 106 V., desenvolvidamente, ANTÓNIO MANUEL
íntima de vida e amor, querida pelo próprio Deus (…)» (Ex. HESPANHA, A perspectiva histórica e sociológica, in
Ap. Familiaris consortio, n.º 11) (apud JOSÉ ANTÓNIO A feitura das leis, volume II, Comunicações apresen-
GOMES DA SILVA MARQUES, Direito sacramental, II, tadas no Curso organizado pelo Instituto Nacional
pg. 12). de Administração, no âmbito do Departamento de
100 «Matrimónio é a associação permanente do homem e Administração Pública, coordenação de JORGE
da mulher (...)» (MANUEL BORGES CARNEIRO, MIRANDA / MARCELO REBELO DE SOUSA, com
Direito Civil de Portugal, Tomo II. Continuação do Livro colaboração de MARTA TAVARES DE ALMEIDA,
I, Lisboa, 1851, pg. 16); «O casamento é um contracto (....) Instituto Nacional de Administração, Oeiras 1986, pgs.
pelo qual duas pessoas de sexo diverso se associam perpetua- 59 ss.
mente» - Proposta de alteração de ANTONIO LUIZ DE 107 Assim, EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito
SEABRA, em sede da «Comissão revisora» (mencionada Internacional Público, Direito Internacional Público.
por ANTONIO LUIZ DE SEABRA, in Duas palavras Conceito e fontes, vol. I, 1.ª ed., Lex, Lisboa, 1998, pg. 93.
sobre o casamento. Pelo redactor do codigo civil, Imprensa 108 A título de exemplo, as Constituições liberais mo-
Nacional, Lisboa, 1966 (pg. 5)). nárquicas portuguesas não se referem ao casamento,
101 Apud MESSIAS JOSÉ CALDEIRA BENTO, senão incidentalmente, ao regularem a cidadania, refe-
Itinerários do Direito Matrimonial, in Estudos em rindo-se aos «filhos ilegítimos de Mãe portuguesa» – cfr.
69.

art.º 21.º, 2.º inciso, da Constituição de 1822; art.º 7.º, § (ARIANE VIDAL-NACQUET, Table ronde. Constitution
2.º, da Carta Constitucional de 1826; art.º 6.º, 2.º inci- et famille(s): France, in Annuaire International de Justice
so (cfr. também 3.º) da Constituição de 1838), por duas Constitutionnelle, XXIV, 2008, Economica, Paris, 2009,
ordens de razões: pg. 194)).
i) A ausência de separação entre Estado e Igreja; sendo o 112 «É reconhecido o direito de o homem e de a mulher con-
casamento católico regulado pelo Direito canónico (mes- traírem casamento (…)».
mo Estados liberais em que o Estado era laico, sendo este 113 Outras normas pressupõem também a diversidade
fenómeno recente, igualmente não consagrava esse direito de sexos: as constantes dos arts. 5.º e 6.º, ns. 1 e 2, da
nas Constituições); tratava-se de um sistema matrimonial Declaração sobre a eliminação da discriminação contra
exclusivamente religioso – o Direito civil ignorava o ins- a mulher, de 7 de Novembro de 1967; o art.º 16.º, n.º 1,
tituto do casamento por completo (cfr. PAULO OLAVO alíneas a), b) e c), da Convenção sobre a eliminação de
CUNHA, O sistema matrimonial português – algumas con- todas as formas de discriminação contra as mulheres, de
siderações acerca da coexistência do casamento civil e do ca- 18 de Dezembro de 1979.
samento católico, in Direito e Justiça, Revista da Faculdade 114 Considerando que se trata de uma norma em con-
de Direito da Universidade Católica Portuguesa, volume formidade com a tradição e a consciência jurídica uni-
VII, 1993, pgs. 53-54, 56, 57). versal, JORGE MIRANDA, em declarações à TSF, 1 de
Mesmo quando esse sistema deu lugar ao sistema de ca- Fevereiro de 2006.
samento civil facultativo, no Código de Seabra, a nova 115 Em sentido contrário, considerando que só adqui-
modalidade do casamento civil teve pouca adesão ou apli- riu carácter «juris cogentis» a partir de 1948, EDUARDO
cação prática; CORREIA BAPTISTA, «Ius Cogens» em Direito
ii) A ausência de tratamento dogmático das garantias Internacional, pgs. 407-409.
institucionais. 116 Neste sentido, EDUARDO CORREIA BAPTISTA,
A Constituição de 1911 veio prever esparsamente o ca- Direito Internacional Público, I, 1.ª ed., pg. 93.
samento, ao referir sucintamente que o «estado civil e os 117 Cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito
respectivos requisitos» eram da «exclusiva competência da Internacional Público, I, 1.ª ed., pg. 93. O enraizamento
autoridade civil». Na verdade, o conceito e o regime es- ou efectividade constitui um facto a que são atribuídos
tavam regulados nas leis ordinárias, desde o interregno efeitos jurídico-normativos, por força de considerações
que a precedeu, sobretudo no Decreto n.º 1, de 25 de sociológicos (cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA,
Dezembro de 1910. Direito Internacional Público, I, 1.ª ed., pg. 93).
109 Muitos outros exemplos poderiam ser dados: 118 Considerando que a Jurisprudência recente do
A Constituição húngara apenas reconhece o casamen- Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, após o
to entre homem e mulher (v. Table ronde. Constitution Acórdão «Goodwin», «parece manter a exigência de se-
et famille(s): Hungrie, in Annuaire International de Justice xos diferentes» (sem prejuízo de aceitar uma noção mais
Constitutionnelle, XXIV, 2008, Economica, Paris, 2009, lata de sexo), ANA MARIA GUERRA MARTINS,
pg. 241). Direito Internacional dos Direitos Humanos. Relatório.
110 Assim mesmo sucedia nos Estados da família consti- Programa, conteúdos e métodos de ensino teórico e prático,
tucional de matriz soviética (por exemplo, na legislação Almedina, Coimbra, 2006, pg. 241; também CRISTINA
soviética sobre casamento e família: «(…) As relações fa- MANUELA ARAÚJO DIAS, O casamento como contrato
miliares assentam na união voluntária e marital entre um celebrado entre duas pessoas (de sexo diferente ou do mes-
homem e uma mulher (…)» (art.º 1.º); na Lei jugoslava de mo sexo(!)),in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor
3 de Abril de 1966 («O casamento é uma comunhão de vida Carlos Ferreira de Almeida, volume III, Comissão orga-
entre homem e mulher (…)»); no Código Civil Cubano nizadora: JOSÉ LEBRE DE FREITAS / RUI PINTO
(«O casamento é a união voluntariamente consentida entre DUARTE / ASSUNÇÃO CRISTAS / VÍTOR PEREIRA
um homem e uma mulher (…)»)). DAS NEVES / MARTA TAVARES DE ALMEIDA,
111 Assim, a título de exemplo, na Lei Fundamental de Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa,
Bona; na Constituição francesa de 1958, que não contém Almedina, Coimbra, 2011, pg. 388.
um catálogo de direitos (a sentença da Cour de cassation 119 SUSANA ALMEIDA, O respeito pela vida (priva-
(Cass. civ., 1.er, 13 de Março de 2005, n.º 05-16-627) re- da e) familiar na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos
fere que, para ser legal o casamento terá de ser misto, Direitos do Homem: a tutela das novas formas de família,
entendendo que viola a Constituição e o seu preâmbulo diss., Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
.70

Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, 2008, fundamentos do casamento, que não cabe na economia
pgs. 252-253. deste artigo.
120 Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do 131 EDUARDO CORREIA BAPTISTA, «Ius Cogens» em
Direito e ao Discurso Legitimador, pg. 182. Direito Internacional, pgs. 382, 383-384, 388.
121 ANA MARIA GUERRA MARTINS, Direito 132 Cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Relatório…, 2006, Internacional Público, I, 1.ª ed., pg. 92 (apesar de não se
pg. 197. referir explicitamente às normas «juris cogentis» que im-
122 Como a Autora refere (SUSANA ALMEIDA, O res- põem obrigações «erga omnes» mediatas, por tutelarem
peito pela vida (privada e) familiar na Jurisprudência do um interesse comum colectivizado).
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pg. 107). 133 Em sentido contrário, cfr. CARLOS BLANCO DE
123 EDUARDO CORREIA BAPTISTA, in «Ius Cogens» MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pgs. 37-39.
em Direito Internacional, pgs. 284-287, 338, 345-346, 383 134 Assim, são nulas as poucas leis estaduais que consagra-
(nota 285), 387, 388-389, 395, 396, 474-475; et in Direito ram o casamento entre pessoas do mesmo sexo: a lei ho-
Internacional Público, I, 1.ª ed., pgs. 130, 133-134, 138-139. landesa («Same-Sex Mariage Act», de 2001); a lei espanhola
124 Cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, «Ius (Lei n.º 13/2005, de 1 de Julho, cujo artigo único deu uma
Cogens» em Direito Internacional, pg. 388. nova redacção ao art.º 44.º do Código Civil espanhol); a
125 Cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA - «Ius norueguesa; a sueca; a francesa (em Abril de 2013, com
Cogens» em Direito Internacional, pg. 382. um processo legislativo que decorreu com muita contes-
126 Sublinhando a ligação destas normas de «Ius Cogens» tação por parte da sociedade civil, designadamente em
a interesses de conteúdo ético, a valores culturais, que mega-manifestações); no Reino Unido (Maio de 2013); no
a prática afirma e concretiza ou cristaliza numa nor- continente americano, o Canadá («Civil Marriage Act»,
ma jurídica, EDUARDO CORREIA BAPTISTA, «Ius de 2005); e alguns Estados federados norte-americanos:
Cogens» em Direito Internacional», pgs. 287, 382-384 (e Massachussets (2004), Connecticut (2008), Iowa (2009),
nota 285), 389; IDEM, Direito Internacional Público, I, Vermont (2009), Maine (2009), New Hampshire (2010),
1.ª ed., pgs. 91, 92. Washington (Fevereiro de 2012), Maryland (Novembro
«A concretização de certos valores numa norma pode não ser de 2012, na sequência de referendo), Maine (também em
líquida, mas a aplicação dessa norma em certos casos, ou a Novembro de 2012, seguidamente a um referendo); na
afirmação da sua validade em abstracto pelos membros da América do Sul, Argentina e Uruguai (Abril de 2013); na
comunidade [leia-se, nas Constituições estaduais ou nas Oceânia, a Nova Zelândia (Abril de 2013).
leis internas, no caso do casamento], cria precedentes. Ora, Ao nível da Jurisprudência, uma decisão do Supremo
estes desenvolvem nos membros a expectativa legítima da Tribunal Federal de 1972 não admitia o casamento entre
sua aplicabilidade futura e, portanto, da licitude dos actos pessoas do mesmo sexo.
conformes a ela.» (EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Nos Estados Unidos da América, foi aprovada a «Lei de
Direito Internacional Público, I, 1.ª ed., pg. 92). Defesa do Casamento» de 1996 («Defence of Marriage Act»,
127 HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, trad. de conhecida pela abreviatura «DOMA»). À época, não exis-
ORLANDO VITORINO, 4.ª ed., Guimarães Editores, tiam leis dos Estados federados norte-americanos que
Lisboa, 1990, § 167 - nota, pg. 167. permitissem o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
128 Este argumento é aventado por JUSTIN T. Posteriormente, quando começaram a existir algumas leis
WILSON, in Preservationism, or The Elephant in the que permitiam o «casamento» entre pessoas do mesmo
Room: How Opponents of Same-Sex Marriage Deceive Us sexo, devido à «DOMA», casais do mesmo sexo não po-
into Establishing Religion, 14, Duke Journal of Gender Law diam receber o mesmo tipo de benefícios e direitos que
& Policy, January, 2007, pp. 561 ss. (apud JÓNATAS casais do sexo oposto, como isenções fiscais, pensões de
MACHADO, A (in)definição do casamento no Estado viuvez, etc.
constitucional, in Família, Consciência, Secularismo e A esse respeito, no caso «USA versus Edith Windsor», o
Religião, Coordenação Científica de GUILHERME Supremo Tribunal dos EUA considerou que as normas
DE OLIVEIRA / JÓNATAS MACHADO / ROSA da aludida «Lei de Defesa do Casamento» de 1996 seriam
MARTINS, Coimbra Editora, 2010, pg. 26 (nota 44)). inconstitucionais.
129 EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito Numa votação à tangente (5 votos a favor, 4 contra), os
Internacional Público, I, 1.ª ed., pg. 92. Juízes consideraram que a lei, ao definir o casamento
130 Nesta problemática, importaria abordar os como a união entre um homem e uma mulher, permitia
71.

negar benefícios pagos pelo Governo federal a casais ho- SANTOS, Mudam-se os tempos, mudam-se os casamentos?,
mossexuais formados em estados que legalizaram estas pgs. 156 e 157).
uniões. 139 A diversidade sexual, como característica concei-
A inconstitucionalidade da lei residiria «na privação tual do casamento, foi reconhecido nos Acórdãos do
do acesso à liberdade das pessoas que é protegida pelo 5.º Tribunal Europeu dos Direitos do Homem «Rees «ver-
Aditamento». sus» United Kingdom», de 24 de Janeiro de 1986, A 106,
Tal decisão judicial permite alargar aos casais homos- § 49; Sheriff e Horsham v. Reino Unido, de 30 de Julho de
sexuais todos os direitos dos casais heterossexuais, nos 1998, R98-V, § 66 (também no Relatório de 7 de Março
12 Estados e na cidade de Washington, onde existem de 1989, Queixa n.º 111 095, Décisions et Rapports 63, p.
leis que permitem o casamento entre pessoas do mes- 34, e Decisão de 9 de Novembro de 1989, Queixa n.º 14
mo sexo (cfr. notícia Supremo dos EUA reconhece direitos 573/89, Décisions et Rapports 63, p. 213) (apud IRENEU
iguais aos casais «gay», in Público, 26 de Junho de 2013, CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos
reproduzida em http://www.publico.pt/mundo/noticia/ do Homem. Anotada, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1999, ano-
supremo-dos-eua-reconhece-direitos-iguais-aos-casais- tação ao art.º 12.º, pg. 300).
-gay-1598453#/0). Note-se que o Acórdão de 11 de Setembro de 2002
135 Mais de metade dos Estados federados norte-america- (Goodwin «versus» Reino Unido, §§ 100-101), proferido
nos (pelo menos, 29), a começar pelo Estado do Hawai, a propósito de um casamento de um trans-sexual, não
aprovou alterações às respectivas Constituições, definin- alterou o pressuposto da diversidade sexual, não tendo
do o casamento como sendo celebrado entre homem e «alargado» a definição do casamento para lá de uma união
mulher (para mais desenvolvimentos sobre tais alterações entre pessoas do mesmo sexo (sem prejuízo de ter abando-
constitucionais, DUARTE SANTOS, Mudam-se os tem- nado o critério do sexo biológico (cromossómico), ante-
pos, mudam-se os casamentos? O casamento entre pessoas riormente defendido) (v. DUARTE SANTOS, Mudam-se
do mesmo sexo e o Direito português, diss., Faculdade de os tempos, mudam-se os casamentos?, pgs. 98, 164-265 (nota
Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito 565), 268 (nota 567), 279, 281; NUNO DE SALTER
da Família, Coimbra Editora, 2009, pgs. 186, 193, 194, CID, A comunhão de vida à margem do casamento, pgs.
198, 200-201). 507 (nota), 705-706) (ao contrário do que foi afirmado no
Em rigor, tais revisões constitucionais não eram necessá- caso «Teresa e Helena» (Teresa Pires e Helena Paixão), nas
rias, dado que havia desde logo violação do «Ius Cogens» alegações de recurso no Tribunal Cível de Lisboa, apud
e também do Direito Internacional convencional – o DUARTE SANTOS, Mudam-se os tempos, mudam-se os
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a casamentos?, pg. 63; e no Acórdão n.º 121/2010 do TC).
Convenção Americana sobre os Direitos do Homem 140 Posição de insignes Autores da especialidade, desig-
(também conhecido por Pacto de São José). nadamente A. FERRER CORREIA, Lições de Direito
Em todo o caso, são expressões directas de reiteração da Internacional Privado. I, Almedina, Coimbra, 2000, pg.
solução costumeira, que tem valor «iuris cogentis». 427; JOÃO BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito
136 Cfr. DUARTE SANTOS, Mudam-se os tempos, mu- Internacional Privado, 3.ª ed., reimpressão, Almedina,
dam-se os casamentos?, pg. 216. Coimbra, 1999, pg. 248; LUÍS DE LIMA PINHEIRO,
137 Adiante, aludir-se-á às consequências dos actos derro- Direito Internacional Privado, I, 2.ª ed., Almedina,
gatórios de «Ius Cogens». Coimbra, 2008, Cap. XIII; ANTÓNIO MARQUES
138 Assinale-se também a curiosidade de haver uma an- DOS SANTOS, A aplicação do Direito estrangeiro, in
tinomia, no âmbito do Direito constitucional interno, Revista da Ordem dos Advogados, ano 60, II, Abril de
nos Estados cuja forma institucional é monárquica: na 2000, pgs. 660 ss. (645-668). Cfr. PAULO OTERO,
Holanda (cfr. art.º 28.º da respectiva da Constituição) e Legalidade e Administração Pública, pgs. 505-506, com re-
em Espanha, a pessoa titular da Chefia de Estado encon- ferências bibliográficas.
tra-se excluída da titularidade desse «direito» de contrair 141 Aliás, nem seria necessário que a norma internacio-
casamento com uma pessoas do mesmo sexo (o art.º 58.º nal violada fosse «iuris cogentis» - neste sentido, Instituto
da Constituição espanhola «la Reina consorte o el consor- de Direito Internacional, Resolução sobre a actividade do
te de la Reina no podrán asumir funciones constitucionales, juiz interno nas relações internacionais do Estado (art.º
salvo lo dispuesto para ala Regencia»); pode falar-se numa 3.º, n.º 1, 2.ª parte); EDUARDO CORREIA BAPTISTA,
antinomia ao nível da ordem jurídica (e, em termos jus- «Ius Cogens» em Direito Internacional, pg. 523 (nota 97),
fundamentais, em perda da titularidade (cfr. DUARTE com mais referências (designadamente Institut de Droit
.72

de l»Institut de Droit International, na Resolução «The ac- 146 Adoptando, claro está, a teoria do monismo, com pri-
tivities of national judges and the International relations of mado do Direito Internacional.
their State», artigo 3.º, in Annuaire International de Droit 147 Assim, precisamente, PAULO OTERO, Legalidade e
International, vol. 65, II, 1994, pp. 318-323); LUÍS DE Administração Pública, pg. 505.
LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, I, 2.ª Para mais desenvolvimentos sobre a recepção dos actos
ed., n.º 48.A, pg. 599: o Direito Internacional Público é públicos estrangeiros, v. PIERRE CALLÉ, L»acte public
um limite à aplicação do Direito estrangeiro, diverso do en droit international privé, diss., Economica, Paris, 2004,
da reserva da ordem pública. pgs. 163 ss., em especial, 243-351.
142 Cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, «Ius 148 Sobre a noção de ordem pública em Direito
Cogens» em Direito Internacional, pgs. 516, 522-525. Internacional Privado, v., desenvolvidamente,
143 Em sentido contrário, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, As normas de
Direito Internacional Privado, II, 3.ª ed., Almedina, aplicação imediata no Direito Internacional Privado. Esboço
Coimbra, 2009, n.º 71.C), pg. 523. de uma Teoria Geral, diss., I vol., Almedina, Coimbra,
A norma do art.º 46.º, n.º 2, da Lei belga de 16 de Julho 1991, pgs. 200-226.
de 2004 («Loi portant le Code de droit international pri- 149 Conforme defendemos em Casamento entre pessoas
vé») (que revogou, entre outros, o art.º 170ter do Código do mesmo sexo: um «direito fundamental» à medida da lei
Civil belga) consagrou uma solução de «anti-bloqueio»: ordinária?, in Lex Familiae. Revista Portuguesa de Direito
afasta a disposição, aplicável «às condições de validade do da Família, Centro de Direito da Família, Coimbra
casamento», que proíba o casamento de pessoas do mesmo Editora, ano 7, n.º 13, 2010, pgs. 61-63; e, sucintamen-
sexo, quando uma das partes tenha a nacionalidade de te, em Declaração Universal dos Direitos do Homem, in
um Estado ou a sua residência habitual num Estado que Enciclopédia da Constituição Portuguesa, coordenação
permita esse casamento (pelo que, mesmo que a lei nacio- de JORGE BACELAR GOUVEIA / FRANCISCO
nal de qualquer dos nubentes considerasse nulo ou inexis- PEREIRA COUTINHO, Quid Juris, Lisboa, 2013, pgs.
tente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aqueles 101- 102.
poderiam prosseguir com o processo, desde que um deles 150 Segundo alguma Doutrina, a própria lei aplicável, v.
fosse nacional de um país que admitisse esse casamento g., em matéria de relações entre os «cônjuges», não pode
ou tivesse a sua residência habitual. O que, na prática, ser indiferente «à justiça conflitual – e por conseguinte ao
permitiria que dois cidadãos portugueses, residentes num sistema axiológico do ordenamento jurídico»; não sendo as
país cuja legislação consagrasse o casamento entre pessoas normas de conflitos «regras axiologicamente neutrais» -
do mesmo sexo (como a Holanda) e que aí tivessem con- ANTÓNIO FERRER CORREIA, A revisão do Código
traído «matrimónio», vissem a sua união reconhecida na Civil e o Direito Internacional Privado, in IDEM, Estudos
Bélgica (seria também permitido que dois portugueses, vários de Direito, Coimbra, 1982, pg. 283.
desde que um deles residisse na Bélgica, pudesse contrair 151 Criticando o recurso excessivo à reserva de ordem
casamento nesse país). pública internacional, ANTÓNIO MARQUES DOS
A nosso ver, a norma citada é nula, em face do «Ius Cogens» SANTOS, As normas de aplicação imediata no Direito
(cfr. ANTÓNIO FRADA DE SOUSA, Celebração de ca- Internacional Privado. Esboço de uma Teoria Geral, diss., I
samentos homossexuais por estrangeiros em Portugal — uma vol., Almedina, Coimbra, 1991, pgs. 171 ss.
singularidade portuguesa, pg. 42 e nota 19; DUARTE 152 Já que vale entre nós o princípio «jura novit curia» -
SANTOS, Mudam-se os tempos, mudam-se os casamen- ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, A aplicação do
tos?, pg. 164 (e nota 327); LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito estrangeiro, pg. 661.
Direito Internacional Privado, II, 3.ª ed., Almedina, 153 Salvo o devido respeito, por estas razões, não se
Coimbra, 2009, n.º 71.C), pg. 523 (nota 1266)). pode acompanhar a conclusão do Professor MIGUEL
144 Em sentido contrário, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, TEIXEIRA DE SOUSA, que defende o reconhecimen-
Direito Internacional Privado, II, 3.ª ed., Almedina, to do casamento entre pessoas do mesmo sexo, devido
Coimbra, 2009, n.º 71.C), pg. 523. a não violar a ordem pública internacional (in O casa-
145 Argumento de CALVO CARAVACA / mento em Direito Internacional Privado: alguns aspectos, in
CARRASCOSA GONZÁLEZ, in Derecho Internacional Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques
Privado, vol. II, 9.ª ed., Granada, 2008, pp. 1304 ss., dos Santos, volume I, Almedina, Coimbra 2005, pgs. 440-
apud LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional 441; também com essa opinião, RITA LOBO XAVIER,
Privado, II, 3.ª ed., n.º 71.C), pg. 523 (nota 1268). Ensinar Direito da Família, Publicações Universidade
73.

Católica, Porto, 2008, pgs. 83-84 (nota 70); LUÍS DE pg. 428; ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA / FAUSTO
LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, II, 3.ª DE QUADROS, Manual de Direito Internacional
ed., n.º 71.C), pgs. 523-524, embora não invocando essa Público, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, reimpressão da edi-
fundamentação a título principal (citando apenas Autores ção de 1993, 1997).
estrangeiros e nacionais que a invocam (nas nota 1269 e JORGE MIRANDA rejeita-o (in Curso de Direito
1270)). Internacional Público, 5.ª ed., Principia, Cascais, 2012,
154 a) Diferente é o casamento poligâmico, pois aqui ine- n.º 54). Cfr. a queixa apresentada , em 1992, à Comissão
xiste norma «iuris cogentis» (pelo menos, universal) aplicá- Europeia dos Direitos do Homem, em que uma mulher
vel que o proíba (em rigor, o art.º 16.º, n.º 1, da DUDH pretendia reunir-se com o marido, julgada inadmissível
não se refere ao casamento poligâmico; destarte, não o em virtude da concepção de família monogâmica prepon-
proíbe); pelo que acompanhamos MIGUEL TEIXEIRA derante na Europa.
DE SOUSA e RITA LOBO XAVIER, nas obras referi- 155 Cfr. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, A
das; entendimento semelhante tem sido defendido pela aplicação do Direito estrangeiro, pg. 663.
Jurisprudência francesa (cfr. também JORGE DUARTE 156 Cfr. PAULO OTERO, Legalidade e Administração
PINHEIRO, O núcleo intangível da comunhão conjugal, Pública, pg. 507.
2004, pgs. 520-521; considerando que, apesar de violar a 157 Ainda que assim se não entendesse, a doutrina do
ordem pública internacional do Estado português, há uma Direito Internacional Privado entende que o poder de
operação de «sinépica» (a sinépica consiste na ponderação um tribunal português emitir um juízo de inconstitu-
dos efeitos das decisões sobre casos «sub judice»; a tradu- cionalidade, face a uma Constituição estrangeira, deve
ção da expressão alemã «Synepeik», ao que sabemos, terá ser bastante comedido, exigindo-se a máxima prudência
sido introduzida na Doutrina portuguesa pelo Professor (devendo existir, para além do pressuposto da existência
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO – sobre a siné- de um sistema de fiscalização jurisdicional que preveja
pica, cfr. PAULO OTERO, Legalidade e Administração a fiscalização concreta, Jurisprudência e um sector bem
Pública, pg. 267; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, representativo da Doutrina, existentes naquele país, que
Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo já se tenham pronunciado sobre a matéria; sendo desa-
I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, n.º 34.VI-VII, pgs. 152- conselháveis decisões inovatórias ou originais) (neste
153; IDEM, Tendências actuais da interpretação da lei: do sentido, por exemplo, JOÃO BAPTISTA MACHADO,
juiz-autómato aos modos de decisão jurídica, in Revista Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed., reim-
Jurídica (AAFDL), ns. 9-10, Janeiro-Junho de 1987, pg. pressão, Almedina, Coimbra, 1999, pg. 244 (também
15; IDEM, Introdução à edição portuguesa da obra de 245 e 246); JORGE MIRANDA, Manual de Direito
CLAUS-WILHELM CANARIS, Pensamento sistemático Constitucional, Constituição, Tomo II, 6.ª ed., Coimbra
e conceito de sistema na Ciência do Direito (original ale- Editora, 2007, n.º 80.II (a 7.ª ed. encontra-se no prelo),
mão: Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, pg. 357 (o Autor exige, dubitativamente, que se trate de
2.ª ed., Duncker & Humblot, Berlim, 1983, Berlim), uma inconstitucionalidade evidente); PAULO OTERO,
Introdução e tradução de A. MENEZES CORDEIRO, Direito Constitucional Português, volume II, Organização
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pgs. CX-CXI, e bi- do Poder Político, 1.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010,
bliografia citada (W. FIKENTSCHER, Synepeik und eine 20.2.2b).III, pg. 446 (aludindo ao especial melindre para
synepeische Definition des Rechts, Entstehung und Wandel o Estado do foro, se a interpretação da Constituição
rechtlicher Traditionen, 1980, pp. 53-120) («flexibilização estrangeira for difícil); FLORBELA DE ALMEIDA
da ordem pública internacional em relação aos efeitos», res- PIRES, Conflitos de leis. Comentário aos artigos 14.º a 65.º
tringindo estes últimos), LUÍS DE LIMA PINHEIRO, do Código Civil, Coimbra Editora, 2009, pg. 49).
Direito Internacional Privado, I, 2.ª ed., n.º 47.B, pgs. 158 Um dos exemplos dados de uma norma de aplicação
594-595; também ANA RITA GIL, Do reconhecimento de imediata é precisamente o das que regulam o casamento
efeitos jurídicos a casamentos poligâmicos (reproduzido em (v. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, As normas
http://www.fd.unl.pt/Anexos/2502.pdf )). de aplicação imediata no Direito Internacional Privado.
b) A questão jurídica é a de saber se existirá um «Ius Esboço de uma Teoria Geral, volume II, diss., pgs. 927-928
Cogens» regional proibitivo (admitem o «Ius Cogens» (nota 2892), 932, 953-954 (nota 2958)).
regional: EDUARDO CORREIA BAPTISTA, «Ius 159 Cfr. a cláusula federal, prevista no art.º 28.º da
Cogens» em Direito Internacional, pgs. 291, 389-390, 354 Convenção Americana sobre os Direitos do Homem,
(nota 212); IDEM, Direito Internacional Público, I, 1.ª ed., de 1969.
.74

Massimo la Torre*
DIREITO NATURAL, POSITIVISMO JURÍDICO E O
LUGAR DO DIREITO COMO INSTITUIÇÃO

PRELIMINARES vida a declarar aquilo que o Direito é. Mas aquilo que


o Direito é é uma questão controversa. Na realidade,
Um tópico central da ciência, teoria e filosofia do Direito uma questão jurídica é, de certa forma, uma luta acerca
é a controvérsia e distinção entre o Direito Natural e o de qual o Direito que deve ser declarado como sendo o
positivismo jurídico. Este tópico é central porque o que Direito.
está aqui em jogo é o conceito de Direito, ou seja, aquilo
que o Direito é. Mas por que razão é que uma questão Para além disso, a realidade que o Direito define não é
conceptual deverá ter interesse para juristas e estudantes um qualquer pedaço de matéria, não é realidade dura,
de Direito ao invés de permanecer simplesmente um as- uma pedra; não é um item de facto bruto, algo pareci-
sunto de disputas estéreis entre filósofos? Por que razão do com uma tempestade ou um terramoto. A realidade
deveremos envolver-nos em considerações e numa dis- que o Direito define é, de certa forma, imaterial. Em
cussão que não parece ser capaz de influenciar a resolu- particular, no Direito o que o Direito de facto é é o que
ção de questões jurídicas concretas? o Direito deve ser, tem de ser. O Direito é a sua norma-
tividade. É feito – por assim dizer – de normatividade.
Gostaríamos, em primeiro lugar, de destacar uma carac-
terística especial da prática jurídica, que se consubstan- Não é fácil identificar e localizar a normatividade. As
cia no facto de que esta almeja, sendo frequentemente pessoas precisam de se pôr de acordo em relação a esta.
concluída por, ou levando a, uma definição do que o Não existe simplesmente; deve ser apoiada. Acaba, dessa
Direito é, embora tal seja normalmente feito com refe- forma, por depender daquilo que as pessoas acreditem
rência a uma ocasião em concreto. As pessoas estudaram que ela é. No final, no caso do Direito, ela depende par-
e continuam a estudar Direito para poderem ganhar a cialmente do que acreditamos e julgamos que o Direito
75.

é. O Direito não tem verdade, mas há uma verdade do positivismo jurídico) como sendo prescrições completa-
Direito sem verdade que, na realidade, não é uma ques- mente dependentes da vontade humana. Aqui, a distin-
tão de decisão. É uma questão de discurso. Desta for- ção entre os dois tipos de Direito é, por vezes, tida como
ma, mas quiçá só desta, poderemos dizer que o Direito é equivalente à existente entre o Direito pré-moderno e
auto referencial1. Se esta for a nossa posição fenomeno- o Direito moderno. «The modern age – diz Hannah
lógica perante o Direito, a busca e a discussão acerca da Arendt – believes that truth is neither given nor disclo-
sua definição, poderemos agora ver a controvérsia entre sed to but produced by the human mind»3.
o Direito Natural e o positivismo jurídico não só como
uma questão para filósofos do Direito, isolados em tor- Verum factum – esta é a fórmula famosa de Giovambattista
res de marfim ou em departamentos de filosofia, mas Vico: Nós não recebemos a verdade passivamente; nós
também como um assunto para os juristas que exercem fazemo-la. Assim sendo, «a verdade» pode somente ser
e para os tribunais. predicada em declarações respeitantes a entidades que
nós humanos sejamos capazes de fabricar. Do que não
Se esta for a nossa posição fenomenológica perante o podemos fabricar não somos capazes de dizer qualquer
Direito, bem como perante a procura pela sua definição, verdade. A crença, por outro lado, é experienciada como
poderemos agora ver a controvérsia entre o Direito na- vontade em acreditar. «A verdade», de certa forma, é o
tural e o positivismo jurídico não só como uma questão que acreditamos e temos vontade que seja verdade. De
para filósofos do Direito isolados em torres de marfim ou facto, a partir de tal perspectiva a própria realidade é
em departamentos de filosofia, mas também como um uma questão de vontade: «Das Sein des Seiendes ers-
assunto para os juristas que exercem e para os tribunais. cheint in der neuzeitlichen Metaphysik als der Will» –
diz Martin Heidegger4.
<< Any reading of law is an explanation of law >>2 -
esta é uma visão confirmada pela prática. Mas então, se Desta forma, se esta for a visão paradigmática da era mo-
o Direito é, de certa forma, a sua própria definição, a derna, então o seu «verdadeiro» Direito não pode dei-
conclusão que poderemos plausivelmente retirar é a de xar de ser «positivo», aquele que é fabricado pelos seres
que o Direito é a sua filosofia. O Direito é uma filosofia humanos. Daqui resulta que todo o Direito verdadeiro
do Direito. é Direito criado, sendo que a criação de uma norma ju-
rídica é uma questão de vontade e de decisão. O Direito
Natural, um Direito que não pode ser produzido, ou
1. O DIREITO NATURAL E O POSITIVISMO JURÍDICO. que não é uma questão de vontade, que não podemos na
realidade transformar numa questão de decisão, dificil-
Comecemos por uma curta explicação ou interpretação mente poderá, por isso, ser um Direito da modernidade.
da oposição entre o Direito Natural e o positivismo jurí-
dico. Podemos interpretar esta distinção pelo menos de (ii) A segunda forma de modelar aquela distinção é con-
três formas diferentes. ceber o Direito Natural como um Direito justificado por,
e válido numa, situação especial (normalmente pensada
(i) De uma primeira forma, o Direito Natural enquanto não como «histórica», mas somente como «hipotética»):
sistema de regras independentes da vontade humana é o estado de natureza, ao passo que o Direito positivo é o
contrastado com o Direito positivo (o Direito segundo o conjunto de normas que conseguimos que sejam produ-
zidas a partir do momento em que acordemos (através
de um contrato social) em abandonar o estado de natu-
1 Ao dizê-lo, deixa então de haver necessidade de se fa- reza e em entrar num estado civil. Historicamente (na
zer referência à metafísica jurídica barroca oferecida por história das ideias), o positivismo jurídico pode ser visto
Niklas Luhmann. Cf., por exemplo, o seu Das Recht der
como uma derivação de tal doutrina, que, na medida em
Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt am Main 1993, e o nos-
so Rules, Institutions, Transformations. Considerations on
the «Evolution of Law» Paradigm, in «Ratio Juris», 1997, 3 H. Arendt, Truth and Politics, in Id., Between Past and
Vol. 10, pp. 316-350. Future, ed. por J. Kohn, Penguin, London 2006, p. 226

2 M. Oakeshott, The Concept of a Philosophical 4 M. Heidegger, Was heisst Denken?, Max Niemeyer,
Jurisprudence, in «Politica», Setembro de 1938, p. 204. Tübingen 1954, p. 77.
.76

que enfatiza a deliberação contratual como o momento 2. QUATRO TIPOS DE DEFINIÇÃO


constituinte de um corpo político, tem sido rotulada de
«contratualismo». Um «contrato» é, de novo, algo que Temos, normalmente, quatro tipos de definição de
os seres humanos constroem, «fabricam», ou um modelo Direito. Estes são: (i) estrutural, (ii) funcional, (iii)
artificial que é usado para reconstruir e tornar explíci- ontológico e (iv) normativo. Não abordaremos aqui o
tas das reivindicações normativas de instituições políti- assunto espinhoso da alternativa entre definições «no-
cas. O «contratualismo» é, de facto, uma versão de uma minais» e «reais». Contudo, uma definição interessante,
teoria moral e política construtivista. que pretenda ter algum tipo de validade intersubjectiva,
não pode simplesmente ser nominal ou «estipulativa».
(iii) A terceira possibilidade é a do Direito Natural Num argumento que tenha alguma ambição em ser ver-
enquanto teoria que conecte o raciocínio jurídico ao dadeiro uma definição não pode ser simplesmente uma
raciocínio moral, ao passo que o positivismo jurídico questão de decisão ou de estipulação subjectiva. Para
insiste na auto-suficiência ou autonomia do raciocínio além disso, uma definição «lexical», de forma a expli-
jurídico. Dito de outra forma, o Direito Natural é uma car o «objecto» sobre o qual incida, será completamente
definição do que o Direito é que recorre a um conceito subdeterminada precisando, na realidade, de uma (bas-
moral, ao passo que o positivismo jurídico é uma teoria tante implícita) referência «realista». O seu potencial
do que o Direito é que pretende ser adequada indepen- epistemológico é, em qualquer caso, bastante baixo. Por
dentemente de qualquer referência à moral. Nesta se- outro lado, uma definição «explicativa» ou «reconstru-
gunda versão, não é tanto o raciocínio jurídico mas sim tiva», de forma a ser testada através de assertabilidade
a definição da natureza do Direito que está relacionada geral, teria que reduzir drasticamente os seus elemen-
ao raciocínio jurídico. tos «estipulativos». Presume-se, assim sendo, que uma
definição é uma tentativa de descrever a «realidade» do
Esta terceira visão possível é a que mais preocupa os ju- seu objecto. Esta presunção não leva, necessariamente, a
ristas e os jurisconsultos. Na realidade, algum tipo de que se adopte uma estratégia definicional «essencialista».
Direito implícito é reconhecido mesmo pelos mais ar- Pode-se arguir que uma parte da realidade que é «objec-
dentes defensores do positivismo. Aqui, no entanto, to» da definição é fornecida através da interacção e da
há excepções radicais que, de certa forma, revelam o controvérsia que ocorre dentro do próprio debate defi-
núcleo decisionista do positivismo. O falecido Kelsen, nicional sem que, contudo, tal signifique que estejamos
por exemplo, acaba por negar, contra as suas convic- perante um mero jogo decisionista subjetivo. Poder-se-á,
ções anteriores, a validade das regras lógicas implícitas por exemplo, apresentar o conceito de Direito como «es-
no Direito positivo.5 Contudo, os juristas normalmente sencialmente contestado» e, ainda assim, arguir que tal
presumem, de facto, a existência de uma panóplia de não é uma definição estipulativa.
regras implícitas como, por exemplo, a respeitante à
adequação gramatical e linguística. Assim, há elementos Uma definição ou teoria do Direito estrutural é uma
de Direito implícito que são reconhecidos pela grande visão do Direito segundo a qual este (o Direito) deve
maioria dos positivistas. O assunto sério que está sobre ser conhecido ou reconhecido através da forma dos seus
a mesa não é tanto o da natureza implícita das normas, componentes (por exemplo, através da estrutura lógica
nem sequer a possível derivação dessas normas a partir das normas jurídicas) e/ou através da forma da cone-
de um hipotético contrato social, mas sim o de saber xão ou relação desses mesmos componentes uns com os
se, de forma a conferir significado a uma norma num outros. Paradigmática de tal aproximação ou tentativa
caso concreto, poderíamos colori-la – por assim dizer definicional são a visão de Hans Kelsen da ordem jurídi-
– através do uso de julgamentos morais. A relação en- ca como uma estrutura hierárquica, Stufenbau, de «de-
tre a justiça e a validade jurídica é algo que está sempre cisões hipotéticas» respeitantes à aplicação de sanções6,
presente perante os olhos do jurista, e é neste ponto que e a teoria do sistema jurídico enquanto combinação de
contrastar o Direito Natural com o positivismo jurídico regras que impõem obrigações com regras que conferem
faz diferença para a prática jurídica.

6 O Locus classicus de tal ponto de vista é o manifesto po-


5 Ver H. Kelsen, Allgemeine Theorie der Normen, Manz, sitivista de Hans Kelsen, Reine Rechtslehre, Manz, Wien
Wien 1978. 1934.
77.

poderes, isto é, de regras «primárias» e secundárias», de fundamentais se encontram completamente justificadas


Herbert Hart, tendo as primeiras os cidadãos por des- pela sua derivação de princípios morais primordiais ou
tinatários ao passo que as segundas são dirigidas aos bens básicos.
detentores de cargos públicos. 7 O Direito seria, prin-
cipalmente, ou uma cadeia de comando estruturada ou Um argumento a favor de uma definição normati-
um certificado de pedigree. va forte seria o que reconecta o objectivo ou papel ou
função que se diz que o Direito serve com a noção de
Segundo uma definição funcional do Direito, este seria um bem moral11. Segundo esta perspectiva, uma «fun-
identificado ou conhecido através de uma função espe- ção» seria considerada como sendo própria do Direito
cial cuja prossecução seria alcançada sem, no entanto, na medida em que fosse um bem intrínseco e evidente
haver qualquer referência a um ponto de vista moral. como, por exemplo, a vida e liberdade humanas, ou o
São exemplos desta abordagem a teoria do Direito como «bem comum».
soma de «trabalhos do Direito», de Karl Llewellyn, bem
como a visão do Direito enquanto «empreendimento Segundo uma definição normativa fraca, o Direito é
em subjugar a conduta humana a regras», de Lon Fuller identificável através de um requerimento normativo
e, em geral, todas as teorias que concebem o Direito em fraco, ou seja, através de uma reivindicação de justiça
termos de resolução de disputas8. que ainda precisa de ser justificada através de uma teoria
moral completa, sendo uma teoria moral completa (a)
Uma definição que almeje determinar o Direito como uma teoria que se assume como justificada, e (b) uma
sendo um tipo especial de «coisa» ou de «entidade» po- teoria que possa oferecer uma solução substantiva e uma
derá ser rotulada de ontológica. Como exemplos de tal directiva substantiva sem que lhe seja adicionado qual-
abordagem poder-se-á mencionar a teoria da «natureza» quer outro momento deliberativo. Para uma abordagem
do Direito, de Joseph Raz9, ou as várias tentativas em definicional normativa fraca é sempre significativo que
considerar o Direito como uma «instituição», pensado se declare uma proposição de Direito como verdadeira
enquanto dimensão especial da realidade social10. sem que se tenha ainda confirmado a sua congruência
com princípios morais. É requerido somente que uma
Uma definição normativa será aquela segundo a qual proposição de Direito possa reivindicar ser moralmen-
o Direito é identificado ou reconhecido através de cri- te verdadeira. Para a abordagem definicional forte,
térios normativos, ou seja, através de algum tipo de pelo contrário, a verdade moral de uma proposição de
requerimento-de-dever ou de ponto de vista avaliativo. Direito é condição necessária para que seja descartada
Aqui, poder-se-á distinguir entre definições normati- ou estabelecida como Direito.
vas (i) fortes e (ii) fracas. Uma definição normativa forte
será aquela segundo a qual o Direito é identificado atra-
vés de critérios normativos fortes, isto é, através da sua 3. TRÊS «PONTOS DE VISTA»: EXTERNO,
correspondência com uma teoria moral completa que INTERNO, ULTRAEXTERNO.
se assume como estando já justificada ou como sendo
verdadeira. Na versão forte de uma definição normativa Permita-se-nos que expliquemos as três principais pers-
a ideia central é a de que pelo menos algumas normas pectivas que, em nosso entender, se podem adoptar ao
considerar uma prática. O ponto de vista externo lida
com regularidade e causação. O ponto de vista interno
7 Ver H. L. A. Hart, The Concept of Rule, Clarendon, lida com regras, não com regularidades, e com signifi-
Oxford 1961, cap. 3 and 4. cado (bem como com normatividade fraca). Podemos
distinguir entre um ponto de vista interno «cognitivo» e
8 Ver K. Llewellyn, The Bramble Bush, Oceana, New York
1930, p. 13.

9 Ver J. Raz, Between Authority and Interpretation, Oxford 11 <<If law is a functional kind then necessarily law serves
University Books, Oxford 2009, especialmente pp. 91 ff. some good and thus, necessarily, law is in that way related
to morality>>(M. S. Moore, Law as a Functional Kind,
10 Ver, por exemplo, N. MacCormick, O. Weinberger, in Natural Law Theory. Contemporary Essays, ed. de R. P.
An Institutional Theory of Law, Kluwer, Dordrecht 1985. George, Clarendon Press, Oxford 1992, p. 221).
.78

«normativo». Aquele não implica que quem assuma esse Cremos ser necessária uma coordenação de todos es-
ponto de vista deva aderir aos valores expressos na nor- tes pontos de vista ao tentar estabelecer o conceito de
matividade sob consideração. O ponto de vista interno Direito. Na realidade, os juristas, ao tentarem avaliar
«normativo», pelo contrário, pressupõe que esses valo- a verdade de uma proposição de Direito, acabarão por
res são assumidos pelo agente que considere as regras abarcá-los a todos.
em questão.
(i) Precisamos de um ponto de vista externo para come-
A diferença entre normatividade «fraca» e «forte» centra- çar a nossa investigação. Isto está longe de ser trivial.
-se nos diferentes tipos de crítica que a respectiva viola- Precisamos de uma noção de Direito primafacie mais ou
ção justifica. No caso da normatividade fraca há crítica, menos empírica de forma a colocarmos os pés em terra
mas tal não involve uma avaliação da integridade do firme, isto é, numa área de investigação concreta. Uma
agente a quem a violação é censurada. Pelo contrário, perspectiva deste género está envolvida na pré-com-
no caso da normatividade «forte» a crítica implica uma preensão que temos dos fenómenos jurídicos antes de
censura da integridade do agente. Dito por outras pa- começarmos a investigar as suas características definiti-
lavras, ao passo que à crítica respeitante à normativida- vas. Uma visão pré-interpretativa do Direito assume que
de «fraca» se pode objectar falta de entendimento ou de o Direito está «aí», de tal forma que pode ser observado.
formação, não se crê que o mesmo seja aceitável no caso Contudo, um ponto de vista externo explícito terá que
de uma crítica no domínio da normatividade «forte». Se ir para além da epistemologia de senso comum, e cons-
alguém não fala inglês correctamente, pode ser criticado truir um modelo explanatório aberto a comprovação
por causa da sua falta de formação ou de entendimento e falsificação.
adequados; isto, contudo, não leva a uma crítica do ca-
rácter geral desse indivíduo enquanto pessoa. Se o indi- (ii) Precisamos de um ponto de vista cognitivo interno
víduo for criticado por não ter mantido uma promessa, para compreender o que é que a prática com a qual es-
ou por ter furtado alguma coisa, será, pelo contrário, tamos a lidar significa, para compreender o seu sentido.
colocado em cheque não por falta de entendimento, mas Temos, todavia, que registar não só o conteúdo das re-
devido a leviandade moral. gras mas também o seu «objectivo». De outra forma, não
seríamos capazes de nos aperceber do que é que a acção
Um ponto de vista ultraexterno lida com obrigações e ou conduta que é guiada pelas regras é e representa. A
justificações, ou seja, com normatividade forte. Esta existência de uma prática são as suas regras, mas também
perspectiva não é a que é imediatamente assumida atra- o objectivo do «jogo» que é jogado, ou seja, da práti-
vés do ponto de vista normativo interno. Não se trata ca que é conduzida por essas regras. É a instituição im-
somente da crença na força vinculativa de uma regra. É, plementada por essas regras, mas também o seu «Witz»
ao invés, a perspectiva que assumimos assim que pedi- (que poderemos chamar - numa nota diferente - a sua
mos uma justificação das regras que damos por adqui- «idée directrice»13).
ridas a partir da perspectiva normativa interna. Esta é,
em certo sentido, a perspectiva filosófica, a que, por um (iii) Precisamos de assumir um ponto de vista normativo
lado, é capaz de discriminar entre conceitos descritivos interno se quisermos agir dentro dessa prática. Através de
e normativos e que, por outro lado, procura um alicerce um ponto de vista cognitivo um indivíduo compreende
para o conceito e prática normativos em termos de um a prática e as suas regras mas não tem, ainda, razões para
universalizável do que é bom.12 Assim, «ultraexterno» a justificar nem para se sentir adstrito, «obrigado», por
significaria, aqui, essencialmente «contrafactual». estas. Compreende-as como possíveis razões para actuar,
mas não ainda como razões verdadeiras ou válidas para
actuar passíveis de dirigir a sua conduta. De forma a dar
12 Retiramos esta terminologia («perspectiva ultraex- um passo, a partir do significado (e compreensão), em
terna») do livro de Carlos Nino Derecho, moral y polí- direcção à justificação (e possivelmente obrigação), é ne-
tica. Una revisión de la teoría general del derecho, Ariel, cessário que esse mesmo indivíduo adopte um ponto de
Barcelona 1994, pp. 43-44. Contudo, Nino parece tomar
em consideração tal perspectiva «externa» apenas enquan-
to aparelho epistemológico, sem implicações morais for- 13 Ver M. Hauriou, Aux sources du droit: le pouvoir, l’ordre
tes e justificadoras. et la liberté, Cahiers de la Nouvelle Journéee, Paris 1925.
79.

vista normativo interno. Tem que considerar as regras assim intencionada registando somente as cadeias cau-
em questão correctas e justificadas e, assim, como direc- sais do comportamento em questão e as suas conse-
tivas vinculativas para a sua actuação. quências empíricas. Se, no entanto, tal função for vista
como a intenção prosseguida pelos participantes na
(iv) Para efectuar completamente esta passagem, da prática, ou o ideal que está envolvido em tal participa-
compreensão para a justificação e obrigação, o ponto ção, o ponto de vista assumido será o cognitivo inter-
de vista normativo interno requer a mudança para uma no. Se, para além disso, a função for considerada como
perspectiva localizada mais além, ou seja, o que pode- estando intrinsecamente ligada a um bem moral ou à
rá ser chamado de ponto de vista «ultraexterno», que é moralidade como um todo, a dita «função», de forma a
uma postura e pressuposição contrafactual, uma terra de ser argumentativamente suportada, terá de se referir a
dever-ser - por assim dizer. Isto poderá ser conceptuali- um ponto de vista «ultraexterno».
zado - cremos - como uma espécie de «sítio nenhum»,
um ponto arquimediano a partir do qual se pode avaliar As definições ontológicas pertenceriam ou ao ponto de
o que é que as regras, em termos explícitos, requerem vista interno ou ao externo, dependendo do quão neces-
que façamos. A «terra de dever-ser», ou o ponto de vista sária a prática seja para conceber a essência do Direito.
ultraexterno, é, de certa forma, alcançado indutivamen- Esta poderia ou ser derivada através da observação sem
te. Não é um exercício de dedução a partir de padrões se perguntar acerca do significado e da instanciação efec-
abstractos ou de provas racionais. Contudo, a justifica- tiva de uma prática, ou poder-se-ia referir à prática como
ção vai para além de um teste de encaixe de critérios condição necessária para o seu significado.
normativos fortes numa prática de cumprimento de re-
gras, referindo-se necessariamente a um modelo de jus- As definições normativas, por outro lado, pertencem ou
tificação normativo forte que tem que ser descoberto e ao ponto de vista interno, ou ao ponto de vista ultraex-
arguido, de certa forma, independentemente da prática terno, dependendo do quão requerida seja a justificação
em questão. para ser vista como actuando sob aquela regra ou padrão
ao qual o ponto de vista normativo se refere. Poderíamos
definir, por exemplo, uma regra como somente uma ra-
4. CONECTANDO PONTOS DE VISTA E zão sem implicações morais, e, ainda assim, revestida
ESTRATÉGIAS DE DEFINIÇÃO com um tipo de força vinculativa (por exemplo, as regras
das línguas naturais), ou como uma razão que, excluin-
Os quatro tipos e estratégias de definição acima introdu- do outras razões, tem, assim, uma implicação moral,
zidos poderão ser considerados como interligados com ou então poderíamos considerar as regras como razões
os três pontos de vista acima mencionados. Poderemos que se arrogam justas, ou como razões que são justas na
dizer que as definições estruturais pertencem ou ao medida em que possam derivar de um padrão objectivo
ponto de vista externo ou ao ponto de vista cognitivo supremo de justiça.
interno, o que depende de essas mesmas definições es-
truturais usarem e basearem-se, ou não, na noção de De forma a obtermos um entendimento completo da
regra. Se asseverarmos que uma regra é um pedaço da prática complexa do Direito, poderíamos plausivel-
estrutura do Direito, e tivermos dela a noção de uma mente crer que uma combinação dos três tipos de defi-
razão para actuar, não poderemos evitar a conclusão de nição é requerida. Nenhum destes pode, por si mesmo,
que tal regra, enquanto razão, faz sentido, e pode so- ser considerado suficiente para explicar o Direito atra-
mente, ou principalmente, ser entendida por um agente vés de um conceito apropriado. No entanto, dizer que
dentro de uma prática, ou seja, do ponto de vista interno precisamos de uma combinação dos três tipos de defi-
respeitante à dita prática. nição implica, na realidade, recorrer a uma definição
normativa com uma base ontológica, ou, se se preferir,
Poderíamos então dizer que as definições funcionais per- complementar uma definição ontológica com alguma
tencem ou ao ponto de vista externo, ou ao interno, referência à normatividade. Isto parece especialmente
dependendo de como uma «função» seja conceptuali- plausível no que respeita ao objecto de explicar e de-
zada. Se for vista como sistémica, intrínseca à prática, finir o que o Direito é, visto que o Direito reivindica
no sentido causal, o ponto de vista a assumir será o vincular o comportamento tanto de titulares de cargos
externo. Um observador poderia asseverar uma função públicos como dos cidadãos.
.80

Na realidade, uma definição normativa não exclui to- «adequação», e alcançar a resposta correcta que deverá,
dos os outros tipos de definição; reivindica somente em princípio, constituir a nossa decisão. Entraremos,
funcionar como a conclusão, o passo final, do em- assim, no domínio da justificação, seleccionando entre
preendimento definicional. Tomemos, por exemplo, as declarações que passam o teste da adequação aquela
a tentativa do Professor Ronald Dworkin de definir que poderá, com sucesso, ser provada perante o teste da
o Direito. Ele crê que isto pode ser feito através da justificação. Para alcançar a justificação, todavia, uma
identificação de duas dimensões especiais da prática definição funcional ou estrutural do Direito não seria
do Direito, que, aqui, é vista como interpretação cons- suficiente, embora seja necessária. Aqui, precisaremos
trutiva. Há duas etapas na interpretação, que são cha- de uma abordagem e definição normativa adicional.
madas: (i) adequação, e (ii) justificação14. «Adequação» Poderíamos, no entanto, interrogar-nos se Dworkin
é a correspondência entre a nossa declaração do que poderia parar aqui, e se não deveria referir-se a um
é que determinada prática é e um caso concreto, que conceito de Direito baseado num dos tipos de defini-
será obtida através de definições funcionais e estru- ção ontológica. Ele parece, por vezes, dar a entender
turais. Desta forma, teremos uma declaração prima- que a justificação é o passo final. Esta conclusão pode
facie do que é que é o Direito válido para esse caso ser plausivelmente desafiada assim que nos recordar-
especial. Contudo, a «adequação» pode ainda permitir mos de que a justificação de uma prática dificilmen-
uma pluralidade de proposições de Direito verdadei- te consegue sobreviver sem que se inquira acerca do
ras para esse caso. Precisamos de estreitar o escopo da seu «sentido». Regras e funções também dependem do
sentido. É necessária, aqui, uma definição ontológica,
embora não possa ser meramente empírica ou socioló-
14 Ver R. Dworkin, Law’s Empire, Fontana, London 1986, gica. Enfrentamos, aqui, a questão que se prende com
pp. 255-256, e cf. R. Dworkin, A Matter of Principle, o tipo de realidade em que um contexto social de acção
Clarendon Press, Oxford 1985, cap. 5. e artefactos sociais como regras ou direitos consistem.
81.

5. O INSTITUCIONALISMO COMO além de toda a plausibilidade a relevância de uma de-


VISÃO COMPREENSIVA. finição funcional. O institucionalismo também muito
raramente pode ser associado a uma visão pluralista da
A nossa contenção é a de que o institucionalismo, assim sociedade que aceite a tensão entre conceitos do bom e
que um conceito liberal - por assim dizer - de institui- do correcto. Contudo, o principal problema entre dou-
ção for adoptado, será uma abordagem jurídico-filosó- trinas institucionais é a sua tentação recorrente de elimi-
fica que poderá fazer justiça à complexidade da prática nar o discurso moral através da sua substituição por uma
jurídica e à pluralidade de definições e pontos de vista «forma de vida» colectiva auto-fixada. Para além disto,
possíveis. Uma abordagem «liberal» à instituição não po- não há escopo possível para uma apreciação da justiça e
derá realçar a sua qualidade ontológica distintiva sem se inclusive para uma vida boa. Tal limitação poderia, sem
referir à semântica das frases usadas para interpretar e embargo, ser ultrapassada através de uma noção de ins-
reproduzir as suas implicações práticas para os actores. tituição maior e mais generosa, onde a dimensão onto-
Precisaria também de uma justificação normativa forte, lógica não seja considerada capaz de sub-repticiamente
na medida em que aquelas implicações práticas sejam produzir sentido e justificação normativos. A partir de
concebidas como testáveis contra padrões de correcção uma perspectiva institucionalista «liberal» deste tipo16,
e de justeza. uma definição ontológica seria composta, por um lado,
por uma definição estrutural e funcional (devendo fa-
Segundo o institucionalismo - deveremos recordá-lo -, o zer uso tanto de regras como de objectivos, pelo menos
objectivo do Direito não é o de submeter a conduta hu- enquanto ferramentas metodológicas); por outro lado,
mana a prescrições ou regras. Nem é o da coordenação. deveria fazer referência a uma definição normativa (for-
Considera-se que o seu objectivo principal não é tanto te). Esta seria, em primeira instância, derivada a par-
o de permitir que esquemas diferentes de acção possam tir de uma reconstrução de instituição enquanto parte
ser executados sem interferência mútua, ou que um es- do «ser», ou seja, enquanto resultado de regras que são
quema colectivo de acção possa ser o resultado de uma parte do «dever-ser». Aqui, o dever-ser das regras não
série de vários cursos individuais de acção em separado. será prescritivo ou regulador, mas sim principalmente
A «função» do Direito tem, aqui, um efeito mais per- constitutivo. Para além disso, uma instituição deverá ter
meado e invasivo. Tem uma significância «ontológica» um significado, um sentido, de forma a fazer com que
quase imediata, na medida em que é capaz de produzir a regra constitutiva desempenhe um papel coerente. O
«tipos» ou «formas» de conduta, e, através da implemen- sentido das regras não é completamente dado quer pelo
tação ou da observância das suas regras, a corresponden- seu significado linguístico, quer pela sua relação com
te instanciação ou «sinais», isto é, condutas concretas outras regras ou pela sua observância efectiva. Há um
que, de outra forma (sem o Direito e aquele Direito), Witz – para usar a expressão de Wittgenstein17 –, isto é,
não seriam concebíveis e, por conseguinte, realizáveis. o «objectivo» de um jogo e a correspondente «forma de
A tarefa do Direito não é, portanto, tanto a de contro- vida». Este sentido ou objectivo - cremos - poderá ser
lar a realidade social como a de a produzir. Segundo o traduzido em princípios e valores, ou melhor explica-
institucionalismo, o caso focal de uma regra é o caso do nestes termos. Não se trata tanto de que, aqui, um
«constitutivo», não o «regulativo», isto é, a regra que é «objectivo» ou «sentido» deva ser avaliado através da sua
condição necessária para a possibilidade dessa conduta melhor teoria possível mas sim de como este «sentido»
sobre a qual a mesma dispõe.15 No Direito, a conduta re- poderá ser relacionado a um conceito do que é bom,
levante não é logicamente independente das suas regras visto que se refere a uma «forma de vida» que reivindica
(«constitutivas»). ser uma instanciação de uma vida boa. Tal sentido está,

Uma das falhas tradicionais da teoria institucional é a


16 Para uma teoria jurídica institucionalista de tal forma
sua abordagem metodológica monista, que alarga para
«liberal», ver O. Weinberger, Norm und Institution, Manz,
Wien 1990.

15 Acerca das regras «constitutivas» e «regulativas», a re- 17 Ver, por exemplo, L. Wittgenstein, Philosophische
ferência fundamental continua a ser o livro de John R. Untersuchungen, Suhrkamp, Frankfurt am Main 1977,
Searle, Speech Acts. An Essay in the Philosophy of Language, p. 237: <<Das Spiel, möchte man sagen, hat nicht nur
New ed., Cambridge University Press, Cambridge 1969. Regeln, sondern auch einen Witz>> (itálicos no texto).
.82

portanto, aberto à justificação, isto é, a uma dimensão- direitos reciprocamente. O Direito torna possível que o
-de-dever-ser que desta vez, contudo, será equivalente à raciocínio moral público tenha um «espaço», e, assim,
normatividade forte da moralidade. um «sentido».

O Direito, assim concebido como instituição, tanto se


baseia em regras constitutivas como se refere a um sen- 6. POSITIVISMO (E DIREITO NATURAL)
tido normativo forte. Este último consiste, em última «INCLUSIVO» E «EXCLUDENTE».
instância, num conjunto de princípios ao qual se apela
de forma a conferir à instituição a sua justificação. O Cremos que o institucionalismo poderá oferecer-nos
institucionalismo, na versão por nós aqui proposta, dis- uma solução para a controvérsia entre o Direito Natural
tancia-se de uma abordagem wittgenstainiana segundo e o positivismo jurídico. De forma a explicarmos as ra-
a qual formas de vida e instituições não podem ser tes- zões pelas quais cremos que tal é possível é necessário
tadas contra padrões «mais elevados»18. Uma instituição mencionarmos, sinteticamente, um debate recente no
assim intencionada não é um alicerce final para a acção, contexto do positivismo jurídico.
mas pode ser testada contra uma teoria moral. Precisará,
portanto, tanto de uma definição ontológica como de No contexto do positivismo jurídico, desenvolveu-se um
um definição normativa, que terão de se complementar confronto entre dois modos de se conceber a separação
e encaixar uma na outra. entre o Direito e a moral, doutrina esta que é vista como
a marca definidora daquela abordagem jus-filosófica.
Uma definição normativa não é, por si só, suficiente; as Segundo o positivismo jurídico «excludente», a moral
instituições não são completamente manejáveis e com- não pode nunca desempenhar qualquer papel na avalia-
preensíveis através de princípios. Da mesma forma, uma ção do que o Direito é. A definição de Direito não neces-
mera definição ontológica ficará aquém do seu sentido sita de qualquer referência à moral nem requer qualquer
definitivo e compreensivo; a realidade social não é ca- tipo de raciocínio moral. Apesar de o raciocínio moral
paz, enquanto tal, de nos oferecer princípios normativos estar aberto aos juristas, este não será específico da sua
fortes e de ser explicável e traduzida em termos de uma função ou prática. A natureza do Direito baseia-se fun-
teoria moral completa. damentalmente no facto de este ser autoritário; todas
as outras propriedades são consideradas irrelevantes para
No entanto, o Direito enquanto instituição assim in- identificar o Direito enquanto tal. A natureza do Direito
tencionada permitiria uma definição estrutural e uma não é interpretativa, e, portanto, é independente do fac-
definição funcional. Estruturalmente, o Direito pode- to de o público estar, ou não, a par da sua existência19.
ria, aqui, ser conceptualizado como a combinação de
regras constitutivas e reguladoras ou prescritivas. Ao O positivismo jurídico «inclusivo», por outro lado, con-
passo que a moralidade é um domínio onde só existem siste na tese de que a moral pode ser incorporada no
regras prescritivas, o Direito combina regras que pres- Direito, e, por isso, pode ser instrumental para o seu
crevem, dirigem e sancionam a conduta humana com reconhecimento, se for explicitamente incluída na re-
regras constitutivas que não prescrevem ou sancionam gra de reconhecimento. Dito por outras palavras, o
mas que oferecem à conduta humana um espaço e es- Direito positivo pode declarar que a moral é uma das
copo novos. Vista a partir desta perspectiva, a especí- suas «fontes». Contudo, as «fontes» não precisam de ser
fica definição funcional não seria tanto a de regular ou «factos sociais»: podem também ser princípios morais.
orientar a conduta humana como, ao invés, a de a tornar Desta forma, a «tese das fontes» (o pilar do positivis-
possível enquanto acção, significando acção aqui uma mo) manter-se-ia válida; sem embargo, a separação en-
actividade que ocorre para seu próprio benefício. O ob- tre o Direito e a moral seria somente uma propriedade
jectivo específico do Direito seria assim o de permitir às contingente do próprio Direito, não a sua qualidade
pessoas agirem em conjunto publicamente, e, por conse-
guinte, terem um lugar onde pertençam e reivindiquem
19 Cf. J. Raz, Between Authority and Interpretation, p. 94:
<<Our concept of law does not make an awareness of it
18 <<Das Hinzunehmende, gegebene – könnte man sa- in a society a precondition of that society being governed
gen – seien Lebensformen (ivi, p. 363, itálicos no texto). by law>>.
83.

essencial e permanente. A «separação» será agora reinter- A partir de um segundo ponto de vista, o Direito natu-
pretada como separabilidade entre o Direito e a moral. ral é indeterminado tanto epistémica como moralmente.
Nesta versão «mole» ou «negativa» <<positivism is true, A sua legitimidade completa resultará do procedimen-
then, just in case we can imagine a legal system in which to adoptado de forma a que se possa conhecer e apoiar
being a principle of morality is not a condition of lega- os seus próprios princípios de Direito natural. O aces-
lity for any norm: that is, just as long the idea of a legal so epistémico ao Direito natural não operará, nesta
system in which moral truth is not a necessary condition circunstância, sem apoio. Isto implica que o Direito na-
of legal validity is not self contradictory>>20 tural tem que fazer referência ao Direito positivo, às suas
instituições e convenções para ser completamente deter-
No domínio do Direito natural encontramos também minado e legítimo. Tem que «incluir» o Direito positivo
uma oposição entre dois modos de o pensar. Poderíamos de forma a reivindicar validade jurídica num caso con-
igualmente usar os termos «inclusivo» e «excludente» creto. Deste ponto de vista, as convenções fazem, de fac-
para rotular os dois pontos de vista aqui em confron- to, parte da natureza do Direito. Tal abertura ao Direito
to21. Por um lado, encontramos uma ideia de Direito positivo torna igualmente possível a esta segunda versão
derivável de um princípio moral supremo ou de bens do Direito natural tomar em linha de conta o carácter
elementares ou absolutos sem necessidade de um proce- controverso do conceito de Direito, visto que tem de ad-
dimento institucional e público de forma a acedê-los e mitir que as prescrições finais do Direito precisam, e são
reconhecê-los. A imoralidade substantiva seria, por esta o resultado, do filtro da discussão e deliberação públicas.
perspectiva, suficiente, pelo menos em domínios ele-
mentares específicos da conduta humana, para avaliar a No que respeita ao positivismo jurídico, poder-se-ia
invalidade jurídica, ou a ilegalidade, de uma certa regra arguir que a sua versão «excludente» é mais coerente
prescriptiva. O Direito natural, neste sentido, «exclui» a e abrangente enquanto teoria do conceito de Direito.
operacionalização e reconhecimento institucionais dos Isto pode ser reivindicado, mas o preço a pagar é o de
princípios do Direito natural. Estes são capazes de nos «excluir» não só a moral, mas também o ponto de vista
dar, pelo menos em certos casos, a resposta correcta que interno. O Direito, para a perspectiva «excludente», po-
se nos pede que encontremos na prática do Direito. deria somente ser o que é avaliado a partir do ponto de
vista do observador, visto que o participante não poderia
Tal «exclusivismo» é radicalizado através da negação evadir-se da reivindicação do Direito em ser vinculativo,
do convencionalismo conceptual. Os significados são e, consequentemente, de ter uma espécie de justificação
reconsiderados em termos de «essências». Um concei- moral. Deve-se lidar com o Direito através de «fontes»
to relaciona-se, aqui, directamente com o seu objecto que são «factos sociais», e, desta forma, deve ser identifi-
sem a mediação de convenções da linguagem e da teoria. cado através de uma atitude neutra e descritiva.
O Direito, enquanto conceito, imediatamente reflecte
e explicita a natureza do Direito que «existe» indepen- O raciocínio moral - diz-se - é possível para um juris-
dentemente do conceito. Isto acaba por implicar que ta ou para o titular de um cargo público, mas segundo
os conceitos não podem ser objecto de controvérsia; termos que não são intrínsecos às suas operações. No
as «coisas» existem para serem expostas e «descobertas» entanto, se for verdade que o raciocínio moral constitui
através de conceitos. Estes não desempenham qualquer parte do raciocínio e adjudicação jurídicos, estas activi-
papel especial e interpretativo. Consequentemente, já dades poderão facilmente ser separadas da verdade mais
não se assume a prática jurídica como sendo um em- fundamental de que o Direito existe para ser declarado
preendimento interpretativo, negando-se ao ponto de de uma forma descritiva antes de ser usado. Esta última
vista interno (isto é, o daqueles que praticam e «usam» o conclusão parece empurrar o «exclusivista» em direcção
Direito) qualquer privilégio epistémico. a uma parede jus-filosófica que, no final, mais não é do
que um repositório de pontos de vista irrelevantes para
20 J. L. Coleman, Negative and Positive Positivism, in
o praticante do Direito. Sem embargo, o positivismo
«Journal of Legal Studies», Vol. 11, 1982, p. 143. jurídico «excludente» tem o mérito de apresentar uma
teoria de filosofia geral do Direito bastante coerente. A
21 Cf. M. La Torre, On Two Distinct and Opposed Versions natureza do Direito não se encontra radicada num con-
of Natural Law: «Exclusive» Versus «Inclusive», in «Ratio texto local ou paroquial; pode ser avaliada e conceptuali-
Juris», Vol. 19, 2006, pp. 197-216. zada em termos universais, de certo modo categóricos: o
.84

Direito encontra-se conceptualmente ligado somente à de uma prescrição de Direito contingente, positiva e
sua capacidade em ser executável, ao passo que a sua mo- distinta, considerando-se que esta confere à moral a sua
ral não é uma propriedade essencialmente definicional. validade institucional? Poderemos supor que a normati-
vidade (forte) moral seria transformada numa força po-
O positivismo jurídico «inclusivo» parece ser menos sitiva (fraca) vinculativa após se tornar conteúdo de uma
coerente. É demasiado contingente para servir enquanto regra jurídica positiva.
tese de filosofia geral do Direito. A ligação do Direito à
moral é, aqui, uma questão de desenho sistémico: pode, É verdade que o Direito é, por vezes, visto como uma
ou não, existir, dependendo de como o sistema jurídico ferramenta usada para compensar a fraqueza motiva-
seja moldado, isto é, dependendo dos conteúdos da re- cional e cognitiva da moral. Ainda assim, a fonte de
gra elementar (a «regra de reconhecimento») do sistema normatividade permanecerá, nesta perspectiva, den-
sob consideração. <<Substantive moral principles – it is tro da própria moral. O Direito serve a moral, melho-
said – can count as part of a community’s binding law ra a sua efectividade. A moral, contudo, permaneceria
in virtue of their status as moral principles provided the válida e (fracamente) operativa, mesmo que o Direito
relevant rule of recognition includes a provision to that não a apoiasse. O Direito é, aqui, subserviente à moral,
effect>>22. É um positivismo «mole» na medida em que retirando a sua justificação e legitimidade do facto de
não reivindica que a separação entre o Direito e a moral ser capaz de implementá-la. Tal acontece sempre, visto
subsiste em todos os casos. Não parece, igualmente, par- que esta relação é algo inerente à natureza do Direito:
tilhar a «tese das fontes» como alicerce fundamental do o Direito «existe» para ser usado para proteger a moral.
positivismo. As «fontes», sob este ponto de vista, não são Este, contudo, não é o ponto de vista do positivismo ju-
geralmente identificadas em termos de «factos sociais», rídico, para o qual pode existir Direito não relacionado
visto que considera-se que as regras morais, desde que com padrões morais.
incorporadas numa regra de reconhecimento, actuam
como «fontes» sem que, contudo, sejam consideradas Poder-se-ia também arguir que, assim que a moral se
«factos sociais». converta em Direito positivo pelo seu reconhecimen-
to através da regra elementar do sistema jurídico, dei-
Através desta referência permanente à forma contingen- xará de ser vista como moral, mas simplesmente como
te assumida pela regra de reconhecimento, contudo, o Direito positivo. O seu reconhecimento através da regra
positivista «inclusivo» não parece ser capaz de oferecer elementar é um «facto», e somente este facto importará
uma definição universal da natureza do Direito, de tal numa perspectiva jurídico-positiva centrada nas «fontes»
forma que, nalguns casos, o Direito consegue receber enquanto factos sociais. Assim que a moral seja recebi-
ou contar a moral entre as suas «fontes», sem, todavia, da pelo Direito, será, por assim dizer, «consumida», «di-
conseguir fazê-lo noutros casos. A diferença, aqui, é in- gerida» e transformada em algo diferente, numa parte
dicada através do facto de que conseguimos reconhecer do Direito positivo. Os juristas não mais considerarão a
(observar?) a validade de um qualquer requerimento moral enquanto tal, mas sim como uma prescrição posi-
moral dentro do domínio da regra positiva elementar. tiva, e, para que um teórico avalie o que o Direito é não
será igualmente necessário assumir um ponto de vista
A questão fundamental nesta abordagem é a de que, ultraexterno. No final, tanto o positivismo jurídico «in-
aqui, não é suficientemente claro qual o papel que o clusivo» como o «excludente» apontarão em direcção ao
Direito desempenha quando «inclui» a moral, ou, me- mesmo «facto» (o facto do reconhecimento através da
lhor, que consequências ontológicas e normativas é que regra positiva) de forma a declararem o que é o Direito,
este facto provocará. Em que sentido poderíamos dizer, e quando é que uma proposição de Direito é verdadeira.
dentro de uma abordagem jurídico-positiva, que a mo- Em ambos os casos, o padrão fundamental para apurar
ral continua a ser a moral, isto é, que a moral mantém a a verdade jurídica seria a correspondência para com os
sua normatividade forte após ser incluída no conteúdo factos sociais.

A problemas de certo modo semelhantes está exposta


22 J. Coleman, Authority and Reason, in The Autonomy uma teoria «excludente» do Direito natural. O Direito
of Law. Essays on Legal Positivism, ed. de R. P. George, natural excludente - como o positivismo «excludente»
Clarendon, Oxford 1996, 287-288. - não consegue integrar os três tipos de ponto de vista,
85.

nem consegue utilizar as quatro estratégias de definição. Direito natural «inclusivo» consegue, assim, levar a sério
Está exposto, em particular, à mesma crítica de ignorar o o facto de o Direito ser criado de uma forma construtiva
ponto de vista interno. Isto é, de certa forma, paradoxal, e convencional («positiva»).
visto que o Direito natural normalmente parte da as-
sumpção da definição paradigmática de Direito efectua- Em segundo lugar, arguiríamos que uma teoria institu-
da pelos juristas. Contudo, este é só um primeiro passo cional do Direito é o melhor modelo para um Direito
que tem, rapidamente, de fazer referência a um ponto natural «inclusivo». O Direito natural «inclusivo» consi-
de vista ultraexterno, o do bem absoluto ou do princípio dera a deliberação e as instituições como características
moral arquimediano. Considera-se que este último é ca- fundamentais do Direito, na medida em que a moral,
paz de converter o ponto de vista interno (isto é, o mo- para ser publicamente legítima e válida, precisa de deli-
mento deliberativo dentro do contexto institucional em beração e apoio públicos. Neste sentido, a positividade
questão) e de oferecer uma decisão final e independente, do Direito é requerida e desempenha um papel legitima-
pelo menos em questões morais sensíveis. dor, não só no momento de aplicação mas também no
da sua constituição. O institucionalismo enriquece esta
Assim, na definição da natureza do Direito dada pelo conclusão, na medida em que o Direito enquanto insti-
jus-naturalista «exclusivista» o momento deliberativo, tuição seja considerado não só uma questão de justifica-
que é - deve ser enfatizado - uma parte essencial do ção para a normatividade pública, mas seja visto como a
ponto de vista interno, não está sempre presente nem é essência do fenómeno jurídico.
especialmente relevante. Na realidade, as teorias «exclu-
dentes» de Direito natural negligenciam, de certa forma, Uma instituição é aquela porção da existência no domí-
o momento «constitucional» no Direito; a constituição nio da qual fará sentido levantar questões que precisam
do Direito é pensada como sendo dada anteriormen- de ser resolvidas através de deliberação pública moral23.
te no seu princípio arquimediano. Discute-se mais o Para um exercício de raciocínio moral respeitante a uma
momento da aplicação, que é surpreendentemente vis- esfera pública, precisamos, em primeiro lugar, deste es-
to como, por vezes, requerendo um maior ou menor paço público, sendo que o mesmo equivale, mais ou
escopo de discrição. menos, a uma instituição. Tal pode, sem embargo, ser
testado através de critérios morais, e de ser desafiado de
acordo com os mesmos. A normatividade, nesta pers-
7. UMA SAÍDA pectiva, é, de certa forma, um processo que segue um
movimento de dentro-para-fora. O ponto de vista inter-
Como anteriormente dito, cremos que o institucionalis- no nunca pode ser evitado. Mas não terá a última pala-
mo (isto é, um conceito de Direito elaborado em termos vra acerca do que deve ser feito.
de instituição) é uma solução ou conciliação possível
para a controvérsia entre o Direito natural e o positi- Tradução de Pedro Tiago Ferreira
vismo jurídico. Tal será defendido em duas contenções
distintas. Diríamos, em primeiro lugar, que um ponto
de vista mais plausível, e simultaneamente uma saída da
luta entre aqueles dois pontos de vista, é possivelmente
dado pelo Direito natural «inclusivo». Este, estando bas-
tante próximo do positivismo jurídico «inclusivo», tem, *Catedrático de Filosofia Jurídica da Faculdade de Direito
sem embargo, a vantagem de não ter de fazer referência da Universidade de Catanzaro, Itália.
à contingência sistémica. A normatividade forte é aqui Professor convidado da Faculdade de Direito
vista como uma propriedade essencial, não acidental, da Universidade de Hull, Reino Unido.
do Direito. O Direito positivo não pode deixar de ser
apoiado e suplementado através de normatividade forte,
isto é, através de princípios morais, e, consequentemen-
te, através de raciocínio moral. A normatividade forte,
por outro lado - argúi-se -, não consegue funcionar sem 23 Ver, para uma exposição mais detalhada desta ques-
o Direito positivo (deliberações e regras públicas positi- tão, M. La Torre, Law as Institution, Springer, Dordrecht
vas), tanto por razões epistémicas como ontológicas. O 2010.
.86

Paulo Otero*
PARA A HISTÓRIA DA RESPONSABILIDADE
CIVIL POR ATO LEGISLATIVO EM PORTUGAL
– TRÊS DOCUMENTOS INÉDITOS DE 1967

I responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes


de leis individuais5.
1. Em Portugal, desde os primeiros anos do século XX,
a doutrina tem assumido posição sobre a temática da No início dos anos setenta, ainda em plena vigência da
responsabilidade civil do Estado no âmbito do exercício Constituição de 1933, Gomes Canotilho dirigiria fortes
da função legislativa, registando-se que a maioria a re- críticas ao Decreto-Lei nº 48051, de 21 de novembro de
pudia (: Cunha Gonçalves1, José Gabriel Pinto Coelho2 1967, por não consagrar a responsabilidade por facto das
e Rocha Saraiva3), encontrando-se em Martinho Nobre leis, acusando-o de uma «timidez inaceitável» e de ser
de Melo a primeira defesa da responsabilidade do Estado «pouco digno de um Estado de Direito material e mui-
pelo exercício inconstitucional da atividade legislativa4 e to menos de um Estado Social», defendendo resultar da
em Fezas Vital o reconhecimento da admissibilidade de Constituição a imposição de o legislador consagrar esse
tipo de responsabilidade do Estado6.

A Constituição de 1976 tornaria doutrinalmente ine-


quívoca a responsabilidade do Estado no âmbito da
função legislativa7, sendo o tema objeto de aprofunda-

1Cfr. LUIZ DA CUNHA GONÇALVES, A


Responsabilidade Civil da Administração Pública pelos 5Cfr. FEZAS VITAL, Da responsabilidade do Estado no
Actos dos seus Agentes, Coimbra, 1905, p. 113. exercício da função legislativa, in Boletim da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra, 1916, pp. 514 ss.
2Cfr. JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, Da
Responsabilidade Civil baseada no Conceito de Culpa, 6Cfr. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, O
Coimbra, 1906, p. 206. Problema da Responsabilidade do Estado por Actos
Lícitos, Coimbra, 1974, pp. 171 ss., em especial, p. 173.
3Cfr. ALBERTO DA CUNHA ROCHA SARAIVA,
Construcção Jurídica do Estado, II, Coimbra, 1912, p. 73. 7Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO / VITAL
MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
4Cfr. MARTINHO NOBRE DE MELO, Teoria Geral Anotada, Coimbra, 1978, p. 87; JORGE MIRANDA,
da Responsabilidade do Estado – Indemnizações pelos O regime dos direitos, liberdades e garantias, in JORGE
danos causados no exercício das funções públicas, Lisboa, MIRANDA (org.), Estudos sobre a Constituição, III,
1914, pp. 117 ss. Lisboa, 1979, p. 65.
87.

mento dogmático através de uma dissertação de mes- Ministro da Justiça, tendo a resolução da contro-
trado8 e de uma dissertação de doutoramento9, sem vérsia sido remetida para o próprio Presidente do
prejuízo de diversos outros estudos autónomos, ape- Conselho;
sar de só encontrar consagração legislativa com a Lei t Salazar, todavia, confessa desconhecer a matéria
nº 67/2007, de 31 de dezembro. e, sem querer opinar – talvez também visando ga-
nhar tempo –, recomenda, sob a forma interrogati-
2. Numa aparente simplicidade, dir-se-á que só com a va, a conveniência de se ouvirem os Professores de
Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro, o legislador perdeu Lisboa (e outros peritos) sobre a matéria.
a «timidez inaceitável» e positivou, ao nível da legislação
ordinária, a responsabilidade do Estado por danos resul- II
tante do exercício da função legislativa.
3. Carta do Prof. Afonso Queiró para o Ministro da
O recente acesso ao espólio documental do Professor Justiça:
Doutor João de Matos Antunes Varela, Ministro da
Justiça entre 1954 e 1967, por gentil disponibilidade dos «Coimbra, 30.V.67
seus herdeiros, permite escrever uma parte da história
da responsabilidade civil do Estado pelo exercício da Meu caro Varela:
função legislativa que se tem como inédita. Essa histó-
ria resume-se nos seguintes termos: Aqui vai o projeto de decreto-lei sobre a responsabilidade
t Ao contrário do que se pensava, a elaboração do por atos de gestão pública, após acordo com o Doutor Pires
Decreto-Lei nº 48051, de 21 de novembro de 1967, de Lima.
não foi apenas obra do Prof. Afonso Queiró, con-
tando também com a participação ativa do Prof. Apenas me permiti, depois da entrevista com ele, introduzir
Pires de Lima, tendo existido duas versões do pro- uma modificação no último artigo, relativamente à respon-
jeto do diploma; sabilidade por atos lícitos e por atos legislativos.
t Ambas as versões do projeto do diploma foram
enviadas pelo Ministro da Justiça, Prof. Antunes Verifiquei que a última edição do Vedel, chegada en-
Varela, ao Presidente do Conselho de Ministros, tretanto à Faculdade, dá notícia de que o «Conselho de
Oliveira Salazar; Estado admitiu, por último, a responsabilidade pelo facto
t Na segunda versão do projeto, todavia, o Prof. da lei», quando esta gerar para pessoas determinadas um
Afonso Queiró resolveu acrescentar, sem previa- sacrifício anormal, com vista à satisfazer o interesse geral
mente ter concertado a solução com o Prof. Pires – dando, deste modo, completa consagração ao princípio
de Lima, uma disposição prevendo a responsabili- da igualdade perante os encargos públicos. Assim, agora,
dade do Estado por atos legislativos; em França, quando o legislador entender que o Estado
t A solução legislativa agora proposta, prevendo o não deve indemnizar em casos destes, terá que o impor
princípio geral da responsabilidade civil do Estado especialmente.
por sacrifícios oriundos do exercício da função
legislativa, teve como fonte a jurisprudência do Pareceu-me que Portugal poderia aparecer como o pioneiro
Conselho de Estado francês; pais (ou talvez o primeiro, não sei bem) a consagrar legis-
t A proposta de consagrar a responsabilidade do lativamente aquela solução de vanguarda. Não receio que
Estado por ato legislativo suscitou, todavia, fortes ela cause embaraços às finanças estaduais, até porque o le-
resistências por parte do Prof. Pires de Lima e do gislador, quando achar inviável a indemnização, incluirá
preceito a isentar o Estado de qualquer dever de reparar.
Em vez, portanto, de, como sucede agora, só haver, em tais
casos, dever de indemnizar quando o legislador o consagrar,
8Cfr. RUI MEDEIROS, Ensaio Sobre a Responsabilidade
Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992. passará a haver obrigação de indemnizar se o legislador
não excluir essa obrigação. Estou certo que esta orienta-
9Cfr. MARIA LÚCIA C. A. AMARAL PINTO ção terá sucesso internacional.
CORREIA, Responsabilidade do Estado e Dever de
Indemnizar do Legislador, Coimbra, 1998.
.88

para pôr à consideração de Vossa Excelência um problema


que requer solução urgente.

Com a entrada em vigor do novo Código Civil, pode


sustentar-se que caducaram os artigos que no Código
velho regulavam, embora em termos muito deficien-
tes, a responsabilidade do Estado pelos chamados ato de
gestão pública. Para preencher a lacuna dai resultante,
há muito encarreguei o Doutor Queiró de me preparar
o texto do diploma que regulasse a matéria em novos e
melhores termos.

O projeto inicial do Dr. Queiró foi já apresentado e tem


sido bastante discutido entre mim, o autor e os Drs. Vaz
Serra e Pires de Lima. Conhecidos os nossos pontos de
vista, pedi aos Drs. Queiró e Pires de Lima que redigis-
sem, em conjunto, um projeto legislativo.

É esse segundo projeto que junto tenho a honra de enviar


a Vossa Excelência.

Há, todavia, nesse projeto um artigo – o último – acerca


do qual eu e o Dr. Pires de Lima temos as maiores dúvidas
Tendo perfilhado esta orientação, tive, logicamente, de re- e apreensões, entendendo mesmo que ele deveria ser pura e
tirar do texto do artigo a expressão «de conteúdo discricio- simplesmente eliminado, pelos graves riscos e prejuízos que
nário» para admitir, em geral, uma responsabilidade do pode trazer para o Estado. O Dr. Queiró, que é mestre na
Estado por atos administrativos legais. Também neste matéria, defende-o, porém, com unhas e dentes.
domínio, portanto, se o legislador entender inviável a
indemnização, terá, em cada caso especial, de dispor Eu peço licença para juntar a última carta, com que ele faz
nesse sentido. Deste modo, tomaremos uma posição pro- por escrito a defesa do seu ponto de vista.
gressiva sem incorrer no pecado de criar embaraços finan-
ceiros indeterminados ao Estado. Vossa Excelência ficará assim melhor elucidado e mais fa-
cilmente me poderá dar a palavra de orientação de que
No seu caso, eu perfilharia estas soluções, até por razões po- necessito para acabar o diploma, antes que comecem a le-
líticas. Ninguém se orgulhará de ter um sistema mais justo vantar-se as questões e as críticas sobre a matéria que im-
e mais progressivo do que o nosso. porta, na verdade, regular de novo.

Sempre ao seu dispor. Um abraço amigo do seu ex-colega, Apresento a Vossa Excelência os meus respeitos cumprimentos,

A.Queiró.» João de Matos Antunes Varela».

4. Carta do Ministro de Justiça para o Presidente do 5. A carta do Ministro da Justiça receberia uma resposta
Conselho: escrita pelo punho de Oliveira Salazar, em duas páginas,
arrancadas de um bloco de notas, ainda que não assina-
«6.6.67 das, com o seguinte teor:

Senhor Presidente: «Justiça

Aproveito uma pausa da visita do Ministro Gama e Silva, Li a carta de V.Exª. de 6, a carta do Doutor Queiró e
que continua a decorrer em termos bastante agradáveis, o projeto de decreto. Não conheço a matéria e por isso
89.

não posso pronunciar-me sobre ela apenas pela impressão dizendo-se «se concordar assine e manda-se publi-
que me deixou a leitura. Acontece que nem sequer sei o car. Não queria que fosse o seu antecessor a decidir
que constava do Código Civil. Parece-me que V.Exª não a questão»;
tem dúvidas acerca dos primeiros artigos e só acerca do t O texto entregue ao novo Ministro da Justiça foi
último que o Doutor Queiró expressou esse entusiasmo, a primeira versão do diploma, sem qualquer refe-
agora sobretudo que o Conselho de Estado francês lhe dá rência à responsabilidade do Estado por atos le-
uma achega importante. Penso que efetivamente alguma gislativos, o qual, sem nunca ter ido a Conselho
coisa se deva fazer mas receio as consequências de irmos de Ministros, mereceu a assinatura do Ministro da
demasiado longe. Não será possível ou prático ouvir so- Justiça (e de todos os restantes ministros), acaban-
bre o projeto os professores da Faculdade de Direito de do publicado como Decreto-Lei nº 48051, de 21 de
Lisboa – Paulo Cunha, Marcelo Caetano ou outros peritos novembro de 1967.
na matéria?
7. Duas dúvidas não podem deixar de se colocar:
9.VI.967». t Foi o puro acaso que fez o Presidente do Conselho
entregar ao Ministro da Justiça a primeira versão do
III projeto do diploma que estava guardado na gaveta
ou, pelo contrário, Salazar, deliberadamente, entre-
6. Quais os factos subsequentes às mencionadas cartas? gou o texto que não consagrava a responsabilidade
por atos legislativos?
Desconhece-se se o Ministro da Justiça acatou a sugestão t Exista já em inícios de junho de 1967 uma clara
do Presidente do Conselho, solicitando a opinião de ou- animosidade de Oliveira Salazar contra Antunes
tros sábios sobre a matéria referente à consagração legal Varela, fazendo aquele que este não ficasse com o
da responsabilidade do Estado pelo exercício da função mérito de ter o nome associado à publicação do di-
legislativa10. Sabe-se apenas o seguinte: ploma sobre a responsabilidade do Estado, ou, em
t O Prof. Antunes Varela deixou o Ministério da alternativa, tendo já decidido a substituição do seu
Justiça, em 22 de setembro de 1967, sem que o di- Ministro da Justiça, pretendia que fosse o novo ti-
ploma sobre a responsabilidade civil extracontra- tular a decidir a matéria?
tual do Estado tenha sido aprovado pelo Presidente
do Conselho de Ministros; As respostas a encontrar mostram-se algo irrelevantes
t Em testemunho dado na primeira pessoa, o su- face ao ângulo do problema escolhido para analisar: a
cessor do Prof. Antunes Varela na pasta da Justiça, tentativa de introdução, por via legal, em finais da déca-
o Prof. Mário Júlio de Almeida Costa foi pouco da de sessenta do século XX, da responsabilidade civil do
depois abordado pelo Prof. Afonso Queiró, inda- Estado por atos legislativos, antecipando em quarenta
gando o destino do projeto de diploma sobre a res- anos a Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro.
ponsabilidade do Estado, assegurando-lhe o novo
Ministro da Justiça que procuraria saber o que se 8. A reprodução do texto dos documentos e o relato dos
passava junto do Presidente do Conselho; factos ficam agora feitos, numa homenagem também ao
t Em reunião entre o novo Ministro da Justiça e vulto do Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró,
o Presidente do Conselho, ao relato daquele da insigne jusadministrativista, no ano do centenário do
questão colocada pelo Prof. Queiró, Oliveira seu nascimento (1914-1995).
Salazar levantou-se, abriu uma gaveta e tirou umas
folhas, entregando-as ao Ministro da Justiça, *Professor Catedrático de Direito da Universidade de Lisboa

10Segundo informação fornecida pelo Prof. Diogo Freitas


do Amaral, o Prof. Marcello Caetano havia elaborado, em
1966, um articulado alternativo ao inicial projeto de res-
ponsabilidade civil extracontratual do Estado feito pelo
Prof. Afonso Queiró.
.90

| jurisprudência |

Nazaré da Costa Cabral*


REDUÇÃO DE PENSÕES EM CURSO DE ATRIBUIÇÃO
E O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA:
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O MODO
DE SUPERAÇÃO DESTE IMPASSE, A PROPÓSITO DO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.º 862/2013

1. INTRODUÇÃO antecede relacionado, o TC parece ser chamado a agir


politicamente, extravasando, nesta medida, aquela que é
Nos últimos anos, desde que a crise financeira e eco- a sua função típica. De certa forma, isto é até natural.
nómica chegou e se instalou em Portugal, o Tribunal No quadro atual de restrição das políticas e dos direitos
Constitucional tem sido chamado recorrentemente sociais, a apreciação da eventual violação das regras jurí-
a pronunciar-se sobre as várias medidas adotadas ain- dicas que preveem esses direitos ou dos princípios gerais
da pela anterior governação, mas sobretudo pela atual. que os ancoram pode, na verdade, implicar uma aprecia-
Fundamentalmente, têm estado em causa normas con- ção sobre a existência de alternativas (políticas). A fron-
tidas nos sucessivos orçamentos do Estado (desde 2011 teira entre uma apreciação jurídico-constitucional estrita
e até ao ano corrente), embora estas últimas, que agora e a avaliação da política é, por vezes, infelizmente, ténue.
apreciamos, constassem de legislação diversa. A crise e
com ela a política de austeridade, marcada, de um lado, O exemplo mais recente desse invocado «ativismo ju-
por cortes massivos em salários e em prestações sociais dicial» é o Acórdão do Tribunal Constitucional nº
(sobretudo pensões) e, de outro, pelo agravamento da 862/2013, de 7 de janeiro de 20141, no qual o Tribunal
carga fiscal (mormente a nível da tributação direta), pa- foi chamado a pronunciar-se sobre o diploma que previa
recem estar a implicar, a título estrutural e não apenas a chamada convergência de pensões entre sector público
conjuntural, uma mutação paradigmática do Estado (Caixa Geral de Aposentações – CGA) e sector privado2.
social em Portugal, uma redefinição do seu alcance e
dos seus limites fáticos, financeiros e jurídicos. Ao que
tudo indica, já nada será como dantes. Perante o retro-
cesso, perante o recuo nos níveis de generosidade e na
abrangência do Estado Social, o TC é chamado a de- 1 (Processo 1260/13, Relator: Conselheiro Lino Rodrigues
Ribeiro).
sempenhar novos papéis (a profusão dos Acórdãos re-
lacionados com a «política de cortes» é elucidativa), até 2 Para uma visão crítica do Acórdão do TC ora em apre-
aqui pouco encontrados na jurisprudência anterior. De ço, sublinhando o forte pendor ativista do mesmo, leia-
um lado, o Tribunal é agora convidado a fazer análises de -se COUTINHO, Luís Pereira (2014), «A «convergência
conjuntura económica e pronunciamentos sobre a situa- de pensões» como questão política». Disponível aqui:
ção financeira do país e a equacionar medidas de estabi- http://e-publica.pt/convergenciapensoes.html [acesso:
lização macroeconómica. De outro lado, mas com o que 14.02.20]
91.

2. A DECISÃO E OS ARGUMENTOS PRINCIPAIS atribuídas pela CGA». Concluiu assim o Tribunal: a


DO ACÓRDÃO N.º 862/2013 violação das expectativas em causa «só se justificaria
no contexto de uma reforma estrutural que integras-
No Acórdão em apreço, o Tribunal Constitucional de- se de forma abrangente a pownderação de vários fa-
cidiu, na sequência de pedido de fiscalização preventiva tores. Só semelhante reforma poderia, eventualmente,
apresentado pelo Presidente da República, pronunciar- justificar uma alteração dos montantes das pensões a
-se pela inconstitucionalidade das alíneas a), b), c) e pagamento, por ser acompanhada por outras medidas
d) do nº 1 do artigo 7.º do Decreto da Assembleia da que procedessem a reequilíbrios noutros domínios»
República n.º 187/ XII, com base na violação do princí- (sublinhado nosso).
pio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito
democrático consagrado no artigo 2.º da CRP.
3. CARACTERIZAÇÃO SUMÁRIA DA
Do artigo questionado, estava em causa, de um lado, JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL
a previsão constante das suas alíneas a) (pensões de EM MATÉRIA DO DIREITO À PENSÃO
aposentação) e c) (pensões de sobrevivência), que de-
terminava a redução, em 10%, do valor destas pensões, Compulsada a jurisprudência do TC, mais antiga e ago-
calculadas segundo as regras (anteriormente aplicáveis) ra, também, a argumentação constante do Acórdão n.º
do Estatuto de Aposentação e, do outro lado, a previ- 862/2013, encontramos algumas linhas de força ou ten-
são das alíneas b) (pensões de aposentação) e d) (pensões dências comuns e que permitem afirmar um posiciona-
de sobrevivência) que previam o recálculo da parcela P1 mento integrado do Tribunal quanto à caracterização do
da pensão, a parcela apurada segundo as regras antigas direito à pensão:3
de determinação da remuneração de referencia (a média t O Tribunal tende a não aceitar a aplicação dos
dos dez melhores dos últimos quinze anos), de forma a princípios da Constituição Fiscal às alterações no
garantir agora, com este recálculo, uma taxa de substi- domínio das pensões (designadamente quando im-
tuição de pensão, relativamente a esta remuneração de pliquem redução de montante). A abordagem faz-
referência, não superior a 80%. -se assim «pelo lado da despesa» e não «pelo lado da
receita», no quadro da relação jurídica específica da
O TC analisou as normas em causa e a redução dos prestação de segurança social;
montantes de pensões que elas implicavam à luz do t O Tribunal propende a rejeitar a concepção do di-
princípio da proteção da confiança, tendo em conta reito à pensão como um direito patrimonial (direito
o interesse público prosseguido por tal medida. E en- à propriedade privada), considerando que o direito
tendeu que, a esta luz, não se poderiam sacrificar ex- à pensão tem um tratamento próprio, autónomo,
clusivamente os direitos dos pensionistas das CGA na Constituição Portuguesa, em que é considerado
em função das invocadas razões de consolidação orça- expressamente um direito social;
mental. «Soluções sacrificais motivadas por razões de t O Tribunal, considerando embora que o direito
insustentabilidade financeira dirigidas apenas aos be- à pensão tem dignidade jusfundamental, tende a
neficiários de uma das componentes do sistema (...) aceitar a capacidade de conformação por parte do
são, por isso, necessariamente assistémicas ou avulsas e legislador ordinário, mormente no que diz respeito
enfermam de um desvio funcional: visam fins – evitar, ao quantum de pensão. Os argumentos são de du-
com o sacrifício exclusivo dos pensionistas da CGA, o pla ordem: por um lado, não existe exata equivalên-
aumento das transferências do OE – que não se enqua- cia entre aquilo que é pago a título de contribuição
dram no desenho constitucional de um sistema públi- e o que é percebido como prestação; por outro
co de pensões unificado». O Tribunal aduziu ainda que lado, pelo facto de o nosso sistema previdencial ser
«a medida em causa traduz-se numa medida avulsa, de um sistema de repartição e não de capitalização,
isolada, ad hoc, que se concretiza numa simples abla-
ção abrupta do montante das pensões. Ela não se inse-
re num contexto de reforma sistemática, (...) não visa 3 Identificando também as linhas de força do TC em ma-
apreender o sistema de proteção social na sua globali- téria de pensões, veja-se ALEXANDRINO, José de Melo
dade, perspetivando-o apenas de uma forma unilateral (2014), «Economia Social de Mercado e Confiança – O caso
através da preocupação de corte imediato das pensões das pensões e reformas em Portugal», Direito & Política.
.92

pelo que (em termos que consideramos erróneos, à pensão (uma vez verificados os requisitos legais), mas
tal como adiante procuraremos demonstrar) não também no direito a um determinado montante de
garantiria, por causa disso, a concretização do mon- pensão, apurado este em razão das regras de cálculo
tante de pensão; vigentes e ao tempo aplicáveis à situação do contri-
t O Tribunal assume uma diferença entre os direitos buinte/beneficiário. Isto é assim, na verdade, porque,
sociais e os direitos fundamentais de liberdade (os contrariamente àquilo que tem vindo a ser afirmado
direitos fundamentais de «primeira geração»), acei- pelo TC, o nosso sistema, sendo embora de reparti-
tando a tese de que relativamente aos primeiros é ção, é um modelo de benefício definido. Na verdade, tec-
legítimo traçar a fronteira entre o núcleo duro do nicamente, e ao contrário do que vem sendo alegado
direito e aspetos colaterais, mormente para efeitos pelo TC, não seria pelo facto de o nosso sistema ser
de determinação do regime aplicável e concreta- de capitalização (por contraposição à repartição) que
mente do disposto no artigo 18.º da Constituição. o levaria a garantir aos pensionistas montantes de pen-
Ainda assim; são. A distinção entre repartição e capitalização nada
t O Tribunal tem-se colocado, em diversos arestos, tem que ver com a garantia dos benefícios: é apenas
na perspetiva de olhar para as reduções de pensões uma distinção que opera no plano da gestão financeira
sob a forma de restrições do direito (ou seja, impli- do sistema. Na repartição, o Estado financia-se junto
citamente tratando o tema como se de um direito dos contribuintes atuais para pagar as pensões dos pen-
de liberdade se tratasse), procurando em cada caso, sionistas atuais, comprometendo-se a «restituir» aos
designadamente, em face dos princípios parâmetro primeiros aquele financiamento, pagando-lhes a eles
da Constituição, princípio da igualdade, princípio também uma pensão, uma vez reunidos os requisitos
da proporcionalidade e princípio da proteção da respetivos de acesso. Tecnicamente, pois, quer o mode-
confiança, avaliar da legitimidade da restrição, ou lo de repartição, quer o modelo de capitalização podem
seja, do grau de tolerabilidade da mesma. ser de benefício definido e, aliás, até há pouco tempo,
eram-no, maioritariamente. Como veremos adiante, a
tendência vai justamente no sentido de alterar a fisio-
4. AS RESTRIÇÕES AO DIREITO À PENSÃO nomia de ambos os sistemas: os modelos de benefício
E O GRAU DE TOLERÂNCIA ADMISSÍVEL: definido têm transitado para modelos de contribuição
EM PARTICULAR, NO CONFRONTO COM O definida. Esta é uma tendência que, como veremos à
PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA frente, se vem afirmando à escala europeia, no quadro
de processos de reforma adotados em diversos países,
nas últimas duas décadas.
4.1. NOTA PRÉVIA

Não cabe no escopo do presente comentário entrar na 4.2. A IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO
discussão de saber se o direito à pensão configura ou DA CONFIANÇA NO ESTADO DE DIREITO
não um direito fundamental. Ainda que tendo por base E NAS ECONOMIAS DE MERCADO
argumentos algo diversos daqueles que geralmente são
encontramos em favor do carácter jusfundamental dos Ao aceitarmos assim que o direito às pensões de natureza
direitos sociais4, defendemos que as pensões de nature- contributiva é um direito social fundamental, a restri-
za contributiva configuram direitos com uma especial ção deste direito, para ser legítima, tem de passar pelo
densidade (atenta justamente a sua natureza contribu- crivo dos princípios parâmetros da nossa Constituição.
tiva), e são por isso direitos fundamentais na sua inte- CANAS (2014)5 qualifica-os de forma muito apropria-
gralidade. Ou seja, defendemos que falar em direito à da. Assim: «A trilogia da constituição prima facie não é
pensão significa não apenas falar em direito em aceder

5 CANAS, Vitalino (2014), «Constituição prima facie:


4 Como é o caso, sobretudo, de NOVAIS, Jorge Reis igualdade, proporcionalidade, confiança (aplicado ao
(2010), Direitos Sociais – Teoria Jurídica dos Direitos Sociais «corte» das pensões). Disponível aqui:
enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, http://e-publica.pt/constituicaoprimafacie.html [acesso:
Coimbra. 14.02.14]
93.

«liberdade, igualdade, fraternidade» mas sim «igualdade, Direito e às vezes existe para lá dele e sem ele.7 A base
proporcionalidade, confiança». Os princípios da igual- do princípio da tutela da confiança é assim a existência
dade, da proporcionalidade e da proteção da confiança de relações contratuais entre as pessoas, seja no trato co-
têm em comum, pelo menos, a função que desempe- mercial seja, tão-simplesmente, na sua vida pessoal. A
nham: são instrumentos de mediação de operações de confiança preside aos negócios familiares (desde logo o
ponderação e otimização e, nessa medida, veículos da casamento) e aos negócios comerciais. A confiança é, na
constituição prima facie.» verdade, o postulado fundamental do contrato, seja ele
um contrato escrito ou não escrito. Aliás, ela dispensa de
O princípio da proteção da confiança, pelo facto de se facto a formalidade; nas relações informais, a confiança
traduzir num princípio e não numa regra jurídica ex- é condição de normalidade e de sanidade (no sentido de
pressa do texto constitucional não deve, por essa razão, ausência de patologia).
ser menosprezado. Na verdade, como refere MORAIS
(2012: 179-1806), o grau de cogência dos princípios é Sendo a base das relações contratuais, a confiança as-
variável, constituindo exemplos de plena efetividade sume relevância especial no quadro de relações contra-
jurídica (no sentido de relação entre incumprimento e tuais duradouras. Como refere ARAÚJO (2007: 379)8,
sanção) o caso precisamente dos princípios da prote- «a confiança recíproca vai-se formando ao longo das
ção da confiança, da igualdade e da proporcionalidade. relações contratuais duradouras, ao mesmo tempo que
A estes princípios qualifica de «atributos fundacionais a própria duração vai incrementando e acumulando
do Estado Democrático de Direito contemporâneo» as oportunidades e abuso». Mas adiante, acrescenta o
(Ibidem: 180). E é nessa medida que eles têm sido con- mesmo Autor (Idem: 385), «quanto mais longa a relação
vocados, pela jurisprudência e doutrina constitucio- contratual maior a probabilidade de ocorrer uma não-
nais, como «princípios-parâmetro» da Constituição -simultaneidade das prestações estipuladas no contrato,
portuguesa. e essa não-simultaneidade é que abre espaço à eclosão
de dois dos principais problemas com que se defronta a
Conquanto princípio implícito (ainda que entre nós disciplina contratual: o do oportunismo e o da alteração
conheça concretizações expressas, mormente no dis- das circunstâncias (a ocorrência de contingências impre-
posto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição), o prin- vistas), dois problemas de desequilíbrio ex post na one-
cípio da tutela da confiança constitui, na verdade, um rosidade e na distribuição dos riscos». O oportunismo
princípio matricial do Estado de Direito, Estado liberal está, por sua vez, associado ao «endgame», ou seja, o facto
que organiza e estrutura as sociedades ou economias de de, num jogo de lances sucessivos, o que tem a última
mercado ocidentais: nestas, as relações entre os agentes palavra a dizer, poder afinal alterar inesperadamente a
económicos (empresas e famílias), desde as mais simples sua conduta, incumprindo a sua parte. Estamos perante
às mais complexas, baseiam-se justamente na relação de um problema de «hold up», aquilo que no Direito co-
confiança. Aliás, veja-se como, na decisão do TC, ora nhecemos como «venire contra factum proprium» - basi-
apreciada, este fundamenta a inconstitucionalidade por camente uma forma de má fé.
violação do princípio da proteção da confiança, invocan-
do para o efeito o disposto no artigo 2.º da Constituição Convocando então a perspetiva da Análise Económica
(Princípios do Estado de Direito democrático). do Direito, que encontramos nas observações anteriores,
podemos compreender melhor o que está em causa na
Nos Estados de Direito, o Direito apropria-se pois da alteração legislativa sub judice. O legislador invoca a alte-
confiança e, de uma forma ou de outra, institucionali- ração das circunstâncias (a crise e o problema da susten-
za-a, sendo certo, contudo, que a confiança precede o tabilidade financeira da segurança social, sobretudo da

6 MORAIS, Carlos Blanco de (2012). «O controlo de in- 7 Sobre as relações entre a confiança e o Direito, veja-
constitucionalidade por omissão no ordenamento brasi- -se, por todos, FRADA, Manuel A. Carneiro da (2001),
leiro e a tutela dos direitos sociais: um mero ciclo ativista Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Faculdade de
ou uma evolução para o paradigma neoconstituciona- Direito de Lisboa, Teses.
lista?», Revista de Direito Constitucional Internacional –
RDCI, Ano 20, 78, Jan.-Março, 2012 , Editora Revista 8 ARAÚJO, Fernando (2007), Teoria Económica do
dos Tribunais, p. 153 ss.. Contrato, Almedina, Coimbra.
.94

CGA) para incumprir a sua parte: na verdade, aproveita- contratuais constitui um precedente grave, uma «caixa
-se do facto de a ele pertencer o último lance (o de pagar de pandora», que não podemos de ânimo leve abrir.
as pensões), pois que a contraparte já havia cumprido to- Isto, por duas razões. Em primeiro lugar, pela mensa-
talmente as suas obrigações (fazer os descontos exigidos gem, pelos incentivos económicos que o Estado assim
pela lei então aplicável), para alterar significativamente transmite a toda a economia. Se ele própria falha nos
a sua conduta, e não pagar nos termos comprometidos. seus compromissos, por que não o poderão os priva-
Resta saber se este comportamento de «hold up» é de dos nas suas relações contratuais entre si? Em segundo
facto legítimo, ou se estamos, na verdade, perante uma lugar, porque um incumprimento de tais compromis-
conduta de má fé, oportunista, ainda que a pretexto des- sos pode abrir a porta, num futuro, a outros incumpri-
sas novas circunstâncias. Seja como for, e qualquer que mentos, de formas ainda mais gravosas: expropriações
seja a apreciação que se faça da conduta do legislador, o sem direito a justa indeminização, nacionalizações ar-
que antecede reforça uma ideia que aqui, infelizmente, bitrárias, etc., etc.. Numa ótica liberal pura e dura, isto
não conseguimos desenvolver mais: o princípio da tu- é algo que não pode deixar de perturbar...
tela confiança sai especialmente reforçado e densificado
no quadro de relações contratuais ou bilaterais – como
aquelas que, afinal, agora discutimos (as relações jurídi- 4.3. AS FORMULAÇÕES DO PRINCÍPIO
cas contributivas versus prestacionais, no seio do siste- DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA
ma previdencial da CGA). Logo, o direito à pensão (ou
aposentação) que se forme numa base contratualizada é
também mais denso do que o direito à pensão que não 4.3.1. AS DUAS DIMENSÕES DO PRINCÍPIO
suponha prévias obrigações contributivas. DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA

Sendo um princípio matricial do Estado de Direito, ele A jurisprudência constitucional portuguesa tem recorri-
constitui também, em nossa opinião, uma instituição ju- do sobejamente ao princípio da proteção da confiança,
rídica fundamental das economias de mercado ociden- fundamentalmente em duas áreas: i) Até 1997 no quadro
tais. Recorde-se a lição de FRANCO (1982: 106-118)9, das relações jurídico-fiscais, para enquadrar e justificar
para quem os sistemas económicos podiam ser diferen- as situações de retroatividade fiscal; ii) Nas últimas duas
ciados em razão das suas instituições económicas e jurí- décadas, na legislação relativa a direitos de carácter pres-
dicas, da técnica utilizada e do móbil prosseguido. Ao tativo, mormente nas áreas da segurança social e laboral,
capitalismo, apontava como instituições económicas, o designadamente para avaliar incursões legislativas que,
mercado, a empresa e o capital e, como instituições jurí- de uma forma ou de outra, ponham em causa os chama-
dicas, a propriedade privada dos meios de produção e as dos «direitos adquiridos e em formação».
liberdades económicas fundamentais (liberdade de ini-
ciativa privada, de empresa, de trabalho, de contratação, O princípio da tutela da confiança aparece relaciona-
de deslocação, etc.). Ora, a estas instituições jurídicas, do, numa dimensão estritamente objetiva, com dois
cremos que deve ser acrescentada a confiança. Na ver- tópicos essenciais: de um lado, com a questão da apli-
dade, a confiança é a garantia de segurança e de estabili- cação das leis no tempo (ou seja, como é que factos
dade nas relações jurídicas entabuladas entre os agentes que se formam juridicamente no tempo devem convi-
económicos, sem as quais o mercado (a instituição eco- ver com a legislação que sucessivamente lhes vai sendo
nómica central) pura e simplesmente não funciona. aplicável); do outro lado, com o domínio da Boa Fé.
Economias de mercado sem confiança são economias Assim, à luz do primeiro tópico, do que se trata é de
disfuncionais, patológicas, corrompíveis, e sem capaci- verificar a existência ou não de retroatividade, verificar
dade de progresso económico. depois qual o grau de retroatividade e avaliar, enfim,
da tolerabilidade dessa retroatividade. Tendo em conta
Logo, o incumprimento por parte do Estado de esta primeira perspetiva, o princípio da tutela da con-
compromissos assumidos num quadro de relações fiança está intimamente relacionado com o princípio
da segurança jurídica e com a ideia de estabilidade na
definição e implementação do quadro normativo que
9 FRANCO, António L. De Sousa (1982), Noções de temporalmente informa as relações entre os sujeitos.
Direito da Economia, 1.º volume, A.A.F.D.L., Lisboa. À luz do segundo tópico, e tal como já antes referido,
95.

procura-se vedar ou limitar condutas de má fé, de «ve- materialmente superiores (proporcionalidade em


nire contra factum proprium», isto é, situações em que razão dos fins desejados);
uma das partes sugere deliberadamente, através de ação ii O confronto entre as medidas impostas com outras
convincente, a adopção futura de comportamentos, medidas alternativas que prosseguissem os mesmos
que depois, ao fim e ao cabo, vem a defraudar. ou melhores desideratos, eventualmente até com
menos sacrifícios, ou com sacrifícios mais justos ou
Mas o princípio da tutela confiança, pelo menos tal mais equitativos (proporcionalidade em razão dos
como vem sendo enquadrado e concebido pela juris- meios), e, por último, com isto relacionado;
prudência constitucional portuguesa nos Acórdãos iii O confronto entre os sacrifícios impostos e os resul-
mais emblemáticos, tem sido normalmente apresenta- tados alcançados (em suma, proporcionalidade em
do com uma dimensão subjetiva (veja-se sobre o tema razão da eficácia da medida).
CANAS, Ob. Cit.). De acordo com esta dimensão, o
princípio da tutela da confiança aparece doseado ou No primeiro caso, procura-se proibir, acima de tudo, a
calibrado pelo princípio da proporcionalidade. Nesta restrição excessiva, ou seja, a restrição desproporcionada.
medida, avaliar da lesão da confiança envolve, tendo No segundo e terceiro casos, avalia-se não apenas se a
presente a jurisprudência mais recente do TC, uma tri- medida peca por excesso, mas também, eventualmente,
pla apreciação (as duas últimas parecem descortinar- se o faz por defeito. Como facilmente se apercebe, esta
-se, como elemento novo, justamente no Acórdão que tripla apreciação abre espaço a decisões judiciais impreg-
agora apreciamos): nadas de subjetivismo, em que, e recordamos o que an-
i A ponderação das expectativas ou dos inte- tes dissemos, a fronteira entre uma apreciação jurídica
resses lesados, em face de outros considerados estrita e a avaliação (política) das políticas públicas se
torna numa fronteira pouco firme.
.96

4.3.2. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA constitucionalmente protegidos que devam consi-


NO DIREITO FISCAL: RETROATIVIDADE E AS derar-se prevalecentes (devendo recorrer-se, aqui,
DIMENSÕES OBJETIVA E SUBJETIVA NOS ao princípio da proporcionalidade, explicitamente
TESTES DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA10 consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e
garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição)
Uma das mais importantes aplicações do princípio da (pressuposto subjetivo).
segurança jurídica (de que é vertente a proteção da con-
fiança) consiste na proibição de leis retroativas. Isto mes- Estava assim esboçado o «duplo teste» da proteção da
mo apresenta especial relevância em certos ramos do confiança.
Direito Público, com destaque para o Direito Penal e
para o Direito Fiscal. A revisão constitucional de 1997 ditou a proibição ex-
pressa da retroatividade fiscal (cf. n.º 3 do artigo 103.º
No Direito Fiscal, assistimos a uma evolução curiosa no da Constituição), considerando-se que essa proibição
modo de conceber a proibição da retroatividade e, por respeitaria tão-só à retroatividade autêntica (neste senti-
antinomia, o princípio da tutela da confiança. Fez-se do NABAIS, 2005: 14511)12. Desta forma, o princípio da
uma evolução da dimensão subjetiva da ideia de retroati- segurança jurídica, na vertente da tutela da confiança (à
vidade (por conseguinte também da lesão da confiança) luz note-se da sua dimensão subjetiva), teria sido prati-
para uma dimensão claramente objetiva. camente absorvido pelo preceito constitucional, tornan-
do-se até redundante. Posteriormente, no Acórdão n.º
Assim, até à revisão constitucional de 1997, como a 128/2009, de 12 de março (Proc. n.º 772/2007)13, reite-
retroatividade não era expressamente proibida pela rou-se que, uma vez expressa no texto da Constituição
Constituição, o TC, apoiado na doutrina fiscalista, co- a proibição da retroatividade em matéria fiscal, esta
meçou a laborar na identificação dos critérios de aferição proibição deve ser vista já não numa dimensão subje-
da legitimidade ou tolerabilidade da retroatividade das
leis em matéria fiscal, com base em critérios subjetivos,
ou seja, partindo de uma visão subjetiva da própria tu- 11NABAIS, José Casalta (2005), Direito Fiscal, 3.ª ed.,
tela da confiança. O Tribunal considerou então, de for- Almedina, Coimbra.
ma marcante, no Acórdão n.º 287/90, de 30 de outubro
12 A distinção entre retroatividade própria, autêntica ou
(Proc. n.º 309/88), ocorrer uma situação de arbitrarieda- de primeiro grau e retroatividade imprópria, inautênti-
de ou excessiva onerosidade, para efeito da aplicação do ca ou de segundo grau (também chamada retrospetivi-
princípio da segurança jurídica na vertente material da dade) é importante. Como refere CANOTILHO (2001:
confiança, sempre que se verificassem os seguintes pres- 261-262), haverá retroatividade autêntica, «sempre que se
supostos, o primeiro de natureza objetiva, o segundo de aplique a lei nova a factos anteriores à entrada em vigor da
dimensão subjetiva: lei nova e retroatividade inautêntica quando a norma jurí-
a. a)A inadmissível afectação de expectativas em sen- dica, conquanto pretenda ter efeitos para o futuro, incide
tido desfavorável, por virtude de uma mutação da sobre situações ou relações jurídicas já existentes.» Assim,
ordem jurídica com que, razoavelmente, os destina- CANOTILHO, José Joaquim Gomes (2001), Direito
tários das normas dela constantes não possam con- Constitucional e Teoria da Constituição. 5.ª ed, Almedina,
tar (pressuposto objetivo); e ainda Coimbra. Esta distinção é particularmente relevante no
b. b)E que tal não fosse ditado pela necessi- Direito Fiscal, mormente para impostos que sejam de
dade de salvaguardar direitos ou interesses formação contínua no tempo (v.g. IRS) – ou seja, forma-
dos ao longo de um período de tempo correspondente ao
exercício fiscal –, pois que aí se trata de definir precisa-
10 Sobre esta matéria de que agora tratamos, leia- mente a tolerabilidade de alterações legislativas durante
-se também o nosso texto anterior: CABRAL, Nazaré esse período, ou seja, avaliar em que termos a retrospeti-
da Costa (2010). «Comentário ao Acórdão do Tribunal vidade pode ser aceite.
Constitucional n.º 188/2009, de 22 de abril de 2009
(Processo n.º 505/08)», Revista de Finanças Públicas e 13 Cujos argumentos voltaram a ser usados no Acórdão
Direito Fiscal, Ano III, 3 (Outono), p. 326 ss.. Muitos n.º 85/2010, de 3 de Março (Proc. n.º 653/2009). Ainda
dos argumentos então apontados, são agora recuperados sobre estas questões, vide também Acórdão n.º 494/2009,
e desenvolvidos. de 29 de Setembro (Proc n.º 595/06).
97.

tiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos 4.3.3. A TRANSPOSIÇÃO DOS TESTES DA PROTEÇÃO
da relação tributária resultante da aplicação da lei), mas DA CONFIANÇA PARA O DOMÍNIO DAS
antes numa dimensão objectiva. Agora, à proibição ex- PENSÕES E SUA ARTICULAÇÃO COM A
pressa da retroatividade da lei fiscal não pode deixar de TEORIA OS DIREITOS ADQUIRIDOS
estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-
-vinculação do Estado pelo Direito. Se, no domínio do Direito Fiscal, a proibição expressa
da retroatividade fiscal, após a revisão constitucional de
Mas a vertente subjetiva da tutela da confiança não 1997, parece ter tornado algo redundante a aplicação do
perdeu, ainda assim, utilidade total no Direito Fiscal. duplo ou do quádruplo testes antes descritos, a verdade
Designadamente, como refere ainda NABAIS (Idem: é que a jurisprudência posterior tem utilizado proficua-
145), porque «ele serve de critério de ponderação em si- mente os seus argumentos, designadamente a propósito
tuações de retroatividade imprópria, inautêntica ou fal- de medidas de restrição de direitos sociais. E é assim que
sa, bem como em situações em que, não se verificando os testes em causa vêm sendo utilizados na jurisprudên-
qualquer retroatividade, própria ou imprópria, há que cia mais recente no domínio das pensões e, em particu-
tutelar a confiança dos contribuintes depositada na atua- lar, no Acórdão que agora comentamos. Curiosamente,
ção do Estado». Para estes casos, e esmiuçando o duplo nas decisões mais relevantes e mais recentes, o Tribunal
teste anteriormente formulado, o TC propôs-nos, no aplica os quatro testes a situações que qualifica de si-
referido Acórdão n.º 128/2009, o «quádruplo teste» da tuações de retroatividade inautêntica. Ou seja, parte do
proteção da confiança. De acordo com este, para que pressuposto – do qual discordamos - de que as reduções
haja lugar à tutela jurídico-constitucional da confiança nos montantes de pensões já atribuídas constituem não
é necessário que: uma forma de retroatividade própria, mas sim uma for-
i O Estado (mormente o legislador) tenha encetado ma de retrospetividade. Para concretizarmos as razões da
comportamentos capazes de gerar nos privados «ex- nossa discordância – que depois terá relevância prática
pectativas» de continuidade; – precisamos de convocar a «famosa» teoria dos direitos
ii Devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e adquiridos.
fundadas em boas razões;
iii Devem os privados ter feito planos de vida tendo A expressão «direitos adquiridos» é uma expressão mal
em conta a perspectiva de continuidade do «com- compreendida, mal conhecida, e esse desconhecimento
portamento» estadual; leva a que seja muito injustamente tratada. Instituiu-
iv É ainda necessário que não ocorram razões de in- se junto de uma grande parte da comunidade política
teresse público que justifiquem, em ponderação, a e da opinião pública portuguesas, com uma boa dose
não continuidade do comportamento que gerou a de demagogia, uma aversão em relação aos direitos ad-
situação de expectativa. quiridos, como se de privilégios injustos e ilegítimos se
tratassem. Esta forte carga negativa, pejorativa, resulta
Os três primeiros requisitos, repare-se, continuam a pois, em grande parte, do desconhecimento acerca do
«navegar nas águas» do objectivismo. Vislumbra-se que significado histórico e da grande utilidade deste princí-
a questão da aplicação das leis no tempo continua pre- pio. Na verdade, o princípio do respeito pelos direitos
sente (recorde-se que ela é nosso primeiro tópico da adquiridos não mais é do que a transposição, para a área
dimensão objetiva), mas é a questão da Boa Fé (o se- da segurança social, de princípios tão fundamentais e tão
gundo tópico que apontámos à dimensão objetiva) que caros ao Estado de Direito, como é precisamente o prin-
agora ganha uma relevância que não se extraía do du- cípio da segurança jurídica, na vertente da tutela da con-
plo teste formulado anos antes. Os três primeiros tes- fiança. Pois que, sendo a segurança social, tipicamente,
tes concretizam pois a ideia de que o Estado, nas suas um domínio em que se formam direitos ao longo do
relações com os cidadãos, deve usar da boa fé e deve ser tempo (mormente quando está em causa a formação das
pessoa de bem: não deve sugerir, através de ação con- pensões) - à semelhança de certos impostos, estarão aqui
vincente, a adopção futura de comportamentos, que em causa «factos jurídicos de formação contínua» -, é
depois, ao fim e ao cabo, vem a defraudar. O quarto importante acautelar de que forma as sucessivas leis que
teste praticamente reproduz o segundo, do duplo teste: forem sendo aprovadas ao longo do período de forma-
o subjetivismo mantém-se vivo e a exigir muito, desde ção da pensão relevam no acesso e no cálculo da mesma.
logo do poder judicial. Por isso, a teoria do direitos adquiridos é, desde logo,
.98

como bem assinalava TELLES (2001: 280)14, uma teoria estamos perante factos de formação contínua, que o sen-
sobre a aplicação das leis no tempo. Se assim é, ela procu- tido das alterações apenas valha para futuro. 15
ra, ou deve procurar, definir, em nossa opinião, critérios
que permitam a concretização, em doses equilibradas, Repare-se, por outro lado, que nas sucessivas Leis de
de dois objetivos que não têm de ser antagónicos: i) Por Bases da Segurança Social, a expressão comummente
um lado, garantir a flexibilidade legislativa, isto é, que a usada é a de «direitos adquiridos e em formação» (cf.
legislação de segurança social não esteja petrificada no epígrafe do artigo 100.º da atual Lei). Os direitos adqui-
tempo, podendo ir sendo alterada, atualizada e adapta- ridos são direitos fechados, são situações constituídas. Já
da às circunstâncias e exigências (sociais, económicas, a expressão «direitos em formação» é equívoca: deveria
financeiras) de cada momento; ii) Por outro lado, salva- pretender salientar tão-só que a formação dos direitos à
guardar os direitos dos contribuintes/beneficiários e aco- pensão, por ser de longo prazo, se deve sujeitar às vicis-
modar, na medida do possível, as respetivas expectativas. situdes que o tempo encerra (fáticas, legais, etc.). Assim,
o que de facto sucede, nos «direitos em formação», é que
Esta é, aliás, uma primeira distinção importante a fazer, neles encontramos, quer verdadeiros direitos (aqueles já
a que separa, de um lado, os direitos subjetivos adqui- constituídos ao abrigo de legislação antiga), quer expec-
ridos e, do outro, as «meras» expectativas. Como refere tativas jurídicas. Ora, a Segurança Social concebeu, ao
ainda o mesmo Autor (Ibidem: 280), a expectativa «não longo da sua história, técnicas próprias que constituem
é ainda um direito subjetivo adquirido. Essa expectativa, instrumentos adequados para proteger, nos «direitos em
em princípio, não goza de proteção jurídica; é uma simples formação», os verdadeiros direitos adquiridos, evitan-
esperança, uma atitude anímica ou psicológica desprovida do que eles sejam postergados em virtude de alteração
de tutela legal, consistente apenas (como a palavra diz) penalizadora.
em esperar vir a ser titular de certo direito»
Comecemos por ver como é que, no contexto da forma-
As sucessivas Leis de Bases aprovadas após a ção de direitos à pensão, se protegem os direitos adqui-
Constituição de 1976 - seguindo a tradição legislati- ridos, quer para efeitos de acesso à pensão (abertura do
va antiga da previdência social -, têm acolhido de for- direito), quer para efeitos de cálculo da mesma.
ma expressa a necessidade de salvaguardar os direitos
adquiridos. O artigo 100.º da atual Lei de Bases reza Os requisitos de acesso à pensão são, fundamentalmen-
assim, em termos similares ao que já sucedia nas Leis te, do ponto de vista substantivo, o cumprimento do
anteriores: «O desenvolvimento e a regulamentação da prazo de garantia e a idade legal de acesso à pensão (fi-
presente lei não prejudicam os direitos adquiridos, os xada atualmente nos 65 anos). Ora, considera-se que a
prazos de garantia vencidos aos abrigo de legislação an- situação já está juridicamente constituída se, à data da
terior, nem os quantitativos de pensões que resultem aprovação da nova Lei, que altera as regras de acesso, os
de remunerações registadas na vigência daquela legisla- requisitos definidos pela anterior tiverem sido cumpri-
ção». Ou seja, o legislador vem dizer que, mau grado as dos. Um exemplo: supondo que se alterava hoje o prazo
alterações provocadas pela nova Lei, ficarão sempre sal- de garantia para acesso à pensão de velhice; passaria dos
vaguardadas as situações jurídicas constituídas ao abri- atuais 15 para 17 anos. Ora, relativamente àqueles bene-
go de legislação anterior, tais como prazos vencidos, ficiários que já tivessem cumprido o prazo ao abrigo da
remunerações registadas, etc.. legislação até aí vigente, não poderia ver-se aumentado,
quanto a eles, o prazo de garantia. É isto que signifi-
Quer isto significar, assim, que, quando estão em causa ca respeitar os direitos adquiridos para efeitos de acesso
processos de reforma do sistema de pensões que procu- à pensão.
ram restringir as regras de acesso à pensão ou do cálculo
respectivo, o legislador deve procurar garantir, porque 15 Claro está que este tipo de preocupações não se coloca
(ou pelo menos com a mesma acuidade) relativamente às
alterações aos regimes das prestações imediatas (v.g. de-
semprego, doença), justamente por se tratarem de pres-
14 TELLES, Inocêncio Galvão (2001), Introdução ao tações de formação de curto prazo (determinadas não
Estudo do Direito, Vol. I, 11.ª ed. (reimpressão), Coimbra ao ano, mas ao mês), ou seja, de formação praticamente
Editora, Coimbra. imediata.
99.

Sucedem, porém, situações de fronteira, situações de constituída, ao abrigo da legislação anterior. Trata-se de
expectativas, que não sendo ainda verdadeiros direi- cláusulas de proporcionalidade no cálculo da prestação: à
tos, estão próximas disso. São expectativas fortes e que, parcela da remuneração obtida durante a vigência da lei
por isso, tendem a merecer uma tutela acrescida pelo antiga, são aplicáveis as regras antigas de determinação
Direito. Veja-se a título de ilustração, o outro requisito, da referência e de cálculo da prestação; à parcela da re-
o da idade legal de acesso à pensão. Este é um requisito muneração obtida após a nova lei, serão as suas regras
final: só se exige aquando do requerimento da pensão. aplicáveis. Estas cláusulas ou fórmulas de proporcio-
Suponhamos agora que o legislador decide elevar a ida- nalidade estão contidas no Decreto-Lei n.º 187/2007,
de legal de acesso. Evidentemente, que os que forem já de 10 de maio, seguindo, aliás, a solução aplicada pelo
pensionistas não serão tocados pela medida. Mas rela- Decreto-Lei n.º 35/2002, de 19 de fevereiro, que apro-
tivamente aos outros, aos que ainda estão em fase de vou as novas regras de determinação da remuneração
formação da pensão, a tutela que o Direito deve dar a de referência para acesso à pensão de velhice. Com uma
beneficiários mais velhos, que praticamente tinham já diferença, significativa até: aplicou esta regra de propor-
a idade para se reformar antes de se dar a alteração, e cionalidade a todas as situações que eram abrangidas
a tutela que deve dar a beneficiários jovens que ainda pela lei antiga (no caso, o Decreto-Lei n.º 329/93), dei-
estão longe da «reforma» deve ser, com certeza, dife- xando a cair a possibilidade dada pelo Decreto-Lei n.º
rente. E, por isso, a legislação de Segurança Social foi 35/2002, de opção pela regra de determinação da remu-
desenvolvendo técnicas apropriadas para respeitar es- neração de referência que fosse mais favorável ao bene-
tas situações de fronteira entre o campo dos direitos ficiário (que incluía ver a sua pensão calculada apenas
adquiridos e aquilo que ainda se pode considerar uma segundo as regras antigas).16
«mera» expectativa.
A situação complica-se quando o legislador avança para
Trata-se de mecanismos de transição para a adopção plena lá destes limites e invade o campo dos «direitos comple-
das novas regras (que geralmente constam das disposições tamente adquiridos». Nos últimos anos, têm surgido si-
finais e transitórias da nova lei) e que poderão ser mais tuações em que isto acontece, algumas suscitando, como
ou menos alongados no tempo, consoante o legislador é natural, a intervenção do TC. É caso do Acórdão n.º
pretenda tornar menos ou mais rápido o efeito da al- 188/2009, de 22 de abril (Proc. nº 505/08), no qual se
teração. Foi isso que sucedeu com a alteração à idade apreciou a constitucionalidade do Artigo 101.º do DL
de acesso à pensão, pelas mulheres, em 1993. Previu-se 187/2007, que introduziu um teto máximo de 12 vezes o
então, no artigo 103.º do Decreto-Lei n.º 329/93, de Indexante dos Apoios Sociais para o apuramento de P117.
25 de setembro, que a transição da idade dos 62 para É o caso, de forma ainda mais evidente, do Acórdão ora
os 65 anos de idade, se faria de forma gradual, ou seja, em apreço. Na verdade, ao pretender de forma expressa
ela seria estabelecida «em 1994 em 62 anos e 6 meses, (no caso das alíneas b) e d) desse artigo), ou de forma
acrescentando-se posteriormente, por cada ano civil, o implícita (alíneas a) e c)), recalcular as pensões já atribuí-
período de 6 meses à idade fixada para o ano anterior» das, o legislador avança sobre, com o grau máximo de
(n.º 2). No caso, como bem se vê, embora a transição intensidade, e captura direitos completa e integralmente
até tenha sido célere, procurou-se, apesar disso, respeitar
as expectativas das mulheres que, aquando da alteração
legislativa, já quase reuniam os requisitos previstos pela 16Fórmula de cálculo para inscritos até 2001: é uma fór-
anterior lei. Tinham elas uma forte expectativa quanto mula proporcional
ao momento de aceder à pensão que o legislador procu- P = ((PE1 x C1) + (PE2xC2))/C,
rou, tanto quanto possível, não defraudar. A elevação, em que,
recentemente anunciada pelo atual Governo, da idade PE1: regras antigas de determinação do valor da remune-
ração de referência (RR) – DL 329/93, de 25/09;
legal de acesso à pensão, dos 65 para os 66 anos, deverá,
PE2: novas regras de determinação do valor da RR (DL
segundo julgamos, garantir uma transição similar. 35/2002)
C1: n.º de anos civis até 2006
De igual modo, no que diz respeito ao cálculo da pen- C2: n.º de anos civis desde 2007
são, a Segurança Social concebeu técnicas que permi- C: n.º de anos civis para taxa de formação.
tem fazer repercutir as alterações no cálculo das pensões,
mas com garantia de respeito pela parte já formada, já 17 Vide nota de rodapé anterior.
.100

sentido próprio do termo, pois que o direito já está, en-


tão, completamente formado.

A medida em apreço configura, pelas razões apresen-


tadas, a forma mais violenta e mais abrupta de retroa-
tividade (aliás inédita entre nós e também inaudita),
configurando pois uma restrição clara a um direito sub-
jetivo já formado e «perfeito». Nesta medida, o TC po-
deria ter enveredado por dois caminhos argumentativos.
O primeiro, que em nossa opinião dispensaria a ousada
sequência argumentativa em que acaba por enveredar,
consistiria pura e simplesmente em afirmar que, estan-
do perante uma retroatividade própria ou autêntica, ela
deveria ter-se por simplesmente vedada. Reconhecia-se
tão simplesmente que a medida em causa fere, de forma
muito violenta, direitos adquiridos. Não deve haver re-
ceio, nem complexo, pelas razões que antes expusemos,
e com o sentido que lhe demos, em usar o termo «direi-
tos adquiridos». O respeito pelos direitos adquiridos é
uma condição de sobrevivência das relações de confiança
mútua existentes entre o Estado e os cidadãos. Estaria
em causa, por isso, uma dimensão estritamente objetiva
da proteção da confiança, aquela que, como dissemos
antes, releva tão-só de dois domínios fundamentais: de
um lado, o regime da aplicação das leis no tempo (e que
preserva as situações juridicamente já constituídas); do
outro lado, as regras da Boa Fé. Nesta dimensão objeti-
va, bastaria assim «deixar funcionar» as regras elementa-
res do Estado (liberal) de Direito.

Mesmo a segunda linha argumentativa implicaria, sal-


adquiridos. Repare-se que o facto de estarem em causa vo melhor opinião, qualificar a retroatividade em cau-
pensões em curso de atribuição não significa que o direito sa, como autêntica. Simplesmente, não havendo para
em causa não seja já um direito completamente fecha- as pensões uma proibição expressa da retroatividade,
do, ou, como lhe chamamos, um direito «perfeito». Pois como vimos suceder para as relações jus-fiscais, nem
que, de novo, à luz da tradição legislativa da segurança sequer uma regra constitucional de irredutibilidade das
social, os direitos ficam fechados a partir da data do re- pensões, o Tribunal acederia em convocar, como aca-
querimento, ou até, em certos casos, antes disso, ou seja, ba por fazer, o duplo ou o quádruplo testes, recorren-
desde a data em que os requisitos de acesso à prestação do então à dimensão subjetiva da tutela da confiança.
estejam todos reunidos, pese embora ela não seja desde Esta, como dissemos antes e tendo presente a própria
logo requerida. Os direitos só não estão fechados quan- jurisprudência constitucional, faz apelo a um critério de
do se encontram em curso de formação e ainda assim exis- proporcionalidade, seja em face dos fins desejados, seja,
tem, como vimos antes, direitos que se vão adquirindo agora também, em face dos meios e em face do resultado
durante esse período de formação, a merecer tutela pelo alcançado.
Direito. Por estas razões, discordamos da qualificação da
retroatividade ora operada pelo TC (apoiado em algu- Ora, o derradeiro teste, falha, do ponto de vista do
ma doutrina), como retroatividade inautêntica. Não nos TC, não tanto porque os interesses a prosseguir com
parece que assim seja. Apesar de se tratar de um facto a medida sub judice sejam inferiores aos interesses por
de formação contínua, o recálculo a posteriori da pensão ela lesados (ou seja, o TC não rejeita de forma clara a
configura, salvo melhor opinião, uma retroatividade no proporcionalidade em face dos fins desejados), mas
101.

sobretudo porque, por um lado, considera que os meios reforma global do sistema previdencial de segurança so-
não são os mais adequados em face de outras putativas cial. Várias hipóteses podem ser perspetivadas.
alternativas (falece o critério da proporcionalidade em
face dos meios) e, por outro lado, por entender que as Da nossa parte, consideramos que uma das opções mais
medidas ora apreço nem sequer seriam as mais adequa- válidas estaria na substituição do atual modelo de bene-
das para alcançar os resultados pretendidos - o reforço ficio definido, por um modelo de contribuição definida.
da sustentabilidade financeira futura da segurança social Tratar-se-ia de uma mudança idêntica às que vêm sendo
(falha, portanto também, o critério da proporcionalida- feitas, desde finais do século passado, em vários países
de em razão da eficácia). Na verdade, quanto a esta úl- europeus, evidenciando-se, de entre eles, a Suécia (para
tima linha argumentativa, o TC explica-nos, e voltamos uma caracterização do modelo de contribuição definida
a citar, que a violação das expectativas em causa «só se e do sueco em particular, leia-se BARR e DIAMOND,
justificaria no contexto de uma reforma estrutural que 201018 e, entre nós, MENDES, 2011: 87-8919).
integrasse de forma abrangente a ponderação de vários
fatores. Só semelhante reforma poderia, eventualmen- O modelo sueco é vulgarmente conhecido como mo-
te, justificar uma alteração dos montantes das pensões delo de capitalização virtual ou «nocional», pois embora
a pagamento, por ser acompanhada por outras medidas implique a criação de contas individuais de poupança,
que procedessem a reequilíbrios noutros domínios» (su- permitindo o cálculo anual de um rendimento de valo-
blinhado nosso). Ou seja, a medida ora gizada é ineficaz rização em razão das contribuições efetuadas, essa valori-
em face dos objetivos desejados e por isso não passa no zação resulta contudo de uma taxa fixa determinada pelo
teste da proporcionalidade em razão dos meios e em ra- Estado e não em virtude de uma qualquer rendibilidade
zão da eficácia. de aplicações financeiras (determinada de acordo com as
regras dos mercados financeiros), que aqui nem sequer
O facto de o TC equacionar uma hipótese de ação po- têm lugar. Por outro lado, embora a gestão financeira
lítica diferente daquela que foi seguida pelo legislador mantenha as características da repartição (o financia-
significa evidentemente uma conduta pró-ativa que ul- mento quotidiano do sistema assenta em contribuições
trapassa a sua função típica. Mas como não o fazer? O dos ativos que assim asseguram o pagamento das pen-
que é espantoso é que não tenha sido quem o deveria sões), a verdade é que se verifica, nele, uma deriva clara
- o decisor político -, a equacionar essas soluções alter- para um modelo de contribuição definida. Isto porque
nativas. Trata-se esta, de facto, de uma violação pueril a formação da pensão vai sendo «adaptada» em função
do princípio da tutela da confiança, que não conhece de três fatores que o beneficiário não domina, ou não
precedente na história da legislação da segurança social e domina pelo menos inteiramente. Em primeiro lugar,
é reveladora até de uma certa ingenuidade e ignorância o fator demográfico, ou seja, a evolução da esperança
relativamente às técnicas legislativas específicas que esta média de vida. Em segundo lugar, o fator económico, a
habitualmente utiliza. Falta de consulta? Falta de apoio saber, a evolução do PIB ou a taxa de crescimento dos
jurídico? Teimosia do legislador? Não compreendemos. salários. Em terceiro lugar, o fator financeiro stricto sen-
su, ou seja, o acervo de receita cobrada pelo sistema, o
que por sua vez depende do número de ativos que em
5. A TÉCNICA LEGISLATIVA DA SEGURANÇA SOCIAL cada momento existem a financiá-lo. O modelo sueco
E OS MECANISMOS DE SUPERAÇÃO DO IMPASSE vai aliás mais longe, na medida em que estende essa pos-
sibilidade de conformação ou de adaptação das pensões,
mesmo relativamente às que já tenham sido atribuídas.
5.1. DO MODELO DE BENEFÍCIO DEFINIDO AO Ou seja, em tese, as pensões a atribuir ou já atribuídas
MODELO DE CONTRIBUIÇÃO DEFINIDA:
CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA SUECO E
18 BARR, Nicholas e DIAMOND, Peter (2010), Pension
SUA TRANSPOSIÇÃO PARA PORTUGAL
Reform – A Short Guide, Oxford Unversity Press, Oxford,
New York.
Na decisão ora comentada, o TC não veda, de todo, a
possibilidade de se introduzirem alterações que even- 19 MENDES, Fernando Ribeiro (2011), Segurança Social
tualmente reduzam montantes de pensão em curso de – O Futuro Hipotecado, Fundação Francisco Manuel dos
atribuição. Desde que tal suceda o contexto de uma Santos, Lisboa.
.102

são objeto de permanente recálculo, em função da evo- em curso de atribuição, o que impede a alteração das
lução, que é também permanente, daqueles fatores ou regras do jogo, quando o jogo já foi jogado. Cortes hori-
variáveis (podendo haver assim atualizações «negativas» zontais no valor das pensões, ou soluções afins, são difi-
do valor das pensões). cilmente toleráveis pelo Direito, pois do que aí se trata
é de alterar, a posteriori, as regras de determinação ou de
Este modelo apresenta como grande vantagem, sobre os cálculo das pensões.
modelos de capitalização convencionais, o fato de tornar
os sistemas de pensões menos dependentes do funciona- Mas a dificuldade em avançar-se para um modelo de
mento volátil dos mercados financeiros, menos atreitos contribuição definida (mais ou menos próximo do mo-
pois à ideia de «mercantilização» dos riscos sociais, mas delo sueco) não é inultrapassável, ainda que exija destre-
sendo ao mesmo tempo capaz de incorporar nas pensões za técnica e sageza política que envolva designadamente:
a volatilidade das condições demográficas e económicas i) A capacidade de negociação e de concertação com as
- e disso depende, hoje, em grande medida, a sustentabi- partes interessadas (incluindo com as associações repre-
lidade de longo prazo do próprio sistema. sentativas dos atuais pensionistas); ii) O exercício da pe-
dagogia junto dos cidadãos e, acima de tudo; iii) Uma
Em Portugal, um destes fatores – o demográfico - está atitude de transparência e de lealdade para com as dife-
já incorporado no sistema de pensões e traduz-se no fa- rentes gerações envolvidas.
tor de sustentabilidade, aplicável à data do requerimento
da pensão. A sua criação significou uma mudança para- No plano técnico, afigura-se preferível uma alteração
digmática importante, a substituição de um sistema de que se faça, não pelo lado das regras de cálculo (rede-
benefício definido puro, por um sistema de benefício finindo-as, como dissemos, a posteriori), mas sim pelo
definido mitigado, isto é, um sistema com um dosea- lado das regras de atualização das pensões. Alterações
mento de contribuição definida. A concretização plena deste tipo foram feitas em 2007 (com o novo re-
do modelo sueco envolveria trazer os outros dois fato- gime de atualização das pensões – Decreto-Lei n.º
res: o fator económico e o fator financeiro stricto sensu. 53-B/2006, de 29 de dezembro20), indexando a atuali-
Tratar-se-ia pois de recalcular o benefício, numa base zação das pensões não apenas à evolução da inflação,
permanente e ao longo da sua formação, em função do mas também à taxa de crescimento da economia. A
crescimento da economia e do montante de receitas co- implementação da solução sueca implicaria rever as-
bradas pelo sistema. O sistema tornar-se-ia assim mais sim as regras de atualização – que, afinal, dispõem
flexível, no sentido de fazer refletir no rendimento de apenas para futuro -, concebendo para determinadas
valorização a evolução daqueles fatores. pensões (mormente as de montante elevado) atualiza-
ções «negativas», sempre que os fatores determinantes
Mais radical ainda seria a aplicação destes mesmos fato- ocorressem (v.g. recessão económica ou saldo negativo
res a pensões já atribuídas. Esta solução teria uma ine- no sistema previdencial, ou seja, menos receitas cobra-
gável vantagem financeira para o sistema, mormente em das do que despesas pagas). Ainda do ponto de vista
contextos económicos ou demográficos desfavoráveis. técnico e como forma justamente de salvaguardar a
Pois as pensões poderiam sofrer, nesses anos piores, que- tolerabilidade da medida, quer em face da tutela da
das abruptas, aquelas que a economia e as receitas do confiança quer em face do princípio da proporciona-
sistema permitissem, naquele momento, suportar. lidade, dever-se-iam depois considerar as seguintes
cláusulas de salvaguarda:
t Diferenciação positiva: as atualizações «negativas»
5.2. O MODELO DE CONTRIBUIÇÃO DEFINIDA À LUZ de pensões deveriam salvaguardar as de valor mais
DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA baixo e fariam sentir os seus efeitos de forma pro-
gressiva em razão do valor da pensão;
A transformação do sistema previdencial português num t Limitação temporal para as atualizações negativas
modelo de contribuição definida, sendo embora possí- (por exemplo, não poderia haver uma perda no
vel, deve fazer-se com as cautelas requeridas pelo princí-
pio da tutela da confiança. É natural que assim seja e isso
é próprio dos Estados de Direito civilizados. O sistema 20 Este diploma introduziu entre nós um novo Indexante
jurídico deve, assim, conceder uma garantia às pensões dos Apoios Sociais (IAS).
103.

valor da pensão por um período superior a três anos de dificuldades, mas, ao menos, procura contornar o
consecutivos): estariam vedadas perdas ad aeternum óbice constitucional da lesão da tutela da confiança,
no valor da pensão, mesmo admitindo um cenário pois as regras de atualização, pela sua própria nature-
quase catastrófico de uma recessão económica mui- za, apenas dispõem para futuro. Uma solução como
to prolongada ou de uma deterioração grave dura- esta implicaria, em suma, rever as regras nas quais se
doura nas contas da segurança social; estriba o contrato social intergeracional. Ao que tudo
t A medida, recorde-se, é uma medida de flexibilida- indica, de resto, assim terá que ser, em qualquer caso...
de, devendo prever-se um ajustamento automático Na verdade, no atual contexto, qualquer que seja a op-
das pensões: assim, da mesma forma que os «maus ção do legislador, ela será sempre complexa e vai ter
anos» económicos, financeiros, demográficos, re- de delinear-se em vista de um equilíbrio difícil de al-
levariam negativamente no valor das pensões, cançar: ser capaz de dosear, em proporções justas, os
também os «bons anos» deveriam traduzir-se em ganhos que cada geração pode retirar do «seu» sistema
aumentos de pensões, em conformidade; de pensões, e os sacrifícios que com ele tem de fazer,
t A medida deveria tanto quanto possível ficar a sal- o mesmo é dizer, ser capaz de assegurar uma partilha
vo da arbitrariedade e da discricionariedade políti- de riscos económicos, financeiros e demográficos, entre
ca do momento; daí a importância, antes referida, ativos e inativos, de uma forma equitativa. Embora a
de ser previamente negociada e, tanto quanto pos- opção seja complexa, existem soluções técnicas e jurí-
sível concertada, entre governo e parceiros sociais dicas capazes de alcançar este equilíbrio. Somos de opi-
e envolvendo desejavelmente a concordância do nião que dessa capacidade política e técnica dependerá,
maior número de forças partidárias. Esta, sim, é em grande medida, a reabilitação do contrato interge-
um exemplo a assumir no contexto de um ver- racional e a preservação da coesão social no nosso país.
dadeiro «pacto de regime». Este aspeto da nego-
ciação, voltamos a frisá-lo, é tão essencial quanto
difícil de alcançar. Na verdade, a contraparte do 6. CONCLUSÃO
Estado é constituída por milhares de indivíduos
(os pensionistas), com vontades plurais e informal A decisão do TC que agora analisámos, além de ter iden-
e insuficientemente representados pelas associa- tificado bem o cerne do problema, a tolerabilidade da
ções que reproduzem os seus interesses (contra- restrição do direito à pensão em face do princípio da
riamente ao que sucede com as organizações que proteção da confiança, acaba por definir, a essa luz, pa-
representam os trabalhadores no ativo). Estes as- râmetros de ação política nesta área. Abre a porta a refor-
petos conjugados implicam elevados custos de mas integradas e sistemáticas na área da segurança social,
transação que obstam ou dificultam grandemen- de acordo com as preferências e a legitimidade política
te as possibilidades de encetar processos de rene- democrática que o decisor tenha no momento de ação.
gociação dos contratos assumidos. A perspetiva O ativismo da decisão judicial em apreço não deve, por-
da Análise Económica do Direito é útil e ajuda- tanto, ser dramatizado: pois que o TC, afinal, devolve
-nos a perceber o que está em causa. E corrobora ao legislador o «grau máximo» da decisão política, que é
a importância dos consensos ou da concertação. o de se fazer uma Reforma, independentemente do seu
Citando de novo ARAÚJO (Idem: 629), «em am- sentido (político) e orientação.
bientes de elevados custos de transação que di-
ficultem a renegociação, ou quando a lei se lhe
oponha (por sacralização da tutela das expectati-
vas, por exemplo), a solução mais eficiente para
qualquer alteração das circunstâncias que agrave a
oneração do devedor ou reduza as suas contrapar-
tidas é a modificação do contrato de acordo com
a vontade consensual das partes, ou seja, o equiva-
lente material de uma renegociação».

A solução por nós ora proposta, de revisão das regras de


atualização das pensões, não é, como bem se vê, isenta *Professora Associada da Faculdade de Direito de Lisboa
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