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o -l t UMINISMO ROSA-C R UZ

Frances A . Yates

Basicamente um estudo histórico, este livro está relacio-


nado com a fase "rosa-cruz" do pensamento. da cultura e da
religião na Euro pa duran te 6 início do .século XVII.
O termo "rosa-cruz", neste sentido estri tamen te histórico,
represent a essa fase da história da . cultura européia interme-
diária entre o Renascimento .,e .a pseudo-revolução científi ca
do século XVU , .fase dura nte a ' qual a tr adição da Renascença
Hermético-Cabalística rece beu o influxo de uma outra tradi-
ção hermética - a da Alquimia .
Os " manifestos rosa-cru cianos" - - . misteriosos documen-
tos publicados na Ale manha rio início do século XVII e que
constituem a base e a motivaç ão desta ob ra - representam
a expressão dessa fase, sen do, como são.: uma combinação de
Magia , Cabala e Alquimia .
En tre os muitos pe rsonagens" que-desfilam por L3tas pã-'
ginas, emoldurados por acontecimeritos 'históricos dos mais
interessantes , estão os filósofos Francis d3acon e Descartes e
o físico e ma temático inglês Isaac Newton, estudados, agora,
de um ponto de vista inédito: o de suas ligações com as
dou tri nas herméticas veiculadas pelos "manifestos rosa-cru-
cianos".
A autora - Dra. Frances A. Yates - professora da
História da Renascença na Universidade de Londres - ao
revelar aqui a ligação desses "manifestos" com fatos que Jli)tl -'
daram os rumos da Europa no século XVII, tirou o "Rosa-
-crucianismo " da esfera de vagos estudos ocultistas para as
áreas de interesse . dos estudiosos de . istória .

EDITORA PENSAMENTQ
jpssa - = -,
rI

Outras .obras de interesse:

ANTIGA MAÇONARIA MfSTICA ./


ORIENTAL,
Swinburne Clymer

A BfBLIA DOS ROSA-CRUZES,


Bernard Gorceix

A CRISE ESPIRITUAL DO HOMEM,


Paul Brunton
o ILUMINISMO ROSA-CRUZ

DICIONÁRIO DE MAÇONARIA,
I. G. Figueiredo

A DOUTRINA SECRETA DOS


ROSA-CRUZES,
Magnus Incógnito

O FILHO DE ZANONI,
F. Waldomiro Lorenz

FRANCO MAÇONARIA SIMBÓLICA


E INICIÁTICA,
lean Palou

OS GRANDES PROBLEMAS DA
ATUAL FRANCO-MAÇONARIA,
Allec Mellor
--
GUIA PRÁTICO DE ALQUIMIA, ,- . \

Prater Albertus
. .

IRMÃO DO TERCEIRO GRAU,


Will L. Garver.• .«, ~
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FRANCES A. YATES
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o ILUMINISMO ROSA-CRUZ

Tradução de
SYOMARA CAJADO

o Colégio Invisível da Fraternidade Rosa-Cruz


(De Theophiha Schweighardt, Speculum Sopbicum Rbodo-Stauroticum)

EDITORA PENSAMENTO
SÃO PAULO
.. ,;-
' . . '
..~~

..
Título do original:
THE ROSICRUCIAN ENLIGHTENMENT
Copyrigh; © 1972, by Frances A. Yates, Londres

lndice

Prefácio 7

I. Núpcias Reais: O Casamento da Princesa Elisabete com


Parte alguma deste livro poderá ser reproduzida - seja o Eleitor Palatino 13
qual for o meio de que se lance mão nessa operação,
sem que, para tanto, antes tenha sido obtida a per- 11. A Tragédia da Boêmia 32
missão do editor -, a não ser que tal copiagem, ou
reprodução, se faça por motivo de breves citações num
IlI. [ohn Dee e o Despontar de "Christian Rosencreutz" 51
trabalho de crítica. IV. Os Manifestos Rosa-Crucianos 65
V. O Casamento Alquímico de Christian Rosencreutz 90
VI. O Editor do Palatinado: Iohann Theodore De Bry e a
Publicação dos Trabalhos de Robert Fludd e de Michael
Maier 102
VII. O Furor Rosa-Cruciano na Alemanha " 128
VIII. O Temor Rosa-Crucíano na França 141
IX. Francis Bacon "à Sombra das Asas de [eová" 162
X. Os Liberais Italianos e os Manifestos Rosa-Crucianos 175
XI. A Fraternidade R. C. e as Congregações Cristãs 186
XII. Comênio e os Boatos Rosa-Crucíanos na Boêmia 204
XIII. Do Colégio Invisível para a Sociedade Real 219
XIV. Elias Ashmole e a Tradição Dee: Isaac Newton e a Al-
quimia Rosa-Cruz 242
MCMLXXXIII
XV. O Rosa-Crueianismo e a Franco-Maçonarla 260
Direitos reservados pela
EDITORA PENSAMENTO XVI. O Iluminismo Rosa-Cruz 278
Rua Dr. Mário Vicente, 374, fone: 63·3141,
04270 São Paulo, SP Apêndice
Impresso em nossas oficinas gráficas.

j
PREFÁCIO

o título deste livro talvez origine algum mal-entendido. "Rosa-


-Cruz" poderá sugerir que este vai ser um livro a respeito de grupos
modernos de pesquisadores das várias formas de ocultismo. "Iluminis-
mo" quiçá sugira que o livro versará sobre o período conhecido por
AufkHirung, o surgimento à luz da razão, oriundo da obscuridade da
superstição, com Voltaire, Diderot e o século XVIII. A junção das
duas palavras parece suscitar uma impossibilidade, uma vez que re-
presentam duas tendências opostas: uma, em direção às formas estra-
nhas da superstição; outra, voltada para a oposição racional e crítica à
superstição . Como pode um rosa-cruz ser iluminado? O fato é que
estou empregando "rosa-cruz" num sentido histórico estrito, e não
estou empregando "iluminismo" no sentido histórico estrito comu-
mente usado. O período abrangido pelo .livro é quase inteiramente o
do início do século XVII, embora com digressões anteriores e poste-
riores. Ele se relaciona com determinados documentos publicados na
Alemanha, nos começos do século XVII, geralmente conhecidos como
" manifestos rosa-crucianos", e com a colocação histórica de tais do-
cumentos. Os últimos movimentos, inclusive o presente, que se deno-
minam "rosa-crucianos" estão inteiramente excluídos. Desde que esses
documentos ou manifestos afirmem que os progressos recentes nos c0-
nhecimentos humanos encontram-se à mão, historicamente meu título
. •...1.
está correto. De fato, existiu um movimento, nos primórdios do século
XVII, que pode ser chamado de "iluminismo rosa-cruz", e é nele que
este livro está interessado.
"Rosa-Cruz", neste sentido estritamente histórico, representa uma
fase na história da cultura européia, que é intermediária entre a Re-
nascença e a pseudo-revolução científica do séc, XVII. É uma fase
4' : ..
na qual a tradição da Renascença Hermético-Cabalfstica recebeu o in-
.~ .. fluxo de. uma outra tradição hermética, a da alquimia. Os "manifestos
r~sa-cruClan~s" representam a manifestação dessa fase, ~o, como ,
sao, a combmação da "Magia, Cabala e Alquimia" como"i infI~. ,:.-,

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....
Em meu livro Giordano Bruno and the Hermetic Tradition novos movimentos na Europa central. Esta metade da carreira de Dee
(1964) tentei esboçar a tradição hermética na Renascença, a partir - a segunda ou metade continental - não foi estudada de modo
da época de sua formulação na I talia por Marsilio Ficino e Pico della sistemático, e ainda permanece no mundo dos boatos . Constaria que
Mirandola. Longe de perder seu poder no começo do século XVII Dee foi o líder na Boêmia, não apenas de um movimento alquímico,
(conforme acreditei enquanto escrevia esse livro), ou perder sua in- mas de um destinado à reforma religiosa, cuja natureza ainda não foi
f1u~~cía sobre os movimentos culturais de uma importância maior, completamente explorada. Nossos conhecimentos do mundo cultural
verifico agora que dele houve realmente um renascimento no início que cercava o Imperador Rodolfo II, e contra o qual colidiu a missão
do século XVII, manifestações recentes·1do mesmo em novas for- de Dee, ainda permanecem excessivamente limitados, e aguardamos
~as, as quais. absorveram as influências alquímicas, e que eram par- a publicação do importante estudo de Robert Evans sobre a cultura
tIcularmente Importantes em relação ao desenvolvimento do enfoque "rodolfeana".
matemático da natureza. Este livro - e desejo enfatizar ísto de modo acentuado - é
Uma figura "rosa-cruz" importante foi john Dee, o qual - con- basicamente um estudo histórico. Está relacionado com essa fase "ro-
s~-cruz" do pensamento, cultura e religião, mas a sua principal tenta-
forme afirmei num artigo publicado em 1968 - "evidentemente, pa-
rece ajustar-se sob o aspecto histórico a um mago da Renascença do nva converge para a indicação dos canais históricos, através dos quais
último tipo rosa-cruz". Em meu livro T beatre of the W orld (1969) a fase foi classificada. Estes canaís foram obstruídos e obscurecidos
enfatizei a importância de Dee, como sendo uma influência por trás pelo desaparecimento, na História, de uma época da maior importância.
da Renascença elisabetana, e numa obra excelente, intitulada John Segundo o que aprendemos pelos livros da História, é verdade
Dee (1972), Peter French preencheu uma grande lacuna nos estudos que a Princesa Elisabete, filha de Jaime I, casou-se com Frederico V
da Renascença, analisando o trabalho e a influência de Dee na Ingla- Eleítor Palatino do Reno, o qual, alguns anos depois fez uma tentativa
terra, de modo sistemático. Dee pertenceu enfaticamente à tradição arrojada para apoderar-se do trono da Boêmia, tendo ela terminado
hermética renascentista, modernizada mediante novos desenvolvimen- num vergonhoso fracasso. O "Rei e a Rainha Hibernais da Boêmia»
tos, e a divulgou com diretrizes originais e importantes. Dee, em seu - como eram ironicamente chamados - fugiram de Praga após a der-
próprio conceito, foi um matemático brilhante, e relacionou seu estu- rota de 1620, e passaram o resto de suas vidas no exílio, golpeados
do dos números com os três mundos dos cabalistas. No mundo ele- pela miséria, tendo ambos perdido o Palatinado e a Boêmia. O que
mentar inferior, estudou os números como tecnologia e ciência apli- porém, escapou à História, foi o fato de que uma fase da cultura "rosa-
cada, e seu Prejace (Prefácio) para Euclides forneceu uma brilhante cruz" estava associada àquele episódio, que os "manifestos rosa-crucia-
sinopse das artes matemáticas em geral. No mundo celestial, seu estu- nos" com ele se relacionavam, que os movimentos suscitados por John
do dos números estava relacionado com a astrologia e alquimia, e em Dee na Boêmia nos anos anteriores encontravam-se por trás desses
seu Monas hieroglyphica acreditou ter descoberto uma fórmula para manifestos, que o breve reinado de Frederico e Elisabete no Palatinado
uma ciência combinada - cabalística, alquímica e matemática - que representou uma idade de ouro hermética, alimentada pelo movimento
alquímico dirigido por Michael Maier, segundo consta no Monas biero-
habilitaria o seu possuidor a movimentar para cima e para baixo a
glyphica de Dee, bem como tudo quanto estava aí subentendido. Repu-
escala do ser, desde as esferas mais ínfimas às mais elevadas. E na diado por Jaime I, o movimento fracassou, porém a sua reconstrução
esfera superce1estial, Dee acreditava ter encontrado o segredo para representa um preâmbulo imprescindível para reconstituir a sobrevivên-
evocar os anjos pelas computações numéricas na tradição cabalística. cia "rosa-cruz" no término do século XVII. Espera-se que a re-
Por conseguinte, Dee como "rosa-cruz" é uma figura típica do recente construção dessa fase do pensamento europeu e do propósito da Hístõ-
mago renascentista, que combinava "Magia, Cabala e Alquimia", a ria pelos métodos históricos críticos afaste todo esse assunto da cate-
fim de alcançar uma visão do mundo, na qual a ciência avançada es- goria dos estudos não-críticos e vagamente "ocultistas", tornando-a um
tava estranhamente mesclada com a angeologia. campo de pesquisa legítimo e da máxima importância.
A surpreendente e muito prestigiosa carreira de Dee na Inglaterra Igual a um esforço pioneiro, este livro está sujeito a erros,oa
elisabetana teve fim em 1583, quando abandonou esse país dirigin- quais os estudiosos do futuro corrigirão. Os instrumentos PQra eJabo- .
do-seflpara o c01tiq,ente.! ondt; f~i extrempmente influente ao P~?voc~r rarmos esse assunto encontram-se em estado rudimentar, e a _ ~
.. 1 - ". '1\):."tli t-.)~e.j CYI\o.v ~ ~ 'Cl1e...i'tv)o ~J .~\O
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passo vemo-nos tolhidos devido à falta de um trabalho bibliográfico mês de outubro de 1970. O estímulo generosamente prestado por H.
acurado. A maior parte da literatura sobre o "Rosa-crucianismo" é im- Trevor-Roper, naquela ocasião, auxiliou-me a enfrentar esta tarefa .
prestável para o historiador crítico, exceto como um meio de orienta- Como sempre, o Instituto Warburg representou meu esteio e meu
ção no sentido do material original. Os estudos de A. E . Waite encon- lar, e sou profundamente grat<tllo Diretor e a todos os meus amigos a
tram-se.numa categoria diferente e de muito me serviram , embora - ele pertencentes . Muito bondosamente, D . P . Walker leu um esboço
como disse G . Scholem - "o valioso trabalho de Waite está prejudi- do manuscrito , resultando isso em muitas discussões valiosas sobre os
cado pela falta de senso crítico". O livro de Paul Arnold foi útil de- tópicos.
vido ao acúmulo de material , embora disposto de modo muito con- Jennifer Montague e os funcionários da "Photographic Collec-
fuso. O estudo de WiIl-Erich Peuckert é fundamental para o "back- tion" foram muito úteis na compilação de fotografias para as ilustra-
ground' alemão. Todos esses livros e outros mencionados nas notas ções. Sinto-me igualmente um devedof'làe Maurice Evans, por ter de-
foram de grande auxílio, conquanto a tentativa feita neste trabalho, senhado o rascunho do mapa das gravuras no texto.
para relacionar o Rosa-crucianismo com as situações contemporâneas,
baseia-se em linhas completamente novas. Peter French amavelmente e com a permissão dos editores con-
sentiu que eu visse as páginas de provas de seu livro sobre Dee, antes
Conforme já disse, omiti inteiramente a recente história do pseu- de ser publicado . .
do-"Rosa-crucianismo" e as inexplicáveis excentricidades com as quais
o uso da palavra se viu envolvido. Talvez agora fosse possível escla- Os meus sinceros agradecimentos para o quadro de pessoal da
recer a História ulterior; entretanto, não farei essa tentativa. Este é Biblioteca de Londres. Recebi também o auxílio bondoso dos funcio-
um assunto em si mesmo, e um tema diferente, conquanto as reminis- nários da Biblioteca Dr. Williams. Da mesma forma, considero-me de-
cências das imagens de um período anterior possam ser encontradas, vedor"~ara com os diretores da "National Portrait Gallery", o Museu
por exemplo, num trabalho como Geheime Figuren der Rosenkreuzer, Ashmolean e o Museu Britânico, por me terem concedido permissão
publicado em Altona em 1785 ; o que as imagens possam significar para reproduzir os retratos e as gravuras. O diretor da "Württemberg
no contexto recente exigiria uma nova pesquisa para descobrir-se . A Landesbibliothek", de Stuttgart, deu-me licença para fazer um micro-
fim de manter este livro dentro dos limites; foi necessário restringir filme de um manuscrito a ser elaborado. As citações de E. A. Beller,
ou mesmo omitir muita matéria, e resistir à tentação de contornar Caricatures of the Winter King oi Bobemia, 1928, foram enunciadas
cada pedra, ou seguir cada caminho ampliando-se a partir desse as- com a autorização da Clarendon Press , Oxford.
sunto fundamental. Este livro pertence à série iniciada com Giordano Bruno and the
Hermetic TradiJion. Durante todo o tempo em que escrevi essas obras,
o assunto é fundamental, porque basicamente está relacionado fui estimulado" ce inúmeros modos por minha irmã. Este trabalho tor-
com um esforço para o iluminismo, no sentido de visão, bem como nou-se possível graças ao seu auxílio prático e constante, seu infati-
um esclarecimento, no sentido de um adiantamento no conhecimento gável incentivo, a compreensão inteligente e um ardente senso crítico.
intelectual ou científico. Embora eu não saiba exatamente o que seja
um rosa-cruz e tampouco se existiu algum, a dúvida e a incerteza que Instituto Warburg,
perseguem aqueles que investigam, de acordo com os Irmãos da Ro- Universidade de Londres
sa-Cruz, representam por si mesmas o acompanhamento inevitável da ...A,. ~~
busca do Invisível. +Z-- ~~,O\
~~:~.t:,.~
Os assuntos de alguns dos capítulos iniciais deste livro constituí-
ram a base para uma conferência sobre "Jaime I e o Palatinado: um
capítulo esquecido na história das idéias", proferido como a Confe- ',, " .
rência Especial de james Ford, na História Inglesa em Oxford, no
: . . !~;:.,~. , '.
' ~~:.;~:.~ ~. "

':;í l
10
CAPITULO I

NÚPCIAS REAIS
O Casamento da Princesa Elisabete
com o Eleitor Palatino

Na velha Europa, um casamento real representava um aconteci-


mento diplomático de primeira importância, e os festejos de núpcias
reais significavam uma afirmação da habilidade política. Para o casa-
mento, realizado em fevereiro de 1613, da Princesa Elisabete, filha de
Jaime I, com Frederico V, Eleitor Pala tino do Reno, todos os tesou-
ros da Renascença Inglesa foram exibidos profusamente, e Londres
enlouqueceu de alegria com o que parecia ser a continuação da Idade
Elisabetana, mediante essa aliança de uma nova e jovem Elisabete com
o líder dos Protestantes alemães e um neto de Guilherme, o Taciturno.
Os padrões mais antigos, aqueles dos dias da velha Rainha, esta-
vam realmente implícitos nesse acontecimento feliz. A velha Elisabete
fora o sustentáculo da Europa contra a agressão Habsburga, aliada à
reação católica; suas alianças estrangeiras tinham sido com os rebeldes
neerlandeses e seu líder, e com os protestantes alemães e franceses.
Na religião, ela representava idealmente um imperialismo purificado
e reformado, caracterizado com o nome de Astréia, a Virgem Legítima
da Idade Áurea, cuja designação lhe fora dada pelos poetas. 1 Havia
certo sabor picante no fato de a jovem Elisabete, ao contrário da an-
tiga Virgem Elisabetana, ter que consolidar essa política por meio de
seu casamento. A corte arruinou-se devido aos gastos excessivos em
roupas, jóias, diversões e os festejos para essas núpcias L • Verificou-se
também uma exuberância de inspiração e poesia viáveist"para o con-
sumo nos shows ideados para o feliz casal. Shakespeare ainda vivia,
encontrando-se em Londres; o teatro Globe ainda não fora incendiado;
1. Ver meu artigo "Queen Elizabeth as Astraea tt ]OIU'IIM 01 IIH lJV.......
and Courtauld Institutes, X (1947), pp. 27-82. . '
+1 - ~íiJu~
Inigo Jones estava aperfeiçoando a forma de representação teatral na Henry CondeIl do~trimeiro in-falio das obras de Shakespeare - foi
corte, e Francis Bacon publicara The Advancem ent 01 Learning . A pago a fim de apresentar para Lady Elisabete e o Príncipe Palatino,
Renascença Inglesa encontrava-se no auge do esplendor, evoluindo uma lista de peças que incluíam Much Ado About Notbing, Otbello,
para a promessa do amanhecer intelectual do século XVII. [ulius Caesar e The Tempest. 5 Sugeriram que, em The Tempest, fosse
Mas admitiria essa promessa um desenvolvimento pacífico, ou os adicionado um tema alegórico a fim de tornar a peça adequada para
acidentes viriam intervir? Os augúrios não eram favoráveis. A guerra ser representada ante um casal nobre, talvez na noite do noivado, 27
entre a Espanha e a Neerlândia findara com um armistício que deveria de dezembro de 1612. 6 Não existe nenhuma prova para sustentar essa
terminar em 1621. As forças da reação católica estavam preparando-se teoria interessante, além do fato de essa peça versar sobre uma his-
para um novo ataque à heresia - objetivo esse associado ao engran- tória do amor de uma princesa numa ilha, contendo um tema alegó-
decimento da Casa de Habsburgo. Aqueles do outro lado, encontra- rico núpcial, e tendo ficado conhecida porque fora representada na
vam-se à espreita. As pessoas bem informadas acreditavam que a guer- presença de Frederico e Elisabete, que nesse momento cômico de sua
ra viria irremediavelmente irromper na Alemanha . Assim sendo, ha- história - cômico no sentido de que suas vidas assemelham-se agora
via nuvens escuras por trás do esplendor desse casamento, e esses dois a uma comédia com um fim auspicioso - tinha algo das caracterís-
jovens encantadores e inocentes, Frederico e Elisabete (Fig. 1), no ticas de um herói e de uma heroína de Shakespeare.
espaço de alguns anos, encontrar-se-iam no centro daquele turbilhão. Tal como um acessório necessário ao seu futuro estado de marido
O príncipe alemão, rapaz ainda, desembarcou em Gravesend no da filha do Rei da Grã-Bretanha, o Eleitor Palatino (ou o Conde
dia 16 de outubro de 1612 . 2 Elegante e amável, causou boa impres- Palatino conforme é denominado nos registros da Inglaterra) foi in-
são na corte, nas pessoas e na que seria sua noiva. Frederico e Eli- vestido na Ordem da Jarreteira. Ele e seu tio, Maurício de Nassau,
sabete apaixonaram-se realmente e este romance deveria perdurar atra- foram integrados na Ordem no dia 7 de dezembro, e em 7 de feve-
vés das vicissitudes que adviriam. A felicidade durante o tempo do reiro, uma semana após o casamento, o Conde Pala tino foi solene-
namoro foi perturbada pela enfermidade e morte do irmão da noiva, mente empossado em Windsor. 7 Seu sogro presenteou-o com um S.
Henrique, Príncipe de Gales . Jovem como era, o Príncipe Henrique Jorge engastado numa jóia - o pingente do grande colar da Ordem.
já se destacara como líder, possível sucessor de Henrique IV da Fran- Sua noiva também ofertou-lhe um S. jorge," provavelmente um Jorge
ça (que fora assinado em 1610) , como um representante da oposição Menor ou uma versão mais reduzida do pingente usado numa fita, nas
aos poderes dos Habsburgos . Henrique planejara acompanhar sua irmã ocasiões em que todas as insígnias reais não eram exibidas. O signifi-
à Alemanha, a fim de escolher uma esposa, e segundo constava, ali- cado muito especial ligado à Ordem da Jarreteira representou mais
mentava grandes planos para terminar "as desavenças religiosas". 3 Sua uma vez uma tradição elisabetana. Verificou-se uma grande renovação
morte súbita e precoce afastou a influência de seu pai, que ' certamente da Ordem, suas. cerimônias, procissões e elementos moraisj nas obras
poderia ter sido empregada no interesse de sua irmã" e. seu cunhado. de arte, durante o reinado de Elisabete, que empregou-a como um
Esta ocorrência fatal não interferiu por muito tempo nos .divertimen- meio para atrair e reunir os nobres no serviço em comum da Coroa. t
tos da corte, embora tenha causado o adiamento das núpcias.
Elisabete gostava muito de teatro e montou sua própria compa- 5. E. K. Chambers, William Sbakespeare, II, p. 343.
nhia de atores - os cavaleiros de Lady Elisabete - os quais repre- 6. Tbe Tempest foi representada pela primeira vez em 1611. Alguns eru-
sentavam para ela e seu noivo. 4 E na época do Natal, os Cavalheiros ditos sustentavam a opinião de que a alegoria nupcial na peça fora adicionada à
do Rei, que formavam a companhia de Shakespeare, apresentaram vinte versão original, para ser representada na presença de Frederico e Elisabete. Ver
The Tempest, ed. F. Kermode, Arden Shakespeare, 1954, pp. XXI-XXII.
peças para a corte. john Heminges - posteriormente co-editor de
7. Nichols, p. 512.
2. Para um relato mais completo dos acontecimentos f da cerimônia e festi- 8. M. A. Everett Green, Elizabetb Electress Palatine and Queen of Bob,.
vidades relativas ao noivado e casamento de Frederico e Elisabete, ver John Ni- mia, edição revista, Londres, 1909, p, 47.
chols, The Progresses 01 [ames 1, lI, 1826. 9. Ver Yates, "Elizabethan Chivalry: The Romance of the Accession Dç
3. Nichols, p. 470 n. Tilts", [ournal of lhe Warburg and Courtauld Institutes, XX (1957), pp. 4-24;
R. C. Strong, "Queen Elizabeth and the Order of the Garter", Archuolol.d
4. E. K. Chambers, Elizabetban Stage, lI, p. 248. ]ou;nal, ~XLX (1964), pp . 245-69.

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Quando o Conde Palatino tornou -se Cavaleiro da jarrereira, insere. bispo de Cantuária. O noivo era calvinista, mas a cerimônia foi angli-
véu-se sob a bandeira da Cruz Vermelha de S. Jorge, em defesa das cana, com "o Príncipe Palatino repetindo as palavras do Arcebispo
causas apoiadas pela Ordem, a luta do Dragão Perverso e a defesa do em inglês". 14 Isto foi importante, tendo sido esse dia um triunfo para a
Monarca. Igreja da Inglaterra, que assim estendia sua influência através desse
A história de S. Jorge e o Dragão e suas românticas aventuras, casamento às terras estrangeiras. Abbot considerou esse enlace como
ao atacar as iniqüidades e defender os oprimidos, foi blasonada com pertencendo à natureza de uma missão religiosa, puritano e purifica-
fogo, na exibição de fogos de artifício apresentada pelos artilheiros dor em sua influência . 15 À cerimônia seguiram-se música e cânticos.
do Rei, um pouco antes do casamento, na noite de 11 de fevereiro. O Rei-de-Armas da jarreteira apregoou os títulos honoríficos da noiva
Esses espetáculos de fogos de artifício encontram-se minuciosamente e do noivo. Quando este saiu da capela, seis de seus homens cami-
descritos num relato impresso 10 e ilustrados num manuscrito cons- nharam à sua frente munidos de trombetas de prata, com as quais
tante do Museu Britânico. 11 Uma rainha aprisionada por um necro- executavam floreios tão encantadores que deleitavam toda a corte,
rnante foi libertada pelo grande campeão do mundo, S. Jorge. A cena fazendo com que milhares exclamassem: "Que Deus lhes dê alegrias!" 16
faiscante mostrava o campeão a cavalo numa ponte entre o pavilhão E assim as Núpcias Reais terminaram ao som das trombetas alemãs.
da rainha e a torre do necromante, e nesse local ele matava o dragão. Naquela noite, no pavilhão de banquetes em Whitehall, foi re-
Em seguida entrava na torre e capturava o necromante. O espetáculo presentado, na presença dos recém-casados e de toda a corte, um drama
pirotécnico terminava com o incêndio da torre do feiticeiro "com es- baseado numa alegoria. As palavras eram da autoria de Thomas Cam-
tampidos e clarões incandescentes". pion, e a produção, de Inigo Jones. 17 O tema da primeira cena re-
Embora entusiasticamente descrito pelos artilheiros, parece que presentava o poder da música de Orfeu para afastar com encanta-
esse show não terminou muito bem, e algumas pessoas ficaram ma- mentos a melancolia e a loucura. Seguiam-se os episódios corais entre
chucadas.J! Aparecendo entre a investidura e o casamento, o espetá- Orfeu, os "furiosos" e a exaltação poética. Logo depois a parte supe-
culo fora evidentemente projetado como sendo uma alegoria do Elei- rior do cenário ficava a descoberto, vendo-se nuvens e grandes estre-
tor Palatino figurado por S. Jorge, patrono da Ordem da Jarreteira, las. A harmonia das esferas fundia-se com a das núpcias reais: 18
livrando o mundo do encantamento pernicioso. Os leitores de Faerie Advance your chorall motions now,
Queene, da autoria de Spencer, se algum houve entre aqueles que Vou musick-loving Iights,
presenciaram esse sboui, deveriam ter-se lembrado do Cavaleiro da This night concludes the Nuptial vow
Cruz Vermelha, que defendeu Una naquela nobre alegoria em home- Make this the best of nights;
nagem à antiga Virgem Elisabete. Agora também a jovem nubente So bravely crowne it with your beames,
Elisabete tem a sua alegoria de S. Jorge escrita em fogo, como uma That it may live in fame,
das comemorações de seu casamento com o seu Cavaleiro da Jarreteira. So long as Rhenus or the Thames
Finalmente, no dia 14 de fevereiro, realizou-se o casamento na Are knowne by either name. *
capela real em Whitehall. A noiva usava "uma coroa de ouro puro,
tornada imperial pelas pérolas e diamantes nela colocados, engastados 14. Ibid., p. 547.
de modo tão compacto que assemelhavam-se a pináculos brilhantes 15. A respeito do entusiasmo de Abbot pelo casamento do Conde Pala tino)
consultar Paul A. We1sby - George Abbot the Unwanted Arcbbisbop, - L0n-
sobre os cabelos de tonalidade ambarina, que caíam sobre os ombros dres, 1962; pp. 51·3. Lancelot Andrewes também foi um defensor entusiasta.
chegando até a cintura". 13 Foram casados por George Abbot, Arce- 16. Nichols, p. 548.
10. Nichols, pp. 5n·", 53641.
17. Thomas Campion, The Lords' Masque, reeditado em Nichols, pp. ,54-6,.'
18. Nichols, p. 558.
11. .U~ descrição dos vários fogos de artifício inventados e elaborados •.* Avançai agora vossos movimentos corais, / V6s, os luzeiros amantes da
pelos Artilheiros de suas Majestades, Museu Britânico, Reis MSS, 17, c. xxxv. musica, / Esta noite sela o juramento Nupcial, / Fazei desta a melhor das n0i-
12. Nichols, p. 587. tes; / Assim valorosamente coroai-a com vossos raios de luz, / Que ela possa
13. IbM., pp. '42-). viver na celebridade, / Enquanto o Reno e o TAmisa / Forem conhecidos por
um e outro nome.

16 17
.~ . ..
o Reno está juntando-se ao Tâmisa, a Alemanha se une com a estar profundamente solidário com a aliança que ele representava . Que
Grã-Bretanha, as estrelas em seus cursos derramam harmonia neste o autor de Th e Advancement of Learning, o qual fora publicado oito
casamento. 19 anos antes, em 1605, abandonasse seus estudos a fim de trabalhar
para esse casamento, acrescenta o toque final na extraordinária pl êia-
De acordo com o espírito deste Canto , as estrelas se movimen- de de talentos poéticos, artísticos e científicos , cujos esforços asso-
tavam de modo excessivamente estranho e admirável, e suponho ciados converteram os últimos dias da Princesa Elisabete, na Ingla-
que poucos jamais viram um artifício mais perfeito do que aquele terra, num esplendor de glória.
demonstrado por Mestre Inigo Jones ao idear esse movimento,
e que em todo o resto da obra, ao qual pertencia o invento com- O noivo ainda tinha que visitar as universidades, nas quais foi
pleto, manifestou tão extraordinário desvelo e habilidade. recebido cordialmente e homenageado com poemas eruditos em latim,
incluindo um de George Herbert. 24 A atmosfera ainda estava pesada
Em seguida exibiram um cenário de perspectiva profunda, no com os versos congratulatórios manados do prelo, incluindo alguns de
meio do qual se via um obelisco de prata, e ao seu lado estátuas dou- John Donne,25 e, em muitos deles, rejubilando-se com o casamento de
radas do noivo e da noiva. A velha Sibila adiantava-se para profetizar Elisabete, mesclava-se a tristeza pela morte do irmão .
em versos latinos a grandiosa raça de Reis e Imperadores, que se ori- "Todos aqueles bem impressionados sentem grande satisfação e
ginaria desta união do poder da Alemanha com o da Grã-Bretanha, alegria com este casamento" - afirma um missivista - "como re-
e da aliança dos povos num só culto religioso e no amor puro. 20 presentando uma base firme e a instituição da religião." 26 Isto quer
Na noite seguinte, 15 de fevereiro , os membros do "Inner Tem- dizer que o enlace e as festividades do casamento eram vistos como
ple" e "Gray's Inn" executaram uma representação alegórica da auto- uma afirmação da política religiosa, um forte indício de que a Grã-
ria de Francis Beaumont," que mais uma vez girava em torno do tema Bretanha apoiaria o Eleitor Palatino como um líder contra as forças
da união do Reno e do Tâmisa . O Texto foi dedicado a Sir Francis católicas reacionárias no momento concentradas, preparando-se para
Bacon, com as seguintes palavras: "Vós, que não poupastes tempo terminar com o armistício. Os embaixadores dos estados holandeses
nem esforços na montagem, disposição e equipamento desta represen- assistiram ao casamento e espetáculos. Os da França e Veneza também
tação".22 Esse espetáculo foi um tanto mal recebido pelo Rei Jaime, compareceram; este último manifestou uma ardente admiração por
pois havia ordenado que fosse preterido. Sua cena principal exibia alguns efeitos artísticos de Inigo Jones. Os embaixadores das forças
uma imagem esplêndida de Cavaleiros e Sacerdotes numa colina, da habsburgas mantiveram-se conspicuamente ausentes. "O espanhol (em-
qual desciam para dançarem um ritmo solene, uma extraordinária afir- baixador) estava , ou estaria, enfermo; e o Arquiduque-Embaixador,
mação dos desígnios da Cavalaria Religiosa. Por ocasião do casamento tendo sido convidado no segundo dia, apresentou uma desculpa som-
de um casal igual a esse, os sacerdotes cantam: 23 II bria."27 Os amigos e inimigos, indistintamente, consideraram que esse
casamento - de acordo com a praxe européia - era uma afirmação
Each Dance is taken for a prayer, da política , de que a Inglaterra estava prosseguindo em seu antigo pa-
Each Song a sacrifice. *
I pel de defensora dos poderes protestantes europeus, e que o Eleitor
Palatino estava se fortalecendo como líder dessa política, sendo forte-
Se Francis Bacon foi quem ideou o espetáculo inteiro, deve ter 1I
considerado muito seriamente o casamento de Frederico e Elisabete, e
I
mente estimulado por seu sogro.

19. Ibid., pp. 558-9. 24. P. O. Kristeller observa em seu Iter Italicum, Ir, p. 399, que o ma-
nuscrito do Vaticano, PaI. lato 1738, contém poemas em latim dedicados ao Elei-
20. tu«, p. 563.
tor Palatino em sua visita a Cambridge, inclusive um por George Herbert. Sou
21. Praneis Beaumont, "Masque of the Midd1e Temple and Lincoln's Inn", grato ao Professor Kristeller por esta informação.
reeditada em Nichols, pp. 566-90. O manuscrito deveria encontrar-se entre o material tirado de Roma com a
22. tsu; p. 591. Bibliotbeca Palatina, apés a queda de Heidelberg; veja a seguir, p. 50.
23. uu; p. 600.

,
25 . Veja adiante, p. 184.
* Cada uma das danças é considerada uma oração, / Cada Cântico um sa- 26 . Nichols, pp . 601-2.
crifício. 27. IbM., p. 603.

18 19
Na época não perceberam perfeitamente que essa opinião s b
1 - era a d
o en ace nao ' . J'
o propno arme. EI e não se considerava o oco re_
tinuador dos métodos do algoz de sua mãe. Sua idéia _ segundo ma-
nifestou posteriormente - era contrabalançar o casamento de sur
fi~a com um prínci~e protesta?~e alemão com o de seu filho , Carlos:
unindo-se a uma princesa cat ólica espanhola, e assim a todo custo i

evitar a guerra ~om u: forç.as hubsburg~s, seu grande pavor. Este mod~
de pens~r de jaime nao fOI compreendido pelo Eleitor Palatino e seus
II
conselheiros, que estavam por lançar-se numa perigosa política anti- i
habsburga, sob um falso conceito. I
Elisa.betel com o esposo e seu séquito saíram da Inglaterra em
25 de abril, 1613, ao embarcarem de Margate para Haia 28 sendo bem /'
recebidos por Maurício de Nassau, o Conde Palatino ~ seu tio ma. I
terno, filho de Guilherme, o Taciturno. I
A chegada de uma princesa bri tânica ao solo holandês - uma
princesa realmente chamada Elisabete - deve ter despertado lembran-
ças profundamente arraigadas de princípios histórico,4'político e reli-
gioso do século anterior. Guilherme, o Taciturno, almejara formar
uma aliança maciça com a Inglaterra contra a agressão espanhola, con-
solidando-a com um casamento. Ele empossara o príncipe francês,
François d'Anjou, como governador de Flandres e Brabante, esperando
que a Rainha Elisabete desposasse este príncipe, e assim teria em
suas mãos uma aliança franco-anglicana. Este plano fracassou; o go-
I
I
verno de Anjou desmoronou-se vergonhosamente , e os espanhóis vol- I
I
taram para Antuérpia. Isto ocorreu em 1584. 29 Foi então que em
1586, Robert, Conde de Leicester, foi aclamado como libertador, e
I!
!
obteve um êxito triunfal através das Províncias; uma das caracterís- I

ticas foi a grande Festa da Jarreteira, realizada em Utrecht.ê? que con- I


I
verteu o simbolismo familiar da Jarreteira num símbolo de libertação.
Eis que agora chega da Inglaterra uma princesa, casada com um
Cavaleiro da J arreteira, sendo ele parente da linhagem dos Orange-
Nassau, o soberano hereditário do Palatinado, supremo Eleitor laico
do Império, e dirigente da união dos príncipes protestantes alemães.
Esta parecia uma aliança ideal para os neerlandeses, pois que o país
aguardava ansiosamente o término do armistício. Não foi economizada

28. iiu., p. 611.


29 . Em sua malograda tentativa de estabelecer François d' Aniou na Holan-
da ver Yates The Valois Tapestries, Warburg Instirute, 1959. 1 - Frederico V, Eleitor Palatino, e a Princesa Elisabete.
, 30. Ve; R. C. Strong e J. A. Van Dorsten, Leicester's Triumpb, Leiden e
Oxford, 1964.\
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3 (a) Nau dos Argonautas, Embarcação Alegórica.


(b) Chegada da Princesa Elisabete II Heidelberg.
Do Beschreibung der Reiss
nenhuma quantia na recepção realizada pelas cidades dos neerlandeses
em homenagem à Princesa Elisabete e ao Eleitor Palatino. 31 Recebe-
ram presentes ricos, foram homenageados com banquetes suntuosos, e
distraídos com espetáculos deslumbrantes. O Eleitor deixou sua esposa
em Haia, a fim de dirigir-se ao seu país para preparar a recepção que
lá lhe seria oferecida.
A seu devido tempo a princesa partiu, flutuando pelo Reno num
barco de luxo. Assim começava a união do Tâmisa com o Reno, pre-
nunciada nas representações alegóricas por ocasião do casamento. E é
possível que o próprio Inigo Jçmes, o principal autor das extraordiná-
rias cenas de suas perspectivas~i:ambém tivesse flutuado pelo Reno em
sua trilha . Sabemos que o Conde de Arundel, conhecedor de arte, co-
lecionador e protetor de Inigo Jones, acompanhou a princesa em sua
viagem para seu novo país. Sabemos também que Inigo Jones realizou
a sua segunda visita à Itália, indo ao encalço do Conde de ArundeI.
Esta conclusão sugere por si mesma - embora não exista documento
para prová-la - que Inigo, bem como seu protetor, devem ter viajado
com o grupo da princesa, de Londres para Heidelberg, de onde ele
teria partido com Arundel para a Itália. 32 A organização de uma corte
meio-inglesa em Heidelberg abrangeu muitas vindas e idas entre Lon-
dres e o Palatinado, enquanto estava abrindo um novo caminho para
os ingleses na direção do continente.
A primeira cidade do Palatinado em que Elisabete entrou, foi
Oppenheim, bem na fronteira, toda adornada por seus leais habitantes.
Essa decoração foi ilustrada na narração impressa de sua viagem de Lon-
dres para Heidelberg. 33 Um dos arcos triunfais em Oppenheim (Fig. 2)
estava inteiramente pintado de rosas, e segundo afirmaram, era uma
alusão à descendência de Elisabete das Casas de York e Lancaster. As
armas reais da Grã-Bretanha, cercadas pela jarreteira, aparecem flan-
queadas pelas armas do Palatinado. Nas ruas de Oppenheim enfileira-

31 . A recepção dos neerlandeses e outros acontecimentos durante a viagem


de Elisabete a Heidelberg estão descritos numa narração ilustrada contemporânea :
Bescbreibung der Reiss. .. des Herrn Frederick des V mit der Hochgebornen
P ürstin und Kôniglichen Princessin Elizabetben, facob des Ersten Konigs in Gross
Britannien Einigen Tocbter, Heidelberg, 161.3.
32 . Ver John Summerson, Inigo fones, Londres (Penguin), 1966, p. 35.
Por outro lado, o artigo sobre ArundeI no D .N.B. afirma que o conde regre~u
à Inglaterra após a visita a Heidelberg, e mais tarde durante o ano tornou a partIr
para a Itália. Nesse caso seria muito pouco provável que Inígo também o nvesse
acompanhado em sua primeira viagem para Heidelberg.
33. O Beschreibung der Reiss apresenta uma narrativa completa da recep-
ção em Oppenheim. • ~ \ .
..1."... c.."",) .. ~~ \s\ '.l..) / •• : 2'
- - _ . ..,'- -_... . ..:......-,
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I

varn-se os guardas em uniformes de gala, e os civis deram as boas-vin- I Durante alguns dias após a chegada , o castelo de Heidelberg viu-se
das à noiva real da Inglaterra, com um entusiasmo delirante. I movimentado com os torneios e outras festividades. Carros triunfais
carregando deidades mitológicas rolavam pelo local. Num deles encon-
A gravura do arco das rosas em Oppenheim está assinada "De
Bry", bem como outras constantes do relato impresso sobre a viagem. trava-se o Eleitor Palatino, vestido como Jasão e embarcando com os
Trata-se do conhecido gravador Johann Theodore De Bry, que recente- Argonautas em busca do Velocino de Ouro (Fig. 3 a). Este estilo
mente mudara o seu negócio de gravação e edição de Frankfurt para franco-borgonhês de festival mitológico, dever ter parecido - assim
Oppenheim. Durante todo o reinado de Frederico e Elisabete no Pala- julgamos - um tanto arcaico, em relação àqueles recentes produzidos
tinado, isto é de 1613 a 1619 , Johann Theodore De Bry espalhou uma por Inigo Jones na corte de Jaime I, e ele mesmo talvez lá estivesse
verdadeira torrente de publicações, em Oppenheim, sobre os assuntos para fazer uma comparação. Todavia, o tema do carro triunfal de ja-
mais abstrusos, e notáveis pela alta qualidade de suas ilustrações gra- são estava de acordo com os temas das produções de Londres. A alusão
vadas. Seu genro, Matthieu Merian , auxiliava-o na gravação. ao Eleitor como Jasão representava uma menção à Ordem do Velo-
cino de Ouro, cujo pingente vê-se pendurado na árvore que se encon-
Entre os principais trabalhos publicados por De Bry em Oppen- tra na embarcação. Como Eleitor do Império, Frederico, evidentemente,
heim, constavam os grandes volumes da obra de Robert Fludd, U trius- era um membro dessa ordem imperial. E no mastro da galera pode-se
que Cosmi Historia, abundantemente ilustrados. O fato de essa cidade ver a Jarreteira, uma alusão à famosa ordem inglesa, à qual ele per-
do Palatinado estalj no momento, intimamente ligada com a Inglaterra, tencia como esposo da filha do Rei da Grã-Bretanha. Ele aparecera
facilitava que nela fosse publicado o vasto trabalho filosófico de um nas cenas dos fogos de artifício em Londres, como sendo S. Jorge, da
inglês. Voltarei depois a falar sobre o significado da publicação da obra Ordem da Jarreteira; aqui porém, ele consta como sendo Jasão, da Or-
de Fludd em Oppenheim, durante o reinado de Frederico e Elisabete. S4 dem do Velocino de Ouro . O papel de paladino, em alguma aventura
Finalmente, a 7 de junho de 1613, Elisabete chega à sua capital, mística, deveria parecer adequado para de, ou julgou-se que seria.
Heidelberg . A Fig. 3 b nos mostra uma cena, ilustrada de acordo com Finalmente tudo terminou. Os membros das comissões inglesas
a narrativa de sua viagem. Estava programada uma inspeção militar. partiram, após terem cumprido seu dever. Assim também o fizeram o
Ao descer da carruagem, Elisabete usava chapéu vermelho alto, gola de Conde e a Condessa de ArundeI. O Lord e Lady Harrington voltaram
rufos de renda pregueada, e saia-balão tecida em ouro. Seu esposo para casa, na Inglaterra. Estavam desfeitas as últimas ligações oficiais
apressou-se a ir cumprimentá-la. O coche, revestido de veludo carme- de Elisabete com seu antigo país. Daí em diante, ela era a Eleitora Pa-
sim, que ela tomará para percorrer a cidade, estava à espera. latina do Reno, residindo na suntuosidade, em Heidelberg, até 1619
As Faculdades da Universidade de Heidelberg, um dos principais - o ano fatídico do destino.
centros de cultura protestante na Europa, erigira arcos em sua home- Ninguém, no Santo Império Romano , poderia ter deixado de sa-
nagem. O arco da faculdade de teologia (Fig. 4 a) estava decorado ber que o supremo Eleitor desposara a filha do Rei da Grã-Bretanha.
com os retratos dos Pais, de Lutero, Melanchthon, e Beze (e, bastante Através das florestas densas, nas cidades, as notícias corriam, provo-
estranhamente, não o de Calvino). cando satisfação em algumas regiões, ao julgarem que ali se encontrava
uma aliança importante, fortalecendo a causa protestante alemã. Em
Depois de percorrida a cidade, as carruagens subiram até o castelo
outras regiões haveria menos satisfação, principalmente em Graz, onde
de Heidelberg: um edifício imenso e romântico, impressionantemente
os Habsburgos austríacos mantinham sua corte majestosa.
bem situado numa saliência escarpada, dominando a cidade e o rio
Necar, afluente do Reno. No pátio do castelo, havia um arco de triunfo O castelo de Heidelberg deveria tornar-se um centro, do qual in-
medindo, aproximadamente, 20 m de altura (Fig. 4 b ), coberto de fluências estranhas e emocionantes deveriam emanar durante os anos
.estátuas dos primeiros governantes do Palatinado e suas esposas ingle- que se seguiram à chegada de Elisabete. Seu irmão, o Príncipe Henri-
sas. À entrada do castelo, encontrava-se de pé, a mãe do Eleitor, Louise que, fora um grande aficionado do desenho de jardins renascentistas,
]uliane de Nassau, filha de Guilherme, o Taciturno, que há muito ~ fontes mecânicas que podiam tocar melodias) de estátuas falantes e
outros dispositivos dessa espécie. Tal gosto tinha sido estimulado pela
esperava ansiosa por esse casamento para seu filho. .f· recuperação de antigos textos que descreviam essas maravilhas~o He-
34. Ver mais adiante pp. 109 e ss. rói da Alexandria e sua escola. Ao empregã-los, tinha como seu orieo-
'l-J' ... ~V(.(.~,OI.'C'I\ w ~O\J;~ 4c ~\ ~ ~~~ .,~. ~." ~ 2~
26
tador a Salomon de Caus, protestante francês, arquiteto de jardins, pliações, iluminado com muitas janelas, e - segundo afirmaram -
extraordinariamente brilhante, e engenheiro hidráulico. 35 Era íntimo por ter sido planejado como uma imitação das mansões ou palácios in-
de Inigo jones, que também trabalhava para o Príncipe Henrique. gleses. O vasto edifício visto na gravura, certamente tem algo do as-
Alentados pela renovação renascentista de Vitrúvio, esses dois homens pecto de um Modelo de Perfeição Teutônica.
eram versados naqueles conhecimentos que Vitrúvio recomenda como De Caus construírl). muitas grutas (Fig . 25a) nos jardins, conten-
indispensáveis a um verdadeiro arquiteto, bem como nas artes e ciên- do cenas animadas por~música das fontes mecânicas e formando figuras
cias baseadas em números e proporçãcf,~úsica, perspectiva, pintura, me- mitológicas, Parnaso com as Musas, ou Midas numa caverna. Impres-
cânica e similares. 36 Vitrúvio afirmara que a arquitetura era a rainha sionante era a estátua de Mémnon (Fig. 6b), um Mémnon-Hércu1es
das ciências da matemática, e com ela agrupara as outras artes e conhe- com uma clava. A estátua emitia sons, quando atingida pelos raios se-
cimentos. Inigo Jonet. estava concentrando-se na arquitetura e desenho lares, conforme consta na história clássica. A magia científica pela qual
cênico, como sendâ~intimamente associados à arquitetura e seus subsi- esse efeito foi realizado está demonstrada na gravura; ela foi derivada
diários, perspectiva e mec~llica . 37 Salomon de Caus concentrava-se em da pneumática do Herói de Alexandria.
desenho de jardins, o qual 'rla Renascença estava estreitamente unido à
arquitetura, dependente - igual à rainha das ciências matemáticas - Salomon de Caus julgava a música como sendo a mais eminente
da proporção, perspectiva, geometria, e empregando os mais recentes das ciências baseadas em números e era uma autoridade em órgãos. 3~
requintes de mecânica para as suas fontes decorativas cantantes e ou- Contam que construiu um órgão de água em Heidelberg (um antigo
tras ornamentações. órgão de água descrito por Vitrúvio). Este e mais todos os sons de
suas estátuas, fontes e grutas devem ter feito Heide1berg tão "cheia
Por ocasião da morte do Príncipe Henrique, Salomon de Caus en-
de ruídos" quanto a ilha de Próspero.
trou para o serviço do Eleitor Palatino, e estabeleceu-se em Heidel-
berg como arquiteto e engenheiro, encarregando-se das surpreendentes Caso lnigo Jones tivesse chegado em Heidelberg no trem do
melhorias no castelo e adjacências, podendo-se tg uma idéia a esse Conde de Arundel, acompanhando a Princesa Elisabete, certamente
respeito pela gravação no Hortus Palatinus, por·Ue Caus, publicado ter-se-ia interessado pelas atividades de seu antigo colega Salomon de
em Frankfurt. em 1620 por Johann Theodore De Bry (Fig. 6 a). De Causo Na realidade , as pitorescas fontes ou grutas cantantes, o con-
Caus explodira a encosta rochosa, para formar uma superfície plana, junto de jardins com suas cadências musicais aquáticas, eram apenas
na qual fez desenhos geométricos de um jardim, de grande complexi- uma adaptação ligeiramente diversa das técnicas e ciências de Vitrúvio,
dade (Fig. 5). Esse jardim fantástico, empoleirado sobre a cidade e o usadas por Inigo Jones na produção de suas representações alegóricas.
vale do Necar, foi comentado como sendo a oitava maravilha do mun- Se compararmos o "Apolo e as Musas" de Heidelberg, ou a gruta de
do. S8 O antigo castelo também fora modernizado, mediante novas am- "Midas" naquele castelo, com os cenários desenhados por Inigo para
as suas representações, torna-se evidente que eles pertencem à mesma
35 . Entre os trabalhos publicados por Salomon de Caus encont ra-se Les rai- : atmosfera teatral. O Eleitor Palatino, quando em Heidelherg, envolveu
sons des forces mouvantes, Frankfurt, 1615. Inspirado por Vitrúvio, existe um sua esposa no mesmo mundo de sonhos, que ela conhecera em Londres.
trabalho muito importante nesse livro sobre mecânica e hidráulica. A dedicatória
à Princesa Elisabete faz com que se lembre do interesse de seu irmão nesses as- Embora as representações alegóricas, ou as grutas musicais, as
suntos. O trabalho foi reeditado em Paris no ano de 1624, com o acréscimo de um ( fontes cantantes, ou as estátuas falantes, controladas pela pneumática,
segundo livro: Livre Second ou sont desseignees plusieurs Grotes & Fontaines. I
talvez não nos pareçam adaptações importantes da ciência à tecno-
Afirma-se que algumas das grutas, fontes, estátuas mecânicas etc., ilustradas nesse
livro, foram desenhadas para os jardins do Eleitor Palatino em Heidelberg. (Ver logia, tão semelhantes às da ciência renascentista, ainda envolvida numa
as Figs, 6-b e 25-a.) - atmosfera mágica, o fato é que se começou a empregar engenhos téc-
36 . Sobre os "assuntos Vitruvianos", consultar Yates, Tbeatre of the World, nicos em grande escala. 40 De Caus representa um exemplo importante
Londres, 1%9, pp. 20-59. do desenvolvimento da ciência dentro desta tradição; dizem que foi ele
37. Ver ibid., pp. 80-91.
quem inventou o emprego da energia oriunda do vapor, antecipando-se,
38. Consultar Lili Fehrie-Burger , 'Der Hortus Palatínus als "achtes Weldt-
wunder'" - no Ruperto-Carola, Mitteilungen der Vereinigung der Freunde der

r""':""'" . . . .
Studentenscbait der Ilniuersitiit Heidelberg, XIV (2), 1962. Sou grato a R. Strong .39. Consultar Salomon de Caus, Imti/utio" hanlto1lipt,
por esta informação. . I. !\ .I' 40. Ver Theatre o~ the World. pp. 78-9.\
",i_I. f ; (.. ~~~DbD~~~í:(;\ ~~~I~J D\ rv/~r...-\~. I 0\ f"'tl~ I,. ·H-" ". ..-...;........lc.> '~ ··· ··:·· 29
281l..... ,,.- ~ I CD~ I 'Y\J-l~~'" . ".- ~

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.'i ... It • • ,~ '"O{tj I dA-- Ut- b
_ _ s_I_"_·_· ... -
dessa forma, ao século XIX. Em sua obra Les raisons des forces uma mulher de inteligência rápida, ainda que talvez não profunda. O
mouuantes, que foi dedicada à Princesa Palatina em 1615, contendo Eleitor era intelectual , místico e profundamente interessado por música
ilustrações dos trabalhos feitos para Heidelberg, De Caus cita Vitrúvio e arquitetura. Legou a alguns de seus filhos suas inclinações filosóficas.
a respeito de máquinas, dá esclarecimentos sobre os construtores de Sua filha mais velha, outra Princesa Elisabete, teve a honra de receber
máquinas descritas por Vitrúvio, e aplica à mecânica os princípios ma- Principia, da autoria de Descartes, com a sua dedicatória. 48
te~.áticos. Esta sínt.ese da ciência avançada no engenheiro-arquiteto, Ao contemplarmos as fascinantes gravuras de Matthieu Merian
utilizada por Frederico para suas benfeitorias em Heidelberg, demons- dos jardins de Heidelberg, talvez devamos r~fletir que aí, empoleirado
tra que a cultura moderna no Palatinado encontrava-se à altura dos nessa encosta no coração da Alemanha, era+àm posto avançado da In-
tempos e estava evoluindo para o século XVII de modo natural glaterra jacobita, uma cidadela da cultura adiantada do século XVII .
devido à Renascença. ' Contudo, esse incremento muito promissor, fertilizado pela união do
Usando a imagem empregada pelos poetas nas representações ale- Tâmisa com o Reno, estava destinado a não ter futuro. A data de
góricas, devemos considerar a Heidelberg Jacobina como surgindo do 1620, a da publicação da gravura, é o ano do breve reinado de Fre-
enlace do Tâmisa com o Reno. Os movimentos. do pensamento e os derico e Elisabete em Praga, como Rei e Rainha da Boêmia o ano
. .
que termmou com os acontecimentos resultando na deflagração da
'
culturais estão sendo transmitidos da Inglaterra para o Palatinado
com o despertar da Princesa Elisabete. Inigo Jones talvez visite Hei- Guerra dos Trinta Anos, que deveria devastar o Palatinado e destruir
delberg. Salomon De Caus estimula o gosto do Príncipe Henrique para a suntuosidade de*1-Ieidelberg jacobita. O Palatinado esteve na linha
seus jardins. O casal shakespeariano, Frederico e Elisabete, continua o de frente da batalha, e o impacto devastador da reação pode ser cla-
drama de suas vidas em Londres num novo cenário teatral. ramente observado no destino de Heidelberg.
A violenta propaganda lançada contra Frederico do Palatinado
E entre as influências já ocorrendo entre a Inglaterra e essa parte
após sua derrota, usou de todas as armas do ridículo e da sátira contra
da Alemanha, havia aquelas das companhias itinerantes de atores ingle-
ele. Circularam inúmeros impressos satíricos. Consistiam em folhas sol-
ses. A presença de um casal amante do drama, já familiarizado com os
tas contendo figuras, cujo sentido estava explicado em maus versos.
cenários dramáticos ingleses, representaria um estímulo para aqueles
Um mensageiro cavalgando através de toda a região, tocando a sua
atores itinerantes. Em 1613 havia atores ingleses em Heidelberg 41 que trompa ( Fig. 7a) , estaria simulando uma busca ao fugitivo Rei da
mais tarde foram para a Feira de Frankfurt, sempre ao encalço das Boêmia. A maioria dessas caricaturas impressas era muito mais violenta
companhias itinerantes. O conhecimento do teatro inglês e suas condi- do que essa que citamos comparativamente inofensiva, e nelas se faziam
ções seriam difundidos através da presença da Princesa Elisabete, que .insínuaçôes sinistras. Numa delas, Frederico, a esposa e filho apareciam
possuía sua própria companhia de atores em Londres, e que tinha uma num jardim primorosamente desenhado (Fig, 7b). Deram-lhes um as-
predileção apaixonada pelo drama sob todos os aspectos. pecto de degenerados e o jardim levava ao Inferno com suas chamas.
Verificavam-se muitas idas e vindas entre o Palatinado e a, Ingla- Esses representantes de uma cultura renascentista requintada estavam
terra, porquanto empregados e outros emissários viajavam de Heidel- sendo transformados em bruxos por uma propaganda hostil. Difícil é
berg para Londres e vice-versa. Deste modo as novidades ou as novas reconhecer-se, nessa paródia cruel, a Frederico e Elisabete, os quais em
publicações poderiam ter-se infiltrado da Inglaterra para o estado ale- dias mais felizes tinham assistido à magia da Tempest, de Shakespeare.
mão. Francis Bacon mostrara-se favoravelmente disposto para com a
princesa e seu marido, em seu interesse entusiástico pelo casamento de ~ ~~~~, ~~~4 U,VV1trjl l'
ambos . É provável que eles tivessem lido The Advancement Df Learn-
ing. Sabemos que Elisabete, nos últimos anos de sua vida, interessou-se CA 3U~G~\U ~ ~\bO"
pelos trabalhos de Bacon, deleitando-se com a sua leitura. 42 Ela era
41. E. K. Chambers, Elizabetban Stage, lI, pp. 288-9. A "troupe" era che-
fiada por John Spencer, ator que viajara amplamente pela Alemanha - a cató-
lica e a protestante.
43. Veja adiante, p. 160
42. Veja Green, Elizabeth of Bobemia, p. 260 n.

30
A tradição " ativista" do Palatinado 2 prosseguira, ao ter sido ofe-
recido um apoio enérgico a Henrique IV, da França, em seus planos
para invadir a Alemanha, planos esses que terminaram abruptamente
com o seu assassinato em 1610. Tal apoio do Palatinado ao rei da
França era a continuação do antigo entendimento harmonioso franco-
palatinado na época de Casimir, o qual apoiara Henrique" depois
Henrique de Navarra, em sua luta como líder dos huguenotes.
CAPÍTULO II Mais importante como mestre orientador, influente na política do
Palatinado, foi Christian de Anhalt, 3 conselheiro-mor na corte de Hei-
delberg, e que se mostrara ansioso por auxiliar Henrique IV nos
A TRAGÉDIA DA BOÊMIA planos que, segundo constava, envolviam uma tentativa em grande
escala de acabar com o poder dos Habsburgos na Europa . Quando os
Em 1577, o jovem Philip Sidney foi enviado à corte imperial, - a projetos de Henrique foram interrompidos pela morte, a política do
fim de apresentar ao novo imperador Rodolfo I! ~s. condolências d~ Palatinado, ainda largamente inspirada por Anhalt, voltou-se por ou-
tros meios ao encalço desses objetivos grandiosos.
Rainha Elisabete, pela morte do imperador Maximiliano lI, seu par,
Foi então que o jovem Eleitor Palatino, Frederico V, começou a
Foi no transcorrer dessa viagem que Sidney teve oportunidade de vi~it~r
ser encarado corno destinado a ocupar a vaga de líder da resistência
os príncipes protestantes alemães, principa.~:nte os soberan~s calvinis- protestante, contra as forças dos Habsburgos . Muitos fatores o indica-
tas do Palatinado a fim de estudar a possibilidade de uma LIga Protes- vam para essa posição. Herdara a categoria de chefe supremo dos elei-
tante na Europa.' Sidney já revelara sua posição política e religiosa, tores laicos do Império. Herdara também uma tradição do ativismo
baseada na de seu tio o Conde de Leicester. Ele acreditava numa po- protestante, que o indicava como líder natural e dirigente da União
lítica de "ativismo" protestante contra a Espanha, política esta mais dos Príncipes Protestantes Alemães, formada para opor-se à Liga dos
ousada do que a prudência da Rainha Elisabete es~a.va pr~parada para Príncipes Católicos. Ele tinha ligações poderosas com os protestantes
sancionar. E em Heidelberg, encontrou um espínto afim, na pes- franceses, sendo seu tio, o Duque de Bouillon, o líder huguenote. Com
soa de john Casimir, irmão do então Eleitor _Palatino. Sidney infor- os neerlandeses, o sustentáculo da liderança protestante na Europa
mou a Walsingham que os príncipes protestantes da Alemanha mos- estava intimamente ligado por laços de família. Finalmente - e foi
travam-se em geral indiferentes a uma Liga Protestante, sendo que os isto que colocou o remate na estrutura da posição de Frederico - ele
únicos entusiasmados com a idéia eram Casimir do Palatinado e o casara-se com a filha do Rei da Grã-Bretanha, garantindo assim que
Landgrave William, de Hesse.? - conforme seus protetores acreditavam - Jaime I viesse a auxiliar
Após sua morte prematura, Philip Sidney tornou-se um mito como sua filha e seu genro . Isso assemelhava-se a um conjunto ideal de
sendo o beau ideal da cavalaria protestante. Junto à imagem dele alianças por trás do Eleitor Palatino, assinalando-o como se fadado 8
.também associaram-se os enfeites românticos da cavalaria restaura- desempenhar uma parte importante na formação do destino da Europa
da o culto fantástico à Rainha Elisabete, prestado por seus cavaleiros nos anos críticos que se seguiriam.
nos Torneios do Dia da sua Ascensão ao Trono. O fato de Casimir do Naqueles anos subseqüentes quase tudo dependeria da pessoa do
Palatinado ter sido seu amigo íntimo, representou um elo entre a corte Imperador da Alemanha, e também de os Habsburgos poderem manter
de Heidelberg e a tradição Sidney na Inglaterra, tendo isso facili- o controle dos encargos do império. .
tado a propagação do jovem Eleitor Palatino, como paladino da cava-
laria protestante anglo-alemã. 2. Consultar Claus-Perer Clasen, The PIl14ti1l4le in Emo1Jetl1l HislM'J. ()x..
ford, 1963. uJi bs
1. A visita de Sidney ao Palatinado é novamente contada por Fulke Gre- .3. Sobre Anhalt consultar Clasen na obra há pouco citada; ] us Kre •
ville, que o acompanhou. Consultar F. Greville, The Life oi the Renou:ned .S!, ." Cbristian oon Anhalt ~nd die Kurpfa/sische Politi/t: iII1I hetinn des Dnisn~
Philip Sidney, 00. N. Smith, Oxford, 1907, pp. 41 e ss. Cf. R. Howell , Sir Phtltp Krieges, Leípzig, 1872; Cambridge Modern History, IV, Cambridge, 1906, pp. ,
Sídney The Sbepberd Knight , Londres, 1968, pp. 34-5; J. O. Osborn, Young e ss; David Ogg, Earop« in the Seuenleenth Cenlllt'y, ed. de Londres, 1943. pp. ..'
Philip Sidney, YQ!e Univ. Press, 1972, pp. 450 e ss. 126 e ss. .
I ·

32
i .1
;

Na atmosfera tensa da Europa entre as guerras (as religiosas no


século XVI e a Guerra dos Trinta Anos), a morte do Imperador
l1 çando a aplicar-se na extinção da igreja da Boêmia. Alguns afirmaram
que o verdadeiro começo da Guerra dos Trinta Anos reside no início
RodoIfo II, em 1612, marcara um momento de crise. Embora mem- ;
,'
bro da Casa de Habsburgo, Rodolfo se manteve distante de seu so- da aplicação das políticas intolerantes na Boêmia . Os católicos liberais
brinho Filipe II da Espanha, enterrando-se inexplicavelmente em es- protestantes fizeram um nobre esforço para deter essa manobra desas-
tudos abstrusos . 4 Transferiu a corte imperial de Viena para Praga, que trosa. Contudo, Fernando e seus conselheiros jesuítas não puderam ser
se tornou um centro de estudos alquímicos, astrológicos e mágico-cien- contidos e os ataques à igreja da Boêmia continuaram. Manifestou-se
tíficos de todas as espécies. Escondendo-se em seu imenso palácio de uma violenta oposição, e numa tumultuosa reunião em Praga, dois líde--
Praga, RodoIfo afastou-se, temeroso dos problemas oriundos da into- res católicos foram atirados por uma janela, ficando este acidente co-
lerância fanática de seu sobrinho amedrontado . Praga tornou-se a Meca nhecido como a Defenestração de Praga - mais um passo para a
para aqueles interessados nos estudos científicos e esotéricos de toda marcha dos acontecimentos que levariam à Guerra dos Trinta Anos .
a Europa . Daí surgiram john Dee e Edward Kelly, Giordano Bruno e A Boêmia encontrava-se assim numa situação de franca rebelião con-
johannes Kepler. Embora a fama de Praga fosse estranha na época de tra seu soberano Habsburgo. De acordo com os rebeldes, a coroa da
RodoIfo, não obstante era uma cidade relativamente tolerante. Os Boêmia era uma coroa eletiva, a ser oferecida a quem quer que eles
judeus podiam prosseguir tranqüilamente em seus estudos cabalísticos elegessem, e não transmissível à Casa dos Habsburgos, conforme Fer-
(o conselheiro religioso favorito de Rodolfo era Pistório, cabalista) nando e seus defensores afirmavam.
e a igreja originária da Boêmia foi admitida por uma "Carta de Sobe- Em 26 de agosto de 1619, o povo da Boêmia decidiu oferecer a
rania" oficial. A igreja da Boêmia, fundada por john Huss, foi a pri- coroa do país a Frederico, Eleitor Palatino.
meira das igrejas reformadas da Europa . A tolerância de Rodolfo es- Já há algum tempo pairava no ar a possibilidade de Frederico vir
tendeu-se até a Igreja da Boêmia e aos Irmãos da Boêmia, associação a tornar-se o Rei da Boêmia; dizem que isso já era comentado até por
mística vinculada aos seus ensinamentos. ocasião do casamento dele. 6 Anhalt estivera esforçando-se veemente-
Praga, sob o domínio de Rodolfo, era uma cidade da Renascença, mente por aliciar opiniões favoráveis à causa de Frederico, pois esta
repleta de influências renascentistas conforme tinham evoluído na manobra constituía uma parte essencial na estrutura anti-habsburga, que
Europa Oriental - um cadinho de idéias, misteriosamente excitantes ele, Anhalt, estava formando em torno de Frederico.
em sua potencialidade para novos desenvolvimentos. Mas por quanto Segundo as normas características e complicadas da constituição
tempo continuaria essa relativa imunidade das forças de reação, após imperial, o Rei da Boêmia mantinha a posse de um voto na eleição de
a morte de Rodolfo? O problema foi protelado por um curto espaço um imperador, Visto que Frederico já era um eleitor, caso se tornasse
de tempo, devido à eleição ao Império e à coroa da Boêmia, de Mat- o Rei da Boêmia, manteria dois votos numa eleição imperial, o que
thias, irmão de Rodolfo, bastante idoso e praticamente um joão-nin- poderia constituir uma maioria contra os patrocinadores dos Habsbur-
guém que logo faleceu, e então o problema já não pôde mais ser adia- gos, e abrir um caminho para romper o seu controle. E foi seguindo
do . As forças reacionárias estavam se reunindo; restavam apenas, para esse delineamento que Anhalt e seus amigos raciocinaram; talvez te-
transcorrer, alguns anos do armistício das guerras religiosas. O próxi- nham alimentado a idéia de eventualmente obterem o cargo imperial
mo e mais provável candidato aos tronos imperial e ao da Boêmia, era para o próprio Frederico. Tais perspectivas de uma política religiosa,
o Arquiduque Fernando da Estíria, católico-habsburgo fanático, deci- com um modo de pensar idealista, levariam àquelas esperanças de uma
dido a eliminar a heresia. reforma da Igreja através do Império, que sempre fora um sonho da
Em 1617, Fernando da Estíria tornou-se Rei da Boêmia. 5 Fiel ao Europa, desde os tempos de Dante.
seu adestramento e natureza, imediatamente pôs fim à política de tole- A decisão a ser tomada por Frederico - se aceitaria ou não a
rância religiosa de Rodolfo, revogando a Carta de Soberania e come- coroa da Boêmia que lhe fora proposta - era portanto um dilema de
ordem prática e religiosa. Prática, porque aceitá-ia era perigoso; signi-
4. Ainda não existe nenhum livro bom acerca de Rodolfo II. ficaria uma declaração de guerra contra os poderes dos Habsburgos.
5. Para um relato claro dos acontecimentos na Boêmia, consultar C. V.
Wedgwood, The Thirty Years War, ed. em brochura, 1968, pp. 69 e ss. 6. Cam.bridge Modern Historg, IV, p. 17.
. ...
34
Mas, por acaso, não tinha ele alianças poderosas? Era principalmente não aceitar; a filha de Guilherme, o Taciturno, sabia muito bem a
por causa dessas alianças - com os protestantes da Alemanha e da natureza dos poderes que seu filho estava desafiando.
França, com a Holanda, com o Rei da Grã-Bretanha, cuja filha despo- 1
sara - que o povo da Boêmia o escolhera . Religiosa, porque recusar- • Em 28 de setembro de 1619, Frederico escreveu aos rebeldes da
se a seguir o caminho que Deus lhe estava indicando, poderia repre- Boêmia que aceitaria a coroa. Assim falou C. V. Wedgwood: "Sejam
sentar uma recusa a cumprir a vontade de Deus. Existem todas as ra- quais forem as suspeitas do mundo, é pouco provável que Frederico
zões para acreditar que foi esta última consideração que mais pesou tenha manifestado a totalidade de suas intenções, quando escreveu ao
para Frederico. seu tio, o Duque de Bouillon: 'Trata-se de um chamado divino, ao
qual não devo desobedecer. " Minha única finalidade é servir a Deus
Todos aqueles que viram Frederico em Heídelberg por volta dessa e à sua igreja.' " 10
época, ficaram impressionados com sua atitude. Um embaixador inglês
escrevendo de Heidelberg para Jaime, em junho de 1619, julga que Entretanto, já as conclusões mais amplas da aventura do povo da
Frederico "está muito além de sua idade, no que se refere à religião, Boêmia tinham sido difundidas, provocando confusão. Fernando fora
critério, atividade e coragem", e que sua esposa ainda é "aquela mesma eleito imperador numa reunião em Frankfurt no mês de agosto. A
coroa da Boêmia não seria levada ao império que já fora concedido a
princesa devotada, boa, e meiga ... condescendente para com todos os
Fernando, um Habsburgo, e Frederico encontrava-se na situação embara-
corações que dela se aproximam, pela sua cortesia, por amar tão terna- çosa de ter que pôr de lado o seu dever para com um imperador,
mente o príncipe, seu querido marido, representando isso uma alegria apoiando os rebeldes - ignorando uma obrigação feudal em prol do
para todos os que os observam". 7 Como num "flash", o casal Shakes- que ele considerava uma necessidade religiosa. Preferiu agir a favor
peariano é aqui revelado. John Donne, o poeta, que, em Heidelberg desta última, mas muitos dos seus contemporâneos teriam julgado esse
e na presença deles como capelão, fizera uma prédica ao embaixador, ato legalmente errado.
aceitou um pequeno encargo a ser realizado em benefício dos dois, ex- Em 27 de setembro, Frederico, Elisabete e seu filho mais velho,
pressando-se com um arrebatamento característico. "É um assunto Príncipe Henrique, saíram de Heidelberg dirigindo-se para Praga. Um
tão generalizado (o relativo à coroa da Boêmia), que até um homem observador entusiasta, conta com que espírito humilde e piedoso eles
tão humilde e pobre quanto eu, nele desempenha uma parte e tem iniciaram a viagem; o jovem príncipe, alimentando esperanças de que
uma função a realizar, que é a de promovê-lo com as mesmas preces, o falecido Príncipe Henrique nele reviveria, enquanto que Elisabete,
conforme eu as apresento por intenção de minha própria alma aos ou- devotamente aclamada como "uma outra Rainha Elisabete, pois assim
vidos de Deus Todo-poderoso." 8 Entre aqueles que deram uma opi- é agora; o que mais pode vir a ser com o tempo ou com sua descen-
nião sobre a aceitação da proposta do povo da Boêmia, Abade George, dência real, isso está nas mãos de Deus, que promove a Sua glória e o
Arcebispo de Cantuária, mostrou-se veementemente a favor. Mais tarde, bem de Sua igreja". 11 Na Inglaterra o entusiasmo não teve limites.
Elisabete costumava mostrar às suas visitas em Haia, a carta que o Um contemporâneo escreve: "Mal posso descrever de que modo a
Arcebispo de Cantuária escrevera, opinando sobre a aceitação da coroa Inglaterra manifestou seu amor ardente por Frederico e Elisabete." 12
da Boêmia, como sendo um dever religioso. 9 Foi como se "a única Fênix dó mundo", a velha Rainha Elisabete estio
vesse voltando, e que próximo encontrava-se algum novo e grandioso
Outros, porém, deram um conselho mais prudente. A União dos decreto divino. .
Príncipes Protestantes, em seu conjunto, era contra uma aprovação, por
ser demasiadamente arriscada. E a mãe do Eleitor suplicou-lhe para Viajaram através do Alto Palatinado até a fronteira da Boêmia
(ver o Mapa à p. 48), onde os aguardava urna delegação de nobres da
7. Lord Doncastes dirigindo-se a Jaime I, junho de 1619, em Letters and Boêmia, e daí, através de seu novo reino, para a sua maravilhosa ca-
otber Documents Illustrating Relations between England and Germany at tbe
Commencement ot the Thirty Years War, de S. R. Gardiner, Camden Society,
186.5, I, p. 118. 10. Wedgwood, Thrirty Years War, p. 98.
8. Jobn Donne para Sir Dud1ey Carleton, agosto, 1619; consultar Gardiner, 11. John Harrison, A sbort relstion o/ tb« depor/tire, Londres, 1619; dta-
II, p. 6. ção de Green, p. 133. .. .
9. Green, Elizabeth Eleetress Palatine, p. 185. 12. Harrison; citaçio de Green, iae. cu.

36 '7
pita1. A cerimônia da coroação realizou-se na catedral de Praga, tendo He will not desert us,
sido dirigida pelo clero hussita. Foi a última e importante cerimônia Otherwise we would suffer great distress. *
pública a ser patrocinada por uma igreja da Boêmia, logo depois com-
pletamente abolida. Chegamos aqui ao âmago dessa imensa tragédia de incompreen-
No dia da coroação, foi publicado um selo comemorativo. Nele são ". Isso porque Jaime não estava apoiando sua filha e seu genro;
constavam Frederico e Elisabete como o rei e a rainha da Boêmia. Por continuava trabalhando para o outro lado devido ao devotamento
trás dos bastidores, os Reformadores e a paz tinham triunfado sobre incondicionado à amizade espanhola; até mesmo naquele momento,
os Contra-Reformadores e a guerra. Os quatro leões representam as quando o selo foi publicado, ele não estava assumindo a responsabi-
alianças com as quais o novo rei e a rainha da Boêmia podem contar. lidade em cada corte da Europa, pelo empreendimento de seu genro,
O leão era o animal heráldico do próprio Frederico, e o da esquerda concernente ao povo da Boêmia.'" Não só não haviam sido feitos pre-
~'
representava o Palatinado, segurando uma coroa eleitoral. Vinha em se- parativos militares ou navais na Inglaterra para apoiar esse empreendi.
guida o leão de duas caudas da Boêmia, o inglês com sua espada, e o mento, mas a diplomacia de Jaime estava agindo contra ele, repudian-
leão dos neerlandeses. Versos em alemão por baixo do selo explicam do-o, neutralizando-o, fazendo todos os esforços para insinuar-se nas
essas alusões. Deviam ser cantados numa melodia de salmo, sendo boas braças dos poderes dos Habsburgos. Evidentemente, a atitude de
como seguem: (traduzidos para o inglês) 13 Jaime enfraqueceu imensamente a posição de Frederico, e fez com que
seus outros amigos duvidassem dele. Ficara presumido que Jaime seria
Good cheer, and let us be joyful, obrigado a apoiar sua filha por ocasião de seu infortúnio. Ela repre-
The red dawn of the moro is breaking, sentava a garantia da boa vontade de seu pai. Quando porém, chegou
The sun can now be seen. o momento, foi revelado que Jaime preferia abandonar sua filha a
incorrer o risco da ira dos Habsburgos.
God turns his face towards us,
Honours us with a king Toda a questão era excessivamente complicada, e o que é justo e
The enemy cannot withstand. * .injusto, muito complexo. Jaime apoiava a paz a todo custo; preferira
realizá-la pelo casamento de seus filhos com partes contrárias no grande
Os raios do sol, oriundos do Nome Divino em hebreu, caem de conflito. Frederico e seus patrocinadores tinham interpretado o enlace
fato sobre Frederico e Elisabete, e é este o alvorecer rubro de uma como sendo um apoio total a seu favor. Muitos dos súditos de Jaime,
nova manhã. Os versos enfatizam, de modo especial, como esse alvo- também o interpretaram desse modo, acolhendo-o com entusiasmo co-
recer depende da nova Rainha. Segundo explicam, Wyc1if veio da mo uma continuação da tradição elisabetana. Contudo, até mesmo a
Inglaterra, tendo sido dele que Huss recebeu a sua instrução, alusão Rainha Elisabete talvez não aprovasse inteiramente a Frederico; pru-
feita à influência de Wyclif sobre a reforma hussita; e agora uma rai- dentemente, ela evitara fazer o que ele fez, isto é) assumir a soberania
nha chega da Inglaterra para nós. 14 . de um país reivindicada por um outro poder. Ela recusara-se firme-
mente a assumir a soberania dos neerlandeses, embora apoiasse sua
jacobus, ** ber lord father dear, . causa.
Through her has become Entretanto, para as finalidades deste estudo não é necessário dis-
Our mightiest patron and support, cutir esses pontos, e tampouco examinar detalhadamente as complica-
ções desses acontecimentos. Precisamos apenas de um plano geral do
1.3. Citados, conforme traduzidos por E. A. Beller, Caricatures of the "Win- que realmente ocorreu, e da declaração genérica do fato de Jaime ter
ter King" of Bobemia, Oxford, 1928, estampa L
* Coragem! Rejubilemo-nos, / Está irrompendo o alvorecer rubro da ma-
* Jaime, seu pai e senhor amado, / Através dela, tornou-se I Nosso pa-
trono supremo e esteio, I Ele não nos abandonará, I De outro modo terfamos
nhã, / O sol agora pode ser contemplado, / Deus volta Sua face para nós, / Dig- grandes sofrimentos. (N. da T.)
nifica-nos com um rei / O inimigo já não pode resistir. 1,5: "O rei da Inglaterra celebrou a ascensão ao trono de seu genro, ~
14. BeI1er, Caricatures, loco cito ~o oftcla.lmente a t~os os soberanos europeus que ele tivesse apoiado ou 1lleS1DO .
nvesse tido conhecimento desse projeto." Wedgwood, p. 108.
** Assim era chamado Jaime I e às vezes Jaime n. (N. da T.)

38
continuado uma política de conciliação relativa aos poderes dos Habs- A medida que o ano transcorria, a situação foi-se tornando amea-
burgos, enquanto Frederico e seus patrocinadores mantinham-se na çadora. Os inimigos de Frederico estavam concentrando-se para ex-
expectativa, confiante de que Jaime participaria ativamente, a seu lado. pulsá-lo; seus aliados mais importantes - os príncipes protestantes
Provavelmente, a verdade é que o principal crime de Frederico foi ter alemães não vinham em seu auxílio. Anhalt encontrava-se no comando
fracassado. Caso houvesse sido bem sucedido em estabelecer-se na das forças de Frederico; o Duque da Bavária comandava os exércitos
Boêmia, todos os indecisos, incluindo seu sogro, provavelmente incli- católicos. As forças de Frederico foram totalmente derrotadas na Ba-
nar-se-iam para ele. talha da Montanha Branca, fora de Praga, no dia 8 de novembro de
1620. Esta vitória firmou o domínio habsburgo na Europa pelo espaço
O personagem que deveria ter sido o árbitro informado desses de uma outra geração, e deu início à Guerra dos Trinta Anos, que
assuntos, o personagem junto ao qual a Europa liberal procurava orien- finalmente extinguiu o poder habsburgo.
tação - Jaime I da Grã-Bretanha - aparece como tendo caído rapi-
damente num estado de incompetência e decrepitude senil, incapaz de A Batalha da Montanha Branca representou assim um aconteci-
tomar decisões, evitando assuntos sérios, ficando à mercê de favoritos mento decisivo na história européia. A derrota foi totaL Praga encon-
inescrupulosos, desprezado e iludido pelos agentes espanhóis. 16 Assim, trou-se na mais completa confusão, temendo a vingança que sobre ela
a Europa precipitou-se, desorientada e confusa, na Guerra dos Trinta cairia, e louca por livrar-se da presença culposa de Frederico. Elisa-
Anos. bete dera à luz a mais um filho em Praga (famoso nas guerras civis
inglesas, como Príncipe Roberto do Reno). Frederico com a esposa e
Durante o inverno de 1619-20, aqueles que posteriormente vie- filhos fugiu tão apressadamente de Praga, que a maioria de seus per-
ram a ser conhecidos como "O Rei Hibernal e a Rainha da Boêmia" tences foram deixados para trás. Entre os objetos valiosos que caíram
reinaram em Praga, naquele palácio tão cheio de recordações de Ro- nas mãos do inimigo, encontrava-se a insígnia da Ordem da Jarreteira. 19
dolfo lI. Não parece existir muita coisa conhecida sobre o que ocor- Os panfletos da propaganda contra ele, e que posteriormente foram dis-
reu naquela cidade durante o reinado desse casal fantástico, e como tribuídos por seus inimigos, encantados por apresentá-lo como um pobre
acontece com freqüência na História, o vazio é preenchido por algu- fugitivo com uma das meias caindo (Fig. 9) - em alusão à sua perda
mas anedotas emboloradas de historiador para historiador. Gostaría- da Jarreteira 20 - mencionavam constantemente o fato de que o
mos de saber quais teriam sido as reações de Frederico ante as coleções apoio de seu sogro para o cavaleíro da Jarreteira estava ainda por
científicas e artísticas "Rodolfeanas"; o que pensavam sobre ele os ca- aparecer, que todo o seu empenho redundara no mais desastroso
balistas de Praga bem como os alquimistas; quais as peças representa- fracasso, culminando naquela fuga espantosamente ignominiosa, e na
das pela companhia de atores ingleses, sob Robert Browne, que segundo perda de todas as suas posses.
dizem, passou o inverno em Praga; 17 quais as reformas propostas - e Nesse meio tempo, o Palatinado fora invadido pelos exércitos es-
por ele estimuladas, conforme uma sátira inimiga. 18 Poderia parecer panhóis sob Spinola. No dia 5 de setembro, este último atravessou o
que o capelão da corte, o calvinista fanático Abraham Scultetus, tenha Reno; no dia 14 tomou Oppenheim; outras cidades já haviam caído.
causado muitos aborrecimentos, destruindo inabilmente algumas imagens A mãe de Frederico e seus dois filhos mais velhos, que tinham ficado
amadas pelo povo, e não inteiramente aprovadas. Os trajes que po- em Heide1berg, fugiram para as casas de seus parentes em Berlim. Fi-
deriam ter sido elegantes na corte de Jaime l, pareciam ousados em nalmente, toda a família reuniu-se em Haia, onde deveriam manter a
Praga. sua corte de exilados arruinados durante muitos anos.
16. Consultar a narração sobre a decrepitude física e mental de Jaime, de Na Boêmia as execuções em massa, ou "expurgos", exterminaram
1616 em diante, na obra de D. H. Wilson, King [ames VI and 1, Londres, 1956, toda a resistência. A Igreja da Boêmia foi totalmente extinta e o país
pp. 378 e ss. inteiro reduzido à miséria. O Palatinado destruído deveria sofrer mais
17. Chambers, Elizabetban Stage, II, p. 285. Browne foi o organizador; li-
derava os atores ingleses no exterior, e visitava a Alemanha constantemente. Na
ocasião era um homem idoso, e 1620 parece ser o último ano de seu apareci- 19. Wedgwood, p. 130.
mento. Não está muito bem documentada a presença de Browne e sua troupe no 20. Para outras ilustrações satíricas sobre o assunto "despojado da ]am-
ano de 1620 em Praga. teira", consultar Beller, Caricatures.
18. Ver adiante, p. 87.
41
40
do que qualquer outra parte da Alemanha na terrível Guerra dos
Trinta Anos.
Frederico, o Eleitor Palatino, tornara-se uma miragem. É evi-
dente que ninguém sabe o que lhe teria acontecido, caso vencesse a
Batalha da Montanha Branca. Porém, como libertador da Boêmia e
candidato mal sucedido para uma nova liderança anti-habsburga na Eu-
ropa, uma vez perdida essa batalha, estava liquidado. Aqueles que
ainda hesitavam, acabaram por se afastar. Os príncipes protestantes
alemães não ergueram um dedo para auxiliá-lo, limitando-se a observar
a destruição do Palatinado com um temor fascinado. E o famoso Rei
da Inglaterra manteve-se indiferente aos apelos de sua filha, seu genro
e de seus inúmeros amigos entusiastas da Inglaterra.
Historiadores observaram o efeito da história interna da Ingla-
terra sobre o extraordinário empreendimento da Boêmia e seu fra-
casso. Notaram que Jaime I, orientando sua política exterior pelo "di-
reito divino" e sem consultar o Parlamento, que era unanimemente a
favor do apoio ao Rei da Boêmia, estava começando um curso de
acontecimentos que eventualmente destruiria a Monarquia dos Stuart.
Não foi somente o governo interno do país, sem consultas ao Parla-
mento, que provocou a ira, mas também a insistência de uma política
exterior contra os desejos desse mesmo Parlamento, que provocou uma
cólera mais profunda, não só entre os seus membros, mas de modo
geral, entre as pessoas de todas as classes. Nobres ilustres, como Wil-
liam Herbert, Conde de Pembroke, que envergonhado, praticamente
desculpou-se ao representante de Frederico, pelo abandono do Rei, por
ele considerado seu dever. 21 O povo, ansioso por tocar os sinos e
acender fogueiras em homenagem à sua amada Elisabete, não teve per-
missão para fazê-lo. Por um lado, a brecha entre a Monarquia e o Par-
lamento, e a nação pelo outro, estava começando a alargar-se devido
à impopular política exterior de Jaime.
Os estudiosos da História, embora cientes desse aspecto da tragé-
dia da Boêmia, quer nos parecer que não procederam a uma investi- J
J.
gação acurada - se é que houve alguma - do efeito na Europa das
esperanças originadas pela suposta aliança do Rei da Inglaterra com
o Eleitor Palatino. Naqueles anos de uma paz incômoda entre as guer-
ras religiosas, o eleitor Palatino apoiara algo mais do que o calvinismo
tradicional de sua dinastia. Ele transferira a suntuosidade da Renas-
cença jacobita para a Alemanha, através de seu casamento. E o grande
21. Pembroke a Carleton, setembro de 1619. Muitas provas, em primeira
mão, sobre o sentimento da Inglaterra a favor do auxílio ao Rei da Boêmia foram
citadas em Gardiner, Letters.

42

4.
~

6 - (a) Salomon de Caus _


Hortus Palatinus .
( b) Estátua de Memnon
- Salomon de Caus, em
Les raisons des forces
mouuantes.

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v.
..
movimento da Renascença encontrara e unira-se com outros movimen-
tos poderosos que se verif~cavam na região, para formar uma nova e
rica cultura, que - acredito eu, apesar de sua curta duração - foi
um elemento importante no movimento proveniente da Renascença
para o Iluminismo. Neste ponto, as forças da Renascença encontraram
a Reação enfrentando um terrível impacto. Sentem-se perdidas e desa-
parecem nos horrores da Guerra dos Trinta Anos, mas quando final-
mente essas guerras terminam, surge o Iluminismo. A tentativa para
deslindar os movimentos do pensamento no Palatinado, durante o rei-
nado de Frederico e Elisabete - tentativa esta que estamos prestes a
-,
fazer - pode ajudar a lançar uma luz num dos problemas mais im-
portantes da história cultural e intelectual: o problema dá identifica-
ção das fases pelas quais o Renascimento evoluiu para o Iluminismo.
Embora o Palatinado fosse um Estado calvinista, os movimentos
do raciocínio, pelos quais devemos nos interessar, têm pouco - na
realidade, nada - a ver com a teologia calvinista. Tais movimentos
são um exemplo notável da tendência para a qual H . Trevor-Roper
chamou a atenção." isto é, a tendência de o calvinismo ativista atrair
pensadores liberais de muitos tipos diversos. E atraiu, de fato, porque
representava um suporte contra as últimas forças da reação, uma ga-
rantia de que, dentro de sua esfera de influência, o mandado da Inqui-
sição -não vigoraria. A título de uma preparação para os capítulos
futuros, será útil fazermos uma pausa no fim deste, para tratarmos do
mapa que indica a posição do Palatinado, em relação aos Estados
limítrofes.
Em Veneza, Paolo Sarpi recentemente estivera apresentando uma
resistência contra a usurpação papal, e o movimento liberal veneziano
fora observado na Inglaterra com extremo interesse. Henry Wotton,
o entusiasta embaixador inglês em Veneza, esperara até mesmo conver-
ter os venezianos numa espécie de anglicanismo. 28 Aproximadamente
em 1613, as emoções do Interdito representavam uma coisa do passa-
do; Veneza, porém, observava com interesse os assuntos de Frederico;
Anhalt estava em contato com Sarpi; 24 Wotton visitava Heidelberg
em suas viagens à Veneza, indo de um lado para o outro. Caso Frede-
rico tivesse sido bem sucedido em manter aberto um corredor Iibe-
ral da Holanda para Veneza através da Alemanha, a investida da

d 22. H. Trevor-Roper, Religion, tbe Rejormation and Social Cb8nge, Lon-


res, 1967, pp, 204 e ss.
~?' Consultar meu artigo, "Paolo Sarpi's - History of tbe Counâl of
Trent , ] ournal 01 tbe Warburg and Courtauld Instiuaes, VII (1944). pp. 123-4'.
24. Paolo Sarpi, Lettere ai Prctestanti. ed. C. Busnelli, 1931.

00 47
repressão do pensamento na Itália - que Galileu vma a sofrer -
poderia ter sido reprimida.
As ligações do Eleitor com a Holanda eram obviamente muito
íntimas. Em Heidelberg - centro de ·um grande círculo internacional
de correspondência - havia muitos eruditos holandeses, principalmen-
te o famoso Janus Gruter, humanista e poeta. 25 Gruter era professor
na universidade de Heidelberg, e também bibliotecário da famosa Bi-
blioteca Palatina, rica em livros e manuscritos, coligidos pelos antepas-
sados do Eleitor, e recolhidos na Igreja do Espírito Santo, na mesma
Heidelberg.
Entre os mais proximos vizinhos de Frederico situava-se o Duca-
do de Württemberg, que confinava com o seu território ao sul. Nele,
a religião era a luterana, mas havia grande interesse em tentar unir
luteranos e calvinistas. Frederico de Württemberg, que morrera em
1610, fora profundamente anglófilo, visitara a Inglaterra elisabetana,
e em 1604 recebera de Jaime I a dignidade da Jarreteira, que a Rainha
Elisabete lhe prometera e que lhe fora conferida por uma embaixada
especial. 26 Luterano e anglófilo, Württemberg era o centro de inte-
ressantes movimentos do pensamento, desenrolando-se em torno de
johann Valentin Andreae, pastor luterano e místico. O Duque manti-
nha um contato estreito com o Eleitor Palatino. Outro amigo íntimo,
dentre os príncipes protestantes alemães, era Maurício, Landgrave de
Hesse; homem culto, e grande incentivador das companhias itinerantes
de atores da Inglaterra.
Acima de tudo, era de Praga que as poderosas influências se
FRANÇA tinham expandido para essa parte da Alemanha. As pesquisas alquí-
micas e esotéricas, incentivadas por Rodolfo H, representavam uma
atmosfera renascentista mais liberal do que qualquer outra que a Rea-
ção desejasse impor; e esses estudos eram populares nas cortes alemãs,
principalmente nas de Hesse e Württemberg. As tradições de Praga
rodolfiana eram certamente familiares a Christian de Anhalt, o líder
da política do Palatinado. Este fora íntimo do Conde Roãmberk, 27 mem-
bro de uma família da Boêmia, conhecida por seu interesse no ocul-
tismo e alquimia. Que Anhalt partilhasse esses interesses, evidencia-se
pelo fato de Oswald Croll, hermeticísta, cabalista e alquimista para-
celsista ser seu médico.

Mapa indicando ti posição do Palatinado, nos primérdios do 25. Sobre Gruter, consultar Leonard Forster, JallllS G'IItn's EIIglisb YH1$,
século XVII Sír T. Browne Institute, Leiden, 1967. .
26. Ver mais adiante, pp. 52 e 55.
27. Peter Wok of Rolmberk; ver mais adiante, pp. 60-1.

48
Foi nesse mundo fervilhante de emoções, que a Princesa Elisabete
chegou, trazendo consigo as influências da recente Renascença que flo-
resciam na Londres jacobita, e representando uma esperança de um
poderoso esteio contra as forças reacionárias. O castelo de Heidelberg,
com suas mara~ilhas mago-científicas, e a Universidade de Heidelberg,
centro dos ensinamentos protestantes, tornaram-se os símbolos de um
movimento de resistência nos anos entre as guerras. Foi ali, durante
aqueles anos efêmeros, que as pessoas estavam esperando que irrom- CAPíTULO IH
pesse um alvorecer, que aparecesse uma iluminação, anunciando uma
nova era.
Em vez disso, sucedeu uma desgraça implacável, resultante do
fracasso total de Frederico na Boêmia, com a ocupação inimiga e a
JOHN DEE E °
DESPONTAR DE
"CHRISTIAN ROSENCREUTZ"
destruição do Palatinado. As testemunhas oculares descreveram o con-
fisco da biblioteca pelos invasores e a destruição dos documentos de
Gruter.F" Uma coleção de livros e manuscritos de toda uma existência A palavra "rosa-cruciano" é derivada do nome "Christian Rosen-
foi atirada na rua e num estábulo onde trinta cavalos encontravam-se creutz" ou "Rosa-Cruz". Os chamados "manifestos rosa-crucianos" são
alojados, tendo sido irremediavelmente enxovalhada e destruída. O dois pequenos panfletos ou folhetos, publicados primeiramente em
mesmo ocorreu com outras bibliotecas particulares de Heidelberg, en- Cassel, nos anos de 1614 e 1615, cujos títulos extensos podem ser
quanto a grande Biblioteca Palatina foi levada para Roma.P" e com abreviados para Fama e Conjessio. 1 O herói desses manifestos é um
ela muitos dos livros de Gruter. Não consegui nenhum relato sobre o certo "Padre C.R.C." ou "Christian Rosencreutz", que consta como
que aconteceu aos órgãos hidráulicos, às fontes cantantes e às ou- tendo sido o fundador de uma Ordem ou Irmandade, atualmente res-
tras maravilhas do castelo. Salomon de Caus, que fora deixado em taurada, e para a qual os manifestos convidam a ingressar. Eles provo-
Heidelberg, de onde escrevera para o Rei da Boêmia em 1620 sobre caram um imenso alvoroço, e uma terceira publicação em 1616 aumen-
um problema musical, finalmente conseguiu um novo emprego na tou o mistério. Tratava-se de um singular romance alquímico, cujo
corte de França. Gruter perambulou tristemente pelos arredores de título em alemão traduzido para o inglês é The Chemical Wedding Df
Heidelberg e morreu após alguns anos. E assim é que aí desapareceu Cbristian Rosencreutz. O herói dessa obra também parece estar asso-
todo um mundo, com seus monumentos danificados ou destruídos, seus ciado a alguma Ordem que usa como símbolos uma cruz verme1ha e
livros e registros escritos desaparecidos, e sua população convertida rosas dessa mesma cor.
em refugiados - aqueles que conseguiram escapar - ou em destina- O autor de Tbe Chemical Wedding foi certamente Johann Valen-
dos a morrer pela violência, pela peste ou de inanição, nos anos terrí- tin Andreae. Os manifestos estão indubitavelmente relacionados com
veis que estavam ainda por vir. esse livro, embora provavelmente não tenham sido da autoria de An-
É a respeito dessa Renascença fracassada, ou Iluminismo prema- dreae, mas de alguma outra pessoa ou pessoas desconhecidas.
turo, ou do ~al compreen?ido Alvorecer Rosa-cruciano, que estamos Quem era esse "Christian Rosa-Cruz" que aparece inicialmente
prestes a analisar. Qual terra sido o estímulo que fez funcionar o mo- nessas publicações? Infinitas são as mistificações e lendas tecidas em
vimento dos chamados "manifestos rosa-crucianos", com os seus estra- redor desse personagem e de sua Ordem. Vamos tentar cortar caminho
nhos avisos do romper de uma nova era de conhecimento e discerni- através' dele, por uma trilha completamente nova. Mas, permitam-nos
mento? É dentro da esfera da influência dos movimentos em torno de começar este capítulo com esta pergunta mais fácil: "Quem foi Johann
Frederico do Palatinado, e sua luta pela coroa da Boêmia, que deve- .! Valentin Andreae?"
remos procurar uma resposta para tal pergunta.
i
., Johann Valentin Andreae, nasceu em 1586, original de Württem-
28. Forster, Gruter, pp. 96-100. berg, o Estado Luterano que se ligou intimamente ao Palatinado. Seu
29. H. Trevor-Roper, The Plunder 01 the Arts in the Seuenteentb Centur»,
Londres, 1970, pp. 22-7. 1. Sobre os títulos completos, ver o Apêndice, à pág. 292.

50 '1
avô foi u~. eminente ,~eólo?o luterano, algumas vezes chamado "o Lu-
tero de Wurttemberg . O Intenso Interesse pela situação religiosa con-
temporânea foi a principal inspiração de seu neto johann Valentin, que
também tornou-se um pastor luterano, porém com um interesse liberal
pelo Calvinismo. Apesar dos infindáveis malogros , Johann Valentin
foi encorajado durante toda sua vida, pelas esperanças de alguma solu-
ção a longo prazo, relativa ao desenlace religioso. Todas as suas ativí-
dades - seja como pastor luterano devoto com interesses socialistas,
seja como propagador das fantasias "rosa-crucianas" - estavam orien-
tadas para tais esperanças. Andreae era um escritor de futuro, cuja ima-
ginação foi influenciada pelos atores itinerantes ingleses. No que con-
cerne ao início de sua vida e às influências por ele sofridas, temos
informações autênticas em sua autobiografia. 2
Por ela ficamos sabendo que em 1601, com a idade de 15 anos,
sua mãe viúva levou-o para Tübingen, para que continuasse seus estu-
dos naquela famosa universidade de Württemberg . Enquanto estu-
dante em Tübingen - assim nos conta ele - desenvolveu seus primei-
ros trabalhos juvenis como autor, aproximadamente durante os anos
de 1602 e 1603. Esses trabalhos incluíram duas comédias sobre os
temas de "Esther" e "Jacinta" - que ele afirma ter escrito "por riva-
lidade com os atores ingleses" - e um trabalho chamado Chemical
Wedding) o qual define depreciativamente como um ludibrium ou
uma ficção, ou ainda uma pilhéria de pouco mérito . 3
A julgar pelo Chemical Wedding, de Andreae, que ainda existe,
a publicação de 1616, tendo Christian Rosencreutz como herói
- versão prematura do assunto - teria sido um trabalho de simbo-
lismo alquímico , empregando o tema do casamento como um símbolo
dos processos da alquimia. Não pode ter sido igual ao Chemical Wed-
ding de 1616, que contém referências aos manifestos rosa-crucianos de
1614 e 1615, 'ao Eleitor Palatino e sua corte em Heide1berg, e ao seu
casamento com a filha de Jaime 1. A primeira versão do Chemical
Wedding) que não é conservada, deve ter sido atualizada para a pu-
blicação de 1616. Não obstante, a versão inicial perdida deve ter pro-
porcionado a parte essencial desse trabalho.

2 . Johann Valentin Andreae, Vita ab ipso conscripta, ed. ~. H. Rhe.ir:wa1d,


Berlim, 1849. A primeira publicação do manuscrito dessa obra fOI uma edição em
Winterthur em 1799. i
3. Andreae, Vita, p. 10. A declaração de Andreae, de ter escrito ~eças que
são uma imitação dos atores ingleses, é adotada por E. K. Chambers, Eltwbethan
Stag«, I, p. 344 n, 9 - (a) Frederico, tal como um Peregrino despojado da Jarreteira.
(b) Frederico, já destituído da Ordem da ]arreteira, fazendo trabalhos setvia.
52
Podemos fazer uma boa conjetura sobre quais foram as influências
e acontecimentos em Tübingen, que inspiraram esses primeiros tra-
balhos de Andreae.
O Duque de Württemberg então reinante, era Frederico I, alqui-
mista, ocultista e anglófilo entusiasta, cuja paixão predominante fora
estabelecer uma aliança com a Rainha Elisabete e obter a Ordem da
J arreteira. Visitara várias vezes a Inglaterra com esses desígnios e pa-
rece ter sido uma figura conspícua.r' A Rainha chamava-o "primo
Mumpellgart", que era seu nome de família, e muitas discussões foram
travadas em torno do problema para saber se as referências crípticas
em Merry Wives o/ Windsor, de Shakespeare, aos "velhacos (garmom-
bles)", e aos cavalos alugados no "Garter Inn" (Estalagem da Jarre-
teira) pelos servidores do duque alemão, poderiam ter alguma relação
com Frederico de Württemberg . 5 A Rainha autorizou a sua eleição
para a Ordem da Jarreteira em 1597, mas a verdadeira cerimônia de
sua investidura não teve lugar senão em novembro de 1603, quando
lhe foi conferida a J arreteira em sua própria capital, a cidade de Stutt-
gart, por uma embaixada especial de Jaime L
Por conseguinte, mediante esse ato logo no primeiro ano de seu
reinado, Jaime fez um gesto para continuar a aliança elisabetana com
os poderes protestantes alemães, embora após alguns anos devesse
rejeitar as esperanças assim originadas . Mas no ano de 1603, em
Württemberg, o reinado de um novo soberano da Inglaterra parecia
abrir-se mais auspiciosamente para as esperanças alemãs, e verificou-se
uma efusão de entusiasmo à volta da embaixada que viera conceder a
jarreteira ao Duque, e dos atores ingleses que a tinham acompanhado.
A cerimônia da Jarreteira em Stuttgart e as festividades a ela
associadas são descritas por E . CeIlius numa narrativa em latim, pu-
blicada em Stuttgart em 1605, parte da qual é citada numa tradução
inglesa por Elias Ashmole em sua história da Ordem da J arreteira. 8
As procissões nas quais tomaram parte solene os oficiais da J ar·
reteira Inglesa, carregando a insígnia da Ordem, com os dignitários
alemães, causaram uma esplêndida impressão. A aparência do Duque
4. Sobre Frederico de Württemberg e da Inglaterra, consultar W. B. Rye,
England as· seen by Foreigners, Londres, 1865, pp . I e ss; Victor von KIarwill,
Queen Elizabeth and Some Foreigners, Londres, 1928, pp. 347 e ss.
5. Consultar a introdução, de H. C. Hart, para Tbe Merry Wivt's o/ W;IIJ·
" sor, Ed. Arden, 1904, pp . xli-xlvi ,
. 6. Erhardus Cellius, Eques auratus Anglo-Wir/embergicus, Tübíngen, 1606;
Elias Ashmole, Tbe Instiuaion, Laws and Ceremonies o/ tb« 1110# "obIe QrM,
o/ the Garter, Londres, 1672.

....o
"
-
era a mais suntuosa, estando coberto de jóias que lançavam de um
lado para outro "uma mistura radiante de diversas cores". 7 Um dos quanto uma obra artística, quando observado como o resultado das
oficiais da Jarreteira Inglesa era Robert Spenser, que segundo afirmou primeiras influências em Andreae , tanto do drama como do cerimonial,
Cellius era parente do poeta. 8 A parte interessante desse comentário f associando-se para inspirar um trabalho de arte novo, original e ima-
é a que ouviram de Spenser, e talvez de seu Faerie Queene, em ginativo.
Stuttgart. Em 1604 , um ano após a cerimônia da Jarreteira, um trabalho
Assim, suntuosamente vestido, o Duque entrou na igreja, na qual muito singular foi dedicado ao Duque de Württemberg. Tratava-se de
ao som de uma música solene, foi investido na Ordem. Após um Naometria, por Simon Studion, um manuscrito inédito constante da
sermão, a música recomeçou, consistindo nas "Vozes de dois Adoles- "Landesbibliothek" , em Stuttgart. 11 É um trabalho apecalíptico-profé-
centes, vestidos de branco com asas iguais às dos Anjos, e postados tico de grande extensão, usando de uma numerologia complexa sobre
as descrições bíblicas das medidas do Templo de Salomão, e argumen-
frente a frente". 9
tos complicados relativos a datas expressivas na história bíblica e euro-
Quando os convidados voltaram ao ball, participaram do Ban- péia, preparando o caminho para as profecias sobre datas de aconteci-
quete da Jarreteira, que se prolongou até as primeiras horas do dia mentos futuros . O escritor interessa-se particularmente pelas datas re-
seguinte. Cellius tem alguns detalhes sobre o banquete que não estão lacionadas à vida de Henrique de Navarra, e o trabalho todo parece
citados por Ashmole, incluindo referências à parte do entretenimento refletir uma aliança secreta entre Henrique, no momento Rei da França,
proporcionado por "músicos, comediantes, artistas trágicos e outros Jaime I da Grã-Bretanha e Frederico, Duque de Württemberg. Esta
atores ingleses talentosos". Os músicos ingleses deram um concerto em suposta aliança (da qual não encontrei provas em nenhum lugar) está
conjunto com seus colegas de Württemberg, e os atores da Inglaterra descrita muito pormenorizadamente, e o manuscrito até contém várias
aumentaram a hilaridade do banquete apresentando dramas. Um deles páginas de músicas que devem ser cantadas em versos, sobre a eterna
foi a 'História de Susana', "que representaram com tal arte e desem- amizade da Flor-de-lis (o Rei da França), o Leão (Jaime da Grã-Bre-
penho histriônico e tal engenhosidade, que foram profusamente aplau- tanha) e da Ninfa (o Duque de Württemberg) .
didos e recompensados". 10
De acordo com a evidência apresentada por Simon Studion pode-
Nos últimos dias, os ingleses foram convidados a visitar alguns ria parecer, portanto, que em 1604 existia uma aliança secreta entre
dos principais lugares do Ducado, incluindo a Universidade de Tübin- Jaime, Württemberg, e o Rei da França, talvez uma continuação do
gen, "na qual se distraíram assistindo comédias, música e outros pas- rapprocbement com Jaime através da cerimônia da Jarreteira no ano
satempos" . anterior. Encontramo-nos ainda na parte inicial , do reinado de Jaime,
Certamente a visita da embaixada da Jarreteira e os atores, que durante o qual ele ainda estava persistindo nas alianças do reino pre-
dela participavam, devem ter representado um acontecimento incrivel- cedente e trabalhando de acordo com Henrique de Navarra, na época
mente estimulante e emocionante para o jovem e imaginativo estudante rei da França.
de Tübingen, Johann VaIentin Andreae. O seu Chemical Wedding, de A Naometria é um curioso espécime daquela obstinação por pro-
1616, está repleto de impressões brilhantes relativas ao suntuoso cerimo- fecias, baseado na cronologia, que era uma obsessão característica cUt
nial e às festas de alguma Ordem ou Ordens, contendo comentários so- época. Entretanto, essa obra contém um relato interessante e aparen-
bre as representações dramáticas. Ele se torna mais compreensível en- temente real sobre algo que, segundo dizem, ocorreu em 1586. De
acordo com o autor da Naometria, houve uma reunião em Luneburg
7 . Ashmole, Garter, p. 412. no dia 17 de julho de 1586, entre "alguns Príncipes e Eleitores evan-
8. Cellius, Eques auratus, p. 119. Este ponto não está incluído na tradução gélicos", e representantes do Rei de Navarra, o Rei da Dinamarca e a
condensada de Ashmole, feita por Cellius. Rainha da Inglaterra. Consta que o objetivo dessa reunião foi formar
9. Ashmole, Garter, p. 415. uma "Liga Evangélica" de defesa contra a "Liga Católica" (que estava
10. Cellius, Eqees auratuI} pp. 229-30. Sobre os atores que acompanharam progredindo na França, a fim de evitar a ascensão de Henrique de
a embaixada da ]arreteira, consultar E. K. Chambers, Elizahethan Stage, 11, pp.
11. Württemberg Landesbibliothele, Stuttgart; CoeI. theo1. 4.° 23, }4. A&vaJ!.., .
wÓ,

270-1.
mente existe um microfilme desse manuscrito no Instituto Warbura. ' . ' ,'

56
Navarra ao trono da França). Essa Liga foi chamada "Confederatio iria, pois a menciona em sua obra Turris Babel, 15 publicada em 1619.
Militiae Evangelicae". 12 Nela está interessado não em quaisquer datas anteriores mencionadas
Ora, de acordo com alguns primitivos estudantes do mistério ro- na Naometria, mas sim em suas datas para os futuros acontecimentos,
sa-cruciano, a Naometria de Simon Studion e a "Milícia Evangélica", suas profecias . Simon Studion mostra-se muito enfático em insistir
aí descrita, representam uma origem básica para o movimento rosa- que o ano de 1620 (lembrem-se de que ele está escrevendo em 1604)
crucíano. 13 A. E. Waite, que examinara o manuscrito, acreditara que será grandemente significativo, pois ele verá o fim do reinado do Anti-
o desenho de uma rosa toscamente delineado com uma cruz no centro, cristo na derrocada do Papa e de Maomé. Este colapso prosseguirá nos
contido na Naometria, é o primeiro exemplo do simbolismo rosa-cru- anos subseqüentes e aproximadamente em 1623 começará o milênio.
ciano da rosa e da cruz. 14 Não posso afirmar que esteja totalmente Andreae mostra-se muito obscuro no que diz a respeito das profecias
convencida da importância dessa pseudo-rosa, mas a idéia de que o da Naometria, que ele associa com as .do Abade Joaquim, S. Brígida,
movimento rosa-crucíano foi implantado à maneira de aliança dos sim- Lichtenberg, Paracelso, Postel e outros illuminati. Contudo, é possível
patizantes protestantes, formada para anular a Liga Católica, poderia que as profecias desse tipo possam realmente ter influenciado nos acon-
harmonizar-se bem com as interpretações a serem desenvolvidas neste tecimentos históricos, bem como ajudado o Eleitor Palatino a tomar
livro. A data de 1586 para a formação dessa "Milícia Evangélica" aquela decisão precipitada de aceitar a coroa da Boêmia, ao acreditar
far-nos-ia retroceder ao reinado da Rainha Elisabete, ao ano de inter- que o milênio estava próximo .
venção de Leicester junto aos neerlandeses, ao ano da morte de Philip Os movimentos obscuros, vislumbrados através do estudo do Du-
Sidney, à idéia da formação de uma Liga Protestante, que era tão cara que de Württemberg e da Jarreteira, e os mistérios da Naometria
a Sidney e a John Casimir do Palatinado. pertencem aos primeiros anos do século, quando a União Protestante
Os problemas suscitados por Simon Studion, em sua Naometria, estava sendo formada na Alemanha, e os defensores dos Reis da França
são demasiadamente complexos para aqui serem introduzidos com de- e da Inglaterra neles depositavam sua confiança. Naqueles anos mais
talhes, mas eu estaria inclinada a concordar em que esse manuscrito distantes, Jaime I pareceu simpático a esses movimentos. O assassinato
de Stuttgart é certamente de importância para os estudantes do mis- do Rei da França em 1610, às vésperas de fazerem uma intervenção
tério rosa-cruciano. O que nos incentiva quanto a essa opinião, é o fato importante na Alemanha, destroçou as esperanças dos ativistas durante
de que Johann Valentin Andreae, evidentemente conhecia a Naome- algum tempo, e alterou o equilíbrio dos negócios europeus. Todavia,
Jaime parecia continuar ainda a política antiga. Em 1612, ingressou
12. A declaração sobre a reunião de Luneburg em 1586, para formar a
"Confedera tio Militiae Evangelicae" (Confederação da Milícia Evangélica), consta
para a União dos Príncipes Protestantes, cujo chefe no momento era
da folha 35 da dedicatória da Naometria ao Duque de Württemberg, com a qual o jovem Eleitor Palatino; no mesmo ano autorizou o noivado de sua
ele dá início ao manuscrito. Essa declaração é repetida às folhas 122, e quase filha Elisabete com Frederico, e em 1613 foi realizado o famoso casa-
com as mesmas palavras, onde ele acrescenta que o Duque de Württemberg mento, com a promessa evidente de apoio pela Grã-Bretanha ao chefe
ocupava uma posição de importância não insignificante "entre os Confederados".
a. A. E. Waite, Brotberbood 01 the Rosy Cross, Londres, 1924, pp. 639 e ss. da União Protestante Alemã, o Eleitor Palatino.
Não é impossível que Iohn Dee tenha assistido a essa reunião de Luneburg, pois Na época em que essa aliança estava em seu apogeu, antes que
se encontrava em Leipzig em maio de 1586; consultar French, [obn Dee, p. 121. Jaime I tivesse iniciado sua tomada de posição, objetivando retirar seu
13. Que a Naometria de Simon Studion representa um aspecto importante apoio, o enérgico Christian de Anhalt começou a trabalhar com o fito
no movimento rosa-cruciano é afirmado por ]. G. Buhle, em Ueber den Urs-
prung... der Ürden der Rasenkreuzer und Freyman, Gõttíngen, 1804, p. 119. de fortalecer o Eleitor Palatino, como sendo o chefe ideal das forças
Uma declaração anterior com o mesmo resultado é encontrada numa narrativa de anti-habsburgas na Europa. Os líderes mais antigos depositários das
Andreae em sua obra Württembergisches Repertorium der Literatur, ed. J. W. esperanças tinham desaparecido; Henrique de França fora assassinado;
Petersen, 1782·3 IH. De Quincey em seu ensaio "Rosicrucians and Freemasons" Henrique, Príncipe de Gales, morrera. A escolha caiu sobre o jovem
1824, repetiu. a. declaração sobre Naometria feita por Buhle (T. De Quincey;
Collected W"Utngs, ed. D. Masson, Edimburgo, 1890, XIII, pp. 399-400). Con- Eleitor Palatino.
sultar também A. E . Waite. Brotberbood 01 lhe Rosy Cross pp. 36 e ss 639 e ss:
Will·Erich Peuckert, Die Rosenkreutzen, Jena, 1928, pp. 38.9. ' , 15. Johann Valentin Andrese, Turris Bebe! sioe ]lIdiciOf'u", d, FrUWlfi.
J4. Waite, Brotberbood, p. 641. late Rosaceae Crucis Chaos, Estrasburgo, 1619, pp. 14-15.

"
Anhalt, por via de regra, foi considerado responsável pela malo- de Dee, na Boêmia , teria sido Trebona, na qual ele e KelIey haviam
grada aventura de Frederico da Boêmia, e foi contra ele que a propa- estabelecido sua sede após a primeira visita a Praga . 18 Dee residiu em
ganda virou-se após seu desastroso fracasso. 16 Possuía muitos contatos Trebona como hóspede de Villem Roãmberk, até 1589, quando regres-
na Boêmia; e, segundo poderia parecer, talvez tivesse sido através de sou à Inglaterra. Villem Rozrnberk era o irmão mais velho de Peter,
seus esforços persuasivos que os rebeldes da Boêmia foram influencia- que foi amigo de Anhalt e que herdara as propriedades em Trebona
dos para oferecerem a coroa a Frederico. A figura de Anhalt repre- após a morte de seu irmão . 19 Dada a tendência da mente de Anhalt
sentava uma influência importante e dominadora durante os anos em e a natureza de seus interesses, é evidente que teria sido atingido
que a aventura do povo da Boêmia estava evoluindo para seu clímax, pelas influências de Dee. De mais a mais, é provável que as idéias e
e portanto é indispensável levar em consideração a natureza dos inte- perspectivas emanadas originalmente de Dee - o filósofo inglês e
resses desse homem, e a natureza de suas ligações na Boêmia. elisabetano - tenham sido empregadas por Anhalt ao fortalecer a
imagem do Eleitor Palatino na Boêmia, como uma pessoa que dispunha
Teologicamente falando, Christian de Anhalt era um calvinista
entusiasta, mas como muitos outros príncipes protestantes alemães da
r de recursos maravilhosos, devido à influência inglesa em sua retaguarda.
época viu-se profundamente envolvido nos movimentos paracelsistas e A ascendência de Dee estivera difundindo-se, muito anteriormente,
místicos. Ele era o patrono de Oswald Croll, cabalista, paracelsista e da Boêmia para a Alemanha. Segundo os comentários sobre Dee, feitos
alquimista, e suas relações na Boêmia eram de caráter semelhante. por Elias Ashmole em seu T heatrum Chemicum Britannicum (1652).
Era amigo íntimo de Peter Wok de Rosenberg 17 ou Roãmberk, um a viagem de Dee pela Alemanha em 1589, ao regressar da Boêmia para
opulento nobre da Boêmia com imensas propriedades nas imediações a Inglaterra, foi um tanto sensacional. Ele passou perto daqueles
de Trebona ao sul daquele país, um liberal da antiga escola rodolfiana, territórios que, vinte e cinco anos mais tarde, deveriam ser o cenário
e um patrono da alquimia e do ocultismo. da explosão do movimento rosa-cruciano . O Landgrave de Hesse
Os contatos de Anhalt com pessoas da Boêmia eram de um gênero apresentou seus cumprimentos a Dee, que por sua vez "presenteou-o
que poderiam levá-lo a ingressar na esfera de uma extraordinária cor- com doze cavalos húngaros que comprara em Praga para sua viagem". 26
rente de influências oriundas da Inglaterra, e que tinham surgido com Por ocasião dessa etapa em sua viagem para a Inglaterra, Dee também
a visita à Boêmia de John Dee e de seu companheiro Edward Kelley. entrou em contato com seu discípulo Edward Dyer (um dos amigos
Como é sabido, Dee e Kel1ey encontravam-se em Praga em 1583, quan- mais íntimos de Philip Sidney) que estava seguindo para a Dinamarca
do o primeiro tentou despertar o interesse do Imperador Rodolfo II para como embaixador, e que "no ano anterior estivera em Trebona e
seu misticismo imperialista de grande alcance e seu vasto círculo de es- levara cartas do Doutor (Dee ) para a Rainha Elisabete". 21 Dee deve
tudos. A natureza do trabalho de Dee, atualmente, é melhor conhecida ter causado uma forte impressão nessas duas pessoas acima meneio-
através do recente livro da autoria de Peter French. Dee, cuja influência 'nadas, como sendo um homem muitíssimo erudito e alguém represen-
na Inglaterra fora tão intensamente importante, e que tinha sido o pro- tando o centro de grandes negócios.
fessor de Philip Sidney e seus amigos, tivera a oportunidade de formar Ashmole afirma isso em 27 de junho de 1589 quando, em Bremen,
um grupo de adeptos na Boêmia, embora, por enquanto, tenhamos Dee recebeu a visita do "famoso filósofo hermético ou alquímico, Dr.
poucos meios para estudar o assunto. O centro principal das influências Henricus Khunrath, de Hamburgo". 22 A influência de Dee é um fato
evidente na extraordinária obra de Khunrath (co Anfiteatro da Sabe-
16. Os jornais apreendidos em Heidelberg após a captura da cidade, em
1622, foram publicados como pretendendo demonstrar o caráter perigoso das ati- 18 . Peter French, John Dee. pp. 121 e 55 .
vidades de Anbalt. A publicação desses jornais chamados "Chancelaria de Anhalt" 19 . Um material recente e valioso sobre a família Roãmberk e seus contatos
foi projetada para afastar os protestantes alemães de Frederico. Consultar Cam- com .Dee, encontrar-se-á disponível no próximo livro de Robert Evans sobre I
bridge Modem History, lU, pp. 802-9; David Ogg, Europe in lhe Seoenteentb corte de Rodolfo H.
Century, Londres, 1943, pp. 126 e ss,
20. Elias Ashmole, Tbeatrum Cbemicum Britannicum, Londres, 1652 (fae-
17. "Desde 1606 {Anhalt} permanecera em continuo contato com Peter Wok símile reeditado, ed, Al1en Debus, Johnson Reprint Corp ., 1%7), pp. 482·3 .
de Rosenberg": Claus-Peter Clasen, Tbe Palatinate in European History, p. 23. 21 . uu; p. 483.
Clasen julga provável que foi Anhalt quem sugeriu o povo da Boêmia a escolher
Frederico como Rei daquele pais. 22. Ibid.

60
61
doria Eterna" (Fig. 10b), publicada em Hanover, em 1609. 23 "Mo- alcançar um profundo discernimento da natureza e a visão de um
nas" - o símbolo de Dee, um emblema complexo por ele explicado mundo divino para além da natureza.
em seu livro Monas Hieroglyphica (Fig. 10a) (publicado em 1564 Ela também poderia servir como manifestação visual dos temas
com uma dedicatória ao Imperador Maximiliano II), tão significativo principais dos manifestos rosa-crucianos, Magia, Cabala e Alquimia,
pela sua forma peculiar da filosofia alquímica - pode ser observada unidos numa concepção profundamente religiosa, que abrangia um
numa das ilustrações do "Amphiteatre", e tanto a Monas de sua auto- enfoque religioso de todas as ciências dos números.
ria, quanto seus Aphorisms estão mencionados no texto de Khunrath. 24 Portanto, deveríamos procurar uma influência de John Dee nos
O "Anfiteatro" forma um elo entre a filosofia influenciada pôr Dee manifestos rosa-crucianos? Sim, deveríamos, e sua influência deve ser
e a filosofia dos manifestos rosa-crucianos. Na obra de Khunrath neles encontrada sem sombra de dúvida. Farei agora uma breve expo-
deparamo-nos com a fraseologia característica dos manifestos, a ênfase sição relativa às descobertas que serão desenvolvidas mais detalhada-
permanente sobre o macrocosmo e o microcosmo, a insistência sobre mente nos capítulos subseqüentes.
a Magia, a Cabala e a Alquimia, como que combinando-se para criar
O segundo manifesto rosa-cruciano, a Confessio de 1615, foi publi-
uma filosofia religiosa que promete um novo alvorecer para a huma-
cado com um opúsculo em latim, chamado "Uma Breve Consideração
nidade. da Mais Secreta Filosofia". 25 Esta "Breve Consideração" é baseada na
As gravuras simbólicas no "O Anfiteatro da Sabedoria Eterna" Monas hieroglypbica, de John Dee, e grande parte dela consta, palavra
são dignas de um estudo, como uma introdução visual à linguagem por palavra, de citações da Monas. Essa dissertação está associada indis-
figurada e à filosofia que encontraremos nos manifestos rosa-crucianos. soluvelmente ao manifesto rosa-cruciano que o sucedeu, a Conjessio.
Exceto no título, a palavra "Anfiteatro" não aparece nesse trabalho, E a Conjessio está indissoluvelmente vinculada ao primeiro manifesto,
e podemos apenas supor que Khunrath com esse título deve ter tido a Fama, de 1614, cujos tópicos nela se repetem. Assim, a "mais
em mente algum pensamento de um sistema oculto de memória, atra- secreta filosofia" por trás dos manifestos era a filosofia de John Dee,
vés do qual ele estava apresentando suas idéias visualmente. Uma das conforme sintetizada em sua Monas hieroglyphica. 26
gravuras mostra uma grande caverna (Fíg. 11), com inscrições nas Além disso, a obra Cbemical Wedding, de 1616, da autoria de
paredes, através das quais os adeptos de alguma experiência espiritual johann Valentin Andreae - na qual ele ofereceu a manifestação ale-
estão se dirigindo para uma luz. Isso também pode ter sugerido uma górica e romântica dos assuntos dos manifestos - tem, na página do
linguagem figurada na Fama rosa-cruciana. E a gravura de um alqui- título, a "monas", o símbolo de Dee, que é repetido no texto (Fig.
mista religioso (Fig. 2) é sugestiva tanto do ponto de vista de John 19a ), ao lado do poema com o qual inicia a alegoria. 27
Dee como dos manifestos rosa-crucianos. À esquerda, um homem
numa atitude de profunda adoração está ajoelhado na frente de Conseqüentemente, não pode haver dúvidas de que deveríamos
um altar, no qual constam símbolos cabalísticos e geométricos. À considerar o movimento 'oculto sob as três publicações rosa-crucianas,
direita, vê-se um grande forno com todo o aparelhamento para o tra- como sendo definitivamente proveniente de john Dee. Sua influência
balho de um alquimista. No centro, instrumentos musicais estão empi- poderia ter entrado na Alemanha vinda da Inglaterra com os amigos
lhados sobre uma mesa. E a composição no conjunto está num ball, ingleses do Eleitor Palatino, e poderia ter-se expandido da Boêmia.
desenhada com toda a perícia de um perspectivista moderno, demons- onde Dee propagara a sua missão inspiradora nos anos anteriores.
trando o conhecimento daquelas artes matemáticas, que se harmoniza- Por que deveriam essas influências ter sido anunciadas desse modo
vam com a arquitetura da Renascença. Essa gravura é uma demonstra- estranho, através de sua difusão nas publicações rosa-crucianas? Como
ção visual do tipo de concepções que john Dee sintetizou em sua uma tentativa para responder a essa pergunta - sobre a qual os capí-
Monas hieroglyphica, uma combinação de disciplinas cabalística, alquí- tulos subseqüentes fornecerão mais evidência - deve ser lembrado
mica e matemática, por meio das quais o adepto acreditava que poderia
25. Ver mais adiante, no Apêndice, p. 293 (título em latim).
23. H. Khunratb, Amphitheatrum Sapientiae Aeternae, Hanover, 1609. Esta 26. Ver mais adiante, pp. 69·71.
não foi a primeira edição.
27. Ver mais adiante, p, 92.
24. Ampbitbeatrum, p. 6.
~ .,
62
..
~-...,...oI_-------

que as publicações rosa-crucianas pertencem aos movimentos em torno


do Eleitor Palatino, movimentos esses que o estavam fortalecendo para
a aventura da Boêmia. O principal espírito estimulante, por trás desses
movimentos, foi Christian de Anhalt, cujas ligações na Boêmia perten-
ciam diretamente aos drculos nos quais a influência Dee teria sido
exercida e fomentada.
A sugestão estranhamente excitante é que o movimento rosa-cru-
ciano, na Alemanha, representou o resultado retardado da missão de CAPÍTULO IV
Dee na Boêmia vinte anos antes, cujas influências vieram a ser asso-
ciadas com o Eleitor Palatino. Sendo Cavaleiro da Jarreteira, Frederico
herdara o culto da cavalaria inglesa inerente ao movimento, e como OS MANIFESTOS ROSA-CRUCIANOS
chefe da União Protestante ele representava as alianças que Anhalt
estava tentando fortalecer na Alemanha. Do ponto de vista político- A Fama e a Coniessio (títulos abreviados pelos quais continuare-
religioso, o Eleitor Palatino atingira uma situação preparada nos anos mos a nos referir aos dois manifestos rosa-crucianos) estão no Apên-
anteriores, e surgira como o líder político-religioso destinado a resolver dice deste livro, onde o leitor poderá verificar os prognósticos emocio-
os problemas do século. Durante os anos de 1614 a 1619 - aqueles nantes de um alvorecer do iluminismo e o estranho romance acerca de
do entusiasmo veemente originado pelos manifestos - o Eleitor Pala- "Christian Rosenkreutz" e sua Irmandade, no qual tais prognósticos
tino e sua esposa reinavam em Heidelberg, e Christian de Anhalt estão envolvidos. Nem todos os problemas referentes aos manifestos
estava elaborando a aventura do povo da Boêmia. podem ser analisados neste capítulo, porém encontram-se distribuídos
E essa aventura não era simplesmente um esforço político anti- por todo o livro. Por exemplo, um longo trecho extraído de um estudo
-habsburgo, Era a manifestação de um movimento religioso que durante italiano, traduzido para' o alemão e publicado com a Fama, será dei-
muitos anos estivera concentrando energias, alimentado por influências xado para ser discutido no Capítulo X, que estuda os liberais ita-
secretas verificadas na Europa, um movimento para solucionar os pro- lianos e o movimento rosa-cruciano alemão. 1 Uma bibliografia sim-
blemas religiosos, paralelamente com as normas místicas sugeridas plificada dos manifestos será encontrada também no Apêndice, com
pelas influências hermética e cabalística. uma análise de outros materiais publicados com a Fama e a Conjessio.
A estranha atmosfera mística, na qual Frederico e sua esposa fo- E isso é importante, pois os leitores das primeiras edições de tais do-
ram envolvidos pelos entusiastas, pode ser verificada numa gravura cumentos tiveram a oportunidade de ler, com eles, outros elementos
alemã, publicada em 1613 (Fig. 13). Frederico e Elisabete estão co- que os ajudaram a interpretar o seu alcance.
bertos por raios provenientes do Nome Divino acima de suas cabeças. Embora a mais antiga e conhecida edição impressa do primeiro
Essa gravura deve ter sido a primeira das que circularam na Alemanha, manifesto rosa-cruciano, a Fama, não tenha aparecido senão em 1614,
relacionadas com o assunto Frederico-Elisabete; muitas outras deveriam o documento estivera circulando em manuscrito antes dessa data, pois
seguir-se. A história de Frederico nessas estampas proporciona maior em 1612 foi publicada uma resposta ao mesmo, dada por um certo
diretriz de evidência no que se refere à sua ligação com os movimentos Adam Haselmayer.P Ele afirma ter visto um manuscrito da Fama no
contemporâneos. Tirol em 1610, e consta ter sido visto também um manuscrito em
Praga em 1613. A «resposta" de Haselmayer está reeditada no volume
que contém a primeira edição impressa da Fama. Haselmayer Inclui- se
entre os "Cristãos das Igrejas Evangélicas", aclama com entusiasmo a
sabedoria nuministà da Fama, e faz algumas observações violentamente
antijesuíticas. Faz alusão à expectativa muito difundida de mudanças
1. Consultar mais adiante, pp. 175-85.
2. Consultar o Apêndice, p. 292.

64
radicais após a morte do Imperador Rodolfo lI, ocorrida em 1612. tureza". 4 Se os eruditos se unissem, poderiam agora coligir do Livro
Esta "resposta" de Haselmayer, no final do volume que contém a pri- da Natureza um método perfeito de todas as artes. Mas a difusão desta
meira edição impressa da Fama} está relacionada com um prefácio no nova luz e da verdade é impedida por aqueles que não abdicarão de
início do volume, onde se declara que os jesuítas capturaram Hasel- seus antigos caminhos, estando atados à autoridade limitada de Aristó-
maver devido à sua resposta favorável ao apelo da Fama} e fizeram teles e Galeno.
com que ele fosse preso e acorrentado numa galera. Esse prefácio
Após o início da peroração, o leitor é apresentado ao misterioso
sugere que o manifesto rosa-cruciano esteja apresentando uma altern~­
Rosencreutz, fundador de "nossa Fraternidade" que por muito tempo
tiva para a Ordem Jesuíta, uma irmandade baseada de um modo mais
trabalhou para essa reforma geral. O Irmão Rosencreutz, um "homem
real nos ensinamentos de Jesus. Tanto a resposta de Haselmayer como
iluminado", fora um grande viajante, principalmente no Oriente, onde
o prefácio sobre ele são muito o~scuros, e - com t~nta literatura os homens sábios estão querendo transmitir seus conhecimentos. O
rosa-cruciana - não podemos, aSSIm, ter certeza se tais documentos mesmo deveria ser feito hoje na Alemanha, onde não existe escassez
devam ser levados a sério. Entretanto, a intenção geral está clara, a de homens eruditos, "mágicos, cabalistas, médicos e filósofos", que
de associar o primeiro manifesto rosa-cruciano com a propaganda anti- deveriam colaborar mutuamente. O viajante aprendeu a "Magia e a
jesuítica. Cabala" do Oriente, e soube como empregá-la para intensificar sua
Esse ponto também está demonstrado muito claramen~e na epí- própria fé e ingressar na "harmonia do mundo inteiro, maravilhosa-
grafe do volume que contém a Fama, e que pode ser traduzida da se- mente marcada em todas as épocas". 5
guinte maneira: 3
O Irmão R. C. seguiu depois para a Espanha, a fim de lá revelar,
Reforma Geral e Universal de todo o vasto mundo; juntamente bem como aos eruditos da Europa, aquilo que aprendera. Demonstrou
como "todas as imperfeições da Igreja e toda a Pbilosopbia Moralis"
com a Fama Fraternitatis da Louvável Fraternidade da Rosa-Cruz,
deviam ser corrigidas. Ele ordenou uma nova axiomata, pela qual
escrita para todos os Soberanos Eruditos da Europa; també~
uma curta réplica enviada por Herr Haselmayer, pela qual fOI todas as coisas deviam ser restauradas; todavia, foi escarnecido. Seus
ouvintes receavam "que seus nomes importantes pudessem ser dimi-
preso pelos jesuítas e acorrentado numa galera.
nuídos caso agora começassem a aprender, e reconhecessem seus inú-
Tornem isto manifesto e comuniquem a todos os corações sin- meros 'erros de tantos anos". Rosencreutz ficou muito decepcionado,
ceros. Impresso em Cassel por Wilhelm Wessel, 1614. uma vez que se prontificava a partilhar seus conh~cimentos com .os
eruditos "se ao menos tivessem tentado escrever a axiomata, verdadeira
Essa epígrafe envolve todo o conteúdo do volume, o qual inclui e infalível, apartados de todas as faculdades, ciências, artes e d~ toda
um extrato de um escritor italiano relativo à reforma geral (a ser a natureza". Caso isto fosse feito, poder-se-ia formar uma SOCIedade
analisada num capítulo mais adiante), à Fama e à resposta de Hasel- na Europa, que enriqueceria os governantes com os seus conhecim~tos
mayer. Assim, o leitor da primeira edição da Fama a lê num contexto e a todos aconselharia. Naqueles dias, o mundo estava prenhe de con-
que evidencia a tendência antijesuítica do manifesto, que não é tão fusões e esforçava-se por produzir homens que surgissem dessa nebu-
óbvia, de acordo com a Fama quando analisada em si mesma. , Um desses foi Teofrasto (ParaceIso), que estava "bem assen-
losidade.
A Fama começa com um chamado de atenção emocionante - um tado na harmonia supramencionada", embora não fosse "de nossa
toque de trombeta que deveria ecoar por toda a Alemanha, e daí irra- Fraternidade". 6
diar-se através da Europa. Nesses últimos tempos, Deus nos revelara
Enquanto isso, o Irmão R. C. voltara para a Alemanha, ciente das
um conhecimento mais perfeito de seu Filho, Jesus Cristo, e da Natu-
reza. Ele elevara os homens, dotara-os com grande sabedoria, para que alterações vindouras e das controvérsias perigosas. (Segundo a Cos-
restaurassem todas as artes e as tornassem perfeitas, para que o homem [essio, o Irmão R. C. nascera em 1378 e viveu 106 anos; portanto,
"pudesse compreender a sua própria nobreza, por que é chamado mi-
4. Consultar o Apêndice, p. 295.
crocosmo, e até que ponto o seu conhecimento se estende pela Na-
5. Consultar o Apêndice, p. 297.
3. Sobre o titulo em alemão, consultar o Apêndice, p. 293. 6. Consultar o Apêndice, pp. 297-299.

66
supõe-se que sua vida e seu trabalho ocorreram nos séculos XIV e desejo e a expectativa de outros, pois é conveniente que antes do
XV). Construiu uma casa, onde meditava sobre a sua filosofia, des-
nascer do sol deva irromper a Aurora, ou alguma claridade ou luz
pendendo muito tempo com o estudo da matemática, e fez muitos -, divina no céu." 9 A data na qual a caverna foi descoberta está indicada
instrumentos. Pôs-se a desejar a reforma ainda mais fervorosamente e { indiretamente como sendo 1604.
a organizar os ajudantes, começando apenas com três. "Foi desse modo t.

que começou a F~atedrnlidadfe. dfa Rosda-Cruz primeiro, só rCI.otma mqa~g~~aO


pessoas, e por mero e as 01 orma a a l.;mguagern e. es~ "
I Esse documento muito singular, a Fama Praternitatis, parece, por-
tanto, relatar através da alegoria da caverna abobadada, a descoberta
com um grande dicionário, por eles ainda hoje usado diariamente para I de uma nova, ou antes, recente e antiga filosofia, fundamentalmente
exaltar e glorificar a Deus ." 7 alquímica e relacionada com a medicina e a cura, mas também interes-
sada em números e geometria, e com a produção de prodígios mecâ-
O escritor da Fama continua então a relatar a história imaginária nicos. Ela representa não apenas um adiantamento para a cultura,
dessa Ordem imaginéria;" que aqui sumariamos, porquanto o relato mas sobretudo uma iluminação de natureza religiosa e espiritual.
completo se acha no Apêndice. A Ordem c,r:sceu em número.s .. Pos- Essa nova filosofia está prestes a ser revelada ao mundo e provocará
suíam um prédio como sede, a Casa do Espírito S~nto.. ~ua atlvlda.de uma reforma geral. Os agentes míticos de sua difusão são os Irmãos
principal era a assistência aos doe.otes, mas também vlaJ~vam m.U1to R. C. Estes constam como sendo cristãos alemães, piedosamente evan-
a fim de adquirir e difundir conhecimentos .. O~servavam seis preceitos, gélicos. A sua fé religiosa parece intimamente associada com a sua
o primeiro dos quais era não ter outra profissão salvo aquela de t;a~ar filosofia alquímica, que. nada tem a ver com "a fabricação do ouro
dos enfermos e "a título gratuito". Não deviam usar qualquer habito ímpia e execrável", pois as riquezas oferecidas pelo Pai Rosencreutz
característico,' porém vestir-se segundo a moda do país em que se são espirituais; "ele não se rejubila por não poder fabricar ouro, mas
encontravam. Deviam reunir-se uma vez por ano em sua Casa do sente-se satisfeito por ver o Céu aberto e os anjos de Deus subindo
Espírito Santo. e descendo, e seu nome escnto . no L'ivro da Vida"
1 a . 10
O primeiro da Fraternidade a morrer, faleceu na Inglaterra. Muitos
A intensa emoção provocada pela Fama com sua narrativa da
outros Irmãos sucederam aos Irmãos originais, e recentemente a Irman-
Ordem Rosa-cruciana aumentou ainda mais no ano seguinte com a
dade, ou Fraternidade, adquiriu um novo sentido, através da. desco-
berta da caverna abobadada, na qual o Irmão Rosencreutz foi enter- publicação do segundo manifesto rosa-cr.udan?, a Conf~ss~o, que CO?"
rado. A porta para essa caverna foi milagrosamen:e achada, e ela tinuou a falar dos Irmãos R. C., de sua filosofia e sua missao, e parecia
simboliza a abertura de uma porta na Europa, por muitos unensamente ser uma continuação da Fama, à qual se referia constantemente. 11 Foi
desejada. publicada no mesmo lugar da Fama e editada pelo mesmo editor. Ao
contrário da Fama, escrita em alemão, bem como todos os outros con-
A descrição dessa caverna é uma característica fundamental da lenda
teúdos do volume no qual é publicada, a primeira edição de Conjessio
sobre Rosencreutz. A luz solar jamais brilhava nela, contudo era ilu-
está em latim conforme está também a outra dissertação publicada
minada por um sol interno. Em seus muros estavam gravados os
nomes dos Irmãos e figuras geométricas; nela havia muitos tesouros, com ela. Portanto, poderia parecer que o volume de Confessio era
inclusive alguns dos trabalhos de Paracelso, sinetas maravilhosas, lan- uma continuação do de Fama} porém dedicado em latim a uma classe
ternas e "cantos artificiais". A Irmandade já possuía a sua "Rota" e mais culta, e com a intenção de oferecer alguma interpretação das
"o Livro M.". O túmulo de Rosencreutz situava-se embaixo do altar alegorias românticas do primeiro manifesto.
da caverna. A epígrafe latina da publicação, que contém a .primeira edição
A descoberta da caverna representa o sinal para a reforma geral; de Conjessio, pode ser traduzida em inglês como segue: 12
é a aurora precedendo o nascer do sol. "Sabemos ... que agora haverá
uma reforma geral, das coisas divinas e humanas, de acordo com nosso 9. Consultar o Apêndice, p, .307.
10. Consultar o Apêndice, p. 293.
7 . Consultar o Apêndice, p. 300. 11. Consultar o Apêndice, pp. 292.319.
8. Consultar o Apbdice, pp. 300 e 88. 12. Sobre a epígrafe em latim, consultar o Aptndic:e, p. 293.

68
U~~ ~reve Consideração da mais Secreta Filosofia escrita por
que faz diretamente citações das "monas hieroglyphicas" de Dee, subs-
Philip a Gab~lla, um estudante de filosofia, agora publicada pela titui "stella" por "monas" . Para 'Philip à Gabella' a monas transfor-
pnrnerra vez Junto com a Confissão da Irmandade R. C. Editada ma-se numa estrela , e a "monas hieroglyphica" uma 'stela hierogly-
em Cassel por Wilhelm Wessel, editor do Mais Ilustre Prín- phica". Entretanto, esta interpretação poderia ter uma confirmação no
cipe, 1615. trabalho de Dee, no qual em sua última página uma mulher está segu-
(no verso da página da epígrafe) rando uma estrela, parecendo ter sido projetada como uma figura sin-
tetizando todo o trabalho.
"Deus te dê do orvalho do céu, e da exuberância da terra." A Consideratio breuis termina com uma oração em latim , num
Gênesis, 27. estilo de intensa piedade e inspiração, dirigida a Deus eterno e infi-
Evidentemente, os leitores pretendiam estudar a Consideratio nito, a Única força, a Única perfeição, no qual todas as coisas são
breuis, antes de chegar à Conjessio, e - conforme já mencionei - a Unas , e que com seu Filho e o Espírito Santo é Três em Um. A oração
Consideratio brevis está baseada na Monas bieroglypbica de John Dee. é uma reminiscência das orações de Dee, e sua presença no fim de uma
Nada se sabe acerca da identidade de "Philip à Gabella" (poderia ser versão da Monas, aproxima muito a Consideratio brevis da atmosfera
este um pseudônimo relativo à Cabala?), mas é certo ter sido ele um de Dee, de uma ardente piedade combinada com o esforço mago-cien-
estudante íntimo de Dee. tífico complexo.
A solução para essa origem é dada na citação, no verso da página A oração está assinada 'Philemon R. C.', isto é "Philemon Rosa-
da epígrafe, que transcrevi acima em linguagem bíblica, a qual eviden- Cruz", e no outro lado da página segue-se o prefácio para o leitor,
temente ele dá em latim : De rore caeli et pinguedine terrae det tibi assinado "Frater R . C." do segundo manifesto rosa-cruciano, a Con-
Deus. Este texto está inscrito na página da epígrafe da Monas biero- [essio, que vem logo depois.
glyphica de Dee (Fig . 1Oa ), na qual o tema do orvalho que desce Isso quer dizer que a Consideratio breuis, inspiração de Dee, com
(ros) unindo o céu e a terra, é ilustrado visualmente. sua oração , parece absolutamente semelhante ao manifesto rosa-crucia-
no, como uma parte integral do mesmo, revelando que a "mais secreta
A Consideratio brevis não é uma reprodução integral da Monas
filosofia" - base do movimento rosa-cruciano - era a filosofia de
de Dee, porém a cita literalmente a partir dos primeiros treze teoremas
do trabalho, entremeados com outros assuntos . São esses os teoremas John Dee , conforme explanada em sua Monas hieroglyphica.
nos quais Dee expõe a composição de seu emblema "monas", de que 1 Isso pode levar-nos a pensar novamente que a antiga teoria
modo ele contém os símbolos de todos os planetas, como absorve em
si mesmo o signo do zodíaco, Áries, representando o fogo, e portanto,
I! agora geralmente rejeitada - que atestava que o nome "rosa-cruciano"
não derivava de " Rosa" e "Cruz", mas de Ros (orvalho) e Crux,
processos alquímicos; como a cruz, debaixo dos símbolos do sol e da í tendo um significado alquímico associado ao orvalho como sendo um
lua, representa os elementos, e como as diferentes disposições das t (suposto) solvente do ouro, e com a cruz como equivalente da luz. !li
.f
quatro lin~as dessa cruz podem mudá-la num signo para três e quatro, Sem tentar penetrar nesses mistérios alquírnicos, pode-se dizer que a
para o triângulo e o quadrado, solucionando assim um grande mis- descoberta da íntima associação da Monas de Dee e a sua epígrafe
tério. 13 O~ diagramas oferecidos por 'Philip à Gabella', alguns dos sobre o "orvalho do céu", com o manifesto rosa-cruciano, não pode
quais não constam da Monas de Dee, podem realmente auxiliar na dar algum apoio à teoria da Ros-Crux.
explicação de seu hieróglifo . Evidentemente, era a própria "monas"
que mais interessava a 'Philip à Gabella', o signo misterioso e suas Passemos agora - conforme os pesquisadores originais preten-
partes, que poderia conter todos os céus e os elementos, as sagradas diam fazê-lo - do exame da Considera/ia brevis, observando sua
figuras do triângulo, o círculo, o quadrado, e a cruz. Por estranho que
pareça, ele jamais emprega a palavra "monas", e nas passagens em 14. Para uma exposição da teoria de que "Rosa-cruciano" deriva de Ros '
(orvalho) e Crux, consultar a anotação de James Crossley em Diary and Corres-
pon4ence.. 01,Dr. [obn Worthington, Chetham Socíety, 1847. I. pp. 239-40 n, A
13. Consultar C. H. josten, "Uma Tradução da 'Monas Hieroglyphica' ", de teoria nao e aceita por R. F. Gould, History 01 Freemuonry, ed. H. PooIe.
lohn Dee, Ambix, XII (1964), pp. 155-65. 1951, II, p. 67.

70, 11
ínti~a dependência. com a Monas hieroglyphica de Dee, ao estudo do cercaram Adão no Paraíso - seja derramado sobre a humanidade. No-
manifesto rosa-crUClano - a Conjessio. vas estrelas surgirão nas constelações Serpentária e Cisne 17 que repre-
A comunicação inicial que a Conjessio faz ao leitor, contém esta sentam os indícios da vinda dessas coisas.
~spantosa dec1araç~o: "Assim, como agora , todos nós sem exceção , O segundo manifesto repete a mensagem do primeiro, embora
livremente, com firmeza e sem remorso, chamamos de Antícristo o com maior fervor e intensidade. Um enérgico aviso profético e apoca-
Papa de Roma, - o que no passado era considerado pecado mortal líptico soa através dele : o fim está próximo, aparecerão novas estrelas
e fazia com que os homens em todos os países fossem condenados à prenunciando milagres, a grande reforma deve ser um milênio, um
morte - da mesma forma sabemos com certeza que virá o tempo em regresso ao estado de Adão no Paraíso .
que o que conservamos em segredo, abrir-se-á francamente, e em voz Na época, esses avisos despertaram um interesse exaltado, e mui-
alta será anunciado e confessado ante o mundo inteiro ." 15 tos esforçaram.-se por entrar em contato com os Irmãos R.C. por'
As frases iniciais da Confessio 16 associam-se intimamente com a
r
i, cartas, apelos Impressos e panfletos.!" Uma torrente de trabalhos im-
Fama . Seja o que for que o leitor tenha ouvido a respeito da Fraterni- pressos irrompe desses manifestos, respondendo ao convite feito por
dade, apregoada pelo som da trombeta da Fama, não deve ser acre- aqueles que os escreveram, a fim de se comunicarem e cooperarem no
ditado precipitadamente ou rejeitado - diz o autor da Conjessio. ]eová, trabalho da Ordem. Contudo, os apelos ficaram sem resposta. Os Ir-
vendo o mundo ruir, está novamente levando-o às suas origens. Em mãos - se existiam - pareciam invisíveis e impérvios às solicitações
sua Fama, os Irmãos revelaram a natureza de sua Ordem, e é evidente para se darem a conhecer. Este mistério não diminuiu o interesse pelos
que ela não pode ser suspeita de heresia . Relativamente à reforma da fabulosos Irmãos, mas ao contrário, intensificou-o.
filosofia, o programa é o mesmo como na Fama . Os eruditos da Eu- Das várias escolas do pensamento sobre o mistério rosa-cruciano,
ropa são mais uma vez exortados a responder ao convite fraternal da hoje em dia podemos certamente excluir os fundamentalistas, as pes-
Ordem, e a cooperar com seus esforços. soas que acreditam na verdade literal da história de Christian Rosen-
A Conjessio mostra-se entusiasta quanto aos profundos conheci- creutz e a sua Irmandade. A seguir, existem os mote] adores , pessoas
mentos do Pai R.C., cujas meditações referentes a todos os assuntos acreditando que tudo não passava de um embuste. A invisibilidade dos
excogitados desde a criação, propagados pela habilidade humana, ou Irmãos, a sua aparente recusa de dar aos seus discípulos qualquer sinal
através do serviço dos anjos ou espíritos, são tão perfeitas que, se todos de sua existência, naturalmente estimula tal opinião.
os outros conhecimentos se perdessem, seria possível reedifícar, unica- O leitor desses manifestos, meditando sobre os mesmos, surpre-
mente com elas, a morada da verdade. Não seria agradável subjugar a ende-se pelo contraste entre a seriedade do estilo de sua mensagem
fome, a pobreza, a enfermidade e a velhice, e conhecer todos os países religiosa e filosófica, e o caráter fantasioso com o qual a mensagem é
da terra com seus segredos, ler num só livro tudo o que se contém apresentada. Um movimento religioso usando a alquimia para intensi-
em todos eles? "Como seria agradável que pudésseis cantar, que pu- ficar a sua piedade evangélica e incluindo um extenso programa de
désseis, em vez de pedras, tirar das rochas pérolas e pedras preciosas, pesquisa e reforma nas ciências, certamente representa um fenômeno
em vez de animais ferozes, espíritos . .. " interessante. Que as ciências sejam concebidas em termos hermético-
cabalístico-renascentistas como relacionadas à "Magia" e à "Cabala", é
Quando a Trombeta da Ordem soar com todo seu c1angor, essas
coisas, que no momento são apenas sussurradas como enigmas, surgi-
17. As "novas estrelas" nas constelações Serpentãria e Cisne, que apare-
rão e encherão o mundo, e a tirania do Papa será abatida. O mundo ceram em 1604, foram comentadas por Johannes Kepler, o qual julgou que elas
tem assistido a muitas alterações desde o nascimento do Pai R.c., e , anunciavam mudanças políticas e religiosas. A obra de Kepler, D~ S/~1J1l nOf)(I in
muitas mais ainda estão por vir . Mas antes do fim, Deus permitirá que pede Serpentarii; De Stella incognita Cygni foi publicada em Praga, 1606 (reedí-
um grande influxo da verdade, da lu~ .~_g,e.. .di.gnidade - iguais às que
_.- " ': ção Kepler, Gesammelte Werke, ed. M. Caspar, 1938, I, pp. 146 e ss.).
John Donne também se interessou profundamente por essas novas estrelas;

,
"

cons.ultar C. M. Coffín, [obn Donne Ilnd lhe New PbiJosophy. Columbia Unif
15. . Citado na tradução de Thomas Vaughan. Consultar Fame and Contes- versity Press, 1937, pp. 123 e ss.
sion, ed. Pryce, p. 33.
, 18. Consultar mais adiante. pp. 128 e IS. . "-'
16. Consultar o Apêndice, p. 316. ,


./

72 ~~
·:~~f."

..~
natural para a época , e até para o milenarismo - que o novo alvorecer
é concebido como um período de luz e adiantamento precedendo o fim
do mundo - não é inconsistente com o modo de pensar evoluído da-
quela época. A Grande Reforma das ciências, de Francis Bacon, tem
um toque milenar, conforme Paolo Rossi demonstrou. 19 A história de
Christian Rosencreutz, de seus Irmãos R.C. e da abertura da caverna
mágica contendo seu túmulo, não foi cogitada para ser considerada
como textualmente verdadeira pelos idealizadores dos manifestos, que
evidentemente estavam tirando proveito das lendas do tesouro enter-
rado, milagrosamente redescoberto, tão freqüentes na tradição alquí-
mica. Existe uma ampla evidência, nos próp rios textos, de que a his-
tória era uma alegoria ou ficção. A abertura da porta da caverna abo-
badada, simboliza a abertura de uma porta na Europa. A caverna é
iluminada por um sol interior, sugerindo que a entrada na mesma
deveria representar uma experiência íntima, sendo igual à caverna atra-
vés da qual brilha a luz, segundo o Amphitheatrum Sapientiae, de
Khunrath (Fig. 11).
Todavia, na época e desde então, muitos leitores ingênuos acre-
ditaram literalmente na história. A mais recente ilustração crítica sobre
o mistério rosa-cruciano enfatizou que o próprio Johann Valentin An- I

dreae descreveu-o como fictício, como uma comédia, ou mesmo "uma


pilhéria". Evidentemente Andreae encontrava-se por trás das cenas de
todo esse movimento ao qual ele se refere com freqüência em seus
)
f
inúmeros trabalhos (outros que não o seu Chemical Wedding) que se í
situa quase como um terceiro manifesto rosa-cruciano). A palavra latina
por ele usada mais vezes, mencionando o movimento rosa-cruciano, é
ludibrium. Sobre os manifestos emprega expressões como "o ludibrium
da Fama irreal", ou "o ludibrium da fictícia Irmandade rosa-cruciana".
Paul Arnold traduziu ludibrium em francês, como "une [arce" e decla-
rou que o próprio Andreae nos comunicara que todo esse assunto era
uma pilhéria. 20 Charles Webster julga que as frases sobre o ludibrium
são "termos derrisórios". 21
É verdade que por esses termos, Andreae estava tentando disso-
ciar-se do mistério rosa-cruciano - que na ocasião ele o descrevera
como perigoso - embora eu não pense que essa seja toda a explicação
do termo ludibrium. Um ludibrium podia ser uma peça teatral, uma

19. Paolo Rossi, Francis Bacon, From Magic to Science, Londres, 1968, pp.
128 e ss.
20. Paul Arnold, Histoire des Rose-Croix, Paris, 1935, p. 50.
21. Charles Webster, "Macaria: Samuel Hartlib and the Great Reformation",
Acta Comeniana, 26 (l970), p. 149.

....
....
74
ficção cômica, e - conforme será comentado mais detalhada mente
num próximo capítulo - Andreae julgava o teatro como sendo uma
influência moral e educativa. 22 A dramaticidade do movimento rosa-
cruciano, conforme revelada nos comentários e alusões feitas por ele,
é um dos aspectos mais fascinantes de todo esse assunto. Antecipo-me
a mencionar isto aqui, a fim de sugerir que a Fama e a Coniessio como
um ludibriam, seja o que for que isso possa significar (e devemos
manter nossas mentes esclarecidas sobre isso, até que o assunto seja
mais estudado) estimula-nos a pensar que embora os idealizadores dos
manifestos não tenham pretendido que a história de Christian Rosen-
creutz fosse considerada literalmente verdadeira, talvez pudesse ser ver-
dade em algum outro sentido, que ela fosse uma divina comédia, ou
alguma apresentação de um complexo movimento religioso e filosófi-
co, exercendo um domínio direto sobre os tempos.
Estamos numa situação mais firme do que a dos primeiros inves-
tigadores, por sabermos que a maior influência sobre eles foi a Monas
hieroglypbica, de John Dee. Esta foi a "mais secreta filosofia" por
trás deles . A alegoria da abertura da caverna abobadada e a revelação
das maravilhas nela contidas representariam a liberação de um novo
influxo de influências que derivavam fundamentalmente e principal-
mente, embora não inteiramente, de Dee - o qual se encarregara de
uma missão, na década dos mil quinhentos e oitenta, num ambiente
conhecido por Christian de Anhalt, organizador do movimento para
fazer de Frederico, o Eleitor Palatino, Rei da Boêmia. Creio que os
manifestos representam os elementos místicos básicos na retaguarda
desse movimento; um movimento intensamente religioso, hermético,
mágico, alquímico e reformador, igual àquele que Dee propagartr na
Boêmia. Não devemos superenfatizar esse aspecto dos manifestos, pois
muitas outras influências poderiam também ter desempenhado aí sua
parte; contudo, é de suma importância levarmos em consideração o
movimento contemporâneo originado por Frederico com os manifestos,
e o fato de que a influência de Dee sobre eles (do que não pode haver
dúvidas) adapta-se à sugestão de que eles poderiam pertencer ao amo
biente daquele movimento.
12 - O Cabalista-Alquímico. Essas hipóteses podem ser extraordinariamente rebatidas com uma
Ampbitbeatrum Sapientiae Aeternae, outra evidência. Os inimigos do movimento podem fornecer-nos 8
por H. Khunrath . mais valiosa informação, e é para eles que nos voltamos agora para
uma orientação.
h' ,1!m deles foi Andreas Libavius, um nome muito conhecido na
IstOrIa Química antiga. Libavius foi um daqueles "químicos" at6
22. Consultar adiante, pp. 186 e S8.

76 77
certo ponto influenciados pelos novos ensinamentos de Paracelso, no mentos cabalísticos nele constantes, e que ele desaprovava. 25 Por con-
sentido de que aceitava o emprego, na medicina, de medicamentos quí- seguinte, ele certamente seria capaz de reconhecer a influência da Mo-
micos recentes, defendido por Paracelso, enquanto que teoricamente nas de Dee nos manifestos rosa-crucianos, o que confirmaria a sua
aderia aos ensinamentos tradicionais aristotélicos e galênicos e rejei- reprovação por eles.
tava o misticismo paracelsista. 23 Aristóteles e Galeno aparecem hon-
Também é significativo Libavius freqüentemente mencionar Os-
rosamente colocados na página-título do principal trabalho de Libavius, wald Croll em seus opúsculos contra os rosa-crucianos, parecendo asso-
a Alcbymia, publicado em Frankfurt, 1596. Os manifestos rosa-cru- ciar suas doutrinas àquelas de Croll, com o qual também não se afina.
cianos atacam Aristóteles e Galeno, como uma característica da anti- Cita e reprova o prefácio de Croll em sua Basilica, perto do início de
quada rigidez de espírito. Se Libavius sentira-se pessoalmente alvejado suas "observações bem-intencionadas".
nesse ataque por paracelsistas entusiastas do ensinamento tradicional,
não podemos dizer mas certamente a sua crítica aos manifestos rosa- Oswald Croll, ou Crollius, era um médico paracelsista que, ao
crucianos torna-se antagônica àqueles "químicos" que, iguais ao ímpi? contrário de Libavius, adotou não apenas os medicamentos químicos
Paracelso, pouco diferem dos mãgicos ..Ele ,a~usa ~s a~:ores dos man~­ paracelsistas, mas também todo o "background" do pensamento de Pa-
festos de não compreen?erem a alqU1mI~ seria e CI~~t1fIC~, que. substi- racelso, rejeitando Aristóteles e Galeno, e aderindo entusiasticamente
tuem por especulações incultas, e propoe as .suas b~m-mten~I?nadas ao misticismo, à magia e teorias harmônicas de ensinamento paracel-
sista como um todo. A Basilica Chymica de Croll, publicado em Frank-
observações" como instruções, através das quais .deverIa!? ~dm.ItIr ,s~us
erros, por terem recebido uma base da verdadeira alquimia científica, furt, 1609, constantemente cita com reverência Hermes Trismegistus,
e textos herméticos, estando essa obra imbuída de respeito pelos neo-
Libavius criticou a Fama e a Conjessio rosa-crucíanas em vários tra- platônicos da Renascença, tais como Pico della Mirandola. Seu tema
balhos' o mais importante deles é chamado "Well-meaning Observa- são as harmonias mágicas do macrocosmo e microcosmo, e todo o seu
tions on the Fama and Conjession of the Brotherhood of the Rosicru- ambiente é semelhante ao que deveria ter sido altamente compatível
cians" publicado em Frankfurt, 1616. 24 Baseando-se nos textos dos com o dos autores dos manifestos rosa-crucianos. Outro trabalho de
dois manifestos, Libavius faz sérias objeções a eles nos terrenos cientí- Croll publicado em Praga, 1608, expõe a correlação paracelsista dos
fico, político e religioso. Libavius é firmemente contra as teorias da mundos, grande e pequeno, através da doutrina das "assinaturas"
harmonia macromicrocósmica, contra a "Magia" e a "Cabala", contra astrais. 26
Hermes Trismegistus (de cujas supostas obras faz muitas citações),
contra Agripa e Thritemius - resumindo, ele é contra a tradição re- Por conseguinte, temos em Libavius e Croll representantes do
nascentista conforme transmitida aos autores dos manifestos R.C. e no "químico" ou alquimista, que é por .tradiçã? .aristot~co. e galênico
espírito dos quais eles interpretam Paracelso. Libavius considera tudo em sua teoria, contrastando com o radical, mIStlCO, alquimista paracel-
isso como subversivo da tradição aristotélica e galênica, como de fato sista. Libavius classifica os manifestos rosa-crucianos como pertencendo,
era, e critica firmemente os manifestos, por partirem da ortodoxia. com Croll, a uma escola heterodoxa de noções alquímicas.
É digno de nota que num trabalho publicado anos antes, em 1594, Ora, conforme mencionei antes, 27 Oswald CroU esteve em con-
Libavius atacara a Monas bieroglvpbíca, de Dee, mencionando os ele- tato com Christian de Anhalt, como seu médico. Sua Basilica é dedica-
da a ele, com o privilégio do Imperador Rodolfo n. Sua De :ig~atura
23. Consultar J. R. Partington, History of Cbemistrv, Londres, 1961, II,
rerum é dedicada a Peter Wok de Rozmberk, o nobre da Boêmia que
pp. 244 e 5S. Libavius não rejeitou a própria alquimia; consultar john Read, era aliado íntimo de Anhalt e confederado, e cujo irmão fora o pro-
Prelude to Cbemistry, Londres, 1936, pp. 213-21. ' tetor de Dee na Boêmia. Associando os ensinamentos dos manifestos
24, A. Libavius, Wohlmeinendes Bedencken der Fama und Conjession der rosa-crucianos àqueles de Croll, Libavius estaria portanto insinuando
Brud,rschaft des Rosencreutzes, Frankfurt, 1616. Outros trabalhos em latim de
Libavius, contra os manifestos rosa-crucianos, estão impressos no Appendix ne- , 25. A. Libavius, Tractatus duo de Pbysici, Frankfurt, 1594, pp. 46-71; cf.
cessaria syntagmatis arcanorum cbymicorum, Frankfurt, 1615, reeditados em Frank- '. F. Secret, Les Kabbalistes Cbrétiens de la Renaissance, Paris, 1964, p. 138.
fun, 1661, com um título ligeiramente diferente. Consultar Ian Macphail, Alcbe-
my and tbe Occult, A Catalogue of Books and Manuscripts [rom the Collecüon 26. Oswald Croll, De signaturis intemis reno«, Praga, 1608.
Df Paul anâ Mary Mellon, Yale, 1968, I, p. 71. 27. Ver anteriormente, p. 49.

78
que os manifestos pertenciam a um ambiente compatível com Anhalt,
um ambiente no qual as influências de john Dee mesclavam-se com
o tempo e o local admitem não ser apenas possível, porém pro-
as de CrolI . vável que o movimento rosa-cruciano na ocasião em que saiu do prelo,
estava associado com o Eleitor Palatino. Ele se difundiu nos anos em
E evidentemente, Anhalt era o espírito propulsor por trás da tra- que Frederico estava reinando no Palatinado e aos poucos se desenvol-
dição "ativista" do Protestantismo Alemão, a tradição que estivera à via para a sua grande aventura na Boêmia. O espírito propulsor desta
procura de líderes durante toda a primeira metade do século, e que no aventura, Andreae, está situado em Württemberg; os manifestos são
momento (na ocasião os manifestos rosa-crucianos estavam realmente publicados em CasseI. Württemberg e Hesse-Cassel eram os dois prin-
impressos), decidira-se por Frederico V, o Eleitor Pala tino, como o cipados protestantes vizinhos do Palatinado, e profundamente interes-
líder destinado a chefiar o movimento e levá-lo à vitória . sados no que nele acontecia. O centro emocional e imaginativo, por
Em aditamento às suas críticas sobre a concepção dos manifestos eles visado naqueles anos, era Heidelberg - Heide1berg, com seus jar-
rosa-crucianos, Libavius também manifestou sua reprovação às opiniões dins extraordinários e seu príncipe Leão.
políticas deles, principalmente ao comentar a passagem da Fama) em Existem outros inimigos, mais implacáveis e cruéis do que Liba-
que os autores afirmam reconhecer a autoridade do Império, mas esta- vius, que agora podem ser indicados para sustentar essa interpretação.
rem aguardando alterações, que secundarão com uma cooperação As gravuras satíricas contra Frederico, que circularam após sua
secreta. 28 derrota, demonstram um grande conhecimento desse movimento, por
parte de seus adversários, que as usaram para caricaturá-lo. 30 Eviden-
Na Politia reconhecemos o Império Romano e Quartas» Monar- . temente estas caricaturas emanaram de uma fonte e representaram uma
chiam para nosso chefe Christian, se bem que saibamos quais campanha de propaganda cuidadosamente preparada, destinada a desa-
alterações estejam ao alcance, e de bom grado as transmitiríamos creditar e ridicularizar o derrotado ex-Rei da Boêmia. Espécimes dessas
de todo coração a ou tros homens eruditos e piedosos. .. auxilia- caricaturas já foram reproduzidos neste livro, um deles de Frederico e
remos com uma cooperação secreta a essa boa causa, conforme Elisabete num jardim, dando para o Inferno (Fig. 7b), outras mos-
Deus permita ou nos apresente obstáculos ... trando Frederico com uma das pernas sem a Jarreteira (Fig, 9), re-
presentando o tema de sua destituição dessa Ordem. Outras caricatu-
Nesse trecho, Libavius vê uma alusão a algum "Leão Paracelsista", que
se unirá ao Turco, procurando destruir o "Rornische Reich" (Império ras empregaram o tópico de animais, seguindo uma tradição medieval
Romano da nação alemã) e substituí-lo por um governo universal, ba- de política da linguagem figurada-animal, e ressaltando as fortunas da
seado em fórmulas mágicas. 29 De fato, ele está associando essa passa- Aguia habsburga e do Leão Palatino; por exemplo, uma roda com a
gem da Fama com os prognósticos das mudanças no Império, na "res- triunfante Aguia habsburga no alto e o derrotado Leão Palatino embaixo,
posta" de Haselmayer, que foi publicada com a Fama) e na qual a a ·roda representando o "Romisches Reich", que tinha virado para rein-
tendência antijesuítica dos políticos paracelsistas encontra-se muito tegrar a Ãguia habsburga e expulsar o Leão Palatino para fora da Boê-
explícita. . mia (Fig. 14a). Na introdução para a sua coleção de reproduções de algu-
mas dessas sátiras, E. A. Beller salienta que a Aguia é sempre o Impe-
Na ocasião em que os manifestos foram publicados, um Leão,
rador Fernando, e o Leão, Frederico do Palatinado, e a moral sendo
líder dos movimentos, favorecido por Anhalt, materializara-se em Fre-
sempre o fracasso da tentativa herege do último, para interferir no
derico V, do Palatinado, cujo emblema heráldico, como todo o mundo
Império. Algumas dessas sátiras respondem de um modo muito instru-
sabia, era um leão.
tivo aos tópicos dos manifestos rosa-crucianos.
28. Consultar o Apêndice, p. 307.
30. Publicações contendo reproduções da caricatura são ÚlI'ical",es 01 IH
29. Libavius, Wob/meinendes Bedencken, pp. 194-5, 205. Libavius associa "Winter King" 01 Bobemia, de E. A. Beller, Oxford, 1928; E. A. Beller, Pro/Hl"
o "Leão Paracelsista" aos turcos, através do que supõe terem sido os ensinamen- ganda in Germany during. tbe Thirty Years War , Princeton, 1940; H. Wascher.
tos maometanos absorvidos por "Christian Rosencreutz" em Damasco. A acusação Das deutscbe illustrierte F/ugb/all) Dresden, 1955; Mirjam Bohatcova, l"t"'""
de ter-se aliado aos turcos foi feita contra Frederico e Anhalt; um desses aliados der Sehieksale; Emblematdrudee 1)0", Anfang des Dreissig-Jiihrige1l K,iel.es. ~.
foi Bethlen Gabor, um maometano convertido. 1966.

80 .1
,......--------- --- .~~-----

o manifesto da Fama, que prenuncia grandes mudanças no Im-


pério, termina com as palavras "sob a sombra de tuas asas, Jeová".
Elas estão citadas em latim no final do texto alemão - sub umbra
alarum tuarum, Jehova. 31 Trata-se de uma citação solicitando proteção,
e que surge várias vezes deste modo nos Salmos. - "Protege-me tal
qual a menina de teus olhos, esconde-me sob a sombra de tuas asas"
( 17, VIII) - ou, "Sê misericordioso para comigo, pois minha alma
acredita em ti; sim, na sombra de tuas asas farei meu refúgio, até que
essas calamidades tenham sido superadas" (57, I). Chegando ao final
da Fama, as palavras latinas dessa jaculatória piedosa enfatizam o xa-
ráter religioso do tópico dos manifestos. Elas são como um selo no
fim do documento.
Essa epígrafe, na Fama, pode ser vista, manifestada visualmente
em algumas publicações rosa-crucianas. Por exemplo, na página-título
de Speculum Sopbicum Rbodo-Stauroticum de 1618, no alto estão as
asas, cercando o Nome de Deus em hebraico, circundadas por raios,
e em cima um pergaminho com a divisa sub umbra alarum tuarum.
(Fig. 15b)
A epígrafe rosa-cruciana corresponde uma das gravuras satíricas
contra Frederico, cuja inspiração é a Águia Triunfante ("Triumphi-
render Adler") (Fig. 15a). Triunfantemente empoleirada no alto- de
uma coluna, a Aguia habsburga estende suas asas, enquanto um Leão
frustrado, jaz por terra prostrado. A Águia tomou o lugar de Jeová,
pois o Nome de Deus aparece por cima dela e verte raios divinos sobre
a mesma. Uma modificação das palavras da divisa rosa-crucíana inflige
ao país a lição dessa propaganda violenta: SUB UMBRA ALARUM
MEARUM FLOREBIT REGNUN BOHEMIAE: "Sob a sombra de
minhas asas o reino da Boêmia florescerá."
À esquerda encontram-se os aterrorizados e derrotados defenso-
res de Frederico, entre os quais "Anhalt", olhando por um telescópio
para a Ãguia Triunfante.
A gravura pode ser usada como uma demonstração de que o ma-
nifesto rosa-cruciano, chamado Fama, continha alusões político-religio-
sas aos objetivos de Frederico e seus defensores, principalmente Anhalt,
e que aqueles manifestos e o movimento pertenciam ao contexto do
movimento originado de Frederico, a fim de mudar a Boêmia da Águia
habsburga para o Leão Palatino. Os olhos penetrantes da Aguia per-
ceberam na Fama a alusão, que Libavius também descobrira anos antes.
Numa outra dessas sátiras anti-Frederico (Fig, 14b), a Aguia
,
habsburga está triunfante sobre a figura prostrada de Frederico e tí-
13 - O Casamento do Eleitor Palatino com a Princesa Elisabete.
31. Consultar o Apêndice, p. 309.
i
82
83
\

L
...

14 - (a) A Aguia Habsburga e o Leão Palatino na Roda Girat6ria da Fortuna.


(b) A Aguia Habsburga triunfante sobre Frederico prostrado. 15 - (a) Sob as asas da Aguía Habsburga Triunfante.
(b) Sob as Asas de jeovã _ Speculum SophiculII RbodoSl.tI'Q/iaIItI,
de Theophilus Schweighardt.
84
rando de sua cabeça a coroa da Boêmia. Os defensores estão colocan-
do novas penas nas asas da Águia, que estão rotuladas com os nomes
das cidades do Palatinado: Oppenheim, e assim por diante. Esta cena
pode ser uma réplica às palavras da Conjessio - o segundo manifesto
rosa-cruciano - relativas a "algumas penas da águia" ainda "encon-
tram-se em nosso caminho", e "estorvando nosso objetivo". 32 Nela,
em vez de a Águia perder as penas devido à ação de Frederico, aque-
las tiradas do Palatinado derrotado estão sendo acrescentadas às suas
asas.
Mais importante ainda, como uma evidência de que seus inimi-
gos consideravam Frederico associado ao movimento rosa-cruciano, é a
gravura estranha, que o mostra de pé sobre um Y maiúsculo (Fig. 16),
e as alusões nela contidas que estão explicadas em versos embaixo da
mesma. O Y representa o Y pitagórico, emblema da escolha entre dois
caminhos; um, o mau caminho levando à ruína, o outro, significando
a escolha virtuosa. Frederico revela-se nesta sátira escolhendo o mau
caminho que o levou à desgraça. Inseridos no contexto vêem-se os
quadros das batalhas que Frederico perdeu, começando à esquerda com
a da Montanha Branca, e do lado de fora, Praga. O Y assenta-se sobre
um Z, que está apoiado numa bola precariamente mantida na posição,
por três defensores de Frederico, sendo um deles Christian de Bruns-
wick, que aparece só com um braço (perdera recentemente um deles
na batalha). Brunswick era conhecido por sua fidelidade fidalga à Eli-
sabete Stuart, ex-Rainha da Boêmia, sendo um formidável batalhador
ao lado de Frederico. À direita, encontra-se Saturno em pé, com a
foice e a ampulheta.
O texto embaixo narra toda a história sobre a tentativa de Fre-
derico para usurpar a coroa da Boêmia em poder de Fernando, e seu
fracasso. No final, esses versos se referem a uma "alta sociedade dos
rosa-crucianos", à qual associam a aventura de Frederico. Essas pala-
vras resultam num relato de uma reforma do mundo, a que o povo da
Boêmia associou com o Eleitor Palatino. O trecho principal consta
abaixo, conforme tradução em inglês feita por E. A. Beller: 33
The round wooden ball (the ball under the Y) represents
[the world
To which the Bohemians married the Palatine,
They expected to teach the world,
And to reform ali schools, churches, and law courts,
And to bring everything to the state
-----
16 - Frederico sobre o Y Pitag6rico. 32. Consultar o Apêndice, p. 316.
33. BeBer, Caricatures, p. 62.

86 87
In which Adam found it,
And even to my state, Saturn's, When a gnat draws oH the whole sea,
And this was caIled the golden time. And the Rhine runs from Cologne to Strasburg,
To that end the high society of the Rosicrucians Then the Palatine's politics
Wish to turn a11 the mountains into gold for their own Will bring concord to the Empire,
[good. * And union to the Church
And will strengthen alI religion. *
Eis a reforma geral do mundo anunciada nos manifestos rosa-cru-
cianos, descrita como uma reforma universal, que o povo da Boêmia Mediante a sátira inimiga verificamos a extensão da "política do Pa-
esperava realizar por intermédio do Eleitor Palatino. Conquanto en- la!i?o", como u~ movimento religioso para reformar a Igreja e o Irn-
volvendo reformas categóricas na educação, igreja e justiça, essa refor- peno. "Su.a te?tatlva de curta duração, de desafiar o domínio habsburgo
ma geral contém uma riqueza de linguagem milenar; fará o mundo na Boeml~, unha por trás dela ampla perspectiva, histórica e européia.
retroceder ao estado em que Adão o encontrou, que também era a Os planejadores dessas caricaturas estavam muito bem informados
idade áurea de Saturno. Assim, na Confessio - o segundo manifesto quanto às idéias ocultas sob o movimento de Frederico' conheciam a
rosa-cruciano - é considerado como um prenúncio de "um grande sua ligação com o movimento rosa-cruciano ; e sem dúvida sabiam da
influxo da verdade e da luz", igual ao que cercava Adão no Paraíso, ligação d~ ú~timo com as .i~éias de john Dee. A Monas hieroglyphica,
e que Deus concederá antes do fim do mundo. E nos versos da gra- cuja influência pudemos divisar por trás. dos manifestos rosa-crucianos
é iniciada com um diagrama do Y pitagórico, e o adapta para dois ca-
vura, esse milênio, essa volta à idade áurea de Adão e Saturno é con-
side~ada como assessorada pela "alta sociedade dos rosa-crucianos", que
min?os possí~e~s de ~,erem tomados p<;>r um governante; um, o amplo
desejam transformar todas as montanhas em ouro. Esta sátira associa caminho ~os. ur?nos.; o outro,. o c.amInho reto e estreito dos "adepti"
ou dos rnístrcos Inspirados. Teria sido este talvez o motivo para mos-
todo o movimento com um tipo "rosa-cruciano" de alquimia, pois o
trar o derrotado Frederico sobre um Y, a fim de salientar o fracasso
ouro nela referido não é o metal-ouro da transmutação alquímica, po-
de um movimento emanado da influência de Dee na Boêmia?
rém o ouro espiritual da idade áurea e um retorno à inocência adâmica.
Os inimigos que compõem essa gravura satírica, juntamente com O relato satírico e desdenhoso do movimento de Frederico e seus
seus versos, ofereceram uma evidência inestimável quanto ao aspecto objetivos, oferecido por essa gravura-caricata espalhada por seus inimi-
político-religioso da mensagem contida nos manifestos rosa-crucianos. gos, se despojado de seu estilo satírico e lido com um sentido positivo
Era uma mensagem apocalíptica da reforma universal conduzindo ao dá uma impressão de Frederico como um líder reformador religioso, o
milênio, e associada com os movimentos verificados em torno do Elei- qual se adapta bem ao estilo visionário e reformador dos manifestos
tor Palatino, que deveriam eventualmente resultar na aventura da rosa-crucíanos.
Boêmia. O povo da Boêmia que "casou o Palatino" com o mundo
esperava que a reforma universal fosse o resultado. Os versos subse-
qüentes descrevem com um sarcasmo audacioso os ardentes propósitos
da "política do Pala tino". 34
When a mouse gives birth to an elephant,
And a euckoo to a pheasant,
-----
* . A bola redonda .de madeira (aq~ela sob o Y) representa o mundo / Com
o qual o povo da Boêmia cll;SOu. o Palatino, / Esperavam instruir o universo, / E
reformar todas as ~olas, Igrejas e cortes de justiça, / E converter tudo ao
estado / Em .que A?ao o encontrou, / E. a~é o meu, o de Saturno, / E a isto
chamou-se ~ Idade aurea. / Com este objetivo a alta sociedade dos rosa-crucia- * Quando um camundongo gera um elefante, / E um cuco um f&ido I
nos / Deseja transformar as montanhas em ouro para seu próprio bem Quando um pernilongo exaure todo o oceano, / E o Reno corre de Cor&u.
34. lbid. . . para Es~rasburgo, / Então a política do Pala tino / Resultará na harmonia pera
o Império, / E na união para a Igreja / E fortalecerá todas as religiõe$ .

88 89 .
remos depois a examinar mais detidamente esse livr~ de emblemas.
Aqui estamos apenas olhando atentamente para as VIstas do castelo
de Heidelberg nele contidas, que são autênticas por terem sido grava-
das por Matthieu Merian , que foi o gravador do notável panorama do
castelo e seus jardins no Horto Palatinus, e portanto muito familiari-
zado com esse assunto.
O primeiro emblema (Fig. 18a) mostra uma vista do castelo de
CAPÍTULO V Heidelberg; à esquerda, vê-se a cidade, com a cúspide da Igreja do
Espírito Santo. No primeiro plano está um leão "observando enquanto
dorme", segundo está explicado nos versos franceses por baixo do
o CASAMENTO ALQUÍMICO DE emblema. Ele é o Príncipe (o Eleitor Palatino) zelando pela segurança
CHRISTIAN ROSENCREUTZ de seus súditos. Outros emblemas (Fig. 18b) mostram os Leões Pala-
tinos em atitude guerreira num segundo plano; essas vistas proporcio-
Nos anos que precederam a guerra, o castelo de Heidelberg nam uma boa idéia da "ala inglesa" com suas inúmeras janelas. Uma
residência do Leão Pala tino e de sua cônjuge real - deve ter sido objeto outra vista mais distante do castelo e da cidade mostra no primeiro
de intenso .sentimento romântico e emoção religiosa, ou de ódio e plano um leão segurando um livro, com a divisa Semper Apertus
reprovação intensos. Seja qual for o ponto de vista, Heidelberg não (Fig. 18c).
poderia ser ignorado. As benfeitorias feitas por De Caus, aumentando Logo, tornar-se-á patente por que essas vistas do castelo de Hei-
e modernizando o prédio, os prodígios de suas estátuas mecânicas, os delberg, com o seu Leão como proprietário, representam uma introdu-
órgãos hidráulicos e outras maravilhas da ciência moderna da magia ção útil a este capítulo.
eram por si mesmos o bastante para provocar assombro. E os habitan- The Chemical Wedding 01 Cbristian Rosencreutz é a tradução in-
tes do castelo, extraordinários. Elisabete Stuart tinha uma personali- glesa do título do extraordinário romance alemão, ou novela, ou fic-
dade enérgica e notável (não nos esqueçamos de que sua avó era Mary, ção, publicado em Estrasburgo em 1616 . 2 É o terceiro item na série
a Rainha dos Escoceses). Os observadores parecem ter ficado impres- que desencadeou o entusiasmo rosa-cruciano. A série foi publicada
sionados com o relacionamento afetuoso entre ela e seu marido. Essa anualmente durante três anos: a Fama em 1614, a Conjessio em 1615
era uma corte muito diferente das outras cortes da Alemanha, e nela e o Wedding em 1616, cada uma aumentando a emoção sobre o mis-
a vida devia ter-se assemelhado a uma novela romântica, bem como à tério rosa-crucíano. E o indício histórico que descobrimos na Fama e
decoração fantástica na qual era estruturada. Observando atentamente na Conjessio também pode cooperar para o esclarecimento do Wedding,
a gravura do castelo de Heide1berg e seus jardins, tornamos a imaginar que é um romance sobre um marido e uma mulher que vivem num
qual teria sido a influência na Alemanha da união do Tâmisa e do maravilhoso castelo repleto de coisas prodigiosas e imagens de leões,
Reno, e daquelas núpcias reais celebradas com tanto esplendor na mas ao mesmo tempo é uma alegoria de processos alquímicos interpre-
corte jacobita. tados simbolicamente como uma experiência do enlace místico da alma
Outras vistas de Heidelberg podem ser apreciadas nos emblemas,
aqui reproduzidos pela primeira vez. São oriundos de um livreto "Em- 2. Cbymiscbe Hocbzeit Cbristiani Rozencreutz. Anna 1459. Estrasburgo,
blemas Ético-Políticos". Os emblemas de julius Gulielmus Zincgreff 1616 (Lazarus Zetzner). No livro não consta o nome do autor, que se supõe ser
(Fig. 17), publicados por Johann Theodore De Bry, com gravuras de o próprio "Christian Rosencreutz". O texto alemão foi publicado em Berlim em
1913, editado por F. Maack. Uma tradução inglesa por Ezechiel Foxcroft foi pu-
Matthieu Merian, em 1619, e dedicados ao Eleitor Palatino." Volta- blicada em 1690, com o titulo: Tbe Hermetic Romance, or The Chymical W~d­
ding, escrito em Alto-Holandês por C. R, traduzido por E. Foxeroft, Londres,
1. Uma centena de Emblemas Etico-políticos por Julius Gulielmus Zinc- 1690. A tradução de Foxcroft está reeditada no Tbe Real Ris/ory of tbe Rosi-
greff, gravados por Matthieu Merian, 1619, publicados por Johann Theodore De crucians de A. E. Waite, Londres, 1887, pp. 99 e 5S; e na A Cb,ir/úzn Rosn-
Bry (Emblema/um Etbico-Políticorum Centuria lulii Gulielmi Zin,cgre!ii, C~elo kreutz An/hology, ed. Paul M. Allen, RudoU Steiner Publications, Nova Yofk.
Mal/h. Meriani, MDCXIX, Apud Iobem Tbeodor de Bry). A respeito desse livro 1968, pp. (fi e ss.
de emblemas, consultar adiante, p. 103.

90 '1
- experiência esta sofrida por Christian Rosencreutz, através de visões Esse símbolo é uma versão grosseiramente delineada da "monas
a ele transmitidas no castelo, através de representações dramáticas, de hieroglyphica" de John Dee, conforme C. H. Josten observou." Apa-
cerimônias de iniciação nas ordens de cavalaria, e através da sociedade rentemente, apresentam o Cbemical Wedding em linha com o segundo
na corte do castelo. ~ manifesto rosa-cruciano, a Conjessio, que aparecera no ano anterior
I
A narrativa está dividida em Sete Dias, igual ao Livro do Gê- precedido por um trabalho baseado na Monas hieroglyphica. O fato de
nese. O Primeiro Dia inicia-se com o autor preparando-se na Véspera Weddíng começar com o símbolo de Dee na margem é, portanto, ou-
da Páscoa para a sua Comunhão Pascal. Sentado a uma mesa, conver- tra indicação muito forte de que a "filosofia mais secreta", implícita
sava com seu Criador numa humilde oração, e refletia nos numerosos nas publicações rosa-crucianas, era aquela de john Dee.
mistérios, "vários dos quais o Pai das Luzes me revelara". De repente Christian Rosencreutz apressou-se a aceitar o convite para as Núp-
irrompeu uma tempestade e no meio dela apareceu uma visão gloriosa, cias Reais. Vestiu um casaco de linho branco, amarrou uma fita ver-
cujos trajes eram da cor do céu, recamados de estrelas. Na sua mão melha a tiracolo, e - "em meu chapéu prendi quatro rosas verme-
direita carregava uma trombeta dourada, na qual estava gravado um lhas". Foram esses seus trajes para o casamento. E assim, a veste ver-
Nome que o narrador (Christian Rosencreutz) pôde ler, porém, não melha e branca e as rosas vermelhas no chapéu são os símbolos carac-
ousou revelar. Na mão esquerda tinha um pacote de cartas em todos terísticos de Christian Rosencreutz através da História.
os idiomas, que ele deveria levar para todos os países. Suas grandes O Segundo Dia vai encontrar o herói viajando para o local do
asas estavam cobertas de olhos, e ao subir no espaço, emitiu um som Casamento, rejubilando-se com a Natureza. Ao chegar a um portal numa
estridente na sua trombeta. colina, o porteiro pede-lhe a sua Carta-Convite - que, felizmente, ele
Essa figura possui atributos da figura alegórica clássica da Fama, não se esquecera de levar - e pergunta-lhe também quem era. Res-
com uma trombeta e asas cobertas de olhos. 3 Por conseguinte, ela se pondeu que era "um irmão da Rósea Cruz Rubra". No portão seguinte
relaciona com os sons da trombeta do primeiro manifesto rosa-crucia- encontrava-se acorrentado um Leão que rugia, mas o porteiro afastou-o
no, a Fama. e o herói passou. Os sinos começaram a badalar no castelo; o porteiro
disse-lhe que se apressasse ou ficaria atrasado. Aflito, acelerou o passo
Quando Rosencreutz abriu a carta, que a visao com a trombeta acompanhando a claridade do lampião que iluminava uma Virgem, e
entregara-lhe, descobriu que continha versos, começando assim: entrou pelo portão antes que o fechassem.
This day, this day, this, this, O castelo era realmente grandioso, com muitas salas e escadarias,
The Royal Wedding is. e parecia estar repleto. Alguns convidados não passavam de fanfarrões
Art thou thereto by birth inclined, maçantes. Um deles declarou ter ouvido os movimentos das esferas;
um outro podia perceber as Idéias de Platão; um terceiro podia contar
And unto joy of God design'd?
os átomos de Demócrito. Estavam agitados, mas sossegaram ao ouvi-
Then may'st thou to the mountain tend
rem o som solene de uma música no saguão. "Eram instrumentos de
Whereon three stately Temples stand, corda tocando simultaneamente numa tal harmonia, que esqueci de mim
And there see alI from end to end. * mesmo." Quando a música cessou, ouviu-se o som das trombetas. e uma
Na margem, ao lado do poema há um símbolo (Fig. 19a); embaixo, f Virgem entrou anunciando que a Noiva e o Noivo não estavam longe.
as palavras "Sponsus" e "Sponsa", o recém-casado e a recém-casada. O No Terceiro Dia, o sol rompeu brilhante e glorioso, o toque das
mesmo símbolo invertido também aparece na página-título do livro. trombetas soou estridente para reunir os convidados, e a Virgem tor-
nou a aparecer. Trouxeram balanças, e todos foram pesados, incluindo
). Consultar Cesare Ripa, lconologia, ed. Roma, 1603, pp. 142 e 55. j vários Imperadores que estavam presentes. Algumas pessoas saíram-se
• Este dia, este dia, este, este, / O das Núpcias Reais é este. / Estás pro- :. l
4. Consultar C. H. Josten, "A Translation of Jobo Dee's Monas Hiero-
penso para ele por nascimento, / E destinado para a alegria de Deus? / Portanto,
possas tu tender para a montanha / Na qual três Templos se erguem majesto-
sos, / E de lá ver tudo de ponta a ponta.
f glyphíca", com uma introdução, Ambix, XII (1964), p. 98. Na traduçio .inaleaa
de Foxcroft do Weeding, está indicada na margem uma representaçio do . .
bolo de Dee ao lado do poema (Fig. 19·b).

92
muito mal dessa pesagem. Quando, porém, Christian Rosencreutz foi
This time full of love
pesado, tendo-se conservado muito humilde, e parecendo menos im-
portante do que os outros, um dos pajens gritou - "É ele!" - A
Does our joy much approve. *
Virgem avistou as rosas em seu chapéu, pedindo-lhe para que as desse. Esse canto profetizava que milhares surgiriam dessa umao.
No banquete suntuoso realizado nesse dia, Rosencreutz ocupou O enredo da comédia extremamente simples era entrecortado por
um lugar de honra, sentado a uma mesa coberta de veludo vermelho, uma exibição de símbolos bíblicos; "os quatro animais de Daniel")
luxuosamente posta com copos de ouro e prata. Os pajens presentea- ou a "imagem de Nabucodonosor", apareceram sugerindo que nelas a
ram os comensais com "o Tosão de Ouro" e o "Leão Voador", pedin- audiência devia ver alusões à profecia.
do-lhes para que os usassem. Estes emblemas representavam a Ordem Em seguida todos voltaram ao castelo, no qual mais tarde ocorreu
que o Noivo estava outorgando-lhes "e que sancionaria com cerimô- um episódio singular e descrito com detalhes emocionantes. No meio
nias adequadas". . do silêncio e profunda tristeza trouxeram seis esquifes. Neles jaziam
Mais tarde, os convidados passaram o tempo examinando as pre- seis pessoas que tinham sido decapitadas. Mais tarde, no mesmo dia,
ciosidades do castelo, o chafariz com o Leão nos jardins, os inúmeros os cadáveres ressuscitaram.
quadros, a biblioteca nobre, o suntuoso mecanismo do relógio indican- No Quinto dia, o narrador estava explorando os compartimentos
do os movimentos da esfera celeste, o globo imenso com todas as par- subterrâneos do castelo, quando chegou a uma porta na qual havia
tes do mundo. Ao terminar o dia, a Virgem levou-os a uma sala na uma inscrição misteriosa. Ao ser aberta, deparou-se com uma caverna
qual não havia nada luxuoso, apenas alguns pequenos e estranhos abobadada, na qual a luz do sol não podia penetrar; estava iluminada
livros de orações. A Rainha encontrava-se presente, e todos se ajoelha- por imensos carbúnculos. No meio dela havia um sepulcro guarnecido
ram e rezaram para que esse casamento contribuísse para a glória de com várias imagens e inscrições estranhas.
Deus e o benefício de todos. O Sexto Dia foi ocupado por um trabalho árduo, com fornos e
No Quarto Dia, Rosencreutz saiu cedo para refrescar-se na fonte outros aparelhos alquímicos. Os alquimistas conseguiam criar vida, na
do jardim, na qual descobriu que 9 Leão, em vez de uma espada, tinha forma do Pássaro alquímico. Os processos relativos à criação e aos
ao seu lado uma tabuleta com uma inscrição começando com as pala- cuidados dispensados a esse Pássaro estão descritos de modo espiri-
vras HERMES PRINCEPS. O principal acontecimento desse dia foi tuoso e jovial.
uma representação teatral na presença do Rei e da Rainha, assistida No Sétimo e Último Dia, o grupo de convidados reuniu-se na
por todos os convidados e o pessoal do castelo. praia, preparando-se para partir em suas doze embarcações, nas quais
adejavam bandeiras com os signos do zodíaco. A Virgem os informou
Essa "comédia alegre" foi apresentada por "artistas e estudantes"
de que eram agora "Cavaleiros da Pedra Dourada". Nas procissões
num "tablado ricamente mobiliado"; algumas pessoas na audiência
suntuosas que se seguiram, Christian Rosencreutz cavalgou com o Rei
"foram designadas para ocupar uma posição acima de tudo") mas o
- '.'cada um de nós usava uma insígnia imaculadamente branca com
resto delas ficou em pé "entre as colunas". A peça tinha sete atos. Um uma Cruz Vermelha". Mais uma vez Rosencreutz exibia seu sinal ca·
velho rei estando numa praia, encontrara um bebê numa arca trazida
racterístico - as rosas no chapéu. Um pajem leu em voz alta os pre-
pelas águas; junto havia uma carta explicando que o rei dos mouros ceitos da Ordem da Pedra Dourada, que eram:
capturara a criança em seu país. Nos atos seguintes o Mouro aparecia
e capturava o bebê, agora convertido numa jovem mulher; ela era salva 1. Vós, meus Senhores e Cavaleiros, devereis jurar que em nenhu-
pelo filho do velho rei e tornava-se sua noiva, mas caía novamente sob ma ocasião atribuireis a vossa Ordem seja ao Demônio ou ao
o jugo do Mouro. Finalmente voltava a ser salva, mas "um padre Espírito, mas somente a Deus, vosso Criador, e à Natureza, Sua
muito perverso" tinha que sair do caminho. Quando seu poder fosse serva.
rompido, o casamento poderia ser realizado. A noiva e o noivo apa-
lI. Que abominareis a devassidão, incontinência e impureza, e nio
reciam com todo esplendor e todas as pessoas exclamavam (( vivat
sponsus, vivat sponsa!", e com essa comédia congratulavam ao "nosso
Rei e Rainha". No final, todos se uniram num Canto de Amor:
r maculareis a vossa Ordem com tais vícios.
-I< Este momento cheio de amor / Justifica Doasa imensa aIoati•.
94
{ "
III. Que, com os vossos talentos, estareis preparados para auxiliar era associado a uma Ordem de irmãos benevolentes; no casamento,
todos os que são merecedores e deles necessitem. ele está associado a uma Ordem de cavalaria. Os Irmãos R.C. eram
IV. Que não desejais fazer uso desta honraria para ostentação pro- alquimistas espirituais; assim são os Cavaleiros da Pedra Dourada. As
fana e autoridade exaltada. atividades dos Irmãos R.C. eram simbolizadas pelos tesouros em sua
V. Que não desejareis viver mais tempo do que aquele prescrito caverna; outras similares são simbolizadas por aqueles contidos no cas-
por Deus. telo. Na realidade, o tema de uma caverna contendo um túmulo,
consta do Wedding, sendo certamente uma alusão à famosa caverna
Em seguida, e de acordo "com as cerimônias habituais, foram ins- abobadada da Fama: e o Casamento é iniciado com uma evocação da
tituídos Cavaleiros", o que foi sancionado numa pequena capela. E Fama dando o toque de chamada com a sua trombeta.
nesse ponto, o herói pendurou o seu tosão de ouro e seu chapéu (com Embora a Fama e a Conjessio possam não ter sido escritas pela
as rosas que nele havia); deixou-os ali para uma eterna comemoração, mesma mão que escreveu o Wedding, o intuito das alegorias nas três
escrevendo no local a sua divisa e nome: obras apresenta o sinal característico de três mentalidades trabalhando
de acordo, empenhando-se em transmitir ao mundo o seu mito sobre
Summa Scientia nihil Scire Christian Rosencreutz, uma figura benevolente, o centro das Irmanda-
Fr. CHRISTIANUS ROSENCREUTZ des e das Ordens.
Mas, qual teria sido a origem do nome? Por que "Christian Ro-
o Chemical Wedding é demasiadamente extenso para ser publi-
sencreutz"? Muitas são as sugestões feitas a respeito. A rosa é um
cado num apêndice, e o resumo dado acima deve ser suficiente para símbolo alquímíco: muitos tratados de alquimia têm o título Rosarium
oferecer uma impresão sobre a obra. ou jardim de rosas. É um símbolo da Virgem, e mais genericamente
Basicamente, é uma fantasia alquímica, usando a imagem funda- um símbolo religioso místico, seja na visão de Dante ou no Roman de
mental da fusão elementar, o casamento, a união do sponsus e da larose de Jean de Meung. Fontes de informações mais diretas e pes-
sponse, aludindo também ao assunto da morte, o nigredo, através do soais foram exploradas. Lutero usava uma rosa em seu emblema; os
qual os elementos devem passar no processo da transmutação. Os em- braços de Johann Valentin Andreae representavam uma cruz de S.
blemas alquímicos contemporâneos da escola de Michael Maier 5 po- André com rosas. 6
dem fornecer ilustrações visuais do casamento alquímico (Fig. 26a);
Os símbolos são ambivalentes por sua própria natureza, e todas
a morte alquímica dos leões e virgens representam, ou dissimulam, as
operações dos "químicos". O fundamento alquímico da narração está essas sugestões podem ser levadas em consideração e mantidas na ilus-
tração. Porém, voltemos a rememorar a época em que Johann Valentin
ressaltado pelo fato de ser dedicado um Dia ao trabalho alquímico.
Andreae era um jovem estudante em Tübingen, e escreveu a primeira
A alegoria, evidentemente, também é espiritual, caracterizando versão de seu Cbemical Wedding, sob a vibrante influência da inves-
processos de regeneração e modificação dentro da alma. A alquimia tidura do Duque de Württemberg na Ordem da Jarreteíra, e da visita
sempre usou desses duplos sentidos, mas neste caso, o tópico da alqui- dos atores ingleses. Teria sido a visão de Württemberg, ocultista e
mia espiritual, sendo introduzido pela figura da "monas" de Dee, é alquimista, resplandecente em seus trajes cerimoniais da jarreteira,
de um tipo especialmente sutil . Na precisão quase matemática dos a origem de Christian Rosencreutz, o fidalgo alemão que pertence a
movimentos das imagens, podem até mesmo representar ecos muito uma Ordem, cujos símbolos são uma cruz e rosas vermelhas, emblemas
aproximados da teoria da Monas hieroglyphica, que um estudo ulterior de S. Jorge da Inglaterra e da Ordem da Jarreteira?
poderia ser capaz de evocar.
O Cbemical Wedding de 1616 contém os elementos do que podem
Após o nosso exame dos manifestos, no capítulo anterior, com- ter sido as primeiras impressões sob as quais Andreae escreveu sua
preender-se-á que o Wedding é apenas uma outra versão das alego- primeira versão da ' obra; versa sobre as magníficas festividades eeri-
rias da Fama e da Confessio. Nos manifestos, Christian Rosencreutz
6. A respeito de todas essas sugestões, consultar Waite, R_ HisIot7 01
5. Ver adiante, pp. 119 e 55. the Roricrucians, pp. 7 e SS.

96 97
moruais e iniciações nas Ordens de cavalaria, combinadas com uma
como tendo ele perdido a jarreteira - aquela mesma que representava
exibição teatral. Sob a ascendência dos atores ingleses, - declara
o suposto apoio de seu real sogro. Por conseguinte, de acordo com a
Andreae - escreveu peças ao mesmo tempo em que escreveu um dos
tendência geral, pela qual Frederico do Palatinado conseguira sem es-
Cbemical Wedding . As influências dramáticas, bem como as do ceri-
forço posições preparadas antecipadamente, teria também conseguido
monial da }arreteira absorvidas naquele período .inicial, acho que te- a propaganda da Jarreteira.
nham contribuído para a criação do Cbemical Wedding de 1616. Chris-
tian Rosencreutz não é apenas um cavaleiro do Tosão de Ouro e da Desse modo , quando Johann Valentin Andreae reescreveu a sua
Pedra Dourada; 7 é também um cavaleiro da Cruz Vermelha. As alu- nova versão do Cbemical Wedding, ele a teria modernizado com alu-
sões à jarreteira estão subentendidas nas referências às festas e ceri- sões ao insigne representante alemão da Ordem da jarreteira agora
mônias cavaleirosas do início do trabalho de Andreae; a Cruz Verme- em questão -.- o príncipe que já encontramos implicado no movimento
lha da Ordem da jarreteira, a Cruz Vermelha de S. Jorge da Ingla- rosa-cruciano, Frederico do Palatinado. Quer-nos parecer que agora
terra foram absorvidas no mundo alemão, para reaparecerem como podemos facilmente situar o castelo, no qual supôs-se que as cenas
"Christian Rosencreutz", com suas rosas vermelhas e seu emblema da desse romance estranho tenham ocorrido. Tratava-se do castelo de Hei -
Cruz Vermelha. delberg de propriedade do Leão Palatino, aquele Leão que vimos mon-
tando guarda na porta do castelo naqueles "Emblemas Ético-Políticos"
Julgo existir um escritor sobre os problemas rosa-crucianos, com os quais iniciamos este capítulo. O Chemical Wedding faz-nos
que se aproximou da verdade acerca do nome, embora nada soubesse ingressar num vasto castelo, cheio de coisas prodigiosas, e com um
da evidência aqui coligida. Paul Arnold em sua Histoire des Rose -Croix, jardim maravilhoso - o castelo de Heidelberg e seus jardins repletos
sugeriu como um paralelo ao Cbemical Wedding) o episódio do Ca- dos trabalhos assombrosos de Salomon de Causo Existe um Leão no
valeiro da Cruz Vermelha na Faerie Queene de Spenser.f Julgou que portão, e uma fonte com um Leão muito proeminente nos jardins, en-
as alegorias criadas por Spenser em torno do Cavaleiro da Cruz Ver- fatizando que estamos nos domínios do Leão Palatino. O castelo e os
melha, e aquelas relativas ao Irmão Rosa-Cruz, do Cbemical Wedding) jardins são muito movimentados, habitados por membros de uma
eram semelhantes. Além do fato de ambos os trabalhos tramarem uma corte poderosa, cuja vida converge para um casal, um Rei e uma Rai-
alegoria concernente a um Cavaleiro da Cruz Vermelha ou Rosa, não nha, um sponsus e sponsa, ambos representando o emblema de uma
existe uma semelhança muito precisa entre as duas ficções. Todavia, experiência mística, dos sponsus e sponsa aiquímicos espiritualmente
Arnold conseguiu alguma coisa por esse caminho indireto. Porquanto interpretados, e que têm uma base real como sendo o Eleitor Palatino
o Cavaleiro da Cruz Vermelha, de Spenser, é inspirado na Ordem da e sua mulher Elisabete Stuart.
Jarreteira. Elisabete pode até ser reconhecida entre a confusão do Cbemical
Quando Frederico do Palatinado surgiu como líder, sua propa- Wedding, principalmente no Terceir-o Dia, quando os convidados se
ganda incumbiu-se de enfatizar que ele era um Cavaleiro da Jarreteira. dirigem para uma saleta na qual havia uns pequenos e estranhos livros
Vimos que isto foi levado ao domínio público mediante os. fogos de de orações, e nela se ajoelharam rezando para que o casamento contri-
artifício por ocasião de seu casamento, realizados nos fesetejos do Cas- buísse para a glória de Deus. Essa saleta podia referir-se ao oratório
telo de Heidelberg após sua chegada com a noiva (durante os quais - despretensioso e puritano - de Elisabete, aos seus livros ingleses
o Eleitor fez a sua entrada num carro triunfal exibindo os emblemas de orações, e ao significado divino de seu casamento, celebrado com
da Ordem do Tosão de Ouro e o da Ordem da Jarreteira ), e que após tal pompa e considerado em Londres, como um enlace "para a religião",
a sua derrota foi maliciosamente interpretado pela propaganda inimiga, Não é fácil para nós retomar o espírito com o qual os príncipes
da Renascença planejaram e decoraram seus palácios e parques, como
7. O cavaleiro do Tosão de Ouro transformar-se-ia muito facilmente num
cavaleiro da Pedra Dourada (a Pedra Filosofal). Era muito comum considerar o
uma espécie de sistema vivificante da memória, através do qual as dis-
Tosão de Ouro, da lenda de Jasão, como tendo uma relação alquímica com a Pe - posições elaboradas de lugares e imagens, toda a erudição e a enciclo-
dra FilosofaI; consultar Natalis Comes, Mytbologiae, VI, 8. A versão do Tosão de pédia inteira pudessem ser armazenadas na memória. Os salões mara-
Ouro é muito difundida por Michae1 Maier, Arcana arcanissima, 1614, pp. 61 e S8. vilhosos do Imperador Rodolfo em Praga foram planejados e baseadoJ
8. Paul Arnold, Histoire des Rase-Croix, Paris, 1955, pp. 184 e 58. em algumas dessas linhas, e podiam ter sido até mesmo uma prepa-

98
ração para um destino imperial hermético, que Frederico com tal des.
velo prodigalizara em seu Heidelberg. Não podemos reconstruir as experiência espiritual progressiva, comparável em sua intensidade ao
glórias extintas de Heidelberg, mas o Chemical Wedding pode nos Pilgrim's Progress, de Bunvan .
proporcionar alguma idéia sobre quais teriam sido seus objetivos, apre- t Portanto, quais são as origens da "Rosa-Cruz"? Ao leitor foi ofe-
J,

sentar-nos a enciclopédia numa forma simbólica, e também, talvez, recida uma escolha de possibilidades, incluindo idéias antigas sobre
inspirar um ambiente através do qual os relacionamentos ocultos po- estas, e algumas novas . Neste capítulo sugeri uma origem nobre, que
deriam ser percebidos, e as harmonias obscuras do universo poderiam se referia à cruz vermelha de S. Jorge da Ordem da Jarreteira, e às
ser ouvidas. rosas da Inglaterra. No capítulo que o precedeu tornei a considerar a
antiga hipótese de uma origem alquímica, proveniente de Ros, orvalho,
O Eleitor Pala tino e sua esposa estão cercados por influências e Crux, luz, com uma referência aos mistérios da alquimia. A possibi-
teatrais em todas as fases de sua carreira, desde seu casamento em Lon- lidade dessa teoria conter uma verdade foi indicada pelo fato de que
dres . No Palatinado, essas tradições teatrais continuaram, e disto se a Monas, de Dee, com seu texto sobre ros, ou orvalho, na página da
depreende que as atividades descritas no Chemical Wedding deveriam epígrafe, seu comentário sobre a "monas" como uma forma alquímica
incluir uma peça. A companhia parece ter encontrado seu caminho da cruz, está intimamente associada à Coniessio rosa-cruciana. Embora
para o local onde essa peça era apresentada, através dos jardins, nos evitando ser demasiadamente positivo sobre essas questões conclusi-
quais havia um prédio chamado "a Casa do Sol". Na gravura de Me- vas, eu consideraria que ambas essas sugestões poderiam permanecer
rian, mostrando os jardins de Heidelberg (Fig. 5) vê-se um prédio juntas; que existiu uma adaptação esotérica da nobreza da "Rosa-Cruz"
singular ou um complexo de prédios; dois redondos, de construção e um significado alquímico esotérico de Ros-Crux. Segundo esta teoria,
igual a um anfiteatro, são ligados por passagens cobertas com um sa- a Monas, de Dee, seria a origem do "rosa-crucianismo" no sentido
guão central. É possível que aquilo que nela vemos, possa representar alquímico, e o nome , teria tido uma riqueza sugestiva e fidalga como
o cenário dos cerimoniais ou exibições teatrais de qualquer gênero? "Cruz Vermelha". Ambas as origens seriam inglesas, a cavalaria in-
Os principais acontecimentos descritos no Weddíng refletem, evi- glesa e a alquimia inglesa, associando-se para influenciar o movimento
dentemente, ou de algum modo se referem às cerimônias e rituais asso- alemão, no qual o nome se traduz por "Rosencreutz", e adquire ne-
ciados com as ordens de cavalaria. Isto talvez se relacione não apenas vas nuances de sentido no novo ambiente.
-às cenas originais em Stuttgart, mas também às exibições mais recentes
em Heidelberg. O ponto culminante de toda a história, no fim do Sé-
timo Dia, foi a admissão dos convidados na Ordem da Pedra Dourada,
após a qual partiram em suas embarcações. Este é um ponto no
qual a topografia contida no Chemical Weddíng não parece coadunar-se
com aquela do castelo de Heidelberg, que não está situado na praia.
Todavia, carruagens alegóricas do formato de veleiros foram usadas em
Heidelberg; é justamente na ilustração de uma dessas embarcações ale-
góricas, que podemos ver o Palatino como sendo Jasão, embarcando
com o Tosão e a jarrereira no cordame do veleiro. (Fig. 3a)
Desse modo, os vários detalhes concorrem para sugerir que as
esplêndidas impressões da corte de Heidelberg possam ter estimulado
a imaginação de Andreae ao escrever essa obra memorável, o clímax
do mito rosa-cruciano. Não obstante, é acima de tudo um trabalho de
imaginação criativa, os primeiros frutos artísticos de um movimento
fadado a terminar abruptamente, quando fora apenas começado. E é a
obra de um gênio profundamente religioso, transcendendo todos os
dísticos políticos e sectários, para converter-se numa alegoria de uma .<.,-;~. , ;";

100 101
em 1618. Oppenheim foi a primeira cidade do Pal~tinado, n~ qual
Elisabete entrou em 1613, ao chegar ao seu novo pais, onde f01 rece-
bida com arcos de triunfo. Um deles já foi aqui reproduzido (Fig. 2);
era todo coberto de rosas, e gravado por Johann Theodore De Bry.
[ohann era filho de Theodore De Bry; a família procedia de Liê-
ge. 1 . Sendo protestantes, tornaram-se refugiados quando Liege caiu
sob o domínio católico) e estabeleceram-se em Frankfurt. Theodore De
CAPÍTULO VI Bry tinha uma firma próspera de gravação e publicação nessa cidade,
no final do século XVII, e manteve muitas ligações com a Inglaterra
através de sua publicação de uma grande série de volumes sobre via-
o EDITOR DO PALATINADO gens de descobertas, nos quais se empregaram materiais ingleses. Este-
Johann Theodore De Bry e a publicação dos trabalhos ve freqüentemente na Inglaterra, onde era procurado como gravador
na era elisabetana. Faleceu em 1598, e o filho Johann Theodore, suce-
de Robert Fludd e de Michael Maier deu -lhe nos negeócios. Uma das filhas deste último, casou-se com o
suíço, artista e gravador, Matthieu Merian, um reforço útil para o
Independentemente de Andreae e pessoas desconhecidas que pos- esteio da firma. Uma outra de suas filhas casou-se com um inglês,
sam ter cooperado com ele ao difundir o mito rosa-cruciano, existem William Fitzer.
dois escritores que geralmente são reconhecidos como os principais
Johann Theodore transferiu seu negócio de Frankfurt para Oppen-
expoentes desta filosofia. São eles, Robert Fludd e Michael Maier. heim por motivos religiosos, conforme costumava-se dizer, sem espe-
Embora ambos negassem ser rosa-crucianos, os dois se manifesta-
cificar quais eram eles. Uma vez que, pelo visto, ele já se encontrava
ram com interesse e autoridade a respeito dos manifestos rosa-crucia-
lá em 1613, pronto para gravar as decorações para a chegada de Eli-
nos, e de suas filosofias - falando de modo geral - estão de acordo
sabete, é provável que se tivesse sentido atraído pelo aspecto religioso
com as atitudes enunciadas nos manifestos. Mas os modos de pensar,
do regime no Palatinado e tivesse compartilhado das esperanças susci-
velados nas ficções da Fama) Conjessio e Wedding) são desenvolvidos
tadas pelo casamento do Eleitor com a filha de Jaime r. E na realidade
por Fludd e Maier em bibliotecas inteiras de pesados volumes, que fo-
existe grande evidência de que De Bry simpatizava com o movimento
ram publicados nos anos subseqüentes ao aparecimento daquelas três
do Palatinado. O livro dos Emblemas de Zincgreff (Fig. 17), conten-
obras emocionantes. Fludd manifesta-se com maior fluência sobre a
do aqueles do castelo de Heidelberg e o do Leão, seu proprietário,
filosofia do macrocosmo e microcosmo; Maier oferece um brilhante
mencionado no último capítulo, foi publicado por De Bry em Oppen-
enunciado sobre os temas da alquimia espiritual. O sólido apoio de
heim em 1619, com uma dedicatória de Zincgreff para o Eleitor Pa-
Fludd e Maier confere realidade ao mito rosa-cruciano, que agora co-
latino, agradecendo-lhe pelo auxílio e proteção. Os emblemas es}ão
meça a parecer igual a um movimento com um contexto de uma lite-
gravados por Merian, o genro de De Bry, e entre os versos do pream-
ratura importante em seu apoio.
E, pois, com um sentimento de satisfação - como de uma confir-
mação, proveniente de uma outra área, da exatidão da linha histórica
de enfoque, seguida nos capítulos anteriores - que observamos que os
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'J
bulo, constam algumas linhas em latim dedicados a Merian por Janus
Gruter. Gruter era o bibliotecário da biblioteca do Palatinado em Hei-
delberg; e no volume constam outros versos considerados como sendo
de um oficial da corte de Heidelberg. Estas informações demonstram
principais trabalhos de Fludd e Maier foram publicados no Palatinado
que a firma de De Bry estava intimamente associada com a corte de
durante o reinado de Frederico V. Os imensos volumes de Robert
Heidelberg. E foi De Bry quem, em 1620, publicou o Hortus Palatinus
Fludd - "História do Macrocosmo e do Microcosmo" - foram pu-
blicados por Johann Theodore De Bry em Oppenheim, em 1617, 1618 1. Sobre os De Brys consultar "William Fitzer, o editor de De MollI canis,
e 1619. A Atalanta fugiens) de Michae1 Maier, livro de emblemas, no de Harvey, 1628", Transactions of lhe Bibliographical Societ», Nova Série, XXIV
qual a alquimia espiritual atingiu um ponto elevado de expres~ão (1944), p. 143. Fitzer, o editor do livro de Harvey scbre a circulação do sanawt.
artística, foi publicado por Johann Theodore De Bry em Oppenheím, era genro de Johann Theodore De Bry.

102 10J
(Fig. 6a) com o panorama dos jardins, gravados por Merian (Fig. 5) .
De Bry, deste modo, colaborou nas gravações das maravilhas de Hei-
delberg, pouco antes de serem destruídas nas guerras; colaborou tam-
bém no começo, gravando a promissora entrada em Oppenheim em
1613.
Quando irrompeu a catástrofe com a invasão do Palatinado pelos
exércitos de Spinola em 1620, De Bry transferiu seu negócio para
Frankfurt. Spinola entrou em Oppenheim em setembro de 1620, e
quando Frederico tornou a visitá-la em 1632, escreveu para Elisabete,
dizendo que não seria capaz de reconhecer a cidade que um dia admi- .v.
rara. A metade fora queimada, e o resto estava em ruínas. 2 A firma
de De Bry deve ter podido escapar a tempo com a maior parte de seu
equipamento, pois recomeçou a sua publicação em Frankfurt pouco
depois, mas o seu período em Oppenheim deve ter terminado subita-
mente e pouco antes da publicação do Hortus Palatinus em 1620, o
qual foi editado em Frankfurt e não em Oppenheim. E o volume na
série dos trabalhos de Fludd, publicados por De Bry em 1621, foi
editado em Frankfurt. A mudança no local da publicação da série de
Fludd , de Oppenheim para Frankfurt, da qual nos servimos simples-
mente como um detalhe bibliográfico, sobressai agora como carregada
de tragédia .
Os emblemas "ético-políticos " de Zincgreff, 1619, representam
uma declaração de apoio moral e político ao Eleitor Palatino . Um deles
mostra os israelitas em sua viagem a caminho da terra prometida, car-
regando a arca da aliança (Fig. 18d), certamente uma alusão à viagem
para Praga em 1618, para assumir a coroa da Boêmia . Que todos esses
emblemas estavam intimamente associados com Frederico pode ser pro-
vado (embora aqui não haja espaço para 'prová-Io detalhadamente)
pelas sátiras contra Frederico após a sua queda, as quais se prevalecem
dos objetos nesses emblemas, principalmente a teia de aranha e o
enxame de abelhas , associando-os sarcasticamente com Frederico em
suas caricaturas. 3 A firma de De Bry, que publicara esses emblemas,
e Merian, seu gravador, certamente deveriam ter sido assinalados como
perigosos pelos exércitos invasores. .

2. Green , Elizabetb o/ Bobemia, p. 296.


3 . Por exemplo, comparam os emblemas de Zincgreff da teia de aranha,
ao símbolo ' de um monarca prudente (emblemas XXV , XXVII) e o enxame de
abelhas como sendo o de um monarca generoso (embl. C) , com as caricaturas ,
,.
mostrando Frederico como um leão destruído por uma aranha (Spinola) e Fre-
derico , como sendo um enxame de abelhas (Beller , Caricatures of tbe "Winter .
....
King", Gravuras IH, IV). ~

17 - Julius Guglielmus Zincgreff, E",blt11l#J1I#I Etbif:o,PoIiIicontM CMIríiIIfI;. ·

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John Dee , Ar.Nu Field, in GoUen Letters feuad
(b ) Página do Tbe thc following Vcrfes wriuen- '
Hermeticke Romance, ou
o Chymical Wedding, This tiA), tb;., JIC), tl1is, rhiJ
mostrando o símbolo da T be RUJAl H'edáinl il.
"monas ", de Dee. A,e eho" thcrllo ty Birfh inrliJtJ,
A"J """ jGJ of G,a dtft. n' d,
Then TTMy)f el"N tO ehe J1.'fountain u nJ,
JJ/I)rrton tlerec ftatc:l y T cmplcsft'!lnd,
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Ao mesmo tempo em que, no transcorrer dos anos até 1619, De
Bry ocupava-se tão energicamente em despejar de sua prensa, em
Oppenheim, os volumes brilhantemente ilustrados pelos filósofos rosa-
-crucianos, Fludd e Maier, estava apoiando uma causa na qual acredi-
tava, e pela qual mudara a sua firma para o território do Palatinado.
Naquele tempo, impressores e editores eram freqüentemente os
centros de movimentos religiosos obscuros. Sabemos que o grande
impressor da Antuérpia, Christopher Plantin, era secretamente um mem-
bro da Família do Amor, 4 seita que objetivava evitar declarações dou-
trinárias e concentrar-se nas interpretações místicas e alegóricas dos
textos bíblicos . O impressor Wechel, de Frankfurt, fora procurado por
Philip Sidney e seus amigos, após o Massacre .de S. Bartolomeu em
1572. 5 Outro impressor de Frankfurt, também chamado Wechel, hos-
pedara Giordano Bruno, e em 1590-1 imprimira os extensos poemas
i em latim de Bruno, 6 e também reimprimira, em 1591, a Monas bie-

i roglyphica de Dee. 7
Através de sua longa associação familiar com a imprensa em Frank-

I furt, é provável que Johann Theodore De Bry tivesse adquirido uma


boa dose de conhecimentos das profundas correntes européias de pen-
samento, que se desenvolviam e associavam-se naquele grande centro
internacional do comércio livreiro.
O período de publicações da firma de De Bry, em Oppenheim,
coincide com a época em que a política do Palatinado estava atingindo
seu clímax, quando as brilhantes alianças que pareciam fortalecer a
posição do Eleitor Palatino - sobretudo o seu casamento - aparen-
tavam prometer um resultado auspicioso para o movimento anti-habs-
burgo de todo o Palatinado, que atraiu o apoio de elementos liberais
europeus de muitos tipos.
Os autores rosa-crucianos, editados por De Bry, representam dois
países para os' quais convergia a política do Palatinado, a Inglaterra
e a Boêmia. Robert Fludd era inglês, médico paracelsista, exercendo
a profissão em Londres, e sua filosofia encontrava-se na linha de des-

4. H. De la Fontaine Vervey, "Trois Heresiarques dans les Pays-Bas du


XVleme síêcle", Bibliotbêque d'bumanisme et Renaissance, XVI (1954), pp. 312·
3LO~ B. Rekers, Benito Arias Montano, 1960, A. Van Dorsten, The RadicsJ Arts,
eiden, 1970, pp. 26 e ss.
5. Howell, Sir Philip Sidne», p, 142.
6. Yates, Giordano Bruno and lhe Hermetic Tredition, pp . 318, 320, 32'.
7. Joseen, "Translation oi Dee's 'Monas' ", Ambix, XII (1964), p. 96.

109
20 - Robert Fludd, Utriusque Cosmi Historia.
cendência da Magia e Cabala Renascentistas, 8
acrescentada da alqui- movimento do Palatinado. Grandes somas de dinheiro deviam ter sido
mia paracelsista e das fortes influências de john Dee. 9 Michael Maier, empregadas para subsidiar essas publicações, que foram ilustradas
também médico paraceIsista, representava o ambiente da corte de Ro- prodigamente.
dolfo II, em Praga, de quem fora médico e confidente. 10 A concep-
O caminho normal para tentar entrar em contato com os Irmãos
ção de Maier era do gênero que poderia ter sido natural na corte de
R.C, após ler os manifestos, era publicar alguma coisa a eles dedi-
Rodolfo II, em Praga, com suas tendências mago-científicas,. seu cab~­ cada, ou manifestar admiração pelos mesmos. Estes apelos não eram
lismo e -seu paracelsismo - todas contribuindo para uma atitude reli- correspondidos: os Irmãos R.C. não respondiam nem aos seus admira-
giosa mais liberal do que aquela i~posta _em Praga p~~ seus sucessores. dores e nem às suas críticas. O "silêncio rosa-cruciano após o alarido"
O fato de Maier ser luterano - e Isto nao o desqualificou para prestar e o retraimento na invisibilidade, após o trombetear dos manifestos,
assistência ao imperador católico, é por si mesmo um indício do ponto são os assuntos de Michael Maier, em seu Silentium post clamores.
de vista liberal de Rodolfo. A filosofia de Robert Fludd poderia re-
presentar uma linha de atração .que emanava d~ ~nglaterra, enquanto Robert Fludd iniciou sua carreira rosa-crucíana do modo habitual,
que Michael Maier estava contl~ua~do as ~ra~hçoes da Praga rodo,l- ou seja, publicou duas obras manifestando admiração pelos Irmãos
feana, que teriam sido compreensiveis na Boêmia, Esses foram os dOIS R.C. e seus objetivos expostos nos manifestos. Os dois livrinhos, amo
elementos que Christian de Anhal~ empenhou-se .em en~relaçar me- bos em latim, publicados por Fludd em seus primeiros esforços para
diante o casamento do Eleitor Palatino com uma princesa inglesa, bem entrar em contato com os Irmãos R.C., eram: o primeiro, Compen-
como apresentando-o na Boêmia como um Rei plausível. dious Apology for the Fraternity of the Rosy Cross, fazendo desapa-
recer num Flood (na correnteza da água) (fez um trocadilho com seu
A grande quantidade de material contida nos volumes da "His- nome), as manchas da suspeita e infâmia com as quais ela fora calu-
tória do Macrocosmo e do Microcosmo", de Fludd, representa uma niada,12 - daqui em diante referido como Apologia; e segundo, The
boa dose do trabalho anterior, tendo sido agora reunidos e publicados Apologetic Tractatus for the Society of the Rosy Cross,13 de ora em
simultaneamente. O mesmo se aplica aos inúmeros trabalhos de Mi- diante mencionado por Tractatus. Foram publicados por Godfrey Bas-
chae1 Maier, que se tornaram públicos numa rápi~a suc~ssão dur.ante son, em Leiden, nos anos de 1616 e 1617.
esses anos, seja por meio de De Bry em Oppen~eI~, seja pel~ fIrm~
de Luca jennis em Estrasburgo, a qual estava mtrmamente ligada a Godfrey Basson era filho de Thomas Basson, inglês estabelecido
firma de De Bry. 11 Eles não podiam ter sido escritos tão rapidamente, em Leiden como impressor e editor. 14 Thomas, que fora um protegido
e alguns devem representar um trabalho anterior, talvez elaborados .en- do Conde de Leicester, interessava-se pelo ocultismo. Foi ele quem
quanto Rodolfo ainda vivia, e Maier estava em sua corte. Esses edito- publicou em 1597, o Tbamus, de A!e~ander Dics~n! di~cí?ul~ de Gior-
res sentiam-se inclinados a publicar rapidamente uma grande quantida- dano Bruno, o qual é uma arte magica da memona, irmtaçao do tra-
balho de Bruno. 15
de de material daqueles dois autores, e isto deve ter representado uma
política decisiva - a publicação rápida do material compatível com o A Apologia de Fludd inicia-se com uma tendência para evocar as
tradições da antiga sabedoria dos prisci theologi, principalme~lt: a de
8. Já mencionei algo sobre a filosofia de Fludd, em relação à tradição re- "Mercurius Trismegistus" 16 o qual segundo afirmam, é a mais Impor-
nascentista da Magia e Cabala em meu Giordano Bruno, ilustrando isso com os tante autoridade dessa sabedoria, constando ambas de seus "Sermons"
diagramas de Fludd.
9 . Relativamente a Dee e Fludd sobre a matemática, ou assuntos "vítruvia- 12. R. De Fluctibus (Le, Robert Fludd), Apologia C011lpendia'~ ~rillemi:
nos", consultar meu Tbeatre of the World, 1969, pp. 20-59; sobre Fludd e Para- tatem de Rosea Cruce susplcionis & injamia maculis asperse«, veritatis qfUlSl
celso, consultar Allen Debus, The English Paracelsians, Londres, 1965, passim e Fluctibus abluens & abstergens, Leiden (Godfrey Basson), 1616.
inúmeros .artigos.
13. R. De Fluctibus, Tractatus Apologeticus lntegritatem Societ4tis dt Ro-
l().. Sobre a vida de Michael Maier, consultar J. B. Ceaven, Count Michael sea Cruce, Leiden (Godfrey Basson), 1617.
Maier, Kirkwall, 1910.
14. Consultar]. A. Van Dorsten, Thomas Basson, Leiden, 1961.
11. A mãe de Luca jennis casou-se com J. Israel De Bry, irmão de Johann
Theodore, em segundas núpcias; consultar W. K. Zülch, Frankfurter Künstler, 15. Consultar Yates, Tbe Art 01 Me11lory, p. 285.
Frankfurt, 19.3.5, "jennis, Luca". 16. Apologia, pp. 1 e ss.

110 lU
(isto é, Corpus Hermeticum) e do Esmerald Table, aquela sucinta dos nomes dos anjos. A Magia, a Cabala e a Astrologia, conforme
declaração da filosofia hermética, que foi tão grandemente reverenciada estudadas pelos Irmãos R.C., são científicas e sagradas.
pelos alquimistas. Portanto é aderindo à filosofia "egípcia", a filosofia
Em seguida, Fludd passa em revista as artes e. ciên~ias, enca-
hermética do suposto sacerdote egípcio, Hermes Trismegistus, que
recendo que elas estão precisando de progresso. A filosofia natural,
Fludd se aproxima dos Irmãos R.C.
a alquimia, a medicina são todas deficientes. Segundo ele,. a Fama
Em seguida, ele conta como a celebridade da Fama, da Sociedade rosa-cruciana acelerou seu desenvolvimento. Ele parece ter VIsto essa
da Rosa-Cruz atravessou toda a Europa e chegou aos seus ouvidos. 17 acepção na misteriosa caverna geométrica e outros apare~os. fantásti-
Fludd não vira apenas os dois manifestos, a Fama e a Confessio; vi.ra cos contidos na Fama; para Fludd eles representam as crencias mate-
também o ataque a eles feito por Libavius. Este - segundo ele afir- máticas, de cuja melhoria a Fama está precisando no seu programa
mou - atacara implacavelmente os Irmãos R.C. e num trecho acusa- de reforma. 22
ra-os de insubordinação política ou sedição: "Nam uno loco [ratres in Fludd enumera as artes matemáticas: geometria, música, arte mi-
seditionis suspicionem adduxit". 18 Prevaleço-me disto para fazer um.a litar, aritmética, álgebra e ótica, todas elas carecendo de desenvolvi-
referência à análise de Libavius dos trechos sobre o Império nos rnanr- mento e reforma. Encontramo-nos dentro da esfera do Prefácio de
festos, nos quais ele encara como desí?nios rebeldes. ~ludd rejeita as John Dee a Euclides, com a sinopse das artes matemáticas alistadas
críticas de Libavius e aprova os manifestos, Os Irmaos - sustenta por Vitrúvio, e das quais a arquitetura é a principal. Num outro
ele - são verdadeiros cristãos. Não são perversamente mágicos ou lugar, examinei a influência do Prefácio de Dee sobre Fludd. 23 No
sediciosos. Não teriam alardeado a sua mensagem, se fossem malvado..s. Tractatus, Fludd parece admitir que tal programa de reforma das
Iguais aos luteranos e calvinistas, são ~ontra o Papa, .entr~tanto nao artes matemáticas é o que os Irmãos R. C. desejam e nele insistem
são hereges. Talvez esses Irmãos estejam realmente iluminados por em seus manifestos; o que equivale dizer que os manifestos R. C. são
Deus. Fludd suplica-lhes encarecidamente que o recebam em sua com- influenciados por Dee, e que o movimento mágico por eles empreen-
panhia. dido é do tipo matemático e científico ensinado por Dee. Em vista
O Tractatus, do ano seguinte, inicia-se com o mesmo prefácio da dos fatos que foram descobertos sobre a influência da Monas biero-
Apologia, mas apresenta nova defesa da "mágica virtuosa". Existem glyphica, de J. Dee, sobre os manifestos e o Cbemical Wedd~ng, as
boas e más qualidades de mágica, caso, porém, a boa qualidade é ex- suposições de Fludd estão provavelmente corretas. Prosseguindo a
cluída ou condenada, "eliminamos toda a filosofia natural". 19 Os ma- sua sinopse sobre os assuntos que estão a exigir uma reforma, ele
gos são peritos na matemática - diz ele - apresentando então a ha- enuncia em seguida a ética, a economia, a política, a jurisprudência e
bitual lista das maravilhas mago-mecânicas, começando com a pomba a teologia. Depois disto, volta-se para a profecia e a invocação do
de madeira de Architas e prosseguindo com as maravilhosas proezas Espírito Santo e dos anjos 24 como imprescindíveis ao movimento, e
de Rogério Bacon, Alberto Magno e outros 20 (compara as listas dessas termina com alusões aos maravilhosos poderes ocultos da música.
maravilhas dadas por Agrippa, Dee, e praticamente todos os escritores
Finalmente, conforme o fez no opúsculo do ano anterior, Fludd
sobre a mecânica na fase mágica). 21 Os Irmãos R.C. - continua
se dirige aos Irmãos R. C. pedindo para ser admitido em seu trabalho.
Fludd - empregam apenas as boas qualidades da mágica, matemática
e mecânica, e a mágica da Cabala, que ensina como invocar os sagra- O pedido de Fludd para a reforma das ciências tem um eco baco-
niano e em parte pode ser influenciado pelo The Advancement Df Leem-
17. Ibid., p. 6. i
. ,
ing. Mas a ênfase sobre a matemática e a invocação dos anjos se asse-
18. uu.. p. 7. "i rnelha mais a Dee, e poderia parecer que fosse o tipo de programa
19. IbM., p. 22. Para um comentário útil sobre a concepção do Tractaees, intelectual de Dee, que Fludd reconhecera nos manifestos rosa-crucianos.
I
consultar Allen Debus, "Mathematics and Nature in the Chemical Texts oi the ;
Renaissance", Ambi», XV (1968) . 22. Tractatus, pp. 102 e 85.
20. Traaatus, p. 24. 23. Tbeatre 01 tbe World, pp. 42 e ss.
21. Consultar meu Giordano Bruno, pp. 147·9; Theatre 01 tbe World, p. 30. 24. TractaJus, p. 146.

112 UJ
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.:.-.,---~- - -~~~:::::!E!!~7~=;-.~ ~ _

Alguns anos depois, ao defender-se dos ataques inimigos na Ingla-


terra, que o acusavam de ser um "rosa-cruciano", devido às suas des- estavam admitindo o interesse de Jaime I num trabalho publicado nos
culpas ,por aq~;les "Filósofos e Teósofos eruditos e famosos", que se domínios de seu genro . Estavam atraindo esse príncipe poderoso para
denominavam Irmandade da Rosa-Cruz", Fludd alegou que não rece- a sua filosofia, atribuindo-lhe um desempenho hermético. Caso esse livro
tivesse grande circulação na Alemanha ou na Boêmia, teria confirmado
bera r:sposta do.s Irmãos R.C., embora julgasse que a "Pansofia, ou
li impressão, ou ilusão, de que os movimentos do pensamento no Pala-
:onhecllI;en~0 ~n1ver.s~~ da Nature~a por eles professada, devia ser igual tinado tinham a aprovação do Rei Jaime.
a sua propna filosofia . 25 Esta f01 sempre a linha habitual sobre inda-
gações provenientes dos manifestos rosa-crucianos, e que jamais rece- Podemos também começar agora a observar mais claramente a
beram resposta, ocorrendo sempre o silêncio após os sons da trombeta. sit~ação, atra.vés do ponto de vista de Jaime. Seu genro e os conse-
Embora Fludd pareça acreditar na existência real dos Irmãos R. C., lheiros e amigos do mesmo não estavam apenas tentando envolver
ele admite jamais ter visto um. Jaime numa linha de ação política, que ele não aprovava - a política
ativista que se dirigia para os grandes empreendimentos da Boêmia.
No caso de Fludd, poderia parecer que apesar de tudo, algo ocor- Es.tavam ta.mbém tentando envolvê-lo numa filosofia que ele reprovava.
reu em resposta à sua Apologia e ao seu Tractatus . Deve ter sido Jaime sentia um temor terrível de qualquer coisa que sugerisse magia;
convidado para publicar seu trabalho no Palatinado com a firma De Bry.
essa era a sua mais arraigada neurose. Condenou Dee, não o receberia 27
Isto pode significar que sua defesa dos Irmãos R. c., contra Libavius,
e submeteu-o a uma espécie de exílio. E no momento, nos domínios
fora reconhecida como prova de seu apoio à política do Palatinado.
de seu genro, é publicado um imenso trabalho do tipo da filosofia
Quando mais tarde defendendo-se da acusação feita contra ele na hermética de Dee, a ele consagrado, e tentando com essa dedicatória
Inglaterra, de que tivera seus livros publicados "além dos mares", por- atraí-lo para aquele ponto de vista, ou causar a impressão de ser favo-
que a magia neles contida proibia a sua publicação naquele país, Fludd rável ao mesmo. Não é de admirar que o segundo volume da "História
cita uma carta de um erudito alemão, afirmando que o impressor (isto do Macrocosmo e do Microcosmo" não tenha sido dedicado a Jaime,
é De Bry ), antes de imprimi-lo mostrara o volume a homens cultos, e que Fludd parece ter encontrado na Inglaterra dificuldades ocultas
inclusive a alguns jesuítas, que tinham admirado e recomendado a publi-
para a publicação de suas obras. 28
cação, embora esses últimos reprovassem as suas partes sobre a geo-
maneia, desejando que fossem omitidas. 26 Todavia, e evidentemente, Em sua réplica às acusações de ter tido seus livros publicados além
não foram omitidas. Fludd está convencido de que seus volumes não dos mares porque continham a magia proibida, Fludd disse que o
são desagradáveis aos calvinistas, entre os quais encontra-se seu editor, motivo para publicá-lo fora do país, era porque a firma De Bry propor-
e nem tampouco aos papistas, que os aprovaram, porém ignora o fato cionava-lhe melhores ilustrações do que seria possível na Inglaterra. 29
de que de acordo com ele mesmo, os jesuítas não os tinham sancionado As ilustrações apresentam visualmente os complexos "hieróglifos" da
inteiramente. filosofia de Fludd. Os gravadores seguiram exatamente suas instruções,
O primeiro volume de Fludd, em Oppenheim, a "História do Ma- como poderá ser constatado por todos os que estudam cuidadosamente
crocosmo" de 1617, é oferecido a Jaime I, com uma dedicatória muito o texto de Fludd em relação às ilustrações. As constantes idas e vindas
imponente, na qual Jaime é aclamado como o "Ter Maximus", o epíteto de mensageiros entre Londres e o Palatinado, mantendo contato com
sagrado para Hermes Trismegistus, e como sendo o príncipe mais pode- a princesa inglesa em Heidelberg, devem ter facilitado muito o trabalho
roso e sábio do mundo. O sentido dessa dedicatória sobressai agora, de um editor do Palatinado ao publicar materiais manuscritos prove--
quando compreendemos mais perfeitamente o significado da publicação nientes da Inglaterra.
dos livros de Fludd, em Oppenheim. Ele e o seu editor do Palatinado
27. French, [obn Dee, p. 10.
2' . Consultar C. H . Josten, "Phílosophícal Key" de Robert Fludd e seu 28. Consultar a minha Art 01 Memory, pp. 323·4; Tbear« o/ Ib~ "MIJ.
"AlchemicaI Experiment Wheat", Ambix, XII (1963), p. 12; cf. Theatre 01 the pp. 65·72.
World, p. 68. 29. Dr. Pludd's A"swe, unto M. Foster, 1631, p. 11; d. TIH NJ 01 No..
26. "A Philosopbica1 Key", citação feita no Theatre o/ the World, p. 67. mOry, p. 324.
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11'
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114 \
A Utriusque Cosmi Historia, de Fludd, 30 ou História dos Dois ser observado que a filosofia de Fludd era realmente "rosa-cruciana",
Mundos - o Grande Mundo do Macrocosmo e o Pequeno Mundo do uma filosofia renascentista modernizada, tendo sido diretamente bem
Homem, o Microcosmo - representa uma tentativa para alcançar e recebida como tal, mediante a sua publicação no Palatinado.
apresentar com alguma clareza a filosofia baseada no projeto harmonioso
O estudo da cultura do Palatinado, sob Frederico V, deve incluir
do cosmos' e as harmonias correspondentes no homem. As ilustrações
como um de seus mais importantes representantes, Salomon de Caus,
gravadas ajudam muito na apresentação desses esquemas cósmico~. !3~­ o projetista do Hortus Palatinus, o engenhoso arquiteto e mecânico
sicamente, o esquema de Fludd é o mesmo daquele formulado n~ InICIO que produziu aquelas maravilhas mago-mecânicas, as quais ajudaram a
da Renascença, quando Pico della Mirandola adicionou o renascimento transmitir uma aura de mistério ao castelo de Heidelberg. De Caus
da Cabala hebraica à restauração da filosofia hermética, estimulado pelo trabalhou dentro da harmoniosa visão do mundo, conforme é demons-
emprego dos textos herméticos, de Ficino, recentemente recupera~os. trado pelo seu veemente interesse pela música e órgãos combinados
Os volumes de Fludd estão cheios de citações dos textos herméticos com o intenso vitruvianismo, deles derivando a sua mecânica na obra
na tradução latina de Ficino, e "Mercurius Trismegistus", o suposto Les raisons des forces mouuantes. Exceto pelo Hortus Palatinus, os
autor egípcio daqueles textos, é a autoridade mais respeitada, que ele trabalhos de De Caus não foram publicados pelo editor do Palatinado;
concilia com a autoridade bíblica, através da interpretação cabalista.do esta exceção porém é importante, pois devido ao Hortus Palatinus
Gênesis. O esquema cósmico que daí resultou é um no qual Jeová, publicado por De Bry e com gravações feitas por Merian, De Caus
apresentado na forma do Nome de Deus em hebraico, reina glorioso ingressa no círculo. Como um praticante tecnólogo e arquiteto de jar-
sobre os esquemas dos círculos concêntricos consistindo em anjos, estre- dins, De Caus proporcionou o ambiente harmonioso para a cultura do
las, elementos, com o homem no centro. As conexões astrais correm Palatinado, em seu trabalho para a corte de Heidelberg.
através de todos, e as analogias íntimas entre as harmonias macrocós-
micas tornam-se ainda mais próximas do que eram na época de Pico Michael Maier nasceu em Rindsberg, Holstein, em 1566. Diplo-
e Ficino, por meio da influência de Paracelso, que tornara essas cor- mou-se como doutor em medicina e viveu em Rostock, depois em Praga,
respondências mais exatas, através de suas teorias médico-astrais. onde foi médico do Imperador Rodolfo II, conforme já mencionamos.
Em 1612, algum tempo depois da morte de Rodolfo, Maier visitou a
O segundo volume de Fludd, sobre o microcosmo, inclui uma
Inglaterra, na qual é quase certo de que tenha entrado em contato com
parte importante à qual ele chama de "história técnica", ou o estudo
Robert Fludd, embora ignore-se onde e em que circunstâncias. Sua
das artes e ciências empregadas pelo homem. Estas são baseadas na
natureza, a qual por sua vez é baseada nos números. Conforme ja primeira publicação, a Arcana arcanissima (1614) foi dedicada ao mé-
mostrei em meu Theatre of the World} a subdivisão de Fludd sobre dico inglês, Sir William Paddy que era amigo de Fludd. Pelas referên-
tecnologia, acompanha de perto o prefácio da matemática de Dee para cias em seus últimos trabalhos, parece que também conheceu outros
Euclides, no qual ele reiterava o prosseguimento das ciências matemá- ingleses, por exemplo, Francis Anthony, o alquimista, e Sir Thomas
ticas agrupando-as - conforme fez Vitrúvio - sob a arquitetura, como Smith.
sendo a rainha das ciências matemáticas. Maier era um pouco mais velho do que Fludd que nasceu em 1574,
A "História dos Dois Mundos", de Fludd, é em geral uma apre- e a primeira parte de sua vida passada no ambiente de Praga, na época
sentação da Magia e Cabala Renascentistas, com o acréscimo da Alqui- de Rodolfo II, poderia parecer ter pouca ligação com a do inglês
mia, conforme desenvolvida por Paracelso, e dos melhoramentos intro-
duzidos por John Dee nessas tradições. Se os manifestos rosa-crucianos
Fludd , nascido em Kentish, a tranqüila aldeia de Bearstead e nela .
enterrado em 1637. O que poderia haver em comum entre o imperia-
são interpretados como uma ficção, através da qual é apresentado um lista alemão - imerso nas confusas correntes da corte de Roclolfo II,
pedido de reforma baseado nos novos desenvolvimentos da Magia, e no fim de sua vida surpreendido com a Guerra dos Trinta Anos
Cabala e Alquimia introduzidos por Paracelso e John Dee, então pode (Maier faleceu em Magdeburgo, em 1622, quando aquela cidade encon-
trava-se em poder das tropas) - e o médico filósofo inglês? Contudo,
30. Robert FIudd, Iltriusque Cosmi. Historie, Tomus Primus, De Macro-
cosmi Historie, Oppenheim (Johann Theodore De Bry), 1617, 1618; Tomas Se- não há dúvida de que existiam ligações íntimas entre os dois, e Fludd
cundus, De Miaocosmi Historia, Oppenheim (Johann Theodore De Bry), 1619. e Maier, como filósofos CC rosa-crucíanos", são da mesma classe . .

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escritores que publicaram obras defendendo os Irmãos R. C., embora bem como a sua alquimia espiritual, dentro do círculo dos mais impor-
ambos afirmem não terem pertencido à Irmandade, o que naturalmente tantes conselheiros do Eleitor Palatino.
era a atitude habitual dos escritores sobre a mistificação rosa-cruciana.
No mesmo ano de 1618, foi publicado em Oppenheim pela firma
Os pontos evidentes de contato entre eles são: ambos foram mé- De Bry, um outro livro de Maier, tendo novamente uma página de
dicos paracelsistas, e ambos tiveram publicações feitas por johann rasto artisticamente gravada. Tratava-se de Atalanta [ugiens, um livro
Theodore De Bry, em Oppenheim. Costumava-se pensar que fora Maier que depois foi muito procurado pelas lindas ilustrações do seu texto
quem introduzira Fludd no mundo rosa-cruciano; mais recentemente enigmático. É quase certo que o gravador foi Matthieu Merian, embora
foi apresentada a hipótese inversa, de que tinha sido Fludd quem in- as gravações não estejam assinadas.
fluenciara Maier. Todas essas hipóteses no passado, evidentemente, não A Atalanta fugíens é um livro de emblemas com comentários filo-
levaram em consideração a situação histórica do Palatinado como um sóficos. No frontispício (Fig. 22), Atalanta é tentada a abandonar a
fator no problema. Caso Maier conhecesse Fludd e visitasse a Inglaterra corrida em busca da verdade espiritual, moral e científica, apresentando
com muita freqüência, não teria isto ocorrido porque, como muitos uma lição de perseverança e pureza de intenção ao alquimista espiritual.
outros, esperava grandes coisas do casamento do soberano do Palatinado Maier ensina uma filosofia religiosa e alquímica, muito sutil através
com a filha de Jaime I, e participava do segredo de alguma ligação dos emblemas do livro, cada .um dos quais tem um modo de expressão
entre a propaganda rosa-cruciana e os negócios do "Leão do Pala- musical, bem como pictórico. 31
tinado"? Um dos emblemas mais notáveis, mostra um filósofo com a sua
Após a morte de Rodolfo, Maier tornou-se médico de Maurício, lanterna seguindo com atenção as pegadas deixadas pela Natureza (Fig.
Landgrave de Hesse. Deste modo, associou-se com o príncipe alemão, 23 ). Isso é algo recordativo do prefácio dedicado por Giordano Bruno
que sentia grande simpatia pela Inglaterra, que foi influenciado pelo a Rodolfo II, quando em Praga em 1588, reiterando seu tema favorito,
misticismo alquímico, e em cuja cidade de Cassel, os manifestos rosa- que devemos investigar os vestígios ou pegadas deixadas pela Natureza,
-crucianos foram publicados pela primeira vez. A situação de Maier evitando os conflitos das seitas religiosas e voltando-nos para a Natu-
junto ao Landgrave de Hesse não impediu suas inúmeras viagens. reza clamando por toda parte, para ser ouvida. 32 Maier, embora sendo
Em 1618 - diz ele num de seus prefácios - encontrava-se em Frank- um cristão luterano devoto (Fludd era anglicano devoto) deve ter tido
furt a caminho de Londres para Praga. Como alguém que conhecesse alguma idéia em mente, quando nesses anos de violenta controvérsia
Londres e Praga, Maier poderia ter sido proveitosamente empregado religiosa, pouco antes de irromper a Guerra dos Trinta Anos, ensina
por Christian de Anhalt, a fim de preparar o caminho para a grande sua religião e propósitos filosóficos por meio do simbolismo alquímico,
aventura da Boêmia. Outro emblema na Atalanta [ugiens indica um filósofo apontando
para uma figura geométrica (Fig. 24a). O comentário a respeito desse
E de fato, existe uma evidência indubitável da ligação entre Maier
emblema é chamado "Monas ou o Imutável". Isso foi comparado por
e Anhalt. Em 1618, foi publicado por De Bry, em Oppenheim, um um recente editor do livro de Maier 33 à Monas bieroglypbica, de john
livro escrito por Maier e dedicado a Christian, Príncipe de Anhalt. Dee. Portanto, mais uma vez encontramos a Monas, de Dee, no âmago
É ele o Viatorum, hoc est de Montibus Planetarum Septem. Na página do mistério rosa-cruciano, entesourado entre os emblemas de Maier.
de rosto gravada (Fig. 21), vemos a fisionomia suave e sonhadora Este teria sofrido a influência de Dee na Boêmia.
de Michael Maier, acompanhada de sete figuras representando os pla- Não pode haver dúvidas de que o tipo de alquimia da qual os
netas. O livro é uma afirmação característica do misticismo alquímico emblemas de Maier representam a manifestação pictórica incompreen-
de Maier, que ele gosta de apresentar com uma aparência mitológica,
oculta nas lendas dos poetas. O tema do livro assim disfarçado é a 31. Sobre a musicalidade de Atalanta [ugiens, consultar John Resd, Prtllltl,
to Cbemistry, Londres, 1936, pp. 213-54, 281·89.
busca da matéria filosófica, a verdade escondida nos arcanos da natu-
32. G. Bruno, Articuli adoersus matbematicos, Praga, 1.588, prefácio; d .
reza, agarrando-se, tal qual Teseu, ao fio de linha de Ariadne que o Giordano Bruno and tbe Hermetic Tradition, pp. 314-15.
orientará através do labirinto. Deveríamos começar o estudo de Maier
pelo Via/orum, cuja dedicatória para Anhalt, imediatamente coloca-o
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33. Consultar H. M. E. De ]ong, "Atalanta Fugiens": SOIlJ"CeS 01 ..
mical Book 01 Emblems, Leíden, 1969.
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sível, é aquele que Libavius não aprovava, a alquimia dos manifestos As seguintes observações representam apenas alguns pontos extraídos
rosa-crucianos e a da Monas, de Dee. Se olharmos atentamente para desse vasto e rico material.
esse tipo de emblema, como aquele no qual o filósofo está prestes a
Lusas serias, de Maier, foi publicado em Oppenheim por Luca
atacar um ovo com a espada (Fig. 24b), podemos começar a nele Jennis em 1616, e também reeditado naquela cidade em 1618. É no
reconhecer o ovo que simboliza o universo 34 na Monas JJieroglyphica prefácio desse livro que Maier afirma encontrar-se em Frankfurt, a
(Fig. IDa), e o fogo, representado pelo signo de Aries na Monas, como caminho de Londres para Praga. Os três aos quais dedicou essa obra,
processos alquírnicos expressivos. Tornando a olhar para o "Alcbemist" são: Franeis Anthony, descrito como um inglês de Londres (notório
de Khunrath, que é lima manifestação do tipo de alquimia de Dee, médico paracelsista inglês); 36 jacob Mosanus, considerado como um
verificamos que a perspectiva no emblema de Maier, retesando-se por dignitário no lar do Landgrave de Hesse; e Christian Rumphius, co-
trás do ovo, é comparável à perspectiva na gravura de Khunrath. Ela nhecido como médico do Eleitor Palatino no Reno. Esses homens re-
simboliza - assim creio - a arquitetura, e está associada a assuntos presentam um indício dos círculos nos quais Maier se movimentava,
matemáticos. Ao nos lembrarmos de que a música é proporcionada por aqueles da Medicina Paracelsista em Londres e na Alemanha, e das
Maier para acompanhar o emblema "ovo", verificamos que ele contém cortes do Landgrave de Hesse e do Eleitor Palatino.
todos os elementos englobados na Monas bieroglypbica. Sinto-me com-
O Lusus serius - ou jogo sério - ' talvez seja o que Andreae
pletamente incapaz de compreender tudo iss~, .e tampouco como pod~ria
teria chamado de ludibriam, É uma alegoria singela, na qual uma vaca,
ser possível solucionar um problema .mate:na~lco nos t~rmos desse tipo
um carneiro e outros animais expõem suas reclamações à autoridade,
de alquimia. Acredito, porém, que as inferências desse ti.J;'0 encont~am-se
mas a suprema autoridade é conferida a Hermes Trismegisto, após seu
presentes nos emblemas de Maier, e que ele deve ter sido o mais pro-
discurso, no qual descreve seu papel de pacificador e conciliador, e o
fundo dos "rosa-crucianos".
benefício das atividades por ele dirigidas, que incluem a medicina e a
Embora Maier se manifeste principalmente por emblemas alquí- mecânica. Esta história é completamente tola, tendo-se em vista aquilo
micos, enquanto Fludd visa estruturar uma explicação filosófica per- a que se refere. Podemos apenas supor que tivesse algum sentido se-
feita suas filosofias têm em comum a influência de Dee e uma base ereto nos círculos nos quais Maier estava movimentando-se. Existe uma
hermética intensa. O culto de Maier por Hermes Trismegistos e pela outra piada hermética feita por Maier chamada o [ocus Seoerus, uma
verdade hermética "egípcia" é tão entusiasta quanto aquele de Fludd. alegoria sobre os pássaros noturnos, publicada a primeira vez muito
Seja o que for que isso possa representar, Fludd e Maier são positiva- antes de 1597, sob os auspícios da antiga firma De Bry, em Frankfurt,
mente filósofos herméticos, na realidade representando um tipo da Re- e reeditada nessa cidade em 1616 com o prefácio dedicado a "todos os
nascença Hermética, numa época em que os impulsos herméticos cri- químicos da Alemanha", e contendo alusões aos manifestos rosa-cru-
ginais estavam definhando em algumas regiões. Isaac Casaubon já datara danos. Isto associa muito claramente o tipo de "gracejo" de Maier
os textos herméticos como pós-cristãos 35 e portanto não sendo o tra- com o dos manifestos.
balho do sacerdote egípcio muito antigo, Hermes Trismegisto. O traba-
No livro Symbola aurea, publicado em Frankfurt por Luca Jennis
lho por ele indicado, como sendo a Hermética, foi realmente dedicado
em 1617, Maier exalta a sublimidade da "chyrnia", a sabedoria de
a Jaime I em 1614, uma consagração que poderia parecer colocar Jaime Hermes, Rei do Egito, e a santidade da "Virgem" ou "Rainha da Al-
no campo anti-hermético, e num mundo muito diverso do intensivo quimia" e termina com um hino hermético de regeneração. Temos
pseudo-egipcianismo de Fludd e Maier. aqui a manifestação de um intenso misticismo hermético, que muito
~ impossível comentar-se adequadamente, ou mesmo aqui mencio- nos lembra o emprego de temas religiosos herméticos de Giordano
nar, todas as obras de Michael Maier publicadas entre 1614 e 1620. Bruno, embora usando mais fantasias alquímicas do que em Bruno.
No Symbola, Maier se refere à Irmandade R.C. com certa extensio,
34. O símbolo da "monas" está contido no esboço de um ovo na página de
rosto da Monas bieroglyphica (Fig. 10-a) e um diagrama do universo no feitio porém de modo demasiadamente vago para ser informativo.
de um ovo é também mostrado no texto. O "corte" da Monas com facas é des- Maier talvez tenha sido influenciado por uma tradição-Bruno, bem
crito misteriosamente no "Testamento de John Dee", publicado no Theatrum como pela tradição-Dee. Sabemos que Bruno afirmava ter fundado uma
Chemicum Britannicum) de Elias Ashmole, p. 334. Consultar adiante, p. 216.
35. Consultar Giordano Bruno and the Hermetic Tradiuo», pp. 398403, 36. Consultar Debus, The English Par«elsi4lfs J pp. 142-'.

120
seita de "Giordanistas" entre os luteranos. 37 Maier era luterano' seu No Tbemis aurea (uma tradução em inglês foi publicada em 1652,
movimento religioso intensamente hermético poderia, portanto: ter e dedicada a Elias Ashmole), Maier pretende revelar a estrutura da
alguma influência de Bruno, poderia representar uma tentativa de re- Sociedade Rosa-cruciana e suas leis. Infelizmente, essas leis são sim-
forma hermética da religião, a infusão na religião de uma vida mais plesmente um sumário do que foi dito ao público sobre os Irmãos R .C.
grandiosa, através das influências herméticas, tais como Bruno defen- • na Fama, isto é, que deviam tratar dos enfermos, reunirem-se uma vez
dera tão apaixonadamente. Por outro lado, o aspecto fortemente alquí- I por ano, etc. Novamente, Maier maçantemente faz revelações, e con-
i
mico do movimento de Maier aponta para Dee como a principal in- I tudo nada revela. Todavia, ele é positivo sobre a existência real dessa
fluência. Talvez no tipo da reforma hermética no Palatinado, as cor- I sociedade e das pessoas que sabiam quais eram suas ligações e em que
rentes provenientes do tipo da tradição hermética de Dee se misturem l; círculos ele estava movimentando-se, e que poderiam ser capazes de
com o tipo da tradição de Bruno. interpretar suas alusões. No trecho abaixo ele parece pretender reve-
As obras de Maier, Silentium post clamores e Themis áurea, amo lar o local de reunião dos Irmãos R.C. 39
bas publicadas por Luca Jennis em Frankfurt nos anos de 1617 e 1618, Algumas vezes observei as Casas Olímpicas não muito distantes
respectivamente, refletem a emoção suscitada pelos manifestos rosa- de um rio, e conheci uma cidade que presumimos se chamar Es-
crucianos dos anos anteriores. Ao mencionar os Irmãos R.C. e suas
pírito Santo - quero dizer, Hélicon, ou Parnaso, na qual Pé-
questões nesses livros, Maier está tocando num assunto que estava des- gaso fez surgir uma nascente de água e nela Diana se banhava,
pertando a mais intensa curiosidade. Neles, parece estar fornecendo e e Vênus dela era serva, e Saturno o cavalheiro escudeiro. Isto
retendo informações. Em ambas as obras ele sustenta que a Irmanda- esclarecerá suficientemente um leitor inteligente, e confundirá
de R.C. existe realmente, e não é uma simples mistificação, conforme mais o ignorante.
alguns afirmaram. Por outro lado, afirma que não é um membro da-
quela, sendo demasiadamente humilde para ter acesso a esses seres tão Parnaso, Pégaso, são de fato alusões seguramente clássicas, geral-
elevados. mente indefinidas, e uma cidade chamada Sanctus Spiritus, perto de
No Silentium post clamores, Maier está defendendo os Irmãos R.C. um rio, poderia ser qualquer coisa. Por outro lado, Heidelberg está
das calúnias, e pretendendo explicar por que não responderam às inú- próxima a um rio, sua igreja era chamada Igreja do Espírito Santo, seus
meras pessoas que tentaram entrar em contato com eles. Diz que os jardins continham a maravilhosa fonte de Parnaso. Ao ler Maier, após
escritores de Fama e Conjessio fizeram seu dever publicando tais um minucioso estudo do ambiente de Heidelberg e do Cbemical Wed-
opúsculos, e que preferiam dissipar a calúnia pelo silêncio e não por ding, de Andreae, temos a impressão de que Maier, tal qual Andreae,
respostas escritas. Apressa-se a acrescentar que não julga que a Socie- pode estar aludindo a Heidelberg, que algumas de suas conjeturas em-
dade Rosa-cruciana precise de seu insignificante patrocínio. Seus mem- blemáticas poderiam refletir construções simbólicas, podendo ser vistas
bros são honestos e piedosos, suas intenções são boas, e bastam-se a no Hortus Palatinus. Comparemos, por exemplo, a gruta que De Caus
si mesmos. Afirma que a Sociedade Rosa-cruciana, bem como seus pro- construiu em Heidelberg, tendo uma fonte decorada com coral (Fig.
pósitos filantrópicos e piedosos, está interessada na investigação da 25a) com o emblema encantador de Maier, de um homem pescando
natureza. Ela não está senão meio-revelada - diz ele; aquilo que é coral (Fig. 25b). O comentário sobre aquele, explica que o coral
necessário é, principalmente, experiência e tentativa de investigação. 38 representa a Pedra FilosofaI.
Esta sugestão de uma influência baconiana - talvez a influência do
The Adoancement of Learning - é por si mesma importante. Uma Um ponto importante no Thamis aarea serve para confirmar
alguns argumentos iniciais deste livro, é a sua argumentação sobre a
influência baconiana poderia ter-se originado na Alemanha na esteira
do casamento do Eleitor Pala tino, e dos contatos com a Inglaterra, Irmandade R .C. como uma Ordem de Cavalaria, comparando seu em-
tais como os movimentos de Maier sugerem. blema "R.C." com a insignia de outras Ordens, a cruz dupla dos
Cavaleiros de Malta, o Ve1ocino da Ordem do Tosão de Ouro, ou •
37. Consultar Giordano Bruno anâ lhe Hermetic Tradition, pp . .312-1.3.
38. Si/enJium post clamores, pp, 11 e 55; cf. Waite, Brotberbood of lhe 39. Tbemis aurea, hoc est de legibus F,/Uernittlhs R. c.~ Ftankfurt. 1618.
Rosy Cross, p. 321. p. 143; cf. Waite, ibid., p. '28.

122 laJ
Jarreteira da Ordem da Jarreteira. O trecho seria comparado com as Frederico-Elisabete, avançando gradualmente desde o casamento até o
alusões às Ordens de Cavalaria, no Chemícal Weddíng. Maier, após ano fatal na Boêmia, e que Maier esteja revelando os lados religioso e
comparar a Ordem R.C. com outras Ordens, prossegue dizendo que intelectual daquele movimento em seu simbolismo hermético. Seu con-
seu emblema não é nem cruz dupla, nem o Velocino e tampouco a tato definitivo com Anhalt formando ligações entre a Inglaterra, Ale-
jarreteira, mas sim as palavras R.C. Sobre estas, ele oferece uma inter- manha e Boêmia, é a preliminar para a instituição de Frederico e Eli-
pretação peculiar, dizendo que o R. significa "Pégaso", e C. "Iulius" sabete, como Rei e Rainha da Boêmia.
(nenhuma explicação do porquê), acrescentando: "Não é essa a garra Maier é estimulado por um impulso religioso hermético muito
de um leão rosado?" 40 Fico satisfeito deixando isso como uma pergunta. forte, e a seu modo tão forte quanto aquele que instigou Giordano.
Em seu Verum inuentum, publicado em Frankfurt por Luca Jen- Bruno no final do século XVI, embora em Maier fosse combinado
nis em 1619, e dedicado ao Landgrave de Hesse, Maier está numa com a devoção luterana - o gênero de combinação 'que poderíamos
veia patriótica; discute a história do Império em sua conexão com a esperar, se a influência de Bruno tivesse criado raízes nos círculos
Alemanha, exalta as riquezas da cultura alemã, por exemplo, o grande luteranos da Alemanha.
número de manuscritos arquivados nas bibliotecas, tais como aquele A força desse impulso não se extinguiu nem mesmo pelas catás-
em Heidelberg, elogia Martinho Lutero e sua resistência contra o trofes de 1620. Seu último trabalho parece ter sido Cantilenae intel-
tirano de Roma, o Papa, deseja a volta à igreja primitiva, e enaltece lectuales de Phoenice redivivo,43 com uma dedicatória a Frederico,
Paracelso - "o qual é seguido por muitos milhares de doutores em Príncipe da Noruega, datada em Rostock, 23 de agosto de 1622. Nesse
todos os países". 41 seu canto do cisne, ou antes canto da fênix, Maier profetiza o renasci-
Finalmente chegamos a 1620. Naquele ano, Luca jennis publicou, menta da Fênix, o pássaro hermético e egípcio, cuja supremacia sobre
em Frankfurt, o Septimana pbilosopbica de Maier, no qual descreve a todos os outros ele decantara em uma de suas primeiras "piadas". Na
conversa de Salomão, da Rainha de Sabá e Hiram, Rei de Tiro, e dedicatória de seu canto à Fênix, para o príncipe norueguês, Maier
inclui conferências místicas sobre vários temas, inclusive uma sobre a fala de sua vida como tendo sido despendida - bastante estranha-
Rosa. 42 mente - não na estruturação de trabalhos complexos do simbolismo
As estranhas publicações de Michael Maier seguem um gráfico hermético, que ele não menciona, mas sim no estudo da matemática.
de tempo diferente. Começam em 1614, o ano após o casamento de Um jovem alquimista da Boêmia, refugiado dos horrores que ocor-
Frederico e Elisabete; terminam em 1620 (embora haja um posterior), riam em seu país após 1620, reverenciou a memória de Michael Maier
o ano do breve reinado de Frederico e Elisabete na Boêmia. São total- e conservou-a viva reeditando seus trabalhos, usando as mesmas pran-
mente caracterizadas pelo misticismo hermético expresso em termos de chas, conforme tinham sido empregadas nas publicações originais. Esse
hermética ou interpretação "egípcia" da fábula e lenda, como contendo jovem foi Daniel Stolck, ou Stolcius, médico diplomado pela univer-
significados alquímicos e "egípcios" ocultos, combinados com um em- sidade de Praga, o qual em 1621 chegou a Marburgo, onde matriculou-
prego idiossincrásico do simbolismo alquímico. A Atalanta jugiens se, indo em seguida para Frankfurt, e foi procurar Luca jennis, Este
representa o mais primoroso resultado dessa concepção, e sugestivo mostrou-lhe as pranchas de uma quantidade de trabalhos recentemente
quanto aos antecedentes altamente cultos e sofisticados, nos quais a publicados, principalmente aqueles de Maier, e Stolcius concordou em
alquimia está sendo empregada como um movimento religioso e inte- preparar a edição de uma nova publicação das obras. 44 Esta apareceu
lectual de rara importância e interesse. como o Viridarium cbemicum, editada por Luca Jennis, Frankfurt,
1624,45 com um prefácio de Stolcius datado de 1623, em Oxford. A
Agora parece óbvio que o gráfico de tempo do movimento reli-
gioso e intelectual, que Maier representa, seja a época do movimento de 43. Consultar Craven, Míchael Maíe" p. 146.
44. Consultar John Read, Prelude lo Chemístry, pp, 254-77. O emprego das
40. Tbemis eure«, p. 159. pranchas de Stolcius dos trabalhos de Maier e Mylius é analisado por Read.
41. Verum ínvenlum, dedicatória. 45. Uma edição alemã foi publicada por ]ennis, também em 1624; esta en-
42. Seplímana phílosophíca, pp. 118-21. Essas observações parecem nada contra-se disponível numa reedição; consultar Stoltzius von StoItIenber& CIt1-
revelarem deliberadamente. miscbes Lustgartleín, ed. F. WeinhandI, Darmstadt, 1964.

124 ,12'
'.
Inglaterra foi o porto de salvação que o refugiado da Boêmia alcançara, tiveram seus trabalhos publicados pelo editor daquele terntono, De
como muitos outros de seu país nos últimos anos. Nesse prefácio, Stol- Bry, embora os de Maier tivessem sido editados pela firma associada
cius fala de sua infelicidade, que tentara aliviar, vivendo em imagina- de ]ennis. Daí resulta a importância dos impressores e editores no
ção no "jardim dos prazeres da Químiatria", e oferecendo esse con- movimento. E vimos que as filosofias herméticas da Inglaterra, re-
solo também aos seus conterrâneos infelizes. Evidentemente espera presentadas por Fludd, estão sendo difundidas na área do Palatina-
que o "jardim dos prazeres" em breve circulará na Boêmia oprimida. do, juntamente com o movimento alquímico simbolista, propagado
Em sua viagem para fora do país, ele diz estar sendo angustiado pelas por Maier, provavelmente como parte da missão de desenvolvimento
catástrofes em sua pátria, e perturbado pelos tumultos da guerra. O das articulações com a Boêmia, e especialmente com Praga, o prin-
único refúgio é no jardim dos prazeres da quimiatria.é" cipal centro europeu de alquimia. Ter-se-ia então verificado no Pala-
tinado um esforço para estimular as linhas de pensamento, através
Portanto, bondoso leitor, usa e desfruta o prazer nestes [emble- das quais a aliança inglesa poderia ser integrada e incrementada na
mas] como te parecer melhor, e dá um giro agradável pelo meu Boêmia. A aventura do Eleitor Palatino em seu país não foi, portanto,
jardim. Agradece à terna lembrança do muito famoso e erudito um assunto de aparência política ou ambição mal orientada, conforme
Herr Michael Maier, o mais célebre Doutor em Física e Medi- costumavam supor. Existiram correntes de intenções muito sérias per-
cina, na parte das ilustrações; a Master john Mylius, aquele passando por esse movimento.
diligente quimiatro, quanto ao mais. Estava-se formando uma cultura no Palatinado, que viera direta-
mente da Renascença, porém, acrescida de tendências mais recentes;
Muitos dos emblemas de Maier estão reeditados neste livro, das uma cultura que podia ser definida pelo adjetivo "rosa-cruciano", O
pranchas originais que Jennis conservou, juntamente com muitos daque- príncipe, em torno do qual essas correntes profundas estavam revolu-
les de Mylius, originalmente publicados em 1622. Mylius era um dis- teando, era Frederico, o Eleitor Palatino, e os seus expositores manti-
cípulo de Maier e é evidente que simpatizava ardentemente com a nham-se na expectativa de uma manifestação político-religiosa de seus
"causa", pois declara num prefácio do ano de 1620: "aquele ano si- desígnios, no movimento que visava a aventura da Boêmia. Conforme
nistro, que tanto verte lágrimas e por isto o céu desaba". 47 começo a considerá-lo, todos os movimentos misteriosos dos primeiros
Stolcius fornece uma ligação entre o emblema do movimento al- anos, em torno de personagens tais como Philip Sidney, John Dee,
químico, em torno de Maier, e o lado boêmio do movimento que teve Giordano Bruno, fortaleceram-se com a propaganda de Anhalt a favor
um fim calamitoso em 1620. O refugiado corre para Luca Jennis, de Frederico. O movimento "fredericano' não foi a causa dessas
como para um simpatizante, e triste e respeitosamente prepara uma correntes profundas, e longe estava de ser apenas a manifestação
reedição dos emblemas de Maier. O Viridarium chemicum tem delas. Foi contudo uma tentativa para dar expressão àquelas correntes
início com uma série de emblemas relativos à união dos sponsus e da político-religiosas, para realizar o ideal da reforma hermética, con-
sponsa, como sendo a imagem da fusão elementar nos processos alquí- centrado num príncipe real. O movimento tentou reunir rios desco-
micos. No primeiro desses "casamentos alquímicos" (Fig. 26a) que nhecidos num só curso de água - a filosofia de Dee e a cavalaria
é a primeira gravação no livro, 48 o sponsus e a sponsa têm uma seme- mística da Inglaterra - deviam juntar-se às correntes místicas alemãs.
lhança estranha com Frederico e Elisabete, conforme aparecem na gra- A nova alquimia devia aliar as divergências religiosas e encontrar
vação com os "Quatro Leões" (Fig. 8), publicada em Praga na época um símbolo no "casamento alquímico", com a riqueza sugestiva de
de sua coroação. alusão ao "enlace do Tâmisa e do Reno". Sabemos que esse movi-
Este estudo de Fludd e Maier tentou mostrar que ambos perten- mento deveria fracassar calamitosamente, deveria acabar precipitando-
ceram ao círculo do movimento de Frederico no Palatinado. Ambos -se no abismo da Guerra dos Trinta Anos. Mas nesse meio tempo,
criara uma cultura, um estado "rosa-cruciano" com sua corte centra-
46. Citação de Read, Prelude, p. 257. lizada em Heidelberg, sua literatura filosófica publicada dentro do
47. Johann Daniel Mylius, Philosopbia Reforma/a, Frankfurt (Luca ]ennis), Estado, tendo manifestações artísticas no símbolo do movimento alqul·
1622, Prefácio, citação de Read, p. 260. mico ao redor de Maier, e no trabalho de Salomon De Caus.
48. Foi primeiramente publicado no Tripus Aureus, de Maier, Frankfurt
(Luca jeanís), 1618, p. 27. .

126 127

I afirmara estar informado disso através de um membro da corte de
Heidelberg no exílio. 2 Essa fonte de informação talvez possa agora
I'
I
reforçar a hipótese ventilada sobre jungius. O fato de agora sabermos
r que o mito Rosencreutz era uma espécie de " alegoria mágica", a qual,
como no caso da Monas Hieroglyphica, de John Dee, podia conter um
\, trabalho científico muito sério, principalmente a matemática, suscita
a possibilidade de que personagens tão importantes quanto jungius
CAPÍTULO VII pudessem encontrar-se por trás dos manifestos. Entretanto, não se
pode fazer afirmações decisivas sobre os problemas dos antecedentes
dos manifestos, até ter sido feito um estudo relativo aos antecedentes
o FUROR ROSA-CRUCIANü históricos. A destruição dos livros e documentos em Heidelberg, quan-
do a cidade caiu nas mãos dos inimigos, pode significar que grande
NA ALEMANHA parte das provas ficou irremediavelmente destruída . É possível que
Janus Gruter, o bibliotecário da Biblioteca Palatina e o centro de uma
o "furor rosa-cruciano", que surgiu como uma reação às exci- extensa correspondência internacional, seja alguém que deva ser obser-
tantes comunicações dos manifestos, em pouco tempo, tornou-se in- vado para uma pista .
trincadamente confuso, devido ao grande número daqueles que tenta-
vam dele participar, sem terem um conhecimento aprofundado do A duração do furor rosa-cruciano - da enchente de literatura
que se tratava; uns simplesmente atraídos pela possibilidade emocio- provocada pelos manifestos - favorece o argumento de que tais mani-
nante de entrar em contato com os misteriosos personagens possuido- festos estavam associados ao movimento em torno do Eleitor Palatino,
pois esse furor teve um fim súbito, logo após 1620, na época coinci-
res de uma cultura ou poderes superiores, outros encolerizados e
dente com o colapso da aventura da Boêmia, a invasão do Palatinado,
alarmados com a difusão imaginária de magos ou agitadores perigosos .
Maier julgou os manifestos como um apelo a todos os "alquírni- e a extinção da corte de Heidelberg.
cos" da Alemanha; 1 talvez com isto quisesse fazer um apelo a .todos O que é absolutamente necessário para o esclarecimento desse
os paracelsistas místicos ou que buscavam algum meio de iluminação. emaranhado de literatura, suscitado pelo furor rosa-cruciano, é um
Os responsáveis pelos manifestos originais bem poderiam ter-se sur- exame do assunto, com a proficiência de um especialista bibliográfico;
preendido e alarmado com o efeito de suas palavras, pela excitação uma estimativa das datas, lugares de publicação, informações dos
violenta que explodiu em resposta ao apelo dos supostos Irmãos R. C. editores, papel, etc ., através dos quais pode ser obtida uma idéia geral
para que apoiassem o seu movimento. mais acurada, e elucidados os problemas do anonimato e do emprego
de pseudônimos pelos escritores. 3 Todo esse campo é realmente solo
A reação foi principalmente em resposta à Fama e à Confessio,
cujos autores, embora evidentemente pertencendo à escola da mito- 2 . J. A. Fabricius afirmou que Joachim jungius era o autor da Fama e
logia de Rosencreutz, propalada por Andreae no Chemical Wedding, que fora informado por "um secretário em Heidelberg"; consultar Actd ~udito­
poderiam ter sido outros que não o próprio Andreae. Não adianto rum, 1968, p. 172; cf. Arnold, Histoire des Rose-Croix, p. 85. Partington (History
quaisquer hipóteses sobre as identidades dos escritores que devam of Cbemistry, II, p. 415) cita a referência na Acta eruditorum, afirmando porém,
que não é verdadeira a informação de que Jungius tivesse escrito a Fama, embora
ter cooperado com Andreae na propaganda de Rosencreutz. Muitas pertencesse ao círculo de Andreae.
sugestões foram feitas a esse respeito; algumas, obviamente, alheias 3. No momento, o único trabalho indicando ser uma Bibliografia Rosa-cru-
ao assunto, e algumas que devem ser consideradas. Entre estas últi- ciana é o de F. Leígh Gardner, A Catalogue Raisonné oi toorks O" tbe OcctJl
mas encontra-se a de joachirn Jungius, o eminente matemático admi- Sciences: Rosicrucian Books, editado particularmente, 1923. Isto é muito pouco
satisfatório, embora possa auxiliar como introdução à matéria. Pode-se encontrar
rado por Leibniz. A apresentação de jungius, como tendo sido o autor algumas informações examinando a Bibliotbeca Cbemic«, J. Ferguson, Glasgow.
dos manifestos rosa-crucianos, foi feita em 1968, por um escritor que 1906.
Os melhores relatos sobre o que chamei de "Furor Rosa-cruciaoo" podem
1. Maier, [ocas Severas, epístola de dedicatória. ser encontrados nos seguintes livros: A. E. Waite, Tbe Re41 HislOry o/ IH R.oti-

128 .;, 129


J
virgem, ainda não cultivado por uma pesquisa moderna e séria, porque
até agora foi posto de lado por não merecer um estudo meticuloso.
I prio Andreae, sente-se entusiasmado com a "Pansophia" da Irmandade
e suas tríplices atividades, que ele assim classifica: (1) divinamente
Neste capítulo, não tenho em mira averiguar a fundo a questão, mas mágica (2) física ou "química", e (3) "Tertriune" ou religiosa e
apenas dar uma breve idéia sobre a literatura do furor (independente- católica. Acreditam no "divino Elias" (uma alusão à profecia de Para-
mente dos trabalhos de Fludd e Maier, os quais tentei examinar no celso ou da vinda de Elias). Possuem colégios com vastas bibliotecas,
último capítulo) . e lêem com um entusiasmo especial os trabalhos de Thomas à Kempis,
Existem inúmeros espmtos simples, freqüentemente referindo-se encontrando na piedade mística cristã, a verdadeira "magnalia", a
a si mesmos somente pelas iniciais, que imprimem pedidos aos Irmãos explicação final do mistério macrocósmico. 6
R. C., manifestando admiração e solicitando associarem-se ao seu mo- Esse trabalho é claramente típico de tais publicações, com a sua
vimento. Outros publicam trabalhos mais extensos , dedicando-os a filosofia "Pansófica" do macrocosmo e microcosmo, impregnada de
eles, esperando assim angariar a sua atenção. Em seguida, vêm os Magia, Cabala e Alquimia, sugerindo uma busca ardente de conheci-
antagonistas, os que não aprovam , que atacam a irrev~rê.ncia, as prá- mentos e atividades científicas, seu lado profético e sua forte inspira-
ticas da mazia ou a subserviência dos Irmãos R .C. Ja Julgamos um ção pietista.
crítico, Lib:vius. Os pseudônimos "Menapius" e "Irenaeus Agnos-
tus" 4 ocultam críticos severos. Encadernada com a cópia do Speculum no Museu Britânico,
existe uma coleção muito interessante de gravuras e desenhos. Uma
As publicações mais interessantes são aquelas que emanam de delas refere-se particularmente à Fama rosa-crucíana. Conheço uma
pessoas parecendo bem-informadas sobre o movimento, ou provavel- outra cópia dessa gravura;" a qual aparentemente circulou sozinha,
mente que nele estejam envolvidas intimamente. São criaturas miste- independentemente do Speculum.
riosas, que usam pseudônimos. No que vem a seguir, concentrei-me
nesse tipo de publicação rosa-cruciana, selecionando as que me parecem Essa gravura (o frontispício) mostra um edifício peculiar, sobre
mais importantes, e se possível, esforçando-me por aprender mais o qual se vê uma inscrição contendo as palavras Collegium Fraternita-
sobre o movimento partindo de dentro, e desprezando a enchente de tis e Fama, e está datada de 1618. No edifício, a cada lado da porta,
publicações dos que estão por fora, e que evidentemente nada sabem, há uma rosa e uma cruz. Portanto, estamos, presumivelmente, vendo
uma imagem do Colégio Invisível dos Irmãos R.C. Outro importante
salvo o que leram nos manifestos.
emblema rosa-cruciano é mencionado nas asas com o Nome de Jeová,
Theophilus Schweighardt 5 publicou em 1618, sem o nome do palavras significativas que selam a conclusão da Fama: "Sob a sombra
lugar da publicação ou do editor, um trabalho com o seguinte título: de tuas asas, Jeová." No céu, à esquerda e à direita do Nome central,
Speculum sophicum Rbodo-Staaroticum, Das ist: Weilauffige Ent- estão uma Serpente e um Cisne, amparando as estrelas, uma alusão
deckung des Collegii und axiomatum von sondem erleuchten Frater- às "novas estrelas" das constelações Serpentário e Cisne, menciona-
nitet Cbristi-Rosen Creutz . Este é um típico exemplo de um título das na Conjessio 8 como prenunciadoras de uma nova disposição.
rosa-cruciano, com sua mistura de latim e alemão . Nesta obra, Theo- A mão proveniente de uma nuvem à volta do Nome segura o
philus Schweighardt, que pode ser um Daniel Mõgling, ou talvez o edifício como por um fio, e o próprio edifício está alado e sobre rodas.
mesmo figurando como "Florentinus de Valentia", ou mesmo o pró- Pode isso significar que o Colégio da Irmandade da Rosa-Cruz, alado
e volante, encontra-se em Parte Alguma, igual. à Utopia, invisível,
crucians, Londres, 1887, pp . 246 e ss.; A. E. Waite, The Brotberbood of the Rosy porque não existe num sentido literal. O Colégio Rosa-Cruz é defen-
Cross, Londres, 1923, pp. 213 e ss; Paul Arnold, Histoire des Rose-Croix, Paris,
1955, pp. 137 e ss; Will·Erich Peuckert, Die Rosenkreutzer, jena, 1928, pp. 116 dido em suas ameias, por três personagens que carregam escudos. nos
e ss. O livro de Peuckert é valioso, principalmente pelos antecedentes alemães.
4. A pessoa que assim se assinava começou a colaborar com o movimento, 6. Schweighardt, Speculum, p. 12.
mas atacou-o posteriormente; consultar Arnold, pp . 114-15. "Menapius" parodiou 7. Museu Britânico, Sala de Imprensa, Hist6ria do Exterior, 1618, N.-
os Irmãos R.C. em 1619; é considerado por Waite (Real History, p. 258) como 1871.12.9.4766. Ben ]onson, que descreve esse impresso (consultar adiante, p.
sendo o mesmo, sob o pseudônimo de "Irenaeus Agnostus". 158), evidentemente nele viu uma cõpia do Speculum de Schweighardt. -.
5. Waite, Brotberbood of the Rosy Cross, p. 259; Arnold, p, 11.3. 8. Consultar o Apêndice, p. 315, e IIJlteriormente p. 73.

1.30 UI
quais está gravado o Nome, e eles brandem algo semelhante a plumas. ding. É um fervoroso luterano, mas profundamente imbuído da "Anti-
São elas figuras angelicais defendendo os que ali residem sob a Som. ga Sabedoria", hermética e cabalística (cita Reuchlin). Afirma ser
bra das Asas? profundamente louvável ler o Livro da Natureza. Entre os primeiros
De um lado do edifício, projeta-se uma trombeta, e as iniciais intérpretes da Natureza, coloca Hermes Trismegisto, a quem situa
"C.R.F." - talvez "Christian Rosencreutz Frater" - anunciadas pelo como contemporâneo de Moisés; outro importante intérprete da Natu-
alarde dos manifestos. Do lado contrário, a mão segurando uma espada reza é Paracelso. Conhece algumas expressões de Maier, cita-as entre
projeta um letreiro "JuI. de Campi", aludindo ao personagem chamado aspas, e ao falar do mistério do "utriusque Mundi majoris et minoris
"julianus de Campis", que aparece no Speculum , e cuja defesa da Harmonica comparatione", está evidentemente aludindo ao trabalho
Irmandade R.C. foi impressa com a edição dos manifestos em 1616 de Fludd.
(Cassel).9 Talvez seja por isso que ele brande uma espada protetora "SteIlatus" oferece uma das mais claras definições do movimento
na gravura. Perto do braço que se projeta, estão escritas no edifício rosa-cruciano, conforme inspirado pela "Antiga Teologia", a qual esti-
as palavras "Jesus nobis ornnia", um lema que também é encontrado mula uma investigação da Natureza. Ele é profundamente antiaristo-
na Fama e é expressivo quanto ao ponto já citado do Speeulum, de télíco, e a favor da interpretação animista da Natureza. Parece fazer
que a verdadeira aproximação do mistério macromicrocósmico está alusões pessoais, que são entretanto incrivelmente obscuras. Num certo
na imitação de Cristo, conforme descrito por Thomas à Kempis. Ou- ponto, faz entrever que tem em mente o Landgrave de Hesse, e sinto-
tros pequenos pares de asas têm inscrições, sendo uma delas "T.S." - -me propensa a julgar que "Pégaso" deve ter sido um dos epítetos do
talvez Theophilus Schweighardt, o suposto autor do Speculum. Eleitor Palatino.
Uma figura à direita, ajoelhada no chão, dirige preces ardentes Entre outros patrocinadores misteriosos dos Irmãos R.C., cons-
diretamente para o Nome acima. Vê-se por dentro das janelas do Colé- tava "julianus de Campis", já mencionado, e julius Sperber, autor
gio da Irmandade Rosa-Cruz, protegidas pelos anjos, figuras de pessoas do Ecbo der von Gott Hoeherleuchten Fraternitet des lõblicben Or-
que parecem concentradas nos estudos. Um homem a uma janela está dens R.C., publicado em Dantzig em 1615. Julius Sperber era o verda-
trabalhando em alguma coisa; na outra, aparece o que se assemelha a deiro nome de uma pessoa real,l1 sendo considerado como tendo
instrumentos de alguma espécie. A atitude piedosa da figura ajoelhada, ocupado uma posição oficial em Anhalt-Dessau, e assim possivelmente
poderia ser interpretada como uma aproximação dos estudos científí- ter tido uma ligação com Christian de Anhalt. Em seu Ecbo, Sperber
cos, angelicais e divinos, até certo ponto iguais àqueles de John Dee. parece escrever com alguma autoridade sobre os Irmãos R.C., e revela-
Deixo o leitor procurando decifrar os mistérios dessa gravura, a -se profundamente imbuído da magia e cabala e das obras de Henry
qual indubitavelmente nos mostra uma forma simbólica da mensagem Cornelius Agrippa e Johannes Reuchlin; conhece também a Harmonia
da Fama rosa-cruciana. Estamos pois perto do ponto central da Mundi, de Francesco Giorgi, e as obras de "Marsilius Ficinus Theo-
"piada", o ludibriam, originada no espírito das estranhas pessoas que logus". Interessa-se pelas idéias de Copérnico, e recomenda veemente--
conceberam os manifestos rosa-crucianos. mente, como um dever de piedade, a leitura dos hieróglifos e caracte--
"joseph Stellatus", escreveu em latim, sem misturar o alemão, a res no Livro da Natureza. Sperber poderia parecer um exemplo típico
obra chamada "O Pégaso do Firmamento ou uma breve introdução à da mudança relativamente à investigação da Natureza, que emerge da
Antiga Sabedoria, ensinada inicialmente na Magia dos Egípcios e corrente rosa-cruciana.
Persas, e agora, corretamente chamada a Pansofia da Venerável Socie- O "Julgamento de Alguns Eminentes Doutores sobre a situação
dade da Rosa-Cruz". 10 Foi publicada em 1618, sem nome do local ou e religião da Famosa Fraternidade Rosa-Cruz" 12 publicado em
editor, e com um privilégio proveniente de "Apolo". O autor conhece Frankfurt, 1616, como sugere seu título, é uma coletânea de opiniões
e faz citações da Fama e da Coniessio, e também do Cbemical Wed·
11. Bibliotbeca Cbemica, Il, pp, 391·2; d. Waite, Re.t History, p. 2.";
Consultar o Apêndice, p. 294.
9. Arnold, p. 133.
Joseph -Stellatus , Pegasus Firmamenti siue lntroductio breois in uete-
10. 12. I udicia Clarissimorum aliquot ac doctissimorllm virorum ... de Sutil
rum sapientiam, quae olim ab Aegyptiis & Persis Magia, bodie oero a Venerahili & Religione · Fretemiuuis celebratissimae àe Rosea Crec«, Frankfurt (J. BrIDae"
Fraternitate Ros-eae Crucis Pansopbia reate vocatur, 1618. ren), 1616.

1.32 lU

~-
de várias pessoas. O primeiro ensaio é uma apologia do lema "Jesus Livro, contemplamos o próprio Deus. O espírito de Deus está no
mihi omnia" da Ordem Rosa-Cruz, e enunciado por "Christianus Phi- âmago da Natureza. Ele é a base da Natureza e do conhecimento de
ladelphus" um amante da Pansofia, o qual enfatizá o caráter da todas as coisas. O leitor é intimado a estudar, com os Irmãos R.C., o
Ordem, profundamente cristão. Numa outra colaboração, adverte a Livro da Natureza, o Livro do Universo, e a voltar ao paraíso, que
todos os devotos da Europa que se livrem da filosofia "Pseudo-Étnica" Adão perdeu. (Bacon, também esperava restituir ao homem o conhe-
(isto é, a aristotélica) e se voltem para a "Divina Teosofia Macromi- cimento que Adão tivera antes da Queda.) O escritor afiança ao
crocósrnica" . crítico "Menapius", que os Irmãos R.C. amam a Deus e ao seu pró-
Um dos mais interessantes de todos esses opúsculos é a Rosa ximo; buscam o conhecimento da Natureza para a glória de Cristo, e
Florescens, 13 publicado em 1617 e 1618 sem nome do local ou editor, nada têm a ver com o demônio e suas obras. O escritor acredita firo
e considerado como sendo de "Florentinus de Valentia". É uma répli- memente no Pai, no Filho e no Espírito Santo, e deseja ardentemente
ca a uma crítica à Fraternidade R.C., feita por "Menapius". O autor habitar "sob as asas de Jeová".
da Rosa Florescens talvez revele o mais amplo conhecimento e inter-
Foi ventilada a hipótese desse opúsculo veemente ter sido escrito
pretação do que qualquer outro do grupo. Está interessado na arqui-
tetura, mecânica (Arquimedes), aritmética, álgebra, harmonia musical, pelo próprio Johann Valentin Andreae.J" Sem dúvida, é um trabalho
geometria, navegação, e belas-artes (Dürer). Julga que as ciências são notável e digno do autor do Cbemical Wedding.
imperfeitas e exige o seu melhoramento. A astronomia está na mais A crítica aos Irmãos R.C. por "Menapius", "Irenaeus Agnostus"
absoluta deficiência. A astrologia é ambígua. Não carece a "Física" Libavius e outros, baseia-se principalmente nos seguintes pontos. Sus-
de experiência? Não precisa a "Ética" de um reexame? O . que é a peita-se que as suas atividades sejam subversivas aos governos insti-
medicina, senão conjeturas? 14 tuídos; Libavius é o mais direto quanto a este ataque. Existe uma
Esses trechos têm um toque quase baconiano, e talvez possam ter acusação de práticas de magia, feita freqüente e genericamente. 16 Por
representado uma influência do Tbe Aduancement of Learning sobre fim - e este é um dos pontos mais importantes - apresentam a
o grupo, originando-se da Inglaterra, simultaneamente com outras queixa de que a posição religiosa dos Irmãos R.C. não está clara.
influências inglesas, através do casamento do Eleitor Palatino. Todavia, Alguns os chamam de luteranos, outros de calvinistas, e outros ainda
os principais interesses do autor da Rosa Florescens parecem concen- de socinianos 17 ou deístas. Alguns chegam até a suspeitar que sejam
trar-se nas ciências baseadas nos números, nos assuntos vitruvianos, jesuítas. 18
que John Dee desejara ver melhorados em seu prefácio para Euclides.
Fludd, no seu Tractatus de 1616, no qual elogiou o movimento rosa- 15. Essa sugestão foi feita por Gottfried Arnold, Unpartheyische Kirchen-
-cruciano e repetiu os argumentos de Dee quanto à melhoria das ciên- -und Ketzer-iiistorien, 1699, p. 624. Cf. Bibliotheca Cbemica, loco cito
cias matemáticas, pode ter exercido influência na Rosa F/orescens. 16. . Os defensores sustentam que a sua mágica é boa e piedosa.
Mas seja qual for a influência por ele sofrida, o escritor dessa obra faz 17. Sobre a sugestão da influência sociniana, consultar Henricus Neuhusius,
um apelo veemente e independente para a incrementação de todos os Pia et utilissima admonitio de Fratribus Rosae Crucis, Dantzig, 1618. Neuhusius
ramos da ciência. Devemos admitir que uma concepção como essa afirma que os rosa-crucianos são socinianos. Embora estes possam ter sido atrai-
estava oculta no apelo feito na Fama rosa-cruciana, quanto ao esforço dos pelo liberalismo do movimento, a afiliação religiosa característica dos mani-
festos e o entusiasmo por eles provocado parecem-me ter sido originalmente um
de uma colaboração para a divulgação da iluminação. tipo de cristianismo evangélico e místico.
Para o autor da Rosa Florescens, o impulso para a investigação 18. Essa impressão pode ter sido encorajada pelos elementos dados por
da Natureza é profundamente religioso em seu intuito. Deus imprimiu "Adam Haselmayer", publicados com a Fama (ver acima, pp. 65-6 e o Apêndice,
p. 292. Conquanto tenha sido dito que Haselmayer foi perseguido pelos jesuítas,
seus símbolos e caracteres no Livro da Natureza. Ao contemplar esse parece também ter causado a impressão de que a Ordem rosa-cruciana, com a sua
amizade por Jesus, era uma espécie de Ordem jesuíta, embora com deslgnios
13. Florentinus de Valentia, Rosa Florescens contra F. G. Menapius, 1617, muito diferentes. Alguns jesuítas inimigos dos rosa-crucianos pareciam também
1618. Consultar Bibliotbeca Cbemica, I, pp. 281-2. querer causar a impressão de que as duas Ordens eram as mesmas; consultar
adiante, pp . 137·38.
14. Rosa Florescens, passim.

134
Isso faz-nos. supor o que de~e ter sido um dos mais importantes alquímica inspirada em Paracelso, a frieza e aridez da piedade luterana
aspectos do movimento rosa-cruciano, que podia ter diversas denomi-
contemporânea, que é um objetivo dos escritores rosa-crucianos. A
nações religiosas. Como já vimos, Fludd sustentava que seu trabalho
cidade natal de Boehme ficava perto de Gorlitz, na Lusatia e na fron-
fora bem recebido por pessoas sinceramente religiosas de todas as deno-
teira da Boêmia. Vivendo onde viveu e na época em que viveu,
minações. Ele era anglicano fervoroso, amigo de bispos anglicanos,
Boehme não pode ter deixado de conhecer o "entusiasmo" rosa-crucia-
como o era Elisabete Stuart, a esposa do Eleitor Palatino. O Eleitor
no, o movimento em torno do Eleitor Palatino e a sua esmagadora
era um ~alvinist~ sincero, bem como Christian de Anhalt, seu principal
derrota em 1620. Uma das poucas datas conhecidas na obscura bio-
conselheiro. Maier era um luterano devotado, como foi também An-
grafia de Boehme é a de 1620, quando se encontrava em Praga. 20
dreae e muitos outros escritores rosa-crucianos. O denominador comum,
Embora não haja provas de qualquer ligação entre Boehme e o movi-
que os mantinha unidos, seria a filosofia harmoniosa macromicrocós-
mento rosa-cruciano, poderíamos dizer que ele foi o tipo do "alquimis-
mica, a alquimia mística, das quais Fludd e Maier foram os dois princi-
ta" .alemão, a quem os autores dos manifestos deveriam ter esperado
pais expoentes, embora as obras de menor importância por nós exarni-
atrair.
nadas neste capítulo reflitam um ponto de vista semelhante.
Após examinar os trabalhos mencionados neste capítulo, não
Pela difusão de uma filosofia , ou uma teosofia, ou de uma pan-
cheguei mais perto da solução do problema de haver ou não uma socie-
sofia, que esperavam pudessem ser aceitas por todos os partidos reli-
dade secreta organizada por trás desse movimento. A prática normal
giosos, os membros deste movimento talvez tivessem esperança de
dos escritores rosa-crucianos é dizer que não são rosa-crucianos e jamais
estabelecer uma base não-facciosa para um tipo de franco-maçonaria
terem visto um. A invisibilidade parece ter sido um aspecto essencial
- emp~ego aqui esta palavra apenas em seu sentido genérico e sem
da lenda dos Irmãos R.C. O melhor esclarecimento a que se chegou
necessariamente subentender uma sociedade secreta - a qual admitiria
neste capítulo é a ilustração do Colégio da Fraternidade Rosa-Cruz
~essoas de diferentes concepções religiosas, para viverem juntas paci-
alado e volante, com a sua milícia de anjos ou espíritos defensores.
ficamente. A base comum seria um cristianismo comum, interpretado
Se assim eram os Irmãos R.C., seria sempre verdade dizer que jamais
misticamente, e uma filosofia da Natureza, que buscasse o significado
um deles tinha sido visto, e não se poderia afirmar que este ou aquele
?ivino dos caracteres hieroglíficos escritos por Deus no universo, e
mterpretassern o macrocosmo e o microcosmo, através dos sistemas pertencesse a uma sociedade tão sublime, embora pudesse ser verdade
matemático-mágicos da harmonia universal. que tivesse pertencido a um grupo de seres humanos empenhados em
habitar "sob as asas de Jeová" .
. E _aqui devemos ~embrar-nos que John Dee alimentava grandes
as~traçoes para o ap~Iguam~nto das divergências religiosas, o estabe- Os autores da literatura rosa-cruciana observaram que ela parece
lecímento de um remo universal de harmonia mística e filosófica ter sofrido uma súbita interrupção na Alemanha, aproximadamente em
como nos reinos dos anjos. Portanto, aqui também as influências da 1620 a 1621, e perguntaram-se por quê . Semler, no final do século
missão de Dee na Boêmia devem ter-se infiltrado no movimento rosa- XVIII, procurou uma explicação para o repentino desaparecimento da
-cruciano alemão. literatura rosa-cruciana em 1620. 21 Arnold afirma que após a publi-
Este capítulo também ressalta o lado notoriamente alemão do cação dos manifestos, muitos outros a eles se juntaram, criando assim
movimento e as influências sobre ele de tradições místicas germânicas . uma completa confusão, até que aproximadamente em 1620, a situação
Lendo esses autores rosa-crucianos alemães, lembramo-nos com fre-
qüência de Jacob Boehme, o famoso filósofo místico alemão. Ele estava pbie de [acob Boebme, Paris, 1929, p, 34. Koyré (ibid ., p. 42 n.) compara a espe-
rança da reforma Universal de Boehme, à concepção da Fama rosa-cruciana :B
a~nas c~~eç~ndo a escrever, justamente antes da distribuição da pri- interessante observar que um dos melhores amigos de Boehme Balthasar Wal~er
meira edição Impressa da Fama rosa-cruciana. Seu mais recente traba- foi um médico que tinha relações com um Príncipe Anhalt (KoYré, p. 48 n.) .
~o fo~ "Aurora", .que prometia um novo despontar do discernimento, Uma nova avaliação de Boehme poderia ser manifestada através cio novo enfoque
Igual aquele manifesto, 19 Boehme visava restaurar, com a filosofia histórico do movimento rosa-cruciano.
20. Koyré, Boebme, p. 51.
19. ~hme. escre~eu a sua "~urora" ~Die Morgenroete im Aufgang) em 21. J. S. Semler, Unparteiische SammuNg VIr Historie 4U Rostfth8rn,
1612, mas nao fOI publicada até multo depois. Consultar A. Koyré, La pbiloso- Leipzig, 1786-88; citação de Arnold, p. 190.

136 U7
entrou em crise. 22 Waite se refere ao ano 1620, como fechando os ender o simbolismo rosa-cruciano e apresentá-lo a seu próprio modo
portões do passado, 2:J significando o passado do movimento rosa-cru- no trabalho de recatolizar as áreas conquistadas e nelas estabelecer a
ciano. Todos esses e todos os outros que escreveram sobre esse movi- Contra-Reforma. Um certo ].P.D., um S, publicou em Bruxelas, em
mento, não conheciam os acontecimentos históricos no Palatinado e na 1619, um trabalho que foi reeditado em Praga no ano de 1620 (evi-
Boêmia, ou pelo menos mostraram não ter nenhum conhecimento da dentemente após o triunfo católico) com o título Rosa [esuitica, oder
associação dos mesmos com o movimento rosa-cruciano. Para nós, que Jesuitiscbe Rotgesellen, 26 adaptando o simbolismo da rosa às práticas
examinamos essas associações, a resposta para este mistério está clara. católicas (às quais, bem entendido, ele pertencia como sendo um sím-
O movimento R.C. entrou em crise, quando aquele do Palatinado tam- bolo da Virgem), e investigando se as duas Ordens - a dos jesuítas e
bém entrou, quando as perspectivas inspiradoras do Eleitor Palatino a dos rosa-crucianos - não eram realmente uma e a mesma congrega-
deram para trás e as suas brilhantes coligações fracassaram totalmente ção, que fora obrigada a ocultar-se para surgir posteriormente com a
forçando a fuga do Rei e da Rainha da Boêmia após a Batalha da outra denominação. Confundindo os assuntos desse modo, }.P.D. teria
Montanha Branca. E também quando foi verificado que nem o Rei facilitado a boa acolhida pelas classes conquistadas da propaganda da
da Grã-Bretanha, nem os seus aliados protestantes alemães os auxilia- Contra-Reforma.
riam, e finalmente, quando as tropas habsburgas entraram no Pala ti-
Por conseguinte, a Boêmia vencida perderia gradualmente o con-
nado e a Guerra dos Trinta Anos iniciou a sua marcha terrível.
tato com o movimento que lhe prometera a liberdade. Houve alguns
Em 1621 foi publicado, em Heidelberg, um "Aviso contra a Praga indivíduos, como Daniel StoIcius, que foram capazes de procurar refú-
Rosa-cruciana'L'" Em 1621, Heidelberg estava sob o poder dos exér- gio junto a um impressor rosa-cruciano alemão, escapando em seguida
citos invasores austro-espanhóis. Tal publicação representava uma antí-
para a Inglaterra. E na Alemanha, como deve também ter sido na Boê-
tese à eliminação física ou obliteração de um movimento associado
mia, a campanha rosa-cruciana ficou desacreditada pelo desastroso fra-
com os antigos soberanos.
casso do movimento do Palatínado, que terminou, para seus defensores,
Também em 1621, foi publicado em Ingolstadt - o grande cen- na desilusão e desespero.
tro jesuíta no coração do território católico - um trabalho chamado
Palma Triumpbalis, ou "os Milagres da Igreja Católica", de Frederico Entre os desiludidos encontrava-se Robert Fludd. Num livro pu-
Pornerus.J" Na realidade não examinei pessoalmente este trabalho (e blicado em 1633, Fludd disse: "Aqueles outrora chamados Irmãos da
nem aquele mencionado contra a Praga rosa-cruciana), mas de acordo Rosa-Cruz são hoje chamados Sábios; o nome (Rosa-Cruz) que era
com Waite, o autor, um bispo, escarnece da Fraternidade R.C., por tão odioso para os contemporâneos, já está apagado da memória do
ela se outorgar títulos ilustres, afirmar que está divinamente inspirada homem." 27 Sim, Fludd, provavelmente, colaborara com '[oachim Frízius
para reformar o mundo, e que pode restaurar todas as ciências, fazer no livro intitulado Summum bonum, ou "a verdadeira magia, cabala e
a transmutação de metais e prolongar a vida humana. Esta seria uma alquimia da verdadeira Irmandade da Rosa-Cruz", publicado em
versão adulterada dos manifestos, e a atitude triunfante corresponderia Frankfurt, no ano de 1629. A página de rosto desse livro mostra uma
ao espírito daquela propaganda de caricaturas do ex-Rei da Boêmia e rosa, com uma cruz assinalada em sua haste, e com os emblemas da
sua política. que foi disseminada após a sua derrota. teia de aranha e do enxame de abelhas, que Zincgreff. associara com
Outra elucidação deve ser considerada. De acordo com seus habi- o Eleitor Palatino, e que as caricaturas satíricas daquele homem infeliz
tuais métodos missionários, os jesuítas evidentemente planejaram apre- exibiram-no muitas vezes envolvido em teias de aranha e enxames de
abelhas.
22. Arnold, p. 101.
23. Waíte, Brotherhood of lhe Rosy Cross, p. 353. 26. J. P. D. um S., Rosa [esuitica , oder [esuitiscbe Rotgesellen, Dtts isl
24. Philip Geiger, Warnung tür die Rosenkreutzen Ungeziefer, Heidelberg, eine Frag oh die zioeen Orden der gennanten Ritter oon der Heerscwen ]esll
1621; cf. Waite, Brotberbood oi tbe Rosy eross, p. 342. und die Rosen Creutzer em einziger Orden sey, Bruxelas, 1618; Praga, 1620.
25. Fredericus Fornerus, Palma Triumpbalis Miraculorum Ecclesiae Calho- 27. Robert Fludd, Claois pbilosopbiae et alchy",iae, Frankfurt, 16:U. p. ~
licae, Ingolstadt, 1621, dedicado ao Imperador Fernando 11. Cf. Waite, Brotber- cf. Arnold, p. 193.
bood, p. 353.
JJ'
138
Tais alusões só teriam sido interpretadas por aqueles que se lem-
bravam dos emblemas e de suas reproduções nas caricaturas, e a maio-
ria de tais pessoas, provavelmente, estava morta em 1629 . O ambiente
da Guerra dos Trinta Anos não estimulava a delicadeza de expressão,
e nas caricaturas contra Frederico e tudo aquilo que elas significavam,
as sutilezas do "casamento alquírnico", ou dos simbolismos de Maier
são eliminadas pelo temor da bruxaria. E foi dessa forma que os
boatos do movimento rosa-cruciano espalharam-se da Alemanha para
o exterior, para a França.
CAPÍTULO VIII

o TEMOR ROSA-CRUCIANO NA FRANÇA

Consta que, no ano de 1623, surgiram em Paris cartazes anun-


ciando a presença na cidade dos Irmãos da Rosa-Cruz. 1

Nós, como deputados do primeiro Colégio de Irmãos da Rosa-


-Cruz, estamos fazendo uma estada, visível e invisível nesta
cidade, através da Graça do Mais Sublime, para o qual se voltam
os corações dos Justos. Revelamos e ensinamos, sem livros ou
provas, como falar todas as línguas dos países nos quais deseja-
mos estar, e como desviar o homem do erro e da morte.

Esse aviso está assim citado por Gabriel Naudé em seu "Esclare-
cimento à França sobre a verdade dos Irmãos Rosa-Cruz", publicado
em 1623. Naudé julga que algumas pessoas tiveram a idéia de afixar
tais cartazes, porque na ocasião não havia muitas novidades, o reino
estava tranqüilo e portanto precisando de alguma emoção. Elas foram
bem sucedidas, caso seu objetivo fosse o de originar uma emoção em
.';
torno dos Irmãos R.C. Naudé fala sobre um "furacão" de boatos
irrompendo por toda a França, ante a notícia de que uma Irmandade
misteriosa, recentemente difundida na Alemanha, agora alcançara a
França. É difícil determinar se esses cartazes tinham sido afixados real-
mente, ou se a emoção em torno deles fora originada por livros
sensacionais publicados nesse ano. Naudé, provavelmente teria acredi-
tado na realidade daqueles, e certamente tem razão ao julgar que esses
boatos foram deliberadamente difundidos com a intenção de originar
uma sensação ou temor.
;ti.
".::

1. Gabriel Naudé, Inslruclion à la Frenc« SIIr la tJbitl d, l'bJstoitf ~


Prêres de la Rase-Croi«, Paris, 1623, p. 27. i;"

140
,, ,: fi l ,'
Outra versão daqueles supostos manifestos, em cartazes, é dada
numa obra anônima publicada em 1623, com este título atraente:
"Pactos Horríveis feitos entre o Demônio e os Pretensos Invisíveis." 2

Nós, deputados do Colégio da Rosa-Cruz, comunicamos a todos


que desejem ingressar em nossa Sociedade e Congregação, que
lhes ensinaremos o mais perfeito conhecimento d'Aquele Mais
Sublime, em nome do qual estamos hoje fazendo uma assembléia,
e os tornaremos de visíveis em invisíveis; e de invisíveis em
visíveis ...

Consta haver trinta e seis daqueles Invisíveis , espalhados pelo


mundo em grupos de seis. No último 23 de junho, fizeram uma assem-
bléia em Lião, na qual ficou decidido instituir seis deputados na capi-
tal. Essa reunião foi realizada duas horas antes do Grande Sabat, no
qual um dos príncipes das coortes infernais apareceu luminoso e
magnífico. Os adeptos prostraram-se ante ele, e juraram renegar ao
cristianismo e a todos os ritos e sacramentos da Igreja. Em retribuição
receberam a promessa de adquirir poder para se transportarem para
onde desejassem, ter seus bolsos sempre cheios de dinheiro, residir em
qualquer país, vestidos de acordo com o costume nele reinante, para
assim serem considerados habitantes nativos; ter o dom da eloqüência,
para assim poderem atrair as criaturas, serem admirados pelos cultos,
procurados pelos curiosos e reconhecidos como mais sábios do que os
antigos profetas.
Esse grande temor pressupõe algum conhecimento dos leitores
quanto aos manifestos rosa-crucianos. A piedosa organização dos
Irmãos R.C. é transformada numa organização de adoradores do demô-
nio; o seu silêncio torna-se um segredo diabólico; seu regulamento,
obrigando-os a se vestirem de acordo com os hábitos do país onde se
encontram, transforma-se num alarmante esquema de infiltração. O in-
teresse no evolucionismo da cultura e filosofia natural torna-se um
atrativo maldoso para seduzir os eruditos e os curiosos. Evidentemente
nada se refere ao lema cristão dos manifestos: - "Jesus mihi omnia",
à finalidade filantrópica de tratar dos enferflos. Uma tentativa está
sendo feita para iniciar um movimento contri a obsessão da feitiçaria,
tendo como objeto de investigação os rosa-crucianos assustadoramente
invisíveis.

2. Eflroyables pactlons [aites entre le Diable et les prétendus lnuisibles, 21 - Michad Maier, Yiatorum, hoc est de montibus p!4nelllru",.
Paris, 1623; citado por Arnold, H(stOi\ des Rose-Croix, pp. 7·8. \ ~
"i. 4/•• . ....JW'I YIl D,h~~~ .. ~ ~Q."()c,,,,, o\'~~~ 'i'~ 'o",,\)~O\,\~o"
142 \
141
i

"

23 - Seguindo as Pegadas da Natureza, da Atalanta [ugiens.

22 - Michael Maier - Ata/anta fugiens.

144 14.5
1
Esse movimento no rrucio do século XVII não foi cômico, nem
um ludibrium ou uma " pilhéria". Poderia ter tido conseqüências terrí-
veis, do tipo que o notável jesuíta francês, François Garasse, parece ter
tido em me~te ao escrever La doetrine eurieuse des beaux esprits de ee
temps, publicado nesse mesmo ano de 1623 . Os rosa-crucianos - diz
Garasse - pertencem a uma seita secreta na Alemanha' 3 Michael
Maier é seu secretário. Na Alemanha, os empregados das tavernas
costumam pendurar rosas nelas, a fim de manifestar o que é dito, e
que não deveria ser repetido, porém conservado em segredo. Os rosa-
-crucianos são be~edores e criaturas misteriosas, daí o significado da
rosa \\eles associado (de certo modo, uma sugestão interessante).
Grasse lera a Fama , e declara que a erudição do autor provinha da
Turquia , sendo portanto pagã. Diz ainda que alguns rosa-crucianos
tinham sido recentemente condenados como feiticeiros em Malines, e
manifesta uma opinião categórica sobre merecerem ser torturados na
roda, ou enforcados. Apesar da aparente piedade, são na realidade
feiticeiros malvados, perigosos para a Religião e o Estado.
A feiticeira tradicional é uma mulher, capaz de transportar-se
magicamente ao Sabat. Naquela tentativa inicial·t1e um movimento
relativo à obsessão da feitiçaria contra os rosa-crucianos na França,
não se mencionam as mulheres; o mesmo ocorrendo com o sexo dos
Invisíveis como adoradores do demônio , e os assistentes do Sabat. A
tradicional ciência da feitiçaria, incluindo a invisibilidade e o domínio
dos meios mágicos de transporte, é transferida"'~ara os Irmãos R.C.
Os rosa-crucianos invisíveis estão se tornando objeto de uma investiga-
ção, e algumas de suas características, principalmente sua profunda
cultura através da qual eles atraem os "curiosos", não se adapta à
divulgação genérica das feiticeiras, que eram habitualmente mulheres
pobres e ignorantes. Todavia, parece que o autor do "Horrible Pacts"
. I! e Garasse estão realmente estimulando uma obsessão da feitiçaria
contra os rosa-crucianos "invisíveis", usando os manifestos como seu
! material e dando significados diabólicos aos supostos movimentos e
atividades dos Irmãos R .C. O temor faz dos rosa-crucianos persona-
gens reais iguais a feiticeiros, .pertencendo a uma sociedade secreta
diabólica.
As obsessões da feitiçaria, que representaram uma característica
tão terrível no panorama da Europa no século XVI e início d.o. XVII,
não eram peculiares a um ou outro lado na grande divisão religiosa da
Europa. Alguns dos piores obcecados pela feitiçaria originaram-se nos

,
i
24 - (a) Alquimia e Geometria ; I

(b) O ovo do Filósofo. da Ata/anta 'jugiens


I
I
I
I
,6
círculos luteranos na Alemanha. Sem embargo, "as piores de todas as Muito mais pode ler aprendido da "Instructíon to France", de
perseguições à feitiçaria - o clímax da obsessão européia" - foram Gabriel Naudé, do qul da histeria dos "Horrible Pacts" e outras obras
as que irromperam na Europa Central nas décadas dos anos setenta, desse tipo, pois Naudé está melhor informado. Ele faz citações exten-
"com a destruição do protestantismo na Boêmia e no Palatinado" 4 e sas da Fama, da qual possui uma cópia impressa, dizendo em seguida:
a reconquista católica da Alemanha. "Por toda a Europa ... com a "Vejam, senhores, Diana a caçadora, que Actaeon lhes apresenta
reconquista católica, multiplicaram-se os julgamentos dos feiticeiros." nua." 5 Isto pode pretender ser satírico, porém, também demonstra o
É pois evidente que o autor do "Horrible Pacts" e o jesuíta conhecimento de um invólucro mitológico para a busca da ciência
Garasse estavam perfeitamente a par do estilo da década dos anos se- natural. Ele fala da imensa influência da Fama e da Conjessio, e conhe-
tenta, quando elaboraram aquela obsessão. Já vimos como a literatura ce alguns dos trabalhos de Maier. Do acordo com Naudé, a Fama esti-
rosa-cruciana na Alemanha teve um fim súbito em 1620, e foi eliminada vera ~ausando uma grande impressão na França, despertando esperan-
após a derrocada do Eleitor Pala tino como Rei da Boêmia, e das {on- ças sobre algum novo e iminente adiantamento nos conhecimentos.
quistas católicas na Boêmia e no Palatinado. Era essa obsessão, naque- Afirma que se ouvia dizer, por toda a parte, que após as '.'novidades"
les lugares do mundo e naquela época, uma parte do esforço para que surpreenderam "nossos pais" - a descoberta de novos mundos,
extinguir o movimento do Palatinado da Boêmia, com suas ligações a invenção do canhão, compassos, relógios; inovações na religião, na
com os manifestos rosa-crueianos? Tivemos ocasião de observar com medicina e astrologia - está próxima uma outra era de descobertas.
que pertinácia os inimigos do Eleitor Pala tino fizeram circular aquelas Os novos movimentos estão atingindo seu ponto culminante, assim
caricaturas satíricas contra ele após sua derrota. Vimos o quanto pelo correm os boatos, mediante os Irmãos R.C., e as esperanças que eles
menos uma daquelas sátiras o associam definitivamente com o rosa-
despertam." Tycho Brahe está fazendo novas descobertas; Galileu
-crucianismo. Nelas há uma tendência geral de sugerir a magia com
inventou suas "lentes" (o telescópio) e agora aparece a Companhia
relação a Frederico. Se a literatura sobre a obsessão da feitiçaria, nas
décadas de 1620 e depois, devesse ser examinada, tendo em vista a dos Irmãos R.c. anunciando a iminente "reforma" ou renovação do
possibilidade de que pudesse estar associada ao temor rosa-cruciano, conhecimento, prometida pelas Escrituras 7 (que soa como um eco de
conforme manifestam claramente esses trabalhos publicados na França, Bacon). As observações de Naudé atestam que os manifestos rosa-
em 1623, deveríamos encontrar maiores provas de que a grande con- -crucianos foram lidos extensamente fora da Alemanha e julgados
centração dos estudos renascentistas com tendências esotéricas - que como uma profecia de uma próxima inovação de esclarecimento, um
encontravam expressão nos manifestos rosa-crucianos - poderiam adiantamento ainda remoto, após a era da Renascença.
realmente ter ajudado a intensificar a obsessão que se verificou após Naudé, evidentemente, tem que ser cauteloso por causa do temor.
as vitórias católicas. Acredita (piamente que o suposto manifesto rosa-cruciano dos cartazes
É importante ressaltar a data - 1623 - na qual a obsessão da foi planejado por "algumaspessoas" para provocar emoção. Contudo,
feitiçaria e mais o temor rosa-cruciano alastram-se para a França. Em aprova o livro de Grasseit'ê comenta desdenhosamente os inúmeros
1623, a extinção da Boêmia e do Palatinado era total, e a destruição livros alemães sobre os Irmãos R.C. Ao tratar da reputação desfrutada
das idéias geradoras da aventura tornara-se tão completa quanto pos- por eles quanto à magia, menciona Fludd e mais tarde apresenta uma
sível, pela supressão das publicações rosa-crucianas. As notícias dos lista de autores, que em sua opinião, representam a espécie de ensina-
acontecimentos nos primeiros anos da Guerra dos Trinta Anos espa- mentos aprovados pelos Irmãos R.C. Essa lista inclui os seguintes: 8
lharam-se por toda a Europa, e com o surgimento daquelas ocorrências,
foram espalhadas algumas notícias sobre o movimento rosa-cruciano.
5. Naudé, Instruction, p. 38.
Daí, a difusão para a França das técnicas repressivas, na forma de
uma obsessão de feitiçaria, causada por Aqueles Invisíveis e seus pom- 6. IbM., pp. 22 e 55.
posos manifestos. 7. IbM., p. 24. O Novum Organum, de Bacon, fora publicado etn 1620, o
1
qual tornou acessível sua opinião sobre o progresso da cultura em latim. A tra-
~! dução latina do Tbe Advancemenl 01 Learning foi publicada em 1623.
4. H. R. Trevor-Roper, Religion, lhe Reformation and Social Change, Lon-
dres, 1967, p. 156. \ " 8; Ibi~., ~p. 15·16. \ r \ 'J
"'J. ' • • , ~ _ ..
U'-' Co1Ví~o\aj ••. ...L- I ••• ~c.b.i; U~tWd.i ~ ~""" r;b, •••
148 .. i : er~1Cú.lot.. \ 149
Monas bieroglypbica de john Dee
Os autores mencionados por Naudé personificam rigorosamente
Steganograpbia de Trithemius a tradição hermética renascentista, e ele considera os novos desenvol-
Harmonia mundi - de Francesco Giorgi vimentos prometidos pelos Irmãos R.C. como emanados daquela.
Pimandre - de François de Candale Entre outros pontos interessantes nos comentários de Naudé, está
a sua referência a "Hentisberus" e "Suisset Calculator" 14 como sendo
"Thyart sa Musique" adequados aos rosa-crucianos. Essa é uma alusão aos dois matemáticos
"Brunus les umbres de ses idées" da Oxford medieval.V membros da escola de matemática Merton
"Sa Dialectique" - de Ramon Lull cujas obras, restauradas e editadas, influenciaram as importantes linhas
de estudos da matemática, do início do século XVII. Naudé deve estar
"Son Commentaire de Magie" - de Paracelso
aqui manifestando algum conhecimento intrínseco dos estudos da ma-
temática dos rosa-crucianos, não revelados nas publicações "desorien-
Encontramos aí a atenção dos Irmãos R.C. firmemente concen- tadoras e inúteis" por eles feitas.
trada na tradição hermética, com a referência à tradução para o francês
da Hermética," de Françoís de Candale, e à obra hermético-cabalística Num tom ainda desdenhoso, ele continua a falar das fábulas dos
"Harmony of the World", 10 de Giorgí (muito usada por Fludd). A poetas, das quimeras dos magos e charlatães, da Abadia de Théleme
de Rabelais, e da Utopia, de Thomas More, como todas pertencendo ao
Steganograpbia, de Trithemius, associa os Irmãos R.C. com a magia
"labirinto" da R.C.
dos anjos 11 e é expressamente importante o fato de Naudé mencionar
a Monas, de Dee, e um trabalho de Bruno (De umbris idearum), 12 Termina com um comentário de reprovação ortodoxa aos Irmãos
1
uma confirmação satisfatória da influência de Dee e Bruno no movi- R.C., afirmando que concorda plenamente com a opinião jesuítica sobre
mento. A "Musique", de Pontus de Tyard, 18 introduz a filosofia da a perniciosidade dos mesmos. Ainda mais; acrescenta que eles tinham
sido magistralmente desmentidos pelos argumentos de Libavius. 16 Por

I,
música em apoio à Plêiade Francesa, da qual Tyard foi membro. Nau-
dé, o francês, consegue assimilar a filosofia rosa-cruciana para uma~
tradição hermética francesa, mediante o emprego de François de Can- \
conseguinte, Naudé também conhecia Libavius. Estava realmente muito
bem informado e, evidentemente, profundamente interessado, embora
no ano de 1623, quando o temor estendia-se pela França, dificultando
'\I dale, na Hermetica, e dando Tyard como um exemplo francês da filo- os boatos da Fama, e quando parecia que uma campanha contra a
"i sofia da música. feitiçaria estivesse sendo organizada, competia a um homem de estudos
ser muito cauteloso.
9 . François de Foix de Candale, Le Primandre de Mercure Trismegiste Bor-
déus, 1579; cf. D. P. Walker, "The Prisca Theologia in France", [ournal ~I the Dois anos depois, em 1625, Naudé demonstrou mais coragem,
Warburg and Courtauld Lnstitutes, XVII (1954), p. 209; Yates, Giordano Bruno publicando sua famosa obra "Apology for Great Men Suspected of
end lhe Hermetic Tradition, p. 173. Magic",17 na qual afirma existir quatro classes de magia; a magia
10. Francesco Giorgi, De harmonia mundi, Veneza, 1525. divina, a teurgia, que é a magia religiosa, livrando a alma da contami-
11.. A S/eg~nog'aphia de Trithemius (primeiramente publicada em 1606, nação do corpo, a "goetia", que é feitiçaria e a magia natural, corres-
mas m~Ito conhec!~a em manuscrito antes disso) era um importante manual Re- pondente à ciência natural. Só a terceira, a "goetia" é nefasta, e desta,
nascentista da pratica da Cabala ou conjuração dos anjos; consultar Giordano j os grandes homens foram considerados inocentes. Entre eles, aos quais
Bru,?o and /h.e Hermetic Tradition, p. 145. Em seu emprego por Dee, para a sua i defende como estando 'imunizados contra a magia perniciosa, estão
magia dos anjos, consultar French, [obn Dee, pp. III e ss. I
I
12. G. B~no, D~ umbris idearam, Paris, 1582; consultar Giordano Bruno
and lhe Hermetic Tradition. pp. 192 e ss; The Art 01 Memory, pp. 200 e ss.
I 14., Naudé, lnstruction, p. 16.
15. John Hentisbury e Richard Swineshead; consultar Thorndike, lIl, pp.
13: !sso poderia referir-se a qualquer um dos diálogos filosóficos de Tyard,
os quais ~o todo.s baseados em hipóteses da harmonia universal, fazendo porém
t
I
370-85; R. T. Gunther, Early Science ai Oxlord) Oxford, 1923, lI, pp. 42 e 55.
uma alusao especial ao seu Solitaire second, ou Discours de la Musique, Lião, 16. Naudé, Instruction, p. 90.
1555; consultar o meu trabalho The French Academies the Sixteentb Cenlury, 17. Gabriel Naudé, Apologie par les grands hommes so"pço""ls de M";',
Warburg Institute, 1947, reeditado por Kraus, 1968, pp. 77 e ss. Paris, 1625; a página de referências consta da edição de Amsterdã, 1712.
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Zoroastro, Orfeu, Pitágoras, Sócrates, Plotino, Porfírio, Iamblichus, Se possuíssemos o livro que John De~ - crít~co de Lon?res, e
Ramon Lu11, Paracelso, Henry Cornelius Agrippa (objeto de um capí- um filósofo e matemático muito erudito - afirma ter feito em
tulo inteiro), Pico della Mirandola - em resumo, os neoplatônicos e defesa de Roger Bacon, no qual ele demonstra que tudo o que
a tradição renascentista deles derivada, principalmente Agrippa, o prin- está dito sobre seus trabalhos maravilhosos deveria ser atribuído
cipal representante da magia renascentista. Naudé insiste num maior ao seu conhecimento da natureza e da matemática, e não ao
cuidado nas acusações contra a magia, para que os inocentes não sejam relacionamento com os demônios, - o que jamais teve - decla-
confundidos com os magos perniciosos. ro que não deveria mais falar sobre ele (Roger Bacon) . .. Mas
uma vez que esse livro (de Deerelativamente a Bacon), pelo
Na "Apology", ele não menciona os Irmãos R.C., mas uma vez que sei, ainda não apareceu. .. devo preencher esta lacuna, para
que os escritores, aos quais dois anos antes incluíra na lista como com- que o bom nome desse Franciscano Inglês, que foi um Doutor
patíveis com os rosa-crucianos, pertencendo todos à tradição que agora em Teologia, e o maior químico, astrólogo e matemático de sua
defende é razoável admitir que na "Apology" estava também pensando época, não permaneça eternamente esquecido e condenado entre
nos rosa-crucianos, quando o temor contra eles estava em pleno vigor. a multidão de feiticeiros e mágicos, à qual ele certamente não
Portanto, é interessante observar que Naudé oferece dois motivos fun- pertence ...
damentais, de como as pessoas podem ser acusadas falsamente de
magos perniciosos.
r o livro de Dee a respeito de Rogério Bacon ainda não é do
Um motivo é que os estudantes de matemática estão sujeitos a domínio público, mas é muito interessante o fato de Naudé apresentá-
serem acusados de magos, porque uma aura de magia esteve sempre -lo, ao defender os matemáticos acusados de magia.
ligada a tais estudos, e os maravilhosos trabalhos que o conhecimento O outro motivo pelo qual, de acordo com Naudé, as pessoas
da matemática e mecânica pode produzir parecem mágicos ao ignoran- podem ser falsamente acusadas de magia~taso se trate de "políticos",
te. 18 Foi este o protesto de John Dee em seu Prefácio a Euclides; o é que isso é tolerado em assuntos religiosos, não propensos a perseguir
de estar sendo falsamente acusado de "feitiçaria" devido à sua aptidão aqueles que com eles discordam quanto à religião.
para a matemática e à habilidade para produzir maravilhas da mecâni- Visto que Naudé+rkenciona os Irmãos R.C. em sua "Apologia",
ca. 19 E Naudé inclui Dee em sua argumentação sobre os matemáticos não podemos afirmar categoricamente, que esses dois motivos para
serem acusados de magos, citando não o Prefácio de Dee a Euclides, serem falsamente acusados de magia - ' o interesse pela matemática e
porém o seu Prefácio na obra Aphorisms, na qual ele diz estar escre- um ponto de vista religioso tolerante - seriam aplicados por ele, a
vendo uma defesa de Roger Bacon, 20 para provar que as maravilhas fim de explicar o temor à corrente rosa-cruciana. Contudo, desde que
por ele realizadas, não foram feitas pela "feitiçaria", mas por sua ele incluíra um livro de Dee na lista de autores, que julgava serem
aptidão para a matemática. Naudé lastima que essa defesa de Dee, a congêneres dos Irmãos R.C., quando anteriormente e meio a contra-
favor de R. Bacon, não mais exista. Segue-se uma tradução do que gosto juntara-se a eles, podemos dizer que Naudé associa mentalmente
.Naud é diz sobre ela: 21 os Irmãos R.C. com Dee no primeiro livro, e no segundo, .usa Dee,
em sua defesa dos matemáticos ante as acusações de magia perniciosa.
18. Apologie, pp. 49 e ss. Evidentemente, Naudé sabia muito, porém ainda mostra-se bas-
19. Giordano Bruno and tbe Hermetic Tradition, p. 149; Tbeatre of tbe tante cauteloso, até na "Apologia". O furacão de emoção, provocado
World, pp. 30-1; French, [obn Dee, p. 8.
pelos Irmãos R.C., continuava soprando na França.
20. John Dee, Propaideumata apboristica, Londres, 1558, 1568; o título

Pj5
do livro de Dee sobre R. Bacon é anunciado no prefácio como Speculum unita· plebe na Inglaterra; ele ouvira vagamente a respeito do emprego da história pelos
tis; siue Apologia pro Fratre Rogerio Baccbone Anglo. Dee também menciona artistas dramáticos ingleses.
este livro na dedicatória da Monas hieroglyphica para Maximiliano II, onde de-
clara ter ele sido escrito em 1557. O livro de Salomon de Caus Les raisons des forces mouvantes, foi reeditado
em Paris, 1624, com um adendo 'ilustrando as maravilhas projetadas Cau&
21 . Apologie, p. 350. Naudé comenta que o tópico expressivo, suposta- para os jardins de Heide1berg. I I I ~t\c...J
mente considerado como tendo sido feito por Roger Bacon, foi uma invenção da e,;,
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152
Estamos agora caminhando para a época em que os novos movi- -cruciano começou na França em 1623, apresentando os Irmãos R.C.
mentos do século XVII estavam reunindo forças, e as filosofias anirnis- dos manifestos como uma sociedade secreta diabólica e mágica .
tas da Renascença, com as suas inferências de magia, começam a Torna-se portanto evidente que Mersenne foi afetado por tudo
declinar. O grande personagem no ataque ao animismo renascentista, isso, como teria ocorrido com todos que tivessem vivido no início do
ao Hermetismo e à Cabala, e todas as conseqüentes manifestações, foi século XVII. A tentativa feita em torno de Frederico para romper o
o monge francês, Marin Mersenne, amigos de René Descartes. Através domínio habsburgo do Império, o choque causado pela mesma, e os
de seu possante ataque, convergindo de um modo geral para a tradição boatos disseminados pelos vencedores em torno de uma magia perni-
renascentista, Mersenne abriu o caminho para dar origem à filosofia ciosa, foram fatos inevitáveis do panorama europeu contemporâneo . O
cartesiana. temor rosa-cruciano atingiu Mersenne . É evidente, não só por seus
É muito significativo que a primeira investida de Mersenne à livros mas também pela sua correspondência, que ele acreditava nos
tradição renascentista, o seu Quaestiones in Genesim , foi publicado Irmãos R.C. como sendo assombrações , magos perniciosos e agentes
em 1623, o ano da explosão do temor rosa-cruciano . Nele , ataca a subversivos, os quais imaginava movimentando-se invisivelmente em
Magia e a Cabala da Renascença, e todos os nomes ilustres associados todos os países para disseminar suas doutrinas maléficas. 23 Além disto,
com aquela tradição, Ficino, Pico, Agrippa, etc ., mas a sua crítica mais a existência real deles parecia provada pelos trabalhos de Robert Fludd,
violenta é reservada para o expoente contemporâneo daquela tradição ao qual considerava um rosa-cruciano típico , e cuja inclinação pela
- Robert Fludd . Ele continuou seus ataques nos anos subseqüentes, I tradição hermética rigorosa ea manifesta para todos os leitores .
Fludd contestou, e a controvérsia Mersenne-Fludd, prendeu a atenção A reação de Marsenne~ ao temor rosa-cruciano foi diferente do de
da Europa inteira. Naudé. Este parece ter acreditado que as importantes atividades cien-
Não posso tentar nos poucos parágrafos destinados a este capítulo,
I tíficas da matemática jazem por trás da magia benéfica do movimento
mencionar todas as publicações sobre essa controvérsia . Esforcei-me por
dedicar-me a um de seus aspectos num outro lugar qualquer, mencio-
~ rosa-cruciano . Mersenne, evidentemente, julgava que a magia era malé-
fica, e que o desenvolvimento dessas partes da magia e cabala indica-
nando que basicamente tratou-se de um ataque à tradição hermética I vam que os modos de pensar da Renascença deviam ser eliminados
feito por Mersenne , e uma defesa da mesma por Fludd, e que a época I pela raiz, a filosofia animista da Renascença precisava ser destruída, e
a magia renascentista , em suas modernas manifestações "fluddianas",
dada por Casaubon como sendo da Hermetica, foi usada por Mersenne I severamente reprimidas. Mersenne tinha uma personalidade afável e
como uma arma para enfraquecer a tradição hermética. 22 Tudo o que I serena, muito diferente do Pêre Garasse; contudo sua reação ao temor
aqui pode ser feito, aliás muito resumidamente, é -te'5mo a nova linha !
da abordagem histórica, seguida neste livro, possa afetar a nossa inter- rosa-cruciano aproximou-se mais à deste último do que à de Naudé -
pretação relativamente à posição de Mersenne. uma reação inspirada pelo medo. Devemos também lembrar-nos de
que Mersenne, igual a Descartes, foi educado no colégio jesuíta de
Vimos que o movimento rosa-cruciano, ou seus manifestos, estava La Fleche, e teria sido influenciado em seus primeiros anos pelos
associado àquele para instituir Frederico, o Eleitor Palatino, no trono conceitos jesuíticos.
da Boêmia; que a publicação das obras de Fludd no Palatinado, foi l Assim sendo, Mersenne em todas as suas obras visa eliminar a
parte do movimento de pensamento por trás daquele político-religioso. influência renascentista. Isto às vezes era difícil, principalmente no
Vimos ainda como o colapso total do movimento, com a derrota em tocante à música, pois Mersenne acreditava na harmonia universal,
Praga no ano 1620, resultou numa campanha satírica contra tudo que sendo um admirador da Academia de Poesia e Música de Baif, para
ele havia apoiado. Vimos também que a súbita interrupção das publi- rI cujas atividades ele era uma das principais fontes. 24 Em sua Harmonie
cações rosa-crucianas, na Alemanha, coincidiu com o colapso de 1620, unioerselle, teve que expor a harmonia universal de modo a evitar a
e que a acusação à magia torna-se um trunfo na campanha dos vito-
23. Marin Mersenne, Correspondence, ed. Waard and Pintard, Paris. 1932,
riosos contra o rosa-crucianismo, que vem a ser incorporado aos temo- r, pp. 37·9, 154-4, 455 etc.; n, pp . 137, 149 (Gassendi e os rosa-crucianos};
res da feitiçaria. Tivemos ocasião de observar que o temor rosa- pp . 181 e 5S, 496 O, B. Van Helmont e os rosa-crucianos ] ; La vérité des S~"US,
Paris, 1625, pp . 566·7, cf. Giordano Bruno and tbe Hermetic Tradit;o", p. 408.
22 . Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, pp. 432-40. 24. Tbe Prencb Academies 01 tbe Sixteentb C~"t"ry, pp. 23 e $S.
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154
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filosofia magrca macrornicrocósrnica (embora empregando na realidade realmente estranho para Descartes, católico educado pelos jesuítas,
um dos diagramas de Fludd), e eliminar o ponto de vista da Renas- mas a explicação dada é que ele desejava conhecer o mundo e ampliar
cença~ qual aprova o trabalho da Academia de Baif, e para o qual seus conhecimentos relativamente à vida e aos homens. Imbuído dessa
Tyard atribuíra uma expressão filosófica (conforme Naudé sabia). disposição refletiv a, Descartes dirigiu-se para a Alemanha em 1619,
A filosofia do século XVII, que devia substituir as filosofias da tendo ouvido notícias de movimentos desusados que lá se verificavam,
Renascença, era o mecanismo cartesiano, e Mersenne , amigo dedicado de uma revolta na Boêmia, e de uma guerra entre católicos e protes-
e admirador de Descartes, representou o instrumento, através de suas tantes. Ao ouvir que o Duque da Bavária estava recrutando tropas,
vastas ligações e correspondência, ao encorajar a substituição da magia julgou que devia delas participar, embora não tivesse idéia de quem
pelo mecanismo. 25 É uma das mais profundas ironias da história do fosse o inimigo. Finalmente, foi revelado que as tropas deviam marchar
pensamento, que o desenvolvimento da ciência da mecânica, por inter- contra o Eleitor Palatino, a quem o povo da Boêmia elegera rei. 27
médio da qual surgiu a idéia do mecanismo como uma possível filo- Aparentemente não muito emocionado com isso, Descartes dirigiu-se
sofia da natureza, fosse por si mesmo um resultado da tradição renas- para uma região hibernai , num lugar às ' margens do Danúbio, onde
centista da magia. Uma vez despojado da magia, o mecanismo tornou-se aquecido por uma estufa alemã, iniciou uma série de profundas medi-
a filosofia que devia eliminar o animismo da Renascença e substituir tações. Na noite de 10 de novembro de 1619, teve sonhos 28 que parece
o "feiticeiro" pelo filósofo da mecânica. terem sido uma experiência importante, levando-o à convicção de que
Todavia, esse fato geralmente não é compreendido e, enquanto a matemática era a única chave para a compreensão da Natureza. Viveu
se aguarda o seu reconhecimento, é indispensável que tentemos des- uma vida solitária e meditativa durante o resto do inverno, mas não
cobrir e entender todas as circunstâncias, preparando o caminho para sem alguns contatos com pessoas que lhe informaram sobre uma
essa mudança importante na atitude do homem para com a Natureza. sociedade estabelecida na Alemanha, com a denominação Irmãos da
Entre os fatores históricos da situação, encontravam-se aqueles que Rosa-Cruz, e que prometia uma nova sabedoria e uma "verdadeira
estivemos estudando neste livro. O fracasso do movimento rosa-crucia- ciência". 29 Esses boatos harmonizavam-se de tal forma com seus pró-
no, na Alemanha, e a sua extinção pela força e pela propaganda prios pensamentos e esforços , que tentou encontrar esses Irmãos, no
violentamente hostil, afetaram o caráter do pensamento no início do que não foi bem sucedido. Um dos preceitos por eles seguidos era o
século XVII, nele injetando uma atmosfera de medo. Mersenne tam- de não usar roupas que os distinguissem , portanto é natural que fosse
difícil descobri-los. Verificava-se, porém, uma grande agitação causada
bém sentiu-se atemorizado. Tinha que proteger seu próprio interesse
pelas inúmeras publicações de trabalhos que estavam produzindo. En-
na matemática e mecânica, contra qualquer contaminação conjuratória.
tretanto, Descartes não os lia (deixara de ler) e posteriormente decla-
Isto imprimiu uma aspereza ao seu movimento anti-renascentista, o
rou que nada sabia acerca dos rosa-crucianos, embora quando voltou a
qual em épocas menos exaltadas, teria sido orientado mais suavemente
Paris em 1623 , soube que a sua permanência na Alemanha granjea-
e com menos perda dos aspectos mais valiosos da tradição da Renas-
ra-lhe a fama de ser um rosa-cruciano.
cença.
E quanto a Descartes e os Irmãos R.C.? Algumas das referên-
cias mais importantes sobre eles podem ser encontradas na vida fascí-
nante de Descartes, obra de Baillet (publicada inicialmente em 1691) .26
l Em junho de 1620, Descartes encontrava-se em Ulm, onde passou
o resto do verão, lá conhecendo um certo Johann Faulhaber que se
surpreendeu muito com a sua extraordinária inteligência. 80 (Foi este
Nossa nova compreensão da situação histórica pode habilitar-nos a ler
essa biografia com um novo discernimento, ou pelo menos, ao lê-la 27 , ua: pp . 58-9.
J 28. isu.. pp. 81-6.
ter novas perguntas em nossas mentes. 29. tsu.. pp. 87·92 .
. Em 1618, o jovem Descartes mudou-se da França para a Holanda 30. Ibid., p. 68. Consultar Johann Faulhaber, Mysterium Arithmehcu",
e alistou-se no exército do Príncipe Maurício de Nassau. Foi um passo sioe Cabalística et Pbilosopbica I noentio . . . illuminatissimis laudatissimisque F,.. .
tribus R. C... . dicata, VIm, 1615. Num trabalho anterior (Himlische. .. MIlI;'
25. Consultar R. Lenoble, Mersenne ou la naissance du mécanisme, Paris, oder Newe Cabalistische Kunst, VIm, 1613) Faulhaber inclui as artes rnecânícas,
1948. instrumentos de matemática, perspectiva etc ., no seu trato da Magia Divina e •
Nova Arte Cabalística.
. 26.
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Adrien Baipet, La Vir de Monsieur \Descartes, ~,f69f' {\
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um dos primeiros a publicar um trabalho dedicado aos Irmãos R.C.) pelo pensamento incorporado à vontade , o que equivale dizer,
Quando Descartes ouviu que o seu general, o Duque da Bavária, es- um modo imperceptível para os sentidos.
tav a marchando para a Boêmia, incorporou-se ao exército católico é A causalidade da chegada deles em Paris , ao mesmo tempo
imperial, e esteve presente na famosa batalha de Praga (a da Monta- que a do Sr . Descartes, deveria ter tido um resultado funesto
nha Branca) , entrando nessa cidade com os vencedores . Julga-se que para a sua reputação, caso ele se tivesse escondido, ou vivido na
ele tenha visto o famoso aparelho de astronomia de Tycho Brahe em solidão enquanto permanecia na cidade , conforme estava habitua-
Praga , mas Baillet não julga isso provável, pois o mesmo tinha sido do em suas viagens . Ele, porém, confundiu aqueles que deseja-
quebrado ou talvez levado embora. 31 vam prevalecer-se dessa circunstância, para caluniá-lo. Fez-se
Depois da batalha, Descartes passou algum tempo em meditações , visível a todos, e principalmente aos seus amigos que não pre-
na Boêmia rneridional.P" e em 1621 continuou suas viagens pela cisavam de nenhum outro argumento , para se convencerem de
Morávia, Silésia, Alemanha setentrional, e a Neerlândia católica, regres- que não era um dos que pertencia à Irmandade dos rosa-crucia-
sando a Paris em 1623 . ~os. ?~ .Invisíveis; e el.e empregou esse mesmo argumento da
invisibilidade, para explicar aos curiosos por que não conseguira
Aí deparou-se com o temor rosa -cruciano em pleno vigor. A des- descobrir qualquer um deles na Alemanha .
crição dada por Baíllet sobre o mesmo deve ser aqui oferecida: 38
Sua presença serviu para acalmar a agitação de seu amigo
Quando ele (Descartes) chegou (a Paris), os assuntos sobre o o Padre Mersenne... que ficara completamente transtornado
desventurado Conde Palatino, eleito Rei da Boêmia, as expedi- pelos boatos falsos, uma vez que estava pouco disposto a acre-
ções de MansfeIdt e a transferência do Eleitorado do Conde ditar que os rosa-crucianos eram Invisíveis, ou simplesmente
Pala tino para o Duque da Bavária, feita em Ratisbona no dia quiméricos, depois daquilo que vários alemães e Robert Fludd
15 de fevereiro anterior, estavam sendo o assunto de discussões o inglês, escreveram a favor deles . '
públicas. Ele (Descartes) pôde satisfazer a curiosidade de seus
amigos a esse respeito e eles retribuíram fornecendo-lhe novida- Certamente é um dos momentos mais importantes a ser enfocado
des que estavam causando alguma apreensão, embora parecessem na história extraordinária sobre este assunto admirável, quando Des-
incríveis . Referiam-se a que nos últimos dias falava-se em Paris cartes aparece para seus amigos em Paris, para demonstrar que é visível,
dos Irmãos da Rosa-Cruz, aos quais ele .procurara em vão na e conseqüentemente não é um rosa-cruciano .
Alemanha durante o inverno de 1619, e estava começando a Desse modo, Descartes estivera na região da Alemanha, na qual .
ser divulgado que ele (Descartes) se inscrevera naquela o boato rosa-cruciano estava alastrando-se, quando ele tivera seus so-
Companhia. nhos e meditara sobre aqueles pensamentos expressivos; ele realmente
Surpreendeu-se com essas novidades , pois que não se coadu- fora para Praga com os exércitos católicos, lá poderia ter visto Frede-
navam com seu caráter e tampouco com a sua tendência de ter rico e Elisabete naquela hora terrível; perambulara por Praga, soubera
sempre julgado os rosa -crucianos como impostores e visionários. exatamente o que havia ocorrido, despendera algum tempo pensando
Em Paris eram chamados os Invisíveis, e propalaram que dos na Boêmia meridional, fora para Paris na ocasião em que as notícias se
tri.nta. e seis ?eputados enviados por seu chefe por toda a Europa, referiam ao Eleitor Palatino como tendo sido destituído do Eleitorado,
seis tl.nham Ido p~ra a Fran~a em fevereiro, estando hospedados e sobre as quais - conforme observa Baillet - Descartes poderia ter
no bairro de Matais, em ParIS; mas que não podiam comunicar-se dado aos seus amigos informações detalhadas e exatas, porquanto tinha
com as pessoas, e nem estas comunicarem-se com eles, exceto sido uma testemunha ocular daqueles acontecimentos importantes, en-
contrando-se no local, em Praga, quando tudo ocorrera, e colhendo as
31. uu, p. 75. notícias sobre os movimentos na Alemanha, antes mesmo de se ve-
32. tsu.. pp. 91·2. riEicarem.
33. Traduzida da versão concentrada da Vie de Monsieur Descartes Paris E todas essas notícias estão associadas com os rosa-crucianos. O
1693, pp. 51-}. A versão completa consta da edição de 1691, pp. 106-8. ' , temor rosa-cruciano começou em Paris - diz Baillet - quandotodaa

158 159
as nOV1idad es versavam sobre o _Eleitor Pala tino e suas _desgraças ' l-11'10S_ meiras viagens à ~Iemanha e B?êmia. É possível que durante aquelas
rras fontes de informaçoes quanto ao temor nao nos falar uas primeiras VIagens ele estivesse procurando um esclarecimento
sasbreoui que confirma o ponto de vista ' - do temor am
ista d a aSSOC1açao
~culto por trás da invisibilidade rosa-cruciana, novos progressos resul-
50 re ISSO, o AI h Q' em
Parts' co fi os acontecimentos na ernan a , d _as aventuras de
uanto tantes das tradições secretas - e procurando essas coisas no círculo
D esca rtes com os rosa-crucianos , elas seguem o pa rao normal. OUve do desventurado pai da Princesa Elisabete?
f aIar d e Ies, t
- encontrá·los e nao
enta , , _,
- e, b em suce did
d , Q
1 o_ , ue Descarte s As guerras e as obsessões da feitiçaria talvez tenham confundido
faça da sua própria vlS1.~llt~ade uma prova . e qu~ nao e um deles, é
o historiador, quanto às providências vitais, pelas -quais a mente euro-
tileza nas expenenclas normais dos investigadores rosa-cruda_
uma su ual é digna de um gran d e fil ' f o "I péia abandonou a Renascença pelo progresso do século XVII.
nos, a q 1 oso
O desejo de Desc_a~t~s foi sempre viver u~~ e~istência muito
t ran qüila, retirada e solitária,d pensando
'b
na matematrca; e alguns anos
d '
d ois da experiência acima escrita, so re o que po erra ter aconre.
ep , , d . d
id em Paris a um matemanco que se conservasse ernasia amente
~1 01' ível , ele fixou residência na Holanda. Muitos
inv s "'I
anos se passaram
I '
em 1644 estabeleceu-se num pequeno e tranquuo caste o perto de
~eiden a fim de estar mais próximo da Princesa Elisabete do Palati-
nado ~ filha mais velha do malfadado Eleitor Frederico, que falecera
em 1632 e cuja viúva, Elisabete Stuart, a "Rainha Hibernal" da Boê-
mia continuara vivendo em Haia com a sua família. A Princesa Elisa-
bete apaixonara-se pelas obras de Descartes, que a achava uma discí-
pula muito sagaz, admirando-lhe o ~ar~t~r e a sua brilhant: inteligência.
Foi a ela que dedicou sua obra Principia em 1644, mencionando-a em
sua dedicatória como filha do Rei da Boêmia, e dando ao seu' pai o
título que seus inimigos haviam-lhe negado. Em 1649, quando o Tra-
tado da Vestfália pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, e mediante o
qual ficou estipulada a restituição do Palatinado Inferior para Charles
Louis, o filho mais velho e sobrevivente do "Rei Hibernal" da Boêmia,
a Princesa Elisabete estava pensando em retirar-se para o Palatinado,
quando seu irmão fixasse residência lá. Sugeriu a Descartes que tam-
bém deveria estabelecer-se naquela região, Infelizmente, o plano rela-
tivo a Descartes viver no Palatinado não deu em nada, O clima ameno
do Reno, com suas parreiras, deveria ter-se adaptado melhor à sua
saúde do que a fria Suécia, onde brevemente morreria, tendo sido obri-
gado a aceitar o convite da Rainha Cristina, a fim de ir para ,lá falar
sobre filosofia com ela, De acordo com a opinião de Baillet, um dos
motivos pelos quais aceitara esse convite foi que ele poderia ter deíen-
dido â causa da Princesa Elisabete e do Palatinado na corte sueca. 84
Esse grande interesse pelos assuntos do Palatinado já no fim de su~
vida, faz-nos imaginar o que Descartes estivera fazendo em suas prl-

34 . Vie de Monsieur Descartes, 1691, pp, 388.9.


. 161·
160
existir uma fraternidade, ou irmandade na cultura , através da qual os
homens eruditos poderiam compartilhar os conhecimentos e ajudarem-
-se mutuamente. No momento atual, as universidades não promovem
esse intercâmbio, porquanto não existe bastante reciprocidade intelec-
tual entre elas e a Europa. A irmandade de conhecimentos deveria
transcender as fronteiras nacionais . 2

CAPÍTULO IX Seguramente, assim como a natureza criou a irmandade nas famí-


lias, e as artes mecânicas condensam as irmandades nas comuni-
dades, e a unção de Deus introduziu uma irmandade de reis e
bispos, assim na cultura não pode existir senão uma fraternidade
FRANCIS BACON "À SOMBRA DAS de conhecimentos e iluminação, concernente àquela paternidade
ASAS DE JEOV Á " que é atribuída a Deus, o qual é chamado o pai da iluminação
ou das luzes.
í
o
grande furor rosa-cruciano parecia provocar pouca ou nenhuma Ao ler esse trecho, após nossas pesquisas neste livro, surpreende-
atenção pública na Inglaterra . Não se verificou uma inundação de pan- mo-nos com o fato de que Bacon concebe o conhecimento como "ilu-
fletos dirigidos aos Irmãos R.c. e espalhados pelo prelo, como ocorrera minação", a luz que deriva do "Pai das Luzes", e que a irmandade na
na Alemanha de 1614 a 1620. Nada de Invisíveis afixando cartazes, 1 cultura por Ele desejada seria uma "fraternidade de conhecimentos e
despertando um interesse desvairado e uma torrente de desmandos, iluminação". Essas expressões não deveriam ser omitidas como uma
como em Paris durante as décadas de 1620. O toque de trombeta da retórica religiosa; elas são significativas no contexto da História.
Fama) anunciando uma nova era e os vastos progressos nos conheci -
mentos futuros da humanidade parecem"'ler sido abafados nessas ilhas . . Nove anos depois, na Alemanha, a Fama rosa-cruciana destina-
va-se a apresentar os Irmãos R.C. como uma fraternidade dos illumi-
Verificavam-se, no entanto, outros toques de trombeta fazendo nati, como um grupo de homens eruditos reunidos no amor fraternal;
ecoar uma comunicação espantosa, não com a emoção ardente rosa-cru - ela destinava-se a advertir que os magos cultos e os cabalistas deveriam
ciana, mas em termos comedidos e razoáveis. Tratava-se dos manifes- partilhar seus conhecimentos; destinava-se a anunciar que próximo
tos relacionados com a evolução dos conhecimentos emitidos por Fran- estava o tempo para um grande progresso no conhecimento da Natu-
eis Bacon. Esses manifestos foram dedicados a Jaime I, o mesmo mo- reza . Este paralelo talvez sugira que a comparação do Movimento Ba-
narca no qual o movimento rosa-crucian ó na Alemanha depositara coniano com o Movimento Rosa-cruciano poderia ser revelador para
todas as esperanças. ambos, e principalmente para Bacon.
O The Advancement oi Leaming, publicado em 1605, é um es- A cultura moderna evidenciou abundantemente que a antiga con-
tudo sóbrio sobre o atual estado dos conhecimentos, chamando a aten- cepção de Bacon como observador científico atualizado e como ensaísta
ção para aquelas áreas da ciência que são deficientes, que deveriam ser emergindo de um passado supersticioso já não é mais válida. No seu
mais conhecidas, se os homens dedicassem suas mentes à pesquisa e livro sobre Bacon, Paolo Rossi 8 demonstrou que ele emergiu da tradi-
às experiências, principalmente na filosofia natural, julgada por Bacon ção hermética da magia e cabala da Renascença, uma vez que fora por
como deploravelmente insuficiente. Um conhecimento da Natureza assim elas atingido pela via natural dos magos. A concepção de Bacon sobre
evoluído, poderia e deveria ser empregado para aliviar a condição hu- o futuro da ciência não era aquela do progresso numa linha direta. A
mana e valorizar sua posição neste mundo. Bacon insiste que deveria sua "grande renovação" da ciência visava um retrocesso ao estado de

1. Um cartaz afixado em Londres, em 1626, é mencionado por R. F. Gould, 2 . Bacon, Advancement o/ Learning, II, dedicado a Jaime I, p. n.
Concise Historv o/ Ereemasonry, Londres, 1920, p. 76, mas não fui capaz de 3 . Pa~10 Rossi, Freseis Bacon, From Magic lo Scienc«, Londres, 1%8.
desc~brjr algo.,mais . sob~e\ isso., ~ \
*J, - ~vU- \-<'1 ~,~ OIo\cG.fdo . ..
162
Adão antes da Queda, 4 um estado de contato puro e sem pecado com Outra diferença importante, na perspectivt~ntre as escolas de
a Natureza, e o conhecimento dos seus poderes. Essa era umlperspec- pensamento baconiana e rosa-cruciana, é a rogativa de Bacon quanto
tiva do progresso científico. um progresso retrocedendo para Adão , ao sigilo nos assuntos científicos, a sua hostilidade contra a prolongada
sustentado por Cornelius Agrippa.P autor do influente compêndio re- tradição dos alquimistas, encobrindo seus processos com símbolos in-
nascentista sobre a filosofia ocultista. E a ciência de Bacon ainda é, compreensíveis. 8 Embora os manifestos rosa-crucianos aconselhem -
em parte, uma ciência oculta. Entre os assuntos que ele recapitula em como o faz Bacon - uma troca de conhecimentos entre os homens
seu estudo da cultura. encontram-se a magia natural, a astrologia - cultos , eles mesmos estão velados por mistificações, iguais à história
das quais ele procura uma versão reformada - a alquimia - pela da caverna, na qual foi descoberto o corpo de Rosencreutz, e que es-
qual foi profundamente influenciado - a fascinação - o instrumento tava cheia de símbolos geométricos . Esse simbolismo pode encobrir
mágico - e outros temas , que os interessados em descobrir o lado mo- estudos abstrusos da matemática feitos por membros de um grupo,
derno de Bacon deixaram de lado como sem importância. levando a diretrizes adiantadas; mas, neste caso, tais estudos não são
Os escritores rosa-crucianos alemães sustentavam concepções SImI- manifestados, porém encobertos por uma linguagem que desperta a
lares sobre a sabedor ia de Adão, e o caráter milenar do progresso nos vontade de saber mais sobre a matemática ou os segredos científicos
conhecimentos por eles profetizado. Após o estudo de suas obras e escondidos na caverna rosa-cruciana , Esta atmosfera é oposta àquela na
comparando-as com aquelas de Bacon, sentimos uma forte impressão qual se agitam os manifestos baconianos, e é exatamente esse abandono
- ao deixar de lado o fantástico mito Rosencreutz, como sendo um i da técnica do embuste mago-científico que faz com que os trabalhos
ludibriam - de que ambos esses movimentos estão relacionados com
o adiantamento mago-científico, e com a iluminação no sentido de
..~ , de Bacon pareçam modernos.
Sua obra The Advancement of Learning foi publicada em 1605.
esclarecimento. A Novum Organum, que Bacon escreveu em latim para facilitar sua
Entretanto, embora possamos considerar ambos os movimentos difusão na Europa, e que ele considerou como a mais importante afir-
como pertencentes naturalmente às mesmas épocas, ambos saindo da mação de sua filosofia e programa, foi publicada em 1620. A De aug-
Renascença para o progresso do século XVII, existem grandes dife- mentis, tradução latina e revisão da Advancement, foi publicada em
renças entre eles. Bacon sente-se ansioso por enfatizar a sua censura 1623 . Assim, a filosofia baconiana começara a aparecer muitos anos
quanto à arrogância e presunção do mago da Renascença. Ele previne antes do primeiro manifesto rosa-cruciano; sua mais importante afir-
principalmente contra Paracelso, o qual, conforme vimos, foi um pro- mação foi publicada no ano da fatalidade , aquele do breve reinado na
feta do movimento rosa-cruciano alemão. Bacon estudara o sistema de "
? Boêmia de Frederico e Elisabete; a tradução latina de Advancement
Paracelso, "convertido numa harmonia por Severinus, o Dinamar- apareceu por ocasião do temor rosa-cruciano em Paris. É indispensável
qu ês";" e chegara à conclusão de que "a antiga opinião de que o ho- observar que o movimento rosa-cruciano é contemporâneo da filosofia
mem era o microcosmus, e que o abstrato, ou a estrutura do mundo baconiana, que as estranhas emoções rosa-crucianas estavam-se verifi-
tinha sido incrivelmente forçada por Paracelso e os alquimistas". 7 +z.. cando na Europa, durante os anos nos quais as obras de Bacon come-
Isto é uma censura à filosofia do macrocosmo e microcosmo tão bá- çavam a aparecer na Inglaterra.
sica para Fludd, e as teorias rosa-crucianas da harmonia do mundo. Acredito que sem dúvida alguma existem ligações entre os dois
J. movimentos, embora difíceis de descobrir e analisar. Por um lado, as
4 . Para uma afirmação característica, entre muitas outras, desse objetivo,
consultar o prefácio para a lnstauratio Magna (Bacon, Works, ed . Spedding, ligações íntimas entre a Inglaterra e o Palatinado teriam facilitado a
et 01., edição 1857, I, p. 132). Cf. Rossi, Bacon, pp . 127 e ss.; e meu ensaio "The influência baconiana no movimento rosa-cruciano alemão. Por outro
Hermeric Tradition in Renaissance Science" na Art, Science and 'History in the lado, as diferenças entre o rosa-crucianismo e o baconianismo têm que
Rmaissance, ed. Charles S. Singleton, johns Hopk.ins Press, Baltimore, 1968,
pp . 266-7.
5 . De occulta pbilosopbia, lII, 40; consultar C. G. Nauert, Agrippa and the
Crisis of Renaissance Tbought, Urbana, 1965, pp. 48, 284.
6. Advancemenl, Il, 8, v.
7. Adoancement, 11, lO, ii,
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ser cuidadosamente consideradas.
O reinado de uma filha do Rei da Grã-Bretanha no Palatinado
facilitou as comunicações entre a Inglaterra e aquela parte da Alems-

8. Rossi, Bf'0n,\ p~. 34 e 55 .


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nha, e levou um fluxo de influências inglesas, entre as quais deveria nado de magia, do que a concepção de Bacon de aparência mais mode-
incluir-se a de Bacon em sua obra Advancement. Podemos investigar rada. Descobrimos no movimento alemão uma forte corrente oculta de
como tal influência se manifestou. Tanto Frederico quanto Elisabete influências, de acordo com Giordano Bruno, e sobretudo de acordo
eram leitores interessados nos movimentos intelectuais. Que tivessem com John Dee. Vimos que em sua Monas bieroglypbica, o símbol? no
livros da Inglaterra está provado pelo fato de terem levado para Praga qual ele resume a sua filosofia reaparece na literatura rosa-cruciana.
a cópia da History o/ lhe World} de Raleigh; tendo ela caído. ~a~ mãos Em parte alguma Bacon se refere a Dee, e em nenhum momento cita
dos vencedores, tornou, porém, a voltar para o Museu Brltamc~ ~e a sua famosa Monas bieroglypbica.
Londres onde se encontra atualmente. 9 Portanto, é provável que trves-
.f L Ficou bem conhecida a objeção à pretensão de Bacon ser um per-
sem também as obras de Bacon em Heidelberg. Sabemos que no final
da vida, Elisabete mostrou interesse pelos trabalhos desse escritor; 10 sonagem importante na história da ciência, ao não ter dado ele sufi-
no início antes de seu casamento, deveria tê-lo conhecido na Ingla- ciente ênfase às valiosas ciências matemáticas no seu "The Advance-
terra; foi ele quem compôs uma das peças alegóricas para suas núp- ment of Learning", e por ter manifestado sua ignorância sobre as mes-
cias.!' Talvez um outro propagado r da influência baconiana, tenha sido mas, ao repudiar a teoria de Copérnico e a teoria do magneto de
Michael Maier, que esteve sempre em contato com a Inglaterra durante Gilbert. Num artigo publicado em 1968, demonstrei que ao abster-se
o reinado de Frederico e Elisabete no Palatinado. Maier difundiu, no de comentar esses tópicos, ele talvez desejasse manter seu programa o
movimento alquímico alemão, as obras de antigos escritores alquímicos mais livre possível das implicações da magia. 15 Dee fora seriamente
ingleses, 12 e bem pode ter levado os livros d.e Bacon p~ra a. AI~~anha. suspeito de magia e "feitiçaria"; Giordano Bruno - o M~go Her-
Ele estava profundamente interessado na mterpretaçao f~losoflca da mético - associara a teoria copernicana, num trabalho publicado na
mitologia, e aquele aspecto do pensamento de Bacon, manifestado em Inglaterra, com a volta num futuro próximo do "Egípcio" ou religião
sua interpretação filosófica do mito, na obra Tbe Wisdom o/ lhe An- da magia; 16 William Gilbert foi evidentemente influenciado por Bruno
cients (1609), bem pode ter exercido um fascínio em Maier e ~eus em seu trabalho relativo ao magneto. Sugeri que o repúdio de Baeon
adeptos. Que a sua filosofia al~ímica estivesse oculta pelos antigos à matemática e à teoria copernicana poderia ter sido porque conside-
. , .".
mitos representou um prrncipro SlCO para
M' aier, 13 e Bacon tarn béem rava a matemática demasiadamente associada com Dee e sua "feitiça-
buscara a sua própria filosofia natural na mitologia. 14 Contudo, não ria", e Copérnico demasiadamente associado com Bruno e o seu
"Egípcio" radical e a religião da magia. Esta hipótese merece ser agora
precisamos especificar demasiadamente quais tenham sido os pontos
lembrada, por sugerir um possível motivo para uma diferença maior
de contato. Basta dizer que o movimento anglófilo no Palatinado e nos
entre o rosa-crucianismo alemão e o baconianismo. No primeiro, Dee
estados protestantes circunvizinhos naquela época, quando tanto se
e a sua matemática não são temidos, mas Bacon os evita; quanto ao
esperava de Jaime I, teria implicado no interesse do grande filósofo
último, Bruno representa uma influência, mas é rejeitado por Bacon~t.
da era jacobita, Francis Bacon.
Em ambos os casos, ele devia estar fugindo do que lhe parecia serem
Todavia, e conforme já mencionado, existem diferenças eviden- assuntos perigosos, a fim de proteger seu programa dos perseguidores
temente básicas entre o baconianismo e o rosa-crucianismo alemão. O da feitiçaria, do clamor da "bruxaria", a qual, segundo disse Naudé,
último é mais profundamente hermético, mais intensamente impreg- perseguia os matemáticos no início do século XVII.
Ao considerar a atitude de Bacon ante a ciência e o seu modo
9. Consultar Carola Oman, Elizabetb of Bobemia, Londres, 1964, p. 178. de defender o progresso científico, devemos sempre nos lembrar do
10. Ver anteriormente, p. 31. caráter e concepção do monarca, ao qual Bacon tentara favorecer e
11. Ver anteriormente, p. 18. interessar em seu programa, para o adiantamento da cultura. Nisto,
12. Ashmole afirma que Maier foi para a Inglaterra, a fim de aprender o não foi bem sucedido; conforme observou D. H. Wilson, Jaime "não
inglês, para assim poder traduzir o trabalho de um notável alquimista inglês em "\ '
compreendeu ou não apreciou o grande plano de Bacon", e tampouco
versos latinos. (Ashmole, Tbeatrum Chemicum Britannicum, ed. Debus, Prole- respondeu com qualquer oferta para auxiliar os projetos que ele apre-
gomena.) Consultar adiante, p. 245.
13. Ver anteriormente, p. 119. 15. "The Hermetic Tradition in Renaíssance Science", pp. 268 e SI.
14. Rossi, Bacon, pp. 73 e 5 S . . 16'~GiOrdano Brun~ an~ the Her"!etic Tradition, pp. 236 e

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sentara sobre instituições científicas. Quando o monarca recebeu o E ainda mais obviamente, nãottoi esse o meio para influenciar
Novum Organum em 1620. ouviram-no dizer que esse trabalho asse- Jaime a favor dos planos e projetos de seu genro no Palatinado e na
melhava-se à paz de Deus, a qual ultrapassava toda a compreensão. 17 Boêmia, associando-o a um movimento que encobria seus desígnios em
Julgo jamais ter sido sugerido que a atitude duvidosa de Jaime cavernas encantadas e invisíveis Irmãos R.C., os quais poderiam facil-
para com a ciência baconiana poderia estar associada ao seu profundo mente ser convertidos em feiticeiros pelos perseguidores da feitiçaria .
interesse por ela, e seu pavor à magia e feitiçaria. 18 Estes assuntos Entre os muitos erros cometidos pelos amigos do desventurado Eleitor
exerciam um fascínio sobre ele, estando associados com neuroses re- Pala tino, os manifestos rosa-crucianos poderiam ter sido dos piores.
sultantes de algumas experiências no início da vida. Na obra Demo- Se um só boat? sobre eles chegasse aos ouvidos de Jaime, e qualquer
nology (1597), Jaime pleiteou a penalidade de morte para todos os um deles associado a seu genro, isto certamente teria contribuído mais
feiticeiros, embora insistindo no cuidado ao examinarem os casos. O do que qualquer outra coisa para influenciâ -lo contra Frederico e des-
assunto era muito sério em sua opinião, sendo um ramo da teologia . truir qualquer esperança de apoio a seus projetos.
Evidentemente, Jaime não era a pessoa adequada para examinar o sem- Assim sendo, à medida que propagava o progresso da cultura e
pre muito difícil problema de quando a Magia Renascentista e a Ca- principalmente o progresso científico, durante o reinado de Jaime I,
bala representaram movimentos valiosos, levando à ciência, e de quando Bacon se movimentava por entre perigos ocultos. A velha tradição
tenderam para a feitiçaria: o problema de estabelecer a diferença entre científica elisabetana não estava a seu favor, e alguns de seus repre-
a magia benéfica e a maléfica. Jaime não estava interessado na ciência, e sentantes sobreviventes esquivavam-se ou encontravam-se presos. A
reagiria com medo a qualquer espécie de magia. última Rainha Elisabete pedira a John Dee que lhe explicasse a Monas
Não é para surpreender que quando o velho john Dee apelou bieroglypbica, 21 o Rei Jaime não queria nada com seu autor. Bacon,
para Jaime, a fim de auxiliá-lo a esclarecer a sua fama de invocar os quando publicou The Advancement of Learning em 1605, deveria ter
demônios, o monarca mostrara-se indiferente. Esse apelo infrutífero foi ficado sabendo que Jaime repudiara Dee no ano anterior. Além disso
feito em junho de 1604. 19 O ancião, de cuja cultura a era elisabetana as tradições elisabetanas exportadas, que tinham chegado ao Palatinado
tornara-se eternamente devedora, ficou desacreditado no reinado de com a filha de Jaime e seu marido, tampouco eram favoráveis. Francis
Jaime e morreu na pobreza em 1608. Bacon deve ter anotado cuida- Bacon foi um daqueles que lastimaram a política exterior de Jaime e
dosamente a atitude de Jaime para com Dee, e também deve tê-lo feito estimularam o apoio ao Eleitor Palatino. Aqui, também, o autor dos
relativamente aos sobreviventes da era elisabetana da matemática e da manifestos ingleses para o progresso da cultura teria que caminhar cau-
magia, da navegação arrojada e das proezas antiespanholas, que certa- telosamente, para não parecer demasiadamente comprometido nos mo-
mente não foram estimulados por Jaime, como tinham sido no reinado vimentos do Palatinado.
de Elisabete. Northumberland e Raleigh prosseguiram seus estudos Bacon tinha que ser prudente ao seguir um caminho através das
quando prisioneiros na Torre, a mandado de Jaime, estudando mate- inúmeras dificuldades e perigos, enquanto pleiteava o progresso da
mática e alquimia com o seu culto companheiro Thomas Rariot. 20 cultura científica, naqueles anos do início do século XVII, quando o
histerismo da feitiçaria aumentava em toda a Europa.
É óbvio que Bacon teria tido·~uidado em evitar, nos trabalhos
destinados a interessar Jaime, qualquer coisa que sugerisse Dee e sua Nós também estivemos movimentando-nos cautelosamente neste
suspicaz matemática. Assim mesmo, Bacon não conseguiu diminuir as capítulo, chocados com a idéia de que pudesse existir um certo para-
suspeitas de Jaime quanto ao progresso científico, embora cuidadosa- .:.5
lelismo entre os movimentos rosa-crucianos e baconiano, e que fossem,
mente apresentado. por assim dizer, metades do mesmo problema evoluindo de modo di-
verso, e que talvez estudando-as juntamente, ambas pudessem ser es-
17. D. H. Wilson, King [ames VI and I, Brochura, 1966, pp, 298-9. clarecidas. Até o momento não tivemos nenhuma demonstração, para
18. IbM., pp. 103-6, 308-12. oferecer ao leitor, sobre o que o próprio Bacon teria pensado a respeito
19. French, [obn Dee, p. 10. dos manifestos rosa-crucíanos. Agora porém, surge uma, e de um tipo
20. Harior e Dee são às vezes mencionados juntos como contemporâneos o mais extraordinário, proveniente da obra New Atlantis.
como matem~ticos prof?ndos; consult~r D. B. Quinn e J. W. Shirley - liA Con:
temporary LJSt \ of Hariot References', Renaissance Quarterly, pp. 15, 20.
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21. \ ~rench, John Dee, pp. 38-9.
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Bacon morreu em 1626. Em 1627, foi encontrado entre seus pa- Num outro dia , um governante do país visitou-os, explicando-lhes
péis um trabalho inacabado e sem data, no qual iniciara a Utopia, tudo quanto desejavam saber acerca da história e costumes daquela
seu sonho de um ideal religioso e uma sociedade científica. Ele assume terra como o cristianismo fora levado até lá, e sobre a "casa ou colé-
o aspecto de uma alegoria, relativamente à descoberta, por marinhei- gio" 'de Salomão, com seu grupo de homens sábios. Os viajantes tive-
ros assolados por uma tempestade , de uma nova terra , a Nova Atl ân- ram autorização para fazer perguntas a respeito de qualquer assunto
tida. Os habitantes dessa terra haviam organizado uma sociedade per- que pudesse intrigá-los. E então eles disseram que o que mais os sur-
feita, embora permanecessem completamente ignorados do resto do preendia era o fato de os habitantes da Nova Atlântida conhecerem
mundo. Eram cristãos; o cristianismo chegara até eles em épocas remo- todos os idiomas da Europa, parecendo também que sabiam tudo rela-
tas; um cristianismo evangélico, o qual enfatizava o amor fraterno. Eles tivamente aos negócios do mundo exterior, e o estado de cultura nele
também eram muito evoluídos quanto ao conhecimento científico. Em existente, enquanto que eles mesmos, eram completamente desconheci-
seu grande colégio, chamado a Casa de Salomão, uma Ordem de pa- dos e obscuros fora de seu próprio país: 26
dres-cientistas fazia pesquisas em todas as artes e ciências, cujos resul-
tados sabiam como aplicar em benefício dos homens . Esta ficção sinte- que eles conhecessem os idiomas, livros , e negócios daqueles que
tiza o trabalho e os objetivos visados na vida inteira de Bacon: o pro- estavam tão distantes, era uma coisa que não podíamos dizer para
gresso da cultura com fins utilitários e proveitosos para a Humanidade. que compreendessem, pois isso parecia-nos uma condição e pro-
Essa ficção - parábola ou ludibriam - reflete em vários pontos priedade dos poderes e seres divinos, para permanecerem escon-
os temas dos manifestos rosa-crucianos, de tal forma que dá como didos e invisíveis aos outros, embora tivessem outros acessíveis
certo que Bacon conheceu a história de Rosencreutz . e como que aclarados por uma luz.
Antes de os viajantes desembarcarem, um oficial da Nova Atlân- Ao ouvir isso, o Governador sorriu bondosamente e disse
tida lhes entregava um pergaminho com instruções. "Este pergaminho que havíamos feito bem em pedir perdão pela pergunta que está-
estava estampado com um sinete, no qual se viam as asas de um que-
vamos fazendo, pois ela significava estarmos julgando aquela
rubim, não abertas, porém pendentes, e perto delas uma cruz." 22
terra de magos, que enviavam os espíritos para todas as partes,
Assim também era o sinete aposto no fim da Fama rosa -cruciana, com
o lema "Sob a sombra das asas de Jeová", e as asas, conforme vimos, a fim de trazer-lhes notícias e informações de outros países. Isso
aparecem com freqüência como emblemas característicos em outras foi respondido por todos nós, com toda a humildade possível,
obras da literatura rosa-cruciana. 28 porém, deixando transparecer em nossa expressão que sabíamos
estar ele falando alegremente; que éramos bastante capazes de
No dia seguinte, os viajantes foram levados gentilmente à Casa
dos Forasteiros, e nela seus enfermos eram tratados. Ofereciam dinhei- julgar que nessa ilha havia algo sobrenatural, mais própriâ'lde
ro por esses serviços, mas não o aceitavam . 24 Deve ser lembrado que anjos do que de magos.
a Fama estipula em seu regulamento que os Irmãos R.C. tratem dos
doentes a título gratuito. Mais adiante será explicado como era que os sábios da Nova
Atlântida estavam a par de tudo quanto se passava no mundo exterior,
Alguns dias depois, outro oficial da Nova Atlântida foi visitar os
estrangeiros na Casa dos Forasteiros. Usava um turbante branco "com
J embora permanecessem invisíveis para ele. Era porque os viajantes
recebiam ordens para partirem da Nova Atlântida e coligirem infor-
uma pequena cruz vermelha em cima do mesmo", 25 mais u!l!aprova
mações; vestiam-se de acordo com os costumes dos países que visita-
de que os marinheiros salvos do naufrágio tinham vindo dal-terra dos
vam e assim passavam despercebidos. De acordo com o manifesto 1"0-
Irmãos R.C.
sa-cruciano, isto significa que seguiam um dos regulamentos dos Ir~~os
22. Francis Bacon, New Atlant;s, em W orks, ed. Spedding, Ellis and Heath, R.C., isto é, não usar um hábito especial ou qualquer símbolo distin-
Londres, 1857, IH, p. 130. tivo, mas adaptar-se à roupa e à aparência dos habitantes de ~ua1quer
23. Consultar a p. 82 e a gravura no verso do frontispício do livro. país que estivessem visitando. A lei estatuída na Nova Adânttda pres-
24. Neto Atlantis, 00. cit., p. 132.
26. IbM., p. 140.
25. li IbM.( p . .135.
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crevia que a cada doze meses, "três dos congregados, ou irmãos da Casa mens sábios da Sociedade dos rosa-crucíanos" . 29 Ele se refere expli-
de Salomão", deveriam partir numa missão, a fim de coligir conheci- citamente à Casa de Salomão na Nova Atlântida, como sendo o mesmo
mentos sobre o estado das artes e ciências, e voltarem trazendo livros, "Templo da Rosa-Cruz". 30 Existem muitos outros pontos em que Hey-
instrumentos e notícias. Esse mister - segundo explicaram - não don associa a New Atlantis com a Fama; de fato ele está lendo o
representava um comércio em termos comuns de utilidades materiais, estudo de Bacon, como sendo praticamente o mesmo do manifesto
mas apenas uma busca "da primeira criação de Deus , que foi a luz; rosa-cruciano.
ter luz, quero dizer, o esclarecimento relativo ao progresso de todas as As significativas interpolações rosa-crucianas de Heydon, na New
partes do mundo". 27 Atlantis, deveriam ser estudadas mais minuciosamente do que aqui
Desse modo, embora o nome Rosa-Cruz não seja mencionado em é possível, contudo, devemos mencionar um outro de seus trechos.
nenhuma parte por Bacon na New Atlantis, é mais do que evidente Quando Bacon diz que eles possuíam na Nova Atlântida alguns dos
que ele conhecia a ficção da Rosa-Cruz e estava adaptando-a à sua trabalhos de Salomão que tinham sido perdidos, Heydon amplia isto
própria parábola. A Nova Atlânrida era governada pelos Irmãos R .C., afirmando que eles tinham "o livro M", que fora escrito por Salomão
viajando invisivelmente como "negociantes da luz", para fora do muno na Nova Atlântida .P! O livro M foi um dos objetos sagrados encon-
trados no túmulo de Christian Rosencreutz, de acordo com a Fama.
I:i
~
do do seu colégio ou centro invisível, chamado a Casa de Salomão, e I'
seguindo os regulamentos da Irmandade R.C., para tratar dos enfermos O fato da New Atlantis de Bacon demonstrar um conhecimento
da Fama - o que Heydon confirma - não é evidentemente uma
iI
sem cobrar nada, e não usar um traje especial. Além disto, o sinete I
prova de que Bacon pertenfia a alguma sociedade secreta ou maçônica. i
com "as asas do querubirn" sela o pergaminho trazido da Nova Atlân-
tida, da mesma forma como se encontra na Fama. A ilha tinha algo A evidência histórica estáTesbulhada e deturpada, caso seja empregada I
de angelical, mais do que de magia, e seu oficial usava uma cruz ver- para apoiar afirmações desse gênero que não podem ser verificadas. I
melha no turbante. Talvez seja justificável a reação contra essas teorias imaginãrias.P'' as I
Os estudantes atuais de Bacon não estão familiarizados com a 29 . "Acontece que num dos barcos, havia um dos homens sábios da S0-
literatura rosa-cruciana, que não foi incluída em suas matérias e nem ciedade dos rosa-crucianos, cuja Casa ou Colégio representa a própria Visão desse
reconhecida como uma legítima subdivisão da história do pensamento Reino", Heydon, Holy Guide, sigo b 8 verso. Comparar New Atlantis , ed. cit., I
p. 137: "Acontece que num dos barcos havia um de nossos homens sábios, da I
ou ciência. Mas aqueles que leram a New Atlantis, antes que a Fama Sociedade da Casa de Salomão, cuja casa ou colégio, meus bons irmãos, é a própria
I
e a Conjessio fossem esquecidas, imediatamente teriam reconhecido os visão deste reino . . . "
Irmãos R.C. e seu Colégio Invisível nos habitantes da Nova Atlântida.
Um desses leitores registrou o seu reconhecimento. Foi ele John Hey-
30. "O rei deles instituíra uma Ordem, ou Sociedade, à qual chamamos o
Templo da Rosa-Cruz; a mais eminente Fundação (segundo julgamos) que já
I
don, cujo livro Holy Cuide, publicado em 1662, está baseado em
grande parte na adaptação da New Atlantis . Quando o homem com o
existiu na terra; e o Fanal deste Reino. Ele é dedicado ao estudo dos trabalhos,
e das criações de Deus . . . " (Holy Guide, sigo c 7 recto.y Comparar New Atlantis, I
ed. cit., p. 148: "Compreendereis, meus caros amigos, que entre as excelentes
turbante branco, ornado com a cruz vermelha, aparece para tratar dos ações desse rei, uma teve a preeminência sobre todas. Foi a construção e institui-
enfermos, Heydon cita isto com as seguintes palavras: "Por cargo, sou .J ção de uma Ordem, ou Sociedade, à qual chamamos Casa de Salomão; a mais
eminente fundação, segundo julgamos, que jamais houve na terra, e o fanal deste
Governador desta Casa de Forasteiros, e por vocação sou um padre reino. Ele é dedicado ao estudo dos trabalhos e criações de Deus ... "
cristão, e da Ordem da Rosa-Cruz." 28 Quando Bacon se refere a um 31. " Pois temos uma parte de seus trabalhos (de Salomão), os quais para
dos sábios da Casa de Salomão, Heydon cita . isto como "um dos Ho- vós estão perdidos, isto é, o M rosa-cruciano, que ele escreveu sobre todas as
;t '
coisas do passado, do presente e do futuro" (Holy Guide, sigo c 7 recto). Cam-
27. tsu.. p. 147. parar New Atlantis, ed, cit., p. 148: "... pois temos uma parte de seus traba·
lhos (de Salomão), os quais para vós estão perdidos, isto é, a Hist6ria Natural,
28 . john Heydon, The Holy Guide, Londres, 1662, sigo b 6 recto. Compa- ...
;'
que ele escreveu a respeito de todas as plantas . .. "
rar a New Atlentis, ed, cit., p. 135: "Por cargo, sou Governador desta Casa de
32 . O fato da influência da Fama na New AJ14ntis foi observado por um
Forasteiros, e por vocação sou um padre cristão; e, portanto, vim para vos ofe- desequilibrado, cujo livro num outro sentido é um absurdo total (F. W. C.
recer este serviço." Wigston, Bacon, Shaleespeaíe, and tbe Rosicrucians, Londres, 1888). A. E. W"

172
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. 'impediirarn que os h"istoriac1ores pon dera dos não• .1.anotassem devi-
quais
damente o fato de existir inegáveis influências da Fama na New
Atlantis.
Esse fato deverá ser estudado muito seriamente no futuro pelos
historiadores do pensamento, e analisados com relação ao movimento
rosa-cruciano. A religião da New Atlantis tem muito em comum com
aquela dos manifestos rosa-crucianos, de espírito intensamente cristão,
embora não doutrinai, interpretando esse espírito em termos de uma CAPÍTuLO X
benevolência prática, igual à dos Irmãos R.C. Ela é profundamente
influenciada pelo misticismo hebraico-cristão, como na cabala cristã.
Os habitantes da Nova Atlântida respeitam os judeus; dão o nome de
Salomão ao seu colégio e procuram Deus na Natureza. A tradição her- OS LIBERAIS ITALIANOS E OS MANIFESTOS
mético-cabalística obteve resultados nesse extraordinário colégio, dedica- ROSA-CRUCIANOS
do à investigação científica. Existe uma característica sobrenatural no
mundo da Nova Atlântida . Embora possa representar uma profecia do
advento da revolução científica, essa profecia é feita não com um Este livro, ao esboçar as complexidades de um assunto que é
espírito moderno, mas dentro dos termos de referência. Os habitantes antes europeu do que nacional, tem que divagar de um país para outro.
da Nova Atlântida pareceriam como tendo"~ealizado a grande reforma Deixamos a Alemanha já no fim do "furor", acompanhamos o temor
da cultura, e conseqüentemente voltado ao estado de Adão no paraíso na França e voltamos à Inglaterra para observar Francis Bacon. Deve-
antes da Queda - o objetivo do progresso tanto para Bacon como mos agora regressar à Alemanha, tal como era antes de irromper a
para os autores dos manifestos rosa-crucíanos. Um dos momentos mais Guerra dos Trinta Anos, a fim de considerarmos de que modo os mo-
reveladores, na Neto Atlantis, é quando os viajantes manifestam o de- vimentos em torno do Eleitor Palatino afetaram, ou foram afetados
sejo de saber se não estão na presença de poderes e seres divinos, se a pela situação contemporânea da Itália. Isto significa voltarmos aos ma-
invisibilidade dos Irmãos (os quais agora sabemos que deveriam ter nifestos rosa-crucianos, a fim de retomarmos um assunto que ainda
sido os Rosa-Cruzes), não teria algo de sobrenatural, "mais própria não foi examinado.
de anjos do que de magos". Embora o Governador considere essa dú-
vida "alegremente" (ou como um ludibrium i ; apresentando um mo- Quando apresentamos a Fama num capítulo anterior, menciona-
tivo racional para a invisibilidade deles, não obstante isto, a New mos que a primeira edição desse manifesto foi precedida de uma tra-
Atlantis está como que equilibrando-se na ponta de uma faca, depen- dução alemã, feita por um escritor italiano, e relativa a uma "reforma
dendo da aceitação favorável da parte do leitor, ou de ele admitir as geral do mundo inteiro". A argumentação sobre esta contribuição de
influências científicas nela contidas como «quase angelicais" ou dia- origem italiana ao manifesto alemão foi protelada para uma etapa
bolicamente inspiradas. Para esta última hipótese, precisamos apenas ulterior. Ei-la que surge agora, e é chegado o momento de considerar-
nos lembrar do "Horríveis Pactos") publicado em Paris alguns anos mos o ponto de vista em relação à situação contemporânea da Itália,
antes. apresentado pela inclusão, no volume que contém a Fama, do apelo
feito por um escritor italiano visando a reforma geral.
Na Itália - ou mais especialmente, em Veneza - ocorria uma
situação significativa para aqueles que na Alemanha nutriam esperan-
ças de uma nova liga de Frederico V, Eleitor Palatino com o suposto
(Real. History ~f lhe Ros~ucians, p. 333) considera o Holy GuMe como uma
espécie de versao corrompida da Fama, mas não menciona a New Atlantis com
relação à~uela.
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apoio de seu sogro, o Rei Jaime. Esta era uma corrente do sentimento
antipapal que ainda pairava sobre Veneza) desde o movimento de te-
sistência às exigências de Roma) dirigido por Paolo Sarpi em pri.nd-

17'
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pios do século, e pelo qual Jaime e o embaixador inglês em Veneza, em fasl~a exigência do catolicismo pós-Tridentino, dos excessos da
Sir Henry Wotton, tinham-se mostrado profundamente interessados. 1 Contra-Reforma apoiada pelos jesuítas, e dos poderes dos Habsburgos.
Na polêmica de Veneza com a cúria papal, que culminou com o Nenhum historiador parece ter examinado as ligações desse movi-
Interdito de 1606, o caso do governo veneziano foi estritamente diri- mento com aqueles em torno do Eleitor P alatino . 2 Entretanto, Anhalt
gido segundo as normas legais por Paolo Sarpi, frade servi ta, que por mantinha-se em contato com Sarpi, e o principal representante do Pa-
isso tornou-se famoso entre todos aqueles interessados em manter um latinado, Barão Christian Von Dohna, visitava freqüentemente Veneza
espírito de liberdade na Europa. A atenção de Jaime para com o caso durante aqueles anos . Como muitos outros na Europa, o Governo ve-
veneziano foi estimulada pela suposta semelhança da posição veneziana neziano estava ansioso por ob ter informações sobre se Jaime pretendia
contra Roma, com a posição anglicana de independência. Houve um apoiar seu genro no empreendimento' da Boêmia . Um embaixador ve-
momento em que Sir Henry Wotton, o entusiástico embaixador, espe- I neziano , apresentando-se ao Doge em novembro de 1619, observou
rou realmente induzir Veneza a adotar uma reforma similar à reforma que uma recusa dos imperialistas na Boêmia enfraqueceria os desígnios
anglicana. O livro de orações em inglês foi traduzido para o italiano e dos poderes hispano-habsburgos para o domínio da Itália, e o enfra-
os serviços passaram a ser realizados na embaixada. quecimento desses poderes, é "o que Vossa Alteza Sereníssima tem
Foi nessas circunstâncias do rapprocbement (reconciliação), que todo o motivo para desejar". S Embora os negócios do Palatinado não
sucedeu o fato de o notável trabalho do eminente liberal italiano, Sarpi, sejam mencionados pelos historiadores que tratam das relações vene-
ter sido p1Jblicado não na Itália, porém na Inglaterra. Foi ele a famosa zianas com a Inglaterra no início do século XVII, esses negócios de-
History of tbe Council oi Trent (História do Concílio de Trento), des- viam estar ligados muito proeminentemente ao panorama geral para
tinada a fazer com que todos soubessem que os protestantes não tinham aqueles que observavam os assuntos em Veneza. Um governo forte no
sido convidados para o Concílio, que o parecer dos elementos mais Palatinado, tão próximo de Veneza e da estrada de terra firme de Ve-
liberais católicos e franceses no Concílio não tinha sido ouvido, e que neza para a Inglaterra, deveria ter encorajado Veneza a continuar mais
o Concílio visava introduzir uma fiscalização mais rígida, dominado tempo numa posição defensiva, a sustentar por mais tempo uma po-
que estava pelo papado, muito mais do que procurar medidas mais sição de relativa liberdade, comparada com o resto do mundo. E ainda
amplas para uma reforma liberal. A controvérsia do Interdito e a sim- mais - tivesse a aventura da Boêmia mostrado qualquer chance de
patia pelo anglicanismo, por ele suscitado, tiveram repercussões nos sucesso - ter-se-iam fortalecido os movimentos liberais em toda a
países da Europa que se mantinham à espreita. A sensacional conversão Europa. Não tendo as coisas dado certo, o apoio de Jaime a Frederico
ao anglicanismo de um arcebispo católico - Antonio de Dominis, Ar- converteu-se numa quimera, e a sua derrota em Praga em 1629 foi
cebispo de Spalato - em 1616, foi um acontecimento que parecia um mau agouro para as esperanças liberais de Veneza, bem como da
pressagiar novos movimentos estimulando aqueles da Alemanha, que
estavam alimentando esperanças no Eleitor Palatino e sua esposa real 2. Esses não são mencionados, por exemplo, por W. J. Bouwsma, Yemc«
and the Dejence o/ Republican Liberty, Universidade da Califórnia, 1968. C0n-
anglicana. E foi De Dominis quem primeiro publicou a History oj the tudo , alguns documentos contemporâneos citados neste livro não são compreensí-
Council o/ Trent, de Sarpi, em italiano, na Inglaterra em 1619, com veis, sem a referência à aventura de Frederico da Boêmia, a omissão de Jaime I
uma dedicatória a Jaime I, dando-o como o único, no qual podiam con- para apoiã-la, e o seu colapso. A indignação de Mícanzio, amigo de Sarpi, contra
Jaime I, deixando de agir em 1619, é comentada por Bouwsma, pp. 526-7, deve
fiar aqueles que na Itália estavam insatisfeitos' com o estado da reli- estar inteiramente relacionada com aquela situação, o mesmo ocorrendo com as
gião. No ano seguinte, apareceu em Londres uma tradução latina da palavras irritadas de Micanzio sobre o mesmo assunto no inicio de 1621: "Per-
obra de Sarpi, feita por um antigo tutor do Príncipe Henrique. Na- manecer assistindo a ambigüidade do direito , e deixar que ele se tornasse cada
vez mais poderoso, e conseguir abalar todos os países livres... Se da Inglaterra
queles anos verificou-se uma sensação emocionante relativa a estarem não surgirem algumas decisões úteis, e bem acompanhadas de fatos. . . os espa-
Veneza e Inglaterra sentindo a mesma afinidade religiosa e política nhóis conquistarão a Alemanha e terão a Itália sob seu arbítrio" (citado por
j Bouwsma, p. 527).
1. Consultar meu artigo sobre "Paolo Sarpi - History o/ the Council of 3. Zorzi Giustiniani para o Doge, novembro de 1619, no livro de S. R.
Trens", Journal 01 lhe Warburg and Courtauld lnstitutes, VII (1944), pp. Gardiner, Leuers and otber Documents iIlustrati"g reletions bd~ E.,,..,,. _
11.34.3. Germam, camdent:'ety, 1868, II, p. 82.
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176
Boêmia e Alemanha. 4 O Doge de Veneza foi ouvido, para manifestar A sátira de Boccalini, ou pilhéria mordaz, adquire a forma de
ironicamente que se o Rei da Inglaterra nada fizesse em defesa de sua uma alegoria . Foi admitida a hipótese de Apolo manter sua corte no
própria filha, os outros certamente nada poderiam esperar dele. O Parnaso, e para ele acorriam personagens, antigos e modernos, que
status de Henry Wotton junto ao Doge e ao senado declinou abrup- se queixavam do atual estado das coisas. Boccalini não é protestante;
tamente após 1620. Veneza estava afastando-se da aliança inglesa e em um de seus trechos de novidades do Parnaso, Pico della Miran-
afundando com o resto da Itália no torpor da sujeição. dola se queixa a Apolo sobre o barulho feito pelos Reformadores, que
O rápido esboço do interesse veneziano, nos negócios do anglo- o impede de pensar. 9 Ele, porém, é a favor da tolerância religiosa; a
-palatinado, é o suficiente para uma introdução ao estudo da tradução defesa de Bodin 10 que foi acusado de tolerância por Apolo, toma a
do italiano, que foi publicado com a Fama, e que imprimiu ao mani- forma indireta para demonstrar que os maometanos são mais toleran-
festo rosa-cruciano e a seu apelo, relativo a uma reforma geral, uma tes do que os católicos . Um trecho interessante das "novidades" é a
simpatia para com Veneza, e sua insatisfação pela situação da religião. cena na qual Thomas More queixa-se a Apolo da divulgação da heresia,
O opúsculo sobre a "Reforma geral em toda a extensão do mun- e pergunta quando terminará; a resposta é que findará quando o poder
do" que foi publicado com a Fama 5 é uma tradução para o alemão habsburgo for destruído; de acordo com Apolo, é a tirania que causa
de um capítulo do "Ragguagli di Parnaso", de Traiano Boccalini," pu- a revolta protestante. 11 A sátira é sempre sutil , mas a sua tendência é
blicado em Veneza em 1612·13. Foi portanto, uma publicação recente, sempre a mesma; é uma confrontação de nomes ilustres de pensadores,
a última coisa proveniente da Itália, quando a tradução alemã do poetas, homens eruditos com o mundo reacionário ; uma queixa contra
a "Monarquia Espanhola", sua tentativa de hegemonia da Europa, e a
mesmo foi publicada com a Fama em 1614. Boccalini foi um liberal
sua sujeição à Itália.
italiano excessivamente anti-habsburgo, amigo de Sarpi e de outros
intelectuais do círculo de Sarpi, que incluía Galileu . A tendência do O grande herói de Boccalini é Henrique IV da França. Uma das
seu "News from Parnassus" é positivamente anti-habsburga, deploran- cenas mais extraordinárias, na corte de Apolo , é a imensa tristeza ao
do o domínio da Itália pelos tiranos estrangeiros, e lamentando o re- receberem a notícia de sua morte.J'' Apolo chora lágrimas amargas
sultante declínio da cultura italiana. Boccalini morreu em 1613. Cor- e o seu brilho é obscurecido, temendo que agora com a perda desse
reu o boato de ter sido assassinado por dois homens que entraram em grande homem, desapareça toda a esperança de progresso. Mas toma-
sua casa à noite e o mataram golpeando-o com sacos cheios de areia, mos conhecimento em outros capítulos, como na Neerlândia eles se
porém uma recente pesquisa provou não ser verdadeira esta ficção. 7 mantêm firmes . Tudo ainda não está perdido, e os homens de boa
Talvez ela tenha sido transmitida pelo próprio Boccalini, que imaginou vontade devem manter-se unidos.
esse gênero de morte em seu livro, como tendo acontecido com O capítulo dessa obra, julgado adequado para ser impresso na
Euclides. 8 tradução alemã, junto com a Fama rosa-cruciana, foi aquele em que
Apolo tenta iniciar uma reforma geral do mundo. 18 Ele julga que o
4 . A ansiedade com a qual os venezianos observavam os acontecimentos e universo está numa situação terrível. Fica sabendo que os homens
seu desespero pela derrota de Frederico estão veementemente expressos nas men- estão fartos da vida, sob condições tão assustadoras, que muitos, achan-
sagens do Calende« of State Papers Yenetian, XVI , 1619-21. do a vida intolerável, cometem suicídio. Apolo suspira profundamente
5. A "Reforma Geral" (i.e., o extrato de Boccalini) aparece não s6 na l.' e decide aconselhar-se com os homens sábios, a fim de descobrir como
edição da Fama, Cassel, 1614, mas também na de Frankfurt, 1615, e na de Cas- remediar essa aflitiva situação. Eles apresentam propostas, mas todos
se), 1616. Consultar o Apêndice, pp. 293·94.
6. Traiano Boccalini, Ragguag/i di Parnaso, Veneza, 1612-13; existe uma 9 . Ibid., II, 16.
tradução inglesa do século XVII , Advertisements Irom Parnassus, por Henry, Con- 10. Ibid., I, 65.
de de Monmouth, Londres, 1669. Comentei rapidamente o significado da publica-
ção do trecho da Fama, em Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, pp. 11. O trecho sobre Thomas Mote ocorre em Pietra deI Parago"e politico,
357-8, 408-12. publicado em 1615, e adicionado ao RAgguagli, como uma terceira parte nas edi·
ções ulteriores. .
7. Gaetano Cozzi, "Traiano Boccalini, Il Cardinal Borghese e la Spagna",
Rivista storica italiana, LXVIII (1961). 12. Ragguagli, I, 3.
8. Boccalini, Ragguagli di Parnaso, 11, 3. 13. isu., I, 77.

179
178
os expedientes são abandonados como impraticáveis. Finalmente os re- levariam àqueles de Giordano Bruno, pois é mais do que prováve! que
formadores acabaram ocupando-se com insignificâncias, renunciando à Boccalini tenha sofrido a influência de Bruno 15 que também alimen-
tentativa de uma profunda reforma geral. As coisas tornaram a adqui- tava idéias semelhantes e cujos poderes para descrever com palavras
rir seu antigo aspecto de desordem, e a Era permaneceu tão desventu- um grande afresco de figuras mitológicas e imprimindo-lhe um signi-
rada quanto sempre fora . ficado político-religioso - como na apresentação da Corte de Apolo -
Parece evidente que a alusão aqui é ao Concílio de Trento. Para faz-nos lembrar a descrição pitoresca de seu Spaccio delta bestia
qualquer um do círculo de Sarpi, o concilio representaria apenas uma trionjante.
reforma frustrada, uma tentativa de reforma que só produzira regula- Nos anos anteriores, Giordano Bruno "esperara coisas grandiosas"
mentos rigorosos, sem ter atingido resultados profundos. Mas Bocca- de Henrique IV, 16 perambulara pela Europa à procura de patrocina-
lini tem suas opiniões quanto ao que principalmente aflige o século, e dores contra o poder crescente hispano-austríaco na Itália, e procurara
no que consistiria uma verdadeira reforma geral. Essas opiniões ele esse apoio junto à corte da Monarquia Francesa, representada por
colocou na boca do mais sábio dos homens, Sólon, o qual manifestou Henrique lU, buscara-a também junto a Elisabete da Inglaterra, com
seu ponto de vista, sobre o que estava principalmente errado no sé- seus cavaleiros e poetas, e na Alemanha luterana. Regressou ,à Itália,
culo, ou seja, falta de amor: 14 \ quando a conversão de Henrique IV parecia prometer uma era de
maior liberalismo e tolerância naquele país, e finalmente pagou pela
O que deixou o século atual numa tão grande confusão é o ódio sua atitude demasiadamente esperançosa, com a morte na fogueira, em
cruel, é a inveja nociva, que nos dias de hoje parece reinar ge- 1600.
ralmente entre os homens. Portanto, o auxílio no momento para A linha de enfoque dos problemas do século, seguida por Henri-
as perversidades deve ser esperado da caridade inculcada, da aíeí - que IV e apoiada por Bruno e Boccalini, tinha sido em grande parte
ção recíproca, e do amor santificado ao próximo, o qual é o aquela de Christian de Anhalt e do Palatinado nos primeiros anos. 17
principal mandamento de Deus para a humanidade; devemos Anhalt e os regentes do Palatinado tinham estado preparados para
portanto, empregar toda a nossa habilidade para eliminar aqueles apoiar o ingresso de Henrique IV na Alemanha, o que não se verificou
ódios, que nestes dias reinam nos corações dos homens. devido ao assassinato de Henrique em 1610. Boccalini manifestou o
desespero dos liberais italianos, quando todos aqueles planos falharam.
Assim sendo, apesar de notória diferença de estilo, o trecho de Ao juntarem o excerto de Boccalini à Fama, os autores do manifesto
Boccalini anuncia uma mensagem que está intimamente ligada àquela rosa-crucíano manifestaram a sua objeção demonstrando uma inclina-
da Fama, a necessidade de uma nova reforma, uma vez que falharam ção pela Itália, e assim o "rosa-crucianismo" pôde tornar-se associado
as primeiras tentativas para esse fim, com um movimento que deveria ao segredo místico, filosófico e às correntes anti-habsburgas de origem
enfatizar o amor cristão e a caridade como sua principal inspiração. O italiana.
trecho de Boccalini apresenta, em sua ficção sobre a corte de Apolo, Giordano Bruno ao perambular pela Europa, pregara uma concep-
a mesma mensagem de benevolência, como o faz a de Christian Rosen- ção de reforma geral do mundo, baseada na volta à religião "egípcia",
creutz e a sua Irmandade. Todavia, naquele de Boccalini, não existe ensinada nos tratados herméticos e destinada a superar as dissenções
nenhum compromisso relativo ao esclarecimento intelectual, como religiosas através do amor e da magia, que deveria ser baseada numa
existe na Fama, e o tom que ele emprega é triste e desesperançado, nova visão da Natureza e aperfeiçoada por exercícios contemplativos
comparado ao entusiasmo revigorante da Fama . i
herméticos. Bruno pregara essa religião envolvida em formas mitol6-
A inclusão do trecho de Boccalini na Fama mostra que o autor ou i gicas, na França, Inglaterra e Alemanha. Segundo ele mesmo, formara
J
autores do manifesto rosa-eruciano também tinham em mente a Itália uma seita na Alemanha, chamada "Giordanisti", 18 que exerceu muita
-.'
ou Veneza, e evidentemente, a inclinação político-religiosa de Bocca-
líni, seus pianos anti-habsburgos seriam muito convenientes aos cír-
j 15. Giordano Bruno and lhe Hermetic TradUioll, pp. 411 c ss.
culos dos quais emanaram os manifestos rosa-crucianos, E esses planos 16. lbid., pp. 340 e ss,
17. Ver anteriormente, pp. 32-3,59.
14. Citado na tradução inglesa de Moomouth. 18. Giordano Bruno, pp. 312-13.

180 \
influência entre os luteranos. Sugeri alhures que devia existir uma liga- Que Andreae e seu círculo estivessem profundamente preocupa-
ção entre os "Giordanisti" de Bruno e o movimento rosa-cruciano, que dos com a situação contemporânea italiana, também é evidente devido
uma influência secreta bruniana devia ter contribuído em prol do de- ao interesse que demonstrava pelos trabalhos de Tommaso Campa-
senvolvimento de uma espécie de reforma, esboçada pelos manifestos neIla. 22 Campanella , igual a Bruno , foi um frade ex-dominicano revo-
rosa-crucianos. A aplicação do excerto de Boccalini à Fama contribui Iucionãrio . Em 1600, chefiou uma revolução na Itália meridional con-
para confirmar esta sugestão, pois Boccalini representava o tipo bru- tra as forças espanholas de ocupação. Esse foi o ano em que Bruno foi
niano da atitude político-religiosa . queimado em Roma . A revolução de Campanella fracassou, ele foi
capturado, torturado e preso num castelo em Nápoles pelo resto de
Neste livro, num capítulo anterior, o estudo sobre o emprego da
sua vida. Enquanto aí permaneceu, escreveu City of the Sun; a des-
mitologia, por Michael Maier, visava esta mesma direção. 19 Maier
crição de uma cidade ideal, governada por sacerdotes herméticos, que
está imbuído do mais profundo "egipcianisrno", ou de um hermetismo
mantinham a cidade num estado de felicidade e virtude através da
profundamente místico, sugestivo de Bruno. Entretanto, Maier, numa
sua benevolente ciência mágica. A Cidade do Sol está na mesma linha
declaração direta em uma de suas obras sobre a "Reforma Geral do
das grandes Utopias} das fantasias de sociedades ideais, que são a ca-
Mundo" (i.e., o excerto de Boccalini incluído na Fama), desvia-se de
racterística do ambiente rosa-cruciano. Andreae foi profundamente in-
seu caminho para subestimar a sua importância. De fato, ele realmente
fluenciado por essa obra, tendo sido ele mesmo o autor de uma das
afirma que a "Reforma Geral" nada tinha a ver com a Fama) tendo
mais importantes das Utopias.
apenas sido acidentalmente impressa com ela. 20 Isto é muito estranho,
urna vez que o excerto de Boccalini é encontrado não só na primeira Campanella teve dois discípulos alemães, que costumavam visi-
edição da Fama} mas também nas outras subseqüentes, sendo portanto tá-lo na prisão de Nápoles: Tobias Adami e Wilhelm Wense, ambos
incrível que isso possa ter sido acidental. É provável que a retratação amigos íntimos de Andreae. Foram portadores de manuscritos de Cam-
de Maier tenha sido causada pelo nervosismo devido ao resultado dos panella para Andreae na Alemanha, incluindo um da City of tbe Sun,
manifestos, e o uso indevido que estava sendo feito em algumas áreas uma versão em latim, que foi publicada em Frankfurt, em 1623. ( Tal
atingidas por suas mensagens. qual a History oi lhe Council of Trent, a City, de Campanella, é uma
importante e famosa obra italiana dessa época, publicada num país
A pessoa que mais estava enfronhada nos manifestos rosa-crucia- estrangeiro; as exportações iguais a essa, comprovam a influência ma-
nos - Johann Valentin Andreae - oferece evidência de que Bocca- léfica da tirania, da qual a Itália foi vítima.) Wense e Adami estavam
lini representava uma influência importante em seu círculo. Na sua em Tübingen em contato com Andreae, aproximadamente na época
Mythologiae Cbristianae Libri tres (1619), Andreae tem um pará- em que os manifestos rosa-crucianos estavam sendo publicados. Esse
grafo sobre "Bocalinus", que nele consta como tendo sido perseguido interesse de Andreae e seu círculo por CampanelIa, e o conhecimento
por "idiotas malvados". 21 Esta impetuosidade de linguagem, lembra- direto que tinham sobre a Itália, através de Adami e Wense, toma
-nos Giordano Bruno, sobre os "pedantes". Sinto-me inclinado a ver perfeitamente natural que o excerto de Boccalini, manifestando o senti-
uma influência de Boccalini no conjunto dos "Three Books of Chris- mento anti-habsburgo na Itália, tivesse sido impresso com a Fama.
tian Mythology", de Andreae, ao empregar nomes famosos, antigos e Esforçando-se por ser libertado, CampanelIa teve que abdicar de
modernos, para aludir obliquamente aos acontecimentos contemporâ- suas antigas idéias revolucionárias, e escrever obras sustentando que a
neos, com uma disposição satírica, semelhante àquela do estilo de Boc- monarquia total do mundo deveria pertencer aos poderes ortodoxos.
calini. A evidência oriunda da "Christian Mythology" pareceria con- Sua Monarchia di Spagna, escrita na prisão e publicada em 1620, ofe-
firmar que a inclusão do excerto de Boecalini na F ama não foi acidental. rece a monarquia do mundo à Espanha. 23 O revolucionário, cuja visão
de uma reforma hermética espalhada pelo mundo inteiro tinha sido
19. Consultar anteriormente, pp . 119-20.
20. Michael Maier, Tbemis aure», hoc est de legibus Fratemitatis R. c.} 22 . Sobre a influência de Campanella sobre Andreae e seus amigos, coa-
Frankfurt, 1618, p. 186. sultar Giordano Bruno, pp , 413 e ss; Arnold, Histoire des Rose-Croix, pp. 61 e 5$.
21 . Johann Valentin Andreae, Mythologiae Christianae... Libri Ires} Es- 23 . A referência aos rosa-cruzes nesse trabalho (citação de Arnold, p. 144)
trasburgo (Zetzner), 1618, p. 237. . é feita num apêndice, que provavelmente não é de Campanella. ,

182
tI' .
concretizada na City of tbe Sun , rendera-se aos poderes predominantes
A data da publicação da Monarchia di Spagna, de Campanella, é inte- sam afetar a compreensão de nosso assunto rosa-cruciano. O estudo da
ressante - 1620, a data fatal. Fama rosa-cruciana está incompleto, se não tentarmos analisar a tradu-
ção de Boccalini que a acompanha .
As portas, que a Fama tinha profetizado que poderiam ser abertas
na Europa, fecharam-se com estrépito em 1620 . O julgamento de Ga- O manifesto rosa-cruciano pode agora adquirir um significado
lileu em 1633 fechou uma porta na Itália. mais amplo . Ele exige uma reforma geral, por terem fracassado outras
reformas. A Reforma Protestante está perdendo sua força e encontra-se
Antes que 1620 terminasse uma época, os observadores na Eu- dividida . Será preciso haver uma nova reforma geral que abranja o
ropa estavam a par de muitas tentativas entremescladas , elementos de mundo inteiro, e esta terceira reforma deve encontrar sua força na
desenvolvimento que não deram em nada, e cuja lembrança foi esque- Cristandade Evangélica com a sua ênfase ao amor fraternal, na tradição
cida de tal forma, que os historiadores modernos parecem desconhecer esotérica hermético-cabalística, e num acompanhamento voltado para as
que algo estava acontecendo no Palatinado, e que era de interesse em obras de Deus na Natureza, com um espírito de pesquisa, empregando
Veneza. Ingleses cultos e devotos, de princípios anglicanos, desviando a ciência ou magia, a ciência mágica ou magia científica, a serviço do
o olhar de seu país para o cenário europeu, ter-se-iam sentido inclina- Homem.
dos a ver no movimento em torno de Sarpi em Veneza, e no rappro-
cbement anglo-veneziano que o acompanhou, uma linha de desenvolvi-
mento tendo ligações óbvias com o movimento do Palatinado, e a sua
íntima conexão através da esposa anglicana do Eleitor. Podemos agora
ver como essas duas linhas de pensamento, ou duas esperanças de "re-
ligião", fundem-se nas mentes de dois poetas e amigos íntimos: John
Donne e Henry Wotton. A veneração de Donne por Elisabete Stuart
consta de uma anotação de êxtase religioso, datando da época de seu
casamento, quando ele insistiu para que ela se tornasse uma "nova
estrela":

Be thou a new star, that to us portends


Ends of great wonder; and be thou those ends . *

E Donne era um admirador de Sarpi, cujo retrato pendurou em


seu escritório nos últimos anos. 24 De modo semelhante, Wotton asso-
ciou sua amizade com Sarpi e um profundo envolvimento na situação
religiosa veneziana, com a sua eterna veneração por Elisabete. Seu
famoso poema, inspirado "em sua Senhora, a Rainha da Boêmia", com-
parando-a a uma rosa, a rainha das flores, foi escrito em Greenwich
Park no mês de junho, 1620, pouco antes de seus infortúnios.
Todavia, o objetivo deste capítulo não é analisar prováveis inter-
pretações literárias ou poéticas das situações com as quais estiveram
envolvidas, mas apenas comentar tais situações, na medida em que pos-

* Sê tu uma nova estrela, que a DÓS pressagia / Metas de grande assombro;


e . sê tu essas metas.
24 _ Consultar minha "History 01 lhe Council 01 Trens, de Paolo Sarpi",
pp. 137-8.
. ~ . '..
184
r ri
I
I cionamento do ludibrium da Fraternidade R.C. com a verdadeira "So-
cietas Chrisriana".
I.
Nas mentes dos homens daquela época, os verdadeiros palcos e
teatros estavam ilusoriamente associados a uma comparação geral do
mundo com o teatro, e a vida de um' homem com um papel represen-
tado no seu palco. 1 " O mundo todo é um palco", não é um slogan
inventado por Shakespeare, porém uma parte normal do equipamento
CAPÍTULO XI .mental, e nas obras de Andreae, a analogia do teatro aparece constan-
temente. Em sua mocidade, conforme já vimos, recebera entusiastica-
mente as influências dramá ticas das companhias itinerantes de atores
A FRATERNIDADE R. C. E AS CONGREGAÇOES ingleses, 2 e essas influências agiram na forma dramática, com a qual
CRISTÃS lança o seu brilhante Chemical Wedding, de 1616 . O interesse de An-
dreae pelo teatro, o seu pendor mental profundamente dramático de-
vem ser levados 'em consideração nas inúmeras referências à Fraterni-
Numa certa época, por volta de 1617 , isto é, alguns anos antes dade R.C. como um ludibriam, Para ele, essa nem sempre é uma pa-
da deflagração da guerra, Johann Valentin Andreae pareceu mudar sua lavra de desprezo. De fato , se examinarmos os trechos das obras de
atitude para com "Christian Rosencreutz" e seus " Irmãos" . O mito Andreae sobre os Irmãos R.C., descobrimos que embora seu modo de
que de início ele acolhera tão ardentemente, como o veículo para as difamá-los seja a eles referir-se como simples atores, comediantes, frí-
aspirações visando a reforma geral e o progresso da cultura, parece ter volos e tolos , outras vezes, entretanto, elogia muito os artistas, as
sido agora por ele depreciado como um "ludibrium" sem valor. Para peças, a arte dramática em geral, como socialmente e moralmente va-
substituí-lo, insiste na formação de "Congregações Cristãs", ou "So- liosos. Como entender isso? Mas voltemos ao assunto, para observar
ciedades Cristãs " . Estas sociedades ou congregações deviam inspirar-se alguns exemplos do modo pelo qual ele emprega comparações teatrais.
em objetivos muito semelhantes àqueles revelados nos manifestos ro-
sa-crucianos. Deviam dar vigor a uma renovação na religião, ou a uma No Menippus, ou "Hundred Satirical Dialogues", publicado em
nova reforma, a fim de estimular com ensinamentos e exemplos a 1617, em " H elicon near Parnassus", Andreae emprega palavras severas
difusão da caridade cristã e do amor fraterno , e concentrar-se fervoro- sobre a Fraternidade da Rosa-Cruz, que era "apenas um ludibrium
samente nas atividades científicas e intelectuais para o bem-estar da para os curiosos , 'na qual aqueles que tinham tentado seguir um rumo
humanidade. Esses grupos, embora seguissem as linhas gerais estabe- artificial e estranho, em vez do verdadeiro caminho de Cristo , tinham
lecidas nos manifestos rosa-crucianos, delas divergiam em dois aspectos ficado decepcionados. 3 Isto certamente soa como uma condenação. No
importantes. Não revestiam seus desígnios com o mito rosa-cruciano, Peregrini in Patria errares, considerado como tendo sido publicado na
mas os manifestavam em termos claros e coerentes. Segundo, saíam da " Utopia" em 1618 , existem comentários melancólicos sobre o mundo
sombra da invisibilidade e de uma provável não-existência para a pura como um labirinto, e de como aqueles que procuram o conhecimento
realidade. Um desses grupos, a "Societas Christíana", certamente era ouvem apenas fábulas fúteis. 4 E num trecho sobre a "Cena", ou o
real. Foi uma sociedade formada por Andreae entre 1618 e 1620, que palco, o mundo é comparado a um anfiteatro onde ninguém aparece
teve uma existência efêmera naqueles anos antes da guerra, soçobrando sob uma verdadeira luz - como ele mesmo - mas todos estão disfsr-
....
logo nos anos sinistros após 1620. Contudo, ela não desapareceu intei-
ramente, tendo influenciado na formação de uma outra sociedade, a 1 . E. R. Curtius, European Literature in tbe Latin Middle Ages, Londres,
qual deveria ter um futuro importante. 1953, pp. 138 e ss; Yates, Tbeatre 01 the World, pp. 165 e ss.
2 . Consultar anteriormente, p. 52.
Temos agora que examinar melhor o que Andreae teria querido
3 . J. V. Andreae, Menippus siue Dialogorum Stltyrieorul1l Centn, 1618.
dizer quando chamou a Fraternidade R.C. de um ludibriam, ou uma pp. 181-3; cf. Arnold, Rose -Croix, p . 194. .
"cena de uma peça", a fim de averiguar as mudanças em sua atitude, 4. Andreae , Peregriní in Patria errares, 1618, p. 65. "o
empregando essa forma teatral para expressar-se, e falarmos do rela-
.187 .
186
I
I

çados, & Aqui, a comparação do mundo com um teatro infere que ele
I médias pela Europa inteira". 11 Observações como essa confundem, e
.1
é um lugar de decepção. existem muitas outras de caráter similar espalhadas pelos inúmeros
Na Cbristian My/hology, de Andreae, 1618, que demonstra um
I trabalhos de Andreae - ele falava constantemente de teatro e drama,
amplo conhecimento dos assuntos contemporâneos, embora apresenta-
dos de modo irregular e confuso, inclui inúmeras referências ao drama
I este assunto o fascinava , mas sempre de modo vago e indeterminado.
Sem tentar aprofundar-nos nos problemas inteiramente novos e
e ao teatro . Esta obra está dividida em volumes , cada um deles distri- 1 desconhecidos apresentados pelo interesse de Andreae no teatro, eu os
buído em pequenas subdivisões sobre uma coleção de tópicos desnor- ofereceria corno um incentivo para aqueles que possam estar pensando
teadoramente variados. Uma delas, a "Tragoedia", 6 manifesta marcante em empreender uma pesquisa detalhada na literatura do furor rosa-cru-
aprovação pelas representações dramáticas . Uma outra, sobre a "Re- ciano da Alemanha, pois é possível que tal pesquisa possa revelar uma
presentatio";? afirma que a Comédia pode ensinar a moderação e a I.. ligação entre as atividades dos atores ingleses e a difusão das idéias
sinceridade dignas. Uma outra subdivisão 8 dá o enredo de uma co- rosa-crucianas. Ben Jonson, em uma de suas peças alegóricas (The For-
média moral de cinco atos (os quais podem ser comparados à peça tunate Isles, 1625) também sugere uma associação entre os rosa-cru-
de cinco atos no Cbemical Wedding). Um capítulo sobre "Mimi" 9 cianos e os atores, num trecho em que demonstra um notável conhe-
fala dos atores com um espírito complacente, e num espantoso capí- cimento de uma publicação isolada do furor rosa-cruciano, e representa
tulo sobre "Ludi",lo Andreae declara ser um ato cristão construir inteligentemente o assunto da invisibilidade rosa-cruciana. 12
teatros públicos, onde são exibidas peças (Iudos) com cenários ricos . Assim sendo, os argumentos de Andreaesobre a Fraternidade
Elas são muito úteis para o adestramento da mocidade, a instrução do R.C., em termos de teatro, podem pertencer a um conjunto de conhe-
povo, aguçando a mente, deleitando os velhos, retratando as mulheres cimentos que estamos apenas começando a compreender vagamente.
e divertindo os pobres. Os padres mais severos da Igreja - diz ele - Andreae era um homem muito talentoso e imaginativo, cujas energias
condenavam o teatro, mas os mais recentes (recentiores) aprovam a criativas eram alimentadas pelas novas influências em seu ambiente,
comédia decente. O trecho é uma extraordinária defesa dos teatros, principalmente (como já comentei antes) as provenientes dos atores
como sendo educativos e instituições sociais que os cristãos deveriam itinerantes ingleses, que tinham inspirado seus primeiros trabalhos. É
aprovar. o profundo interesse de Andreae pelo drama que concorre para expli-
Os jesuítas, evidentemente, eram teólogos "mais recentes", que car o ludibrium de Christian Rosencreutz e a sua Fraternidade, não
aprovavam o drama moral e religioso. Mas teria Andreae considerado como um embuste, mas como uma apresentação de um movimento
o drama jesuíta nessa forma de aprovação? intelectual e religioso profundamente interessante. Andreae é o caso
mais triste de um homem nascido numa época errada, um homem ori-
Essas referências elogiosas feitas às peças, comédias, "ludi", na ginal e sumamente talentoso, talvez um precursor de Goethe, quanto
Cbristian Mythology, devem ser levadas em consideração, ao analisar ao tipo de sua mente dramático-filosófica, que foi obrigado a rejeitar
as observações de. Andreae no mesmo trabalho, a respeito da Irman- seus dons de inteligência e consumir-se numa dolorosa ansiedade, em
dade da Rosa-Cruz, como um ludibrium ou uma comédia. A seção so- vez de colher os frutos de uma reputação, que a sua natureza generosa
bre "Fraternitas" é certamente uma alusão à Fraternidade R.C. Ele e seus extraordinários predicados intelectuais e imaginativos deveriam
fala sobre ela, como "uma Fraternidade admirável, que representa co- ter-lhe granjeado.

I
!
.5 . 1bid., p. 118.
6. Andreae, Mythologíae Cbristianae . " Libri tres, Estrasburgo (Zetzner),
1618, 11, 46 (p. 67) .
11 . IbM.} VI , 13 (p. 290).
12. Ben jonson, Works, ed. Herford and Simpson, Oxford, 1923-47, VII,
pp. 710-22. Jonson descreve com exatidão a gravura do edifício alado sobre rodas
7. uu, IV, 35 (p. 188). no Speculum Rbodostauroticbm, de Teophilus Schweigherdt (ver o frontispício do
8. uu., V, 8 (p. 251). livro e pp . 103), e faz alusões curiosas a uma Ordem rosa-cruz "invisível", com
a qual parece associar os atores. O estilo é mordaz e as alusões talvez se relacio-
9. tsu., VI , 26 (p. 301). nassem com a situação político-religiosa de Jonson. Sobre outras alusões satfriClS
10. ue; VI, 23 (p. 299). de Jonson aos rosa-cruzes, consultar o Tbeatre of the World, pp. 89-90.

188
Por isso, julgo não haver nenhuma dúvida sobre o fato de An- , E à vista de sua opimao sobre o teatro , tão digno e moralmente va-
dreae ter ficado incrivelmente abalado com o aspecto que estava to- lioso, a Fraternidade R.C., considerada como um ludibrium ou o ato
mando o furor rosa-cruciano, a partir de 1617 em diante ; ao perceber de uma peça, podia ter sido a dramática apresentação de assuntos
que aquilo estava prejudicando a causa que pretendera servir, tentou dignos e úteis . Ao que ele se opõe é que outras pessoas, ou outros
deter a torrente e dirigi-la para outros canais. atores, tenham ingressado no movimento e o estão prejudicando.
No fim da Cbristian M ythology, verifica-se um diálogo entre Phi- Quando a Cbristian Mythology foi publicada em 1618, o furor
lalethes e Alethea (a Verdade e o Aman te da Verdade). De acordo rosa-cruciano estava no auge, e quando se empreende um exame mais
com Waite 13 e Arnold , 14 as declarações feitas por Andreae atestam detalhado daquela literatura, talvez seja possível identificar as cola-
ter ele se voltado contra o movimento rosa-cruciano, talvez por ter-se .borações prejudiciais, as conjeturas maliciosas - talvez mesmo o início
alarmado com o curso que os acontecimentos estavam tomando. O do temor da feitiçaria, relacionando-o com os Irmãos R.C. - que
Amante da Verdade pergunta a ela o que pensa da Irmandade R .C., alarmaram Andreae e o fizeram pensar que seria aconselhável abando-
e se a ela pertence, ou se tem algo a ver com a mesma. A Verdade nar o mito.
responde muito categoricamente: " Planissime nibil", ou seja, "Não Todavia, a parte mais irônica e curiosa de toda esta história estra-
tenho absolutamente nada a ver com ela." Está dando uma resposta nha é que o aparente afastamento de Christian Rosencreutz foi por si
normal a uma tal espécie de pergunta, e seguindo o habitual padrão mesmo um "ludibrium", uma pilhéria mística que os amigos daquele
ambíguo. Mas, permitam-nos considerar o resto do diálogo : 15 personagem fictício teriam compreendido. Isto se constata num estudo
meticuloso do prefácio da mais importante obra de Andreae, a descri-
Nada tenho a ver com ela (a Fraternidade R .C.). Quando ela ção da cidade ideal ou utópica de Cristianópolis.
apareceu, e não faz muito tempo, e alguns do setor literário es-
tavam preparando um ato de uma peça para determinados prota- A Reipublicae Christianopolitanae Descriptio, publicada pelo leal
gonistas argutos, permaneci a um lado, como alguém que observa, editor de Andreae, Lazarus Zetzner, em 1619 em Estrasburgo, é uma
considerando o estilo da época que apreende com avidez as no- obra conhecida, que ocupa uma posição respeitada na literatura euro-
ções de inovação. Como espectadora, não foi sem uma certa es- péia, como um clássico secundário da tradição utópica, derivando de
pécie de satisfação que contemplei a batalha dos livros.ve subse- Thomas More. Uma tradução inglesa, 16 tornou-a viável aos leitores
qüentemente verifiquei uma completa mudança nos atores. Vendo, que conhecem esse idioma, e visto que ela induz evidentemente a uma
. porém, que no momento o teatro está cheio de altercações, com comparação com a quase contemporânea New Atlantis, de Bacon, a
um grande conflito de opiniões, e que a luta continua através de Cbristianopolis representa um ponto de referência razoavelmente fami-
vagas alusões e conjeturas maliciosas, afastei-me completamente, liar no campo de estudos dos primórdios do século XVII. Contudo,
para não me ver envolvida numa coisa tão dúbia e de sentido . estamos entrando nesse terreno por uma trilha desconhecida, coberta
escabroso. de espinhos rosa-crucianos, e aquele mesmo ponto de referência parece
ao leitor que o atinge um pouco diferente, e não estendendo-se ao
Por esse trecho vê-se claramente que não foi porque a Fraterni- longo de uma estrada plana e segura do compêndio da História, porém
dade R.C. podia ser considerada como um "teatro", como um "ato de recém-saído dos terrores esquecidos do furor.
uma peça" no "setor literário", que Andreae estava afastando-se dela. O prefácio da Cbristianopolis começa deplorando a opressão da
Ele aprovara e deleitara-se com o "teatro", a "comédia", o ludibrium Igreja de Cristo pelo Anticristo, o quarttnanifestou a decisão de res-
de todo aquele assunto, e admite que era um "espectador", que sabia taurar a luz e dissipar a escuridão. 17 À reforma de Lutero deve agora
muito bem tudo o que estava ocorrendo, e que tinha visto o seu início. seguir-se uma nova reforma. O drama dos dias de Lutero "deve ser
.: novamente representado em nossos próprios dias", porquanto "a luz
13.A. E. Waite, Brotberbood of lhe Rosy Cross, p. 205.
14.Arnold, Rose-Croix, p. 194. 16. F. E. Held , Cbristianopolis, An Ideal Stat« of lhe SevelllHIIJb CetIhIry.
Oxford, 1916. .
15. Andreae, Mylholog;ae Cbristiana .. . Libri Ires, p. 329; d. Waite, Bro-
tberbood 01 lhe Rosy Cross, p. 205. 17 i< Christianopolis, t.l\ad. Hd~. pp. 133 e~s. I I .,
• i -, ~ rrn- o; J.uA (,.oJ.J ck -(\Cl~
.. ...,'". 1 ~ ~~0lII...- 191
190
de uma religião mais pura raiou para nós" . Os homens de espírito Isto parece ser uma condenação (provavelmente) da Fraternidade
fervoroso (ele menciona John Gerard, John Arndt , Matthew Moller) R.C. irreal e fictícia, com seus estranhos emblemas e cerimônias, de-
exigiram um tempo para meditação e para a renovação espiritual, bem vendo por isto ser substituída por uma sociedade cristã real e não
como para a difusão de um novo fluxo de espírito cristão nos dias fictícia. Tal sociedade já tinha sido fundada por Andreae, com o nome
atuais . E urna " certa Fraternidade" prometeu isso, porém , em vez disto de " Societas Christiana", sobre a qual falaremos adiante.
causou a maior confusão entre os homens. Evidentemente, ele está se Mas o que resulta de toda essa pretensa difamação da Fraternidade
referindo ao furor que sucedeu aos manifestos rosa-crucianos. 18 R.C., neste prefácio de validade duvidosa, é o parágrafo final, no qual
o leitor é convidado a entrar num bote e embarcar para Cristianó-
Uma certa Fraternidade, em minha opinião uma pilhéria, mas de polis.P"
acordo com os teólogos um assunto sério.. . prometeu.. . as
maiores e mais raras coisas, até mesmo aquelas que os homens O caminho mais seguro será. . . embarcarem vossa nau que tem
geralmente desejam, sendo também acrescida da extraordinária o signo do Câncer como distintivo, rumando para Cristianópolis,
esperança de uma melhoria na situação atual dos problemas. ; . estando vós em condições favoráveis, e lá deveis investigar tudo
e da imitação dos atos de Cristo. É inútil dizer quanta confusão minuciosamente no temor de Deus.
.entre os homens ocorreu após essa notícia, e quanta divergência
entre os eruditos, e quanta intranqüilidade e emoção suscitadas No transcorrer dessa viagem, após um naufrágio, foi descoberta a
pelos impostores e trapaceiros.. Alguns... possuídos de um ilha na qual se situava a cidade ideal de Cristianópolis, descrita
terror cego, desejavam ter conservado e defendido pela força seus no livro.
assuntos antigos e desatualizados. Outros apressaram-se a abdicar Foi o que fez Christian Rosencreutz e seus amigos, ao embarcar
de suas opiniões e.. . procurar alcançar a liberdade. Alguns nas naus marcadas com os signos do zodíaco, em suas viagens de des-
ainda. . . acusaram os princípios da vida cristã, como heresia e cobertas espirituais, no fim do Chemical Wedding. 21 Com essa alusão
fanatismo. . . Enquanto essas pessoas discutiam entre si e en- no final do prefácio, na obra em que "Christian Rosencreutz" era o
chiam as lojas, proporcionavam muitas outras oportunidades para herói e que Zetzner publicara apenas três anos antes, Andreae associa
considerar e julgar essas questões ... I
t- o prefácio de Cbristianopolis com o Chemical Wedding . A ilha em
I que Cristianópolis estava localizada foi realmente descoberta por Chris-
Desse modo, e de acordo com Andreae, o furor teve pelo menos tian Rosencreutz, na viagem por ele ' iniciada no final do Chemical
esse resultado benéfico de fazer com que as pessoas pensassem e com- Wedding.
preendessem a necessidade da reforma. Ele sugere que sejam tomadas
. Assim fez também o piedoso e místico gracejador, na tentativa de
medidas para garantir essas reformas . Talvez tenha sido essa a primeira
burlar o furor e continuar a pregar o evangelho rosa-cruciano, porém,
vez que ele sugere a formação de congregações ou sociedades cristãs,
sem o nome. Afinal das contas, como observa Shakespeare: "O que é
que deveriam prosseguir em seus propósitos de modo coerente. 19
um nome? Uma rosa tendo outro nome qualquer teria o mesmo per--
Pois certamente não cometeríamos tal injúria contra Cristo e Seu fume suave."
Mundo, como preferir aprender o caminho da salvação. . . atra- O projeto de Cristianópolis está baseado no quadrado e no cír-
vés de alguma sociedade (se é que realmente existe uma), confu- culo. Todos os seus edifícios são construídos em quadrados, os maiores
sa, onisciente apenas aos olhos de sua própria bazófia, tendo quadrados exteriores contendo um menor, que por sua vez contém
como emblema um escudo costurado, e prejudicada por tantas um outro menor, até alcançar o quadrado central, que é dominado por
cerimônias tolas, em vez de através d'Ele mesmo, o Caminho, a um templo redondo. Os oficiais da cidade costumam ter nomes de
Verdade e a Vida ... anjos, Uriel, Gabriel, etc ., e uma harmonia do macrocosmo e micro-

18. uu.. pp. 137-8. 20. tu«, p. 141.


19. ue; pp. 138-9. 21. Consultar anteriormente. p. 95.

19)
192
I~
cosmo cabalística e hermética do Universo e do Homem está mani-
festada através de seu projeto simbólico. A descrição da cidade é uma centou o elemento do tempo, assinalado por uma harmonia maravi-
mistura fascinante do místico e do prático. Por exemplo, a cidade é lhosa. Quanto aos seus mistérios, colocou-os especialmente em suas
muito bem iluminada; e esta boa iluminação é de importância cívica, oficinas e "edifícios típicos" , embora nesta cabala torna-se aconselhá-
por não incentivar o crime e todos os malefícios que ocorrem à noite. vel ser um tanto circunspecto. 26
Tinha também um significado místico, por ser essa a cidade onde Na cidade, as obras de Deus são meditadas, principalmente atra-
habita a luz da presença de Deus. vés de um estudo profundo da astronomia e astrologia. Quanto a esta,
Enquanto na cidade reina uma extraordinária piedade, e sua vida reconhecem que o homem deve reger as estrelas, e também reconhecem
social é cuidadosamente organizada num plano de devoção, a sua cul- um novo céu onde Cristo está exercendo influência. O estudo da
tura é predominantemente científica. A mecânica e as artes mecânicas ciência natural é um dever religioso. "Porquanto, não fomos enviados
são muito cultivadas, e existe uma grande e culta classe de artesanato. a este mundo, embora representando ele o mais fabuloso teatro de
"Seus artesãos são quase todos homens perfeitamente educados", e isto Deus, para que como animais devêssemos simplesmente devorar os
pastos da terra." 26
estimula o progresso inventiva, pois "os operários têm permissão para
cultivar e dar asas ao seu espírito inventivo" . 22 São ensinadas as A música tem suma importância na cidade, e para ingressar no
ciências naturais, química-alquimia, e dão uma grande ênfase à medi- conservatório é preciso ter estudado aritmética e geometria; os instru-
cina. Existe um pavilhão especial dedicado à anatomia e dissecação. mentos musicais estão pendurados na sala de matemática. Ensinam e
O ensino e o estudo são facilitados por todas as partes mediante qua- exercitam os cantos corais. Fazem isto como uma imitação do coro
dros. No laboratório de história natural, os fenômenos dessa matéria dos anjos, cujos serviços eles enaltecem. 27 Essas apresentações dos
estão pintados nas paredes, vendo-se representações de animais, peixes, corais são dadas no Templo, onde também representam dramas sacros.
gemas e assim por diante. A pintura, como arte, é ensinada e apren- Os habitantes de Cristianópolis são devotos cristãos entusiastas.
dida com devoção. As divisões da arte da pintura são consideradas São também pessoas muito práticas, interessadas em melhorar a admi-
como sendo arquitetura , perspectiva, fortificação, maquinaria, mecâ- \ nistração, a iluminação das ruas, o serviço sanitário (as águas servidas
nica, todos os assuntos ligados à matemática. A concentração na mate- são retiradas das casas por um rio artificial no subsolo), e a educação,
mática, em todos os seus ramos, representa a característica mais para a qual dedicam muito cuidado e reflexão. A cultura deles é suma-
predominante da cultura da cidade. No laboratório dessa matéria, a mente científica; na realidade, em um de seus aspectos, Cristianópolis
harmonia dos corpos celestiais é estudada, existindo ilustrações de assemelha-se a uma espécie sublimada de colégio técnico (existe um
instrumentos e máquinas, e das figuras de geometria. O estudo da "colégio" no centro) . A religião que professam é uma forma cristia-
matemática e dos números é complementado pelo do "número nizada da tradição hermético-cabalística, com grande ênfase ao "serviço
místico". 23 dos anjos". De fato, eles parecem viver num relacionamento muito
A associação da divindade e filosofia ensinada na cidade é chama- íntimo com os anjos, e suas ruas ressoam com imitações vocais dos
da teosofia. É uma espécie de ciência natural divinizada, completa- coros angélicos.
mente oposta aos ensinamentos de Aristóteles, embora as pessoas que É evidente que Cristianópolis está localizada, na tradição euro-
não possuem discernimento prefiram Aristóteles às obras de Deus. A péia, como uma das "Utopias" da série iniciada com o famoso traba-
teosofia trata do serviço dos anjos,24 muito valorizado na cidade, e da lho de Tomas More. Seu [ac-simile imediato foi a Cidade do Sol, de
arquitetura mística. Os habitantes acreditam que o Supremo Arquiteto Campanella - uma cidade redonda com um templo do Sol igualmente
do Universo não fez seu potente mecanismo ao acaso, mas completou-o redondo em seu centro - cuja descrição Tobias Adami e Wilhe1m
muito criteriosamente com medidas, números, proporções, e nele acres- Wense trouxeram diretamente de Nápoles para o circulo de Andreae.
22. Christianopolis, trad, Held, p. 157. 25. IbM., pp. 221-2.
23. lbiâ ., pp. 221 e ss. 26. IbM., p. 231.
24. tu«, p. 218. 27. Ibid., p. 226.

194
o ambiente hermético-cabalístico, científico da Cidade do. Sol, 28 repe- j
tavam a filosofia secreta por trás dos manifestos rosa-crucianos 35 ma-
te-se em Cristianópolis, e muitos dos detalhes de ambas as cidades
- principalmente o ensino através das pinturas nas paredes, 29 - são
reconhecidamente os mesmos.
I
~
nifestada simbolicamente nas maravilhas místico-matemáticas no tú-
mulo de Rosencreutz. Portanto, é muito natural que a Cristianópolis,
de Andreae, fosse uma afirmação, sob a forma de uma cidade simbó-
Todavia, além dessas evidentes influências na cidade de Andreae, lica, da filosofia implícita na "monas" - a filosofia de Dee - com
certamente existem outras. A importante dissertação de Andreae refe- a sua ênfase prática e proveitosa sobre a tecnologia, a sua orientação

I
rente às ciências da matemática, associadas com a arquitetura e belas- matemática, seu misticismo mago-esotérico e magia mística, e sua fé
-artes, embora certamente também implícitas na cidade de Campanella, na inspiração angélica.
receberam de Fludd uma demonstração direta e exata no segundo Desse modo, Andreae está repetindo de modo disfarçado, na
volume da sua Utriusque cosmi bistoria, publicada em Oppenheim em \r. Cbristianopolis, os temas secretos dos manifestos rosa-crucianos e do
1619,30 o mesmo ano em que foi publicado o livro de Andreae, seu próprio Cbemical Wedding. Ele os disfarça com a sua aparente
Cbristianopolis, em Estrasburgo. Fludd estava seguindo a recomenda- rejeição dos rosa-cruciános, não apenas no prefácio da Cbristianopolis,
ção de Dee sobre as ciências matemáticas, em seu prefácio para Eu- mas também no texto daquela obra.
clides.P' Parece muito provável que as influências de Dee-Fludd teriam Havia um guarda no portão leste de Cristianópolis, que examina-
entrado na dissertação das ciências matemáticas em relação às belas- va os forasteiros que desejavam entrar na cidade. Certas classes infe-
-artes, e principalmente à arte da arquitetura, sumamente matemática, riores de pessoas não eram admitidas; por exemplo, "artistas de teatro
a qual é tão conspícua na descrição de Cristianópolis. que dispunham de demasiado lazer", e "impostores intitulando-se
O mais admirável também é a insistência de Andreae na impor. irmãos dos rosa-crucianos". asa Temos que agir com tato nesse ponto,
tância de estimular a criatividade da classe do artesanato. Embora o pois refere-se a um dos gracejos de Andreae. São os falsos Irmãos R.C.
valor da tecnologia estivesse aumentando por toda a Europa, este que estão excluídos de Cristianópolis, e não os verdadeiros. E os que
tinha sido o principal assunto do prefácio de Dee para Euclides, com leram o Cbemical Wedding, deveriam saber que aquele tentando entrar
seu apelo à classe do artesanato em Londres. 32 A cidade utópica de em Cristianópolis é um verdadeiro, não sendo outro senão o próprio
Andreae, com a sua classe artesanal forte e instruída, e seu entusiasmo Christian Rosencreutz, que descobrira a ilha, na viagem que estava
pelas ciências matemáticas teriam certamente sido aprovados por Dee. iniciando no fim do Cbemical Wedding.
E, evidentemente, muito similar à de Dee é a insistência de An- Tentemos agora fazer a inevitável comparação entre a Cristiané-
dreae no "serviço dos anjos" na cidade. Como sabemos, Dee, tentara polis, de Andreae, e a Nova Atlântida, de Bacon. A questão que surge
garantir o serviço dos anjos, através da prática da cabala, ou magia como sendo proeminente é que a Utopia, de Andreae, é muito mais
cabalística. 33 O fato de Andreae não ter receio de insistir no "serviço matemática e mais claramente angelical do que a de Bacon. Disto eu
dos anjos" na sua "Utopia", orientada matematicamente, faz supor que depreenderia que as influências de Dee são mais fortes, ou de qualquer
ele não tem medo de anunciar a principal influência em sua obra. modo mais conhecidas na obra de Andreae do que na de Bacon. O
Andreae, conforme já vimos, usou o símbolo da "monas" de Dee utilitarismo - a aplicação do conhecimento científico para o aperfei-
no início do Cbemical Wedding, 34 indicando a fonte de sua inspiração. çoamento da condição humana - é comum em ambas as' Utopias)
Vimos também, que a "monas", de Dee, e o seu significado represen- embora mais prática e técnica na de Andreae do que na de Bacon. De
fato, o que foi chamado "baconianismo vulgar" - a ênfase à utilida-
28. Sobre isso, consultar Giordano Bruno and lhe Hermetic Tradiiion, pp. de prática do adiantamento de conhecimentos - parece já estar bas-
367 e ss.
29. Sobre o relacionamento da arte da memorização dos sistemas de ensino tante expandido em Cristianópolis. Pode isto ocorrer, devido à
através de quadros, consultar The Art of MemoTY, pp. 297-8, 377·8. influência mais forte de Dee em Cristianópolis? Um problema como
30. Consultar anteriormente, pp. 114-16. ' esse não pode ser solucionado rapidamente, e deve ser deixado para
31. Tbeatre of lhe World, pp. 42 e ss, os investigadores futuros. Minha abordagem neste caso é simplesmen-
32. Ibiâ ., pp. 18, 40, 82-3 etc.; French, [obn Dee, pp. 160 e ss.
33 . Theatre of the World, pp. 5 e ss; French, [obn Dee, pp. 110 e 5S. 35. Consultar anteriormente, pp. 69·71.
34. Consultar anteriormente, p. 92. 35a. Christianopolis, p. 145.

196 1'7
,
te histórica, tendo levado à conclusão de que o movimento bacornano
,
í alguém absolutamente certo do local onde ela tenha existido. De acordo
na Inglaterra deveria ser estudado com o movimento rosa-cruciano \
I
com o Modell, seu chefe foi um príncipe alemão: 38
continental, estando ambos de certo modo relacionados. l
I
A formação de uma "legítima" sociedade ou grupo, dedicada à I.
O Chefe da Sociedade é um Príncipe Alemão, muito ilustre pela
renovação cristã e intelectual, que parece estar sendo insinuada por
Andreae no prefácio de Cbristianopolis, provavelmente já teria sido
iniciada quando ele o escreveu. O plano ou programa dessa "Societas
Christiana" foi apresentado em dois pequenos trabalhos publicados em
I
i
sua piedade, cultura e integridade, tendo sob. suas ordens doze
colegas, seus conselheiros particulares, cada um deles ilustre por
algum atributo de Deus.

1619 e 1620, tendo constado como perdidos, porém suas cópias torna- Numa carta escrita muito depois, em 1642, ao Príncipe Augusto,
ram a aparecer alguns anos depois com os papéis de Hartlib. 86 Seus Duque de Brunswick e Lüneburg, Andreae parece insinuar que o
títulos em latim foram traduzidos como "A Modell of a Christian Príncipe Augusto era aquele mencionado no Modell, mas gostaríamos
Society", e "The Right Hand of Christian Love Offered", na tradução de ter mais provas a esse respeito. O local, qualquer que fosse, onde
feita para o inglês por John Hall, e publicada em 1647. A dedicatória a "Societas" começou, dentro em pouco tempo deve ter-se tornado o
para, Samuel HartliS nessa tradução é uma das fontes de informação "teatro de guerra, porquanto na mesma carta, Andreae informa que o
pela qual sabemos que a sociedade descrita nesses panfletos, era "legí- grupo foi desfeito no início das guerras, as cópias do livro que se refe-
tima", que existiu realmente, e que saímos do reino dos colégios invi- riam a ele foram incineradas, e seus associados espalhados e impossi-
síveis e dos Irmãos R.C. invisíveis para a presença de uma fundação bilitados de se corresponderem por terem morrido ou ficado desen-
concreta. O tradutor dirige-se a Hartlib, do seguinte modo: 37 corajados. 39
Nada se chega mais a Deus do que a União - afirma o Modell
Vós mesmos (que éreis relacionado com alguns membros desta em sua introdução; a desunião e dissenção entre os homens, poderiam
Sociedade na Alemanha) podeis provar que ela é mais do que ser sanadas pela "livre comunicação de todas as coisas entre os homens
uma Idéia; e é lastimável que a guerra a tenha paralisado quando bons". Por este motivo, os homens sábios reuniram-se em sociedades,
foi instituída pela primeira vez: e que não tenha sido novamente porém o Anticristo é contrário a isso. Contudo, parece estranho -
restaurada . . . prossegue Andreae - que nesta época, quando o mundo está "como
se tivesse sido renovado, todas as suas ruínas restauradas sob o Brilho
Apesar dessa declaração positiva, de que a "Societas Christiana" do Sol da Religião e o apogeu da Cultura", que tantos dos melhores
existiu realmente por pouco tempo, e aproximadamente antes da guerra e dos mais sábios se satisfaçam com o simples desejo de um "Colégio
e isto não pode ser posto em dúvida - não consigo descobrir ou sociedade das melhores coisas", sem que tomem providências para
descobrir semelhante instituição. 40
36. G. H. Turnbull, Hartlib, Dury and Comenius, Liverpool, 1947, pp. 74 Os doze colegas do príncipe alemão, que é o chefe da Sociedade,
e ss, Os textos latinos nos dois trabalhos, junto com as respectivas traduções
inglesas feitas por Hall, estão impressos no artigo de G. H. Turnbull, "johann são especialistas dos diversos setores de estudo, embora os assuntos
Valentin Andreae's Societas Christiana", Zeitscbriit für Deutscbe Pbilologie, 73 dos três primeiros abranjam a Religião, Virtude e Cultura. O resto,
(1954), pp. 407-32; 74 (1955), pp. 151-85. em grupo de três, são os seguintes: um Divino, um Censor (interes-
A "Societas", de Andreae, e sua influência sobre Hartlib e outros são comen- sado nos princípios morais), um Filósofo; um Político, um Historia-
tadas no livro e artigo de Turnbull acima mencionados; por H. Trevor-Roper, dor, um Economista; um Médico, um Matemático e um Filólogo. U
cujo capítulo no "Three Foreigners" (Hartlib, Dury e Comenius) na Religion,
tbe Reiormasion and Social Cbange, Londres, 1967, pp. 237 e ss, é fundamental
para a grande importância histórica desse grupo; por Margery Purver, The Royal
38. I bid., p. 154.
Societv: Concept and Creation, Londres, 1967, pp. 206 e ss: Charles Webster 39. Purver, op. cit., pp. 222-3, citação de uma carta publicada em fana AJIro.
"Macaria: Samuel Hartlib, and the Great Reformation", A~ta Comeniana, 26 ;. j' sa Komenskébo: Korrespondence, ed. }an Kvaêala, Praga, 1902, H, pp. 7')..6. CoD:
(1970) , pp. 147-64; e na .introdução de Webster na sua reedição de algumas obras sultar também Peuckert, Die Rosenkreutzer, pp. 179-80. .
de Hartlib, Samuel Hartlib and tbe Adoancement of Learning, Cambridge, 1970. 40. Turnbull, artigo citado, Zeitscbrilt, 74, pp. 152-.3.
37. Turnbull, artigo citado, Zeitscbrijt, 74, p. 151. 41. IbM., p. 154.

198
Se interpretado na linguagem da Fama, esses especialistas não parece-
riam diferentes dos Irmãos ,R .C. em seus agrupamentos sobre Christian Como no caso da Christianopolis, eu julgaria que a principal in-
Rosencreutz . 42 fluência nessa concepção do desempenho do matemático, seria aquela
de loho' Dee, cuja filosofia conforme sintetizada ?a "mona,s" .se enco~­
O Filósofo parece ser, de modo predominante, um filósofo natu - tra oculta nos manifestos rosa-crucianos, e tambem no propno Cbemi-
ral, que "examina cuidadosamente ambos os universos ". A descrição cal Wedding, de Andreae. Também pode existir alguma influência
do Matemático merece ser citada : 48 originada do análogo movimento baconiano, mas a apresentação do
matemático nesse desempenho de liderança, e em oposição à "loqua-
O Matemático, (é) um homem de extraordinária sagacidade, que ., cidade ", não se assemelha absolutamente a Bacon.
utiliza os instrumentos de todas as Artes e invenções do homem: i.
( A ciência dos membros da " Societas" é infundida com a caridade
sua atividade gira em torno de números, medidas e pesos; ele
cristã, e isto confere ao grupo um ambiente de intenso pietis~o. Esse
conhece o intercurso existente entre o céu e a terra ; aqui existe
aspecto do movimento é ressaltado no trecho que parece ter SIdo pro-
um grande campo para ser cultivado pela engenhosidade humana,
jetado como um acompanhamento para o Modell 01 a Cbristian Society,
assim como na natureza, pois as partes da Matemática exigem,
e que se intitula The Righi Hand 01 Cbristian Loue olfered. Esta é
cada uma, um diferente diligentíssimo artista , os quais, sem
quase inteiramente uma obra pietista, dificilmente contendo qualquer
embargo, devem todos visar. esse ~lvo , ou ,s~ja, conte~plar a
referência a esforços intelectuais. O autor estende "essa mão de fé e
União de Cristo entre tantas mvençoes magníficas, relativas aos
amor cristão para todos e para cada um daqueles que, tendo sofrido
números medidas e pesos, e observar a sábia arquitetura de
o cativeiro do Mundo e sucumbido ao seu peso, desejem ardentemente
Deus na formação deste Universo .. Por enquanto a Mecânica
ter Cristo corno seu salvador ... "44 É possível que a dextra porrecta,
participará com suas superficialidades e sutilezas, que não são
ou a Mão Direita Estendida, se tornasse um símbolo da qualidade de
tão ignóbeis e sórdidas quanto os sofistas pretendem, mas de
membro dessa sociedade.
preferência ela instituirá o emprego e prática das Artes, e p~r
esse motivo, muito injustamente menosprezada em c~mparaçao Desse modo, quando o ludibrium da Fraternidade R.C. fictícia
com a loquacidade. Contudo, compete a um verdadeiro Mate- e invisível se transforma em algo real, ela se torna a "Societas Chrís-
mático embelezá-las e enriquecê-las com as Regras da Arte, me- tiana ", numa tentativa para infundir na ciência, que começa a despon-
diante as quais as tarefas dos homens são reduzidas, e a prerro- tar, um novo fluxo da caridade cristã.
gativa do engenho, bem como a energia e o domínio da razão A qualidade de membro da "Societas' é indefi~da, como tantas
tornam-se mais manifestas ... outras coisas relacionadas com ela. Os velhos amigos de Andreae,
Tobias Adami e Wilhelm Wense ocupavam-se muito com ela, e existe
A cultura da "Societas Christiana", evidentemente, é muito seme- um boato sobre Johannes Kepler ter-se interessado pelas associações
lhante àquela da cidade de Cristianópolis, uma cultura científica, ,cristãs de Andreae.r" Andreae estudara matemática em Tübingen,
baseada na matemática e orientada para a tecnologia e utilidade. Uma com Maestlin, o professor de Kepler, e certamente devia conhecer este
vez que os doze maiorais devem ser assessorados por outros, "médicos, último .
cirurgiões, químicos, e metalúrgicos", a "Societas" uma vez desenvol- Embora a "Societas Christiana" tivesse um fim tão triste com a
vida tornar-se-ia tal qual a cidade de Cristianópolis: um grupo de deflagração da guerra, teve continuadores . e ramificações. Aproxima-
cristãos místicos contemplando as obras de Deus na Natureza, porém damente em 1628, Andreae tentou reiniciã-la em Nuremberg, Deve
com um profundo conhecimento prático da profic~ncia tecnológica e ter sido através da vida ininterrupta dessa subdivisão, que anos depois
científica. Seus principais interesses se convergerrí" não para a "loqua-
cidade" ou os habituais estudos da retórica, mas para a matemática 44. Ibid., p. 165.
aplicada, "pela qual as tarefas dos homens são reduzidas". 45. A origem da declaração de Kepler ter-se associado ao grupo de AD-
dreae é o discurso que este fez nos funerais de Wilhelm Wense, proferido em
42. Consultar o Apêndice, p. 300. 1642; consultar R. Pust, "Ueber Valentin Andreae's Anteil an der Sozietatsl»
wegung des 17 Jahrunderts", Monatshelte der Comen;us Gesellscba/t, XIX (l~).
43. Tumbu1l, artigo citado, 74, p. 158.
,,1, ". .. ·''C\\{.VLSU-) ~'Vl.h.~Crt.W1
.. pp. 241-3.

200
,0.'\0\" .
Leibniz tomou conhecimento das idéias rosa-crucianas. Existe um
paladino da Europa protestante, que Hartlib viu a melhor chance de
boato muito pertinaz sobre ter Leibniz ingressado numa Sociedade
instituir a nova reforma. Assim como a Fraternidade R.C. tivera espe-
rosa-cruciana em Nuremberg, em 1666,46 e também uma informação ranças representadas e incentivadas pela aliança inglesa, através do
mais autêntica no sentido de que Leibniz sabia que a Fraternidade casamento inglês do Eleitor Palatino, assim, quando essas esperanças
rosa-cruciana era uma ficção, tendo ouvido isso de " H elmont" (pro- ruíram, foi para uma Inglaterra restaurada em seu caráter elisabetano
vavelmente Francis Mercury Van Helrnont ). 47 O conhecimento dessa '. que Hartlib e seus amigos voltaram-se para o apoio de seus ideais de
i
"pilhéria" não teria evitado que Leibniz absorvesse algumas idéias j uma reforma universal, para o prosseguimento do sonho rosa-cruciano
ocultas sob a mesma, como certamente deve tê-lo feito. Conforme já sob outros nomes. Digo que o movimento "voltou" para a Inglaterra
mencionei alhures , as normas da Ordem da Caridade, propostas por pois, como já tentei explicar, ' acredito que tenha sido dela e das in-
Leibniz, são praticamente uma citação da Fama . 48 Nos trabalhos de f-, fluências provenientes da missão de Dee na Boêmia, que o estranho

I
Leibniz existe muito material para um novo estudo da influência que mito "rosa-cruciano" surgiu, em grande parte . Isto , evidentemente, é
sobre ele exerceram as idéias que tinham surgido recentemente dos uma supersimplificação que exclui todas as complexas benfeitorias das
movimentos de Andreae, porém, essa referência fragmentada é tudo influências européias, que alimentaram o movimento com todas as
. que aqui pode ser tentado. espécies de fontes de informações. Estou, porém, tentando demonstrar
A palavra misteriosa "Antilia",49 nome de uma ilha, parece ter inadequadamente, esse movimento de vaivém, que se perdeu de vista
sido uma espécie de senha usada por vários grupos que tentavam for- nas confusões da época, sendo portanto necessário tentar reconstituí-lo,
mar "modelos" da sociedade cristã, moldados nas obras de Andreae, a fim de ver se somos capazes de desmaranhar a teia complexa das
em vários lugares da Alemanha e em outros, durante a Guerra dos circunstâncias que levam à fundação da Sociedade Real.
Trinta Anos. Esses "modelos" para o entusiasta místico não eram
senão preparativos para a grande e universal reforma, a qual, apesar de
tudo ainda era esperada. E entre os mais fervorosos entusiastas da
sociedade-modelo e as suas imensas possibilidades de expansão, encon-
trava-se Samue1 Hartlib. Quer ela fosse chamada de Antilia, ou Maca-
ria, ou o que desejarem, foi a combinação andreaeana de pied~de
t1

evangélica com a ciência, e a aplicação utilitária desta última que InS-


pirou Hartlib em seus esforços incansáveis.
Com Hartlib e seus amigos e auxiliares john Dury e John Amos
Comenius, o movimento reverteu para a Inglaterra, pois foi com um
II
.,
1

Parlamentar inglês que se voltara para o antigo papel elisabetano de ~


.J
1

46. Consultar L. Couturat , La Logique de Leibniz, Hildesheim, 1961, p. !


131, n. 3.
47 . Consultar Leibniz, Otium Hanoueranum, Leipzig, 1718, p. 222; cf.
Gould, History 01 Freemasonry (ed. Poole, 1951), Il, p. 72; Arnold, Histoire
des Rose-Croix, p. 145.
48. Consultar Yates, Art of Memory , pp , 387-8, n. 5. Leibniz acreditava que
o progresso científico, levando a um intenso conhecimento do universo, também
levaria a um mais amplo conhecimento de Deus, seu criador, e por conseguinte a
uma extensão da caridade.
49. Hartlib informa que "Antilia" era por assim dizer uma "tessera" de uma
sociedade interrompida e destruída pelas guerras da Boêmia e da Alemanha (Turn-
bull, Hartlib, Dur, and Comenius, p. 73) . Uma "tessera" deveria ser alguma coisa
igual a um emblema usado pelos membros de uma academia mística.

202
1
'-,';
Bartholomaeus Scopenius; 2 Paraeus estava interessado em uni.r lute-
ranos e calvinistas; 3 ele e os outros professores que doutrinavam
Comênio estavam intimamente ligados ao Eleitor Frederico. Scultetus
era o capelão de Frederico e o acompanhou a Praga; Altingius, ou
Alting, fora seu tutor e permanecera seu amigo íntimo, mesmo após
seus infortúnios; Scopenius, um orientalista, é considerado como tendo
sido o conselheiro espiritual do Eleitor. 4 Desse modo, o jovem Comê-
CAPÍTULO XII nio encontrava-se na situação de aprender em primeira mão os movi-
mentos espirituais ou intelectuais verificados em Heidelberg. Pergun-
tamo-nos se devem ter ocorrido boatos das futuras ligações entre o
Palatinado e a Boêmia, e que atraíram Comênio e seus amigos desse
COM~NIO E OS BOATOS ROSA-CRUCIANOS país para Heidelberg naquela época maravilhosa, quando o casamento
NA BO~MIA do Eleitor com a filha de Jaime I parecia pressagiar acontecimentos
assombrosos.
Johann Amos Kornensky, ou Comênio, nascido em 1592, era seis O período em Heidelberg também foi importante para Comênio,
anos mais moço do que johann Valentin Andreae, cujas obras e opi- por ter sido lá que conheceu George Hartlib, 5 irmão de Samue1 Har-
niões o influenciaram extraordinariamente. Comênio foi um dos Irmãos tlib que, anos depois, devia colaborar com Comênio em seu trabalho
da Boêmia, da divisão mística da mais antiga tradição de reforma na na Inglaterra.
Europa, promovida por John Huss. Comênio e Andreae tinham muito Provavelmente, em alguma ocasião em 1614, Comênio voltou à
em comum. Ambos eram religiosos e clérigos reformados; ambos se Boêmia. Nos anos seguintes, procurou adquirir uma vasta cultura enci-
interessavam pelos movimentos intelectuais, que incorporavam à sua
religiosidade natural, num dos casos a tradição luterana alemã, e no
outro a tradição hussita. Ambos atravessaram a mesma época terrível,
I clopédica, e desenvolveu um método de "pansofia", ou conhecimento
universal. A pansofia de Comênio baseava-se na filosofia macromicro-

I
cósmica; ele mesmo diz que foi Andreae quem o influenciou nesse
e tiveram que fazer o melhor possível para sobreviver durante as
sentido. Chamou a sua primeira enciclopédia pansófica, iniciada em
guerras e perseguições.
1614, de Teatro, ou Anfiteatro, de todas as coisas do mundo.
Comênio fez seus primeiros estudos em sua cidade natal, a Morâ- Comênio poderia ter-se encontrado com Andreae em Heidelberg,
via, e posteriormente freqüentou a universidade calvini~t~ ?e Herborn, I ou poderia ter apreendido alguma coisa da filosofia fundamentanddbs
em Nassau. Na primavera de 1613, saiu de Herborn dirigindo-se: para
Heidelberg, a fim de co~tiD:uar seus estud~l na u.niversida~e. 1 Havia
! manifestos rosa-crucianos. Ou, considerando ainda uma outra alterna-
outros habitantes da Boemia em Harborn e Heidelberg, Junto com tiva, perguntamo-nos se as influências da Boêmia poderiam ter repre-
Comênio. Ele se matriculou na universidade de Heide1berg em sentado uma outra falsa aparência espiritual, oculta nos manifestos
19-6-1613, dois dias depois da entrada nessa cidade da Princesa Elisa- rosa-crucianos. Poderiam a filantropia e a benevolência, pelas quais os
bete, como noiva do Eleitor Palatino. É muito provável que Comênío, Irmãos da Boêmia eram mencionados, terem-se associado com outros
sendo estudante, estivesse nas ruas de Heide1berg, para observar aque- elementos de influência, relativamente à origem do Irmão Christian
la entrada, e deveria ter visto os arcos de triunfo de boas-vindas Rosencreutz?
erigidos pelas faculdades da universidade.
2. Ibid., p. 23.
Comênio, em Heide1berg, assistia às conferências dos professores 3. Em seu Irenicum, 1614; consultar David Ogg, EI/rope in tbe S~nltetllh
David Paraeus, Johannes Henricius ~ltingius, Abraham Scultetus e Century, p. 107. .

1. Wilhelmus Rood, Comen;us and the Low Countries, Amsterdã, Praga,


Nova ~rrk, 1970, p. 22.
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204
, Os anos de uma vida tranqüila, em seu país natal, terminaram
festações de três profetas, três visionários, que afirma~am faze: reve-
para Comênio com a derrota de Frederico, na Batalha da Montanha
Branca, em 1620, o que significou para a Boêmia a extinção da religião lações sobre futuros acontecimentos apocalípticos, o fim do remo do
Anticristo e a volta da luz após a escuridão do seu domínio. Um dos
nacional. Os Irmãos da Boêmia foram proscritos. Em 1621, a pequena
profetas, Christ~pher Kot~er,. prometia uma fu~tu.ra reintegração ~e
cidade na qual Comênio vivia foi capturada pelas tropas espanholas. Frederico no Remo da Boêmia. Em 1626, Comemo levou para Haia
Sua casa foi incendiada, e ele perdeu sua biblioteca e os manuscritos. o manuscrito esclarecedor, contendo as profecias de Kotter, e apre-
Fugiu para o Estado de Carlos, Conde de Zerotin em Brandeis, a f~m sentou-o a Frederico. Muito depois da morte deste, Comênio ainda
de obter proteção. Durante a guerra, Zerotin - embora sendo patno- tendo Kotter e suas profecias em elevado conceito, publicou o manus-
ta e membro da União da Boêmia, não tinha aderido à causa de crito em 1657 na Lux in tenebris com gravuras ilustrativas, presumi-
Frederico do Palatinado, e permanecera fiel à Casa dos Habsburgos. velmente baseadas nas figuras do manuscrito. É no prefácio desse livro,
Por este motivo suas propriedades não foram confiscadas imediata- apresentando os três profetas, que Comênio afirma ter mostrado a
mente, e' ele conseguiu hospedar por a~gum tempo Comê~io e ou:r~s Frederico esse manuscrito com as profecias de Kotter. 9
iguais a ele. Durante a sua perigosa VIagem para Brandeis, Comemo
perdeu sua esposa e um de seus filhos, lá chegando em fins de 1622, C. Kotter foi um dos clérigos da Boêmia, sofrendo uma opressão
num estado de miséria total. 6 cruel nesse país depois de 1620. Ele dá as datas de suas visões, que
vão de 1616 até aproximadamente 1624. Nas de 1620, antes da bata-
Em Brandeis Comênío escreveu The Labyrintb of the W orld, um lha fatal, ele é avisado que devia dizer a Frederico para não empregar
grande clássico d; literatura tcheca, e u;ID, ~os livr~s _notáveis do uni- a força. Nas visões após essa data, é profetizada a eventual recuperação
verso. Nele Comênio fez uma extraordinária descrição do furo~ rosa- das riquezas de Frederico. Damos, a seguir, um trecho traduzido de
-cruciano, que se constitui num subsídio importante para a série dos uma das profecias: 10
documentos rosa-crucianos.
Antes de voltarmos ao estudo do T he Labyrintb of the W orld, a Frederico, Palatino do Reno, é coroado Rei pela vontade de
questão a ser suscitada é sobre qual teria sido a at.itude de"C?mênio Deus, Frederico, Palatino do Reno, Rei da Boêmia, coroado por
, para com Frederico,. o Eleitor Pal~tino, c~I?o. ReI da BoemIa; Sua Deus, o supremo Rei de todos os Reis, o qual no ano de 1620,
i"
, recobrará tudo e muito mais riquezas e glória.
permanência em Heidelberg deve tê-lo familiarizado com o car~ter e
idéias dele, e provavelmente não poderia ter ignorado o~ aconte~lmen.
tos históricos que culminaram com a coroação de Frederico e Elisa~ete As visões de Kotter eram-lhe transmitidas por anjos assim
como Rei e Rainha da Boêmia, ocorrida na catedral de Praga, no dia 4 acreditava ele - que de repente tornavam-se visíveis, apresentavam-
de novembro de 1619. De fato é sabido que Comênio se encontrava -lhe a visão e depois voltavam à invisibilidade. Nas ilustrações, os
presente na cerimônia da coroação;" tendo sido este o último ato anjos aparecem como rapazes, sem as asas e trajando túnicas !onga~.
oficial da Igreja à qual ele pertencia, antes da extinção da mesma. Frederico é habitualmente apresentado com a forma de um leão, eVI-
dentemente o Leão do Palatinado, o qual vimos antes muitas vezes,
A atitude de Comênio para com Frederico, Rei da Boêmia, pode na propaganda a favor e contra F:ederico. A fam~sa gravura d~ ~rede­
ser esclarecida através de um livro incrivelmente curioso, chamado rico e Elisabete com os quatro leoes - do Palatinado, da Boêmia, da
"Light in Darkness", ou antes, Lux in tenebris. 8 Ele inclui as maní- Grã-Bretanha e da Neerlândia - aparece numa forma estranha nas
visões de Kotter; a de um leão com quatro cabeças. Em outras, de
6. Introdução pelo Conde Lützow à sua tradução do Labyrirub of the W orld,
de Comênio, Londres, 1901, pp. 33·6.
via leões abatendo uma águia imperial; ou o leão de duas caudas,
7. Rood, p. 28, n. 4. abraçando Frederico; ou ainda este como sendo um leão em pé na lua,
8. Lux in tenebris foi primeiramente publicado em 1657 (edição usada, para mostrar a inconstância de seu sucesso, e abraçado por seis outros
1665). Incluía ll'S profecias de Christopher Kotter, Nícolas Drabik e Christina
Poniatova, com um prefácio por Comênio (Historia revelatíonum ). Relativamente 9. "Histeria tevelationum" na Lux in tenebris, 00. cit., p. 22. Cf. Rood,
à grande importância que Comênio associava à Lu" in tenebris, consultar Turnbull, pp. 29-30.
Hartlib, Dun and Comenius, pp. 377 e $S. 10. Lu" in tenebris, ed. cit., pp. 42·).

206 207
leões. 11 Desse modo, as visoes revogam aquela cruel vitória da Aguia boêmios "casaram" Frederico com o mundo; como esperavam uma
habsburga sobre o Leão do Palatinado, exibida nas gravuras contra reforma universal com o seu reinado, e como sob seus auspícios tenta-
Frederico e espalhadas após a sua derrota. Auxiliado por seus anjos e vam reformas na sociedade e na instrução, associando tudo isso com
por seus pensamentos exaltados, Kotter tem visões de leões vitoriosos. a " poderosa sociedade dos rosa-cruzes". 14 Existirá a possibilidade de
Uma das mais surpreendentes, verificou-se quando ele, sentado que entre os boêmios que tentavam a reforma, durante o reinado de
tranqüilamente sob as árvores com dois anjos, avista um soberbo leão, Frederico, estivesse o jovem Comênio?
com uma auréola luminosa e arrogantemente vitorioso. (Fig, 27a) ,. Ocorre aqui uma grande lacuna em nosso conhecimento, e talvez
!
Por trás dele, um outro leão está atacando ferozmente uma serpente, maior do que a comum. Ignoramos qual deve ter sido o resultado na
e esta tendo sido reduzida a pedaços é vista no céu, por baixo de uma Boêmia do movimento reformador de john Dee, se iniciado pelos
estrela. Isto talvez possa ser uma alusão à nova estrela da constelação Irmãos daquele país; se em Praga - o centro europeu de estudos
Serpentária, mencionada na Fama rosa-cruciana, como um presságio de cabalísticos e alquímicos - ele adquiriu novos esclarecimentos antes de
novos acontecimentos. 12 O leão da visão de Kotter talvez esteja punin- sua transferência para a Alemanha, e lá obteve repercussão com os
do a Serpentária por não ter satisfeito a interpretação da nova estrela, "manifestos rosa-crucianos". Tudo isso permanece obscuro para nós,
como sendo favorável aos sucessos de Frederico. mas acabamos de vislumbrar que no início da vida de Comênio, ele
Mas, a mais espantosa de todas é a visão na qual Kotter avistou ficou profundamente impressionado pela figura de Frederico do Pala-
três homens - ou melhor, anjos - sentados a uma mesa de mãos tinado, como tendo um grande significado para a Boêmia .
dadas, protegendo um leãozinho que está em cima dela. As rosas cres- É, pois, graças a esse conhecimento que nos voltamos agora para
cem para fora da mesa, em cuja frente inferior vê-se uma cruz (Fig. o que tem ele a dizer sobre o furor rosa-cruciano no T he Labyrintb o/
27b). O símbolo da rosa e da cruz nos induz a procurar os "rosa- tbe World. 15 Neste livro ele faz uma extensa descrição do furor, de
-crucianos", e talvez eles aí se encontrem nos anjos invisíveis, que por como o alarde em torno dos manifestos suscitou uma profunda emo-
um momento tornaram-se visíveis naquela visão ; os anjos da guarda, ção, e quanta confusão originou nas inúmeras pessoas que reagiram de
protegendo o Leão do Palatinado, cuja reintegração no trono da Boê- vários modos àquela emoção. Devem-se notar duas coisas, antes de
mia é prenunciada nas profecias de Kotter. citarmos Comênio, a respeito do furor rosa-cruciano. Primeiro : que ele
Essas visões patéticas, com a sua pletora de leões, possuem uma dá ênfase ao ludibriam, sugere não conseguir entender por que nin-
semi-sugestão alquímica, fazendo-nos lembrar dos emblemas das obras guém recebe uma resposta dos Irmãos R.C., e por que estes estão
de Maier, e outras de seu grupo, com as quais o refugiado da Boêmia, sempre invisíveis. Segundo : que ao escrever em 1622, ele o faz na
Daniel Stolcius, consolou-se no exílio. 13 Essas visões para nós, perten- miséria, após o colapso do movimento de Frederico, e numa depressão
cem a um mundo difícil de ser recriado, um mundo de pessoas ali- profunda volta a observar a marcha do movimento que terminou por
mentadas por promessas angelicais prodigiosas, por visões de Leões e atrair a desgraça para seu país.
Rosas, originando uma nova aurora, pessoas que, em seu abandono e O "Labyrinth of the World", de Comênio, representa uma cidade
desespero se mantêm tranqüilas nesses devaneios. dividida em muitos quarteirões e ruas, nas quais se encontram repre-
É devido à sua compreensão intrínseca da atitude de Comênio sentadas todas as ciências, estudos e ocupações dos homens. É um
para com Frederico quando rei da Boêmia, que as visões de Kotter dos sistemas memorizados da arquitetura, igual à "Cidade do Sol",
nos são valiosas aqui. Tomando a pensar agora na campanha das gra- de Campanel1a, no qual a enciclopédia inteira se põe em evidência. O
• .l

vuras saúricas contra Frederico, e que circularam após a sua derrota, ,~ J "Labyrinth" é evidentemente influenciado pela "Cidade do Sol" e
lembramo-nos da caricatura na qual ele .est á em pé sobre um Y maiús- provavelmente também pela "Christianopolís", de Andreae.
culo (Fig. 16) e que nos textos, embaixo da figura, descreve como os
·~ 14 . Consultar anteriormente, pp. 87-9.
11. tsu., pp. 33, .59.
15. Escritos em 1623, The Labyrinth o/ tbe World e Tbe PilNdm of IM
12. Consultar anteriormente, p. 73. Heart foram primeiramente editados em tcheco, em 1631. As citações aqui alo
13. Consultar anteriormente, pp. 125.26. traduzidas para o inglês pelo Conde Lützow, Londres, 1901.

208
I
Essa cidade deve ser simultaneamente uma " Utopia" , uma cidade e com ela podiam curar todas as enfermidades e conceder uma
ideal, uma fotocópia de um mundo reformado do futuro . Comênio, vida longa. Pois, Hugo Alvarda, 18 o praepositus deles, já con-
porem , sente uma reação contra as esperanças ilusórias dos anos ante- tava 562 anos e os seus colegas não eram muito mais moços. E
riores; sendo a cidade um labirinto, revoga a Utopia, porquanto nesse que embora eles se tivessem mantido ocultos por tantas centenas
labirinto tudo está errado . Todas as ciências dos homens são nada' de anos, limitando-se a trabalhar - sete deles - na reabilitação
todos os seus afazeres são fúteis, e todos os seus conhecimentos, infun- da filosofia, apesar disto, já não mais se ocultariam porque
dados. O livro representa o estado da mente de uma pessoa pensativa sabiam que brevemente ocorreria uma reforma no mundo intei-
ro ; entretanto, mostrando-se abertamente, estavam preparados
e idealista, após o início da Guerra dos Trinta Anos. para partilhar seus preciosos segredos com todos aqueles que
É também a relação de experiências decepcionantes que levaram considerassem dignos. Se, então, alguém se dirigisse a eles em
a um estado de desespero, um registro do movimento rosa-cruciano. O qualquer idioma, e em qualquer nação , haveria de ser atendido,
que Comênio tem a dizer sobre isso deve ser citado integralmente. , O tudo, e ninguém ficaria sem um tipo de resposta . Caso, porém ,
título do capítulo 12 é "The Pilgrim beholds the Rosacrucians" (O houvesse alguém indigno, que desejasse usufruir essas dádivas
Peregrino observa os Rosa-cruzes ) e por baixo destas palavras está somente por avareza ou presunção, nada viria a obter.
escrito "Fama fraternitatis anno 1612, Latine ac Germanice edita".
Isto evidencia claramente que ele está se referindo ao primeiro mani- (Varia de Fama Judicia)
festo rosa-cruciano, que data de dois anos antes da mais antiga e conhe-
cida edição publicada. 16 Tendo assim falado, o mensageiro desapareceu. E então,
olhando para aqueles homens, vi que quase todos pareciam as-
E ioga em seguida, ouvi na praça do mercado o som de uma sustados pelas notícias . Nesse interim, vagarosamente juntaram
trombeta; olhando para trás vi alguém montado a cavalo e con- as cabeças, a fim de raciocinarem e emitirem uma opinião sobre
vocando os filósofos. E quando estes se reuniram à volta dele, aquele acontecimento; alguns o fizeram num sussurro, outros
começou a falar-lhes numa linguagem culta sobre a deficiência em voz alta . E andando de um lado para o outro entre eles , eu
de todas as artes livres 17 e sobre todas as filosofias ; e disse-lhes escutava. Vi que alguns se rejubilavam excessivamente, ignoran-
que alguns homens famosos, incitados por Deus, já haviam ana- do o motivo daquela alegria. Apiedavam-se de seus ancestrais,
lisado essas deficiências, tinham-nas retificado e elevaram a sabe- pois durante toda a sua existência não ocorrera nada semelhante.
doria do homem àquele grau que existia no paraíso antes da Congratulavam-se mutuamente, porque a filosofia perfeita lhes
queda do homem. Fabricar ouro - explicou - era a menor tinha sido amplamente proporcionada. Deste modo, e sem enga-
proeza das centenas que existiam, pois toda a natureza estava no, poderiam conhecer tudo; sem desejar, tinham o suficiente
árida, tendo sido a eles revelada; eram capazes de imprimir ou de tudo; viver centenas de anos sem adoecer, sem engrisalhar,
extrair de cada criatura qualquer conformação que escolhessem, caso assim o desejassem . E repetiam "Feliz, muito feliz é a nossa
de acordo com a vontade das mesmas; acrescentou que eles era ." Ouvindo-os, comecei também a rejubilar-me e a ter espe-
conheciam todas as línguas de todas as nações , bem como tudo rança, caso fosse a vontade de Deus, de também receber algo
quanto acontecia na esfera inteira da terra, até no novo mundo, daquilo que desejavam com tanto anseio. Contudo, observei
e que eram capazes de conversar uns com os outros a uma dis- outros imersos em profunda meditação, e que pareciam em dúvi-
tância de milhares de milhas. Disse ainda que possuíam a pedra, da sobre o que pensar. Caso fosse verdade o que tinham escutado
anunciar, ficariam contentes; esses assuntos, porém, pareciam-
16. Consultar o Apêndice adiante, p. 257. Ele talvez estivesse referindo-se -lhes obscuros, ultrapassando a inteligência dos homens . Outros,
à_Res~ta de Haselmayer, que foi pub~icada .em 1612. Ou quiçá a alguma edi- opunham-se francamente a essas coisas, alegando serem uma
çao publicada. da Fama em 1612, que foi perdida. Talvez a uma cópia manuscrita fraude e um artifício. Se esses inovadores da filosofia tivessem
da mes~, circulando n~ ~mia , e qu~ ele tinha visto em 1612. Ao que sei,
esse ~esto nunca fOI ~t~do em latim, mas uma cópia nesse idioma poderia existido há . centenas de anos, por que então não tinham apa-
1 ter circulado em manuscrito Juntamente com a alemã.
I ,, 18. Pseudônimo rosa-crucíano, consultar adiante, p. 214.
í
j 17 . Isto significa artes liberais.
211,
210 I
I
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i I
reci~o a~tes? Se . tinham certeza do que afirmavam, por que muitos se aproximaram e compraram. Em seguida, tudo quanto
entao, nao apareciam ousadamente na claridade, mas manifesta- era vendido era colocado em caixas, as quais eram pintadas e
vam suas opiniões no escuro , e pelos cantos, como se fossem tinham várias inscrições muito bonitas, tais como Portae Sapien-
morcegos pipilando? A filosofia - afirmavam eles - já estava tiae; Fortalitium; Gymnasium Unioersitatis; Bonum Macro-
bem estabelecida e não exige reforma. Se vocês permitirem que -micro-cosmicon; Harmonia utriusque Cosmi; Cbristiano-Caba-
ela seja arrancada de suas mãos, não terão o que quer que seja. listicum; Antrum Naturae; Tertrinum catholicum; Pyramis
Outros também injuriaram e amaldiçoaram os reformadores, e Triumpbalis, e assim por diante.
os acusaram de adivinhos, feiticeiros e demônios personificados.
E todos aqueles que haviam comprado não tinham licença
i Fraternitates Ambientes) para abrir suas caixas; pois constava que a força dessa sabedoria
secreta era tal, que agia penetrando através da tampa; mas se a
Geralmente verificava-se um ruído por toda a praça do caixa fosse aberta, ela se evaporaria e desapareceria. Todavia,
mercado , e quase todos sentiam um desejo ardente de obter alguns daqueles que estavam muito animados, não conseguiram
aqueles benefícios. Por isto, não poucos escreviam petições agüentar e as abriram, e vendo-as completamente vazias, mostra-
(alguns secretamente, outros abertamente), e as enviavam ale- ram-nas aos outros; estes também abriram as deles, nada encon-
grando-se ao pensar que também seriam recebidos na associação. trando nelas. Puseram-se a gritar "Fraude! Fraude!" e a discutir
Observei, porém, que após os grupos desfeitos, cada uma das violentamente com quem as havia vendido. Ele, porém, tran-
petições era devolvida sem resposta; e a esperança alegre, con- qüilizou-os dizendo que aquelas eram as mais secretas das coisas
vertia-se em mágoa, pois os incrédulos caçoavam deles. Alguns secretas, sendo invisíveis para todos, salvo para os "Fílii scien-
tornavam a escrever uma segunda vez, uma terceira e muitas tiae" (isto é, os filhos da ciência); por conseguinte, caso um
outras; e cada um dos homens, com o auxílio das inspirações, entre mil conseguisse algo, a culpa não era dele.
pedia e até implorava para que a sua mente não fosse despojada
daquele conhecimento, sendo digno de ser almejado. Alguns, (Eventus Famae)
incapazes de suportar a demora , corriam de uma região da terra
para outra, lamentando seu infortúnio por não poderem encon- E a maioria acalmou-se ao ouvir aquilo. Nesse meio tempo,
trar esses homens felizes. Este , atribuía aquilo à sua própria o homem partiu, e os espectadores, com diferentes estados de
indignidade, aquele à má vontade desses homens; e um deles, espírito, espalharam-se em várias direções; se alguns deles con-
ficou desesperado, enquanto que um outro olhando ao seu redor cluíram ou não alguma coisa com relação àqueles mistérios, até
procurava novos caminhos para encontrar esses homens; senti-me agora fui incapaz de saber. A única coisa que sei, é que por
então novamente decepcionado, e também entristecido não vendo assim dizer, tudo ficou calmo . Aqueles aos quais eu vira antes
um fim para aquilo. correndo e precipitando-se por todas as partes, pude observá-los
depois sentados a um canto de bocas fechadas, segundo parecia.
(Continuatio Famae Roseaeorum) Ou tinham sido admitidos nos mistérios (conforme alguns deles
acreditavam) e eram obrigados a cumprir seu juramento em
Nesse meio tempo, enquanto estou observando, as trombe- silêncio, ou, (segundo me pareceu), envergonhavam-se de suas
tas recomeçam a tocar; muitos, e entre eles eu, correm na dire- esperanças e de seus esforços despendidos inutilmente. Logo em
ção de onde provinha o som, e verifiquei haver um deles apre- seguida tudo aquilo dissipou-se e verificou-se uma acalmia total,
goando suas mercadorias e convidando as pessoas para verem e como após urna tempestade as nuvens se espalham sem chover.
comprarem seus segredos prodigiosos; eram - segundo infor- .;.. E eu disse ao meu guia: "Então nada resulta de tudo isso? U
mava - extraídos do tesouro de uma nova filosofia e satisfa- se vão as minhas esperanças, pois eu também ao ver essas expec-
riam a todos aqueles desejosos de obter conhecimentos ocultos. tativas alegrei-me por ter encontrado um alimento adequado para
Todos se alegraram, porque agora a sagrada irmandade rosa- a minha mente." O intérprete respondeu : "Quem sabe? Talvez
-cruciana repartiria generosamente os seus tesouros com eles; alguém ainda seja bem sucedido. Quiçá esses homens con.heçsm
212 213
I o momento em que deveriam anunciar essas coisas a alguém." Aconteceu que na minha presença um trono real foi subit~ment~
- "Terei então que esperar por isso?" - pergunteí - "Eu, abalado partiu-se em pedaços e caiu por terra. Logo depois OUVI
que entre tantos milhares daqueles mais cultos do que sou, não um ruído entre o povo, e olhando ao meu redor vi que carrega-
conheço um só exemplo de alguém que tivesse sido bem suce- vam um outro príncipe, sentando-o no trono, enquanto alegre-
dido? Não quero continuar aqui olhando embasbacado. Par- mente anunciavam que as coisas seriam diferentes do que tinham
tamos." 19 sido antes; e cada um, rejubilando-se, ampara e fortalece, o
quanto pode, aquele trono. Eu, então, pensando em agir para o
É assim que Comênio analisa o furor rosa-cruciano. Primeiro, bem-estar geral (é assim que é chamado), aproximo-me mais
ouve o som da trombeta da Fama, e é notável a descrição que faz da contribuindo com um prego ou dois para reforçar o novo trono;
impressão causada pelo primeiro manifesto. Em seguida, é a explosão com isto, alguns elogiaram-me enquanto outros olharam-me de
do segundo manifesto, prometendo um conhecimento oculto extraído esguelha. Contudo, nesse meio tempo, o outro príncipe restabe-
dos tesouros da nova filosofia - talvez uma alusão ao abstrato4.tonti- leceu-se e juntamente com seus homens nos atacaram com cace-
do na Monas bieroglypbica de Dee, publicada com a Conjessio. As tes, afugentando a multidão, até que todos desapareceram, tendo
explosões dos dois manifestos são acompanhadas de uma grande muitos perdido até suas cabeças. Louco de medo, quase des-
abundância de literatura rosa-cruciana. Os títulos nas "caixas", ou os maiei, quando meu amigo Searchall, ouvindo que estavam inves-
livros rosa-crucianos mais vendidos, são facilmente reconhecíveís corno tigando sobre quem teria auxiliado e favorecido o outro trono,
verdadeiros títulos rosa-crucianos, ou paródias aproximadas de tais cutucou-me avisando que eu também deveria fugir.
títulos. Um panfleto chamado Fortalitium Scientiae, supostamente
escrito por Hugo de Alverda, um personagem R.C. imaginário e con- Segundo a observação feita na tradução inglesa do Labyrintb,
siderado como sendo muito idoso, foi publicado em 1617. 20 Um outro, Comênio está se referindo aqui à expulsão temporária dos austríacos
Portus Tranquillitatis, apareceu em 1620. 21 Os títulos macromicro- que se encontravam na Boêmia, e ao breve reinado de Frederico do
cósmicos são, provavelmente, alusões a Fludd, e o Harmonia utriusque Palatinado. O trecho evidencia claramente que Comênio apoiara de
cosmi é realmente o título das publicações dele, em Oppenheim, nos qualquer modo o regime de Frederico, contribuindo com um ou dois
anos de 1617-19. O jovem Comênio evidentemente impregnara-se dessa pregos para reforçar o novo trono.
literatura e dela muito esperara. Veio então a reação, o desvanecimen-
The Labyrinth 01 the W orld considera a desventura de Frederico
to de toda aquela comoção, e a decepção e desilusão de todos que como uma experiência desnorteadora para Comênio, um acontecimento
tinham acreditado encontrar-se no limiar de uma nova era.
depressivo e decepcionante, igual ao fracasso resultante do furor rosa-
Presume-se que foi na Boêmia que Comênio viveu ao passar por -cruciano, e das esperanças por ele provocadas. Certamente ambos esta-
aquelas experiências, e são as reações em seu próprio país, relativas ao vam associados, como estavam as visões de Kotter, associando as
furor rosa-cruciano, que ele está descrevendo. "rosas" e os "leões" por ele mostrados. No Labyrintb, Comênio vive
As demais experiências do Peregrino do Labirinto do Mundo são durante os anos da esperança rosa-cruciana, novamente seguidos pelo
naturalmente tristes, principalmente quando ele visita as ruas das 'I
fracasso de Frederico. Estas experiências deixaram uma marca inde-
r lével de sofrimento, resultando numa aversão pelo mundo inteiro e
diversas religiões e seitas, e descreve as discussões ferrenhas entre elas
mesmas. E fala sobre uma delas como uma experiência bastante inquie- seus caminhos sinuosos.
tante. 2t O Peregrino assistira cenas terríveis. Vira exércitos imensos
rolando pelas estradas, e os terríveis castigos infligidos aos primeiros
19. Labyr;nth of lhe WorlJ, trad. Lützow, pp. 150-56. rebeldes. Viu a morte e a destruição, a peste e a fome, o desprezo
20. "Rhodophilus Staurophorus", Fortalitium Scientiae, 1617. Cf. Waite, pela vida humana e pelo seu bem-estar, em vez de fazê-las progredir,
Brolherbood of tbe Rosy Cross, p. 264. tal como ele e seus antigos amigos tinham desejado. Em resumo, tinha
21. "Irenaeus Agnostus", Liber T ... oâer Portas Trenquillitatus, 1620. Cf.
Waite, p. 251. ii visto os primórdios da Guerra dos Trinta Anos. 23
22. fJLabyrinth oi lhe World, trad. Lützow, p. 196. 2.3. Ibid., p. 274.
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214 21'
E então, incapaz de agüentar essas cenas, ou suportar mais a "pilhéria" ridiculamente mal compreendida sobre Christian Rosen-
tristeza de meu coração, fugi, desejando procurar refúgio em creutz e a sua Ordem benevolente, tem que ser afastada. Os movi-
algum deserto, ou antes, caso fosse possível , escapar do mundo. mentos do espírito e os acontecimentos históricos descritos no The
Labyrintb of the W orld são aqueles pelos quais Andreae e os de seu
Olhando ao seu redor e nada vendo senão a morte e moribundos, grupo deveriam estar atravessando.
vencido pela piedade e terror, exclamou : A filosofia de Comênio, já evoluindo logo após a sua visita a
Heidelberg, e mais plenamente desenvolvida durante o final de sua
Oh, humanidade miserável, perversa e infeliz! É esta, pois, a tua vida no exílio, foi por ele chamada " pansofia". Primeiramente empre-
última glória? Este, o resultado de teus magníficos feitos? Esta, gada na Renascença, pelo filósofo platônico-hermético, Francesco Pa-
a meta de tua cultura e da grande sabedoria, das quais tanto te trizzi,25 essa palavra significava uma doutrina das harmonias univer-
vangloriaste? sais, e uma ligação entre o mundo interior do homem e o mundo
exterior da natureza - em suma, uma filosofia macromicrocósmica.
E depois, ouviu uma voz que lhe gritava " Volta!". Olhou à sua Fludd chamara suas doutrinas de "pansofia" e dissera que os mani-
volta, não viu ninguém, e tornou a escutar "Volta!", E então, ouviu festos rosa-crucianos pareciam-lhe expressar uma opinião semelhan-
novamente - "Volta para onde vieste, para o lar do coração, e fecha te. 26 Agora podemos reconhecer Comênio e a sua pansofia, como
as portas atrás de ti!" 24 procedendo diretamente do movimento rosa-cruciano, conforme é agora
Assim, o Peregrino refugiou-se no amor, tendo sido recebido com compreendido.
palavras carinhosas e entregando-se inteiramente a Jesus . A última - ou quase última - experiência descrita por Comênio
As atitudes intelectual e religiosa de Comênio aproximam-se no Labyrintb, é uma visão dos anjos. 27
extraordinariamente das de Andreae, e as verdadeiras experiências
materiais de suas vidas transcorrem paralelamente. Isto ocorre, porque Agora, nada no mundo parecia tão exposto e sujeito aos diversos
compartilharam as esperanças originárias reveladas nos manifestos rosa- perigos, senão o grupo de devotos, para o qual o demônio e o
-crucianos, esperanças de um novo movimento universal de reforma e mundo olhavam encolerizados, ameaçando atacá-lo e dominá-
de progresso nos conhecimentos da humanidade. Ambos observaram ·10. . . Todavia, vi que estavam protegidos; pois observei que
alarmados a emoção suscitada pelos manifestos e o modo pelo qual o toda a sua comunidade estava cercada por uma parede de fogo.
movimento não pôde mais ser controlado, tornando-se perigoso. O Aproximando-me, vi que essa parede se movia, pois nada mais
relato de Comênio sobre esses acontecimentos assemelha-se ao alarme era senão uma procissão de milhares e milhares de anjos, que
de Andreae, com a entrada de tantos outros atores no teatro do caminhavam em redor dela; por conseguinte nenhum inimigo
ludibrium rosa-cruciano. O movimento tomou uma feição diferente poderia chegar perto. Cada um dos devotos tinha um anjo que
daquela esperada por aqueles que o haviam iniciado, tornando-se, pre- lhe fora dado por Deus, recebendo a ordem para ser seu anjo da
judicial para as causas que pretendera servií' Ficamos cientes disto guarda.
por Andreae e Comênio. E ambos esses dois' Idealistas religiosos fica- Reparei também. " numa outra prerrogativa dessa congre-
ram arrasados com a desgraça da guerra e o colapso de Frederico da gação .sagrada e invisível - saber que os anjos não eram apenas
Boêmia. A narrativa dos prejuízos para as bibliotecas e a ciência, dos guardiães, mas também mestres para os escolhidos, Com fre-
sofrimentos não revelados aos eruditos, é a mesma na Alemanha e na
Boêmia. E Andreae e Comênio encontram o derradeiro refúgio em sua 25 . Um dos livros de Patrizzi, Nova de uniuersis pbilosopbia (1592) é cha-
piedade evangélica. O primeiro, desvia-se do ludibriam rosa-cruciano mado "Pansophia", Patrizzi recomendara o ensino da filosofia hermético-platônl-
para a "Societas Christiana". Comênio, refugia-se em seu coração, para ca, como um meio melhor de trazer as pessoas de volta à Igreja, do que as
nele encontrar Jesus. A força da devoção manifestada no lema rosa- "censuras eclesiásticas" ou "a força dos braços"; consultar Giordeno Bru"o 1111~
the Hermetic Tradition, p. 345.
-cruciano Jesus mihi omnia, torna-se preponderante para ambos, e a

24.
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tu«. pp. ~7.
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26. Consultar anteriormente, p. 114.
27. Labsrintb of the World, trad, Lützow, pp . 321-2.

217
216 Cl..~~j o'" ,~ • •." .
qüência proporcionavam a eles o conhecimento oculto de varias
coisas, e ensinavam-lhes os profundos e secretos mistérios de
Deus. Porquanto como sempre contemplavam o semblante do
Deus onisciente, nada que um homem piedoso possa desejar ,
I

saber, pode ser secreto para eles, e com a permissão de Deus,


eles revelam o que aqueles aspiram saber ...
Acompanhar as experiências de Comênio no The Labyrintb of the
World até o fim do livro, com a sua incrível insistência na "interven- CAPÍTuLO XIII
ção dos anjos", é adquirir um outro discernimento do movimento
rosa-crueiano, por ele conseguido e descrito tão ardentemente na pri-
meira parte de seu livro. DO COLÉGIO INVISíVEL PARA A
A Angelologia era uma seção importante dos estudos renascentis- SOCIEDADE REAL
tas. A Cabala afirmara ensinar um método de aproximação dos anjos
e revelar detalhadamente as suas hierarquias e funções. A cabalística
cristã identificava os anjos da Cabala com as hierarquias dos anjos Nos anos subseqüentes a 1620, a associação do poder habsburgo
cristãos apresentadas por Pseudo-Dionísio. A insistência das obras her- com a Contra-Reforma do catolicismo esteve perto de uma vitória
méticas nos "poderes" divinos era uma filosofia emanacionista, que absoluta. A Reforma parecia estar na iminência de ser extinta na
facilmente incorporou-se à cabala cristã. Todavia, a grande importân- Europa, e no mundo não havia lugar para um Leão derrotado, para
cia desse movimento na Renascença, dificilmente é reconhecida. o ex-Rei da Boêmia que perdera todas as suas terras, fora destituído
John Dee, ao associar suas visões angélicas com seu trabalho de seu Eleitorado, e numa dependência de indigente, vivia como um
como cientista e matemático, estava agindo dentro de um panorama refugiado em Haia. A Ãguia triunfara realmente. Frederico continuou
que enfatizava o poder instrutivo dos anjos, e para ele, a ciência a tomar parte nas campanhas a fim de recuperar o Palatinado, contí-
angélica era simplesmente a divisão mais elevada de seus estudos cien- nuando porém a ser um fracasso. No entanto, esse homem represen-
tava alguma coisa. Na derrota e desalento, ele representava a crise e o
tíficos em geral. Dee só aparece como um excêntrico, quando se isola
desespero da Europa protestante. E aos olhos de muitos ingleses, ele
da tradição angelológica da renascença. O movimento rosa-cruciano
representava desgraça e vergonha - vergonha pelo abandono por
estava impregnado da angelologia cristã hermético-cabalística. A Cbris-
parte dos sucessores Stuart no papel desempenhado pela Rainha Elisa-
tianopolis, de Andreae, com a sua extraordinária insistência na ciência,
bete, como protetora da Europa protestante.
tecnologia, filantropia, e na cidade ideal, está fundamentada num mi-
nistério de anjos, como sendo a sua estrutura básica. Comênio, no Não é fácil compreender o caráter de Frederico. Ele era incon-
Labyrintb, deixa bem claro o aspecto instrutivo do ministério dos testavelmente um general deficiente, um político ingênuo, e um líder
anjos. incompetente. Como personalidade, é apresentado como um fraco,
Embora Andreae e seus partidários, dos quais Comênio foi um, governado por sua mulher e Anhalt, sem vontade própria ou livre-
se tenha afastado da depreciada designação "rosa-cruciano" durante os -arbítrio. Mas, como seria ele por exemplo, como religioso ou perso-
anos da guerra, entretanto, o ideal utópico de uma sociedade filantró- nalidade intelectual? Penso que ninguém já tenha feito essa pergunta.
pica iluminada, em contato com agentes espirituais, não foi abando- Aqueles que o viram em Heidelberg antes da guerra, ficaram impres-
nado. Muito ao contrário, a utopia do gênero das sociedades cristãs, sionados com a sua sinceridade. E de fato, ela jamais foi posta em
de Andreae, foi uma das grandes forças subterrâneas na época da dúvida, contudo, a ele ficou associada uma parte da propaganda hostil.
guerra, difundida por homens iguais a Comênio, Samuel Hartlib, John interessada em apresentá-lo como um ingênuo fraco . Seu caso pode
Dury, todos influenciados por Andreae, e herdeiros de um movimento ser antes semelhante ao de Henrique In da França, de natureza reli-
de inovação, que se deparara com essa catástrofe em seu disfarce giosa, intelectual, artística e contemplativa, deturpada na História peJa
rosa-crucíano,
.. sátira inimiga.
.,
·218
~~ _ . _ -. __
.

o retrato de Frederico, pintado por Honthorst (Fig. 28), em a lembrança de seu predecessor em seu desempenho de Leão, cujo
Haia, após as catástrofes, pode ter sido um tanto idealizado, ou talvez fracasso foi por muitos atribuído ao seu abandono por Jaime I. S
ele tenha apreendido a tragédia espiritual desse homem. Temos nele,
o representante de uma antiga estirpe imperial alemã , a dos Wittels- O mesmo se aplica à viúva de Frederico, a Rainha da Boêmia,
bach, - mais antiga do que a dos Habsburgos - a qual (talvez pos- representante, para os simpatizantes na Inglaterra, da política de aP:<'io
samos imaginar) compreendeu o significado religioso e místico de um à Europa protestante, que na opinião deles deveria ter sido a de jaime
destino imperial , e sofreu mais do que uma tragédia pessoal - sofreu I , relativamente à sua filha e ao genro. Em sua miséria e exílio em
o martírio. A expressão fisionômica não é o que imaginamos ser a de Haia , a Rainha da Boêmia foi uma acusação viva para aqueles que
um calvinista, mas o calvinismo no Palatinado era a carreira das tradi- pensavam desse modo. Após a morte de Frederico, Elisabete reinou
sozinha em Haia - reinou sobre nada, muito pobre, vivendo da
ções místicas, da tradição hermético-cabalística renascentista, que pendeu
para esse lado. O conselheiro espiritual de Frederico foi um "orienta- caridade holandesa e das pensões irregulares provenientes da Ingla-
terra, sem território, nada possuindo além de sua personalidade real,
lista", talvez, igual a Rodolfo II ele procurasse um caminho esotérico
e a sua grande família de filhos reais para sustentá-la. Podemos vê-la
através da situação religiosa. Sua expressão fisionômica é suave. Seja
na época do início de sua viuvez, no retrato pintado por Honthorst
o que for que nela possamos ler - certo ou errado - qualquer um,
(Fig. 29) em Haia: uma mulher desgastada,. porém infle~ível. Fre:
que tenha analisado os retratos na sucessão usual dos príncipes ~le­
qüenternente acusada de frívola e amante dos prazeres, Elisabete f 01
mães da Guerra dos Trinta Anos, verá imediatamente que Frederico
realmente uma personalidade muito forte . Jamais vergou sob o peso
deve ter sido alguém de uma classe diferente.
de todos aqueles infortúnios. Não há dúvida de que o orgulho contri-
buiu para isto, e ela fora cuidadosamente adestrada nos princípios da
Quando a guerra já se fazia sentir por dez anos, com resultados
Igreja Baixa Anglicana, e pelos bondosos Harringtons. É assim que a
funestos para os protestantes, finalmente surgiu um Leão libertador, vemos de pé no retrato de Honthurst, triste, porém digna, num jardim
vindo do Norte. As vitórias de Gustavo Adolfo , Rei da Suécia, salva-
de uma colina com um rio correndo ao longe (será isto uma reminis-
ram a causa protestante. Embora muitos anos de uma guerra cruel cência de Heidelberg?), e com uma rosa na mão.
ainda devessem transcorrer, Gustavo Adolfo verificara o poder habs-
burgo, certificando-se de que o protestantismo sobreviveria na Europ~. Durante os últimos anos do reinado de seu pai, Jaime I, através
Frederico foi para a Alemanha, tornou a ver o seu Palatinado arrui- de todo o reinado de seu irmão, Carlos I, e de todas as guerras civis
nado, e foi muito bem recebido por Gustavo que reconheceu a s~a e da República Inglesa, até a Restauração de seu sobrinho, Carlos II,
Elisabete manteve a sua pobre porém orgulhosa corte em Haia, e
posição de líder dos príncipes protestantes na Alemanha. 1 O Leao
durante todo esse tempo jamais foi esquecida na Inglaterra. Com sua
derrotado e o Leão vitorioso cumprimentaram-se mutuamente; é es-
aparência real, foi realmente inesquecível.. Caso o seu . irmão Carlos
tranho, mas ambos morreram no mesmo mês de novembro de 1632; tivesse morrido ainda jovem - e era um Jovem enfermiço, sem pers-
Frederico, devido à peste que assolara o país devastado, e Gustavo, pectivas de uma vida longa - ela teria subido ao trono, como Rainha
morto na Batalha de Lutzen. O Rei da Boêmia e o da Suécia foram da Grã-Bretanha. Caso Carlos não tivesse tido filhos, ou se estes mor-
pranteados num sermão proferido em Haia. 2 É também interessante ressem antes dele, ela o teria sucedido, ou mesmo, se ela não vivesse
observar que não só ambos eram Leões, mas que todo o aparelhamento por muito tempo, seu filho mais velho a teria sucedido. Ao contrário
das novas estrelas, a realização da profecia, etc., foram usados para de seu pai e irmão, a Rainha da Boêmia foi incrivelmente pr6diga em
ambos os Leões, embora um tenha sido vitorioso, enquanto o outro filhos. Aqueles na Inglaterra, - e eram muitos - não satisfeitos com
fora derrotado. O culto de Gustavo Adolfo, na Inglaterra, manteve viva a política do não-Parlamentarismo e antipuritana, ou até mesmo po-
tencialmente papista de Jaime I e Carlos I, olhavam com saudades
1. Sobre o encontro de Frederico e Gustavo, consultar Green, Elizabetb para aquela família real protestante em Haia, que represent~va uma
01 Bobemia, p. 288. poss~vel sucessão ao trono. E nos anos que se sucederam, fOI através
. ;,
2. Publicado em Londres e traduzido para o inglês em 1633; consultar
Ethel Seaton, Literary Retations 01 England and Scardinavia in tbe Seventeentb 3. Ver o panegírico de Gustavo Adolf~, publicado na Inglatel'fll. ~
Century, Londres, 1935, p. 7~. do por Seaton, p. 83.

220 221
dos descendentes de Elisabete da Boêmia que uma sucessão protestante Esta ambivalência da casa Palatina, a sua habilidade para incluir
deveria ser procurada e encon trada . A sua décima segunda fílha e a diferentes pontos de vista numa única família, pode ser analisada nas
mais moça, nascida em Haia no ano de 1630, deveria tornar-se Sofia vidas dos dois filhos mais notáveis de Elisabete. O Príncipe Carlos
de Brunswick, Eleitora de Hanover, cujo filho, Jorge l, foi o primeiro Luís, o mais velho dos sobreviventes, herdeiro do título eleitoral e do
rei hanoveriano da Grã-Bretanha. Palatinado (que lhe foi parcialmente restituído mediante a Paz de
Munster (1648), e que terminou a Guerra dos Trinta Anos), era um
Cidadãos ingleses, passando por Haia, prestaram suas homenagens
intelectual, animado com as novas idéias sobre educação e a aplicação
à Rainha da Boêmia. Como um exemplo, o diário de John Evelyn utilitária da ciência, e inclinado para o lado dos Parlamentares, onde
datado de julho de 1941 deve ser citado : 4
proliferavam novas idéias, e no qual tinha muitos amigos interessados
Ao chegar em Haia, dirigi-me primeiro à corte da Rainha da em reintegrá-lo em seus domínios. Por outro lado , o Príncipe Roberto
Boêmia, onde tive a honra de beijar a mão de sua Majestade, e foi um realista convicto, notável por sua coragem nas cargas de cava-
das várias princesas, suas filhas . . . Era um dia de abstinência laria ao lado do Rei. Ele, porém, também tinha atributos de talento;
para a Rainha, pela inauspiciosa morte de seu esposo, e a sala consta ter sido o inventor da gravação a mezzo-tinto .
de recepção estava revestida de veludo preto desde o seu fa- A corte de Elisabete em Haia é um assunto que ainda espera um
lecimento . .. tratamento histórico sério. Embora M. A. Green tenha coligido muitas
fontes documentárias e seu livro ainda seja valioso, seu objetivo foi o
Elisabete não era apenas popular entre os simpatizantes protes- de contar, em termos românticos simples, a história de uma viúva real.
tantes porém também o era entre os Parlamentares. Os Parlamentos, Ao que sei, o primeiro historiador sugerindo um enfoque mais pro-
nos reinados 'de Jaime e Carlos, sempre lhe tinham sido favoravel- fundo, é H. Trevor-Roper, o qual observou sucintamente que o prin-
mente simpáticos, e quando o Parlamento destituiu a monarquia, os cipal defensor leigo dos "três estrangeiros", Hartlib, Dury e Cornênio,
Parlamentares continuaram a respeitar Elisabete da Boêmia. Em ver- foP
dade dever-se-ia perguntar se ela tivesse sucedido ao trono, jamais
teria' ocorrido uma revolução. Os Parlamentares, e o próprio Oliver Elisabete, Rainha da Boêmia, irmã do rei, a chefe nominal da
Cromwell, na realidade não se opunham a uma monarquia como essa. oposição, a pensionista do Parlamento durante as Guerras Civis.
Olíver julgava que a monarquia do tipo elísabetano era a melhor Com ela estão seus defensores diplomáticos, Sir William Boswell,
forma de governo. A objeção visava aos monarcas que tentavam gover- testamenteiro de Franeis Bacon, no momento embaixador em
nar sem o Parlamento, e cuja política exterior não convergia para a Haia, onde a rainha exilada manteve a sua corte, e Sir Thomas
defesa da causa protestante na Europa . Elisabete Stuart estava livre Roe, antigo embaixador de Gustavo Adolfo .
dessas objeções para com seus parentes reais. De fato, ela e seu marido
representavam realmente o tipo da política estrangeira, que os Parla- Essas poucas palavras são suficientes para estabelecer as linhas
mentos teriam desejado que fosse seguida por Jaime e Carlos . Não é que um novo enfoque histórico da corte de Elisabete em Haia deveria
pois de admirar que o Parlamento revolucionário reconhecesse o direito seguir. Deveriam juntar os nomes de ingleses importantes e influentes,
da Rainha da Boêmia para sua proteção. Ela recebera uma pensão com os quais ela mantinha um bom relacionamento, e para os quais
de Carlos I, a qual o Parlamento continuou a pagar . Desse modo, em ela era um símbolo da tradição "elisabetana" na monarquia. Deveria
sua corte de Haia, Elisabete encontrava-se numa situação de acom- ser notório que como viúva de Frederico, Elisabete tinha uma signifi-
panhar as vicissitudes na Inglaterra, sem perder inteiramente o contato cação para a Europa, bem como para a Inglaterra. Os refugiados do
com ambos os lados. Embora permanecesse absolutamente inabalável Palatinado, da Boêmia e de todos os cantos da Europa que tinham sido
em sua simpatia por seu irmão Carlos, cuja morte a deixara horrori- atingidos, haviam ido procurar Frederico em Haia e continuavam a ir
zada, havia alguns aspectos no modo de pensar dos Parlamentares e por causa de sua viúva, embora soubessem que financeiramente ela nada
dos adeptos de Cromwell, que não estavam muito de acordo com a
sua posição. 5 . H. R: Trevor-Roper, Religion, Ibe Refo,,,,ation, tl1Id Soc;.l CIJa,e, J.oo.
dres, 1967, p. 256. .
4. lohn Evelyn, Diary, ed, E. C. de Beer, Oxford, 1955, lI, pp. 3~.

222
podia fazer por eles. Todavia , ela era, por assim dizer, o elo ideológico Comênio, O mais famoso e o mais produtivo dos três, após suas
através do qual os pensamentos de três "estrangeiros", Hartlib, Dury experiências na Boêmia, sobre as quais, ficamos sabendo alguma. coi~a
e Cornênio, podiam tornar-se aclimarados numa Inglaterra que estava no último capítulo, abandonou seu pais natal em 1628, para jamais
livrando-se do despotismo monárquico. voltar, e foi para a Polônia, onde instituiu uma comunidade de Irmãos
Samuel Hartlib dirigira-se para a Inglaterra em 1628, após a con- da Boêmia exilados, e começou a publicar suas obras educacionais. Lá
quista católica de Elbing, na Prússia polonesa, onde tornara-se o centro também começou a ensinar a sua "pansofia".
de uma sociedade mística e filantrópica. Embora sejam vagas as infor- Esses três homens tinham a idade para ter vivido todas as emo-
mações verdadeiras sobre esse grupo, ou talvez nem existam, parece ções do furor rosa-cruciano, de seus boatos de uma reforma universal
ter havido uma "Antilia". Isto, em outras palavras, era igual a uma e do progresso do ensino, e devem ter compreendido melhor do que
das Congregações Cristãs, de Andreae, os grupos que tinham se livrado nós o significado do mistério dos Irmãos R.C. e seu Colégio Invisível.
do ludibrium rosa-cruciano, embora continuassem professando os ideais Eram homens aos quais as calamidades de 1620 e dos anos subseqüen-
rosa-crucianos.P A "palavra" do grupo de Hartlib era "Antilia" e não tes haviam erradicado de seus países e transformado em refugiados
"R.C.", contudo, durante toda sua vida e seu trabalho, ele foi algo nômades. Esses foram os homens que se dirigiram para a Inglaterra,
semelhante a um Irmão R.C.-, caso estes pudessem ter sido "tocáveis" e nela tentaram difundir a reforma universal, o progresso do ensino e
e não invisíveis. outros ideais utópicos. Represen taram a Boêmia no exílio e na difusão
de idéias, e se acrescentarmos a eles Theodore Haak, que atuou como
Ao chegar à Inglaterra, Hartlib reuniu os refugiados da Polônia
agente de Cornênio, na Inglaterra, temos aí representado o Palatinado,
e do Palatinado, e instituiu uma escola em Chichester, e daí voltou
pois Haak era um refugiado do mesmo. 10
para Londres, em 1630. 7 Ele já realizara a sua missão na vida, que
deveria representar um esforço incansável na organização de ernpreen- Em 1640, o "Long Parliament" reuniu-se, irritado com a pro-
dimentos filantrópicos, educacionais e científicos, vinculados por um longada exclusão do Parlamento dos negócios da nação, irritado com a
intenso entusiasmo religioso, embora invisível (no sentido de não- política interna seguida pela monarquia, e sobretudo, irritado com a
-íanático ) . sua política externa, que tinha sido de "paz com ignomínia, enquanto
a causa do protestantismo estava indo por água abaixo no exterior": 11
John Dury,8 escocês, porém quase "estrangeiro", devido à sua
Quando, com a execução de Strattford, parecia que o Parlamento
vida passada no exterior, encontrou-se com Hartlib em Elbing, entu-
destruíra a "tirania", pensou-se que o caminho estava aberto para o
siasmando-se com o mesmo tipo de projetos idealistas. Mantinha um início de um novo período para assuntos humanos. Originou-se um
bom relacionamento com Elisabete da Boêmia e com seu conselheiro, clima de grande entusiasmo, e os pensamentos voltaram-se para pers-
Sir Thomas Roe, e manifestou um intenso interesse na reintegração do pectivas de grande alcance sobre uma reforma universal na edu~ção,
filho da Rainha, Carlos Luís no Palatinado, como também o fez na religião, no progresso do ensino, para o bem-estar da humanidade.
Hartlib. 9 Para esse Parlamento, Samuel Hartlib dedicou uma Utopia, A
Description o] the Famous Kingdom of Macaria. 12 Ele descreve a sua
6 . Consultar anteriormente, pp. 193 e ss,
própria concepção como uma "ficção", comparando-a às de Thomas
7 _ Trevor-Roper, pp. 249 e ss; C. Webster, Samuel Hartlib and lhe Adoan-
cement 0/ Learning, pp. 1 e ss.
More (Macaria é o nome de um país imaginário na Utopia desse au-
tor) e de Franeis Bacon na New Atlantis. A ficção de Hartlib ou llldi·
8. Turnbull, Hartlib, Dury and Comenius, pp. 127 e ss; Trevor-Roper,
pp. 251 e 55 . briu'm (ele não emprega essa palavra), apresenta um daqueles tão que-
9. Existem insistentes referências a Carlos Luís e à necessidade de sua reino ridos países imaginários no período rosa-cruciano, no qual tudo está
tegração no Palatinado, nas cartas de Dury (consultar Turnbull, index, título
Carlos Luís, Eleitor Palatino ). Hartlib recebera de Carlos Luís o privilégio de 10. Trevor-Roper, p. 289; Webster, p. 32. Igual a Hartlib, Haak recebeu
ser admitido entre os "ministros do Eleitor Palatino, em consideração aos seus uma nomeação semi-oficial do Eleitor Palatino.
serviços prestados no exílio do Palatinado, e à sua fama entre os grandes homens" 11. Trevcr-Roper, p. 237.·
(Turnbull, pp. 2, 111·12).
12. Macaria é reeditada por Webster em Salflllel H.,tlib. pp. 79 e D.

224
devidamente determinado, o ensino adiantado, reinando a paz e a feli- do movimento de Frederico . Aqueles que com isso se tinham decep-
cidade como no paraíso antes da Queda ; porém, as sugestões de Harr- cionado amargamente, dirigiram-se para a Inglaterra, e os que neste
Iib são de uma classe mais prática do que aquelas dos utopistas ante- país lamentavam tristemente que aquele movimento não fora apoiado,
riores. Ele está pensando não só no milênio, mas na provável reforma recebiam amistosamente os que chegavam à Inglaterra. Verifica-se um
da legislação, que esse Parlamento deveria realmente levar a cabo. Está fluxo revigorante do tipo da euforia rosa-cruciana, a sensação de que
convicto de que esse Parlamento "assentará a pedra angular da felici- uma nova era na História do mundo é agora viável. E é extraordinário
dade dos mundos, antes de seu recesso final ... " 13 quão profundamente a linguagem de Comênio repercute os temas e
entusiasmos daquele período inicial, em seu livro The Way oj Ligbt,
Nesse momento emocionante, qua~o parecia que a Inglaterra
que escrevera na Inglaterra em 1641, mas que só foi publicado muito
poderia ser a terra escolhida por jeoavá para representar a restauração
mais tarde.
de todas as coisas, quando surgia a possibilidade de que nela as comu-
nidades imaginárias poderiam tornar-se comunidades reais, e os colé- O mundo - diz Comênio logo no começo desse livro - é igual
gios invisíveis, colégios reais, Hartlib escreveu a Comênio insistindo a uma comédia, que Deus em sua sabedoria representa com os homens
para que fosse à Inglaterra, a fim de auxiliá-lo na grande obra. Embora em cada país. A comédia continua; ainda não chegamos ao fim da
o Parlamento não abonasse o convite, verificava-se uma boa vontade história e maiores progressos nos conhecimentos do homem estão
geral por trás dele, o mesmo se dando com relação a Dury. Numa men- agora ao seu alcance. No final, Deus nos promete o ponto mais alto
sagem dirigida ao Parlamento em 1640, Comênio e Dury foram men- da co~pr.iTsão. 16 Desse modo, Cornênio adapta essa analogia teatral,
cionados como filósofos que deveriam ser seguidos nas futuras refor- que tinha SIdo tão profundamente impregnada na mente de seu mais
mas. Comênio, que se encontrava na longínqua Polônia, ficou radiante. antigo mestre, Andreae, ao tema que demonstra estar o mundo diri-
Acreditou que tinha um mandato do Parlamento, para construir a gindo-se para uma época de esclarecimento universal antes do seu fim.
"Nova Atlântida", de Bacon, na Inglaterra. Quando todos os exemplos e normas tiverem sido coligidos -
Com ênio foi calorosamente recebido por Haak do Palatinado na continua Comênio - podemos esperar que "uma Arte das Artes, uma
Inglaterra, e oficialmente recebido num magnífico banquete oferecido Ciência das Ciências, um Discernimento dos Discernimentos, uma Luz
por John Williams , Bispo de Lincoln, 14 que assim oferecia a sua ami- das Luzes" serão finalmente adquiridos . 17 Os inventos das épocas ano
zade ao refugiado religioso. Isso ocorreu em 1641, o mesmo~lm que teriores, a navegação e a imprensa abriram um caminho para a difusão
Hartlib publicou Macaria} e John Dury publicou uma obra igualmente da luz. Podemos esp~rar que nos encontremos no limiar de progres-
otimista, profetizando o adiantamento do ensino, a união protestante, sos ainda maiores. 18 Os "livros universais " (os manuais de educação,
e insistindo na reintegração do filho mais velho da Rainha da Boêmia no planejados por Comênio) possibilitarão a todos aprenderem e colabo-
Palatinado. 15 Nesse ano de alegrias e de esperança, os entusiastas acre- rarem no adiantamento. O livro da pansofia será terminado. As escolas
ditaram que agora surgiria na Inglaterra uma reforma geral, sem san- "da sabedoria universal, defendidas por Bacon, serão fundadas. E os
gue, sem guerras, e sem os sofrimentos pelos quais a Alemanha passara profetas da sabedoria universal, em todos os países, devem tornar-se
e ainda estava passando. Esse foi também o ano do arrebatamento de mutuamente acessíveis. "Porquanto, embora seja verdade que o mundo
Milton, com re1açãoà reforma universal na educação e em todos os não tenha carecido integralmente de um relacionamento, contudo os
setores da vida, . métodos de intercomunicação até agora utilizados careceram de uni-
versalidade." Por conseguinte, é conveniente q\}e os "agentes da feli-
É como se as pessoas estivessem mais ansiosas por aproveitar a
cidade e bem-estar gerais" devam ser muitos. Devem ser orientados
oportunidade que se perdera nos anos anteriores, a oportunidade para
por alguma ordem, "para que cada um deles possa saber o que tem a
uma reforma geral e progresso, propagados pelos manifestos rosa-cru-
cianos, e a oportunidade que se perdera na Alemanha devido ao colapso 16. JOM Amos Comenius,' Tbe Way o/ Ligbt, trad. E. T. Campagnac. U.
verpool, 1938, pp. 32-3. A Via Lacis foi primeiramente publicada em Amsterdi,
13. Macaria, ed, Webster, p. 79. em 1668.
14. Trevor-Roper, p. 267. 17. Ibid ., p. 38.
Ibid., ~p. 269-70. 18. Iqid ., pp. 108 f sr..
15.
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227
fazer, p.ara _quem e quando, e com que auxílio, e possa aplicar-se à
terra sem o sofrimento pelo qual a Alemanha passara. Longos anos
su~, ~~ngaçao. de ~m. modo qu; ~ontribuirá par~ o proveito do públi- de anarquia e derramamento de sangue apresentam-se pela frente . Apro-
co. Devena existrr um Col égio, ou uma sociedade sacra, dedicada
ximadamente em 1642, torna-se evidente que o país estava sendo impe-
ao bem-es:ar comum da humanidade, e que se mantenha unida por
lido par.a uma guerr~ civil, que o Parlamento tinha mais o que fazer do
algumas leis e regulamentos . 20 O que torna muito necessária a difusão que legislar para a Idade de ouro, e que a reforma universal deveria
do esclarecimento é que deveria existir uma língua universal para ser adiada indefinidamente.
que todos pudessem compreender. Os homens cultos da nova ordem
dedicar-se-ão a ess~ problema. O mesmo fará a luz do Evangelho, bem' Os três entusiastas compreenderam isso. Comênio e Dury aban-
como a luz do ensinamento ao ser difundida pelo mundo inteiro. donara,O: a Inglaterra em 1642, para irem trabalhar alhures; o primeiro
na Suécia, e Dury em Haia. Contudo, Hartlib ficou, e continuou a
A evidente influência aqui é Bacon e seus esquemas para os colé-
escrever, a planejar e organizar na Inglaterra as sociedades que deve-
gios e organizações para a difusão da luz, "os comerciantes da luz" da riam formar os modelos para o futuro .
Nova Atlântida . Os três amigos - Comênio, Dury e Hartlib - dedi-
caram-se aos trabalhos de Francis Bacon, e o reconheceram como o Os leitores que acompanharam a argumentação deste livro neste
maior mestre do progresso do ensinamento. Com isto estabeleceram ponto devem ter tido (como eu) uma curiosa sensação de d;;à ou.
contato com o baconianismo ressuscitado na Inglaterra, e que estava A emoção de 1641 é igual àquela dos manifestos rosa-crucianos: o
prosperando extraordinariamente nos anos subseqüentes a 1640. Na- progresso do ensino está próximo; o homem encontra-se prestes a sair
quele trecho de Comênio, os "comerciantes da luz", de Bacon, encon- para as esferas mais elevadas. A deflagração das guerras civis põe um
tram-se associados com os Irmãos R.C., com a absoluta compreensão ter.mo a essas i?éia~ absurdas, do mesmo modo que a Guerra dos
da Fama sobre o mundo movendo -se para a luz e para o fim, com a Trm~a Anos extmguru as es~eranças rosa-crucianas. E o recurso para
intensa piedade evangélica dos manifestos rosa-crucianos. E já tivemos continuar a trabalhar para o Ideal, através dos modestos "modelos" de
ocasião de ver que o próprio Bacon parecia consciente daquela associa- uma sociedade melhor, é o mesmo. Hartlib continuava a fazê-lo por
ção, e que os elementos do mito da Nova Atlântida são realmente meio da "Maçaria" - ou como se preferir chamar esses grupos -
modelados no mito dos invisíveis Irmãos R.C., cujos objetivos carido- usando o mesmo processo pelo qual Andreae afastara-se do ideal uni-
sos e grandioso colégio são de todo desconhecidos para o resto do versal em prol da organização de grupos modelares ou sociedades
cristãs. O entusiasmo por elas tinha sido transmitido a Hartlib através
mundo.
da "Antilia", antes que ele fosse para a Inglaterra.
E. difícil tornar isto claro, mas o que estou tentando explicar é
que com a ida à Inglaterra dos três estrangeiros, e sua versão inade- Hartlib estava profundamente interessado na reforma educacional
quada do movimento para o progresso do ensino, teríamos chegado nos esquemas filantrópicos e salutares, e na aplicação utilitária da ciên-
juntos ao que julgáramos que fossem as correntes de um movimento cia para finalidades práticas. 21 Ele estava bem consciente da impor.
q?e evoluíra como sendo o baconianismo na Inglaterra, o rosa-crucia- tância da matemática para a ciência aplicada, e na realidade, o seu
n,tsmo na Alemanha, estando as duas filosofias de alguma forma rela- "modelo" para uma sociedade melhor tem a probabilidade de ter-se
cionadas ou em contato uma com a outra, Os manifestos rosa-crucianos aproximado mais de Cristianópolis do que da Nova Atlântida. Con-
e uma parte da literatura sobre o furor rosa-cruciano devem ter conhe- forme já vimos, Cristianópolis era o modelo oferecido por Andreae, e
cime~to de Baco~. Este, por sua vez, devia certamente ter tido co- ela se baseava - segundo o modo de pensar de John Dee - numa
nhecimento do tnlto rosa-cruciano, quando escreveu a New Atlantis. perspectiva da matemática que era ao mesmo tempo prática e utilité-
ria, quando aplicada para melhoramentos técnicos, porém propagava-se
O, ano de. 16~1 resultou ~uma falsa aurora. O grande progresso dessas atividades para as esferas angelicais e abstratas mais elevadas.
do. ensino, a difusão da luz milenar não foram imediatamente acessí-
VeIS. Nenhuma visão desse gênero surgiria tranqüilamente na Ingla- .1 . A tradição de Dee permanecia muito viva na Inglaterra, na mo-
da~l.d~~e do interesse pelo ensino da matemática e a sua aplicação
,I

19. uu.. pp. 170-2. utilitária na Tecnologia. Hartlib poderia ter descoberto esta tradição
20. tsu.,p. 173: ~~ckert (Die Rosenkreutzer , p. 206) chamou muito ade-
quadamente a Via Lucis uma Fama comeniana", . 21. Trevor-Roper, pp. 249 e ss; Webster, pp. 2 e ss.

228 229
na Inglate.rra e tê-la adicionado àquela de Cristianópolis, como sendo
o verdadeiro modelo da sociedade cristã, a qual sofrera a influência perimental, e outras partes do conhecimento humano, foram a origem
n.ele exercida por Andreae, antes de sua ida à Inglaterra. De fato, vá- .:;
da Sociedade Real. 26 Entre outros que participaram dessas reuruoes,
nos pontos parecem indicar que esse tipo de influência pode ter sido I' Wallis cita o "Dr. John Wilkins (posteriormente Bispo de Chester) e
predominante nos esforços de Hartlib para o progresso do ensino. Evi- então capelão do Príncipe Eleitor, em Londres", e o "Sr. Theodore
dentemente, ele admirou muito o Prefácio de Dee para Euclides, pois
em 1655, insistiu muito para que fosse traduzido para o latim. 22 E
proeminentes, entre os auxiliares ingleses e colegas escolhidos por Hart-
I Haak (um alemão do Palatinado, que depois passou a residir em Lon-
dres, e que - suponho - proporcionou a primeira oportunidade e a
primeira sugestão para essas reuniões), e muitos outros". A veracidade
lib, foram John PelI e William Petty, ambos matemáticos e peritos em desse relato, s~~re as origens da Sociedade Real, foi investigada, por-
1. que essas reurnoes em Londres, datando de 1645, não são menciona-
mecânica na tradição Dee. O estudo de Pell, Idea of Mathematics
(1638), é certamente muito influenciado pelo Prefácio de Dee. 23 E das por Thomas Sprat, em sua história sobre essa Sociedade.
Petty, como estudioso e autoridade em navegação, 24 certamente deve O que, entretanto, agora sobressai desse relato é a predominân-
ter haurido mais de Dee do que de Bacon? cia da influência do Palotinado na mesma. Haak, um alemão do Pala-
tinado, é tido como iniciador de tais reuniões, que deram origem à
Entretanto, eu sugeriria - embora à guisa de experiência - que
Sociedade Real. Está também evidenciado que Iohn Wilkins (mais
o baconianismo "vulgar" ou utilitário de Hartlib não é absolutamente
tarde tão proeminente na Sociedade Real) era, na ocasião das reuniões,
baconiano. Antes, deve surgir da tradição Dee, embora Hartlib, igual
o capelão do filho mais velho do Rei e da Rainha da Boêmia. Esta
a seus amigos, tenha a tendência de considerar qualquer espécie de
explicação parece imprimir um traço singularmente "Palatinado" às
esforço para o progresso do ensino como sendo baconiano, e certa-
origens daquela Sociedade, nas reuniões iniciadas por um alemão do
mente existem também influências marcantes da "New Atlantis" nas
Palatinado, o representante da religião nesses encontros sendo cape-
raízes do utopismo de Hartlib. lão do Eleitor Palatino.
. dade crista,
A prof un da pre . - que . .
mspirou Dee~J.em sua C' . ,
nstianó- Chegando agora ao que se segue, a respeito da época das peças
polis, talvez estivesse mais próxima da religiosidade e misticismo de pertencentes ao quebra-cabeça sobre as origens da Sociedade Real, des-
Hartlib, do que do temperamento mais frio de Bacon. cobrimos que estas são as referidas por Robert Boyle, nas cartas de
Começaremos agora a focalizar o assunto familiar dos anteceden- 1646 e 1647, a respeito de um "Colégio Invisível".
tes da Sociedade Real, 25 cujos desígnios este capítulo esteve ventilan- Escrevendo em outubro de 1646 para seu antigo tutor, o jovem
do. Talvez ocorra que as peças conhecidas desse quebra-cabeça possam Boyle diz que está-se dedicando à filosofia natural, de acordo com os
agora ser reunidas num desenho mais coerente. princípios de "nosso novo colégio filosófico", e pede-lhe para enviar
De acordo com a declaração feita por John Wallis, algumas reu- livros que possam ser úteis "os quais contribuirão extraordinariamente
niões organizadas em Londres em 1645, durante as guerras civis, para para que sejais muito bem recebido em nosso Colégio Invisível".
a investigação da filosofia natural, principalmente a nova filosofia ex- Alguns meses depois, ao escrever para um amigo em fevereiro de
t.l·- 1647, ele diz: 27
22. Peter French, [obn Dee, p. 175.
t
23. Ignoro se alguém já assinalou esse fato evidente. O melhor disto é que as pedras angulares dos Invisíveis (como
24. A respeito de Dee como perito em navegação, consultar D. W. Waters, eles mesmos se denominam) ou Colégio Filosófico, honram-me
Tbe Art of Navigation in Elizabetban and Early Stuart Times, Londres, 1958. de vez em quando com a sua companhia. .. homens pe espíritos
25.. A literatura sobre o assunto é muito grande: consultar, p. ex., Christo- tão evoluídos e perspicazes, que a filosofia escola~~ apenas a
pher Hill, Intellectual Orígíns of tbe Englisb Reoolution, Oxford, 1965; Henry
Lyons, Tbe Royal Societv, Cambridge, 1944; Tbe Royal Society, its Origins and 26. Wallis escreveu dois relatos ligeiros sobre essas reuniões, um em 1678,
Pounders, 00. Harold Hartley, Lond~es, 1960. As várias teorias foram coligidas um outro em 1697. Para completa citação desses trechos, consultar Purver, pp.
por Mar~e~ Purver. Tbe Royal Society, Concept and Creation, Londres, 1967. 161 e ss.
Um ensal~ UJ~Frtante foi o de P. M. Rattansi, "The Intellectual Origins of the 27. Robert Boyle, Works, ed. Thomas Birch, 1744, I, p. 20. a. Purver,
Royal, Society , Note{ an'h Refords o~,the Royal Societ», 23 (1968). pp. 193 e S5. \ .
.... ! - k..,\c, Yt).(,~k ~~Ó1 t.o--t. ...1 - G4t?k~t1 C(I\
2.30 2J1
região mais inferior de seus conhecimentos; embora arnbicionan. Em sua Mathematicall Magick (1648), ao falar sobre uma espé-
do orientar o caminho para qualquer desígnio mais generoso e, cie de lanterna a ser usada no subterrâneo, Wilkins diz que essa
por assim dizer, não aceitarem ser dirigidos para o que é mais lanterna "é considerada como tendo sido vista no sepulcro de Francis
insignificante, a fim de assim poderem justificar o motivo de suas Rosicrosse conforme é mais amplamente explicada na Profissão de Fé
opiniões; pessoas que se empenham em confundir a estupidez, daquela P;aternidade." 29 Embora ele fale de Francis, em vez de Chris-
pela prática de uma caridade tão intensa que abrange tudo o que tian, Rosa-Cruz, (provavelmente empregando erradamente "Fra" por
"Frater" nos manifestos, como uma abreviação de "Francis"), e embo-
seja chamado homem, e nada menos que a boa vontade universal
ra o sepulcro que tinha a lanterna (a famosa caverna abobadada)
possa satisfazer. E em verdade, sentem-se tão apreensivas com a
esteja descrito, não na Confessio, porém na Fama, essa citação prova
necessidade de bem servir, que tomam aos seus cuidados a cor-
que Wilkins, certamente, estava ciente dos manifestos rosa-crucianos.
poração inteira da humanidade.
Conforme já mencionei em outro lugar.P? a Mathematicall Ma-
E em maio de 1647 provavelmente ao escrever para Hartlib, gicle, de WHkins, está grandemente fundamentada na seção sobre a
Boyle torna a falar sobre o ."Colégio Invisível" e seus planos patrióticos. mecânica do livro Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd, publi-
cado em Oppenheim no Palatinado, em 1619, e o próprio Fludd ins-
O "Colégio Invisível" suscitou muita especulação como um pos-
pirou-se na idéia geral da matemática, ou assuntos vitruvianos, apre-
sível antepassado da Sociedade Real. O que era, onde s~ encontrava sentados por Dee, em seu Prefácio para Euclides, de 1570. Wilkins
e a quem pertencia? Referir-se-ia a qualquer grupo particular empe-
não oculta a sua dívida para com Dee e Fludd, mas reconhece com
nhado no estudo da filosofia natural, por exemplo, ao grupo de Haak, freqüência o prefácio de Dee e a obra de Fludd. Ele manifesta um
apenas iniciado em Londres? Ou ao grupo de Hartlib? 28 A descrição grande interesse nesse livro de autômatos, estátuas falantes e coisas
de seus conceitos caritativos talvez se adapte a ele. Mas este termo I parecidas, movimentadas pela mecânica-mágica. Descreve uma estátua
"Colégio Invisível" não nos parece estranho. É o ve~ho ludibrium:.. a
antiga pilhéria relativa à invisibilidade, sempre assocl~~ .a.os Irmaos I mago-científica falante de Memnon. Os interesses de Wilkins na mecâ-

I
nica aqui demonstrados, estão muito de acordo com a fase na moda,
R.C. e seu colégio. Descartes teve que prova~ a SU? v}s.lblhdade ~ara em Heidelberg, antes das catástrofes, e a sua citação das maravilhas
escapar de estar associado a ele. Bacon Co~h~cla a pll~er~a: o.s benévo- do túmulo de Christian Rosencreutz, na Fama, demonstram (julgo eu)
los Irmãos da Nova Atlântida e seu colégio eram lnVISIVelS para o que ele as interpretara como um ludibrium e não como maravilhas
mundo exterior. Adaptar-se-ia a quaisquer atividades da "Antilía" ou f
I cientificamente produzidas.
de qualquer grupo, como quer que fosse chamado, procedente de •
Andreae.
!
\
Wilkins também menciona, com freqüência) Lorde Verulam
(Francis Baeon) em seu livro, o que demonstra que nessa fase de sua
A expressão "Colégio Invisível", empregada por Boyle para o carreira ele não desassociava a ciência baconiana da tradição Dee-
grupo que veio a conhecer, sugere que embora a palavra "rosa-crucia- -Fludd. Ambas representavam "progresso do ensino". Declara ter
no" não seja usada, ele e seus amigos conheciam algo sobre ele, uma chamado seu livro "Matemática mágica", porque a espécie de inventos
vez que foram capazes de empregar o velho ludibriam. Assim sendo, mecânicos nele tratada foi assim denominada por Cornelius Agrippa.
temos aqui um encadeamento de tradição, levando do movimento rosa- I.
O livro é importante pelas suas informações sobre o ponto de
-cruciano aos antecedentes da Sociedade Real. vista de Wilkins e seus interesses em 1648, pois este foi o ano no
São essas as peças conhecidas do quebra-cabeça. Apresento agora qual se iniciaram as reuniões em Oxford, e confirmadas por Thomas
uma outra para consideração, i.é., o fato de John Wilkins - capelão Sprat em sua história oficial da Sociedade Real, que é consi~erada
do Eleitor Pala tino e pilar dos movimentos que levaram à Sociedade como tendo dado origem à Sociedade Real. 81 Nela não menciona o
Real, e da própria Sociedade Real - fazer citações da Fama rosa-cru-
29. john Wi1kins, Mathematicall Magicle) ou Tbe Wo"ders IHI ""., IH
ciana. Periormed by Mechanicall Geometry, Londres, 1648, pp. 256-7.
30. Tbeatre of lhe World, p, 51 n, 19.
28. Conforme sugerido por R. H. Syfret, "The Origina oi the Roya1 So- 31. Thomas Sprat, Hislory of the Royal Societ'Y, Londres, 1667. pp. " C li.
ciety", Notes and Records of lhe Royal Societ», 5 (1948) .

. 232
'I'

primitivo grupo de Londres, descrito por Wallis. Essas reuniões em


Oxford eram realizadas nos aposentos de Wilkins no Colégio Wadham, ,
~.
o suposto conhecimento público da Fama e da Conjessio pode
e ocorreram aproximadamente de 1648 a 1659, quando o grupo mu- ter estimulado john Webster, um puritano divino, a tornar-se conhe-
dou-se para Londres e formou o núcleo da Sociedade Real, fundada cido com um notável trabalho, no qual insiste que "a filosofia de
em 1660. Entre os membros desse grupo oxfordiano, encontravam-se Hermes ressuscitada pela escola paracelsista" deveria ser ensinada nas
Robert Boyle, William Petty e Christopher Wren. Descrevendo as universidades. 36 Webster analisa com profundidade o tipo de doutri-
nas ocultas nos manifestos rosa-crucianos, e insiste, como os demais,
"raridades" que vira nos aposentos de Wilkins, em Wadham, em 1654,
Evelyn diz que ele inventara uma estátua côncava que emitia palavras .I r
na substituição da escolástica aristotélica por um tipo de filosofia natu-
através de um tubo longo e oculto, e que ele possuía muitas outras ral hermético-paracelsista, mediante a qual é preferível ensinar a lin-
"curiosidades artificiais, relativas à matemática e à magia", 32 que suge- guagem da natureza a ensinar a linguagem das escolas. Sua única refe-
rem o ambiente e os interesses da sua Mathematicall Magick. rência à "Fraternidade Rosa-Cruz extraordinariamente esclarecida",
está associada com a "linguagem da natureza", da qual fala como um
Durante os anos que transcorreram com as reuniões em Oxford, segredo conhecido "do Teutão da Boêmia divinamente inspirado" e
1648-59, foram publicados muitos livros, em alguns dos quais devemos "até certo ponto reconhecido" pela Fraternidade Rosa-Cruz.P? uma
relancear os olhos, como sendo importantes para o modo como as interessante ( e indubitavelmente correta) apreciação da afinidade
coisas estavam se desenrolando nos anos que antecederam a Sociedade .
~ entre a Boêmia e os manifestos rosa-crucianos .
"
Real. Incluída na "filosofia de Hermes", Webster insere a matemática,
Um desses é certamente muito valioso para a história do rosa- principalmente como recomendada por john Dee em seu Prefácio para
-crucianisrno. Em 1652, Thomas Vaughan publicou uma tradução em Euclides, da qual faz citações por extenso, com elogios a Dee ver-
inglês da Fama e da Conjessio, com o pseudônimo de "Eugenius Phi- dadeiramente enlevados.v" Ele também reverencia aquele "homem
lalethes'L'" Esse foi realmente um acontecimento que marcou uma profundamente culto, Dr. Fludd" , 39 e tem a impressão de que se os
época. As traduções inglesas dos manifestos rosa-crucianos deviam ter autores iguais a esses - e seu livro é uma mistura de tipos de refle-
circulado em manuscritos muito antes disso, e de fato, a que Vaughan xões paracelsistas, agripinas e a análoga mago-científica renascentista,
publicou, não era a dele mesmo, mas de uma versão manuscrita muito com Dee e Fludd como seus favoritos - tivessem aprendido nas
mais antiga. 34 Que esses textos aparecessem agora em "cold print" e universidades "os arcanos e a magnalia da natureza", 40 atingidos por
em inglês deve ter concorrido para que os manifestos rosa-crucianos Francis Bacon, alcançariam a perfeição. Isto equivale dizer que Webs-
ficassem conhecidos por um público muito mais variado. Por que jul- ter considera Bacon como um tipo de pensador "rosa-cruciano", cujo
garam oportuno publicá-los nessa ocasião, ignoro. Vaughan foi o autor ensino precisa ser complementado - acima de tudo - pelo Prefácio
de outras obras místicas, nas quais menciona a ficção rosa-cruciana. da matemática de Dee.
Era irmão de Henry Vaughan, o poeta, e teve uma polêmica com No seio da Igreja Puritana, esse capelão Parlamentar realiza um
Henry More, o sectário do platonismo em Cambridge. Consta que o trabalho que está perfeitamente enquadrado na tradição mago-cientí-
patrono de Thomas Vaughan foi Sir Robert Moray, 35 posteriormente
muito influente na formação da Sociedade Real. 36. john Webster, Academiarum Examen, or The Examination 01 AcaJt-
mies, Londres, 1654. Sobre Webster, consultar P. M. Rattansi, "Paracelsus and
the Puritan Revolution", Ambix, XI (1963) .
32 . Evelyn, Diarv, ed. De Beer, lU, p. 110.
37. Webster, Examen, p. 26.
33. "Eugenius Philalethes" (Thomas Vaugham ), T be Fame and Conjession
of the Fraternity of R. C. Commonly of the Rasie Cross, Londres, 1652. Reedi- 38. lbid., pp. 19-20, 52. Webster descreve em linhas gerais a sinopse das
tado no fac-símile com um prefácio por F. N. Pryce, Margate, 1923 (editado para ciências matemáticas apresentada por "aquele homem culto e versado, Dr. John
a "Societas Rosicruciana in Anglia"). Consultar o Apêndice, p. 256. Dee, em seu Prefácio para Euclides", e emite exclamações ante "as experiências
excelentes, admiráveis e úteis" que elas propiciam, das quais, a menos importante
34. F. N. Pryce, prefácio, pp. 3·8. Pryce conclui que o manuscrito da tra- é de mais utilidade, benefício e proveito para a vida do homem, do que o en-
dução, que Vaugham estava usando, devia ter sido feito bem antes de 1633 e sino das universidades.
provavelmente antes de 1630. Consultar o Apêndice, p. 258. '
39. IbM., p, 10'.
35, Pryce, prefácio, p, 2,
40. Ibid., Epístola ao leitor) Sigo B. 2.
234
fica renascentista, culminando em Dee e Fludd, e julga que é isso o
da matemática que estão agora associando com o "entusiasmo" - o
que deveria ser ensinado nas universidades, juntamente com o baco- entusiasmo de ,um "puritano hipócrita" ou de um " f ra de meI anco'1'"
ICO .
nianismo, que ele considera incompleto sem esses autores. Webster
ignora o fato de que Bacon afirma expressamente ser contra a filosofia O caminho estava agora preparado para o desencadeamento de
macromicroscómica dos paracelsistas, e está sob a impressão de que um temor à feitiçaria, um fenômeno do qual já tivemos conhecime~to
Bacon pode reconciliar-se com ela. E ele parece ressaltar a omissão de nos capítulos anteriores, e que agora tomava a forma de uma publica-
Bacon da matemática de Dee . ção, destinada a arrasar a reputação de Dee por uns trezento~ anos~ e
confundir a história do pensamento, afastando de suas considerações
Seth Ward, um dos predecessores da Sociedade Real do grupo ponderadas uma de suas mais importantes figuras.
Oxford numa reunião aí realizada, e desta vez sob a égide de Wilkins,
Essa foi a publicação em 1659 do Diário Espiritual de Dee, ou
repreendeu severamente a Webster em seu Vindiciae Academ~ar.um
as informações de suas supostas conversas com os anjos, e com um
(1954-f:l41 Ward fica muito irritado com We?ster, por ten.tar ~ssImtl~r
prefácio condenatório por Meric Casaubon, acusando Dee de mágico
Bacon a F1udd: "no mundo inteiro não existem duas direções mais
diabólico. 45 Parece que Casaubon tinha motivos particulares para essa
opostas do que as de L. Veru!arr; ~ D: FI~dd" s~ndo u~a~2 baseada .na publicação, através da qual esperava esta~elecer sua, pr~pri~ ~;t~doxi~,
experiência, e a outra, nos rac~o~In~OS ideais mtsticos . . . \yard fica
visando também aqueles que afetavam tamanha mspiraçao , isto e,
desgostoso com o Discurso hipócrita de Webster, sobre a linguagem
contra os "entusiastas". O Governo foi contra a publicação do livro, e
da Natureza, no qual ele aprova a fr~te~?i~3ade dos ~osa-cru.cian~s tentou impedi-la, sendo, porém, incapaz de fazê-lo, pois em pouco
como sendo extraordinariamente esclarecida". Ward ainda vai mais tempo fora apresentado como "uma grande e curiosa novidade". Não
longe, a ponto .de dizer que s.~s~eita de Webster, ~er um frade, e há dúvida de que passará muito tempo, antes que os motivos escusos
compara a sua linguagem entusrastica sobre o Prefácio de Dee a elo- da publicação desse livro sejam completamente. deslindados. O ano da
cução de algum "frade lamuriento": - "suplicando (tal. qual um publicação é significativo, 1659, quando Ohver Cromwell faleceu,
frade lamuriento a Nossa Senhora de Loreto - ou outra Igual) ao quando o governo fraco de seu fil~lO estava ~riginando ? caos, e quan-
sobrinho da Rainha Fada, e proferindo um discurso para ela, feito ~or do ninguém sabia o que ocorreria em seguida, E, evidentemente, o
John Dee em seu prefácio ... " 44 Essa pa:ece uma lingu~gem mU1~o que aconteceu em seguida foi a Restauração de C~:los I! em }6~O,
estranha, partindo do grupo Oxford, principalmente depois que Wtl- sucedendo ao regime de Cromwell. Quem eram os entusiastas VIsa-
kins - chefe do mesmo - há seis anos apenas, havia insinuado aber- dos na publicação de Casaubon, desmoralizando-os e excluindo-os do
tamente a tradição Dee-Fludd para o seu trabalho sobre a "matemática prestígio nos anos que se sucederiam?
mágica".
A publicação do diário ~e Dee ~erta~en~e fez parte de uma
O que estava acontecendo com o grupo ?::rford? Sugiro,. como campanha geral contra os entusiastas e illuminati, sendo fomentad~ na
uma possibilidade, que entre eles deve ter-se verificado um movImen.to época. 46 Em seu prefácio, Casaubon declara que Dee, tal qual Trithe-
para desassociá-lo o mais completamente possível da acusação da magia,
nius e Paracelso, era inspirado pelo demônio. A menção de Paracel~o
até hoje em perigo para grupos científicos. Pa,:a. isto,. eles int~nsifica~
a interpretação de Bacon como professor da filosofia experimental , livra inteiramente o movimento rosa-cruciano. Essa campanha destruiu
livrando-o de todas as outras associações, enquanto simultaneamente a reputação de Dee, e durante alguns séculos privou-o da fama mere-
e com todo cuidado se distanciam do prefácio de Dee e da sua tradição cida pelo seu importante trabalho cient~f~co. Robert ~ooke, que sen~o
considerado um dos melhores maternáttcos da SOCIedade Real, tena
41 . Seth Ward, Vindiciae Academiarum, Oxford, 1654. A carta laudat6ri~
para Ward, que está impressa como um prefácio do livro, é habitualmente atri- 45. john Dee A True and Foithful Relation of wbat passed for many Years
buída a Wilkins, o qual, entretanto, não é mencionado pelo nome, e a carta está Beuoeen Dr. [obn Dee. . . and Some Spirits, ed. Meric Casaubon, Londres, 1659.
assinada "N. 5.". Sobre este livro e seus efeitos na reputação de Dee , consultar French, [ob« D~.
42 . VindicitJe, p. 46. pp. 11-13. john Webster publicou uma defesa de Dee, na qual expunha os mono
vos de Casaubon pata a publicação (lohn Webster, Tbe Disp14yilll o/ SIIPpon_
43. tsu., p. 5. Witchcraft, Londres, 1677).
44. lbid., p. 1'. 46 . Rattansí, "Paracelsus and the Puritan Revolution", p. )1 .
"1- t , ,(,s~ "
2.36 2)1
conhecido o trabalho de Dee, tentou posteriormente salvar sua repu- e os homens ansiavam por esquecer o passado e voltar aos trabalhos
tação, declarando que os Diários Espirituais representavam uma "his- pacíficos. Neste ambiente conciliador, foi fundada a Sociedade Real,
tória dissimulada da Arte e da Natureza". relacíonada com os acon- tendo Carlos II como seu patrono. Ela incluía certo número de ho-
tecimentos contemporâneos. 47 mens que tinham estado nos anos anteriores do Iado do Parlamento; a
Como os filósofos comuns agiam tendo em vista a efetuação ciência incumbiu-se de uni -los com os realistat-huma cooperação pací-
~a. Socie~ade Real, tinham que ser muito cautelosos. As paixões re- fica, contudo, a situação era escabrosa. Havia muitos assuntos que
ligiosas ainda estavam no auge, e um terrível temor à feitiçaria podia deviam ser evitados : os esquemas para a reforma pertenciam ao pas-
surgir a qualquer momento, anulando, assim, seus esforços. Desse sado revolucionário, que devia ser esquecido no momento. A Socieda-
modo, abandonaram Dee, tornando o baconianismo tão inócuo quanto "de tivera inúmeros inimigos nos anos anteriores; a sua situação reli-
lhes foi possível. giosa parecia dúbia ; os temores da feitiçaria ainda não representavam
Perguntamo-nos o que fizeram com as referências aos Irmãos R.C ., totalmente uma coisa do passado.
à sua invisibilidade e seu colégio na Neto Atlantis. Certamente, devem O regulamento que prescrevia que assuntos religiosos não deve-
ter reconhecido a ficção de Christian Rosencreutz e a sua Ordem be- riam ser discutidos nas reuniões, mas apenas problemas científicos,
névola oculta sob a ficção da Nova Arlânrida. E não quiseram esquecer pareceu uma precaução criteriosa, e nos primeiros anos, a persistência
esse paralelo, pois entre 1658 e 1664 - exatamente os anos antes e baconiana nas experiências, na coleta e testes de informações cientí-
depois da Restauração e da fundação da Sociedade Real - aquele ficas orientou os esforços da Sociedade. Uma Sociedade permanente
estranho personagem, John Heydon, que abandonara todos os prece- para o progresso da ciência natural surgira por fim - uma instituição
dentes, clamando em alto e bom som que era rosa-cruciano, publicou real e visível, não imaginária e invisível. Era, porém, muito restrita em
uma série de trabalhos, nos quais a tendência rosa-cruciana para um seus objetivos, quando comparada com os antigos movimentos. Não
utopianisrno fantasista atingiu culminâncias jamais alcançadas anterior- considerava o progresso da ciência, dentro de uma sociedade reforma-
mente. Heydon é um astrólogo, um geomante, alquimista do tipo mais da, e dentro de uma reforma universal do mundo inteiro. Os Membros
radical. Em seu The Voyage to the Land of the Rosicrucians (1660), da Sociedade Real não estavam interessados em curar os enfermos, e
e no Tbe Holy Guide (1662) indica o mais claramente possível os fazê-lo gratuitamente, e tampouco em esquemas para a reforma da
paralelos entre a New Atlantis, de Bacon, e a Fama Fraternitatis, por educação. Esses homens poderiam não ter tido idéia do que se encon-
meio dos quais os homens eruditos da "Casa de Salomão", de Bacon, trava na vanguarda do movimento que estavam encorajando. Para eles,
tornam-se os homens eruditos da "Sociedade dos Rosa-Crucianos". a sua fraqueza seria mais aparente do que sua força, em face dos
perigos de extinção que ainda a assediavam . Tinham conseguido fazer
Esses paralelos entre as fantasias de Bacon, na New Atlantis, e
de um Colégio Invisível, um real e visível, e a fim de preservar sua
as ficções da Fama rosa-cruciana, incontestavelmente existem, e nós já
existência precária, era necessário uma grande cautela. Tudo parecia - .
assinalamos a sua importância num capítulo anterior. 48 Que Heydon
e era - muito sensível. E embora a experiência baconiana não fosse
escolhesse considerar esses paralelos e os pusesse em destaque justa-
por si mesma o caminho ideal para o progresso científico, apesar disto,
mente nessa ocasião é de fato curioso, e julgo que ele deveria ter-se
a Sociedade Real, tão respeitável, tão bem-organizada, era uma mani-
inteirado do contexto da campanha contra os "illuminatí" e o desmo-
festação evidente de tudo quanto a ciência conseguira. Nada poderia
ralizado Dee.
detê-la agora.
O que Heydon realmente pode estar dizendo aos baconianos tal-
O livro de Comênio, The Way o] Ligbt , escrito na Inglaterra por
vez ~eja: - "O vosso Francis Bacon era, sem dúvida, um rosa-
-crucíano". ocasião da esperança e do iluminismo, foi publicado em Amsterdã em
1,668, vinte e seis anos depois, e quando a Sociedade Real contava
A Restauração de Carlos H, em 1660, transcorreu com uma oito anos de existência. Ele dedicou-o a essa Sociedade com um pre-
incrível tranqüilidade; o exército parlamentar debandou calmamente, fácio entusiasta. O idoso Irmão da Boêmia cometeu °
estranho erro
~7. R. Hooke, Poslhum~us Works, Londres, 1705, pp. 204 e 55. Hooke de dirigir-se aos Membros como "illurninati". 49 .

deveria ter sabido algo a respeito da missão de Dee na Boêmia.


49. Tbe Wayfi Lighl, trad . Campagnac, p. .3.
48 . Consultar anteriormente, p. 173.
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Aos Portadores do Archote deste Século Iluminado, Membros Em 1667 o relato oficial das origens e desenvolvimento desse
da Sociedade Real de Londres, trazendo agora à luz a verda- grande empreendimento foi publicado: fIistory of tbe Royal Society,
deira filosofia, saudações e prosperidade. de Thomas Sprat. A Sociedade é considerada como tendo resultado
Ilustres Senhores, das reuniões, em O xford, de um grupo de pessoas interessadas na
Não é uma incongruência que um livro, com o título The Way filosofia experimental e natural - o grupo que se encontrara no Colé-
of Ligbt, fosse a vós enviado, ilustres homens que sois, cujo gio Wadham a partir de 1648 em diante, e tornara-se o núcleo da
Sociedade Real. Sprat nada disse a respeito de um grupo mais antigo
esforço para trazer à luz a Filosofia Natural, proveniente das
em Londres, ou a respeito da insinuação de ter sido Theodore Haak.,
mais profundas nascentes da Verdade, está sendo proclamado e
do Palatinado, quem primeiro sugeriu essas reuniões . Aquele primeiro
publicado pela Europa inteira . E está bem assim, uma vez que o
grupo nos teria levado de volta e demasiadamente longe, no que se refere
trabalho foi concebido naquela região, onde o território a nós
às veementes idéias revolucionárias da época do Parlamento, e Sprat
-oferecido, para a busca da Luz e da Verdade, passou ao vosso
quer dar a impressão de que a Sociedade começara com as tranqüilas
encargo, de acordo com as palavras de Cristo (apropriadas pelo
reuniões em Oxford. .
próprio sentido para este momento): Outros labutaram, e vós
participastes de seus labores. ' Sem embargo, a Verdade é grandiosa, e apesar de tudo, tem ten-
dência a prevalecer. Para finalizar este capítulo, lancemos um olhar ao
~ evidente que Comênio encontra-se sob a impressão de que , a frontispício conhecido do livro de Sprat (Fig. 30). No centro vê-se o
Sociedade Real é a herdeira de seus primitivos labores e os de seus busto de Carlos lI, o fundador real, com Francis Bacon à sua esquerda,
amigos . Não sente inveja disso, e é com alegria que ouve novamente e William Brouncker, o primeiro presidente, à sua direita . Ainda no
os sons da trombeta. 50 lado esquerdo, vê-se uma estante de livros usados pelos membros da
Sociedade e um conjunto de instrumentos por eles usados em seus
No mundo inteiro será apregoado que estais empenhados nos trabalh~científicos . Esse frontispício foi desenhado por john Evelyn
labores, cujo objetivo é garantir que o conhecimento humano e e gravado por Wenceslas Hollar, um artista da Boêmia, que saiu desse
o domínio da mente humana sobre a matéria não continuará a país, provavelmente por motivos religiosos, em 1627, tendo sido apren-
ser para sempre uma coisa frágil e incerta. diz de Matthieu Merian, em Frankfurt. 53 Essa história faz com que
olhemos com maior interesse para a gravura , na qual observamos o
Comênio também pronuncia palavras de advertência. Os alicerces anjo com asas proeminentes, soprando uma trombeta e coroando. Carlos
foram assentados por essas novas investigações na Natureza, mas terão II com a grinalda de louros, como fundador daquela famosa SOCiedade;
levado em consideração o que vai ser construído sobre esses alicerces? / Bacon encontra-se sob a asa do anjo. Agora não podemos deixar de
Se as finalidades, além do desenvolvimento das ciências naturais em si notar isso, e perguntar-nos se poderia ter sido uma alusão às palavras
mesmo, não estiverem sendo consideradas, o trabalho poderá vir a ser "sob a sombra das asas de Jeová", e se o toque de trombeta do anjo,
"uma Babilônia de cabeça para baixo e construída não na direção do destinava-se a lembrar a Fama, e aquelas esperanças tão antigas, tão
céu, mas na direção da terra". 51 proteladas, e agora, finalmente, realizadas.
Comênio foi ridicularizado por não ter percebido quão diferentes
eram, os objetivos da Sociedade Real, dos antigos ideais da pansofia.
Creio, porém, que ele entendeu. E julgo também que historicamente
ele estava -cer to na ligação que via entre a Sociedade Real e seus pró- peito das academias francesas no' início do século XVII, em meu livro Frtrteb
prios antigos esforços e os de sua geração. 52 E talvez tivesse razão Acaâemies of the Sixteentb Century, pp. 275 e ss ), contudo, suas ligações orgA.
quanto à, sua advertência. nicas com o tipo de "academia" prenunciadas nos manifestos rosa-crucianos do
provadas pelo que sabemos das alusões de Bacon sobre elas, na New AI14"tis,
ius.. p. 11.
.50 . porquanto as obras de Bacon exerceram grande influência nos primeiros mem-
.51. Ibid., p. .51. bros da Sociedade Real .
.52. ~ evidente que a Sociedade Real também estivesse influenciada por 53. Consultar Hollar, Wenzel, em AJlge",e;~s úxicotf tlff a;uttNnt
movimentos acadêmicos mais recentes, principalmente na França (comentei ares- KÜnstler.

2'40 ~1
\ ~
século XVII , um movimento que influenciou muitas figuras insignes.
A alquimia paracelsista representou uma força predominante na medi-
cina moderna; a química de Robert Bole foi uma filha do movimento
alquímico; e havia um antecedente extraordinário da alquimia, até
mesmo na mente de Isaac Newton.
O renascimento alquímico, como um fenômeno histórico, não
CAPÍTULO XIV recebeu por enquanto um tratamento histórico. A alquimia, como arte
hermética por excelência, pertence à tradição hermética ; porém, a
renovação da alquimia não foi digna de atenção como parte da reno-
ELIAS ASHMOLE E A TRADIÇÃO DEE vação da tradição hermética na Renascença italiana. Com o advento
de Paracelso, surgiu um tipo de alquimia reformada e renascente, e
Isaac Newton e a Alquimia Rosa-Cruz para a sua tradição, lohn Dee prestou a sua colaboração. A tríplice
i
corrente da "Magia, Cabala e Alquimia" flui através dos manifestos
Enquanto a primeira Sociedade Real parecia estar excluindo cau- i. rosa-crucianos , caracterizando a inclusão da alquimia na tradição her-
telosamente os tópicos perigosos, concentrando-se no baconianismo mético-cabalística.
I
idôneo, evitando toda e qualquer referência aos manifestos rosa -cru- Um notável missionário do {movimento da alquimia foi Michael
cianos (a não ser indiretamente numa página de rosto), e evidente- Maier, cuja vida de trabalho fortuma coletânea e publicação de textos
mente desviando-se de toda alusão a John Dee, agora tornado famoso alquímicos, e alJdifusão de sua filosofia religiosa alquímica mediante
pelos escritos de Casaubon, seu quadro de sócios incluía pelo menos suas próprias publicações. Vimos que Maier foi o mais importante no
um homem erudito, no qual a tradição Dee estava ainda muito viva. movimento em torno de Frederico, o Eleitor Palatino, e que a alquimia
Para Elias Ashmole, Dee representava um mago imensamente respei- estava associada a esse movimento e com a atração que exerceu na
tado, cujos trabalhos ele colecionava, e cujos ensinamentos alquímicos Boêmia. 2 Perguntamo-nos até que ponto o movimento da alquimia na
e de magia, ele tentava pôr em prática. A presença de Ashmole na Inglaterra e durante o século XVII pode ter sido estimulado pelos
Sociedade Real, como membro fundador 1 representa uma importante refugiados, oriundos da Alemanha e da Boêmia. Vimos como Daniel
indicação de que o "rosa-crucianisrno" - caso este devesse ser iden- Stolcius, o boêmio exilado, que amenizou sua tristeza com os emblemas
tificado com influências de Dee - ainda encontrava um lugar dentro de Maier, foi para a Inglaterra; 3 e deve ter havido outros iguais a de.
da Sociedade, mesmo se apenas como um interesse particular de um Como principal representante do movimento alquímico na Ingla-
de seus membros. terra, no século XVII, Elias Ashmole poderia representar um ponto
Elias Ashmole (1617-92) era um realistfJ-fiel, que viveu isolado de partida para a exploração desses assuntos . Aquela coletânea de
durante as guerras civis e enquanto a república inglesa prosseguia em manuscritos - os documentos de Ashmole - não é apenas o trabalho
seus múltiplos interesses. Alquimista, astrólogo, antiquário, coleciona- de um antiquário, de um homem vivendo no passado (embora essa
dor pertinaz de documentos do passado, as origens de Ashmole encon- faceta de Ashmole fosse muito marcante) j ela encerra também uma
travam-se radicadas naquele universo hermético, governado por corres- grande evidência do movimento alquímico .contemporâneo - podería-
pondências sobre a magia, procedente da nova ciência que estava mos quase dizer o moderno - na Inglaterra da sua época .
surgindo. Todavia, não era exatamente antiquado, pois seu interesse Entre aqueles documentos, o investigador dos manifestos rosa-
na alquimia reflete uma renovação ou renascimento da mesma no -crucianos encontra um fenômeno curioso. Elias Ashmole deu-se ao
trabalho de copiar de próprio punho uma tradução inglesa da Fam.
1. O nome de Ashmole foi mencionado na primeira reunião da Sociedade
Real, como um daqueles adequados para ingressar em seu quadro; fora anterior- e da Conjessio, e de juntar a essas cópias uma carta em latim e tlIll-
mente eleito um de seus membros, em janeiro de 1661, tornando-se assim um
dos 114 membros fundadores; consultar C. H. josten, Elias Asbmole, Oxford, 'I
:2. Consultar anteriormente, pp. 118 e S5.
1966, I, p. 135. \ I
3. . Consultar anteriormente, pp. 125·26. \\
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bém escrita de próprio punho, endereçada aos "mais esclarecidos Ashmole inclui somente os alquimistas ingleses; Maier, porém, inte-
Irmãos da Rosa-Cruz", solicitando-lhes permissão para ingressar em ressara-se principalmente pela alquimia inglesa, e publicara uma tradu-
sua Fraternidade. 4 Esse modo de endereçar a carta deJIlonstra o entu- ção em latim do Ordinall of Alchemy, de Thomas Norton;? poema
siasmo pela Fraternidade, porém vago, consistindo elaf.tm grande parte em inglês de um famoso alquimista medieval inglês, cuja versão origi-
de citações tiradas da Fama e da Conjessio. O original da tradução ! nal nesse idioma foi publicada pela primeira vez por Ashmole em seu
inglesa dos manifestos que Ashmole copiou, encontra-se entre seus j
Theatrum de 1652.
documentos, 5 escrito à mão no início do século XVII, e sem dúvida, 1 Seria agora evidente para o leitor atento do T beatrum, de Ashmo-
não posteriormente ao reinado de Carlos I. Não é a mesma versão
inglesa publicada por Vaughan, e sim uma diferente .
II le, que essa obra, em matéria de simpatia, era "rosa-cruciana", e que,
I
de fato, representou uma espécie de continuação do renascimento da
O procedimento de Ashmole poderia parecer ter sido copiar de alquimia inglesa de Michael Maier no movimento rosa-cruciano alemão.
próprio punho um manuscrito de uma tradução inglesa dos manifestos Isto, porque no parágrafo inicial do Theatrum , Ashmole faz uma cita-
em seu poder, e à guisa de introdução dedicá-la pessoalmente a~s ção da Fama e fala dos esforços de Maier para popularizar a alquimia
Irmãos R.C. manifestando profunda admiração por esses homens escla- inglesa na Alemanha. Foram estas as suas palavras : 8
recidos e solicitando-lhes autorização para ingressar em sua Ordem.
Não creio que ele estivesse dirigindo-se a qualquer grupo contempo- Nossos filósofos ingleses (tal qual os profetas) em geral, foram
râneo real de "rosa-cruzes". Julgo que toda a operação tinha o caráter pouco homenageados... em seu próprio País: tampouco pro-
de uma composição escrita religiosa. Ashmole sabia que, para aqueles duziram obras dignas de consideração entre nós, exceto ao minis-
que aprovavam os objetivos revelados nos manifestos, era correto trar dissimuladamente a sua Medicina a alguns enfermos, e curá-
dirigir-se aos 'Irmãos R.C. Ele se identifica com os manifestos, escre- -los ... Assim fez LO. (um dos primeiros quatro seguidores dos
vendo uma dedicatória reverente aos Irmãos imaginários . O fato de Membros dos Irmãos R.C.) ao curar o jovem Conde de Norfolke
copiar por extenso os manifestos e~ seu pedido foi por si mesmo que sofria de lepra. . . Mas nas regiões do exterior, eles tiveram
uma súplica, provavelmente uma composição escrita religiosa, inteira- uma Recepção mais insigne, e o mundo sentiu-se ávido por
mente pessoal. obter seus trabalhos; ou melhor (quis vislumbrar o que neles
Um olhar de relance para a vida interior de Ashmole é uma intro- se continha) satisfeito em poder fazê-lo através de uma Tradu-
dução valiosa ao estudo de seu conhecido livro - já publicado - o ção, embora jamais tão imperfeita: Vêde o que fez Maierus . . . e
Tbeatrum Cbemicum Britannicum (1652), 6 Esta coletânea de manus- muitos outros; o primeiro dos quais saiu da Alemanha para viver
critos alquímicos foi muito importante ao estimular o movimento na Inglaterra; propositalmente deu a conhecer que dominava
contemporâneo alquímico na Inglaterra. É uma coleção de manuscritos nosso idioma inglês, a ponto de traduzir em versos latinos o
alquímicos de um tipo semelhante ao dos "teatros" ou coletâneas de "Ordinall" (Livro de Ritual), de Norton, fazendo-o o mais cri-
elementos alquímicos que tinham sido publicados no início do movi- teriosamente e doutamente; todavia (diga-se para nossa vergo-
mento da alquimia alemã do século XVII, o qual derivou em parte nha), o seu Entretenimento redundou em demasiadamente gros-
do incentivo proporcionado por Michael Maier aos estudos .alquímicos, seiro para um erudito tão louvável.
como parcela do movimento rosa-cruciano (Fig. 26b) , A coleção de
A história sobre o legendário Irmão R.C. que curou a lepra do
4. Biblioteca Bodleian, Ashmole MSS., 1459; pp. 280-2 (Endereçada em jovem conde na Inglaterra tem sua origem na Fama,1I e Ashmole
latim: "Fratribus Rosae Crucis illumínatissimis"); pp. 284-31 (Trad. inglesa da
FlUna e da Conlessio). Consultar W. H. Black, Catalogue 01 the Asbmolean Ma· imediatamente apresenta o relato sobre Maier sentir-se ansioso por
nuscripts, 1845, no. 1459. difundir no exterior a alquimia inglesa, e como tinha ido para a Ingla-
5. Ashmole MSS., 1478, ff . 125-0, Black, Catalogue, observa que essas tra-
duções da Fama e Conjessio parecem ter sido transcritas por Ashmole em 1459. 7. Essa tradução de Maier foi publicada em seu Tripus mreta, Frankfurt
6. Elias Ashmole, Tbeatrum Cbemicum Britannicum, Londres, 1652; reedi- (Luca Jennís), 1618; consultar Prelude to Chemistry, pp. 169 e 55.
tado no fac-símile com uma introdução por AUen G. Debus, johnson Reprint Cor- 8. Ashmole, Tbeatrum, Prolegomena, sigs A 2 recto e ~SO.
poration, Nova York e Londres, 19p7. \ ~ ~ "
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9. Consultar o Apêndice, p. 301. '.

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terra , a fim. de aprender esse idioma e assim poder traduzir Norton , ataques contra ele devido à feitiçaria, feitos após sua volta, e tampouco
não tendo sido, entretanto, seus esforços encorajados . o fato de Jaime I não tê-lo prestigiado. Deixando de lado todos os
I , boatos, Ashmole afirma convictamente que Dee merece " os encômios
" Diga-se para nossa vergonha" - é por ter Maier recebido um
tratamento severo pelos seus esforços literários. Lendo nas entrelinhas r de todos os Homens Eruditos e Talentosos , e de ser lembrado por
suas notáveis aptidões ". Notabilizou-se principalmente nos estudos da
das observações de Ashmole , e à luz do que agora sabemos sobre o matemática, "em todos os setores da qual era um mestre absoluto e
movimento rosa-cruciano na Alemanha, tem-se a impressão de que ele perfeito". 15
conhecia a atribuição de Maier como um intermediário entre a Ingla-
terra e a Alemanha, ao fomentar o movimento alquímico como fazendo
I
1
O pequeno poema chamado "Testamento" do Dr. Dee no Tbea-
parte da estruturação de uma aliança Anglo-Pala tina-Boêmia 10 - o I trum Cbemicum Britannicum é uma descrição em termos velados da'
i famosa "monas".
movimento que Jaime I não encorajara. Maier recebera realmente um
tratamento severo , como resultado da sua confiança imerecida na alian- Através de suas alusões a Dee e a Maier no T beatrum , Ashmole,
ça inglesa; ele morrera - não sabemos como - logo após a deflagra- segundo considero, está indicando urna ligação de Dee com o movi-
ção da Guerra dos Trinta Anos . Começamos agora a compreender mento rosa-cruciano alemão. E ele estava ciente dos riscos que esse
como o T beatrum Cbemicum Britannicum, de Ashmole, representa, movimento encontrou: 16
todavia, um daqueles esforços visando restaurar, ou continuar, um
movimento que fora sinistramente interrompido pelo colapso da causa não é menos absurdo do que estranho ver corno alguns ho-
do Rei e da Rainha da Boêmia. mens. .. não se absterão de classificar os Verdadeiros Magos
como Feiticeiros, Necromantes e Bruxos. '. os quais intromete-
O Tbeatrum Cbemicum Britannicum inicia-se com o Ordinall, de
ram-se ousadamente na Magia, corno se Swine devesse entrar
Norton, e contém muitos outros manuscritos de alquimistas ingleses,
num Jardim encantado e (mediante um Pacto com o Demônio)
incluindo um de George Ripley , cujo trabalho fora também admirado
fazer uso de sua colaboração para contrafazer e corromper a
no círculo de Maier. 11 E Ashmole continuou a sua coletânea de escri-
admirável sabedoria dos Magos, entre os quais existe uma dife-
tores alquímicos ingleses, até as épocas mais recentes, incluindo um
rença tão grande quanto a existente entre os Anjos e Demônios.
poema alquímico considerado corno sendo de Edward Kelley 12 e alguns
versos delineados como "O Testamento", de john Dee. 13
Ashmole está assim defendendo Dee corno sendo um bom mago,
Em seu comentário sobre o trabalho atribuído a Kelley, Ashmole e defendendo-o com pleno conhecimento de sua carreira.
narra a história de Dee, 14 discorrendo sobre a sua competência em É evidente que Ashmole ainda não era um membro da Sociedade
estudos da matemática e o brilho habitual de seu trabalho científico, Real, que ainda não fora instituída quando ele publicou esse livro em
a prevenção contra ele e a hostilidade à sua coleção de livros, a sua 1652. O livro, porém, era bem conhecido, o que não impediu de
partida para o continente com Kelley, o domicílio em Trebona na Ashmole ser convidado a ingressar na Sociedade Real em 1666, como
Boêmia, onde as supostas transmutações deste último suscitaram gran- um dos membros fundadores.
de emoção, a briga com Kelley, e finalmente a volta de Dee para a
Inglaterra. Ashmole observa que a Rainha Elisabete continuara a
I
O tipo de alquimia, pelo qual Ashmole estava tão interessado,
" pode ter sido a "rosa-cruz". Com isto quero dizer a alquimia conforme
favorecê-lo após ter ele regressado, porém não menciona os reiterados
revista e reformada por John Dee, e da qual a sua "monas hieroglífi-
10 . Consultar anteriormente, pp. 118 e ss, ca" representou a misteriosa sinopse. Esta alquimia incluía um intenso
11. Entre os representantes da alquimia inglesa, na coletânea editada por revivescimento da velha tradição alquímica, mas de certa forma acres-
Maier, sob o título Symbola Aurea Duodecim Nationum (Frankfurt, Luca jennis, centava, aos conceitos alquímicos básicos, noções e práticas derivantes
1617), constam Rogério Bacon, Ripleyj.Norton e Edward Kelley; consultar Read, da Cabala, tendo também o conjunto uma formulação matemática. O
Prelude, p. 227.
12. Tbeatrum, pp. 324 e ss, I 15. uu, p. 480.
13. tu«, p. 334.
16. Ibid., p. 443.
14. Ibiâ., pp, 4804.

246
I
1 247
, adepto .enfronhado nessas fórmulas podia movimentar-se para cima e
para baixo na escada da criação, para fora da matéria terrestre através
d~s céus na direção dos anjos e de Deus. Esta concepção antiquíssirna
cal Wedding, de Andreae.F' A Ordem da [arreteira e o fato de ter
sido outorgada ao Eleitor Palatino formaram uma corrente importante
foi de certo modo trazida à vida por um novo caminho através da para o desenvolvimento do movimento de Frederico, cuja desgraça
integração com os métodos cabalístico e matemático. Contudo Ashmo- envolvera a Jarreteira em sua queda. 22 Ela representara a aliança ingle-
le não possuía o brilhante equipamento matemático, que para um sa e ficara coberta de ignomínia nas sátiras inimigas daquele Rei. Deste
homem de talento igual a Dee, acima de tudo, fizera da "monas" uma modo , é provável que a restauração da dignidade da Jarreteira, na
declaração de união, uma visão do Deus Uno por trás da criação. mente de Ashmole, estivesse associada à tradição alquímica inglesa em
seu outro livro, o Theatrum Chemicum Britannicum .
Ashmole, o alquimista, era o sósia de Ashmole, o antiquário, o
colecionador de documentos históricos e um zeloso conservador dos As lembranças de um passado calamitoso devem certamente ter
vestígios do passado. Esse duplo papel fora também uma caracterís- sido reviv~das, quando o jovem Príncipe Carlos, Eleitor Palatino e
tica de seu herói, John Dee, cujos estudos de arqueologia, 17 principal- neto dos infortunados Rei e Rainha da Boêmia, foi apresentado a
mente a inglesa, tinham sido quase tão importantes para ele quanto Ashmole, e "muito discutiu com ele sobre a Ordem da Jarreteira".23
seus interesses científicos. Isto ocorreu em 1690. O jovem Eleitor acabara de suceder ao seu
pai (Carlos Luís, o patrono de Hartlib) no Palatinado e estava via-
O entusiasmo de Ashmole como antiquário foi também dirigido
jando pela Inglaterra. Ashmole presenteou o jovem príncipe com um
para a história inglesa, sob a forma de narrativa da Ordem da Cava-
exemplar de seu livro, e este, por sua vez, presenteou-o com a medalha
laria Britânica, a Ordem da Jarreteira. 18 Ele começou por acumular
da Jarreteira que pertencera ao seu pai, uma medalha de ouro exibin-
material para um livro sobre esse assunto, em 1655; foi eventualmente
do Carlos Luís usando o colar e a imagem de S. Jorge da Ordem. Em
publicado em 1672 com uma dedicatória a Carlos lI, e uma cópia do
Heidelberg, após o regresso do Eleitor, o livro de Ashmole circulou
mesmo convencionalmente apresentada por John Wilkins à Sociedade
pela corte, e durante horas foi o motivo de discussão sobre "as curio-
Real. 19 O livro é um marco da cultura de antiguidades, e ainda não
sidades" que continha. 24
ultrapassada como a principal autoridade no seu assunto. No prefácio,
Ashmole fala sobre a sua apreensão ao ver a reputação da jarreteira Desse modo, Ashmole, alquimista e antiquário, pode estar olhan-
espezinhada durante "aqueles dias malfadados" das guerras civis. Sua do por trás do movimento que falhara, e procurando reabilitar sua
intenção era a de renovar a imagem da Ordem, como um passo dado memória no presente. E tanto como alquimista como em seu interesse
em direção à Restauração. Quando seu grande livro foi publicado, pelas antiguidades, Ashmole está seguindo a tradição Dee.
foram enviados exemplares para o exterior, quase como embaixadas Em pouco tempo, a Sociedade Real deixava para trás a "expe-
junto aos potentados estrangeiros. riência baconiana", e a segunda geração dos Membros foi dominada
Ao se referir à "Magnificência das Embaixadas enviadas aos Reis pela extraordinária figura de Isaac Newton, um dos maiores gênios da
e Príncipes estrangeiros juntamente com o Hábito", 20 Ashmole cita matemática. Como é sabido, Newton, além de suas descobertas sensa-
as palavras de Cellier na narrativa sobre a embaixada enviada, a fim cionais, tinha outros interesses, sobre os quais mostrou-se bastante
de conferir a Jarreteira a Frederico, Duque de Württemberg, em 1603, reservado durante sua existência, havendo, porém, certeza dos mesmos
cerimônia que deve ter exercido uma grande influência na imaginação na grande quantidade de seus documentos não-publicados. Um deles,
de Johann Valentin Andreae, podendo ter contribuído para a criação refere-se à alquimia, e nos últimos anos a curiosidade relativa a essa
da lenda relativa a "Christian Rosencreutz", e o nascimento do Cbemi- faceta de Newton esteve aumentando. Pode ser verdade que esse gran-
21. Consultar anteriormente, PP. 52-4, 98.
17. Consultar French, ]ohn Dee, pp. 188 e 5S.
22. Consultar anteriormente, p. 41.
18. Elias Ashmole, Tbe Institution, LaW$ and Ceremonies of tbe mos!
Noble Order o/ the Garter, Londres, 1672. 23. Josten, Asbmole, I, pp. 237-8.
19. Iosten, Asbmole, I. p. 182. 24. IbM., pp. 238, 240-1. Uma "curiosidade" no livro, observada em Hei.
delberg, é a ilustração mostrando uma medalha distribuida "no ano em que Fte-
20 . Ashmole, Gsrter, pp. 411-16. derico, Príncipe Palatino do Reno, foi coroado Rei da Boêmia" (Gari". ~~.
De um lado mostra a Jarreteira. e do outro, os Leões do Palatinado e da •
248
249
I
L
._ -_ -
de ~erói da ciência ra.ci~nal fosse secretamente um alquimista? Ou
seu Interesse pela alquimia era simplesmente uma excentricidade.
.. I
aIgo que admitisse a guma outra interpretação?
' ou
O que tenho a dizer sobre este assunto é aqui ventilado com
extrema modéstia. Não examinei os documentos de Newton não-publi-
cados, todavia, ao colocar simplesmente este problema no contexto da
série, de investigações históricas, pelas quais este livro se interessa, é
pOSS1Vel que pudesse ser sugerido um ângulo histórico para o enfoque
da alquimia de Newton .
Newton, evidentemente, conhecia os manifestos rosa-crucianos.
Possuía uma cópia da Tbe Fame and Coniession 01 tb e Fraterniry R.c.
- a tradução inglesa dos manifestos publicada por Thomas Vaughan
em 1652. A cópia desse livro , na Biblioteca da Universidade de Yale ,
contém uma nota manuscrita por Newton, e com a sua assinatura. 25
Em sua nota , Newton cita, da Fama , a descrição do encontro do corpo
de Christian Rosencreutz, tendo ele consultado dois trabalhos de Mi-
chael Maier para maiores informações, os livros das "Laws of the R.C.
Fraternity", isto é, o Themis aurea, no qual Maier apresenta essas
leis, baseadas no que está enunciado na Fama, e no Symbola aureae
mensae duodecim , onde ele colhe outras referências dos manifestos, e
a data na qual foram publicados. Newton termina sua anotação histó-
rica, baseado no estudo dos manifestos bem como de Maier, com a
observação: "Esta foi a história daquela impostura". Entretanto, obri-
gatoriamente, isso não implica em um desrespeito; poderia apenas sig-
nificar que Newton conhecesse a história de Rosencreutz como sendo
um mito, um ludibrium.
Em sua obra sobre Newton, Frank E . Manuel tem um capítulo
sobre ele e a alquimia, baseado no estudo dos manuscritos de New-
ton. 26 Disto se depreende que Newton fez muitas cópias de obras
alquímicas, até mesmo transcrevendo obscuros poemas alquímicos.
Entre as coleções de trabalhos alquímicos importantes, por ele consul-
tados, encontrava-se o T beatrum Chemícum Britannicum, de Ashmole ,
por ele "esquadrinhado repetidas vezes". 27 Ao realizar esse exame
minucioso do livro, Newton teria observado que Ashmole começa o

25. Sobre o texto integral da nota de Newton em sua cópia da Fame and
Coniession, consultar Ian Macphail, Alchemy and tbe Occult, Cat~logu~ 01 ~ooks
[rom tbe Collection 01 Paul and Mary Mel/on given to Yale Universitv Librart,
Yale, 1968, n, 102.
26. Frank E. Manuel, A Portrait 01 lsaac Newton, Cambridge, Mass., 1968,
pp. 160·90.
25 - (a) Gruta no Castelo de Heidelberg: Fonte de coral. Obra de Salomon de
27. Manuel, Newton, p. 163. Caus, Les raisons des forces mouvemtes.
(b) A pesca de coral (a Pedra Fllosofal ), da At_tel'"I.m.S.
250
~...;.:-- _ ..
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26 - (a) o Casamento do Rei e da Rainha Alquímicos .


(b) Os Alquimistas (Thomas Norton, Abade Crerner e Basil Valentine).
Ambas de Daniel Stolcius, V iridarium Chymicum ; reeditado da Tripus 27 - ( a ) Visão de um Leão Triunfante.
Aureus, por Michael Maier , (b) Visão de um Leão com os Anjos e as Rosas, das R~"tUl;o"tS. .. -
anno 1616 ad annum 1624, na Lu» in /~"tbris, de Christopher Kotte1'.
252
livro com a citação da Fama, que comenta o trabalho de Michael Maier
ao coligir autores alquímicos ingleses, e "para nossa vergonha" , não
fora senão mal recompensado. Deveria ter compreendido que a coleção
de Ashmole, na realidade representa os alquímicos ingleses admirados
por Maier, incluindo os extraordinários Dee e Kelley. No comentário
de Ashmole acerca da obra de Kelley, ele deveria ter lido toda a his-
tória de john Dee, e quão respeitado teria sido pelo seu brilhante
trabalho matemático e científico. E no "Testamento", de Dee, cons-
tante do livro, poderia tecer ponderações a respeito de uma breve
versão em versos dos mistérios da "monas".
Newton parece ter-se interessado especialmente por Michael
Maier, transcrevendo trechos de suas obras , 28 até mesmo descrevendo
às vezes com suas próprias palavras os emblemas alquímicos daquele,
como por exemplo: "Duas mulheres vestidas, montadas em dois leões;
cada uma com um coração na mão . .. " 29 Newton ingressara naquele
mundo do renascimento alquímico de Maier, havia estudado as fontes
de informações alquímicas que ele reunira e meditara sobre a estranha
manifestação de seu ponto de vista nos emblemas alquímicos.
Já verificamos que certamente existe uma grande influência de
Dee nos emblemas de Maier,30 e ela estava presente durante todo o
esforço deste último no renascimento alquímico, e principalmente no
da alquimia na Inglaterra. O enfoque histórico, por conseguinte,
sugere que seria útil a abordagem da alquimia de Newton ao longo
das linhas do movimento rosa-cruciano alemão, e as influências de Dee
nele exercidas, ou o tipo de alquimia rosa-cruz .
Sendo um homem profundamente religioso, igual a Dee, Newton
preocupava-se muito com a busca do Único, do Deus Uno, e com a
Unidade divina revelada na Natureza. As maravilhosas pesquisas físí-
cas e matemáticas da Natureza não o tinham satisfeito inteiramente.
Talvez alimentasse, ou alimentasse pela metade, uma esperança no
sentido de que o caminho alquímico rosa-cruciano através da Natureza
poderia levá-lo muito mais para o alto.
De qualquer forma, pode-se afirmar . que o renascimento alquími-
co que afetou Newton ficou devendo muito ao Tbeatrum Cbemicum
Britannicum, de Ashmole, considerado como tendo sido inspirado por

28. Ele fez excertos do Symbola Aureae Mensae Duodecim (Manuel, New-
ton). Este foi um dos trabalhos feitos por Maier, ao qual consultou, pare escla-
28 - Frederico V, Rei da Boêmia, por Gerard Honthorst. recer a respeito dos manifestos rosa-crucianos.
29. Manuel, Newton, p. 171.
30. Consultar anteriormente, p. 120.

254
John Dee e pelo movimento alquímico de Maier. Não pareceria histo- O compilador do código Harley pertence à tradição alquímica, na
ricamente fantástico considerar como uma hipótese básica para futuro qual a indicação da autoria e das fontes de informações era sempre
estudo, a possibilidade de que o elemento rosa-cruciano, de alguma excessivamente vaga, sendo habitual atribuir a um nome conhecido os
forma corrigido ou mudado, poderia sem dúvida participar do interesse trabalhos certamente não escritos pelo dono daquele nome (por exem-
de Newton pela alquimia. plo, a imensa literatura alquímica sob o nome de Raymond Lully, foi
escrita após a morte do verdadeiro Ramon Lull ). O que aqui se torna
À guisa de anotação ao pé deste capítulo, deve ser feita uma interessante, merecendo uma pausa a respeito do Harley 6485, é a
referência à coletânea dos textos rosa-crucianos conservados entre os evidência nele contida de que numa tradição alquímica ainda sobrevi-
manuscritos Harley no Museu Britânico. Embora muitíssimo menos vendo no início do século XVIII, a paternidade da literatura do
importantes do que os personagens que estivemos discutindo , o homem movimento rosa-cruciano alemão é atribuída a Dee. Caso queiram me-
que escreveu os manuscritos Harley assemelha-se àqueles por ter estado ditar nos preceitos da Ordem rosa-cruciana, conforme apresentados na
transcrevendo documentos pertencendo ao movimento rosa-cruciano Fama e difundidos no Tbemis aurea, de Maier, transcrevam tais pre-
alemão. ceitos das supostas " folhas do Dr. Dee", embora estejam realmente
Os códigos Harley 6485 e 6486 são ambos escritos pela mesma fazendo-o de uma tradução do livro de Maier. Em sua maneira obscura
mão e provavelmente ao mesmo tempo; um está datado de 1714. de dizer, a coleção Harley confirma o fato de que a influência de Dee
Visto que neles um "Dr. Rudd" é mencionado freqüentemente, o encontra-se oculta no movimento rosa-cruciano alemão.
escriba pode estar associado de qualquer modo com Thomas Rudd Ao HarIey 6485 seguiu-se imediatamente o 6486, que consiste
que publicou uma edição do prefácio da matemática de Dee para num trabalho cujo título (abreviado) é "The Famous Nuptials of the
Euclides em 1651. 31 Esse escriba certamente é um admirador ardente Thrice Great Hermes . . . produzido por C.R., um alemão da Ordem
de Dee . da Rosa Cruz... e oriundo do manuscrito latino, agora fielmente
O primeiro item do Harley 6485 é um tratado intitulado "The traduzido para o inglês, por Peter Smart, 1714". Na página seguinte,
Rosicrucian Secrets", que costumava ser atribuído a Dee, quando em existe uma declaração adicional: - "A margem constam pequenas
pleno vigor desse manuscrito. De fato, o escriba não afirma realmente anotações pelo último Dr. Rudd."
ter sido Dee o autor desse trabalho; o que ele diz é estar transcre- O manuscrito é quase uma cópia, palavra por palavra, da tradu-
vendo-o das "folhas" que acredita terem sido escritas por Dee . 32 Re- ção inglesa de Ezechiel Foxcroft, do Chemical Wedding, de Andreae,
sultando de evidências internas, está claro que "The Rosicrucian publicado em 1690 . 34 "Peter Srnart", por conseguinte, pareceria estar
Secrets" não é de Dee . O mesmo código também inclui dois outros mentindo ao afirmar que essa é uma tradução original feita por ele;
itens, considerados como tendo sido copiados das "folhas do Dr. Dee". ao que sei, não existiu "original em latim" do trabalho que só foi
Um é chamado "Of the Laws and Mysteries of the Rosicrucians" . A publicado na Alemanha; além do mais, as anotações à margem no
maior parte dele é transcrita ' da tradução inglesa de Michael Maier, manuscrito são também todas transcrições da tradução de Foxcroft,
Tbemis aurea, publicada em 1656 com uma dedicatória para não podendo, portanto, serem do "último Dr . Rudd."
Ashmole.P" Entretanto, "Peter Smart" talvez esteja parcialmente exonerado,
31 . Euclides, Elements 01 Geometry, ed. Thomas Rudd , incluindo uma re- sob o pretexto de que a sua tradição alquímica era do tipo ambíguo e
edição do Prefácio de Dee; consultar French, [obn Dee, pp, 174, 217.
32. O código contém três itens: (1) "The Rosicrucian Secrets", um tra- 34. Tbe Hermetick Romance: The Chymical Weedin& Written in bigh
tado alquímico paracelsista, que emprega diagramas do tipo Lullist. (2) Claois
; ,. I Dutcb by Cbristian Rosencreutz, traduzido por E. Foxcrofr, último membro do
Cbymicus, um glossário de vocabulário alquímico, principalmente o paracelsista. Colégio do Rei em Cambridge, Londres, 1690. A tradução de Foxcroft esbt re-
(3) "The Laws and Mysteries of the Rosicrucians", baseado na tradução inglesa editada na Real History 01 the Rosicrucians, de A. E. Waite, pp. 65 e $S. C0n-
de Michael Maier, Themis aurea. Todos esses itens são considerados como tendo sultar anteriormente, p. 68.
sido copiados das "folhas do Dr. Dee". Nenhum deles é seu mesmo. Ezechiel Foxcroft é mencionado freqüentemente nas cartas de Henry More
33. Tbemis Aurea, The Laws 01 the Fraternity 01 the Rosie Cresse, Written para Lady Conway, consultar Marjorie Nicolson, Conway Letters, Londres, 1930,
in Latin b-y Count Michael Maierus, Londres, 1656 . A dedicatória para Ashmole índice. More apresentou-o a Francis Mercurius Vtn Helmont, "tendo ambos bt-
está assinada N . L ., T. 5., H. S. lento para a Química" (Conway Letters, p. 323).
'"

._ 1 __
A
256
confuso, que não deveria ser julgada sob o ponto de vista estritamente descobrira o seu sistema do universo simbolizado na lira de Apolo
verídico; pois o mais extraordinário no Harley 6486 é a grande atração com suas sete cordas. 3.5 Essas analogias musical e cósmica formam a
da "monas hieroglyphica", de Dee, copiada da tradução de Foxcroft base da "monas", de Dee, e dos emblemas de Maier, combinam a
(onde está mais parecida à "monas", do que a versão dela conforme j :
música com os modos de manifestação alquímicos . A alquimia rosa-
consta do texto em alemão). Embora não fosse realmente afirmado -cruz, musical, matemática, alquírnica e profundamente religiosa -
ter sido copiada "das folhas do Dr. Dee", é evidente que o importante, com um tipo de devoção hebraico e cabalístico - está apresentado
a respeito do Cbemical Wedding, para o compilador dos códigos Har- visualmente naquela gravura no Amphitheatrum, de Khunrath, na qual
ley , é que acredita estar essa obra impregnada da influência de Dee. se vêem o alquimista devoto, em profunda oração a Jeová (Fig. 12), e
Por conseguinte , o compilador dos códigos HarIey está procurando os outros meios por ele empregados para chegar até Deus, através da
o rosa-crucianisrno de um ângulo que pode ser reconhecido como se- Natureza caracterizada pelos instrumentos musicais, a matemática arqui-
melhante àquele de Ashmole, e considerando o rosa-crucianismo alemão tetônica e o forno alquímico. Com algumas modificações resultantes
como sendo fundamentalmente o resultado das influências de Dee. das diferenças das épocas, essa gravura poderia manifestar a vida inte-
Embora o ilustrado Ashmole não tivesse confundido as origens e rior, a aspiração intensa da procura de Deus , ao longo de caminhos
autoria dos códigos Harley do modo mais primitivamente alquírnico , diversos, por Isaac Newton.
apesar disto, também ele considerou os manifestos rosa-crucianos, Maier A finalidade deste' capítulo, aliás de todo este livro, é simples-
e a sua escola alquímica, e Dee, numa seqüência histórica. E provavel- mente juntar as peças bistáricas através das quais esses pensamentos
mente reconheceu a história por trás daquela seqüência, o movimento poderiam ter-se desenvolvido ao longo dos .caminhos históricos. Creio
rosa-cruciano em relação a Frederico, o Eleitor Palatino e aqueles que eles se encontravam por trás do movimento rosa-cruciano alemão,
sonhos da reforma universal através da união com a Boêmia, que não inspirado por Dee, e conservaram-se vivos na Inglaterra para aqueles
deram em nada e comprometeram a Ordem da Jarreteira quando por que lastimaram a falta de apoio a Frederico do Palatinado. A atitude
ocasião da queda de Frederico. de Newton quanto aos fatos históricos, sua intensa preocupação com
Este capítulo até certo ponto é mais do tipo de uma hipótese a profecia apocalíptica, tinham-no tornado profundamente consciente
fragmentária, do que o resultado integral de um tema. A hipótese é das interpretações apocalípticas da próxima extinção do protestantismo
que por trás do grande movimento exotérico caracterizado pelas reali- na Europa, ocasionada pela queda de Frederico. O enfoque de Newton, , I
zações de Newton nos campos da matemática e da física, havia também através da alquimia rosa-cruz, poderia ajudar não só a unificar seus
um movimento esotérico, associado com o movimento exotérico, estudos físicos e alquímicos, como também completá-los com a religio-
através da importância por ele dada aos números, porém, incrementan- , sidade hebraica subjacente em seus estudos históricos.
do este último por meio de uma outra abordagem da Natureza - a
que é feita por intermédio da alquimia. O importante trabalho de
Newton teria conservado viva a abordagem alquírnica . E ambos eram
membros da Sociedade Real. 't 1
As duas abordagens poderiam ter-se verificado através da alquí-
mia rosa-cruz, isto é, da tradição alquímica de Dee, conforme expan-
dida na escola rosa-crudana alemã. Que Newton encontrasse pontos
de ligação entre todos os seus estudos através de uma tal perspectiva,
é uma possibilidade. A ciência de Newton, mais recente, ressaltou o 35. J. E. McGuire e P. M. Rattansi, "Newton and the Pipes of Pan", Notes
tipo de pensamento renascentista existente por trás de seus esforços, and Records o] the Royal Society, 21 (1966), pp. 10841. Os autores desse artigo
chamam a atenção para o interesse de Newton pela obra de Maier. "Michael Maier,
sua crença nas tradições de uma antiga sabedoria disfarçada em mito, e cujos trabalhos foram profundamente analisados por Newton, tinha-se incumbido
sua confiança de ter sido ele mesmo quem descobrira a verdadeira filo- de uma sinopse da mitologia helênica para demonstrar que os gregos tinham re-
sofia oculta na mitologia. No artigo sobre "Newton e as Flautas de presentado os segredos alquímícos. A interpretação de Newton da "harmonia das
Pan", J. E. McGuire e P. M. Ratransi demonstraram quef!:wton esferas", é semelhante no sentido de que a considera como uma representação
simb6Iica dos "segredos físicos" (p . 136).
--1- '\)u,J\O'4) t. ,\\.j~"O):)\t. 1:.1"OI~o. ~rI\"" ~J", '.Y1\<)/ ~I
258 o ~~\()Y\ lU{o\tA~c.p '- p ~tJ\.eM ~~~ Vp.
ternidade, ou Irmandade, R.C., conforme é narrada na Fama, são um
fato real; aqueles que consideram tanto a sociedade como seu funda-
dor, puramente místicos; e aqueles que, sem aceitar a verdade histó-
. rica da história de Rosencreutz, acreditam na existência dos rosa-cruzes
como uma sociedade secreta. 1 Nenhuma pessoa ponderada pode agora
acreditar na verdade literal da história de Rosencreutz; e a opinião de
ter existido uma verdadeira sociedade secreta de rosa-cruzes e de ser,
CAPÍTULO XV por assim dizer, velada por um mito, foi analisada por Paul Arnold
em seu livro publicado em 1955. 2

o ROSA-CRUCIANISMO E A
FRANCO-MACONARIA
"
r Minhas pesquisas sobre o assunto não foram exaustivas. Não ana-
lisei todos os fragmentos do material impresso sobre o furor rosa-
-cruciano, e tampouco dei uma busca para reunir provas, possivelmente
escondidas nos documentos manuscritos ou nos arquivos. Posso apenas
J
o principal motivo pelo qual os estudos históricos senos dos afirmar que até onde chegaram minhas investigações, não encontrei
manifestos rosa-crucianos e sua influência ficaram omissos até hoje, é nenhum indício da realidade de uma sociedade secreta denominada
sem dúvida, por ter todo o assunto sido deturpado pelos entusiastas "Rosa-Cruz", e realmente existindo como um grupo organizado na
das sociedades secretas. Existe uma vasta literatura sobre o rosa-cru- época em que os manifestos foram publicados, e durante o período do
cianismo que supõe a realidade de uma sociedade secreta, fundada por furor. Verifica-se uma grande evidência a respeito da investigação
Christian Rosencreutz, que tem uma existência ininterrupta até os dias entusiasta para a descoberta dos rosa-cruzes, porém, nenhuma evidên-
atuais. No mundo vago e enganador do pretenso "ocultista", o escrever cia de terem sido algum dia encontrados. Ainda mais, os manifestos
essa pressuposição resultou numa espécie de literatura que merecida- rosa-crucianos representaram declarações extraordinariamente propaga-
mente submerge nas informações do historiador sério. E quando, como das e provocantemente lançadas no mundo. Uma vez que o principal
é freqüente, o debate nebuloso sobre os rosa-cruzes e a sua história objetivo de uma sociedade secreta deve ser a de sempre assim conser-
emaranha-se com os mitos maçônicos, o investigador sente-se afundando var-se, pareceria estranho para uma autêntica sociedade secreta rosa-
num atoleiro. -cruciana propagar-se de modo tão dramático. Os manifestos surgiriam
como sendo proclamações de esclarecimento, sob a forma de um mito
Todavia, essas questões devem ser enfrentadas por qualquer um
utópico relativo a um mundo no qual os seres esclarecidos, quase
que se incumba de uma investigação sobre o rosa-crucianismo, e embo-
semelhantes aos espíritos, se ocupariam em fazer o bem, emitindo in-
ra este livro, até o momento, se tenha concentrado no esclarecimento
fluências salutares, disseminando conhecimentos nas ciências naturais
histórico dos elementos básicos dos manifestos rosa-crucianos, e em
e nas artes, e fazendo a humanidade retroceder ao estado paradisíaco
pesquisar a sua influência - evitando o assunto da sociedade secreta
de antes da Queda. Foi, portanto, um mal-entendido popular ter pre-
- eis chegado o momento em que alguma coisa deve ser tentada sobre
tendido a existência de uma sociedade secreta real oculta sob esses
esse aspecto da questão. Embora não se chegue a resultados muito
documentos, e os seus estruturadores terem ficado confusos com esse
exatos, estaremos pelo menos perscrutando através dessas brumas,
mal-entendido. Johann Valentin Andreae esforçou-se arduamente por
com a vantagem de um conhecimento mais claro da situação histórica
evidenciar que Christian Rosencreutz e a sua Fraternidade eram uma
na qual surgiu o movimento rosa-cruciano. ficção. 3
Os rosa-cruzes existem? Você é um deles? Não. Já viu algum?
Não. Quantas vezes já ouvimos essa discussão com seu resultado nega- :
1. A. E. Waite, Tbe Real History o/ tbe Rosicrucians, Londres, 1887, pp.
tivo, enquanto íamos avançando através da literatura rosa-cruciana. O 217·18.
debate ainda continua. Um historiador da Maçonaria dividiu os teóri- 2. Paul Arnold, Histoire des Rose-Croix, Paris, 1955. Peuekert, Die Romr-
cos rosa-crucianos em três classes: aqueles que acreditam que a hístó- kreutzer, é inconcludente sobre o assunto.
ria de Christian Rosencreutz e a maneira pela qual foi fundada a Fra- .3 . Consultar anteriormente, pp. 187 e ss.

260
f Todavia, ~imos que algo real s~rg~u das proclamações dos rnanj,
estos. Os Irmaos R. C. eram uma ficção, porem sugeriam uma reali-
dade, as Congregações Cristãs, grupos de pessoas que tentaram
converter-se em sociedades. 4
. Portanto, o modo correto de considerar a questão deve ser desis-
tir ~e procurar os ro.sa-cruzes ":eais" e, em vez disto, perguntar, se o
m?VImento rosa-cruciano sugeriu a formação de sociedades secretas.
VImos que existe a idéia de uma sociedade para o progresso do ensino
- tal qual aquela que posteriormente se materializou na Sociedade
Real - nas recomendações do autor da Fama, no sentido de que os
homens cultos deviam transmitir suas descobertas uns aos outros e
assim colaborarem mutuamente. Nos manifestos constaria a idéia de
uma sociedade secreta internacional, ou um esquema da mesma, que
tivesse, e tem, uma existência real, isto é, a Maçonaria?
A pesquisa histórica, sobre o problema do rosa-crucianismo e a
franco-maçonaria, começou na Alemanha no século XVIII, e os prin-
cipais resultados da investigação alemã, especialmente conforme
expostos num estudo de J. G. Buhle publicado em 1804, foram mani-
festados em inglês num ensaio de Thomas De Quincey, publicado em
1824 . 5 Embora separados do passado pelo abismo da Guerra dos
Trinta Anos, que destruiu grande parte das provas, os pesquisadores
alemães da época de Buhle encontravam-se ainda mais próximos do
que nós daquele passado, e vale a pena considerar suas teorias, confor-
me transmitidas por De Quincey, representando isso uma primeira
tentativa para solucionar o problema. O argumento do livro de Buhle
é assim resumido por De Quincey. 6

A não ser para uma farsa por parte de um jovem de talento,


mas para uma finalidade mais elevada do que a abrangida pela
maioria das farsas, o leitor descobrirá que a totalidade dos mis-
térios da franco-maçonaria, conforme existe atualmente por todo
o mundo civilizado, após um lapso de mais de dois séculos, í: '
l'
encontra-se aqui (i.e. no livro de Buhle) claramente delineada;
tal é o poder de uma grandiosa e extensa aspiração da benevo-

4. Consultar anteriormente, pp . 198 e ss.


5. Thomas De Quincey, "Historico-Critical Inquiry imo ' the Origins of .the
Rosicrucians and the Freernasons", originalmente publicado na London Magazme,
1824; reeditado no Collected Writings, ed. David Masson, Edimburgo, 1890,
XIII, pp. .384-448.
6 . Ibiâ., p. 386. 29 - Elisabete, Rainha da Boêmia, por Gerard Honthorst .

262
·1
lência filosófica , para até mesmo preservar as mais ociosas frivo-
lidades, como sejam as bagatelas e insetos encerrados num escrí-
nio ambarino.

o jovem de talento é Andreae, admitido por Buhle como sendo


o autor de todos os manifestos rosa-crucianos : a " farsa" é a sua narra-
tiva da Fraternidade R. c., que Buhle pressupõe ser a origem da
franco-maçonaria. Na última frase, De Quincey está parodiando o estilo
de Buhle.
De Quincey, embelezando e acrescentando aos argumentos infor-
l
mações de fontes alemãs, sustenta que "nenhum colégio ou loja dos
irmãos rosa-crucianos. .. podem ser evidenciados através dos anais da
história, como tendo-se algum dia estabelecido na Alemanha". Contu-
do, está convencido de que quando o rosa-crucianismo foi transplan-
tado para a Inglaterra, ele se converteu em franco-maçonaria. Afirma
solenemente acreditar que a "franco-maçonaria não é nem mais nem
menos do que o rosa-crucianismo modificado por aqueles que o trans-
plantaram para a Inglaterra", de onde foi reexportado para os outros
países da Europa. A pessoa considerada a mais responsável por esse
transplante do rosa-crucianismo para a Inglaterra - assim 'afirma De
Quincey - foi Robert Fludd. As crenças e práticas maçônicas concer-
nentes à interpretação mística da construção do Templo de Jerusalém
podem - julga De Quincey - ser percebidas nas obras rosa-crucianas,
mas quando o rosa-crucianismo foi transplantado para a Inglaterra,
elas foram incorporadas pela franco-maçonaria às tradições das corpo-
rações dos maçons. Conseqüentemente, ele finaliza com a maior
confiança: 7

Os franco-maçons originários representaram uma sociedade


oriunda de uma idéia fixa rosa-cruciana, certamente dentro do
espaço de treze anos, a partir de 1633 até 1646, e provavel-
mente entre 1633 e 1640.
Essa teoria não pode ser inteiramente correta, porém, o modo
pelo qual ela pressupõe o movimento ou contato entre a Inglaterra e
a Alemanha, através do qual alguma coisa foi transplantada ~e um
país para o outro, é interessante à vista do que sabemos a respeito das
correntes de pensamento postas em movimento da Inglaterra para a
30 _ A Fama da Sociedade Real - History o/ lhe Royal Society,
de Thomas Sprat.
Alemanha, e vice-versa, no início do século XVII.

7. lbid., p. 426.

264
A origem da franco-maçonaria é um dos assuntos mais discutidos, guntando se poderia ser admitido entre eles. 11 Isto pareceu uma
e discutíveis, em todo o campo da investigação histórica. 8 Temos que prática formal, imitando a tradição rosa-cruciana com relação aos ma-
diferençar entre a história lendária da franco-maçonaria , e o problema nifestos, não fazendo, porém, nenhuma referência a qualquer grupo
de quando ela realmente foi iniciada como uma instituição organizada . realmente existente, e chamando os seus associados de rosa-cruzes.
De acordo com a lenda maçônica, a franco-maçonaria é tão antiga Perguntamo-nos, agora, se o fato de Ashmole ser um franco-maçom
quanto a própria arquitetura, retrocedendo até a construção do Templo teria qualquer ligação com a sua atividade rosa-cruciana . Seria esta
de Salomão, e às corporações dos maçons medievais que construíram uma resposta possível para o problema de a citação e a aprovação dos
as catedrais. Num determinado ponto, a maçonaria operante ou a manifestos rosa-crudanos poderem significar não que alguém fosse um
verdadeira arte da construção converteu-se em maçonaria teórica ou rosa-cruz (se estes não existiam), mQS que tivesse qualquer outro tipo
interpretação moral e mística da construção, e numa sociedade secreta de associação secreta?
com ritos e ensinamentos esotéricos . Quando isso realmente aconteceu,
t. , Embora a iniciação maçônica de Ashmole, em outubro de 1646,
quando a estrutura e organização maçônicas passaram a existir, não se seja habitualmente considerada como a mais antiga nos anais da His-
sabe ao certo. tória, existe de fato uma outra ainda mais antiga e autenticada . Refere-
-se ao registro de admissão numa loja maçônica de Robert Moray, no
Entre os poucos fatos anteriormente conhecidos, consta o da data dia 20 de maio de 1641. 12 Provavelmente, Moray fez mais do que
na qual Elias Ashmole foi admitido numa loja maçônica . Ele registrou qualquer outro indivíduo, para promover a fundação da Sociedade Real,
em seu diário ter sido admitido numa loja maçônica em Warrington, e convencer a Carlos II para instituí-la sob o seu patrocínio. Ele se
Lancashire no dia 16 de outubro, 1646. 9 A loja já existia; não foi interessava muito pela alquimia e química. Assim sendo, as duas pes-
fundada por Ashmole. Ele dá os nomes de alguns outros que foram soas sobre as quais possuímos maiores provas de terem sido associadas
admitidos na mesma época. Um deles foi seu primo Henry Manwaring, às lojas maçônicas, ambas eram membros fundadores da Sociedade Real
que era um "Roundhead" - alcunha dada aos puritanos ingleses na - Moray e Ashmole.
época de Carlos L Evidentemente, visto que Ashmole era um realista' L Portanto, a organização maçônica evidentemente já existia, pelo
os membos dos partidos contrários, durante as guerras civis, podiam menos vinte anos antes da fundação da Sociedade Real (em 1660).
associar-se à franco-maçonaria . Antes disso, uma documentação concreta é difícil de ser conseguida.
A anotação de Ashmole, relativa à iniciação maçônica, é conside- Existe uma referência insinuada indiretamente e anterior a 1638,
rada como sendo "a referência conhecida mais antiga da maçonaria relativa à uma associação na mente do público, entre a idéia do rosa-
teórica numa loja inglesa". 10 Um particular importante é que essa -crucianismo e a da franco-maçonaria. A mais antiga informação a res-
antiga referência maçônica aparece relacionada com o homem, cujos peito da "palavra Maçom" consta de um poema publicado em Edim-
conhecimentos do rosa-crucianismo foram discutidos no último capí- burgo, em 1638. Essa poesia é uma narrativa métrica sobre Perth e
tulo. Nele, vimos que Ashmole copiara de próprio punho os manifes- suas cercanias, e a informação nela constante é a seguinte: 13
tos rosa-crucianos, a eles acrescentando uma carta formal também de For what we do presage is not in grosse,
próprio punho, expressando sua admiração pelos seus objetivos e per- For we be brethren of the Rosie Crosse:
We have the Mason word and second sight,
8. As obras mais antigas, sobre a história da franco-maçonaria, misturam o Things for to come we can foretell aríght ... *
mito e os fatos numa confusão inextricável. Para o enfoque do assunto mais
atual e crítico, consultar Douglas Knoop e G. P. jones, Tbe Growth oi Freema- 11. Consultar anteriormente, p. 44.
sonry, Manchester University Press, 1947. A influência da tradição hermética re- 12. Consultar D. C. Martin, "Sir Robert Moray" no The Roytll Socitty,
nascentista na mitologia maçônica está demonstrada em meu Giordano Bruno and ed. H. Hartley, p. 246.
the Hermetic Tradition, pp. 274, 414-16, 423; no Tbe Art of Memory, pp. 303-5, 13. Knoop, jones e Hamer, Early Masonic Pampblets, Manchester, 1945.
quando sugeri as formas ocultas da arte da memória como uma provável in- p. 30.
fluência . * Por não ser flagrante o que profetizamos , / A despeito de sermos itmios
9. Josten, Asbmole, I, pp . 33-5. da Rosa-Cruz: / Possuímos a Palavra Maçom e o dom de prever I Coisas por
10. IbM. , p. 34.\ acontecer, podendo prenunciá-las corretamente.

266,tl - ~i'\Ji~
Talvez os "irmãos da Rosa-Cruz", aqui mencionados, sejam da Esses indícios e tradições, por interessantes que sejam, não são
natureza dos duendes, os seres possuidores da faculdade de prever o válidos para neles confiar-se no que se refere à nossa época, ?u seja~
futuro, mas que esta, possivelmente, seja apenas uma referência poé- o período inicial do século XVII, quando o conceito rosa-cruciano f01
tica ou literária dos Irmãos Rosa-Cruz, e que ocorresse por ocasião propagado através dos manifestos. Ao que ainda nos referimos é a
da primeira vez que a "palavra" maçom aparece impressa é realmente antiga pergunta: naquela época, existiam realmente rosa-cruzes, ou al-
interessante. guma organização secreta?
A primeira referência impressa aos "Maçons Consagrados" en- A pergunta talvez tenha mudado um pouco, uma vez que já lhe
contra-se num panfleto maçônico de 1676, nos seguintes termos: 14 demos uma resposta negativa neste mesmo capítulo. Agora podemos
ampliá-la deste modo: se não existiam rosa-cruzes, teria havido, num
Informamos com antecedência, que a Modem Green-ribbon'd segundo plano, algo parecido a um movimento maçônico prematuro, ou
Cabal! * juntamente com a Antiga Fraternidade da Rosa-Cruz, pré-maçônico?
os Adeptos Herméticos e a congregação dos Maçons Consagrados
pretendem jantar juntos no próximo 31 de novembro ... A lendária história da maçonaria, da verdadeira arte da constru-
ção, é recontada em alguns poemas medievais (aproximadamente de
Segue-se a descrição de um cardápio cômico e um aviso para os 1400), que são valiosos para a franco-maçonaria, como documentos
que pretendem comparecer usarem óculos - "pois de outro modo, pertencentes à antiga maçonaria operante, a maçonaria oficiosa ou a
isto sugere que as referidas Sociedades farão (como até agora) o seu guilda, - que deu origem à maçonaria teórica, ou franco-maçonaria
Comparecimento Invisível". Isso é interessante por sugerir um grupo - da qual afirmam proceder. Nesses "Estatutos Manuscritos da Ma-
de sociedades esotéricas - duas delas de franco-maçons e rosa-cruzes çonaria", 17 conforme são chamados, a maçonaria, construção (os pe-
- evidentemente diferentes na qualidade de membros, porém tendo dreiros-livres) ou arquitetura, é identificada com a geometria. Uma
o suficiente em comum para se considerar normal jantarem juntos. A narrativa afirma que a geometria foi descoberta antes de Flood; uma
antiga pilhéria relativa à "invisibilidade" associa essa referência à anti- outra assevera que Abraão ensinou a geometria aos egípcios. Uma outra
ga tradição rosa-cruciana. versão da invenção da geometria, derivada de uma fonte ortodoxa
(Diodorus Siculus) é que a geometria, segundo dizem, foi inventada
Novamente mais tarde, já por volta de 1750, a seguinte declara- pelos egípcios, a fim de enfrentar as inundações do Nilo. A invenção
ção foi feita por carta: "Os franco-maçons ingleses plagiaram algumas é atribuída a Thoth-Hermes, ou seja, Hermes Trismegistus, que é
cerimônias dos rosa-cruzes, e afirmam originar-se deles e serem o mes- identificado com Euclides. Assim, as origens da geometria, ou maço-
mo que eles." 15 Estamos agora tão adiantados, que quase já alcança. naria, e portanto da franco-maçonaria, retrocedem ao passado long~­
mos o século XVIII, ocasião em que na França, um novo "grau", ou quo hebraico ou egípcio, e estão cercadas por místicas que se relacio-
uma série de rituais foi iniciada dentro da franco-maçonaria. Esta série nam claramente com o conceito renascentista da "antiga sabedoria", a
foi chamada grau Rosa-Cruz; 16 aparentemente sua mística era positi- dos prisci theologi, 18 ou teólogos prístinos, dos quais se origina a ver-
vamente cristã (seguindo mais a orientação cristã do que a mística dadeira sabedoria. Na mitologia maçônica, a autêntica antiga sabedoria
deísta dos outros graus) podendo ter sido influenciada pelo misticismo estava encerrada na geometria do Templo construído por Salomão com
da cavalaria. Isso poderia assemelhar-se a uma consagração dentro da o auxílio de Hiram, rei de Tiro. Constava que o arquiteto do Templo
pr6pria tradição maçônica - embora tardia - do conceito de uma
ligação entre o rosa-erucianismo e a maçonaria. 17. O mais importante desses "MS Constitutions of Masonry", ou "OId
Charges" são os incluídos nos manuscritos Regius e Cooke, ambos aproximada-
14. IbM., p. 31. mente de 1400; as citações neles contidas são tiradas de Knoop e Jones, Genesis
of Preemasonry, pp. 62-86.
* Veja nota 31.
15. uu.. p. 235. 18. D. P. Wa1ker, "The Prisca Theologia in France", ]oNrn.1 of t~ W. .
burg and Courtauld Institutes, XVII (1954), pp. 204·59; D. P. Walker, Tbf
16. R. F. Gould, History of Freemasonry, Londres, 1886, V, pp. 159·61; Ancient Theology, Londres, 1972; Yates, Giordano Bruno .nd lhe HtnIIftk
rev. de R. Poole; ' Londres, 1951, lII, pp. 267.77. Tradition, pp. 14, 17, 18 e pass.im. .

268
foi u:n certo Hiram Abif (não sendo o Hiram, rei), cujo martírio carregado de ressuscitar o estilo clássico, sobretudo restaurado pelo
compoe o tema do estatuto simbólico do ritual maçônico. insigne Palladio, o qual rivalizou na Inglaterra com o "nosso grande
A fonte ofic~aI ~a mitologia maçônica e da história mística pare- rnestre-maçon , Inigo Jones".23 Carlos I também protegeu " o Sr. jo-
cem ser as Const itutions of Freemasons, publicadas por James Ander- nes " , que .é inco?testavelmente apresentado como um franco-maçom,
son em 1725, as quais, segundo compreendo, são ainda consideradas como o fOI tamb em Carlos lI. Sir Christopher Wren o arquiteto da
como um documento oficial da história da maçonaria pelos próprios " St. P au I'" , e menciona
. d i ouvor.
o com '
franco~m~çons. Nele se contém lima declaração a ser interpretada como _A Hi~ t?ria não esclarece o ponto que tanto precisa de uma infor-
a admiss ão de um novo Irmão , assim iniciada : 19 maçao defin ida, Quando foi iniciada a franco-maçonaria moderna como
sociedade secreta organizada? A maioria dos livros a ela referentes
Adão, nosso primeiro pai, criado à Imagem de Deus, o insigne
confund.e a arquitetura na Bíblia, as narrativas lendárias, a história
Arquiteto do Universo, deveria ter tido as Ciências Liberais ,
da arquitetura em geral , e a da franco -maçonari a, segundo a concepção
principalmente a Geometria, inscritas em seu Coração; desde a
de James Anderson nas Constitutions de 1725. Mas parece provável
Queda, encontramos sempre os Princípios da mesma no Cora-
- e esta questão é sempre abordada pelos historiadores maçônicos -
ção de seus Filhos . . . que o tipo " teórico" da maçonaria e a sua gradativa desassociação da
A história da geometria está pois esboçada em toda a história maçonaria "operante" começaram com o interesse na reatualização de
bíblica, culminando na construção do Templo de Salomão. Vitrúvio e na restauração da arquitetura clássica. Embora Anderson
não seja positivo a esse respeito, tem-se a impressão que Inigo jones
E na maioria das histórias da franco-maçonaria , a Constitutions, é muito importante em sua história, talvez ao sugerir que foi numa
segundo a narrativa da construção, construtores e construções na Bíblia, as~ociação com a introdução e difusão do " estilo augustano" por
continua a apresentar a história da arquitetura não-bíblica. Primeiro, Inigo Iones, que a franco-maçonaria como instituição diferente da lenda
"a arte nobre da arquitetura" , difundida pelos hebreus entre os gre- maçônica , se iniciou na Inglaterra ,
gos. Em seguida , Roma aprendeu a arte, e tornou-se o centro da
cultura e do poder imperial , atingindo seu zênite sob Augusto César Observamos uma lacuna estranha na história maçônica. Por que
"em cujo reinado nasceu o Messias de Deus, o grande Arquiteto da não se refere ela a John Dee, o grande filósofo hermético, autor do
' Igreja" . Augusto estimulou "o grande VITRUVIUS, o Pai dos verdadei- famoso prefácio de uma tradução inglesa de Euclides , no qual elogiava
ros Arquitetos até os dias atuais". 20 Augusto, foi o Grão-Mestre da " o grande VITRUVIUS" , 24 e insistia no ressurgimento de Euclides, da
loja maçônica em Roma e o fundador do estilo augustano. arquitetura e de todas as ciências matemáticas? O Euclides , em inglês
com o prefácio de Dee, foi publicado em 1570 - certamente o mais
A história transcorre rapidamente através da perda da "maçona-
memorável documento histórico da sagrada ciência da geometria, e o
ria romana" durante as invasões dos bárbaros, e a origem do estilo
gótico, mencionando que nos "tempos ignaros", a geometria poderia arauto do renascimento da arquitetura clássica na Inglaterra, muito
ser "condenada por feitiçaria". 21 .
antes de Inigo jones. É difícil acreditar que os franco-maçons não
conheciam o prefácio de Dee a Euclides, com as suas várias citações
Chegando aos tempos modernos, ou mais recentes, o relato afir-
provenientes de Vitrúvio. E de fato parece perfeitamente evidente que
ma 22 que a Rainha Elisabete não foi favorável à arquitetura, mas o
James Anderson o conhecia, pois em mais de um ponto dá a impressão
Rei Jaime ressuscitou as lojas inglesas, e salvou a arquitetura romana
da ignorância gótica. Na Itália, os brilhantes arquitetos haviam se en- de estar quase citando suas passagens . Comparem por exemplo, as
palavras de Anderson sobre o reinado de Augusto, como sendo a
. 19. James Anderson, The Constitutions of Freemasons 1723' reproduzidas época na qual nascera "o Messias de Deus, o grande Arquiteto da
em fac-símile com a introdução por L. Vibert, Londres, 1923: p. 1. ' Igreja", com as de Dee sobre Augusto : "em cujos dias o nosso Divino
20. uu.. pp. 24-5.
21. tu«, p. 36. 23. tiu; p. 39.
22. Ibid., pp. 38 e 55. 24 . Os trechos sobre Vitrúvio, no prefácio de Dee a Euclides, estão dtados
em meu Tbeatre 01 the World, pp. 190-7. .
270
271
Arquimestre nascera" . 25 Podemos perceber que Dee foi deliberada- o problema é complicado pelo fato de que , embora pareça mais
mente omitivo da história maçônica oficial. 26 Qual poderia ter sido o do que provável que as sociedades secretas estavam progredindo sob
motivo dessa omissão? Talvez o mesmo que resultou na supressão de as influências constrangedoras dos tempos , não sabemos quantas delas
seu nome, isto é, a sua reputação de "feiticeiro" e divulgação com- havia, e tampouco - caso existissem - como se relacionavam umas
prometedora de Meric Casaubon. Embora bastante ironicamente, no com as outras.
Prefácio o próprio Dee lamenta a acusação de feitiçaria a ele imputada Conforme já foi mencionado antes , todos os movimentos secretos
pelos ignorantes, tal qual Anderson na Constitutions menciona que nos do final do século XVII deveriam ter tido uma afinidade com aqueles
"tempos ignaros" a geometria poderia ser "condenada por feitiçaria" . ao redor do Eleitor Palatino. Sabemos que a " Família do Amor" era
Aqui existe, portanto, um problema. De que forma este se asso- " uma sociedade secreta , que incontestavelmente teve uma existência
cia com o nosso problema sobre o rosa-crucianismo e a franco-maço- I real e uma organização , provindo da situação na Neerlândia no fim do
naria? século XVI. Estamos cientes de que muitas pessoas notáveis eram
Não tenho uma resposta exata para essa pergunta. Como já disse secretamente membros dessa seita ou sociedade, que os permitia per-
no início deste capítulo, este livro não é essencialmente orientado para tencer ostensivamente a qualquer classe religiosa, enquanto secretamen-
o problema da sociedade secreta. Tudo quanto posso fazer é tentar te mantinham-se filiados à Família . Esse comportamento da "Família
sugerir de que modo os movimentos históricos aqui descritos podem do Amor" tem algo em comum com o da franco-maçonaria. Sabemos
apresentar novos rumos na História, ao longo dos quais os futuros que o número de membros da Família cresceu muito entre impresso-
investigadores poderão movimentar-se na esperança de descobrir novas res, e que, por exemplo, o grande impressor da Antuérpia, Plantin, era
evidências. um membro dessa seita e muito entusiasmado por propagá-la, através
Suponhamos - simplesmente como uma hipotética linha histórica da publicação de trabalhos daqueles que com ela simpatizavam. An-
ao longo da qual as futuras investigações deveriam processar-se - que teriormente 28 foi sugerido que a família De Bry de impressores, que
foi na Inglaterra elisabetana que uma idéia de qualquer coisa igual ao. tinha ligações com a firma Plantio, deveria ter sido Familista, e que o
que foi posteriormente a concepção maçônica se tivesse desenvolvido movimento da mesma no território do Palatinado, no qual publicou,
associada com os cultos da Rainha e do movimento de Dee , e da qual em Oppenheim, as obras de pessoas de interesse rosa-cruciano -
Philip Sidney também participava. Na Inglaterra elisabetana, unida Fludd e Maier - pôde ser feito devido à simpatia secreta pelos movi-
por uma cavalaria reformada e pelos movimentos esotéricos renascen- mentos no Palatinado.
tistas, e espiritualmente organizada para resistir a um inimigo perigoso,
parece provável que não se verificariam agrupamentos secretos. Quando
esses movimentos deslocaram-se para o exterior, e na esteira do Eleitor
, . Mais uma vez observamos que as influências oriundas de Giordano
Bruno podiam ser detectadas no movimento rosa-cruciano. 29 Bruno, o
Palatino e s:qa esposa Stuart, não teriam eles incluído não só as idéias o"'. ardente filósofo hermético, que no final do século XVI difundira por
cavaleirosatrnglesas bem como as alquímicas, mas também o conceito toda a Europa o movimento esotérico, o qual exigia uma reforma geral
de uma espécie de pré-maçonaria, pela qual John Dee fora parcialmente do mundo, na forma de um retorno à religião egípcia e à magia bené-
responsável, ' tanto quanto o foi por muitas outras coisas desses movi- fica, deve ter formado uma sociedade secreta, os "giordanistas" , entre
mentos? Deveríamos procurar possíveis místicos entre os manuscritos ., os círculos luteranos da Alemanha. Ele visitara a Inglaterra) onde pro-
do grupo rosa-cruciano, principalmente Maier e Andreae, embora nessa vavelmente deve ter entrado em contato com Sidney, e ' mostrara-se
época seria difícil diferenciar estes dois dos místicos rosa-crucianos simpático aos aspectos mais esotéricos do culto cavaleiroso41elisabeta-
comuns. 27
25. ' Citação, ibid., p. 192. R. Wíttkower, Arcbitectural Principies in tbe Age 01 Hu",anis"" pp. 91, 106.
2'. A omissão de Dee da Constitutions, de Anderson, é observada por 136), e o interesse nesse assunto, sobre Maier e Andreae, não precisa nec:esstt-
Preoch como sendo estranha, em }ohn Dee, p. 161, n. 3. riamente ter qualquer coisa a ver com a franco-maçonaria.
TI . Por exemplo, o misticismo relativo às dimensões do Templo de Salo- 28. Consultar anteriormente, pp. 104-09.
mão inspira-se na primitiva teoria arquitetônica italiana renascentista (consultar 29 . Consultar anteriormente, pp. 119, 122.
"t te.Jo..to ~ l,) c.o.) 1'i- Cí..lkA"'(~'} (..0
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272
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no. so Eis aqui novamente uma possível influência no rosa-crucianisrno Se essas influências tivessem saído da Inglaterra para a Alemanha
misturando-se com outras influências. no início do século XVII (chegando na Boêmia via missão de Dee },
Poderíamos dizer que as influências familistas deveriam ter re- quando teriam voltado para a Inglaterra? Certamente após a derro-
presentado um influxo oculto na Neerlândia ; que o movimento de cada de 1620. Certamente um intenso movimento de lealdade e sim-
Bruno deveria ser atraente para os movimentos secretos na Itália; e patia para com o Rei e a Rainha da Boêmia ter-se-ia originado através
que todas essas influências deveriam ter coexistido com o movimento dos acontecimentos terríveis, e pelos quais eles foram forçados ao seu
esotérico inglês, fortemente . incentivado por John Dee, o qual estava longo exílio em Haia.
dando um -gran d e impulso à "liberação" européia, através da entroni- E eis aqui onde esse novo enfoque histórico pode auxiliar, indi-
zação de Frederico do Palatinado na Boêmia. cando o que pode ser considerado um novo campo de investigação.
Evidentemente, tudo isso nada mais são do que tentativas , suges- Verificaram-se movimentos rosa-crucianos em Haia , começando já por
tões compostas de "se" e "talvez" ; contudo é necessário descrever volta de 1622, e referindo-se ao que já é conhecido, graças a um deter-
tais tentativas às cegas, a fim de assinalar a dificuldade do assunto minado número de elementos, 32 mais alguns dos quais precisamos en-
deste capítulo. Sabemos que o final do século XVI e o início do XVII contrar. Parece possível que a franco-maçonaria organizada tivesse
representaram uma era de sociedades secretas; ignoramos porém quais encontrado em Haia um solo propício, no qual poderia desenvolver-se
os relacionamentos de uma para com a outra, e de que modo diferiam por si mesma, ou em conjunto com o rosa-crucianismo, naquela atmos-
mutuamente. O documento inglês de 1676 descreve o jantar ofere- fera de lealdade para com uma causa perdida, na qual, a figura predo-
cido pela "Green Ribbonet Cabal" 31 à Irmandade Rosa-Cruz, aos minante após a morte do ex-Rei da Boêmia era a ex-Rainha, a viúva
Adeptos Herméticos e aos Maçons Consagrados, tendo todos em real que durante tanto tempo manteve sua corte em Haia.
comum a sua "invisibilidade" . Talvez este trecho represente tradições Os membros da Casa dos Stuart propendiam para ' serem os
anteriores das - por assim dizer - intercomunicações entre as socie- transmissores da franco-maçonaria. Basta pensarmos na franco-maçona-
dades secretas, embora nas épocas primitivas e mais terríveis, tais ria jacobita que cercava os pretendentes. Talvez exista um único mem-
relacionamentos teriam sido muitíssimo sérios e bastante perigosos. bro da Casa dos Stuarts cujo ambiente não tenha sido suficientemente
investigado sob esse ponto de vista - Elisabete Stuart, ex-Rainha da
Se dentro desta complexa situação secreta em torno do movi- Boêmia. Ela possuía uma personalidade muito forte e exercia uma gran-
mento rosa-cruciano alemão, existisse uma influência esotérica inglesa, de influência, possivelmente visando conservar viva uma espécie do mo-
talvez derivando-se de um movimento maçônico associado com Dee, narquismo que até mesmo os Parlamentares pudessem aceitar, e que
talvez associando-se com as influências cavaleirosas~1nglesas, para dar pudesse ter algo em comum com um exilado da Boêmia, igual a Comê-
o nome de "Rosa-Cruz", teria existido alguma coisa real oculta sob nio, e que pudesse ter contribuído para a facilidade com a qual foi
aqueles misteriosos manifestos, algo da natureza de um movimento realizada a restauração da soberania de Carlos n. Essa suave transição
pré-maçônico. da revolução para a monarquia foi sempre motivo de surpresa, e a
Permitam-me salientar, mais uma vez, que aquelas tentativas às franco-maçonaria foi suspeita de estar a ela associada.
cegas são empreendidas apenas como hipóteses que possam orientar os
futuros investigadores, ao longo de um caminho ainda não trilhado 32 . Peter Mormius, Arcana totius naturae secretissimus Leyden, 1630, pa-
rece ser uma obra caracterizando o rosa-crucianismo em Haía no início do sé-
por aqueles interessados na primitiva história maçônica, pois acredito culo XVII (eu mesmo não a conheço). No prefácio desse estudo está mencio-
que ninguém teve conhecimento das influências inglesas no movimento nado .que o verdadeiro fundador da Ordem Rosa-cruciana não foi Christian Ro-
rosa-cruciano alemão. sencreutz, mas "Frederico Rosa" (consultar Arnold, Histoire des Rose-Croix,
pp, 256·7). Um outro episódio curioso associado com o rosa-crucianismo, desta
vez na Holanda, é aquele relativo a um pintor que foi detido por 'ser um rosa-
30. Giordano Bruno and tbe Hermetic Tradition, pp . 275 e 5S. -cruz, torturado e encarcerado, porém libertado pela intervenção de Carlos I da
31. Esse foi um clube dos Whigs no século XVII; consultar G. M. Tre- Inglaterra. Consultar Rudolf e Margot Wittkower. Barn undn Sa',.,,,,LondrCI~
1963, p, 31.
ve1yan, England under tbe Stuarts, pp . 378 e ss.
..\l, ~jo.\MkS(,N
274
Nossas pesquisas históricas sugerem, portanto, que havia alguma ramente conciliadora, que abrangia e estimulava o anseio de explorar
coisa na teoria de J. G. Buhle, embora não numa forma por ele apre- o trabalho do Arquiteto. E esse conhecimento básico esotérico, não-
sentada. É quase certo que o fenômeno da franco-maçonaria na Europa -pronunciado ou secret?, representou uma herança da Re~as.c~nça , pro-
estivesse associado ao movimento rosa-cruciano. f. veniente daquelas tradições da Magia e da Cabala, do rmsncismo her-
Todavia, essa declaração provisória e vaga está muito longe de mético e hebraico, as quais reforçam o neoplatonismo renascentista
solucionar o problema, pois está claro que os dois movimentos, embora conforme fomentado na Renascença Italiana.
provavelmente relacionados, não eram idênticos. A franco-maçonaria A Fama pode assim ser considerada agora como o manifesto per-
associa uma concepção esotérica da religião ao ensinamento ético e feito, conjugando - como o faz - a proclamação do Progresso do
à ênfase dada à filantropia, e de acordo com estes princípios acom- Ensino numa era moderna e esclarecida, com a sua sugestão sutil da
panha as normas dos Irmãos R. c., mas, conforme assinalou A . E. "invisibilidade", como sendo a marca distintiva dos Irmãos R. C.
Waite, ela diverge dessas normas por não estar interessada na reforma ti
II
das artes e ciências, na pesquisa científica ou na alquimia e magia, e !
em muitas outras . 33 Do grande reservatório do poder espiritual e inte- i
lectual, da visão moral e reformadora, representados pelos manifestos
rosa-erucianos , a franco-maçonaria desviou uma corrente; outras fluíram
para a Sociedade Real, para o movimento alquímico, e em muitas
outras direções . A nossa preocupação neste livro, refere-se ao Ilumi-
nismo rosa-cruz como um todo em suas múltiplas e multiformes mani-
festações, e menos com a canalização do mesmo para as sociedades
secretas. A investigação relativa a estas, contribuiu para atenuar a
importância desse assunto . Por exemplo, nunca ficamos sabendo se
Francis Bacon foi uma espécie de franco-maçom originário, embora não
seja isso nem necessário, nem importante. Muito mais proveitoso . é
investigarmos a influência do conceito do rosa-crucianismo do que
forjar nomes dos membros das sociedades secretas.
Contudo, o assunto analisado neste capítulo - o do sigilo - é útil
porquanto associa a Renascença com a primitiva revolução científica.
Os grandes observadores científicos e matemáticos do século XVII
têm pensamentos ocultos das tradições da Renascença, de idéias esoté-
ricas da continuidade mística oriunda da sabedoria hebraica ou "egíp-
cia",' e daquela fusão de Moisés com Hermes Trismegisto, que fascin<;>u
I
1 r
a Renascença. Essas tradições sobreviveram através da época nas socie-
dades secretas, principalmente na franco-maçonaria. Daí ignorarmos
tudo quanto se passa nas mentes dos primeiros membros da Sociedade
Real, a não ser que tomemos e~ consideração as influ~ncias eso~é~icas I
oriundas da Renascença, sobrevivendo em seus conhecimentos básicos. 1
I
,I
Por baixo ou mais além de suas filiações religiosas, divisariam o Gran- j
de Arquiteto do Universo, como sendo uma concepção religiosa intei- . ;
j
'1
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33. A. E. Waite, Real History of lhe Rosicrucians, pp. 402 e 55 . Waite
era contrário à teoria de Buhle, como o foi também R. F. Gould (consultarji
History of Freemasonry, de Gould, revista por Poole, lI , pp. 49-101) . ... . " . • • -I ,~ f.

276 . > ,."

?
micos e cabalisticos, e insinuei que se podia encontrar vestígios da
concepção rosa-cruciana em Francis Bacon, e até em Isaac Newton.
Este livro tentou apresentar uma estrutura histórica para essa
linha de pensamento, sendo também um trabalho histórico que eu
desejaria q~e fo~se julgado. Como historiador, esforcei-me por abrir
as portas ha muito fechadas, e pelas quais passaram uma vez as cor-
rentes de pensamento rosa-cruciano. Compreendido isso, e a fim de
CAPíTULO XVI seguir adiante com este assunto, devemo-nos dedicar intensamente aos
"manifestos rosa-crucianos", Eu mergulhei no atoleiro atemorizador da
o ILUMINISMO ROSA-CRUZ
(
literatura rosa-cruciena, para nele descobrir que a principal influência
subjacente no movimento rosa-cruciano alemão foi, sem dúvida,
I
John Dee. '
Há alguns anos, numa conferência que fiz nos Estados Unidos,
apresentei a seguinte observação: 1 I Por enquanto, dificilmente podemos perceber o que isso significa.
John Dee, torna-se agora uma figura dominante no cenário europeu.
Gostaria de tentar convencer as pessoas e historiadores sensíveis Primeiro: havia a sua carreira na Inglaterra, como o mago por trás da
a usarem a palavra "rosa-cruciano". Esta palavra possui associa- era elisabetana, o mágico da matemática que inspirou a essa rainha o
ções inadequadas, devido às afirmações não-críticas relativas à progresso técnico, e o aspecto mais esotérico e místico, em cujo pen-
existência de uma seita ou sociedade secreta, denominadas por samento inspiraram-se Sydney e sua escola, e o movimento poético
elas mesmas rosa-crucianas, e cuja história e número de sócios elisabetano que eles chefiavam. E então, em 1583, Dee parte para o
afirmam poder demonstrar. .. Sugiro que a palavra poderia ser exterior, e inicia uma segunda carreira na Europa central, como líder
empregada para um determinado estilo do modo de manifestar o de um movimento alquímico-cabalístico, sensacionalmente divulgado
pensamento, o qual é historicamente reconhecível, sem suscitar através dos afamados sucessos de Edward Kelley na transmutação. Que
a questão de ser ele um estilo rosa-cruciano de um pensador per- esse movimento foi de um tipo religioso, que Dee enquanto esteve na
tencente a uma sociedade secreta. Boêmia encontrava-se num estado de "arrebatamento", 2 é agora com-
preendido, embora essa segunda metade da carreira de Dee não tenha
É desse modo que proponho o emprego de "rosa-cruciano" e sido inteiramente estudada. Até que isto seja feito, não nos encontra-
"rosa-cruzes" neste último capítulo, como sendo um dístico histórico mos numa situação de entender a vida e o trabalho dele como um todo.
para um modo de pensar igual ao que encontramos neste livro. , O movimento rosa-cruciano, na Alemanha) prossegue de acordo
Nessa mesma conferência, tentei definir a situação histórica do com ambos esses aspectos do trabalho de Dee. Num certo sentido,
tipo do pensador rosa-cruciano, ao qual coloquei de permeio, entre a representa uma exportação do período elisabetano e das inspirações
Renascença e a primeira fase da chamada revolução científica - ou
I
! científicas, místicas e poéticas que nele se ocultam. Às cores da Ingla-
século XVII. Expliquei que o rosa-cruz era alguém pertencendo intei- "j terra, pertence o termo "Rosa-Cruz", que segundo ju}go origina-se da
ramente à corrente da tradição da Renascença hermético-cabalística, " cruz vermelha de S. Jorge e das tradições cava1eirosat~nglesas. A velha
porém diferenciava-se no que se referia às primeiras fases do movi- tradição, pela qual "rosa-cruz" era uma palavra de importação alquí-
mento, por acrescentar a alquimia aos seus interesses. Isto não altera mica, originada de ros (orvalho) e crux, é incentivada por Dee, na
a anuência básica do rosa-cruciano ao esquema da "filosofia oculta", Jv!.onas hieroglyphica, mediante o orvalho caindo no frontispício do
conforme ~n~tituído por Corn~lio Agripa. Assinalei John Dee, como livro, e as complexas alusões à cruz no símbolo da "monas". Assim
pensador tipicamente rosa-cruciano, que associou seus interesses alquí- sendo,. "rosa-cruz" tornar-se-ia uma palavra significando as tradições
, cavalelrosa/'4nglesas e a influência de Dee sob elas oculta. Seja como
1. "The Hermetic Tradition in Renaissance Science" Arl Science and for, acredito que o nome do movimento pertence ao lado inglês.
His/ary in lhe Renaissance, ed. Charles S. Singleton, johns 'Hopkins Pres;, Bal- (
timore, 1968, p. 263. 2. French, John Dee, p. 123.
I•
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278 .I ... 1... ~jv.l.t.\ {~c.w
1
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A segunda metade da carreira de Dee é ainda mais importante em mico, simplesmente como matemático, e não more Hermetico segundo o
relação ao movimento rosa-cruciano, se - como acredito - o movi- costume de Fludd. Acusa Fludd de assentar seus argumentos numéricos
mento de Dee na Boêmia foi utilizado por Anhalt para a consolidação I e geométricos na analogia do macrocosmo-microcosmo, e confundir os
do Eleitor Pala tino no trono da Boêmia. r
i
verdadeiros matemáticos com os "Alquimistas, Hermetistas e Paracelsis-
Desse modo, as correntes históricas por trás do Eleitor Palatino, tas". Estas acusações poderiam aplicar-se igualmente a Dee e a toda a
desejando conquistar a coroa da Boêmia, unem-se com as influências escola rosa-cruciana. E a reprovação de Kepler, quanto ao emprego de
de Dee insinuando-se da Inglaterra e também por via da Boêmia, para Fludd dos diagramas matemáticos, como "hieróglifos", poderia eviden-
produzir a explosão rosa-cruciana. Todavia, essa trama histórica, em- temente aplicar-se também à "monas" de Dee e a tudo que ela su-
bora, por assim dizer, apreendendo o movimento, não representa a bentendia.
causa do mesmo, que tem um alcance muito mais amplo do que aquele Todavia, Kepler freqüentava os círculos de Andreae, e parece
que pode estar envolvido por esses acontecimentos históricos. ter-se associado mais tarde com as Congregações Cristãs. Kepler, como
O que então significa rosa-crucianismo? Fludd, dedicou sua obra mais importante sobre a harmonia a Jaime I
Para o verdadeiro rosa-cruz, o lado religioso do movimento foi da Grã-Bretanha. O Imperador serviu-se de Kleper e, assim, deveria
sempre o mais importante. O rosa-cruz tentou penetrar nos níveis encontrar-se politicamente numa facção diferente da dos rosa-cruzes
profundos da prática religiosa, através dos quais e dentro de sua pró- (Kleper fala misteriosamente, e aparentemente com certo desprezo dos
pria filiação confessional, ele reviveu e fortaleceu-se. Tal qual Dee e "irmãos da Rosa-Cruz" em sua Apologia de 1622). Contudo, a asso-
provavelmente Fludd também o concebiam, o movimento deveria ciação de Kepler com o mundo rosa-cruciano é tão íntima, que quase
abranger todos os propósitos religiosos, e não era necessariamente poderíamos chamá-lo de herege do rosa-crucianismo. Este livro for-
anticatólico . Entretanto, o movimento, conforme se desenvolveu na Ale- neceu um material histórico, do qual deveria ser feito um enfoque
manha, serviu-se de inclinações anticatólicas, ou melhor, mais particular- histórico de Kepler, este, porém, é um assunto demasiadamente extenso
mente de inclinações antijesuíticas. Nela, ele envolveu uma piedade para ser aqui ventilado.
intensa de um tipo francamente evangélico, pelo qual foi feito um Voltemos pois à análise geral da perspectiva rosa-cruciana. A
apelo a todos os protestantes alemães, qualquer que fosse a sua magia foi um fator predominante, funcionando como matemática-
denominação. -mecânica no mundo inferior; como matemática celestial, nas esferas
Os manifestos enfatizam a Alquimia e a Cabala como temas domi- celestiais, e como sortilégio angélico no mundo supercelestial. Não
nantes do movimento. A primeira deu a este um aspecto derivando podemos excluir os anjos deste panorama do mundo, ainda que esti-
para a medicina. Os Irmãos R. C. podem curar. Os médicos paracel- vesse progredindo muito rumo à revolução científica. A perspectiva
sistas tais como Fludd, Maier e Croll representam a idéia do movimen- religiosa está ligada à idéia de que a penetração . ocorrera nas es-
to. Mas na Monas, de Dee, e no movimento aiquímico de Maier existe feras angélicas mais elevadas, nas quais todas as religiões eram consi-
mais um aspecto difícil de ser apreendido, podendo ele representar deradas como uma única; e são os anjos que iluminam - assim se
uma abordagem à Natureza, na qual as formulações alquímicas e imagina - as atividades intelectuais do homem.
cabalistas se associaram com as da matemática para formar algo novo. Na época mais antiga da Renascença, os magos foram criteriosos
Deve ter sido essa semente no pensamento rosa-cruciano que fez com empregando apenas as formas em funcionamento nas esferas celestiais,
que os portadores de alguns dos maiores nomes, na história da revo- usando talismãs e vários rituais, a fim de atrair as influências benéfi-
lução científica, vacilassem em torno dele. cas das estrelas. A magia de um realizador audacioso como foi Dee,
Por outro lado, a marcha da revolução científica também é con- aspira à magia supercelestial matemática, a magia do sortilégio dos
trária ao mundo rosa-cruciano, ansiosa por afastar a crisálida para fora anjos. Dee acreditava piamente ter conseguido entrar em contato com
daquilo que está surgindo. O mais extraordinário exemplo desse pro- os anjos bons, com os quais aprendera o progresso dos conhecimentos.
cesso de emergência e rejeição, evidentemente se encontra na contro- Esta sensação de contato íntimo com os anjos, ou seres espirituais, é
vérsia entre johannes Kepler e Robert Fludd. Embora estivesse ainda a marc! distintiva da autenticidade do rosa-crucianismo. E. isto que
profundamente absorvido nas influências herméticas, Kepler, em seu incute"a sua tecnologia, embora prática e bem sucedida, e inteiramente
Harmonice mundi (1619), afirmou estar tratando seu estudo astronô- racional na sua nova interpretação das técnicas matemáticas, com um
~l -- t: {~\.o ~IA- <h~1G()q" SIJ~ boL> ye>. (L ~.J ...
280 \ O 281
alento sobrenatural, e faz com que seja suspeito de estar possivelmente à idéia da vida, e propõem uma concepção vitalista do universo. E o
em contato não com os anjos, porém com demônios. simbolismo da alquimia está tão habilitado a interpretar (numa forma
O período durante o qual surgiram os manifestos rosa-crucianos, simbólica) as realidades da vida religiosa, quanto aquele da matéria
e aquele do furor que eles provocaram vêm a ser a época na qual a e forma. Talvez mesmo mais habilitado, por estar menos gasto, menos
Renascença desaparece na convulsão das perseguições à feitiçaria e das intelectualizado e mais simbólico através de sua própria natureza." 3
guerras, para surgir no porvir - quando essas calamidades tinham sido Koyré está falando de Boehme, porém suas palavras podem adaptar-se
ultrapassadas - como sendo o esclarecimento. Não creio que nossos ao movimento alquímico rosa-cruciano, o qual, em espírito, está tão
estudos neste livro, manifestaram que a obsessão da feitiçaria nessa próximo ao de Boehme.
época terrível possa ser inteiramente explicada através de estudos
Teach me, my God and King,
antropológicos baseados no fenômeno dos sortilégios, como sendo
In alI things thee to see;
comum em todos os países e ciclos. É verdade que as obsessões da
bruxaria nesse período parecem seguir os padrões habituais, e não há
dúvida de que de certo modo elas estão basicamente relacionadas com [ And what I do in anything
To do it as for thee!
o fenômeno quase universal. Mas nem todas as eras, e nem todos os A man that looks on glass,
países sofreram a experiência, pela qual a Europa estava passando no On it may stay his eye
século XVII . Ela demonstrava que os imensos progressos científicos, 'Or if he pleaseth, through it pass,
que tornaram a Europa inigualável, eram agora acessíveis, quase po- And then the heaven espy..
diam ser alcançados. Quando o rosa-cruz percebeu que na "monas" de
Dee, ele tinha algo de um poder e potencialidade imensos, isto coope- AlI may of thee partake;
rou para a sensação geral da abertura de uma porta na Europa, que Nothing can be so mean,
grandes progressos começavam a ser viáveis, que os tesouros da ciência Which with this tincture, "for thy sake",
seriam brevemente revelados, iguais àqueles encontrados quando da Will not grow bright and clean.
abertura do sepulcro de Christian Rosencreutz.
Com isso verificou-se a sensação do perigo. O progresso prometido A servant with this clause
para muitos podia parecfr diabolicamente arriscado, antes que angeli- Makes drudgery divine;
calmente promissor. A tâurora anunciada precede aquelas nuvens tre- Who sweeps a room as for thy laws,
mendamente escuras da histeria, do feitiço, algumas vezes fomentada Makes that and the action fine
artificialmente por aqueles que desejavam destruir o movimento. As This is the famous stone
obsessões da feitiçaria, que Descartes evita tão prudentemente, e que That turneth alI to gold;
Francis Bacon conserva cautelosamente na lembrança, são de caráter For that which God doth touch and 'own
um tanto diferente daquelas nos países menos desenvolvidos. São o Cannot for less be toldo *
oposto do progresso científico.
No movimento rosa-cruciano, a únião dos religiosos com visão 3. A. Koyré, La philosophie de [acob Boebme, Paris, 1929, p. 45.
científica tomou a forma daquele movimento alquímico, estranhamente ,~ Ensinai-me, meu Deus e , Rei, / A vos ver em todas as coisas; I E tudo
intenso, no qual os métodos alquímicos de manifestação pareciam os que eu fizer / Possa fazê-lo por Vós!
Um homem ao mirar-se no espelho, / E nele fixar seu olhar I Ou se assim
mais adequados para a prática religiosa. KOyj'é considerou esse movi- lhe apraz, por ele apenas passar, / E em seguida o céu lobrigar. .
mento como sendo uma evolução, natural·desprovida, das filosofias Convosco, possa tudo compartilhar; / Nada pode ser tão indigno, / Pois ao fa.
animista e vitalista da Renascença, perguntando se a alquimia não zê-Io falsamente "por amor a Vós", / Não se tornará inteligente e puro.
proporciona um sim~lismo mais adequado à experiência religiosa ativa Um servo considerando esse preceito / Converte o esforço em algo divino; / Ao
varrer qualquer coisa, ele o faz por Vós / Torna isso e o ato numa be1t:sa
do que as doutrinas da matéria e forma escolástico-aristotélica. "Aque- sublime.
les que, acima de tudo, buscam uma regeneração da vida espiritual, Essa é a famosa pedra I Que transmuta tudo em ouro; I Pois o que ~
são ,
. naturalmente atraídos para as doutrinas que dão mais importância toca e possui / Nem ao menos pode ser revelado,
~.l - ~ CAAJ"()~ ~Y)"'Y\VlO'~ .~~ , •. \ \ .
282 ~ 1.- ~O\ Wo\..v~<\I "O~\v-l~\
1/ . . . . e.. ~\~ \ ~, ••
.-"f -----...".,",--
\

Assim manifestou-se poeticamente George Herbert, sobre a sua


I Elisabete quando prometeu a John Dee que o apoiaria em seus estudos
experiência religiosa cristã , e era esse ouro espiritual por ele cantado, 1 e o defenderia ao ser perseguido, deu um passo para o progresso da
aquele procurado pelo movimento rosa-cruciano alemão . Em grande I
ciência.
parte da literatura sobre o furor, verifica-se uma insistência na imita - ; Comparem e observem o contraste do que ocorreu na Boêmia.
ção de Cristo, conforme pregada por Thomas à Kempis, como sendo
a verdadeira "rnagnalia" da revelação alquímica .
I Eis aqui um país, no qual a tradição favorecendo o progresso -
aquela hermético-cabalística conforme exemplificada pelos cabalistas e
O movimento rosa-cruciano está ciente de que grandes e novas alquimistas de Praga - mostrou-se excepcionalmente forte . A Boêmia
revelações da ciência encontram-se ao alcance de todos , que o homem era sobretudo, embora não inteiramente, um país protestante de con-
está prestes a atingir uma outra fase de adiantamento , mais além da- vicções hussitas . .A associação de um liberalismo religioso do tipo !
quela já conquistada. Esta sensação de encontrar-se na ponta dos pés, hussita-protestante, com a tradição hermético-cabalística fortemente \I
à espera de novos conhecimentos, é a mais característica da perspectiva inculcada, deveria ter originado resultados originais e interessantes. E
quando com o movimento de John Dee surgiram aquelas tradições \1
rosa-cruciana. E os rosa-cruzes, que sabem ter em suas mãos potencia-
lidades para um grande progresso, estão interessados em integrá-los inculcadas e desenvolvidas na Inglaterra elisabetana, os resultados - I:
I '
numa filosofia religiosa. Portanto, a alquimia rosa-cruciana manifesta nas opiniões originais religiosas e científicas - deveriam ter sido fan-
ambos os pontos de vista científicos, penetrando nos novos mundos tásticos . Contudo, não havia nenhuma Rainha Elisabete para garantir
da descoberta, e também, numa atitude de expectativa religiosa; ingres- a liberdade dos livres pensadores; e Jaime I não aceitou representar \
o papel que a ela coubera. Em vez disto, verificou-se a destruição i
sando nos novos campos da prática religiosa. ,I
deliberada e a repressão do tipo mais violento . Assim sendo, a contri- i
Freqüentemente, verifica-se a pergunta sobre quais dos sentimen-
buição do povo da Boêmia para a nova era só podia ser prestada
tos, o de fidelidade confessional ou das diversas formulações do cris-
tianismo, eram mais conducentes ao progresso da ciência. Teria pro- indiretamente.
gredido mais sob os regimes católico ou protestante? E, caso fosse Quanto ao tipo de protestantismo que foi mais conducente para
sob o protestante, deveria ser o luterano ou o calvinista? o progresso científico, as nossas . pesquisas neste livro devem s1.erir
Essa pergunta deveria ser feita de outro modo. Em meu livro que não foi tanto o tipo de protestantismo que importou como pre-
Giordano Bruno and lhe Hermetic Tradition , demonstrei que o novo sença ou ausência da tradição hermético-cabalística. O Palatinado era
desvio para o mundo na investigação científica baseia-se nas atitudes um país calvinista; contudo, que evidência existe da influência das
religiosas alimentadas na tradição hermético-cabalística. Se assim é (e doutrinas teológicas calvinistas no movimento que tentamos descrever?
todas as minhas sindicâncias posteriores confirmaram essa opinião, Foi o esforço para evitar as divergências doutrinárias, para desviá-las
que atualmente é em grande parte aceita pelos historiadores do pensa- da exploração da Natureza com um espírito religioso, que formou o
mento ), resultaria que a perspectiva religiosa que contribuíra para que ambiente no qual a ciência progrediria, e que incontestavelmente o
essa tradição florescesse dentro de sua esfera de influência seria a mais teria feito no Palatinado, se a guerra não tivesse interferido.
conducente ao progresso científico. O argumento de que o puritanismo favoreceu o progresso cien-
No início da Renascença, os estudos herméticos e cabalísticos não tífico foi aventado muitas vezes. Onde este argumento pode encontrar
foram desencorajados pela Igreja Católica Romana, embora o problema
da magia tenha sido sempre cautelosamente tratado. Um dos primeiros
r algum apoio, é no fato de que o hebraísmo enérgico, o tipo de piedade
dos puritanos e calvinistas inspirado no Antigo Testamento, foi condu-
é mais insignes cabalistas cristãos, Egidius de Viterbo, foi cardeal. No cente para a ,fusão com a cabala, com o lado místico do judaísmo. :g I
final do século XVI, é possível que a tradição tivesse alcançado seu óbvio que a veneração puritana por Jeová levaria aos estudos cabalís- I
ponto mais intenso, sob as formas do protestantismo. Um país pro-
testante, que permitisse a tradição e não se excedesse na perseguição
ticos. Além do mais, na Inglaterra e no período do Parlamentarismo e
sob o governo de Cromwell, havia liberdade e tolerância para com I
à magia, seria portanto um país no qual a ciência viria a desenvolver-se
completamente livre. Essa nação foi a Inglaterra elisabetana; e li Rainha

284
todas as espécies de disposições religiosas e científicas, exceto a católict

,.1. ~.. '....i'-I;<>J Co...... ... r"""" ~ . '\-


romana. Uma ve que esta era a subdivisão inteiramente intolerente, a
1
28$ .
I ,~
T

r sua exclusão não foi nociva para a liberdade do progresso da ciência


na Inglaterra puritana. 4
O tipo de abordagem necessária para a solução desses problemas
Rabino Loew, 7 que foi uma figura eminente em Praga no fim do
século XVI (morreu em Praga em 1609). Participou de uma entre-
vista memorável com Rodolfo II, durante a qual o Imperador pediu a
esse judeu um conselho de ordem espiritual.
(ao que me parece) mal foi iniciado. François Secret, em seu livro
sobre a cabala cristã , 5 conseguiu reunir muitos elementos sobre as Certamente devem ter-se verificado influências de John Dee , não
diversas atitudes da cabala nas várias classificações do cristianismo. só na mais antiga cabala espanhola incorporada à tradição rosa-crucia-
Ele não chega às conclusões, e seu livro é mais do gênero de uma na, como também na nova cabala luriânica , que foi capaz de provocar
bibliografia, do que uma obra literária, embora seja sugestivo. O Con- um fenômeno importante de origem religiosa. Ao pensar na estranha
cílio de Trento acrescentou no índice muitas obras sobre a cabala, e explosiva missão religiosa de Dee na Boêmia, é provável que se deva
consideradas padrões na Renascença (tais como as de Reuchlin ), pro- levar em consideração essa espécie de influências. Christian Rosencreutz
pendendo de um modo geral - embora com reservas - para desen- descreve na Fama as viagens ao Oriente, de onde regressou com uma
corajá-las. Nos países protestantes, nos quais evidentemente, as nova espécie de magia e cabala, que ele incorpora em sua própria
restrições tridentinas não agiram, ela pôde ' desenvolver-se mais perspectiva cristã. 8
livremente. O estudo posterior do movimento religioso alquímico-cabalístico ,
seria, indubitavelmente, instrutivo e lançaria uma luz retrospectiva
Um aspecto muito importante da influência da cabala, ou das
sobre a nossa época . A estranha figura de Francis Mercury Van HeI-
tradições místicas judaicas, sobre o pensamento europeu no século mont, 9 filho do insigne alquimista-químico J. B. Van Helmont, repre-
XVI e início do XVII, é o fato de se terem verificado novos de- sentou na geração do filho do Eleitor Pala tino , Carlos Luís, com quem
senvolvimentos dentro da própria tradição judaica cabalística. A caba- estava intimamente relacionado, um exemplo extraordinário do tipo
la original, que influenciaria Pico della Mirandola e a Renascença de personalidade rosa-cruciana. Médico e terapeuta, alquimista e mági-
Italiana, centralizara-se na Espanha. Após a expulsão dos judeus da co, Francis Mercury Van He1mont, parece um Irmão R.C. que final-
Espanha em 1492, originou-se um novo tipo de cabala tendo o seu mente fica visível. E no seu caso, sabemos Que foi influenciado pela
centro na Palestina. Esta nova cabala difundiu-se por meio de Isaac cabala luriânica na modalidade cristianizada, conforme propagada por
Luria 6 (século XVI) e seus discípulos, que formaram um grupo em Christian Knorr von Rosenroth , pastor luterano da Silésia. Talvez fosse
Saíed, na Palestina . A cabala luriânica começou a espalhar-se pela elucidativo estudar essa associação da alquimia religiosa com a cabala,
Europa em fins do século XVI e início do XVII. Ela cultivou e como sendo um provável paralelo entre Dee, a alquimia e a cabala
exercitou a imaginação religiosa, pela meditação mística intensiva, numa época anterior.
Pelas técnicas da magia e culto dos Nomes Divinos, e pela oração Parece-me que o aumento dos estudos cabalísticos seja uma carac-
extática . A sua Perspectiva apocalíptica enfatiza a importância do Co- terística da tradição hermético-cabalística no final do século XVI e início
meço, bem como do Fim, da volta do Começo paradisíaco, como um do XVII, embora os decretos do Concílio de Trento entrassem em
estágio necessário para o aparecimento do Fim. Praga foi um grande vigor contra esses estudos nos países católicos. A alquimia paracelsista
centro para o cabalismo judaico e para uma personalidade notável, ' o também não foi estimulada nessas nações. Daí o movimento verificado
nos manifestos rosa-crucianos serem provavelmente de inclinação antiea-
4 . A influência de Dee pareceria ter sido até certo ponto fortemente absor- tólica . Já tivemos ocasião de observar que certamente são muito antiie-
vida pelos puritanos; consultar anteriormente, pp. 20}-5. Ela se difundiu no
puritanismo no Novo Mundo através de John Winthrop, alquimista e partidário
suítícas.
de Dee ; Winthrop empregava a " monas" como seu distintivo pessoal. Consultar
R. S. Wi1kinson, "The Alchemícal Library of Iohn Winthrop", Ambix, XIII 7 . Consultar Frederic Thieberger, Tbe Great Rabbi Loew oI Pragtle, Loe-
(1%5), pp. 139-86. dres, 1954.
5. F. Secret, Les Kabbalistes Cbrétien: de la Renaissance, Paris, 1964. 8. Consultar o Apêndice, pp . 296.300.
6. G. Scholem, Maior Trends in [etoisb Mysticísm, Londres, 1955, pp. 9. Consultar Marjorie Nicolson, Conway Lell"!, Londres, 1930, pp. lO'
244 e ss. e ss.

286
A aliança Habsburgo-jesuíta, que o movimento rosa-cruciano
tornou a enfrentar, não foi aprovada por todos os católicos. A coliga-
ção dos jesuítas com os esforços habsburgos para realizar a hegem..ffia
européia, foi iniciada pelos jesuítas, como o meio de compreender que
a vitória universal do 'catolicismo sobre a Reforma - a qual era o
I Evidentemente, ele tentou inspirar-se na tradição de Dee, pois em um
de seus volumes, ele ilustrou uma versão egípcia da "monas". 12
Pela sua fidelidade mútua à tradição hermética, os jesuítas e os
rosa-cruzes eram desse modo adversários, com irm relacionamento mes-
desejo veemente dos entusiastas mais radicais da Contra-Reforma - clado de amor e ódio, através de uma espécie de similaridade. Já
parecia estar prestes a ser bem sucedida após 1620. Todavia, o Papa observamos que durante o furor, os jesuítas tentaram tirar proveito do
reinante, Urbano VIII, jamais aprovou essa política. 10 Em parte, isso simbolismo rosa-cruciano, sugerindo que as duas Ordens eram a mesma,
foi porque politicamente era a favor da França e contra a Espanha; e forjando emblemas semelhantes. Deste modo as conclusões podiam
ele, porém, também rnaniíestoutéomo sendo o conceito da Igrejá, que ficar confusas.
a aliança da mesma com os Habsburgos era a ela nociva e errônea, por Além disso, os jesuítas dedicavam-se mais assiduamente às ciências
representar uma identificação por demais entrosada dos interesses espi- e às artes . Seus imensos esforços visavam saciar a sede de conhecimento
rituais com uma dinastia. A coligação jesuíta-habsburga não agradou a dentro das normas da Igreja. Eram eles os iniciadores, ou estariam
muitos católicos, principalmente aos católicos franceses . Na França, sempre tentando "manter-se informados", a fim de demonstrar que
no século XVII, ela destruíra Henrique III (embora alguns jesuítas podiam assumir o comando de tudo que fosse útil nos novos movimen-
o tivessem apoiado contra os simpatizantes espanhóis) . Na Itália, era tos, ao mesmo tempo que eliminavam tudo quanto lhes desagradasse?
o poder que estava esmagando a tradição renascentista, contra a qual Dever-se-ia fazer uma comparação cuidadosa entre os trabalhos de
Sarpi tomara posição em Veneza, e pela qual Giordano Bruno fora Robert Flud e aqueles de Athanasius Kircher, antes de podermosdeci-
queimado. dir se o emprego da tradição hermética rosa-cruciana era mais condu-
Para os rosa-cruzes, a coligação Habsburgo-jesuíta era simplesmen- cente à ciência do que o uso jesuíta da mesma. Provavelmente existia
te o Anticristo . Como já observamos, a fictícia Ordem Rosa-Cruz pare- maior influência cabalista em Fludd, do que em Kircher, e isso pode
cia oferecer quase uma imagem refletida no espelho da Ordem Jesuíta. ser significativo.
Com o seu lema Jesus mibi omnia e a sua missão de antes curar do Seja como for , como quer que seja compreendida ou interpretada,
que destruir, os Irmãos Rosa-Cruzes são apresentados como os verda- aquela comparação entre rosa-cruz e jesuíta, que sentimos no movi-
deiros jesuítas (conforme são chamados por Adam Haselmayer), em mento rosa-cruciano, representou um sinal de novos tempos, um sinal
oposição aos falsos seguidores de Jesus . de que a Europa estava se afastando do velho mundo e de suas classi-
Todavia, de todas as ramificações da Igreja Católica Romana, ficações nas eras, nas quais as influências sobreviventes daquele mundo
foram os jesuítas os mais parecidos com os rosa-cruzes . As influências adquirirão novas formas . Já podemos começar a ver nessa comparação,
esotéricas da Renascença, ocultas sob a instituição da Ordem Jesuíta, o aparecimento das atitudes maçônicas versus as dos jesuítas, que se
ainda não foram satisfatoriamente estudadas. A Ordem prevaleceu-se destinavam a constituir um dos mais básicos e mais secretos padrões
muito da tradição hermética, ao apelar para os protestantes e para os europeus até a Revolução Francesa.
outros inúmeros credos que encontrou em sua obra missionária. A Um modo de encarar as investigações neste livro é observá-las
filosofia hermética e oculta dos jesuítas recebeu , mediante o trabalho como tendo desvendado um período perdido da hist6ria européia. Tal
de Athanasius Kircher, uma exposição exata de fatos e conceitos. O qual os arqueólogos escavando as camadas de terra, descobrimos sob
vasto trabalho deste escritor sobre a pseudo-egiptologia hermética foi a história superficial do início do século XVII, um pouco antes da
p,ublicado em 1652, e é com freqüência que ele cita com profunda ' deflagração da Guerra dos Trinta Anos, toda uma cultura, toda uma
reverência o suposto antigo sacerdote egípcio, Hermes Trismegisto. 11, -civilização que se perdera de vista, e não menos importante devido à
A obra de Kircher foi muito empregada nos esforços missionários. sua curta duração. Podemos chamá-la cultura rosa-cruciana, e examiné-
-la de muitos pontos de vista, Um dos modos para observá-la é o da
10. David Ogg, Europe in tbe Seoenteentb Century, p. 162; C. V. Wedg- era elisabetana, em seus aspectos rosa-crucíanos e nos inspirados por
wood, The Tbirty Years War, pp. 191, 336.
11. Consultar Giordano Bruno and the Hermetic Tradition , pp. 416 e S5, 12. Reproduzido, ibid.• Fig. 15 (b).
~i8" " J~~~~' .~!U"t'Y'\ W)t.(~ ~ ~-or C-«tlrtt"SílJR.I ... ,..'I
.fI2,~ ••. ~~I '~\C\"<vI~~ ~~ ,\v«.Io. lPvI"tfC<JW ~
1\r<il..)c.. -l4C- c- \v.l. u'V)C, •.• \ \ \
Dee, 9ue conti~uaram no exterior. A era elisabetana propagou-se com do século XVII na Inglaterra, que sena fascinante desintricar um
o Eleitor Palatino e sua esposa, recém-saída daquelas núpcias cheias pouco mais.
das ~o~pas da Renascença Inglesa, e dirigindo-se para a Alemanha e
a Boêmia, onde ela veto a desabar sob o peso da catástrofe. Podemos Ou então podemos raciocmar sobre o aspecto alemão do movi-
observar os personagens que nos são familiares nos cenários bem ilu- mento, como coincidiu com um outro visando a restauração da vida
espiritual luterana, através da filosofia religiosa alquímica conforme
minados da história e literatura inglesa - Henry Wotton, john Donne
manifestado na vida e na obra de jacob Boehme. Certam~nte, a luz
- ao se deslocarem daquele novo ambiente, para lá aparecerem num
será lançada sobre Boehme , mediante uma investigação mais profunda
novo contexto. Podemos apreciar os atores e os rituais da cavalaria
do movimento rosa-cruciano , e das publicações que emanaram do furor
inglesa influindo na gênese de um trabalho alemão de imaginação , o
ros~.cruciano'. Temos esperanças de que o assunto complexo, porém
Chemical Wedding, de Andreae , que por sua vez veio a influenciar valioso , relativo ao furor na Alemanha , receberá agora uma atenção
Goethe, que escreveu uma alegoria alquímica baseada nele. Pudemos mais profunda, como sendo a manifestação de uma fase muito impor-
ver aqui os entrelaçamentos das tradições européias , ligações para nós
tante na História européia.
perdidas através do desaparecimento na história , da era rosa-cruciana
no Palatinado. A recomposição suplementar daquela época, certamente O aspecto mais extraordinário do movimento rosa-cruciano é.
nos revelará ligações adicionais . Michael Maier, em sua linguagem figu- aquele que dá expressão ao título deste livro, a sua insistência no
rada estava deliberadamente reorganizando ou continuando os temas advento de um Iluminismo. O mundo, ao aproximar-se de seu fim,
simbólicos usados na Inglaterra. A poesia metafísica de john Donne deve receber uma nova iluminação, na qual os progressos na ciência
assemelha-se em muitos aspectos às reproduções simbólicas de Maier, feitos na era anterior à Renascença serão imensamente expandidos. As
manifestando num meio diferente uma concepção filosófica e religiosa, novas descobertas são agora viáveis, uma nova era está despontando.
que pode estar intimamente paralela . O "Cântico do Casamento", escri- E essa iluminação resplandece tanto para dentro como para fora; ela
to por Donne para as núpcias de "Lady Elisabete com o Conde é. ~f?a iluminação espiritual int~rior, revelando ao homem novas pos-
Palatino", emprega metáforas sobre a união de duas fênices, sobre o sI.btl~dades nele e~ce~radas, ensinando-o a compreender a sua própria
casamento do Sol com a Lua , o que já representa a inspiração alquí- dignidade e supenondade, e o papel para o qual foi convidado a de-
mica, destinada a ser tão característica de seus cultos nos círculos sempenhar no programa divino.
rosa-crucianos no exterior. Ainda não percebemos suficientemente o Vimos que o Iluminismo Rosa-Cruz difundiu suas luzes sobre o
que o ano de 1620 deve ter significado para Donne e seu amigo progresso no século XVII , e que grande parte dos detentores de nomes
Wotton, ao observarem aquelas calamidades, sobre as quais nada podia famosos naquele progresso parece ter estado consciente dele. Espera-se
ser dito devido à atitude do Rei Jaime. que isso demonstrará finalmente - o que de fato já foi verificado por
Ou podemos atravessar esse pedaço esquecido do território histó-
-I muitos - que a tradição hermético-cabalística, como sendo uma força
rico, numa outra direção, aquela muito menos conhecida para nós , a nos antecedentes da ciência renascentista, não perdeu aquela energia
do lado da Boêmia. As tradições da corte de Rodolfo lI, em Praga, com o advento da revolução científica, e que continua presente no
estavam difundindo-se no Palatinado por meio de Maier e seu traba- substrato dos pensamentos dos personagens outrora considerados os
lho.' Muitas pessoas envolvidas no movimento do objetivo boêmio representantes absolutos da emergência perfeita oriunda dessas influên-
cias, Qual foi exatamente o papel desempenhado pela ciência rosa-

1
perderam suas vidas. Contudo, os peritos em história e cultura desse
país, durante aquele período, sabem muito sobre o que ainda não foi -cruciana, e mais precisamente, pela matemática rosa-cruciana, no
facilita?o ao leitor do idioma inglês. Quando se divulgarem maiores 1
grande progresso? Estas são perguntas que este livro não tentou
conhe~lII~entos, po~eremos compreender melhor o movimento alquímico responder.
do objetivo boêmio, e aprender mais acerca das vidas e idéias dos O Iluminismo Rosa-Cruz inc1uiu+~m aspecto da necessidade para
homens iguais a Daniel Stolcius, e sobre a anuência desses homens uma reforma da sociedade, principalmente da educação, e para uma
ao,s temas ?a alquimia r?sa-cruciana, como parte da incrementação do terceira reforma da religião, abrangendo todos os aspectos da atividade
remado efemero do ReI e da Rainha da Boêmia. Esse movimento, humana - e considerou isso como um complemento da nova ciência.
extinto naquele país , teve uma vida posterior no movimento alquímico Os p~nsjdores rosa-crucianos estav~m cientes dos perigos da DaVi
~ A. \ 'f\ v;~ · .
290 291
,~
ciência, de suas probabilidades diabólicas, bem como das angélicas, e
reconheceram que u sua vinda deveria ser acompanhada de uma refor-
ma geral em toda a extensão do mundo . Este aspecto da mensagem
talvez tenha sido melhor compreendido na Inglaterra Parlamentar,
embora as circunstâncias impedissem a sua aplicação, e após a Restau-
ração a ciência recebeu autorização para desenvolver-se à parte da
utopia, 13 bem como da idéia de uma sociedade reformada e educada
para recebê-la. O relativo menoscabo das possibilidades sociais e edu- APÊNDICE
cacionais do movimento representou certamente uma calamidade para
o futuro.
Desse modo, o Iluminismo Rosa-Cruz foi realmente - assim su- OS MANIFESTOS ROSA-CRUCIANOS
ponho - um esclarecimento, apresentando dentro de sua própria estru-
tura estranha de referência às influências da magia e dos anjos, da NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
profecia e do apocalipse, um movimento do qual a maioria dos aspec-
tos só pode ser descrita como esclarecida. Embora o Iluminismo pro- A bibliografia das primeiras edições dos manifestos é complicada,
priamente dito, a Aujklãrung, pareça inseriiottJma atmosfera muito nela não existindo nenhum estudo atual satisfatório. As informações
diferente, não obstante isso, o seu racionalismo teve toques de lumi- bibliográficas podem ser encontradas no que se segue:
nosidade. As palavras de Comênio em sua Via Lucis, que foi chamada
"A Fama de Comênio", poderiam servir de assunto para ambos os F. Leigh Gardner, A Catalogue Raisonnê of Works on the Occult
Iluminismos: 14 Sciences, voI. I: Rosicrucian Books, editado particularmente,
1923, itens 23-29.
Se a luz da Sabedoria Universal puder ser acesa, será capaz de "Eugenius Philalethes" (Thomas Vaughan ), T he Fame and Coniession
espalhar seus raios luminosos através do mundo inteiro do inte- of the Fraternity of the R.c. ... 1652, fac-símile reimpresso,
lecto humano (tal qual a radiância do sol, sempre que ao nascer ed. F. N. Pryce, editado particularmente, 1923. Em sua introdu-
ela se estende do leste para o oeste) e de despertar a alegria ção (pp. 12 e ss.), Pryce apresenta uma lista das edições dos
nos corações dos homens e transformar seus desejos. Porquanto,
se eles puderem vislumbrar seu próprio destino e o do mundo
.
'~
manifestos com análises de seus conteúdos.
claramente apresentados à sua frente nessa luz suprema, e apren- De Manifesten der Rosenkruisers, ed. Adolf Santing, Amersfoort, 1913.
derem como usar os meios que infalivelmente conduzem aos bons Esta reedição da tradução holandesa da Fama e da Coniessio,
resultados, por que não deverão eles empregá-los efetivamente? publicada em 1617, também contém as reedições do prefácio para
a Fama, de 1614; o texto alemão da Fama de 1615; a Coniessio
oriunda da edição de 1615 do original em latim, e a tradução
alemã da mesma, oriunda da edição de 1615. A introdução de
Santing (pp. 13 e ss.) apresenta uma lista das edições dos ma-
nifestos.
Cbymiscbe Hocbzeit Cbristiani Rosencreutz, 00. F. Maack, Berlim,
1913. Esta reedição do texto em alemão do Chemical W ~dding
também reimprime os textos em alemão dos dois manifestos. A
introdução e as notas não são fidedignas.
13. S<:>~re o colapso da utopia ap6s a Restauração, consultar H . Trevor- A presente nota, feita numa linguagem não-especialisada, visa
-Roper, ReIJgJon, tbe Bejormation and Social Cbange, pp. 291 e ss. apenas dar um breve resumo das edições anteriores. A lista é quase que
14. ~o, The Way 01 Light, trad. Campagnac, p. 30. certamente incompleta. -.
.i~ cJ~i\N
292
(I) o ,p~imeiro item ?a bibliografia dos manifestos deve ser a "répli. tar anteriormente pp. 53-4 desta tradução)
ca a Fama publicada por Adam Haselmeyer em 1612. A exis- O prefácio para a Conjessio.
tência dessa "réplica" editada, de 1612, foi registrada por W. A Coniessio Fraternitatis R. c., Ad Eruditos Europae, em catorze
Begemann no Monatsheften der Comeniusgesellscbajt, VaI. VIU capítulos.
(1899). A "réplica" foi reimpressa na primeira edição da Fama.
Uma tradução inglesa da "réplica", feita por Pryce, será encon- (IV) As edições anteriores dos manifestos. (Não repito aqui os exten-
trada na edição do mesmo, da Fama and Conjessio, pp. 57-64. sos títulos em alemão, que seguem as mesmas linhas do título da
La edição da Fama, com alterações de acordo com os conteúdos).
Haselmeyer afirma que vira um manuscrito da Fama em 1610.
Uma edição em Cassel, por Wilhelm Wessel em 1615, omite
(II) A La edição da Fama. ., todo o assunto das duas primeiras edições e imprime apenas os dois
Allgemeine und General Reformation, der gantzen toeiten Welt. manifestos com seus prefácios. Como sempre a Fama; a Conjessio
Beneben der Fama Fraternitatis, dess Lõblicben Ordens des Ro- está impressa no original em latim, porém acrescida da tradução
senkreutzes, an alle gelehrte und Hdupter Europae geschrieben: alemã (dividida em capítulos, conforme o original).
Auch einer kurtzen Responsion von des Herrn Haselmeyer ges- Uma edição em Frankfurt por Johann Bringer, em 1615,
tellet, welcher dessuiegen uon den [esuitern ist gefanglich inclui a Fama, a Conjessio (numa outra tradução alemã, sem a
eingezogen, und auff eine Galleren gescbmiedet: Itzo oflentlich divisão em capítulos), a "réplica" de Haselmeyer e várias outras
in Druck uerjetiget , und allen trewen Hertzen comuniceret worden à Fama, e a Reforma Geral (extrato de Boccalini).
Gedrucht zu Cassel, durch Wilhelm Wessell, Anno MDCXIV.
Uma edição em Cassei por Wilhelm WesseI em 1616, repro-
O volume contém os seguintes itens: duz a edição de Frankfurt de 1615, com algumas réplicas adicio-
Epístola ao Leitor nais e outro assunto.
A Reforma Geral (isto é a tradução alemã do trecho de Traiano Uma edição em Frankfurt em 1617, por Bringer começa com
Boccalini: "Ragguagli di Parnaso" (sobre o qual consultar ante- a Fama e a Conjessio em alemão; a Reforma Geral está omitida,
riormente, pp. 147 e ss. desta tradução). mas o volume contém algum material novo, incluindo a defesa
A Fama da Ordem por "julianus de Campis". Ao que eu saiba, após 1617
"Réplica", de Haselmeyer. não foram publicadas novas edições dos manifestos na Alemanha
durante o século XVII.
Havia uma segunda edição em Cassei por Wilhelm Wessel, poste-
rior a 1614, idêntica ao primeiro excerto para o acréscimo de (V) Traduções inglesas dos manifestos.
uma outra "réplica" aos Irmãos R. C. Tanto na Fama como na Conjessio, está declarado que a primeira
(lI!) A La edição da Confessio. foi "apresentada em cinco idiomas" (consultar mais adiante, pp.
272, 276 desta tradução). Exceto a tradução holandesa, impressa
Secretioris Pbilosopbiae Consideratio breuis a Philipp a Gabella,
Pbiiosopbiae St (studioso?) conscripta, et nunc primam una cum
provavelmente em Amsterdã em 1617 (e reimpressa por Santing),
Coniessione Praternitatis R. C. in lacem edita Cassellis, Excudebat não existem indícios de traduções impressas posteriormente. As
Guilbelmus Wessellius Ill/", Princ. Typograpbus. Anno post natum primeiras traduções em outros idiomas, provavelmente circularam
Christum MDVXV. No verso da página de rosto : - Gen. 27. em manuscrito.
De rore Caeli et Pinguedine Terrae det tibi Deus. ~ Certamente existiram traduções inglesas circulando em ma-
a volume contém: nuscrito, muito antes da publicação de Vaughan de 1652. Em seu
prefácio ele afirma estar seguindo a tradução feita por ((mios
A Consideratio breois, por Philipp a' Gabella, dedicado a Bruno
desconhecidas". Pryce demonstrou em sua introdução na The
Carolus Uffel, em nove capítulos, seguidos por uma oração. A Fame and Conjession (pp. 3·8), que a tradução impressa por
obra está baseada na Monas Hieroglyphica, de John Dee (consul- Vaughan corresponde muito de perto âquela do manuscrito . .
294
dialeto escocês, conservada entre os documentos do Conde de o orgulho e a ganância dos eruditos é tão grande, que eles não tole-
Crawford e Balcarres, datada de 1633. Ele julga que tanto o rarão entrar num acordo; mas se fossem unidos, poderiam estar des-
manuscrito de Crawford quanto aquele copiado por Vaughan providos de todas aquelas coisas, que em nosso século Deus tão ge-
procederam de um original que deve ter sido muito anterior a nerosamente nos concedeu, e compilarem um Librum Naturae, ou um
1633. método perfeito de todas as artes; mas é tal a oposição deles, que
A tradução inglesa em manuscrito, de propriedade de ainda conservam e relutam em abandonar o antigo lrocedimento, a
Ashmole e da qual ele fez uma cópia (consultar anteriormente, consideração ao "Porphyry", 1 a Aristóteles e Galile~; sim, e isto que
pp. 212-3 desta tradução), provavelmente era anterior àquele. não era s:não uma simples demonstração de cultura, mais do que a
pura e evidente luz e verdade, os quais se vivos fossem agora, com
No interesse da cultura, seria conveniente que houvesse uma muita alegria abandonariam suas falsas doutrinas. Eis, porém, que a
reimpressão de todos os contextos dos volumes, que abrangem as fraqueza é excessiva para uma obra tão insigne. E embora na teologia,
primeiras edições da Fama e da Conjessio , juntamente com uma tradu- física e matemática a verdade se opõe a ela mesma, 2 apesar disto o
ção em inglês de todos eles. Isto possibilitaria aos estudantes fazer antigo inimigo, com a sua sutileza e habilidade manifesta-se ao difi-
uma análise detalhada do ambiente no qual os manifestos apareceram. cultar toda boa intenção com seus instrumentos e criaturas indecisas.
Nas páginas que se seguem, somente a Fama e a Conjessio estão reim- Com o propósito de uma reforma geral, o pai mais piedoso e imensa-
pressas, conforme aparecem na tradução inglesa publicada por Thomas mente ilustrado, nosso irmão C.R., alemão, chefe e criador de nossa
Vaughan em 1652, com algumas modernizações na ortografia e pon- Fraternidade, há muito tempo que se esforçara e trabalhara, e que
tuação, e com o acréscimo de umas poucas anotações. A tradução está devido à sua pobreza (embora descendendo de pais nobres) aos cinco
longe de ser perfeita, (principalmente aquela da Conjessia), porém, as anos fora para um convento, onde aprendera o grego e o latim (e de
suas pequenas insuficiências e confusões não obscurecem o seu curso acordo com seu desejo ardente e solicitação) embora ainda um adoles-
e significado. cente, associara-se a um irmão, P .A.L., o qual decidira partir para a
Terra Santa.
FAMA FRATERNITATIS Apesar desse irmão ter morrido em Chipre, e assim jamais hou-
ou uma vesse ido a Jerusalém , o nosso irmão C. R. não regressou, tendo em-
DEsCOBERTA DA FRATERNIDADE DA MAIS NOBRE ORDEM DA ROSA-CRUZ barcado sozinho para Damasco, e daí pretendendo ir até Jerusalém;
mas devido a fraqueza de seu corpo ainda permaneceu lá, e graças à
Reconhecendo que o único Deus sábio e misericordioso, nestes sua capacidade para a física, obteve as boas graças dos turcos. Neste
últimos dias, esparzira tão generosamente a sua clemência e bondade meio tempo, o acaso fê-lo conhecer os homens sábios de Damasco na
pela humanidade, mediante as quais alcançamos cada vez mais o reco- Arábia, e observou atentamente as coisas espantosas que faziam, e o
nhecimento perfeito de seu Filho Jesus Cristo e da Natureza, para que quanto tinham absorvido da Natureza; assim sendo, o espírito eleva-
possamos vangloriar-nos legitimamente do tempo feliz, no qual não do e nobre do irmão C.R. ficou tão agitado, que Jerusalém já não o
apenas nos revelou a metade do mundo, que até agora permanecia des- interessava tanto quanto Damasco; e também já não conseguiu mais
conhecida e secreta, mas também nos manifestou inúmeras maravilhas refrear seu desejo, e fez um acordo com os árabes: por uma determi-
jamais vistas até este dia, como sejam as obras e criaturas da Natureza nada quantia de dinheiro, deveriam levá-lo para Damasco; não tinha
e além disto enobreceu os homens, imbuiu-os da sabedoria magnifi- senão 16 anos quando seguiu para lá, possuindo então uma compleição
cente, os quais deveriam renovar e transformar parcialmente todas as
robusta da raça holandesa. Uma vez lá, foi recebido (conforme ele
art~ (~esta nossa era maculada e imperfeita), em perfeição; para que
assim, finalmente, o homem pudesse compreender sua própria dignida- mesmo afirmou) não como um desconhecido, mas como alguém que
de e merecimento, e o motivo pelo qual é chamado microcosmo, e até há muito era esperado; chamaram-no pelo seu nome, e revelaram-lhe
que ponto seu conhecimento abrangia a Natureza.
1. Um erro relativo a "papismo" ou "catolicismo". No original em demIo
Embora .com isso o mundo inculto não se vá sentir senão um consta "o Papa" . . ..
pouco satisfeito, mas antes por esse motivo sorri e escarnece; também

296
.L ~:oL4:.t.'mtt:."_ta. elo meomo n

. .; ;
outros segredos de fora de seu convento, à vista do que ele não con- causa definitiva da discórdia, da cegueira e da escuridão no mundo. Da
seguiu senão maravilhar-se imensamente. Lá, aprendeu melhor o idioma mesma forma, se analisássemos todas, e as diversas pessoas que vivem
árabe, e assim no ano seguinte traduziu o livro M. para o latim clás- na terra, descobriríamos que aquilo que é bom e correto, é estarmos
sico, o qual posteriormente levou com ele. Foi esse o local onde apren- sempre de acordo com nós mesmos; mas todo o resto é assinalado por
deu a física e a matemática, com as quais o mundo teria tido motivo milhares de conceitos falsos.
para regozijar-se, se existisse mais amor e menos inveja. Passados três Passados dois anos, o irmão C.R. partiu da cidade de Fez, e na-
anos, tornou a embarcar, com a devida aprovação, para o Egito, onde vegou para a Espanha levando muitas coisas valiosas, esperando (des-
não permaneceu muito tempo, limitando-se a observar melhor as plan- de então) que tendo ele pessoalmente despendido seu tempo em sua
tas e as criaturas. Navegou por todo o Mediterrâneo e assim chegou a viagem de um modo tão proveitoso, que os homens cultos na Europa
Fez, para onde os árabes o haviam dirigido. E é para nós uma grande regozijar-se-iam com ele, e começariam a regulamentar e organizar seus
vergonha, que os homens sábios, tão distantes um do outro, não ape- estudos de acordo com aquelas bases estáveis e eficazes. Por conse-
nas tivessem uma só opinião, abominando todas as obras controversas, guinte, conferenciou com os eruditos da Espanha, demonstrando-lhes
mas também se mostrassem tão dispostos e prontos para transmitir os erros das nossas artes, como deveriam ser corrigidos, e de onde
seus segredos aos outros, sob o juramento do sigilo. colheriam a verdadeira Indicia do futuro, e em que ponto deveriam
Todos os anos, os árabes e africanos enviam alguém de um país 'concordar com aquelas coisas já passadas; e também como os erros
para o outro, para uma investigação mútua, relativa às suas artes, sa- da Igreja e toda a Philosophia Moralis deveriam ser reformadas. Ele
ber se por ventura descobriram coisas melhores, ou se a experiência lhes mostrou a vegetação nova, os novos frutos e os animais, os quais
diminuiu a eficácia de suas conclusões. Anualmente surgia alguma coisa se harmonizavam com a antiga filosofia, e recomendou-lhes a nova
para avivar o brilho dos conhecimentos, e assim a matemática, a física Axiomata, mediante a qual todas as coisas seriam integralmente res-
e a magia (pois nesses assuntos os eruditos de Fez são muito compe- tauradas. Todavia, para eles aquilo foi motivo de caçoada; e sendo
tentes) foram reformadas. Visto que atualmente na Alemanha não há uma coisa nova, recearam que seus nomes importantes fossem rebai-
falta de homens eruditos, magos, cabalistas, médicos e filósofos, oxalá, xados, caso agora tivessem novamente que começar a aprender e reco-
existisse mais amor e bondade entre eles, e a sua maioria não conser- nhecer seus muitos anos de erros, aos quais estavam habituados, e por
vasse seus segredos apenas para si mesma. Em Fez, ficou conhecendo meio dos quais haviam conseguido o suficiente. Aquele que tanto
os que eram geralmente chamados Habitantes Elementares, que lhe amava a intranqüilidade deixe que seja reformado.
revelaram muitos de seus segredos. Assim como nós, alemães, também Ouvia sempre a mesma cantilena que lhe era recitada por outras
reuniríamos muitas coisas, caso houvesse uma união igual e o desejo nações, a qual o emocionava mais, porque ocorria ao contrário de suas
de procurar os segredos entre nós. expectativas, estando liberalmente preparado para transmitir todas as
Sobre aqueles de Fez, muitas vezes ele reconheceu que a sua suas artes e segredos aos eruditos, se ao menos se tivessem incumbido
magia não era inteiramente pura, e também que a sua cabala era pro- de escrever a verdadeira e infalível Axiomata, de todas as faculdades
fanada pela sua religião; mas sem embargo, ele sabia como utilizar-se e artes, e da Natureza inteira, e daquilo que ele sabia que os orientaria,
proveitosamente da mesma, e encontrou terreno mais adequado para igual a um globo ou círculo, até o único ponto do meio e Çentrum, e
a sua fé, completamente satisfatório com a harmonia do mundo in- (conforme é comum entre os árabes) serviria como uma norma) so-
teiro, e maravilhosamente infundida em todos os períodos das épocas. mente para os sagazes e cultos. Que também deveria existir uma S0-
E por isso, prosseguiu naquela harmonia perfeita que, tal como cada ciedade na Europa) a qual poderia ter ouro) prata e pedras preciosas
uma das diversas sementes contidas numa árvore sã, ou fruto, da suficientes para oferecê-Ias aos reis, para suas utilidades imprescindí-
mesma forma é inserido no corpo insignificante do homem todo um
veis e objetivos lícitos; iguais àqueles que como soberanos, pudessem
mundo grandioso, cuja religião, política, higidez, membros, natureza,
apresentar-se para que aprendessem tudo que Deus sofrera a fim de que
linguagem, palavras e obras encontram-se em concordância, comparti-
lhando os sentimentos e igualando-se em harmonia e melodia com Deus, o homem adquirisse conhecimento, e desse modo estarem habilitados,
em todas as ocasiões de necessidade, a dar um conselho àqueles que
o céu e a terra. E aquilo que está em dissonância com eles é o engano,
a falsidade, e o Demônio, que sozinho é o primeiro, intermediário e a dele precisassem) tal qual os oráculos pagãos. Devemos confessar,.

298
mente, que o mundo daqueles dias já era grande com as grandes con- qual dedicava uma grande afeição) três de seus irmãos: irmão G.V.,
fusões, esforçando-se por livrar·se delas; e criara homens sofredores, irmão J.A., e irmão J.O., os quais além disso, possuíam mais conheci-
virtuosos, que irromperam com toda a força através das trevas e do mento das artes do que muitos outros; fez com que os três se com-
barbarismo, deixando a nós para sucedê-los e segui-los: e indubitavel- prometessem a ser fiéis, diligentes e reservados; e também consigna-
mente foram o ponto máximo in trigono igneo, cuja chama deveria rem cuidadosamente por escrito tudo quanto ele lhes informasse, tendo
agora ser cada vez mais brilhante, e certamente deveria proporcionar como objetivo que aqueles que estavam destinados a aparecer, e por
ao mundo a derradeira luz. meio de uma revelação especial, deveriam ser recebidos por essa Frater-
Outrossim, um desses, Theophrastus (Paracelso), o fora por ten- nidade, e não deveriam ser enganados por meio de uma só sílaba ou
dência e vocação, embora não pertencendo à nossa Fraternidade; apesar palavra.
disto lera zelosamente o livro M: mediante o qual seu ingenium aguça- Foi desse modo que teve início a Fraternidade Rosa-Cruz; pri-
do foi estimulado; mas esse homem foi também interceptado em sua meiro, com apenas quatro pessoas, e por elas foi criada a linguagem
marcha pela multidão de homens cultos e homens pretensamente sá- e a escrita mágicas, com um grande dicionário, o qual ainda usamos
bios, tanto que jamais foi capaz de transmitir aos outros seus conheci- diariamente para louvar e glorificar a Deus, e para nele encontrar a
mentos e compreensão que possuía da Natureza. E por isso, em seus sabedoria; fizeram também a primeira parte do livro M. Contudo,
manuscritos ele antes escarnecia essas corporações ocupadas, e não devido ao seu trabalho ser excessivamente árduo, e a indizível afluên-
lhes demonstrava inteiramente o que ele era; não obstante ter sido cia dos enfermos que começava a estorvá-los, e ainda por terem no
com ele descoberta e muito bem fundamentada a supramencionada momento terminado de construir seu novo prédio (chamado Sancti
Harmonia} que sem dúvida ele teria transmitido aos eruditos, se não spiritus r, decidiram atrair e receber mais outras pessoas em sua Fra-
os tivesse achado antes dignos de uma afronta sutil do que serem ins- ternidade; com este objetivo escolheram o irmão R.C., filho do irmão
truídos nas artes e. ciências supremas; e então perdeu seu tempo com de seu falecido pai, irmão B., um hábil pintor, G., e P.D., secretário
uma existência livre e despreocupada, e deixou ao mundo seus pra- deles, sendo todos alemães, exceto J.A., assim totalizaram oito, todos
zeres insensatos. celibatários, tendo feito voto de virgindade; por eles foi compilado um
Mas não nos esqueçamos de nosso amado pai, o irmão c.R., que livro ou volume, com tudo quanto um homem possa desejar, ter incli-
após muitas viagens penosas, e as suas verdadeiras instruções infrutí- nação, ou esperar.
feras, regressou novamente à Alemanha, a qual amava de todo o co- Embora agora confessemos publicamente que o mundo deve
ração (por motivo das alterações que brevemente nela ocorreriam, e estar muito melhorado dentro de uma centena de anos, estamos
das estranhas e perigosas controvérsias). Lá, embora tivesse podido convencidos de que a nossa Axiomata permanecerá inabalável até o
fazer alarde de sua arte, principalmente a da transmutação de metais, fim do mundo, e também que ele na sua era mais elevada e sendo a
apesar disto consagrou maior apreço ao Céu e aos que o habitavam, ao derradeira, não conseguirá ver nada mais; pois a nossa Rota considera
Homem, do que a todas as glórias e pompas vãs. o seu começo a partir do dia em que Deus falou Fiat, e terminará
quando ele falará Pereat; todavia, o relógio de Deus bate cada mi-
Todavia, construiu uma morada adequada e simples, na qual me-
nuto, enquanto o nosso mal bate as horas perfeitas. Acreditamos tam-
ditava sobre a sua viagem, e sobre filosofia, condensando-as num ver-
dadeiro memorial. Nessa casa passou grande parte do tempo dedican- bém firmemente, que se nossos irmãos e pais tivessem vivido nesta
do-se à matemática, e fez muitos instrumentos delicados, ex omnibus nossa luz atual e clara, teria tratado mais severamente o Papa, Maomé,
hujus artis partibus, dos quais poucos foram por nós conservados, con- os escribas, artistas e sofistas, e ter-se-iam manifestado mais úteis, nio
forme compreenderão mais adiante. Após cinco anos, o desejo da apenas com suspiros, desejando o seu objetivo e realização.
reforma tornou a voltar à sua mente; relativamente a isto, duvidou Quando esses oito irmãos haviam determinado e organizado todas
do auxílio e apoio de terceiros, e embora pessoalmente estivesse pesa- as coisas dessa forma, e como já não houvesse mais necessidade de
roso, tentou com energia e intrepidez incumbir-se dessa missão, jun- seu trabalho, e também por estarem toclos suficientemente instruídos
tamente com alguns que a ele se tinham associado.. Por este motivo e perfeitamente aptos para discutir a filosofia manifesta e secreta,.
e para essa finalidade, desejou tirar do seu primeíro convento (40 deveriam mais permanecer juntos, mas, conforme inicialmente haviam

300 lOI
concordado, separaram-se, espalhando-se por diversos países, não só de cada um era preenchida com um sucessor idôneo. Mas, isto confes-
porque a sua Axiomata poderia em segredo ser mais profundamente saremos publicamente por essas dádivas para a glória de Deus, que
analisada pelos eruditos, mas porque eles mesmos, quando num ou em seja qual for o segredo que tenhamos aprendido no livro M. (embora
outro país observassem qualquer coisa, ou percebessem algum erro nossos olhos contemplem a imagem e configuração do mundo inteiro),
poderiam comunicá-lo uns aos outros. ' não nos foram revelados nossos infortúnios, nem a hora da morte, que
O acordo que fizeram era o seguinte: 1.0 - Que nenhum deles só é conhecida pelo próprio Deus, o qual desse modo nos conservaria
se dedicaria a qualquer outra coisa, a não ser tratar dos enfermos e a num estado contínuo de preparação. A este respeito, porém, é mais em
título gratuito. 2.° - Nenhum dos pósteros seria obrigado a usar uma nossa Confissão, na qual apresentamos 37 motivos, mediante os quais
determinada espécie de hábito, mas vestir-se de acordo com o costume agora tornamos conhecida a nossa Fraternidade, e apresentamos esses
do país. 3.° - Que a cada ano após o dia C, deveriam reunir-se na profundos mistérios, sem coação e recompensa. Prometemos também
casa S. Spiritus, ou escrever alegando o motivo de sua ausência. 4.° - mais ouro do que as duas índias proporcionam ao Rei da Espanha,
Cada um dos irmãos deveria procurar uma pessoa digna, para suce- pois a Europa está prenhe e terá uma criança forte, que terá necessi-
dê-lo após sua morte. 5.° - A palavra c.R., seria sua chancela, insíg- dade de um presente dado por um padrinho eminente.
nia e símbolo. 6.° - A Fraternidade deveria permanecer secreta pelo Após a morte de J.O., o irmão R.C. não descansou, e assim que
período de cem anos . Comprometeram-se mutuamente a observar esses pôde, reuniu os que restavam (conforme supomos), e então foi quando
seis artigos, e uma vez tendo partido cinco dos irmãos, somente os fizeram seu túmulo. Embora até agora nós (que éramos os últimos)
irmãos B. e D. permaneciam com o pai, Fra. R.C., durante um ano in- não soubéssemos onde o nosso afetuoso pai R.C. morrera, e nada mais
teiro, quando eles também partiriam. Ficavam então ao seu lado, seu tivéssemos, senão os simples nomes dos iniciadores, e de todos os seus
primo e irmão J.O., para que assim em todos os dias de sua vida sucessores, todavia, aflorou-nos à memória um segredo, o qual através
tivesse a companhia de dois de seus irmãos. E embora a Igreja por de palavras obscuras e misteriosas, e de uma linguagem centenária, o
enquanto ainda não estivesse purificada, sabemos todavia que eles irmão A., sucessor de D. (que na ordem de sucessão encontrava-se na
pensavam nela, e com que desejo ardente a procuravam. Todos os segunda linha e vivera entre muitos de nós) revelou a nós, da terceira'
anos reuniam-se com alegria, e analisavam detalhadamente o que tinham linha de sucessão. Devemos confessar que de outro modo, após a
feito; certamente seria com imenso prazer que ouviam narrar e repetir morte do mencionado A., nenhum de nós soubera por qualquer meio,
sinceramente e sem falsidade todas as maravilhas espalhadas por Deus alguma coisa a respeito do irmão R.C. e de seus irmãos congregados,
de um lado para outro do mundo. Todos podem considerar isto como a não ser aquilo que deles fora conservado em nossa Bibliotbeca filo-
certo: que essas pessoas foram enviadas e reunidas por Deus e pelo sófica, entre cujas obras constava a nossa Axiomata, abrangendo o que
céu, e escolhidas a partir dos homens mais sábios que existiram em havia de mais elevado, a Rota Mundi para o mais artificial e Protbeus,
muitas eras, e que viveram juntos, superiores a todos os outros na para o mais útil. Ademais, não sabemos com certeza se os da segunda
mais ,sublime união, no maior sigilo, e com a maior indulgência uns linha tinham sido de uma sabedoria igual ao da primeira, e se foram
com os outros. admitidos em todas as coisas. Doravante, será declarado para o nobre
Após passarem suas vidas de modo tão louvável e embora fossem leitor, não apenas o que ouvimos sobre o sepultamento de R.C., mas
imunes às doenças e à dor, apesar disso não podiam viver além do também o evidenciado publicamente pela providência, consentimento,
tempo determinado por Deus. O primeiro desta Fraternidade que mor- e preceito de Deus, ao qual obedecemos fielmente, que se formos cor-
teu e isto ocorreu na Inglaterra, foi J.O., conforme o irmão C. há respondidos discretamente e de modo cristão, não teremos receio de
tempos havia-lhe predito; ele era muito competente e muito versado apresentar publicamente impressos nossos nomes e sobrenomes, nossas
na cabala, conforme o prova seu livro H. É muito comentado na Ingla- reuniões, ou qualquer outra coisa que possa ser necessária e esteja em
terra, principalmente por ter curado o jovem Conde de Norfolk que nossas mãos.
sofria de lepra. Decidiram, isto é, tanto quanto lhes fosse possível, E agora, eis a verdadeira narrativa sobre a descoberta do insigne
que o local onde seria sepultado deveria manter-se secreto, assim é que e iluminado homem de Deus, Fra. C.R.C. Após o falecimento de A. na
até hoje ignoramos o que aconteceu com alguns deles; contudo, a vaga Gallia Narbonensis, sucedeu-o nosso estimado irmão N.N. Este ho-

.302
mem, após ter-se dirigido a nós para fazer o juramento solene de fide- Jesus mibi omnia. 4
lidade e sigilo, informou-nos em bana lide que A. o consolara dizendo
que esta Fraternidade dentro em breve não deveria mais permanecer No centro viam-se quatro figuras encerradas em círculos, cujas
tão oculta, mas que seria benéfica, necessária e recomendável para a inscrições eram as seguintes:
nação alemã inteira; que de forma alguma envergonhava-se de seu
estado. No ano seguinte, e após ter terminado seus estudos na escola 1. Nequaquam vacuum.
e agora pretendendo viajar, e para este objetivo estando suficiente- 2. 'Legis Jugum.
mente abastecido pela bolsa de Fortunatus, pensou (sendo um bom 3. Libertas Evangelii.
arquiteto) em alterar alguma coisa em seu prédio e torná-lo mais ade-
quado. Nessa reforma ele deparou-se com uma placa comemorativa de 4. Dei gloria intacta. 5
. bronze, que continha todos os nomes dos irmãos, e mais algumas ou- Tudo isso está visível e resplendente, como o estão os sete lados
tras coisas. Ele a levaria para uma outra galeria abobadada mais ade- e os dois Heptagoni; por conseguinte, reunidos, ajoelhamo-nos e ren-
quada; porquanto onde ou como Fra. R.c. morrera, ou em que país demos graças ao único sábio, único todo poderoso e único Deus eterno,
fora enterrado, permanecera oculto aos nossos predecessores e desco- o qual nos ensinara mais do que todas as faculdades mentais dos ho-
nhecido para nós. Enterrado na placa havia um grande prego bastante mens poderiam ter descoberto; glorificado seja seu santo nome. Divi-
forte, de modo que ao ser arrancado com força, trouxera com ele o dimos essa galeria em três partes: a superior, ou teto, a parede ou
proveniente da parede fina, uma pedra não muito grande ou reboque lado, o piso ou chão.
da porta escondida; e assim, inesperadamente, ele a descobriu. Por
este motivo, foi com alegria e imbuídos de um desejo ardente, que No que se refere à parte superior não a entenderão muito desta
derrubamos o resto da parede e desobstruímos a porta, sobre a qual vez, a não ser que estivesse dividida de acordo com os sete lados à volta
estava escrito em letras grandes: Post 120 annos patebo, com o ano do triângulo que se encontrava no centro luminoso; 6 porém, o que
do Senhor indicado embaixo. Por esse motivo agradecemos a Deus, nele está contido, vós, se for a vontade de Deus (que desejais perten-
deixando-a ali ficar naquela mesma noite, porque primeiro deveríamos cer à nossa Sociedade) contemplareis com os vossos próprios olhos;
examinar o nosso Roiam. Mas tomamos a nos referir à Confissão} pois contudo, cada lado da parede divide-se em dez figuras, cada uma com
o que aqui publicamos é para auxiliar aqueles que são dignos, contudo as suas várias estampas e frases, conforme verdadeiramente reveladas
para os indignos (segundo a vontade de Deus) ela terá pouca utili- e apresentadas no Concentratum, aqui em nosso livro.
dade. Pois, assim como a nossa porta foi tão extraordinariamente des- A parte do fundo é novamente dividida num triângulo, 7 mas
coberta após tantos anos, abrir-se-á também uma porta na Europa por nele estar descrito o poder e o regulamento dos governantes iníe-
(quando a parede for retirada), a qual está começando a aparecer, e o riores," deixamos de demonstrar o mesmo, por temer o mundo per-
que é ardentemente esperado por muitos. verso e ímpio. Mas aqueles providos com o antídoto celestial pisam e
Na manhã seguinte abrimos a porta, e aos nossos olhos surgiu esmagam com arrojo a cabeça da velha e infame serpente, com a qual
uma ~aleria abobadada de sete lados e cantos, cada um deles medindo, este nosso século se adapta perfeitamente. Cada lado ou parede tem
aproximadamente, 1,5 m de largura por 2,5 m de altura. Embora o sol uma porta ou cofre, onde se encontram diversas coisas, principalmente
jamais brilhasse dentro dela, estava iluminada com uma outra luz solar todos os nossos livros, que tínhamos por outros meios. Além do Vo-
a qual aprendera a fazê-lo com o próprio sol, e estava situada na parte
superior e no centro do teto. No meio, e em vez de uma lápide, havia um 4. "Jesus é para mim todas as coisas."
altar redondo coberto por uma chapa de bronze, tendo nela gravado: 5. "Em nenhuma parte existe um vácuo. O Jugo da Lei. A Liberdade do
A.C.R.e. Hoc uniuersi compendium unius mibi sepulcbrum [eci. S Evangelho. A glória Íntegra de Deus."
À volta do primeiro circulo, ou borda, constava: 6. "Mas que era dividido em triângulos partindo dos sete lados pata •
claridade resplendente do centro".
J. Em vez de unius deve ser lido oiuus. "Este compêndio do universo, 7. "O piso é novamente dividido em triânsulos."
fi-lo durante minha existência para ser meu túmulo." 8. As estrelas.

304

1.
cabular de Tbeopb : Par. Ho . 9 e esses dos quais usufru ímos diaria- Embaixo constavam suas próprias assinaturas:
mente sem serem adulterados . 10 Dentro dele descobrimos também o
seu Itinerarium e citam, do qual foi tirada a maior parte desta narra- 1. Fr. I. A., Fr. C. H. electione Praternisatis caput 12
ção. Num outro cofre havia espelhos das diversas virtudes, e ainda 2. Fr. G. V,} M. P. C.
num outro local, pequenas sinetas, lamparinas e principalmente cân-
3 . Fra. R. C. Junior baeres S. Spiritus
ticos maravilhosos dissimulados, e geralmente forjados com este obje-
tivo. isto é, caso viesse a acontecer que após muitas centenas de anos, 4 . Fra. B. M., P. A. Pietor et arcbitectus
a Ordem ou Fraternidade resultasse em nada, só pudessem ser recons- 5. Fr. G. G. M. P. t. Cabalista
tituídos unicamente através desta galeria abobadada.
Secundi Circuli
Como até o momento não tivéssemos visto o corpo de nosso fale-
cido pai, prudente e sábio, afastamos o altar para um lado e ao er- 1. Fra. P. A. Successor, Fr. 1. O. Mathematieus
guermos a chapa de bronze, encontramos um corpo formoso e digno, 2. Fra. A. Successor Fra. P. D.
em perfeito estado de conservação, tal qual uma contrafação viva do
que aqui se encontra com todas as suas vestimentas e atavios. Segu-
3. Fra. R. Suecessor patris C. R. C. cum Cbristo triumpbant 13

rava um livro de pergaminho, chamado I; o qual após a Bíblia é o No final estava escrito
nosso maior tesouro, e que deve ser entregue à crítica do mundo. No
final do mesmo, constava o seguinte Elogium: Ex Deo nascimur, in Jesu morimur, per spiritumsanctum revi-
viscimus. 14
Granum pectori [esu insitum. Naquela época já haviam morrido o irmão 1.0. e Fra. D., mas
C. Ros. C. ex nobili atque splendida Germaniae R.c. família onde pode ser encontrado o local em que foram enterrados? Não du-
oriundus, vir sui seculi dioinis reuelationibus subtilissimis ima- vidamos, mas nosso Fra. Superior foi enterrado no mesmo, mas algu-
ginationibus, indcjessis laboribus ad coelestia, atque humana ma coisa de muito especial foi depositada na terra, e talvez tivesse
mysteria; arcanaue admissus postquam suam (quam Arabico, et
incansável labuta de sua vida. Em suas viagens pela Arábia e Africa, arrecadou
Africano itineribus Collegerat ) plusquam regiam, atque impera- um tesouro superando o dos Reis e Imperadores; não o achando, porém, ade-
teriam Gazam suo seculo nondum conuenientem, posteritati eruen - quado para a sua época, conservou-o guardado para ser descoberto pela posteri-
dam custodiuisset et iam suaram Artium, ut et nominis, fides dade, e nomeou os herdeiros leais e fiéis de suas artes, e também de seu nome.
acconjunctissimos berides instituisset, murulum minutum omni- Construiu um microcosmo correspondendo em todos os movimentos ao macro-
bus motibus magno illi respondentem [abricasset bocque tandem cosmo, e finalmente redigiu este compêndio das coisas passadas, presentes e
futuras . Em seguida, tendo já ultrapassado um centenário, embora não atribulado
preteritarum, praesentium, et [uturarum rerum compendio ex- por nenhuma enfermidade, que jamais sofrera em seu próprio corpo e tampouco
tracto , centen ário maior non morbo (quem ipse nunquam cor- permitira que outros a sofressem, mas chamado pelo Espírito de Deus, entre os
pore expertus erat, nunquam altos infestare sinebat) ullo pel- últimos amplexos de seus irmãos, entregou sua alma iluminada a Deus seu Cria-
lente sed spiritu Dei euocante, illuminatam animam (inter Fra- dor. Um pai amado, um Irmão afetuoso, um Mestre leal, um Amigo sincero,
aqui permaneceu oculto por seus discípulos durante 120 anos. (Traduzido por
trum amplexus et ultima oscula) fidelissimo creatori Deo reddi- F. N . Pryce.)
disset, Pater áilectissimus, Era: suauissimus, praeceptor [idelis- Pelas várias informações dadas, a data em que se presume como tendo sido
simus, amicus integerimus, a suis ad 120 annos bic absconditus a da descoberta de seu túmulo, consta como sendo 1604. De acordo com a Co,,-
est. l1 [essio (ver mais adiante, pp. 277), o Irmão R. C. nasceu em 1378 e viveu du-
rante 106 anos. Conseqüentemente, morreu em 1484. Seu túmulo foi descoberto
9. "Theophrastus Paracelsus ab Hohenheim." 120 anos ap6s sua morte - isto é, em 1604.
10. "E os quais transmitimos diariamente sem serem deturpados." 12. "pela escolha do Fr. C. H., chefe da Fraternidade".
13. Triumpbantis,
11. Uma semente foi plantada no peito de Jesus . C. Ros. C. originou-se
na nobre e afamada família alemã da R. C.; um homem admitido nos mistérios 14. "Nascemos de Deus, morremos em Jesus e revivemos .uavá do· "
pirita Santo." ' . . .' ,
e segredos do céu e da terra através das revelações divinas, cogitações sutis e da

306
sido igualmente oculto. Esperamos também que este nosso exemplo
mando cristão; se bem que conheçamos quais as alterações viáveis, e
estimule mais os outros para que investiguem seus nomes (os quais
de bom grado e de todo o coração compartilharíamos as mesmas com
publicam~s ~or este motivo), e procurem o local! de seu sepultamento;
os outros homens religiosamente instruídos; apesar do nosso manus-
pois a rnaroria deles, por motivo de sua experiência e físico, é contudo crito encontrar-se em nosso poder, nenhum homem (exceto Deus so-
conhecida e enaltecida entre os congregados mais idosos; assim talvez mente) pode torná-lo comum, e tampouco qualquer pessoa indigna é
nossa Visão possa ser ampliada ou pelo menos um pouco mais escla- capaz de privar-nos dele. Mas oferecemos um auxílio oculto para uma
recida. causa tão boa, conforme Deus permita ou nos impeça de fazê-lo. Por
Com referência ao Minutum Mundum, nós o descobrimos num quanto nosso Deus não é cego, como o é o Destino pagão, mas é o
outro pequeno altar, realmente muito mais admirável do que possa embelezamento da Igreja, e a glória do Templo. Nossa Filosofia tam-
ser imaginado por qualquer homem de discernimento; mas nós não o bém não é uma nova invenção, porém é conforme Adão a adquirira
descreveremos até sermos sinceramente respondidos acerca da nossa após a sua queda, e como Moisés e Salomão a empregaram. Também
verdadeira e vigorosa Fama. E por isso, tornamos a cobrir o túmulo não deve ser posta muito em dúvida, ou desmentida por outras opi-
com as chapas, e sobre elas arrumamos o altar, fechamos a porta la- niões ou sugestões; porém, reconhecendo que a verdade é pacífica,
crando-a com todos os nossos sinetes. Também por instrução e ordens sucinta, e sempre idêntica a ela mesma em todas as coisas, e princi-
de nossa Rota, eis que surgiram alguns livros, entre os quais está palmente concedida por Jesus in omni parte e a todos os membros. E
compreendido o M. (os quais, em vez das ocupações domésticas, foram como Jesus é a verdadeira Imagem do Pai, assim é a sua Imagem. Não
feitos por M. P., digno de louvor). Finalmente separamo-nos, e dei- se deverá dizer: isto é verdade de acordo com a Filosofia, mas é ver-
xamos os herdeiros naturais de posse de nossas jóias. E assim aguar- dade de acordo com a Teologia. 15 E onde Platão, Aristóteles, Pitágo-
damos a resposta e julgamento dos eruditos ou não-eruditos. ras e outros acertaram o alvo, e onde Enoque, Abraão, Moisés e Sa-
lomão se exceleram, mas principalmente com o que aquele maravi-
Sem embargo, passado algum tempo sabemos que agora ocorrerá
lhoso livro, a Bíblia, concordou. Todos acima mencionados coopera-
uma reforma geral, não só das coisas divinas mas também das huma-
ram juntos, o que forma uma esfera ou Globo, cujas partes totais estão
nas, segundo nosso desejo, e da expectativa dos outros. Pois está de- eqüidistantes do Centro, conforme a este respeito será mais pormeno-
terminado que antes do nascer do sol, a Aurora deve surgir e irromper, rizadamente e mais simplesmente discutido cristãmente na conferência.
ou então aparecer no céu alguma claridade ou luz divina. E deste modo,
neste meio tempo, alguns que deram seus nomes, possam reunir-se Agora, porém, com relação (e principalmente neste nosso século)
para aumentar o número e o respeito de nossa Fraternidade, e dar um aos malfadados fazedores de ouro, que assumiram o comando, e com
início satisfatório e desejado aos nossos Pbilosopbical Canons, a nós esse pretexto, muitos desertores e tratantes cometem infâmias, lesam
prescritos por nosso irmão R.C., e conosco partilharem os nossos tesou- e abusam do crédito que lhes é concedido. Sim, hoje em dia, os homens
ros (os quais jamais podem faltar ou ser desbaratados), com toda a de discernimento consideram a transmutação dos metais como sendo o
humildade e amor, a fim de serem aliviados deste trabalho do mundo; " ponto máximo e o fastigium da filosofia, sendo esse todo o seu obje-
e não caminharem tão cegamente ante o conhecimento das obras mara- tivo e ambição, e que Deus seria mais considerado e reverenciado por
vilhosas de Deus. eles, o que poderia tornar-se numa grande e abundante provisão de
ouro, coisa essa que com orações espontâneas eles esperam conseguir
Mas também, para que cada cristão possa saber a qual religião e de Deus onisciente e escrutador de todos os corações. Por conseguinte,
crença pertencemos, confessamos ter o ,conhecimento de Jesus Cristo por estes aqui presentes, declaramos que os verdadeiros filósofos estão
(como o mesmo nestes últimos dias, e principalmente na Alemanha, longe de uma outra mentalidade, dando pouco apreço à fabricação do
professado do modo mais claro e puro, e atualmente purificado e des- ouro, o qual não é senão um parergon; pois além disso, eles possuem
tituído de pessoas erráticas, hereges e falsos profetas), e conservado um milhão de coisas melhores.
em determinados países ilustres, defendido e divulgado. Fazemos tam- E afirmamos com nosso extremoso pai R.C.C. Phy: a~", IIisi
bém uso de dois Sacramentos, conforme instituídos com todas as for- quantum aurum, pois para eles toda a natureza está descoberta: ele
mas e cerimônias da primeira Igreja Reformada. Na Politia, reconhe-
cemos o Império Romano e a Quartam Monarchiam como nosso co- 15. " ... mas falsa na Teologia".

.308
não exultá por poder fabricar o ouro, e que, como disse Cristo, os homem deve ser permitido considerá-la levianamente e tampouco con-
demônios lhe obedeçam; porém, sente-se alegre por ver o céu aberto cebê-la como uma coisa infundada ou inventada, e muito menos acei-
e os anjos de Deus subindo e descendo, e seu nome escrito no livro da tá-Ia como se fosse apenas um conceito nosso. É o Deus Jeová (perce-
vida. Atestamos também que sob o nome de Química foram apresen- bendo que o Deus do Sabat está quase ao alcance de todos, tornou a
tados muitos livros e ilustrações no Contumeliam gloriae Dei) confor- apressar-se no sentido de sua primeira origem, ao estar esgotando-se
me os denominaremos em sua devida época, e oferecemos um Catálogo seu período ou trajetória) e voltou-se para o comportamento da Na-
aos puros de coração, ou um registro deles. E solicitamos a todos os tureza; e o que até o momento fora ambicionado a duras penas e es-
homens eruditos para prestarem atenção nesse gênero de livros; por- forço diário, é agora revelado para aqueles que fazem pouco, ou sequer
quanto o inimigo jamais descansa, mas semeia suas sementes até que pensem nisso uma vez; porém, aqueles que o ambicionam, ele é de
alguém mais forte as extirpe. Assim sendo e de acordo com a vontade ;1 certo modo forçado, impelido para eles, para que assim a vida dos
e o significado de Fra. c.R.c.) nós, seus irmãos, tornamos a pedir a t-
piedosos possa ser aliviada de toda a fadiga e labuta, e não mais estar
todos os eruditos na Europa que deverão ler (e enviar para fora do sujeita às perturbações do Destino inconstante; mas que desse modo
país em cinco idiomas) estas nossas Famam e Conjessionem, e que, se a crueldade dos ímpios tenha o seu merecido castigo cada vez mais
lhes aprouver, poderão deliberar considerarem essa nossa oferta, e exa- f-
aumentado.
minarem as suas artes mais detidamente e mais habilmente, e julgarem
a época atual com todo o desvelo, e declararem a sua opinião por im-
presso, seja como uma Communicatio consilio, ou singulatir».
E embora neste momento não mencionemos nomes ou reuniões,
I1 Embora de modo algum possamos ser suspeitos da mínima here-
sia, ou de qualquer origem ou intenção pecaminosa contra o governo
mundano, condenamos os blasfemadores do Oriente e Ocidente (i. é, o
Papa e Maomé) contra Nosso Senhor Jesus Cristo, e de boa vontade
apesar disso a opinião de todos certamente chegará a nós, seja qual oferecemos e apresentamos ao principal chefe do Império Romano
for o idioma; e tampouco ninguém deverá fracassar, quem quer que nossas preces, segredos e os grandes tesouros de ouro.
assim apresente seu nome, e deixar de falar com alguns de nós, seja Todavia, consideramos benéfico e apropriado, para o bem dos
verbalmente ou por escrito, caso isto seja permitido a alguns. E afiro eruditos, acrescentar algo mais a isso, e dar uma explicação melhor,
mamas isto como uma verdade; seja quem for que ardentemente e do caso exista alguma coisa excessivamente profunda, oculta e registrada
fundo do coração manifeste-nos sua afeição, ao dirigir-se a nós desse de modo obscuro na Fama) ou que por determinados motivos tenha
modo, será por isso beneficiado no corpo e na alma; mas os traiçoei- sido inteiramente omitida ou deixada de lado; com isso, esperamos
ros, ou apenas ambiciosos de riquezas, esses mesmos, os primeiros de que os eruditos se sintam mais inclinados para nós, tornando-se bem
todos, não serão capazes de nos prejudicar por qualquer meio, a não
ser atrair para eles a ruína e destruição absolutas. Quanto ao nosso 1~
mais preparados e dispostos para nOS50 objetivo.
prédio (embora umas cem mil pessoas tenham dele se aproximado e o "
! No que concerne à alteração e correção da Filosofia, (tanto quanto
tenham contemplado) deverá permanecer eternamente inalterado, in- no momento seja necessário) já declaramos suficientemente sabermos
destrutível e oculto para o mundo cruel. que ela é inteiramente vulnerável e imperfeita; contudo não duvidamos,
embora a maioria sustente falsamente que ela (não sei como) é per-
feita e estável, não obstante aparentar estar dando seu último suspiro.
SUB UMBRA ALARUM TUA RUM JEHOVA Mas, conforme é comum mesmo no lugar ou país onde irrompe
.;;.
uma nova e estranha doença, a Natureza também descobriu um medi-
CONFESSIO FRATERNITATIS camento contra a mesma; assim aparecem para as inúmeras debilidades
ou da Filosofia os meios adequados, e suficientemente oferecidos para a
CONFISSÃO DA FRATERNIDADE DIGNA DE LOUVOR DA MAIS ILUSTRE .: nossa Pátria, pelos quais ela pode tornar-se novamente bem fundada,
ORDEM DA ROSA-CRUZ, REDIGIDA PARA TODOS OS ERUDITOS DA EUROPA. o que no momento aquivale a ser renovada e completamente atualizada.
Não possuímos nenhuma outra Filosofia, senão aquela que é o-
Tudo o que for publicado e por todos reconhecido com referên- cérebro e a síntese, os fundamentos e conteúdos de todas as aptidões,
cia à nossa Fraternidade e por meio da Fama já mencionada, a nenhum ciências e artes, a qual (se considerarmos nossa época) continha muitO _

310 )11
I da Teologia e medicina , porém pouco da cultura da lei, e diligente-
mente busca o céu e a terra ; ou , para resumir, que manifesta e afirma
suficientemente o Homem , pelo qual todos os que sejam cultos e se
derem a conhecer a nós e se apresentarem em nossa irmandade , junto
Por que não deveríamos, de todo coração, confiar e permanecer
com a única verdade (a qual os homens procuram através de tantos
caminhos errados e tortuosos), se Deus apenas se tivesse sentido satis-
feito por ter acendido o sexto Candelabrium para nós? Não seria bom
a nós encontrarão segredos mais maravilhosos do que até agora tinham que não precisássemos preocupar-nos, não temer a fome, a pobreza, a
conseguido e conheciam, ou eram capazes de acreditar ou manifestar. doença e a velhice?
Portanto, para declararmos sucintamente a nossa intenção a res- Não seria uma coisa magnífica, se vivêsseis sempre assim , con-
peito, devemos esforçar-nos diligentemente para que não se verifique forme o fizestes desde o começo do mundo, e ainda mais, conforme
apenas um assombro e advertências em nossa reunião, mas que da deveríeis viver até o fim dele? Não seria ótimo se habitásseis um lugar
mesma maneira todos possam saber que, embora nem despreocupada- onde nem o povo, que vive além do Rio Ganges nas Índias, pudesse
mente tenhamos consideração e apreço por tais mistérios e segredos, esconder qualquer coisa, nem aqueles que vivem no Peru fossem capa-
sem embargo insistimos ser conveniente que sejam manifestados e re- zes de manter secretas para vós as opiniões que têm?
velados para muitos. Não seria extraordinário que pudésseis ler num só livro e me-
Porquanto deve ser ensinado e acreditado , que esse nosso desejo diante essa leitura, cornpreendêsseis e vos lembrásseis de tudo aquilo
inesperado de oferecimento provocará muitos e diversos pensamentos que nos outros livros (que existiram no passado, existem agora e sur-
nos homens, para os quais (por enquanto) sejam desconhecidas as girão no futuro) acontecera, que acontece e graças a eles será aprendido
Miranda sexta aetatis; ou para aqueles que, devido à marcha do mundo e descoberto?
consideram as coisas ainda por acontecer como sendo atuais, e encon- Como seria agradável se pudésseis cantar, que em vez de pe-
tram-se impedidos através de toda espécie de importunações desta dras pudésseis tirar das rochas pérolas e pedras preciosas; em vez de
nossa época, para que assim de nenhum outro modo vivam no mundo, animais ferozes, espíritos e em vez do diabólico Plutão, estimulásseis
senão como tolos cegos, que na claridade de um dia de sol radioso, os príncipes poderosos do mundo.
não percebem e não sabem de nada, a não ser pela intuição . 0, vós, povo, a deliberação de Deus é muito diversa, aquele que
Agora, no que se refere à primeira parte, somos de opinião que terminara agora de difundir e aumentar a nossa Fraternidade, aquilo
as meditações, os conhecimentos e as invenções de nosso amado Pai . que havíamos empreendido com tanta satisfação, conforme até o mo-
Cristão (de tudo que desde o início do mundo, o discernimento do mento conseguimos este tesouro imenso sem nossos méritos, sim, sem
Homem, seja através da revelação de Deus, ou da cooperação dos anjos nossas esperanças, e os pensamentos e o propósito com a mesma fide-
e dos espíritos, ou por intermédio da sagacidade e profundidade de lidade para pô-los em prática, e que nem a compaixão e nem a piedade
compreensão, ou ainda através da prolongada observação, uso e expe- de nossos próprios filhos (os quais, alguns de nós na Fraternidade
riência, tenha descoberto, inventado, originado, corrigido e até agora possuem) nos afastarão dela, porque sabemos que esses bens inespe-
tenha sido difundido e transplantado) são tão excelentes, dignas e rados não podem ser herdados, e nem obtidos por acaso.
grandiosas, que se todos os livros devessem extinguir-se, e pelo con- Se no momento existir alguma corporação, que do outro lado ve-
sentimento de Deus Todo Poderoso todas as obras e todas as ciências nha a queixar-se de nossa discrição, de que ofereçamos nossos tesouros
viessem a perder-se, apesar disto, a posteridade conseguirá somente por tão prodigamente, e sem qualquer diferença para todos os homens, e
esse modo assentar novos alicerces, e tornar a originar a luz; o que nem sequer respeitemos e consideremos os religiosos, os eruditos cri-
talvez não fosse tão difícil, quanto se tivéssemos que começar a der- teriosos ou as pessoas de linhagem nobre mais do que as comuns;
rubar e destruir o antigo edifício em ruínas, e em seguida aumentar a àqueles não contestamos, ao reconhecer que não se trata de um assunto
sala da frente, depois de iluminar os aposentos, e então trocar as por- insignificante e fácil; mas além disso significamos tanto que o nosso
tas, a escada e outras coisas de acordo com nossa intenção. Arcana ou o que é secreto, de modo algum será comum, e geralmente
Mas, para quem isso não seria admissível, e portanto devendo torna-se conhecido. Embora a Fama seja apresentada em 5 línguas, e
ser revelado para todos de preferência a ser guardado e poupado como demonstrada a todos, de certo modo sabemos muito bem que as pes-
se fosse um adorno especial para uma época marcada ainda por vir? soas ignorantes e broncas não a aceitarão e tampouco a considerado;

312 JH
como também não avaliamos e reconhecemos os meritos daqueles que estudadas cuidadosamente. Porém , o laconismo por nós observado não
serão aceitos em nossa Fraternidade pela solicitude do Homem, mas permitirá fazermos agora uma repetição do ocorrido, até uma ocasião
pelo Domínio de nossa Revelação e Manifestação. Portanto, se os mais propícia . No momento é o bastante para aqueles que não des-
indignos se lastimam e clamam mil vezes, ou se se apresentarem ofe- prezam nossa declaração, tendo-a abordado brevemente para assim pre-
recendo-se a nós mil vezes, não obstante Deus ter ordenado aos nossos parar o caminho para seu relacionamento e amizade conosco.
ouvidos não escutar a nenhum deles; sim, Deus nos cercou com suas Todavia, para aquele a quem é permitido ver , e para sua instru-
nuvens de modo que nenhuma violência ou força pode ser empregada ção usar aquelas letras grandes e os caracteres que o Senhor Deus escre-
ou cometida contra nós, seus servos ; portanto, não podemos ser vistos vera e gravara no céu e no edifício da terra, através da mudança de
ou reconhecidos por alguém, exceto se tiver olhos de lince. Fora pre-
governo, de tempos em tempos foi alterado e renovado, esse já é dos
ciso que a Fama se apresentasse na língua materna de todos , para que
nossos (embora ele mesmo não o saiba). E pelo que sabemos, ele
aqueles não fossem despojados dos conhecimentos nela contidos, os
não desprezará nosso convite e chamado, e por isto de nenhum modo
quais (embora ignorantes) Deus não excluíra da felicidade desta Fra-
ternidade, a qual será dividida e repartida em determinados graus; tal deverá temer qualquer falsidade, pois prometemos e declaramos aber-
como aqueles que habitam a cidade de "Darncar" 16 na Arábia, e que tamente que a integridade e as esperanças de qualquer homem o de-
têm um conceito político muito diverso daquele dos outros árabes . Lá cepcionarão, seja quem for que se der a conhecer a nós sob a garantia
governam apenas os homens sábios e compreensivos, os quais com a do sigilo, e ambicione a nossa Fraternidade.
autorização do rei fazem leis especiais ; de acordo com tal exemplo , Todavia, para os falsos hipócritas, e para aqueles que buscam ou-
o governo também será instituído na Europa (no qual temos uma des- tras coisas que não a sabedoria, dizemos e atestamos publicamente e
crição registrada por nosso Pai na Religião Cristã), quando primeiro por estas linhas não poderemos dar-nos a conhecer e sermos por eles
for feito e vier a suceder aquele que deve precedê-lo. E daí em diante traídos; e muito menos serão capazes de nos prejudicar por qualquer
nossa Trombeta soará publicamente em alto e bom som, quando o mes- modo de proceder, sem a vontade de Deus ; mas certamente serão os
mo (o qual é no momento atual demonstrado por alguns , e é secreta- participantes de todo o castigo referido em nossa Fama; deste modo
mente evidenciado como uma coisa por acontecer, por meio de figuras seus conselhos nocivos cairão sobre eles mesmos, e nossos tesouros
e ilustrações) será livre e proclamado publicamente, e o mundo inteiro .permanecerão intatos e imutáveis, até a chegada do Leão, que os soli-
dele ficará impregnado. Até mesmo deste modo e tal qual no passado, citará para seu uso, e os empregará para a comprovação e o estabele-
muitas pessoas intimamente religiosas e completamente desesperadas cimento de seu reino. Portanto, devemos aqui observar bem, e fazer
sofreram a pressão da tirania do Papa, o qual mais tarde, com o gran- com que todos saibam que Deus certamente e indubitavelmente re-
de, ardente e característico entusiasmo na Alemanha, foi deposto de solveu enviar e conferir ao mundo antes de seu fim, aquilo que real-
seu trono e espezinhado, e cuja queda final foi adiada e conservada mente virá então a suceder, igual a uma verdade, luz, vida e glória
para nossos dias, quando ele também será eliminado e uma nova voz conforme teve Adão, o primeiro homem, e que perdeu no Paraíso,
porá fim ao seu ornejar. 17 A que conhecemos já se encontra razoavel- após o que seus sucessores ficaram, e foram com ele levados à miséria.
mente manifestada e reconhecida por muitos homens cultos na Alema- Por isso extinguir-se-á a servidão, a falsidade, as mentiras e a obscuri-
nha, conforme o evidenciam suas obras e as congratulações secretas. i dade, as quais pouco a pouco e com a grande revolução do mundo
Poderíamos aqui relatar e declarar aquilo que durante todo o "
estavam insinuando-se em todas as artes, obras e governos dos homens,
tempo, desde o ano de Nosso Senhor de 1378 (o do nascimento de tendo obscurecido a maioria deles . Porquanto daí originou-se uma
nosso Pai Cristão) ocorrera até agora, e no qual deveríamos repetir classe infinita de todas as modalidades de falsas opiniões e heresias,
aquelas alterações que ele assistira no mundo, nesses cento e seis anos que despojou os mais assisados de tudo quanto eram capazes de co-
de sua vida, e que legara aos nossos irmãos após sua morte, para serem nhecer sobre qual doutrina e opinião deveriam seguir e adotar, dei-
xando-os incapazes de discerni-las facilmente; percebendo por um lado,
16. Damasco. que estavam detidos, tolhidos e induzidos em erros através do res-
17. "por uma nova voz, a do rugido do leão" (de acordo com Pryce, esta peito dos filósofos e homens cultos, e por outro lado, através da ver-
interpretação consta da edição de 1617, em Frankfurt. dadeira experiência. Uma vez abolido e eliminado tudo isso, e ·em IN ·

314
, lugar instituído um preceito justo e verdadeiro, então restará a gratidão Esses caracteres e letras, conforme Deus aqui os associara às Sa-
para aqueles que labutam para tal objetivo. Mas o próprio trabalho
gradas Escrituras, assim ele as imprimira mais exteriormente na .mro:a-
será atribuído à bem-aventurança de nossa era .
vilhosa criação do céu e da terra, e até mesmo em todos os arumais.
Conforme agora confessamos voluntariamente, muitos homens su- Portanto, assim como o matemático e o astrônomo vêem e sabem dos
periores , mediante seus escritos , representarão uma grande ajuda para eclipses que estão por surgir, assim também nós podemos realm~nte
esta Reforma que está por surgir; portanto desejamos que essa honra ter presciência do mistério das obnubilações da Igreja e prognosticar
não seja atribuída a nós, como se esse trabalho fosse apenas controlado o tempo de sua duração . Desses caracteres ou letras tiramos nossa es-
e imposto por nós. Confessamos, porém , e atestamos abertamente, com crita mágica, e descobrimos e criamos uma nova língua para nosso uso
Nosso Senhor Jesus Cristo, que primeiro poderá ocorrer que as pedras próprio, na qual também está demonstrada e declarada a natureza de
venham a levantar-se e oferecerem seu serviço, antes que haja qual- todas as coisas. Por isto não é de admirar o fato de não sermos tão
quer carência de executores e realizadores das deliberações de Deus; eloqüentes em outras línguas, aquelas que sabemos estarem inteira-
sim, Deus já enviara anteriormente determinados mensageiros, os quais mente em desacordo com a linguagem de nossos antepassados, Adão e
atestariam a sua vontade, perceberiam algumas novas estrelas que apa- Enoque, e tinham ficado completamente ocultas através da confusão
recem e são vistas no firmamento nas constelações Serpentario e Cygno, babilônica.
as quais representam e demonstram para todos , que são um poderoso Devemos, contudo, deixar-vos perceber que ainda existem algu-
Signacula dos assuntos eminentes e ponderosos. 18 Deste modo, as mas Penas de Aguia em nosso caminho, as quais estorvam nosso in-
obras e caracteres sigilosos e ocultos são imprescindíveis para todas tento. Por esse motivo aconselhamos a todos lerem diligentemente e
essas coisas que são descobertas pelos homens. Embora aquele gran- continuamente a Bíblia Sagrada, pois aquele que se deleitou com o que
dioso livro da natureza permaneça em aberto para todos os homens, nela se contém, saberá que preparou para si mesmo um meio excelente
existe apenas uns poucos que possam ler e compreendê-lo. Por- para ingressar em nossa Fraternidade. Porquanto isso representa
quanto foi dado à criatura humana dois instrumentos para ouvir, bem o conjunto e os pontos principais de nosso regulamento, isto é, que
como dois para enxergar, dois para sentir o cheiro, porém apenas um todas as letras ou caracteres contidos na palavra devem ser aprendidos
para falar, e assim seria inútil esperar que se pudesse falar pelos ouvi- e devidamente considerados; e deste modo aqueles que fazem da Bí-
dos, de ouvir pelos olhos. Deste modo houve épocas ou oc~siões que blia Sagrada um modelo para suas vidas, e uma aspiração e objetivo
enxergaram, existiram também épocas que ouviram, pressentiram e ex- de seus estudos, assemelham-se muito a nós sendo praticamente nossos
perimentaram. Resta então aquele que em pouco tempo dignificará aliados; sim, deixem que ela seja um compêndio e a essência do mun-
igualmente a língua, e por ela será dignificado; aquilo que anterior- do inteiro. E não apenas tendo-a continuamente na boca, mas saber
mente às épocas fora visto, ouvido, e pressentido, finalmente agora como aplicar e orientar a sua verdadeira percepção em todas as épocas
será falado e publicamente declarado, quando o Mundo deverá des- e eras do mundo . Não é também nosso hábito prostituir e vulgarizar
pertar de seu sono pesado e letárgico, e com o coração aberto, a cabeça as Sagradas Escrituras; isto por haver inúmeros intérpretes das mes-
descoberta e de pés descalços deverá ir alegremente e prazerosamente mas; alguns afirmando-as e deturpando-as para conveniência de suas
ao encontro do Sol nascente. opiniões, outros para difamá-las e muito maldosamente compará-las a
um nariz-de-cera, que da mesma forma serve para as divindades, os
18. Relativamente às "novas estrelas" nas constelações Serpentária e Cisne,
consultar Johannes Kepler, De stella nova in pede Serpentarii : De stella incog-
filósofos, médicos e matemáticos, contra tudo aquilo que afirmamos e
nlta Cygni, Praga, 1606 (reimpresso Gesammelte Werke, ed. M. Caspar, I, pp. reconhecemos, isto é, que desde o começo do mundo não foi dado
146 e ss). Uma vez que as novas estrelas apareceram em 1604, a referência aqui aos homens um Livro mais virtuoso, mais excelente, mais edificante e
feita a das, ressalta a data de 1604 como significativa. Este é o ano no qual o salutar do que a Bíblia Sagrada. Abençoado aquele que a possuiu, e
túmulo de Rosencreutz consta ter sido descoberto.
Peuckert (Die Rosenkreutzer, pp . 53 e ss) comenta esse trecho . Eu suge-
mais abençoado ainda aquele que a lê cuidadosamente; contudo, o mais
riria que o significado religioso do ano 1604 (a data das novas estrelas e da abençoado de todos é quem a compreendeu, pois assemelha-se muito a
descoberta do túmulo) seja associado com alguma formação da "Militia Evsn- Deus e dele se aproxima muito mais . Contudo, o que quer que tenha
gelica" naquele ano. Consultar anteriormente, pp. 56-9. sido dito na Fama relativamente aos impostores e contra a ttalWZ1&1-

316 )11
ração dos metais 19 e à medicina mais elevada do mundo, a mesma pelo Inimigo do bem-estar do homem, e por esse meio até o fim ele os
coisa deve ser interpretada no sentido de que esta tão grandiosa dádiva misturará entre a boa semente, para fazer com que a Verdade seja mais
de Deus não deve de modo algum ser ridicularizada ou desprezada. difícil de ser acreditada, a qual por si mesma é simples, suave e pura,
Mas, embora ela nem sempre tenha trazido consigo conhecimentos da bem ao contrário da Falsidade que é arrogante, desdenhosa, e disfar-
Natureza, entretanto nos trouxe não apenas a medicina, mas também çada com uma espécie de brilho de uma pretensa sabedoria religiosa e
evidenciou e revelou-nos inúmeros segredos e maravilhas. Portanto, é humana. Vós que sois sensatos, abdicai desses livros, e voltai-vos para
indispensável que nos esforcemos arduamente para atingir a compreen- nós que não estamos à busca de vosso dinheiro, mas vos oferecemos
são e o conhecimento da filosofia. Ainda mais, as inteligências eminen- prazerosamente nossos grandes tesouros. Não estamos interessados em
tes não devem ser atraídas para a tintura dos metais, antes de se exer- vossos bens empregando tinturas falsas e engenhosas; desejamos, po-
citarem bem no conhecimento da Natureza. Precisa ser uma criatura rém, compartilhá-los convosco. Falamos convosco por parábolas, mas
insaciável, aquele que é tão indiferente que nem a pobreza e nem a de boa vontade desejaríamos orientar-vos para uma explanação correta,
doença podem emocioná-lo, aquele que se põe acima de todos os ou- simples, fácil e franca, uma compreensão, afirmação e conhecimento
tros homens, aquele que conseguiu dominar tudo o que aflige, pertur- de todos os segredos. Não desejamos ser por vós recebidos, mas vos
ba e magoa os outros, e que, no entanto, dedicar-se-á novamente às convidamos às nossas casas e palácios mais do que majestosos, e que,
coisas inúteis, como construir casas, arquitetar guerras e empregar toda realmente, não por nossa própria iniciativa, mas (e deveis sabê-lo
a forma de orgulho, só porque possui um abastecimento infinito de igualmente) como se forçados a fazê-lo, pelo estímulo do Espírito de
ouro e prata. Deus, por suas advertências, e pela oportunidade do momento presente.
Deus está longe de sentir-se satisfeito, pois ele exaltou os humil- O que pensais, vós que amais, e de que modo pareceis influen-
des, e abateu os soberbos com desdém; para aqueles que são de pou- ciados vendo que agora compreendeis e sabeis que admitimos verda-
cas palavras, enviou seu Anjo sagrado para lhes falar, mas os tagare- deiramente e sinceramente reconhecer Cristo, condenar o Papa, dedi-
las impuros Ele os atirou aos lugares solitários e às regiões desertas. car-nos à Filosofia autêntica, levar uma vida cristã, e a cada dia con-
É esta a recompensa adequada para os sedutores católicos apostólicos, vocar, suplicar e convidar muitos mais para a nossa Fraternidade, para
romanos (os papistas) que vomitaram as suas blasfêmias contra Cristo, os quais a mesma Luz de Deus também apareceu? Meditai, não a
e ainda assim não se abstêm de suas mentiras nesta claridade resplen- fundo, como poderíeis começar conosco, não apenas considerando os
dente. Na Alemanha, descobriram todas as suas perversidades e arti- Dons que em vós existem, e pela experiência que tendes devido à
manhas odiosas, e que por isto possam preencher integralmente a palavra de Deus, além da observação atenta da imperfeição de todas as
medida do pecado, e aproximarem-se do objetivo de seu castigo. Por artes, e de muitas outras coisas inadequadas, a fim de procurar corri-
conseguinte, dia virá em que aquelas línguas viperinas calar-se-ão, e gi-Ias, satisfazer a Deus e acomodar-vos à época em que viveis. É evi-
os três cornos duplos 20 redundarão em nada, e a este respeito em dente que se realizardes as mesmas, obtereis o seguinte proveito: todos
nossa reunião far-se-ão comentários mais amplos e pormenorizados. esses benefícios tão maravilhosamente espalhados pela Natureza por
Para concluir nossa Confissão, devemos advertir-vos sinceramente todas as partes do mundo, num determinado momento vos serão intei-
que renuncieis senão a todos, pelo menos à maioria dos livros escritos ramente oferecidos e facilmente vos aliviarão de tudo aquilo que
por falsos Alquimistas, que encaram o assunto apenas como uma pi- obscurecia a compreensão do homem, e impedia o seu funcionamento
lhéria ou um passatempo, quando eles empregam mal a Santíssima até então, tal qual os inúteis excêntricos e epíciclos.
Trindade, quando eles a empregam em coisas vãs, ou enganam as pes- Contudo, aqueles homens pragmáticos e mentalmente ocupados,
soas com figuras as mais' estranhas, e frases e discursos obscuros, e os quais ou estão ofuscados pelo brilho do ouro ou (falando mais fran-
despojam os ingênuos de seu dinheiro; o fato é que atualmente já camente) que agora são honestos, mas por pensarem que tais riquezas
foram apresentados demasiados livros iguais a esses feitos diariamente jamais pudessem faltar, corromper-se-iam facilmente e seriam levados
19. Isto é, contra os falsos alquimistas. Consultar o trecho na Fama, antes à ociosidade e à vida desregrada e arrogante, a esses desejamos que
citado à p. 308. não nos perturbem com as suas lamúrias inúteis e vãs. Deixai-os, po-
20 . "Tríplice coroa", rém, pensar, pois embora haja um remédio a ser tomado que possa

318 .u,
curar completamente. todos os males, toda~ia, aqueles destinados por
Deus a sofrer enfermidades e a serem mantidos sob o bastão corretivo A MAGIA EGíPCIA,
.\ '
jamais obterão tais remédios. E. A . Wallis Budge
Até mesmo desse modo, e embora possamos enriquecer o mundo
inteiro e dotá-lo de conhecimento e talvez livrá-lo das inúmeras atri- MENSAGENS ROSA-CRUCIANAS .
bulações, apesar disso jamais nos manifestaremos e nos daremos a diversos
conhecer a qualquer homem , sem que isto represente a vontade espe-
cial de Deus; sim, dele estará tão longe quem quer que pense conse- A MUTAÇÃO DO MUNDO ,
guir o benefício e participar das nossas riquezas e conhecimentos, sem
Yves Christiaen
e contra a vontade de Deus, que perderá sua vida procurando-nos, não
nos encontrando e não conseguindo alcançar a ambicionada felicidade
da Fraternidade dos Rosa-Cruzes. NOSSAS FORÇAS MENTAIS
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Éliphas Lévi
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RITUAL DA MACONARIA
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320 •

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